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DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 72 NA MADRUGADA IRREAL DO QUINTO IMPÉRIO DA HISTÓRIA PROFÉTICA EM MENSAGEM DE FERNANDO PESSOA Daniel Vecchio1 Recebido 24102015 Aprovado 22062016 Resumo Desde a cronística a história de Portugal inscrevese num horizonte mítico e profético história convertida em objeto de lenda e acontecimento de ordem simbólica Para essa inscrição veremos que a representação épica da expansão marítima foi fundamental para a manutenção da grandiloquência do passado europeu sobretudo em Portugal justamente em momentos de regime e opressão Por outro lado veremos que Fernando Pessoa transforma essa herança épica em instrumento de crítica abrindose para o sentido da esperança no que remete ao futuro Tornase assim necessário frisar que o épico sob esse enfoque combativo jamais perdeu seu potencial expressivo ainda que algumas das suas manifestações tenham recebido um tratamento antitético Nesse estudo observaremos como Pessoa aponta em Mensagem a existência de uma outra Índia por descobrir localizada nos recantos do imaginário e da vontade onírica de busca dos próprios portugueses Palavraschave Épica História Profetismo Portugal Fernando Pessoa THE DAWN OF THE FIFTH UNREAL EMPIRE THE PROFETIC HISTORY IN MENSAGEM OF FERNANDO PESSOA Abstract Since of the chronic tradition the history of Portugal is based in a mythical and prophetic horizon converted history into legend object and an event of symbolic nature For the epic representation in Portugal the maritime expansion is fundamental to maintain the grandiloquence of the moments and oppression On the other hand we are going to see that Fernando Pessoa turns this epic heritage in a critical tool opening himselves for the sense of hope as regards the future It is therefore necessary to evidence that the epic in this combative approach never lost its expressive potential although its manifestations have often received more antithetical treatment In this study we will observe how the portuguese poet points out the existence of another undiscovered India located in imaginary places and dream of themselves Keywords Epic History Profetism Portugal Fernando Pessoa 1 Graduado em História e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa UFV Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Seu interesse abrange os estudos sobre a Literatura Portuguesa de Viagens a História e a Historiografia dos Descobrimentos fazendo parte de grupos de pesquisa como o NEP Núcleo de Estudos Portugueses da UFV e o Mare Liberum Centro de Estudos e Referências sobre a Cartografia Histórica da UNICAMP DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 73 Introdução intersecções entre épica história e profetismo em Portugal As epopeias são importantes fontes de informações sobre a época de diversas civilizações Tanto que o primeiro período da História Grega 1200 800 aC é chamado pelos historiadores de período homérico porque Homero nos forneceu muitas informações sobre os acontecimentos e as formas de expressão dessa época por meio da Ilíada e a Odisséia Sua base constituinte o epos é uma demanda simultânea de informações históricas e maravilhosas que estão impregnadas sob a forma de narrativas fragmentadas e múltiplas em diversas culturas SILVA RAMALHO 2007 p13 Para Fidelino Figueiredo 18891967 em A épica portuguesa no século XVI 1950 a épica é mais que um verso é a busca pela peculiaridade a busca pela essência nacional a significação íntima da obra o que contém de espírito e de intuito nacional FIGUEIREDO 1950 p 20 Tratase de uma forma de abordagem mais englobante e cultural que permite uma visão privilegiada da cultura e postula um diálogo comparativo e interdisciplinar de largo alcance histórico e poético Nesse sentido a épica representa a voz e o lugar de um fenômeno muito mais amplo do que a produção poética pois se insere num processo de construção moral e espiritual ao representar um coletivo que se assume como entidade A dignificação e imortalização da memória de um povo através da leitura épica das suas realizações passadas impõese portanto como um relevante trabalho cultural e civilizacional desde a antiguidade reorganizando conjuntos de crença que assumem o aspecto de alegorias cujo sentido é determinado pela conjuntura histórica é uma maneira de exprimir reivindicações que pertencem a um tempo preciso e a aspirações em relação directa com a actualidade histórica FRANCO 2010 p 151 Vale ressaltar que apesar de a épica se circunscrever no tempo histórico ela não tem as aporias do discurso histórico em relação ao tratamento dado às fontes e aos vestígios do passado Heródoto e Tucídides mostraram isso através das diversas fontes materiais orais e geográficas que utilizaram em suas histórias No entanto a presença da épica na história parece ser algo mais do que uma relação complementar Reparemos que o épico vai sendo reconstituído ao longo da modernidade a partir da pena dos renascentistas e humanistas europeus que eram contratados para escrever as memórias de uma família de uma aventura ou mesmo de um reino No geral é DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 74 uma tipologia dos mitos das origens e dos futuros das nações que nessa época foram delineados com grande envergadura nos círculos culturais da maioria dos países europeus de que se conhece exemplos comparativamente interessantes particularmente na Espanha na França na Alemanha nos Países Baixos na Hungria e na Rússia entre outros Os estados e os reinos recentes ganham no dealbar da modernidade a consciência e a convicção de que têm uma origem muito antiga inscrita nos primórdios da humanidade Assim sendo configuram uma idade de ouro que distingue em excelência a primeira idade das nações FRANCO 2010 p 151 Esse processo de intersecção entre épica e história é marcado pelo paradigmático mito de origem visto que nas produções desse período há o estabelecimento de uma dicotomia entre o passado fulgurante e a história atual Essa dicotomia é demarcada pelo otimismo que caracteriza a visão das origens e o pessimismo do presente O já enunciado ideal proféticoescatológico de Bandarra primeiro grito da decadência da gloriosa história portuguesa tornouse um valor comunitário e um factor de antíteses As suas profecias que previram a ruína do Império Português começado a construir por D Afonso Henriques vão estar na base do impulso restauracionista eivado ainda do ideal de cruzada que regeu a fundação e expansão de Portugal FRANCO 2010 p 157 Sendo assim a escrita da história assume uma dimensão profética e entra ao serviço da afirmação de uma consciência nacional Mas esta nostalgia não se fecha em si própria Transformase em instrumento de combate de crítica abrindo para o sentido da esperança no que respeita ao futuro FRANCO 2010 p 152 Tornase necessário dizer que o épico sob esse enfoque combativo jamais perdeu seu potencial expressivo ainda que suas manifestações tenham recebido um tratamento crítico muitas vezes deslocado das questões associadas ao epos ou mesmo à permanência e à transformação da forma épica SILVA RAMALHO 2007 p 13 O Renascimento é um bom caso para demonstrar essa releitura do épico pois nele podemos observar que há já um início de readaptação da tensão entre os elementos ideológicoepistemológicos da modernidade e a herança da tradição Nessa tensão o mito da construção de um império cristão ganhou como que um caráter sagrado e universalizante que tendia estar ao serviço de um imperialismo religioso e ao mesmo tempo comercial e político Os missionários os marinheiros e os soldados portugueses levaram a DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 75 Palavra de Cristo a todos os povos que encontraram e acreditavam estar delegados especialmente por Deus para tal efeito FRANCO 2010 p 157 Isso corrobora o que explica Luis Filipe Barreto ao dizer que o Renascimento é uma superação da medievalidade e toda a superação como o ensina Hegel é um processo de conservação e eliminação BARRETO 1983 p 50 O campo simbólico surgido nessa época de transição nos revela uma burguesia técnica e comercialmente em ascensão mas que por vezes se mostra confiante na origem divina de sua nacionalidade e seu universo2 Cabe salientar que esse profetismo consolidase também em Portugal onde pode ser encontrado nas obras de João de Barros em Crónica do Imperador Clarimundo e na Rópica Pnefma na presença franciscana da corte de D Manuel I os franciscanos estavam muito influenciados por uma escatologia de inspiração joaquimita e milenarista na mística dos Descobrimentos e continua emergente com a obra de Diogo Castilho Origem dos Turcos FRANCO 2010 p 157 A sucessão dos acontecimentos na perspectiva dessas obras é representada epicamente através da depuração dos aspectos não dignificantes de um grupo que se quer mostrar divinamente superior e do realce daqueles que são dignos de glória e de exemplaridade concretizando assim o mito fundacional do reino A mitificação das origens primeiras e dos futuros últimos de um povo de uma nação ou mesmo de uma instituição resulta de um fito de engrandecimento e de legitimação da realidade fenoménica que se descreve num processo de construção de memória histórica FRANCO 2010 p 151 É justamente a partir do século XVI que se desenvolve uma espécie de mercado europeu dos imaginários nacionais ou das mitologias nacionais utilizando fundamentos e materiais do horizonte religioso cristão Estamos no momento por excelência da formação genesíaca do mito das nações europeias FRANCO 2010 p 151 Todavia temos que notar que a historiografia moderna evita as cenas mais fantasistas as teofanias exageradas em que Deus ou os seus delegados anjos e santos interviriam prolongadamente em determinados passos da História a tradição lendária é apenas referida sobriamente ou metaforicamente FRANCO 2000 p 232 2 Esse contraste reflete na própria reorganização social por que Portugal passava a partir das últimas décadas do século XIV quando ocorreu a primeira revolução burguesa da história entre os anos de 1383 e 1385 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 76 Basta observarmos as diversas cenas de guerra em que são registradas evocações divinas A matutina luz serena e fria As estrelas do Pólo já apartava Quando na cruz o Filho de Maria Mostrandose a Afonso o animava Ele adorando quem lhe aparecia Na Fé todo inflamado assim gritava Aos infiéis Senhor aos infiéis E não a mim que creio o que podeis CAMÕES 2002 C III Est 45 Os elementos metafóricos e subjetivos utilizados para a descrição de um momento evocativo das batalhas nos induzem de imediato à leitura de uma época de complexa transição demonstrando que o pensamento e a fé permaneciam presentes mesmo numa sociedade que conhecia cada vez mais a técnica e os elementos da natureza Esse contraste ocorre assim como cada época recoge el fruto de la precedente Así la exaltación de los ideales caballerescos en la novela cortés de la Edad Media a partir del siglo XII va a granar no sólo en los tardíos libros de caballerías sino en las hazañas con que los hombres del Renacimiento pretendieron emularlas en la historia y por hechos reales Los conquistadores vivieron hicieron ciertas las andanzas novelescas Los historiadores de Indias son cronistas de no mentidas aventuras VALVERDE 1959 p 213 É fato que os cavaleiros que trocaram seus cavalos por caravelas não deixaram de ouvir histórias da chamada matéria da Bretanha um vastíssimo conjunto de textos antigos provenientes da mitologia produzidos em verso e em prosa e centrados na figura do rei Artur e seus cavaleiros da távola redonda O que estamos tentando evidenciar até aqui é que a épica foi praticamente um meio privilegiado para a proliferação de histórias proféticas e doutrinárias na Europa Apesar de consistirem em técnicas por vezes diferentes tratados crônicas e epopeias se interseccionam num mesmo quadro imaginário tangenciando um passado remotíssimo de reinos com forte feição mitológica nos quais a grandeza e a sacralidade das origens é a prefiguração daquilo que um povo ou um reino virá a realizar no desenrolar de sua própria história Em Portugal isso pode ser claramente evidenciado visto que sob a autoridade de Bandarra e com o impulso dos Jesuítas principalmente do Padre António Vieira 16081697 o Sebastianismo heterodoxo reforçase com a independência restaurada em 1640 Este sebastianismo metamorfoseiase de tal modo que é capaz de identificar o Encoberto sucessivamente com as figuras de D João IV D Teodósio D Afonso VI D Pedro II e D João V FRANCO 2010 p 158 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 77 Nesse modelo de história magistra em que Deus faz e a história é feita PESSOA 2007 p 53 como no caso de Portugal a escrita da história assume uma dimensão profética e entra ao serviço da afirmação de uma consciência nacional restauradora O elemento profético que fundamenta muito bem essa intersecção entre história e épica que estamos a tratar se metamorfoseia nos séculos XVIII e XIX propondo uma mensagem de esperança prezando por uma idade mais perfeita para a humanidade em que a coletividade passe a ser o protagonista Muitas ideias políticas como o comunismo o socialismo o liberalismo podem ser entendidas também como formas laicas desse profetismo poético e histórico e essa perspectiva se prolongará de uma forma menos apologética e mais literária e filosófica como observaremos nas obras do poeta português Fernando Pessoa 18881935 que será aqui nosso principal exemplo a ser explorado A épica pessoana e o modo imaginário de estar no mundo É verdade que o Renascimento na esteira de Jacob Burckhardt 18181897 continuará a ser visto somente como uma fase de intensa oposição à Idade Média uma ruptura na passagem duma idade de comentadores a investigadores como descreve António Sérgio 18831969 na Breve Interpretação da História de Portugal 1929 Mas o que constatamos na parte introdutória desse estudo por outro lado é que há um pleno desdobramento da tradição através de um processo de mitificação das origens e dos futuros de um povo de uma nação ou mesmo de uma instituição resultante de um fito de engrandecimento na construção de memória histórica para as camadas subalternas da população e as parcelas letradas resistentes à revolução científica a maravilha e a teratologia a ela associada seguiam tributárias da versão de Sto Agostinho e Ambroise Paré ou seja a natureza consistia fundamentalmente num universo de signos divinos a serem decifrados dando mostras da resistência de certas categorias mentais PRIORI 1994 p 83 Entretanto foi justamente essa espécie de síntese entre o maravilhoso e a experiência que proporcionou a abertura dum novo e outro espaço e tempo mas regresso a um corpo de narrativa mítica como originária fonte da existência e do espírito BARRETO 1983 p 54 abertura essa que Fernando Pessoa soube muito bem adequar DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 78 para sua mística arte poética Se em Camões o engano entra em tensão com o processo de descoberta em Pessoa o engano é o motor de um processo de autodescoberta que vamos aqui tentar explicar Por começar cabe adiantar que a atualidade e a pertinência do estudo de um texto como Mensagem 1934 de influência profética está no fato de esse elemento continuar emergente na cultura portuguesa associado a fenômenos políticos religiosos literários e filosóficos funcionando ora como elemento mobilizador ora como apelo para a regeneração da sociedade Vimos na primeira parte desse breve estudo que se há algo que podemos notar de regular na cultura portuguesa um elemento serializável um fato do cotidiano é a evidência de um elemento épico que dentre muitos fatores também modificou a forma do português encarar o mito não o tomando apenas como um catálogo de ações fantasistas e sim como destino o que implica a ideia de descobrir e reavaliar o mito para fazermos uma viagem interior Por isso para Pessoa o histórico ato de navegar é um movimento ao redor de própria razão de ser QUADROS 1999 p 129 Não se adiantava Fernando Pessoa ao que décadas depois Mircea Eliade 1972 falará sobre a importância do mito vivo A poética pessoana toma o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX por exemplo O fato de não aceitar a chegada de Jesus Cristo como o messias que cumpriu a profecia faz de sua poética em Mensagem uma matéria bastante profética Ao invés de reproduzir seus predecessores o mito na acepção pessoana do termo é tal como ele era compreendido pelas sociedades arcaicas em que o mito designa ao contrário uma história verdadeira e ademais extremamente preciosa por seu caráter sagrado exemplar e significativo De fato a palavra é hoje empregada tanto no sentido de ficção ou ilusão como no sentido familiar sobretudo aos etnólogos sociólogos e historiadores de tradição sagrada revelação primordial modelo exemplar ELIADE 1972 p 6 Nesse sentido o essencial a se notar é que o caráter sagrado dessa relação é configurada num território basilar e encarnada num povo que transporta de geração em geração esse legado religioso e a vontade nacional que representam em suma o poder sacro político totalizante com capacidade para defender ordenar e governar a DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 79 nação fundamentada num discernimento especial consoante as circunstâncias históricas FRANCO 2000 p 291 De Camões até hoje os paradigmas de imaginação sensibilidade e estilo decorrem do conhecimento e experiência proveniente da expansão portuguesa pelo mundo e seu projeto milenarista de revelação O livro Mensagem de Fernando Pessoa herda tais paradigmas ao tematizar Portugal construindo uma peculiar mescla entre a lírica e a épica por meio de retratos dos seus personagens históricos de Portugal É provável que durante a produção de sua poética Pessoa pouco a pouco tenha amadurecido sua ideia de unir a esse cruzamento uma matéria de inspiração e exaltação do sentimento nacional como os mitos do sebastianismo e do Quinto Império o espírito da gnose e da tradição iniciática em suma a totalidade do que ele fala de Portugal que é um livro pequeno de poemas BRECHON 1998 p 502503 A voz épica de Os Lusíadas não pôde ver e viver o grande Desconcerto do reinado de D Sebastião o que foi visto e vivido pelo épico de Mensagem GARCEZ 1989 p 92 E esse detalhe fez toda a diferença visto que Fernando Pessoa escolherá o mito sebastianista como a mais original e singular característica viva da cultura portuguesa decorrente da sua concepção doutrinária alicerçada na história dos Descobrimentos Nesse sentido o mito sebastianista se encontra na origem sociológica e mental dos portugueses um aspecto coletivo um diagnóstico geracional não pessimista da representação do além do visível e do aparente dos fatos com aquilo que constitui a essência mesma de todos os acontecimentos a manifestação imaginária de um grupo Como Os Lusíadas a Mensagem é também um elogio ao Português desvendador de mundos porém na segunda obra poética há um navegar da alma que lhe é singular pois diferente de Camões Pessoa teve de aprender a ver além do fracasso vivido em Alcácer Quibir pois foi na crucificação de Cristo aos olhos humanos uma enorme e vil derrota que Deus o coroou como vitorioso num outro plano que existe para além do humano o plano divino GARCEZ 1989 p 95 Seguindo tais coordenadas a teoria do heroísmo em Pessoa é também uma teoria do sacrifício que nos versos camonianos são representados superficialmente pelos enganosos e temerosos caminhos Os Lusíadas são a epopéia de grandes feitos que já se consumaram mas também são a epopéia da esperança nos grandes feitos que esperavase DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 80 vir através do governo de D Sebastião por isso temos em Camões uma abordagem situada antes da dita derrota desse rei o que a torna mais otimista e menos introspectiva Essas diferenças adquirem relevo a começar pelo fato de que enquanto em Camões o engano e os surtos imaginários fazem o poeta reclamar diretamente a Deus lamentando as barreiras por ele implantadas para dificultar o cumprimento do caminho marítimo para as Índias e a consequente expansão da fé em Fernando Pessoa esse engano não provoca uma tensão não corresponde a um obstáculo Pois foi no mistério que Pessoa enxergou uma possibilidade de constituição espiritual de formação da identidade lusitana Ah quanto mais ao povo a alma falta Mais a minha alma atlântica se exalta PESSOA 2007 p 89 Além disso nas figuras que compõem a parte chamada as Quinas de Mensagem o desastre e o sacrifício são denominadores comuns Todos os personagens históricos de Portugal foram marcados pela desgraça e martirizados Mas assim exatamente por meio dessas linhas tortas que Deus escreveu direito e Portugal se foi fazendo e foi cumprindo um determinado fazer no mundo GARCEZ 1989 p 96 Ainda devemos tomar conhecimento da estrutura espaçotemporal de ambas as obras se Os Lusíadas recontam cronologicamente a história de Portugal até seu momento de escrita Mensagem interrompe seu percurso temporal repleto de lacunas caracterizando as personalidades históricas de acordo com a espera profética do retorno do Encoberto o rei D Sebastião morto em batalha e que por meio da figura de algum outro expoente histórico reerguerá o Império português GAGLIARDI 2007 p 17 Diferentemente de Camões aos heróis da épica pessoana pouco parece importar a aventura temporal Analisando bem todos esses heróis são na verdade protagonistas de uma aventura muito mais mística do que material e é aquela que interessa à voz épica pessoana Todos esses seres afinal não estão mortos e é por isto que alguns o poeta os invoca clamando por sua proteção Há como que uma visão atemporal dessas personagens que estão como que pinçadas do tempo formando uma galeria de eternidade elas não cumpriram uma missão e desapareceram não se caracterizam pela ausência mas por um eterno olhar por uma eterna presença Mensagem não percorre cronologicamente a História Seu critério é outro Ele ziguezagueou pela História escolhendo personagens que considera decisivas sob o prisma anagógico com que a lê deixando outras de lado Isto porque seu desígnio maior não é o de informar nem mesmo o de encontrar e comover como faz Camões mas o de interpretar a História sob o ponto de vista da intervenção DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 81 divina nela é isto o que mostra em cada uma das figuras focalizadas GARCEZ 1989 p 97 Demasiado grande é a sombra de Camões em Mensagem fazendoo interlocutor em cada retrato histórico representado nesse livro de poesias Contudo nessa intertextualidade Fernando Pessoa estatui o termo engano como uma criação coletiva onírica e delirante resultado de uma alucinação inicial correspondente a um profundo malestar dos portugueses que não encontram explicação racional para o permanente estado de falência e insucesso que tem conduzido o país desde o século XVII REAL 2013 p 6 Dessa forma responde Pessoa às muitas indagações que Camões faz a Deus sobre os enganos e os temores que surgiam ao longo da viagem histórica de Vasco da Gama sendo em Mensagem esse estado crítico projetado na ordem da providência e do messianismo isto é para a esfera do espiritual Louco sim louco porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá Não coube em mim minha certeza Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve não o que há Minha loucura outros que a tomem Com o que nela ia Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia Cadáver adiado que procria PESSOA 2007 p 61 O que é o homem sem a loucura Ou o que somos sem o mito Entre esses questionamentos retoma o poeta de Orpheu o cenário do areal de Alcácer imagem que possivelmente pode ter figurado a última visão do rei D Sebastião no momento de sua morte Esse rei era clamado pela população para reorganizar o império luso firmando a identidade e a colonização efetiva das terras estrangeiras sob domínio português Sua morte em território africano acentuou o caráter lendário da cultura de seu povo que passou a simbolizar a sua volta como o retorno do rei que cumprirá o desígnio divino e imperial registrado desde sua fundação De reinado surgido pela conquista cristã da Península Ibérica Portugal passaria a império a expandir a cristandade por todo o mundo O mito sebastianista correspondendo ou não à verdade histórica é a representação de um sentimento coletivo que funda esse DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 82 desejo ou seja o sebastianismo como define Eduardo Lourenço constitui o máximo de existência irrealista de Portugal mas também o máximo de coincidência com o nosso ser profundo já que representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional de uma carência e essa carência é real LOURENÇO 1989 p 2425 O império da conquista pode até ter falhado mas sem ele não poderia o império cultural buscar o apoio pois não teria idéia de império alguma em que se apoiasse GARCEZ 1989 p 99 Mensagem singularizase assim como um épico sem cantos e instrumentos ruidosos mas de secretas e miríficas irrealidades da alma O idealismo estreme ocultista ou platônico dalguns dos seus poemas líricos reduz o mundo visível a cópia grosseira do mundo invisível Aqui sobre a terra tudo é nocturno e confuso tudo são projecções sombras fumo dum lume escondido no outro mundo é que vivemos como almas A Mensagem reafirma a cada passo a mesma repugnância pelo carnal pelo que o sonho ou a loucura não redimem COELHO 1969 p 52 Uma espécie de confusão lírica em Mensagem constitui o fator ontológico da épica profética pessoana Sua veia lírica pode ser percebida claramente num poema sem titulo na sessão intitulada Os avisos que compõe a terceira parte O Encoberto Nesse poema apresentase o próprio poeta escrevendo suas poesias à beiramágoa Um coração não tem que ter Tenho meus olhos quentes de água Só tu Senhor me dás viver PESSOA 2007 p 109 O poeta questiona qual é o grande feito português e não responde com o achamento do caminho marítimo para as Índias com a descoberta do Ocidente ou a constituição do Império O grande feito português na visão Sebastiana e messiânica que preside Mensagem está na iminência de vir É a Hora aqueles primeiros acontecimentos foram apenas os sinais deste último que é o verdadeiro e que é o grande Concerto que o mundo espera Como é sabido e foi provado que Pessoa não aceita a Revelação Cristã tal como nola apresenta a Igreja há uma identidade do homem que nela é desvendada mas que o poeta de Orpheu repele para ele continua a subsistir uma indagação acerca das origens do homem da sua identidade portuguesa Se nos Lusíadas a grande preocupação com identificar e contar uma História que mantenha a identidade e demonstre um finalismo que abre para o mundo da Revelação cristã é patente em Mensagem Pessoa que não resolve assim este problema recoloca a indagação sobre as origens e propõe esta nova meta para a busca GARCEZ 1989 p 100101 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 83 Em Mensagem portanto revelase uma mescla de gêneros e épocas não festejando Portugal apenas no sentido de cantar feitos heróicos e conquistas nutrindo pelo país uma ternura mais triste Conforme Cleonice Berardinelli a criação de símbolo a partir de uma realidade ou a deformação dessa realidade a fim de tornála simbólica implica um subjetivismo bastante acentuado o que nos faz dizer que Mensagem é um poema épico lírico BERARDINELLI 2004 p 131 Nessa base lírica o mito não é tomado como uma invenção ou uma falha espécie de cegueira ou alienação como pensava sociologicamente António Sérgio mas sim a cura para o sintoma de decadência que há tempos persegue a nação Pois venha o que vier nunca será Maior do que a minha alma PESSOA 2007 p 58 Pelo contrário para Pessoa as potências do invisível fecundam a realidade tornam a vida digna de ser vivida ou melhor transformam a existência mero vegetar em vida COELHO 1969 p 53 Essas potências é que mantêm a Sperança consumada S Portugal em ser Ergue a luz da tua espada Para a estrada se ver PESSOA 2007 p 65 É nessa perspectiva que se inicia o poema Ulisses onde sem existir Ulisses funda Portugal um ato fundacional completamente atrelado ao imaginário Este que aqui aportou Fiz por não ser existindo Sem existir nos bastou Por ao ter vindo foi vindo E nos criou Assim a lenda se escorre A entrar na realidade E a fecundála decorre PESSOA 2007 p 47 É preciso compreender que o mito pessoano fecunda a história fertiliza o mensageiro e por fim proporciona vida Ainda segundo Cleonice Berardinelli o que constitui o cerne do poeta Fernando Pessoa é justamente essa febre de Além BERARDINELLI 2004 Tal imperiosa necessidade de sonhar de imaginar já se assinalou no poema dedicado a D Fernando através da presença do mistério e do oculto Pôsme as mãos sobre os ombros e dourou me A fronte com o olhar E esta febre de Além que me consome E este querer grandeza são seu nome Dentro em mim a vibrar PESSOA 2007 p 58 Uma espécie de inquietação imaginária seria uma das componentes dessa febre de Além febre que é atribuída ao infante D Fernando por reconhecer legislativamente o sonho de uma Índia rica de todo trato Em Mensagem é D Fernando quem praticamente inicia esse surto imaginário visto a importância que deu esse rei à atividade marítima ao criar e fortalecer as leis protetoras do comércio marítimo Isso revelanos o valor da DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 84 burguesia marítima e mostra em germe o que veio depois a revolução de 1383 e a mística empresa das navegações SÉRGIO 1978 p 26 Se em Os Lusíadas a saga de um povo é narrada por uma persona poética que se confunde com a imagem do próprio Camões Mensagem é um espaço dispersivo por excelência uma aquarela de vozes é às vezes o monólogo da figura heróica que intitula suas partes noutras é a voz de um eulírico distanciado e impessoal que se manifesta tanto na primeira pessoa do singular quanto na primeira do plural e em outros poemas é uma voz que se dirige para a figuratítulo do texto GAGLIARDI 2007 p 1718 É através de um trabalho de empatia e misticismo que Fernando Pessoa arriscará como um Colombo navegar até a alma dos heróis e mártires portugueses como no caso de D Fernando e dos outros cavaleiros responsáveis pela edificação do destino português Cavaleiros como D Dinis e D Sebastião se tornaram mártires em Portugal por sacrificarem suas vidas na tentativa de efetivar o mito imperial de sua nação obtendo o missionário sinal da cruz em seu escudo real Histórias exaltadas com tanta subjetividade só poderiam ser representadas através da primeira pessoa atingindo assim os poemas de as Quinas um eulírico em seu mais profundo martírio e frenético sonhar Tudo vale a pena Se a alma não é pequena Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor PESSOA 2007 p 88 Desbravar o mar desconhecido conviver com e descobrir seus próprios medos e limites em prol do fortalecimento e enriquecimento de si além do seu rei e reinado é o que Fernando Pessoa almeja para os portugueses do futuro comunicando ao seu leitor a sua meditação poética sobre a história e a cultura da nação lusa O que a Mensagem põe em cena numa série de 44 retratos históricos cada um dos quais um brevíssimo drama é a febre de se perder no que é grande maior que tudo o indizível e incomensurável E a ação de todos esses heróis já que são todos conquistadores guiada por seu sonho por sua fé e por sua esperança é imagem do sonho da fé e da esperança do poeta cujo gesto de escrever se situa num espaço para além de toda e qualquer ação possível BRECHON 1998 p 507 Se Vieira crê ardentemente na volta do messias lusitano que surgirá para restaurar a ordem e o império português que se encontrava então sob domínio de Castela Fernando Pessoa por sua vez parece se ater mais ao ato de acreditar na prática da fé mística de seu país como uma ação eficiente que proporcionará aos portugueses alguma chance de DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 85 reabilitação Para manter essa crença em suspenso insiste o poeta em explorar imagens de ambientes sombrios e noturnos imagens sem contornos definidos em meio à neblina num mar que tem tempo ou spaço Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna PESSOA 2007 p 89 Na Bíblia as névoas significavam a presença de Deus em algum lugar3 Em Mensagem ela produz imagens impressivas gera dúvida provoca crendices e suscita vestígios de identidade Tudo é incerto e derradeiro Tudo é disperso nada é inteiro Ó Portugal hoje és nevoeiro PESSOA 2007 p 118 O nevoeiro aqui consiste na suspensão do mito que encoberto de névoa não é desvendado Essa imagem favorece e alimenta a esperança dos portugueses pelo retorno do messias e principalmente pelo retorno de uma melhor condição de vida É da invisibilidade e da imprevisibilidade do tempo profético que se retira a energia para manter aquecido os mitos da alma portuguesa Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem PESSOA 2007 p 100 Reina a dúvida e a incapacidade de enxergar por entre as nuvens mas ainda persiste a busca pelo encoberto pela hora e pela era tão esperadas visto que em Mensagem é do mais espesso nevoeiro da indeterminação e da irresolução que virá a salvação ainda que tardia Cumpriuse o Mar e o Império se desfez Senhor falta cumprirse Portugal PESSOA 2007 p 77 É em meio ao nevoeiro que se espera cumprir o mito que é Portugal metáfora que pode ser interpretada pela necessidade que o país tem de alcançar um grau mais avançado de vida espiritual a ponto de esses mitos duradouros obterem uma presença que se faz contínua na vida da população São profundas experiências de autoconhecimento ou metaforicamente de autonavegação à luz de espiritualidades que tornam a vida mais harmônica e menos sofrida Não que o poeta esteja clamando por uma maior catequização do país pois versos como encontramos no ortônimo Em Deus Mas o que é Deus E existe Deus E isso que importa PESSOA 2010 p 34 revelam as possibilidades quanto à existência de uma linha reflexiva agnóstica em sua poética Pessoa preza é pela oração por um exercício espiritual que visa a uma consciência mais viva de Portugal tendo o próprio país como destino realidade e problema ontem e hoje Para compreendermos melhor esse pensamento proposto pela poética de Mensagem 3 Virei até ti na espessura da névoa diz Iavé a Moisés e é igualmente numa nuvem que ressoa sobre a montanha da transfiguração a voz que diz Este é o meu Filho bemamado BRECHON 1998 p 509 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 86 devemos apreender a sugestão de Filipe Barreto no que concerne ao entendimento dos tempos de ruína como campos férteis para o ressurgimento de mitos e utopias O aumento das sombras e nãosaídas do real produz o aumento e a força das luzes arejadas do ideal BARRETO 1978 p 276 Nessa esteira de ideias respondendo a uma entrevista feita pelo jornalista Augusto da Costa em 1934 Fernando Pessoa afirmava a sua confiança em que Portugal poderia voltar a ser uma grande potência construtiva ou criadora um Império não já no sentido evidentemente de um Império guerreiro territorial ou material mas no sentido de um Império do Espírito um Império da Cultura Para tanto seria necessário antes de mais nada levantar o moral da nação abatido pelo complexo de inferioridade em que caímos historicamente Ora disse Pessoa só há uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional E mais adiante significativamente Temos felizmente o mito sebastianista com raízes profundas no passado e na alma portuguesa Nosso trabalho é pois mais fácil não temos que criar um mito senão que renoválo QUADROS 1999 p 247 A névoa a bruma as ilhas são o cenário pessoano por onde se move o mito sebastianista renovado reconstituído de pressagos mistérios Em Mensagem o passado português transitou da história para o mito e só nesse será possível a recuperação só nesse haverá a hora prometida no último momento do último poema e possibilitada pelo único verso que quebra a negatividade total do texto a ela ligandose pela rima BERARDINELLI 2004 p 129 Observamos que em Mensagem o pensamento do poeta está quase inteiramente voltado para o oculto mas aplicado à história à memória coletiva ao mito nacional Não podemos exigir dos poetas a fundamentação e o rigor dos sociólogos mas é fato que a obra poética aqui comentada aponta caminhos valiosos para se pensar a respeito da história e da cultura portuguesas No entanto sua matériaprima o mito sebastianista bem como outros mitos constituintes da cultura lusitana tem sido pouco estudado e não raro desprezado pela elite cultural portuguesa permanecendo para esta válida a consigna de Agostinho de Macedo registada há cerca de duzentos anos de que o sebastianismo nos envergonha como povo civilizado da Europa No DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 87 entanto espantosamente o mito sebastianista independente do juízo positivo e negativo que sobre ele se faça constitui um dos pontos de referência culturais mais vinculativos de nossa identidade nacional merecendo ser estudado sem preconceitos esotéricos ou sociológicos Aliás como evidenciamos só se compreenderá verdadeiramente o mito sebastianista quando se cruzarem num quadro conceptual unitário e coerente os estudos sobre o imaginário simbólico e os estudos científicos de caráter sociológico não sobrevalorizando um em detrimento do outro QUADROS 1999 p 89 Nessa conjuntura vale destacar as palavras de Vitorino Magalhães Godinho 1918 2011 ao dizer que a história crescera ao serviço de reivindicações nacionais e na obsessão das prioridades no descobrir e ocupar GODINHO 2008 p 25 Em seu clássico A Expansão Quatrocentista Portuguesa obra censurada pela comissão organizadora das Comemorações Henriquinas em 1960 tornase muito evidente a sua ideia de que só uma sociologia histórica é capaz de nos elucidar o que representou de fato a épica para a coletividade lusitana Todavia se as relações de força da imaginação se perdem nos psicologismos e nos realismos contemporâneos se a racionalidade se desagrega totalmente com a emergência de uma civilização imediatista industrial e pósindustrial a épica na ótica pessoana aqui observada ajuda a não deixarmos de produzir sentido no mundo mesmo com base numa visão numa vivência ancorado nas instâncias profundas da consciência individual ou colectiva organizando e regulando a totalidade do ser colectivo num dado espaço e num dado momento da sua existência isto é no continuum espaçotempo BUESCU 1989 p 3940 A singularidade de Mensagem culmina exatamente nessa busca existencial traços de experiência mística e sabedoria oculta Para a cultura portuguesa essa ontologia tornou Pessoa mais do que um escritor ou mesmo um poeta antes um profeta como o Bandarra ou Vieira um poeta e viajante como Camões olhando em visão espectral a alma encoberta da sua pátria e tudo fazendo para levantála salvála fazêla reaparecer da espessa névoa que a envolve QUADROS 1999 p 251 Bibliografia BARRETO Luís Filipe Utopia e Heteropia In Brotéria vol 106 nº 3 1978 pp 275279 Descobrimentos e Renascimento formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI 2ª Ed Lisboa INCM 1983 BERARDINELLI Cleonice Fernando Pessoa outra vez te revejo Rio de Janeiro Lacerda Editor 2004 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 88 BRECHON Robert Fernando Pessoa Estranho estrangeiro Rio de Janeiro Record 1998 BUESCU Maria Leonor Carvalhão Derivas e invariantes da épica portuguesa do século XVI In VIEIRA António Braz de org Fidelino de Figueiredo Lisboa Biblioteca Nacional 1989 CAMÕES Luís Vaz de Os Lusíadas São Paulo Nova Cultural 2002 COELHO Jacinto do Prado Diversidade e unidade em Fernando Pessoa Lisboa Editorial Verbo 1969 Portugal imaginário e verdadeiro na poesia portuguesa In Camões e Pessoa poetas da utopia Lisboa Publicações EuropaAmérica 1983 pp 129134 ELIADE Mircea Mito e Realidade Tradução de Pola Civelli São Paulo Perspectiva 1972 FIGUEIREDO Fidelino de A épica portuguesa no século XVI Lisboa INCM 1950 FRANCO José Eduardo O Mito de Portugal a primeira História de Portugal e a sua função política Lisboa Roma Editora 2000 Profetismo e a ideia de nação modelação religiosa do destino de um povo In Religare João Pessoa vol 7 nº 2 2010 pp 150163 GAGLIARDI Caio A pátria de sonho portuguesa Prefácio In PESSOA Fernando Mensagem São Paulo HEDRA 2007 GARCEZ Maria Helena Nery Do Desconcerto e do Concerto do Mundo em Mensagem In Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de SáCarneiro coletâneas de artigos e ensaios São Paulo EdUSP 1989 pp 89107 GODINHO Vitorino Magalhães A Expansão Quatrocentista Portuguesa 2ª edição Lisboa Dom Quixote 2008 LOURENÇO Eduardo O Labirinto da Saudade Psicanálise Mítica do Destino Português 2ª edição São Paulo Publicações Dom Quixote 1989 Mitologia da saudade seguido de Portugal como destino dramaturgia cultural portuguesa São Paulo Companhia das Letras 1999 PESSOA Fernando Mensagem São Paulo Hedra 2007 Ascensão poema In CRUZ João Paulo Pessoa e Deus uma antologia de espiritualidade pessoana Lisboa Companhia da Palvra Serviços Editoriais 2010 PRIORI Mary del A história cultural entre monstros e maravilhas In SWAIN Tânia Navarro org História no plural Brasília Editora da UnB 1994 pp 6592 QUADROS António O primeiro modernismo português Lisboa EuropaAmérica 1999 REAL Miguel Nova Teoria do Sebastianismo Lisboa Publicações Dom Quixote 2013 SÉRGIO António Breve Interpretação da História de Portugal Lisboa Livraria Sá da Costa Editora 1978 SILVA Anazildo Vasconselos da RAMALHO Christina História da epopéia brasileira teoria crítica e percurso Rio de Janeiro Garamond 2007 VALVERDE José Filgueira Influencia de la literatura caballeresca em los conquistadores y em los cronistas de índias In Enseñanza Media nº 37 1959 pp 213226
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DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 72 NA MADRUGADA IRREAL DO QUINTO IMPÉRIO DA HISTÓRIA PROFÉTICA EM MENSAGEM DE FERNANDO PESSOA Daniel Vecchio1 Recebido 24102015 Aprovado 22062016 Resumo Desde a cronística a história de Portugal inscrevese num horizonte mítico e profético história convertida em objeto de lenda e acontecimento de ordem simbólica Para essa inscrição veremos que a representação épica da expansão marítima foi fundamental para a manutenção da grandiloquência do passado europeu sobretudo em Portugal justamente em momentos de regime e opressão Por outro lado veremos que Fernando Pessoa transforma essa herança épica em instrumento de crítica abrindose para o sentido da esperança no que remete ao futuro Tornase assim necessário frisar que o épico sob esse enfoque combativo jamais perdeu seu potencial expressivo ainda que algumas das suas manifestações tenham recebido um tratamento antitético Nesse estudo observaremos como Pessoa aponta em Mensagem a existência de uma outra Índia por descobrir localizada nos recantos do imaginário e da vontade onírica de busca dos próprios portugueses Palavraschave Épica História Profetismo Portugal Fernando Pessoa THE DAWN OF THE FIFTH UNREAL EMPIRE THE PROFETIC HISTORY IN MENSAGEM OF FERNANDO PESSOA Abstract Since of the chronic tradition the history of Portugal is based in a mythical and prophetic horizon converted history into legend object and an event of symbolic nature For the epic representation in Portugal the maritime expansion is fundamental to maintain the grandiloquence of the moments and oppression On the other hand we are going to see that Fernando Pessoa turns this epic heritage in a critical tool opening himselves for the sense of hope as regards the future It is therefore necessary to evidence that the epic in this combative approach never lost its expressive potential although its manifestations have often received more antithetical treatment In this study we will observe how the portuguese poet points out the existence of another undiscovered India located in imaginary places and dream of themselves Keywords Epic History Profetism Portugal Fernando Pessoa 1 Graduado em História e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa UFV Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Seu interesse abrange os estudos sobre a Literatura Portuguesa de Viagens a História e a Historiografia dos Descobrimentos fazendo parte de grupos de pesquisa como o NEP Núcleo de Estudos Portugueses da UFV e o Mare Liberum Centro de Estudos e Referências sobre a Cartografia Histórica da UNICAMP DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 73 Introdução intersecções entre épica história e profetismo em Portugal As epopeias são importantes fontes de informações sobre a época de diversas civilizações Tanto que o primeiro período da História Grega 1200 800 aC é chamado pelos historiadores de período homérico porque Homero nos forneceu muitas informações sobre os acontecimentos e as formas de expressão dessa época por meio da Ilíada e a Odisséia Sua base constituinte o epos é uma demanda simultânea de informações históricas e maravilhosas que estão impregnadas sob a forma de narrativas fragmentadas e múltiplas em diversas culturas SILVA RAMALHO 2007 p13 Para Fidelino Figueiredo 18891967 em A épica portuguesa no século XVI 1950 a épica é mais que um verso é a busca pela peculiaridade a busca pela essência nacional a significação íntima da obra o que contém de espírito e de intuito nacional FIGUEIREDO 1950 p 20 Tratase de uma forma de abordagem mais englobante e cultural que permite uma visão privilegiada da cultura e postula um diálogo comparativo e interdisciplinar de largo alcance histórico e poético Nesse sentido a épica representa a voz e o lugar de um fenômeno muito mais amplo do que a produção poética pois se insere num processo de construção moral e espiritual ao representar um coletivo que se assume como entidade A dignificação e imortalização da memória de um povo através da leitura épica das suas realizações passadas impõese portanto como um relevante trabalho cultural e civilizacional desde a antiguidade reorganizando conjuntos de crença que assumem o aspecto de alegorias cujo sentido é determinado pela conjuntura histórica é uma maneira de exprimir reivindicações que pertencem a um tempo preciso e a aspirações em relação directa com a actualidade histórica FRANCO 2010 p 151 Vale ressaltar que apesar de a épica se circunscrever no tempo histórico ela não tem as aporias do discurso histórico em relação ao tratamento dado às fontes e aos vestígios do passado Heródoto e Tucídides mostraram isso através das diversas fontes materiais orais e geográficas que utilizaram em suas histórias No entanto a presença da épica na história parece ser algo mais do que uma relação complementar Reparemos que o épico vai sendo reconstituído ao longo da modernidade a partir da pena dos renascentistas e humanistas europeus que eram contratados para escrever as memórias de uma família de uma aventura ou mesmo de um reino No geral é DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 74 uma tipologia dos mitos das origens e dos futuros das nações que nessa época foram delineados com grande envergadura nos círculos culturais da maioria dos países europeus de que se conhece exemplos comparativamente interessantes particularmente na Espanha na França na Alemanha nos Países Baixos na Hungria e na Rússia entre outros Os estados e os reinos recentes ganham no dealbar da modernidade a consciência e a convicção de que têm uma origem muito antiga inscrita nos primórdios da humanidade Assim sendo configuram uma idade de ouro que distingue em excelência a primeira idade das nações FRANCO 2010 p 151 Esse processo de intersecção entre épica e história é marcado pelo paradigmático mito de origem visto que nas produções desse período há o estabelecimento de uma dicotomia entre o passado fulgurante e a história atual Essa dicotomia é demarcada pelo otimismo que caracteriza a visão das origens e o pessimismo do presente O já enunciado ideal proféticoescatológico de Bandarra primeiro grito da decadência da gloriosa história portuguesa tornouse um valor comunitário e um factor de antíteses As suas profecias que previram a ruína do Império Português começado a construir por D Afonso Henriques vão estar na base do impulso restauracionista eivado ainda do ideal de cruzada que regeu a fundação e expansão de Portugal FRANCO 2010 p 157 Sendo assim a escrita da história assume uma dimensão profética e entra ao serviço da afirmação de uma consciência nacional Mas esta nostalgia não se fecha em si própria Transformase em instrumento de combate de crítica abrindo para o sentido da esperança no que respeita ao futuro FRANCO 2010 p 152 Tornase necessário dizer que o épico sob esse enfoque combativo jamais perdeu seu potencial expressivo ainda que suas manifestações tenham recebido um tratamento crítico muitas vezes deslocado das questões associadas ao epos ou mesmo à permanência e à transformação da forma épica SILVA RAMALHO 2007 p 13 O Renascimento é um bom caso para demonstrar essa releitura do épico pois nele podemos observar que há já um início de readaptação da tensão entre os elementos ideológicoepistemológicos da modernidade e a herança da tradição Nessa tensão o mito da construção de um império cristão ganhou como que um caráter sagrado e universalizante que tendia estar ao serviço de um imperialismo religioso e ao mesmo tempo comercial e político Os missionários os marinheiros e os soldados portugueses levaram a DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 75 Palavra de Cristo a todos os povos que encontraram e acreditavam estar delegados especialmente por Deus para tal efeito FRANCO 2010 p 157 Isso corrobora o que explica Luis Filipe Barreto ao dizer que o Renascimento é uma superação da medievalidade e toda a superação como o ensina Hegel é um processo de conservação e eliminação BARRETO 1983 p 50 O campo simbólico surgido nessa época de transição nos revela uma burguesia técnica e comercialmente em ascensão mas que por vezes se mostra confiante na origem divina de sua nacionalidade e seu universo2 Cabe salientar que esse profetismo consolidase também em Portugal onde pode ser encontrado nas obras de João de Barros em Crónica do Imperador Clarimundo e na Rópica Pnefma na presença franciscana da corte de D Manuel I os franciscanos estavam muito influenciados por uma escatologia de inspiração joaquimita e milenarista na mística dos Descobrimentos e continua emergente com a obra de Diogo Castilho Origem dos Turcos FRANCO 2010 p 157 A sucessão dos acontecimentos na perspectiva dessas obras é representada epicamente através da depuração dos aspectos não dignificantes de um grupo que se quer mostrar divinamente superior e do realce daqueles que são dignos de glória e de exemplaridade concretizando assim o mito fundacional do reino A mitificação das origens primeiras e dos futuros últimos de um povo de uma nação ou mesmo de uma instituição resulta de um fito de engrandecimento e de legitimação da realidade fenoménica que se descreve num processo de construção de memória histórica FRANCO 2010 p 151 É justamente a partir do século XVI que se desenvolve uma espécie de mercado europeu dos imaginários nacionais ou das mitologias nacionais utilizando fundamentos e materiais do horizonte religioso cristão Estamos no momento por excelência da formação genesíaca do mito das nações europeias FRANCO 2010 p 151 Todavia temos que notar que a historiografia moderna evita as cenas mais fantasistas as teofanias exageradas em que Deus ou os seus delegados anjos e santos interviriam prolongadamente em determinados passos da História a tradição lendária é apenas referida sobriamente ou metaforicamente FRANCO 2000 p 232 2 Esse contraste reflete na própria reorganização social por que Portugal passava a partir das últimas décadas do século XIV quando ocorreu a primeira revolução burguesa da história entre os anos de 1383 e 1385 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 76 Basta observarmos as diversas cenas de guerra em que são registradas evocações divinas A matutina luz serena e fria As estrelas do Pólo já apartava Quando na cruz o Filho de Maria Mostrandose a Afonso o animava Ele adorando quem lhe aparecia Na Fé todo inflamado assim gritava Aos infiéis Senhor aos infiéis E não a mim que creio o que podeis CAMÕES 2002 C III Est 45 Os elementos metafóricos e subjetivos utilizados para a descrição de um momento evocativo das batalhas nos induzem de imediato à leitura de uma época de complexa transição demonstrando que o pensamento e a fé permaneciam presentes mesmo numa sociedade que conhecia cada vez mais a técnica e os elementos da natureza Esse contraste ocorre assim como cada época recoge el fruto de la precedente Así la exaltación de los ideales caballerescos en la novela cortés de la Edad Media a partir del siglo XII va a granar no sólo en los tardíos libros de caballerías sino en las hazañas con que los hombres del Renacimiento pretendieron emularlas en la historia y por hechos reales Los conquistadores vivieron hicieron ciertas las andanzas novelescas Los historiadores de Indias son cronistas de no mentidas aventuras VALVERDE 1959 p 213 É fato que os cavaleiros que trocaram seus cavalos por caravelas não deixaram de ouvir histórias da chamada matéria da Bretanha um vastíssimo conjunto de textos antigos provenientes da mitologia produzidos em verso e em prosa e centrados na figura do rei Artur e seus cavaleiros da távola redonda O que estamos tentando evidenciar até aqui é que a épica foi praticamente um meio privilegiado para a proliferação de histórias proféticas e doutrinárias na Europa Apesar de consistirem em técnicas por vezes diferentes tratados crônicas e epopeias se interseccionam num mesmo quadro imaginário tangenciando um passado remotíssimo de reinos com forte feição mitológica nos quais a grandeza e a sacralidade das origens é a prefiguração daquilo que um povo ou um reino virá a realizar no desenrolar de sua própria história Em Portugal isso pode ser claramente evidenciado visto que sob a autoridade de Bandarra e com o impulso dos Jesuítas principalmente do Padre António Vieira 16081697 o Sebastianismo heterodoxo reforçase com a independência restaurada em 1640 Este sebastianismo metamorfoseiase de tal modo que é capaz de identificar o Encoberto sucessivamente com as figuras de D João IV D Teodósio D Afonso VI D Pedro II e D João V FRANCO 2010 p 158 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 77 Nesse modelo de história magistra em que Deus faz e a história é feita PESSOA 2007 p 53 como no caso de Portugal a escrita da história assume uma dimensão profética e entra ao serviço da afirmação de uma consciência nacional restauradora O elemento profético que fundamenta muito bem essa intersecção entre história e épica que estamos a tratar se metamorfoseia nos séculos XVIII e XIX propondo uma mensagem de esperança prezando por uma idade mais perfeita para a humanidade em que a coletividade passe a ser o protagonista Muitas ideias políticas como o comunismo o socialismo o liberalismo podem ser entendidas também como formas laicas desse profetismo poético e histórico e essa perspectiva se prolongará de uma forma menos apologética e mais literária e filosófica como observaremos nas obras do poeta português Fernando Pessoa 18881935 que será aqui nosso principal exemplo a ser explorado A épica pessoana e o modo imaginário de estar no mundo É verdade que o Renascimento na esteira de Jacob Burckhardt 18181897 continuará a ser visto somente como uma fase de intensa oposição à Idade Média uma ruptura na passagem duma idade de comentadores a investigadores como descreve António Sérgio 18831969 na Breve Interpretação da História de Portugal 1929 Mas o que constatamos na parte introdutória desse estudo por outro lado é que há um pleno desdobramento da tradição através de um processo de mitificação das origens e dos futuros de um povo de uma nação ou mesmo de uma instituição resultante de um fito de engrandecimento na construção de memória histórica para as camadas subalternas da população e as parcelas letradas resistentes à revolução científica a maravilha e a teratologia a ela associada seguiam tributárias da versão de Sto Agostinho e Ambroise Paré ou seja a natureza consistia fundamentalmente num universo de signos divinos a serem decifrados dando mostras da resistência de certas categorias mentais PRIORI 1994 p 83 Entretanto foi justamente essa espécie de síntese entre o maravilhoso e a experiência que proporcionou a abertura dum novo e outro espaço e tempo mas regresso a um corpo de narrativa mítica como originária fonte da existência e do espírito BARRETO 1983 p 54 abertura essa que Fernando Pessoa soube muito bem adequar DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 78 para sua mística arte poética Se em Camões o engano entra em tensão com o processo de descoberta em Pessoa o engano é o motor de um processo de autodescoberta que vamos aqui tentar explicar Por começar cabe adiantar que a atualidade e a pertinência do estudo de um texto como Mensagem 1934 de influência profética está no fato de esse elemento continuar emergente na cultura portuguesa associado a fenômenos políticos religiosos literários e filosóficos funcionando ora como elemento mobilizador ora como apelo para a regeneração da sociedade Vimos na primeira parte desse breve estudo que se há algo que podemos notar de regular na cultura portuguesa um elemento serializável um fato do cotidiano é a evidência de um elemento épico que dentre muitos fatores também modificou a forma do português encarar o mito não o tomando apenas como um catálogo de ações fantasistas e sim como destino o que implica a ideia de descobrir e reavaliar o mito para fazermos uma viagem interior Por isso para Pessoa o histórico ato de navegar é um movimento ao redor de própria razão de ser QUADROS 1999 p 129 Não se adiantava Fernando Pessoa ao que décadas depois Mircea Eliade 1972 falará sobre a importância do mito vivo A poética pessoana toma o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX por exemplo O fato de não aceitar a chegada de Jesus Cristo como o messias que cumpriu a profecia faz de sua poética em Mensagem uma matéria bastante profética Ao invés de reproduzir seus predecessores o mito na acepção pessoana do termo é tal como ele era compreendido pelas sociedades arcaicas em que o mito designa ao contrário uma história verdadeira e ademais extremamente preciosa por seu caráter sagrado exemplar e significativo De fato a palavra é hoje empregada tanto no sentido de ficção ou ilusão como no sentido familiar sobretudo aos etnólogos sociólogos e historiadores de tradição sagrada revelação primordial modelo exemplar ELIADE 1972 p 6 Nesse sentido o essencial a se notar é que o caráter sagrado dessa relação é configurada num território basilar e encarnada num povo que transporta de geração em geração esse legado religioso e a vontade nacional que representam em suma o poder sacro político totalizante com capacidade para defender ordenar e governar a DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 79 nação fundamentada num discernimento especial consoante as circunstâncias históricas FRANCO 2000 p 291 De Camões até hoje os paradigmas de imaginação sensibilidade e estilo decorrem do conhecimento e experiência proveniente da expansão portuguesa pelo mundo e seu projeto milenarista de revelação O livro Mensagem de Fernando Pessoa herda tais paradigmas ao tematizar Portugal construindo uma peculiar mescla entre a lírica e a épica por meio de retratos dos seus personagens históricos de Portugal É provável que durante a produção de sua poética Pessoa pouco a pouco tenha amadurecido sua ideia de unir a esse cruzamento uma matéria de inspiração e exaltação do sentimento nacional como os mitos do sebastianismo e do Quinto Império o espírito da gnose e da tradição iniciática em suma a totalidade do que ele fala de Portugal que é um livro pequeno de poemas BRECHON 1998 p 502503 A voz épica de Os Lusíadas não pôde ver e viver o grande Desconcerto do reinado de D Sebastião o que foi visto e vivido pelo épico de Mensagem GARCEZ 1989 p 92 E esse detalhe fez toda a diferença visto que Fernando Pessoa escolherá o mito sebastianista como a mais original e singular característica viva da cultura portuguesa decorrente da sua concepção doutrinária alicerçada na história dos Descobrimentos Nesse sentido o mito sebastianista se encontra na origem sociológica e mental dos portugueses um aspecto coletivo um diagnóstico geracional não pessimista da representação do além do visível e do aparente dos fatos com aquilo que constitui a essência mesma de todos os acontecimentos a manifestação imaginária de um grupo Como Os Lusíadas a Mensagem é também um elogio ao Português desvendador de mundos porém na segunda obra poética há um navegar da alma que lhe é singular pois diferente de Camões Pessoa teve de aprender a ver além do fracasso vivido em Alcácer Quibir pois foi na crucificação de Cristo aos olhos humanos uma enorme e vil derrota que Deus o coroou como vitorioso num outro plano que existe para além do humano o plano divino GARCEZ 1989 p 95 Seguindo tais coordenadas a teoria do heroísmo em Pessoa é também uma teoria do sacrifício que nos versos camonianos são representados superficialmente pelos enganosos e temerosos caminhos Os Lusíadas são a epopéia de grandes feitos que já se consumaram mas também são a epopéia da esperança nos grandes feitos que esperavase DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 80 vir através do governo de D Sebastião por isso temos em Camões uma abordagem situada antes da dita derrota desse rei o que a torna mais otimista e menos introspectiva Essas diferenças adquirem relevo a começar pelo fato de que enquanto em Camões o engano e os surtos imaginários fazem o poeta reclamar diretamente a Deus lamentando as barreiras por ele implantadas para dificultar o cumprimento do caminho marítimo para as Índias e a consequente expansão da fé em Fernando Pessoa esse engano não provoca uma tensão não corresponde a um obstáculo Pois foi no mistério que Pessoa enxergou uma possibilidade de constituição espiritual de formação da identidade lusitana Ah quanto mais ao povo a alma falta Mais a minha alma atlântica se exalta PESSOA 2007 p 89 Além disso nas figuras que compõem a parte chamada as Quinas de Mensagem o desastre e o sacrifício são denominadores comuns Todos os personagens históricos de Portugal foram marcados pela desgraça e martirizados Mas assim exatamente por meio dessas linhas tortas que Deus escreveu direito e Portugal se foi fazendo e foi cumprindo um determinado fazer no mundo GARCEZ 1989 p 96 Ainda devemos tomar conhecimento da estrutura espaçotemporal de ambas as obras se Os Lusíadas recontam cronologicamente a história de Portugal até seu momento de escrita Mensagem interrompe seu percurso temporal repleto de lacunas caracterizando as personalidades históricas de acordo com a espera profética do retorno do Encoberto o rei D Sebastião morto em batalha e que por meio da figura de algum outro expoente histórico reerguerá o Império português GAGLIARDI 2007 p 17 Diferentemente de Camões aos heróis da épica pessoana pouco parece importar a aventura temporal Analisando bem todos esses heróis são na verdade protagonistas de uma aventura muito mais mística do que material e é aquela que interessa à voz épica pessoana Todos esses seres afinal não estão mortos e é por isto que alguns o poeta os invoca clamando por sua proteção Há como que uma visão atemporal dessas personagens que estão como que pinçadas do tempo formando uma galeria de eternidade elas não cumpriram uma missão e desapareceram não se caracterizam pela ausência mas por um eterno olhar por uma eterna presença Mensagem não percorre cronologicamente a História Seu critério é outro Ele ziguezagueou pela História escolhendo personagens que considera decisivas sob o prisma anagógico com que a lê deixando outras de lado Isto porque seu desígnio maior não é o de informar nem mesmo o de encontrar e comover como faz Camões mas o de interpretar a História sob o ponto de vista da intervenção DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 81 divina nela é isto o que mostra em cada uma das figuras focalizadas GARCEZ 1989 p 97 Demasiado grande é a sombra de Camões em Mensagem fazendoo interlocutor em cada retrato histórico representado nesse livro de poesias Contudo nessa intertextualidade Fernando Pessoa estatui o termo engano como uma criação coletiva onírica e delirante resultado de uma alucinação inicial correspondente a um profundo malestar dos portugueses que não encontram explicação racional para o permanente estado de falência e insucesso que tem conduzido o país desde o século XVII REAL 2013 p 6 Dessa forma responde Pessoa às muitas indagações que Camões faz a Deus sobre os enganos e os temores que surgiam ao longo da viagem histórica de Vasco da Gama sendo em Mensagem esse estado crítico projetado na ordem da providência e do messianismo isto é para a esfera do espiritual Louco sim louco porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá Não coube em mim minha certeza Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve não o que há Minha loucura outros que a tomem Com o que nela ia Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia Cadáver adiado que procria PESSOA 2007 p 61 O que é o homem sem a loucura Ou o que somos sem o mito Entre esses questionamentos retoma o poeta de Orpheu o cenário do areal de Alcácer imagem que possivelmente pode ter figurado a última visão do rei D Sebastião no momento de sua morte Esse rei era clamado pela população para reorganizar o império luso firmando a identidade e a colonização efetiva das terras estrangeiras sob domínio português Sua morte em território africano acentuou o caráter lendário da cultura de seu povo que passou a simbolizar a sua volta como o retorno do rei que cumprirá o desígnio divino e imperial registrado desde sua fundação De reinado surgido pela conquista cristã da Península Ibérica Portugal passaria a império a expandir a cristandade por todo o mundo O mito sebastianista correspondendo ou não à verdade histórica é a representação de um sentimento coletivo que funda esse DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 82 desejo ou seja o sebastianismo como define Eduardo Lourenço constitui o máximo de existência irrealista de Portugal mas também o máximo de coincidência com o nosso ser profundo já que representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional de uma carência e essa carência é real LOURENÇO 1989 p 2425 O império da conquista pode até ter falhado mas sem ele não poderia o império cultural buscar o apoio pois não teria idéia de império alguma em que se apoiasse GARCEZ 1989 p 99 Mensagem singularizase assim como um épico sem cantos e instrumentos ruidosos mas de secretas e miríficas irrealidades da alma O idealismo estreme ocultista ou platônico dalguns dos seus poemas líricos reduz o mundo visível a cópia grosseira do mundo invisível Aqui sobre a terra tudo é nocturno e confuso tudo são projecções sombras fumo dum lume escondido no outro mundo é que vivemos como almas A Mensagem reafirma a cada passo a mesma repugnância pelo carnal pelo que o sonho ou a loucura não redimem COELHO 1969 p 52 Uma espécie de confusão lírica em Mensagem constitui o fator ontológico da épica profética pessoana Sua veia lírica pode ser percebida claramente num poema sem titulo na sessão intitulada Os avisos que compõe a terceira parte O Encoberto Nesse poema apresentase o próprio poeta escrevendo suas poesias à beiramágoa Um coração não tem que ter Tenho meus olhos quentes de água Só tu Senhor me dás viver PESSOA 2007 p 109 O poeta questiona qual é o grande feito português e não responde com o achamento do caminho marítimo para as Índias com a descoberta do Ocidente ou a constituição do Império O grande feito português na visão Sebastiana e messiânica que preside Mensagem está na iminência de vir É a Hora aqueles primeiros acontecimentos foram apenas os sinais deste último que é o verdadeiro e que é o grande Concerto que o mundo espera Como é sabido e foi provado que Pessoa não aceita a Revelação Cristã tal como nola apresenta a Igreja há uma identidade do homem que nela é desvendada mas que o poeta de Orpheu repele para ele continua a subsistir uma indagação acerca das origens do homem da sua identidade portuguesa Se nos Lusíadas a grande preocupação com identificar e contar uma História que mantenha a identidade e demonstre um finalismo que abre para o mundo da Revelação cristã é patente em Mensagem Pessoa que não resolve assim este problema recoloca a indagação sobre as origens e propõe esta nova meta para a busca GARCEZ 1989 p 100101 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 83 Em Mensagem portanto revelase uma mescla de gêneros e épocas não festejando Portugal apenas no sentido de cantar feitos heróicos e conquistas nutrindo pelo país uma ternura mais triste Conforme Cleonice Berardinelli a criação de símbolo a partir de uma realidade ou a deformação dessa realidade a fim de tornála simbólica implica um subjetivismo bastante acentuado o que nos faz dizer que Mensagem é um poema épico lírico BERARDINELLI 2004 p 131 Nessa base lírica o mito não é tomado como uma invenção ou uma falha espécie de cegueira ou alienação como pensava sociologicamente António Sérgio mas sim a cura para o sintoma de decadência que há tempos persegue a nação Pois venha o que vier nunca será Maior do que a minha alma PESSOA 2007 p 58 Pelo contrário para Pessoa as potências do invisível fecundam a realidade tornam a vida digna de ser vivida ou melhor transformam a existência mero vegetar em vida COELHO 1969 p 53 Essas potências é que mantêm a Sperança consumada S Portugal em ser Ergue a luz da tua espada Para a estrada se ver PESSOA 2007 p 65 É nessa perspectiva que se inicia o poema Ulisses onde sem existir Ulisses funda Portugal um ato fundacional completamente atrelado ao imaginário Este que aqui aportou Fiz por não ser existindo Sem existir nos bastou Por ao ter vindo foi vindo E nos criou Assim a lenda se escorre A entrar na realidade E a fecundála decorre PESSOA 2007 p 47 É preciso compreender que o mito pessoano fecunda a história fertiliza o mensageiro e por fim proporciona vida Ainda segundo Cleonice Berardinelli o que constitui o cerne do poeta Fernando Pessoa é justamente essa febre de Além BERARDINELLI 2004 Tal imperiosa necessidade de sonhar de imaginar já se assinalou no poema dedicado a D Fernando através da presença do mistério e do oculto Pôsme as mãos sobre os ombros e dourou me A fronte com o olhar E esta febre de Além que me consome E este querer grandeza são seu nome Dentro em mim a vibrar PESSOA 2007 p 58 Uma espécie de inquietação imaginária seria uma das componentes dessa febre de Além febre que é atribuída ao infante D Fernando por reconhecer legislativamente o sonho de uma Índia rica de todo trato Em Mensagem é D Fernando quem praticamente inicia esse surto imaginário visto a importância que deu esse rei à atividade marítima ao criar e fortalecer as leis protetoras do comércio marítimo Isso revelanos o valor da DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 84 burguesia marítima e mostra em germe o que veio depois a revolução de 1383 e a mística empresa das navegações SÉRGIO 1978 p 26 Se em Os Lusíadas a saga de um povo é narrada por uma persona poética que se confunde com a imagem do próprio Camões Mensagem é um espaço dispersivo por excelência uma aquarela de vozes é às vezes o monólogo da figura heróica que intitula suas partes noutras é a voz de um eulírico distanciado e impessoal que se manifesta tanto na primeira pessoa do singular quanto na primeira do plural e em outros poemas é uma voz que se dirige para a figuratítulo do texto GAGLIARDI 2007 p 1718 É através de um trabalho de empatia e misticismo que Fernando Pessoa arriscará como um Colombo navegar até a alma dos heróis e mártires portugueses como no caso de D Fernando e dos outros cavaleiros responsáveis pela edificação do destino português Cavaleiros como D Dinis e D Sebastião se tornaram mártires em Portugal por sacrificarem suas vidas na tentativa de efetivar o mito imperial de sua nação obtendo o missionário sinal da cruz em seu escudo real Histórias exaltadas com tanta subjetividade só poderiam ser representadas através da primeira pessoa atingindo assim os poemas de as Quinas um eulírico em seu mais profundo martírio e frenético sonhar Tudo vale a pena Se a alma não é pequena Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor PESSOA 2007 p 88 Desbravar o mar desconhecido conviver com e descobrir seus próprios medos e limites em prol do fortalecimento e enriquecimento de si além do seu rei e reinado é o que Fernando Pessoa almeja para os portugueses do futuro comunicando ao seu leitor a sua meditação poética sobre a história e a cultura da nação lusa O que a Mensagem põe em cena numa série de 44 retratos históricos cada um dos quais um brevíssimo drama é a febre de se perder no que é grande maior que tudo o indizível e incomensurável E a ação de todos esses heróis já que são todos conquistadores guiada por seu sonho por sua fé e por sua esperança é imagem do sonho da fé e da esperança do poeta cujo gesto de escrever se situa num espaço para além de toda e qualquer ação possível BRECHON 1998 p 507 Se Vieira crê ardentemente na volta do messias lusitano que surgirá para restaurar a ordem e o império português que se encontrava então sob domínio de Castela Fernando Pessoa por sua vez parece se ater mais ao ato de acreditar na prática da fé mística de seu país como uma ação eficiente que proporcionará aos portugueses alguma chance de DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 85 reabilitação Para manter essa crença em suspenso insiste o poeta em explorar imagens de ambientes sombrios e noturnos imagens sem contornos definidos em meio à neblina num mar que tem tempo ou spaço Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna PESSOA 2007 p 89 Na Bíblia as névoas significavam a presença de Deus em algum lugar3 Em Mensagem ela produz imagens impressivas gera dúvida provoca crendices e suscita vestígios de identidade Tudo é incerto e derradeiro Tudo é disperso nada é inteiro Ó Portugal hoje és nevoeiro PESSOA 2007 p 118 O nevoeiro aqui consiste na suspensão do mito que encoberto de névoa não é desvendado Essa imagem favorece e alimenta a esperança dos portugueses pelo retorno do messias e principalmente pelo retorno de uma melhor condição de vida É da invisibilidade e da imprevisibilidade do tempo profético que se retira a energia para manter aquecido os mitos da alma portuguesa Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem PESSOA 2007 p 100 Reina a dúvida e a incapacidade de enxergar por entre as nuvens mas ainda persiste a busca pelo encoberto pela hora e pela era tão esperadas visto que em Mensagem é do mais espesso nevoeiro da indeterminação e da irresolução que virá a salvação ainda que tardia Cumpriuse o Mar e o Império se desfez Senhor falta cumprirse Portugal PESSOA 2007 p 77 É em meio ao nevoeiro que se espera cumprir o mito que é Portugal metáfora que pode ser interpretada pela necessidade que o país tem de alcançar um grau mais avançado de vida espiritual a ponto de esses mitos duradouros obterem uma presença que se faz contínua na vida da população São profundas experiências de autoconhecimento ou metaforicamente de autonavegação à luz de espiritualidades que tornam a vida mais harmônica e menos sofrida Não que o poeta esteja clamando por uma maior catequização do país pois versos como encontramos no ortônimo Em Deus Mas o que é Deus E existe Deus E isso que importa PESSOA 2010 p 34 revelam as possibilidades quanto à existência de uma linha reflexiva agnóstica em sua poética Pessoa preza é pela oração por um exercício espiritual que visa a uma consciência mais viva de Portugal tendo o próprio país como destino realidade e problema ontem e hoje Para compreendermos melhor esse pensamento proposto pela poética de Mensagem 3 Virei até ti na espessura da névoa diz Iavé a Moisés e é igualmente numa nuvem que ressoa sobre a montanha da transfiguração a voz que diz Este é o meu Filho bemamado BRECHON 1998 p 509 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 86 devemos apreender a sugestão de Filipe Barreto no que concerne ao entendimento dos tempos de ruína como campos férteis para o ressurgimento de mitos e utopias O aumento das sombras e nãosaídas do real produz o aumento e a força das luzes arejadas do ideal BARRETO 1978 p 276 Nessa esteira de ideias respondendo a uma entrevista feita pelo jornalista Augusto da Costa em 1934 Fernando Pessoa afirmava a sua confiança em que Portugal poderia voltar a ser uma grande potência construtiva ou criadora um Império não já no sentido evidentemente de um Império guerreiro territorial ou material mas no sentido de um Império do Espírito um Império da Cultura Para tanto seria necessário antes de mais nada levantar o moral da nação abatido pelo complexo de inferioridade em que caímos historicamente Ora disse Pessoa só há uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional E mais adiante significativamente Temos felizmente o mito sebastianista com raízes profundas no passado e na alma portuguesa Nosso trabalho é pois mais fácil não temos que criar um mito senão que renoválo QUADROS 1999 p 247 A névoa a bruma as ilhas são o cenário pessoano por onde se move o mito sebastianista renovado reconstituído de pressagos mistérios Em Mensagem o passado português transitou da história para o mito e só nesse será possível a recuperação só nesse haverá a hora prometida no último momento do último poema e possibilitada pelo único verso que quebra a negatividade total do texto a ela ligandose pela rima BERARDINELLI 2004 p 129 Observamos que em Mensagem o pensamento do poeta está quase inteiramente voltado para o oculto mas aplicado à história à memória coletiva ao mito nacional Não podemos exigir dos poetas a fundamentação e o rigor dos sociólogos mas é fato que a obra poética aqui comentada aponta caminhos valiosos para se pensar a respeito da história e da cultura portuguesas No entanto sua matériaprima o mito sebastianista bem como outros mitos constituintes da cultura lusitana tem sido pouco estudado e não raro desprezado pela elite cultural portuguesa permanecendo para esta válida a consigna de Agostinho de Macedo registada há cerca de duzentos anos de que o sebastianismo nos envergonha como povo civilizado da Europa No DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 87 entanto espantosamente o mito sebastianista independente do juízo positivo e negativo que sobre ele se faça constitui um dos pontos de referência culturais mais vinculativos de nossa identidade nacional merecendo ser estudado sem preconceitos esotéricos ou sociológicos Aliás como evidenciamos só se compreenderá verdadeiramente o mito sebastianista quando se cruzarem num quadro conceptual unitário e coerente os estudos sobre o imaginário simbólico e os estudos científicos de caráter sociológico não sobrevalorizando um em detrimento do outro QUADROS 1999 p 89 Nessa conjuntura vale destacar as palavras de Vitorino Magalhães Godinho 1918 2011 ao dizer que a história crescera ao serviço de reivindicações nacionais e na obsessão das prioridades no descobrir e ocupar GODINHO 2008 p 25 Em seu clássico A Expansão Quatrocentista Portuguesa obra censurada pela comissão organizadora das Comemorações Henriquinas em 1960 tornase muito evidente a sua ideia de que só uma sociologia histórica é capaz de nos elucidar o que representou de fato a épica para a coletividade lusitana Todavia se as relações de força da imaginação se perdem nos psicologismos e nos realismos contemporâneos se a racionalidade se desagrega totalmente com a emergência de uma civilização imediatista industrial e pósindustrial a épica na ótica pessoana aqui observada ajuda a não deixarmos de produzir sentido no mundo mesmo com base numa visão numa vivência ancorado nas instâncias profundas da consciência individual ou colectiva organizando e regulando a totalidade do ser colectivo num dado espaço e num dado momento da sua existência isto é no continuum espaçotempo BUESCU 1989 p 3940 A singularidade de Mensagem culmina exatamente nessa busca existencial traços de experiência mística e sabedoria oculta Para a cultura portuguesa essa ontologia tornou Pessoa mais do que um escritor ou mesmo um poeta antes um profeta como o Bandarra ou Vieira um poeta e viajante como Camões olhando em visão espectral a alma encoberta da sua pátria e tudo fazendo para levantála salvála fazêla reaparecer da espessa névoa que a envolve QUADROS 1999 p 251 Bibliografia BARRETO Luís Filipe Utopia e Heteropia In Brotéria vol 106 nº 3 1978 pp 275279 Descobrimentos e Renascimento formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI 2ª Ed Lisboa INCM 1983 BERARDINELLI Cleonice Fernando Pessoa outra vez te revejo Rio de Janeiro Lacerda Editor 2004 DESASSOSSEGO 15 JUN2016 ISSN 21753180 DOI httpdxdoiorg1011606issn21753180v8i15p7288 88 BRECHON Robert Fernando Pessoa Estranho estrangeiro Rio de Janeiro Record 1998 BUESCU Maria Leonor Carvalhão Derivas e invariantes da épica portuguesa do século XVI In VIEIRA António Braz de org Fidelino de Figueiredo Lisboa Biblioteca Nacional 1989 CAMÕES Luís Vaz de Os Lusíadas São Paulo Nova Cultural 2002 COELHO Jacinto do Prado Diversidade e unidade em Fernando Pessoa Lisboa Editorial Verbo 1969 Portugal imaginário e verdadeiro na poesia portuguesa In Camões e Pessoa poetas da utopia Lisboa Publicações EuropaAmérica 1983 pp 129134 ELIADE Mircea Mito e Realidade Tradução de Pola Civelli São Paulo Perspectiva 1972 FIGUEIREDO Fidelino de A épica portuguesa no século XVI Lisboa INCM 1950 FRANCO José Eduardo O Mito de Portugal a primeira História de Portugal e a sua função política Lisboa Roma Editora 2000 Profetismo e a ideia de nação modelação religiosa do destino de um povo In Religare João Pessoa vol 7 nº 2 2010 pp 150163 GAGLIARDI Caio A pátria de sonho portuguesa Prefácio In PESSOA Fernando Mensagem São Paulo HEDRA 2007 GARCEZ Maria Helena Nery Do Desconcerto e do Concerto do Mundo em Mensagem In Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de SáCarneiro coletâneas de artigos e ensaios São Paulo EdUSP 1989 pp 89107 GODINHO Vitorino Magalhães A Expansão Quatrocentista Portuguesa 2ª edição Lisboa Dom Quixote 2008 LOURENÇO Eduardo O Labirinto da Saudade Psicanálise Mítica do Destino Português 2ª edição São Paulo Publicações Dom Quixote 1989 Mitologia da saudade seguido de Portugal como destino dramaturgia cultural portuguesa São Paulo Companhia das Letras 1999 PESSOA Fernando Mensagem São Paulo Hedra 2007 Ascensão poema In CRUZ João Paulo Pessoa e Deus uma antologia de espiritualidade pessoana Lisboa Companhia da Palvra Serviços Editoriais 2010 PRIORI Mary del A história cultural entre monstros e maravilhas In SWAIN Tânia Navarro org História no plural Brasília Editora da UnB 1994 pp 6592 QUADROS António O primeiro modernismo português Lisboa EuropaAmérica 1999 REAL Miguel Nova Teoria do Sebastianismo Lisboa Publicações Dom Quixote 2013 SÉRGIO António Breve Interpretação da História de Portugal Lisboa Livraria Sá da Costa Editora 1978 SILVA Anazildo Vasconselos da RAMALHO Christina História da epopéia brasileira teoria crítica e percurso Rio de Janeiro Garamond 2007 VALVERDE José Filgueira Influencia de la literatura caballeresca em los conquistadores y em los cronistas de índias In Enseñanza Media nº 37 1959 pp 213226