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TCFC3 Filosofia da Ciência do Mente e do Encéfalo FLF0445 USP Prof Osvaldo Pessoa Jr Cap III 17 CONSCIÊNCIA EM MÁQUINAS E FUNCIONALISMO Uma máquina pode ser consciente Tudo na mente seria resultado da organização do sistema nervoso 1 O teste de Turing robótico Considere uma situação como a do filme Metrópolis de Fritz Lang 1927 em que um robô metálico é construído pelo cientista malvado e transformado na ginoide androide feminina ou fembot Maria interpretada pela atriz Brigitte Helm indistinguível de um ser humano Vamos supor que em seu interior Maria é feita de válvulas ou chips de circuito integrado fios e motores metálicos mas julgando por seu comportamento suas expressões faciais e sua fala todos a consideram um ser humano normal Nesse sentido pode se dizer que ela passou no teste de Turing robótico Fig III1 A ginoide Maria Alan Turing foi um genial matemático e computeiro que em 1950 escreveu um artigo discutindo se máquinas poderiam pensar Ao invés de tentar dar uma definição lexicográfica de pensamento propôs um jogo ou teste para estabelecer se uma máquina pensa Simplificando um pouco o jogo da imitação envolveria um ser humano que faria perguntas ou dialogaria com a máquina ou com um humano escondido atrás de uma parede e teria que fazer a identificação correta de se ali havia um ser humano ou uma máquina25 Acredito que dentro de cerca de cinquenta anos no ano 2000 será possível programar computadores com uma capacidade de memória de cerca de 109 dígitos binários em torno de 10 MB para fazêlos jogar o jogo da imitação tão bem que um interrogador médio não terá mais de 70 de probabilidade de chegar à identificação correta após 5 minutos de interrogatório TURING 1973 p 61 1950 p 442 Ou seja se uma máquina conseguir enganar um ser humano de maneira que este julgue que está dialogando com outro ser humano então a máquina deve ser considerada pensante ou inteligente Turing não está se referindo diretamente à consciência mas na discussão das possíveis críticas à sua abordagem considera o que chama o argumento da consciência que surgiu em seu debate com o neurocirurgião Geoffrey Jefferson Este argumento parece ser uma negação da validade de nosso teste De acordo com a forma mais extremada de tal concepção a única maneira de alguém estar seguro de que a máquina pensa é ser ele a própria máquina e sentirse pensando Poderia então descrever estes sentimentos feelings ao mundo mas naturalmente não se justificaria que alguém 25 TURING AM 1950 Computing machinery and intelligence Mind 59 pp 43360 Em português Computadores e inteligência trad M Epstein in EPSTEIN I org 1973 Cibernética e comunicação Cultrix São Paulo pp 4582 A expressão teste de Turing robótico encontrase em HARNAD S SCHERZER P 2008 First scale up to the robotic Turing test then worry about feeling Journal Artificial Intelligence in Medicine 44 pp 8389 Sobre a previsão de 2029 KURZWEIL 2005 op cit nota 5 p 295 Sobre o contexto em torno deste artigo de Turing ver a tese de GONÇALVES Bernardo 2021 As máquinas vão pensar estrutura e interpretação do jogo da imitação de Alan Turing tese de doutorado defendido no Depto de Filosofia FFLCH USP texto em inglês Sobre as duas maneiras de definir pensar ver seção III7 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 18 lhe desse atenção De modo semelhante de acordo com a mesma concepção a única maneira de saberse se um homem pensa é ser esse homem Tratase de fato do ponto de vista solipsista TURING 1973 p 65 1950 p 446 Turing conclui então que o proponente do argumento da consciência não iria querer assumir uma posição solipsista ou seja uma posição que assume que só existiria a sua própria mente Finalizando a discussão deste argumento Não quero dar a impressão de que penso que não exista nenhum mistério no que respeita à consciência Existe por exemplo algo assim como que um paradoxo vinculado às tentativas de localizála Mas não acredito que tais mistérios tenham de ser necessariamente resolvidos antes de podermos responder à pergunta que nos preocupa neste artigo TURING 1973 p 67 1950 p 447 O futurólogo Ray Kurzweil previu que o teste de Turing seria plenamente superado em torno de 2029 No entanto as condições específicas colocadas na primeira citação de Turing começaram a ser superadas com o sistema de inteligência artificial GPT4 generative pre trained transformer em 2023 Tal programa efetua bem tarefas linguísticas e identifica imagens mas se sai mal em testes lógicos e de outros tipos26 Voltemos agora para o teste de Turing robótico envolvendo a ginoide Maria A pergunta a ser considerada é a seguinte a ginoide é consciente Por hipótese ela se comporta como uma humana fala como uma humana é maquiavélica como nós tem a pele igual à de um humano e tem cheiro de humano como Ava do filme Ex machina 2015 Mas Ava tem um cérebro feito de matéria especial ao passo que a ginoide que estamos discutindo é feita de circuitos integrados Maria teria consciência 2 Comportamentalismo filosófico A concepção de que a natureza de uma coisa se esgota com sua aparência ou com seu comportamento externo incluindo a fala acoplada a informações sobre a sua história e traços genéticos pode ser chamada de comportamentalismo ou behaviorismo Como é bem sabido este termo está associado a uma corrente específica da Psicologia que na verdade se divide em diversas subcorrentes ODONAHUE KITCHENER 1999 descrevem pelo menos catorze versões do comportamentalismo dez psicológicas e quatro filosóficas Não exploraremos este tema aqui e agora mas definiremos sucintamente o comportamentalismo filosófico como a visão que afirma que um estado mental só pode ser atribuído a um sistema baseado em seu comportamento observável Isso é resumido na frase de Wittgenstein Um processo interno necessita de critérios externos Investigações filosóficas 580 Esta concepção é também expressa na seguinte citação do psicólogo John Staddon referindose à corrente que propõe chamada behaviorismo teórico27 26 BIEVER C 2023 The easy intelligence tests that AI chatbots fail Nature 619 68689 27 STADDON JER 1999 Theoretical behaviorism in ODONAHUE W KITCHENER R orgs Handbook of behaviorism Academic San Diego pp 21741 Em português ver ABIB JAD 2015 Psicologia comportamentalismo e subjetividade in CHITOLINA CL PEREIRA JA PINTO RH orgs Mente cérebro e consciência um confronto entre filosofia e ciência Paco Jundiaí pp 27996 A definição sucinta de comportamentalismo filosófico é baseada em OPPY G DOWE D 2016 The Turing test Stanford Encyclopedia of Philosophy online WITTGENSTEIN L 1979 Investigações filosóficas Coleção Os Pensadores 2a ed trad JC Bruni Abril Cultural São Paulo orig em inglês 1953 Mencionado na citação SEARLE J 1992 The rediscovery of the mind MIT Press Cambridge MA em português A redescoberta da mente trad EP Ferreira Martins Fontes São Paulo 1997 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 19 O behaviorismo teórico adota a visão do teste de Turing da consciência Porém esta visão não é aceita por todos John Searle 1992 se o compreendi corretamente argumenta que se um dispositivo fosse encontrado que conseguisse passar no teste de Turing mesmo assim ele não seria consciente Tenho três reações a isso Primeiro a suposição de que tal dispositivo pode ser criado somente a partir de hardware pode ser falsa e neste caso nada mais precisa ser dito Em segundo lugar está uma pergunta óbvia supondo que ele possa ser criado como você sabe que ele não é consciente A única resposta a esta pergunta é porque ele não passa no teste de Turing o que contraria a primeira suposição Em outras palavras se a única maneira de saber que alguém ou alguma coisa é consciente é porque ela responde às nossas perguntas de maneira apropriada então por definição uma máquina que consegue passar no teste de Turing deve ser consciente Minha terceira reação é simplesmente esperar para ver Se uma máquina for criada que passe no teste de Turing as pessoas logo irão tratála como alguém de seu tipo Se estivermos dispostos a atribuir consciência para um cachorro ou para alguém cuja habilidade para comunicar esteja tão prejudicada como para Helen Keller será que deixaremos de atribuíla para um dispositivo que fale e responda de maneira indistinguível de um ser humano STADDON 1999 p 230 3 Mentalismo A posição que nega que a ginoide tenha consciência na falta de um nome melhor pode ser chamada de mentalismo em oposição ao comportamentalismo filosófico O mentalismo então seria a tese de que há uma perspectiva ontológica de natureza qualitativa ou subjetiva que caracteriza a consciência e que vai além do comportamento externamente verificável em pessoas e animais Esta tese está encapsulada na citação de Hamilton da seção I1 Um debate opondo mentalistas e comportamentalistas se deu na década de 1980 com relação à consciência animal O estudioso do comportamento animal e psicólogo gestaltista Wolfgang Köhler havia colhido na ilha de Tenerife durante a Primeira Guerra Mundial indícios de comportamento inteligente em chimpanzés que conseguiam empilhar caixas para subir e pegar bananas presas no alto da jaula Ele concluiu que isso teria sido feito não por mera tentativa e erro mas por insight Einsicht sugerindo que os chimpanzés possuem consciência como nós a menos da linguagem e outras funções cognitivas superiores Em 1945 Herbert G Birch mostrou que experiência prévia com os instrumentos era necessária para a ocorrência deste comportamento inteligente Em 1984 Epstein et al seguiram esta linha e também criticaram a conclusão de Köhler mostrando que é possível condicionar pombos com um repertório de comportamentos de maneira que eles possam reproduzir o comportamento sofisticado observado em chimpanzés Para eles isso sugeria que seria leviano atribuir uma mente aos macacos pois o seu comportamento poderia ser completamente explicado pelo seu repertório de condicionamentos conforme sugerido por Birch Este resultado é muito interessante mas não afeta a tese de que há um estado mental que sirva de causa intermediária na cadeia causal ligando condicionamentos e comportamento28 Na seção VI2 discutiremos a questão de se animais não humanos têm consciência 28 EPSTEIN R KIRSHNIT CE LANZA RP RUBIN LC 1984 Insight in the pigeon antecedents and determinants of an intelligent performance Nature 308 6162 Ver também o curto filme lançado por BAXLEY N 1982 Cognition creativity and behavior the columban simulations disponível em httpswwwyoutubecomwatchvQKSvu3mj14 parte 1 e verhmslcHvaw parte 2 com os comentários de Skinner sobre Köhler Sobre o trabalho deste KÖHLER W 1917 Intelligenzprüfungen an Anthropoiden KöniglichPreußische Akademie der Wissenschaften Berlin tradução para o inglês The mentality of apes trad Ella Winter Kegan Paul Trench Trubner London 1925 Para uma resenha do assunto ver SHETTLEWORTH Sara J 2012 Do animals have insight and what is insight anyway Canadian Journal of Experimental Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 20 4 Funcionalismo de estados mentais Na Filosofia da Mente o funcionalismo de estados mentais é a posição que defende que os estados mentais podem ser caracterizados de maneira completa por suas funções e não por sua natureza material29 Assim os estados mentais seriam definidos pelas relações causais existentes entre eles além de pelas entradas sensoriais e pelas saídas comportamentais Não importaria qual é o substrato da mente matéria orgânica matéria inorgânica espírito o que importa seria a organização do sistema ou o estado informacional30 Estados mentais seriam análogos a estados lógicos software de um computador e assim poderiam ser instanciados em diferentes bases físicas humanos máquinas marcianos que seriam análogas aos diferentes computadores hardwares nos quais um mesmo programa computacional pode rodar Uma questão adicional seria discutir em que sentido um software entendido como um objeto matemático existe de maneira independente da matéria e por analogia em que sentido a mente existe de maneira independente da matéria O funcionalismo de estados mentais foi articulado na Filosofia da Mente na década de 1960 por autores como Hilary Putnam e Jerry Fodor31 A intuição por trás do funcionalismo é que o que determina o tipo psicológico ao qual um particular mental pertence é o papel causal do particular na vida mental do organismo Individuação funcional é diferenciação com respeito ao papel causal Uma dor de cabeça por exemplo é identificada com o tipo de estado mental que entre outras coisas causa uma disposição para tomar aspirina em pessoas que acreditam que a aspirina alivia uma dor de cabeça causa um desejo de se livrar da dor que se está sentindo frequentemente causa alguém que fala português a dizer coisas como Estou com dor de cabeça e surge a partir de excesso de trabalho fadiga ocular e tensão Esta lista presumivelmente não está completa Mais será conhecido sobre a natureza de uma dor de cabeça à medida que pesquisas em Psicologia e Fisiologia descobrirem mais sobre o seu papel causal FODOR 1981 p 128 Diversas faculdades mentais são definidas de maneira funcional como por exemplo capacidade de cálculo Um indivíduo com síndrome de savant tem uma capacidade de cálculo assombrosa mas um bom computador tem uma capacidade ainda maior Neste exemplo a faculdade mental é definida pela eficiência de realizar um cálculo matemático não importando como e nem qual o substrato material A tese funcionalista forte é que todos os estados mentais são definíveis em termos funcionais inclusive aqueles da consciência fenomênica envolvendo qualidades subjetivas A tese de que máquinas mecânicas ou computadores de circuitos integrados de silício podem ter consciência é o chamado funcionalismo de máquina ou inteligência artificial forte vimos Psychology 66 21726 Notar que a oração ao final da qual aparece o número da nota coloca a mente como causa intermediária o que é um ponto de a ser debatido quando explorarmos o epifenomenismo 29 O termo funcionalismo em Psicologia era usado no começo do séc XX para designar a psicologia que examina funções mentais com respeito ao seu uso para o organismo BORING 1942 op cit nota 19 p 299 30 Um exemplo já antiquado de definição funcional é a de carburador Um carburador é definido como qualquer coisa que misture combustível e ar em um motor usando a sucção para introduzir o combustível Em princípio podese construir um carburador com qualquer material desde que ele cumpra a função que o define 31 Em nosso curso estudamos a tradução de FODOR JA 1981 The mindbody problem Scientific American 2441 12432 148 janeiro Ver também PUTNAM HW 2005 Psychological predicates in HEIL J org Philosophy of mind a guide and anthology Oxford U Press pp 15867 original in CAPITAN WH MERRILL DD orgs 1967 Art mind and religion U Pittsburgh Press pp 3748 reimpresso também com o título The nature of mental states Uma discussão aprofundada do funcionalismo encontrase em BLOCK N org 1980 Readings in the philosophy of psychology vol 1 Harvard University Press Cambridge pp 171306 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 21 porém que o debate se complica pelo fato de diferentes definições de consciência serem usadas Uma maneira de exprimir esta posição é dizer que computadores não apenas podem simular a mente humana32 mas poderão emular a consciência ou seja fazêla emergir a partir de uma computação altamente complicada Certamente um computador só pode simular um furação não emulálo pois o seu interior não fica molhado será que um computador poderia ir além da simulação de um cérebro emulando a consciência subjetiva O funcionalismo de máquina defende que sim Figura III2 Modelo causal simplificado que define dor segundo explicação didática de FODOR 1981 p 128 Segundo o funcionalismo um estado mental é definido por sua estrutura causal e não por sua materialidade Notar que os nodos causais incluem outros estados mentais além de ações output e paixões causas corporais input A definição das partes de um ser vivo em termos funcionais remonta a Aristóteles para quem um olho que não vê não seria um olho assim como um corpo sem alma não seria um corpo ver o Apêndice 1 seção A13 No final do séc XIX uma posição semelhante ao funcionalismo descrito acima se desenvolveu entre psicólogos e neurofisiologistas não a partir da definição funcional de estados mentais como representado na Fig III2 mas a partir da estrutura causal de partes do encéfalo Essa tese da homogeneidade seção III6 defende que a consciência emerge a partir da organização causal de partes do encéfalo não importando qual é a materialidade dessas partes que podem ser gânglios biológicos ou componentes de silício Neste caso podese até caracterizar um estado mental por propriedades internas qualitativas ao contrário do funcionalismo de estados mentais mas tais propriedades qualitativas emergiriam a partir da organização dinâmica das partes do encéfalo e não de sua materialidade A conexão do funcionalismo de estados com a tese da homogeneidade envolve a conexão entre um programa computacional abstrato o software e a sua implementação física em um computador específico o hardware No caso de um programa computacional os estados lógicos só são definidos a partir das relações com os outros estados analogamente ao exemplo da Fig III2 Por outro lado para rodar um programa em um hardware computacional as partes do equipamento físico seguem o percurso causal expresso pela linguagem de máquina e tal percurso é justamente a organização causal do sistema material subjacente Implícito no funcionalismo de estados mentais está a tese de que um programa computacional de alto nível se reduz à linguagem de máquina assembly language não importando a natureza material do computador Por analogia a estrutura causal dos estados mentais se reduziria à organização causal das partes materiais de um encéfalo quer a nível dos gânglios quer a nível celular Dessa maneira o funcionalismo de máquina implica a tese da homogeneidade e sua tese da realizabilidade múltipla da mente ou seja que o mesmo estado de consciência pode ser instanciado em diferentes substratos materiais 32 Uma tentativa arrojada nesta direção foi feita com o Blue Brain Project Projeto Cérebro Azul de Lausanne liderado pelo controvertido neurocientista Henry Markram que busca reconstruir computacionalmente todos as células e suas conexões do encéfalo de um camundongo Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 22 Fazendo referência à Fig II3 e ao conceito de superveniência seção II5 a tese da homogeneidade defende que a mente incluindo não só a estrutura mas também as qualidades do campo fenomênico supervém à estrutura do encéfalo não importando sua materialidade Notamos que a tese da homogeneidade não implica o funcionalismo de estados mentais mas o contrário sim 5 Continuidade entre behaviorismo e funcionalismo O behaviorismo filosófico avalia os estados mentais a partir do comportamento manifesto de um ser vivo Gilbert Ryle em seu behaviorismo lógico admitiu que diferentes estados mentais podem corresponder a um mesmo comportamento manifesto 33 i posso estar sem sede e realizar uma certa tarefa mas ii posso estar com sede mas sem deixar que isso altere meu comportamento Para diferenciar estes casos em que é intuitivo que há uma alteração no estado mental Ryle considerou que eles correspondem a diferentes disposições mentais A disposição de ter sede pode ser caracterizada pela tendência a exibir certos comportamentos como buscar um copo dágua ou exclamar tenho sede Tal abordagem caracteriza estados subjetivos em termos dos comportamentos potenciais associados Porém ela tem dificuldade de considerar situações em que um estado mental causa um outro estado mental e eventualmente outros sem gerar um comportamento manifesto Já o funcionalismo de estados mentais aceita que diferentes estados mentais podem se suceder sem que haja alteração no comportamento manifesto O que importa na caracterização de um estado mental é a rede causal na qual ela se encontra como aparece na Fig III2 Vimos que o funcionalismo de estados mentais implica a tese da homogeneidade ou seja a tese de que a consciência emerge a partir da organização das partes do sistema não importando a natureza material dessas partes Com o desenvolvimento de técnicas cada vez mais sensíveis de medição de propriedades do encéfalo como as técnicas de neuroimagem é possível observar alterações cerebrais mesmo que o sujeito não apresente variação em seu comportamento manifesto Um behaviorista pode considerar que tais variações observáveis sejam também comportamentos só que comportamentos ocultos Neste caso o behaviorismo se aproxima cada vez mais do funcionalismo da tese da homogeneidade desde que este considere partes que sejam em princípio observáveis Tal situação foi expressa por Charlie D Broad 192534 O Materialismo Redutivo ou Behaviorismo sustenta que a característica de ser uma mente ou ser um processo mental se reduz ao fato de que uma certa espécie de corpo está fazendo certos movimentos manifestos overt movements ou está sofrendo certas mudanças físicas internas p 612 Quando o Behaviorista diz que todos os processos mentais reduzemse sem resíduos ao fato de que o corpo está se comportando de uma certa maneira específica ele não pretende limitarse a ações manifestas grosseiras como gritos ou chutes Ele sempre inclui também pelo menos movimentos corporais como alterações da pressão arterial movimentos incipientes na língua e garganta convergência e acomodação dos olhos e assim por diante Juntarei todas essas mudanças sob o nome de comportamento molar por contraste ao comportamento molecular 33 RYLE G 1949 The concept of mind Hutchinson London em português Introdução à psicologia O conceito de espírito trad M Luisa Nunes Moraes Editores Lisboa 1970 Ver discussão em FODOR 1981 op cit nota 31 p 125 34 BROAD CD 1925 Mind and its place in nature London Kegan Paul Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 23 Mas é muito difícil fazer com que o Behaviorista pare neste momento Quando o comportamento manifesto complementado por alterações da pressão arterial movimentos incipientes na garganta etc parece inadequado para fazer a análise behaviorista de algum processo mental parecer plausível o Behaviorista tende a apelar para movimentos moleculares hipotéticos no encéfalo e no sistema nervoso p 616 No final temos a concepção funcionalista da tese da homogeneidade não importa qual é a materialidade das partes o que importa são os movimentos dessas partes observáveis através de instrumentos científicos Tratase de uma concepção mecanicista no sentido de que a natureza é concebida apenas como figuras em movimento 6 A tese da homogeneidade Apesar de o funcionalismo de estados mentais surgir apenas na década de 1960 por analogia com a teoria da computação que estava sendo elaborada a partir do desenvolvimento de computadores eletrônicos o funcionalismo associado à tese da homogeneidade35 começou a se fortalecer bem antes quando Carlo Matteucci e Emil Du BoisReymond mostraram na década de 1840 que todos os nervos conduzem eletricidade do mesmo tipo Em 1902 o psicólogo experimental Wilhelm Wundt36 defendeu detalhadamente uma posição funcionalista associada à tese da homogeneidade emergentista e não localizacionista em que o conteúdo psíquico mais simples como a sensação subjetiva da vermelhidão teria como substrato fisiológico apenas uma complexa conexão de elementos nervosos e não uma energia específica qualidade como defendera Johannes Müller que veremos na seção IV2 Em 1912 Edgar Adrian identificou os disparos spikes elétricos nos nervos e isso consolidou a derrubada da tese de que os nervos teriam diferenças qualitativas Em seu livro A base física da percepção 1947 discutiu a tese funcionalista ao longo de três páginas37 A primeira consideração é que se todos os impulsos dos nervos forem semelhantes e todas as mensagens forem compostas a partir deles então é pelo menos provável que todas as diferentes qualidades de sensações que vivenciamos devam ser evocadas por um tipo simples de mudança material Impulsos que viajam para o encéfalo nas fibras do nervo auditivo nos fazem ouvir sons e impulsos da mesma espécie no nervo óptico arranjados basicamente do mesmo modo nos fazem ver vistas O resultado mental deve diferir porque uma parte diferente do encéfalo recebe a mensagem e não porque a mensagem tem uma forma diferente A principal conclusão porém é que as fibras nervosas levam adiante seu trabalho de acordo com um plano simples e uniforme e isso sugere que deve ser possível definir a atividade do encéfalo de momento a momento como um arranjo espacial e nada mais Ela 35 O termo homogeneidade aparece na tradução para o inglês homogeneity de palestra dada por Ewald Hering em 1898 sendo o termo original em alemão Gleichartigkeit HERING 1913 op cit nota 22 p 58 Ver citação deste trecho em nossa seção IV4 36 WUNDT WM 1910 Principles of physiological psychology vol 1 Sonnenschein London pp 32031 trata se da tradução de EB Titchener da 5a ed alemã Grundzüge der physiologischen Psychologie de 1902 A frase descrevendo a posição de Wundt foi adaptada da p 59 de BRIDGES JW 1912 Doctrine of specific nerve energies Journal of Philosophy Psychology and Scientific Methods 9 5765 Mais detalhes encontramse em PESSOA Jr O 2023 Três abordagens ao problema mentecorpo entre neurofisiologistas de meados do séc XX in Martins LAP et al orgs Reflexiones filosóficas e históricas ciencia enseñanza de la ciencia y política científica AFHIC U del Valle Cali pp 305319 37 ADRIAN ED 1947 The physical background of perception Clarendon Oxford SPERRY 1952 op cit nota 22 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap III Consciência em Máquinas e Funcionalismo 24 deve ser um padrão de excitações altamente complexo e flutuando rapidamente mas construída a partir dos mesmos elementos em todas as suas partes sendo que tais elementos são a atividade das células nervosas induzida pelo escoamento de impulsos ao longo das fibras nervosas Até onde podemos discernir provavelmente não há uma parte do encéfalo ou algum estágio de elaboração dos padrões nos quais eles dependam de alguma espécie diferente de mudança material ADRIAN 1947 pp 1416 Outros neurofisiologistas que defenderam esta posição foram Wilfrid le Gros Clark 1947 e Roger Sperry 1952 que resume da seguinte maneira a tese da homogeneidade Em suma a presente teoria do encéfalo nos encoraja a tentar correlacionar nossa experiência psíquica subjetiva com a atividade de unidades de células nervosas relativamente homogêneas conduzindo impulsos essencialmente homogêneos através de tecido cerebral grosso modo homogêneo Para corresponder às múltiplas dimensões da experiência mental só podemos apontar para uma variação ilimitada na padronização espaçotemporal dos impulsos nervosos Acreditase assim que a diferença entre um estado mental e outro depende da variância nos tempos e distribuição das excitações nervosas e não das diferenças qualitativas entre os impulsos individuais SPERRY 1952 p 293 O funcionalismo da tese da homogeneidade é claramente a posição dominante entre neurocientistas hoje em dia como veremos adiante ao discutir as principais teorias da consciência da atualidade Por exemplo no excelente livro de divulgação de Christof KOCH 2012 p 238 Assim era natural para mim perguntar durante minha dor de dente se um computador poderia vivenciar dor Mas porque não atribuir senciência a um laptop Seria porque o laptop opera sob princípios físicos diferentes Ao invés de íons de sódio potássio cálcio e cloreto carregados positiva e negativamente espirrando para dentro e para fora das células nervosas os elétrons escoam pelas portas dos transístores fazendoos comutar Seria esta a diferença crítica Acho que não pois pareceme que ulteriormente devem ser as relações funcionais entre as diferentes partes do encéfalo que importam E estas podem ser imitadas pelo menos em princípio em um computador 38 KOCH C 2012 Consciousness confessions of a romantic reductionist MIT Press Cambridge MA