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eBookLibris Cesare Beccaria DOS DELITOS E DAS PENAS Ridendo Castigat Mores Dos Delitos e das Penas 1764 Cesare Beccaria 17381794 Edição Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasilcom Fonte Digital wwwjahrorg Copyright Autor Cesare Beccaria Edição eletrônica Ed Ridendo Castigat Mores wwwjahrorg Todas as obras são de acesso gratuito Estudei sempre por conta do Estado ou melhor da Sociedade que paga impostos tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou Nélson Jahr Garcia 19472002 ÍNDICE Apresentação Biografia do autor Prefácio do autor I Introdução II Origem das penas e direito punir III Conseqüências desses princípios IV Da interpretação das leis V Da obscuridade das leis VI Da prisão VII Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos VIII Das testemunhas IX Das acusações secretas X Dos interrogatórios sugestivos XI Dos juramentos XII Da questão ou tortura XIII Da duração do processo e da prescrição XIV Dos crimes começados dos cúmplices da impunidade XV Da moderação das penas XVI Da pena de morte XVII Do banimento e das confiscações XVIII Da infâmia XIX Da publicidade e da presteza das penas XX Que o castigo deve ser inevitável Das graças XXI Dos asilos XXII Do uso de pôr a cabeça a prêmio XXIII Que as penas devem ser proporcionadas aos delitos XXIV Da medida dos delitos XXV Divisão dos delitos XXVI Dos crimes de lesamajestade XXVII Dos atentados contra a segurança dos particulares e principalmente das violências XXVIII Das injúrias XXIX Dos duelos XXX Do roubo XXXI Do contrabando XXXII Das falências XXXIII Dos delitos que perturbam a tranqüilidade pública XXXIV Da ociosidade XXXV Do suicídio XXXVI De certos delitos difíceis de constatar XXXVII De uma espécie particular de delito XXXVIII De algumas fontes gerais de erros e de injustiças na legislação e em primeiro lugar das falsas idéias de utilidade XXXIX Do espírito de família XL Do espírito do fisco XLI Dos meios de prevenir crimes XLII Conclusão APÊNDICE Respostas às Notas e observações de um frade dominicano sobre o livro Dos Delitos e das penas I Acusação de impiedade II Acusações de sedição Extrato da correspondência de Beccaria e de Morellet sobre o livro Dos Delitos e das penas De Morellet a Beccaria De Beccaria a Morellet Notas DOS DELITOS E DAS PENAS Cesare Beccaria APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia Dos delitos e das penas é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas como Voltaire Rousseau Montesquieu e tantos outros Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva essa concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos delitos Prodigalizarase a prática de torturas penas de morte prisões desumanas banimentos acusações secretas Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria Sua obra foi elogiada por intelectuais religiosos e nobres inclusive Catarina da Rússia As críticas foram poucas geralmente resultantes de interesses egoísticos de magistrados e clérigos A humanidade encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo especialmente no Brasil A prática de torturas entre nós tem sido cada vez mais freqüente A pena de morte que vai sendo abolida em países mais avançados aqui tem sido proposta por inúmeros políticos raivosos Crianças ficam encarceradas sob condições cruéis às vezes bárbaras Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões Assassinos frios por serem influentes desfrutam de todas as mordomias Que o espírito de Beccaria nos ilumine BIOGRAFIA DO AUTOR CESARE BONESANA marquês de Beccaria nasceu em Milão no ano de 1738 Educado em Paris pelos jesuítas entregouse com entusiasmo ao estudo da literatura e das matemáticas Muita influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e de LEsprit de Helvétius Desde então todas as suas preocupações se voltaram para o estudo da filosofia Foi ele um dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão e que inspirandose no exemplo da de Helvétius divulgou os novos princípios da filosofia francesa Além disso a fim de divulgar na Itália as idéias novas Beccaria fez parte da redação do jornal Il Caffè que apareceu de 1764 a 1765 Foi mais ou menos por essa época que insurgindose contra as injustiças dos processos criminais em voga Beccaria principiou a agitar com os seus amigos entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri os complexos problemas relacionados com a matéria Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene Receoso de perseguições o autor mandou imprimir sua obra secretamente em Livorno e ainda assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e indecisas O tratado Dos Delitos e das Penas é a filosofia francesa aplicada à legislação penal contra a tradição jurídica invoca a razão e o sentimento fazse portavoz dos protestos da consciência pública contra os julgamentos secretos o juramento imposto aos acusados a tortura a confiscação as penas infamantes a desigualdade ante o castigo a atrocidade dos suplícios estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana entre os pecados e os delitos condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos assim como a separação do poder judiciário e do poder legislativo Nenhum livro fora tão oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente extraordinário sobretudo entre os filósofos franceses O abade Morellet traduziuo Diderot anotouo Voltaire comentouo dAlembert Buffon Hume Helvétius o barão dHolbach em suma todos os grandes homens da França manifestaram desde logo a sua admiração e seu entusiasmo Em 1766 indo a Paris Beccaria foi alvo das mais vivas demonstrações de simpatia No entanto tendo regressado a Milão cidade que ele não mais abandonou teve de sofrer uma campanha infamante por parte dos seus adversários que ainda se apegavam aos preconceitos e à rotina para acusálo de heresia A denúncia não teve conseqüências mas Beccaria ressentiuse de tal forma que o receio de novas perseguições levouo a renunciar às dissertações filosóficas Em 1768 o governo austríaco sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II que procurara atraílo para São Petersburgo criou em seu favor uma cátedra de economia política Beccaria morreu em Milão em 1794 PREFÁCIO DO AUTOR ALGUNS fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador compilados por ordem de um príncipe que reinou há doze séculos em Constantinopla combinados em seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de comentários obscuros constituem o velho acervo de opiniões que uma grande parte da Europa honrou com o nome de leis e mesmo hoje o preconceito da rotina tão funesto quanto generalizado faz que uma opinião de Carpozow1 uma velha prática indicada por Claro2 um suplício imaginado com bárbara complacência por Francisco3 sejam as regras que friamente seguem esses homens que deveriam tremer quando decidem da vida e fortuna dos seus concidadãos É esse código informe que não passa de produção monstruosa dos séculos mais bárbaros que eu quero examinar nesta obra Limitarmeei porém ao sistema criminal cujos abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade pública sem preocupação de dar ao meu estilo o encanto que seduz a impaciência dos leitores vulgares Se pude investigar livremente a verdade se me elevei acima das opiniões comuns devo tal independência à indulgência e às luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de viver Os grandes reis e príncipes que querem a felicidade dos homens que governam são amigos da verdade quando esta lhes é revelada por um filósofo que do fundo do seu retiro mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em combater com as armas da razão as empresas da violência e da intriga De resto examinandose os abusos de que vamos falar verificarseá que os mesmos constituem a sátira e a vergonha dos séculos passados mas não do nosso século e dos seus legisladores Se alguém quiser darme a honra de criticar meu livro trate antes de apreender bem o fim que me propus Longe de pensar em diminuir a autoridade legítima verseá que todos os meus esforços só visam a engrandecêla e esta se engrandecerá de fato quando a opinião pública for mais poderosa do que a força quando a indulgência e a humanidade fizerem que se perdoe aos príncipes o seu poder Críticos houve cujas intenções não podiam ser honestas que atacaram esta obra alterandoa4 Devo interromperme um instante para impor silêncio à mentira azoinada aos furores do fanatismo às calúnias covardes do ódio Os princípios de moral e de política aceitos entre os homens derivam em geral de três fontes a revelação a lei natural e as convenções sociais Não se pode estabelecer comparação entre a primeira e as duas últimas do pontodevista dos seus fins principais completamse porém ao tenderem igualmente para tornar os homens felizes na terra Discutir as relações das convenções sociais não significa atacar as relações que podem encontrarse entre a revelação e a lei natural Uma vez que esses princípios divinos embora imutáveis foram de mil modos desnaturados nos espíritos corruptos ou pela maldade humana ou pelas falsas religiões ou pelas idéias arbitrárias da virtude e do vício deve parecer necessário examinar pondo de lado quaisquer considerações estranhas os resultados das simples convenções humanas quer essas convenções tenham sido feitas realmente quer se suponham vantajosas para todos Todas as opiniões todos os sistemas de moral devem reunirse necessariamente nesse ponto e nunca se louvariam bastante os louváveis esforços tendentes a reconduzir os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios que levam os homens a viver em sociedade Podem pois distinguirse três espécies de virtudes e de vícios cuja fonte está igualmente na religião na lei natural e nas convenções políticas Jamais devem essas três espécies estar em contradição entre si não alcançam contudo os mesmos resultados e não obrigam aos mesmos deveres A lei natural exige menos que a revelação e as convenções sociais menos que a lei natural Assim é muito importante distinguir bem os efeitos dessas convenções isto é dos pactos expressos ou tácitos que os homens se impuseram porque nisso deve residir o exercício legítimo da força nessas relações de homem a homem que não exigem a missão especial do Ser supremo Pode dizerse portanto com razão que as idéias da virtude política são variáveis As da virtude natural seriam sempre claras e precisas se as fraquezas e as paixões humanas não empanassem a sua pureza As idéias da virtude religiosa são imutáveis e constantes porque foram imediatamente reveladas pelo próprio Deus que as conserva inalteráveis Pode pois aquele que fala das convenções sociais e dos seus resultados ser acusado de mostrar princípios contrários à lei natural ou à revelação por nada dizer a respeito Se diz que o estado de guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade é o caso de comparálo a Hobbes5 que não supõe para o homem isolado nenhum dever nenhuma obrigação natural Não se pode ao contrário considerar o que ele diz como um fato que foi tão somente a conseqüência da corrupção humana e da ausência das leis Enfim não é um erro censurar um escritor que examina os efeitos das convenções sociais por não admitir antes de tudo a existência mesma dessas convenções A justiça divina e a justiça natural são por sua essência constantes e invariáveis porque as relações existentes entre dois objetos da mesma natureza não podem mudar nunca Mas a justiça humana ou se se quiser a justiça política não sendo mais do que uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade também pode variar à medida que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social Só se pode determinar bem a natureza dessa justiça examinando com atenção as relações complicadas das inconstantes combinações que governam os homens Se todos esses princípios essencialmente distintos chegam a confundirse já não é possível raciocinar com clareza sobre os assuntos políticos Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do injusto segundo a maldade ou a bondade interiores da ação Ao publicista cabe determinar tais limites em política isto é sob as relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao outro porque todos sabem quanto a virtude política está abaixo das virtudes inalteráveis que emanam da Divindade Repito pois que se quiserem dar ao meu livro a honra de uma crítica não comecem por me atribuir princípios contrários à virtude ou à religião pois tais princípios não são os meus em lugar de me assinalar como um ímpio ou um sedicioso contentemse em mostrar que sou mau lógico ou ignorante político não tremam a cada proposição em que defendo os interesses da humanidade verifiquem a inutilidade de minhas máximas e os perigos que podem ter minhas opiniões façamme ver as vantagens das práticas recebidas Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da minha submissão ao soberano ao responder às Notas e Observações que se publicaram contra minha obra Devo guardar silêncio em relação aos escritores que doravante só me opuserem as mesmas objeções Mas aquele que puser em sua crítica a decência e o respeito que os homens honestos se devem entre si e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a demonstrarlhe os princípios mais simples de qualquer natureza que sejam encontrará em mim um homem menos apressado a defender suas opiniões particulares do que um tranqüilo amigo da verdade pronto a confessar os seus erros I INTRODUÇÃO AS vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus membros No entanto entre os homens reunidos notase a tendência contínua de acumular no menor número os privilégios o poder e a felicidade para só deixar à maioria miséria e fraqueza Só com boas leis podem impedirse tais abusos Mas de ordinário os homens abandonam a leis provisórias e à prudência do momento o cuidado de regular os negócios mais importantes quando não os confiam à discrição daqueles mesmos cujo interesse é oporemse às melhores instituições e às leis mais sábias Além disso não é senão depois de terem vagado por muito tempo no meio dos erros mais funestos depois de terem exposto mil vezes a própria liberdade e a própria existência que cansados de sofrer reduzidos aos últimos extremos os homens se determinam a remediar os males que os afligem Então finalmente abrem os olhos a essas verdades palpáveis que por sua simplicidade mesma escapam aos espíritos vulgares incapazes de analisar os objetos e acostumados a receber sem exame e sobre palavra todas as impressões que se lhes queiram dar Abramos a história veremos que as leis que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres não foram o mais das vezes senão o instrumento das paixões da minoria ou o produto do acaso e do momento e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim todo o bemestar possível para a maioria Felizes as nações se há algumas que não esperaram que revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientação para o bem e que mediante leis sábias apressaram a passagem de um para o outro Como é digno de todo o reconhecimento do gênero humano o filósofo6 que do fundo do seu retiro obscuro e desprezado teve a coragem de lançar na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo infrutíferas das verdades úteis As verdades filosóficas por toda parte divulgadas através da imprensa revelaram enfim as verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos e os povos entre si O comércio animouse e entre as nações elevouse uma guerra industrial a única digna dos homens sábios e dos povos policiados Mas se as luzes do nosso século já produziram alguns resultados longe estão de ter dissipado todos os preconceitos que tínhamos Ninguém se levantou senão frouxamente contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais Ninguém se ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais essa parte da legislação tão importante quanto descurada em toda a Europa Raramente se procurou destruir em seus fundamentos as séries de erros acumulados desde vários séculos e muito poucas pessoas tentaram reprimir pela força das verdades imutáveis os abusos de um poder sem limites e fazer cessar os exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos encaram como um dos seus direitos Entretanto os dolorosos gemidos do fraco sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas ou por delitos quiméricos o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes a incerteza tantos métodos odiosos espalhados por toda parte deveriam ter despertado a atenção dos filósofos essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas O imortal Montesquieu7 só ocasionalmente pode abordar essas importantes matérias Se eu segui as pegadas luminosas desse grande homem é que a verdade é uma e a mesma em toda parte Mas os que sabem pensar e é somente para estes que escrevo saberão distinguir meus passos dos seus Sentirmeei feliz se como ele puder ser objeto do vosso secreto reconhecimento oh vós discípulos obscuros e pacíficos da razão Sentirmeei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito pelo qual as almas sensíveis respondem à voz dos defensores da humanidade Seria este talvez o momento de examinar e distinguir as diferentes espécies de delitos e a maneira de punilos mas o número e a variedade dos crimes segundo as diversas circunstâncias de tempo e de lugar nos lançariam num atalho imenso e fatigante Contentarmeei pois com indicar os princípios mais gerais as faltas mais comuns e os erros mais funestos evitando igualmente os excessos dos que por um amor mal entendido da liberdade procuram introduzir a desordem e dos que desejariam submeter os homens à regularidade dos claustros Mas qual é a origem das penas e qual o fundamento do direito de punir Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes crimes Será a pena de morte verdadeiramente útil necessária indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade Serão justos os tormentos e as torturas Conduzirão ao fim que as leis se propõem Quais os melhores meios de prevenir os delitos Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos Que influência exercem sobre os costumes Todos esses problemas merecem que se procure resolvêlos com essa precisão geométrica que triunfa da destreza dos sofismas das dúvidas tímidas e das seduções da eloqüência Sentirmeia feliz se não tivesse outro mérito além do de ter sido o primeiro que apresentou na Itália com maior clareza o que outras nações ousaram escrever e começam a praticar Mas se ao sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente funesta as bênçãos e as lágrimas de um único inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolarmeiam do desprezo do resto dos homens II ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIR A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder Assim a menor força continuamente aplicada destrói por fim um corpo que pareça sólido porque lhe comunicou um movimento violento Consultemos pois o coração humano acharemos nele os princípios fundamentais do direito de punir Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público Tais quimeras só se encontram nos romances Cada homem só por seus interesses está ligado às diferentes combinações políticas deste globo e cada qual desejaria se fosse possível não estar ligado pelas convenções que obrigam os outros homens Sendo a multiplicação do gênero humano embora lenta e pouco considerável muito superior aos meios que apresentava a natureza estéril e abandonada para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras os primeiros homens até então selvagens se viram forçados a reunirse Formadas algumas sociedades logo se estabeleceram novas na necessidade em que se ficou de resistir às primeiras e assim viveram essas hordas como tinham feito os indivíduos num contínuo estado de guerra entre si As leis foram as condições que reuniram os homens a princípio independentes e isolados sobre a superfície da terra Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservála tornava inútil sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança A soma de todas essas porções de liberdade sacrificadas assim ao bem geral formou a soberania da nação e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo Não bastava porém ter formado esse depósito era preciso protegêlo contra as usurpações de cada particular pois tal é a tendência do homem para o despotismo que ele procura sem cessar não só retirar da massa comum sua porção de liberdade mas ainda usurpar a dos outros Eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para comprimir esse espírito despótico que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis Disse eu que esses meios tiveram de ser sensíveis porque a experiência fez ver quanto a maioria está longe de adotar princípios estáveis de conduta Notase em todas as partes do mundo físico e moral um princípio universal de dissolução cuja ação só pode ser obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente os sentidos e que se fixam nos espíritos para contrabalançar por impressões vivas a força das paixões particulares quase sempre opostas ao bem geral Qualquer outro meio seria insuficiente Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos presentes os mais sábios discursos a eloqüência mais arrebatadora as verdades mais sublimes não passam para elas de um freio impotente que logo despedaçam Por conseguinte só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela isto é precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantêlo na posse do resto O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça é um poder de fato e não de direito8 é uma usurpação e não mais um poder legítimo As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos III CONSEQUÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS A PRIMEIRA conseqüência desses princípios é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador que representa toda a sociedade unida por um contrato social Ora o magistrado que também faz parte da sociedade não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei e do momento em que o juiz é mais severo do que a lei ele é injusto pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado Seguese que nenhum magistrado pode mesmo sob o pretexto do bem público aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão A segunda conseqüência é que o soberano que representa a própria sociedade só pode fazer leis gerais às quais todos devem submeterse não lhe compete porém julgar se alguém violou essas leis Com efeito no caso de um delito há duas partes o soberano que afirma que o contrato social foi violado e o acusado que nega essa violação É preciso pois que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação Esse terceiro é o magistrado cujas sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há Em terceiro lugar mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse reprovada pela filosofia mãe das virtudes benéficas e por essa razão esclarecida que prefere governar homens felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos mesmo que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que se lhes atribui o de impedir os crimes bastará provar que essa crueldade é inútil para que se deva considerála como odiosa revoltante contrária a toda justiça e à própria natureza do contrato social IV DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS RESULTA ainda dos princípios estabelecidos precedentemente que os juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais pela razão mesma de que não são legisladores Os juizes não receberam as leis como uma tradição doméstica ou como um testamento dos nossos antepassados que aos seus descendentes deixaria apenas a missão de obedecer Recebemnas da sociedade viva ou do soberano que é representante dessa sociedade como depositário legítimo do resultado atual da vontade de todos Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções9 essas velhas convenções são nulas pois não puderam ligar vontades que não existiam Não se pode sem injustiça exigir sua execução seria reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos As leis emprestam sua força da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei Qual será pois o legítimo intérprete das leis O soberano isto é o depositário das vontades atuais de todos e não o juiz cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis O juiz deve fazer um silogismo perfeito A maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme ou não à lei a conseqüência a liberdade ou a pena Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais ou se o fizer por conta própria tudo se torna incerto e obscuro Nada mais perigoso do que o axioma comum de que é preciso consultar o espírito da lei Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões Essa verdade me parece demonstrada embora pareça um paradoxo aos espíritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqüências distantes mas mil vezes mais funestas de um só princípio falso estabelecido numa nação Todos os nossos conhecimentos todas as nossas idéias se mantêm Quanto mais complicadas tanto maiores são as suas relações e resultados Cada homem tem sua maneira própria de ver e o mesmo homem em diferentes épocas vê diversamente os mesmos objetos O espírito de uma lei seria pois o resultado da boa ou má lógica de um juiz de uma digestão fácil ou penosa da fraqueza do acusado da violência das paixões do magistrado de suas relações com o ofendido enfim de todas as pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no espírito inconstante do homem Veríamos assim a sorte de um cidadão mudar de face ao passar para outro tribunal e a vida dos infelizes estaria à mercê de um falso raciocínio ou do mau humor do juiz Veríamos o magistrado interpretar apressadamente as leis segundo as idéias vagas e confusas que se apresentassem ao seu espírito Veríamos os mesmos delitos punidos diferentemente em diferentes tempos pelo mesmo tribunal porque em lugar de escutar a voz constante e invariável das leis ele se entregaria à instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes momentâneos que às vezes produz a observação literal das leis Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador a fazer no texto equívoco de uma lei correções necessárias e fáceis Mas seguindo a letra da lei não se terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos nem essa licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal Quando as leis forem fixas e literais quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita quando enfim a regra do justo e do injusto que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído não for um motivo de controvérsia mas simples questão de fato então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram porque a crueldade dos tiranos é proporcional não às suas forças mas aos obstáculos que se lhes opõem tanto mais funestos quanto ninguém pode livrarse do seu jugo senão submetendose ao despotismo de um só Com leis penais executadas à letra cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável e isso é útil porque tal conhecimento poderá desviálo do crime Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens e isso é justo porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade É verdade também que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à covardia às fraquezas e às complacências cegas estarão porém menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam Tudo eu poderia recear se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entendêlo mas os tiranos não lêem V DA OBSCURIDADE DAS LEIS SE a interpretação arbitrária das leis é um mal também o é a sua obscuridade pois precisam ser interpretadas Esse inconveniente é bem maior ainda quando as leis não são escritas em língua vulgar10 Enquanto o texto das leis não for um livro familiar uma espécie de catecismo enquanto forem escritas numa língua morta e ignorada do povo e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos oráculos o cidadão que não puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes das leis Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo e quanto mais homens houver que o lerem tanto menos delitos haverá pois não se pode duvidar que no espirito daquele que medita um crime o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à eloqüência das paixões Que pensar dos homens quando se reflete que as leis da maior parte das nações estão escritas em línguas mortas e que esse costume bárbaro ainda subsiste nos países mais esclarecidos da Europa Dessas últimas reflexões resulta que sem um corpo de leis escritas jamais uma sociedade poderá tomar uma forma de governo fixo em que a força resida no corpo político e não nos membros desse corpo em que as leis não possam alterarse e destruir se pelo choque dos interesses particulares nem reformarse senão pela vontade geral A razão e a experiência fizeram ver quantas tradições humanas se tornam mais duvidosas e mais contestadas à medida que a gente se afasta de sua fonte Ora se não existe um momento estável do pacto social como resistirão as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e das paixões Vêse por aí igualmente a utilidade da imprensa que pode só ela tornar todo o público e não alguns particulares depositário do código sagrado das leis Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intriga que não pode suportar a luz e que finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme Se agora na Europa diminuem esses crimes atrozes que assombravam nossos pais se saímos enfim desse estado de barbárie que tornava nossos antepassados ora escravos ora tiranos é à imprensa que o devemos Os que conhecem a história de dois ou três séculos e do nosso podem ver a humanidade a generosidade a tolerância mútua e as mais doces virtudes nasceram no seio do luxo e da indolência Quais foram ao contrário as virtudes dessas épocas que tão sem propósitos se chamam séculos da boa fé e da simplicidade antiga A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição a avareza e a ambição de um pequeno número de homens poderosos inundavam de sangue humano os palácios dos grandes e os tronos dos reis Eram traições secretas e morticínios públicos O povo só encontrava na nobreza opressores e tiranos e os ministros do Evangelho manchados na carnificina e as mãos ainda sangrentas ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de misericórdia e de paz Os que se levantam contra a pretensa corrupção do grande século em que vivemos não acharão ao menos que esse quadro abominável possa convirlhe VI DA PRISÃO OUTORGASE em geral aos magistrados encarregados de fazer as leis um direito contrário ao fim da sociedade que é a segurança pessoal refirome ao direito de prender discricionariamente os cidadãos de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos e por conseguinte de deixar livres os que eles protegem mau grado todos os indícios do delito Como se tornou tão comum um erro tão funesto Embora a prisão difira das outras penas por dever necessariamente preceder a declaração jurídica do delito nem por isto deixa de ter como todos os outros gêneros de castigos o caráter essencial de que só a lei deve determinar o caso em que é preciso empregála Assim a lei deve estabelecer de maneira fixa por que indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatório O clamor público a fuga as confissões particulares o depoimento de um cúmplice do crime as ameaças que o acusado pode fazer seu ódio inveterado ao ofendido um corpo de delito existente e outras presunções semelhantes bastam para permitir a prisão de um cidadão Tais indícios devem porém ser especificados de maneira estável pela lei e não pelo juiz cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade pública quando não são simplesmente a aplicação particular de uma máxima geral emanada do código das leis À medida que as penas forem mais brandas quando as prisões já não forem a horrível mansão do desespero e da fome quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão as leis poderão contentarse com indícios mais fracos para ordenar a prisão A prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida Entre os romanos quantos cidadãos não vemos acusados anteriormente de crimes hediondos mas em seguida reconhecidos inocentes receberem da veneração do povo os primeiros cargos do Estado Porque é tão diferente em nossos dias a sorte de um inocente preso É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a idéia da força e do poder em lugar da justiça é porque se lançam indistintamente na mesma masmorra o inocente suspeito e o criminoso convicto é porque a prisão entre nós é antes um suplício que um meio de deter um acusado é porque finalmente as forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação estão separadas das que mantêm as leis no interior quando deveriam estar estreitamente unidas Na opinião pública as prisões militares desonram bem menos do que as prisões civis Se as tropas do Estado reunidas sob a autoridade das leis comuns sem contudo dependerem imediatamente dos magistrados fossem encarregadas da guarda das prisões a mancha de infâmia desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos militares porque em geral a infâmia como tudo o que depende das opiniões populares se liga mais à forma do que ao fundo Mas como as leis e os costumes de um povo estão sempre atrasados de vários séculos em relação às luzes atuais conservamos ainda a barbárie e as idéias ferozes dos caçadores do norte nossos selvagens antepassados Os nossos costumes e as nossas leis retardatárias estão bem longe das luzes dos povos Ainda estamos dominados pelos preconceitos bárbaros que nos legaram os nossos avós os bárbaros caçadores do norte VII DOS INDÍCIOS DO DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOS EIS um teorema geral que pode ser muito útil para calcular a certeza de um fato e principalmente o valor dos indícios de um delito Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si isto é quando os indícios do delito não se sustentam senão uns pelos outros quando a força de várias provas depende da verdade de uma só o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato merecem pouca consideração porque destruindo a única prova que parece certa derrubais todas as outras Mas quando as provas são independentes isto é quando cada indício se prova à parte quanto mais numerosos forem esses indícios tanto mais provável será o delito porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes Não se admirem de verme empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que para merecerem um castigo devem ser certos porque a rigor toda certeza moral é apenas uma probabilidade que merece contudo ser considerada como uma certeza quando todo homem de bom senso é forçado a darlhe o seu assentimento por uma espécie de hábito natural que resulta da necessidade de agir que é anterior a toda especulação A certeza que se exige para convencer um culpado é pois a mesma que determina todos os homens nos seus mais importantes negócios As provas de um delito podem distinguirse em provas perfeitas e provas imperfeitas As provas perfeitas são as que demonstram positivamente que é impossível que o acusado seja inocente As provas são imperfeitas quando não excluem a possibilidade da inocência do acusado Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a condenação se se quiser porém condenar sobre provas imperfeitas como cada uma dessas provas não estabelece a impossibilidade da inocência do acusado é preciso que sejam em número muito grande para valerem uma prova perfeita isto é para provarem todas juntas que é impossível que o acusado não seja culpado Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas às quais o acusado nada responde de satisfatório embora deva se é inocente ter meios de justificarse se tornam por isso mesmo provas perfeitas É todavia mais fácil sentir essa certeza moral de um delito do que definila exatamente Eis o que me faz encarar como sábia a lei que em algumas nações dá ao juiz principal assessores que o magistrado não escolheu mas que a sorte designou livremente porque então a ignorância que julga por sentimento está menos sujeita ao erro do que homem instruído que decide segundo a incerta opinião Quando as leis são claras e precisas o dever do juiz limitase à constatação do fato Se são necessárias destreza e habilidade na investigação das provas de um delito se se requerem clareza e precisão na maneira de apresentar o seu resultado para julgar segundo esse mesmo resultado basta o simples bomsenso guia menos enganador do que todo o saber de um juiz acostumado a só procurar culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os seus estudos Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma ciência Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais porque quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidadão todos os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar Ora o desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vitima do infortúnio e a indignação que experimenta o homem de condição medíocre ao ver o culpado que está acima dele por sua condição são sentimentos perigosos que não existem nos julgamentos de que falo Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais os juizes devem ser escolhidos metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido para contrabalançar assim os interesses pessoais que modificam mau grado nosso as aparências dos objetos e para só deixar falar a verdade e as leis Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número dos juizes que lhe forem suspeitos e se o acusado gozar constantemente desse direito exercêloá com reserva porque de outro modo pareceria condenarse a si mesmo Sejam públicos os julgamentos sejamno também as provas do crime e a opinião que é talvez o único laço das sociedades porá freio à violência e às paixões O povo dirá Não somos escravos mas protegidos pelas leis Esse sentimento de segurança que inspira a coragem eqüivale a um tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros interesses Não entrarei em outros pormenores sobre as precauções que exige o estabelecimento dessas espécies de instituições Para aqueles aos quais é necessário tudo dizer tudo eu diria inutilmente VIII DAS TESTEMUNHAS É IMPORTANTE em toda boa legislação determinar de maneira exata o grau de confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas necessárias para constatar o delito Todo homem razoável isto é todo homem que puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros homens poderá ser recebido em testemunho Mas a confiança que se lhe der deve medirse pelo interesse que ele tem de dizer ou não dizer a verdade É pois por motivos frívolos e absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as mulheres por causa de sua franqueza nem os condenados porque estes morreram civilmente nem as pessoas com nota de infâmia porque em todos esses casos uma testemunha pode dizer a verdade quando não tem nenhum interesse em mentir Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre os negócios deste mundo um dos mais notáveis é o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado já condenado Graves jurisconsultos fazem este raciocínio Este homem foi atingido por morte civil ora um morto já não é capaz de nada Muitas vítimas se sacrificaram a essa vã metáfora e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o direito de preferência sobre as formas judiciárias Sem dúvida é preciso que os depoimentos de um culpado já condenado não possam retardar o curso da justiça mas porque após a sentença não conceder aos interesses da verdade e à terrível situação do culpado alguns instantes ainda para justificar se possível ou aos seus cúmplices ou a si próprio com depoimentos novos que mudam a natureza do fato As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias nos processos criminais ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade e segundo as regras e não precipitadamente ditados polo interesse ou finalmente porque a maior parte dos homens escravos do hábito e mais inclinados a sentir do que raciocinar fazem assim uma idéia mais augusta das funções do magistrado A verdade muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo As formalidades porém devem ser fixadas por leis nos limites em que não possam prejudicar a verdade De outro modo seria uma nova fonte de inconvenientes funestos Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse em mentir Deve pois concederse à testemunha mais ou menos confiança à proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham Uma só testemunha não basta porque negando o acusado o que a testemunha afirma não há nada de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente11 Deve darse às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes são os crimes e mais inverosímeis as circunstâncias Tais são por exemplo as acusações de magia e as ações gratuitamente cruéis No primeiro caso é melhor acreditar que as testemunhas mentem porque é mais comum ver vários homens caluniarem de concerto por ódio ou por ignorância do que ver um só homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado Da mesma forma não se deve admitir com precipitação a acusação de uma crueldade sem motivos porque o homem só é cruel por interesse por ódio ou por temor O coração humano é incapaz de um sentimento inútil todos os seus sentimentos são o resultado das impressões que os objetos causaram sobre os sentidos Deve igualmente darse menos crédito a um homem que é membro de uma ordem ou de uma casta ou de uma sociedade particular cujos costumes e máximas são em geral desconhecidos ou diferem dos usos comuns porque além de suas próprias paixões esse homem tem ainda as paixões da sociedade da qual faz parte Enfim os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime porque o tom os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes idéias que os homens ligam a suas palavras alteram e modificam de tal modo os discursos que é quase impossível repetilos com exatidão As ações violentas que constituem os verdadeiros delitos deixam traços notáveis na maioria das circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam mas as palavras não deixam vestígio e só subsistem na memória quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas dos que as ouviram É pois infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações pois o número das circunstâncias que se alegam para provar as ações fornece ao acusado mais recursos para justificarse ao passo que um delito de palavras não apresenta de ordinário nenhum meio de justificação IX DAS ACUSAÇÕES SECRETAS AS acusações secretas são um abuso manifesto mas consagrado e tornado necessário em vários governos pela fraqueza de sua constituição Tal uso torna os homens falsos e pérfidos Aquele que suspeita um delator no seu concidadão vê nele logo um inimigo Costumam então mascararse os próprios sentimentos e o hábito de ocultálos a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo Como os homens que chegaram a esse ponto funesto são dignos de piedade Desorientados sem guia e sem princípios estáveis vagam ao acaso no vasto mar da incerteza preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaçam Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes Os prazeres duráveis da tranqüilidade e da segurança lhes são desconhecidos Se gozaram apressadamente e na confusão de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre o triste curso de sua desgraçada vida bastarão para consolálos de ter vivido Será entre tais homens que encontraremos soldados intrépidos defensores da pátria e do trono Acharemos entre eles magistrados incorruptíveis que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do soberano com uma eloqüência livre e patriótica que deponham ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos de todos os cidadãos que levem ao palácio dos grandes e ao humilde teto do pobre a segurança a paz a confiança e que dêem ao trabalho e à indústria a esperança de uma sorte cada vez mais doce É sobretudo este último sentimento que reanima os Estados e lhes dá uma vida nova Quem poderá defenderse da calúnia quando esta se arma com o escudo mais sólido da tirania o sigilo Miserável governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada súdito e se vê forçado para garantir a tranqüilidade pública a perturbar a de cada cidadão Quais são pois os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusações e as penas secretas A tranqüilidade pública A segurança e a manutenção da forma de governo É mister confessar que estranha constituição é aquela em que o governo que tem por si a força e a opinião ainda mais poderosa do que a força parece todavia temer cada cidadão Receiase que o acusador não esteja em segurança As leis são então insuficientes para defendêlo e os súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis Desejarseia salvar o delator da infâmia a que se expõe Seria então confessar que se autorizam as calúnias secretas mas que se punem as calúnias públicas Apoiarseão na natureza do delito Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo úteis ao público terá razão as acusações e os julgamentos nesse caso jamais seriam bastante secretos Pode haver porém um delito isto é uma ofensa à sociedade que não seja do interesse de todos punir publicamente Respeito todos os governos não falo de nenhum em particular e sei que há circunstâncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes à constituição de um Estado que não parece possível desarraigálos sem destruir o corpo político Mas se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo minha mão trêmula se recusaria a autorizar as acusações secretas julgaria ver toda a posteridade responsabilizarme pelos males atrozes que elas acarretam Já o disse Montesquieu as acusações públicas são conformes ao espírito do governo republicano no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos Nas monarquias em que o amor da pátria é muito fraco pela própria natureza do governo é sábia a instituição de magistrados encarregados de acusar em nome do público os infratores das leis Mas todo governo republicano ou monárquico deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu se ele for culpado X DOS INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS NOSSAS leis proíbem os interrogatórios sugestivos isto é os que se fazem sobre o fato mesmo do delito porque segundo os nossos jurisconsultos só se deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as circunstâncias que o acompanham Um juiz não pode contudo permitir as questões diretas que sugiram ao acusado uma resposta imediata O juiz que interroga dizem os criminalistas só deve ir ao fato indiretamente e nunca em linha reta Se se estabeleceu esse método para evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem acusarse a si mesmo qualquer que tenha sido o fim visado com a proibição dos interrogatórios sugestivos fezse cair as leis numa contradição bem notória pois que ao mesmo tempo se autorizou a tortura Haverá com efeito interrogatório mais sugestivo do que a dor O celerado robusto que pode evitar uma pena longa e rigorosa sofrendo com força tormentos de um instante guarda um silêncio obstinado e se vê absolvido Mas a questão arranca ao homem fraco uma confissão pela qual ele se livra da dor presente que o afeta mais fortemente do que todos os males futuros E se um interrogatório especial é contrário à natureza obrigando o acusado a acusarse a si mesmo não será ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as convulsões da dor Os homens porém se ocupam muito mais em sua norma de conduta com a diferença das palavras do que com a das coisas Observemos finalmente que aquele que se obstina a não responder ao interrogatório a que é submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis É mister que essa pena seja muito pesada porque o silêncio de um criminoso perante o juiz que o interroga é para a sociedade um escândalo e a justiça uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possível Mas essa pena particular já não é necessária quando o crime já foi constatado e o criminoso convencido pois nesse caso o interrogatório se torna inútil Semelhantemente as confissões do acusado não são necessárias quando provas suficientes demonstraram que ele é evidentemente culpado do crime de que se trata Este último caso é o mais ordinário e a experiência mostra que na maior parte dos processos criminais os culpados negam tudo XI DOS JURAMENTOS OUTRA contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade quando ele tem o maior interesse em calála Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição Como se o mais das vezes a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião A história de todos os séculos prova que esse dom sagrado do céu é a coisa de que mais se abusa E como a respeitarão os celerados se ela é diariamente ultrajada pelos homens considerados mais sábios e mais virtuosos Os motivos que a religião opõe ao temor dos tormentos e ao amor à vida são quase sempre fracos demais porque não impressionam os sentidos As coisas do céu estão submetidas a leis inteiramente diversas das da terra Porque comprometer essas leis umas com as outras Porque colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus ou perderse É não deixar ao acusado senão a escolha de ser mau cristão ou mártir do juramento Destróise dessa forma toda a força dos sentimentos religiosos único apoio da honestidade no coração da maior parte dos homens e pouco a pouco os juramentos não são mais do que uma simples formalidade sem conseqüências Consultese a experiência e se reconhecerá que os juramentos são inúteis pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade A razão faz ver que assim deve ser porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são vãs e conseguintemente funestas Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse diretamente no meio das águas de um rio para interromperlhe o curso ou o dique é imediatamente derrubado pela torrente que o leva ou se forma debaixo dele um abismo que o mina e o destrói insensivelmente XII DA QUESTÃO OU TORTURA É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo quer para arrancar dele a confissão do crime quer para esclarecer as contradições em que caiu quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado mas do qual poderia ser culpado quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo O direito da força só pode pois autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado Eis uma proposição bem simples ou o delito é certo ou é incerto Se é certo só deve ser punido com a pena fixada pela lei e a tortura é inútil pois já não se tem necessidade das confissões do acusado Se o delito é incerto não é hediondo atormentar um inocente Com efeito perante as leis é inocente aquele cujo delito não se provou Qual o fim político dos castigos o terror que imprimem nos corações inclinados ao crime Mas que se deve pensar das torturas esses suplícios secretos que a tirania emprega na obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado Importa que nenhum delito conhecido fique impune mas nem sempre é útil descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza Um crime já cometido para o qual já não há remédio só pode ser punido pela sociedade política para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude se é provável que um cidadão prefira seguilas a violálas o juiz que ordena a tortura expõe se constantemente a atormentar inocentes Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz A lei que autoriza a tortura é uma lei que diz Homens resisti à dor A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser e o direito inalienável de vos defenderdes mas eu quero criar em vós um sentimento inteiramente contrário quero inspirarvos um ódio de vós mesmos ordenovos que vos tomeis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da bárbara legislação dos nossos antepassados que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo as da água fervendo e a sorte incerta dos combates Como se os elos dessa corrente eterna cuja origem está no seio da Divindade pudessem desunirse ou romperse a cada instante ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos homens A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior considerada como prova do crime Todavia essa diferença é mais aparente do que real O acusado é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir sem fraude os efeitos do fogo e da água fervendo Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam e a sensibilidade de todo homem é limitada Ora se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar no momento a via mais curta para evitar os tormentos atuais Dessa forma o acusado já não pode deixar de responder pois não poderia escapar às impressões do fogo e da água O inocente exclamará então que é culpado para fazer cessar torturas que já não pode suportar e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer toda diferença entre ambos A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto É esse de ordinário o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade desse uso digno dos canibais e que os romanos mau grado a dureza dos seus costumes reservavam exclusivamente aos escravos vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado De dois homens igualmente inocentes ou igualmente culpados aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido o mais fraco porém será condenado em virtude deste raciocínio Eu juiz preciso encontrar um culpado Tu que és vigoroso soubeste resistir à dor e por isso eu te absolvo Tu que és fraco cedeste à força dos tormentos portanto eu te condeno Bem sei que uma confissão arrancada pela violência da tortura não tem valor algum mais se não confirmares agora o que confessaste farteei atormentar de novo O resultado da questão depende pois de temperamento e de cálculo que varia em cada homem na proporção de sua força e sensibilidade de maneira que para prever o resultado da tortura bastaria resolver o problema seguinte mais digno de um matemático do que de um juiz Conhecidas a força dos músculos e a sensibilidade das fibras de um acusado achar o grau de dor que o obrigará a confessarse culpado de determinado crime Interrogam um acusado para conhecer a verdade mas se tão dificilmente a distinguem no ar nos gestos e na fisionomia de um homem tranqüilo como a descobrirão nos traços descompostos pelas convulsões da dor quando todos os sinais que traem às vezes a verdade na fronte dos culpados estiverem alterados e confundidos Toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais se distingue às vezes a verdade da mentira Resulta ainda do uso das torturas uma conseqüência bastante notável é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado Com efeito o inocente submetido à questão tem tudo contra si ou será condenado se confessar o crime que não cometeu ou será absolvido mas depois de sofrer tormentos que não mereceu O culpado ao contrário tem por si um conjunto favorável será absolvido se suportar a tortura com firmeza e evitará os suplícios de que foi ameaçado sofrendo uma pena muito mais leve Assim o inocente tem tudo que perder o culpado só pode ganhar Essas verdades são sentidas afinal embora confusamente pelos próprios legisladores mas nem por isso suprimiram a tortura Limitamse a achar que as confissões do acusado pelos tormentos são nulas se não forem em seguida confirmadas pelo juramento Se porém recusarse a confirmálas será torturado de novo Em alguns países e segundo certos jurisconsultos essas odiosas violências não são permitidas mais do que três vezes em outros porém e segundo outros doutores o direito de torturar fica inteiramente à discrição do juiz É inútil fundamentar essas reflexões com os inumeráveis exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas Não há povo não há século que não possa citar os seus Os homens são sempre os mesmos vêem as coisas presentes sem preocuparse com as conseqüências Não há homem que elevando suas idéias além das primeiras necessidades da vida não tenha ouvido a voz interior da natureza chamálo a si e não tenha sido tentado a se lançar de novo nos braços dela Mas o uso esse tirano das almas vulgares o comprime e o retém no erro O segundo motivo pelo qual se submete à questão um homem que se supõe culpado é a esperança de esclarecer as contradições em que ele caiu nos interrogatórios que o fizeram sofrer Mas o medo do suplício a incerteza do julgamento que vai ser pronunciado a solenidade dos processos a majestade do juiz a própria ignorância igualmente comum à maior parte dos acusados inocentes ou culpados são outras tantas razões para fazer cair em contradição não só a inocência que treme como o crime que procura ocultarse Poderseia crer que as contradições tão ordinárias no homem ainda mesmo quando este tem o espírito tranqüilo não se multiplicarão nesses momentos de perturbação nos quais a idéia de escapar a um perigo iminente absorve toda a alma Em terceiro lugar submeter um acusado à tortura para descobrir se ele é culpado de outros crimes além daquele de que é acusado é fazer este odioso raciocínio Tu és culpado de um delito é pois possível que tenhas cometido cem outros Essa suspeita me preocupa quero certificarme vou empregar minha prova de verdade As leis te farão sofrer pelos crimes que cometeste pelos que poderias cometer e por aqueles dos quais eu quero considerarte culpado Aplicase igualmente a questão a um acusado para descobrir os seus cúmplices Mas se está provado que a tortura não é nada menos do que um meio certo de descobrir a verdade como fará ela conhecer os cúmplices quando esse conhecimento é uma das verdades que se procuram É certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente acusará a outrem Além disso será justo atormentar um homem pelos crimes de outro homem Não podem descobrirse os cúmplices pelos interrogatórios do acusado e das testemunhas pelo exame das provas e do corpo de delito em suma por todos os meios empregados para constatar o delito Os cúmplices fogem quase sempre logo que o companheiro é preso Só a incerteza da sorte que os espera condenaos ao exílio e livra a sociedade dos novos atentados que poderia recear deles ao passo que o suplício do culpado que ela tem nas mãos amedronta os outros homens e os desvia do crime sendo esse o único fim dos castigos A pretensa necessidade de purgar a infâmia é ainda um dos absurdos motivos do uso das torturas Um homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o crime enquanto lhe quebram os ossos Poderá a dor que é uma sensação destruir a infâmia que é uma combinação moral Será a tortura um cadinho e a infâmia um corpo misto que deponha nele tudo o que tem de impuro Em verdade abusos tão ridículos não deveriam ser tolerados no século XVIII A infâmia não é um sentimento sujeito às leis ou regulado pela razão É obra exclusiva da opinião Ora como a tortura torna infame aquele que a sofre é absurdo que se queira lavar desse modo a infâmia com a própria infâmia Não é difícil remontar a origem dessa lei estranha porque os absurdos adotados por uma nação inteira se apoiam sempre em outras idéias estabelecidas e respeitadas nessa mesma nação O uso de purgar a infâmia pela tortura parece ter sua fonte nas práticas da religião que tanta influência exerce sobre o espírito dos homens de todos os países e de todos os tempos A fé nos ensina que as nódoas contraídas pela fraqueza humana quando não mereceram a cólera eterna do Ser supremo são purificadas em outro mundo por um fogo incompreensível Ora a infâmia é uma nódoa civil e uma vez que a dor e o fogo do purgatório apagam as manchas espirituais porque os tormentos da questão não tirariam a nódoa civil da infâmia Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao uso que observam certos tribunais de exigir as confissões do culpado como essenciais para sua condenação Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitência no qual a confissão dos pecados é parte necessária dos sacramentos É dessa forma que os homens abusam das luzes da revelação e como essas luzes são as únicas que iluminam os séculos da ignorância a elas é que a dócil humanidade recorreu em todas as ocasiões mas para fazer as aplicações mais falsas e mais infelizes A solidez dos princípios que expusemos neste capítulo era conhecida dos legisladores romanos que só submetiam à tortura os escravos espécie de homens sem direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil Esses princípios foram adotados na Inglaterra nação que prova a excelência de suas leis pelos seus progressos nas ciências pela superioridade do seu comércio pela extensão de suas riquezas por seu poder e por freqüentes exemplos de coragem e de virtude política A Suécia igualmente convencida da injustiça da tortura já não permite o seu uso Esse infame costume foi abolido por um dos mais sábios monarcas da Europa12 que elevou a filosofia ao trono e que legislador benévolo amigo dos súditos os tornou iguais e livres sob a dependência das leis única liberdade que homens razoáveis podem esperar da sociedade única igualdade que esta pode admitir Enfim as leis militares não admitiram a tortura e se esta pudesse existir em alguma parte seria sem dúvida nos exércitos compostos em grande parte da escória das nações Coisa espantosa para quem não refletiu sobre a tirania do uso São homens endurecidos nos morticínios e familiarizados com o sangue que dão aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade XIII DA DURAÇÃO DO PROCESSO E DA PRESCRIÇÃO QUANDO o delito é constatado e as provas são certas é justo conceder ao acusado o tempo e os meios de justificarse se lhe for possível é preciso porém que esse tempo seja bastante curto para não retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime se se quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados Um mal entendido amor da humanidade poderá condenar logo essa presteza a qual porém será aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos múltiplos que as extremas procrastinações da legislação fazem correr à inocência Cabe exclusivamente às leis fixar o espaço de tempo que se deve empregar para a investigação das provas do delito e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa Se o juiz tivesse esse direito estaria exercendo as funções do legislador Quando se trata desses crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens se os mesmos forem provados não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga Não é esse todavia o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis é mister fixar um tempo após o qual o acusado bastante punido pelo exílio voluntário possa reaparecer sem recear novos castigos Com efeito a obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito a necessidade do exemplo e permite devolver ao cidadão sua condição e seus direitos com o poder de tornálo melhor Só posso indicar aqui princípios gerais Para fazer sua aplicação precisa é mister considerar a legislação existente os usos do país as circunstâncias Limitome a acrescentar que para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas se as leis abreviassem ou prolongassem a duração dos processos e o tempo da prescrição segundo a gravidade do delito se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem contados como uma parte da pena merecida pelo culpado chegarseia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos suaves para um grande número de delitos Mas o tempo que se emprega na investigação das provas e o que fixa a prescrição não devem ser prolongados em razão da gravidade do crime que se persegue porque enquanto um crime não está provado quanto mais atroz menos verossímil é ele Será preciso pois às vezes reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a prescrição Esse princípio parece à primeira vista contraditório em relação ao que estabeleci mais acima e segundo o qual podem aplicarse penas iguais para crimes diferentes considerando como partes do castigo o exílio voluntário ou a prisão que precedeu a sentença Procurarei explicarme com mais clareza Podem distinguirse duas espécies de delitos A primeira é a dos crimes atrozes que começa pelo homicídio e que compreende toda a progressão dos mais horríveis assassínios Incluiremos na segunda espécie os delitos menos hediondos do que o homicídio Essa distinção é tirada da natureza A segurança das pessoas é um direito natural a segurança dos bens é um direito da sociedade Há bem poucos motivos capazes de levar o homem a abafar no coração o sentimento natural da compaixão que o desvia do assassínio Mas como cada um é ávido de buscar o seu bemestar como o direito de propriedade não está gravado nos corações sendo simples obra das convenções sociais há uma porção de motivos que induzem os homens a violar tais convenções Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas espécies de delitos é preciso colocálas sobre bases diferentes Nos grandes crimes pela razão mesma de que são mais raros deve diminuirse a duração da instrução e do processo porque a inocência do acusado é mais provável do que o crime Devese porém prolongar o tempo da prescrição Por esse meio que acelera a sentença definitiva tirase aos maus a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores são os crimes Ao contrário nos delitos menos consideráveis e mais comuns é preciso prolongar o tempo dos processos porque a inocência do acusado é menos provável e diminuir o tempo fixado para a prescrição porque a impunidade é menos perigosa É mister igualmente notar que se não se atender a isso essa diferença de processo entre as duas espécies de delitos pode dar ao criminoso a esperança da impunidade esperança tanto mais fundada quanto o crime for mais hediondo e portanto mais verossímil Observemos porém que um acusado solto por falta de provas não é nem absolvido nem condenado que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a novo exame se se descobrirem novos indícios do seu delito antes de terminar o tempo fixado para a prescrição segundo o crime cometido Tal é pelo menos ao meu ver o critério que se poderia seguir para preservar ao mesmo tempo a segurança dos cidadãos e a sua liberdade sem favorecer uma em detrimento da outra Esses dois bens são igualmente patrimônio inalienável de todos os cidadãos e ambos estão cercados de perigos quando a segurança individual é abandonada ao capricho de um déspota e quando a liberdade é protegida pela desordem tumultuosa Cometemse na sociedade certos crimes que são ao mesmo tempo comuns e difíceis de constatar Desde então pois é quase impossível provar tais crimes a inocência é provável perante a lei E como a esperança da impunidade contribui pouco para multiplicar essas espécies de delitos que têm todos causas diferentes a impunidade raramente é perigosa Nesse caso podem pois diminuirse igualmente o tempo dos processos e o da prescrição Mas segundo os princípios aceitos é principalmente para os crimes difíceis de provar como o adultério a pederastia que se admitem arbitrariamente as presunções as conjecturas as semiprovas como se um homem pudesse ser semiinocente ou semi culpado e merecer ser semiabsolvido ou semipunido É sobretudo nesse gênero de delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o acusado sobre as testemunhas sobre a família inteira do infeliz de quem se suspeita segundo as odiosas lições de alguns criminalistas que escreveram com fria barbárie compilações de iniqüidades que ousam apresentar como regras aos magistrados e como leis às nações Quando se reflete sobre todas essas coisas ése forçado a reconhecer com amargura que a razão quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos Os crimes mais hediondos os delitos mais obscuros e mais quiméricos e portanto os mais inverossímeis são precisamente os que se consideram constatados sobre simples conjecturas e indícios menos sólidos e mais equívocos Dizerseia que as leis e o magistrado só têm interesse em descobrir um crime e não em procurar a verdade e que o legislador não vê que se expõe constantemente ao risco de condenar um inocente pronunciandose sobre crimes inverossímeis ou mal provados À maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente as grandes ações e os grandes crimes e que traz quase sempre juntas as virtudes magnânimas e os crimes monstruosos nos Estados que só se mantêm pela atividade do governo pelo orgulho nacional e pelo concurso das paixões pelo bem público Quanto às nações cujo poderio é consolidado e constantemente sustentado por boas leis as paixões enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo estabelecida do que de melhorála Daí resulta uma conseqüência importante que os grandes crimes nem sempre são a prova da decadência de um povo XIV DOS CRIMES COMEÇADOS DOS CÚMPLICES DA IMPUNIDADE SE BEM que as leis não possam punir a intenção não é menos verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometêlo merece um castigo mas menos grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido Esse castigo é necessário porque é importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes Mas como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua execução é justo reservar uma pena maior ao crime consumado para deixar àquele que apenas começou o crime alguns motivos que o impeçam de acabálo Deve seguirse a mesma gradação nas penas em relação aos cúmplices se estes não foram todos executantes imediatos Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo comum quanto maior é o perigo tanto mais procurarão tornálo igual para todos Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse executálo porque o risco seria maior em virtude da diferença das penas Há contudo um caso em que a gente deve afastarse da regra que formulamos e é quando o executante do crime recebeu dos cúmplices uma recompensa particular como a diferença do risco foi compensada pela diferença das vantagens o castigo deve ser igual Se tais reflexões parecerem um tanto rebuscadas reflitase que é importantíssimo que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possível para que se ponham de acordo Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus companheiros Esse expediente apresenta certas vantagens mas não está isento de perigos de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição que repugna aos próprios celerados Ela introduz os crimes de covardia bem mais funestos do que os crimes de energia e de coragem porque a coragem é pouco comum e espera apenas uma força benfazeja que a dirija para o bem público ao passo que a covardia muito mais geral é um contágio que infecta rapidamente todas as almas O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime pois que ele não o conhece e as leis descobremlhe a fraqueza implorando o socorro do próprio celerado que as violou Por outro lado a esperança da impunidade para o cúmplice que trai pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis isto é as convenções públicas já não é fiel às convenções particulares Pareceme que uma lei geral que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime seria preferível a uma declaração especial num caso particular preveniria a união dos maus pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em que se pode ter necessidade deles De resto seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator É porém em vão que procuro abafar os remorsos que me afligem quando autorizo as santas leis fiadoras sagradas da confiança pública base respeitável dos costumes a proteger a perfídia a legitimar a traição E que opróbrio para uma nação se os seus magistrados tornados infiéis faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vãs sutilezas para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis Esses monstruosos exemplos não são raros eis porque tanta gente só vê na sociedade política uma máquina complicada na qual os mais hábeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho Eis também o que multiplica esses homens frios insensíveis a tudo o que encanta as almas ternas que só experimentam sensações calculadas e que todavia sabem excitar nos outros os sentimentos mais caros e as paixões mais fortes quando estas são úteis aos seus projetos semelhantes ao músico hábil que sem nada sentir ele próprio tira do instrumento que domina sons tocantes ou terríveis XV DA MODERAÇÃO DAS PENAS AS VERDADES até aqui expostas demonstram à evidência que o fim das penas não pode ser atormentar um ser sensível nem fazer que um crime não cometido seja cometido Como pode um corpo político que longe de se entregar às paixões deve ocuparse exclusivamente com pôr um freio nos particulares exercer crueldades inúteis e empregar o instrumento do furor do fanatismo e da covardia dos tiranos Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida Não Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime Entre as penas e na maneira de aplicálas proporcionalmente aos delitos é mister pois escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e ao mesmo tempo menos cruel no corpo do culpado Quem não estremece de horror ao ver na história tantos tormentos atrozes e inúteis inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sábios Quem poderia deixar de tremer até ao fundo da alma ao ver os milhares de infelizes que o desespero força a retomar a vida selvagem para escapar a males insuportáveis causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a multidão para favorecer unicamente um pequeno número de homens privilegiados Mas a superstição e a tirania os perseguem acusamnos de crimes impossíveis ou imaginários ou então são culpados mas somente de terem sido fiéis às leis da natureza Não importa Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgálos criminosos têm prazer em seus tormentos dilaceramnos com solenidade aplicamlhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática que goza lentamente com suas dores Quanto mais atrozes forem os castigos tanto mais audacioso será o culpado para evitá los Acumulará os crimes para subtrairse à pena merecida pelo primeiro Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática são também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis O mesmo espírito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador punha o punhal nas mãos do assassino e do parricida Do alto do trono o soberano dominava com uma verga de ferro e os escravos só imolavam os tiranos para possuírem novos À medida que os suplícios se tornam mais cruéis a alma semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam endurecese pelo espetáculo renovado da barbárie A gente se habitua aos suplícios horríveis e depois de cem anos de crueldades multiplicadas as paixões sempre ativas são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime Devem contarse ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e por conseguinte tirânica Os males que os homens conhecem por funesta experiência regularão melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram Suponde duas nações entre aquelas em que as penas são proporcionais aos delitos Sendo a escravidão perpétua o maior castigo em uma e o suplício o maior em outra é certo que essas duas penas inspirarão em cada uma igual terror E se houvesse uma razão para transportar para o primeiro povo os castigos mais rigorosos estabelecidos no segundo a mesma razão conduziria a aumentar para este a crueldade dos suplícios passando insensivelmente do uso da roda para tormentos mais lentos e mais requintados em suma para o último refinamento da ciência dos tiranos A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos contrários ao fim do seu estabelecimento que é prevenir o crime Em primeiro lugar é muito difícil estabelecer uma justa proporção entre os delitos e as penas porque embora uma crueldade industriosa tenha multiplicado as espécies de tormentos nenhum suplício pode ultrapassar o último grau da força humana limitada pela sensibilidade e a organização do corpo do homem Além desses limites se surgirem crimes mais hediondos onde se encontrarão penas bastante cruéis Em segundo lugar os suplícios mais horríveis podem acarretar às vezes a impunidade A energia da natureza humana é circunscrita no mal como no bem Espetáculos demasiado bárbaros só podem ser o resultado dos furores passageiros de um tirano e não ser sustentados por um sistema constante de legislação Se as leis são cruéis ou logo serão modificadas ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime impune Termino por esta reflexão que o rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da nação São necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o espírito grosseiro de um povo que sai do estado selvagem Para abater o leão furioso é necessário o raio cujo ruído só faz irritálo Mas à medida que as almas se abrandam no estado de sociedade o homem se torna mais sensível e se se quiser conservar as mesmas relações entre o objeto e a sensação as penas devem ser menos rigorosas XVI DA PENA DE MORTE ANTE o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram os homens melhores eu quero examinar se a pena de morte é verdadeiramente útil e se é justa num governo sábio Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes Esse direito não tem certamente a mesma origem que as leis que protegem A soberania e as leis não são mais do que a soma das pequenas porções de liberdade que cada um cedeu à sociedade Representam a vontade geral resultado da união das vontades particulares Mas quem já pensou em dar a outros homens o direito de tirar lhe a vida Será o caso de supor que no sacrifício que faz de uma pequena parte de sua liberdade tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência o mais precioso de todos os bens Se assim fosse como conciliar esse princípio com a máxima que proíbe o suicídio Ou o homem tem o direito de se matar ou não pode ceder esse direito a outrem nem à sociedade inteira A pena de morte não se apoia assim em nenhum direito É uma guerra declarada a um cidadão pela nação que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil Se eu provar porém que a morte não é útil nem necessária terei ganho a causa da humanidade A morte de um cidadão só pode ser encarada como necessária por dois motivos nos momentos de confusão em que uma nação fica na alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade nas épocas de confusão em que as leis são substituídas pela desordem e quando um cidadão embora privado de sua liberdade pode ainda por suas relações e seu crédito atentar contra a segurança pública podendo sua existência produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido Mas sob o reino tranqüilo das leis sob uma forma de governo aprovada pela nação inteira num Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela força e pela opinião talvez mais poderosa do que a própria força num país em que a autoridade é exercida pelo próprio soberano em que as riquezas só podem proporcionar prazeres e não poder não pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidadão a menos que a morte seja o único freio capaz de impedir novos crimes A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte nunca deteve celerados determinados a fazer mal Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos vinte anos do reinado da imperatriz da Rússia a benfeitora Izabel13 que deu aos chefes dos povos uma lição mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a pátria só alcança ao preço do sangue dos seus filhos Se os homens a quem a linguagem da razão é sempre suspeita e que só se rendem à autoridade dos antigos usos se recusam à evidência dessas verdades bastarlhesá interrogar a natureza e consultar o próprio coração para testemunhar os princípios que acabam de ser estabelecidos O rigor do castigo causa menos efeito sobre o espírito humano do que a duração da pena porque a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente afetada por uma impressão ligeira mas freqüente do que por um abalo violento mas passageiro Todo ser sensível está submetido ao império do hábito e como é este que ensina o homem a falar a andar a satisfazer suas necessidades é também ele que grava no coração do homem as idéias de moral por impressões repetidas O espetáculo atroz mas momentâneo da morte de um celerado é para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo de um homem privado de sua liberdade tornado até certo ponto uma besta de carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou à sociedade Essa volta freqüente do espectador a si mesmo Se eu cometesse um crime estaria reduzido toda a minha vida a essa miserável condição essa idéia terrível assombraria mais fortemente os espíritos do que o medo da morte que se vê apenas um instante numa obscura distância que lhe enfraquece o horror A impressão produzida pela visão dos suplícios não pode resistir à ação do tempo e das paixões que logo apagam da memória dos homens as coisas mais essenciais Por via de regra as paixões violentas surpreendem vivamente mas o seu efeito não dura Produzirão uma dessas revoluções súbitas que fazem de repente de um homem comum um romano ou um espartano Mas num governo tranqüilo e livre são necessárias menos paixões violentas do que impressões duráveis Para a maioria dos que assistem à execução de um criminoso o suplício deste é apenas um espetáculo para a minoria é um objeto de piedade mesclado de indignação Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador bem mais do que o terror salutar que é o fim da pena de morte Mas as penas moderadas e contínuas só produzem nos espectadores o sentimento do medo No primeiro caso sucede ao espectador do suplício o mesmo que ao espectador do drama e assim como o avaro retorna ao seu cofre o homem violento e injusto retorna às suas injustiças O legislador deve por conseguinte pôr limites ao rigor das penas quando o suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a força do que para punir o crime Para que uma pena seja justa deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os homens do crime Ora não há homem que possa vacilar entre o crime mau grado a vantagem que este prometa e o risco de perder para sempre a liberdade Assim pois a escravidão perpétua substituindo a pena de morte tem todo o rigor necessário para afastar do crime o espírito mais determinado Digo mais encarase muitas vezes a morte de modo tranqüilo e firme uns por fanatismo outros por essa vaidade que nos acompanha mesmo além do túmulo Alguns desesperados fatigados da vida vêem na morte um meio de se livrar da miséria Mas o fanatismo e a vaidade desaparecem nas cadeias sob os golpes em meio às barras de ferro O desespero não lhes põe fim aos males mas os começa Nossa alma resiste mais à violência das dores extremas apenas passageiras do que ao tempo e à continuidade do desgosto Todas as forças da alma reunindose contra males passageiros podem enfraquecerlhes a ação mas todas as suas molas acabam por ceder a penas longas e constantes Numa nação em que a pena de morte é empregada é forçoso para cada exemplo que se dá um novo crime ao passo que a escravidão perpétua de um único culpado põe sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre e se repete Se é mister que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis é preciso que os suplícios sejam freqüentes e desde então é preciso também que os crimes se multipliquem o que provará que a pena de morte não causa toda a impressão que deveria produzir e que é inútil quando julgada necessária Dirseá que a escravidão perpétua é também uma pena rigorosa e por conseguinte tão cruel quanto a morte Responderei que reunindo num ponto todos os momentos infelizes da vida de um escravo sua vida seria talvez mais horrível do que os suplícios mais atrozes mas esses momentos ficam espalhados por todo o curso da vida ao passo que a pena de morte exerce todas as suas forças num só instante A vantagem da pena da escravidão para a sociedade é que amedronta mais aquele que a testemunha do que quem a sofre porque o primeiro considera a soma de todos os momentos infelizes ao passo que o segundo se alheia de suas penas futuras pelo sentimento da infelicidade presente A imaginação aumenta todos os males Aquele que sofre encontra em sua alma endurecida pelo hábito da desgraça consolações e recursos que as testemunhas dos seus males não conhecem porque julgam segundo sua sensibilidade do momento É somente por uma boa educação que se aprende a desenvolver e a dirigir os sentimentos do próprio coração Mas embora os celerados não possam perceber os seus princípios nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocínio Ora eis mais ou menos como raciocina um assassino ou um ladrão que só se afasta do crime pelo medo do poder ou da roda Quais são afinal as leis que devo respeitar e que deixam tão grande intervalo entre mim e o rico O homem opulento recusame com dureza a pequena esmola que lhe peço e me manda para o trabalho que eu jamais conheci Quem fez essas leis Homens ricos e poderosos que jamais se dignaram de visitar a miserável choupana do pobre que não viram repartir um pão grosseiro aos seus pobres filhos famintos e à sua mãe desolada Rompamos as convenções vantajosas somente para alguns tiranos covardes mas funestas para a maioria Ataquemos a injustiça em sua fonte Sim retornarei ao meu estado de independência natural viverei livre provarei por algum tempo os frutos felizes da minha astúcia e da minha coragem À frente de alguns homens determinados como eu corrigirei os enganos da fortuna e verei meus tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos cães Talvez venha uma época de dor e de arrependimento mas essa época será curta e por um dia de sofrimento terei gozado vários anos de liberdade e de prazeres Se a religião se apresentar então ao espírito desse infeliz não o intimidará diminuirá mesmo aos seus olhos o horror do último suplício oferecendolhe a esperança de um arrependimento fácil e da felicidade eterna que é seu fruto Mas aquele que tem diante dos olhos um grande número de anos ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão e na dor exposto ao desprezo dos seus concidadãos dos quais fora um igual escravo dessas leis pelas quais era protegido faz uma comparação útil de todos os males do êxito incerto do crime e do pouco tempo que terá para gozar O exemplo sempre presente dos infelizes que ele vê vítimas da imprudência impressionao muito mais do que os suplícios que podem endurecêlo mas não corrigi lo A pena de morte é ainda funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que dá aos homens Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano as leis cujo fim é suavizar os costumes deveriam multiplicar essa barbaria tanto mais horrível quanto dá a morte com mais aparato e formalidades Não é absurdo que as leis que são a expressão da vontade geral que detestam e punem o homicídio ordenem um morticínio público para desviar os cidadãos do assassínio Quais são as leis mais justas e mais úteis São as que todos proporiam e desejariam observar nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o interesse público Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte Está traçado em caracteres indeléveis nesses movimentos de indignação e de desprezo que nos inspira a simples visão do carrasco que não é contudo senão o executor inocente da vontade pública um cidadão honesto que contribui para o bem geral e que defende a segurança do Estado no interior como o soldado a defende no exterior Qual é pois a origem dessa contradição E porque esse sentimento de horror resiste a todos os esforços da razão É que numa parte recôndita da nossa alma na qual os princípios naturais ainda não foram alterados descobrimos um sentimento que nos grita que um homem não tem nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem e que só a necessidade que estende por toda parte o seu cetro de ferro pode dispor da nossa existência Que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros sagrados da justiça fazer arrastar um culpado à morte com cerimônia com tranqüilidade com indiferença E enquanto o infeliz espera o golpe fatal por entre convulsões e angústias o juiz que acaba de o condenar deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os prazeres da vida e talvez louvarse com secreta complacência pela autoridade que acaba de exercer Não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da tirania que essas formalidades cruéis e refletidas da justiça são simplesmente um pretexto para imolarnos com mais confiança como vítimas sacrificadas ao despotismo insaciável O assassínio que nos aparece como um crime horrível nós o vemos cometer friamente e sem remorso Não poderemos autorizarnos com esse exemplo Pintavamnos a morte violenta como uma cena terrível e é apenas questão de um momento Será menos ainda para aquele que tiver coragem de irlhe ao encontro e de pouparse desse modo tudo o que ela tem de doloroso Tais são os tristes e funestos raciocínios que perdem uma cabeça já disposta ao crime um espírito mais capaz de se deixar conduzir pelos abusos da religião do que pela religião mesma A história dos homens é um imenso oceano de erros no qual se vê sobrenadar uma ou outra verdade mal conhecida Não me oponham pois o exemplo da maior parte das nações que em quase todos os tempos aplicaram a pena de morte contra certos crimes esses exemplos nenhuma força têm contra a verdade que é sempre tempo de reconhecer Nesse caso aprovarseiam os sacrifícios humanos porque estiveram geralmente em uso entre todos os povos primitivos Mas se descubro alguns povos que se abstiveram mesmo durante um curto espaço de tempo do emprego da pena de morte posso prevalecerme disso com razão pois o destino das grandes verdades é não brilhar senão com a duração do relâmpago no meio da longa noite de trevas que envolve o gênero humano Ainda não chegaram os dias felizes em que a verdade eliminará o erro e se tornará apanágio de maioria em que o gênero humano não será iluminado somente pelas verdades reveladas Sinto quanto a voz fraca de um filósofo será facilmente abafada pelos gritos tumultuosos dos fanáticos escravos do preconceito Mas o pequeno número de sábios espalhados pela superfície da terra saberá entenderme seu coração aprovará meus esforços e se mau grado todos os obstáculos que a afastam do trono a verdade pudesse penetrar até aos ouvidos dos príncipes saibam eles que essa verdade lhes leva os votos secretos da humanidade inteira saibam que se protegerem a verdade santa sua glória ofuscará a dos mais famosos conquistadores e a eqüitativa posteridade colocará seus nomes acima dos Titos14 dos Antoninos15 e dos Trajanos16 Feliz o gênero humano se pela primeira vez recebesse leis Hoje que vemos elevados nos tronos da Europa príncipes benfeitores amigos das virtudes pacíficas protetores das ciências e das artes pais dos seus povos e cidadãos coroados quando esses príncipes consolidando sua autoridades trabalham para a felicidade dos seus súditos quando destroem esse despotismo intermediário tanto mais cruel quanto menos solidamente estabelecido quando comprimem os tiranos subalternos que interceptam os votos do povo e os impedem de chegar até ao trono onde seriam escutados quando se considera que se tais príncipes deixam subsistir leis defeituosas é porque são premidos pela extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa série de séculos e protegidos por um certo número de homens interessados que punem todo cidadão esclarecido deve desejar com ardor que o poder desses soberanos ainda aumente e se torne bastante grande para permitirlhes a reforma de uma legislação funesta XVII DO BANIMENTO E DAS CONFISCAÇÕES AQUELE que perturba a tranqüilidade pública que não obedece às leis que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente esse deve ser excluído da sociedade isto é banido Pareceme que se poderiam banir aqueles que acusados de um crime atroz são suspeitos de culpa com maior verossimilhança mas sem estar plenamente convencidos do crime Em casos semelhantes seria mister que uma lei a menos arbitrária e a mais precisa possível condenasse ao banimento aquele que pusesse a nação na fatal alternativa de fazer uma injustiça ou de temer um acusado Seria mister igualmente que essa lei deixasse ao banido o direito sagrado de poder a todo instante provar sua inocência e recuperar os seus direitos Seria mister enfim que houvesse razões mais fortes para banir um cidadão acusado pela primeira vez do que para condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que já tivesse sido chamado à justiça Mas deve aquele que se bane que se exclui para sempre da sociedade de que fazia parte ser ao mesmo tempo privado dos seus bens Essa questão pode ser encarada sob diferentes aspectos A perda dos bens é uma pena maior que a do banimento Deve pois haver casos em que para proporcionar a pena ao crime se confiscarão todos os bens do banido Em outras circunstâncias só será despojado de uma parte de sua fortuna e para certos delitos o banimento não será acompanhado de nenhuma confiscação O culpado poderá perder todos os seus bens se a lei que pronuncia o banimento declara rompidos todos os laços que o ligavam à sociedade porque desde então o cidadão está morto resta somente o homem e perante a sociedade a morte política de um cidadão deve ter as mesmas conseqüências que a morte natural Segundo essa máxima dirseá talvez que é evidente que os bens do culpado deveriam reverter para os herdeiros legítimos e não para o príncipe não é nisso porém que me apoiarei para desaprovar as confiscações Se alguns jurisconsultos sustentaram que as confiscações punham um freio às vinganças dos particulares banidos tirandolhes o poder de ser nocivos é que não refletiram que não basta uma pena produzir algum bem para ser justa Uma pena só é justa quando necessária Um legislador não autorizará nunca uma injustiça útil se quer prevenir as invasões da tirania que vela sem cessar que seduz e abusa pelo pretexto falaz de algumas vantagens momentâneas e que faz deperecer em pranto e na miséria um povo cuja ruína prepara para espalhar a abundância e a felicidade sobre uma minoria de homens privilegiados O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa e faz o inocente sofrer os castigos reservados aos culpados Pior ainda as confiscações podem fazer do homem de bem um criminoso pois o levam ao crime reduzindoo à indigência e ao desespero E além disso não há espetáculo mais hediondo que o de uma família inteira coberta de infâmia mergulhada nos horrores da miséria pelo crime do seu chefe crime que essa família submetida à autoridade do culpado não poderia prevenir mesmo que tivesse os meios para tanto XVIII DA INFÂMIA A INFÂMIA é um sinal da improbação pública que priva o culpado da consideração da confiança que a sociedade tinha nele e dessa espécie de fraternidade que une os cidadãos de um mesmo país Como os efeitos da infâmia não dependem absolutamente das leis é mister que a vergonha que a lei inflige se baseie na moral ou na opinião pública Se se tentasse manchar de infâmia uma ação que a opinião não julga infame ou a lei deixaria de ser respeitada ou as idéias aceitas de probidade e de morai desapareceriam mau grado todas as declamações dos moralistas sempre impotentes contra a força do exemplo Declarar infames ações indiferentes em si mesmas é diminuir a infâmia das que efetivamente merecem ser designadas desse modo Bem necessário é evitar que se punam com penas corporais e dolorosas certos delitos fundados no orgulho e que fazem dos castigos uma glória Tal é o fanatismo que só pode ser reprimido pelo ridículo e pela vergonha Se se humilhar à orgulhosa vaidade dos fanáticos perante uma grande multidão de espectadores devem esperarse felizes efeitos dessa pena pois que a própria verdade tem necessidade dos maiores esforços para se defender quando é atacada pela arma do ridículo Opondo assim a força à força e a opinião à opinião um legislador esclarecido dissipa no espírito do povo a admiração que lhe causa um falso princípio cujo absurdo lhe foi dissimulado com raciocínios especiosos As penas infamantes devem ser raras porque o emprego demasiado freqüente do poder da opinião enfraquece a força da própria opinião A infâmia não deve cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo porque a infâmia de um grande número não é mais em breve a infâmia de ninguém Tais são os meios de harmonizar as relações invariáveis das coisas e de atender à natureza que sempre ativa e jamais sujeita aos limites do tempo destrói e revoga todas as leis que se afastam dela Não é só nas belasartes que é preciso seguir fielmente a natureza as instituições políticas ao menos aquelas que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração se fundam na natureza e a verdadeira política não é outra coisa senão a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutáveis do homem XIX DA PUBLICIDADE E DA PRESTEZA DAS PENAS QUANTO mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito tanto mais justa e útil ela será Mais justa porque poupará ao acusado os cruéis tormentos da incerteza tormentos supérfluos cujo horror aumenta para ele na razão da força de imaginação e do sentimento de fraqueza A presteza do julgamento é justa ainda porque a perda da liberdade sendo já uma pena esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado como esse meio é aflitivo e cruel devese tanto quanto possível suavizarlhe o rigor e a duração Um cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime O processo mesmo deve ser conduzido sem protelações Que contraste hediondo entre a indolência de um juiz e a angústia de um acusado De um lado um magistrado insensível que passa os dias no bemestar e nos prazeres e de outro um infeliz que definha a chorar no fundo de uma masmorra abominável Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral impressionantes e sensíveis para os que o testemunharam haverá porém necessidade de que esse castigo seja tão cruel para quem o sofre Quando os homens se reuniram em sociedade foi para só se sujeitarem aos mínimos males possíveis e não há país que possa negar esse princípio incontestável Eu disse que a presteza da pena é útil e é certo que quanto menos tempo decorrer entre o delito e a pena tanto mais os espíritos ficarão compenetrados da idéia de que não há crimes sem castigo tanto mais se habituarão a considerar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito necessário e inseparável É a ligação das idéias que sustenta todo o edifício do entendimento humano Sem ela o prazer e a dor seriam sentimentos isolados sem efeito tão cedo esquecidos quanto sentidos Os homens sem idéias gerais e princípios universais isto é os homens ignorantes e embrutecidos não agem senão segundo as idéias mais vizinhas e mais imediatamente unidas Negligenciam as relações distantes e essas idéias complicadas que só se apresentam ao homem fortemente apaixonado por um objeto ou aos espíritos esclarecidos A luz da atenção dissipa no homem apaixonado as trevas que cercam o vulgar O homem instruído acostumado a percorrer e a comparar rapidamente um grande número de idéias e de sentimentos opostos tira do contraste um resultado que constitui a base de sua conduta desde então menos incerta e menos perigosa É pois da maior importância punir prontamente um crime cometido se se quiser que no espírito grosseiro do vulgo a pintura sedutora das vantagens de uma ação criminosa desperte imediatamente a idéia de um castigo inevitável Uma pena por demais retardada torna menos estreita a união dessas duas idéias crime e castigo Se o suplício de um acusado causa então alguma impressão e somente como espetáculo pois só se apresenta ao espectador quando o horror do crime que contribui para fortificar o horror da pena já está enfraquecido nos espíritos Poderseia ainda estreitar mais a ligação das idéias de crime e de castigo dando à pena toda a conformidade possível com a natureza do delito a fim de que o receio de um castigo especial afaste o espírito do caminho a que conduzia a perspectiva de um crime vantajoso É preciso que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o leva ao crime Entre vários povos punemse os crimes pouco consideráveis com a prisão ou com a escravidão num país distante isto é mandase o culpado levar um exemplo inútil a uma sociedade que ele não ofendeu Como os homens não se entregam a princípio aos maiores crimes a maior parte dos que assistem ao suplício de um celerado acusado de algum crime monstruoso não experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer Ao contrário a punição pública dos pequenos delitos mais comuns causarlheá na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes crimes desviandoos primeiro dos que o são menos XX QUE O CASTIGO DEVE SER INEVITÁVEL DAS GRAÇAS NÃO é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança mas a certeza do castigo o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas A perspectiva de um castigo moderado mas inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade O homem treme à idéia dos menores males quando vê a impossibilidade de evitálos ao passo que a esperança doce filha do céu que tantas vezes nos proporciona todos os bens afasta sempre a idéia dos tormentos mais cruéis por pouco que ela seja sustentada pelo exemplo da impunidade que a fraqueza ou o amor do ouro tão freqüentemente concede As vezes a gente se abstém de punir um delito pouco importante quando o ofendido perdoa É um ato de benevolência mas um ato contrário ao bem público Um particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fez mas o perdão que ele concede não pode destruir a necessidade do exemplo O direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular pertence às leis que são o órgão da vontade de todos Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção desse direito mas não tem nenhum poder sobre a dos outros Quando as penas se tiverem tornado menos cruéis a demência e o perdão serão menos necessários Feliz a nação que não mais lhes desse o nome de virtudes A demência que se tem visto em alguns soberanos substituir outras qualidades que lhes faltavam para cumprir os deveres do trono deveria ser banida de uma legislação sábia na qual as penas fossem brandas e a justiça feita com formas prontas e regulares Essa verdade parecerá dura apenas aos que vivem submetidos aos abusos de uma jurisprudência criminal que concede a graça e o perdão necessários em razão mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das leis O direito de conceder graça é sem dúvida a mais bela prerrogativa do trono é o mais precioso atributo do poder soberano mas ao mesmo tempo é uma improbação tácita das leis existentes O soberano que se ocupa com a felicidade pública e que julga contribuir para ela exercendo o direito de conceder graça elevase então contra o código criminal consagrado mau grado seus vícios pelos preconceitos antigos pelo calhamaço impostor dos comentadores pelo grave aparelho das velhas formalidades enfim pelo sufrágio dos semisábios sempre mais insinuantes e mais escutados do que os verdadeiros sábios Sendo a clemência virtude do legislador e não do executor das leis devendo manifestar se no Código e não em julgamentos particulares se se deixar ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre é a sua conseqüência necessária nutrese neles a esperança da impunidade fazse com que aceitem os suplícios não como atos de justiça mas como atos de violência Quando o soberano concede graça a um criminoso não será o caso de dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e que por um ato de cega benevolência pronuncia um decreto geral de impunidade Sejam pois as leis inexoráveis sejam os executores das leis inflexíveis seja porém o legislador indulgente e humano Arquiteto prudente dê por base ao seu edifício o amor que todo homem tem ao próprio bemestar e saiba fazer resultar o bem geral do concurso dos interesses particulares não se verá assim constrangido a recorrer a leis imperfeitas a meios pouco refletidos que separam a cada instante os interesses da sociedade dos cidadãos não será forçado a elevar sobre o medo e a desconfiança o simulacro da felicidade pública Filósofo profundo e sensível terá deixado aos seus irmãos o gozo pacífico da pequena porção de felicidade que o Ser supremo lhes concedeu nesta terra que não é mais do que um ponto no meio de todos os mundos XXI DOS ASILOS SERÃO justos os asilos E será útil o uso estabelecido entre as nações de permutarem entre si os criminosos Em toda a extensão de um Estado político não deve haver nenhum lugar fora da dependência das leis A força destas deve seguir o cidadão por toda a parte como a sombra segue o corpo Há pouca diferença entre a impunidade e os asilos e como o melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e inevitável os asilos que representam um abrigo contra a ação das leis convidam mais ao crime do que as penas o evitam do momento em que se tem a esperança de evitálos Multiplicar os asilos é formar pequenas soberanias porque quando as leis não têm poder novas potências se formam de ordem comum estabelecese um espírito oposto ao do corpo inteiro da sociedade Vêse na história de todos os povos que os asilos foram a fonte de grandes revoluções nos Estados e nas opiniões humanas Pretenderam alguns que cometido um crime num lugar isto é um ato contrário às leis teriam estas em toda parte o direito de punir Será a qualidade de súdito nesse caso um caráter indelével Será o nome de súdito pior que o de escravo E admitirseá que um homem habite um país e seja submetido às leis de outro país que suas ações fiquem ao mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislações muitas vezes contraditórias Ousouse dizer assim que um crime cometido em Constantinopla podia ser punido em Paris porque aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos os homens por inimigos e deve ser objeto da execração universal No entanto os juizes não são vingadores do gênero humano em geral são os defensores das convenções particulares que ligam entre si um certo número de homens Um crime só deve ser punido no país onde foi cometido porque é somente aí e não em outra parte que os homens são forçados a reparar pelo exemplo da pena os funestos efeitos que o exemplo do crime pode produzir Um celerado cujos crimes precedentes não puderam violar as leis de uma sociedade da qual não era membro pode bem ser temido e expulso dessa sociedade mas as leis não podem infligirlhe outra pena pois são feitas somente para punir o mal que lhe é feito e não o crime que não as ofende Será pois útil que as nações permutem reciprocamente entre si os criminosos Certamente a persuasão de não encontrar nenhum lugar na terra em que o crime possa ficar impune seria um meio bem eficaz de prevenilo Não ousarei porém decidir essa questão até que as leis tornandose mais conformes aos sentimentos naturais do homem com penas mais brandas impedindo o arbítrio dos juizes e da opinião assegurem a inocência e preservem a virtude das perseguições da inveja até que a tirania relegada ao Oriente tenha deixado a Europa sob o doce império da razão dessa razão eterna que une com um laço indissolúvel os interesses dos soberanos aos interesses dos povos XXII DO USO DE PÔR A CABEÇA A PRÊMIO SERÁ vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um criminoso armar cada cidadão de um punhal e fazer assim outros tantos carrascos Ou o criminoso saiu do país ou ainda está nele No primeiro caso excitamse os cidadãos a cometer um assassínio a atingir talvez um inocente a merecer suplícios Fazse uma injúria à nação estrangeira espezinhaselhe a autoridade autorizase que se façam semelhantes usurpações entre os próprios vizinhos Se o criminoso ainda está no país cujas leis violou o governo que põe sua cabeça a prêmio revela fraqueza Quando a gente tem força para defenderse não compra o socorro de outrem Além disso o uso de pôr a prêmio a cabeça de um cidadão anula todas as idéias de moral e de virtude tão fracas e tão abaladas no espírito humano De um lado as leis punem a traição de outro autorizamna O legislador aperta com uma das mãos os laços de sangue e de amizade e com a outra recompensa aquele que os quebra Sempre em contradição consigo mesmo ora procura espalhar a confiança e animar os que duvidam ora semeia a desconfiança em todos os corações Para prevenir um crime faz nascer cem Semelhantes usos só convêm às nações fracas cujas leis só servem para sustentar por um momento um edifício de ruínas que todo se esboroa Mas à medida que as luzes de uma nação se difundem a boa fé e a confiança recíproca se tornam necessárias e a política é enfim constrangida a admitilas Então desmanchamse e previnemse mais facilmente as cabalas os artifícios as manobras obscuras e indiretas Então também o interesse geral sai sempre vencedor dos interesses particulares Os povos esclarecidos poderiam buscar lições em alguns séculos de ignorância nos quais a moral particular era sustentada pela moral pública As nações só serão felizes quando a sã moral estiver estreitamente ligada à política Mas leis que recompensam a traição que acendem entre os cidadãos uma guerra clandestina que excitam suspeitas recíprocas oporseão sempre a essa união tão necessária da política e da moral união que daria aos homens segurança e paz que lhes aliviaria a miséria e que traria às nações mais longos intervalos de repouso e concórdia do que aqueles de que até ao presente gozaram XXIII QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONADAS AOS DELITOS O INTERESSE de todos não é somente que se cometam poucos crimes mais ainda que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros Os meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem pois ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode tornarse mais comum Deve pois haver uma proporção entre os delitos e as penas Se o prazer e a dor são os dois grandes motores dos seres sensíveis se entre os motivos que determinam os homens em todas as suas ações o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e as penas se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo o homem inclinado ao crime não tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso decidirseá mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos e a distribuição desigual das penas produzirá a contradição tão notória quando freqüente de que as leis terão de punir os crimes que tiveram feito nascer Se se estabelece um mesmo castigo a pena de morte por exemplo para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos destruirseão no coração do homem os sentimentos morais obra de muitos séculos cimentada por ondas de sangue estabelecida com lentidão através mil obstáculos edifício que só se pode elevar com o socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades Seria em vão que se tentaria prevenir todos os abusos que se originam da fermentação contínua das paixões humanas esses abusos crescem em razão da população e do choque dos interesses particulares que é impossível dirigir em linha reta para o bem público Não se pode provar essa asserção com toda a exatidão matemática podese porém apoiála com exemplos notáveis Lançai os olhos sobre a história e vereis crescerem os abusos à medida que os impérios aumentam Ora como o espírito nacional se enfraquece na mesma proporção o pendor para o crime crescerá em razão da vantagem que cada um descobre no abuso mesmo e a necessidade de agravar as penas seguirá necessariamente igual progressão Semelhante à gravitação dos corpos uma força secreta impelenos sempre para o nosso bem estar Essa impulsão só é enfraquecida pelos obstáculos que as leis lhe opõem Todos os diversos atos do homem são efeitos dessa tendência interior As penas são os obstáculos políticos que impedem os funestos efeitos do choque dos interesses pessoais sem destruirlhes a causa que é o amor de si mesmo inseparável da humanidade O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que podem contribuir para consolidar o edifício e enfraquecer todas as que possam arruinálo Supondose a necessidade da reunião dos homens em sociedade mediante convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular acharseá um progressão de crimes dos quais o maior será aquele que tende à destruição da própria sociedade Os menores delitos serão as pequenas ofensas feitas aos particulares Entre esses dois extremos estarão compreendidos todos os atos opostos ao bem público desde o mais criminoso até ao menos passível de culpa Se os cálculos exatos pudessem aplicarse a todas as combinações obscuras que fazem os homens agir seria mister procurar e fixar uma progressão de penas correspondente à progressão dos crimes O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada nação Bastará contudo que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penas proporcionadas aos delitos e que sobretudo não aplique os menores castigos aos maiores crimes XXIV DA MEDIDA DOS DELITOS JÁ observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade Eis aí uma dessas verdades que embora evidentes para o espírito menos perspicaz mas ocultas por um concurso singular de circunstâncias só são conhecidas de um pequeno número de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos As opiniões espalhadas pelos déspotas e as paixões dos tiranos abafaram as noções simples e as idéias naturais que constituíam sem dúvida a filosofia das sociedades primitivas Mas se a tirania comprimiu a natureza por uma ação insensível ou por impressões violentas sobre os espíritos da multidão hoje enfim as luzes do nosso século dissipam os tenebrosos projetos do despotismo reconduzindonos aos princípios da filosofia e mostrandonolos com mais certeza Esperemos que a funesta experiência dos séculos passados não seja perdida e que os princípios naturais reapareçam entre os homens mau grado todos os obstáculos que se lhes opõem A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete como erroneamente o julgaram alguns porque a intenção do acusado depende das impressões causadas pelos objetos presentes e das disposições precedentes da alma Esses sentimentos variam em todos os homens e no mesmo indivíduo com a rápida sucessão das idéias das paixões e das circunstâncias Se se punisse a intenção seria preciso ter não só um Código particular para cada cidadão mas uma nova lei penal para cada crime Muitas vezes com a melhor das intenções um cidadão faz à sociedade os maiores males ao passo que um outro lhe presta grandes serviços com a vontade de prejudicar Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida de preferência ao mal que possa causar à sociedade Se esse método fosse aceito uma pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do que o assassínio de um monarca pois a superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a diferença da ofensa Outros finalmente julgaram o delito tanto mais grave quanto maior a ofensa à Divindade Sentirseá facilmente quanto essa opinião é falsa se se examinarem com sanguefrio as verdadeiras relações que unem os homens entre si e as que existem entre o homem e Deus As primeiras são relações de igualdade Só a necessidade faz nascer do choque das paixões e da posição dos interesses particulares a idéia da unidade comum base da justiça humana Ao contrário as relações que existem entre o homem e Deus são relações de dependência que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas a um senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo tempo legislador e juiz somente ele pode ser a um tempo uma e outra coisa Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu suas leis qual será o inseto bastante temerário que ousará vir em socorro de sua justiça divina para empreender vingar o ser que se basta a si mesmo que os crimes não podem entristecer que os castigos não podem alegrar e que é o único na natureza a agir de maneira constante A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da maldade do coração e para que os homens pudessem sondar esse abismo serlhesia preciso o socorro da revelação Como poderiam eles determinar as penas dos diferentes crimes sobre princípios cuja base lhes é desconhecida Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar quando Deus pune Se os homens ofendem a Deus com o pecado muitas vezes o ofendem mais ainda encarregandose do cuidado de vingálo XXV DIVISÃO DOS DELITOS HÁ crimes que tendem diretamente à destruição da sociedade ou dos que a representam Outros atingem o cidadão em sua vida nos seus bens ou em sua honra Outros finalmente são atos contrários ao que a lei prescreve ou proíbe tendo em vista o bem público Todo ato não compreendido numa dessas classes não pode ser considerado como crime nem punido como tal senão pelos que descobrem nisso o seu interesse particular Por não se ter sabido guardar esses limites é que se vê em todas as nações uma oposição entre as leis e a moral e muitas vezes uma oposição entre aquelas mesmas O homem de bem está exposto às penas mais severas As palavras vício e virtude não passam de sons vagos A existência do cidadão envolvese de incerteza e os corpos políticos caem numa letargia funesta que os conduz insensivelmente à ruína Cada cidadão pode fazer tudo o que não é contrário às leis sem temer outros inconvenientes além dos que podem resultar de sua ação em si mesma Esse dogma político deveria ser gravado no espírito dos povos proclamado pelos magistrados supremos e protegido pelas leis Sem esse dogma sagrado toda sociedade legítima não pode subsistir por muito tempo porque ele é a justa recompensa do sacrifício que os homens fizeram de sua independência e de sua liberdade É essa opinião que torna as almas fortes e generosas que eleva o espírito que inspira aos homens uma virtude superior ao medo e os faz desprezar essa miserável maleabilidade que tudo aprova e que é a única virtude dos homens bastante fracos para suportar constantemente uma existência precária e incerta Percorramse com visão filosófica as leis e a história das nações e se verão quase sempre os nomes de vício e virtude de bom e mau cidadão mudarem de valor segundo o tempo e as circunstâncias Não são porém as reformas operadas no Estado ou nos negócios públicos que causarão essa revolução das idéias esta será a conseqüência dos erros e dos interesses passageiros dos diferente legisladores Muitas vezes se verão as paixões de um século servir de base à moral dos séculos seguintes e formar toda a política dos que presidem às leis Mas as paixões fortes filhas do fanatismo e do entusiasmo obrigam a pouco e pouco à força de excessos o legislador à prudência e podem tornarse um instrumento útil nas mãos da astúcia ou do poder quando o tempo as tiver enfraquecido Foi do enfraquecimento das paixões fortes que nasceram entre os homens as noções obscuras de honra e virtude e essa obscuridade subsistirá sempre porque as idéias mudam com o tempo que deixa sobreviver os nomes às coisas que variam segundo os lugares e os climas é que a moral esta submetida como os impérios a limites geográficos XXVI DOS CRIMES DE LESA MAJESTADE OS crimes de lesamajestade foram postos na classe dos grandes crimes porque são funestos à sociedade Mas a tirania e a ignorância que confundem as palavras e as idéias mais claras deram esse nome a uma multidão de delitos de natureza inteiramente diversa Aplicaramse as penas mais graves a faltas leves e nessa ocasião como em mil outras o homem é muitas vezes vítima de uma palavra Toda espécie de delito é nociva à sociedade mas nem todos os delitos tendem imediatamente a destruir É preciso julgar as ações morais por seus efeitos positivos e ter em conta o tempo e o lugar Só a arte das interpretações odiosas que é ordinariamente a ciência dos escravos pode confundir coisas que a verdade eterna separou por limites imutáveis XXVII DOS ATENTADOS CONTRA A SEGURANÇA DOS PARTICULARES E PRINCIPALMENTE DAS VIOLÊNCIAS DEPOIS dos crimes que atingem a sociedade ou o soberano que a representa vêm os atentados contra a segurança dos particulares Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas não se pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a atinge Entre esses crimes uns são atentados contra a vida outros contra a honra e outros contra os bens Falaremos antes dos primeiros que devem ser punidos com penas corporais Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no número dos grandes crimes Compreendemse nessa classe não somente os assassínios e os assaltos cometidos por homens do povo mas igualmente as violências da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos magistrados crimes tanto mais graves quanto as ações dos homens elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça e de dever para substituir as do direito do mais forte direito igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às penas que merecem os atentados contra a segurança do fraco e do pobre as riquezas que sob a proteção das leis são a recompensa da indústria tornarseão alimento da tirania e das iniqüidades Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em certas circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para tornarse uma coisa que se possa pôr a prêmio Vêse então a astúcia dos homens poderosos ocupada completamente com o aumento de sua força e dos seus privilégios aproveitando todas as combinações que a lei lhes torna favoráveis Eis o mágico segredo que transformou a massa dos cidadãos em bestas de carga foi assim que os grandes acorrentaram escravos É por isso que certos governos que têm todas as aparências de liberdade gemem sob uma tirania oculta É pelos privilégios dos grandes que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente depois de se terem introduzido na constituição por vias que o legislador negligenciou fechar Os homens sabem opor diques bastante fortes à tirania declarada mas muitas vezes não vêem o inseto imperceptível que mina sua obra e que abre por fim à torrente devastadora uma estrada tanto mais segura quanto mais oculta Quais serão pois as penas reservadas aos crimes dos nobres cujos privilégios ocupam tão grande lugar na legislação da maior parte dos povos Não examinarei se essa distinção hereditária entre plebeus e nobres é útil ao governo ou necessária às monarquias nem se é verdade que a nobreza é um poder intermediário próprio para conter em justos limites o povo e o soberano nem se essa ordem isolada da sociedade não tem o inconveniente de reunir num círculo estreito todas as vantagens da indústria todas as esperanças e toda a felicidade como essas ilhotas encantadoras e férteis que se encontram no meio dos desertos terríveis da Arábia Quando fosse verdade que a desigualdade é inevitável e mesmo útil na sociedade é certo que só deveria existir entre os indivíduos e em virtude das dignidades e do mérito mas não entre as ordens do Estado que as distinções não devem permanecer num só lugar mas circular em todas as partes do corpo político que as desigualdades sociais devem nascer e desaparecer a cada instante mas não perpetuarse nas famílias Seja qual for a conclusão de todas essas questões limitarmeei a dizer que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos A igualdade civil é anterior a todas as distinções de honras e de riquezas Se todos os cidadãos não dependerem igualmente das mesmas leis as distinções deixarão de ser legítimas Deve suporse que os homens renunciando à liberdade despótica que receberam da natureza para se reunirem em sociedade disseram entre si Aquele que for mais industrioso obterá as maiores honras a glória do seu nome passará aos seus descendentes mas não obstante as honras e as riquezas não receará menos do que o último dos cidadãos a violação das leis que o elevaram acima dos outros É verdade que não há assembléia geral do gênero humano em que se tenha aprovado semelhante decreto este se funda porém na natureza imutável dos sentimentos do homem A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os príncipes julgam retirar da nobreza apenas impede os inconvenientes das distinções e torna as leis respeitáveis tirando toda esperança de impunidade Dirseá talvez que a mesma pena aplicada contra o nobre e contra o plebeu tornase completamente diversa e mais grave para o primeiro por causa da educação que recebeu e da infâmia que se espalha sobre uma família ilustre Responderei no entanto que o castigo se mede pelo dano causado à sociedade e não pela sensibilidade do culpado Ora o exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de condição mais elevada Acrescentarei que a igualdade da pena só pode ser exterior e não pode ser proporcionada ao grau de sensibilidade que é diferente em cada indivíduo Quanto à infâmia que cobre uma família inocente o soberano pode facilmente apagála com demonstrações públicas de benevolência Sabese que tais demonstrações de favor têm foros de razão no povo crédulo e admirador XXVIII DAS INJÚRIAS AS injúrias pessoais contrárias à honra isto é a essa justa porção de estima que todo homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos devem ser punidas pela infâmia Há uma contradição notória entre as leis ocupadas sobretudo com a proteção da fortuna e da vida de cada cidadão e as leis do que se chama a honra que preferem a opinião a tudo A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os mais brilhantes raciocínios sem ligarse a nenhuma idéia fixa e precisa Tal é a triste condição do espírito humano que conhece melhor as revoluções dos corpos celestes do que as verdades que o tocam de perto e que importam em sua felicidade As noções morais que mais o interessam lhe são incertas só as entrevê cercadas de trevas e flutuando ao sabor do turbilhão das paixões Esse fenômeno deixará de causar espanto quando se considerar que semelhantes aos objetos que se confundem aos nossos olhos porque estão próximos demais as idéias morais perdem a clareza por estarem demasiado ao nosso alcance Apesar de sua simplicidade discernimos com dificuldade os diversos princípios de moral e julgamos muitas vezes sem conhecêlos os sentimentos do coração humano Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens não se admirará de todas essas coisas pensará que para ser feliz e tranqüilo o homem talvez não tenha necessidade de tantas leis nem de tão grande aparato moral A idéia da honra é uma idéia complexa formada não somente de várias idéias simples mas também de várias idéias complexas por si mesma Segundo os diferentes aspectos sob os quais a idéia da honra se apresenta ao espírito algumas vezes ela encerra e outras exclui certos elementos que a compõem só conservando nessas diferentes situações um pequeno número de elementos comuns como várias quantidades algébricas admitindo um divisor comum Para achar esse divisor comum das diferentes idéias que os homens fazem da honra lancemos um rápido olhar sobre a formação das sociedades As primeiras leis e os primeiros magistrados originaramse da necessidade de impedir os abusos que teria ocasionado o despotismo natural de todo homem mais robusto do que o vizinho Foi esse o objeto do estabelecimento das sociedades e essa a base real ou aparente de todas as leis mesmo as que encerram princípios de destruição Mas a aproximação dos homens e os progressos dos seus conhecimentos fizeram nascer em seguida uma infinidade de necessidades e ligações recíprocas entre os membros da sociedade Nem todas essas necessidades tinham sido previstas pela lei e os meios atuais de cada cidadão não lhe bastavam para satisfazêlas Começou então a estabelecerse o poder da opinião por meio da qual podem obterse certas vantagens que as leis não podiam proporcionar e evitar males de que elas não podiam preservar É a opinião que constitui muitas vezes o suplício do sábio e do medíocre É ela que concede às aparências da virtude o respeito que recusa à própria virtude É a opinião que de um vil celerado faz um missionário ardente quando esconde seu interesse nessa hipocrisia Sob o reinado da opinião a estima dos outros homens não é somente útil mas indispensável a quem permanecer ao nível dos seus concidadãos O ambicioso procura os sufrágios da opinião que lhe serve os projetos o homem vão mendigaos como um testemunho do próprio mérito o homem de honra exigeos porque não pode dispensá los Essa honra que muita gente prefere à própria existência só foi conhecida depois que os homens se reuniram em sociedade não pode ser posta no depósito comum O sentimento que nos liga à honra não é outra coisa senão uma volta momentânea ao estado de natureza um movimento que nos subtrai por um instante a leis cuja proteção é insuficiente em certas ocasiões Seguese daí que na extrema liberdade política como na extrema dependência as idéias de honra desaparecem ou se confundem com outras idéias Num estado de liberdade ilimitada as leis protegem tão fortemente que não se tem necessidade de buscar os sufrágios da opinião pública No estado de escravidão absoluta o despotismo que anula a existência civil só deixa a cada indivíduo uma personalidade precária e momentânea A honra só é pois um princípio fundamental nas monarquias temperadas onde o despotismo do senhor é limitado pelas leis A honra produz quase numa monarquia o efeito que produz a revolta nos Estados despóticos O súdito entra por um momento no estado de natureza e o soberano tem a recordação da antiga igualdade XXIX DOS DUELOS A HONRA que não é senão a necessidade dos sufrágios públicos deu nascimento aos combates singulares que só puderam estabelecerse na desordem das más leis Se os duelos não estiveram em uso na antigüidade como algumas pessoas o crêem é que os antigos não se reuniam armados com um ar de desconfiança nos templos no teatro e entre os amigos Talvez também sendo o duelo um espetáculo muito comum que vis escravos davam ao povo os homens livres tivessem receio de que os combates singulares não bastassem para que eles fossem considerados homens honrados Seja como for é em vão que se experimentou entre os modernos impedir os duelos com pena de morte Essas leis severas não puderam destruir um costume fundado numa espécie de honra mais cara aos homens do que a própria vida O cidadão que recusa um duelo vêse presa do desprezo dos seus concidadãos é forçado a levar uma vida solitária a renunciar aos encantos da sociedade ou a exporse constantemente aos insultos e à vergonha cujos repetidos golpes o afetam de maneira mais cruel do que a idéia do suplício Por que motivo serão os duelos menos freqüentes entre os homens do povo do que entre os grandes É somente porque o povo não traz espada é porque tem menos necessidade de sufrágios públicos do que os homens de condição mais elevada que se observam entre si com mais desconfiança e inveja Não é inútil repetir aqui o que já se disse certa vez que o melhor meio de impedir o duelo é punir o agressor isto é aquele que deu lugar à querela a declarar inocente aquele que sem procurar tirar a espada se viu constrangido a defender a própria honra isto é a opinião que as leis não protegem suficientemente e mostrar aos seus concidadãos que pode respeitar as leis mas que não teme os homens XXX DO ROUBO UM roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena pecuniária É justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do seu Mas se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero se esse delito só é cometido por essa classe de homens infortunados a quem o direito de propriedade direito terrível e talvez desnecessário só deixou a existência como único bem as penas pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos aumentando o número dos indigentes arrancando o pão a uma família inocente para dálo a um rico talvez criminoso A pena mais natural do roubo será pois essa espécie de escravidão que é a única que se pode chamar justa isto é a escravidão temporária que torna a sociedade senhora absoluta da pessoa e do trabalho do culpado para fazêlo expiar por essa dependência o dano que causou e a violação do pacto social Se porém o roubo é acompanhado de violência é justo ajuntar à servidão as penas corporais Outros escritores mostraram antes de mim os inconvenientes graves que resultam do uso de aplicar as mesmas penas contra os roubos cometidos com violência e contra aqueles em que o ladrão só empregou a astúcia Fezse ver quanto é absurdo pôr na mesma balança uma certa soma de dinheiro e a vida de um homem O roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes e a sã política deve admitir ainda mais do que as matemáticas o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância infinita Essas coisas foram ditas mas é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em prática Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido é porém moroso e difícil imprimirlhes um novo movimento XXXI DO CONTRABANDO O CONTRABANDO é um verdadeiro delito que ofende o soberano e a nação mas cuja pena não deveria ser infamante porque a opinião pública não empresta nenhuma infâmia a essa espécie de delito Porque pois o contrabando que é um roubo feito ao príncipe e por conseguinte à nação não acarreta a infâmia sobre aquele que o exerce É que os delitos que os homens não consideram nocivos aos seus interesses não afetam bastante para excitar a indignação pública Tal é o contrabando Os homens sobre os quais as conseqüências remotas de um ato só produzem impressões fracas não vêem o dano que o contrabando pode causarlhes Chegam mesmo às vezes a retirar dele vantagens momentâneas Não vêem senão o mal causado ao príncipe e para recusarem estima ao culpado só têm uma razão premente contra o ladrão o falsário e alguns outros criminosos que podem prejudicálos pessoalmente Essa maneira de sentir é conseqüência do princípio incontestável de que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece O contrabando é um delito gerado pelas próprias leis porque quanto mais se aumentam os direitos tanto maior é a vantagem do contrabando a tentação de exercêlo é também tão forte quanto mais fácil é cometer essa espécie de delito sobretudo se os objetos proibidos são de pequeno volume e se são interditos numa tão grande circunferência de território que a extensão deste torne difícil guardálo O confisco das mercadorias proibidas e mesmo de tudo o que se acha apreendido com objetos de contrabando é uma pena justíssima Para tornálo mais eficaz seria preciso que os direitos fossem pouco consideráveis pois os homens só se arriscam na proporção do lucro que o êxito possa proporcionarlhes Será porém o caso de deixar impune o culpado que não tem nada que perder Não Os impostos são parte tão essencial e tão difícil numa boa legislação e estão de tal modo comprometidos em certas espécies de contrabando que tal delito merece uma pena considerável como a prisão e mesmo a servidão mas uma prisão e uma servidão análogas à natureza do delito Por exemplo a prisão de um contrabandista de fumo não deve ser a do assassino ou a do ladrão e sem dúvida o castigo mais conveniente ao gênero do delito seria aplicar à utilidade do fisco a servidão e o trabalho daquele que pretendeu fraudarlhe os direitos XXXII DAS FALÊNCIAS O LEGISLADOR que percebe o preço da boa fé nos contratos e que quer proteger a segurança do comércio deve dar recurso aos credores sobre a pessoa mesma dos seus devedores quando estes abrem falência Importa porém não confundir o falido fraudulento com o que é de boa fé O primeiro deveria ser punido como o são os moedeiros falsos porque não é maior o crime de falsificar o metal amoedado que constitui a garantia dos homens entre si do que falsificar essas obrigações mesmas Mas o falido de boa fé o infeliz que pode provar evidentemente aos seus juizes que a infidelidade de outrem as perdas dos seus correspondentes ou enfim contratempos que a prudência humana não poderia evitar o despojaram dos seus bens deve ser tratado com menos rigor Por que motivos bárbaros ousarseá mergulhálo nas masmorras priválo do único bem que lhe resta na miséria a liberdade e confundilo com os criminosos e forçálo a arrependerse de ter sido honesto Vivia tranqüilo ao abrigo de sua probidade e contava com a proteção das leis Se as violou é que não estava em seu poder conformarse exatamente a essas leis severas que o poder e a avidez insensível impuseram e que o pobre aceitou seduzido pela esperança que subsiste sempre no coração do homem e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes serão para ele e todas as desgraças para os outros O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a vontade de prejudicar e os homens entregandose às suas primeiras impressões amam as leis cruéis se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas pois eles próprios estão submetidos a elas Mas voltemos ao falido de boa fé não o desobriguem de sua dívida senão depois que ele a tiver pago inteiramente recusemlhe o direito de subtrairse aos credores sem o consentimento destes e a liberdade de levar adiante sua indústria forcemno a empregar seu trabalho e seus talentos no pagamento do que deve proporcionalmente aos seus lucros Mas sob nenhum pretexto legítimo não se poderá fazêlo sofrer uma prisão injusta e inútil aos credores Dirseá talvez que os horrores da prisão obrigarão o falido a revelar as trapaças que ocasionaram uma falência suspeita de fraude É bem raro porém que essa espécie de tortura seja necessária se se fizer um exame rigoroso da conduta e dos negócios do acusado Se a fraude do falido for muito duvidosa será melhor optar por sua inocência Há uma máxima geralmente certa em legislação segundo a qual a impunidade de um culpado tem graves inconvenientes mas a impunidade é pouco perigosa quando o delito é difícil de constatarse Alegarseá também a necessidade de proteger os interesses do comércio assim como o direito de propriedade que deve ser sagrado Mas o comércio e o direito de propriedade não são o fim do pacto social são apenas meios que podem conduzir a esse fim Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruéis para preserválos dos inconvenientes que são as conseqüências naturais do estado social isso será faltar ao fim procurando atingilo e esse é o erro funesto que perde o espírito humano em todas as ciências mas sobretudo na política17 Poderseia distinguir a fraude do delito grave mas menos odioso e fazer uma diferença entre o delito grave e a pequena falta que seria preciso separar também da perfeita inocência No primeiro caso aplicarseiam ao culpado as penas aplicáveis ao crime de falsário O segundo delito seria punido com penas menores com a perda da liberdade Deixarseia ao falido inteiramente inocente a escolha dos meios que desejasse empregar para estabelecer os seus negócios e no caso de um delito leve darseia aos credores o direito de prescrever esses meios Mas a distinção entre faltas graves e leves deve ser obra da lei que é a única imparcial seria perigoso abandonála à prudência arbitrária de um juiz É tão necessário fixar limites na política quanto nas ciências matemáticas porque o bem público se mede como os espaços e a extensão Seria fácil ao legislador previdente impedir a maior parte das falências fraudulentas e remediar a desgraça do homem laborioso que falta aos seus compromissos sem ser culpado Possam todos os cidadãos consultar a cada instante os registros públicos nos quais se terá uma nota exata de todos os contratos e que contribuições sabiamente repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco do qual se tirem somas convenientes para socorrer a indústria infeliz Tais estabelecimentos só poderão ter vantagens numerosas sem inconvenientes real Mas essas leis fáceis a um tempo tão simples e tão sublimes essas leis que esperam apenas o sinal do legislador para espalhar sobre as nações a abundância e a força essas leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de todas as gerações são desconhecidas ou rejeitadas Um espírito de hesitação idéias estreitas a tímida prudência do momento uma rotina obstinada que teme as inovações mais úteis tais são os móveis ordinários dos legisladores que regulam o destino da fraca humanidade XXXIII DOS DELITOS QUE PERTURBAM A TRANQÜILIDADE PÚBLICA A TERCEIRA espécie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam particularmente o repouso e a tranqüilidade pública as querelas e o tumulto de pessoas que se batem na via pública destinada ao comércio e à passagem dos cidadãos e os discursos fanáticos que excitam facilmente as paixões de uma populaça curiosa e que emprestam grande força da multidão dos auditores e sobretudo um certo entusiasmo obscuro e misterioso com poder bem maior sobre o espírito do povo do que a tranqüila razão cuja linguagem a multidão não entende Iluminar as cidades durante a noite à custa do público colocar guardas de segurança nos diversos bairros das cidades reservar ao silêncio e à tranqüilidade sagrada dos templos protegidos pelo governo os discursos de moral religiosa e as arengas destinadas a sustentar os interesses particulares e públicos às assembléias da nação aos parlamentos aos lugares enfim onde reside a majestade soberana tais são as medidas próprias para prevenir a perigosa fermentação das paixões populares e são esses os principais objetos que devem ocupar a vigilância do magistrado de polícia Mas se esse magistrado não age segundo leis conhecidas e familiares a todos os cidadãos se pode ao contrário fazer ao seu capricho leis que julga serem necessárias abre assim a porta à tirania que ronda sem cessar em torno das barreiras que a liberdade pública lhe fixou e que só procura transpôlas Creio não haver exceção à regra geral de que os cidadãos devem saber o que precisam fazer para serem culpados e o que precisam evitar para serem inocentes Um governo que tem necessidade de censores ou de qualquer outra espécie de magistrados arbitrários prova que é mal organizado e que sua constituição não tem força Num país em que o destino dos cidadãos está entregue à incerteza a tirania oculta imola mais vítimas do que o tirano mais cruel que age abertamente Este ultimo revolta mas não avilta O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião quando é senhor dela apressase a comprimir as almas corajosas das quais tem tudo que temer porque só se apresentam com o archote da verdade quer no fogo das paixões quer na ignorância dos perigos XXXIV DA OCIOSIDADE OS governos sábios não sofrem no seio do trabalho e da indústria uma espécie de ociosidade que é contrária ao fim político do estado social quero falar de certas pessoas ociosas e inúteis que não dão à sociedade nem trabalho nem riquezas que acumulam sempre sem jamais perder que o vulgo respeita com uma admiração estúpida e que são aos olhos do sábio um objeto de desprezo Quero falar de certas pessoas que não conhecem necessidade de administrar ou aumentar as comodidades da vida único motivo capaz de excitar a atividade humana e que indiferentes à prosperidade do Estado só se inflamam com paixão por opiniões que lhes agradam mas que podem ser perigosas Austeros declamadores confundiram essa espécie de ociosidade com a que é fruto das riquezas adquiridas pela indústria Cabe exclusivamente às leis e não à virtude rígida mas fechada em idéias estreitas de alguns censores definir a espécie de ociosidade punível Não se pode encarar como ociosidade funesta em política aquela que gozando do fruto dos vícios ou das virtudes de alguns antepassados dá contudo pão e existência à pobreza industriosa da troca dos prazeres atuais que recebe desta e que põe o pobre na contingência de travar a guerra pacífica que a indústria sustenta contra a opulência e que sucedeu aos combates sangrentos e incertos da força contra a força Essa espécie de ociosidade pode mesmo tornarse vantajosa à medida que a sociedade aumenta e que o governo deixa aos cidadãos mais liberdade XXXV DO SUICÍDIO O SUICÍDIO é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma pena propriamente dita pois essa pena só poderia recair sobre um corpo insensível e sem vida ou sobre inocentes Ora o castigo que se aplicasse contra os restos inanimados do culpado não poderia produzir outra impressão sobre os espectadores senão a que estes experimentariam ao verem fustigar uma estátua Se a pena é aplicada à família inocente ela é odiosa e tirânica porque já não há liberdade quando as penas não são puramente pessoais Os homens amam demasiado a vida estão ligados a ela por todos os objetos que os cercam a imagem sedutora do prazer e a doce esperança amável feiticeira que mistura algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males que ingerimos a grandes tragos encantam muito fortemente os corações dos mortais para que se possa temer que a impunidade contribua para tornar o suicídio mais comum Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso aquele que se mata nada tem que temer pois a morte destrói toda sensibilidade Não é pois esse motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida Mas aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que aquele que renuncia para sempre à sua pátria O primeiro deixa tudo ao seu país ao passo que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus bens Direi mais Como a força de uma nação consiste no número dos cidadãos aquele que abandona o seu país para entregarse a outro causa à sociedade o dobro do prejuízo que lhe pode causar o suicida A questão reduzse pois a saber se é útil ou perigoso à sociedade deixar a cada um dos membros que a compõem uma liberdade perpétua de afastarse dela Toda lei que não é forte por si mesma toda lei cuja execução pode ser impedida em certas circunstâncias jamais deveria ser promulgada A opinião que governa os espíritos obedece às impressões lentas e indiretas que o legislador sabe darlhe resiste porém aos seus esforços quando são violentos e diretos e as leis inúteis que logo são desprezadas comunicam seu aviltamento às leis mais salutares que costumam ser vistas antes como obstáculos a vencer do que como a salvaguarda da tranqüilidade pública Ora como a energia dos nossos sentimentos é limitada se se quiser obrigar os homens a respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade eles terão menos veneração pelas leis verdadeiramente úteis Não me deterei no desenvolvimento das conseqüências vantajosas que um sábio dispensador da felicidade pública poderá tirar desse princípio procurarei apenas provar que não é necessário fazer do Estado uma prisão Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de abandonar seu país seria uma lei inútil porque a menos que rochedos inacessíveis ou mares impraticáveis separem esse país de todos os outros como guardar todos os pontos de sua circunferência Como guardar os próprios guardas O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre que as leis possam fazer cair a pena com que o ameaçam Seu delito já não pode ser punido desde que foi cometido e infligirlhe um castigo antes que ele seja consumado é punir a intenção e não o fato é exercer um poder tirano sobre o pensamento sempre livre e sempre independente das leis humanas Tentarseá punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele deixa Mas a conclusão que não se pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidadãos entre si tornaria esse meio ilusório Além disso semelhante lei destruiria todo comércio entre as nações e se se punisse o emigrado no caso dele regressar aos país isso significaria impedilo de reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da pátria Enfim a proibição de sair de um país só faz aumentar em quem o habita o desejo de abandonálo ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem Que se deve pois pensar de um governo que não tem outro meio senão o temor para reter os homens em sua pátria à qual eles estão naturalmente ligados pelas primeiras impressões da infância A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é aumentar o bemestar respectivo de cada cidadão Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio assim também o maior interesse do soberano e da nação é que a soma de felicidade seja aí maior do que entre os povos vizinhos Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa felicidade embora impedindo as riquezas de se reunirem numa só mão eles se tornam um remédio necessário à desigualdade que toma mais força à medida que a sociedade faz mais progressos18 Mas os prazeres do luxo são a base da felicidade pública num país em que a segurança dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis porque então esses prazeres favorecem a população ao passo que se tornam um instrumento de tirania para um povo cujos direitos não são garantidos Assim como os animais mais generosos e os livres habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as florestas longínquas onde sua liberdade não corre risco aos campos alegres e férteis que o homem seu inimigo semeou de armadilhas assim também os homens evitam o próprio prazer quando este lhes é oferecido pela mão dos tiranos19 Está pois demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao seu país é inútil e injusta e o mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio Tratase de um crime que Deus pune após a morte do culpado e somente Deus pode punir depois da morte Não é porém um crime perante os homens porque o castigo recai sobre a família inocente e não sobre o culpado Se me objetarem que o medo desse castigo pode contudo deter a mão do infeliz determinado a morrer responderei que quem renuncia tranqüilamente à doçura de viver e odeia bastante a existência terrena para preferirlhe uma eternidade talvez infeliz não se comoverá decerto com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá sobre sua família XXXVI DE CERTOS DELITOS DIFÍCEIS DE CONSTATAR COMETEMSE na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes mas que é difícil provar Tais são o adultério a pederastia o infanticídio O adultério é um crime que considerado sob o ponto de vista político só é tão freqüente porque as leis não são fixas e porque os dois sexos são naturalmente atraídos um pelo outro20 Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religião diria que há uma grande diferença entre esse delito e todos os outros O adultério é produzido pelo abuso de uma necessidade constante comum a todos os mortais anterior à sociedade ao passo que os outros delitos que tendem mais ou menos à destruição do pacto social são antes o efeito das paixões do momento do que das necessidades da natureza Os que leram a história e estudaram os homens podem reconhecer que o número dos delitos produzidos pela tendência de um sexo para outro é no mesmo clima sempre igual a uma quantidade constante Se assim é toda lei todo costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos dessa paixão seria inútil e até funesta porque o efeito dessa lei seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias necessidades e com as dos outros O partido mais sábio seria pois seguir até certo ponto o declive do rio das paixões e dividirlhe o curso num número de regatos suficientes para impedir em toda parte dois excessos contrários a seca e as enchentes A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os casamentos são mais numerosos e mais livres Se os preconceitos hereditários os conciliam se o poder paterno os forma e os impede ao seu capricho a galanteria quebralhes secretamente os laços mau grado as declamações dos moralistas vulgares sempre ocupados em gritar contra os efeitos omitindo as causas Mas essas reflexões são inúteis para aqueles que os motivos sublimes da religião mantêm nos limites do dever que o pendor da natureza os leva a transpor O adultério é um delito de um instante envolvese de mistério cobrese de um véu que as próprias leis se empenham em conservar véu necessário mas de tal modo transparente que só faz aumentar os encantos do objeto que oculta As ocasiões são tão fáceis as conseqüências tão duvidosas que é bem mais fácil ao legislador prevenilo quando não foi cometido do que reprimilo quando já se estabeleceu Regra geral em todo delito que por sua natureza deve quase sempre ficar impune a pena é um aguilhão a mais Nossa imaginação é mais vivamente excitada e se empenha com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos quando as dificuldades que se apresentam não são insuperáveis e quando não têm um aspecto bastante desencorajador relativamente ao grau de atividade que se tem no espírito Os obstáculos se tornam por assim dizer tantas barreiras que impedem nossa imaginação caprichosa de afastarse delas e que continuamente a forçam a pensar nas conseqüências da ação que medita Então a alma se apega bem mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do que às conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por afastar A pederastia que as leis punem com tanta severidade e contra a qual se empregam tão facilmente essas torturas atrozes que triunfam da própria inocência é menos o efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o desvio das paixões do homem escravo que vive em sociedade Se às vezes ela é produzida pela sociedade dos prazeres é bem freqüentemente o efeito dessa educação que para tornar os homens úteis aos outros começa por tornálos inúteis a si mesmos nessas casas em que uma juventude numerosa viva ardente mas separada por obstáculos intransponíveis do sexo do qual a natureza lhe pinta fortemente todos os encantos prepara para si uma velhice antecipada consumindo de antemão inutilmente para a humanidade um vigor apenas desenvolvido O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel alternativa em que se acha uma infeliz que só cedeu por fraqueza ou que sucumbiu sob os esforços da violência De um lado a infâmia de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida como não havia de preferir esse último partido que a rouba à vergonha à miséria juntamente com o desgraçado filhinho O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria proteger com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa espécie de tirania que só se levanta contra os vícios que não se podem cobrir com o manto da virtude Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os crimes de que acabamos de falar Eu quis indicar suas fontes e penso que me será permitido tirar daí a conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente justa ou necessária o que é a mesma coisa a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação XXXVII DE UMA ESPÉCIE PARTICULAR DE DELITO OS QUE lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras em que homens vivos serviam de alimento às chamas em a que multidão feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes em que cidadãos corriam como a um espetáculo agradável a contemplar a morte dos seus irmãos no meio dos turbilhões de negra fumaça em que os lugares públicos ficavam cobertos de destroços palpitantes e de cinzas humanas Os homens esclarecidos verão que o país onde habito o século em que vivo e a matéria de que trato não me permitiram examinar a natureza desse delito Seria aliás empresa demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto querer provar contra o exemplo de várias nações a necessidade de uma inteira conformidade de opinião num Estado político procurar demonstrar como certas crenças religiosas entre as quais só podem acharse diferenças sutis obscuras e muito acima da capacidade humana podem contudo perturbar a tranqüilidade pública a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras proscritas Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenças tornandose mais claras pela fermentações dos espíritos podem fazer nascer do choque das opiniões a verdade que então sobrenada depois de ter aniquilado o erro ao passo que outras seitas pouco firmes em suas bases têm necessidade para manterse de se apoiarem na força Seria demasiado longo igualmente mostrar que para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas é preciso tiranizar os espíritos e constrangêlos a vergar sob o jugo da força embora essa violência se oponha à razão e à autoridade que mais respeitamos21 que nos recomenda a doçura e o amor dos nossos irmãos embora seja evidente que a força só faz hipócritas e portanto almas vis Devese crer que todas essas coisas estarão demonstradas e conformes aos interesses da humanidade se houver em alguma parte uma autoridade legítima e reconhecida que as ponha em prática Quanto a mim só falo aqui dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social devo silenciar porém sobre os pecados cuja punição mesmo temporal deve ser determinada segundo outras regras que não as da filosofia XXXVIII DE ALGUMAS FONTES GERAIS DE ERROS E DE INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO E em primeiro lugar das falsas idéias de utilidade AS FALSAS idéias que os legisladores fizeram da utilidade são uma das fontes mais fecundas de erros e injustiças É ter falsas idéias de utilidade ocuparse mais com inconvenientes particulares do que com inconvenientes gerais querer comprimir os sentimentos naturais em lugar de procurar excitálos impor silêncio à razão e dizer ao pensamento Sê escravo É ter ainda falsas idéias de utilidade sacrificar mil vantagens reais ao temor de uma desvantagem imaginária ou pouco importante Não teria certamente idéias justas quem desejasse tirar aos homens o fogo e a água porque esses dois elementos causam incêndios e inundações e quem só soubesse impedir o mal pela destruição Podem considerarse igualmente como contrárias ao fim de utilidade as leis que proíbem o porte de armas pois só desarmam o cidadão pacífico ao passo que deixam o ferro nas mãos do celerado bastante acostumado a violar as convenções mais sagradas para respeitar as que são apenas arbitrárias Além disso essas convenções são pouco importantes há pouco perigo em infringilas e por outro lado se as leis que desarmam fossem executadas com rigor destruiriam a liberdade pessoal tão preciosa ao homem tão respeitável aos olhos do legislador esclarecido submeteriam a inocência a todas as investigações a todos os vexames arbitrários que só devem ser reservados aos criminosos Tais leis só servem para multiplicar os assassínios entregam o cidadão sem defesa aos golpes do celerado que fere com mais audácia um homem desarmado favorecem o bandido que ataca em detrimento do homem honesto que é atacado Essas leis são simplesmente o ruído das impressões tumultuosas que produzem certos fatos particulares não podem ser o resultado de combinações sábias que pesam numa mesma balança os males e os bens não é para prevenir os delitos mas pelo vil sentimento do medo que se fazem tais leis É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma multidão de seres sensíveis à regularidade simétrica que pode receber uma matéria bruta e inanimada que se negligenciam os motivos presentes únicos capazes de impressionar o espírito humano de maneira forte e durável para empregar motivos remotos cuja impressão é fraca e passageira a menos que uma grande força de imaginação que só se se encontra num pequeno número de homens supra o afastamento do objeto mantendoo sob relações que o aumentam e o aproximam Enfim também podem chamarse falsas idéias de utilidade as que separam o bem geral dos interesses particulares sacrificando as coisas às palavras Há entre o estado de sociedade e o estado de natureza a diferença de que o homem selvagem só faz mal a outrem quando nisso descobre alguma vantagem para si ao passo que o homem social é às vezes levado por leis viciosas a prejudicar sem nenhum proveito O déspota espalha o medo e o abatimento na alma dos seus escravos mas esse medo e esse abatimento voltamse contra ele próprio logo lhe enchem o coração e o tornam presa de males maiores do que os que ele causa Aquele que se compraz em inspirar o terror corre poucos riscos se teme apenas a própria família e as pessoas que o cercam Mas quando o terror é geral quando fere uma grande multidão de homens o tirano deve tremer Receie a temeridade o desespero receie sobretudo o homem audacioso mas prudente que souber com habilidade sublevar contra ele os descontentes tanto mais fáceis de serem seduzidos quando se despertarem em suas almas as mais caras esperanças e quando se tiver o cuidado de mostrarlhes os perigos da empresa repartidos entre um grande número de cúmplices Juntai a isso que os infelizes dão menos valor à sua existência na proporção dos males que os afligem Eis sem dúvida porque as ofensas são quase sempre seguidas de ofensas novas A tirania e o ódio são sentimentos duráveis que se sustentam e tomam novas forças à medida que se exercem ao passo que em nossos corações corruptos o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem e se extinguem na ociosidade XXXIX DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA O ESPIRÍTO da família é outra fonte geral de injustiças na legislação Se as disposições cruéis e os outros vícios das leis penais foram aprovados pelos legisladores mais esclarecidos nas repúblicas mais livres é que se considerou o Estado antes como uma sociedade de famílias do que como a associação de um certo número de homens Suponhase uma nação composta de cem mil homens distribuídos em vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma inclusive o chefe que a representa se a associação é feita por famílias haveria vinte mil cidadãos e oitenta mil escravos se é feita por indivíduos haveria cem mil cidadãos livres No primeiro caso seria uma república composta de vinte mil pequenas monarquias no segundo tudo respirará o espírito de liberdade que animará os cidadãos não somente nas praças públicas e nas assembléias nacionais mas ainda sob o teto doméstico onde residem os principais elementos de felicidade e de miséria Se a associação é feita por famílias as leis e os costumes que são sempre o resultado dos sentimentos habituais dos membros da sociedade política serão obra dos chefes dessas famílias verseá em breve o espírito monárquico introduzirse aos poucos na própria república e os seus efeitos só encontrarão obstáculos na oposição dos interesses particulares porque os sentimentos naturais de liberdade e de igualdade já terão deixado de viver nos corações O espírito de família é um espirito de minúcia limitado pelos mais insignificantes pormenores ao passo que o espírito público ligado aos princípios gerais vê os fatos com visão segura coordenaos nos lugares respectivos e sabe tirar deles conseqüências úteis ao bem da maioria Nas sociedades compostas de famílias as crianças ficam sob a autoridade do chefe e são obrigadas a esperar que a morte lhes dê uma existência que só depende das leis Habituadas a obedecer e a tremer na idade da força quando as paixões não são ainda refreadas pela moderação espécie de temor prudente que é o fruto da experiência e da idade como resistirão elas aos obstáculos que o vício opõe constantemente aos esforços da virtude quando a velhice decrépita e medrosa tirarlhes a coragem de tentar reformas ousadas que aliás as seduzem pouco porque não têm a esperança de recolherlhes os frutos Nas repúblicas em que todo homem é cidadão a subordinação nas famílias não é efeito da força mas de um contrato e os filhos uma vez saídos da idade em que a fraqueza e a necessidade de educação os mantêm sob a dependência natural dos pais tornamse desde então membros livres da sociedade se ainda se submetem ao chefe da família é apenas para participar das vantagens que esta lhes oferece do mesmo modo que os cidadãos se sujeitam sem perder a liberdade ao chefe da grande sociedade política Nas repúblicas compostas de famílias os jovens isto é a parte mais considerável e mais útil da nação ficam à discrição dos pais Nas repúblicas de homens livres os únicos laços que submetem os filhos ao pai são os sentimentos sagrados e invioláveis da natureza que convidam os homens a ajudarse mutuamente em suas necessidades recíprocas e que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefícios recebidos Esses santos deveres são muito mais alterados pelo vício das leis que prescrevem uma submissão cega e obrigatória do que pela maldade do coração humano Essa oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos e as leis de família é fonte de muitas outras contradições entre a moral pública e a moral particular que se combatem continuamente no espírito de cada homem A moral particular só inspira a submissão e o medo ao passo que a moral pública anima a coragem e o espírito da liberdade Guiado pela primeira o homem limita seu bemestar ao círculo estreito de um pequeno número de pessoas que ele nem mesmo escolheu Inspirado pela outra procura estender a felicidade sobre todas as classes da humanidade A moral particular exige que cada qual se sacrifique continuamente a um falso ídolo que se chama o bem da família e que muitas vezes não é o bem real de nenhum dos indivíduos que a compõem A moral pública ensina a procurar o bemestar sem ferir as leis e se às vezes excita um cidadão a imolarse pela pátria recompensao pelo entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifício e pela glória que lhe promete Tantas contradições fazem que os homens desdenhem de praticar a virtude que não podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram e que lhes parece distante porque está envolta nessa obscuridade que oculta aos nossos olhos os objetos morais como os objetos físicos Quantas vezes o cidadão que reflete sobre suas ações passadas não se terá admirado de acharse um mau homem A medida que a sociedade cresce cada um dos seus membros tornase uma parte menor do todo e o amor do bem público se enfraquece na mesma proporção se as leis deixam de fortificálo As sociedades políticas têm como o corpo humano um crescimento limitado não poderiam estenderse além de certos limites sem que sua economia fosse perturbada Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do grau de atividade dos indivíduos que a compõem Se essa atividade crescesse ao mesmo tempo que a população as boas leis achariam um obstáculo para prevenir os delitos no próprio bem que tivessem podido fazer Uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo subdividindose num certo número de pequenos Estados confederados Mas para formar essa união seria preciso um ditador poderoso que tivesse a coragem de Sila22 com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve para destruir Se tal homem for ambicioso poderá esperar uma glória imortal Se for filósofo as bênçãos dos seus concidadãos o consolarão da perda de sua autoridade mesmo sem pedirlhes reconhecimento Quando os sentimentos que nos unem à nação principiam a enfraquecerse os que nos ligam aos objetos que nos cercam adquirem novas forças Assim sob o despotismo feroz os laços da amizade são mais duráveis e as virtudes de família virtudes sempre fracas se tornam então as mais comuns ou antes são as únicas que ainda se praticam Após todas essas observações pode julgarse quanto foram curtas e limitadas as opiniões da maioria dos nossos legisladores XL DO ESPÍRITO DO FISCO HOUVE um tempo em que todas as penas eram pecuniárias Os crimes dos súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio Os atentados contra a segurança pública eram objeto de lucro sobre o qual se sabia especular O soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam prevenir Os julgamentos não eram então nada menos do que um processo entre o fisco que percebia o preço do crime e o culpado que devia pagálo Faziase disso um negócio civil contencioso como se se tratasse de uma querela particular e não do bem público Parecia que o fisco tinha outros direitos que exercer além da proteção da tranqüilidade pública e o culpado outras penas que sofrer além das que a necessidade do exemplo o exigia O juiz estabelecido para apurar a verdade com ânimo imparcial não era mais do que o advogado do fisco e aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o exator dos dinheiros do príncipe Nesse sistema quem se confessasse culpado se reconhecia pela própria confissão devedor do fisco e como era esse o fim de todos os processos criminais toda a arte do juiz consistia em obter essa confissão da maneira mais favorável aos interesses do fisco É ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a jurisprudência criminal pois os efeitos permanecem por muito tempo depois de cessadas as causas O acusado que recusa confessarse culpado embora convencido por provas certas sofrerá uma pena mais leve do que se tivesse confessado não lhe será aplicada a tortura pelos outros crimes que poderia ter cometido precisamente porque não confessou o crime principal de que está convencido Mas se o crime é confessado o juiz apoderase do corpo do culpado dilacerao metodicamente e faz dele por assim dizer um fundo do qual tira todo o proveito possível Uma vez reconhecida a existência do delito a confissão do acusado se torna prova convincente Acreditase tornar essa prova menos suspeita arrancando a confissão do crime pelos tormentos e pelo desespero e se estabeleceu que a confissão não basta para condenar o culpado se esse culpado é calmo se fala desembaraçadamente se não está cercado das formalidades judiciárias e do aparato aterrador dos suplícios Excluemse cuidadosamente da instrução de um processo as investigações e as provas que esclarecendo o fato de maneira a favorecer o acusado poderiam prejudicar as pretensões do fisco e se às vezes se poupam alguns tormentos ao culpado não é nem por piedade para com a desgraça nem por indulgência para com a fraqueza mas porque as confissões obtidas são suficientes para os direitos do fisco esse ídolo que já não passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias nos torna inconcebível O juiz quando exerce suas funções não é mais do que o inimigo do culpado isto é de um infeliz curvado ao peso das cadeias minado pelo sofrimento que os tormentos esperam e que o futuro mais terrível cerca de horror e de assombro Não é a verdade o que ele procura quer descobrir no acusado um culpado preparalhe armadilhas parece que tem tudo que perder e que teme se não puder convencer o acusado diminuir a infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas O juiz tem o poder de determinar por que indícios se pode encarcerar um cidadão E declarar que esse cidadão é culpado antes de poder provar que é inocente Não se parecerá tal informação com um procedimento ofensivo E eis todavia a marcha da jurisprudência criminal em quase toda a Europa no século XVIII em plena luz Mal se conhece nos tribunais o verdadeiro processo das informações isto é a investigação imparcial do fato prescrita pela razão seguida nas leis militares empregada mesmo por esses déspotas da Ásia nos assuntos que só interessam os particulares Nossos descendentes sem dúvida mais felizes do que nós terão dificuldade em conceber essa complicação torturosa dos mais estranhos absurdos e esse sistema de iniqüidades incríveis que só o filósofo poderá julgar possível estudando a natureza do coração humano XLI DOS MEIOS DE PREVENIR CRIMES É MELHOR prevenir os crimes do que ter de punilos e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que reparálo pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bemestar possível e preserválos de todos os sofrimentos que se lhes possam causar segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida Mas os meios que até hoje se empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim que se propõem Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem geométrica que não apresente nem irregularidade nem confusão Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes não impedem que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais Como poderiam pois as leis humanas em meio ao choque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do prazer impedir que não haja alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade É essa porém a quimera dos homens limitados quando têm algum poder Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes não tendo tais atos nada de nocivo não se previnem os crimes ao contrário fazse que surjam novos porque se mudam arbitrariamente as idéias ordinárias de vício e virtude que todavia se proclamam eternas e imutáveis Além disso a que ficaria o homem reduzido se fosse preciso interdizerlhe tudo o que pode ser para ele uma ocasião de praticar o mal Seria preciso começar por tirarlhe o uso dos sentidos Para um motivo que leva os homens a cometer um crime há mil outros que os levam a ações indiferentes que só são delitos perante as más leis Ora quanto mais se estender a esfera dos crimes tanto mais se fará que sejam cometidos porque se verão os delitos multiplicarse à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de privilégios isto é de um pequeno número de senhores Quereis prevenir os crimes Fazeis leis simples e claras fazeias amar e esteja a nação inteira pronta a armarse para defendêlas sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruílas Não favoreçam elas nenhuma classe particular protejam igualmente cada membro da sociedade receieas o cidadão e trema somente diante delas O temor que as leis inspiram é salutar o temor que os homens inspiram é uma fonte funesta de crimes Os homens escravos são sempre mais debochados mais covardes mais cruéis do que os homens livres Estes investigam as ciências ocupamse com os interesses da nação vêem os objetos sob um ponto de vista elevado e fazem grandes coisas Mas os escravos satisfeitos com os prazeres do momento procuram no ruído do deboche uma distração para o aniquilamento em que se vêem mergulhados Toda sua vida está cercada de incertezas e como para eles os delitos não estão determinados não sabem quais serão suas conseqüências e isso empresta nova força à paixão que os leva a praticálos Num povo que o clima torna indolente a incerteza das leis entretém e aumenta a inação e a estupidez Numa nação voluptuosa mas ativa as leis incertas fazem que a atividade dos cidadãos se limite a pequenas cabalas e intrigas surdas que semeiam a desconfiança Então o homem mais prudente é aquele que sabe melhor dissimular e trair Num povo forte e corajoso a incerteza das leis é forçada por fim e substituirse por uma legislação precisa isso porém só acontece depois de revoluções freqüentes que conduziram esse povo alternativamente da liberdade à escravidão e da escravidão à liberdade Quereis prevenir os crimes Marche a liberdade acompanhada das luzes Se as ciências produzem alguns males é quando estão pouco difundidas mas à medida que se estendem as vantagens que trazem se tornam maiores Um impostor ousado que não pode ser um homem vulgar fazse adorar por um povo ignorante e só é objeto de desprezo para uma nação esclarecida O homem instruído sabe comparar os objetos considerálos sob diversos pontosde vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos outros porque vê nos seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem sobre o seu coração Se prodigalizardes luzes ao povo a ignorância e a calúnia desaparecerão diante delas a autoridade injusta tremerá só as leis permanecerão inabaláveis todopoderosas e o homem esclarecido amará uma constituição cujas vantagens são evidentes uma vez conhecidos seus dispositivos e que dá bases sólidas à segurança pública Poderá ele lamentar essa inútil partícula de liberdade de que se privou se a comparar com a soma de todas as outras liberdades que os seus concidadãos lhe sacrificaram e se pensar que sem as leis estes últimos poderiam armarse e unirse contra ele Dotado de uma alma sensível verificase que sob boas leis o homem só perdeu a funesta liberdade de praticar o mal forçado a bendizer o trono e o soberano que só o ocupa para proteger Não é verdade que as ciências sejam nocivas à humanidade Se às vezes deram maus resultados é que o mal era inevitável Multiplicandose os homens sobre a superfície da terra viramse nascer a guerra algumas artes grosseiras e as primeiras leis que não eram senão convenções momentâneas e que pereciam com a necessidade passageira que as produziria Foi então que a filosofia começou a aparecer seus primeiros princípios foram pouco numerosos e sabiamente escolhidos porque a preguiça e a pouca sagacidade dos primeiros homens os preservam de muitos erros Mas multiplicadas as necessidades juntamente com a espécie humana foram necessárias impressões mais fortes e mais duráveis para impedir as voltas freqüentes e cada dia mais funestas ao estado selvagem Foram pois um grande bem para a humanidade digo um grande bem sob o aspecto político os primeiros erros religiosos que povoaram o universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisível de espíritos encarregados de governar a terra Foram benfeitores do gênero humano esses homens audaciosos que ousaram enganar seus semelhantes para servilos e que arrastaram a ignorância temerosa ao pé dos altares Apresentando aos homens objetos fora do alcance dos sentidos interessaram nos na investigação desses objetos que fugiam diante deles à medida que os julgavam mais próximos forçaramnos a respeitar o que não conheciam bem e souberam concentrar para esse único fim que os impressionava fortemente todas as paixões que os agitavam Tal foi a sorte de todas as nações que se formaram da reunião de diferentes povoações selvagens Foi a época da formação das grandes sociedades e as idéias religiosas foram sem dúvida o único laço que pode obrigar os homens a viverem constantemente sob leis Não falo desse povo que Deus escolheu Os milagres mais extraordinários e os favores mais assinalados que o céu lhe prodigalizou substituíram a política humana Mas como os erros podem subdividirse ao infinito as falsas ciências que tais erros produziram fizeram dos homens uma multidão fanática de cegos perdidos no labirinto em que se encerraram e prestes a chocarse a cada passo Então alguns filósofos sensíveis lamentaram o antigo estado selvagem e foi nessa primeira época que os conhecimentos ou antes as opiniões tornaramse funestos à humanidade Pode considerarse como uma época mais ou menos semelhante o momento terrível em que é preciso passar do erro à verdade das trevas à luz O choque terrível dos preconceitos úteis a um pequeno número de homens poderosos contra as verdades vantajosas para a multidão fraca e a fermentação de todas as paixões sublevadas causam males infinitos aos infelizes humanos Percorrendo a história cujos principais acontecimentos após certos intervalos se reproduzem quase sempre detenhamonos na passagem perigosa mas indispensável da ignorância à filosofia e portanto da escravidão à liberdade e veremos quantas vezes uma geração inteira é sacrificada à felicidade da que deve sucederlhe Quando porém a calma está restabelecida quando já está extinto o incêndio cujas flamas purificaram a nação livrandoa dos males que a oprimiam a verdade que primeiro se arrastava com lentidão precipita os passos sentase nos tronos ao lado dos monarcas e por fim nas assembléias das nações sobretudo nas repúblicas obtém culto e altares Poderseá acreditar então que as luzes que esclarecem a multidão são mais perigosas do que as trevas E que filósofo se persuadirá de que o conhecimento exato das relações que unem os objetos entre si possa ser funesto à humanidade Se o semisaber é mais perigoso do que a ignorância cega porque aos males que produz a ignorância acrescenta ainda os erros inumeráveis que resultam inevitavelmente de uma visão limitada aquém dos limites da verdade sem dúvida o dom mais precioso que um soberano pode conceder à nação e a si mesmo é confiar o depósito sagrado das leis a um homem esclarecido Acostumado a ver a verdade sem temêla acima dessa necessidade geral dos sufrágios públicos necessidade que nunca está satisfeita e que tão freqüentemente faz sucumbir a virtude habituado a tudo considerar sob os pontos de vista mais elevados ele vê a nação como uma família os seus concidadãos como irmãos e a distância que separa os grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe envolver com o olhar maior massa de homens O sábio tem necessidades e interesses que o vulgo desconhece é para ele uma necessidade não desmentir em sua conduta pública os princípios que estabeleceu nos seus escritos e o hábito que adquiriu de amar a verdade por si mesma Tais homens fariam a felicidade de uma nação mas para tornar essa felicidade durável é preciso que boas leis aumentem de tal forma o número dos sábios que quase já não seja possível fazer uma escolha errônea Outro meio de prevenir os delitos é afastar do santuário das leis a própria sombra da corrupção interessando os magistrados em conservar em toda a sua pureza o depósito que a nação lhes confia Quanto mais numerosos forem os tribunais tanto menos se poderá temer que violem as leis porque entre vários homens que se observam mutuamente a vantagem de aumentar a autoridade comum é tanto menor quanto menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco considerável para contrabalançar os perigos da empresa Se o soberano dá muito aparato pompa e autoridade à magistratura se ao mesmo tempo fecha todo acesso aos lamentos justos ou mal fundados do fraco que se julga oprimido se acostuma os súditos a temer os magistrados mais do que as leis aumentará sem dúvida o poder dos juizes mas somente à custa da segurança pública e particular Podem ainda prevenirse os crimes recompensando a virtude e podese observar que as leis atuais de todas as nações guardam a esse respeito um profundo silêncio Se os prêmios propostos pelas academias aos autores das descobertas úteis alargaram os conhecimentos e aumentaram o número dos bons livros imaginese que recompensas concedidas por um monarca benfeitor não multiplicariam também as ações virtuosas A moeda da honra distribuída com sabedoria jamais se esgota e produz sempre bons frutos Afim o meio mais seguro mas ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal é aperfeiçoar a educação O assunto é vasto demais para entrar nos limites que me prescrevi Ouso porém dizer que está tão estreitamente ligado com a natureza do governo que será apenas um campo estéril e cultivado somente por um pequeno número de sábios até chegarem os séculos ainda distantes em que as leis não terão outro fim senão a felicidade pública Um grande homem que esclarece os seus semelhantes e que é por estes perseguido desenvolveu as máximas principais de uma educação verdadeiramente útil23 Fez ver que ela consistia bem menos na multidão confusa dos objetos que se apresentam às crianças do que na escolha e na precisão com as quais se lhes expõem Provou que é preciso substituir as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno Ensinou a conduzir as crianças à virtude pela estrada fácil do sentimento a afastálas do mal pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que seguem a má ação Demostrou que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado pois só produz uma obediência hipócrita e passageira XLII CONCLUSÃO DE tudo o que acaba de ser exposto pode deduzirse um teorema geral utilíssimo mas conforme ao uso que é o legislador ordinário das nações É que para não ser um ato de violência contra o cidadão a pena deve ser essencialmente pública pronta necessária a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas proporcionada ao delito e determinada pela lei APÊNDICE RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS ESSAS Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e Das Penas que é chamado fanático impostor escritor falso e perigoso satírico desenfreado sedutor do público É acusado de distilar o fel mais amargo de juntar a contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da dissimulação e de ser obscuro por perversidade O crítico pode estar certo de que não responderei às personalidades Representa ele o meu livro como uma obra horrível virulenta e de uma licença venenosa infame ímpia Encontra nele blasfêmias impudentes insolentes ironias pilhérias indecentes sutilezas perigosas motejos escandalosos calúnias grosseiras A religião e o respeito devido aos soberanos são o pretexto para duas das mais graves acusações que se acham nessas Notas e Observações Serão estas as únicas às quais me julgarei obrigado a responder Comecemos pela primeira I Acusação de impiedade 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas não conhece essa justiça que tem origem no legislador eterno que tudo vê e prevê Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas O autor do livro Dos Delitos não aprova que a interpretação da lei dependa da vontade e do capricho de um juiz Ora aquele que não quer confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça emanada de Deus O autor não admite pois uma justiça puramente divina 2 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas a Escritura santa só contém imposturas Em toda a obra Dos Delitos e das Penas só se trata da Escritura santa uma única vez é quando a propósito dos erros religiosos no capítulo XLI eu disse que não falava desse povo eleito de Deus para o qual os milagres mais extraordinários e as graças mais assinaladas substituíram a política humana 3 Toda a gente sensata encontrou no autor do livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo um mau homem e um mau filósofo Pouco me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo os que me conhecem asseguram que não sou mau homem Serei então inimigo do cristianismo quando insisto para que a tranqüilidade dos templos seja assegurada sob a proteção do governo e quando digo ao falar da sorte das grandes verdades que a revelação é a única que se conservou em sua pureza em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se se tratasse de uma simples máxima política O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama à religião um dom sagrado do céu Será provável que ele trate como simples máxima política o que lhe parece um dom sagrado do céu 5 O autor é inimigo declarado do Ser supremo Peço de todo meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem 6 Se o cristianismo causou algumas desgraças e alguns morticínios ele exageraos e silencia sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o gênero humano Não se encontrará um único lugar no meu livro que faça menção aos males causados pelo Evangelho não citei mesmo um só fato que com isso se relacione 7 O autor profere uma blasfêmia contra os ministros da religião ao dizer que suas mãos sujaramse de sangue humano Todos os que escreveram a história desde Carlos Magno24 até OtãooGrande25 e mesmo depois desse príncipe proferiram muitas vezes a mesma blasfêmia Ignorarseá que durante três séculos o clero os abades e os bispos não tiveram escrúpulo algum em marchar para a guerra E não será o caso de dizer sem blasfemar que os eclesiásticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da carnificina sujavam as mãos de sangue humano 8 Os prelados da Igreja católica tão recomendáveis por sua doçura e sua humanidade passam no livro Dos Delitos e das Penas por ser os autores de suplícios tão bárbaros quanto inúteis Não tenho culpa de ser obrigado a repetir mais de uma vez a mesma coisa Não se citará na minha obra uma só frase que diga que os prelados inventaram suplícios 9 A heresia não pode chamarse crime de lesamajestade divina segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas Não há em todo o meu livro uma palavra que possa dar lugar a tal imputação Propus me apenas tratar Dos Delitos e das Penas e não dos pecados Eu disse falando do crime de lesamajestade que somente a ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéias mais claras podem chamar por esse nome e punir como tais com o último suplício delitos de natureza diferente O crítico talvez ignore quanto se abusa da palavra lesamajestade nos tempos de tirania e de ignorância aplicandoa a delitos de gênero inteiramente diverso pois não conduziam imediatamente à destruição da sociedade Consulte a lei dos imperadores Graciano26 Valentiniano27 e Teodósio28 observe como são considerados criminosos de lesa majestade aqueles que ousam duvidar da bondade da escolha do imperador quando este conferia algum emprego Uma outra lei de Valentiniano de Teodósio e de Arcácio29 ensinarlheá que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesamajestade Era preciso um decreto do Senado para livrar da acusação de lesamajestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores embora velhas e mutiladas Somente depois de um edito dos imperadores Severo30 e Antonino é que se deixou de intentar a ação de lesamajestade contra os que vendiam as estátuas dos imperadores e esses príncipes baixaram um decreto que proibia a perseguição por esse crime daqueles que acaso tivessem lançado uma pedra contra a estátua de um imperador Domiciano31 condenou à morte uma dama romana por se ter despido diante de sua estátua Tibério 32 mandou matar como criminoso de lesamajestade um cidadão que vendera uma casa em que se achava a estátua do imperador Em séculos menos distantes do nosso verá Henrique VIII33 abusar de tal modo das leis que fez perecer por um suplício infame o duque de Norfolk sob o pretexto de crime de lesamajestade porque ele juntara as armas da Inglaterra às de sua família Esse monarca chegou a declarar culpado do mesmo crime quem quer que ousasse prever a morte do príncipe daí resultou que na sua última moléstia os seus médicos recusaram advertilo do perigo em que se achava 10 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas os hereges anatematizados pela Igreja e proscritos pelos príncipes são vítimas de uma palavra Todas essas interpretações são forçadas Limiteime a falar do crime de lesamajestade humana e a palavra lesamajestade serviu muitas vezes de pretexto à tirania sobretudo ao tempo dos imperadores romanos Toda ação que tivesse a desgraça de desagradar lhes tornavase logo um crime de lesamajestade Suetônio34 diz que o crime de lesa majestade era o delito dos que não tinham cometido delito algum Se eu disse que a ignorância e a tirania deram esse nome a delitos de natureza diferente e tornaram os homens vítimas de uma palavra não fiz senão falar segundo a história 11 Não será uma horrível blasfêmia sustentar com o autor do livro Dos Delitos e das Penas que a eloqüência a declamação e as mais sublimes verdades são um freio demasiado fraco para reter por muito tempo as paixões humanas Não penso que a acusação de blasfêmia recaia sobre o que eu disse da eloqüência e da declamação O acusador quis de certo referirse à insuficiência que eu atribuo às mais sublimes verdades Perguntolhe se julga que na Itália se conhecem essas sublimes verdades isto é as da fé Sem dúvida respondermeá que sim Mas serviram tais verdades de freio às paixões humanas na Itália Todos os oradores sacros todos os juizes todos os homens numa palavra assegurarmeão o contrário É um fato pois que as sublimes verdades são para as paixões humanas um freio que as não refreia ou que logo se parte e enquanto houver num país católico juizes criminosos prisões e castigos estará provada a insuficiência das sublimes verdades 12 O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacrílegas contra a Inquisição Meu livro não faz nenhuma menção nem direta nem indireta da Inquisição Pergunto porém ao meu acusador se lhe parece bem conforme ao espírito da Igreja a condenação de homens à morte nas fogueiras Não é do seio mesmo de Roma sob os olhos do vigário de Jesus Cristo na capital da religião católica que se cumprem hoje para com protestantes de qualquer nação todos os deveres de humanidade e hospitalidade Os últimos papas e sobretudo o atual receberam e recebem com a maior bondade os ingleses os holandeses e os russos esses povos de seitas e religiões diferentes têm em Roma toda a liberdade passível e ninguém está mais certo do que eles de gozar ali da proteção das leis e do governo 13 O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa sob cores odiosas as ordens religiosas e sobretudo os frades Seria difícil citar um só lugar do meu livro que faça menção de ordens religiosas ou de frades a menos que se interprete arbitrariamente o capitulo em que falo da ociosidade 14 O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores ímpios para os quais os eclesiásticos não passam de charlatães os monarcas de tiranos os santos de fanáticos a religião de impostura e que nem mesmo respeitam a majestade do Criador contra o qual vomitam blasfêmias hediondas Passemos às acusações de sedição II Acusações de sedição 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas considera todos os príncipes e todos os soberanos do século como tiranos cruéis Só uma vez falei no meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa e eis o que digo Feliz o gênero humano se pela primeira vez recebesse leis Hoje que vemos elevados nos tronos da Europa etc Ver o fim do cap XVI 2 Não podem deixar de espantar a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta furioso contra os soberanos e os eclesiásticos A confiança e a liberdade não são um mal Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter qui autem depravat vias suas manifestus erit35 Se aprovei nos súditos certo espírito de independência foi na medida que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros magistrados Desejo mesmo que os homens não tendo que temer a escravidão mas gozando de sua liberdade sob a proteção das leis se tornem soldados intrépidos defensores da pátria e do trono cidadãos virtuosos e magistrados incorruptíveis que levem ao pé do trono os tributos e o amor de todas as ordens da nação e que espalhem nas cabanas a segurança e a esperança de uma sorte cada vez mais doce Já não estamos nos séculos de Calígula36 de Nero37 de Heliogábalo38 e o crítico faz muito pouca justiça aos príncipes reinantes acreditando que os meus princípios possam ofendêlos 3 O autor do livro Dos Delitos e das Penas sustenta que o interesse do particular supera o de toda a sociedade em geral ou dos que a representam Se houvesse tal absurdo no livro Dos Delitos e das Penas não creio que o meu adversário tivesse feito um livro de 191 páginas para refutálo 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas contesta aos soberanos o direito de punir com a morte Como não se trata aqui nem de religião nem de governo mas somente da justeza de um raciocínio meu acusador tem toda a liberdade de julgar o que quiser Reduzo o meu silogismo desta forma Não se deve infligir a pena de morte se esta não é verdadeiramente útil e necessária Mas a pena de morte não é necessária nem verdadeiramente útil Não deve pois infligirse a pena de morte Não é este o lugar para uma dissertação sobre os direitos dos soberanos O crítico não quererá certamente sustentar que se deva infligir a pena de morte mesmo quando ela não é verdadeiramente útil nem necessária Proposta tão cruel e escandalosa não pode sair da boca de um cristão Se a segunda parte do silogismo não é exata tratarseá de um crime de lesalógica e nunca de lesamajestade Podem aliás escusarse os meus pretensos erros assemelhamse eles àqueles em que incidiram tantos cristãos zelosos da primitiva Igreja39 assemelhamse àqueles em que incorreram os frades da época de TeodósiooGrande no fim do IV século Nos seus Anais da Itália diz Muratori40 que no ano 389 Teodósio fez uma lei pela qual ordenava aos frades que permanecessem nos conventos porque levavam a caridade pelo próximo ao ponto de arrancar os criminosos das mãos da justiça não querendo que se mandasse matar ninguém Minha caridade não vai tão longe e convirei de bom grado que a daquele tempo se conduzia por falsos princípios Uma ação violenta contra a autoridade pública é sempre criminosa Restamme ainda duas palavras que dizer Haverá no mundo uma lei que proíba dizerse ou escreverse que um Estado pode existir e conservar a paz interna sem empregar a pena de morte contra qualquer culpado Conta Deodoro41 liv I cap LXV que Sabacão rei do Egito fezse admirar como modelo de demência porque comutou as penas capitais nas da escravidão e porque deu um emprego feliz à sua autoridade condenando os culpados aos trabalhos públicos Estrabão42 liv XI informanos que havia perto do Cáucaso algumas nações que não conheciam a pena de morte mesmo quando o delito merecia os maiores suplícios nemini mortem irrogare quamvis pessima merito43 Essa verdade é consignada na história romana na época da lei Pórcia que proíbe que se tire a vida de um cidadão romano se a sentença de morte não for revestida do consenso geral de todo o povo Tito Lívio44 fala dessa lei liv X cap IX Finalmente o exemplo recente de um reinado de vinte anos no mais vasto império do mundo a Rússia atesta ainda essa verdade a imperatriz Isabel morta há alguns anos jurou ao subir ao trono dos czares que não faria morrer nenhum culpado sob o seu reinado Essa augusta princesa nunca deixou de cumprir o feliz compromisso que assumira sem interromper o curso da justiça criminal e sem prejudicar a tranqüilidade pública Se esses fatos são incontestáveis será então verdade dizer que um Estado pode subsistir e ser feliz sem punir de morte nenhum criminoso EXTRATO DA CORRESPONDÊNCIA DE BECCARIA E DE MORELLET SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS De Morellet45 a Beccaria Paris fevereiro de 1766 Senhor Sem ter a honra de conhecervos julgome no direito de endereçarvos um exemplar da tradução que fiz de vossa obra Dei Delitti e delle Pene Os homens de letras são cosmopolitas e de todas as nações estão ligados por laços mais estreitos do que os que unem os cidadãos de um mesmo país os habitantes de uma mesma cidade e os membros de uma mesma família Julgo pois poder entrar convosco num comércio de idéias e de sentimentos que me será bastante agradável se não vos recusardes ao entusiasmo de um homem que vos estima sem conhecervos pessoalmente mas que adquiriu esses sentimentos por vós na leitura do vosso excelente trabalho Foi o sr de Malesherbes46 com quem tenho a honra de conviver que me empenhou em fazer passar vosso livro para a nossa língua Eu não tinha necessidade para tanto de esforçarme muito Erame uma ocupação agradável tornarme para minha nação e para o país em que nossa língua está difundida o intérprete e o órgão das idéias fortes e grandes e dos sentimentos de benevolência de que vossa obra está cheia Pareciame que me associaria ao bem que fazíeis aos homens e que poderia igualmente pretender certo reconhecimento da parte dos corações sensíveis aos quais são caros os interesses da humanidade Faz hoje oito dias que minha tradução apareceu Eu não quis escrevervos mais cedo porque julguei dever esperar que pudesse instruirvos sobre a impressão causada por vossa obra Ouso pois assegurarvos Senhor que o êxito é universal e que além da atenção despertada pelo livro se formaram pelo autor sentimentos que podem lisonjear vos ainda mais isto é a estima o reconhecimento o interesse a amizade Estou particularmente encarregado de apresentarvos os agradecimentos e os cumprimentos do sr Diderot47 do Sr Helvétius48 do Sr de Buffon49 Já conversamos muito com o sr Diderot sobre vossa obra que é bem capaz de pôr fogo a uma cabeça tão quente como é a dele Terei algumas observações que vos comunicar que são o resultado das nossas conversas O sr de Buffon serviuse das expressões mais fortes para testemunharme o prazer que vosso livro lhe causou e pedevos aceiteis os seus cumprimentos Levei também vosso livro ao Sr Rousseau50 que está em Paris de viagem para a Inglaterra aonde vai estabelecerse e que parte por estes dias Ainda não posso dizervos sua impressão porque não tornei a vêlo Talvez possa conhecêla hoje por intermédio do Sr Hume51 com quem irei jantar estou porém certo da impressão que ele terá O sr Hume que vive há tempos conosco encarregoume igualmente de dizervos mil coisas de sua parte A essas pessoas que conheceis por sua reputação acrescento um homem infinitamente estimável que as reúne em sua casa o Sr barão dHolbach52 autor de excelentes trabalhos impressos de química e de história natural e de muitos outros que não foram publicados filósofo profundo juiz esclarecidíssimo de todos os gêneros de conhecimentos alma sensível e aberta à amizade Não posso exprimirvos a impressão que vosso livro lhe causou nem quanto ele ama e estima a obra e o autor Como passamos a vida em casa dele seria preciso que o conhecêsseis primeiro porque se pudermos ter a honra de atrairvos a Paris esta casa será a vossa Enviovos pois igualmente os seus agradecimentos e as suas saudações Não vos falo do Sr dAlembert 53 que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra à minha carta Deveis conhecer sua opinião sobre vossa obra Quanto à tradução competelhe dizer vos se ficou satisfeito Não vos ocultarei a mais forte razão que me determinou a tratar de vos dar alguma boa opinião de mim a esperança de que me perdoareis mais facilmente a liberdade que tomei de fazer algumas modificações na disposição de algumas partes do vosso trabalho Apresentei no prefácio as razões gerais que me justificam convosco porém devo alongarme um pouco a esse respeito Para o espírito filosófico que se torna senhor da matéria nada mais fácil do que apreender o conjunto de vosso tratado cujas partes se ligam estreitamente e dependem todas do mesmo princípio Mas para os leitores vulgares e menos instruídos e sobretudo para os leitores franceses julgo ter seguido um caminho mais regular e em tudo mais conforme ao gênio de minha nação e à feição dos nossos livros A única objeção que posso temer é a censura de ter diminuído a força e o calor do original pelo restabelecimento mesmo dessa ordem Eis minhas respostas Sei que a verdade tem a maior necessidade da eloqüência e do sentimento Seria absurdo pensar o contrário e sobretudo não seria convosco que se poderia avançar tão estranho paradoxo Mas se não é preciso sacrificar o calor à ordem creio não ser preciso tão pouco sacrificar a ordem ao calor e tudo irá bem se se puderem conciliar essas duas coisas a um tempo Resta pois examinar se me saí bem nessa conciliação Se minha tradução tem menos calor do que o original seria preciso atribuir essa falha a muitas outras causas e não à diferença da ordem Seria ou a fraqueza do estilo do tradutor ou a natureza mesma de toda tradução que deve ficar abaixo do original sobretudo nas coisas de sentimento Não devo dissimularvos outra objeção que me fizeram Disseramme que um autor poderia chocarse ao ver em sua obra modificações mesmo úteis Mas Senhor essa maneira de ver não poderia ser a vossa Assim pelo menos o julguei Um homem de gênio que fez uma obra admirável cheia de idéias novas e fortes e excelente pelo fundo deve poder ouvir dizer friamente que o seu livro não tem toda a ordem de que era suscetível Deve ir mesmo até à adoção das modificações feitas se forem úteis e baseadas em boas razões Eis Senhor a coragem que espero de vós Rejeitai dentre as modificações feitas por mim aquelas que vos parecem malentendidas conservai as que estiverem bem e acreditai que só tereis feito aumentar vossa reputação Sois digno de que eu use para convosco dessa confiança e me lisonjeio de que o aproveis Terminarei minha justificativa citandovos grandes autoridades que aplaudiram a liberdade por mim tomada O sr dAlembert permiteme que vos diga ser essa a sua opinião O sr Hume que leu com muito cuidado o original e a tradução é do mesmo parecer Eu poderia citarvos ainda numerosas pessoas instruídas que assim também o julgaram A avidez com a qual o público recebeu aqui vossa obra fazme acreditar que a nossa primeira edição breve estará esgotada e que antes de um mês será preciso fazer outra Se na disposição que apresentei separei idéias que devam estar ligadas ou fiz aproximações que vos pareçam prejudicar o sentido peçovos que a respeito me participeis vossas observações e numa nova edição não deixarei de conformarme com vossas opiniões Termino Senhor esta longa carta rogandovos que me considereis como um dos vossos maiores admiradores e como um dos homens que mais vivamente desejam participar de vossa estima e de vossa amizade Muito me afligiria a idéia de não vôlo poder dizer um dia a vós mesmos Estou ansioso por ter vossas notícias conhecer vosso juízo sobre a minha tradução saber se continuais a marchar na bela estrada que vos abristes e a ocuparvos com o bem da humanidade É com tais sentimentos de respeito de estima e de amizade que tenho a honra de ser etc Morellet De Beccaria a Morellet Milão maio de 1766 Permitime Senhor que empregue convosco as fórmulas usadas na vossa língua como mais cômodas mais simples mais verdadeiras mais dignas por isso de um filósofo como vós Permitime igualmente que me sirva de um copista por ser a carta que vos escrevi muito pouco legível A mais profunda estima o maior reconhecimento a mais terna amizade são os sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora que vos dignastes escreverme Eu não saberia exprimirvos quanto me honra ver minha obra traduzida na língua de uma nação que esclarece e instrui a Europa Tudo devo eu mesmo aos livros franceses Foram eles que desenvolveram em minha alma os sentimentos de humanidade sufocados por oito anos de educação fanática Eu já respeitava vosso nome pelos excelentes artigos que inseristes na obra imortal da Enciclopédia54 e foi para mim a mais agradável surpresa saber que um homem de letras da vossa reputação dignavase de traduzir o meu tratado Dos Delitos Agradeço vos de todo o meu coração o presente que me fizeste de vossa tradução assim como vossa atenção em satisfazer o interesse que eu tinha em lêla Lia com um prazer que não posso exprimirvos e achei que embelezastes o original Protestovos com a maior sinceridade que a ordem que seguistes pareceme a mim mesmo mais natural e preferível à minha e que lamento que a nova edição italiana esteja quase terminada porque do contrário eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo com o vosso plano Minha obra nada perdeu de sua força em vossa tradução exceto nos lugares em que o caráter essencial a uma e a outra língua estabeleceu certa diferença entre vossa expressão e a minha A língua italiana é mais maleável e dócil e talvez por ser menos cultivada no gênero filosófico possa adotar expressões que a vossa recusaria empregar Não vejo solidez na objeção que vos fizeram de que a mudança da ordem poderia fazer perder a força A força consiste na escolha das expressões e na aproximação das idéias e a confusão só pode prejudicar esses dois efeitos O receio de ferir o amorpróprio do autor não devia detervos mais Primeiro porque como vós mesmo o dissestes com razão em vosso excelente prefácio um livro em que se defende a causa da humanidade uma vez tornado público pertence ao mundo e a todas as nações e relativamente a mim em particular eu teria feito muito poucos progressos na filosofia do coração que coloco acima da do espírito se não tivesse adquirido a coragem de ver e amar a verdade Espero que a quinta edição que deve aparecer breve esteja logo esgotada e assegurovos que na sexta observarei inteiramente ou quase inteiramente a ordem de vossa tradução que dá maior relevo às verdades que tratei de coligir Digo quase inteiramente porque segundo uma leitura única e rápida que fiz até este momento não posso decidirme com inteiro conhecimento de causa sobre as particularidades como já o fiz sobre o conjunto A impaciência que meus amigos têm de ler vossa tradução forçoume Senhor a deixála sair de minhas mãos logo depois de a ter tido e sou obrigado a dar em outra carta a explicação de certas passagens que julgastes obscuras Devo dizervos porém que tive ao escrever os exemplos de Machiavelli55 de Galileu56 e de Giannone ante os meus olhos Ouvi o ruído das cadeias firmar a superstição e os gritos de fanatismo abafar os gemidos da verdade A visão desse espetáculo medonho determinoume algumas vezes a envolver a luz de nuvens Quis defender a humanidade sem ser mártir Essa idéia de que eu devia ser obscuro tornoume às vezes tal sem necessidade Acrescentai a isso a inexperiência e a falta de hábito de escrever perdoáveis num autor que tem apenas vinte e sete anos e que há somente cinco anos entrou na carreira das letras Sermeia impossível pintarvos Senhor a satisfação com a qual vejo o interesse que tomais por mim e quanto me comovem as demonstrações de estima que me dais e que não posso aceitar sem ser vão nem rejeitar sem fazervos injúria Recebi com o mesmo reconhecimento e a mesma confusão as coisas lisonjeiras que me dissestes da parte desses homens célebres que honram a humanidade a Europa e a sua nação DAlembert Diderot Helvétius Buffon Hume nomes ilustres que não se pode ouvir pronunciar sem ficar comovido assim como vossas obras imortais são minha leitura contínua o objeto de minhas ocupações durante o dia e de minhas meditações no silêncio da noite Cheio das verdades que ensinais como poderia eu incensar o erro e aviltarme ao ponto de mentir à posteridade Minha única ocupação é cultivar em paz a filosofia e contentar assim três sentimentos muito vivos em mim o amor à reputação literária o amor à liberdade e a compaixão pelas desgraças dos homens escravos de tantos erros Data de cinco anos a época de minha conversão à filosofia e devoa à leitura das Cartas Persas57 A segunda obra que completou a revolução do meu espírito foi a do sr Helvétius Foi ele quem me lançou com força no caminho da verdade e quem primeiro despertou minha atenção para a cegueira e as desgraças da humanidade Devo à leitura do Espírito 58 uma grande parte de minhas idéias O Sr conde Firmiani regressou a Milão há vários dias mas está muito ocupado e ainda não pude vêlo Ele protegeu meu livro e é a ele que devo minha tranqüilidade Remetervosei breve algumas explicações das passagens que achastes obscuras e que não pretendo justificar porque não escrevi para não ser entendido Rogovos encarecidamente me envieis vossas observações e as dos vossos amigos para que eu as aproveite numa sexta edição Comunicaime sobretudo o resultado de vossas palestras sobre meu livro com o sr Diderot Desejo vivamente saber que impressão teve de mim essa alma sublime Tenho a honra de ser etc Beccaria Notas 1 Jurisconsulto alemão do começo do século XVII 2 Jurisconsulto piemontês falecido em 1575 3 Jurisconsulto italiano famoso por sua crueldade falecido em Roma em 1618 Deixou uma obra em treze volumes 4 Alusão ao frade Vincenzo Facchinei di Gorfri do convento de Vallombrosa que escreveu Notas e Observações cuja resposta vem publicada as Notas e Observações cuja resposta vem publicada no Apêndice deste volume 5 Thomas Hobbes 15881679 filósofo inglês autor do Leviatan obra em que defende o materialismo em filosofia o egoísmo em moral e o despotismo em política 6 Alusão a JeanJacques Rousseau de cuja autoria são os livros Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade 7 Charles de Secondat barão de Montesquieu 16891755 grande escritor francês autor das Cartas Persas e dos livros Grandeza e Decadência dos Romanos e O Espírito das Leis 8 Observese que a palavra direito não contradiz a palavra força O direito é a força submetida a leis para vantagens da maioria Entendo por justiça os laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares Se esses laços se quebrassem não haveria sociedade É mister que se evite ligar à palavra justiça a idéia de uma força física ou de um ser existente A justiça é pura e simplesmente o ponto de vista sob o qual os homens encaram as coisas morais para o bemestar de cada um Não pretendo falar aqui de justiça de Deus que é de outra natureza tendo relações imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura 9 Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão pois a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes Essa cadeia de obrigações mútuas que desce do trono até à cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade tem como único fim o interesse público que consiste na observação das convenções úteis à maioria Violada uma dessas convenções abrese a porta à desordem A palavra obrigação é uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência Existem obrigações a cumprir no comércio e na sociedade Uma obrigação supõe um raciocínio moral convenções racionadas não se pode porém emprestar à palavra obrigação uma idéia física ou real É uma palavra abstrata que precisa ser explicada Ninguém pode obrigar vos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações Nota de Beccaria 10 Isto é em vernáculo e não em latim 11 Entre os criminalistas ao contrário a confiança que merece uma testemunha aumenta em proporção da atrocidade do crime Apoiamse eles neste axioma de ferro ditado pela mais cruel imbecilidade In atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt et licet judici jura transgredi Traduzamos essa máxima hedionda para que a Europa conheça ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o saber Nos delitos mais atrozes isto é menos provável bastam as mais ligeiras circunstâncias e o juiz pode pôrse acima das leis Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes o resultado do medo fonte inesgotável das inconseqüências e dos erros humanos Os legisladores ou antes os jurisconsultos cujas opiniões são consideradas após sua morte como espécies de oráculos e que como escritores vendidos ao interesse se tornaram árbitros soberanos da sorte dos homens os legisladores repito receosos de ver condenar inocentes sobrecarregaram a jurisprudência de formalidades e exceções inúteis cuja exata observação colocaria a desordem e a impunidade no trono da justiça Outras vezes assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar acharam que deviam desprezar essas formalidades que eles próprios estabeleceram Foi assim que dominados ora por um despotismo impertinente ora por temores pueris fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio 12 Referese Beccaria a Gustavo III 17461792 que subiu ao trono da Suécia em 1771 tendo feito um governo liberal e posto em prática numerosas idéias defendidas pelos enciclopedistas franceses Morreu assassinado aos 46 anos de idade vítima de uma conspiração dos aristocratas 13 Isabel Petrovna 17091762 filha de PedrooGrande tendo subido ao trono da Rússia em 1741 14 Tito filho de Vespasiano imperador romano de 76 a 81 cognominado a delícia do gênero humano em virtude dos grandes benefícios feitos ao povo Perdi o dia Diem perdidi costumava ele dizer quando se passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma ação generosa 15 Antonino o Piedoso foi um dos sete imperadores romanos Nerva Trajano Adriano Antonio Marco Aurélio Vero e Cômodo que reinaram de 96 a 192 Seu governo de 138 a 161 caracterizouse por um notável espírito de moderação e de justiça 16 Um dos sete imperadores antoninos excelente organizador Reinou de 98 a 117 17 Nas primeiras edições desta obra eu mesmo cometi esse erro Ousei dizer que o falido de boa fé devia ser guardado como penhor de sua dívida reduzido ao estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores Envergonhome de ter escrito essas coisas cruéis Acusaramme de impiedade e de sedição sem que eu fosse sedicioso nem ímpio Ataquei os direitos da humanidade e ninguém se levantou contra mim 18 O comércio ou a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes Esses prazeres são preparados por muitos agentes mas partem de um pequeno número de mãos e se distribuem a um pequeno número de homens A maioria só raramente pode proválos numa pequena proporção Eis porque o homem se lamenta quase sempre de sua miséria Mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação e nada tem de real 19 Quando a extensão de um país aumenta em proporção maior do que a população o luxo favorece o despotismo porque a indústria particular diminui à medida que os homens estão mais dispersos e quanto menos indústria houver mais os pobres dependerão dos ricos cujo fausto os faz subsistir Tornase então tão difícil para os oprimidos reuniremse contra os opressores que as insurreições deixam de ser temidas Os homens poderosos obtém com muito mais facilidade a submissão a obediência a veneração e essa espécie de culto que torna mais sensível a distância que o despotismo estabelece entre o homem poderoso e o infeliz Os homens são mais independentes quando são menos observados e são menos observados quando são em maior número Por outro lado quando a população aumenta em maior proporção do que a extensão do país o luxo tornase ao contrário uma barreira contra o despotismo Anima a indústria com a atividade dos cidadãos O rico encontra em torno de si bastantes prazeres para entregarse completamente ao luxo de ostentação o único capaz de firmar no espírito do povo a idéia de sua dependência E pode observarse que nos Estados vastos mas fracos e despovoados o luxo de ostentação deve prevalecer se outras causas não o impedem ao passo que o luxo de comodidade tenderá a diminuir cada vez mais a ostentação nos países mais populosos do que extensos 20 Essa atração se parece em muitas coisas com a gravitação universal A força dessas duas causas diminui com a distância Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma enquanto durar sua atividade Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se põe em equilíbrio com os obstáculos que encontra ao passo que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor 21 O Evangelho 22 Ditador romano nascido em 136 a C Companheiro e mais tarde rival de Mário cônsul em 88 vencedor de Mitridates chefe do partido aristocrático e depois senhor de Roma e da Itália Proscreveu os adversários reformou a constituição romana em sentido favorável ao Senado e conseguiu enorme influência Abdicou inesperadamente em pleno fastígio e morreu no ano seguinte 80 a C 23 Referência à obra Emilio ou Da Educação 1762 romance filosófico em que JeanJacques Rousseau propõe um sistema de educação baseado no princípio de que o homem é naturalmente bom e de que sendo má a educação dada pela sociedade conviria estabelecer uma educação negativa como a melhor ou antes como a única boa A despeito de certos paradoxos esse livro teve influência salutar sobre a educação daquela época 24 Carlos Magno ou Carlos I 742814 rei dos Francos e imperador do Ocidente era filho de PepinooBreve do qual sucedeu em 768 Político profundo e hábil organizador estimava e protegia as letras criando escolas rodeandose de homens eminentes e governando com sabedoria o seu imenso império 25 Otão I o Grande 912973 imperador da Alemanha desde 936 tendo governado com grande habilidade 26 Imperador romano de 375 a 383 27 Imperador romano de 364 a 375 cujo governo foi assinalado por grande severidade e intolerância religiosa 28 Teodósio I o Grande 346395 imperador romano que contribuiu para o triunfo do cristianismo sobre o paganismo 29 Arcádio 376408 filho de Teodósio imperador do Oriente desde 395 30 Alexandre Severo 208235 imperador romano sucessor de Heliogábalo 31 Imperador romano de 81 a 96 filho de Vespasiano e de Tito célebre por sua crueldade Morreu assassinado sendo cúmplice do crime sua própria mulher Foi o último dos doze Césares 32 Segundo imperador romano de 14 a 37 famoso por sua desumanidade 33 Henrique VIII 14911547 rei da Inglaterra desde 1509 rompeu com a Igreja católica e fundou o anglicanismo Instruído artista mas cruel e libertino 34 Historiador latino autor da obra Os doze Césares coleção de anedotas de imenso interesse documental 35 Quem caminha livremente caminha com confiança quem porém se desvia do seu caminho será descoberto 36 Calígula 1241 imperador romano desde 37 Famoso por sua crueldade desejava que o povo romano tivesse uma só cabeça para decepála de um golpe Sua insensatez chegou ao ponto de dar o titulo de cônsul ao seu cavalo Incitatus 37 Imperador romano de 54 a 68 que se celebrizou por sua crueldade 38 Imperador romano de 218 a 222 e que se tornou famoso por suas loucuras e crueldades 39 Podem consultarse os santos padres e entre outros Tertuliano na sua Apolog cap XXXVII onde ele diz que os cristãos tinham por máxima sofrer ante a própria morte do que dála a alguém E no seu Tratado de Idolatria caps XVII e XXI condena ele toda espécie de cargos públicos como interditos aos cristãos porque não era possível exercêlos sem que às vezes fosse obrigado a pronunciar a pena de morte contra os criminosos 40 Lodovico Antonio Muratori 16721750 historiador Italiano 41 Deodoro da Sicília autor de uma Biblioteca Histórica 42 Geógrafo grego autor de uma preciosa Geografia Morreu sob Tibério 43 Não condenar ninguém à morte nem mesmo pelo pior delito 44 Tito Lívio 59 a C 19 d C historiador latino nascido em Pádua Deixou sob o título de Décadas uma história romana mais notável pelo estilo do que pela autenticidade dos fatos 45 André Morellet 17271819 abade literato e economista francês colaborador da Enciclopédia 46 ChrétienGuillaume de Lamoignon de Malesherbes 17211794 magistrado de grande reputação ministro sob Luiz XVI que ele defendeu perante a Convenção Morreu no cadafalso 47 Denis Diderot 17131784 filósofo francês ardente propagandista das idéias filosóficas do século XVIII um dos fundadores da Enciclopédia Deixou várias obras importantes 48 ClaudeArien Hélvetius 17151771 literato e filósofo francês autor do livro Do Espírito 49 GeorgesLouis Leclerc de Buffon 1707 1778 naturalista e escritor francês autor da História Natural 50 JeanJacques Rousseau 17121778 filósofo e escritor francês nascido em Genebra autor da Nova Heloísa do Contrato Social do Emilio ou Da Educação Confissões e Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade 51 David Hume 17111776 filósofo e historiador inglês criador da filosofia fenomenista autor de um célebre Ensaio sobre o Entendimento Humano 52 PaulHenri Holbach 17231789 barão filósofo materialista francês amigo e protetor dos Enciclopedistas 53 Jean le Rond dAlembert 17171783 célebre escritor filósofo e matemático francês um dos fundadores da Enciclopédia 54 Publicação monumental dirigida por dAlembert e Diderot que foi uma verdadeira máquina de guerra posta ao serviço das doutrinas filosóficas do século XVIII 17511772 55 Nicolau Machiavelli 14691527 político e historiador italiano autor das Décadas sobre Tito Lívio e do Príncipe 56 Galileu Galilei 15641642 ilustre matemático físico e astrônomo italiano nascido em Pisa Proclamou partilhando a teoria de Copérnico que o Sol e não a Terra é o centro do mundo planetário e que a Terra gira em torno de si mesma e tem também como os outros planetas um movimento de translação ao redor do Sol Foi por isso denunciado como herege e obrigado pela Inquisição a abjurar de joelhos as suas afirmações 1633 Depois dessa abjuração que o livrou da fogueira foi condenado ao cativeiro e morreu cego alguns anos mais tarde É famosa sua frase E pur si muove E contudo se move que teria proferido ao ser obrigado a abjurar 57 Cartas satíricas que Montesquieu publicou em 1721 sob o anônimo É uma correspondência imaginária de dois persas chegados à Europa Rica e Uzbek dirigida aos seus amigos da Pérsia e na qual o autor passa em revista com plena liberdade a política a religião e toda a sociedade francesa de sua época 58 Obra publicada em 1758 e na qual Helvétius aconselha o materialismo tendo provocado os mais vivos protestos 2001 Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasilcom Agosto 2001 Proibido todo e qualquer uso comercial Se você pagou por esse livro VOCÊ FOI ROUBADO Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS direto na fonte wwwebooksbrasilcom Fichamento textual DOS DELITOS E DAS PENAS BECCARIA Cesare Dos delitos e das penas São Paulo EDIPRO 1 Ed 2013 No primeiro capítulo o autor trata da origem das penas e do direito de punir apresentando a visão do autor sobre a origem das leis e da soberania do Estado Beccaria argumenta que a base da lei deve ser os sentimentos indeléveis do coração humano pois qualquer lei que não se baseie nesses sentimentos enfrentará resistência e será obrigada a ceder O autor acredita que as leis foram criadas para reunir os homens que antes viviam de maneira isolada e em constante estado de guerra entre si A formação das leis permitiu que eles sacrificassem parte de sua liberdade individual em troca de maior segurança e proteção A soma dessas porções de liberdade formou a soberania da nação e o soberano foi encarregado de proteger o depósito das liberdades e administrar o país No entanto Beccaria argumenta que é necessário proteger esse depósito contra as usurpações de cada indivíduo que tende a buscar o despotismo e a usurpar a liberdade dos outros Para isso foram estabelecidas penas contra os infratores das leis Beccaria enfatiza que essas penas precisam ser sensíveis e poderosas o suficiente para comprimir o espírito despótico do homem que busca constantemente retirar a liberdade dos outros O autor também defende que o conjunto de todas as pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir e qualquer exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça As penas que ultrapassam a necessidade de proteger o depósito da salvação pública são injustas por natureza Beccaria acredita que quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e a liberdade que o soberano mantiver para os súditos mais justas serão as penas aplicadas Beccaria argumenta que a base da lei deve ser os sentimentos indeléveis do coração humano pois qualquer lei que não se baseie nesses sentimentos enfrentará resistência e será obrigada a ceder O autor acredita que as leis foram criadas para reunir os homens que antes viviam de maneira isolada e em constante estado de guerra entre si A formação das leis permitiu que eles sacrificassem parte de sua liberdade individual em troca de maior segurança e proteção A soma dessas porções de liberdade formou a soberania da nação e o soberano foi encarregado de proteger o depósito das liberdades e administrar o país O autor também defende que o conjunto de todas as pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir e qualquer exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça As penas que ultrapassam a necessidade de proteger o depósito da salvação pública são injustas por natureza Beccaria acredita que quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e a liberdade que o soberano mantiver para os súditos mais justas serão as penas aplicadas O texto aborda a importância da clareza e acessibilidade das leis defendendo que elas devem ser escritas em linguagem comum para que o povo possa entendêlas e cumprir suas responsabilidades sem depender de um pequeno grupo de intérpretes das leis O autor argumenta que isso é essencial para estabelecer um governo justo e para evitar que as leis sejam alteradas ou destruídas por interesses particulares Ele também destaca o papel da imprensa na disseminação do conhecimento jurídico e na promoção da humanidade tolerância mútua e outras virtudes O autor contrasta o estado atual das coisas com o passado quando o povo era oprimido pela superstição e tirania e argumenta que a luz da razão e da clareza das leis é a chave para evitar a opressão e a injustiça Quanto a prisão Beccaria critica o direito que é concedido aos magistrados de prenderem discricionariamente os cidadãos retirandolhes a liberdade sob pretextos frívolos e deixando livres os que eles protegem o que é contrário ao fim da sociedade que é a segurança pessoal Para ele a prisão assim como todas as outras penas deve ser determinada pela lei e não pelos juízes A lei deve especificar de maneira estável os indícios de delito que permitem a prisão de um cidadão tais como clamor público fuga confissões particulares depoimentos de cúmplices do crime ameaças do acusado ódio inveterado ao ofendido e corpo de delito existente entre outras presunções semelhantes À medida que as penas se tornarem mais brandas e as prisões menos desumanas a lei poderá se contentar com indícios mais fracos para ordenar a prisão Beccaria defende que a prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida Ele critica o sistema atual da jurisprudência criminal que apresenta a ideia da força e do poder em lugar da justiça e onde a prisão entre nós é antes um suplício que um meio de deter um acusado Para Beccaria as prisões civis são vistas como mais desonrosas do que as prisões militares porque as tropas do Estado reunidas sob a autoridade das leis comuns sem dependerem imediatamente dos magistrados poderiam ser encarregadas da guarda das prisões e dessa forma a mancha de infâmia desapareceria Ele critica os preconceitos bárbaros que ainda dominam as leis e os costumes dos povos os quais estão bem longe das luzes dos povos mais avançados O autor discute a importância das formalidades e procedimentos em processos criminais afirmando que elas são necessárias para evitar a arbitrariedade dos juízes e para mostrar ao povo que os julgamentos são realizados com solenidade e de acordo com as regras No entanto essas formalidades devem ser limitadas por leis para que não prejudiquem a busca da verdade O autor também discute a confiabilidade das testemunhas afirmando que a credibilidade deve ser proporcional ao grau de amizade ou ódio que a testemunha tem pelo acusado e que várias testemunhas são necessárias para estabelecer a veracidade de um fato Ele sugere que as acusações de magia e crueldade sem motivo devem ser vistas com ceticismo e que é mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações já que as palavras não deixam vestígios e são influenciadas pela memória Por fim ele afirma que as formalidades e procedimentos devem ser limitados a fim de evitar fontes de inconvenientes e garantir a justiça Ainda o livro aborda a questão das acusações e julgamentos e discute a natureza do delito e a punição pública O autor argumenta que as acusações secretas devem ser proibidas e que as acusações públicas são mais conformes ao espírito do governo republicano onde o zelo pelo bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos Ele critica os interrogatórios sugestivos que são proibidos por nossas leis mas ao mesmo tempo autoriza a tortura o que gera uma contradição O autor argumenta que a dor é o interrogatório mais sugestivo e que o silêncio de um criminoso perante o juiz é um escândalo para a sociedade e uma ofensa para a justiça Ele afirma que a pena para aqueles que se recusam a responder ao interrogatório deve ser muito pesada mas que essa pena particular não é necessária quando o crime já foi constatado e o criminoso convencido O autor conclui que a maioria dos processos criminais envolvem culpados que negam tudo e que as confissões do acusado não são necessárias quando há provas suficientes de sua culpa O autor critica o uso da tortura como meio de obter a verdade seja para a condenação do acusado seja para a identificação de cúmplices Ele argumenta que a tortura é um método ineficaz e desumano além de ser capaz de forçar o acusado a confessar crimes que não cometeu e implicar pessoas inocentes Beccaria também questiona a justiça de se punir um homem pelos crimes de outro ao usar a tortura para identificar cúmplices Ele afirma que a descoberta de cúmplices pode ser feita através de outros meios como interrogatórios exames de provas e testemunhas sem precisar recorrer à tortura O autor também critica o uso da tortura como forma de purgar a infâmia argumentando que a infâmia é uma questão moral e não pode ser apagada pela dor física Ele explica que esse uso da tortura tem origem nas práticas religiosas em que se acredita que as nódoas da alma são purificadas pelo fogo do purgatório O autor defende que as leis devem punir não apenas o crime consumado mas também as tentativas de delito para que haja prevenção No entanto a pena para as tentativas deve ser menor do que para o crime consumado para desestimular a conclusão do delito Beccaria também discute a questão das penas para os cúmplices afirmando que elas devem ser proporcionais às suas responsabilidades Ele argumenta que a impunidade para um cúmplice que trai seus companheiros pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo mas também pode introduzir crimes de covardia e ser vista como um encorajamento à traição Por fim o autor conclui que é importante que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possíveis para que se ponham de acordo e que a impunidade para um cúmplice que revela um crime deve ser acompanhada do banimento do delator Beccaria se preocupa com a corrupção dos magistrados e afirma que eles devem respeitar as leis e não usar sutilezas para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis Ele conclui que a reforma das leis penais é necessária para garantir a confiança pública e a base respeitável dos costumes Quanto a pena de morte o autor argumento que o assassinato que é considerado um crime hediondo muitas vezes é cometido friamente e sem remorso o que pode levar as pessoas a justificarem a pena de morte como forma de punição O autor reflete sobre a validade dos exemplos históricos que são frequentemente utilizados para justificar a pena de morte argumentando que esses exemplos não têm força contra a verdade que deve ser sempre reconhecida Ele usa o exemplo de povos que se abstiveram do uso da pena de morte por um curto período de tempo demonstrando que a verdade pode se impor mesmo em meio à longa noite de trevas que envolve a humanidade O autor apresenta a importância da proporção entre os delitos e as penas argumentando que os meios empregados pela legislação para impedir crimes devem ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode se tornar mais comum O autor também destaca a importância da distribuição justa de penas para evitar a contradição de que as leis devem punir crimes que elas mesmas ajudaram a criar O texto argumenta que a distribuição desigual de penas pode levar à destruição dos sentimentos morais que foram construídos com o tempo bem como pode incentivar a prática de crimes que sejam mais vantajosos para os indivíduos em detrimento da sociedade O autor ainda enfatiza que embora seja impossível prevenir todos os abusos que possam surgir das paixões humanas as penas são obstáculos políticos que impedem os efeitos funestos do choque dos interesses pessoais sem destruir sua causa o amorpróprio Por fim o autor sugere que o legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba enfraquecer as forças que possam arruinar a sociedade e empregar as forças que possam contribuir para consolidar o edifício social O texto destaca que embora seja impossível aplicar cálculos exatos a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir é importante estabelecer divisões principais na distribuição das penas proporcionais aos delitos e evitar a aplicação de castigos menores a crimes mais graves Cesare Beccaria argumenta que a lei da pena de morte não é a melhor solução para prevenir crimes já que sobrecarrega uma parte da sociedade com suas próprias necessidades e com as dos outros Ele sugere que é mais sábio seguir o declive do rio das paixões e dividirlhe o curso num número de regatos suficientes para impedir excessos contrários Beccaria também comenta sobre a fidelidade conjugal o adultério a pederastia e o infanticídio argumentando que a punição não é a solução para prevenir esses crimes Ele conclui que não se pode chamar justa ou necessária a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação A ideia de que confiar o depósito sagrado das leis a um homem esclarecido é o dom mais precioso que um soberano pode conceder à nação e a si mesmo Um homem esclarecido é alguém que está habituado a ver a verdade sem temêla que considera tudo sob pontos de vista mais elevados e que tem o hábito de amar a verdade por si mesma Esse tipo de homem é capaz de ver a nação como uma família e seus concidadãos como irmãos e isso pode contribuir para tornar a felicidade de uma nação durável Além disso o texto sugere que é possível prevenir crimes de diferentes maneiras incluindo afastando a corrupção dos magistrados recompensando a virtude e aperfeiçoando a educação A educação é um assunto vasto e crucial para o governo pois pode ajudar a conduzir as crianças à virtude pela estrada fácil do sentimento afastandoas do mal pela força invencível da necessidade e dos inconvenientes que seguem a má ação O autor também ressalta que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado pois só produz uma obediência hipócrita e passageira Em vez disso é preciso escolher e expor com precisão os objetos que se apresentam às crianças e substituir as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno Em resumo o texto defende a importância de confiar o depósito sagrado das leis a homens esclarecidos prevenir crimes por meio de diferentes estratégias recompensar a virtude e aperfeiçoar a educação para tornar a felicidade de uma nação durável A partir do capítulo XXXVIII o autor faz constatações sobre fontes de erros e de injustiça na legislação Para tanto protesta pelo o espírito de família trazendoo como uma fonte geral de injustiças na legislação Beccaria apresenta uma reflexão crítica sobre a moralidade que é exigida pela sociedade Ele destaca que muitas vezes essa moral particular exige que cada um se sacrifique continuamente em nome do bem da família mesmo que isso não seja realmente benéfico para cada indivíduo que compõe essa família Por outro lado a moral pública ensina a buscar o bemestar sem violar as leis No entanto muitas vezes essas duas morais entram em conflito o que leva os homens a desdenhar a prática da virtude já que não conseguem reconhecêla claramente Beccaria também destaca que à medida que a sociedade cresce cada indivíduo se torna uma parte menor do todo o que enfraquece o amor pelo bem público Isso pode ser um problema pois se as leis não fortalecerem esse amor pelo bem público os indivíduos podem ser levados a cometer delitos Além disso Beccaria argumenta que as sociedades políticas têm um crescimento limitado e que se crescerem além de certos limites sua economia será perturbada Beccaria sugere que uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo se for subdividida em um certo número de pequenos estados confederados No entanto para formar essa união seria preciso um ditador poderoso que tivesse a coragem de Sila com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve para destruir Beccaria argumenta que tal homem pode esperar uma glória imortal se for ambicioso ou as bênçãos de seus concidadãos se for filósofo mesmo sem pedirlhes reconhecimento A noção de que a moral particular muitas vezes exige que os indivíduos sacrifiquem seu bemestar em nome da família ainda é uma realidade para muitas pessoas Por exemplo há culturas em que a obediência aos pais e à família é altamente valorizada e pode levar a escolhas de vida que não são necessariamente as melhores para o indivíduo mas que são consideradas as mais benéficas para a família como um todo Ao contextualizar essas ideias com a atualidade podemos perceber que muitos desses problemas ainda persistem A moral particular continua a exigir sacrifícios em nome da família e muitas vezes os indivíduos são levados a desdenhar a prática da virtude Além disso o crescimento das sociedades políticas ainda pode levar à diluição do amor pelo bem público o que pode levar a um aumento na prática de delitos Por exemplo em relação à moralidade particular versus moralidade pública a ética contemporânea tem se concentrado cada vez mais em reconhecer a interdependência entre as esferas pessoais e coletivas de moralidade Não se trata mais de escolher entre uma ou outra mas de buscar um equilíbrio e integração entre elas Além disso em relação à ideia de que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do grau de atividade dos indivíduos que o compõem essa afirmação pode ser questionada A atividade dos indivíduos pode ser um recurso valioso para o bemestar coletivo e a formulação de leis eficazes pode garantir que essa atividade seja direcionada para o bem público em vez de obstaculizálo No entanto as sugestões de Beccaria para resolver esses problemas podem não ser tão aplicáveis hoje em dia A subdivisão de um país em pequenos estados confederados pode não ser possível em muitos lugares do mundo e a ideia de um ditador poderoso pode ser vista como antidemocrática No entanto a reflexão crítica de Beccaria sobre a moralidade e o papel das leis na sociedade ainda é relevante hoje em dia e suas ideias podem inspirar novas abordagens para resolver os problemas atuais
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eBookLibris Cesare Beccaria DOS DELITOS E DAS PENAS Ridendo Castigat Mores Dos Delitos e das Penas 1764 Cesare Beccaria 17381794 Edição Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasilcom Fonte Digital wwwjahrorg Copyright Autor Cesare Beccaria Edição eletrônica Ed Ridendo Castigat Mores wwwjahrorg Todas as obras são de acesso gratuito Estudei sempre por conta do Estado ou melhor da Sociedade que paga impostos tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou Nélson Jahr Garcia 19472002 ÍNDICE Apresentação Biografia do autor Prefácio do autor I Introdução II Origem das penas e direito punir III Conseqüências desses princípios IV Da interpretação das leis V Da obscuridade das leis VI Da prisão VII Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos VIII Das testemunhas IX Das acusações secretas X Dos interrogatórios sugestivos XI Dos juramentos XII Da questão ou tortura XIII Da duração do processo e da prescrição XIV Dos crimes começados dos cúmplices da impunidade XV Da moderação das penas XVI Da pena de morte XVII Do banimento e das confiscações XVIII Da infâmia XIX Da publicidade e da presteza das penas XX Que o castigo deve ser inevitável Das graças XXI Dos asilos XXII Do uso de pôr a cabeça a prêmio XXIII Que as penas devem ser proporcionadas aos delitos XXIV Da medida dos delitos XXV Divisão dos delitos XXVI Dos crimes de lesamajestade XXVII Dos atentados contra a segurança dos particulares e principalmente das violências XXVIII Das injúrias XXIX Dos duelos XXX Do roubo XXXI Do contrabando XXXII Das falências XXXIII Dos delitos que perturbam a tranqüilidade pública XXXIV Da ociosidade XXXV Do suicídio XXXVI De certos delitos difíceis de constatar XXXVII De uma espécie particular de delito XXXVIII De algumas fontes gerais de erros e de injustiças na legislação e em primeiro lugar das falsas idéias de utilidade XXXIX Do espírito de família XL Do espírito do fisco XLI Dos meios de prevenir crimes XLII Conclusão APÊNDICE Respostas às Notas e observações de um frade dominicano sobre o livro Dos Delitos e das penas I Acusação de impiedade II Acusações de sedição Extrato da correspondência de Beccaria e de Morellet sobre o livro Dos Delitos e das penas De Morellet a Beccaria De Beccaria a Morellet Notas DOS DELITOS E DAS PENAS Cesare Beccaria APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia Dos delitos e das penas é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas como Voltaire Rousseau Montesquieu e tantos outros Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva essa concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos delitos Prodigalizarase a prática de torturas penas de morte prisões desumanas banimentos acusações secretas Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria Sua obra foi elogiada por intelectuais religiosos e nobres inclusive Catarina da Rússia As críticas foram poucas geralmente resultantes de interesses egoísticos de magistrados e clérigos A humanidade encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo especialmente no Brasil A prática de torturas entre nós tem sido cada vez mais freqüente A pena de morte que vai sendo abolida em países mais avançados aqui tem sido proposta por inúmeros políticos raivosos Crianças ficam encarceradas sob condições cruéis às vezes bárbaras Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões Assassinos frios por serem influentes desfrutam de todas as mordomias Que o espírito de Beccaria nos ilumine BIOGRAFIA DO AUTOR CESARE BONESANA marquês de Beccaria nasceu em Milão no ano de 1738 Educado em Paris pelos jesuítas entregouse com entusiasmo ao estudo da literatura e das matemáticas Muita influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e de LEsprit de Helvétius Desde então todas as suas preocupações se voltaram para o estudo da filosofia Foi ele um dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão e que inspirandose no exemplo da de Helvétius divulgou os novos princípios da filosofia francesa Além disso a fim de divulgar na Itália as idéias novas Beccaria fez parte da redação do jornal Il Caffè que apareceu de 1764 a 1765 Foi mais ou menos por essa época que insurgindose contra as injustiças dos processos criminais em voga Beccaria principiou a agitar com os seus amigos entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri os complexos problemas relacionados com a matéria Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene Receoso de perseguições o autor mandou imprimir sua obra secretamente em Livorno e ainda assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e indecisas O tratado Dos Delitos e das Penas é a filosofia francesa aplicada à legislação penal contra a tradição jurídica invoca a razão e o sentimento fazse portavoz dos protestos da consciência pública contra os julgamentos secretos o juramento imposto aos acusados a tortura a confiscação as penas infamantes a desigualdade ante o castigo a atrocidade dos suplícios estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana entre os pecados e os delitos condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos assim como a separação do poder judiciário e do poder legislativo Nenhum livro fora tão oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente extraordinário sobretudo entre os filósofos franceses O abade Morellet traduziuo Diderot anotouo Voltaire comentouo dAlembert Buffon Hume Helvétius o barão dHolbach em suma todos os grandes homens da França manifestaram desde logo a sua admiração e seu entusiasmo Em 1766 indo a Paris Beccaria foi alvo das mais vivas demonstrações de simpatia No entanto tendo regressado a Milão cidade que ele não mais abandonou teve de sofrer uma campanha infamante por parte dos seus adversários que ainda se apegavam aos preconceitos e à rotina para acusálo de heresia A denúncia não teve conseqüências mas Beccaria ressentiuse de tal forma que o receio de novas perseguições levouo a renunciar às dissertações filosóficas Em 1768 o governo austríaco sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II que procurara atraílo para São Petersburgo criou em seu favor uma cátedra de economia política Beccaria morreu em Milão em 1794 PREFÁCIO DO AUTOR ALGUNS fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador compilados por ordem de um príncipe que reinou há doze séculos em Constantinopla combinados em seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de comentários obscuros constituem o velho acervo de opiniões que uma grande parte da Europa honrou com o nome de leis e mesmo hoje o preconceito da rotina tão funesto quanto generalizado faz que uma opinião de Carpozow1 uma velha prática indicada por Claro2 um suplício imaginado com bárbara complacência por Francisco3 sejam as regras que friamente seguem esses homens que deveriam tremer quando decidem da vida e fortuna dos seus concidadãos É esse código informe que não passa de produção monstruosa dos séculos mais bárbaros que eu quero examinar nesta obra Limitarmeei porém ao sistema criminal cujos abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade pública sem preocupação de dar ao meu estilo o encanto que seduz a impaciência dos leitores vulgares Se pude investigar livremente a verdade se me elevei acima das opiniões comuns devo tal independência à indulgência e às luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de viver Os grandes reis e príncipes que querem a felicidade dos homens que governam são amigos da verdade quando esta lhes é revelada por um filósofo que do fundo do seu retiro mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em combater com as armas da razão as empresas da violência e da intriga De resto examinandose os abusos de que vamos falar verificarseá que os mesmos constituem a sátira e a vergonha dos séculos passados mas não do nosso século e dos seus legisladores Se alguém quiser darme a honra de criticar meu livro trate antes de apreender bem o fim que me propus Longe de pensar em diminuir a autoridade legítima verseá que todos os meus esforços só visam a engrandecêla e esta se engrandecerá de fato quando a opinião pública for mais poderosa do que a força quando a indulgência e a humanidade fizerem que se perdoe aos príncipes o seu poder Críticos houve cujas intenções não podiam ser honestas que atacaram esta obra alterandoa4 Devo interromperme um instante para impor silêncio à mentira azoinada aos furores do fanatismo às calúnias covardes do ódio Os princípios de moral e de política aceitos entre os homens derivam em geral de três fontes a revelação a lei natural e as convenções sociais Não se pode estabelecer comparação entre a primeira e as duas últimas do pontodevista dos seus fins principais completamse porém ao tenderem igualmente para tornar os homens felizes na terra Discutir as relações das convenções sociais não significa atacar as relações que podem encontrarse entre a revelação e a lei natural Uma vez que esses princípios divinos embora imutáveis foram de mil modos desnaturados nos espíritos corruptos ou pela maldade humana ou pelas falsas religiões ou pelas idéias arbitrárias da virtude e do vício deve parecer necessário examinar pondo de lado quaisquer considerações estranhas os resultados das simples convenções humanas quer essas convenções tenham sido feitas realmente quer se suponham vantajosas para todos Todas as opiniões todos os sistemas de moral devem reunirse necessariamente nesse ponto e nunca se louvariam bastante os louváveis esforços tendentes a reconduzir os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios que levam os homens a viver em sociedade Podem pois distinguirse três espécies de virtudes e de vícios cuja fonte está igualmente na religião na lei natural e nas convenções políticas Jamais devem essas três espécies estar em contradição entre si não alcançam contudo os mesmos resultados e não obrigam aos mesmos deveres A lei natural exige menos que a revelação e as convenções sociais menos que a lei natural Assim é muito importante distinguir bem os efeitos dessas convenções isto é dos pactos expressos ou tácitos que os homens se impuseram porque nisso deve residir o exercício legítimo da força nessas relações de homem a homem que não exigem a missão especial do Ser supremo Pode dizerse portanto com razão que as idéias da virtude política são variáveis As da virtude natural seriam sempre claras e precisas se as fraquezas e as paixões humanas não empanassem a sua pureza As idéias da virtude religiosa são imutáveis e constantes porque foram imediatamente reveladas pelo próprio Deus que as conserva inalteráveis Pode pois aquele que fala das convenções sociais e dos seus resultados ser acusado de mostrar princípios contrários à lei natural ou à revelação por nada dizer a respeito Se diz que o estado de guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade é o caso de comparálo a Hobbes5 que não supõe para o homem isolado nenhum dever nenhuma obrigação natural Não se pode ao contrário considerar o que ele diz como um fato que foi tão somente a conseqüência da corrupção humana e da ausência das leis Enfim não é um erro censurar um escritor que examina os efeitos das convenções sociais por não admitir antes de tudo a existência mesma dessas convenções A justiça divina e a justiça natural são por sua essência constantes e invariáveis porque as relações existentes entre dois objetos da mesma natureza não podem mudar nunca Mas a justiça humana ou se se quiser a justiça política não sendo mais do que uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade também pode variar à medida que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social Só se pode determinar bem a natureza dessa justiça examinando com atenção as relações complicadas das inconstantes combinações que governam os homens Se todos esses princípios essencialmente distintos chegam a confundirse já não é possível raciocinar com clareza sobre os assuntos políticos Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do injusto segundo a maldade ou a bondade interiores da ação Ao publicista cabe determinar tais limites em política isto é sob as relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao outro porque todos sabem quanto a virtude política está abaixo das virtudes inalteráveis que emanam da Divindade Repito pois que se quiserem dar ao meu livro a honra de uma crítica não comecem por me atribuir princípios contrários à virtude ou à religião pois tais princípios não são os meus em lugar de me assinalar como um ímpio ou um sedicioso contentemse em mostrar que sou mau lógico ou ignorante político não tremam a cada proposição em que defendo os interesses da humanidade verifiquem a inutilidade de minhas máximas e os perigos que podem ter minhas opiniões façamme ver as vantagens das práticas recebidas Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da minha submissão ao soberano ao responder às Notas e Observações que se publicaram contra minha obra Devo guardar silêncio em relação aos escritores que doravante só me opuserem as mesmas objeções Mas aquele que puser em sua crítica a decência e o respeito que os homens honestos se devem entre si e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a demonstrarlhe os princípios mais simples de qualquer natureza que sejam encontrará em mim um homem menos apressado a defender suas opiniões particulares do que um tranqüilo amigo da verdade pronto a confessar os seus erros I INTRODUÇÃO AS vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus membros No entanto entre os homens reunidos notase a tendência contínua de acumular no menor número os privilégios o poder e a felicidade para só deixar à maioria miséria e fraqueza Só com boas leis podem impedirse tais abusos Mas de ordinário os homens abandonam a leis provisórias e à prudência do momento o cuidado de regular os negócios mais importantes quando não os confiam à discrição daqueles mesmos cujo interesse é oporemse às melhores instituições e às leis mais sábias Além disso não é senão depois de terem vagado por muito tempo no meio dos erros mais funestos depois de terem exposto mil vezes a própria liberdade e a própria existência que cansados de sofrer reduzidos aos últimos extremos os homens se determinam a remediar os males que os afligem Então finalmente abrem os olhos a essas verdades palpáveis que por sua simplicidade mesma escapam aos espíritos vulgares incapazes de analisar os objetos e acostumados a receber sem exame e sobre palavra todas as impressões que se lhes queiram dar Abramos a história veremos que as leis que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres não foram o mais das vezes senão o instrumento das paixões da minoria ou o produto do acaso e do momento e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim todo o bemestar possível para a maioria Felizes as nações se há algumas que não esperaram que revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientação para o bem e que mediante leis sábias apressaram a passagem de um para o outro Como é digno de todo o reconhecimento do gênero humano o filósofo6 que do fundo do seu retiro obscuro e desprezado teve a coragem de lançar na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo infrutíferas das verdades úteis As verdades filosóficas por toda parte divulgadas através da imprensa revelaram enfim as verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos e os povos entre si O comércio animouse e entre as nações elevouse uma guerra industrial a única digna dos homens sábios e dos povos policiados Mas se as luzes do nosso século já produziram alguns resultados longe estão de ter dissipado todos os preconceitos que tínhamos Ninguém se levantou senão frouxamente contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais Ninguém se ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais essa parte da legislação tão importante quanto descurada em toda a Europa Raramente se procurou destruir em seus fundamentos as séries de erros acumulados desde vários séculos e muito poucas pessoas tentaram reprimir pela força das verdades imutáveis os abusos de um poder sem limites e fazer cessar os exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos encaram como um dos seus direitos Entretanto os dolorosos gemidos do fraco sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas ou por delitos quiméricos o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes a incerteza tantos métodos odiosos espalhados por toda parte deveriam ter despertado a atenção dos filósofos essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas O imortal Montesquieu7 só ocasionalmente pode abordar essas importantes matérias Se eu segui as pegadas luminosas desse grande homem é que a verdade é uma e a mesma em toda parte Mas os que sabem pensar e é somente para estes que escrevo saberão distinguir meus passos dos seus Sentirmeei feliz se como ele puder ser objeto do vosso secreto reconhecimento oh vós discípulos obscuros e pacíficos da razão Sentirmeei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito pelo qual as almas sensíveis respondem à voz dos defensores da humanidade Seria este talvez o momento de examinar e distinguir as diferentes espécies de delitos e a maneira de punilos mas o número e a variedade dos crimes segundo as diversas circunstâncias de tempo e de lugar nos lançariam num atalho imenso e fatigante Contentarmeei pois com indicar os princípios mais gerais as faltas mais comuns e os erros mais funestos evitando igualmente os excessos dos que por um amor mal entendido da liberdade procuram introduzir a desordem e dos que desejariam submeter os homens à regularidade dos claustros Mas qual é a origem das penas e qual o fundamento do direito de punir Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes crimes Será a pena de morte verdadeiramente útil necessária indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade Serão justos os tormentos e as torturas Conduzirão ao fim que as leis se propõem Quais os melhores meios de prevenir os delitos Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos Que influência exercem sobre os costumes Todos esses problemas merecem que se procure resolvêlos com essa precisão geométrica que triunfa da destreza dos sofismas das dúvidas tímidas e das seduções da eloqüência Sentirmeia feliz se não tivesse outro mérito além do de ter sido o primeiro que apresentou na Itália com maior clareza o que outras nações ousaram escrever e começam a praticar Mas se ao sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente funesta as bênçãos e as lágrimas de um único inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolarmeiam do desprezo do resto dos homens II ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIR A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder Assim a menor força continuamente aplicada destrói por fim um corpo que pareça sólido porque lhe comunicou um movimento violento Consultemos pois o coração humano acharemos nele os princípios fundamentais do direito de punir Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público Tais quimeras só se encontram nos romances Cada homem só por seus interesses está ligado às diferentes combinações políticas deste globo e cada qual desejaria se fosse possível não estar ligado pelas convenções que obrigam os outros homens Sendo a multiplicação do gênero humano embora lenta e pouco considerável muito superior aos meios que apresentava a natureza estéril e abandonada para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras os primeiros homens até então selvagens se viram forçados a reunirse Formadas algumas sociedades logo se estabeleceram novas na necessidade em que se ficou de resistir às primeiras e assim viveram essas hordas como tinham feito os indivíduos num contínuo estado de guerra entre si As leis foram as condições que reuniram os homens a princípio independentes e isolados sobre a superfície da terra Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservála tornava inútil sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança A soma de todas essas porções de liberdade sacrificadas assim ao bem geral formou a soberania da nação e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo Não bastava porém ter formado esse depósito era preciso protegêlo contra as usurpações de cada particular pois tal é a tendência do homem para o despotismo que ele procura sem cessar não só retirar da massa comum sua porção de liberdade mas ainda usurpar a dos outros Eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para comprimir esse espírito despótico que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis Disse eu que esses meios tiveram de ser sensíveis porque a experiência fez ver quanto a maioria está longe de adotar princípios estáveis de conduta Notase em todas as partes do mundo físico e moral um princípio universal de dissolução cuja ação só pode ser obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente os sentidos e que se fixam nos espíritos para contrabalançar por impressões vivas a força das paixões particulares quase sempre opostas ao bem geral Qualquer outro meio seria insuficiente Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos presentes os mais sábios discursos a eloqüência mais arrebatadora as verdades mais sublimes não passam para elas de um freio impotente que logo despedaçam Por conseguinte só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela isto é precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantêlo na posse do resto O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça é um poder de fato e não de direito8 é uma usurpação e não mais um poder legítimo As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos III CONSEQUÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS A PRIMEIRA conseqüência desses princípios é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador que representa toda a sociedade unida por um contrato social Ora o magistrado que também faz parte da sociedade não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei e do momento em que o juiz é mais severo do que a lei ele é injusto pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado Seguese que nenhum magistrado pode mesmo sob o pretexto do bem público aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão A segunda conseqüência é que o soberano que representa a própria sociedade só pode fazer leis gerais às quais todos devem submeterse não lhe compete porém julgar se alguém violou essas leis Com efeito no caso de um delito há duas partes o soberano que afirma que o contrato social foi violado e o acusado que nega essa violação É preciso pois que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação Esse terceiro é o magistrado cujas sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há Em terceiro lugar mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse reprovada pela filosofia mãe das virtudes benéficas e por essa razão esclarecida que prefere governar homens felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos mesmo que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que se lhes atribui o de impedir os crimes bastará provar que essa crueldade é inútil para que se deva considerála como odiosa revoltante contrária a toda justiça e à própria natureza do contrato social IV DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS RESULTA ainda dos princípios estabelecidos precedentemente que os juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais pela razão mesma de que não são legisladores Os juizes não receberam as leis como uma tradição doméstica ou como um testamento dos nossos antepassados que aos seus descendentes deixaria apenas a missão de obedecer Recebemnas da sociedade viva ou do soberano que é representante dessa sociedade como depositário legítimo do resultado atual da vontade de todos Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções9 essas velhas convenções são nulas pois não puderam ligar vontades que não existiam Não se pode sem injustiça exigir sua execução seria reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos As leis emprestam sua força da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei Qual será pois o legítimo intérprete das leis O soberano isto é o depositário das vontades atuais de todos e não o juiz cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis O juiz deve fazer um silogismo perfeito A maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme ou não à lei a conseqüência a liberdade ou a pena Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais ou se o fizer por conta própria tudo se torna incerto e obscuro Nada mais perigoso do que o axioma comum de que é preciso consultar o espírito da lei Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões Essa verdade me parece demonstrada embora pareça um paradoxo aos espíritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqüências distantes mas mil vezes mais funestas de um só princípio falso estabelecido numa nação Todos os nossos conhecimentos todas as nossas idéias se mantêm Quanto mais complicadas tanto maiores são as suas relações e resultados Cada homem tem sua maneira própria de ver e o mesmo homem em diferentes épocas vê diversamente os mesmos objetos O espírito de uma lei seria pois o resultado da boa ou má lógica de um juiz de uma digestão fácil ou penosa da fraqueza do acusado da violência das paixões do magistrado de suas relações com o ofendido enfim de todas as pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no espírito inconstante do homem Veríamos assim a sorte de um cidadão mudar de face ao passar para outro tribunal e a vida dos infelizes estaria à mercê de um falso raciocínio ou do mau humor do juiz Veríamos o magistrado interpretar apressadamente as leis segundo as idéias vagas e confusas que se apresentassem ao seu espírito Veríamos os mesmos delitos punidos diferentemente em diferentes tempos pelo mesmo tribunal porque em lugar de escutar a voz constante e invariável das leis ele se entregaria à instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes momentâneos que às vezes produz a observação literal das leis Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador a fazer no texto equívoco de uma lei correções necessárias e fáceis Mas seguindo a letra da lei não se terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos nem essa licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal Quando as leis forem fixas e literais quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita quando enfim a regra do justo e do injusto que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído não for um motivo de controvérsia mas simples questão de fato então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram porque a crueldade dos tiranos é proporcional não às suas forças mas aos obstáculos que se lhes opõem tanto mais funestos quanto ninguém pode livrarse do seu jugo senão submetendose ao despotismo de um só Com leis penais executadas à letra cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável e isso é útil porque tal conhecimento poderá desviálo do crime Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens e isso é justo porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade É verdade também que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à covardia às fraquezas e às complacências cegas estarão porém menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam Tudo eu poderia recear se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entendêlo mas os tiranos não lêem V DA OBSCURIDADE DAS LEIS SE a interpretação arbitrária das leis é um mal também o é a sua obscuridade pois precisam ser interpretadas Esse inconveniente é bem maior ainda quando as leis não são escritas em língua vulgar10 Enquanto o texto das leis não for um livro familiar uma espécie de catecismo enquanto forem escritas numa língua morta e ignorada do povo e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos oráculos o cidadão que não puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes das leis Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo e quanto mais homens houver que o lerem tanto menos delitos haverá pois não se pode duvidar que no espirito daquele que medita um crime o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à eloqüência das paixões Que pensar dos homens quando se reflete que as leis da maior parte das nações estão escritas em línguas mortas e que esse costume bárbaro ainda subsiste nos países mais esclarecidos da Europa Dessas últimas reflexões resulta que sem um corpo de leis escritas jamais uma sociedade poderá tomar uma forma de governo fixo em que a força resida no corpo político e não nos membros desse corpo em que as leis não possam alterarse e destruir se pelo choque dos interesses particulares nem reformarse senão pela vontade geral A razão e a experiência fizeram ver quantas tradições humanas se tornam mais duvidosas e mais contestadas à medida que a gente se afasta de sua fonte Ora se não existe um momento estável do pacto social como resistirão as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e das paixões Vêse por aí igualmente a utilidade da imprensa que pode só ela tornar todo o público e não alguns particulares depositário do código sagrado das leis Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intriga que não pode suportar a luz e que finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme Se agora na Europa diminuem esses crimes atrozes que assombravam nossos pais se saímos enfim desse estado de barbárie que tornava nossos antepassados ora escravos ora tiranos é à imprensa que o devemos Os que conhecem a história de dois ou três séculos e do nosso podem ver a humanidade a generosidade a tolerância mútua e as mais doces virtudes nasceram no seio do luxo e da indolência Quais foram ao contrário as virtudes dessas épocas que tão sem propósitos se chamam séculos da boa fé e da simplicidade antiga A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição a avareza e a ambição de um pequeno número de homens poderosos inundavam de sangue humano os palácios dos grandes e os tronos dos reis Eram traições secretas e morticínios públicos O povo só encontrava na nobreza opressores e tiranos e os ministros do Evangelho manchados na carnificina e as mãos ainda sangrentas ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de misericórdia e de paz Os que se levantam contra a pretensa corrupção do grande século em que vivemos não acharão ao menos que esse quadro abominável possa convirlhe VI DA PRISÃO OUTORGASE em geral aos magistrados encarregados de fazer as leis um direito contrário ao fim da sociedade que é a segurança pessoal refirome ao direito de prender discricionariamente os cidadãos de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos e por conseguinte de deixar livres os que eles protegem mau grado todos os indícios do delito Como se tornou tão comum um erro tão funesto Embora a prisão difira das outras penas por dever necessariamente preceder a declaração jurídica do delito nem por isto deixa de ter como todos os outros gêneros de castigos o caráter essencial de que só a lei deve determinar o caso em que é preciso empregála Assim a lei deve estabelecer de maneira fixa por que indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatório O clamor público a fuga as confissões particulares o depoimento de um cúmplice do crime as ameaças que o acusado pode fazer seu ódio inveterado ao ofendido um corpo de delito existente e outras presunções semelhantes bastam para permitir a prisão de um cidadão Tais indícios devem porém ser especificados de maneira estável pela lei e não pelo juiz cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade pública quando não são simplesmente a aplicação particular de uma máxima geral emanada do código das leis À medida que as penas forem mais brandas quando as prisões já não forem a horrível mansão do desespero e da fome quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão as leis poderão contentarse com indícios mais fracos para ordenar a prisão A prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida Entre os romanos quantos cidadãos não vemos acusados anteriormente de crimes hediondos mas em seguida reconhecidos inocentes receberem da veneração do povo os primeiros cargos do Estado Porque é tão diferente em nossos dias a sorte de um inocente preso É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a idéia da força e do poder em lugar da justiça é porque se lançam indistintamente na mesma masmorra o inocente suspeito e o criminoso convicto é porque a prisão entre nós é antes um suplício que um meio de deter um acusado é porque finalmente as forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação estão separadas das que mantêm as leis no interior quando deveriam estar estreitamente unidas Na opinião pública as prisões militares desonram bem menos do que as prisões civis Se as tropas do Estado reunidas sob a autoridade das leis comuns sem contudo dependerem imediatamente dos magistrados fossem encarregadas da guarda das prisões a mancha de infâmia desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos militares porque em geral a infâmia como tudo o que depende das opiniões populares se liga mais à forma do que ao fundo Mas como as leis e os costumes de um povo estão sempre atrasados de vários séculos em relação às luzes atuais conservamos ainda a barbárie e as idéias ferozes dos caçadores do norte nossos selvagens antepassados Os nossos costumes e as nossas leis retardatárias estão bem longe das luzes dos povos Ainda estamos dominados pelos preconceitos bárbaros que nos legaram os nossos avós os bárbaros caçadores do norte VII DOS INDÍCIOS DO DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOS EIS um teorema geral que pode ser muito útil para calcular a certeza de um fato e principalmente o valor dos indícios de um delito Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si isto é quando os indícios do delito não se sustentam senão uns pelos outros quando a força de várias provas depende da verdade de uma só o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato merecem pouca consideração porque destruindo a única prova que parece certa derrubais todas as outras Mas quando as provas são independentes isto é quando cada indício se prova à parte quanto mais numerosos forem esses indícios tanto mais provável será o delito porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes Não se admirem de verme empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que para merecerem um castigo devem ser certos porque a rigor toda certeza moral é apenas uma probabilidade que merece contudo ser considerada como uma certeza quando todo homem de bom senso é forçado a darlhe o seu assentimento por uma espécie de hábito natural que resulta da necessidade de agir que é anterior a toda especulação A certeza que se exige para convencer um culpado é pois a mesma que determina todos os homens nos seus mais importantes negócios As provas de um delito podem distinguirse em provas perfeitas e provas imperfeitas As provas perfeitas são as que demonstram positivamente que é impossível que o acusado seja inocente As provas são imperfeitas quando não excluem a possibilidade da inocência do acusado Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a condenação se se quiser porém condenar sobre provas imperfeitas como cada uma dessas provas não estabelece a impossibilidade da inocência do acusado é preciso que sejam em número muito grande para valerem uma prova perfeita isto é para provarem todas juntas que é impossível que o acusado não seja culpado Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas às quais o acusado nada responde de satisfatório embora deva se é inocente ter meios de justificarse se tornam por isso mesmo provas perfeitas É todavia mais fácil sentir essa certeza moral de um delito do que definila exatamente Eis o que me faz encarar como sábia a lei que em algumas nações dá ao juiz principal assessores que o magistrado não escolheu mas que a sorte designou livremente porque então a ignorância que julga por sentimento está menos sujeita ao erro do que homem instruído que decide segundo a incerta opinião Quando as leis são claras e precisas o dever do juiz limitase à constatação do fato Se são necessárias destreza e habilidade na investigação das provas de um delito se se requerem clareza e precisão na maneira de apresentar o seu resultado para julgar segundo esse mesmo resultado basta o simples bomsenso guia menos enganador do que todo o saber de um juiz acostumado a só procurar culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os seus estudos Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma ciência Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais porque quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidadão todos os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar Ora o desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vitima do infortúnio e a indignação que experimenta o homem de condição medíocre ao ver o culpado que está acima dele por sua condição são sentimentos perigosos que não existem nos julgamentos de que falo Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais os juizes devem ser escolhidos metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido para contrabalançar assim os interesses pessoais que modificam mau grado nosso as aparências dos objetos e para só deixar falar a verdade e as leis Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número dos juizes que lhe forem suspeitos e se o acusado gozar constantemente desse direito exercêloá com reserva porque de outro modo pareceria condenarse a si mesmo Sejam públicos os julgamentos sejamno também as provas do crime e a opinião que é talvez o único laço das sociedades porá freio à violência e às paixões O povo dirá Não somos escravos mas protegidos pelas leis Esse sentimento de segurança que inspira a coragem eqüivale a um tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros interesses Não entrarei em outros pormenores sobre as precauções que exige o estabelecimento dessas espécies de instituições Para aqueles aos quais é necessário tudo dizer tudo eu diria inutilmente VIII DAS TESTEMUNHAS É IMPORTANTE em toda boa legislação determinar de maneira exata o grau de confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas necessárias para constatar o delito Todo homem razoável isto é todo homem que puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros homens poderá ser recebido em testemunho Mas a confiança que se lhe der deve medirse pelo interesse que ele tem de dizer ou não dizer a verdade É pois por motivos frívolos e absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as mulheres por causa de sua franqueza nem os condenados porque estes morreram civilmente nem as pessoas com nota de infâmia porque em todos esses casos uma testemunha pode dizer a verdade quando não tem nenhum interesse em mentir Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre os negócios deste mundo um dos mais notáveis é o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado já condenado Graves jurisconsultos fazem este raciocínio Este homem foi atingido por morte civil ora um morto já não é capaz de nada Muitas vítimas se sacrificaram a essa vã metáfora e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o direito de preferência sobre as formas judiciárias Sem dúvida é preciso que os depoimentos de um culpado já condenado não possam retardar o curso da justiça mas porque após a sentença não conceder aos interesses da verdade e à terrível situação do culpado alguns instantes ainda para justificar se possível ou aos seus cúmplices ou a si próprio com depoimentos novos que mudam a natureza do fato As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias nos processos criminais ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade e segundo as regras e não precipitadamente ditados polo interesse ou finalmente porque a maior parte dos homens escravos do hábito e mais inclinados a sentir do que raciocinar fazem assim uma idéia mais augusta das funções do magistrado A verdade muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo As formalidades porém devem ser fixadas por leis nos limites em que não possam prejudicar a verdade De outro modo seria uma nova fonte de inconvenientes funestos Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse em mentir Deve pois concederse à testemunha mais ou menos confiança à proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham Uma só testemunha não basta porque negando o acusado o que a testemunha afirma não há nada de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente11 Deve darse às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes são os crimes e mais inverosímeis as circunstâncias Tais são por exemplo as acusações de magia e as ações gratuitamente cruéis No primeiro caso é melhor acreditar que as testemunhas mentem porque é mais comum ver vários homens caluniarem de concerto por ódio ou por ignorância do que ver um só homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado Da mesma forma não se deve admitir com precipitação a acusação de uma crueldade sem motivos porque o homem só é cruel por interesse por ódio ou por temor O coração humano é incapaz de um sentimento inútil todos os seus sentimentos são o resultado das impressões que os objetos causaram sobre os sentidos Deve igualmente darse menos crédito a um homem que é membro de uma ordem ou de uma casta ou de uma sociedade particular cujos costumes e máximas são em geral desconhecidos ou diferem dos usos comuns porque além de suas próprias paixões esse homem tem ainda as paixões da sociedade da qual faz parte Enfim os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime porque o tom os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes idéias que os homens ligam a suas palavras alteram e modificam de tal modo os discursos que é quase impossível repetilos com exatidão As ações violentas que constituem os verdadeiros delitos deixam traços notáveis na maioria das circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam mas as palavras não deixam vestígio e só subsistem na memória quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas dos que as ouviram É pois infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações pois o número das circunstâncias que se alegam para provar as ações fornece ao acusado mais recursos para justificarse ao passo que um delito de palavras não apresenta de ordinário nenhum meio de justificação IX DAS ACUSAÇÕES SECRETAS AS acusações secretas são um abuso manifesto mas consagrado e tornado necessário em vários governos pela fraqueza de sua constituição Tal uso torna os homens falsos e pérfidos Aquele que suspeita um delator no seu concidadão vê nele logo um inimigo Costumam então mascararse os próprios sentimentos e o hábito de ocultálos a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo Como os homens que chegaram a esse ponto funesto são dignos de piedade Desorientados sem guia e sem princípios estáveis vagam ao acaso no vasto mar da incerteza preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaçam Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes Os prazeres duráveis da tranqüilidade e da segurança lhes são desconhecidos Se gozaram apressadamente e na confusão de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre o triste curso de sua desgraçada vida bastarão para consolálos de ter vivido Será entre tais homens que encontraremos soldados intrépidos defensores da pátria e do trono Acharemos entre eles magistrados incorruptíveis que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do soberano com uma eloqüência livre e patriótica que deponham ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos de todos os cidadãos que levem ao palácio dos grandes e ao humilde teto do pobre a segurança a paz a confiança e que dêem ao trabalho e à indústria a esperança de uma sorte cada vez mais doce É sobretudo este último sentimento que reanima os Estados e lhes dá uma vida nova Quem poderá defenderse da calúnia quando esta se arma com o escudo mais sólido da tirania o sigilo Miserável governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada súdito e se vê forçado para garantir a tranqüilidade pública a perturbar a de cada cidadão Quais são pois os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusações e as penas secretas A tranqüilidade pública A segurança e a manutenção da forma de governo É mister confessar que estranha constituição é aquela em que o governo que tem por si a força e a opinião ainda mais poderosa do que a força parece todavia temer cada cidadão Receiase que o acusador não esteja em segurança As leis são então insuficientes para defendêlo e os súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis Desejarseia salvar o delator da infâmia a que se expõe Seria então confessar que se autorizam as calúnias secretas mas que se punem as calúnias públicas Apoiarseão na natureza do delito Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo úteis ao público terá razão as acusações e os julgamentos nesse caso jamais seriam bastante secretos Pode haver porém um delito isto é uma ofensa à sociedade que não seja do interesse de todos punir publicamente Respeito todos os governos não falo de nenhum em particular e sei que há circunstâncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes à constituição de um Estado que não parece possível desarraigálos sem destruir o corpo político Mas se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo minha mão trêmula se recusaria a autorizar as acusações secretas julgaria ver toda a posteridade responsabilizarme pelos males atrozes que elas acarretam Já o disse Montesquieu as acusações públicas são conformes ao espírito do governo republicano no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos Nas monarquias em que o amor da pátria é muito fraco pela própria natureza do governo é sábia a instituição de magistrados encarregados de acusar em nome do público os infratores das leis Mas todo governo republicano ou monárquico deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu se ele for culpado X DOS INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS NOSSAS leis proíbem os interrogatórios sugestivos isto é os que se fazem sobre o fato mesmo do delito porque segundo os nossos jurisconsultos só se deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as circunstâncias que o acompanham Um juiz não pode contudo permitir as questões diretas que sugiram ao acusado uma resposta imediata O juiz que interroga dizem os criminalistas só deve ir ao fato indiretamente e nunca em linha reta Se se estabeleceu esse método para evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem acusarse a si mesmo qualquer que tenha sido o fim visado com a proibição dos interrogatórios sugestivos fezse cair as leis numa contradição bem notória pois que ao mesmo tempo se autorizou a tortura Haverá com efeito interrogatório mais sugestivo do que a dor O celerado robusto que pode evitar uma pena longa e rigorosa sofrendo com força tormentos de um instante guarda um silêncio obstinado e se vê absolvido Mas a questão arranca ao homem fraco uma confissão pela qual ele se livra da dor presente que o afeta mais fortemente do que todos os males futuros E se um interrogatório especial é contrário à natureza obrigando o acusado a acusarse a si mesmo não será ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as convulsões da dor Os homens porém se ocupam muito mais em sua norma de conduta com a diferença das palavras do que com a das coisas Observemos finalmente que aquele que se obstina a não responder ao interrogatório a que é submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis É mister que essa pena seja muito pesada porque o silêncio de um criminoso perante o juiz que o interroga é para a sociedade um escândalo e a justiça uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possível Mas essa pena particular já não é necessária quando o crime já foi constatado e o criminoso convencido pois nesse caso o interrogatório se torna inútil Semelhantemente as confissões do acusado não são necessárias quando provas suficientes demonstraram que ele é evidentemente culpado do crime de que se trata Este último caso é o mais ordinário e a experiência mostra que na maior parte dos processos criminais os culpados negam tudo XI DOS JURAMENTOS OUTRA contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade quando ele tem o maior interesse em calála Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição Como se o mais das vezes a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião A história de todos os séculos prova que esse dom sagrado do céu é a coisa de que mais se abusa E como a respeitarão os celerados se ela é diariamente ultrajada pelos homens considerados mais sábios e mais virtuosos Os motivos que a religião opõe ao temor dos tormentos e ao amor à vida são quase sempre fracos demais porque não impressionam os sentidos As coisas do céu estão submetidas a leis inteiramente diversas das da terra Porque comprometer essas leis umas com as outras Porque colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus ou perderse É não deixar ao acusado senão a escolha de ser mau cristão ou mártir do juramento Destróise dessa forma toda a força dos sentimentos religiosos único apoio da honestidade no coração da maior parte dos homens e pouco a pouco os juramentos não são mais do que uma simples formalidade sem conseqüências Consultese a experiência e se reconhecerá que os juramentos são inúteis pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade A razão faz ver que assim deve ser porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são vãs e conseguintemente funestas Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse diretamente no meio das águas de um rio para interromperlhe o curso ou o dique é imediatamente derrubado pela torrente que o leva ou se forma debaixo dele um abismo que o mina e o destrói insensivelmente XII DA QUESTÃO OU TORTURA É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo quer para arrancar dele a confissão do crime quer para esclarecer as contradições em que caiu quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado mas do qual poderia ser culpado quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo O direito da força só pode pois autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado Eis uma proposição bem simples ou o delito é certo ou é incerto Se é certo só deve ser punido com a pena fixada pela lei e a tortura é inútil pois já não se tem necessidade das confissões do acusado Se o delito é incerto não é hediondo atormentar um inocente Com efeito perante as leis é inocente aquele cujo delito não se provou Qual o fim político dos castigos o terror que imprimem nos corações inclinados ao crime Mas que se deve pensar das torturas esses suplícios secretos que a tirania emprega na obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado Importa que nenhum delito conhecido fique impune mas nem sempre é útil descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza Um crime já cometido para o qual já não há remédio só pode ser punido pela sociedade política para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude se é provável que um cidadão prefira seguilas a violálas o juiz que ordena a tortura expõe se constantemente a atormentar inocentes Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz A lei que autoriza a tortura é uma lei que diz Homens resisti à dor A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser e o direito inalienável de vos defenderdes mas eu quero criar em vós um sentimento inteiramente contrário quero inspirarvos um ódio de vós mesmos ordenovos que vos tomeis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da bárbara legislação dos nossos antepassados que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo as da água fervendo e a sorte incerta dos combates Como se os elos dessa corrente eterna cuja origem está no seio da Divindade pudessem desunirse ou romperse a cada instante ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos homens A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior considerada como prova do crime Todavia essa diferença é mais aparente do que real O acusado é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir sem fraude os efeitos do fogo e da água fervendo Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam e a sensibilidade de todo homem é limitada Ora se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar no momento a via mais curta para evitar os tormentos atuais Dessa forma o acusado já não pode deixar de responder pois não poderia escapar às impressões do fogo e da água O inocente exclamará então que é culpado para fazer cessar torturas que já não pode suportar e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer toda diferença entre ambos A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto É esse de ordinário o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade desse uso digno dos canibais e que os romanos mau grado a dureza dos seus costumes reservavam exclusivamente aos escravos vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado De dois homens igualmente inocentes ou igualmente culpados aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido o mais fraco porém será condenado em virtude deste raciocínio Eu juiz preciso encontrar um culpado Tu que és vigoroso soubeste resistir à dor e por isso eu te absolvo Tu que és fraco cedeste à força dos tormentos portanto eu te condeno Bem sei que uma confissão arrancada pela violência da tortura não tem valor algum mais se não confirmares agora o que confessaste farteei atormentar de novo O resultado da questão depende pois de temperamento e de cálculo que varia em cada homem na proporção de sua força e sensibilidade de maneira que para prever o resultado da tortura bastaria resolver o problema seguinte mais digno de um matemático do que de um juiz Conhecidas a força dos músculos e a sensibilidade das fibras de um acusado achar o grau de dor que o obrigará a confessarse culpado de determinado crime Interrogam um acusado para conhecer a verdade mas se tão dificilmente a distinguem no ar nos gestos e na fisionomia de um homem tranqüilo como a descobrirão nos traços descompostos pelas convulsões da dor quando todos os sinais que traem às vezes a verdade na fronte dos culpados estiverem alterados e confundidos Toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais se distingue às vezes a verdade da mentira Resulta ainda do uso das torturas uma conseqüência bastante notável é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado Com efeito o inocente submetido à questão tem tudo contra si ou será condenado se confessar o crime que não cometeu ou será absolvido mas depois de sofrer tormentos que não mereceu O culpado ao contrário tem por si um conjunto favorável será absolvido se suportar a tortura com firmeza e evitará os suplícios de que foi ameaçado sofrendo uma pena muito mais leve Assim o inocente tem tudo que perder o culpado só pode ganhar Essas verdades são sentidas afinal embora confusamente pelos próprios legisladores mas nem por isso suprimiram a tortura Limitamse a achar que as confissões do acusado pelos tormentos são nulas se não forem em seguida confirmadas pelo juramento Se porém recusarse a confirmálas será torturado de novo Em alguns países e segundo certos jurisconsultos essas odiosas violências não são permitidas mais do que três vezes em outros porém e segundo outros doutores o direito de torturar fica inteiramente à discrição do juiz É inútil fundamentar essas reflexões com os inumeráveis exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas Não há povo não há século que não possa citar os seus Os homens são sempre os mesmos vêem as coisas presentes sem preocuparse com as conseqüências Não há homem que elevando suas idéias além das primeiras necessidades da vida não tenha ouvido a voz interior da natureza chamálo a si e não tenha sido tentado a se lançar de novo nos braços dela Mas o uso esse tirano das almas vulgares o comprime e o retém no erro O segundo motivo pelo qual se submete à questão um homem que se supõe culpado é a esperança de esclarecer as contradições em que ele caiu nos interrogatórios que o fizeram sofrer Mas o medo do suplício a incerteza do julgamento que vai ser pronunciado a solenidade dos processos a majestade do juiz a própria ignorância igualmente comum à maior parte dos acusados inocentes ou culpados são outras tantas razões para fazer cair em contradição não só a inocência que treme como o crime que procura ocultarse Poderseia crer que as contradições tão ordinárias no homem ainda mesmo quando este tem o espírito tranqüilo não se multiplicarão nesses momentos de perturbação nos quais a idéia de escapar a um perigo iminente absorve toda a alma Em terceiro lugar submeter um acusado à tortura para descobrir se ele é culpado de outros crimes além daquele de que é acusado é fazer este odioso raciocínio Tu és culpado de um delito é pois possível que tenhas cometido cem outros Essa suspeita me preocupa quero certificarme vou empregar minha prova de verdade As leis te farão sofrer pelos crimes que cometeste pelos que poderias cometer e por aqueles dos quais eu quero considerarte culpado Aplicase igualmente a questão a um acusado para descobrir os seus cúmplices Mas se está provado que a tortura não é nada menos do que um meio certo de descobrir a verdade como fará ela conhecer os cúmplices quando esse conhecimento é uma das verdades que se procuram É certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente acusará a outrem Além disso será justo atormentar um homem pelos crimes de outro homem Não podem descobrirse os cúmplices pelos interrogatórios do acusado e das testemunhas pelo exame das provas e do corpo de delito em suma por todos os meios empregados para constatar o delito Os cúmplices fogem quase sempre logo que o companheiro é preso Só a incerteza da sorte que os espera condenaos ao exílio e livra a sociedade dos novos atentados que poderia recear deles ao passo que o suplício do culpado que ela tem nas mãos amedronta os outros homens e os desvia do crime sendo esse o único fim dos castigos A pretensa necessidade de purgar a infâmia é ainda um dos absurdos motivos do uso das torturas Um homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o crime enquanto lhe quebram os ossos Poderá a dor que é uma sensação destruir a infâmia que é uma combinação moral Será a tortura um cadinho e a infâmia um corpo misto que deponha nele tudo o que tem de impuro Em verdade abusos tão ridículos não deveriam ser tolerados no século XVIII A infâmia não é um sentimento sujeito às leis ou regulado pela razão É obra exclusiva da opinião Ora como a tortura torna infame aquele que a sofre é absurdo que se queira lavar desse modo a infâmia com a própria infâmia Não é difícil remontar a origem dessa lei estranha porque os absurdos adotados por uma nação inteira se apoiam sempre em outras idéias estabelecidas e respeitadas nessa mesma nação O uso de purgar a infâmia pela tortura parece ter sua fonte nas práticas da religião que tanta influência exerce sobre o espírito dos homens de todos os países e de todos os tempos A fé nos ensina que as nódoas contraídas pela fraqueza humana quando não mereceram a cólera eterna do Ser supremo são purificadas em outro mundo por um fogo incompreensível Ora a infâmia é uma nódoa civil e uma vez que a dor e o fogo do purgatório apagam as manchas espirituais porque os tormentos da questão não tirariam a nódoa civil da infâmia Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao uso que observam certos tribunais de exigir as confissões do culpado como essenciais para sua condenação Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitência no qual a confissão dos pecados é parte necessária dos sacramentos É dessa forma que os homens abusam das luzes da revelação e como essas luzes são as únicas que iluminam os séculos da ignorância a elas é que a dócil humanidade recorreu em todas as ocasiões mas para fazer as aplicações mais falsas e mais infelizes A solidez dos princípios que expusemos neste capítulo era conhecida dos legisladores romanos que só submetiam à tortura os escravos espécie de homens sem direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil Esses princípios foram adotados na Inglaterra nação que prova a excelência de suas leis pelos seus progressos nas ciências pela superioridade do seu comércio pela extensão de suas riquezas por seu poder e por freqüentes exemplos de coragem e de virtude política A Suécia igualmente convencida da injustiça da tortura já não permite o seu uso Esse infame costume foi abolido por um dos mais sábios monarcas da Europa12 que elevou a filosofia ao trono e que legislador benévolo amigo dos súditos os tornou iguais e livres sob a dependência das leis única liberdade que homens razoáveis podem esperar da sociedade única igualdade que esta pode admitir Enfim as leis militares não admitiram a tortura e se esta pudesse existir em alguma parte seria sem dúvida nos exércitos compostos em grande parte da escória das nações Coisa espantosa para quem não refletiu sobre a tirania do uso São homens endurecidos nos morticínios e familiarizados com o sangue que dão aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade XIII DA DURAÇÃO DO PROCESSO E DA PRESCRIÇÃO QUANDO o delito é constatado e as provas são certas é justo conceder ao acusado o tempo e os meios de justificarse se lhe for possível é preciso porém que esse tempo seja bastante curto para não retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime se se quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados Um mal entendido amor da humanidade poderá condenar logo essa presteza a qual porém será aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos múltiplos que as extremas procrastinações da legislação fazem correr à inocência Cabe exclusivamente às leis fixar o espaço de tempo que se deve empregar para a investigação das provas do delito e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa Se o juiz tivesse esse direito estaria exercendo as funções do legislador Quando se trata desses crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens se os mesmos forem provados não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga Não é esse todavia o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis é mister fixar um tempo após o qual o acusado bastante punido pelo exílio voluntário possa reaparecer sem recear novos castigos Com efeito a obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito a necessidade do exemplo e permite devolver ao cidadão sua condição e seus direitos com o poder de tornálo melhor Só posso indicar aqui princípios gerais Para fazer sua aplicação precisa é mister considerar a legislação existente os usos do país as circunstâncias Limitome a acrescentar que para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas se as leis abreviassem ou prolongassem a duração dos processos e o tempo da prescrição segundo a gravidade do delito se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem contados como uma parte da pena merecida pelo culpado chegarseia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos suaves para um grande número de delitos Mas o tempo que se emprega na investigação das provas e o que fixa a prescrição não devem ser prolongados em razão da gravidade do crime que se persegue porque enquanto um crime não está provado quanto mais atroz menos verossímil é ele Será preciso pois às vezes reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a prescrição Esse princípio parece à primeira vista contraditório em relação ao que estabeleci mais acima e segundo o qual podem aplicarse penas iguais para crimes diferentes considerando como partes do castigo o exílio voluntário ou a prisão que precedeu a sentença Procurarei explicarme com mais clareza Podem distinguirse duas espécies de delitos A primeira é a dos crimes atrozes que começa pelo homicídio e que compreende toda a progressão dos mais horríveis assassínios Incluiremos na segunda espécie os delitos menos hediondos do que o homicídio Essa distinção é tirada da natureza A segurança das pessoas é um direito natural a segurança dos bens é um direito da sociedade Há bem poucos motivos capazes de levar o homem a abafar no coração o sentimento natural da compaixão que o desvia do assassínio Mas como cada um é ávido de buscar o seu bemestar como o direito de propriedade não está gravado nos corações sendo simples obra das convenções sociais há uma porção de motivos que induzem os homens a violar tais convenções Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas espécies de delitos é preciso colocálas sobre bases diferentes Nos grandes crimes pela razão mesma de que são mais raros deve diminuirse a duração da instrução e do processo porque a inocência do acusado é mais provável do que o crime Devese porém prolongar o tempo da prescrição Por esse meio que acelera a sentença definitiva tirase aos maus a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores são os crimes Ao contrário nos delitos menos consideráveis e mais comuns é preciso prolongar o tempo dos processos porque a inocência do acusado é menos provável e diminuir o tempo fixado para a prescrição porque a impunidade é menos perigosa É mister igualmente notar que se não se atender a isso essa diferença de processo entre as duas espécies de delitos pode dar ao criminoso a esperança da impunidade esperança tanto mais fundada quanto o crime for mais hediondo e portanto mais verossímil Observemos porém que um acusado solto por falta de provas não é nem absolvido nem condenado que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a novo exame se se descobrirem novos indícios do seu delito antes de terminar o tempo fixado para a prescrição segundo o crime cometido Tal é pelo menos ao meu ver o critério que se poderia seguir para preservar ao mesmo tempo a segurança dos cidadãos e a sua liberdade sem favorecer uma em detrimento da outra Esses dois bens são igualmente patrimônio inalienável de todos os cidadãos e ambos estão cercados de perigos quando a segurança individual é abandonada ao capricho de um déspota e quando a liberdade é protegida pela desordem tumultuosa Cometemse na sociedade certos crimes que são ao mesmo tempo comuns e difíceis de constatar Desde então pois é quase impossível provar tais crimes a inocência é provável perante a lei E como a esperança da impunidade contribui pouco para multiplicar essas espécies de delitos que têm todos causas diferentes a impunidade raramente é perigosa Nesse caso podem pois diminuirse igualmente o tempo dos processos e o da prescrição Mas segundo os princípios aceitos é principalmente para os crimes difíceis de provar como o adultério a pederastia que se admitem arbitrariamente as presunções as conjecturas as semiprovas como se um homem pudesse ser semiinocente ou semi culpado e merecer ser semiabsolvido ou semipunido É sobretudo nesse gênero de delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o acusado sobre as testemunhas sobre a família inteira do infeliz de quem se suspeita segundo as odiosas lições de alguns criminalistas que escreveram com fria barbárie compilações de iniqüidades que ousam apresentar como regras aos magistrados e como leis às nações Quando se reflete sobre todas essas coisas ése forçado a reconhecer com amargura que a razão quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos Os crimes mais hediondos os delitos mais obscuros e mais quiméricos e portanto os mais inverossímeis são precisamente os que se consideram constatados sobre simples conjecturas e indícios menos sólidos e mais equívocos Dizerseia que as leis e o magistrado só têm interesse em descobrir um crime e não em procurar a verdade e que o legislador não vê que se expõe constantemente ao risco de condenar um inocente pronunciandose sobre crimes inverossímeis ou mal provados À maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente as grandes ações e os grandes crimes e que traz quase sempre juntas as virtudes magnânimas e os crimes monstruosos nos Estados que só se mantêm pela atividade do governo pelo orgulho nacional e pelo concurso das paixões pelo bem público Quanto às nações cujo poderio é consolidado e constantemente sustentado por boas leis as paixões enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo estabelecida do que de melhorála Daí resulta uma conseqüência importante que os grandes crimes nem sempre são a prova da decadência de um povo XIV DOS CRIMES COMEÇADOS DOS CÚMPLICES DA IMPUNIDADE SE BEM que as leis não possam punir a intenção não é menos verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometêlo merece um castigo mas menos grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido Esse castigo é necessário porque é importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes Mas como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua execução é justo reservar uma pena maior ao crime consumado para deixar àquele que apenas começou o crime alguns motivos que o impeçam de acabálo Deve seguirse a mesma gradação nas penas em relação aos cúmplices se estes não foram todos executantes imediatos Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo comum quanto maior é o perigo tanto mais procurarão tornálo igual para todos Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse executálo porque o risco seria maior em virtude da diferença das penas Há contudo um caso em que a gente deve afastarse da regra que formulamos e é quando o executante do crime recebeu dos cúmplices uma recompensa particular como a diferença do risco foi compensada pela diferença das vantagens o castigo deve ser igual Se tais reflexões parecerem um tanto rebuscadas reflitase que é importantíssimo que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possível para que se ponham de acordo Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus companheiros Esse expediente apresenta certas vantagens mas não está isento de perigos de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição que repugna aos próprios celerados Ela introduz os crimes de covardia bem mais funestos do que os crimes de energia e de coragem porque a coragem é pouco comum e espera apenas uma força benfazeja que a dirija para o bem público ao passo que a covardia muito mais geral é um contágio que infecta rapidamente todas as almas O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime pois que ele não o conhece e as leis descobremlhe a fraqueza implorando o socorro do próprio celerado que as violou Por outro lado a esperança da impunidade para o cúmplice que trai pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis isto é as convenções públicas já não é fiel às convenções particulares Pareceme que uma lei geral que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime seria preferível a uma declaração especial num caso particular preveniria a união dos maus pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em que se pode ter necessidade deles De resto seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator É porém em vão que procuro abafar os remorsos que me afligem quando autorizo as santas leis fiadoras sagradas da confiança pública base respeitável dos costumes a proteger a perfídia a legitimar a traição E que opróbrio para uma nação se os seus magistrados tornados infiéis faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vãs sutilezas para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis Esses monstruosos exemplos não são raros eis porque tanta gente só vê na sociedade política uma máquina complicada na qual os mais hábeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho Eis também o que multiplica esses homens frios insensíveis a tudo o que encanta as almas ternas que só experimentam sensações calculadas e que todavia sabem excitar nos outros os sentimentos mais caros e as paixões mais fortes quando estas são úteis aos seus projetos semelhantes ao músico hábil que sem nada sentir ele próprio tira do instrumento que domina sons tocantes ou terríveis XV DA MODERAÇÃO DAS PENAS AS VERDADES até aqui expostas demonstram à evidência que o fim das penas não pode ser atormentar um ser sensível nem fazer que um crime não cometido seja cometido Como pode um corpo político que longe de se entregar às paixões deve ocuparse exclusivamente com pôr um freio nos particulares exercer crueldades inúteis e empregar o instrumento do furor do fanatismo e da covardia dos tiranos Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida Não Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime Entre as penas e na maneira de aplicálas proporcionalmente aos delitos é mister pois escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e ao mesmo tempo menos cruel no corpo do culpado Quem não estremece de horror ao ver na história tantos tormentos atrozes e inúteis inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sábios Quem poderia deixar de tremer até ao fundo da alma ao ver os milhares de infelizes que o desespero força a retomar a vida selvagem para escapar a males insuportáveis causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a multidão para favorecer unicamente um pequeno número de homens privilegiados Mas a superstição e a tirania os perseguem acusamnos de crimes impossíveis ou imaginários ou então são culpados mas somente de terem sido fiéis às leis da natureza Não importa Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgálos criminosos têm prazer em seus tormentos dilaceramnos com solenidade aplicamlhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática que goza lentamente com suas dores Quanto mais atrozes forem os castigos tanto mais audacioso será o culpado para evitá los Acumulará os crimes para subtrairse à pena merecida pelo primeiro Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática são também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis O mesmo espírito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador punha o punhal nas mãos do assassino e do parricida Do alto do trono o soberano dominava com uma verga de ferro e os escravos só imolavam os tiranos para possuírem novos À medida que os suplícios se tornam mais cruéis a alma semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam endurecese pelo espetáculo renovado da barbárie A gente se habitua aos suplícios horríveis e depois de cem anos de crueldades multiplicadas as paixões sempre ativas são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime Devem contarse ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e por conseguinte tirânica Os males que os homens conhecem por funesta experiência regularão melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram Suponde duas nações entre aquelas em que as penas são proporcionais aos delitos Sendo a escravidão perpétua o maior castigo em uma e o suplício o maior em outra é certo que essas duas penas inspirarão em cada uma igual terror E se houvesse uma razão para transportar para o primeiro povo os castigos mais rigorosos estabelecidos no segundo a mesma razão conduziria a aumentar para este a crueldade dos suplícios passando insensivelmente do uso da roda para tormentos mais lentos e mais requintados em suma para o último refinamento da ciência dos tiranos A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos contrários ao fim do seu estabelecimento que é prevenir o crime Em primeiro lugar é muito difícil estabelecer uma justa proporção entre os delitos e as penas porque embora uma crueldade industriosa tenha multiplicado as espécies de tormentos nenhum suplício pode ultrapassar o último grau da força humana limitada pela sensibilidade e a organização do corpo do homem Além desses limites se surgirem crimes mais hediondos onde se encontrarão penas bastante cruéis Em segundo lugar os suplícios mais horríveis podem acarretar às vezes a impunidade A energia da natureza humana é circunscrita no mal como no bem Espetáculos demasiado bárbaros só podem ser o resultado dos furores passageiros de um tirano e não ser sustentados por um sistema constante de legislação Se as leis são cruéis ou logo serão modificadas ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime impune Termino por esta reflexão que o rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da nação São necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o espírito grosseiro de um povo que sai do estado selvagem Para abater o leão furioso é necessário o raio cujo ruído só faz irritálo Mas à medida que as almas se abrandam no estado de sociedade o homem se torna mais sensível e se se quiser conservar as mesmas relações entre o objeto e a sensação as penas devem ser menos rigorosas XVI DA PENA DE MORTE ANTE o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram os homens melhores eu quero examinar se a pena de morte é verdadeiramente útil e se é justa num governo sábio Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes Esse direito não tem certamente a mesma origem que as leis que protegem A soberania e as leis não são mais do que a soma das pequenas porções de liberdade que cada um cedeu à sociedade Representam a vontade geral resultado da união das vontades particulares Mas quem já pensou em dar a outros homens o direito de tirar lhe a vida Será o caso de supor que no sacrifício que faz de uma pequena parte de sua liberdade tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência o mais precioso de todos os bens Se assim fosse como conciliar esse princípio com a máxima que proíbe o suicídio Ou o homem tem o direito de se matar ou não pode ceder esse direito a outrem nem à sociedade inteira A pena de morte não se apoia assim em nenhum direito É uma guerra declarada a um cidadão pela nação que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil Se eu provar porém que a morte não é útil nem necessária terei ganho a causa da humanidade A morte de um cidadão só pode ser encarada como necessária por dois motivos nos momentos de confusão em que uma nação fica na alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade nas épocas de confusão em que as leis são substituídas pela desordem e quando um cidadão embora privado de sua liberdade pode ainda por suas relações e seu crédito atentar contra a segurança pública podendo sua existência produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido Mas sob o reino tranqüilo das leis sob uma forma de governo aprovada pela nação inteira num Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela força e pela opinião talvez mais poderosa do que a própria força num país em que a autoridade é exercida pelo próprio soberano em que as riquezas só podem proporcionar prazeres e não poder não pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidadão a menos que a morte seja o único freio capaz de impedir novos crimes A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte nunca deteve celerados determinados a fazer mal Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos vinte anos do reinado da imperatriz da Rússia a benfeitora Izabel13 que deu aos chefes dos povos uma lição mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a pátria só alcança ao preço do sangue dos seus filhos Se os homens a quem a linguagem da razão é sempre suspeita e que só se rendem à autoridade dos antigos usos se recusam à evidência dessas verdades bastarlhesá interrogar a natureza e consultar o próprio coração para testemunhar os princípios que acabam de ser estabelecidos O rigor do castigo causa menos efeito sobre o espírito humano do que a duração da pena porque a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente afetada por uma impressão ligeira mas freqüente do que por um abalo violento mas passageiro Todo ser sensível está submetido ao império do hábito e como é este que ensina o homem a falar a andar a satisfazer suas necessidades é também ele que grava no coração do homem as idéias de moral por impressões repetidas O espetáculo atroz mas momentâneo da morte de um celerado é para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo de um homem privado de sua liberdade tornado até certo ponto uma besta de carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou à sociedade Essa volta freqüente do espectador a si mesmo Se eu cometesse um crime estaria reduzido toda a minha vida a essa miserável condição essa idéia terrível assombraria mais fortemente os espíritos do que o medo da morte que se vê apenas um instante numa obscura distância que lhe enfraquece o horror A impressão produzida pela visão dos suplícios não pode resistir à ação do tempo e das paixões que logo apagam da memória dos homens as coisas mais essenciais Por via de regra as paixões violentas surpreendem vivamente mas o seu efeito não dura Produzirão uma dessas revoluções súbitas que fazem de repente de um homem comum um romano ou um espartano Mas num governo tranqüilo e livre são necessárias menos paixões violentas do que impressões duráveis Para a maioria dos que assistem à execução de um criminoso o suplício deste é apenas um espetáculo para a minoria é um objeto de piedade mesclado de indignação Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador bem mais do que o terror salutar que é o fim da pena de morte Mas as penas moderadas e contínuas só produzem nos espectadores o sentimento do medo No primeiro caso sucede ao espectador do suplício o mesmo que ao espectador do drama e assim como o avaro retorna ao seu cofre o homem violento e injusto retorna às suas injustiças O legislador deve por conseguinte pôr limites ao rigor das penas quando o suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a força do que para punir o crime Para que uma pena seja justa deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os homens do crime Ora não há homem que possa vacilar entre o crime mau grado a vantagem que este prometa e o risco de perder para sempre a liberdade Assim pois a escravidão perpétua substituindo a pena de morte tem todo o rigor necessário para afastar do crime o espírito mais determinado Digo mais encarase muitas vezes a morte de modo tranqüilo e firme uns por fanatismo outros por essa vaidade que nos acompanha mesmo além do túmulo Alguns desesperados fatigados da vida vêem na morte um meio de se livrar da miséria Mas o fanatismo e a vaidade desaparecem nas cadeias sob os golpes em meio às barras de ferro O desespero não lhes põe fim aos males mas os começa Nossa alma resiste mais à violência das dores extremas apenas passageiras do que ao tempo e à continuidade do desgosto Todas as forças da alma reunindose contra males passageiros podem enfraquecerlhes a ação mas todas as suas molas acabam por ceder a penas longas e constantes Numa nação em que a pena de morte é empregada é forçoso para cada exemplo que se dá um novo crime ao passo que a escravidão perpétua de um único culpado põe sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre e se repete Se é mister que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis é preciso que os suplícios sejam freqüentes e desde então é preciso também que os crimes se multipliquem o que provará que a pena de morte não causa toda a impressão que deveria produzir e que é inútil quando julgada necessária Dirseá que a escravidão perpétua é também uma pena rigorosa e por conseguinte tão cruel quanto a morte Responderei que reunindo num ponto todos os momentos infelizes da vida de um escravo sua vida seria talvez mais horrível do que os suplícios mais atrozes mas esses momentos ficam espalhados por todo o curso da vida ao passo que a pena de morte exerce todas as suas forças num só instante A vantagem da pena da escravidão para a sociedade é que amedronta mais aquele que a testemunha do que quem a sofre porque o primeiro considera a soma de todos os momentos infelizes ao passo que o segundo se alheia de suas penas futuras pelo sentimento da infelicidade presente A imaginação aumenta todos os males Aquele que sofre encontra em sua alma endurecida pelo hábito da desgraça consolações e recursos que as testemunhas dos seus males não conhecem porque julgam segundo sua sensibilidade do momento É somente por uma boa educação que se aprende a desenvolver e a dirigir os sentimentos do próprio coração Mas embora os celerados não possam perceber os seus princípios nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocínio Ora eis mais ou menos como raciocina um assassino ou um ladrão que só se afasta do crime pelo medo do poder ou da roda Quais são afinal as leis que devo respeitar e que deixam tão grande intervalo entre mim e o rico O homem opulento recusame com dureza a pequena esmola que lhe peço e me manda para o trabalho que eu jamais conheci Quem fez essas leis Homens ricos e poderosos que jamais se dignaram de visitar a miserável choupana do pobre que não viram repartir um pão grosseiro aos seus pobres filhos famintos e à sua mãe desolada Rompamos as convenções vantajosas somente para alguns tiranos covardes mas funestas para a maioria Ataquemos a injustiça em sua fonte Sim retornarei ao meu estado de independência natural viverei livre provarei por algum tempo os frutos felizes da minha astúcia e da minha coragem À frente de alguns homens determinados como eu corrigirei os enganos da fortuna e verei meus tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos cães Talvez venha uma época de dor e de arrependimento mas essa época será curta e por um dia de sofrimento terei gozado vários anos de liberdade e de prazeres Se a religião se apresentar então ao espírito desse infeliz não o intimidará diminuirá mesmo aos seus olhos o horror do último suplício oferecendolhe a esperança de um arrependimento fácil e da felicidade eterna que é seu fruto Mas aquele que tem diante dos olhos um grande número de anos ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão e na dor exposto ao desprezo dos seus concidadãos dos quais fora um igual escravo dessas leis pelas quais era protegido faz uma comparação útil de todos os males do êxito incerto do crime e do pouco tempo que terá para gozar O exemplo sempre presente dos infelizes que ele vê vítimas da imprudência impressionao muito mais do que os suplícios que podem endurecêlo mas não corrigi lo A pena de morte é ainda funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que dá aos homens Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano as leis cujo fim é suavizar os costumes deveriam multiplicar essa barbaria tanto mais horrível quanto dá a morte com mais aparato e formalidades Não é absurdo que as leis que são a expressão da vontade geral que detestam e punem o homicídio ordenem um morticínio público para desviar os cidadãos do assassínio Quais são as leis mais justas e mais úteis São as que todos proporiam e desejariam observar nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o interesse público Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte Está traçado em caracteres indeléveis nesses movimentos de indignação e de desprezo que nos inspira a simples visão do carrasco que não é contudo senão o executor inocente da vontade pública um cidadão honesto que contribui para o bem geral e que defende a segurança do Estado no interior como o soldado a defende no exterior Qual é pois a origem dessa contradição E porque esse sentimento de horror resiste a todos os esforços da razão É que numa parte recôndita da nossa alma na qual os princípios naturais ainda não foram alterados descobrimos um sentimento que nos grita que um homem não tem nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem e que só a necessidade que estende por toda parte o seu cetro de ferro pode dispor da nossa existência Que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros sagrados da justiça fazer arrastar um culpado à morte com cerimônia com tranqüilidade com indiferença E enquanto o infeliz espera o golpe fatal por entre convulsões e angústias o juiz que acaba de o condenar deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os prazeres da vida e talvez louvarse com secreta complacência pela autoridade que acaba de exercer Não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da tirania que essas formalidades cruéis e refletidas da justiça são simplesmente um pretexto para imolarnos com mais confiança como vítimas sacrificadas ao despotismo insaciável O assassínio que nos aparece como um crime horrível nós o vemos cometer friamente e sem remorso Não poderemos autorizarnos com esse exemplo Pintavamnos a morte violenta como uma cena terrível e é apenas questão de um momento Será menos ainda para aquele que tiver coragem de irlhe ao encontro e de pouparse desse modo tudo o que ela tem de doloroso Tais são os tristes e funestos raciocínios que perdem uma cabeça já disposta ao crime um espírito mais capaz de se deixar conduzir pelos abusos da religião do que pela religião mesma A história dos homens é um imenso oceano de erros no qual se vê sobrenadar uma ou outra verdade mal conhecida Não me oponham pois o exemplo da maior parte das nações que em quase todos os tempos aplicaram a pena de morte contra certos crimes esses exemplos nenhuma força têm contra a verdade que é sempre tempo de reconhecer Nesse caso aprovarseiam os sacrifícios humanos porque estiveram geralmente em uso entre todos os povos primitivos Mas se descubro alguns povos que se abstiveram mesmo durante um curto espaço de tempo do emprego da pena de morte posso prevalecerme disso com razão pois o destino das grandes verdades é não brilhar senão com a duração do relâmpago no meio da longa noite de trevas que envolve o gênero humano Ainda não chegaram os dias felizes em que a verdade eliminará o erro e se tornará apanágio de maioria em que o gênero humano não será iluminado somente pelas verdades reveladas Sinto quanto a voz fraca de um filósofo será facilmente abafada pelos gritos tumultuosos dos fanáticos escravos do preconceito Mas o pequeno número de sábios espalhados pela superfície da terra saberá entenderme seu coração aprovará meus esforços e se mau grado todos os obstáculos que a afastam do trono a verdade pudesse penetrar até aos ouvidos dos príncipes saibam eles que essa verdade lhes leva os votos secretos da humanidade inteira saibam que se protegerem a verdade santa sua glória ofuscará a dos mais famosos conquistadores e a eqüitativa posteridade colocará seus nomes acima dos Titos14 dos Antoninos15 e dos Trajanos16 Feliz o gênero humano se pela primeira vez recebesse leis Hoje que vemos elevados nos tronos da Europa príncipes benfeitores amigos das virtudes pacíficas protetores das ciências e das artes pais dos seus povos e cidadãos coroados quando esses príncipes consolidando sua autoridades trabalham para a felicidade dos seus súditos quando destroem esse despotismo intermediário tanto mais cruel quanto menos solidamente estabelecido quando comprimem os tiranos subalternos que interceptam os votos do povo e os impedem de chegar até ao trono onde seriam escutados quando se considera que se tais príncipes deixam subsistir leis defeituosas é porque são premidos pela extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa série de séculos e protegidos por um certo número de homens interessados que punem todo cidadão esclarecido deve desejar com ardor que o poder desses soberanos ainda aumente e se torne bastante grande para permitirlhes a reforma de uma legislação funesta XVII DO BANIMENTO E DAS CONFISCAÇÕES AQUELE que perturba a tranqüilidade pública que não obedece às leis que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente esse deve ser excluído da sociedade isto é banido Pareceme que se poderiam banir aqueles que acusados de um crime atroz são suspeitos de culpa com maior verossimilhança mas sem estar plenamente convencidos do crime Em casos semelhantes seria mister que uma lei a menos arbitrária e a mais precisa possível condenasse ao banimento aquele que pusesse a nação na fatal alternativa de fazer uma injustiça ou de temer um acusado Seria mister igualmente que essa lei deixasse ao banido o direito sagrado de poder a todo instante provar sua inocência e recuperar os seus direitos Seria mister enfim que houvesse razões mais fortes para banir um cidadão acusado pela primeira vez do que para condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que já tivesse sido chamado à justiça Mas deve aquele que se bane que se exclui para sempre da sociedade de que fazia parte ser ao mesmo tempo privado dos seus bens Essa questão pode ser encarada sob diferentes aspectos A perda dos bens é uma pena maior que a do banimento Deve pois haver casos em que para proporcionar a pena ao crime se confiscarão todos os bens do banido Em outras circunstâncias só será despojado de uma parte de sua fortuna e para certos delitos o banimento não será acompanhado de nenhuma confiscação O culpado poderá perder todos os seus bens se a lei que pronuncia o banimento declara rompidos todos os laços que o ligavam à sociedade porque desde então o cidadão está morto resta somente o homem e perante a sociedade a morte política de um cidadão deve ter as mesmas conseqüências que a morte natural Segundo essa máxima dirseá talvez que é evidente que os bens do culpado deveriam reverter para os herdeiros legítimos e não para o príncipe não é nisso porém que me apoiarei para desaprovar as confiscações Se alguns jurisconsultos sustentaram que as confiscações punham um freio às vinganças dos particulares banidos tirandolhes o poder de ser nocivos é que não refletiram que não basta uma pena produzir algum bem para ser justa Uma pena só é justa quando necessária Um legislador não autorizará nunca uma injustiça útil se quer prevenir as invasões da tirania que vela sem cessar que seduz e abusa pelo pretexto falaz de algumas vantagens momentâneas e que faz deperecer em pranto e na miséria um povo cuja ruína prepara para espalhar a abundância e a felicidade sobre uma minoria de homens privilegiados O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa e faz o inocente sofrer os castigos reservados aos culpados Pior ainda as confiscações podem fazer do homem de bem um criminoso pois o levam ao crime reduzindoo à indigência e ao desespero E além disso não há espetáculo mais hediondo que o de uma família inteira coberta de infâmia mergulhada nos horrores da miséria pelo crime do seu chefe crime que essa família submetida à autoridade do culpado não poderia prevenir mesmo que tivesse os meios para tanto XVIII DA INFÂMIA A INFÂMIA é um sinal da improbação pública que priva o culpado da consideração da confiança que a sociedade tinha nele e dessa espécie de fraternidade que une os cidadãos de um mesmo país Como os efeitos da infâmia não dependem absolutamente das leis é mister que a vergonha que a lei inflige se baseie na moral ou na opinião pública Se se tentasse manchar de infâmia uma ação que a opinião não julga infame ou a lei deixaria de ser respeitada ou as idéias aceitas de probidade e de morai desapareceriam mau grado todas as declamações dos moralistas sempre impotentes contra a força do exemplo Declarar infames ações indiferentes em si mesmas é diminuir a infâmia das que efetivamente merecem ser designadas desse modo Bem necessário é evitar que se punam com penas corporais e dolorosas certos delitos fundados no orgulho e que fazem dos castigos uma glória Tal é o fanatismo que só pode ser reprimido pelo ridículo e pela vergonha Se se humilhar à orgulhosa vaidade dos fanáticos perante uma grande multidão de espectadores devem esperarse felizes efeitos dessa pena pois que a própria verdade tem necessidade dos maiores esforços para se defender quando é atacada pela arma do ridículo Opondo assim a força à força e a opinião à opinião um legislador esclarecido dissipa no espírito do povo a admiração que lhe causa um falso princípio cujo absurdo lhe foi dissimulado com raciocínios especiosos As penas infamantes devem ser raras porque o emprego demasiado freqüente do poder da opinião enfraquece a força da própria opinião A infâmia não deve cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo porque a infâmia de um grande número não é mais em breve a infâmia de ninguém Tais são os meios de harmonizar as relações invariáveis das coisas e de atender à natureza que sempre ativa e jamais sujeita aos limites do tempo destrói e revoga todas as leis que se afastam dela Não é só nas belasartes que é preciso seguir fielmente a natureza as instituições políticas ao menos aquelas que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração se fundam na natureza e a verdadeira política não é outra coisa senão a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutáveis do homem XIX DA PUBLICIDADE E DA PRESTEZA DAS PENAS QUANTO mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito tanto mais justa e útil ela será Mais justa porque poupará ao acusado os cruéis tormentos da incerteza tormentos supérfluos cujo horror aumenta para ele na razão da força de imaginação e do sentimento de fraqueza A presteza do julgamento é justa ainda porque a perda da liberdade sendo já uma pena esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado como esse meio é aflitivo e cruel devese tanto quanto possível suavizarlhe o rigor e a duração Um cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime O processo mesmo deve ser conduzido sem protelações Que contraste hediondo entre a indolência de um juiz e a angústia de um acusado De um lado um magistrado insensível que passa os dias no bemestar e nos prazeres e de outro um infeliz que definha a chorar no fundo de uma masmorra abominável Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral impressionantes e sensíveis para os que o testemunharam haverá porém necessidade de que esse castigo seja tão cruel para quem o sofre Quando os homens se reuniram em sociedade foi para só se sujeitarem aos mínimos males possíveis e não há país que possa negar esse princípio incontestável Eu disse que a presteza da pena é útil e é certo que quanto menos tempo decorrer entre o delito e a pena tanto mais os espíritos ficarão compenetrados da idéia de que não há crimes sem castigo tanto mais se habituarão a considerar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito necessário e inseparável É a ligação das idéias que sustenta todo o edifício do entendimento humano Sem ela o prazer e a dor seriam sentimentos isolados sem efeito tão cedo esquecidos quanto sentidos Os homens sem idéias gerais e princípios universais isto é os homens ignorantes e embrutecidos não agem senão segundo as idéias mais vizinhas e mais imediatamente unidas Negligenciam as relações distantes e essas idéias complicadas que só se apresentam ao homem fortemente apaixonado por um objeto ou aos espíritos esclarecidos A luz da atenção dissipa no homem apaixonado as trevas que cercam o vulgar O homem instruído acostumado a percorrer e a comparar rapidamente um grande número de idéias e de sentimentos opostos tira do contraste um resultado que constitui a base de sua conduta desde então menos incerta e menos perigosa É pois da maior importância punir prontamente um crime cometido se se quiser que no espírito grosseiro do vulgo a pintura sedutora das vantagens de uma ação criminosa desperte imediatamente a idéia de um castigo inevitável Uma pena por demais retardada torna menos estreita a união dessas duas idéias crime e castigo Se o suplício de um acusado causa então alguma impressão e somente como espetáculo pois só se apresenta ao espectador quando o horror do crime que contribui para fortificar o horror da pena já está enfraquecido nos espíritos Poderseia ainda estreitar mais a ligação das idéias de crime e de castigo dando à pena toda a conformidade possível com a natureza do delito a fim de que o receio de um castigo especial afaste o espírito do caminho a que conduzia a perspectiva de um crime vantajoso É preciso que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o leva ao crime Entre vários povos punemse os crimes pouco consideráveis com a prisão ou com a escravidão num país distante isto é mandase o culpado levar um exemplo inútil a uma sociedade que ele não ofendeu Como os homens não se entregam a princípio aos maiores crimes a maior parte dos que assistem ao suplício de um celerado acusado de algum crime monstruoso não experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer Ao contrário a punição pública dos pequenos delitos mais comuns causarlheá na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes crimes desviandoos primeiro dos que o são menos XX QUE O CASTIGO DEVE SER INEVITÁVEL DAS GRAÇAS NÃO é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança mas a certeza do castigo o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas A perspectiva de um castigo moderado mas inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade O homem treme à idéia dos menores males quando vê a impossibilidade de evitálos ao passo que a esperança doce filha do céu que tantas vezes nos proporciona todos os bens afasta sempre a idéia dos tormentos mais cruéis por pouco que ela seja sustentada pelo exemplo da impunidade que a fraqueza ou o amor do ouro tão freqüentemente concede As vezes a gente se abstém de punir um delito pouco importante quando o ofendido perdoa É um ato de benevolência mas um ato contrário ao bem público Um particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fez mas o perdão que ele concede não pode destruir a necessidade do exemplo O direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular pertence às leis que são o órgão da vontade de todos Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção desse direito mas não tem nenhum poder sobre a dos outros Quando as penas se tiverem tornado menos cruéis a demência e o perdão serão menos necessários Feliz a nação que não mais lhes desse o nome de virtudes A demência que se tem visto em alguns soberanos substituir outras qualidades que lhes faltavam para cumprir os deveres do trono deveria ser banida de uma legislação sábia na qual as penas fossem brandas e a justiça feita com formas prontas e regulares Essa verdade parecerá dura apenas aos que vivem submetidos aos abusos de uma jurisprudência criminal que concede a graça e o perdão necessários em razão mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das leis O direito de conceder graça é sem dúvida a mais bela prerrogativa do trono é o mais precioso atributo do poder soberano mas ao mesmo tempo é uma improbação tácita das leis existentes O soberano que se ocupa com a felicidade pública e que julga contribuir para ela exercendo o direito de conceder graça elevase então contra o código criminal consagrado mau grado seus vícios pelos preconceitos antigos pelo calhamaço impostor dos comentadores pelo grave aparelho das velhas formalidades enfim pelo sufrágio dos semisábios sempre mais insinuantes e mais escutados do que os verdadeiros sábios Sendo a clemência virtude do legislador e não do executor das leis devendo manifestar se no Código e não em julgamentos particulares se se deixar ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre é a sua conseqüência necessária nutrese neles a esperança da impunidade fazse com que aceitem os suplícios não como atos de justiça mas como atos de violência Quando o soberano concede graça a um criminoso não será o caso de dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e que por um ato de cega benevolência pronuncia um decreto geral de impunidade Sejam pois as leis inexoráveis sejam os executores das leis inflexíveis seja porém o legislador indulgente e humano Arquiteto prudente dê por base ao seu edifício o amor que todo homem tem ao próprio bemestar e saiba fazer resultar o bem geral do concurso dos interesses particulares não se verá assim constrangido a recorrer a leis imperfeitas a meios pouco refletidos que separam a cada instante os interesses da sociedade dos cidadãos não será forçado a elevar sobre o medo e a desconfiança o simulacro da felicidade pública Filósofo profundo e sensível terá deixado aos seus irmãos o gozo pacífico da pequena porção de felicidade que o Ser supremo lhes concedeu nesta terra que não é mais do que um ponto no meio de todos os mundos XXI DOS ASILOS SERÃO justos os asilos E será útil o uso estabelecido entre as nações de permutarem entre si os criminosos Em toda a extensão de um Estado político não deve haver nenhum lugar fora da dependência das leis A força destas deve seguir o cidadão por toda a parte como a sombra segue o corpo Há pouca diferença entre a impunidade e os asilos e como o melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e inevitável os asilos que representam um abrigo contra a ação das leis convidam mais ao crime do que as penas o evitam do momento em que se tem a esperança de evitálos Multiplicar os asilos é formar pequenas soberanias porque quando as leis não têm poder novas potências se formam de ordem comum estabelecese um espírito oposto ao do corpo inteiro da sociedade Vêse na história de todos os povos que os asilos foram a fonte de grandes revoluções nos Estados e nas opiniões humanas Pretenderam alguns que cometido um crime num lugar isto é um ato contrário às leis teriam estas em toda parte o direito de punir Será a qualidade de súdito nesse caso um caráter indelével Será o nome de súdito pior que o de escravo E admitirseá que um homem habite um país e seja submetido às leis de outro país que suas ações fiquem ao mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislações muitas vezes contraditórias Ousouse dizer assim que um crime cometido em Constantinopla podia ser punido em Paris porque aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos os homens por inimigos e deve ser objeto da execração universal No entanto os juizes não são vingadores do gênero humano em geral são os defensores das convenções particulares que ligam entre si um certo número de homens Um crime só deve ser punido no país onde foi cometido porque é somente aí e não em outra parte que os homens são forçados a reparar pelo exemplo da pena os funestos efeitos que o exemplo do crime pode produzir Um celerado cujos crimes precedentes não puderam violar as leis de uma sociedade da qual não era membro pode bem ser temido e expulso dessa sociedade mas as leis não podem infligirlhe outra pena pois são feitas somente para punir o mal que lhe é feito e não o crime que não as ofende Será pois útil que as nações permutem reciprocamente entre si os criminosos Certamente a persuasão de não encontrar nenhum lugar na terra em que o crime possa ficar impune seria um meio bem eficaz de prevenilo Não ousarei porém decidir essa questão até que as leis tornandose mais conformes aos sentimentos naturais do homem com penas mais brandas impedindo o arbítrio dos juizes e da opinião assegurem a inocência e preservem a virtude das perseguições da inveja até que a tirania relegada ao Oriente tenha deixado a Europa sob o doce império da razão dessa razão eterna que une com um laço indissolúvel os interesses dos soberanos aos interesses dos povos XXII DO USO DE PÔR A CABEÇA A PRÊMIO SERÁ vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um criminoso armar cada cidadão de um punhal e fazer assim outros tantos carrascos Ou o criminoso saiu do país ou ainda está nele No primeiro caso excitamse os cidadãos a cometer um assassínio a atingir talvez um inocente a merecer suplícios Fazse uma injúria à nação estrangeira espezinhaselhe a autoridade autorizase que se façam semelhantes usurpações entre os próprios vizinhos Se o criminoso ainda está no país cujas leis violou o governo que põe sua cabeça a prêmio revela fraqueza Quando a gente tem força para defenderse não compra o socorro de outrem Além disso o uso de pôr a prêmio a cabeça de um cidadão anula todas as idéias de moral e de virtude tão fracas e tão abaladas no espírito humano De um lado as leis punem a traição de outro autorizamna O legislador aperta com uma das mãos os laços de sangue e de amizade e com a outra recompensa aquele que os quebra Sempre em contradição consigo mesmo ora procura espalhar a confiança e animar os que duvidam ora semeia a desconfiança em todos os corações Para prevenir um crime faz nascer cem Semelhantes usos só convêm às nações fracas cujas leis só servem para sustentar por um momento um edifício de ruínas que todo se esboroa Mas à medida que as luzes de uma nação se difundem a boa fé e a confiança recíproca se tornam necessárias e a política é enfim constrangida a admitilas Então desmanchamse e previnemse mais facilmente as cabalas os artifícios as manobras obscuras e indiretas Então também o interesse geral sai sempre vencedor dos interesses particulares Os povos esclarecidos poderiam buscar lições em alguns séculos de ignorância nos quais a moral particular era sustentada pela moral pública As nações só serão felizes quando a sã moral estiver estreitamente ligada à política Mas leis que recompensam a traição que acendem entre os cidadãos uma guerra clandestina que excitam suspeitas recíprocas oporseão sempre a essa união tão necessária da política e da moral união que daria aos homens segurança e paz que lhes aliviaria a miséria e que traria às nações mais longos intervalos de repouso e concórdia do que aqueles de que até ao presente gozaram XXIII QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONADAS AOS DELITOS O INTERESSE de todos não é somente que se cometam poucos crimes mais ainda que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros Os meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem pois ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode tornarse mais comum Deve pois haver uma proporção entre os delitos e as penas Se o prazer e a dor são os dois grandes motores dos seres sensíveis se entre os motivos que determinam os homens em todas as suas ações o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e as penas se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo o homem inclinado ao crime não tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso decidirseá mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos e a distribuição desigual das penas produzirá a contradição tão notória quando freqüente de que as leis terão de punir os crimes que tiveram feito nascer Se se estabelece um mesmo castigo a pena de morte por exemplo para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos destruirseão no coração do homem os sentimentos morais obra de muitos séculos cimentada por ondas de sangue estabelecida com lentidão através mil obstáculos edifício que só se pode elevar com o socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades Seria em vão que se tentaria prevenir todos os abusos que se originam da fermentação contínua das paixões humanas esses abusos crescem em razão da população e do choque dos interesses particulares que é impossível dirigir em linha reta para o bem público Não se pode provar essa asserção com toda a exatidão matemática podese porém apoiála com exemplos notáveis Lançai os olhos sobre a história e vereis crescerem os abusos à medida que os impérios aumentam Ora como o espírito nacional se enfraquece na mesma proporção o pendor para o crime crescerá em razão da vantagem que cada um descobre no abuso mesmo e a necessidade de agravar as penas seguirá necessariamente igual progressão Semelhante à gravitação dos corpos uma força secreta impelenos sempre para o nosso bem estar Essa impulsão só é enfraquecida pelos obstáculos que as leis lhe opõem Todos os diversos atos do homem são efeitos dessa tendência interior As penas são os obstáculos políticos que impedem os funestos efeitos do choque dos interesses pessoais sem destruirlhes a causa que é o amor de si mesmo inseparável da humanidade O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que podem contribuir para consolidar o edifício e enfraquecer todas as que possam arruinálo Supondose a necessidade da reunião dos homens em sociedade mediante convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular acharseá um progressão de crimes dos quais o maior será aquele que tende à destruição da própria sociedade Os menores delitos serão as pequenas ofensas feitas aos particulares Entre esses dois extremos estarão compreendidos todos os atos opostos ao bem público desde o mais criminoso até ao menos passível de culpa Se os cálculos exatos pudessem aplicarse a todas as combinações obscuras que fazem os homens agir seria mister procurar e fixar uma progressão de penas correspondente à progressão dos crimes O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada nação Bastará contudo que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penas proporcionadas aos delitos e que sobretudo não aplique os menores castigos aos maiores crimes XXIV DA MEDIDA DOS DELITOS JÁ observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade Eis aí uma dessas verdades que embora evidentes para o espírito menos perspicaz mas ocultas por um concurso singular de circunstâncias só são conhecidas de um pequeno número de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos As opiniões espalhadas pelos déspotas e as paixões dos tiranos abafaram as noções simples e as idéias naturais que constituíam sem dúvida a filosofia das sociedades primitivas Mas se a tirania comprimiu a natureza por uma ação insensível ou por impressões violentas sobre os espíritos da multidão hoje enfim as luzes do nosso século dissipam os tenebrosos projetos do despotismo reconduzindonos aos princípios da filosofia e mostrandonolos com mais certeza Esperemos que a funesta experiência dos séculos passados não seja perdida e que os princípios naturais reapareçam entre os homens mau grado todos os obstáculos que se lhes opõem A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete como erroneamente o julgaram alguns porque a intenção do acusado depende das impressões causadas pelos objetos presentes e das disposições precedentes da alma Esses sentimentos variam em todos os homens e no mesmo indivíduo com a rápida sucessão das idéias das paixões e das circunstâncias Se se punisse a intenção seria preciso ter não só um Código particular para cada cidadão mas uma nova lei penal para cada crime Muitas vezes com a melhor das intenções um cidadão faz à sociedade os maiores males ao passo que um outro lhe presta grandes serviços com a vontade de prejudicar Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida de preferência ao mal que possa causar à sociedade Se esse método fosse aceito uma pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do que o assassínio de um monarca pois a superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a diferença da ofensa Outros finalmente julgaram o delito tanto mais grave quanto maior a ofensa à Divindade Sentirseá facilmente quanto essa opinião é falsa se se examinarem com sanguefrio as verdadeiras relações que unem os homens entre si e as que existem entre o homem e Deus As primeiras são relações de igualdade Só a necessidade faz nascer do choque das paixões e da posição dos interesses particulares a idéia da unidade comum base da justiça humana Ao contrário as relações que existem entre o homem e Deus são relações de dependência que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas a um senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo tempo legislador e juiz somente ele pode ser a um tempo uma e outra coisa Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu suas leis qual será o inseto bastante temerário que ousará vir em socorro de sua justiça divina para empreender vingar o ser que se basta a si mesmo que os crimes não podem entristecer que os castigos não podem alegrar e que é o único na natureza a agir de maneira constante A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da maldade do coração e para que os homens pudessem sondar esse abismo serlhesia preciso o socorro da revelação Como poderiam eles determinar as penas dos diferentes crimes sobre princípios cuja base lhes é desconhecida Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar quando Deus pune Se os homens ofendem a Deus com o pecado muitas vezes o ofendem mais ainda encarregandose do cuidado de vingálo XXV DIVISÃO DOS DELITOS HÁ crimes que tendem diretamente à destruição da sociedade ou dos que a representam Outros atingem o cidadão em sua vida nos seus bens ou em sua honra Outros finalmente são atos contrários ao que a lei prescreve ou proíbe tendo em vista o bem público Todo ato não compreendido numa dessas classes não pode ser considerado como crime nem punido como tal senão pelos que descobrem nisso o seu interesse particular Por não se ter sabido guardar esses limites é que se vê em todas as nações uma oposição entre as leis e a moral e muitas vezes uma oposição entre aquelas mesmas O homem de bem está exposto às penas mais severas As palavras vício e virtude não passam de sons vagos A existência do cidadão envolvese de incerteza e os corpos políticos caem numa letargia funesta que os conduz insensivelmente à ruína Cada cidadão pode fazer tudo o que não é contrário às leis sem temer outros inconvenientes além dos que podem resultar de sua ação em si mesma Esse dogma político deveria ser gravado no espírito dos povos proclamado pelos magistrados supremos e protegido pelas leis Sem esse dogma sagrado toda sociedade legítima não pode subsistir por muito tempo porque ele é a justa recompensa do sacrifício que os homens fizeram de sua independência e de sua liberdade É essa opinião que torna as almas fortes e generosas que eleva o espírito que inspira aos homens uma virtude superior ao medo e os faz desprezar essa miserável maleabilidade que tudo aprova e que é a única virtude dos homens bastante fracos para suportar constantemente uma existência precária e incerta Percorramse com visão filosófica as leis e a história das nações e se verão quase sempre os nomes de vício e virtude de bom e mau cidadão mudarem de valor segundo o tempo e as circunstâncias Não são porém as reformas operadas no Estado ou nos negócios públicos que causarão essa revolução das idéias esta será a conseqüência dos erros e dos interesses passageiros dos diferente legisladores Muitas vezes se verão as paixões de um século servir de base à moral dos séculos seguintes e formar toda a política dos que presidem às leis Mas as paixões fortes filhas do fanatismo e do entusiasmo obrigam a pouco e pouco à força de excessos o legislador à prudência e podem tornarse um instrumento útil nas mãos da astúcia ou do poder quando o tempo as tiver enfraquecido Foi do enfraquecimento das paixões fortes que nasceram entre os homens as noções obscuras de honra e virtude e essa obscuridade subsistirá sempre porque as idéias mudam com o tempo que deixa sobreviver os nomes às coisas que variam segundo os lugares e os climas é que a moral esta submetida como os impérios a limites geográficos XXVI DOS CRIMES DE LESA MAJESTADE OS crimes de lesamajestade foram postos na classe dos grandes crimes porque são funestos à sociedade Mas a tirania e a ignorância que confundem as palavras e as idéias mais claras deram esse nome a uma multidão de delitos de natureza inteiramente diversa Aplicaramse as penas mais graves a faltas leves e nessa ocasião como em mil outras o homem é muitas vezes vítima de uma palavra Toda espécie de delito é nociva à sociedade mas nem todos os delitos tendem imediatamente a destruir É preciso julgar as ações morais por seus efeitos positivos e ter em conta o tempo e o lugar Só a arte das interpretações odiosas que é ordinariamente a ciência dos escravos pode confundir coisas que a verdade eterna separou por limites imutáveis XXVII DOS ATENTADOS CONTRA A SEGURANÇA DOS PARTICULARES E PRINCIPALMENTE DAS VIOLÊNCIAS DEPOIS dos crimes que atingem a sociedade ou o soberano que a representa vêm os atentados contra a segurança dos particulares Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas não se pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a atinge Entre esses crimes uns são atentados contra a vida outros contra a honra e outros contra os bens Falaremos antes dos primeiros que devem ser punidos com penas corporais Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no número dos grandes crimes Compreendemse nessa classe não somente os assassínios e os assaltos cometidos por homens do povo mas igualmente as violências da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos magistrados crimes tanto mais graves quanto as ações dos homens elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça e de dever para substituir as do direito do mais forte direito igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às penas que merecem os atentados contra a segurança do fraco e do pobre as riquezas que sob a proteção das leis são a recompensa da indústria tornarseão alimento da tirania e das iniqüidades Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em certas circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para tornarse uma coisa que se possa pôr a prêmio Vêse então a astúcia dos homens poderosos ocupada completamente com o aumento de sua força e dos seus privilégios aproveitando todas as combinações que a lei lhes torna favoráveis Eis o mágico segredo que transformou a massa dos cidadãos em bestas de carga foi assim que os grandes acorrentaram escravos É por isso que certos governos que têm todas as aparências de liberdade gemem sob uma tirania oculta É pelos privilégios dos grandes que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente depois de se terem introduzido na constituição por vias que o legislador negligenciou fechar Os homens sabem opor diques bastante fortes à tirania declarada mas muitas vezes não vêem o inseto imperceptível que mina sua obra e que abre por fim à torrente devastadora uma estrada tanto mais segura quanto mais oculta Quais serão pois as penas reservadas aos crimes dos nobres cujos privilégios ocupam tão grande lugar na legislação da maior parte dos povos Não examinarei se essa distinção hereditária entre plebeus e nobres é útil ao governo ou necessária às monarquias nem se é verdade que a nobreza é um poder intermediário próprio para conter em justos limites o povo e o soberano nem se essa ordem isolada da sociedade não tem o inconveniente de reunir num círculo estreito todas as vantagens da indústria todas as esperanças e toda a felicidade como essas ilhotas encantadoras e férteis que se encontram no meio dos desertos terríveis da Arábia Quando fosse verdade que a desigualdade é inevitável e mesmo útil na sociedade é certo que só deveria existir entre os indivíduos e em virtude das dignidades e do mérito mas não entre as ordens do Estado que as distinções não devem permanecer num só lugar mas circular em todas as partes do corpo político que as desigualdades sociais devem nascer e desaparecer a cada instante mas não perpetuarse nas famílias Seja qual for a conclusão de todas essas questões limitarmeei a dizer que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos A igualdade civil é anterior a todas as distinções de honras e de riquezas Se todos os cidadãos não dependerem igualmente das mesmas leis as distinções deixarão de ser legítimas Deve suporse que os homens renunciando à liberdade despótica que receberam da natureza para se reunirem em sociedade disseram entre si Aquele que for mais industrioso obterá as maiores honras a glória do seu nome passará aos seus descendentes mas não obstante as honras e as riquezas não receará menos do que o último dos cidadãos a violação das leis que o elevaram acima dos outros É verdade que não há assembléia geral do gênero humano em que se tenha aprovado semelhante decreto este se funda porém na natureza imutável dos sentimentos do homem A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os príncipes julgam retirar da nobreza apenas impede os inconvenientes das distinções e torna as leis respeitáveis tirando toda esperança de impunidade Dirseá talvez que a mesma pena aplicada contra o nobre e contra o plebeu tornase completamente diversa e mais grave para o primeiro por causa da educação que recebeu e da infâmia que se espalha sobre uma família ilustre Responderei no entanto que o castigo se mede pelo dano causado à sociedade e não pela sensibilidade do culpado Ora o exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de condição mais elevada Acrescentarei que a igualdade da pena só pode ser exterior e não pode ser proporcionada ao grau de sensibilidade que é diferente em cada indivíduo Quanto à infâmia que cobre uma família inocente o soberano pode facilmente apagála com demonstrações públicas de benevolência Sabese que tais demonstrações de favor têm foros de razão no povo crédulo e admirador XXVIII DAS INJÚRIAS AS injúrias pessoais contrárias à honra isto é a essa justa porção de estima que todo homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos devem ser punidas pela infâmia Há uma contradição notória entre as leis ocupadas sobretudo com a proteção da fortuna e da vida de cada cidadão e as leis do que se chama a honra que preferem a opinião a tudo A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os mais brilhantes raciocínios sem ligarse a nenhuma idéia fixa e precisa Tal é a triste condição do espírito humano que conhece melhor as revoluções dos corpos celestes do que as verdades que o tocam de perto e que importam em sua felicidade As noções morais que mais o interessam lhe são incertas só as entrevê cercadas de trevas e flutuando ao sabor do turbilhão das paixões Esse fenômeno deixará de causar espanto quando se considerar que semelhantes aos objetos que se confundem aos nossos olhos porque estão próximos demais as idéias morais perdem a clareza por estarem demasiado ao nosso alcance Apesar de sua simplicidade discernimos com dificuldade os diversos princípios de moral e julgamos muitas vezes sem conhecêlos os sentimentos do coração humano Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens não se admirará de todas essas coisas pensará que para ser feliz e tranqüilo o homem talvez não tenha necessidade de tantas leis nem de tão grande aparato moral A idéia da honra é uma idéia complexa formada não somente de várias idéias simples mas também de várias idéias complexas por si mesma Segundo os diferentes aspectos sob os quais a idéia da honra se apresenta ao espírito algumas vezes ela encerra e outras exclui certos elementos que a compõem só conservando nessas diferentes situações um pequeno número de elementos comuns como várias quantidades algébricas admitindo um divisor comum Para achar esse divisor comum das diferentes idéias que os homens fazem da honra lancemos um rápido olhar sobre a formação das sociedades As primeiras leis e os primeiros magistrados originaramse da necessidade de impedir os abusos que teria ocasionado o despotismo natural de todo homem mais robusto do que o vizinho Foi esse o objeto do estabelecimento das sociedades e essa a base real ou aparente de todas as leis mesmo as que encerram princípios de destruição Mas a aproximação dos homens e os progressos dos seus conhecimentos fizeram nascer em seguida uma infinidade de necessidades e ligações recíprocas entre os membros da sociedade Nem todas essas necessidades tinham sido previstas pela lei e os meios atuais de cada cidadão não lhe bastavam para satisfazêlas Começou então a estabelecerse o poder da opinião por meio da qual podem obterse certas vantagens que as leis não podiam proporcionar e evitar males de que elas não podiam preservar É a opinião que constitui muitas vezes o suplício do sábio e do medíocre É ela que concede às aparências da virtude o respeito que recusa à própria virtude É a opinião que de um vil celerado faz um missionário ardente quando esconde seu interesse nessa hipocrisia Sob o reinado da opinião a estima dos outros homens não é somente útil mas indispensável a quem permanecer ao nível dos seus concidadãos O ambicioso procura os sufrágios da opinião que lhe serve os projetos o homem vão mendigaos como um testemunho do próprio mérito o homem de honra exigeos porque não pode dispensá los Essa honra que muita gente prefere à própria existência só foi conhecida depois que os homens se reuniram em sociedade não pode ser posta no depósito comum O sentimento que nos liga à honra não é outra coisa senão uma volta momentânea ao estado de natureza um movimento que nos subtrai por um instante a leis cuja proteção é insuficiente em certas ocasiões Seguese daí que na extrema liberdade política como na extrema dependência as idéias de honra desaparecem ou se confundem com outras idéias Num estado de liberdade ilimitada as leis protegem tão fortemente que não se tem necessidade de buscar os sufrágios da opinião pública No estado de escravidão absoluta o despotismo que anula a existência civil só deixa a cada indivíduo uma personalidade precária e momentânea A honra só é pois um princípio fundamental nas monarquias temperadas onde o despotismo do senhor é limitado pelas leis A honra produz quase numa monarquia o efeito que produz a revolta nos Estados despóticos O súdito entra por um momento no estado de natureza e o soberano tem a recordação da antiga igualdade XXIX DOS DUELOS A HONRA que não é senão a necessidade dos sufrágios públicos deu nascimento aos combates singulares que só puderam estabelecerse na desordem das más leis Se os duelos não estiveram em uso na antigüidade como algumas pessoas o crêem é que os antigos não se reuniam armados com um ar de desconfiança nos templos no teatro e entre os amigos Talvez também sendo o duelo um espetáculo muito comum que vis escravos davam ao povo os homens livres tivessem receio de que os combates singulares não bastassem para que eles fossem considerados homens honrados Seja como for é em vão que se experimentou entre os modernos impedir os duelos com pena de morte Essas leis severas não puderam destruir um costume fundado numa espécie de honra mais cara aos homens do que a própria vida O cidadão que recusa um duelo vêse presa do desprezo dos seus concidadãos é forçado a levar uma vida solitária a renunciar aos encantos da sociedade ou a exporse constantemente aos insultos e à vergonha cujos repetidos golpes o afetam de maneira mais cruel do que a idéia do suplício Por que motivo serão os duelos menos freqüentes entre os homens do povo do que entre os grandes É somente porque o povo não traz espada é porque tem menos necessidade de sufrágios públicos do que os homens de condição mais elevada que se observam entre si com mais desconfiança e inveja Não é inútil repetir aqui o que já se disse certa vez que o melhor meio de impedir o duelo é punir o agressor isto é aquele que deu lugar à querela a declarar inocente aquele que sem procurar tirar a espada se viu constrangido a defender a própria honra isto é a opinião que as leis não protegem suficientemente e mostrar aos seus concidadãos que pode respeitar as leis mas que não teme os homens XXX DO ROUBO UM roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena pecuniária É justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do seu Mas se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero se esse delito só é cometido por essa classe de homens infortunados a quem o direito de propriedade direito terrível e talvez desnecessário só deixou a existência como único bem as penas pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos aumentando o número dos indigentes arrancando o pão a uma família inocente para dálo a um rico talvez criminoso A pena mais natural do roubo será pois essa espécie de escravidão que é a única que se pode chamar justa isto é a escravidão temporária que torna a sociedade senhora absoluta da pessoa e do trabalho do culpado para fazêlo expiar por essa dependência o dano que causou e a violação do pacto social Se porém o roubo é acompanhado de violência é justo ajuntar à servidão as penas corporais Outros escritores mostraram antes de mim os inconvenientes graves que resultam do uso de aplicar as mesmas penas contra os roubos cometidos com violência e contra aqueles em que o ladrão só empregou a astúcia Fezse ver quanto é absurdo pôr na mesma balança uma certa soma de dinheiro e a vida de um homem O roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes e a sã política deve admitir ainda mais do que as matemáticas o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância infinita Essas coisas foram ditas mas é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em prática Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido é porém moroso e difícil imprimirlhes um novo movimento XXXI DO CONTRABANDO O CONTRABANDO é um verdadeiro delito que ofende o soberano e a nação mas cuja pena não deveria ser infamante porque a opinião pública não empresta nenhuma infâmia a essa espécie de delito Porque pois o contrabando que é um roubo feito ao príncipe e por conseguinte à nação não acarreta a infâmia sobre aquele que o exerce É que os delitos que os homens não consideram nocivos aos seus interesses não afetam bastante para excitar a indignação pública Tal é o contrabando Os homens sobre os quais as conseqüências remotas de um ato só produzem impressões fracas não vêem o dano que o contrabando pode causarlhes Chegam mesmo às vezes a retirar dele vantagens momentâneas Não vêem senão o mal causado ao príncipe e para recusarem estima ao culpado só têm uma razão premente contra o ladrão o falsário e alguns outros criminosos que podem prejudicálos pessoalmente Essa maneira de sentir é conseqüência do princípio incontestável de que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece O contrabando é um delito gerado pelas próprias leis porque quanto mais se aumentam os direitos tanto maior é a vantagem do contrabando a tentação de exercêlo é também tão forte quanto mais fácil é cometer essa espécie de delito sobretudo se os objetos proibidos são de pequeno volume e se são interditos numa tão grande circunferência de território que a extensão deste torne difícil guardálo O confisco das mercadorias proibidas e mesmo de tudo o que se acha apreendido com objetos de contrabando é uma pena justíssima Para tornálo mais eficaz seria preciso que os direitos fossem pouco consideráveis pois os homens só se arriscam na proporção do lucro que o êxito possa proporcionarlhes Será porém o caso de deixar impune o culpado que não tem nada que perder Não Os impostos são parte tão essencial e tão difícil numa boa legislação e estão de tal modo comprometidos em certas espécies de contrabando que tal delito merece uma pena considerável como a prisão e mesmo a servidão mas uma prisão e uma servidão análogas à natureza do delito Por exemplo a prisão de um contrabandista de fumo não deve ser a do assassino ou a do ladrão e sem dúvida o castigo mais conveniente ao gênero do delito seria aplicar à utilidade do fisco a servidão e o trabalho daquele que pretendeu fraudarlhe os direitos XXXII DAS FALÊNCIAS O LEGISLADOR que percebe o preço da boa fé nos contratos e que quer proteger a segurança do comércio deve dar recurso aos credores sobre a pessoa mesma dos seus devedores quando estes abrem falência Importa porém não confundir o falido fraudulento com o que é de boa fé O primeiro deveria ser punido como o são os moedeiros falsos porque não é maior o crime de falsificar o metal amoedado que constitui a garantia dos homens entre si do que falsificar essas obrigações mesmas Mas o falido de boa fé o infeliz que pode provar evidentemente aos seus juizes que a infidelidade de outrem as perdas dos seus correspondentes ou enfim contratempos que a prudência humana não poderia evitar o despojaram dos seus bens deve ser tratado com menos rigor Por que motivos bárbaros ousarseá mergulhálo nas masmorras priválo do único bem que lhe resta na miséria a liberdade e confundilo com os criminosos e forçálo a arrependerse de ter sido honesto Vivia tranqüilo ao abrigo de sua probidade e contava com a proteção das leis Se as violou é que não estava em seu poder conformarse exatamente a essas leis severas que o poder e a avidez insensível impuseram e que o pobre aceitou seduzido pela esperança que subsiste sempre no coração do homem e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes serão para ele e todas as desgraças para os outros O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a vontade de prejudicar e os homens entregandose às suas primeiras impressões amam as leis cruéis se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas pois eles próprios estão submetidos a elas Mas voltemos ao falido de boa fé não o desobriguem de sua dívida senão depois que ele a tiver pago inteiramente recusemlhe o direito de subtrairse aos credores sem o consentimento destes e a liberdade de levar adiante sua indústria forcemno a empregar seu trabalho e seus talentos no pagamento do que deve proporcionalmente aos seus lucros Mas sob nenhum pretexto legítimo não se poderá fazêlo sofrer uma prisão injusta e inútil aos credores Dirseá talvez que os horrores da prisão obrigarão o falido a revelar as trapaças que ocasionaram uma falência suspeita de fraude É bem raro porém que essa espécie de tortura seja necessária se se fizer um exame rigoroso da conduta e dos negócios do acusado Se a fraude do falido for muito duvidosa será melhor optar por sua inocência Há uma máxima geralmente certa em legislação segundo a qual a impunidade de um culpado tem graves inconvenientes mas a impunidade é pouco perigosa quando o delito é difícil de constatarse Alegarseá também a necessidade de proteger os interesses do comércio assim como o direito de propriedade que deve ser sagrado Mas o comércio e o direito de propriedade não são o fim do pacto social são apenas meios que podem conduzir a esse fim Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruéis para preserválos dos inconvenientes que são as conseqüências naturais do estado social isso será faltar ao fim procurando atingilo e esse é o erro funesto que perde o espírito humano em todas as ciências mas sobretudo na política17 Poderseia distinguir a fraude do delito grave mas menos odioso e fazer uma diferença entre o delito grave e a pequena falta que seria preciso separar também da perfeita inocência No primeiro caso aplicarseiam ao culpado as penas aplicáveis ao crime de falsário O segundo delito seria punido com penas menores com a perda da liberdade Deixarseia ao falido inteiramente inocente a escolha dos meios que desejasse empregar para estabelecer os seus negócios e no caso de um delito leve darseia aos credores o direito de prescrever esses meios Mas a distinção entre faltas graves e leves deve ser obra da lei que é a única imparcial seria perigoso abandonála à prudência arbitrária de um juiz É tão necessário fixar limites na política quanto nas ciências matemáticas porque o bem público se mede como os espaços e a extensão Seria fácil ao legislador previdente impedir a maior parte das falências fraudulentas e remediar a desgraça do homem laborioso que falta aos seus compromissos sem ser culpado Possam todos os cidadãos consultar a cada instante os registros públicos nos quais se terá uma nota exata de todos os contratos e que contribuições sabiamente repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco do qual se tirem somas convenientes para socorrer a indústria infeliz Tais estabelecimentos só poderão ter vantagens numerosas sem inconvenientes real Mas essas leis fáceis a um tempo tão simples e tão sublimes essas leis que esperam apenas o sinal do legislador para espalhar sobre as nações a abundância e a força essas leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de todas as gerações são desconhecidas ou rejeitadas Um espírito de hesitação idéias estreitas a tímida prudência do momento uma rotina obstinada que teme as inovações mais úteis tais são os móveis ordinários dos legisladores que regulam o destino da fraca humanidade XXXIII DOS DELITOS QUE PERTURBAM A TRANQÜILIDADE PÚBLICA A TERCEIRA espécie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam particularmente o repouso e a tranqüilidade pública as querelas e o tumulto de pessoas que se batem na via pública destinada ao comércio e à passagem dos cidadãos e os discursos fanáticos que excitam facilmente as paixões de uma populaça curiosa e que emprestam grande força da multidão dos auditores e sobretudo um certo entusiasmo obscuro e misterioso com poder bem maior sobre o espírito do povo do que a tranqüila razão cuja linguagem a multidão não entende Iluminar as cidades durante a noite à custa do público colocar guardas de segurança nos diversos bairros das cidades reservar ao silêncio e à tranqüilidade sagrada dos templos protegidos pelo governo os discursos de moral religiosa e as arengas destinadas a sustentar os interesses particulares e públicos às assembléias da nação aos parlamentos aos lugares enfim onde reside a majestade soberana tais são as medidas próprias para prevenir a perigosa fermentação das paixões populares e são esses os principais objetos que devem ocupar a vigilância do magistrado de polícia Mas se esse magistrado não age segundo leis conhecidas e familiares a todos os cidadãos se pode ao contrário fazer ao seu capricho leis que julga serem necessárias abre assim a porta à tirania que ronda sem cessar em torno das barreiras que a liberdade pública lhe fixou e que só procura transpôlas Creio não haver exceção à regra geral de que os cidadãos devem saber o que precisam fazer para serem culpados e o que precisam evitar para serem inocentes Um governo que tem necessidade de censores ou de qualquer outra espécie de magistrados arbitrários prova que é mal organizado e que sua constituição não tem força Num país em que o destino dos cidadãos está entregue à incerteza a tirania oculta imola mais vítimas do que o tirano mais cruel que age abertamente Este ultimo revolta mas não avilta O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião quando é senhor dela apressase a comprimir as almas corajosas das quais tem tudo que temer porque só se apresentam com o archote da verdade quer no fogo das paixões quer na ignorância dos perigos XXXIV DA OCIOSIDADE OS governos sábios não sofrem no seio do trabalho e da indústria uma espécie de ociosidade que é contrária ao fim político do estado social quero falar de certas pessoas ociosas e inúteis que não dão à sociedade nem trabalho nem riquezas que acumulam sempre sem jamais perder que o vulgo respeita com uma admiração estúpida e que são aos olhos do sábio um objeto de desprezo Quero falar de certas pessoas que não conhecem necessidade de administrar ou aumentar as comodidades da vida único motivo capaz de excitar a atividade humana e que indiferentes à prosperidade do Estado só se inflamam com paixão por opiniões que lhes agradam mas que podem ser perigosas Austeros declamadores confundiram essa espécie de ociosidade com a que é fruto das riquezas adquiridas pela indústria Cabe exclusivamente às leis e não à virtude rígida mas fechada em idéias estreitas de alguns censores definir a espécie de ociosidade punível Não se pode encarar como ociosidade funesta em política aquela que gozando do fruto dos vícios ou das virtudes de alguns antepassados dá contudo pão e existência à pobreza industriosa da troca dos prazeres atuais que recebe desta e que põe o pobre na contingência de travar a guerra pacífica que a indústria sustenta contra a opulência e que sucedeu aos combates sangrentos e incertos da força contra a força Essa espécie de ociosidade pode mesmo tornarse vantajosa à medida que a sociedade aumenta e que o governo deixa aos cidadãos mais liberdade XXXV DO SUICÍDIO O SUICÍDIO é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma pena propriamente dita pois essa pena só poderia recair sobre um corpo insensível e sem vida ou sobre inocentes Ora o castigo que se aplicasse contra os restos inanimados do culpado não poderia produzir outra impressão sobre os espectadores senão a que estes experimentariam ao verem fustigar uma estátua Se a pena é aplicada à família inocente ela é odiosa e tirânica porque já não há liberdade quando as penas não são puramente pessoais Os homens amam demasiado a vida estão ligados a ela por todos os objetos que os cercam a imagem sedutora do prazer e a doce esperança amável feiticeira que mistura algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males que ingerimos a grandes tragos encantam muito fortemente os corações dos mortais para que se possa temer que a impunidade contribua para tornar o suicídio mais comum Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso aquele que se mata nada tem que temer pois a morte destrói toda sensibilidade Não é pois esse motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida Mas aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que aquele que renuncia para sempre à sua pátria O primeiro deixa tudo ao seu país ao passo que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus bens Direi mais Como a força de uma nação consiste no número dos cidadãos aquele que abandona o seu país para entregarse a outro causa à sociedade o dobro do prejuízo que lhe pode causar o suicida A questão reduzse pois a saber se é útil ou perigoso à sociedade deixar a cada um dos membros que a compõem uma liberdade perpétua de afastarse dela Toda lei que não é forte por si mesma toda lei cuja execução pode ser impedida em certas circunstâncias jamais deveria ser promulgada A opinião que governa os espíritos obedece às impressões lentas e indiretas que o legislador sabe darlhe resiste porém aos seus esforços quando são violentos e diretos e as leis inúteis que logo são desprezadas comunicam seu aviltamento às leis mais salutares que costumam ser vistas antes como obstáculos a vencer do que como a salvaguarda da tranqüilidade pública Ora como a energia dos nossos sentimentos é limitada se se quiser obrigar os homens a respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade eles terão menos veneração pelas leis verdadeiramente úteis Não me deterei no desenvolvimento das conseqüências vantajosas que um sábio dispensador da felicidade pública poderá tirar desse princípio procurarei apenas provar que não é necessário fazer do Estado uma prisão Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de abandonar seu país seria uma lei inútil porque a menos que rochedos inacessíveis ou mares impraticáveis separem esse país de todos os outros como guardar todos os pontos de sua circunferência Como guardar os próprios guardas O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre que as leis possam fazer cair a pena com que o ameaçam Seu delito já não pode ser punido desde que foi cometido e infligirlhe um castigo antes que ele seja consumado é punir a intenção e não o fato é exercer um poder tirano sobre o pensamento sempre livre e sempre independente das leis humanas Tentarseá punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele deixa Mas a conclusão que não se pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidadãos entre si tornaria esse meio ilusório Além disso semelhante lei destruiria todo comércio entre as nações e se se punisse o emigrado no caso dele regressar aos país isso significaria impedilo de reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da pátria Enfim a proibição de sair de um país só faz aumentar em quem o habita o desejo de abandonálo ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem Que se deve pois pensar de um governo que não tem outro meio senão o temor para reter os homens em sua pátria à qual eles estão naturalmente ligados pelas primeiras impressões da infância A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é aumentar o bemestar respectivo de cada cidadão Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio assim também o maior interesse do soberano e da nação é que a soma de felicidade seja aí maior do que entre os povos vizinhos Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa felicidade embora impedindo as riquezas de se reunirem numa só mão eles se tornam um remédio necessário à desigualdade que toma mais força à medida que a sociedade faz mais progressos18 Mas os prazeres do luxo são a base da felicidade pública num país em que a segurança dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis porque então esses prazeres favorecem a população ao passo que se tornam um instrumento de tirania para um povo cujos direitos não são garantidos Assim como os animais mais generosos e os livres habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as florestas longínquas onde sua liberdade não corre risco aos campos alegres e férteis que o homem seu inimigo semeou de armadilhas assim também os homens evitam o próprio prazer quando este lhes é oferecido pela mão dos tiranos19 Está pois demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao seu país é inútil e injusta e o mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio Tratase de um crime que Deus pune após a morte do culpado e somente Deus pode punir depois da morte Não é porém um crime perante os homens porque o castigo recai sobre a família inocente e não sobre o culpado Se me objetarem que o medo desse castigo pode contudo deter a mão do infeliz determinado a morrer responderei que quem renuncia tranqüilamente à doçura de viver e odeia bastante a existência terrena para preferirlhe uma eternidade talvez infeliz não se comoverá decerto com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá sobre sua família XXXVI DE CERTOS DELITOS DIFÍCEIS DE CONSTATAR COMETEMSE na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes mas que é difícil provar Tais são o adultério a pederastia o infanticídio O adultério é um crime que considerado sob o ponto de vista político só é tão freqüente porque as leis não são fixas e porque os dois sexos são naturalmente atraídos um pelo outro20 Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religião diria que há uma grande diferença entre esse delito e todos os outros O adultério é produzido pelo abuso de uma necessidade constante comum a todos os mortais anterior à sociedade ao passo que os outros delitos que tendem mais ou menos à destruição do pacto social são antes o efeito das paixões do momento do que das necessidades da natureza Os que leram a história e estudaram os homens podem reconhecer que o número dos delitos produzidos pela tendência de um sexo para outro é no mesmo clima sempre igual a uma quantidade constante Se assim é toda lei todo costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos dessa paixão seria inútil e até funesta porque o efeito dessa lei seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias necessidades e com as dos outros O partido mais sábio seria pois seguir até certo ponto o declive do rio das paixões e dividirlhe o curso num número de regatos suficientes para impedir em toda parte dois excessos contrários a seca e as enchentes A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os casamentos são mais numerosos e mais livres Se os preconceitos hereditários os conciliam se o poder paterno os forma e os impede ao seu capricho a galanteria quebralhes secretamente os laços mau grado as declamações dos moralistas vulgares sempre ocupados em gritar contra os efeitos omitindo as causas Mas essas reflexões são inúteis para aqueles que os motivos sublimes da religião mantêm nos limites do dever que o pendor da natureza os leva a transpor O adultério é um delito de um instante envolvese de mistério cobrese de um véu que as próprias leis se empenham em conservar véu necessário mas de tal modo transparente que só faz aumentar os encantos do objeto que oculta As ocasiões são tão fáceis as conseqüências tão duvidosas que é bem mais fácil ao legislador prevenilo quando não foi cometido do que reprimilo quando já se estabeleceu Regra geral em todo delito que por sua natureza deve quase sempre ficar impune a pena é um aguilhão a mais Nossa imaginação é mais vivamente excitada e se empenha com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos quando as dificuldades que se apresentam não são insuperáveis e quando não têm um aspecto bastante desencorajador relativamente ao grau de atividade que se tem no espírito Os obstáculos se tornam por assim dizer tantas barreiras que impedem nossa imaginação caprichosa de afastarse delas e que continuamente a forçam a pensar nas conseqüências da ação que medita Então a alma se apega bem mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do que às conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por afastar A pederastia que as leis punem com tanta severidade e contra a qual se empregam tão facilmente essas torturas atrozes que triunfam da própria inocência é menos o efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o desvio das paixões do homem escravo que vive em sociedade Se às vezes ela é produzida pela sociedade dos prazeres é bem freqüentemente o efeito dessa educação que para tornar os homens úteis aos outros começa por tornálos inúteis a si mesmos nessas casas em que uma juventude numerosa viva ardente mas separada por obstáculos intransponíveis do sexo do qual a natureza lhe pinta fortemente todos os encantos prepara para si uma velhice antecipada consumindo de antemão inutilmente para a humanidade um vigor apenas desenvolvido O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel alternativa em que se acha uma infeliz que só cedeu por fraqueza ou que sucumbiu sob os esforços da violência De um lado a infâmia de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida como não havia de preferir esse último partido que a rouba à vergonha à miséria juntamente com o desgraçado filhinho O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria proteger com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa espécie de tirania que só se levanta contra os vícios que não se podem cobrir com o manto da virtude Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os crimes de que acabamos de falar Eu quis indicar suas fontes e penso que me será permitido tirar daí a conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente justa ou necessária o que é a mesma coisa a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação XXXVII DE UMA ESPÉCIE PARTICULAR DE DELITO OS QUE lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras em que homens vivos serviam de alimento às chamas em a que multidão feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes em que cidadãos corriam como a um espetáculo agradável a contemplar a morte dos seus irmãos no meio dos turbilhões de negra fumaça em que os lugares públicos ficavam cobertos de destroços palpitantes e de cinzas humanas Os homens esclarecidos verão que o país onde habito o século em que vivo e a matéria de que trato não me permitiram examinar a natureza desse delito Seria aliás empresa demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto querer provar contra o exemplo de várias nações a necessidade de uma inteira conformidade de opinião num Estado político procurar demonstrar como certas crenças religiosas entre as quais só podem acharse diferenças sutis obscuras e muito acima da capacidade humana podem contudo perturbar a tranqüilidade pública a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras proscritas Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenças tornandose mais claras pela fermentações dos espíritos podem fazer nascer do choque das opiniões a verdade que então sobrenada depois de ter aniquilado o erro ao passo que outras seitas pouco firmes em suas bases têm necessidade para manterse de se apoiarem na força Seria demasiado longo igualmente mostrar que para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas é preciso tiranizar os espíritos e constrangêlos a vergar sob o jugo da força embora essa violência se oponha à razão e à autoridade que mais respeitamos21 que nos recomenda a doçura e o amor dos nossos irmãos embora seja evidente que a força só faz hipócritas e portanto almas vis Devese crer que todas essas coisas estarão demonstradas e conformes aos interesses da humanidade se houver em alguma parte uma autoridade legítima e reconhecida que as ponha em prática Quanto a mim só falo aqui dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social devo silenciar porém sobre os pecados cuja punição mesmo temporal deve ser determinada segundo outras regras que não as da filosofia XXXVIII DE ALGUMAS FONTES GERAIS DE ERROS E DE INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO E em primeiro lugar das falsas idéias de utilidade AS FALSAS idéias que os legisladores fizeram da utilidade são uma das fontes mais fecundas de erros e injustiças É ter falsas idéias de utilidade ocuparse mais com inconvenientes particulares do que com inconvenientes gerais querer comprimir os sentimentos naturais em lugar de procurar excitálos impor silêncio à razão e dizer ao pensamento Sê escravo É ter ainda falsas idéias de utilidade sacrificar mil vantagens reais ao temor de uma desvantagem imaginária ou pouco importante Não teria certamente idéias justas quem desejasse tirar aos homens o fogo e a água porque esses dois elementos causam incêndios e inundações e quem só soubesse impedir o mal pela destruição Podem considerarse igualmente como contrárias ao fim de utilidade as leis que proíbem o porte de armas pois só desarmam o cidadão pacífico ao passo que deixam o ferro nas mãos do celerado bastante acostumado a violar as convenções mais sagradas para respeitar as que são apenas arbitrárias Além disso essas convenções são pouco importantes há pouco perigo em infringilas e por outro lado se as leis que desarmam fossem executadas com rigor destruiriam a liberdade pessoal tão preciosa ao homem tão respeitável aos olhos do legislador esclarecido submeteriam a inocência a todas as investigações a todos os vexames arbitrários que só devem ser reservados aos criminosos Tais leis só servem para multiplicar os assassínios entregam o cidadão sem defesa aos golpes do celerado que fere com mais audácia um homem desarmado favorecem o bandido que ataca em detrimento do homem honesto que é atacado Essas leis são simplesmente o ruído das impressões tumultuosas que produzem certos fatos particulares não podem ser o resultado de combinações sábias que pesam numa mesma balança os males e os bens não é para prevenir os delitos mas pelo vil sentimento do medo que se fazem tais leis É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma multidão de seres sensíveis à regularidade simétrica que pode receber uma matéria bruta e inanimada que se negligenciam os motivos presentes únicos capazes de impressionar o espírito humano de maneira forte e durável para empregar motivos remotos cuja impressão é fraca e passageira a menos que uma grande força de imaginação que só se se encontra num pequeno número de homens supra o afastamento do objeto mantendoo sob relações que o aumentam e o aproximam Enfim também podem chamarse falsas idéias de utilidade as que separam o bem geral dos interesses particulares sacrificando as coisas às palavras Há entre o estado de sociedade e o estado de natureza a diferença de que o homem selvagem só faz mal a outrem quando nisso descobre alguma vantagem para si ao passo que o homem social é às vezes levado por leis viciosas a prejudicar sem nenhum proveito O déspota espalha o medo e o abatimento na alma dos seus escravos mas esse medo e esse abatimento voltamse contra ele próprio logo lhe enchem o coração e o tornam presa de males maiores do que os que ele causa Aquele que se compraz em inspirar o terror corre poucos riscos se teme apenas a própria família e as pessoas que o cercam Mas quando o terror é geral quando fere uma grande multidão de homens o tirano deve tremer Receie a temeridade o desespero receie sobretudo o homem audacioso mas prudente que souber com habilidade sublevar contra ele os descontentes tanto mais fáceis de serem seduzidos quando se despertarem em suas almas as mais caras esperanças e quando se tiver o cuidado de mostrarlhes os perigos da empresa repartidos entre um grande número de cúmplices Juntai a isso que os infelizes dão menos valor à sua existência na proporção dos males que os afligem Eis sem dúvida porque as ofensas são quase sempre seguidas de ofensas novas A tirania e o ódio são sentimentos duráveis que se sustentam e tomam novas forças à medida que se exercem ao passo que em nossos corações corruptos o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem e se extinguem na ociosidade XXXIX DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA O ESPIRÍTO da família é outra fonte geral de injustiças na legislação Se as disposições cruéis e os outros vícios das leis penais foram aprovados pelos legisladores mais esclarecidos nas repúblicas mais livres é que se considerou o Estado antes como uma sociedade de famílias do que como a associação de um certo número de homens Suponhase uma nação composta de cem mil homens distribuídos em vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma inclusive o chefe que a representa se a associação é feita por famílias haveria vinte mil cidadãos e oitenta mil escravos se é feita por indivíduos haveria cem mil cidadãos livres No primeiro caso seria uma república composta de vinte mil pequenas monarquias no segundo tudo respirará o espírito de liberdade que animará os cidadãos não somente nas praças públicas e nas assembléias nacionais mas ainda sob o teto doméstico onde residem os principais elementos de felicidade e de miséria Se a associação é feita por famílias as leis e os costumes que são sempre o resultado dos sentimentos habituais dos membros da sociedade política serão obra dos chefes dessas famílias verseá em breve o espírito monárquico introduzirse aos poucos na própria república e os seus efeitos só encontrarão obstáculos na oposição dos interesses particulares porque os sentimentos naturais de liberdade e de igualdade já terão deixado de viver nos corações O espírito de família é um espirito de minúcia limitado pelos mais insignificantes pormenores ao passo que o espírito público ligado aos princípios gerais vê os fatos com visão segura coordenaos nos lugares respectivos e sabe tirar deles conseqüências úteis ao bem da maioria Nas sociedades compostas de famílias as crianças ficam sob a autoridade do chefe e são obrigadas a esperar que a morte lhes dê uma existência que só depende das leis Habituadas a obedecer e a tremer na idade da força quando as paixões não são ainda refreadas pela moderação espécie de temor prudente que é o fruto da experiência e da idade como resistirão elas aos obstáculos que o vício opõe constantemente aos esforços da virtude quando a velhice decrépita e medrosa tirarlhes a coragem de tentar reformas ousadas que aliás as seduzem pouco porque não têm a esperança de recolherlhes os frutos Nas repúblicas em que todo homem é cidadão a subordinação nas famílias não é efeito da força mas de um contrato e os filhos uma vez saídos da idade em que a fraqueza e a necessidade de educação os mantêm sob a dependência natural dos pais tornamse desde então membros livres da sociedade se ainda se submetem ao chefe da família é apenas para participar das vantagens que esta lhes oferece do mesmo modo que os cidadãos se sujeitam sem perder a liberdade ao chefe da grande sociedade política Nas repúblicas compostas de famílias os jovens isto é a parte mais considerável e mais útil da nação ficam à discrição dos pais Nas repúblicas de homens livres os únicos laços que submetem os filhos ao pai são os sentimentos sagrados e invioláveis da natureza que convidam os homens a ajudarse mutuamente em suas necessidades recíprocas e que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefícios recebidos Esses santos deveres são muito mais alterados pelo vício das leis que prescrevem uma submissão cega e obrigatória do que pela maldade do coração humano Essa oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos e as leis de família é fonte de muitas outras contradições entre a moral pública e a moral particular que se combatem continuamente no espírito de cada homem A moral particular só inspira a submissão e o medo ao passo que a moral pública anima a coragem e o espírito da liberdade Guiado pela primeira o homem limita seu bemestar ao círculo estreito de um pequeno número de pessoas que ele nem mesmo escolheu Inspirado pela outra procura estender a felicidade sobre todas as classes da humanidade A moral particular exige que cada qual se sacrifique continuamente a um falso ídolo que se chama o bem da família e que muitas vezes não é o bem real de nenhum dos indivíduos que a compõem A moral pública ensina a procurar o bemestar sem ferir as leis e se às vezes excita um cidadão a imolarse pela pátria recompensao pelo entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifício e pela glória que lhe promete Tantas contradições fazem que os homens desdenhem de praticar a virtude que não podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram e que lhes parece distante porque está envolta nessa obscuridade que oculta aos nossos olhos os objetos morais como os objetos físicos Quantas vezes o cidadão que reflete sobre suas ações passadas não se terá admirado de acharse um mau homem A medida que a sociedade cresce cada um dos seus membros tornase uma parte menor do todo e o amor do bem público se enfraquece na mesma proporção se as leis deixam de fortificálo As sociedades políticas têm como o corpo humano um crescimento limitado não poderiam estenderse além de certos limites sem que sua economia fosse perturbada Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do grau de atividade dos indivíduos que a compõem Se essa atividade crescesse ao mesmo tempo que a população as boas leis achariam um obstáculo para prevenir os delitos no próprio bem que tivessem podido fazer Uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo subdividindose num certo número de pequenos Estados confederados Mas para formar essa união seria preciso um ditador poderoso que tivesse a coragem de Sila22 com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve para destruir Se tal homem for ambicioso poderá esperar uma glória imortal Se for filósofo as bênçãos dos seus concidadãos o consolarão da perda de sua autoridade mesmo sem pedirlhes reconhecimento Quando os sentimentos que nos unem à nação principiam a enfraquecerse os que nos ligam aos objetos que nos cercam adquirem novas forças Assim sob o despotismo feroz os laços da amizade são mais duráveis e as virtudes de família virtudes sempre fracas se tornam então as mais comuns ou antes são as únicas que ainda se praticam Após todas essas observações pode julgarse quanto foram curtas e limitadas as opiniões da maioria dos nossos legisladores XL DO ESPÍRITO DO FISCO HOUVE um tempo em que todas as penas eram pecuniárias Os crimes dos súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio Os atentados contra a segurança pública eram objeto de lucro sobre o qual se sabia especular O soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam prevenir Os julgamentos não eram então nada menos do que um processo entre o fisco que percebia o preço do crime e o culpado que devia pagálo Faziase disso um negócio civil contencioso como se se tratasse de uma querela particular e não do bem público Parecia que o fisco tinha outros direitos que exercer além da proteção da tranqüilidade pública e o culpado outras penas que sofrer além das que a necessidade do exemplo o exigia O juiz estabelecido para apurar a verdade com ânimo imparcial não era mais do que o advogado do fisco e aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o exator dos dinheiros do príncipe Nesse sistema quem se confessasse culpado se reconhecia pela própria confissão devedor do fisco e como era esse o fim de todos os processos criminais toda a arte do juiz consistia em obter essa confissão da maneira mais favorável aos interesses do fisco É ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a jurisprudência criminal pois os efeitos permanecem por muito tempo depois de cessadas as causas O acusado que recusa confessarse culpado embora convencido por provas certas sofrerá uma pena mais leve do que se tivesse confessado não lhe será aplicada a tortura pelos outros crimes que poderia ter cometido precisamente porque não confessou o crime principal de que está convencido Mas se o crime é confessado o juiz apoderase do corpo do culpado dilacerao metodicamente e faz dele por assim dizer um fundo do qual tira todo o proveito possível Uma vez reconhecida a existência do delito a confissão do acusado se torna prova convincente Acreditase tornar essa prova menos suspeita arrancando a confissão do crime pelos tormentos e pelo desespero e se estabeleceu que a confissão não basta para condenar o culpado se esse culpado é calmo se fala desembaraçadamente se não está cercado das formalidades judiciárias e do aparato aterrador dos suplícios Excluemse cuidadosamente da instrução de um processo as investigações e as provas que esclarecendo o fato de maneira a favorecer o acusado poderiam prejudicar as pretensões do fisco e se às vezes se poupam alguns tormentos ao culpado não é nem por piedade para com a desgraça nem por indulgência para com a fraqueza mas porque as confissões obtidas são suficientes para os direitos do fisco esse ídolo que já não passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias nos torna inconcebível O juiz quando exerce suas funções não é mais do que o inimigo do culpado isto é de um infeliz curvado ao peso das cadeias minado pelo sofrimento que os tormentos esperam e que o futuro mais terrível cerca de horror e de assombro Não é a verdade o que ele procura quer descobrir no acusado um culpado preparalhe armadilhas parece que tem tudo que perder e que teme se não puder convencer o acusado diminuir a infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas O juiz tem o poder de determinar por que indícios se pode encarcerar um cidadão E declarar que esse cidadão é culpado antes de poder provar que é inocente Não se parecerá tal informação com um procedimento ofensivo E eis todavia a marcha da jurisprudência criminal em quase toda a Europa no século XVIII em plena luz Mal se conhece nos tribunais o verdadeiro processo das informações isto é a investigação imparcial do fato prescrita pela razão seguida nas leis militares empregada mesmo por esses déspotas da Ásia nos assuntos que só interessam os particulares Nossos descendentes sem dúvida mais felizes do que nós terão dificuldade em conceber essa complicação torturosa dos mais estranhos absurdos e esse sistema de iniqüidades incríveis que só o filósofo poderá julgar possível estudando a natureza do coração humano XLI DOS MEIOS DE PREVENIR CRIMES É MELHOR prevenir os crimes do que ter de punilos e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que reparálo pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bemestar possível e preserválos de todos os sofrimentos que se lhes possam causar segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida Mas os meios que até hoje se empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim que se propõem Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem geométrica que não apresente nem irregularidade nem confusão Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes não impedem que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais Como poderiam pois as leis humanas em meio ao choque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do prazer impedir que não haja alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade É essa porém a quimera dos homens limitados quando têm algum poder Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes não tendo tais atos nada de nocivo não se previnem os crimes ao contrário fazse que surjam novos porque se mudam arbitrariamente as idéias ordinárias de vício e virtude que todavia se proclamam eternas e imutáveis Além disso a que ficaria o homem reduzido se fosse preciso interdizerlhe tudo o que pode ser para ele uma ocasião de praticar o mal Seria preciso começar por tirarlhe o uso dos sentidos Para um motivo que leva os homens a cometer um crime há mil outros que os levam a ações indiferentes que só são delitos perante as más leis Ora quanto mais se estender a esfera dos crimes tanto mais se fará que sejam cometidos porque se verão os delitos multiplicarse à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de privilégios isto é de um pequeno número de senhores Quereis prevenir os crimes Fazeis leis simples e claras fazeias amar e esteja a nação inteira pronta a armarse para defendêlas sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruílas Não favoreçam elas nenhuma classe particular protejam igualmente cada membro da sociedade receieas o cidadão e trema somente diante delas O temor que as leis inspiram é salutar o temor que os homens inspiram é uma fonte funesta de crimes Os homens escravos são sempre mais debochados mais covardes mais cruéis do que os homens livres Estes investigam as ciências ocupamse com os interesses da nação vêem os objetos sob um ponto de vista elevado e fazem grandes coisas Mas os escravos satisfeitos com os prazeres do momento procuram no ruído do deboche uma distração para o aniquilamento em que se vêem mergulhados Toda sua vida está cercada de incertezas e como para eles os delitos não estão determinados não sabem quais serão suas conseqüências e isso empresta nova força à paixão que os leva a praticálos Num povo que o clima torna indolente a incerteza das leis entretém e aumenta a inação e a estupidez Numa nação voluptuosa mas ativa as leis incertas fazem que a atividade dos cidadãos se limite a pequenas cabalas e intrigas surdas que semeiam a desconfiança Então o homem mais prudente é aquele que sabe melhor dissimular e trair Num povo forte e corajoso a incerteza das leis é forçada por fim e substituirse por uma legislação precisa isso porém só acontece depois de revoluções freqüentes que conduziram esse povo alternativamente da liberdade à escravidão e da escravidão à liberdade Quereis prevenir os crimes Marche a liberdade acompanhada das luzes Se as ciências produzem alguns males é quando estão pouco difundidas mas à medida que se estendem as vantagens que trazem se tornam maiores Um impostor ousado que não pode ser um homem vulgar fazse adorar por um povo ignorante e só é objeto de desprezo para uma nação esclarecida O homem instruído sabe comparar os objetos considerálos sob diversos pontosde vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos outros porque vê nos seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem sobre o seu coração Se prodigalizardes luzes ao povo a ignorância e a calúnia desaparecerão diante delas a autoridade injusta tremerá só as leis permanecerão inabaláveis todopoderosas e o homem esclarecido amará uma constituição cujas vantagens são evidentes uma vez conhecidos seus dispositivos e que dá bases sólidas à segurança pública Poderá ele lamentar essa inútil partícula de liberdade de que se privou se a comparar com a soma de todas as outras liberdades que os seus concidadãos lhe sacrificaram e se pensar que sem as leis estes últimos poderiam armarse e unirse contra ele Dotado de uma alma sensível verificase que sob boas leis o homem só perdeu a funesta liberdade de praticar o mal forçado a bendizer o trono e o soberano que só o ocupa para proteger Não é verdade que as ciências sejam nocivas à humanidade Se às vezes deram maus resultados é que o mal era inevitável Multiplicandose os homens sobre a superfície da terra viramse nascer a guerra algumas artes grosseiras e as primeiras leis que não eram senão convenções momentâneas e que pereciam com a necessidade passageira que as produziria Foi então que a filosofia começou a aparecer seus primeiros princípios foram pouco numerosos e sabiamente escolhidos porque a preguiça e a pouca sagacidade dos primeiros homens os preservam de muitos erros Mas multiplicadas as necessidades juntamente com a espécie humana foram necessárias impressões mais fortes e mais duráveis para impedir as voltas freqüentes e cada dia mais funestas ao estado selvagem Foram pois um grande bem para a humanidade digo um grande bem sob o aspecto político os primeiros erros religiosos que povoaram o universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisível de espíritos encarregados de governar a terra Foram benfeitores do gênero humano esses homens audaciosos que ousaram enganar seus semelhantes para servilos e que arrastaram a ignorância temerosa ao pé dos altares Apresentando aos homens objetos fora do alcance dos sentidos interessaram nos na investigação desses objetos que fugiam diante deles à medida que os julgavam mais próximos forçaramnos a respeitar o que não conheciam bem e souberam concentrar para esse único fim que os impressionava fortemente todas as paixões que os agitavam Tal foi a sorte de todas as nações que se formaram da reunião de diferentes povoações selvagens Foi a época da formação das grandes sociedades e as idéias religiosas foram sem dúvida o único laço que pode obrigar os homens a viverem constantemente sob leis Não falo desse povo que Deus escolheu Os milagres mais extraordinários e os favores mais assinalados que o céu lhe prodigalizou substituíram a política humana Mas como os erros podem subdividirse ao infinito as falsas ciências que tais erros produziram fizeram dos homens uma multidão fanática de cegos perdidos no labirinto em que se encerraram e prestes a chocarse a cada passo Então alguns filósofos sensíveis lamentaram o antigo estado selvagem e foi nessa primeira época que os conhecimentos ou antes as opiniões tornaramse funestos à humanidade Pode considerarse como uma época mais ou menos semelhante o momento terrível em que é preciso passar do erro à verdade das trevas à luz O choque terrível dos preconceitos úteis a um pequeno número de homens poderosos contra as verdades vantajosas para a multidão fraca e a fermentação de todas as paixões sublevadas causam males infinitos aos infelizes humanos Percorrendo a história cujos principais acontecimentos após certos intervalos se reproduzem quase sempre detenhamonos na passagem perigosa mas indispensável da ignorância à filosofia e portanto da escravidão à liberdade e veremos quantas vezes uma geração inteira é sacrificada à felicidade da que deve sucederlhe Quando porém a calma está restabelecida quando já está extinto o incêndio cujas flamas purificaram a nação livrandoa dos males que a oprimiam a verdade que primeiro se arrastava com lentidão precipita os passos sentase nos tronos ao lado dos monarcas e por fim nas assembléias das nações sobretudo nas repúblicas obtém culto e altares Poderseá acreditar então que as luzes que esclarecem a multidão são mais perigosas do que as trevas E que filósofo se persuadirá de que o conhecimento exato das relações que unem os objetos entre si possa ser funesto à humanidade Se o semisaber é mais perigoso do que a ignorância cega porque aos males que produz a ignorância acrescenta ainda os erros inumeráveis que resultam inevitavelmente de uma visão limitada aquém dos limites da verdade sem dúvida o dom mais precioso que um soberano pode conceder à nação e a si mesmo é confiar o depósito sagrado das leis a um homem esclarecido Acostumado a ver a verdade sem temêla acima dessa necessidade geral dos sufrágios públicos necessidade que nunca está satisfeita e que tão freqüentemente faz sucumbir a virtude habituado a tudo considerar sob os pontos de vista mais elevados ele vê a nação como uma família os seus concidadãos como irmãos e a distância que separa os grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe envolver com o olhar maior massa de homens O sábio tem necessidades e interesses que o vulgo desconhece é para ele uma necessidade não desmentir em sua conduta pública os princípios que estabeleceu nos seus escritos e o hábito que adquiriu de amar a verdade por si mesma Tais homens fariam a felicidade de uma nação mas para tornar essa felicidade durável é preciso que boas leis aumentem de tal forma o número dos sábios que quase já não seja possível fazer uma escolha errônea Outro meio de prevenir os delitos é afastar do santuário das leis a própria sombra da corrupção interessando os magistrados em conservar em toda a sua pureza o depósito que a nação lhes confia Quanto mais numerosos forem os tribunais tanto menos se poderá temer que violem as leis porque entre vários homens que se observam mutuamente a vantagem de aumentar a autoridade comum é tanto menor quanto menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco considerável para contrabalançar os perigos da empresa Se o soberano dá muito aparato pompa e autoridade à magistratura se ao mesmo tempo fecha todo acesso aos lamentos justos ou mal fundados do fraco que se julga oprimido se acostuma os súditos a temer os magistrados mais do que as leis aumentará sem dúvida o poder dos juizes mas somente à custa da segurança pública e particular Podem ainda prevenirse os crimes recompensando a virtude e podese observar que as leis atuais de todas as nações guardam a esse respeito um profundo silêncio Se os prêmios propostos pelas academias aos autores das descobertas úteis alargaram os conhecimentos e aumentaram o número dos bons livros imaginese que recompensas concedidas por um monarca benfeitor não multiplicariam também as ações virtuosas A moeda da honra distribuída com sabedoria jamais se esgota e produz sempre bons frutos Afim o meio mais seguro mas ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal é aperfeiçoar a educação O assunto é vasto demais para entrar nos limites que me prescrevi Ouso porém dizer que está tão estreitamente ligado com a natureza do governo que será apenas um campo estéril e cultivado somente por um pequeno número de sábios até chegarem os séculos ainda distantes em que as leis não terão outro fim senão a felicidade pública Um grande homem que esclarece os seus semelhantes e que é por estes perseguido desenvolveu as máximas principais de uma educação verdadeiramente útil23 Fez ver que ela consistia bem menos na multidão confusa dos objetos que se apresentam às crianças do que na escolha e na precisão com as quais se lhes expõem Provou que é preciso substituir as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno Ensinou a conduzir as crianças à virtude pela estrada fácil do sentimento a afastálas do mal pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que seguem a má ação Demostrou que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado pois só produz uma obediência hipócrita e passageira XLII CONCLUSÃO DE tudo o que acaba de ser exposto pode deduzirse um teorema geral utilíssimo mas conforme ao uso que é o legislador ordinário das nações É que para não ser um ato de violência contra o cidadão a pena deve ser essencialmente pública pronta necessária a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas proporcionada ao delito e determinada pela lei APÊNDICE RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS ESSAS Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e Das Penas que é chamado fanático impostor escritor falso e perigoso satírico desenfreado sedutor do público É acusado de distilar o fel mais amargo de juntar a contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da dissimulação e de ser obscuro por perversidade O crítico pode estar certo de que não responderei às personalidades Representa ele o meu livro como uma obra horrível virulenta e de uma licença venenosa infame ímpia Encontra nele blasfêmias impudentes insolentes ironias pilhérias indecentes sutilezas perigosas motejos escandalosos calúnias grosseiras A religião e o respeito devido aos soberanos são o pretexto para duas das mais graves acusações que se acham nessas Notas e Observações Serão estas as únicas às quais me julgarei obrigado a responder Comecemos pela primeira I Acusação de impiedade 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas não conhece essa justiça que tem origem no legislador eterno que tudo vê e prevê Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas O autor do livro Dos Delitos não aprova que a interpretação da lei dependa da vontade e do capricho de um juiz Ora aquele que não quer confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça emanada de Deus O autor não admite pois uma justiça puramente divina 2 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas a Escritura santa só contém imposturas Em toda a obra Dos Delitos e das Penas só se trata da Escritura santa uma única vez é quando a propósito dos erros religiosos no capítulo XLI eu disse que não falava desse povo eleito de Deus para o qual os milagres mais extraordinários e as graças mais assinaladas substituíram a política humana 3 Toda a gente sensata encontrou no autor do livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo um mau homem e um mau filósofo Pouco me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo os que me conhecem asseguram que não sou mau homem Serei então inimigo do cristianismo quando insisto para que a tranqüilidade dos templos seja assegurada sob a proteção do governo e quando digo ao falar da sorte das grandes verdades que a revelação é a única que se conservou em sua pureza em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se se tratasse de uma simples máxima política O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama à religião um dom sagrado do céu Será provável que ele trate como simples máxima política o que lhe parece um dom sagrado do céu 5 O autor é inimigo declarado do Ser supremo Peço de todo meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem 6 Se o cristianismo causou algumas desgraças e alguns morticínios ele exageraos e silencia sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o gênero humano Não se encontrará um único lugar no meu livro que faça menção aos males causados pelo Evangelho não citei mesmo um só fato que com isso se relacione 7 O autor profere uma blasfêmia contra os ministros da religião ao dizer que suas mãos sujaramse de sangue humano Todos os que escreveram a história desde Carlos Magno24 até OtãooGrande25 e mesmo depois desse príncipe proferiram muitas vezes a mesma blasfêmia Ignorarseá que durante três séculos o clero os abades e os bispos não tiveram escrúpulo algum em marchar para a guerra E não será o caso de dizer sem blasfemar que os eclesiásticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da carnificina sujavam as mãos de sangue humano 8 Os prelados da Igreja católica tão recomendáveis por sua doçura e sua humanidade passam no livro Dos Delitos e das Penas por ser os autores de suplícios tão bárbaros quanto inúteis Não tenho culpa de ser obrigado a repetir mais de uma vez a mesma coisa Não se citará na minha obra uma só frase que diga que os prelados inventaram suplícios 9 A heresia não pode chamarse crime de lesamajestade divina segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas Não há em todo o meu livro uma palavra que possa dar lugar a tal imputação Propus me apenas tratar Dos Delitos e das Penas e não dos pecados Eu disse falando do crime de lesamajestade que somente a ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéias mais claras podem chamar por esse nome e punir como tais com o último suplício delitos de natureza diferente O crítico talvez ignore quanto se abusa da palavra lesamajestade nos tempos de tirania e de ignorância aplicandoa a delitos de gênero inteiramente diverso pois não conduziam imediatamente à destruição da sociedade Consulte a lei dos imperadores Graciano26 Valentiniano27 e Teodósio28 observe como são considerados criminosos de lesa majestade aqueles que ousam duvidar da bondade da escolha do imperador quando este conferia algum emprego Uma outra lei de Valentiniano de Teodósio e de Arcácio29 ensinarlheá que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesamajestade Era preciso um decreto do Senado para livrar da acusação de lesamajestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores embora velhas e mutiladas Somente depois de um edito dos imperadores Severo30 e Antonino é que se deixou de intentar a ação de lesamajestade contra os que vendiam as estátuas dos imperadores e esses príncipes baixaram um decreto que proibia a perseguição por esse crime daqueles que acaso tivessem lançado uma pedra contra a estátua de um imperador Domiciano31 condenou à morte uma dama romana por se ter despido diante de sua estátua Tibério 32 mandou matar como criminoso de lesamajestade um cidadão que vendera uma casa em que se achava a estátua do imperador Em séculos menos distantes do nosso verá Henrique VIII33 abusar de tal modo das leis que fez perecer por um suplício infame o duque de Norfolk sob o pretexto de crime de lesamajestade porque ele juntara as armas da Inglaterra às de sua família Esse monarca chegou a declarar culpado do mesmo crime quem quer que ousasse prever a morte do príncipe daí resultou que na sua última moléstia os seus médicos recusaram advertilo do perigo em que se achava 10 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas os hereges anatematizados pela Igreja e proscritos pelos príncipes são vítimas de uma palavra Todas essas interpretações são forçadas Limiteime a falar do crime de lesamajestade humana e a palavra lesamajestade serviu muitas vezes de pretexto à tirania sobretudo ao tempo dos imperadores romanos Toda ação que tivesse a desgraça de desagradar lhes tornavase logo um crime de lesamajestade Suetônio34 diz que o crime de lesa majestade era o delito dos que não tinham cometido delito algum Se eu disse que a ignorância e a tirania deram esse nome a delitos de natureza diferente e tornaram os homens vítimas de uma palavra não fiz senão falar segundo a história 11 Não será uma horrível blasfêmia sustentar com o autor do livro Dos Delitos e das Penas que a eloqüência a declamação e as mais sublimes verdades são um freio demasiado fraco para reter por muito tempo as paixões humanas Não penso que a acusação de blasfêmia recaia sobre o que eu disse da eloqüência e da declamação O acusador quis de certo referirse à insuficiência que eu atribuo às mais sublimes verdades Perguntolhe se julga que na Itália se conhecem essas sublimes verdades isto é as da fé Sem dúvida respondermeá que sim Mas serviram tais verdades de freio às paixões humanas na Itália Todos os oradores sacros todos os juizes todos os homens numa palavra assegurarmeão o contrário É um fato pois que as sublimes verdades são para as paixões humanas um freio que as não refreia ou que logo se parte e enquanto houver num país católico juizes criminosos prisões e castigos estará provada a insuficiência das sublimes verdades 12 O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacrílegas contra a Inquisição Meu livro não faz nenhuma menção nem direta nem indireta da Inquisição Pergunto porém ao meu acusador se lhe parece bem conforme ao espírito da Igreja a condenação de homens à morte nas fogueiras Não é do seio mesmo de Roma sob os olhos do vigário de Jesus Cristo na capital da religião católica que se cumprem hoje para com protestantes de qualquer nação todos os deveres de humanidade e hospitalidade Os últimos papas e sobretudo o atual receberam e recebem com a maior bondade os ingleses os holandeses e os russos esses povos de seitas e religiões diferentes têm em Roma toda a liberdade passível e ninguém está mais certo do que eles de gozar ali da proteção das leis e do governo 13 O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa sob cores odiosas as ordens religiosas e sobretudo os frades Seria difícil citar um só lugar do meu livro que faça menção de ordens religiosas ou de frades a menos que se interprete arbitrariamente o capitulo em que falo da ociosidade 14 O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores ímpios para os quais os eclesiásticos não passam de charlatães os monarcas de tiranos os santos de fanáticos a religião de impostura e que nem mesmo respeitam a majestade do Criador contra o qual vomitam blasfêmias hediondas Passemos às acusações de sedição II Acusações de sedição 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas considera todos os príncipes e todos os soberanos do século como tiranos cruéis Só uma vez falei no meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa e eis o que digo Feliz o gênero humano se pela primeira vez recebesse leis Hoje que vemos elevados nos tronos da Europa etc Ver o fim do cap XVI 2 Não podem deixar de espantar a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta furioso contra os soberanos e os eclesiásticos A confiança e a liberdade não são um mal Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter qui autem depravat vias suas manifestus erit35 Se aprovei nos súditos certo espírito de independência foi na medida que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros magistrados Desejo mesmo que os homens não tendo que temer a escravidão mas gozando de sua liberdade sob a proteção das leis se tornem soldados intrépidos defensores da pátria e do trono cidadãos virtuosos e magistrados incorruptíveis que levem ao pé do trono os tributos e o amor de todas as ordens da nação e que espalhem nas cabanas a segurança e a esperança de uma sorte cada vez mais doce Já não estamos nos séculos de Calígula36 de Nero37 de Heliogábalo38 e o crítico faz muito pouca justiça aos príncipes reinantes acreditando que os meus princípios possam ofendêlos 3 O autor do livro Dos Delitos e das Penas sustenta que o interesse do particular supera o de toda a sociedade em geral ou dos que a representam Se houvesse tal absurdo no livro Dos Delitos e das Penas não creio que o meu adversário tivesse feito um livro de 191 páginas para refutálo 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas contesta aos soberanos o direito de punir com a morte Como não se trata aqui nem de religião nem de governo mas somente da justeza de um raciocínio meu acusador tem toda a liberdade de julgar o que quiser Reduzo o meu silogismo desta forma Não se deve infligir a pena de morte se esta não é verdadeiramente útil e necessária Mas a pena de morte não é necessária nem verdadeiramente útil Não deve pois infligirse a pena de morte Não é este o lugar para uma dissertação sobre os direitos dos soberanos O crítico não quererá certamente sustentar que se deva infligir a pena de morte mesmo quando ela não é verdadeiramente útil nem necessária Proposta tão cruel e escandalosa não pode sair da boca de um cristão Se a segunda parte do silogismo não é exata tratarseá de um crime de lesalógica e nunca de lesamajestade Podem aliás escusarse os meus pretensos erros assemelhamse eles àqueles em que incidiram tantos cristãos zelosos da primitiva Igreja39 assemelhamse àqueles em que incorreram os frades da época de TeodósiooGrande no fim do IV século Nos seus Anais da Itália diz Muratori40 que no ano 389 Teodósio fez uma lei pela qual ordenava aos frades que permanecessem nos conventos porque levavam a caridade pelo próximo ao ponto de arrancar os criminosos das mãos da justiça não querendo que se mandasse matar ninguém Minha caridade não vai tão longe e convirei de bom grado que a daquele tempo se conduzia por falsos princípios Uma ação violenta contra a autoridade pública é sempre criminosa Restamme ainda duas palavras que dizer Haverá no mundo uma lei que proíba dizerse ou escreverse que um Estado pode existir e conservar a paz interna sem empregar a pena de morte contra qualquer culpado Conta Deodoro41 liv I cap LXV que Sabacão rei do Egito fezse admirar como modelo de demência porque comutou as penas capitais nas da escravidão e porque deu um emprego feliz à sua autoridade condenando os culpados aos trabalhos públicos Estrabão42 liv XI informanos que havia perto do Cáucaso algumas nações que não conheciam a pena de morte mesmo quando o delito merecia os maiores suplícios nemini mortem irrogare quamvis pessima merito43 Essa verdade é consignada na história romana na época da lei Pórcia que proíbe que se tire a vida de um cidadão romano se a sentença de morte não for revestida do consenso geral de todo o povo Tito Lívio44 fala dessa lei liv X cap IX Finalmente o exemplo recente de um reinado de vinte anos no mais vasto império do mundo a Rússia atesta ainda essa verdade a imperatriz Isabel morta há alguns anos jurou ao subir ao trono dos czares que não faria morrer nenhum culpado sob o seu reinado Essa augusta princesa nunca deixou de cumprir o feliz compromisso que assumira sem interromper o curso da justiça criminal e sem prejudicar a tranqüilidade pública Se esses fatos são incontestáveis será então verdade dizer que um Estado pode subsistir e ser feliz sem punir de morte nenhum criminoso EXTRATO DA CORRESPONDÊNCIA DE BECCARIA E DE MORELLET SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS De Morellet45 a Beccaria Paris fevereiro de 1766 Senhor Sem ter a honra de conhecervos julgome no direito de endereçarvos um exemplar da tradução que fiz de vossa obra Dei Delitti e delle Pene Os homens de letras são cosmopolitas e de todas as nações estão ligados por laços mais estreitos do que os que unem os cidadãos de um mesmo país os habitantes de uma mesma cidade e os membros de uma mesma família Julgo pois poder entrar convosco num comércio de idéias e de sentimentos que me será bastante agradável se não vos recusardes ao entusiasmo de um homem que vos estima sem conhecervos pessoalmente mas que adquiriu esses sentimentos por vós na leitura do vosso excelente trabalho Foi o sr de Malesherbes46 com quem tenho a honra de conviver que me empenhou em fazer passar vosso livro para a nossa língua Eu não tinha necessidade para tanto de esforçarme muito Erame uma ocupação agradável tornarme para minha nação e para o país em que nossa língua está difundida o intérprete e o órgão das idéias fortes e grandes e dos sentimentos de benevolência de que vossa obra está cheia Pareciame que me associaria ao bem que fazíeis aos homens e que poderia igualmente pretender certo reconhecimento da parte dos corações sensíveis aos quais são caros os interesses da humanidade Faz hoje oito dias que minha tradução apareceu Eu não quis escrevervos mais cedo porque julguei dever esperar que pudesse instruirvos sobre a impressão causada por vossa obra Ouso pois assegurarvos Senhor que o êxito é universal e que além da atenção despertada pelo livro se formaram pelo autor sentimentos que podem lisonjear vos ainda mais isto é a estima o reconhecimento o interesse a amizade Estou particularmente encarregado de apresentarvos os agradecimentos e os cumprimentos do sr Diderot47 do Sr Helvétius48 do Sr de Buffon49 Já conversamos muito com o sr Diderot sobre vossa obra que é bem capaz de pôr fogo a uma cabeça tão quente como é a dele Terei algumas observações que vos comunicar que são o resultado das nossas conversas O sr de Buffon serviuse das expressões mais fortes para testemunharme o prazer que vosso livro lhe causou e pedevos aceiteis os seus cumprimentos Levei também vosso livro ao Sr Rousseau50 que está em Paris de viagem para a Inglaterra aonde vai estabelecerse e que parte por estes dias Ainda não posso dizervos sua impressão porque não tornei a vêlo Talvez possa conhecêla hoje por intermédio do Sr Hume51 com quem irei jantar estou porém certo da impressão que ele terá O sr Hume que vive há tempos conosco encarregoume igualmente de dizervos mil coisas de sua parte A essas pessoas que conheceis por sua reputação acrescento um homem infinitamente estimável que as reúne em sua casa o Sr barão dHolbach52 autor de excelentes trabalhos impressos de química e de história natural e de muitos outros que não foram publicados filósofo profundo juiz esclarecidíssimo de todos os gêneros de conhecimentos alma sensível e aberta à amizade Não posso exprimirvos a impressão que vosso livro lhe causou nem quanto ele ama e estima a obra e o autor Como passamos a vida em casa dele seria preciso que o conhecêsseis primeiro porque se pudermos ter a honra de atrairvos a Paris esta casa será a vossa Enviovos pois igualmente os seus agradecimentos e as suas saudações Não vos falo do Sr dAlembert 53 que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra à minha carta Deveis conhecer sua opinião sobre vossa obra Quanto à tradução competelhe dizer vos se ficou satisfeito Não vos ocultarei a mais forte razão que me determinou a tratar de vos dar alguma boa opinião de mim a esperança de que me perdoareis mais facilmente a liberdade que tomei de fazer algumas modificações na disposição de algumas partes do vosso trabalho Apresentei no prefácio as razões gerais que me justificam convosco porém devo alongarme um pouco a esse respeito Para o espírito filosófico que se torna senhor da matéria nada mais fácil do que apreender o conjunto de vosso tratado cujas partes se ligam estreitamente e dependem todas do mesmo princípio Mas para os leitores vulgares e menos instruídos e sobretudo para os leitores franceses julgo ter seguido um caminho mais regular e em tudo mais conforme ao gênio de minha nação e à feição dos nossos livros A única objeção que posso temer é a censura de ter diminuído a força e o calor do original pelo restabelecimento mesmo dessa ordem Eis minhas respostas Sei que a verdade tem a maior necessidade da eloqüência e do sentimento Seria absurdo pensar o contrário e sobretudo não seria convosco que se poderia avançar tão estranho paradoxo Mas se não é preciso sacrificar o calor à ordem creio não ser preciso tão pouco sacrificar a ordem ao calor e tudo irá bem se se puderem conciliar essas duas coisas a um tempo Resta pois examinar se me saí bem nessa conciliação Se minha tradução tem menos calor do que o original seria preciso atribuir essa falha a muitas outras causas e não à diferença da ordem Seria ou a fraqueza do estilo do tradutor ou a natureza mesma de toda tradução que deve ficar abaixo do original sobretudo nas coisas de sentimento Não devo dissimularvos outra objeção que me fizeram Disseramme que um autor poderia chocarse ao ver em sua obra modificações mesmo úteis Mas Senhor essa maneira de ver não poderia ser a vossa Assim pelo menos o julguei Um homem de gênio que fez uma obra admirável cheia de idéias novas e fortes e excelente pelo fundo deve poder ouvir dizer friamente que o seu livro não tem toda a ordem de que era suscetível Deve ir mesmo até à adoção das modificações feitas se forem úteis e baseadas em boas razões Eis Senhor a coragem que espero de vós Rejeitai dentre as modificações feitas por mim aquelas que vos parecem malentendidas conservai as que estiverem bem e acreditai que só tereis feito aumentar vossa reputação Sois digno de que eu use para convosco dessa confiança e me lisonjeio de que o aproveis Terminarei minha justificativa citandovos grandes autoridades que aplaudiram a liberdade por mim tomada O sr dAlembert permiteme que vos diga ser essa a sua opinião O sr Hume que leu com muito cuidado o original e a tradução é do mesmo parecer Eu poderia citarvos ainda numerosas pessoas instruídas que assim também o julgaram A avidez com a qual o público recebeu aqui vossa obra fazme acreditar que a nossa primeira edição breve estará esgotada e que antes de um mês será preciso fazer outra Se na disposição que apresentei separei idéias que devam estar ligadas ou fiz aproximações que vos pareçam prejudicar o sentido peçovos que a respeito me participeis vossas observações e numa nova edição não deixarei de conformarme com vossas opiniões Termino Senhor esta longa carta rogandovos que me considereis como um dos vossos maiores admiradores e como um dos homens que mais vivamente desejam participar de vossa estima e de vossa amizade Muito me afligiria a idéia de não vôlo poder dizer um dia a vós mesmos Estou ansioso por ter vossas notícias conhecer vosso juízo sobre a minha tradução saber se continuais a marchar na bela estrada que vos abristes e a ocuparvos com o bem da humanidade É com tais sentimentos de respeito de estima e de amizade que tenho a honra de ser etc Morellet De Beccaria a Morellet Milão maio de 1766 Permitime Senhor que empregue convosco as fórmulas usadas na vossa língua como mais cômodas mais simples mais verdadeiras mais dignas por isso de um filósofo como vós Permitime igualmente que me sirva de um copista por ser a carta que vos escrevi muito pouco legível A mais profunda estima o maior reconhecimento a mais terna amizade são os sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora que vos dignastes escreverme Eu não saberia exprimirvos quanto me honra ver minha obra traduzida na língua de uma nação que esclarece e instrui a Europa Tudo devo eu mesmo aos livros franceses Foram eles que desenvolveram em minha alma os sentimentos de humanidade sufocados por oito anos de educação fanática Eu já respeitava vosso nome pelos excelentes artigos que inseristes na obra imortal da Enciclopédia54 e foi para mim a mais agradável surpresa saber que um homem de letras da vossa reputação dignavase de traduzir o meu tratado Dos Delitos Agradeço vos de todo o meu coração o presente que me fizeste de vossa tradução assim como vossa atenção em satisfazer o interesse que eu tinha em lêla Lia com um prazer que não posso exprimirvos e achei que embelezastes o original Protestovos com a maior sinceridade que a ordem que seguistes pareceme a mim mesmo mais natural e preferível à minha e que lamento que a nova edição italiana esteja quase terminada porque do contrário eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo com o vosso plano Minha obra nada perdeu de sua força em vossa tradução exceto nos lugares em que o caráter essencial a uma e a outra língua estabeleceu certa diferença entre vossa expressão e a minha A língua italiana é mais maleável e dócil e talvez por ser menos cultivada no gênero filosófico possa adotar expressões que a vossa recusaria empregar Não vejo solidez na objeção que vos fizeram de que a mudança da ordem poderia fazer perder a força A força consiste na escolha das expressões e na aproximação das idéias e a confusão só pode prejudicar esses dois efeitos O receio de ferir o amorpróprio do autor não devia detervos mais Primeiro porque como vós mesmo o dissestes com razão em vosso excelente prefácio um livro em que se defende a causa da humanidade uma vez tornado público pertence ao mundo e a todas as nações e relativamente a mim em particular eu teria feito muito poucos progressos na filosofia do coração que coloco acima da do espírito se não tivesse adquirido a coragem de ver e amar a verdade Espero que a quinta edição que deve aparecer breve esteja logo esgotada e assegurovos que na sexta observarei inteiramente ou quase inteiramente a ordem de vossa tradução que dá maior relevo às verdades que tratei de coligir Digo quase inteiramente porque segundo uma leitura única e rápida que fiz até este momento não posso decidirme com inteiro conhecimento de causa sobre as particularidades como já o fiz sobre o conjunto A impaciência que meus amigos têm de ler vossa tradução forçoume Senhor a deixála sair de minhas mãos logo depois de a ter tido e sou obrigado a dar em outra carta a explicação de certas passagens que julgastes obscuras Devo dizervos porém que tive ao escrever os exemplos de Machiavelli55 de Galileu56 e de Giannone ante os meus olhos Ouvi o ruído das cadeias firmar a superstição e os gritos de fanatismo abafar os gemidos da verdade A visão desse espetáculo medonho determinoume algumas vezes a envolver a luz de nuvens Quis defender a humanidade sem ser mártir Essa idéia de que eu devia ser obscuro tornoume às vezes tal sem necessidade Acrescentai a isso a inexperiência e a falta de hábito de escrever perdoáveis num autor que tem apenas vinte e sete anos e que há somente cinco anos entrou na carreira das letras Sermeia impossível pintarvos Senhor a satisfação com a qual vejo o interesse que tomais por mim e quanto me comovem as demonstrações de estima que me dais e que não posso aceitar sem ser vão nem rejeitar sem fazervos injúria Recebi com o mesmo reconhecimento e a mesma confusão as coisas lisonjeiras que me dissestes da parte desses homens célebres que honram a humanidade a Europa e a sua nação DAlembert Diderot Helvétius Buffon Hume nomes ilustres que não se pode ouvir pronunciar sem ficar comovido assim como vossas obras imortais são minha leitura contínua o objeto de minhas ocupações durante o dia e de minhas meditações no silêncio da noite Cheio das verdades que ensinais como poderia eu incensar o erro e aviltarme ao ponto de mentir à posteridade Minha única ocupação é cultivar em paz a filosofia e contentar assim três sentimentos muito vivos em mim o amor à reputação literária o amor à liberdade e a compaixão pelas desgraças dos homens escravos de tantos erros Data de cinco anos a época de minha conversão à filosofia e devoa à leitura das Cartas Persas57 A segunda obra que completou a revolução do meu espírito foi a do sr Helvétius Foi ele quem me lançou com força no caminho da verdade e quem primeiro despertou minha atenção para a cegueira e as desgraças da humanidade Devo à leitura do Espírito 58 uma grande parte de minhas idéias O Sr conde Firmiani regressou a Milão há vários dias mas está muito ocupado e ainda não pude vêlo Ele protegeu meu livro e é a ele que devo minha tranqüilidade Remetervosei breve algumas explicações das passagens que achastes obscuras e que não pretendo justificar porque não escrevi para não ser entendido Rogovos encarecidamente me envieis vossas observações e as dos vossos amigos para que eu as aproveite numa sexta edição Comunicaime sobretudo o resultado de vossas palestras sobre meu livro com o sr Diderot Desejo vivamente saber que impressão teve de mim essa alma sublime Tenho a honra de ser etc Beccaria Notas 1 Jurisconsulto alemão do começo do século XVII 2 Jurisconsulto piemontês falecido em 1575 3 Jurisconsulto italiano famoso por sua crueldade falecido em Roma em 1618 Deixou uma obra em treze volumes 4 Alusão ao frade Vincenzo Facchinei di Gorfri do convento de Vallombrosa que escreveu Notas e Observações cuja resposta vem publicada as Notas e Observações cuja resposta vem publicada no Apêndice deste volume 5 Thomas Hobbes 15881679 filósofo inglês autor do Leviatan obra em que defende o materialismo em filosofia o egoísmo em moral e o despotismo em política 6 Alusão a JeanJacques Rousseau de cuja autoria são os livros Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade 7 Charles de Secondat barão de Montesquieu 16891755 grande escritor francês autor das Cartas Persas e dos livros Grandeza e Decadência dos Romanos e O Espírito das Leis 8 Observese que a palavra direito não contradiz a palavra força O direito é a força submetida a leis para vantagens da maioria Entendo por justiça os laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares Se esses laços se quebrassem não haveria sociedade É mister que se evite ligar à palavra justiça a idéia de uma força física ou de um ser existente A justiça é pura e simplesmente o ponto de vista sob o qual os homens encaram as coisas morais para o bemestar de cada um Não pretendo falar aqui de justiça de Deus que é de outra natureza tendo relações imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura 9 Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão pois a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes Essa cadeia de obrigações mútuas que desce do trono até à cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade tem como único fim o interesse público que consiste na observação das convenções úteis à maioria Violada uma dessas convenções abrese a porta à desordem A palavra obrigação é uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência Existem obrigações a cumprir no comércio e na sociedade Uma obrigação supõe um raciocínio moral convenções racionadas não se pode porém emprestar à palavra obrigação uma idéia física ou real É uma palavra abstrata que precisa ser explicada Ninguém pode obrigar vos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações Nota de Beccaria 10 Isto é em vernáculo e não em latim 11 Entre os criminalistas ao contrário a confiança que merece uma testemunha aumenta em proporção da atrocidade do crime Apoiamse eles neste axioma de ferro ditado pela mais cruel imbecilidade In atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt et licet judici jura transgredi Traduzamos essa máxima hedionda para que a Europa conheça ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o saber Nos delitos mais atrozes isto é menos provável bastam as mais ligeiras circunstâncias e o juiz pode pôrse acima das leis Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes o resultado do medo fonte inesgotável das inconseqüências e dos erros humanos Os legisladores ou antes os jurisconsultos cujas opiniões são consideradas após sua morte como espécies de oráculos e que como escritores vendidos ao interesse se tornaram árbitros soberanos da sorte dos homens os legisladores repito receosos de ver condenar inocentes sobrecarregaram a jurisprudência de formalidades e exceções inúteis cuja exata observação colocaria a desordem e a impunidade no trono da justiça Outras vezes assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar acharam que deviam desprezar essas formalidades que eles próprios estabeleceram Foi assim que dominados ora por um despotismo impertinente ora por temores pueris fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio 12 Referese Beccaria a Gustavo III 17461792 que subiu ao trono da Suécia em 1771 tendo feito um governo liberal e posto em prática numerosas idéias defendidas pelos enciclopedistas franceses Morreu assassinado aos 46 anos de idade vítima de uma conspiração dos aristocratas 13 Isabel Petrovna 17091762 filha de PedrooGrande tendo subido ao trono da Rússia em 1741 14 Tito filho de Vespasiano imperador romano de 76 a 81 cognominado a delícia do gênero humano em virtude dos grandes benefícios feitos ao povo Perdi o dia Diem perdidi costumava ele dizer quando se passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma ação generosa 15 Antonino o Piedoso foi um dos sete imperadores romanos Nerva Trajano Adriano Antonio Marco Aurélio Vero e Cômodo que reinaram de 96 a 192 Seu governo de 138 a 161 caracterizouse por um notável espírito de moderação e de justiça 16 Um dos sete imperadores antoninos excelente organizador Reinou de 98 a 117 17 Nas primeiras edições desta obra eu mesmo cometi esse erro Ousei dizer que o falido de boa fé devia ser guardado como penhor de sua dívida reduzido ao estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores Envergonhome de ter escrito essas coisas cruéis Acusaramme de impiedade e de sedição sem que eu fosse sedicioso nem ímpio Ataquei os direitos da humanidade e ninguém se levantou contra mim 18 O comércio ou a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes Esses prazeres são preparados por muitos agentes mas partem de um pequeno número de mãos e se distribuem a um pequeno número de homens A maioria só raramente pode proválos numa pequena proporção Eis porque o homem se lamenta quase sempre de sua miséria Mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação e nada tem de real 19 Quando a extensão de um país aumenta em proporção maior do que a população o luxo favorece o despotismo porque a indústria particular diminui à medida que os homens estão mais dispersos e quanto menos indústria houver mais os pobres dependerão dos ricos cujo fausto os faz subsistir Tornase então tão difícil para os oprimidos reuniremse contra os opressores que as insurreições deixam de ser temidas Os homens poderosos obtém com muito mais facilidade a submissão a obediência a veneração e essa espécie de culto que torna mais sensível a distância que o despotismo estabelece entre o homem poderoso e o infeliz Os homens são mais independentes quando são menos observados e são menos observados quando são em maior número Por outro lado quando a população aumenta em maior proporção do que a extensão do país o luxo tornase ao contrário uma barreira contra o despotismo Anima a indústria com a atividade dos cidadãos O rico encontra em torno de si bastantes prazeres para entregarse completamente ao luxo de ostentação o único capaz de firmar no espírito do povo a idéia de sua dependência E pode observarse que nos Estados vastos mas fracos e despovoados o luxo de ostentação deve prevalecer se outras causas não o impedem ao passo que o luxo de comodidade tenderá a diminuir cada vez mais a ostentação nos países mais populosos do que extensos 20 Essa atração se parece em muitas coisas com a gravitação universal A força dessas duas causas diminui com a distância Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma enquanto durar sua atividade Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se põe em equilíbrio com os obstáculos que encontra ao passo que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor 21 O Evangelho 22 Ditador romano nascido em 136 a C Companheiro e mais tarde rival de Mário cônsul em 88 vencedor de Mitridates chefe do partido aristocrático e depois senhor de Roma e da Itália Proscreveu os adversários reformou a constituição romana em sentido favorável ao Senado e conseguiu enorme influência Abdicou inesperadamente em pleno fastígio e morreu no ano seguinte 80 a C 23 Referência à obra Emilio ou Da Educação 1762 romance filosófico em que JeanJacques Rousseau propõe um sistema de educação baseado no princípio de que o homem é naturalmente bom e de que sendo má a educação dada pela sociedade conviria estabelecer uma educação negativa como a melhor ou antes como a única boa A despeito de certos paradoxos esse livro teve influência salutar sobre a educação daquela época 24 Carlos Magno ou Carlos I 742814 rei dos Francos e imperador do Ocidente era filho de PepinooBreve do qual sucedeu em 768 Político profundo e hábil organizador estimava e protegia as letras criando escolas rodeandose de homens eminentes e governando com sabedoria o seu imenso império 25 Otão I o Grande 912973 imperador da Alemanha desde 936 tendo governado com grande habilidade 26 Imperador romano de 375 a 383 27 Imperador romano de 364 a 375 cujo governo foi assinalado por grande severidade e intolerância religiosa 28 Teodósio I o Grande 346395 imperador romano que contribuiu para o triunfo do cristianismo sobre o paganismo 29 Arcádio 376408 filho de Teodósio imperador do Oriente desde 395 30 Alexandre Severo 208235 imperador romano sucessor de Heliogábalo 31 Imperador romano de 81 a 96 filho de Vespasiano e de Tito célebre por sua crueldade Morreu assassinado sendo cúmplice do crime sua própria mulher Foi o último dos doze Césares 32 Segundo imperador romano de 14 a 37 famoso por sua desumanidade 33 Henrique VIII 14911547 rei da Inglaterra desde 1509 rompeu com a Igreja católica e fundou o anglicanismo Instruído artista mas cruel e libertino 34 Historiador latino autor da obra Os doze Césares coleção de anedotas de imenso interesse documental 35 Quem caminha livremente caminha com confiança quem porém se desvia do seu caminho será descoberto 36 Calígula 1241 imperador romano desde 37 Famoso por sua crueldade desejava que o povo romano tivesse uma só cabeça para decepála de um golpe Sua insensatez chegou ao ponto de dar o titulo de cônsul ao seu cavalo Incitatus 37 Imperador romano de 54 a 68 que se celebrizou por sua crueldade 38 Imperador romano de 218 a 222 e que se tornou famoso por suas loucuras e crueldades 39 Podem consultarse os santos padres e entre outros Tertuliano na sua Apolog cap XXXVII onde ele diz que os cristãos tinham por máxima sofrer ante a própria morte do que dála a alguém E no seu Tratado de Idolatria caps XVII e XXI condena ele toda espécie de cargos públicos como interditos aos cristãos porque não era possível exercêlos sem que às vezes fosse obrigado a pronunciar a pena de morte contra os criminosos 40 Lodovico Antonio Muratori 16721750 historiador Italiano 41 Deodoro da Sicília autor de uma Biblioteca Histórica 42 Geógrafo grego autor de uma preciosa Geografia Morreu sob Tibério 43 Não condenar ninguém à morte nem mesmo pelo pior delito 44 Tito Lívio 59 a C 19 d C historiador latino nascido em Pádua Deixou sob o título de Décadas uma história romana mais notável pelo estilo do que pela autenticidade dos fatos 45 André Morellet 17271819 abade literato e economista francês colaborador da Enciclopédia 46 ChrétienGuillaume de Lamoignon de Malesherbes 17211794 magistrado de grande reputação ministro sob Luiz XVI que ele defendeu perante a Convenção Morreu no cadafalso 47 Denis Diderot 17131784 filósofo francês ardente propagandista das idéias filosóficas do século XVIII um dos fundadores da Enciclopédia Deixou várias obras importantes 48 ClaudeArien Hélvetius 17151771 literato e filósofo francês autor do livro Do Espírito 49 GeorgesLouis Leclerc de Buffon 1707 1778 naturalista e escritor francês autor da História Natural 50 JeanJacques Rousseau 17121778 filósofo e escritor francês nascido em Genebra autor da Nova Heloísa do Contrato Social do Emilio ou Da Educação Confissões e Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade 51 David Hume 17111776 filósofo e historiador inglês criador da filosofia fenomenista autor de um célebre Ensaio sobre o Entendimento Humano 52 PaulHenri Holbach 17231789 barão filósofo materialista francês amigo e protetor dos Enciclopedistas 53 Jean le Rond dAlembert 17171783 célebre escritor filósofo e matemático francês um dos fundadores da Enciclopédia 54 Publicação monumental dirigida por dAlembert e Diderot que foi uma verdadeira máquina de guerra posta ao serviço das doutrinas filosóficas do século XVIII 17511772 55 Nicolau Machiavelli 14691527 político e historiador italiano autor das Décadas sobre Tito Lívio e do Príncipe 56 Galileu Galilei 15641642 ilustre matemático físico e astrônomo italiano nascido em Pisa Proclamou partilhando a teoria de Copérnico que o Sol e não a Terra é o centro do mundo planetário e que a Terra gira em torno de si mesma e tem também como os outros planetas um movimento de translação ao redor do Sol Foi por isso denunciado como herege e obrigado pela Inquisição a abjurar de joelhos as suas afirmações 1633 Depois dessa abjuração que o livrou da fogueira foi condenado ao cativeiro e morreu cego alguns anos mais tarde É famosa sua frase E pur si muove E contudo se move que teria proferido ao ser obrigado a abjurar 57 Cartas satíricas que Montesquieu publicou em 1721 sob o anônimo É uma correspondência imaginária de dois persas chegados à Europa Rica e Uzbek dirigida aos seus amigos da Pérsia e na qual o autor passa em revista com plena liberdade a política a religião e toda a sociedade francesa de sua época 58 Obra publicada em 1758 e na qual Helvétius aconselha o materialismo tendo provocado os mais vivos protestos 2001 Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasilcom Agosto 2001 Proibido todo e qualquer uso comercial Se você pagou por esse livro VOCÊ FOI ROUBADO Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS direto na fonte wwwebooksbrasilcom Fichamento textual DOS DELITOS E DAS PENAS BECCARIA Cesare Dos delitos e das penas São Paulo EDIPRO 1 Ed 2013 No primeiro capítulo o autor trata da origem das penas e do direito de punir apresentando a visão do autor sobre a origem das leis e da soberania do Estado Beccaria argumenta que a base da lei deve ser os sentimentos indeléveis do coração humano pois qualquer lei que não se baseie nesses sentimentos enfrentará resistência e será obrigada a ceder O autor acredita que as leis foram criadas para reunir os homens que antes viviam de maneira isolada e em constante estado de guerra entre si A formação das leis permitiu que eles sacrificassem parte de sua liberdade individual em troca de maior segurança e proteção A soma dessas porções de liberdade formou a soberania da nação e o soberano foi encarregado de proteger o depósito das liberdades e administrar o país No entanto Beccaria argumenta que é necessário proteger esse depósito contra as usurpações de cada indivíduo que tende a buscar o despotismo e a usurpar a liberdade dos outros Para isso foram estabelecidas penas contra os infratores das leis Beccaria enfatiza que essas penas precisam ser sensíveis e poderosas o suficiente para comprimir o espírito despótico do homem que busca constantemente retirar a liberdade dos outros O autor também defende que o conjunto de todas as pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir e qualquer exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça As penas que ultrapassam a necessidade de proteger o depósito da salvação pública são injustas por natureza Beccaria acredita que quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e a liberdade que o soberano mantiver para os súditos mais justas serão as penas aplicadas Beccaria argumenta que a base da lei deve ser os sentimentos indeléveis do coração humano pois qualquer lei que não se baseie nesses sentimentos enfrentará resistência e será obrigada a ceder O autor acredita que as leis foram criadas para reunir os homens que antes viviam de maneira isolada e em constante estado de guerra entre si A formação das leis permitiu que eles sacrificassem parte de sua liberdade individual em troca de maior segurança e proteção A soma dessas porções de liberdade formou a soberania da nação e o soberano foi encarregado de proteger o depósito das liberdades e administrar o país O autor também defende que o conjunto de todas as pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir e qualquer exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça As penas que ultrapassam a necessidade de proteger o depósito da salvação pública são injustas por natureza Beccaria acredita que quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e a liberdade que o soberano mantiver para os súditos mais justas serão as penas aplicadas O texto aborda a importância da clareza e acessibilidade das leis defendendo que elas devem ser escritas em linguagem comum para que o povo possa entendêlas e cumprir suas responsabilidades sem depender de um pequeno grupo de intérpretes das leis O autor argumenta que isso é essencial para estabelecer um governo justo e para evitar que as leis sejam alteradas ou destruídas por interesses particulares Ele também destaca o papel da imprensa na disseminação do conhecimento jurídico e na promoção da humanidade tolerância mútua e outras virtudes O autor contrasta o estado atual das coisas com o passado quando o povo era oprimido pela superstição e tirania e argumenta que a luz da razão e da clareza das leis é a chave para evitar a opressão e a injustiça Quanto a prisão Beccaria critica o direito que é concedido aos magistrados de prenderem discricionariamente os cidadãos retirandolhes a liberdade sob pretextos frívolos e deixando livres os que eles protegem o que é contrário ao fim da sociedade que é a segurança pessoal Para ele a prisão assim como todas as outras penas deve ser determinada pela lei e não pelos juízes A lei deve especificar de maneira estável os indícios de delito que permitem a prisão de um cidadão tais como clamor público fuga confissões particulares depoimentos de cúmplices do crime ameaças do acusado ódio inveterado ao ofendido e corpo de delito existente entre outras presunções semelhantes À medida que as penas se tornarem mais brandas e as prisões menos desumanas a lei poderá se contentar com indícios mais fracos para ordenar a prisão Beccaria defende que a prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida Ele critica o sistema atual da jurisprudência criminal que apresenta a ideia da força e do poder em lugar da justiça e onde a prisão entre nós é antes um suplício que um meio de deter um acusado Para Beccaria as prisões civis são vistas como mais desonrosas do que as prisões militares porque as tropas do Estado reunidas sob a autoridade das leis comuns sem dependerem imediatamente dos magistrados poderiam ser encarregadas da guarda das prisões e dessa forma a mancha de infâmia desapareceria Ele critica os preconceitos bárbaros que ainda dominam as leis e os costumes dos povos os quais estão bem longe das luzes dos povos mais avançados O autor discute a importância das formalidades e procedimentos em processos criminais afirmando que elas são necessárias para evitar a arbitrariedade dos juízes e para mostrar ao povo que os julgamentos são realizados com solenidade e de acordo com as regras No entanto essas formalidades devem ser limitadas por leis para que não prejudiquem a busca da verdade O autor também discute a confiabilidade das testemunhas afirmando que a credibilidade deve ser proporcional ao grau de amizade ou ódio que a testemunha tem pelo acusado e que várias testemunhas são necessárias para estabelecer a veracidade de um fato Ele sugere que as acusações de magia e crueldade sem motivo devem ser vistas com ceticismo e que é mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações já que as palavras não deixam vestígios e são influenciadas pela memória Por fim ele afirma que as formalidades e procedimentos devem ser limitados a fim de evitar fontes de inconvenientes e garantir a justiça Ainda o livro aborda a questão das acusações e julgamentos e discute a natureza do delito e a punição pública O autor argumenta que as acusações secretas devem ser proibidas e que as acusações públicas são mais conformes ao espírito do governo republicano onde o zelo pelo bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos Ele critica os interrogatórios sugestivos que são proibidos por nossas leis mas ao mesmo tempo autoriza a tortura o que gera uma contradição O autor argumenta que a dor é o interrogatório mais sugestivo e que o silêncio de um criminoso perante o juiz é um escândalo para a sociedade e uma ofensa para a justiça Ele afirma que a pena para aqueles que se recusam a responder ao interrogatório deve ser muito pesada mas que essa pena particular não é necessária quando o crime já foi constatado e o criminoso convencido O autor conclui que a maioria dos processos criminais envolvem culpados que negam tudo e que as confissões do acusado não são necessárias quando há provas suficientes de sua culpa O autor critica o uso da tortura como meio de obter a verdade seja para a condenação do acusado seja para a identificação de cúmplices Ele argumenta que a tortura é um método ineficaz e desumano além de ser capaz de forçar o acusado a confessar crimes que não cometeu e implicar pessoas inocentes Beccaria também questiona a justiça de se punir um homem pelos crimes de outro ao usar a tortura para identificar cúmplices Ele afirma que a descoberta de cúmplices pode ser feita através de outros meios como interrogatórios exames de provas e testemunhas sem precisar recorrer à tortura O autor também critica o uso da tortura como forma de purgar a infâmia argumentando que a infâmia é uma questão moral e não pode ser apagada pela dor física Ele explica que esse uso da tortura tem origem nas práticas religiosas em que se acredita que as nódoas da alma são purificadas pelo fogo do purgatório O autor defende que as leis devem punir não apenas o crime consumado mas também as tentativas de delito para que haja prevenção No entanto a pena para as tentativas deve ser menor do que para o crime consumado para desestimular a conclusão do delito Beccaria também discute a questão das penas para os cúmplices afirmando que elas devem ser proporcionais às suas responsabilidades Ele argumenta que a impunidade para um cúmplice que trai seus companheiros pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo mas também pode introduzir crimes de covardia e ser vista como um encorajamento à traição Por fim o autor conclui que é importante que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possíveis para que se ponham de acordo e que a impunidade para um cúmplice que revela um crime deve ser acompanhada do banimento do delator Beccaria se preocupa com a corrupção dos magistrados e afirma que eles devem respeitar as leis e não usar sutilezas para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis Ele conclui que a reforma das leis penais é necessária para garantir a confiança pública e a base respeitável dos costumes Quanto a pena de morte o autor argumento que o assassinato que é considerado um crime hediondo muitas vezes é cometido friamente e sem remorso o que pode levar as pessoas a justificarem a pena de morte como forma de punição O autor reflete sobre a validade dos exemplos históricos que são frequentemente utilizados para justificar a pena de morte argumentando que esses exemplos não têm força contra a verdade que deve ser sempre reconhecida Ele usa o exemplo de povos que se abstiveram do uso da pena de morte por um curto período de tempo demonstrando que a verdade pode se impor mesmo em meio à longa noite de trevas que envolve a humanidade O autor apresenta a importância da proporção entre os delitos e as penas argumentando que os meios empregados pela legislação para impedir crimes devem ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode se tornar mais comum O autor também destaca a importância da distribuição justa de penas para evitar a contradição de que as leis devem punir crimes que elas mesmas ajudaram a criar O texto argumenta que a distribuição desigual de penas pode levar à destruição dos sentimentos morais que foram construídos com o tempo bem como pode incentivar a prática de crimes que sejam mais vantajosos para os indivíduos em detrimento da sociedade O autor ainda enfatiza que embora seja impossível prevenir todos os abusos que possam surgir das paixões humanas as penas são obstáculos políticos que impedem os efeitos funestos do choque dos interesses pessoais sem destruir sua causa o amorpróprio Por fim o autor sugere que o legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba enfraquecer as forças que possam arruinar a sociedade e empregar as forças que possam contribuir para consolidar o edifício social O texto destaca que embora seja impossível aplicar cálculos exatos a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir é importante estabelecer divisões principais na distribuição das penas proporcionais aos delitos e evitar a aplicação de castigos menores a crimes mais graves Cesare Beccaria argumenta que a lei da pena de morte não é a melhor solução para prevenir crimes já que sobrecarrega uma parte da sociedade com suas próprias necessidades e com as dos outros Ele sugere que é mais sábio seguir o declive do rio das paixões e dividirlhe o curso num número de regatos suficientes para impedir excessos contrários Beccaria também comenta sobre a fidelidade conjugal o adultério a pederastia e o infanticídio argumentando que a punição não é a solução para prevenir esses crimes Ele conclui que não se pode chamar justa ou necessária a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação A ideia de que confiar o depósito sagrado das leis a um homem esclarecido é o dom mais precioso que um soberano pode conceder à nação e a si mesmo Um homem esclarecido é alguém que está habituado a ver a verdade sem temêla que considera tudo sob pontos de vista mais elevados e que tem o hábito de amar a verdade por si mesma Esse tipo de homem é capaz de ver a nação como uma família e seus concidadãos como irmãos e isso pode contribuir para tornar a felicidade de uma nação durável Além disso o texto sugere que é possível prevenir crimes de diferentes maneiras incluindo afastando a corrupção dos magistrados recompensando a virtude e aperfeiçoando a educação A educação é um assunto vasto e crucial para o governo pois pode ajudar a conduzir as crianças à virtude pela estrada fácil do sentimento afastandoas do mal pela força invencível da necessidade e dos inconvenientes que seguem a má ação O autor também ressalta que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado pois só produz uma obediência hipócrita e passageira Em vez disso é preciso escolher e expor com precisão os objetos que se apresentam às crianças e substituir as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno Em resumo o texto defende a importância de confiar o depósito sagrado das leis a homens esclarecidos prevenir crimes por meio de diferentes estratégias recompensar a virtude e aperfeiçoar a educação para tornar a felicidade de uma nação durável A partir do capítulo XXXVIII o autor faz constatações sobre fontes de erros e de injustiça na legislação Para tanto protesta pelo o espírito de família trazendoo como uma fonte geral de injustiças na legislação Beccaria apresenta uma reflexão crítica sobre a moralidade que é exigida pela sociedade Ele destaca que muitas vezes essa moral particular exige que cada um se sacrifique continuamente em nome do bem da família mesmo que isso não seja realmente benéfico para cada indivíduo que compõe essa família Por outro lado a moral pública ensina a buscar o bemestar sem violar as leis No entanto muitas vezes essas duas morais entram em conflito o que leva os homens a desdenhar a prática da virtude já que não conseguem reconhecêla claramente Beccaria também destaca que à medida que a sociedade cresce cada indivíduo se torna uma parte menor do todo o que enfraquece o amor pelo bem público Isso pode ser um problema pois se as leis não fortalecerem esse amor pelo bem público os indivíduos podem ser levados a cometer delitos Além disso Beccaria argumenta que as sociedades políticas têm um crescimento limitado e que se crescerem além de certos limites sua economia será perturbada Beccaria sugere que uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo se for subdividida em um certo número de pequenos estados confederados No entanto para formar essa união seria preciso um ditador poderoso que tivesse a coragem de Sila com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve para destruir Beccaria argumenta que tal homem pode esperar uma glória imortal se for ambicioso ou as bênçãos de seus concidadãos se for filósofo mesmo sem pedirlhes reconhecimento A noção de que a moral particular muitas vezes exige que os indivíduos sacrifiquem seu bemestar em nome da família ainda é uma realidade para muitas pessoas Por exemplo há culturas em que a obediência aos pais e à família é altamente valorizada e pode levar a escolhas de vida que não são necessariamente as melhores para o indivíduo mas que são consideradas as mais benéficas para a família como um todo Ao contextualizar essas ideias com a atualidade podemos perceber que muitos desses problemas ainda persistem A moral particular continua a exigir sacrifícios em nome da família e muitas vezes os indivíduos são levados a desdenhar a prática da virtude Além disso o crescimento das sociedades políticas ainda pode levar à diluição do amor pelo bem público o que pode levar a um aumento na prática de delitos Por exemplo em relação à moralidade particular versus moralidade pública a ética contemporânea tem se concentrado cada vez mais em reconhecer a interdependência entre as esferas pessoais e coletivas de moralidade Não se trata mais de escolher entre uma ou outra mas de buscar um equilíbrio e integração entre elas Além disso em relação à ideia de que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do grau de atividade dos indivíduos que o compõem essa afirmação pode ser questionada A atividade dos indivíduos pode ser um recurso valioso para o bemestar coletivo e a formulação de leis eficazes pode garantir que essa atividade seja direcionada para o bem público em vez de obstaculizálo No entanto as sugestões de Beccaria para resolver esses problemas podem não ser tão aplicáveis hoje em dia A subdivisão de um país em pequenos estados confederados pode não ser possível em muitos lugares do mundo e a ideia de um ditador poderoso pode ser vista como antidemocrática No entanto a reflexão crítica de Beccaria sobre a moralidade e o papel das leis na sociedade ainda é relevante hoje em dia e suas ideias podem inspirar novas abordagens para resolver os problemas atuais