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JOÃO MANUEL CARDOSO ROSAS\n\nUMA RECONSTRUÇÃO DA FILOSOFIA POLÍTICA DE KARL R. POPPER\n\nDissertação final de Mestrado em Filosofia Social e Política\n\nFACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO\n1990 «Reconstrução significa, no nosso contexto, proceder à desmontagem de uma teoria e à sua recomposição numa nova forma, com o único objectivo de melhor alcançar a meta que ela mesma se impusera; este é o modo normal de abordar uma teoria que em alguns pontos necessita de revisão, mas cuja capacidade estimulante está muito longe de esgotada.»\n\nJürgen Habermas, La reconstrucción del materialismo histórico, Madrid, Taurus, 1981, p.9. Agradecimentos\n\nA elaboração deste trabalho não teria sido possível sem a concessão de uma bolsa para Mestrado por parte do Instituto Nacional de Investigação Científica. A ele se dirige o nosso agradecimento institucional.\n\nO agradecimento pessoal vai, em primeiro lugar, para o nosso orientador científico, Prof. Doutor António Teixeira Fernandes, pelo seu total acompanhamento e disponibilidade constante. Estende-se ainda a todos os que, de alguma forma, nos ajudaram na prossecução de tarefas específicas. Passo a nomeá-los, esperando não cair em omissão...\n\nO Prof. Doutor Acílio Rocha, da Universidade do Minho, facultou-nos alguns artigos e, sobretudo, o tempo e o ambiente que o trabalho de investigação requer. O Doutor Norberto Cunha, igualmente da Universidade do Minho, forneceu-nos mais material bibliográfico do que aquele que seríamos capazes de encontrar por nós mesmos. O Dr. João Carlos Espada, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, também nos enviou vários textos, depois de uma proveitosa conversa. O Prof. Doutor Levi Malho, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ofereceu-nos o software e iniciou-nos no know how informático necessário e indispensável a este trabalho. O Dr. David Ruben, da London School of Economics and Political Science, teve a gentileza de se encarregar dos trâmites necessários ao nosso livre acesso às bibliotecas da Universidade de Londres. O Professor John Watkins, sucessor de Popper na mesma Escola, conversou connosco sobre os temas básicos da nossa investigação. Embora, não tenhamos seguido todas as amáveis sugestões do Professor Watkins, elas não deixam de marcar presença no nosso trabalho.\n\nCumpreme-nos também agradecer ao Professor Karl Popper - com quem chegámos à fala por casualidade - o ter incentivado o nosso trabalho e autorizado o acesso à sua «List of Publications» que, conforme nos indicou, obtivemos por intermédio do Dr. João Carlos Espada.\n\nPor último, queremos realçar que as sugestões e ajudas que recebemos nunca foram vinculativas. O texto desta dissertação é da nossa inteira responsabilidade. Siglas bibliográficas usadas nas notas\n\nOS: POPPER, KARL, The Open Society and Its Enemies, 50 ed. reim-pressa, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1974, 2 vols.\n\nPH: Idem, The Poverty of Historicism, Londres, Ark Paperbacks, 1986.\n\nCR: Idem, Conjectures and Refutations: the Growth of Scientific Knowledge, 50 ed., Londres, Routledge and Kegan Paul, 1974.\n\nUG: Idem, Unended Guest. An Intellectual Autobiography, Londres, Fontana/Collins, 1976.\n\nBMM: Idem, Em busca de um mundo melhor, 29 ed., Lx, Editorial Fragmentos, 1989.\n\nPKP: SCHILPP, PAUL A. (ed.), The Philosophy of Karl Popper, «The Library of Living Philosophers», La Salle (Illinois), Open Court, 1974, 2 vols. Plano da dissertação\n\nIntroduçã0: \nPopper e a Filosofia Política.\n\nCap. I\nValores - a dimensão axiológica do racionalismo crítico e as condições da sua possibilidade.\n\nCap. II\nCríticas - «identificação» e análise do pensamento totalitário e dos seus suportes teóricos.\n\nCap. III\nConjecturas - mudança social e ideias para uma política racional.\n\nIn conclusões:\nA Filosofia Política segundo Popper. INTRODUÇÃO: POPPER E A FILOSOFIA POLÍTICA\n\n«os meus trabalhos no campo da lógica científica, v.g. da física, são tentativas de solução de problemas que se prendem com as nossas enfermidades sociais e políticas» Karl Popper, Em busca de um mundo melhor, 22ª ed., Lx, Editorial Fragmentos, 1989, p.89. O objecto deste trabalho é o pensamento e a obra de Karl Popper. Não se tratará, no entanto, da recensear os temas que ele aborda ou de, por qualquer estratégia hermenêutica e expositiva, dela proporcionar uma visão de conjunto. O nosso tema é a Filosofia Política de Popper, na sua especificidade e apenas em algumas das articulações fundamentais que a estruturam. Veremos adiante os aspectos que a nossa análise privilegiará. Mas como a produção filosófica de Popper não é - do ponto de vista quantitativo - sobreudo política, impõe-se, antes da abordagem do tema, explicitar como ele surge e se configura numa vida intelectual longa e diversificada.\n\nKarl Raimund Popper nasceu em Viena de Austria, em 1902. A geopolitica da Europa de então conferia a Viena um estatuto particular, como capital do Império Austro-Húngaro. Apesar da acelerada dissolução do Império - sob a pressão das nacionalidades - e da constante instabilidade política coetânea, a cidade dava mostras de uma pujanga intelectual e artística que marcaria o século XX.\n\nO choque de povos, culturas e ideias, que Popper consideraria mais tarde - pensando na Grécia Antiga - imprescindível para o surgimento de uma atitude crítica, propiciava inovação em ciências, filosofia, música, literatura, pintura e arquitectura.\n\nMas outras clivagens, de carácter social e económico, obrigavam grande parte da população de Viena a uma existência miserável. Ela impressionou Popper vivamente, quando era ainda criança.\n\nPertencendo a uma família da burguesia culta e liberal, Popper depressa se integrou num meio de grande curiosidade pelo saber, em que as questões filosóficas e políticas eram tema constante de debate. O pai, advogado de profissão e filantropo, alimentava interesses eruditos e possuía uma biblioteca principalmente orientada para a história e para a filosofia. Da mãe, herdou Popper o interesse pela música clássica, que terá contribuído para as suas reflexões filosóficas.\n\nEntre os amigos de Popper, consideravelmente mais velhos, desempenhava papel predominante Arthur Arndt, um socialista antibolchevique que o levava a excursões intelectuais promovidas pelos monistas de Viena. Muitos destes amigos defendiam ideias pacifistas. Mas com a realidade da guerra, a pressão da opinião pública e a intimidação, as opiniões mudam. No entanto, Popper varia e convence-se, ainda durante o conflito, da responsabilidade da Áustria e da Alemanha, e da justeza da sua derrota.\n\nAs consequências da Primeira Guerra, com a crise económica, social e política, e o clima de guerra civil, continuam a marcar o quotidiano quando o jovem Popper deixa o liceu - por considerar o ensino aborrecido - e se matricula na universidade de Viena.\n\nSimpatizando inicialmente com o Partido Social-Democrata (marxista), converte-se à propaganda do pequeno Partido Comunista na Primavera de 1919.\n\nSe, até agora, nos interessou simplesmente a formação da sensibilidade social e política de Popper, dá-se neste mesmo ano. de 1919 um incidente biográfico marcante. Referido pelo próprio na sua \"Autobiografia Intelectual\" e em muitas outras ocasiões\", ele assume o carácter de um símbolo. Como é sabido, um relato autobiográfico é sempre, em parte, uma invenção do passado, determinada por pontos de vista subsequentes. Por isso, para além do valor histórico-objectivo das impressões registadas por Popper, ocupa-nos o significado que elas revestem, por referência à sua obra. Du seja, enquanto acontecimentos já incorporados no pensamento.\n\nAlguns comunistas tinham sido presos na esquadra da polícia de Viena. Popper e os seus companheiros instigam jovens socialistas a manifestar o seu protesto, numa manobra de diversão para ajudar os presos a fugir. Mas a polícia abre fogo e faz vários mortos. Popper fica horrorizado e sente-se responsável.\n\nCompreende que, para os marxistas, era necessário acelerar a luta de classes. As vítimas que daí adviriam seriam sempre um menor número do que as vítimas do capitalismo. Além disso, o seu sacrifício não seria vão: daria origem à revolução proletária e a uma forma mais justa de sociedade. Mas estas tess, apresentadas como certezas, estavam longe de inteiramente estabelecidas. A sua aceitação acrítica justificava, entretanto, a violência e o sacrifício de vidas humanas.\n\nPopper apercebe-se assim do carácter dogmático do marxismo e de um mecanismo psicológico que obriga a cedências de carácter moral e intelectual. A solidariedade para com a causa é que a defendem cerceia subrepticiamente o espírito crítico e a autonomia da consciência. Se não for energicamente interrompido, o