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TCFC3 Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo FLF0445 USP Prof Osvaldo Pessoa Jr Cap I 1 MATERIALISMO VS ESPIRITUALISMO O que é consciência Uma cópia material humana perfeita tem consciência idêntica 1 Definição inicial de consciência O que é a consciência Em que momento surgiu na evolução biológica Como é possível a subjetividade em um mundo físico Antes de prosseguir é bom tentarmos definir o conceito geral de consciência mesmo que de maneira preliminar seguindo alguns dicionários de filosofia1 Consciência é a intuição mais ou menos clara que o sujeito tem dos seus estados e dos seus atos LALANDE p 195 Possibilidade que cada um tem de dar atenção aos seus próprios modos de ser e às suas próprias ações de estar ciente2 dos próprios estados percepções ideias sentimentos volições etc ABBAGNANO p 217 A mente consciente em oposição à mente inconsciente ou subconsciente RUNES p 64 Consideremos porém uma citação clássica do filósofo escocês William Hamilton3 A consciência não pode ser definida nós mesmos podemos estar totalmente cientes do que seja a consciência mas não conseguimos sem confusão transmitir para os outros uma definição do que nós mesmos apreendemos com clareza A razão é simples a consciência está na raiz de todo conhecimento Cientistas e engenheiros muitas vezes exigem que definamos claramente o conceito de consciência por meio de palavras antes de aceitarem prosseguir na discussão Mas as palavras foram desenvolvidas para a comunicação intersubjetiva e o fenômeno que queremos tratar é subjetivo privativo a cada indivíduo O sentido desse conceito consciência fenomênica é melhor fixado por ostensão ie apontando é isso que estamos vivenciando 1 LALANDE A 1999 Vocabulário técnico e crítico da filosofia 3a ed trad FS Correia MEV Aguiar JE Torres MG Souza Martins Fontes São Paulo ABBAGNANO N2007 Dicionário de filosofia 5a ed revista e ampliada trad A Bosi IC Benedetti Martins Fontes São Paulo RUNES DD 1942 The dictionary of philosophy 4a ed Philosophical Library New York 2 O ato de estar ciente de é o ato de ciência mas este termo é evitado em português pois designa também a atividade científica Podemos denotar esta por CIÊNCIA1 e o ato de estar ciente por CIÊNCIA2 O termo em inglês para ciência2 é awareness e em italiano consapevolezza Alzira Allegro traduz por consciência A em HILL CS 2010 Consciência Ed Unesp São Paulo A filósofa portuguesa Sofia Miguens traduz awareness por apercebimento ver sua tese online Uma teoria fisicalista do conteúdo e da consciência U Porto 2001 Por outro lado o português tem o verbo vivenciar que traduz bem o inglês to experience Essas e muitas outras informações sobre os termos usados em Filosofia da Mente estão apresentados nos Arquivos lexicográficos desta disciplina 3 HAMILTON W 1877 Lectures on metaphysics and logic 6a ed vol I Blackwood Edinburgh p 191 disponível online O curso de metafísica vol I foi redigido originalmente em 183637 na Universidade de Edimburgo Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 2 agora ou melhor é tudo isso que vivenciamos Thomas Nagel coloca que a consciência é como que é ser um X what it is like to be an X uma definição claramente ostensiva4 A partir desta definição ostensiva geral mais para frente na seção VI2 buscaremos distinguir entre diferentes tipos de consciência Para explorar o conceito de consciência consideremos um primeiro experimento mental 2 Experimento mental da duplicação material humana Suponhamos o seguinte experimento mental típico de ficção científica que envolve a criação de uma cópia material exata de uma pessoa5 A pessoa a ser copiada será chamada Calvin1 e sua cópia Calvin2 é construída ao se recriar quase instantaneamente cada molécula de Calvin1 de tal forma que o estado de cada réplica de molécula é o mesmo que o da molécula original em Calvin1 e todas as relações espaciais e de outros tipos entre as moléculas de Calvin2 são as mesmas que as relações entre as moléculas de Calvin1 Quando a reprodução acontece Calvin1 e Calvin2 encontramse em ambientes perfeitamente semelhantes de forma que nos Figura I1 A invenção de Calvin e Haroldo primeiros instantes seus estados materiais serão perfeitamente semelhantes pelo menos descendo até a escala molecular Após alguns instantes porém os dois sistemas começariam a rumar em direções diferentes ou por causa das flutuações inevitavelmente diferentes em cada ambiente ou porque a natureza não é determinística ou os dois Eis então o arranjo do experimento mental A primeira pergunta a ser feita é se Calvin 2 teria consciência ou se ele seria apenas um zumbi filosófico agindo por automatismos mas sem uma vivência subjetiva Materialistas diriam que ele é consciente já que a consciência seria fruto apenas da matéria ao passo que espiritualistas ou dualistas de substância como Descartes afirmariam que algo a mais seria necessário para Calvin2 ter uma alma mente ou consciência 4 NAGEL T 1974 What is it like to be a bat Philosophical Review 83 43550 Em português Como é ser um morcego trad P Abrantes Juliana Orione Cadernos de História e Filosofia da Ciência 15 24562 2005 A tradução da expressão é controvertida preferimos como que é ser um morcego Como exercício considere a seguinte formulação there is something that it is like to be that organism que Abrantes Orione p 247 traduziram por há algo que seja ser como aquele organismo Seguindo a chave de tradução sugerida aqui teríamos há algo que seja como que é ser aquele organismo 5 Esta situação é apresentada por KIM J 1982 Psychophysical supervenience Philosophical Studies 41 51 70 Ela é praticamente a mesma que o novo teletransportador de escaneamento explorado por Derek Parfit em sua discussão sobre identidade pessoal PARFIT D 1984 Reasons and persons Oxford Oxford University Press pp 199201 Esta questão foi colocada por LOCKE J 1694 Ensaio sobre o entendimento humano 2ª ed trad EA Soveral 2 vols Fundação Calouste Gulbenkian Lisboa 1999 Lv II cap XXVII 13 DU BOISREYMOND EH 1874 Limits of our knowledge of nature trad J Fitzgerald Popular Science Monthly 5 pp 1732 orig em alemão 1872 imaginou uma cópia material exata de César ao cruzar o Rubicão p 31 Ver também discussão em KURZWEIL R 2005 The singularity is near Penguin New York pp 3836 Sobre cópias materiais humanas na ficção científica podemos mencionar o filme O 6o Dia The 6th Day de 2000 estrelando Arnold Schwarzenegger A máquina construída por Calvin aparece na capa de WATTERSON B 2009 Deu tilt no progresso as aventuras de Calvin e Haroldo Conrad São Paulo orig em inglês 1991 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 3 3 Materialismo e fisicismo O materialismo é a visão segundo a qual o que chamamos de alma espírito mente ou consciência é um produto apenas de processos materiais e que na morte do corpo a mente do indivíduo de fato desaparece Nesta sua acepção mais ampla o materialismo não está comprometido com a tese de que a matéria seja a substância fundamental do Universo mas está comprometido com a tese de que as entidades fundamentais do Universo sejam elas partículas campos energia cordas o que quer que sejam são inanimadas sem terem propósito ou outros atributos mentais Porém dentro do materialismo podese discutir se tais entidades têm algum tipo de protopsiquismo de maneira que a combinação e organização delas em sistemas complexos poderia gerar uma consciência Esta posição é conhecida como pamprotopsiquismo e será discutida mais adiante na seção VII2 O materialismo tem uma longa história começando com o atomismo grecoromano e com a escola carvaka da Índia Antiga No séc XVII Thomas Hobbes foi um materialista mecanicista6 e no Iluminismo francês destacamse Julien de la Méttrie e Denis Diderot com um materialismo mais vitalista7 Com a ascensão da ciência da Fisiologia o materialismo ressurgiu com força nos países de língua alemã em torno de 1850 sendo ofuscado posteriormente pelo kantismo e pelo positivismo na Filosofia da Ciência mas gerando o materialismo dialético Dos dois grandes problemas do materialismo um deles o problema da perfeição da vida encontrou solução adequada com a teoria da evolução biológica mas o problema de explicar como a consciência surgiria a partir da matéria permanece sem solução Na década de 1950 autores como Place Feigl e Smart retomaram a perspectiva materialista na Filosofia da Mente tomando como base a tese da identidade menteencéfalo que exploraremos no Cap IX O termo fisicismo ou fisicalismo em inglês physicalism geralmente é tomado como sinônimo de materialismo No contexto da Filosofia da Mente o termo fisicismo pode ser definido em seu sentido ontológico como a tese de que tudo tem natureza física inclusive a mente O problema com esta definição é que ela se baseia na definição de físico e não há um consenso sobre isso Por ora podemos caracterizar um processo físico a partir de três propriedades i localização no espaço e no tempo ii ocorrência em uma escala micro macro etc tanto espacial quanto temporal e iii ausência de causas finais ou seja não haveria em nível elementar finalidades ou intencionalidade 6 Por mecanicismo entendese a visão de que o mundo consiste de figuras e movimento como colocou LEIBNIZ GW 1714 Princípios de filosofia ou a Monadologia 17 trad no site Leibniz Brasil em httpwwwleibnizbrasilprobrleibniztraducoesmonadologiahtm O que está ausente nesta visão são as qualidades possuídas por essas figuras discutiremos tais qualidades ao longo do curso Colocado de outro modo o mecanicismo no sentido lato usado nesta nota concebe que o mundo pode ser descrito de maneira completa pela matemática Na Filosofia da Mente o mecanicismo é expresso pelo funcionalismo como veremos nos Caps III e IV 7 Sobre a história do materialismo ver LANGE FA 1875 1974 The history of materialism 3 vols em um trad EC Thomas 187981 Arno Press New York 1a ed em alemão 1866 Sobre a doutrina carvaka pronúncia tchárvaka ver DASGUPTA S 1922 1975 The lokayata nastika and carvaka in A history of Indian philosophy vol III Motilal Banarasidars Delhi pp 51250 Uma comparação entre o materialismo mecanicista de Hobbes e o materialismo vitalista francês de Julien de la Méttrie e Diderot aparece em SKRBINA D 2005 Panpsychism in the West MIT Press Cambridge pp 1015 O termo vitalismo aqui não é a variedade espiritualista do séc XIX mas a do séc XVIII francês mais próxima do materialismo associada à escola vitalista de medicina de Montpellier ver p 584 de KAITARO T 2008 Can matter mark the hours Eighteenthcentury vitalist materialism and functional properties Science in Context 21 58192 Sobre o materialismo alemão de Vogt Molleschott Büchner e Czolbe ver também GREGORY F 1977 Scientific materialism in nineteenth century Germany Reidel Dordrecht Há muito material sobre o materialismo do pósguerra por exemplo MOSER PK TROUT PK orgs 1995 Contemporary materialism a reader Routledge London O sentido do termo materialismo porém tem se alterado Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 4 4 Espiritualismo e parapsicologia A maioria das religiões ensina que na morte a nossa alma individual sobrevive em um reino sobrenatural podendo ou não transmigrar para outros seres vivos no futuro Esta concepção pode ser chamada de espiritualismo e inclui posições mortalistas em que se concebe que a alma entra em um estado de sono inconsciente Lutero ou de morte John Milton até a ressureição da alma ver seção A15 No Apêndice Histórico seção A11 apresentamos a visão dualista de Platão e na seção A16 o dualismo de substância de René Descartes que nAs paixões da alma 1649 acabou sendo refinado na forma de um interacionismo em que glândula pineal seria a sede da consciência ou sensório termo do séc XVIII Hoje em dia há um debate entre materialistas e espiritualistas que gira em torno da veracidade das teses da parapsicologia Um exemplo é a experiência de quase morte em que pessoas que estiveram à beira da morte mas que sobreviveram relatam um conjunto de vivências semelhantes como uma sensação pacífica de ter morrido uma revisão de toda a história de vida a visão de um túnel com uma luz ao seu final e a vivência de sair do corpo Seria a experiência de quase morte explicada por processos neurológicos ou seria um indício da existência de um mundo sobrenatural Materialistas e espiritualistas dividemse quanto à resposta Há muitos experimentos em que parapsicólogos relatam evidência favorável aos chamados fenômenos psi como telepatia transmissão de pensamento e premonição previsão do futuro mas que cientistas mais ortodoxos partidários do chamado ceticismo científico consideram fraude ou fruto de autoengano ocorridos especialmente na fase de coleta de dados As discussões geralmente terminam com a citação de experimentos favoráveis às teses parapsicológicas que os céticos não aceitam e que os cientistas ortodoxos não têm paciência de tentar reproduzir para falsear as teses associadas8 5 A analogia dos relógios e espelhos Qual é a relação entre mente e corpo Na seção A16 do Apêndice Histórico apresentamos as concepções dominantes no séc XVII europeu que incluem o interacionismo de Descartes o ocasionismo de Malebranche e outros e a harmonia préestabelecida de Leibniz O belga Arnold Geulincx em suas Anotações 19 referentes à sua obra Ética publicadas com este livro em 1675 apresentou uma analogia entre dois relógios para ilustrar o interacionismo e o ocasionismo sua posição pessoal Leibniz foi influenciado indiretamente pelo texto de Geulincx9 e desenvolveu a analogia em 1696 8 Uma crítica ao materialismo é feita por ARAUJO Saulo F 2013 O eterno retorno do materialismo padrões recorrentes de explicações materialistas dos fenômenos mentais Revista de Psiquiatria Clínica 4031149 Para uma interpretação espiritualista do fenômeno psicológico da mediunidade ver artigo do coordenador do NUPESUFJF MOREIRAALMEIDA Alexander 2013 Pesquisa em mediunidade e relação mentecérebro revisão das evidências Revista de Psiquiatria Clínica 406 23340 9 Ver maiores detalhes no texto disponível no site do curso sobre a analogia dos relógios de Leibniz A citação é de LEIBNIZ GW 1696 Observações acerca da harmonia da alma e do corpo Segundo esclarecimento do Sistema novo pósescrito de carta para Basnage de Bauval redigida em 313 de janeiro trad E Marques in Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias e outros textos Editora da UFMG Belo Horizonte 2002 pp 4548 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 5 Imagine dois relógios que estão perfeitamente sincronizados um com o outro Ora isso pode ser feito de três modos o primeiro consiste em uma influência natural É isso que experimentou Huygens para seu grande espanto quando prendeu dois pêndulos em uma mesma peça de madeira A segunda maneira de fazer com que dois relógios ainda que imperfeitos estejam sempre de acordo um com o outro seria colocálos sob vigília constante de um artesão hábil que acertasse um com o outro a cada momento A terceira maneira será a de fazer de início esses dois relógios de pêndulos com tanta arte e justeza que se possa assegurar de seu acordo posterior Coloque agora a alma e o corpo no lugar dos dois relógios Seu acordo ou simpatia ocorrerá também por meio de um desses três modos A via de influência é aquela da filosofia vulgar e do interacionismo de Descartes A via da assistência é aquela do sistema das causas ocasionais ocasionismo de Malebranche Assim resta somente a minha hipótese quer dizer a via da harmonia preestabelecida por um artífice divino prevenido o qual desde o começo formou cada uma dessas substâncias as quais mesmo seguindo somente suas próprias leis que elas receberam com seu próprio ser estão em acordo umas com as outras Em 1860 o psicólogo alemão Gustav FECHNER10 generalizou esta analogia para incluir o dualismo de atributos de Spinoza Leibniz deixou de fora um ponto de vista o mais simples de todos Os relógios podem marcar o tempo de maneira harmoniosa de fato sem nunca diferirem porque na verdade eles não são dois relógios mas apenas um Podemos assim dispensar o mecanismo de interação o ajuste constante e a artificialidade do arranjo préestabelecido Neste caso podemos imaginar um único relógio e reflexões de sua imagem em dois espelhos diferentes um dos espelhos seria a visão que o próprio relógio tem de si mesmo É uma analogia didática para se distinguirem visões monistas um único relógio como as concepções de Spinoza e Fechner e dualistas dois relógios como em Descartes Malebranche e Leibniz11 6 Duas acepções de identidade Em filosofia há uma distinção fundamental entre duas acepções do termo identidade Identidade numérica designa a situação em que se trata do mesmo indivíduo No exemplo clássico de Gottlob Frege a estrela dalva e a estrela Vésper são idênticas no sentido numérico 10 FECHNER GT 1966 Elements of psychophysics vol I trad HE Adler Holt Rinehart Winston New York orig em alemão 1860 p 4 11 A analogia é uma forma de inferência que tem um papel importante no processo de descoberta científica e mesmo na Filosofia ou seja na chamada abdução Com o uso de espelhos a analogia dos relógios pode ser estendida para outras concepções monistas A defesa da tese da identidade menteencéfalo pelo materialismo australiano como veremos em UT Place seção IX4 de fato privilegia a descrição material que nesta nova analogia seria representada pelo relógio ao passo que a mente seria um reflexo no espelho sujeita à falácia fenomenológica como veremos Isso exprimiria o materialismo reducionista O epifenomenismo que veremos adiante seção VI2 também pode ser encaixado neste modelo de relógio material com poderes causais e espelho mental sem poderes causais próprios A inversão deste último modelo levaria a uma variedade de idealismo o mundo material seria um reflexo especular do relógio mental A tese aristotélica de que tudo tem forma e matéria poderia talvez ser interpretada pelo modelo de um único relógio sem nenhum espelho não seriam duas perspectivas diferentes de uma mesma coisa mas uma coisa contendo duas espécies de propriedades causas forma e matéria A tese do encéfalo colorido seção IX3 também poderia ser representada por um único relógio sem espelhos o relógio seria constituído de quália e outros conteúdos mentais e também das propriedades estruturais descritas pela ciência Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 6 pois ambas correspondem ao mesmo indivíduo o planeta Vênus visto de manhã ou ao entardecer Por outro lado dois irmãos gêmeos univitelinos são quase idênticos no sentido de que eles possuem as mesmas propriedades apesar de serem indivíduos diferentes Esta é o que chamaremos identidade de propriedades12 O debate filosófico clássico entre realistas de universais e nominalistas envolve uma discussão sobre o tipo de identidade que se aplica a propriedades Por exemplo suponha que dois gêmeos univitelinos tenham narizes idênticos Claramente isso deve ser entendido como identidade no sentido de propriedades Mas surge aqui uma pergunta podese dizer que a forma instanciada em ambos os narizes possui identidade numérica É a mesma forma no sentido numérico ou seja uma e a mesma forma Um realista de universais como Platão diria que sim ao passo que um nominalista com relação à geometria como Guilherme de Ockham diria que não 7 Wilder Penfield e o acesso direto ao cérebro A ascensão do materialismo no séc XX foi fortemente influenciada pelos avanços no que veio a se chamar neurociência13 Uma das pesquisas de maior impacto foi a do neurocirurgião norteamericano Wilder Penfield nascido nos Estados Unidos e radicado no Canadá que mapeou em detalhe as áreas do córtices somatossensorial e motor mostrando que certas partes do corpo como as mãos e a boca são representadas com mais detalhe do que outras ver Figs I2 e 3 Figura I2 Desenho de Penfield indicando os pontos explorados em seu mapeamento dos córtices somatossensorial e motor Figura I3 Representação pictórica dos homúnculos de Penfield Penfield dedicou sua carreira a cirurgias de correção de epilepsias iniciando em 1928 tendo aprendido com o alemão Otfrid Foerster a operar em pacientes acordados submetidos apenas à anestesia local Já neste ano foi para Montreal Em 1935 Penfield propôs que todas as regiões do encéfalo podem estar envolvidas em processos normais de consciência mas o 12 Esta é tradicionalmente chamada de identidade qualitativa mas queremos reservar a palavra qualitativo para designar as qualidades subjetivas Cap V FREGE G 2011 Sobre o sentido e a referência trad SRN Miranda Fundamento Ouro Preto v 1 n 3 p 2144 orig em alemão 1892 13 Termo introduzido em 1962 para nomear a Neuroscience Research Program organização científica fundada por Francis Otto Schmidt e outros na região metropolitana de Boston congregando a neurologia a psicologia e a biologia molecular Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 7 indispensável substrato da consciência localizase fora do córtex cerebral provavelmente no diencéfalo PENFIELD 1983 cap 514 A região chave do diencéfalo seria o tálamo pois segundo Penfield seria em regiões corticais conectadas a esta estrutura que ocorreriam as descargas que causam as crises epiléticas de petit mal ausência em que os pacientes especialmente crianças ficam ausentes durante alguns segundos com perda total de consciência mas sem a perda de comportamentos automáticos como andar ou segurar uma xícara Para PENFIELD 1983 cap 10 neste caso o mecanismo da mente seria desligado mantendose apenas o mecanismo sensoriomotor automático que chamou de o computador Robert THOMPSON 1993 pp 1978 colocou da seguinte maneira os dois conjuntos de observações que Penfield usara em sua argumentação15 O primeiro era relativo à descoberta repetida que pequenas interferências dentro do tronco encefálico por pressão ou lesão indevidas ou como resultado de descargas epiléticas locais aboliam a consciência e a ação intencional Dado que extensas excisões corticais deixavam essas atividades psíquicas intactas Penfield raciocinou que as atividades do tronco encefálico devem ser mais importantes para a ciência awareness consciente e processos volitivos do que as do córtex cerebral O segundo conjunto de observações impelindoo a favorecer a existência de um mecanismo integrador no tronco encefálico estava relacionado à maneira em que o giro motor précentral no córtex é ativado Para Penfield caminhos transcorticais entre as áreas corticais sensoriais ou associativas e o córtex motor não participavam de respostas elicitadoras já que ablações remoções corticais em torno do giro précentral não comprometiam o movimento voluntário A única alternativa seria que o córtex motor é ativado por um mecanismo neural abrigado dentro das profundezas do encéfalo Em 1957 o importante neurologista inglês Francis Walshe desferiu uma ataque impiedoso THOMPSON 1993 p 198 contra Penfield comparando sua teoria à de William B Carpenter 1864 considerada ultrapassada cf MARSHALL MAGOUN 1998 p 205 Em consequência desta crítica Penfield 1958 p 232 retrocedeu em sua posição localizacionista A consciência existe somente em associação com a passagem de potenciais elétricos através de circuitos que estão em constante mudança no tronco encefálico e no córtex Não se pode dizer que a consciência esteja aqui ou acolá Mas certamente sem a integração centroencefálica ela seria inexistente Alguns anos depois passaria a defender uma concepção dualista referindose a Charles Sherrington que foi influenciado pela tradição antimaterialista leibniziana da harmonia pré estabelecida popular na GrãBretanha vitoriana ver seção II1 Mas esperar que o mecanismo superior ou qualquer conjunto de reflexos por mais complicado que seja executa o que a mente faz e portanto realiza todas as funções da mente é bastante absurdo nosso ser deve ser explicado com base em dois elementos fundamentais matéria e mente PENFIELD 1983 cap 20 14 PENFIELD W 1975 1983 O mistério da mente um estudo crítico da consciência e do cérebro humano trad SI Fantauzzil AtheneuEdusp São Paulo 15 THOMPSON R 1993 Centrencephalic theory the general learning system and subcortical dementia Annals of the New York Academy of Sciences 702 197223 Fazemos referência também à excelente história da neurociência de MARSHALL LH MAGOUN HW 1998 Discoveries in the human brain neuroscience prehistory brain structure and function Springer New York Citamos também PENFIELD W 1958 The centrencephalic integrating system Brain 81 2314 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap I Materialismo vs Espiritualismo 8 Outro trabalho notável de Penfield envolveu a ativação do registro da experiência humana16 através do estimulo elétrico em áreas do córtex temporal em pacientes epiléticos A Fig I4 mostra a foto da paciente MM que estimulada nos pontos 12 e 15 falou 12 Sim Eu ouvi vozes em algum lugar ao longo do rio uma voz de homem e uma voz de mulher chamando Penso que vi o rio 15 Apenas um leve flash de um sentimento de familiaridade e um sentimento de que eu sabia tudo o que estava acontecendo em um futuro próximo PENFIELD 1983 cap 6 Este tipo de resposta a estímulos corticais só ocorre em pacientes com epilepsia Penfield as classificou em dois tipos Respostas psíquicas à estimulação elétrica de áreas interpretativas do córtex A Flashback experiencial Reconstituição aleatória de uma sequência consciente a partir do passado do paciente B Sinalização interpretativa Produção de interpretações súbitas da experiência presente como familiar estranho temeroso aproximandose afastandose etc PENFIELD 1961 p 83 Figura I3 Paciente MMuma jovem de 26 anos sofria de pequenos ataques que começavam com uma sensação de familiaridade seguida por uma sensação de medo e então por um pequeno sonho de algumas experiências anteriores PENFIELD 1983 pp 2425 Notar os papelotes impressos com números colocados no córtex da paciente indicando os pontos estimulados que evocaram respostas verbais 16 Título da palestra de onde foi retirada a citação abaixo PENFIELD W 1961 Activation of the record of human experience Annals of the Royal College of Surgeons of England 29 7784