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MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro IRACEMA José de Alencar Introdução À Terra Natal Um Filho Ausente Prólogo da 1ª edição Meu amigo Este livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da várzea no doce lar a que povoa a numerosa prole alegria e esperança do casal Imagino que é a hora mais ardente da sesta O Sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais as aves emudecem as plantas languem A natureza sofre a influência da poderosa irradiação tropical que produz o diamante e o gênio as duas mais sublimes expressões do poder criador Os meninos brincam na sombra do outão com pequenos ossos de reses que figuram a boiada Era assim que eu brincava há quantos anos em outro sítio não mui distante do seu A dona da casa terna e incansável manda abrir o coco verde ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio e agora repousa embalandose na macia e cômoda rede Abra então este livrinho que lhe chega da corte imprevisto Percorra suas páginas para desenfastiar o espírito das cousas graves que o trazem ocupado Talvez me desvaneça amor do ninho ou se iludam as reminiscências da infância avivadas recentemente Se não creio que ao abrir o pequeno volume sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea Derramao a brisa que perpassou os espatos da carnaúba e a ramagem das aroeiras em flor Essa onda é a inspiração da pátria que volve a ela agora e sempre como volve de contínuo o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri O livro é cearense Foi imaginado aí na limpidez desse céu de cristalino azul e depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação virgem Escrevio para ser lido lá na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar ao doce embalo da rede entre os múrmures do vento que crepita na areia ou farfalha nas palmas dos coqueiros Para lá pois que é o berço seu o envio Mas assim mandado por um filho ausente para muitos estranho esquecido talvez dos poucos amigos e só lembrado pela incessante desafeição qual sorte será a do livro Que lhe falte hospitalidade não há temer As auras de nossos campos parecem tão impregnadas dessa virtude primitiva que quantas raças habitem aí a inspiram com o hálito vital Receio sim que seja recebido como estrangeiro e hóspede na terra dos meus Se porém ao abordar às plagas do Mocoripe for acolhido pelo bom cearense prezado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos tempos prósperos estou certo que o filho de minha alma achará na terra de seu pai a intimidade e conchego da família O nome de outros filhos enobrece nossa província na política e na ciência entre eles o meu hoje apagado quando o trazia brilhantemente aquele que primeiro o criou Neste momento mesmo a espada heróica de muito bravo cearense vai ceifando no campo da batalha ampla messe de glória Quem não pode ilustrar a terra natal canta as lendas suas sem metro na rude toada de seus antigos filhos Acolha pois a primeira mostra e ofereça a nossos patrícios a quem é dedicada Este pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro o outro lhe direi depois que o tenha lido Muita cousa me ocorre dizer sobre o assunto que talvez devera antecipar à leitura da obra para prevenir a surpresa de alguns e responder às observações ou reparos de outros Mas sempre fui avesso aos prólogos em meu conceito eles fazem à obra o mesmo que o pássaro à fruta antes de colhida roubam as primícias do sabor literário Por isso me reservo para depois Na última página me encontrará de novo então conversaremos a gosto em mais liberdade do que teríamos neste pórtico do livro onde as etiquetas mandam receber o público com a gravidade e reverência devidas a tão alto senhor Rio de Janeiro Maio de 1865 J DE ALENCAR 1 Verdes mares bravios de minha terra natal onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do Sol nascente perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros Serenai verdes mares e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas Onde vai a afouta jangada que deixa rápida a costa cearense aberta ao fresco terral a grande vela Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce mar em fora Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas e brincam irmãos filhos ambos da mesma terra selvagem A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante que ressoa entre o marulho das vagas Iracema O moço guerreiro encostado ao mastro leva os olhos presos na sombra fugitiva da terra a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau onde folgam as duas inocentes criaturas companheiras de seu infortúnio Nesse momento o lábio arranca dalma um agro sorriso Que deixara ele na terra do exílio Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci à calada da noite quando a Lua passeava no céu argen teando os campos e a brisa rugitava nos palmares Refresca o vento O rulo das vagas precipita O barco salta sobre as ondas desaparece no horizonte Abrese a imensidade dos mares e a borrasca enverga como o condor as foscas asas sobre o abismo Deus te leve a salvo brioso e altivo barco por entre as vagas revoltas e te poje nalguma enseada amiga Soprem para ti as brandas auras e para ti jaspeie a bonança mares de leite Enquanto vogas assim à discrição do vento airoso barco volva às brancas areias a saudade que te acompanha mas não se parte da terra onde revoa 2 Além muito além daquela serra que ainda azula no horizonte nasceu Iracema Iracema a virgem dos lábios de mel que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira O favo da jati não era doce como seu sorriso nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado Mais rápida que a corça selvagem a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara O pé grácil e nu mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas Um dia ao pino do Sol ela repousava em um claro da floresta Banhavalhe o corpo a sombra da oiticica mais fresca do que o orvalho da noite Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto Iracema saiu do banho o aljôfar dágua ainda a roreja como à doce mangaba que corou em manhã de chuva Enquanto repousa empluma das penas do gará as flechas de seu arco e concerta com o sabiá da mata pousado no galho próximo o canto agreste A graciosa ará sua companheira e amiga brinca junto dela Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome outras remexe o uru de palha matizada onde traz a selvagem seus perfumes os alvos fios do crautá as agulhas da juçara com que tece a renda e as tintas de que matiza o algodão Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta Ergue a virgem os olhos que o sol não deslumbra sua vista perturba se Diante dela e todo a contemplála está um guerreiro estranho se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar nos olhos o azul triste das águas profundas Ignotas armas e tecidos ignotos cobremlhe o corpo Foi rápido como o olhar o gesto de Iracema A flecha embebida no arco partiu Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido De primeiro ímpeto a mão lesta caiu sobre a cruz da espada mas logo sorriu O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe onde a mulher é símbolo de ternura e amor Sofreu mais dalma que da ferida O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto não o sei eu Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba e correu para o guerreiro sentida da mágoa que causara A mão que rápida ferira estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava Depois Iracema quebrou a flecha homicida deu a haste ao desconhecido guardando consigo a ponta farpada O guerreiro falou Quebras comigo a flecha da paz Quem te ensinou guerreiro branco a linguagem de meus irmãos Donde vieste a estas matas que nunca viram outro guerreiro como tu Venho de bem longe filha das florestas Venho das terras que teus irmãos já possuíram e hoje têm os meus Bemvindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras senhores das aldeias e à cabana de Araquém pai de Iracema 3 O estrangeiro seguiu a virgem através da floresta Quando o Sol descambava sobre a crista dos montes e a rola desatava do fundo da mata os primeiros arrulhos eles descobriram no vale a grande taba e mais longe pendurada no rochedo à sombra dos altos juazeiros a cabana do pajé O ancião fumava à porta sentado na esteira de carnaúba meditando os sagrados ritos de Tupã O tênue sopro da brisa carmeava como frocos de algodão os compridos e raros cabelos brancos De imóvel que estava sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas profundas O pajé lobrigou os dois vultos que avançavam cuidou ver a sombra de uma árvore solitária que vinha alongandose pelo vale fora Quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque então seu olhar como o do tigre afeito às trevas conheceu Iracema e viu que a seguia um jovem guerreiro de estranha raça e longes terras As tribos tabajaras dalém Ibiapaba falavam de uma nova raça de guerreiros alvos como flores de borrasca e vindos de remota plaga às margens do Mearim O ancião pensou que fosse um guerreiro semelhante aquele que pisava os campos nativos Tranqüilo esperou A virgem aponta para o estrangeiro e diz Ele veio pai Veio bem É Tupã que traz o hóspede à cabana de Araquém Assim dizendo o pajé passou o cachimbo ao estrangeiro e entraram ambos na cabana O mancebo sentouse na rede principal suspensa no centro da habitação Iracema acendeu o fogo da hospitalidade e trouxe o que havia de provisões para satisfazer a fome e a sede trouxe o resto da caça a farinhadágua os frutos silvestres os favos de mel e o vinho de caju e ananás Depois a virgem entrou com a igaçaba que enchera na fonte próxima de água fresca para lavar o rosto e as mãos do estrangeiro Quando o guerreiro terminou a refeição o velho pajé apagou o cachimbo e falou Vieste Vim respondeu o desconhecido Bem vieste O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém Os tabajaras têm mil guerreiros para defendêlo e mulheres sem conta para servilo Dize e todos te obedecerão Pajé eu te agradeço o agasalho que me deste Logo que o Sol nascer deixarei tua cabana e teus campos aonde vim perdido mas não devo deixálos sem dizerte quem é o guerreiro que fizeste amigo Foi a Tupã que o pajé serviu ele te trouxe ele te levará Araquém nada fez pelo hóspede não pergunta donde vem e quando vai Se queres dormir desçam sobre ti os sonhos alegres se queres falar teu hóspede escuta O estrangeiro disse Sou dos guerreiros brancos que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe perto do mar onde habitam os piti guaras inimigos de tua nação Meu nome é Martim que na tua língua diz como filho de guerreiro meu sangue o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria Já meus destroçados companheiros voltaram por mar às margens do Paraíba de onde vieram e o chefe desamparado dos seus atravessa agora os vastos sertões do Apodi Só eu de tantos fiquei porque estava entre os pitiguaras de Acaraú na cabana do bravo Poti irmão de Jacaúna que plantou comigo a árvore da amizade Há três sóis partimos para a caça e perdido dos meus vim aos campos dos tabajaras Foi algum mau espírito da floresta que cegou o guerreiro branco no escuro da mata respondeu o ancião A cauã piou além na extrema do vale Caía a noite 4 O pajé vibrou o maracá e saiu da cabana porém o estrangeiro não ficou só Iracema voltara com as mulheres chamadas para servir o hóspede de Araquém e os guerreiros vindos para obedecer lhe Guerreiro branco disse a virgem o prazer embale tua rede durante a noite e o Sol traga luz a teus olhos alegria à tua alma E assim dizendo Iracema tinha o lábio trêmulo e úmida a pálpebra Tu me deixas perguntou Martim As mais belas mulheres da grande taba contigo ficam Para elas a filha de Araquém não devia ter conduzido o hóspede à cabana do pajé Estrangeiro Iracema não pode ser tua serva É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã O guerreiro cristão atravessou a cabana e sumiuse na treva A grande taba erguiase no fundo do vale iluminada pelos fachos da alegria Rugia o maracá ao quebro lento do canto selvagem batia a dança em trono a rude cadência O pajé inspirado conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã O maior chefe da nação tabajara Irapuã descera do alto da serra Ibiapaba para levar as tribos do sertão contra o inimigo pitiguara Os guerreiros do vale festejam a vinda do chefe e o próximo combate O mancebo cristão viu longe o clarão da festa e passou além e olhou o céu azul sem nuvens A estrela morta que então brilhava sobre a cúpula da floresta guiou seu passo firme para as frescas margens do Acaraú Quando ele transmontou o vale e ia penetrar na mata o vulto de Iracema surgiu A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por entre a ramagem Por que disse ela o estrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar o presente da volta Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos tabajaras O cristão sentiu quanto era justa a queixa e achouse ingrato Ninguém fez mal ao teu hóspede filha de Araquém Era o desejo de ver seus amigos que o afastava dos campos dos tabajaras Não levava o presente da volta mas leva em sua alma a lembrança de Iracema Se a lembrança de Iracema estivesse nalma do estrangeiro ela não o deixaria partir O vento não leva a areia da várzea quando a areia bebe a água da chuva A virgem suspirou Guerreiro branco espera que Caubi volte da caça O irmão de Iracema tem o ouvido sutil que pressente a boicininga entre os rumores da mata e o olhar do oitibó que vê melhor na treva Ele te guiará às margens do rio das garças Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de Araquém O Sol que vai nascer tornará com o guerreiro Caubi aos campos do Ipu Teu hóspede espera filha de Araquém mas se o Sol tornando não trouxer o irmão de Iracema ele levará o guerreiro branco à taba dos pitiguaras Martim voltou à cabana do pajé A alva rede que Iracema perfumara com a resina do benjoim guardavalhe um sono calmo e doce O cristão adormeceu ouvindo suspirar entre os murmúrios da floresta o canto mavioso da virgem indiana 5 O galodacampina ergue a poupa escarlate fora do ninho Seu límpido trinado anuncia a aproximação do dia Ainda a sombra cobre a terra Já o povo selvagem colhe as redes na grande taba e caminha para o banho O velho pajé que velou toda a noite falando às estrelas conjurando os maus espíritos das trevas entra furtivamente na cabana Eis retroa o boré pela amplidão do vale Travam das armas os rápidos guerreiros e correm ao campo Quando foram todos na vasta ocara circular Irapuã o chefe soltou o grito de guerra Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra Nós guardamos as serras donde manam os córregos com os frescos ipus onde cresce a maniva e o algodão e abandonamos ao bárbaro potiguara comedor de camarão as areias nuas do mar com os secos tabuleiros sem água e sem florestas Agora os pescadores da praia sempre vencidos deixam vir pelo mar a raça branca dos guerreiros de fogo inimigos de Tupã Já os emboabas estiveram no Jaguaribe logo estarão em nossos campos e com eles os potiguaras Faremos nós senhores das aldeias como a pomba que se encolhe em seu ninho quando a serpente enrosca pelos galhos O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo Derrubando a fronte cobre o rúbido olhar Irapuã falou disse O mais moço dos guerreiros avança O gavião paira nos ares Quando a nambu levanta ele cai das nuvens e rasga as entranhas da vítima O guerreiro tabajara filho da serra é como o gavião Troa e retroa a pocema da guerra O jovem guerreiro erguera o tacape e por sua vez o brandiu Girando no ar rápida e ameaçadora a arma do chefe passou de mão em mão O velho Andira irmão do pajé a deixou tombar e calcou no chão com o pé ágil ainda e firme Pasma o povo tabajara da ação desusada Voto de paz em tão provado e impetuoso guerreiro É o velho herói que cresceu na sanha crescendo nos anos é o feroz Andira quem derrubou o tacape núncio da próxima luta Incertos e mudos todos escutam Andira o velho Andira bebeu mais sangue na guerra do que já beberam cauim nas festas de Tupã todos quantos guerreiros alumia agora a luz de seus olhos Ele viu mais combates em sua vida do que luas lhe despiram a fronte Quanto crânio de potiguara escalpelou sua mão implacável antes que o tempo lhe arrancasse o primeiro cabelo E o velho Andira nunca temeu que o inimigo pisasse a terra de seus pais mas alegravase quando ele vinha e sentia com o faro da guerra a juventude renascer no corpo decrépito como a árvore seca renasce com o sopro do inverno A nação tabajara é prudente Ela deve encostar o tacape da luta para tanger o membi da festa Celebra Irapuã a vinda dos emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos Então Andira te promete o banquete da vitória Desabriu enfim Irapuã a funda cólera Fica tu escondido entre as igaçabas de vinho fica velho morcego porque temes a luz do dia e só bebes o sangue da vítima que dorme Irapuã leva a guerra no punho de seu tacape O terror que ele inspira voa com o rouco som do boré O potiguara já tremeu ouvindoo rugir na serra mais forte que o ribombo do mar 6 Martim vai a passo e passo por entre os altos juazeiros que cercam a cabana do pajé Era o tempo em que o doce aracati chega do mar e derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão A planta respira um doce arrepio erriça a verde coma da floresta O cristão contempla o ocaso do Sol A sombra que desce dos montes e cobre o vale penetra sua alma Lembrase do lugar onde nasceu dos entes queridos que ali deixou Sabe ele se tornará a vêlos algum dia Em torno carpe a natureza o dia que expira Soluça a onda trépida e lacrimosa geme a brisa na folhagem o mesmo silêncio anela de aflito Iracema parou em face do jovem guerreiro É a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto do estrangeiro Martim pousou brandos olhos na face da virgem Não filha de Araquém tua presença alegra como a luz da manhã Foi a lembrança da pátria que trouxe a saudade ao coração pressago Uma noiva te espera O forasteiro desviou os olhos Iracema dobrou a cabeça sobre a espádua como a tenra palma da carnaúba quando a chuva peneira na várzea Ela não é mais doce do que Iracema a virgem dos lábios de mel nem mais formosa murmurou o estrangeiro A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue e tronco onde se enlace Iracema não vive nalma de um guerreiro nunca sentiu a frescura de seu sorriso Emudeceram ambos com os olhos no chão escutando a palpitação dos seios que batiam opressos A virgem falou enfim A alegria voltará logo à alma do guerreiro branco porque Iracema quer que ele veja antes da noite a noiva que o espera Martim sorriu do ingênuo desejo da filha do pajé Vem disse a virgem Atravessaram o bosque e desceram ao vale Onde morria a falda da colina o arvoredo era basto densa abóbada de folhagem verdenegra cobria o ádito agreste reservado aos mistérios do rito bárbaro Era de jurema o bosque sagrado Em torno corriam os troncos rugosos da árvore de Tupã dos galhos pendiam ocultos pela rama escura os vasos do sacrifício lastravam o chão as cinzas de extinto fogo que servira à festa da última lua Antes de penetrar o recôndito sítio a virgem que conduzia o guerreiro pela mão hesitou inclinando o ouvido sutil aos suspiros da brisa Todos os ligeiros rumores da mata tinham uma voz para a selvagem filha do sertão Nada havia porém de suspeito no intenso respiro da floresta Iracema fez ao estrangeiro um gesto de espera e silêncio e depois desapareceu no mais sombrio do bosque O Sol ainda pairava suspenso no viso da serrania e já noite profunda enchia aquela solidão Quando a virgem tornou trazia numa folha gotas de verde e estranho licor vazadas da igaçaba que ela tirara do seio da terra Apresentou ao guerreiro a taça agreste Bebe Martim sentiu perpassar nos olhos o sono da morte porém logo a luz inundoulhe os seios dalma a força exuberou em seu coração Reviveu os dias passados melhor do que os tinha vivido fruiu a realidade de suas mais belas esperanças Eilo que volta à terra natal abraça sua velha mãe revê mais lindo e terno o anjo puro dos amores infantis Mas por que mal de volta ao berço da pátria o jovem guerreiro de novo abandona o teto paterno e demanda o sertão Já atravessa as florestas já chega aos campos do Ipu Busca na selva a filha do pajé Segue o rastro ligeiro da virgem arisca soltando à brisa com o crebro suspiro o doce nome Iracema Iracema Já a alcança e cingelhe o braço pelo talhe esbelto Cedendo à meiga pressão a virgem reclinouse ao peito do guerreiro e ficou ali trêmula e palpitante como a tímida perdiz quando o terno companheiro lhe arrufa com o bico a macia penugem O lábio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome e soluçou como se chamara outro lábio amante Iracema sentiu que sua alma se escapava para embeberse no ósculo ardente E a fronte reclinara e a flor do sorriso desabrochava já para deixarse colher Súbito a virgem tremeu soltandose rápida do braço que a cingia travou do arco 7 Iracema passou entre as árvores silenciosa como uma sombra seu olhar cintilante coava entre as folhas qual frouxos raios de estrelas ela escutava o silêncio profundo da noite e aspirava as auras sutis que aflavam Parou Uma sombra resvalava entre as ramas e nas folhas crepitava um passo ligeiro se não era o roer de algum inseto A pouco e pouco o tênue rumor foi crescendo e a sombra avultou Era um guerreiro De um salto a virgem estava em face dele trêmula de susto e mais de cólera Iracema exclamou o guerreiro recuando Anhangá turbou sem dúvida o sono de Irapuã que o trouxe perdido ao bosque da jurema onde nenhum guerreiro penetra sem a vontade de Araquém Não foi Anhangá mas a lembrança de Iracema que turbou o sono do primeiro guerreiro tabajara Irapuã desceu de seu ninho de águia para seguir na várzea a garça do rio Chegou e Iracema fugiu de seus olhos As vozes da taba contaram ao ouvido do chefe que um estrangeiro era vindo à cabana de Araquém A virgem estremeceu O guerreiro cravou nela o olhar abrasado O coração aqui no peito de Irapuã ficou tigre Pulou de raiva Veio farejando a presa O estrangeiro está no bosque e Iracema o acompanhava Quero beberlhe o sangue todo quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara talvez o ame a filha de Araquém A pupila negra da virgem cintilou na treva e de seu lábio borbulhou como gotas do leite cáustico da eufórbia um sorriso de desprezo Nunca Iracema daria seu seio que o espírito de Tupã habita só ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras Torpe é o morcego porque foge da luz e bebe o sangue da vítima adormecida Filha de Araquém não assanha o jaguar O nome de Irapuã voa mais longe que o goaná do lago quando sente a chuva além das serras Que o guerreiro branco venha e o seio de Iracema se abra para o vencedor O guerreiro branco é hóspede de Araquém A paz o trouxe aos campos do Ipu a paz o guarda Quem ofender o estrangeiro ofende o pajé Rugiu de sanha o chefe tabajara A raiva de Irapuã só ouve agora o grito da vingança O estrangeiro vai morrer A filha de Araquém é mais forte que o chefe dos guerreiros disse Iracema travando da inúbia Ela tem aqui a voz de Tupã que chama seu povo Mas ela não chamará respondeu o chefe escarnecendo Não porque Irapuã vai ser punido pela mão de Iracema Seu primeiro passo é o passo da morte A virgem retraiu dum salto o avanço que tomara e vibrou o arco O chefe cerrou ainda o punho do formidável tacape mas pela vez primeira sentiu que pesava ao braço robusto O golpe que devia ferir Iracema ainda não alçado já lhe trespassava a ele próprio o coração Conheceu quanto o varão forte é pela sua mesma fortaleza mais vencido das grandes paixões A sombra de Iracema não esconderá sempre o estrangeiro à vingança de Irapuã Vil é o guerreiro que se deixa proteger por uma mulher Dizendo estas palavras o chefe desapareceu entre as árvores A virgem sempre alerta volveu para o cristão adormecido e velou o resto da noite a seu lado As emoções recentes que agitaram sua alma a abriram ainda mais à doce afeição que iam filtrando nela os olhos do estrangeiro Desejava abrigálo contra todo o perigo recolhêlo em si como em um asilo impenetrável Acompanhando o pensamento seus braços cingiam a cabeça do guerreiro e a apertavam ao seio Mas quando passou a alegria de o ver salvo dos perigos da noite entroua mais viva a inquietação com a lembrança dos novos perigos que iam surgir O amor de Iracema é como o vento dos areais mata a flor das árvores suspirou a virgem E afastouse lentamente 8 A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco A luz da manhã dissipou os sonhos da noite e arrancou de sua alma a lembrança do que sonhara Ficou apenas um vago sentir como fica na moita o perfume do cacto que o vento da serra desfolha na madrugada Não sabia onde estava À saída do bosque sagrado encontrou Iracema a virgem reclinava num tronco áspero do arvoredo tinha os olhos no chão o sangue fugira das faces o coração lhe tremia nos lábios como gota de orvalho nas folhas do bambu Não tinha sorrisos nem cores a virgem indiana não tem borbulhas nem rosas a acácia que o sol crestou não tem azul nem estrelas a noite que enlutam os ventos As flores da mata já abriram aos raios do Sol as aves já cantaram disse o guerreiro Por que só Iracema curva a fronte e emudece A filha do pajé estremeceu Assim estremece a verde palma quando a haste frágil foi abalada rorejam do espato as lágrimas da chuva e os leques ciciam brandamente O guerreiro Caubi vai chegar à taba de seus irmãos O estrangeiro poderá partir com o Sol que vem nascendo Iracema quer ver o estrangeiro fora dos campos dos tabajaras então a alegria voltará a seu seio A juruti quando a árvore seca abandona o ninho em que nasceu Nunca mais a alegria voltará ao seio de Iracema ela vai ficar como o tronco nu sem ramas nem sombras Martim amparou o corpo trêmulo da virgem ela reclinou lânguida sobre o peito do guerreiro como o tenro pâmpano da baunilha que enlaça o rijo galho do angico O mancebo murmurou Teu hóspede fica virgem dos olhos negros ele fica para ver abrir em tuas faces a flor da alegria e para colher como a abelha o mel de teus lábios Iracema soltouse dos braços do mancebo e olhouo com tristeza Guerreiro branco Iracema é filha do pajé e guarda o segredo da jurema O guerreiro que possuísse a virgem de Tupã morreria E Iracema Pois que tu morrias Esta palavra foi sopro de tormenta A cabeça do mancebo vergou e pendeu sobre o peito mas logo se ergueu Os guerreiros de meu sangue trazem a morte consigo filha dos tabajaras Não a temem para si não a poupam para o inimigo Mas nunca fora do combate eles deixarão aberto o camucim da virgem na taba de seu hóspede A verdade falou pela boca de Iracema O estrangeiro deve abandonar os campos dos tabajaras Deve respondeu a virgem como um eco Depois sua voz suspirou O mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no tronco da guabiroba tem na doçura o veneno A virgem dos olhos azuis e dos cabelos do sol guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o mel da açucena Martim afastouse rápido e voltou mas lentamente A palavra tremia em seu lábio O estrangeiro partirá para que o sossego volte ao seio da virgem Tu levas a luz dos olhos de Iracema e a flor de sua alma Reboa longe na selva um clamor estranho O olhos do mancebo alongamse É o grito de alegria do guerreiro Caubi disse a virgem O irmão de Iracema anuncia sua boa chegada aos campos dos tabajaras Filha de Araquém guia teu hóspede à cabana É tempo de partir Eles caminharam par a par como dois jovens cervos que ao pôrdosol atravessam a capoeira recolhendo ao aprisco de onde lhes traz a brisa um faro suspeito Quando passavam entre os juazeiros viram que atravessava além o guerreiro Caubi vergando os ombros robustos ao peso da caça Iracema caminhou para ele O estrangeiro entrou só na cabana 9 O sono da manhã pousava nos olhos do pajé como névoas de bonança pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha Martim parou indeciso mas o rumor de seu passo penetrou no ouvido do ancião e abalou o corpo decrépito Araquém dorme murmurou o guerreiro devolvendo o passo O velho ficou imóvel O pajé dorme porque já Tupã voltou o rosto para a terra e a luz correu os maus espíritos da treva Mas o sono é leve nos olhos de Araquém como o fumo do sapé no cocuruto da serra Se o estrangeiro veio para o pajé fale seu ouvido escuta O estrangeiro veio para te anunciar que parte O hóspede é o senhor na cabana de Araquém todos os caminhos estão abertos para ele Tupã o leve à taba dos seus Vieram Caubi e Iracema Caubi voltou disse o guerreiro tabajara Traz a Araquém o melhor de sua caça O guerreiro Caubi é um grande caçador de montes e florestas Os olhos de seu pai gostam de vêlo O velho abriu as pálpebras e cerrouas logo Filha de Araquém escolhe para teu hóspede o presente da volta e prepara o moquém da viagem Se o estrangeiro precisa de guia o guerreiro Caubi senhor do caminho o acompanhará O sono voltou aos olhos do pajé Enquanto Caubi pendurava no fumeiro as peças de caça Iracema colheu a sua alva rede de algodão com franjas de penas e acomodoua dentro do uru de palha trançada Martim esperava na porta da cabana A virgem veio a ele Guerreiro que levas o sono de meus olhos leva a minha rede também Quando nela dormires falem em tua alma os sonhos de Iracema Tua rede virgem dos tabajaras será minha companheira no deserto venha embora o vento frio da noite ela guardará para o estrangeiro o calor e o perfume do seio de Iracema Caubi saiu para ir à sua cabana que ainda não tinha visto depois da volta Iracema foi preparar o moquém da viagem Ficaram sós na cabana o pajé que ressonava e o mancebo com sua tristeza O Sol transmontando já começava a declinar para o ocidente quando o irmão de Iracema tornou da grande taba O dia vai ficar triste disse Caubi A sombra caminha para a noite É tempo de partir A virgem pousou a mão de leve no punho da rede de Araquém Ele vai murmuraram os lábios trêmulos O pajé levantouse em pé no meio da cabana e acendeu o cachimbo Ele e o mancebo trocaram a fumaça da despedida Bemido seja o hóspede como foi bemvindo à cabana de Araquém O velho andou até a porta para soltar ao vento uma espessa baforada de tabaco quando o fumo se dissipou no ar ele murmurou Jurupari se esconda para deixar passar o hóspede do pajé Araquém voltou à rede e dormiu de novo O mancebo tomou as suas armas mais pesadas que chegando suspendera às varas da cabana e se dispôs a partir Adiante seguiu Caubi a alguma distância o estrangeiro logo após Iracema Desceram a colina e entraram na mata sombria O sabiádosertão mavioso cantor da tarde escondido nas moitas espessas da ubaia soltava já os prelúdios da suave endecha A virgem suspirou A tarde é a tristeza do Sol Os dias de Iracema vão ser longas tardes sem manhã até que venha para ela a grande noite O mancebo se voltara Seu lábio emudeceu mas os olhos falaram Uma lágrima correu pela face guerreira como as umidades que durante os ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos Caubi avançando sempre sumirase entre a densa ramagem O seio da filha de Araquém arfou como o esto da vaga que se franja de espuma e soluçou Mas sua alma negra de tristura teve ainda um pálido reflexo para iluminar a seca flor das faces Assim em noite escura vem um fogofátuo luzir as brancas areias do tabuleiro Estrangeiro toma o último sorriso de Iracema e foge A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem Ficaram ambas assim unidas como dois frutos gêmeos do araçá que saíram do seio da mesma flor A voz de Caubi chamou o estrangeiro Iracema abraçou para não cair o tronco de uma palmeira 10 Na cabana silenciosa medita o velho pajé Iracema está apoiada no tronco rudo que serve de esteio Os grandes olhos negros fitos nos recortes da floresta e rasos de pranto parece estão naqueles olhares longos e trêmulos enfiando e desfiando os aljôfares das lágrimas que rorejam as faces A ará pousada no jirau fronteiro alonga para sua formosa senhora os verdes tristes olhos Desde que o guerreiro branco pisou a terra dos tabajaras Iracema a esqueceu Os róseos lábios da virgem não se abriram mais para que ela colhesse entre eles a polpa da fruta ou a papa do milho verde nem a doce mão a afagara uma só vez alisando a penugem dourada da cabeça Se repetia o mavioso nome da senhora o sorriso de Iracema já não se voltava para ela nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e amiga que dantes tão suave era ao seu coração Triste dela A gente tupi a chamava jandaia porque sempre alegre estrugia os campos com seu canto fremente Mas agora triste e muda desdenhada de sua senhora não parecia mais a linda jandaia e sim o feio urutau que somente sabe gemer O Sol remontou a umbria das serras seus raios douravam apenas o viso das eminências A surdina merencória da tarde que precede o silêncio da noite começava de velar os crebros rumores do campo Uma ave noturna talvez iludida com a sombra mais espessa do bosque desatou o estrídulo O velho ergueu a fronte calva Foi o canto da inhuma que acordou o ouvido de Araquém disse ele admirado A virgem estremecera e já fora da cabana voltouse para responder à pergunta do pajé É o grito de guerra do guerreiro Caubi Quando o segundo pio da inhuma ressoou Iracema corria na mata como a corça perseguida pelo caçador Só respirou chegando à campina que recortava o bosque como um grande lago Quem seus olhos primeiro viram Martim estava tranqüilamente sentado em uma sapopema olhando o que passava ali Contra cem guerreiros tabajaras com Irapuã à frente formavam arco O bravo Caubi os afrontava a todos com o olhar cheio de ira e as armas valentes empunhadas na mão robusta O chefe exigira a entrega do estrangeiro e o guia respondera simplesmente Matai Caubi antes A filha do pajé passara como uma flecha eila diante de Martim opondo também seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros Irapuã soltou o bramido da onça atacada na furna Filha do pajé disse Caubi em voz baixa Conduz o estrangeiro à cabana só Araquém pode salválo Iracema voltouse para o guerreiro branco Vem Ele ficou imóvel Se tu não vens disse a virgem Iracema morrerá contigo Martim ergueuse mas longe de seguir a virgem caminhou direito a Irapuã A sua espada flamejou no ar Os guerreiros de meu sangue chefe jamais recusaram combate Se aquele que tu vês não foi o primeiro a provocá lo é porque seus pais lhe ensinaram a não derramar sangue na terra hospedeira O chefe tabajara rugiu de alegria sua mão possante brandiu o tacape Mas os dois campeões mal tiveram tempo de medirse com os olhos quando fendiam o primeiro golpe já Caubi e Iracema estavam entre eles A filha de Araquém debalde rogava ao cristão debalde o cingia em seus braços buscando arrancálo ao combate De seu lado Caubi em vão provocava Irapuã para atrair a si a raiva do chefe A um gesto de Irapuã os guerreiros afastaram os dois irmãos o combate prosseguiu De repente o rouco som da inúbia reboou pela mata os filhos da serra estremeceram reconhecendo o estrídulo do búzio guerreiro dos pitiguaras senhores das praias ensombradas de coqueiros O eco vinha da grande taba que o inimigo talvez assaltava já Os guerreiros precipitaram levando por diante o chefe Com o estrangeiro só ficou a filha de Araquém 11 Os guerreiros tabajaras acorridos à taba esperavam o inimigo diante da caiçara Não vindo eles saíram a buscálo Bateram as matas em torno e percorreram os campos nem vestígios encontraram da passagem dos pitiguaras mas o conhecido frêmito do búzio das praias tinha ressoado ao ouvido dos guerreiros da montanha não havia duvidar Suspeitou Irapuã que fosse um ardil da filha de Araquém para salvar o estrangeiro e caminhou direito à cabana do pajé Como trota o guará pela orla da mata quando vai seguindo o rastro da presa escápula assim estugava o passo o sanhudo guerreiro Araquém viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara e não se moveu Sentado na rede com as pernas cruzadas escutava Iracema A virgem referia os sucessos da tarde avistando a figura sinistra de Irapuã saltou sobre o arco e uniuse ao flanco do jovem guerreiro branco Martim a afastou docemente de si e promoveu o passo A proteção de que o cercava a ele guerreiro a virgem tabajara o desgostava Araquém a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco Irapuã veio buscálo O hóspede é amigo de Tupã quem ofender o estrangeiro ouvirá rugir o trovão O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã roubando a sua virgem que guarda os sonhos da jurema Tua boca mente como o ronco da jibóia exclamou Iracema Martim disse Irapuã é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes O pajé falou grave e lento Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo ela morrerá mas o hóspede de Tupã é sagrado ninguém lhe tocará todos o servirão Irapuã bramiu o grito rouco troou nas arcas do peito como o frêmito da sucuri na profundeza do rio A raiva de Irapuã não pode mais ouvirte velho pajé Caia ela sobre ti se ousas subtrair o estrangeiro à vingança dos tabajaras O velho Andira irmão do pajé entrou na cabana trazia no punho o terrível tacape e nos olhos uma raiva ainda mais terrível O morcego vem te chupar o sangue se é que tens sangue e não mel nas veias tu que ameaças em sua cabana o velho pajé Araquém afastou o irmão Paz e silêncio Andira O pajé desenvolvera a alta e magra estatura como a caninana assanhada que se enrista sobre a cauda para afrontar a vítima em face As rugas afundaram e repuxando as peles engelhadas esbugalharam os dentes alvos e afilados Ousa um passo mais e as iras de Tupã te esmagarão sob o peso desta mão seca e mirrada Neste momento Tupã não é contigo replicou o chefe O pajé riu e o seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da ariranha Ouve seu trovão e treme em teu seio guerreiro como a terra em sua profundeza Araquém proferindo essa palavra terrível avançou até o meio da cabana ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força no chão súbito abriuse a terra Do antro profundo saiu um medonho gemido que parecia arrancado das entranhas do rochedo Irapuã não tremeu nem enfiou de susto mas sentiu turvarse a luz nos olhos e a voz nos lábios O senhor do trovão é por ti o senhor da guerra será por Irapuã O torvo guerreiro deixou a cabana em pouco seu grande vulto mergulhou nas sombras do crepúsculo O pajé e seu irmão travaram a prática na porta da cabana Martim ainda surpreso do que vira não tirava os olhos da funda cava que a planta do velho pajé abrira no chão da cabana Um surdo rumor como o eco das ondas quebrando nas praias ruidava ali O guerreiro cristão cismava ele não podia crer que o deus dos tabajaras desse ao seu sacerdote tamanho poder Araquém percebendo o que passava nalma do estrangeiro acendeu o cachimbo e travou do maracá É tempo de aplacar as iras de Tupã e calar a voz do trovão Disse e partiu da cabana Iracema achegouse então do mancebo levava os lábios em riso os olhos em júbilo O coração de Iracema está como o abati nágua do rio Ninguém fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araquém Arredate do inimigo virgem dos tabajaras respondeu o estrangeiro com aspereza de voz Voltando brusco para o lado oposto furtou o semblante aos olhos ternos e queixosos da virgem Que fez Iracema para que o guerreiro branco desvie seus olhos dela como se fora o verme da terra As falas da virgem ressoaram docemente no coração de Martim Assim ressoam os murmúrios da aragem nas frondes da palmeira O mancebo sentiu raiva de si e pena dela Não ouves tu virgem formosa exclamou ele apontando para o antro fremente É a voz de Tupã Teu deus falou pela boca do pajé Se a virgem de Tupã abandonar ao estrangeiro a flor de seu corpo ele morrerá Iracema pendeu a fronte abatida Não é voz de Tupã que ouve teu coração guerreiro de longes terras é o canto da virgem branca que te chama O rumor estranho que saía das profundezas da terra apagouse de repente fezse na cabana tão grande silêncio que ouviase pulsar o sangue na artéria do guerreiro e tremer o suspiro no lábio da virgem 12 O dia enegreceu era noite já O pajé tornara à cabana sopesando de novo a grossa laje fechou com ela a boca do antro Caubi chegara também da grande taba onde com seus irmãos guerreiros se recolhera depois que bateram a floresta em busca do inimigo pitiguara No meio da cabana entre as redes armadas em quadro estendeu Iracema a esteira da carnaúba e sobre ela serviu os restos da caça e a provisão de vinhos da última lua Só o guerreiro tabajara achou sabor na ceia porque o fel do coração que a tristeza espreme não amargava seu lábio O pajé bebia no cachimbo o fumo sagrado de Tupã que lhe enchia as arcas do peito o estrangeiro respirava ar às golfadas para refrescarlhe o sangue efervescente a virgem destilava sua alma como o mel de um favo nos crebros soluços que lhe estalavam entre os lábios trêmulos Já partiu Caubi para a grande taba o pajé traga as baforadas do fumo que prepara o mistério do sagrado rito Levantase no ressono da noite um grito vibrante que remonta ao céu Martim ergue a fronte e inclina o ouvido Outro clamor semelhante ressoa O guerreiro murmura que o ouça a virgem e só ela Escutou Iracema cantar a gaivota Iracema escutou o grito de uma ave que ela não conhece É a atiati a garça do mar e tu és a virgem da serra que nunca desceu às alvas praias onde arrebentam as vagas As praias são dos pitiguaras senhores das palmeiras Os guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar se chamavam a si mesmos pitiguaras senhores dos vales mas os tabajaras seus inimigos por escárnio os apelidavam potiguaras comedores de camarão Iracema não quis ofender o guerreiro branco por isso falando dos pitiguaras não lhes recusou o nome guerreiro que eles haviam tomado para si O estrangeiro reteve por um instante a palavra no seu lábio prudente enquanto refletia O canto da gaivota é o grito de guerra do valente Poti amigo de teu hóspede A virgem estremeceu por seus irmãos A fama do bravo Poti irmão de Jacaúna subiu das ribeiras do mar às alturas da serra rara é a cabana onde já não rugiu contra ele o grito de vingança porque em quase todas o golpe de seu válido tacape deitou um guerreiro tabajara em seu camucim Iracema cuidou que Poti vinha à frente de seus guerreiros para livrar o amigo Era ele sem dúvida que fizera retroar o búzio das praias no momento do combate Foi com um tom misturado de doçura e tristeza que replicou O estrangeiro está salvo os irmãos de Iracema vão morrer porque ela não falará Saia essa tristeza de tua alma O estrangeiro partindose de teus campos virgem tabajara não deixará neles rastro de sangue como o tigre esfaimado Iracema tomou a mão do guerreiro branco e beijoua Teu sorriso continua ele apagou a lembrança do mal que eles me querem Martim ergueuse e marchou para a porta Aonde vai o guerreiro branco Adiante de Poti O hóspede de Araquém não pode sair desta cabana porque os guerreiros de Irapuã o matarão Um guerreiro só deve proteção a Deus e a suas armas Não carece que o defendam os velhos e as mulheres Não vale um guerreiro só contra mil guerreiros valente e forte é o tamanduá que morde os gatos selvagens por serem muitos e o acabam Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu corpo as armas deles voam alto e direito como o anajê Todo o guerreiro tem seu dia Não queres tu que morra Iracema e queres que ela te deixe morrer Martim ficou perplexo Iracema irá ao encontro do chefe pitiguara e trará a seu hóspede as falas do guerreiro amigo O pajé saiu enfim de sua contemplação O maracá rugiulhe na destra tiniram os guizos com o passo hirto e lento Chamou ele a filha de parte Se os guerreiros de Irapuã vierem contra a cabana levanta a pedra e esconde o estrangeiro no seio da terra O hóspede não deve ficar só espera que volte Iracema Ainda não cantou a inhuma Tornou a sentarse na rede o velho A virgem partiu cerrando a porta da cabana 13 Avança a filha de Araquém nas trevas pára e escuta O grito da gaivota terceira vez ressoa ao seu ouvido ela vai direito ao lugar donde partiu chega à borda de um tanque seu olhar investiga a escuridão e nada vê do que busca A voz maviosa débil como sussurro de colibri ressoa no silêncio Guerreiro Poti teu irmão branco te chama pela boca de Iracema Só o eco respondeulhe A filha de teus inimigos vem a ti porque o estrangeiro te ama e ela ama o estrangeiro A lisa face do lago fendeuse e um vulto se mostra que nada para a margem e surge fora Foi Martim quem te mandou pois tu sabes o nome de Poti seu irmão na guerra Fala chefe pitiguara o guerreiro branco espera Torna a ele e diz que Poti é chegado para o salvar Ele sabe e mandoume a ti para ouvir As falas de Poti sairão de sua boca para o ouvido de seu irmão branco Espera então que Araquém parta e a cabana fique deserta eu te guiarei à presença do estrangeiro Nunca filha dos tabajaras um guerreiro pitiguara passou a soleira da cabana inimiga se não foi como vencedor Conduz aqui o guerreiro do mar A vingança de Irapuã fareja em roda da cabana de Araquém Trouxe o irmão do estrangeiro bastantes guerreiros pitiguaras para o defender e salvar Poti refletiu Conta virgem das serras o que sucedeu em teus campos depois que a eles chegou o guerreiro do mar Iracema referiu como a cólera de Irapuã se havia assanhado contra o estrangeiro até que a voz de Tupã chamado pelo pajé tinha apaziguado seu furor A raiva de Irapuã é como a andira foge da luz e voa nas trevas A mão de Poti cerrou súbito os lábios da virgem sua fala parecia um sopro Suspende a voz e o respiro virgem das florestas o ouvido inimigo escuta na sombra As folhas crepitavam de manso como se por elas passasse a fragueira nambu Um rumor partido da orla da mata vinha discorrendo pelo vale O valente Poti resvalando pela relva como o ligeiro camarão de que ele tomara o nome e a viveza desapareceu no lago profundo A água não soltou um murmúrio e cerrou sobre ele sua límpida onda Iracema voltou à cabana em meio do caminho perceberam seus olhos as sombras de muitos guerreiros que rojavam pelo chão como a intanha Araquém vendoa entrar partiu A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poti o guerreiro cristão ergueuse de um ímpeto para correr em defesa de seu irmão pitiguara Cingiulhe o colo Iracema com os lindos braços O chefe não carece de ti ele é filho das águas as águas o protegem Mais tarde o estrangeiro ouvirá em seus ouvidos as falas amigas Iracema é tempo que teu hóspede deixe a cabana do pajé e os campos dos tabajaras Ele não tem medo dos guerreiros de Irapuã tem medo dos olhos da virgem de Tupã Eles fugirão de ti Fuja deles o estrangeiro como o oitibó da estrela da manhã Martim promoveu o passo Vai guerreiro ingrato vai matar teu irmão primeiro depois a ti Iracema te seguirá até aos campos alegres aonde vão as sombras dos que morrem Matar meu irmão dizes tu virgem cruel Teu rastro guiará o inimigo aonde ele se oculta O cristão estacou em meio da cabana e ali permaneceu mudo e quedo Iracema receosa de fitálo tinha os olhos na sombra do guerreiro que a chama projetava na vetusta parede da cabana O cão felpudo deitado no borralho deu sinal de que se aproximava gente amiga A porta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fora Caubi entrou O cauim perturbou o espírito dos guerreiros eles vêm contra o estrangeiro A virgem ergueuse de um ímpeto Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupã para que ela esconda o estrangeiro O guerreiro tabajara sopesando a laje enorme emborcoua no chão Filho de Araquém deita na porta da cabana e mais nunca te levantes da terra se um guerreiro passar por cima de teu corpo Caubi obedeceu a virgem cerrou a porta Decorreu breve trato Ressoa perto o estrupido dos guerreiros travamse as vozes iradas de Irapuã e Caubi Eles vêm mas Tupã salvará seu hóspede Nesse instante como se o deus do trovão ouvisse as palavras de sua virgem o antro mudo em princípio retroou surdamente Ouve É a voz de Tupã Iracema cerra a mão do guerreiro e o leva à borda do antro Somemse ambos nas entranhas da terra 14 Os guerreiros tabajaras excitados com as copiosas libações do espumante cauim se inflamam à voz de Irapuã que tantas vezes os guiou ao combate quantas à vitória Aplaca o vinho a sede do corpo mas acende outra sede maior na alma feroz Rugem vingança contra o estrangeiro audaz que afrontando suas armas ofende o deus de seus pais e o chefe da guerra o primeiro varão tabajara Lá tripudiam de furor e arremetem pelas sombras a luz vermelha do ubiratã que brilha ao longe os guia à cabana de Araquém De espaço em espaço erguemse do chão os que primeiro vieram para vigiar o inimigo O pajé está na floresta murmuram eles E o estrangeiro pergunta Irapuã Na cabana com Iracema O grande chefe lança terrível salto já é chegado à porta da cabana e com ele seus valentes guerreiros O vulto de Caubi enche o vão da porta suas armas guardam diante dele o espaço de um bote do maracajá Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os caititus O jaguar senhor da floresta e o anajê senhor das nuvens combatem só o inimigo Morda o pó a boca torpe que levanta a voz contra o mais valente guerreiro dos guerreiros tabajaras Proferidas estas palavras ergue o braço de Irapuã o rígido tacape mas estaca no ar as entranhas da terra outra vez rugem como rugiram quando Araquém acordou a voz tremenda de Tupã Levantam os guerreiros medonho alarido e cercando seu chefe o arrebatam ao funesto lugar e à cólera de Tupã contra eles concitado Caubi estendese de novo na soleira da porta seus olhos adormecem mas seu ouvido vela no sono A voz de Tupã emudeceu Iracema e o cristão perdidos nas entranhas da terra descem a gruta profunda Súbito uma voz que vinha reboando pela crasta encheu seus ouvidos O guerreiro do mar escuta a fala de seu irmão É Poti o amigo de teu hóspede disse o cristão para a virgem Iracema estremeceu Ele fala pela boca de Tupã Martim respondeu enfim ao pitiguara As falas de Poti entram nalma de seu irmão Nenhum outro ouvido escuta Os da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão A mulher é fraca o tabajara traidor e o irmão de Jacaúna prudente Iracema suspirou e pousou a cabeça no peito do mancebo Senhor de Iracema cerra seus ouvidos para que ela não ouça Martim repeliu docemente a gentil fronte Fale o chefe pitiguara só o escutam ouvidos amigos e fiéis Tu ordenas Poti fala Antes que o Sol se levante na serra o guerreiro do mar deve partir para as margens do ninho das garças a estrela morta o guiará às alvas praias Nenhum tabajara o seguirá porque a inúbia dos pitiguaras rugirá da banda da serra Quantos guerreiros pitiguaras acompanham seu chefe valente Nenhum Poti veio só com suas armas Quando os espíritos maus das florestas separaram o guerreiro do mar de seu irmão Poti veio em seguimento do rastro Seu coração não deixou que voltasse para chamar os guerreiros de sua taba mas expediu seu cão fiel ao grande Jacaúna O chefe pitiguara está só não deve rugir a inúbia que chamará contra si todos os guerreiros tabajaras É preciso para salvar o irmão branco Poti zombará de Irapuã como zombou quando combatiam cem contra ti A filha do pajé que ouvira calada debruçouse ao ouvido do cristão Iracema quer te salvar e a teu irmão ela tem seu pensamento O chefe pitiguara é valente e audaz Irapuã é manhoso e traiçoeiro como a acauã Antes que chegues à floresta cairás e teu irmão da outra banda cairá contigo Que fará a virgem tabajara para salvar o estrangeiro e seu irmão perguntou Martim Mais um sol e outro e a lua das flores vai nascer É o tempo da festa em que os guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado e recebem do pajé os sonhos alegres Quando estiverem todos adormecidos o guerreiro branco deixará os campos do Ipu e os olhos de Iracema mas não sua alma Martim estreitou a virgem ao seio mas logo a repeliu O toque de seu corpo doce como a açucena da mata e quente como o ninho do beijaflor espinhou seu coração porque lhe recordou as palavras terríveis do pajé A voz do cristão transmitiu a Poti o pensamento de Iracema o chefe pitiguara prudente como o tamanduá pensou e respondeu A sabedoria falou pela boca da virgem tabajara Poti espera o nascimento da Lua 15 Nasceu o dia e expirou Já brilha na cabana de Araquém o fogo companheiro da noite Correm lentas e silenciosas no azul do céu as estrelas filhas da Lua que esperam a volta de sua mãe ausente Martim se embala docemente e como a alva rede que vai e vem sua vontade oscila de um a outro pensamento Lá o espera a virgem loura dos castos afetos aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores Iracema recostase langue ao punho da rede seus olhos negros e fúlgidos ternos olhos de sabiá buscam o estrangeiro e lhe entram nalma O cristão sorri a virgem palpita como o saí fascinado pela serpente vai declinando o lascivo talhe que se prostra sobre o peito do guerreiro Já o estrangeiro a preme ao seio e o lábio ávido busca o lábio que o espera para celebrar nesse ádito dalma o himeneu do amor No recanto escuro o velho pajé imerso em sua contemplação e alheio às cousas deste mundo soltou um gemido doloroso Pressentira o coração o que não viram os olhos Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus filhos que assim ecoou nalma de Araquém Ninguém o soube O cristão repeliu do seio a virgem indiana Ele não deixará o rastro da desgraça na cabana hospedeira Cerra os olhos para não ver e enche sua alma com o nome e a veneração do seu Deus Cristo Cristo A serenidade volta ao seio do guerreiro branco mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara ele sente correrlhe pelas veias uma centelha de ardente chama Assim quando a criança imprudente revolve o brasido de intenso fogo saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam o corpo Fecha os olhos o cristão mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem talvez mais bela Embalde chama ele o sono às pálpebras fatigadas elas se abrem malgrado seu Descelhe do céu ao atribulado pensamento uma inspiração Virgem formosa do sertão esta é a última noite que teu hóspede dorme na cabana de Araquém onde nunca viera para teu bem e seu Faze que seu sono seja alegre e feliz Manda Iracema te obedece Que pode ela para tua alegria O cristão falou submisso para que não o ouvisse o velho pajé A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém e ele quer que o sono já feche suas pálpebras e o sonho o leve à terra de seus irmãos O sono é o descanso do guerreiro disse Martim e o sonho a alegria dalma O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira nem deixála no coração de Iracema A virgem ficou imóvel Vai e torna com o vinho de Tupã Quando Iracema foi de volta já o pajé não estava na cabana tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba de algodão entretecida de penas Martim lho arrebatou das mãos e libou as poucas gotas do verde e amargo licor Não tardou que a rede recebesse seu corpo desfalecido Agora podia viver com Iracema e colher em seus lábios o beijo que ali viçava entre sorrisos como o fruto na corola da flor Podia amála e sugar desse amor o mel e o perfume sem deixar veneno no seio da virgem O gozo era vida pois o sentia mais vivo e intenso o mal era sonho e ilusão que da virgem ele não possuía mais que a imagem Iracema se afastara opressa e suspirosa Abriramse os braços do guerreiro e seus lábios o nome da virgem ressoou docemente A juruti que divaga pela floresta ouve o terno arrulho do companheiro bate as asas e voa para conchegarse ao tépido ninho Assim a virgem do sertão aninhouse nos braços do guerreiro Quando veio a manhã ainda achou Iracema ali debruçada qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do Sol em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa aurora de fruído amor Martim vendo a virgem unida ao seu coração cuidou que o sonho continuava cerrou os olhos para tornálos a abrir A pocema dos guerreiros troando pelo vale o arrancou ao doce engano sentiu que já não sonhava mas vivia Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se espanejava Os beijos de Iracema são doces no sonho o guerreiro branco encheu deles sua alma Na vida os lábios da virgem de Tupã amargam e doem como o espinho da jurema A filha de Araquém escondeu no coração a sua alegria Ficou tímida e inquieta como a ave que pressente a borrasca no horizonte Afastouse rápida e partiu As águas do rio depuraram o corpo casto da recente esposa A jandaia não tornou à cabana Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras 16 O alvo disco da Lua surgiu no horizonte A luz brilhante do Sol empalidece a virgem do céu como o amor do guerreiro desmaia a face da esposa Jaci Mãe nossa exclamaram os guerreiros tabajaras E brandindo os arcos lançaram ao céu com a chuva das flechas o canto da lua nova Veio no céu a mãe dos guerreiros já volta o rosto para ver seus filhos Ela traz as águas que enchem os rios e a polpa do caju Já veio a esposa do Sol já sorri as virgens da terra filhas suas A doce luz acende o amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da jovem mãe Cai a tarde Folgam as mulheres e os meninos na vasta ocara os mancebos que ainda não ganharam nome de guerra por algum feito brilhante discorrem no vale Os guerreiros seguem Irapuã ao bosque sagrado onde os espera o pajé e sua filha para o mistério da jurema Iracema já acendeu os fogos da alegria Araquém está imóvel e extático no seio de uma nuvem de fumo Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma oferenda a Tupã Traz um a suculenta caça outro a farinha dágua aquele o saboroso piracém da traíra O velho pajé para quem são estas dádivas as recebe com desdém Quando foram todos sentados em torno do grande fogo o ministro de Tupã ordena o silêncio com um gesto e três vezes clamando o nome terrível enchese do deus que o habita Tupã Tupã Tupã Três vezes o eco ao longe repercutiu Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro e distribui o vinho da jurema que transporta ao céu o valente tabajara Este grande caçador sonha que os veados e as pacas correm adiante de suas flechas para se traspassarem nelas fatigado por fim de ferir cava na terra o bucã e assa tamanha quantidade de caça que mil guerreiros em um ano não acabaram Outro fogoso em amores sonha que as mais belas virgens dos tabajaras deixam a cabana de seus pais e o seguem cativas de seu querer Nunca a rede de chefe algum embalou mais voluptuosas carícias que ele as frui naquele êxtase O herói sonha tremendas lutas e horríveis combates de que sai vencedor cheio de glória e fama O velho renasce na prole numerosa e como o seco tronco donde rebenta nova e robusta sebe cobrese ainda de flores Todos sentem a felicidade tão viva e contínua que no espaço da noite cuidam viver muitas luas As bocas murmuram o gesto fala e o pajé que tudo escuta e vê colhe o segredo das almas desnudas Iracema depois que ofereceu aos guerreiros o licor de Tupã saiu do bosque Não permitia o rito que ela assistisse ao sono dos guerreiros e ouvisse falar os sonhos Foi dali direito à cabana onde a esperava Martim Toma tuas armas guerreiro branco É tempo de partir Levame aonde está Poti meu irmão A virgem caminhou para o vale o cristão a seguiu Chegaram à falda do rochedo que ia morrer à beira do tanque em um maciço de verdura Chama teu irmão Martim soltou o grito da gaivota A pedra que fechava a entrada da gruta caiu e o vulto do guerreiro Poti apareceu na sombra Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito para exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração Poti está contente porque vê seu irmão que o mau espírito da floresta arrebatou de seus olhos Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poti todos os guerreiros o invejarão Iracema suspirou pensando que a afeição do pitiguara bastava à felicidade do estrangeiro Os guerreiros tabajaras dormem A filha de Araquém vai guiar os estrangeiros A virgem seguiu adiante os dois guerreiros após Quando tinham andado o espaço que transpõe a garça de um vôo o chefe pitiguara tornouse inquieto e murmurou ao ouvido do cristão Manda à filha do pajé que volte à cabana de seu pai Ela demora a marcha dos guerreiros Martim entristeceu mas a voz da prudência e da amizade penetrou em seu coração Avançou para Iracema e tirou do seio uma voz doce para acalentar a saudade da virgem Mais afunda a raiz da planta na terra mais custa a arrancála Cada passo de Iracema no caminho da partida é uma raiz que lança no coração de seu hóspede Iracema quer te acompanhar até onde acabam os campos dos tabajaras para voltar com o sossego em seu peito Martim não respondeu Continuaram a caminhar e com eles caminhava a noite as estrelas desmaiaram e a frescura da alvorada alegrou a floresta As roupas da manhã alvas como o algodão apareceram no céu Poti olhou a mata e parou Martim compreendeu e disse a Iracema Teu hóspede já não pisa os campos dos tabajaras É o instante de separarte dele 17 Iracema pousou a mão no peito do guerreiro branco A filha dos tabajaras já deixou os campos de seus pais agora pode falar Que guardas tu em teu seio virgem formosa do sertão Ela pôs os olhos cheios no cristão Iracema não pode mais separarse do estrangeiro Assim é preciso filha de Araquém Torna à cabana de teu velho pai que te espera Araquém já não tem filha Martim tornou com um gesto rudo e severo Um guerreiro da minha raça jamais deixou a cabana do hóspede viúva de sua alegria Araquém abraçará sua filha para não amaldiçoar o estrangeiro ingrato A virgem pendeu a fronte velandose com as longas tranças negras que se espargiam pelo colo cruzando ao grêmio os lindos braços recolheu em seu pudor Assim o róseo cacto que já desabrochou em formosa flor cerra em botão o seio perfumado Tua escrava te acompanhará guerreiro branco porque teu sangue dorme em seu seio Martim estremeceu Os maus espíritos da noite turbaram o espírito de Iracema O guerreiro branco sonhava quando Tupã abandonou sua virgem porque ela traiu o segredo da jurema O cristão escondeu as faces à luz Deus clamou seu lábio trêmulo Permaneceram ambos mudos e quedos Afinal disse Poti Os guerreiros tabajaras despertam O coração da virgem como o do estrangeiro ficou surdo à voz da prudência O Sol levantouse no horizonte e seu olhar majestoso desceu dos montes à floresta Poti de pé como um tronco decepado esperou que seu irmão quisesse partir Foi Iracema quem primeiro falou Vem enquanto não pisares as praias dos pitiguaras tua vida corre perigo Martim seguiu silencioso a virgem que fugia entre as árvores como a selvagem cutia A tristeza lhe roía o coração mas a onda de perfumes que deixava na brisa a passagem da formosa tabajara açulava o amor no seio do guerreiro Seu passo era tardo o peito lhe ofegava Poti cismava Em sua cabeça de mancebo morava o espírito de um abaeté O chefe pitiguara pensava que o amor é como o cauim o qual bebido com moderação fortalece o guerreiro e tomado em excesso abate a coragem do herói Ele sabia quanto veloz era o pé do tabajara e esperava o momento de morrer defendendo o amigo Quando as sombras da tarde entristeciam o dia o cristão parou no meio da mata Poti acendeu o fogo da hospitalidade A virgem desdobrou a alva rede de algodão franjada de penas de tucano e suspendeua aos ramos da árvore Esposo de Iracema tua rede te espera A filha de Araquém foi sentarse longe na raiz de uma árvore como a cerva solitária que o ingrato companheiro afugentou do aprisco O guerreiro pitiguara desapareceu na espessura da folhagem Martim ficou mudo e triste semelhante ao tronco dárvore a que o vento arrancou o lindo cipó que o entrelaçava A brisa perpassando levou um murmúrio Iracema Era o balido do companheiro a cerva arrufandose ganhou o doce aprisco A floresta destilava suave fragrância e exalava harmoniosos arpejos os suspiros do coração se difundiram nos múr mures do deserto Foi a festa do amor e o canto do himeneu Já a luz da manhã coou na selva densa A voz grave e sonora de Poti repercutiu no sussurro da mata O povo tabajara caminha na floresta Iracema arrancouse dos braços que a cingiam e mais do lábio que a tinha cativa saltando da rede como a rápida zabelê travou das armas do esposo e levouo através da mata De espaço a espaço o prudente Poti escutava as entranhas da terra sua cabeça moviase pesada de um a outro lado como a nuvem que se balança no cocuruto do rochedo aos vários lufos da próxima borrasca O que escuta o ouvido do guerreiro Poti Escuta o passo veloz do povo tabajara Ele vem como o tapir rompendo a floresta O guerreiro pitiguara é a ema que voa sobre a terra nós o seguiremos como suas asas disse Iracema O chefe sacudiu de novo a fronte Enquanto o guerreiro do mar dormia o inimigo correu Os que primeiro partiram já avançam além como as pontas do arco A vergonha mordeu o coração de Martim Fuja o chefe Poti e salve Iracema Só deve morrer o guerreiro mau que não escutou a voz de seu irmão e o pedido de sua esposa Martim arrepiou o passo A alma do guerreiro branco não escutou sua boca Poti e seu irmão só têm uma vida O lábio de Iracema não falou sorriu 18 Treme a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara O grande Irapuã primeiro assoma entre as árvores Seu olhar rúbido viu o guerreiro branco entre nuvens de sangue o grito rouco do tigre rompe de seu peito cavernoso O chefe tabajara e seu povo vão se precipitar sobre os fugitivos como a vaga encapelada que arrebenta no Mocoribe Eis late o cão selvagem Poti solta o grito da alegria O cão de Poti guia os guerreiros de sua taba em socorro teu O rouco búzio dos pitiguaras estruge pela floresta O grande Jacaúna senhor das praias do mar chegava do rio das garças com seus melhores guerreiros Os pitiguaras recebem o primeiro ímpeto do inimigo nas pontas eriçadas de suas flechas que eles despedem do arco aos molhos como o cuandu os espinhos do seu corpo Logo após soa a pocema estreitase o espaço e a luta se trava face a face Jacaúna atacou Irapuã Prossegue o horrível combate que bastara a dez bravos e não esgotou ainda a força dos grandes chefes Quando os dois tacapes se encontram a batalha toda estremece como um só guerreiro até as entranhas O irmão de Iracema veio direito ao estrangeiro que arrancara a filha de Araquém à cabana hospedeira o faro da vingança o guia a vista da irmã assanha a raiva em seu peito O guerreiro Caubi assalta com furor o inimigo Iracema unida ao flanco de seu guerreiro e esposo viu de longe Caubi e falou assim Senhor de Iracema ouve o rogo de tua escrava não derrama o sangue do filho de Araquém Se o guerreiro Caubi tem de morrer morra ele por esta mão não pela tua Martim pôs no rosto da virgem olhos de horror Iracema matará seu irmão Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua porque os olhos de Iracema vêem a ti e a ela não Travam a luta os guerreiros Caubi combate com furor o cristão defendese apenas mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro contra os botes do inimigo Poti já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seu válido tacape Martim lhe abandona o filho de Araquém e corre sobre Irapuã Jacaúna é um grande chefe seu colar de guerra dá três voltas ao peito O tabajara pertence ao guerreiro branco A vingança é a honra do guerreiro e Jacaúna ama o amigo de Poti O grande chefe pitiguara levou além o formidável tacape O combate renhiuse entre Irapuã e Martim A espada do cristão batendo na clava do selvagem fezse em pedaços O chefe tabajara avançou contra o peito inerme do adversário Iracema silvou como a boicininga e se arremessou ante a fúria do guerreiro tabajara A arma rígida tremeu na destra possante e o braço caiu desfalecido Soava a pocema da vitória Os guerreiros pitiguaras conduzidos por Jacaúna e Poti varriam a floresta Os tabajaras fugindo arrebataram seu chefe ao ódio da filha de Araquém que o podia abater como a jandaia abate o prócero coqueiro roendolhe o cerne Os olhos de Iracema estendidos pela floresta viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem negra de pó Aquele sangue que enrubescia a terra era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha O pranto orvalhou seu lindo semblante Martim afastouse para não envergonhar a tristeza de Iracema Deixou que sua dor nua se banhasse nas lágrimas 19 Poti voltou de perseguir o inimigo Seus olhos se encheram de alegria vendo salvo o guerreiro branco O cão fiel o seguia de perto lambendo ainda nos pêlos do focinho a marugem do sangue tabajara de que se fartara o senhor o acariciava satisfeito de sua coragem e dedicação Fora ele quem salvara Martim ali trazendo com tanta diligência os guerreiros de Jacaúna Os maus espíritos da floresta podem separar outra vez o guerreiro branco de seu irmão pitiguara O cão te seguirá daqui em diante para que mesmo de longe Poti acuda a teu chamado Mas o cão é teu companheiro e amigo fiel Mais amigo e companheiro será de Poti servindo a seu irmão que a ele Tu o chamarás Japi e ele será o pé ligeiro com que de longe corramos um para o outro Jacaúna deu o sinal da partida Os guerreiros pitiguaras caminharam para as margens alegres do rio onde bebem as garças ali se erguia a grande taba dos senhores das várzeas O Sol deitouse e de novo se levantou no céu Os guerreiros chegaram aonde a serra quebrava para o sertão já tinham passado aquela parte da montanha que por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara a gente de Tupã chamava Ibiapina Poti levou o cristão aonde crescia um frondoso jatobá que afrontava as árvores do mais alto píncaro da serrania e quando batido pela rajada parecia varrer o céu com a imensa copa Neste lugar nasceu teu irmão disse o pitiguara Martim estreitou o peito ao tronco enorme Jatobá que viste nascer meu irmão Poti o estrangeiro te abraça O raio te decepe árvore do guerreiro Poti quando seu irmão o abandonar Depois o chefe assim falou Ainda Jacaúna não era um guerreiro Jatobá o maior chefe conduzia os pitiguaras à vitória Logo que as grandes águas correram ele caminhou para a serra Aqui chegando mandou levantar a taba para estar perto do inimigo e vencêlo mais vezes A mesma Lua que o viu chegar alumiou a rede onde Saí sua esposa lhe deu mais um guerreiro de seu sangue O luar passava por entre as folhas do jatobá e o sorriso pelos lábios do varão possante que tomara seu nome e robustez Iracema aproximouse A rola que marisca na areia se afastase o companheiro adeja inquieta de ramo em ramo e arrulha para que lhe responda o ausente amigo Assim a filha das florestas errara pela encosta modulando o singelo canto mavioso Martim a recebeu com a alma no semblante e levando a esposa do lado do coração e o amigo do lado da força voltou ao rancho dos pitiguaras 20 A Lua cresceu Três sóis havia que Martim e Iracema estavam nas terras dos pitiguaras senhores das margens do Camucim e Acaraú Os estrangeiros tinham sua rede na vasta cabana do grande Jacaúna O valente chefe guardou para si a alegria de hospedar o guerreiro branco Poti abandonou sua taba para acompanhar seu irmão de guerra na cabana de seu irmão de sangue e gozar dos instantes que sobejavam do amor de Iracema para a amizade no coração do guerreiro do mar A sombra já se retirou da face da terra e Martim viu que ela não se retirara ainda da face da esposa desde o dia do combate A tristeza mora na alma de Iracema A alegria para a esposa só vem de ti quando teus olhos a deixam as lágrimas enchem os seus Por que chora a filha dos tabajaras Esta é a taba dos pitiguaras inimigos de meu povo A vista de Iracema já conheceu o crânio de seus irmãos espetado na caiçara o ouvido já escutou o canto de morte dos cativos tabajaras a mão já tocou as armas tintas do sangue de seus pais A esposa pousou as duas mãos nos ombros do guerreiro e reclinou ao peito dele Iracema tudo sofre por seu guerreiro e senhor A ata é doce e saborosa quando a machucam azeda Tua esposa não quer que seu amor azede teu coração mas que te encha das doçuras do mel Volte o sossego ao seio da filha dos tabajaras ela vai deixar a taba dos inimigos de seu povo O cristão caminhou para a cabana de Jacaúna O grande chefe alegrouse vendo chegar seu hóspede mas a alegria fugiu logo de sua fronte guerreira Martim dissera O guerreiro branco parte de tua cabana grande chefe Alguma cousa te faltou na taba de Jacaúna Nada faltou a teu hóspede Ele era feliz aqui mas a voz do coração o chama a outros sítios Então parte e leva o que é preciso para a viagem Tupã te fortaleça e traga outra vez à cabana de Jacaúna para que ele festeje tua boavinda Poti chegou sabendo que o guerreiro do mar ia partir falou Teu irmão te acompanha Os guerreiros de Poti precisam de seu chefe Se tu não queres que eles vão com Poti Jacaúna os conduzirá à vitória A cabana de Poti ficará deserta e triste Deserto e triste será o coração de teu irmão longe de ti O guerreiro do mar deixou as margens do rio das garças e caminhou para as terras onde o Sol se deita A esposa e o amigo seguem sua marcha Passam além da fértil montanha onde a abundância dos frutos criava grande quantidade de mosca de que lhe veio o nome de Meruoca Atravessam os córregos que levam suas águas ao rio das garças e avistam longe no horizonte uma alta serrania Expira o dia nuvem negra voa das bandas do mar são os urubus que pastam nas praias a carniça que o oceano arroja e com a noite tornam ao ninho Os viajantes dormem em Uruburetama Quando o Sol voltou chegaram às margens do rio que nasce da quebrada da serra e desce a planície enroscandose como uma cobra Suas voltas contínuas enganam a cada passo o peregrino que vai seguindo o tortuoso curso por isso foi chamado Mundaú Perlongando as frescas margens viu Martim no seguinte sol os verdes mares e as alvas praias onde as ondas mur murosas às vezes soluçam e outras raivam de fúria rebentando em frocos de espuma Os olhos do guerreiro branco se dilataram pela vasta imensidade seu peito suspirou Esse mar beijava também as brancas areias do Potengi seu berço natal onde ele vira a luz americana Arrojouse nas ondas e pensou banhar seu corpo nas águas da pátria como banhara sua alma nas saudades dela Iracema sentiu chorarlhe o coração mas não tardou que o sorriso de seu guerreiro o acalentasse Entretanto Poti do alto do coqueiro flechava o saboroso camorupim que brincava na pequena baía do Mundaú e preparava o moquém para a refeição 21 Já descia o Sol das alturas do céu Chegam os viajantes à foz do rio onde se criam em grande abundância as saborosas traíras suas praias são povoadas pela tribo dos pescadores da grande nação dos pitiguaras Eles receberam os estrangeiros com a hospitalidade generosa que era uma lei de sua religião e Poti com o respeito que merecia tão grande guerreiro irmão de Jacaúna maior chefe da forte gente pitiguara Para repousar os viajantes e acompanhálos na despedida o chefe da tribo recebeu Martim Iracema e Poti na jangada e abrindo a vela a brisa levouos até muito longe da costa Todos os pescadores em suas jangadas seguiam o chefe e atroavam os ares com o canto de saudade e os múrmuros do uraçá que imita os soluços do vento Além da tribo dos pescadores estava mais entrada para as serras a tribo dos caçadores Eles ocupavam as margens do Soipé cobertas de matas onde os veados as gordas pacas e os macios jacus abundavam Assim os habitadores dessas margens lhes deram o nome de país da caça O chefe dos caçadores Jaguaraçu tinha sua cabana à beira do lago que forma o rio perto do mar Aí acharam os viajantes o mesmo agasalho que haviam recebido dos pescadores Depois que partiram do Soipé os viajantes atravessaram o rio Pacoti em cujas margens cresciam as frondosas bananeiras balançando os verdes penachos mais longe o Iguape onde a água faz cintura em torno dos cômoros de areia Além assomou no horizonte um alto morro de areia que tinha a alvura da espuma do mar O cabo sobranceiro aos coqueiros parece a cabeça calva do condor esperando ali a borrasca que vem dos confins do oceano Poti conhece o grande morro das areias perguntou o cristão Poti conhece toda a terra que tem os pitiguaras desde as margens do grande rio que forma um braço do mar até à margem do rio onde habita o jaguar Ele já esteve no alto do Mocoribe e de lá viu correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos teus inimigos que estão no Mearim Por que chamas tu Mocoribe ao grande morro das areias O pescador da praia que vai na jangada lá onde voa a ati fica triste longe da terra e de sua cabana onde dormem os filhos de seu sangue Quando ele volta e que seus olhos primeiro avistam o morro das areias a alegria volta ao seio do homem Então ele diz que o morro das areias dá alegria O pescador diz bem porque teu irmão ficou contente como ele vendo o monte das areias Martim subiu com Poti ao cimo do Mocoribe Iracema seguindo com os olhos o esposo divagava como a jaçanã em torno do lindo seio que ali fez a terra para receber o mar De passagem ela colhia os doces cajus que aplacam a sede aos guerreiros e apanhava as mimosas conchas para ornar seu colo Os viajantes estiveram em Mocoribe três sóis Depois Martim levou seus passos além A esposa e o amigo o seguiram até a embocadura de um rio cujas margens eram alagadas e cobertas de mangue O mar entrando por ele formava uma bacia de água cristalina que parecia cavada na pedra como um camucim O guerreiro cristão ao percorrer essa paragem começou de cismar Até ali ele caminhava sem destino movendo seus passos ao acaso não tinha outra intenção mais que afastarse das tabas dos pitiguaras para arrancar a tristeza do coração de Iracema O cristão sabia por experiência que a viagem acalenta a saudade porque a alma pára enquanto o corpo se move Agora sentado na praia pensava Poti veio O guerreiro branco pensa o seio do irmão está aberto para receber seu pensamento Teu irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens do Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua raça Nestas águas as grandes igaras que vêm de longes terras se esconderiam do vento e do mar daqui elas iriam ao Mearim destruir os brancos tapuias aliados dos tabajaras inimigos de tua nação O chefe pitiguara meditou e respondeu Vai buscar teus guerreiros Poti plantará sua taba junto da mairi de seu irmão Aproximavase Iracema O cristão mandou com um gesto o silêncio ao chefe pitiguara A voz do esposo se cala e seus olhos se baixam quando chega Iracema Queres tu que ela se afaste Quer teu esposo que chegues mais perto para que sua voz e seus olhos penetrem mais dentro de tua alma A formosa selvagem desfezse em risos como se desfaz a flor do fruto que desponta e foi debruçarse na espádua do guerreiro Iracema te escuta Estes campos são alegres e mais serão quando Iracema neles habitar Que diz teu coração O coração da esposa está sempre alegre junto de seu senhor e guerreiro O cristão seguindo pela margem do rio escolheu um lugar para levantar a cabana Poti cortou esteios dos troncos da carnaúba a filha de Araquém ligava os leques da palmeira para vestir o teto e as paredes Martim cavou a terra com a espada e fabricou a porta das fasquias da taquara Quando veio a noite os dois esposos armaram a rede em sua nova cabana e o amigo no copiar que olhava para o nascente 22 Poti saudou o amigo e falou assim Antes que o pai de Jacaúna e Poti o valente guerreiro Jatobá mandasse sobre todos os guerreiros pitiguaras o grande tacape da nação estava na destra de Batuireté o maior chefe pai de Jatobá Foi ele que veio pelas praias do mar até o rio do jaguar e expulsou os tabajaras para dentro das terras marcando a cada tribo seu lugar depois entrou pelo sertão até a serra que tomou seu nome Quando suas estrelas eram muitas e tantas que seu camucim já não cabia as castanhas que marcavam o número o corpo vergou para a terra o braço endureceu como o galho do ubiratã que não verga seus olhos se escureceram Chamou então o guerreiro Jatobá e disse Filho toma o tacape da nação pitiguara Tupã não quer que Batuireté o leve mais à guerra pois tirou a força de seu corpo o movimento do seu braço e a luz de seus olhos Mas Tupã foi bom para ele pois lhe deu um filho como o guerreiro Jatobá Jatobá empunhou o tacape dos pitiguaras Batuireté tomou o bordão de sua velhice e caminhou Foi atravessando os vastos sertões até os campos viçosos onde correm as águas que vêm das bandas da noite Quando o velho guerreiro arrastava o passo pelas margens e a sombra de seus olhos não lhe deixava que visse mais os frutos nas árvores ou os pássaros no ar ele dizia em sua tristeza Ah meus tempos passados A gente que o ouvia chorava a ruína do grande chefe e desde então passando por aqueles lugares repetia suas palavras donde veio chamarse o rio e os campos Quixeramobim Batuireté veio pelo caminho das garças até aquela serra que tu vês longe onde primeiro habitou Lá no píncaro o velho guerreiro fez seu ninho alto como o gavião para encher o resto de seus dias conversando com Tupã Seu filho já dorme embaixo da terra e ele ainda na outra lua cismava na porta de sua cabana esperando a noite que traz o grande sono Todos os chefes pitiguaras quando acordam à voz da guerra vão pedir ao velho que lhes ensine a vencer porque nenhum outro guerreiro jamais soube como ele combater Assim as tribos não o chamam mais pelo nome senão o grande sabedor da guerra Maranguab O chefe Poti vai à serra ver seu grande avô mas antes que o dia morra ele estará de volta na cabana de seu irmão Tens tu outra vontade O guerreiro branco te acompanha Ele quer abraçar o grande chefe dos pitiguaras avô de seu irmão e dizer ao velho que renasce em seu neto Martim chamou Iracema e partiram ambos guiados pelo pitiguara para a serra do Maranguab que se levantava no horizonte Foram seguindo o curso do rio até onde nele entrava o ribeiro de Pirapora A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas onde salta o peixe no meio dos borbotões de espuma As águas ali são frescas e macias como a brisa do mar que passa entre as palmas dos coqueiros nas horas da calma Batuireté estava sentado sobre uma das lapas da cascata e o sol ardente caía sobre sua cabeça nua de cabelos e cheia de rugas como o jenipapo Assim dorme o jaburu na borda do lago Poti é chegado à cabana do grande Maranguab pai de Jatobá e trouxe seu irmão branco para ver o maior guerreiro das nações O velho soabriu as pesadas pálpebras e passou do neto ao estrangeiro um olhar baço Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem o gavião branco junto da narceja O abaeté derrubou a fronte aos peitos e não falou mais nem mais se moveu Poti e Martim julgaram que ele dormia e se afastaram com respeito para não perturbar o repouso de quem tanto obrara na longa vida Iracema que se banhava na próxima cachoeira veiolhes ao encontro trazendo na folha da taioba favos de mel puríssimo Discorreram os amigos pelas floridas encostas até que as sombras da montanha se estenderam pelo vale Tornaram então ao lugar onde tinham deixado o Maranguab O velho ainda lá estava na mesma atitude com a cabeça derrubada ao peito e os joelhos encostados à fronte As formigas subiam pelo seu corpo e os tuins adejavam em torno e pousavamlhe na calva Poti pôs a mão no crânio do velho e conheceu que era finado morrera de velhice Então o chefe pitiguara entoou o canto da morte e depois foi à cabana buscar o camucim que transbordava com as castanhas do caju Martim contou cinco vezes cinco mãos Entretanto Iracema colhia na floresta a andiroba de que foi ungido o corpo do velho no camucim onde a mão piedosa do neto o encerrou O vaso fúnebre ficou suspenso ao teto da cabana Depois que plantou urtiga em frente à porta para defender contra os animais a oca abandonada Poti despediuse triste daqueles lugares e tornou com seus companheiros à borda do mar 23 Quatro luas tinham alumiado o céu depois que Iracema deixara os campos do Ipu e três depois que ela habitava nas praias do mar a cabana de seu esposo A alegria morava em sua alma A filha dos sertões era feliz como a andorinha que abandona o ninho de seus pais e emigra para fabricar novo ninho no país onde começa a estação das flores Também Iracema achara nas praias do mar um ninho do amor nova pátria para o coração Ela discorria as amenas campinas como o colibri borboleteando entre as flores da acácia A luz da manhã já a encontrava suspensa ao ombro do esposo e sorrindo como a enrediça que entrelaça o tronco e todas as manhãs o coroa de nova grinalda Martim partia para a caça com Poti Ela separavase então dele para mais sentir o desejo de tornar a ele Perto havia uma formosa lagoa no meio da verde campina Para lá volvia a selvagem o ligeiro passo Era a hora do banho da manhã atiravase à água e nadava com as garças brancas e as vermelhas jaçanãs Os guerreiros pitiguaras que apareciam por aquelas paragens chamavam a essa lagoa da beleza porque nela se banhava Iracema a mais bela filha da raça de Tupã E desde esse tempo as mães vinham de longe mergulhar suas filhas nas águas da Porangaba que tinham a virtude de tornar as virgens formosas e amadas pelos guerreiros Depois do banho Iracema discorria até as faldas da serra do Maranguab onde nascia o ribeiro das marrecas Ali cresciam na frescura e sombra as frutas mais saborosas de todo o país delas fazia copiosa provisão e esperava se embalando nas ramas do maracujá que Martim tornasse da caça Outras vezes não era a Jereraú que a levava sua vontade mas do oposto lado junto da lagoa da Sapiranga cujas águas diziam que inflamavam os olhos À cerca daí havia um bosque frondoso de muritis que formavam no meio do tabuleiro uma grande ilha de formosas palmeiras Iracema gostava do muritiapuá onde o vento suspirava docemente ali espolpava ela o vermelho coco para fabricar a bebida refrigerante adoçada com o mel da abelha que os guerreiros amavam durante a maior calma do dia Uma manhã Poti guiou Martim à caça Caminharam para uma serra que se levanta ao lado da outra do Maranguab sua irmã O alto cabeço se curva à semelhança do bico adunco da arara pelo que os guerreiros a chamaram Aratanha Eles subiram pela encosta da Guaiúba por onde as águas descem para o vale e foram até o córrego habitado pelas pacas Só havia sol no bico da arara quando os caçadores desceram de Pacatuba ao tabuleiro De longe viram Iracema que viera esperálos à margem de sua lagoa da Porangaba Caminhava para eles com o passo altivo da garça que passeia à beira dágua por cima da carioba trazia uma cintura das flores da maniva que era o símbolo da fecundidade Colar das mesmas cingialhe o colo e ornava os rijos seios palpitantes Travou da mão do esposo e a impôs no regaço Teu sangue já vive no seio de Iracema Ela será mãe de teu filho Filho dizes tu exclamou o cristão em júbilo Ajoelhou ali e cingindoa com os braços beijou o ventre fecundo da esposa Quando ergueuse Poti falou A felicidade do mancebo é a esposa e o amigo a primeira dá alegria o segundo dá força o guerreiro sem a esposa é como a árvore sem folhas nem flores nunca ela verá o fruto O guerreiro sem amigo é como a árvore solitária no meio do campo que o vento embalança o fruto dela nunca amadura A felicidade do varão é a prole que nasce dele e faz seu orgulho cada guerreiro que sai de suas veias é mais um galho que leva seu nome às nuvens como a grimpa do cedro Amado de Tupã é o guerreiro que tem uma esposa um amigo e muitos filhos ele nada mais deseja senão a morte gloriosa Martim uniu o peito ao peito de Poti O coração do esposo e do amigo falou por tua boca O guerreiro branco é feliz chefe dos pitiguaras senhores das praias do mar e a felicidade nasceu para ele na terra das palmeiras onde recende a baunilha e foi gerada do sangue de tua raça que tem no rosto a cor do sol O guerreiro branco não quer mais outra pátria senão a pátria de seu filho e de seu coração Ao romper dalva Poti partiu para colher as sementes de crajuru que dão a mais bela tinta vermelha e a casca do angico de onde sai a cor negra mais lustrosa De caminho sua flecha certeira abateu o pato selvagem que plainava nos ares e ele arrancou das asas as longas penas Subindo ao Mocoribe rugiu a inúbia A refega que vinha do mar levou longe o rouco som O búzio dos pescadores do Trairi e a trombeta dos caçadores do Soipé responderam Martim banhouse nágua do rio e passeou na praia para secar o corpo ao vento e ao sol Ao seu lado ia Iracema que apanhava o âmbar amarelo que o mar arrojava Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a alva rede para que o amor do guerreiro se deleitasse nela Voltou Poti 24 Foi costume da raça filha de Tupã que o guerreiro trouxesse no corpo as cores de sua nação Traçavam em princípio negras riscas sobre o corpo à semelhança do pêlo do coati de onde procedeu o nome dessa arte da pintura guerreira Depois variaram as cores e muitos guerreiros costumavam escrever os emblemas de seus feitos O estrangeiro tendo adotado a pátria da esposa e do amigo devia passar por aquela cerimônia para tornarse um guerreiro vermelho filho de Tupã Nessa intenção fora Poti se prover dos objetos necessários Iracema preparou as tintas O chefe embebendo as ramas da pluma traçou pelo corpo os riscos vermelhos e pretos que ornavam a grande nação pitiguara Depois pintou na fronte uma flecha e disse Assim como a seta traspassa o duro tronco assim o olhar do guerreiro penetra nalma dos povos No braço um gavião Assim como o anajê cai das nuvens assim cai o braço do guerreiro sobre o inimigo No pé esquerdo a raiz do coqueiro Assim como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro o pé firme do guerreiro sustenta seu corpo No pé direito pintou uma asa Assim como a asa do majoí rompe os ares o pé veloz do guerreiro não tem igual na corrida Iracema tomou a rama da pena e pintou uma folha com uma abelha sobre sua voz ressoou entre sorrisos Assim como a abelha fabrica mel no coração negro do jacarandá a doçura está no peito do mais valente guerreiro Martim abriu os braços e os lábios para receber corpo e alma da esposa Meu irmão é um grande guerreiro da nação pitiguara ele precisa de um nome na língua de sua nação O nome de teu irmão está em seu corpo onde o pôs tua mão Coatiabo exclamou Iracema Tu disseste eu sou o guerreiro pintado o guerreiro da esposa e do amigo Poti deu a seu irmão o arco e o tacape que são as armas nobres do guerreiro Iracema havia tecido para ele o cocar e a araçóia ornatos dos chefes ilustres A filha de Araquém foi buscar à cabana as iguarias do festim e os vinhos de jenipapo e mandioca Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram as danças alegres Durante que volviam em torno dos fogos da alegria ressoavam as canções Poti cantava Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo assim é a amizade de Coatiabo e Poti Acudiu Iracema Como a ostra que não deixa o rochedo ainda depois de morta assim é Iracema junto a seu esposo Os guerreiros disseram Como o jatobá na floresta assim é o guerreiro Coatiabo entre o irmão e a esposa seus ramos abraçam os ramos do ubiratã e sua sombra protege a relva humilde Os fogos da alegria arderam até que veio a manhã e com eles durou o festim dos guerreiros 25 A alegria ainda morou na cabana todo o tempo que as espigas de milho levaram a amarelecer Uma alvorada caminhava o cristão pela borda do mar Sua alma estava cansada O colibri saciase de mel e perfume depois adormece em seu branco ninho de cotão até que volta no outro ano a lua das flores Como o colibri a alma do guerreiro também saturase de felicidade e carece de sono e repouso A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo as carícias da terna esposa que o esperavam na volta o doce carbeto no copiar da cabana já não acordavam nele as emoções de outrora Seu coração ressonava Iracema brincava pela praia os olhos dele retiravamse dela para se estenderem pela imensidade dos mares Viram umas asas brancas que adejavam pelos campos azuis Conheceu o cristão que era uma grande igara de muitas velas como construíam seus irmãos e a saudade da pátria apertou em seu seio Alto ia o Sol e o guerreiro na praia seguia com os olhos as asas brancas que fugiam Debalde a esposa o chamou à cabana debalde ofereceu a seus olhos as graças dela e os frutos melhores do campo Não se moveu o guerreiro senão quando a vela sumiuse no horizonte Poti voltou da serra onde pela vez primeira fora só Tinha deixado a serenidade na fronte de seu irmão e achava ali a tristeza Martim saiulhe ao encontro A igara grande do branco tapuia passou no mar Os olhos de teu irmão a viram voar para as margens do Mearim onde estão os aliados dos tupinambás inimigos de tua e minha raça Poti é senhor de mil arcos se é teu desejo ele te acompanhará com seus guerreiros às margens do Mearim para vencer o tapuitinga e seu amigo o traidor tupinambá Quando for tempo teu irmão te dirá Os guerreiros entraram na cabana onde estava Iracema A maviosa canção nesse dia tinha emudecido nos lábios da esposa Ela tecia suspirando a franja da rede materna mais larga e espessa que a rede do himeneu Poti que a viu tão ocupada falou Quando a sabiá canta é o tempo do amor quando emudece fabrica o ninho para sua prole é o tempo do trabalho Meu irmão fala como a rã quando anuncia a chuva mas a sabiá que faz seu ninho não sabe se dormirá nele A voz de Iracema gemia Seu olhar buscou o esposo Martim pensava as palavras de Iracema passaram por ele como a brisa pela face lisa da rocha sem eco nem rumores O Sol brilhava sempre sobre as praias do mar e as areias refletiam os raios ardentes mas nem a luz que vinha do céu nem a luz que ia da terra espancaram a sombra nalma do cristão Cada vez o crepúsculo era maior em sua fronte Chegou das margens do Acarú um guerreiro pitiguara mandado por Jacaúna a seu irmão Poti Ele veio seguindo o rastro dos viajantes até o Trairi onde os pescadores o guiaram à cabana Poti estava só no copiar ergueuse e abaixou a fronte para escutar com respeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca do mensageiro O tapuitinga que estava no Mearim veio pelas matas até o princípio da Ibiapaba onde fez aliança com Irapuã para combater a nação pitiguara Eles vão descer da serra às margens do rio em que bebem as garças e onde tu levantaste a taba de teus guerreiros Jacaúna te chama para defender os campos de nossos pais teu povo carece de seu maior guerreiro Volta às margens do Acaraú e teu pé não descanse enquanto não pisar o chão da cabana de Jacaúna Quando aí estiveres dize ao grande chefe Teu irmão é chegado à taba de seus guerreiros E tu não mentirás O mensageiro partiu Poti vestiu suas armas e caminhou para a várzea guiado pelo passo de Coatiabo Ele o encontrou muito além vagando entre os canaviais que bordam as margens de Jacareí O branco tapuia está na Ibiapaba para ajudar os tabajaras a combater contra Jacaúna Teu irmão corre a defender a terra de seus filhos e a taba onde dorme os camucins de seus pais Ele saberá vencer depressa para voltar à tua presença Teu irmão parte contigo Nada separa dois guerreiros amigos quando troa a inúbia da guerra Tu és grande como o mar e bom como o céu Os dois amigos abraçaramse e seguiram com o rosto para as bandas do nascente 26 Caminhando caminhando chegaram os guerreiros à margem de um lago que havia nos tabuleiros O cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar a tristeza saiu de seu coração e subiu à fronte Meu irmão disse o chefe teu pé criou raiz na terra do amor fica Poti voltará breve Teu irmão te acompanha ele disse e sua palavra é como a seta de teu arco quando soa é chegada Queres tu que Iracema te acompanhe às margens do Acaraú Nós vamos combater seus irmãos A taba dos pitiguaras não terá para ela mais que tristeza e dor A filha dos tabajaras deve ficar Que esperas tu então Teu irmão se aflige porque a filha dos tabajaras pode ficar triste e abandonar a cabana sem esperar pela sua volta Antes de partir ele queria sossegar o espírito da esposa Poti refletiu As lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro como o orvalho da manhã amolece a terra Meu irmão é um grande sabedor O esposo deve partir sem ver Iracema O cristão avançou Poti mandoulhe que esperasse da aljava de setas que Iracema emplumara de penas vermelhas e pretas e suspendera aos ombros do esposo tirou uma O chefe pitiguara vibrou o arco a seta atravessou um goiamum que discorria pelas margens do lago e só parou onde a pluma não a deixou mais entrar Fincou o guerreiro no chão a flecha com a presa atravessada e tornou para Coatiabo Tu podes partir agora Iracema seguirá teu rastro chegando aqui verá tua seta e obedecerá à tua vontade Martim sorriu e quebrando um ramo do maracujá a flor da lembrança o entrelaçou na haste da seta e partiu enfim seguido por Poti Breve desapareceram os dois guerreiros entre as árvores O calor do Sol já tinha secado seus passos na beira do lago Iracema inquieta veio pela várzea seguindo o rastro do esposo até o tabuleiro As sombras doces vestiam os campos quando ela chegou à beira do lago Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão o goiamum trespassado o ramo partido e encheramse de pranto Ele manda que Iracema ande para trás como o goiamum e guarde sua lembrança como o maracujá guarda sua flor todo o tempo até morrer A filha dos tabajaras retraiu os passos lentamente sem volver o corpo nem tirar os olhos da seta de seu esposo e tornou à cabana Aí sentada à soleira com a fronte nos joelhos esperou até que o sono acalentou a dor em seu peito Apenas alvorou o dia ela moveu o passo rápido a lagoa e chegou à margem A flecha lá estava como na véspera o esposo não tinha voltado Desde então à hora do banho em vez de buscar a lagoa da beleza onde outrora tanto gostara de nadar caminhava para aquela que vira seu esposo abandonála Sentava junto à flecha até que descia a noite então se recolhia à cabana Tão rápida partia de manhã como lenta voltava à tarde Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Porangaba agora encontrandoa triste e só como a garça viúva na margem do rio chamavam aquele sítio da Mocejana a abandonada Uma vez que a formosa filha de Araquém se lamentava à beira da lagoa da Mocejana uma voz estridente gritou seu nome do alto da carnaúba Iracema Iracema Ergueu ela os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda jandaia que batia as asas e arrufava as penas com o prazer de vêla A lembrança da pátria apagada pelo amor ressurgiu em seu pensamento Viu os formosos campos do Ipu as encostas da serra onde nascera a cabana de Araquém e teve saudades mas ainda naquele instante não se arrependeu de os ter abandonado Seu lábio gazeou em canto A jandaia abrindo as asas esvoaçoulhe em torno e pousou no ombro Alongando fagueira o colo com o negro bico alisoulhe os cabelos e beliscou a boca vermelha como uma pitanga Iracema lembrouse que tinha sido ingrata para a jandaia esquecendoa no tempo da felicidade e agora ela vinha para a consolar no tempo da desventura Nesta tarde não voltou só à cabana Durante o dia seus dedos ágeis teceram o formoso uru de palha que forrou da felpa macia da monguba para agasalhar sua companheira e amiga Na seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou A linda ave não deixou mais sua senhora ou porque depois da longa ausência não se fartasse de a ver ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem a acompanhasse em sua triste solidão 27 Uma tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavam pelas praias do mar Seu coração palpitou mais apressado Instante depois ela esquecia nos braços do esposo tantos dias de saudade e abandono que passara na solitária cabana Outra vez sua graça encheu os olhos do cristão a alegria voltou a habitar em sua alma Como a seca várzea com a vinda do nevoeiro reverdece e matizase de flores a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimouse e sua beleza esmaltouse de meigos e ternos sorrisos Martim e seu irmão haviam chegado à taba de Jacaúna quando soava a inúbia eles guiaram ao combate os mil arcos de Poti Ainda dessa vez os tabajaras apesar da aliança dos brancos tapuias do Mearim foram levados de vencida pelos valentes pitiguaras Nunca tão disputada vitória e tão renhida pugna se pelejou nos campos que regam o Acaraú e o Camucim o valor era igual de parte a parte e nenhum dos dois povos fora vencido se o deus da guerra não tivesse decidido dar estas plagas à raça do guerreiro branco aliada dos pitiguaras Logo após a vitória o cristão tornara às praias do mar onde construíra sua cabana De novo sentiu em sua alma a sede do amor e tremia de pensar que Iracema houvesse partido deixando ermo aquele sítio tão povoado outrora pela felicidade O cristão amou outra vez a filha do sertão como da primeira vez quando parece que o tempo não poderá exaurir o coração Mas breves sóis bastaram para murchar aquelas flores de um coração exilado da pátria O imbu filho da serra se nasceu na várzea porque o vento ou as aves trouxeram a semente vingou achando boa terra e fresca sombra talvez um dia copou a verde folhagem e enflorou Mas basta um sopro do mar para tudo murchar As folhas lastram o chão as flores levaas a brisa Como o imbu na várzea era o coração do guerreiro branco na terra selvagem A amizade e o amor o acompanharam e sustiveram algum tempo mas agora longe de sua casa e de seus irmãos sentiuse em um ermo O amigo e a esposa não chegavam mais à sua existência cheia de grandes e nobres ambições Passava os já tão breves agora longos sóis na praia ouvindo gemer o vento e soluçar as ondas Os olhos engolfados na imensidade do horizonte buscavam mas embalde discenir do azul diáfano a alvura de uma vela perdida nos mares À distância curta da cabana se elevava à borda do oceano um alto morro de areia pela semelhança com a cabeça do crocodilo o chamavam os pescadores Jacarecanga Do seio das brancas areias escaldadas pelo ardente sol manava uma água fresca e pura assim destila a dor lágrimas doces de alívio e consolo A esse monte subia o cristão e lá ficava cismando em seu destino Às vezes lhe vem à mente a idéia de tornar à sua terra e aos seus mas ele sabe que Iracema o acompanhará e essa lembrança lhe remorde o coração Cada passo mais que afaste dos campos nativos a filha dos tabajaras agora que não tem o ninho de seu coração para abrigarse é uma porção da vida que lhe rouba Poti conhece que Martim deseja estar só e afastase discreto O guerreiro sabe o que aflige a alma do seu irmão e tudo espera do tempo porque só o tempo endurece o coração do guerreiro como o cerne do jacarandá Iracema também foge dos olhos do esposo porque já percebeu que esses olhos tão amados se turbam com a vista dela e em vez de se encherem de sua beleza como outrora a despedem de si Mas os olhos dela não se cansam de acompanhar à parte e de longe o guerreiro senhor que os fez cativos Ai dela Sentiu já o golpe no coração e como a copaíba ferida no âmago destila lágrimas em fio 28 Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema seus olhos buscaram em torno e não a viram A filha de Araquém estava além entre as verdes moitas de ubaia sentada na relva O pranto desfiava de seu belo semblante e as gotas que rolavam a uma e uma caíam sobre o regaço onde já palpitava e crescia o filho do amor Assim caem as folhas da árvore viçosa antes que amadureça o fruto O que espreme as lágrimas do coração de Iracema Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste Iracema perdeu sua felicidade depois que te separaste dela Não estou eu junto a ti Teu corpo está aqui mas tua alma voa à terra de teus pais e busca a virgem branca que te espera Martim doeuse Os grandes olhos negros que a indiana pousara nele o tinham ferido no âmago O guerreiro branco é teu esposo ele te pertence A formosa tabajara sorriu em sua tristeza Quanto tempo há que retiraste de Iracema teu espírito Antes teu passo te guiava para as frescas serras e os alegres tabuleiros teu pé gostava de pisar a terra da felicidade e seguir o rastro da esposa Agora só buscas as praias ardentes porque o mar que lá murmura vem dos campos em que nasceste e o morro das areias porque do alto se avista a igara que passa É a ânsia de combater o tupinambá que volve o passo do guerreiro para as bordas do mar respondeu o cristão Iracema continuou Teu lábio secou para a esposa como a cana quando ardem os grandes sóis perde o grato mel e as folhas murchas não podem mais brincar quando passa a brisa Agora só falas ao vento da praia para que ele leve tua voz à cabana de teus pais A voz do guerreiro branco chama seus irmãos para defender a cabana de Iracema e a terra de seu filho quando o inimigo vier A esposa meneou a cabeça Quando tu passas no tabuleiro teus olhos fogem do fruto do jenipapo e buscam a flor do espinheiro a fruta é saborosa mas tem a cor dos tabajaras a flor tem a alvura das faces da virgem branca Se cantam as aves teu ouvido não gosta já de escutar o canto mavioso da graúna mas tua alma se abre para o grito do japim porque ele tem as penas douradas como os cabelos daquela que tu amas A tristeza escurece a vista de Iracema e amarga seu lábio Mas a alegria há de voltar à alma da esposa como volta à árvore a verde rama Quando teu filho deixar o seio de Iracema ela morrerá como o abati depois que deu seu fruto Então o guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra estrangeira Tua voz queima filha de Araquém como o sopro que vem dos sertões do Icó no tempo dos grandes calores Queres tu abandonar teu esposo Vêem teus olhos lá o formoso jacarandá que vai subindo às nuvens a seus pés ainda está a seca raiz da murta frondosa que todos os invernos se cobria de rama e bagos vermelhos para abraçar o tronco irmão Se ela não morresse o jacarandá não teria sol para crescer àquela altura Iracema é a folha escura que faz sombra em tua alma deve cair para que a alegria alumie teu seio O cristão cingiu o talhe da formosa indiana e a estreitou ao peito Seu lábio levou ao lábio da esposa um beijo mas áspero e amargo 29 Poti voltou do banho Segue na areia o rastro de Coatiabo e sobe ao alto da Jacarecanga Aí encontra o guerreiro em pé no cabeço do monte com os olhos alongados e os braços estendidos para os largos mares Volve o pitiguara as vistas e descobre uma grande igara que vem sulcando os verdes mares impelida pelo vento É a grande igara dos irmãos de meu irmão que vem buscálo O cristão suspirou São os guerreiros brancos inimigos de minha raça que buscam as praias da valente nação pitiguara para a guerra da vingança eles foram derrotados com os tabajaras nas margens do Camucim agora vêm com seus amigos os tupinambás pelo caminho do mar Meu irmão é um grande chefe Que pensa ele que deve fazer seu irmão Poti Chama os caçadores de Soipé e os pescadores do Trairi Nós iremos ao seu encontro Poti acordou a voz da inúbia e os dois guerreiros partiram ambos para o Mocoribe Pouco além viram os guerreiros de Jaguaraçu e Camoropim que corriam ao grito de guerra O irmão de Jacaúna os avisou da vinda do inimigo O grande maracatim corre nas ondas ao longo da terra que se dilata até às margens do Parnaíba A lua começava a crescer quando ele deixou as águas do Mearim ventos contrários o tinham arrastado para os altosmares muito além de seu destino Os guerreiros pitiguaras para não espantar o inimigo se ocultam entre os cajueiros e vão seguindo pela praia a grande igara durante o dia avultam as brancas velas de noite os fogos atravessam a negrura do mar como vagalumes perdidos na mata Muitos sóis caminharam assim Passam além do Camucim e afinal pisam as lindas ribeiras da enseada dos papagaios Poti manda um guerreiro ao grande Jacaúna e se prepara para o combate Martim que subiu ao morro de areia conhece que o maracatim vem recolher no seio da terra e avisa seu irmão O Sol já nasceu os guerreiros guaraciabas e os tupinambás seus amigos correm sobre as ondas nas ligeiras pirogas e pojam na praia Formam o grande arco e avançam como o cardume do peixe quando corta a correnteza do rio No centro estão os guerreiros do fogo que trazem o raio nas assas os guerreiros do Mearim que brandem o tacape Mas nação alguma jamais vibrou o arco certeiro como a grande nação pitiguara e Poti é o maior chefe de quantos chefes empunharam a inúbia guerreira Ao seu lado caminha o irmão tão grande chefe como ele e sabedor das manhas da raça branca dos cabelos do sol Durante a noite os pitiguaras fincam na praia a forte caiçara de espinho e levantam contra ela um muro de areia onde o raio esfria e se apaga Aí esperam o inimigo Martim manda que outros guerreiros subam à copa dos mais altos coqueiros ali defendidos pelas largas palmas esperam o momento do combate A seta de Poti foi a primeira que partiu e o chefe dos guaraciabas o primeiro herói que mordeu o pó da terra estrangeira Rugem os trovões na destra dos guerreiros brancos mas os raios que desferem mergulhamse na areia ou se perdem nos ares As setas dos pitiguaras já caem do céu já voam da terra e se embebem todas no seio do inimigo Cada guerreiro tomba crivado de muitas flechas como a presa que as piranhas disputam nas águas do lago Os inimigos embarcam outra vez nas pirogas e voltam ao maracatim em busca dos grandes e pesados trovões que um homem só nem dois podem manejar Quando voltam o chefe dos pescadores que corre nas águas do mar como o veloz camoropim de que tomou o nome se arroja nas ondas e mergulha Ainda a espuma não se apagara e já a piroga inimiga se afundou parecendo que a tragara uma baleia Veio a noite que trouxe o repouso Ao romper dalva o maracatim fugia no horizonte para as margens do Mearim Jacaúna chegou não mais para o combate e sim para o festim da vitória Nessa hora em que o canto guerreiro dos pitiguaras celebrava a derrota dos guaraciabas o primeiro filho que o sangue da raça branca gerara nessa terra da liberdade via a luz nos campos da Porangaba 30 Iracema cuidou que o seio rompiase e buscou a margem do rio onde crescia o coqueiro Estreitouse com a haste da palmeira A dor lacerou suas entranhas porém logo o choro infantil inundou todo o seu ser de júbilo A jovem mãe orgulhosa de tanta ventura tomou o tenro filho nos braços e com ele arrojouse às águas límpidas do rio Depois suspendeuo à teta mimosa seus olhos então o envolviam de tristeza e amor Tu és Moacir o nascido de meu sofrimento A ará pousada no olho do coqueiro repetiu Moacir e desde então a ave amiga em seu canto unia ao nome da mãe o nome do filho O inocente dormia Iracema suspirava A jati fabrica o mel no tronco cheiroso do sassafrás toda a lua das flores voa de ramo em ramo colhendo o suco para encher os favos mas ela não prova sua doçura porque a irara devora em uma noite toda a colmeia Tua mãe também filho de minha angústia não beberá em teus lábios o mel do sorriso A jovem mãe passou aos ombros a larga faixa de macio algodão que fabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco e seguiu pela areia o rastro do esposo que há três sóis partira Ela caminhava docemente para não despertar a criancinha adormecida como o passarinho sob a asa materna Quando chegou junto ao grande morro das areias viu que o rastro de Martim e Poti seguia ao longo da praia e adivinhou que eles eram partidos para a guerra Seu coração suspirou mas seus olhos secos buscaram o semblante do filho Volve o rosto para o Mocoribe Tu és o morro da alegria mas para Iracema tu não tens senão tristeza Tornando a recente mãe pousou a criança sempre dormida na rede de seu pai viúva e solitária em meio da cabana ela deitouse ao chão na esteira onde repousava desde que os braços do esposo se não tinham mais aberto para recebêla A luz da manhã estrava pela cabana e Iracema viu entrar com ela a sombra de um guerreiro Caubi estava em pé na porta A esposa de Martim ergueuse de um ímpeto e saltou avante para proteger o filho Seu irmão levantou da rede a ela uns olhos tristes e falou com a voz ainda mais triste Não foi a vingança que arrancou o guerreiro Caubi aos campos dos tabajaras ele já perdoou Foi a vontade de ver Iracema que trouxe consigo toda sua alegria Então bemvindo seja o guerreiro Caubi na cabana de seu irmão respondeu a esposa abraçandoo O nascido de teu seio dorme nesta rede os olhos de Caubi gostariam de vêlo Iracema abriu a franja de penas e mostrou o lindo semblante da criança Caubi depois que o contemplou por muito tempo entre risos disse Ele chupou tua alma E beijou nos olhos da jovem mãe a imagem da criança que não se animava tocar com receio de ofender A voz trêmula da filha ressoou Ainda vive Araquém sobre a terra Pena ainda depois que tu o deixaste sua cabeça vergou para o peito e não se ergueu mais Dizelhe que Iracema é morta já para que ele se console A irmã de Caubi preparou a refeição para o guerreiro e armou no copiar a rede da hospitalidade para que ele repousasse das fadigas da jornada Quando o viajante satisfez o apetite ergueuse com estas palavras Diz onde está teu esposo e meu irmão para que o guerreiro Caubi lhe dê o abraço da amizade Os lábios suspirosos da mísera esposa se moveram como as pétalas do cacto que um sopro amarrota e ficaram mudos Mas as lágrimas debulharam dos olhos e caíram em bagas O rosto de Caubi anuviouse Teu irmão pensava que a tristeza ficara nos campos que abandonaste porque contigo trouxeste todo o riso dos que te amavam Iracema secou os olhos O esposo de Iracema partiu com o guerreiro Poti para as praias do Acaraú Antes que três sóis tenham alumiado a terra ele voltará e com ele a alegria à alma da esposa O guerreiro Caubi o espera para saber o que ele fez do sorriso que morava em teus lábios A voz do tabajara enrouquecera seu passo inquieto volveu a esmo pela cabana 31 Iracema cantava docemente embalando a rede para acalentar o filho A areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara que vinha das bordas do mar depois da abundante pesca A jovem mãe cruzou as franjas da rede para que as moscas não inquietassem o filho acalentado e foi ao encontro do irmão Caubi vai tornar às montanhas dos tabajaras disse ela com brandura O guerreiro anuviouse Tu despedes teu irmão da cabana para que ele não veja a tristeza que a enche Araquém teve muitos filhos em sua mocidade uns a guerra levou e morreram como valentes outros escolheram uma esposa e geraram por sua vez numerosa prole filhos de sua velhice Araquém só teve dois Iracema é para ele como a rola que o caçador tirou do ninho Só resta o guerreiro Caubi ao velho pajé para suster seu corpo vergado e guiar seu passo trêmulo Caubi partirá quando a sombra deixar o rosto de Iracema Como vive estrela da noite vive Iracema em sua tristeza Só os olhos do esposo podem apagar a sombra em seu rosto Parte para que eles não se turvem com tua vista Teu irmão parte para agradar tua vontade mas ele voltará todas as vezes que o cajueiro florescer para sentir em seu coração o filho de teu ventre Entrou na cabana Iracema tirou da rede a criança e ambos mãe e filho palpitaram sobre o peito do guerreiro tabajara Depois Caubi passou a porta e sumiuse entre as árvores Iracema arrastando o passo trêmulo o acompanhou de longe até que o perdeu de vista na orla da mata Aí parou quando o grito da jandaia de envolta com o choro infantil a chamou à cabana a areia fria onde esteve sentada guardou o segredo do pranto que embebera A jovem mãe suspendeu o filho à teta mas a boca infantil não emudeceu O leite escasso não apojava o peito O sangue da infeliz diluíase todo nas lágrimas incessantes que não estancavam dos olhos nenhum chegava aos seios onde se forma o primeiro licor da vida Ela dissolveu a alva carimã e preparou ao fogo o mingau para nutrir o filho Quando o sol dourou a crista dos montes partiu para a mata levando ao colo a criança adormecida Na espessura do bosque está o leito da irara ausente os tenros cachorrinhos grunhem enrolandose uns sobre os outros A formosa tabajara aproximase de manso Prepara para o filho um berço da macia rama do maracujá e sentase perto Põe no regaço um por um os filhos da irara e lhes abandona os seios mimosos cuja teta rubra como a pitanga ungiu do mel da abelha Os cachorrinhos famintos precipitam gulosos e sugam os peitos avaros de leite Iracema curte dor como nunca sentiu parece que lhe exaurem a vida mas os seios vãose intumescendo apojaram afinal e o leite ainda rubro do sangue de que se formou esguicha A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos e cheia de júbilo mata a fome ao filho Ele é agora duas vezes filho de sua dor nascido dela e também nutrido A filha de Araquém sentiu afinal que suas veias se estancavam e contudo o lábio amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurarlhe as forças O gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso o sabor em sua boca formosa 32 Descamba o Sol Japi sai do mato e corre para a porta da cabana Iracema sentada com o filho no colo banhase nos raios do Sol e sente o frio arrepiarlhe o corpo Vendo o animal fiel mensageiro do esposo a esperança reanimou seu coração quis erguerse para ir ao encontro de seu guerreiro senhor mas os membros débeis se recusaram à sua vontade Caiu desfalecida contra o esteio Japi lambialhe a mão desfalecida e pulava travesso para fazer sorrir a criança soltando uns doces latidos de prazer Por vezes afastavase para correr até a orla da mata e latir chamando o senhor logo tornava à cabana para festejar a mãe e o filho Por esse tempo pisava Martim os campos amarelos do Tauape seu irmão Poti o inseparável caminhava a seu lado Oito luas havia que ele deixara as praias da Jacarecanga Depois de vencidos os guaraciabas na baía dos papagaios o guerreiro cristão quis partir para as margens do Mearim onde habitava o bárbaro aliado dos tupinambás Poti e seus guerreiros o acompanharam Depois que transpuseram o braço corrente do mar que vem da serra de Tana tinga e banha as várzeas onde se pesca o piau viram enfim as praias do Mearim e a velha taba do bárbaro tapuia A raça dos cabelos do sol cada vez ganhava mais a amizade dos tupinambás crescia o número dos guerreiros brancos que já tinham levantado na ilha a grande itaoca para despedir o raio Quando Martim viu o que desejava tornou aos campos da Porangaba que ele agora trilha Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoribe já lhe bafeja o rosto o sopro vivo das vagas do oceano Quanto mais seu passo o aproxima da cabana mais lento se torna e pesado Tem medo de chegar e sente que sua alma vai sofrer quando os olhos tristes e magoados da esposa entrarem nela Há muito que a palavra desertou seu lábio seco o amigo respeita este silêncio que ele bem entende É o silêncio do rio quando passa nos lugares profundos e sombrios Tanto que os dois guerreiros tocaram as margens do rio ouviram o latir do cão que os chamava e o grito da ará que se lamentava Estavam mui próximos à cabana apenas oculta por uma língua de mato O cristão parou calcando a mão no peito para sofrear o coração que saltava como o poraquê O latido de Japi é de alegria disse o chefe Porque chegou mas a voz da jandaia é de tristeza Achará o guerreiro ausente a paz no seio da esposa solitária ou terá a saudade matado em suas entranhas o fruto do amor O cristão moveu o passo vacilante De repente entre os ramos das árvores seus olhos viram sentada à porta da cabana Iracema com o filho no regaço e o cão a brincar Seu coração o arrastou de um ímpeto e toda a alma lhe estalou nos lábios Iracema A triste esposa e mãe soabriu os olhos ouvindo a voz amada Com esforço grande pôde erguer o filho nos braços e apresentálo ao pai que o olhava extático em seu amor Recebe o filho de teu sangue Chegastes a tempo meus seios ingratos já não tinham alimento para darlhe Pousando a criança nos braços paternos a desventurada mãe desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo O esposo viu então como a dor tinha murchado seu belo corpo mas a formosura ainda morava nela como o perfume na flor caída do manacá Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços de Martim O terno esposo em que o amor renascera com o júbilo paterno a cercou de carícias que encheram sua alma de alegria mas não a puderam tornar à vida o estame de sua flor se rompera Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amaste Quando o vento do mar soprar nas folhas Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos O lábio emudeceu para sempre o último lampejo despediuse dos olhos baços Poti amparou o irmão em sua grande dor Martim sentiu quanto um amigo verdadeiro é precioso na desventura é como o outeiro que abriga do vendaval o tronco forte e robusto do ubiratã quando o broca o cupim O camucim recebeu o corpo de Iracema embebido de resinas odoríferas e foi enterrado ao pé do coqueiro à borda do rio Martim quebrou um ramo de murta a folha da tristeza e deitouo no jazigo de sua esposa A jandaia pousada no olho da palmeira repetia tristemente Iracema Desde então os guerreiros pitiguaras que passavam perto da cabana abandonada e ouviam ressoar a voz plangente da ave amiga se afastavam com a alma cheia de tristeza do coqueiro onde cantava a jandaia E foi assim que um dia veio a chamarse Ceará o rio onde crescia o coqueiro e os campos onde serpeja o rio 33 O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará levando no frágil barco o filho e o cão fiel A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora O primeiro cearense ainda no berço emigrava da terra da pátria Havia aí a predestinação de uma raça Poti com seus guerreiros esperava na margem do rio O cristão lhe prometera voltar Todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia os olhos ao mar a ver se branqueava ao longe a vela amiga Afinal volta Martim de novo às terras que foram de sua felicidade e são agora de amarga saudade Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias derramouse por todo seu ser um fogo ardente que lhe requeimou o coração era o fogo das recordações acesas A chama só aplacou quando ele tocou a terra onde dormia sua esposa porque nesse instante seu coração transudou como o tronco do jataí nos ardentes calores e refrescou sua pena de lágrimas abundantes Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco para fundar com ele a mairi dos cristãos Veio também um sacerdote de sua religião de negras vestes para plantar a cruz na terra selvagem Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco por isso quis tivessem ambos um só deus como tinham um só coração Ele recebeu com o batismo o nome do santo cujo era o dia e o do rei a quem ia servir e sobre os dois o seu na língua dos novos irmãos Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra onde ele viu a luz primeiro A mairi que Martim erguera à margem do rio nas praias do Ceará medrou A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu amigo branco Camarão assentou a taba de seus guerreiros nas margens da Mocejana Tempo depois quando veio Albuquerque o grande chefe dos guerreiros brancos Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara Muitas vezes ia sentarse naquelas doces areias para cismar e acalentar no peito a agra saudade As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro mas não repetiam já o mavioso nome de Iracema Tudo passa sobre a terra Notas Argumento Histórico Em 1603 Pero Coelho homem nobre da Paraíba partiu como capitãomor de descoberta levando uma força de 80 colonos e 800 índios Chegou à foz do Jaguaribe e aí fundou o povoado que teve o nome de Nova Lisboa Foi esse o primeiro estabelecimento colonial do Ceará Como Pero Coelho se visse abandonado dos sócios mandaramlhe João Soromenho com socorros Esse oficial autorizado a fazer cativos para indenização das despesas não respeitou os próprios índios do Jaguaribe amigos dos portugueses Tal foi a causa da ruína do nascente povoado Retiraramse os colonos pelas hostilidades dos indígenas e Pero Coelho ficou ao desamparo obrigado a voltar à Paraíba por terra com sua mulher e filhos pequenos Na primeira expedição foi do Rio Grande do Norte um moço de nome Martim Soares Moreno que se ligou de amizade com Jacaúna chefe dos índios do litoral e seu irmão Poti Em 1608 por ordem de D Diogo Meneses voltou a dar princípio à regular colonização daquela capitania o que levou a efeito fundando o presídio de Nossa Senhora do Amparo em 1611 Jacaúna que habitava as margens do Acaracu veio estabelecerse com sua tribo nas proximidades do recente povoado para o proteger contra os índios do interior e os franceses que infestavam a costa Poti recebeu no batismo o nome de Antônio Felipe Camarão que ilustrou na guerra holandesa Seus serviços foram remunerados com o foro de fidalgo a comenda de Cristo e o cargo de capitãomor dos índios Martim Soares Moreno chegou a mestredecampo e foi um dos excelentes cabos portugueses que libertaram o Brasil da invasão holandesa O Ceará deve honrar sua memória como a de um varão prestante e seu verdadeiro fundador pois que o primeiro povoado à foz do rio Jaguaribe foi apenas uma tentativa frustrada Este é o argumento histórico da lenda em notas especiais se indicarão alguns outros subsídios recebidos dos cronistas do tempo Há uma questão histórica relativa a este assunto falo da pátria do Camarão que um escritor pernambucano quis pôr em dúvida tirando a glória ao Ceará para a dar à sua província Este ponto aliás somente contestado nos tempos modernos pelo Sr comendador Melo em suas Biografias me parece suficientemente elucidado já depois da erudita carta do Sr Basílio Quaresma Torreão publicada no Mercantil nº 26 de 26 de janeiro de 1860 2ª página Entretanto farei sempre uma observação Em primeiro lugar a tradição oral é uma fonte importante da História e às vezes a mais pura e verdadeira Ora na província de Ceará em Sobral não só referiamse entre gente do povo notícias do Camarão como existia uma velha mulher que se dizia dele sobrinha Essa tradição foi colhida por diversos escritores entre eles o conspícuo autor da Corografia Brasílica O autor do Valeroso Lucideno é dos antigos o único que positivamente afirma ser Camarão filho de Pernambuco mas além de encontrar essa asserção a versão de outros escritores de nota acresce que Berredo explica perfeitamente o dito daquele escritor quando fala da expedição de Pero Coelho de Souza a Jaguaribe sítio naquele tempo e também no de hoje da jurisdição de Pernambuco Outro ponto é necessário esclarecer para que não me censurem de infiel à verdade histórica É a nação de Jacaúna e Camarão que alguns pretendem ter sido a tabajara Há nisso manifesto engano Em todas as crônicas se fala das tribos de Jacaúna e Camarão como habitantes do litoral e tanto que auxiliam a fundação do Ceará como já haviam auxiliado a da Nova Lisboa em Jaguaribe Ora a nação que habitava o litoral entre o Parnaíba e o Jaguaribe ou RioGrande era a dos pitiguaras como atesta Gabriel Soares Os tabajaras habitavam a serra de Ibiapaba e portanto o interior Como chefes dos tabajaras são mencionados Mel Redondo no Ceará e Grão Deabo em Piauí Esses chefes foram sempre inimigos irreconciliáveis e rancorosos dos portugueses e aliados dos franceses do Maranhão que penetraram até Ibiapaba Jacaúna e Camarão são conhecidos por sua aliança firme com os portugueses Mas o que solve a questão é o seguinte texto Lêse nas Memórias diárias da guerra brasílica do conde de Pernambuco 1634 janeiro 18 Pelo bom procedimento com que havia servido A F Camarão o fez Elrei capitãomor de todos os índios não somente de sua nação que era Pitiguar nas das outras residentes em várias aldeias Esta autoridade além de contemporânea testemunhal não pode ser recusada especialmente quando se exprime tão positiva e intencionalmente a respeito do ponto duvidoso Pág 15 I Onde canta a jandaia Diz a tradição que Ceará significa na língua indígena canto de jandaia Aires do Casal Corografia Brasílica refere essa tradição O senador Pompeu em seu excelente dicionário topográfico menciona uma opinião nova para mim que pretende vir Siará da palavra suia caça em virtude da abundância de caça que se encontrava nas margens do rio Essa etimologia é forçada Para designar quantidade usava a língua tupi da desinência iba a desinência ára junta aos verbos designa o sujeito que exercita a ação atual junta aos nomes o que tem atualmente o objeto ex Coatiara o que pinta Juçara o que tem espinhos Ceará é o nome composto de cemo cantar forte clamar e ará pequena arara ou periquito Essa é a etimologia verdadeira não só conforme com tradição mas com as regras da língua II Jirau Na jangada é uma espécie de estrado onde acomodam os passageiros e às vezes o cobrem de palha Em geral é qualquer estiva elevada do solo e suspensa em forquilhas III Rugitar É um verbo de minha composição para o qual peço vênia Filinto Elísio criou ruidar de ruído IV Iracema Em guarani significa lábios de mel de ira mel e tembe lábios Tembe na composição alterase em ceme como na palavra cemeiba Pág 1718 I Graúna É o pássaro conhecido de cor negra luzidia Seu nome vem por corrupção de guira pássaro e una abreviação de pixuna preto II Jati Pequena abelha que fabrica delicioso mel III Ipu Chamam ainda hoje no Ceará certa qualidade de terra muito fértil que forma grandes coroas ou ilhas no meio dos tabuleiros e sertões e é de preferência procurada para a cultura Daí se deriva o nome dessa comarca da província IV Tabajaras Senhores das aldeias de taba aldeia e jara senhor Essa nação dominava o interior da província especialmente a serra de Ibiapaba Pág 17 I Oiticica Árvore frondosa apreciada pela deliciosa frescura que derrama sua sombra II Gará Ave paludal muito conhecida pelo nome de guará Penso eu que esse nome anda corrompido de sua verdadeira origem que é ig água e ará arara arara dágua Também assim chamada pela bela cor vermelha III Ará Periquito Os indígenas como aumentativo usavam repetir a última sílaba da palavra e às vezes toda a palavra como murémuré Muré frauta muremuré grande frauta Arárá vinha a ser pois o aumentativo de ará e significaria a espécie maior do gênero IV Uru Cestinho que servia de cofre às selvagens para guardar seus objetos de mais preço e estimação V Crautá Bromélia vulgar de que se tiram fibras tão ou mais finas que as do linho VI Juçara Palmeira de grandes espinhos das quais servemse ainda hoje para dividir os fios de renda Pág 18 I Uiraçaba Aljava de uira seta e a desinência çaba coisa própria II Quebrar a flecha Era entre os indígenas a maneira simbólica de estabelecer a paz entre as diversas tribos ou mesmo entre dois guerreiros inimigos Desde já advertimos que não se estranhe a maneira por que o estrangeiro se exprime falando com os selvagens ao seu perfeito conhecimento dos usos e língua dos indígenas e sobretudo a terse conformado com eles ao ponto de deixar os trajos europeus e pintarse deveu Martim Soares Moreno a influência que adquiriu entre os índios do Ceará Pág 19 I Ibiapaba Grande serra que se prolonga ao norte da província e a extrema com Piauí Significa terra aparada O Dr Martius em seu Glossário lhe atribui outra etimologia Iby terra e pabe tudo A primeira porém tem a autoridade de Vieira II Igaçaba De ig água e a desinência çaba coisa própria Vaso pote III Vieste A saudação usual da hospitalidade era esta Ere ioubê tu vieste Paaiotu vim sim Auge be bem dito Vejase Lery pág 286 Pág 20 I Jaguaribe O maior rio da província tirou o nome da quantidade de onças que povoavam suas margens Jaguar onça iba desinência para exprimir cópia abundância II Martim Da origem latina de seu nome procedente de Marte deduz o estrangeiro a significação que lhe dá III Pitiguaras Grande nação de índios que habitava o litoral da província e estendiase desde o Parnaíba até o Rio Grande do Norte A ortografia do nome anda mui viciada nas diferentes versões pelo que se tornou difícil conhecer a etimologia Iby significava terra ibytira veio a significar serra ou terra alta Aos vales chamavam os indígenas ibytira cua cintura das montanhas A desinência jara senhor acrescentada formou a palavra Ibiticuara que por corrução deu Pitiguara senhores dos vales V Mau espírito da floresta Os indígenas chamavam a esses espíritos caapora habitantes da mata donde por corrupção veio a palavra caipora introduzida na língua portuguesa em sentido figurado Pág 21 As mais belas mulheres Este costume da hospitalidade americana é atestado pelos cronistas A ele se atribui o belo rasgo de virtude de Anchieta que para fortalecer a sua castidade compunha nas praias de Iperoig o poema da Virgindade de Maria cujos versos escrevia nas areias úmidas para melhor os polir Pág 21 I Jurema Árvore meã de folhagem espessa dá um fruto excessivamente amargo de cheiro acre do qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparavam os selvagens uma bebida que tinha o efeito do haxixe de produzir sonhos tão vivos e intensos que a pessoa fruía neles melhor do que na realidade A fabricação desse licor era um segredo explorado pelos pajés em proveito de sua influência Jurema é composto de ju espinho e rema cheiro desagradável II Irapuã De ira mel e apuam redondo é o nome dado a uma abelha virulenta e brava por causa da forma redonda de sua colmeia Por corrupção reduziuse esse nome atualmente a arapuá O guerreiro de que se trata aqui é o célebre Mel Redondo assim chamado pelos cronistas do tempo que traduziram seu nome ao pé da letra Mel Redondo chefe dos tabajaras da serra de Ibiapaba foi encarniçado inimigo dos portugueses e amigo dos franceses IV Acaraú O nome do rio é Acaracu de acará garça co buraco toca ninho e y som dúbio entre i e u que os portugueses ora exprimiam de um ora de outro modo significando água Rio do ninho das garças é pois a tradução de Acaracu e rio das garças a de Acaraú Usouse aqui da liberdade horaciana para evitar em uma obra literária obra de gosto e artística um som áspero e ingrato De resto quem sabe se o nome primitivo não foi realmente Acaraú que se alterou como tantos outros pela introdução da consoante III Estrela morta A estrela polar por causa da sua imobilidade orientavamse por ela os selvagens durante a noite Pág 22 I Boicininga É a cobra cascavel de boia cobra e cininga chocalho II Oitibó É uma ave noturna espécie de coruja Pág 23 I Espíritos da treva A esses espíritos chamavam os selvagens curupira meninos maus de curumim menino e pira mau II Boré Frauta de bambu o mesmo que muré III Ocara Praça circular que ficava no centro da taba cercada pela estacada e para a qual abriam todas as casas Composto de oca casa e a desinência ara que tem aquilo que tem a casa ou onde a casa está Pág 23 I Potiuara Comedor de camarão de poty e uara Nome potiguara que por desprezo davam os inimigos aos pitiguaras que habitavam as praias e viviam em grande parte da pesca Este nome dão alguns escritores aos pitiguaras porque o receberam de seus inimigos II Pocema Grande alarido que faziam os selvagens nas ocasiões solenes como em começo de batalha ou nas expansões da alegria é palavra adotada já na língua portuguesa e inserida no dicionário de Morais Vem de po mão e cemo clamar clamor das mãos porque os selvagens acompanhavam o vozear com o bater das palmas e das armas III Andira Morcego é em alusão a seu nome que Irapuã dirige logo palavras de desprezo ao velho guerreiro Pág 25 Aracati Significa este nome bom tempo de ara e catu Os selvagens do sertão assim chamavam as brisas do mar que sopram regularmente ao cair da tarde e correndo pelo vale do Jaguaribe se derramam pelo interior e refrigeram da calma abrasadora do verão Daí resultou chamarse Aracati o lugar de onde vinha a monção Ainda hoje no Icó o nome é conservado à brisa da tarde que sopra do mar Pág 29 I Aflar Sobre este verbo que introduzi na língua portuguesa do latim afflo já escrevi o que entendi em nota de uma segunda edição da Diva que brevemente há de vir à luz II Anhangá Davam os indígenas este nome ao espírito do mal compõese de anho só e angá alma Espírito só privado de corpo fantasma Pág 34 I Camucim Vaso onde encerravam os indígenas os corpos dos mortos e lhes servia de túmulo outros dizem camotim e talvez com melhor ortografia porque se não me engano o nome é corrupção da frase co buraco ambira defunto anhotim enterrar buraco para enterrar o defunto c am otim O nome davase também a qualquer pote II Guabiroba Deve lerse Andiroba Árvore que dá um azeite amargo III Cabelos do sol Em tupi guaraciaba Assim chamavam os indígenas aos europeus que tinham os cabelos louros Pág 38 I Moquém Do verbo mocáem assar na labareda Era a maneira por que os indígenas conservavam a caça para não apodrecer quando a levavam em viagem Nas cabanas a tinham no fumeiro II Senhor do caminho Assim chamaram os indígenas ao guia de py caminho e guara senhor Pág 38 I O dia vai ficar triste Os tupis chamavam a tarde caruca segundo o dicionário Segundo Lery che caruc acy significa estou triste Qual destes era o sentido figurado da palavra Tiraram a imagem da tristeza da sombra da tarde ou imagem do crepúsculo do torvamento do espírito II Jurupari Demônio de juru boca e apara torto aleijado O boca torta III Ubaia Fruta conhecida da espécie eugênia Significa fruta saudável de uba fruta e aia saudável Pág 41 I Jandaia Este nome que anda escrito por diversas maneiras nhendaia nhandaia e em todas alterado é apenas um adjetivo qualificativo do substantivo ará Derivase ele das palavras nheng falar antan duro forte áspero e ara desinência verbal que exprime o agente nh ant ara substituído o t por d e o r por i tornouse nhandaia donde jandaia que se traduzirá por periquito grasnador Do canto desta ave como se viu é que vem o nome de Ceará segundo a etimologia que lhe dá a tradição II Inhuma Ave noturna palamedea A espécie de que se fala aqui é a Palamedea chavaria que canta regularmente à meianoite A ortografia melhor creio ser anhuma talvez de anho só e anum ave agoureira conhecida Significaria então anum solitário assim chamado pela tal ou qual semelhança do grito desagradável Pág 43 Inúbia Trombeta de guerra Os indígenas segundo Lery as tinham tão grandes que mediam muitos palmos no diâmetro de abertura Pág 45 Guará Cão selvagem lobo brasileiro Provém esta palavra do verbo u comer do qual se forma com o relativo g e a desinência ara o verbal guára comedor A sílaba final longa é a partícula propositiva ã que serve para dar força à palavra Guáraá realmente comedor voraz Pág 46 I Jibóia Cobra conhecida de gi machado e boia cobra O nome foi tirado da maneira por que a serpente lança o bote semelhante ao golpe do machado pode traduzirse bem cobra de arremesso II Sucuri A serpente gigante que habita nos grandes rios e engole um boi De suu animal e cury ou curu roncador Animal roncador porque de feito o ronco da sucuri é medonho Pág 46 I Se é que tens sangue e não mel Alusão que faz o velho Andira ao nome de Irapuã o qual como se disse significa mel redondo II Ouve seu trovão Todo esse episódio do rugido da terra é uma astúcia como usavam os pajés e os sacerdotes de toda a nação selvagem para se imporem à imaginação do povo A cabana estava assentada sobre um rochedo onde havia uma galeria subterrânea que comunicava com a várzea por estreita abertura Araquém tivera o cuidado de tapar com grandes pedras as duas aberturas para ocultar a gruta dos guerreiros Nessa ocasião a fenda inferior estava aberta e o pajé o sabia abrindo a fenda superior o ar encanouse pelo antro espiral com estridor medonho e de que pode dar uma idéia o sussurro dos caramujos O fato é pois natural a aparência sim é maravilhosa III Abati nágua Abati arroz Iracema servese da imagem do arroz que só viça no alagado para exprimir sua alegria Pág 57 I Ubiratã Pauferro de ubira pau e antan duro II Maracajá Gato selvagem III Caititus Porcodomato espécie de javali brasileiro De caeté mato grande e virgem e suu caça mudado o s em t na composição pela eufonia da língua Caça do mato virgem IV Jaguar Vimos que guará significa voraz Jaguar tem inquestionavelmente a mesma etimologia é o verbal guara e o pronome já nós Jaguar era pois para os indígenas todos os animais que os devoravam Jaguareté o grande devorador V Anajê Gavião Pág 59 Acauã Ave inimiga das cobras de caa pau e uan do verbo u que come pau Pág 61 Saí Lindo pássaro azul Pág 62 I À cintura da virgem Os indígenas chamavam a amante possuída aguaçaba de aba homem cua cintura çaba coisa própria a mulher que o homem cinge ou traz à cintura Fica pois claro o pensamento de Iracema II Carioba Camisa de algodão de cary branco e oba roupa Tinha também a araçóia de arara e oba vestido de penas de arara Pág 65 I Jaci A Lua De já pronome nós e cy mãe A Lua exprimia o mês para os selvagens e seu nascimento era sempre por eles festejado II Fogos da alegria Chamavam os selvagens tory os fachos ou fogos e toryba a alegria a festa a grande cópia de fachos III Bucã Significa uma espécie de grelha que os selvagens faziam para assar a caça daí vem o verbo francês boucaner A palavra é da língua tupi IV Acoty Cutia Pág 70 Abaeté Varão abalizado de aba homem e eté forte egrégio Pág 73 I Jacaúna Jacarandápreto de jaca abreviação de jacarandá e una preto Este Jacaúna é o célebre chefe amigo de Martim Soares Moreno II Cuandu Porcoespinho Pág 74 Seu colar de guerra O colar que os selvagens faziam dos dentes dos inimigos vencidos era um brasão e troféu de valentia Pág 75 I Japi Significa nosso pé do pronome já nós py pé II Ibiapina De iby terra e apino tosquiar III Jatobá Grande árvore real O lugar da cena é o sítio da hoje Vila Viçosa onde diz a tradição ter nascido Camarão Pág 78 I Meruoca De meru mosca e oca casa Serra junto de Sobral fértil em mantimentos II Uruburetama Pátria ou ninho de urubus serra bastante alta III Mundaú Rio muito tortuoso que nasce na serra de Uruburetama Mundé cilada e hu rio IV Potengi Rio que rega a cidade de Natal donde era filho Soares Moreno Pág 81 I As saborosas traíras É o rio Trairi trinta léguas ao norte da capital De traíra peixe e y rio Hoje é povoação e distrito de paz II Soipé País da caça De sôo caça e ipé lugar onde Dizse hoje Suipé rio e povoação pertencente a freguesia e termo da Fortaleza situada à margem dos alagados chamados Jaguaruçu na embocadura do rio III Pocoty Rio das pacobas Nasce na serra de Baturité e lançase no oceano duas léguas ao norte de Aquirás IV Iguabe Enseada distante duas léguas de Aquirás De ig água cua cintura e ipé onde Pág 82 I Mocoribe Morro de areia na enseada do mesmo nome a uma légua do Fortaleza dizse hoje Mucuripe Vem de corib alegrar e mo partícula ou abreviatura do verbo monhang fazer que se junta aos verbos neutros e mesmo ativos para darlhes significação passiva ex caneon afligirse mocaneon fazer alguém aflito II Rio que forma um braço de mar É o Parnaíba rio do Piauí Vem de pará mar nhanhe correr e hyba braço braço corrente do mar Geralmente se diz que pará significa rio e paraná mar é inteiramente o contrário III Brancos tapuias Em tupi tapuitinga Nome que os pitiguaras davam aos franceses para diferençálos dos tupinambás Tapuia significa bárbaro inimigo De taba aldeia e puir fugir os fugidos da aldeia IV Mairi Cidade Talvez provenha o nome de mair estrangeiro e fosse aplicado aos povoados dos brancos em oposição às tabas dos índios Pág 85 I Batuireté Narceja ilustre de batuira e eté Apelido que tomara o chefe pitiguara e que na linguagem figurada valia tanto como valente nadador É o nome de uma serra fertilíssima e da comarca que ela ocupa II Suas estrelas eram muitas Contavam os indígenas os anos pelo nascimento das plêiades no Oriente e também costumavam guardar uma castanha de caju de cada estação da fruta para marcar a idade III Jatobá Árvore frondosa talvez de jetahy oba folha e a aumentativo jetaí de grande copa É o nome de um rio e de uma serra em Santa Quitéria IV Quixeramobim Segundo o Dr Martius traduzse por essa exclamação de saudade Compõese de Qui ah xere meus amôbinhê outros tempos V Caminho das garças Em tupi Acarape povoação na freguesia de Baturité a nove léguas da capital Pág 86 Maranguab A serra de Maranguape distante cinco léguas da capital e notável pela sua fertilidade e formosura O nome indígena compõese de maran guerrear e coaub sabedor maran talvez seja abreviação de maramonhang fazer guerra se não é como eu penso o substantivo simples guerra de que se fez o verbo composto O Dr Martius traz etimologia diversa Mara árvore angai de nenhuma maneira guabe comer Esta etimologia nem me parece própria ao objeto que é uma serra nem conforme com os preceitos da língua Pág 86 I Pirapora Rio de Maranguape notável pela frescura de suas águas e excelência dos banhos chamados de Pirapora no lugar das cachoeiras Provém o nome de Pira peixe pore salto salto do peixe II O gavião branco Batuireté chama assim o guerreiro branco ao passo que trata o neto por narceja ele profetiza nesse paralelo a destruição de sua raça pela raça branca Pág 90 I Porangaba Significa beleza É uma lagoa distante da cidade uma légua em sítio aprazível Hoje a chamam Arronches em suas margens está a decadente povoação do mesmo nome II Jereraú Rio das marrecas de jerere ou irerê marreca e hu água Este lugar ainda hoje é notável pela excelência de frutas com especialidade as belas laranjas conhecidas por laranjas de Jereraú III Sapiranga Lagoa no sítio Alagadiço Novo a cerca de duas léguas da capital O nome indígena significa olhos vermelhos de ceça olhos e piranga vermelhos Esse mesmo nome dão usualmente no Norte a certa oftalmia Pág 90 I Muritiapuá De muriti nome da palmeira mais vulgarmente conhecida por buriti e apuã ilha Lugarejo no mesmo sítio referido II Aratanha De arara ave e tanha bico Serra mui fértil e cultivada em continuação da de Maranguape III Guaiúba De goaia vale y água jur vir be por onde por onde vêm as águas do vale Rio que nasce na serra da Aratanha e corta a povoação do mesmo nome a seis léguas da capital IV Pacatuba De paca e tuba leito ou couto das pacas Recente mas importante povoação em um belo vale da serra da Aratanha Pág 91 Âmbar As praias do Ceará eram nesse tempo abundantes de âmbar que o mar arrojava Chamavamlhe os indígenas pira repoti esterco de peixe Pág 94 Coatiá pintar A História menciona esse fato de Martim Soares Moreno se ter coatiado quando vivia entre os selvagens do Ceará Coatiabo A desinência abo significa o objeto que sofreu a ação do verbo e talvez provenha de aba gente criatura Pág 95 I Colibri Desse letargo do colibri no inverno fala Simão de Vasconcelos II Carbeto Espécie de serão que faziam os índios à noite em uma cabana maior onde todos se reuniam para conversar Leiase Ives dEvreux Viagem ao Norte do Brasil Pág 101 I Mocejana Lagoa e povoação a duas léguas da capital O verbo cejar significa abandonar a desinência ana indica a pessoa que exercita a ação do verbo Cejana significa o que abandona Junta à partícula mo do verbo monhang fazer vem a palavra a significar o que fez abandonar ou que foi lugar e ocasião de abandonar II Monguba Árvore que dá um fruto cheio de cotão semelhante ao da sumaúma com a diferença de ser negro Daí veio o nome de uma parte da serra de Maranguape onde tem estabelecimento rural o tenentecoronel João Franklin de Alencar Pág 104 Imbu Fruta da serra do Araripe que não tem no litoral É saborosa e semelhante ao cajá Pág 104 Jacarecanga Morro de areia na praia do Ceará afamado pela fonte de água fresca puríssima Vem o nome de jacaré crocodilo e acanga cabeça Pág 106 I Japim Pássaro cordeouro com encontros pretos e conhecido vulgarmente pelo nome de sofrê II Folha escura A murta que os indígenas chamavam capixuna de caa rama folhagem e pixuna escuro Daí vem a figura de que usa Iracema para exprimir a tristeza que ela produz no esposo Pág 107109 I Tupinambás Nação formidável ramo primitivo da grande raça tupi Depois de uma resistência heróica não podendo expulsar os portugueses da Bahia emigraram até o Maranhão onde fizeram aliança com os franceses que já então infestavam aquelas paragens O nome que eles se davam significa gente parente dos tupis de tupi anama aba II Baía dos papagaios É a baía da Jericoacoara de jeru papagaio cua várzea coara buraco ou seio enseada da várzea dos papagaios É um dos bons portos do Ceará III Maracatim Grande barco que levava na proa tim um maracá Aos barcos menores ou canoas chamavam igara de ig água e jara senhor senhora dágua Pág 108 Caiçara De cai pau queimado e a desinência çara cousa que tem ou se faz o que se faz de pau queimado Era uma forte estacada de pauapique Pág 111 Moacir Filho do sofrimento de moaci dor e ira desinência que significa saído de Faixa É o que chamam vulgarmente tipóia rejeitouse o termo próprio do texto por andar degradado no estilo chulo Pág 112 Chupou tua alma Criança em tupi é pitanga de piter chupar e anga alma chupa alma Seria porque as crianças atraem e deleitam aos que as vêem Ou porque absorvem uma porção dalma dos pais Caubi fala nesse último sentido Pág 116 Carimã Uma conhecida preparação de mandioca Caric correr mani mandioca mandioca escorrida Pág 117 I Tauape Lugar do barro amarelo de tauá e ipé Fica no caminho de Maranguape II Piau Peixe que deu o nome ao rio Piauí III Velha taba Tradução de Tapuitapera Assim chamavase um dos estabelecimentos dos tupinambás no Maranhão IV Itaóca Casa de pedra fortaleza Pág 118 I Manacá Linda flor Vejase o que diz a respeito o Sr Gonçalves Dias em seu dicionário II Cupim Inseto conhecido O nome compõese de co buraco e pim ferrão Pág 122 Albuquerque Jerônimo de Albuquerque chefe da expedição ao Maranhão em 1612 CARTA Ao Dr Jaguaribe Eisme de novo conforme o prometido Já leu o livro e as notas que o acompanham conversemos pois Conversemos sem cerimônia em toda familiaridade como se cada um estivesse recostado em sua rede ao vaivém do lânguido balanço que convida à doce prática Se algum leitor curioso se puser à escuta deixálo Não havemos por isso de mudar o tom rasteiro da intimidade pela frase garrida das salas Sem mais Há de recordarse você de uma noite que entrando em minha casa quatro anos a esta parte achoume rabiscando um livro Era isso em uma quadra importante pois que uma nova legislatura filha de nova lei fazia sua primeira sessão e o país tinha os olhos nela de quem esperava iniciativa generosa para melhor situação Já estava eu meio descrido das cousas e mais dos homens e por isso buscava na literatura diversão à tristeza que me infundia o estado da pátria entorpecida pela indiferença Cuidava eu porém que você político de antiga e melhor têmpera pouco se preocupava com as cousas literárias não por menos preço sim por vocação A conversa que tivemos então revelou meu engano achei um cultor e amigo da literatura amena e juntos lemos alguns trechos da obra que tinha e ainda não as perdeu pretensões a um poema É como viu e como então lhe esbocei a largos traços uma heróide que tem por assunto as tradições dos indígenas brasileiros e seus costumes Nunca me lembrara eu de dedicarme a esse gênero de literatura de que me abstive sempre passados que foram os primeiros e fugaces arroubos da juventude Suportase uma prosa medíocre e estimase pelo quilate da idéia mas o verso medíocre é a pior triaga que se possa impingir ao pio leitor Cometi a imprudência quando escrevia algumas cartas sobre a Confederação dos tamoios dizer As tradições dos indígenas dão matéria para um grande poema que talvez um dia alguém apresente sem ruído nem aparato como modesto fruto de suas vigílias Tanto bastou para que supusessem que o escritor se referia a si e tinha já o poema em mão várias pessoas perguntaram me por ele Meteume isto em brios literários sem calcular das forças mínimas para empresa tão grande que assoberbou dois ilustres poetas tracei o plano da obra e a comecei com tal vigor que levei quase de um fôlego ao quarto canto Esse fôlego sustevese cerca de cinco meses mas amorteceu e vou lhe confessar o motivo Desde cedo quando começaram os primeiros pruridos literários uma espécie de instinto me impelia a imaginação para a raça selvagem e indígena Digo instinto porque não tinha eu então estudos bastantes para apreciar devidamente a nacionalidade de uma literatura era simples prazer que me deleitava na leitura das crônicas e memórias antigas Mais tarde discernindo melhor as cousas lia as produções que se publicavam sobre o tema indígena não realizavam elas a poesia nacional tal como me aparecia no estudo da vida selvagem dos autóctones brasileiros Muitas pecavam pelo abuso dos termos indígenas acumulados uns sobre outros o que não só quebrava a harmonia da língua portuguesa como perturbava a inteligência do texto Outras eram primorosas no estilo e ricas de belas imagens porém certa rudez ingênua de pensamento e expressão que devia ser a linguagem dos indígenas não se encontrava ali Gonçalves Dias é o poeta nacional por excelência ninguém lhe disputa na opulência da imaginação no fino lavor do verso no conhecimento da natureza brasileira e dos costumes selvagens Em suas poesias americanas aproveitou muitas das mais lindas tradições dos indígenas e em seu poema não concluído dos Timbiras propôsse a descrever a epopéia brasileira Entretanto os selvagens de seu poema falam uma linguagem clássica o que lhe foi censurado por outro poeta de grande estro o Dr Bernardo Guimarães eles exprimem idéias próprias do homem civilizado e que não é verossímil tivessem no estado da natureza Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as idéias embora rudes e grosseiras dos índios mas nessa tradução está a grande dificuldade é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura Ele nos dá não só o verdadeiro estilo como as imagens poéticas do selvagem os modos de seu pensamento as tendências de seu espírito e até as menores particularidades de sua vida É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional tal como eu o imagino Cometendo portanto o grande arrojo aproveitei o ensejo de realizar as idéias que me vagueavam no espírito e não eram ainda plano fixo a reflexão consolidouas e robusteceu Na parte escrita da obra foram elas vazadas em grande cópia Se a investigação laboriosa das belezas nativas feita sobre imperfeitos e espúrios dicionários exauria o espírito a satisfação de cultivar essas flores agrestes da poesia brasileira deleitava Um dia porém fatigado da constante e aturada meditação ou análise para descobrir a etimologia de algum vocábulo assaltoume um receio Todo este ímprobo trabalho que às vezes custava uma só palavra me seria levado à conta Saberiam que esse escrópulo douro fino tinha sido desentranhado da profunda camada onde dorme uma raça extinta Ou pensariam que fora achado na superfície e trazido ao vento da fácil inspiração E sobre esse logo outro receio A imagem ou pensamento com tanta fadiga esmerilhados seriam apreciados em seu justo valor pela maioria dos leitores Não os julgariam inferiores a qualquer das imagens em voga usadas na literatura moderna Ocorreme um exemplo tirado deste livro Guia chamavam os indígenas senhor do caminho piguara A beleza da expressão selvagem em sua tradução literal e etimológica me parece bem saliente Não diziam sabedor do caminho embora tivessem termo próprio coaub porque essa frase não exprimia a energia de seu pensamento O caminho no estado selvagem não existe não é cousa de saber O caminho fazse na ocasião da marcha através da floresta ou do campo e em certa direção aquele que o tem e o dá é realmente senhor do caminho Não é bonito Não está aí uma jóia da poesia nacional Pois talvez haja quem prefira a expressão rei do caminho embora os brasis não tivessem rei nem idéia de tal instituição Outros se inclinaram à palavra guia como mais simples e natural em português embora não corresponda ao pensamento do selvagem Ora escrever um poema que devia alongarse para correr o risco de não ser entendido e quando entendido não apreciado era para desanimar o mais robusto talento quanto mais a minha mediocridade Que fazer Encher o livro de grifos que o tornariam mais confuso e de notas que ninguém lê Publicar a obra parcialmente para que os entendidos proferissem o veredicto literário Dar leitura dela a um círculo escolhido que emitisse juízo ilustrado Todos estes meios tinham seu inconveniente e todos foram repelidos o primeiro afeava o livro o segundo o truncava em pedaços o terceiro não lhe aproveitaria pela cerimoniosa benevolência dos censores O que pareceu melhor e mais acertado foi desviar o espírito dessa obra e darlhe novos rumos Mas não se abandona assim um livro começado por pior que ele seja aí nessas páginas cheias de rasuras e borrões dorme a larva do pensamento que pode ser ninfa de asas douradas se a inspiração fecundar o grosseiro casulo Nas diversas pausas de suas preocupações o espírito volvia pois ao álbum onde estão ainda incubados e estarão cerca de dois mil versos heróicos Conforme a benevolência ou severidade de minha consciência às vezes os acho bonitos e dignos de verem a luz outras me parecem vulgares monótonos e somenos a quanta prosa charra tenho eu estendido sobre o papel Se o amor de pai abranda afinal esse rigor não desvanece porém nunca o receio de perder inutilmente meu tempo a fazer versos para caboclos Em um desses volveres do espírito à obra começada lembroume da experiência in anima prosaica O verso pela sua dignidade e nobreza não comporta certa flexibilidade de expressão que entretanto não vai mal à prosa a mais elevada A elasticidade da frase permitiria então que se empregassem com mais clareza as imagens indígenas de modo a não passarem desapercebidas Por outro lado conhecerseia o efeito que havia de ter o verso pelo efeito que tivesse a prosa O assunto para a experiência de antemão estava achado Quando em 1848 revi nossa terra natal tive a idéia de aproveitar suas lendas e tradições em alguma obra literária Já em S Paulo tinha começado uma biografia do Camarão A mocidade dele a amizade heróica que o ligava a Soares Moreno a bravura e lealdade de Jacaúna aliado dos portugueses e suas guerras contra o célebre Mel Redondo aí estava o tema Faltavalhe o perfume que derrama sobre as paixões do homem a beleza da mulher Sabe você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar o livro precisava dizer todas estas cousas contar o como e por que escrevi Iracema E com quem melhor conversaria sobre isso do que com uma testemunha de meu trabalho a única das poucas que respira agora as auras cearenses Este livro é pois um ensaio ou antes amostra Verá realizadas nele minhas idéias a respeito da literatura nacional e achará aí poesia inteiramente brasileira haurida na língua dos selvagens A etimologia dos nomes das diversas localidades e certos modos de dizer tirados da composição das palavras são de cunho original Compreende você que não podia eu derramar em abundância essa riqueza no livrinho agora publicado porque elas ficariam desfloradas na obra de maior vulto a qual só teria a novidade da fábula Entretanto há aí de sobra para dar matéria à crítica e servir de base ao juízo dos entendidos Se o público ledor gostar dessa forma literária que me parece ter algum atrativo e novidade então se fará um esforço para levar ao cabo o começado poema embora o verso pareça na época atual ter perdido sua influência e prestígio Se porém o livro for acoimado de cediço e tedioso ou se Iracema encontrar a usual indiferença que vai acolhendo o bom e o mau com a mesma complacência quando não é o silêncio desdenhoso e ingrato então o autor se desenganará de mais esse gênero de literatura como já se desenganou do teatro e os versos como as comédias passarão para a gaveta dos papéis velhos relíquias autobiográficas Depois de concluído o livro e quando o reli já apurado na estampa conheci que me tinham escapado senões que poderia corrigir se não fosse a pressa com que o fiz editar noto algum excesso de comparações certa semelhança entre algumas imagens e talvez desalinho no estilo dos últimos capítulos que desmerecem dos primeiros Também me parece devia conservar aos nomes das localidades sua atual versão embora corrompida Se a obra tiver segunda edição será escoimada destes e de outros defeitos que lhe descubram os entendidos Agosto 1865 J DE ALENCAR