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Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 A ESCUTA CLÍNICA ENTRE A PSICOLOGIZAÇÃO E A ANÁLISE FENOMENOLÓGICOEXISTENCIAL Cristine Monteiro Mattar Resumo Foucault questionou a produção do fenômeno da psicologização pela escuta clínica psicológica desdobramento do diálogo confessional Se a crítica se dirige à psicanálise e suas práticas não se pode ignorar o referencial rogeriano que define como devem ser a escuta e o diálogo clínicos Se há riscos e armadilhas de uma escuta confessional psicologizante ou surda intentase mostrar que a escuta fenomenológica surge como simplesmente um modo de corresponder ao que aparece e se mostra a partir de si mesmo modo esse que é a suspensão presente tanto no paciente quanto pode ser incrementado pelo psicoterapeuta em uma posição de negatividade perante o que lhe chega Esta posição é a da fenomenologiahermenêutica e análise existencial de Heidegger Nem toda escuta clínica será confessional ou psicologizante uma vez que tais práticas são tardias em relação ao que marca o existente em seu modo de ser mais próprio aquele a quem interessam o próprio existir e os outros existentes Palavraschave escuta clínica psicologização fenomenologia análise existencial CLINICAL LISTENING BETWEEN PSYCHOLOGIZATION AND PHENOMENOLPGICALEXISTENCIAL ANALYSIS Abstract Foucault has questioned the production of the phenomenon of psychologization through clinical psychological hearing an unfolding of confessional dialogue If the criticism is directed at psychoanalysis and its practices the Rogerian referential cannot be ignored as it defines what clinical hearing and dialogue must be like If there are risks and traps of a confessional psychologizing or deaf hearing we aim to show that phenomenological hearing arises simply as a way to correspond to what appears and shows of itself a mode that is suspended present both in the patient who is distressed as it can be increased by the psychotherapist in a position of negativity towards what comes to him or her This is the position of phenomenologyhermeneutics and Heideggers existential analysis Not every clinical hearing will be confessional or Psicóloga Professora do Programa de Pósgraduação em Psicologia e Estudos da Subjetividade da Universidade Federal Fluminense Membro do Instituto Dasein Endereço Institucional Instituto de Psicologia Campus do Gragoatá bloco N 4o andar São Domingos Niterói RJ CEP 24210201 Email cristinemattarcmgmailcom A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 73 psychologizing These practices are late in relation to what marks the existent in its most proper way those to whom their own existence and other existent matter Keywords clinical hearing psychologization phenomenology existential analysis Primeiras palavras Fale de você Essa frase clássica expõe a moldura psicológica na qual estamos inseridos desde os séculos I e II de nossa era e com especificidades outras a partir do século XVII Inaugurada pelo dispositivo confessional dos primeiros séculos do Ocidente que pôs ao mesmo tempo aquele que escuta e aquele que fala em uma relação de complementaridade o falar de si posiciona o ouvinte o ouvinte posiciona o falar de si fez com que nos tornássemos cada vez mais entes psicológicos o que levou Richard Sennett 1999 a afirmar que o eu de cada pessoa tornouse o seu próprio fardo Nada mais se realiza sem que se fale de si Desde o nutrólogo ao entrevistador do emprego das relações afetivas e conjugais às conversas na fila do banco ou nas redes sociais todos falam de si todos querem ouvir e serem ouvidos sobre quem são do que gostam como pensam o que sentem Entretanto da confissão monástica à clínica psicanalítica e psicológica do fala que eu te escuto muitas nuances e tons foram esboçados o que nos faz pensar que assim como nem toda conversa clínica é necessariamente confissão de segredos íntimos nem todo fale mais sobre isso é necessariamente aprisionador Se o diálogo clínico apresenta esses riscos por outro lado também pode libertar o existente para si mesmo ao diluir ou desfazer certos elos oriundos daquilo que na leitura heideggeriana encontramos definido como tradição ou interpretações identitárias já dadas pelas quais nos tomamos HEIDEGGER 19272002 A escuta clínica poderá ser o dispositivo de destruição dessas sedimentações de esvaziamento ao invés de preenchimento ou produção do falante como ente psicológico Tal expressão nos remete à metáfora utilizada por Kierkegaard ao descrever a ironia em Sócrates tratase no diálogo filosófico e por que não na clínica de oferecer um vomitório a quem já recebeu comida em excesso É preciso esvaziar não preencher KIERKEGAARD 18412006 Por falar em escuta recentemente ouvimos uma psicóloga que atua na clínica da dor do Instituto Nacional do Câncer o que psicólogos fazem na clínica da dor Para lá são encaminhados pacientes cuja dor resiste a todos os tratamentos já tentados seja em função da metástase seja como resultado dos tratamentos agressivos Então pacientes com dor crônica chegam a essa clínica Inicialmente são tentados novamente métodos de analgesia química combinações que não haviam sido feitas antes etc Quando estes Cristine Monteiro Mattar 74 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 também falham o paciente é por fim encaminhado à psicologia A partir do acompanhamento psicológico a dor começa a diminuir com o uso de idêntica medicação Ouvir atentamente o paciente sobre sua dor à qual ele passou a pertencer pois a dor o contém e não o contrário faz com que o intolerável de sua situação se altere e que outro modo de correspondência à dor e aos remédios possa se dar Para além da dor física a dor de estar na situação da doença do tratamento da intervenção da dor crônica ou seja o enquadre existencial do qual a dor faz parte é que pode ser escutado claro que não exclusivamente pelo profissional de psicologia Ora a dordesespero é especialmente detectada pelo psicólogo já dizia AntiClimacus em Doença Mortal KIERKEGAARD 18492002 No livro II sobre a universalidade do desespero esse autor diz que o médico olha de outra forma a doença porque tem uma ideia precisa do que é a saúde e sabe que assim como há doenças imaginárias há saúdes imaginárias KIERKEGAARD 18492002 p 28 Não se fia somente no que lhe diz o paciente pois aquele que se julga são pode ser no fundo doente O remédio receitado será o que vai fazer com que o mal se torne patente Assim procederá o psicólogo diante do desespero diante daquele que não tem consciência de ser desesperado Ele sabe o que é o desespero conheceo e portanto não se contenta com a opinião de quem não se crê ou crê desesperado p 28 Mesmo aqueles que imitam afetadamente o desespero serão reconhecidos nesta imitação como desesperados e aqueles que se debatem com problemas insignificantes também O desespero é uma enfermidade espiritual que quando aparece claramente revela sua preexistência Nunca o haver sentido indica justamente que estava presente pois jamais o homem deixa de estar num estado crítico p 29 Estar confiado e calmo pode significar que o somos desesperado Esta calma esta segurança podem ser desespero A ausência de desespero não equivale à ausência dum mal Porque não estar doente não significa que o sejamos mas não estar desesperado pode ser o próprio indício de que o somos Portanto nada idêntico à doença na qual o malestar é a própria doença Aqui o próprio malestar é dialético Nunca o ter sentido eis precisamente o desespero p 29 Na clínica é comum que se chegue com o relato de situaçõesproblema que parecem haver surgido naquele período como uma crise no percurso de vida que leva à procura de ajuda O sofrimento agudo no entanto não é o único a ser escutado pelo psicólogo desde que atento Este detecta o modo como o cliente se mostra detecta o desespero e o estado crítico que passa em geral despercebido pelo que sofre As queixas pontuais são narradas sob a expectativa de resolução e transitoriedade do problema pelo narrador como se não fosse a própria existência o problema sem solução se por solução se compreende alcançar um estágio nãocrítico A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 75 Se arriscarmos levar em conta essa especificidade do cuidado psicológico como então resguardar esse lugar no que lhe é próprio sem necessariamente cair nas armadilhas da temida psicologização Como detectar além da imitação ou das insignificâncias ou seja além da concepção do homem como simples síntese de alma e corpo e da saúde como categoria imediata Escuta vem do infinitivo latino auscultare Quando ausculto presto atenção Difere no dicionário de simplesmente ouvir ou seja registrar ruídos pela audição Mas será que é possível separar escutar de ouvir uma vez que os ruídos sempre já surgem em um contexto de significações nunca sendo meros ruídos De qualquer modo o sentido de auscultar na clínica médica remete a uma aproximação atenta que exige silêncio para acontecer e que não se relaciona apenas com ouvir mas também lembra tocar apalpar tatear Podese pensar a clínica como esse auscultar que tateia a situação existencial do outro Escutar é pensar meditar no sentido de zelar por de cuidar Se nosso modo de ser é cuidado já somos correspondência ao ser dos entes que vêm ao nosso encontro Mas a escuta psicanalítica e a escuta psicoterápica nãodiretiva também não são modos de corresponder ao ser dos entes Sem dúvida No entanto já sabem o que procuram a prioristicamente A diferença na escuta fenomenológica é seu esforço em ser mais livre isto é de colocar em suspensão qualquer saber e qualquer procura a não ser que seja como uma procura um cuidado que é meramente projetarse à aparição Portanto a escuta fenomenológica é suspensão esforço por suspender as determinações que já moldam a escuta o que será dito como será interpretado O que levou Heidegger 2001a a afirmar durante os Seminários de Zollikon que interpretar seria a arte de perguntar corretamente ou seja de auscultar de corresponder ou sintonizar com aquilo que vem imediatamente ao encontro e não a arte de responder orientar aconselhar dirigir Foi assim que na meditação sobre a essência da técnica o filósofo partiu das determinações antropológica e instrumental sobre a técnica ambas corretas mas que obscurecem a verdade sobre a técnica moderna enquanto composição que dispõe nosso viver Escutar o correto ou exato não significa estar em relação com a verdade como desvelamento alétheia Para que essa correspondência com o verdadeiro ocorra é preciso interrogar e destruir o correto o informativo a narrativa serializada Neste aspecto não seria também Foucault um demolidor Cristine Monteiro Mattar 76 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 Foucault e os perigos da psicologização A partir dos anos de 1960 as críticas à psicologia e à psicanálise se dirigem sobretudo ao caráter de psicologização das práticas clínicas Expressão utilizada por Foucault 2002 em uma entrevista sobre Filosofia e Psicologia de 1965 na qual mostra que as ciências sobre o sujeito se esquecem de que ele próprio o sujeito é uma produção destes saberes que se propõem a analisálo estudálo e curálo Segundo o pensador a psicologia não teria como se dissociar de certo programa normativo Sendo uma terapêutica como a medicina e a própria filosofia toda psicologia é uma pedagogia toda decifração é uma terapêutica afirma Foucault pois não se pode saber sem transformar p 226 A expressão ciências humanas psicologizadas foi proferida na referida entrevista Foucault analisa a psicologia como uma forma cultural que não seria uma continuação natural e linear da filosofia assumindo um terreno por esta abandonado Mas que é a partir da filosofia moderna que se torna no fundo uma antropologia que as ciências do homem em geral se tornam possíveis A psicologia como ciência da alma da consciência ou do indivíduo se oporia à fisiologia à sociologia e à filosofia Todavia a partir da elucidação do inconsciente teria havido uma reorganização das ciências humanas e a psicologia como ciência da consciência e do indivíduo não pôde mais se sustentar Foucault diz que a partir de Freud não há apenas adição de uma análise do inconsciente à psicologia mas que todas as ciências humanas se tornam ciências da psyché Psicologizar na expressão foucaultiana indica qualquer busca de saber sobre o homem O filósofo francês põe em questão a ilusão de subjetividade como natureza que se revelaria através da prática confessional religiosa em um primeiro momento clínica em um segundo MATTAR 2016 Partindo desse fio no presente o chamado último Foucault vai à procura do que fundamentou as práticas de hermenêutica do sujeito no Ocidente a partir do desaparecimento da antiga cultura de si processo de subjetivação sem sujeição em prol do impositivo do conhecete a ti mesmo processo de subjetivação com sujeição moral ora confessionalreligiosa ora científicocartesiana A saída vislumbrada por Foucault em seus últimos escritos seria na forma de uma filosofia da experimentação uma via filosófica ou estética da existência através da relação mais livre de si para consigo da autoconstituição e autogoverno Se o si mesmo não foi sempre base ou fundamento pois era o fim visado pelas práticas espirituais de fato nunca finalizado enquanto se vivesse por que não retomar de alguma forma esse modo de vida que aqui poderíamos chamar de préidentitário Os cínicos exemplificaram bem essa estilística da A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 77 existência uma vez que levavam às últimas consequências os princípios filosóficos de desapego não somente aos bens e situações transitórias mas o apego a qualquer si mesmo que subsistisse eram portanto ingovernáveis Classificação governo sujeição disciplina e controle principiam pela ilusão de definição constante e fixa de quem se é matriz de todos os preconceitos e violências A fratura provocada por Foucault na subjetividade moderna e na história como tradição isto é na certeza de naturezas essenciais e imutáveis pela via da arqueologia genealogia e estética da existência em muito contribuiu e contribui para a des psicologização Mostrou que disciplinarização de condutas e produção de subjetividade psicológica não necessariamente se dão de forma nitidamente diretiva repressiva ou pedagógica Podem darse e de fato dãose com frequência na forma de promessas de libertação e criação de um saberpoder que promete romper com as amarras comportamentais e com a racionalidade da medicina e das ciências humanas nas práticas de cuidado clínico da psicoterapia e da psicanálise que acenam com a libertação e a cura ou seja continuam sendo práticas de controle e produção de subjetividade não obstante obscurecidas pelo discurso da oferta de auxílio e tratamento clínico àquele que sofre Este último ao ser cuidado é constituído por estas mesmas ações que se propõem a tratálo Nesta direção encontramos na psicoterapia humanista fundada por Carl Rogers nos anos de 1940 nos EUA o que seriam os princípios de uma escuta clínica delineada por este célebre psicólogo Em Psicoterapia e Consulta Psicológica 19421997 Rogers define que a terapia não seria uma forma de fazer algo para o indivíduo ou de induzilo a fazer algo mas sim um processo de libertálo para um amadurecimento e um desenvolvimento normais de remover obstáculos que o impeçam de avançar p 2829 A própria relação terapêutica seria uma experiência de crescimento Ao descrever como deveria proceder o psicólogo em uma sessão de terapia Rogers afirma que este deveria estimular a livre expressão de sentimentos em relação ao problema narrado através de uma atitude amigável interessada e receptiva evitando bloquear a corrente de hostilidade e de ansiedade os sentimentos de inquietação e de culpa as ambivalências e as indecisões p 35 Logo a seguir prossegue descrevendo as atitudes do psicólogo O psicólogo aceita reconhece e esclarece os sentimentos negativos tem de estar preparado para responder não ao conteúdo intelectual daquilo que a pessoa diz mas ao sentimento que lhe está subjacente Às vezes os sentimentos são profundamente ambivalentes às vezes são sentimentos de hostilidade outras vezes de inadequação Seja como for o psicólogo esforça se através do que diz e do que faz para criar uma atmosfera em que o cliente Cristine Monteiro Mattar 78 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 possa chegar a reconhecer que tem esses sentimentos negativos e que é capaz de aceitálos como uma parte de si mesmo em vez de projetálos nos outros ou de ocultálos por detrás de mecanismos de defesa O psicólogo esclarece frequentemente esses sentimentos através da expressão verbal sem procurar interpretar a sua causa ou discutir a sua utilidade reconhecendo simplesmente que existem e que os aceita p 3738 A escuta é reconhecimento e aceitação dos sentimentos para clarificação e reflexão dos mesmos O objetivo é aceitar e reconhecer plenamente os sentimentos que o cliente for capaz de exprimir p 39 Embora o projeto rogeriano visasse distanciarse da psicanálise que procurava escutar o inconsciente a partir de seus disfarces o sintoma o sonho o chiste o ato falho vemos ainda em Rogers conceitos freudianos como projeção e mecanismos de defesa e a escuta voltada para o que não se sabe de si mesmo neste caso os sentimentos Distanciandonos da proposta freudiana e das orientações rogerianas vejamos as contribuições da fenomenologia e da fenomenologiahermenêutica ao tema Não que se desconsiderem as contribuições desses dois projetos que sem dúvida moldaram o que vimos a conceber como cuidado psicológico mas o que se nota é que ambos ocorrem a partir de enquadres que nos parece ainda necessário colocar em suspensão como as noções de psiquismo consciência inconsciente sentimentos autenticidade verdade a ser desvelada e outros Fenomenologia e escuta clínica Se em Foucault nos deparamos com a quebra da cadência psicologizante no chamado primeiro Husserl encontramos a crítica ao psicologismo ZAHAVI 2015 Para Husserl conhecer não é adquirir consciência de algo que seja independente da consciência Quer pensar as próprias condições de possibilidade do que entendemos por consciência e por conhecimento Isto é o conhecimento não é aquisição ou produto de uma instância psicológica a consciência seja ela préexistente idealismo seja produzida pelo mundo realismo Mundo e consciência não são fontes de conhecimento mas coparticipam de algo mais originário a aparição ou seja o fenômeno Para que haja conhecimento mundo consciência é necessário que já tenha acontecido a mostração A posição que Husserl critica é a do psicologismo tese em voga na época que defendia que as questões epistemológicas e técnicocientíficas diziam respeito à natureza cognitiva do perceber do crer do julgar e do conhecer Se todos esses fenômenos são fenômenos psíquicos parecia evidente que à psicologia caberia investigar e constatar sua estrutura A fundamentação científica e lógica também teria base psicológica a lógica A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 79 seria em última instância uma parte da psicologia e as leis lógicas seriam legalidades psicológicas cuja constituição e validade seriam constatadas por meio de investigações empíricas Por isto a psicologia realiza a fundamentação teórica da lógica p 14 Para Husserl essa posição desconhece a diferença fundamental entre a região da lógica e a da psicologia A Lógica como a matemática e a ontologia formal não é uma ciência empírica e não se ocupa de objetos faticamente existentes Ela investiga as estruturas e leis ideais suas pesquisas são caracterizadas por sua certeza e exatidão Já a psicologia é uma ciência experimental que investiga a natureza fática da consciência seus resultados possuem o caráter vago e a mera probabilidade como todas as ciências empíricas Assim Husserl aponta que o erro do psicologismo estava em não distinguir claramente entre o objeto imanente ou transcendente à consciência e o ato do conhecimento O ato é um processo psíquico que transcorre no tempo e possui um início e um fim o mesmo não é válido para os princípios lógicos ou para os objetos matemáticos O pensar e o pensado são diferentes Apesar de os princípios lógicos serem apreendidos e conhecidos na consciência aquilo de que somos conscientes permanece algo ideal que não pode ser reduzido aos atos psíquicos reais e que é completamente diverso deles p 15 Apesar de sua crítica ao psicologismo o interesse de Husserl pelos problemas fundamentais da teoria do conhecimento torna necessário se voltar uma vez mais para a consciência Não a consciência psicológica empírica mas a consciência intencional Na segunda Investigação Husserl aborda o problema da intencionalidade a relação objetoato intencional de forma a mostrar que a intencionalidade não é objetiva nem subjetiva Ato de consciência e objeto não são o mesmo Ou seja o objeto intencional não é imanente ao ato da consciência ele não pertence ao conteúdo da vivência Em diversos atos de consciência podemos estar dirigidos para o mesmo objeto duas percepções numericamente diversas podem ter um objeto numericamente idêntico a identidade do objeto não pode depender da identidade do ato Se o objeto de minha intenção fosse efetivamente imanente ao ato então eu nunca poderia experimentar o mesmo objeto mais do que uma vez Sempre que quisesse perceber novamente o objeto ele seria mediado por um novo ato perceptivo diverso e o objeto seria outro Assim seria impossível para sujeitos diversos perceber o mesmo objeto e concluise portanto que o objeto intencional não pode ser reduzido ao conteúdo subjetivo da consciência Husserl acentua a diferença entre o modo de aparição de nossos atos e o modo de aparição de nossos objetos Em meio à percepção de um objeto precisamos diferenciar incessantemente entre o objeto fenomênico e a aparição mesma uma vez que o objeto Cristine Monteiro Mattar 80 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 nunca aparece em sua totalidade mas sempre a partir de uma determinada perspectiva limitada O mesmo quando pensamos em um objeto sempre pensamos nele sob uma determinada descrição ou conceito Nenhum fenômeno particular aparição se acha em condições de esgotar todo o objeto ou seja este nunca se esgota em uma única dação mas transcende constantemente o seu ser dado Não significa que o objeto se esconderia por detrás do fenômeno nem que seria mera soma de todas as aparições mas que ele é o elemento inteiramente idêntico que liga todas as suas aparições diversas Aqui nos parece haver uma pista interessante Se pudermos ensaiar que a existência do cliente ou seu sofrimento constituem o objeto intencional e a escuta terapêutica se posiciona como ato intencional as narrativas e relatos feitos na clínica serão as aparições que deixam entrever a cada vez o objeto ou seja a existência concreta ali em questão que não se esgota em suas aparições verbais ou nãoverbais É sempre possível experimentar o objeto a partir de perspectivas diversas tais como aquelas de acordo com as quais ele é a cada vez dado Se o objeto no caso o que nos interessa aqui a existência estivesse contido na consciência como parte do fluxo da consciência ele precisaria tomar parte no modo de aparição do ato Segundo Zahavi 2015 Husserl mostrou não ser este o caso Isso vale não apenas para o estar dirigido para objetos reais e efetivos mas também para aquelas intenções que se dirigem justamente para objetos transcendentes em relação à consciência A existência e a fala do cliente são objetos transcendentes em relação à consciência que aqui preferimos chamar de cuidado em seu sentido originário ou de correspondência É ao modo de corresponder nas relações que estabelece no mundo do cliente que o psicoterapeuta corresponde em sua escuta isto é com toda a sua presença Esta corespondência intenciona o que transcende a experiência psicológica empírica isto é intenciona o existir A escuta despsicologizante como correspondência Se em Foucault colhemos a ontologia histórica de nós mesmos esta não se fez sem a leitura da ontologia fundamental de Heidegger SOLER 2017 Nas palavras do próprio Foucault Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial Comecei a ler Hegel depois Marx e me pus a ler Heidegger em 1951 ou 1952 e ainda em 1953 ou 1952 não me lembro mais li Nietzsche Ainda tenho as notas que tomei sobre Heidegger no momento em que o lia são toneladas e elas são muito mais importantes do que aquelas que tomei sobre Hegel ou Marx Todo o meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger FOUCAULT 2004 p 253 A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 81 O efeito despsicologizante da ontologia fenomenológica de Heidegger em sua analítica da existência como caminho indispensável para a retomada da questão sobre o sentido do ser teve certamente efeitos sobre a ontologia histórica e desconstrução operadas por Foucault Em função de nossa indigência ontológicoexistencial sempre nos tomamos como algo de início a partir da sedimentação histórica inclusive como entes psicológicos dotados de psiché Em Ser e tempo 19272002 o filósofo alemão mostra que todo saber seja ou não ciência é tradição sedimentada de mundo na forma de interpretações já dadas pelas quais o sernomundo se interpreta e se reconhece de início Na analítica do dasein no entanto fica explicitado que o seraí é os seus modos de ser e somente isto Toda subjetividade ou identidade é tardia uma vez que somos constituídos por experiências não as constituímos Notese aí a despsicologização radical operada pela análise existencial Se algo compreendido como sujeito psicológico é tardio em relação à existência qualquer ciência que trate deste sujeito também o é Se mundo é a normatividade que nos precede dele faz parte toda ciência do homem incluindo a psicologia e a psicanálise que definirão o dasein como homem ou sujeito Estes saberes também são tardios em relação à existência que é o mais originário e que abre mundo como campo de manifestabilidade do ente CASANOVA 2017 Mas o dasein é absorvido pelo mundo e a medida da adequação é dada pela capa de preconceitos CASANOVA 2017 Assim dasein se deixa absorver pela medida que o mundo fornece pela verdade estruturada por preconceitos tomandose como sujeito psicológico O fundamento da adequação é a tradição restrita O que não impede que se acompanhe esses modos de ser que constituem o dasein A este acompanhar chamamos clínica ou análise existencial Esta permite alcançar a superação da absorção nas restrições produzidas pelo encurtamento da tradição Quando ocorre uma crise da experiência inicial de absorção no mundo tornase possível o desvelamento ou Alétheia que tem caráter negativo de supressão do esquecimento Significa deixar que o horizonte de aparição se desvele e assim torna possível a rearticulação com o fundamento da verdade que é abertura de mundo Destruir a tradição sedimentada que pensa o homem como subsistência suprimindo o caráter temporal do existir é reconduzir ao tempo portanto ao sentido da existência O fenômeno da angústia é a aparição dessa indeterminação que não pode ser eliminada Pelo fato de não ser impelido a nada é que é preciso pôr a si mesmo A experiência é de desterro e estrangeiridade radical no confronto com a ausência radical de sentido O mundo aparece como insignificante e indiferente CASANOVA 2017 Cristine Monteiro Mattar 82 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 Ser e tempo 19272002 provoca uma crise de desterro nas ciências humanas modernas ao descrever o homem e todos os modos de subjetivação que lhe foram atribuídos como tardios em relação à existência como seraí isto é à correlação originária e intencional com o ser Toda a tradição psicologizante do Ocidente aparece como o que ela é sedimentação identitária que obscurece o campo fenomênico originário e radical a existência Heidegger afirma que interpretar as estruturas principais que perfazem o ser do aí seu existir é a analítica existencial Esta esclarece como deve ser colocado o ser homem para que a determinação do homem corresponda ao fenômeno fundamental da abertura do ser a compreensão de que o ser do aí é ekstático isto é saída de si A analítica do Dasein é uma espécie de ontologia p 148 fundamental uma vez que prepara a questão fundamental do ser como ser Sobre a psicologia como ciência natural somente poder ser fundamentada no horizonte de interpretação daseinsanalítico Heidegger esclarece que quando duas pessoas conversam já necessariamente ocorreu se interpelarem como daseins existentes mutuamente relacionados como daseins a quem interessa o próprio Dasein Neste interesse o outro está presente no horizonte da determinação daseinsanalítica do seraí Interpretar o ser desse ente é tarefa da analítica do Dasein sintonizar onticamente neste elemento existente é a da análise existencial Uma conversa não é uma analítica do Dasein mas ela só se torna possível a partir do horizonte da determinação daseinsanalítica do Dasein A analítica interpreta a condição de possibilidade de todo encontro e diálogo ou seja a presença que se abre ontologicamente Na análise existencial diante do outro como elementos existentes mutuamente relacionados há uma sintonia ôntica A palavra sintonia deriva do grego Syntonía acordo mútuo harmonia reciprocidade na mesma frequência de Literalmente significa estirado junto Synteínen syn junto teínen alongar estirar Podese dizer que a Psicologia e a psicoterapia teriam como base essa sintonia ôntica entre entes existentes estirados mutuamente junto a Cuidar é afinarse O que fez Kierkegaard afirmar que para ajudar é preciso aproximarse de onde o outro está KIERKEGAARD 18591986 Heidegger 2001a arremata que na Psicologia a relação entre daseinsanalista e analisando só pode ser vivida como uma relação de Dasein para Dasein Mas não seria qualquer relação sempre de Dasein para Dasein Inicialmente não uma vez que se dá ao modo da indiferença e desinteresse Entendemos que o filósofo aqui se refere a uma relação interessada onde o analisando não é mais tomado como coisa entre coisas O analista pode perguntar o que caracteriza A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 83 o serunscomosoutros pode refletir sobre os sonhos em geral ao mesmo tempo em que interpreta os sonhos do analisando como essa determinada pessoa existente Desse modo a reflexão alcança o âmbito de uma ontologia do Dasein que esclarece o fundamento ontológico dos problemas apresentados e da clínica É decisivo que cada fenômeno que surge na relação de analisando e analista seja discutido em sua pertinência ao paciente concreto em questão a partir de si em seu conteúdo fenomenal e não seja simples e genericamente subordinado a um existencial HEIDEGGER 2001a p 150 Nesse trecho Heidegger previne qualquer tentativa de categorização do existente a partir dos existenciais deixando claro que o exercício será sempre o de discutir cada fenômeno em sua pertinência ao paciente concreto em questão isto é o horizonte de aparição ou conteúdo fenomenal a partir do qual o próprio paciente concreto e suas questões empíricas podem surgir enquanto tais A situação clínica fenomenológica suspende os modos identitários de ser ao desnaturalizálos e coloca em movimento o processo de apropriação da constituição identitária mesma sempre em jogo sempre provisória A análise existencial se dá no sentido da comprovação e descrição de fenômenos que se mostram factualmente em cada caso em um determinado Dasein existente HEIDEGGER 2001a p 151 Não se trata do relato de fatos empíricos o que pode se configurar como falatório ou narrativa serializada mas de ver através destes a existência Ou seja ao contrário do que pensam muitos psicólogos que procuram se apropriar do pensamento heideggeriano não se trata de colher narrativas empíricas do analisando o que não tornaria a análise existencial diferente de nenhuma outra abordagem psicológica que ouve histórias e narrativas de vida Isto a psicologia já faz A descrição de fenômenos factuais significa interromper e remover as narrativas empíricas serializadas para que o fenômeno se dê em sua mostração originária ou seja para que se anuncie a existência como negatividade Tanto que Heidegger afirma ser essa análise ainda que sempre dirigida a um existente em cada caso orientada pelas determinações do ser do ente os existenciais Considerações finais A conceituação de Giorgio Agamben sobre O que é o contemporâneo foi inspirada nas Considerações Intempestivas ou Extemporâneas de Friedrich Nietzsche Contemporâneo é o intempestivo o inoportuno súbito imprevisto É ao mesmo tempo o obscuro de uma época e aquele que consegue enxergálo assumindo uma posição em Cristine Monteiro Mattar 84 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 relação ao seu tempo Pertence ao seu tempo por não coincidir com este sendolhe inatual Por esse deslocamento consegue apreendêlo Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo AGAMBEN 2009 p 64 É aquele que é intempestivo e extemporâneo em relação ao seu próprio tempo Ao desvelar o horizonte epocal no qual nos movemos em uma conferência de 1953 intitulada A questão da técnica Heidegger desloca o olhar da obviedade dos instrumentos técnicos utilizados pelo homem para determinados fins a fim de deixar ver as obscuridades da técnica que tais instrumentos não mostram a composição que constitui a essência da técnica moderna e que a tudo dispõe previamente homem vida natureza ciência e tecnologia como recursos provocados a estarem disponíveis ao uso à estocagem e à exploração Isto quer dizer que todo ente aparece como recurso e fundo de reserva e a correspondência ao ser dos entes tornase uma caça aos entes até o seu esgotamento O modo como a técnica se confunde conosco mesmos nos constituindo mas mantendo a ilusão de que a contemos e controlamos nos mantém em geral alheios a este processo Tal é o espírito da época Não lhe podemos ser contemporâneos a não ser que o estranhemos e percebamos seus perigos não mais tomando de maneira ingênua a cadência ditada pela cotidianidade mediana como sendo a temporalidade originária Se no chamado primeiro Heidegger a análise revela a crise da existência constituída pela tradição deixando aparecer o caráter existencial e fenomênico a partir dos anos 1930 não é a existência em crise propriamente que está em análise mas o horizonte histórico da técnica moderna como subjetividade incondicionada que dispõe a estrutura sernomundo não sendo mais possível uma mudança na configuração do mundo a partir da crise existencial A técnica é o envio de sentido do ser em nosso tempo que impede que algo subsista Se Canguilhem suspeitava do caráter normativo da psicologia comportamental e Foucault do caráter disciplinador ou de controle das práticas psi ainda que pela desregulamentação a reflexão heideggeriana sobre a técnica revela a composição como conjuntura a partir da qual tudo é disposto em um plano de indiferenciação no qual nada cria raízes Os problemas considerados pessoais ou psicológicos reverberam as determinações desse horizonte epocal seja quando se sofre na forma de falha funcional ou quando se tenta incessantemente capacitar e incrementar a vida na constante insatisfação e na sensação de nunca estar pronto ou nunca ser bom o suficiente sempre podendo e devendo mudar ampliar renovar turbinar Análise existencial não significa dividir a existência para analisála mas sim que qualquer análise de uma situação clínica concreta será sempre tardia em relação à A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 85 existência como fenômeno Exercendo a redução fenomenológica chega à base radical que é a existência enquanto campo fenomênico mais originário Se para Foucault não é possível uma psicologia não normativa o que se quer pensar aqui é que a técnica moderna é já uma normatividade ontológica que regula a vida em escala planetária ainda que seja ao modo da desregulamentação do desenraizamento da proliferação de modos de vida sem nenhuma relevância ou fixação possível A psicologia já surge afinada com este horizonte epocal portanto só pode ser também ela normativa Não obstante se quer pensar de que modo uma psicologia que se sabe sob suspeita porque psicologizante seja na forma disciplinadora e adaptadora seja na desregulamentação poderá atuar na clínica psicoterápica chamada a cuidar do sofrimento Nossa conclusão é de que a análise existencial é uma possibilidade de cuidado clínico que acontece como despsicologização do olhar da escuta e das situações de sofrimento que se dão em seu mostrarse Análise existencial é suspensão das determinações já dadas para que o campo fenomênico possa aparecer Se ser contemporâneo é ser inatual em relação ao que nos fala em nosso tempo mas que não se pode escutar a clínica será um espaço possível de inatualidade e contemporaneidade isto é de escuta do inarticulado destino do nosso tempo Espaço onde a crise do encurtamento da tradição ou a nãocrise da técnica moderna possa aparecer e ser cuidada não novamente obscurecida por recomendações e prescrições mas permitindo a recondução aos fenômenos originários ao não esquecimento Se a tradição ou a composição desoneram o existente de reinterpretar e rearticular a existência para que supere a absorção no tempo cotidiano onde nada propriamente me concerne CASANOVA 2017 a situação clínica será aquela onde a situação existencial pode aparecer em sua dação originária como condição ontológica radical de tudo o que consideramos como sofrimento e de suas formas de tratamento Atender nessa perspectiva clínica significa atentar colocar em suspenso todas as determinações nítidas em jogo no nosso tempo silenciar o burburinho tranquilizador ou incitador que vigora para abrirse e escutar as determinações mais originárias que se mantêm no obscurecimento e esquecimento a fim de que aquele que busca ajuda possa escutar a si mesmo ao clamor que conclama a assumir o próprio existir como questão Algo como o que Heidegger denominou com a expressão a prontidão serena de espantarse em sua conferência sobre a técnica moderna HEIDEGGER 2001b p 25 um tipo de escuta que apreende o verdadeiro desvelamento essencial não o exato relato informação Cristine Monteiro Mattar 86 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 Tudo que é essencial não apenas a essência da técnica moderna se mantém por toda parte o maior tempo possível encoberto Todavia a sua regência antecede tudo sendo o primordial Os pensadores gregos já o sabiam ao dizer o primeiro no vigor de sua regência a nós homens só se manifesta posteriormente O originário só se mostra ao homem por último Por isso um esforço de pensamento que visa a pensar mais originariamente o que se pensou na origem não é a caturrice sem sentido de renovar o passado mas a prontidão serena de espantarse com o porvir do princípio O diálogo clínico pode ser visto como poético muito mais do que como técnico Não seria aliás a poesia uma escuta privilegiada do Ser Em Cordas de aço 1976 Cartola 19081980 conversa com o violão que o escuta compreende e acompanha cuidado derramado em versos e melodia para pensar feridas Na vida difícil do poeta compor foi terapia modo outro de lida com a dor Ah Estas cordas de aço Este minúsculo braço do violão Que os dedos meus acariciam Ah Este bojo perfeito Que trago junto ao meu peito Só você violão compreende porque Perdi toda alegria E no entanto meu pinho Pode crer eu advinho Aquela mulher até hoje está nos esperando Solte o seu som da madeira Eu você e a companheira À madrugada iremos pra casa cantando A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 87 Referências AGAMBEN G O que é o contemporâneo Em O que é o contemporâneo e outros ensaios Chapecó Argos 2009 CARTOLA Cordas de aço Rio de Janeiro Discos Marcus Pereira 1976 Suporte 215 CASANOVA Marco Antonio A falta que Marx nos faz Rio de Janeiro Via Verita 2017 FOUCAULT Michel Filosofia e Psicologia Em Foucault M Ditos e Escritos I Problematização do sujeito Psicologia e Psiquiatria Rio de Janeiro Forense Universitária 2002 FOUCAULT Michel O Retorno da Moral Em Foucault M Ditos e Escritos V ética sexualidade política Rio de Janeiro Forense Universitária 2004 HEIDEGGER Martin Seminários de Zollikon Petrópolis Vozes 2001a HEIDEGGER Martin A questão da técnica Em HEIDEGGER M Ensaios e conferências Petrópolis Vozes 2001b HEIDEGGER Martin Ser e Tempo Parte I Petrópolis Vozes 2002 Originalmente publicado em 1927 KIERKEGAARD Søren Aaybe O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates Petrópolis Vozes 2006 Originalmente publicado em 1841 KIERKEGAARD Søren Aaybe O desespero humano São Paulo Martin Claret 2002 Original publicado em 1849 KIERKEGAARD Søren Aaybe Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor Lisboa Edições 70 1986 Original publicado em 1859 MATTAR Cristine Monteiro Psicologia cuidado de si e clínica diálogos com Kierkegaard e Foucault Rio de Janeiro Via Verita 2016 ROGERS C R Psicoterapia e consulta psicológica São Paulo Martins Fontes 1997 Originalmente publicado em 1942 SENNETT R O declínio do homem público tiranias da intimidade São Paulo Companhia das Letras 1999 SOLER R Foucault leitor de Heidegger da ontologia fundamental à ontologia histórica de nós mesmos Rev Synth Let Educ Humanid Lages v 2 n 2 p 513 dez 2017 ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Rio de Janeiro Via Verita 2015 Recebido em 8 de julho de 2018 Aceito em 10 de agosto de 2018
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Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 A ESCUTA CLÍNICA ENTRE A PSICOLOGIZAÇÃO E A ANÁLISE FENOMENOLÓGICOEXISTENCIAL Cristine Monteiro Mattar Resumo Foucault questionou a produção do fenômeno da psicologização pela escuta clínica psicológica desdobramento do diálogo confessional Se a crítica se dirige à psicanálise e suas práticas não se pode ignorar o referencial rogeriano que define como devem ser a escuta e o diálogo clínicos Se há riscos e armadilhas de uma escuta confessional psicologizante ou surda intentase mostrar que a escuta fenomenológica surge como simplesmente um modo de corresponder ao que aparece e se mostra a partir de si mesmo modo esse que é a suspensão presente tanto no paciente quanto pode ser incrementado pelo psicoterapeuta em uma posição de negatividade perante o que lhe chega Esta posição é a da fenomenologiahermenêutica e análise existencial de Heidegger Nem toda escuta clínica será confessional ou psicologizante uma vez que tais práticas são tardias em relação ao que marca o existente em seu modo de ser mais próprio aquele a quem interessam o próprio existir e os outros existentes Palavraschave escuta clínica psicologização fenomenologia análise existencial CLINICAL LISTENING BETWEEN PSYCHOLOGIZATION AND PHENOMENOLPGICALEXISTENCIAL ANALYSIS Abstract Foucault has questioned the production of the phenomenon of psychologization through clinical psychological hearing an unfolding of confessional dialogue If the criticism is directed at psychoanalysis and its practices the Rogerian referential cannot be ignored as it defines what clinical hearing and dialogue must be like If there are risks and traps of a confessional psychologizing or deaf hearing we aim to show that phenomenological hearing arises simply as a way to correspond to what appears and shows of itself a mode that is suspended present both in the patient who is distressed as it can be increased by the psychotherapist in a position of negativity towards what comes to him or her This is the position of phenomenologyhermeneutics and Heideggers existential analysis Not every clinical hearing will be confessional or Psicóloga Professora do Programa de Pósgraduação em Psicologia e Estudos da Subjetividade da Universidade Federal Fluminense Membro do Instituto Dasein Endereço Institucional Instituto de Psicologia Campus do Gragoatá bloco N 4o andar São Domingos Niterói RJ CEP 24210201 Email cristinemattarcmgmailcom A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 73 psychologizing These practices are late in relation to what marks the existent in its most proper way those to whom their own existence and other existent matter Keywords clinical hearing psychologization phenomenology existential analysis Primeiras palavras Fale de você Essa frase clássica expõe a moldura psicológica na qual estamos inseridos desde os séculos I e II de nossa era e com especificidades outras a partir do século XVII Inaugurada pelo dispositivo confessional dos primeiros séculos do Ocidente que pôs ao mesmo tempo aquele que escuta e aquele que fala em uma relação de complementaridade o falar de si posiciona o ouvinte o ouvinte posiciona o falar de si fez com que nos tornássemos cada vez mais entes psicológicos o que levou Richard Sennett 1999 a afirmar que o eu de cada pessoa tornouse o seu próprio fardo Nada mais se realiza sem que se fale de si Desde o nutrólogo ao entrevistador do emprego das relações afetivas e conjugais às conversas na fila do banco ou nas redes sociais todos falam de si todos querem ouvir e serem ouvidos sobre quem são do que gostam como pensam o que sentem Entretanto da confissão monástica à clínica psicanalítica e psicológica do fala que eu te escuto muitas nuances e tons foram esboçados o que nos faz pensar que assim como nem toda conversa clínica é necessariamente confissão de segredos íntimos nem todo fale mais sobre isso é necessariamente aprisionador Se o diálogo clínico apresenta esses riscos por outro lado também pode libertar o existente para si mesmo ao diluir ou desfazer certos elos oriundos daquilo que na leitura heideggeriana encontramos definido como tradição ou interpretações identitárias já dadas pelas quais nos tomamos HEIDEGGER 19272002 A escuta clínica poderá ser o dispositivo de destruição dessas sedimentações de esvaziamento ao invés de preenchimento ou produção do falante como ente psicológico Tal expressão nos remete à metáfora utilizada por Kierkegaard ao descrever a ironia em Sócrates tratase no diálogo filosófico e por que não na clínica de oferecer um vomitório a quem já recebeu comida em excesso É preciso esvaziar não preencher KIERKEGAARD 18412006 Por falar em escuta recentemente ouvimos uma psicóloga que atua na clínica da dor do Instituto Nacional do Câncer o que psicólogos fazem na clínica da dor Para lá são encaminhados pacientes cuja dor resiste a todos os tratamentos já tentados seja em função da metástase seja como resultado dos tratamentos agressivos Então pacientes com dor crônica chegam a essa clínica Inicialmente são tentados novamente métodos de analgesia química combinações que não haviam sido feitas antes etc Quando estes Cristine Monteiro Mattar 74 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 também falham o paciente é por fim encaminhado à psicologia A partir do acompanhamento psicológico a dor começa a diminuir com o uso de idêntica medicação Ouvir atentamente o paciente sobre sua dor à qual ele passou a pertencer pois a dor o contém e não o contrário faz com que o intolerável de sua situação se altere e que outro modo de correspondência à dor e aos remédios possa se dar Para além da dor física a dor de estar na situação da doença do tratamento da intervenção da dor crônica ou seja o enquadre existencial do qual a dor faz parte é que pode ser escutado claro que não exclusivamente pelo profissional de psicologia Ora a dordesespero é especialmente detectada pelo psicólogo já dizia AntiClimacus em Doença Mortal KIERKEGAARD 18492002 No livro II sobre a universalidade do desespero esse autor diz que o médico olha de outra forma a doença porque tem uma ideia precisa do que é a saúde e sabe que assim como há doenças imaginárias há saúdes imaginárias KIERKEGAARD 18492002 p 28 Não se fia somente no que lhe diz o paciente pois aquele que se julga são pode ser no fundo doente O remédio receitado será o que vai fazer com que o mal se torne patente Assim procederá o psicólogo diante do desespero diante daquele que não tem consciência de ser desesperado Ele sabe o que é o desespero conheceo e portanto não se contenta com a opinião de quem não se crê ou crê desesperado p 28 Mesmo aqueles que imitam afetadamente o desespero serão reconhecidos nesta imitação como desesperados e aqueles que se debatem com problemas insignificantes também O desespero é uma enfermidade espiritual que quando aparece claramente revela sua preexistência Nunca o haver sentido indica justamente que estava presente pois jamais o homem deixa de estar num estado crítico p 29 Estar confiado e calmo pode significar que o somos desesperado Esta calma esta segurança podem ser desespero A ausência de desespero não equivale à ausência dum mal Porque não estar doente não significa que o sejamos mas não estar desesperado pode ser o próprio indício de que o somos Portanto nada idêntico à doença na qual o malestar é a própria doença Aqui o próprio malestar é dialético Nunca o ter sentido eis precisamente o desespero p 29 Na clínica é comum que se chegue com o relato de situaçõesproblema que parecem haver surgido naquele período como uma crise no percurso de vida que leva à procura de ajuda O sofrimento agudo no entanto não é o único a ser escutado pelo psicólogo desde que atento Este detecta o modo como o cliente se mostra detecta o desespero e o estado crítico que passa em geral despercebido pelo que sofre As queixas pontuais são narradas sob a expectativa de resolução e transitoriedade do problema pelo narrador como se não fosse a própria existência o problema sem solução se por solução se compreende alcançar um estágio nãocrítico A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 75 Se arriscarmos levar em conta essa especificidade do cuidado psicológico como então resguardar esse lugar no que lhe é próprio sem necessariamente cair nas armadilhas da temida psicologização Como detectar além da imitação ou das insignificâncias ou seja além da concepção do homem como simples síntese de alma e corpo e da saúde como categoria imediata Escuta vem do infinitivo latino auscultare Quando ausculto presto atenção Difere no dicionário de simplesmente ouvir ou seja registrar ruídos pela audição Mas será que é possível separar escutar de ouvir uma vez que os ruídos sempre já surgem em um contexto de significações nunca sendo meros ruídos De qualquer modo o sentido de auscultar na clínica médica remete a uma aproximação atenta que exige silêncio para acontecer e que não se relaciona apenas com ouvir mas também lembra tocar apalpar tatear Podese pensar a clínica como esse auscultar que tateia a situação existencial do outro Escutar é pensar meditar no sentido de zelar por de cuidar Se nosso modo de ser é cuidado já somos correspondência ao ser dos entes que vêm ao nosso encontro Mas a escuta psicanalítica e a escuta psicoterápica nãodiretiva também não são modos de corresponder ao ser dos entes Sem dúvida No entanto já sabem o que procuram a prioristicamente A diferença na escuta fenomenológica é seu esforço em ser mais livre isto é de colocar em suspensão qualquer saber e qualquer procura a não ser que seja como uma procura um cuidado que é meramente projetarse à aparição Portanto a escuta fenomenológica é suspensão esforço por suspender as determinações que já moldam a escuta o que será dito como será interpretado O que levou Heidegger 2001a a afirmar durante os Seminários de Zollikon que interpretar seria a arte de perguntar corretamente ou seja de auscultar de corresponder ou sintonizar com aquilo que vem imediatamente ao encontro e não a arte de responder orientar aconselhar dirigir Foi assim que na meditação sobre a essência da técnica o filósofo partiu das determinações antropológica e instrumental sobre a técnica ambas corretas mas que obscurecem a verdade sobre a técnica moderna enquanto composição que dispõe nosso viver Escutar o correto ou exato não significa estar em relação com a verdade como desvelamento alétheia Para que essa correspondência com o verdadeiro ocorra é preciso interrogar e destruir o correto o informativo a narrativa serializada Neste aspecto não seria também Foucault um demolidor Cristine Monteiro Mattar 76 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 Foucault e os perigos da psicologização A partir dos anos de 1960 as críticas à psicologia e à psicanálise se dirigem sobretudo ao caráter de psicologização das práticas clínicas Expressão utilizada por Foucault 2002 em uma entrevista sobre Filosofia e Psicologia de 1965 na qual mostra que as ciências sobre o sujeito se esquecem de que ele próprio o sujeito é uma produção destes saberes que se propõem a analisálo estudálo e curálo Segundo o pensador a psicologia não teria como se dissociar de certo programa normativo Sendo uma terapêutica como a medicina e a própria filosofia toda psicologia é uma pedagogia toda decifração é uma terapêutica afirma Foucault pois não se pode saber sem transformar p 226 A expressão ciências humanas psicologizadas foi proferida na referida entrevista Foucault analisa a psicologia como uma forma cultural que não seria uma continuação natural e linear da filosofia assumindo um terreno por esta abandonado Mas que é a partir da filosofia moderna que se torna no fundo uma antropologia que as ciências do homem em geral se tornam possíveis A psicologia como ciência da alma da consciência ou do indivíduo se oporia à fisiologia à sociologia e à filosofia Todavia a partir da elucidação do inconsciente teria havido uma reorganização das ciências humanas e a psicologia como ciência da consciência e do indivíduo não pôde mais se sustentar Foucault diz que a partir de Freud não há apenas adição de uma análise do inconsciente à psicologia mas que todas as ciências humanas se tornam ciências da psyché Psicologizar na expressão foucaultiana indica qualquer busca de saber sobre o homem O filósofo francês põe em questão a ilusão de subjetividade como natureza que se revelaria através da prática confessional religiosa em um primeiro momento clínica em um segundo MATTAR 2016 Partindo desse fio no presente o chamado último Foucault vai à procura do que fundamentou as práticas de hermenêutica do sujeito no Ocidente a partir do desaparecimento da antiga cultura de si processo de subjetivação sem sujeição em prol do impositivo do conhecete a ti mesmo processo de subjetivação com sujeição moral ora confessionalreligiosa ora científicocartesiana A saída vislumbrada por Foucault em seus últimos escritos seria na forma de uma filosofia da experimentação uma via filosófica ou estética da existência através da relação mais livre de si para consigo da autoconstituição e autogoverno Se o si mesmo não foi sempre base ou fundamento pois era o fim visado pelas práticas espirituais de fato nunca finalizado enquanto se vivesse por que não retomar de alguma forma esse modo de vida que aqui poderíamos chamar de préidentitário Os cínicos exemplificaram bem essa estilística da A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 77 existência uma vez que levavam às últimas consequências os princípios filosóficos de desapego não somente aos bens e situações transitórias mas o apego a qualquer si mesmo que subsistisse eram portanto ingovernáveis Classificação governo sujeição disciplina e controle principiam pela ilusão de definição constante e fixa de quem se é matriz de todos os preconceitos e violências A fratura provocada por Foucault na subjetividade moderna e na história como tradição isto é na certeza de naturezas essenciais e imutáveis pela via da arqueologia genealogia e estética da existência em muito contribuiu e contribui para a des psicologização Mostrou que disciplinarização de condutas e produção de subjetividade psicológica não necessariamente se dão de forma nitidamente diretiva repressiva ou pedagógica Podem darse e de fato dãose com frequência na forma de promessas de libertação e criação de um saberpoder que promete romper com as amarras comportamentais e com a racionalidade da medicina e das ciências humanas nas práticas de cuidado clínico da psicoterapia e da psicanálise que acenam com a libertação e a cura ou seja continuam sendo práticas de controle e produção de subjetividade não obstante obscurecidas pelo discurso da oferta de auxílio e tratamento clínico àquele que sofre Este último ao ser cuidado é constituído por estas mesmas ações que se propõem a tratálo Nesta direção encontramos na psicoterapia humanista fundada por Carl Rogers nos anos de 1940 nos EUA o que seriam os princípios de uma escuta clínica delineada por este célebre psicólogo Em Psicoterapia e Consulta Psicológica 19421997 Rogers define que a terapia não seria uma forma de fazer algo para o indivíduo ou de induzilo a fazer algo mas sim um processo de libertálo para um amadurecimento e um desenvolvimento normais de remover obstáculos que o impeçam de avançar p 2829 A própria relação terapêutica seria uma experiência de crescimento Ao descrever como deveria proceder o psicólogo em uma sessão de terapia Rogers afirma que este deveria estimular a livre expressão de sentimentos em relação ao problema narrado através de uma atitude amigável interessada e receptiva evitando bloquear a corrente de hostilidade e de ansiedade os sentimentos de inquietação e de culpa as ambivalências e as indecisões p 35 Logo a seguir prossegue descrevendo as atitudes do psicólogo O psicólogo aceita reconhece e esclarece os sentimentos negativos tem de estar preparado para responder não ao conteúdo intelectual daquilo que a pessoa diz mas ao sentimento que lhe está subjacente Às vezes os sentimentos são profundamente ambivalentes às vezes são sentimentos de hostilidade outras vezes de inadequação Seja como for o psicólogo esforça se através do que diz e do que faz para criar uma atmosfera em que o cliente Cristine Monteiro Mattar 78 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 possa chegar a reconhecer que tem esses sentimentos negativos e que é capaz de aceitálos como uma parte de si mesmo em vez de projetálos nos outros ou de ocultálos por detrás de mecanismos de defesa O psicólogo esclarece frequentemente esses sentimentos através da expressão verbal sem procurar interpretar a sua causa ou discutir a sua utilidade reconhecendo simplesmente que existem e que os aceita p 3738 A escuta é reconhecimento e aceitação dos sentimentos para clarificação e reflexão dos mesmos O objetivo é aceitar e reconhecer plenamente os sentimentos que o cliente for capaz de exprimir p 39 Embora o projeto rogeriano visasse distanciarse da psicanálise que procurava escutar o inconsciente a partir de seus disfarces o sintoma o sonho o chiste o ato falho vemos ainda em Rogers conceitos freudianos como projeção e mecanismos de defesa e a escuta voltada para o que não se sabe de si mesmo neste caso os sentimentos Distanciandonos da proposta freudiana e das orientações rogerianas vejamos as contribuições da fenomenologia e da fenomenologiahermenêutica ao tema Não que se desconsiderem as contribuições desses dois projetos que sem dúvida moldaram o que vimos a conceber como cuidado psicológico mas o que se nota é que ambos ocorrem a partir de enquadres que nos parece ainda necessário colocar em suspensão como as noções de psiquismo consciência inconsciente sentimentos autenticidade verdade a ser desvelada e outros Fenomenologia e escuta clínica Se em Foucault nos deparamos com a quebra da cadência psicologizante no chamado primeiro Husserl encontramos a crítica ao psicologismo ZAHAVI 2015 Para Husserl conhecer não é adquirir consciência de algo que seja independente da consciência Quer pensar as próprias condições de possibilidade do que entendemos por consciência e por conhecimento Isto é o conhecimento não é aquisição ou produto de uma instância psicológica a consciência seja ela préexistente idealismo seja produzida pelo mundo realismo Mundo e consciência não são fontes de conhecimento mas coparticipam de algo mais originário a aparição ou seja o fenômeno Para que haja conhecimento mundo consciência é necessário que já tenha acontecido a mostração A posição que Husserl critica é a do psicologismo tese em voga na época que defendia que as questões epistemológicas e técnicocientíficas diziam respeito à natureza cognitiva do perceber do crer do julgar e do conhecer Se todos esses fenômenos são fenômenos psíquicos parecia evidente que à psicologia caberia investigar e constatar sua estrutura A fundamentação científica e lógica também teria base psicológica a lógica A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 79 seria em última instância uma parte da psicologia e as leis lógicas seriam legalidades psicológicas cuja constituição e validade seriam constatadas por meio de investigações empíricas Por isto a psicologia realiza a fundamentação teórica da lógica p 14 Para Husserl essa posição desconhece a diferença fundamental entre a região da lógica e a da psicologia A Lógica como a matemática e a ontologia formal não é uma ciência empírica e não se ocupa de objetos faticamente existentes Ela investiga as estruturas e leis ideais suas pesquisas são caracterizadas por sua certeza e exatidão Já a psicologia é uma ciência experimental que investiga a natureza fática da consciência seus resultados possuem o caráter vago e a mera probabilidade como todas as ciências empíricas Assim Husserl aponta que o erro do psicologismo estava em não distinguir claramente entre o objeto imanente ou transcendente à consciência e o ato do conhecimento O ato é um processo psíquico que transcorre no tempo e possui um início e um fim o mesmo não é válido para os princípios lógicos ou para os objetos matemáticos O pensar e o pensado são diferentes Apesar de os princípios lógicos serem apreendidos e conhecidos na consciência aquilo de que somos conscientes permanece algo ideal que não pode ser reduzido aos atos psíquicos reais e que é completamente diverso deles p 15 Apesar de sua crítica ao psicologismo o interesse de Husserl pelos problemas fundamentais da teoria do conhecimento torna necessário se voltar uma vez mais para a consciência Não a consciência psicológica empírica mas a consciência intencional Na segunda Investigação Husserl aborda o problema da intencionalidade a relação objetoato intencional de forma a mostrar que a intencionalidade não é objetiva nem subjetiva Ato de consciência e objeto não são o mesmo Ou seja o objeto intencional não é imanente ao ato da consciência ele não pertence ao conteúdo da vivência Em diversos atos de consciência podemos estar dirigidos para o mesmo objeto duas percepções numericamente diversas podem ter um objeto numericamente idêntico a identidade do objeto não pode depender da identidade do ato Se o objeto de minha intenção fosse efetivamente imanente ao ato então eu nunca poderia experimentar o mesmo objeto mais do que uma vez Sempre que quisesse perceber novamente o objeto ele seria mediado por um novo ato perceptivo diverso e o objeto seria outro Assim seria impossível para sujeitos diversos perceber o mesmo objeto e concluise portanto que o objeto intencional não pode ser reduzido ao conteúdo subjetivo da consciência Husserl acentua a diferença entre o modo de aparição de nossos atos e o modo de aparição de nossos objetos Em meio à percepção de um objeto precisamos diferenciar incessantemente entre o objeto fenomênico e a aparição mesma uma vez que o objeto Cristine Monteiro Mattar 80 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 nunca aparece em sua totalidade mas sempre a partir de uma determinada perspectiva limitada O mesmo quando pensamos em um objeto sempre pensamos nele sob uma determinada descrição ou conceito Nenhum fenômeno particular aparição se acha em condições de esgotar todo o objeto ou seja este nunca se esgota em uma única dação mas transcende constantemente o seu ser dado Não significa que o objeto se esconderia por detrás do fenômeno nem que seria mera soma de todas as aparições mas que ele é o elemento inteiramente idêntico que liga todas as suas aparições diversas Aqui nos parece haver uma pista interessante Se pudermos ensaiar que a existência do cliente ou seu sofrimento constituem o objeto intencional e a escuta terapêutica se posiciona como ato intencional as narrativas e relatos feitos na clínica serão as aparições que deixam entrever a cada vez o objeto ou seja a existência concreta ali em questão que não se esgota em suas aparições verbais ou nãoverbais É sempre possível experimentar o objeto a partir de perspectivas diversas tais como aquelas de acordo com as quais ele é a cada vez dado Se o objeto no caso o que nos interessa aqui a existência estivesse contido na consciência como parte do fluxo da consciência ele precisaria tomar parte no modo de aparição do ato Segundo Zahavi 2015 Husserl mostrou não ser este o caso Isso vale não apenas para o estar dirigido para objetos reais e efetivos mas também para aquelas intenções que se dirigem justamente para objetos transcendentes em relação à consciência A existência e a fala do cliente são objetos transcendentes em relação à consciência que aqui preferimos chamar de cuidado em seu sentido originário ou de correspondência É ao modo de corresponder nas relações que estabelece no mundo do cliente que o psicoterapeuta corresponde em sua escuta isto é com toda a sua presença Esta corespondência intenciona o que transcende a experiência psicológica empírica isto é intenciona o existir A escuta despsicologizante como correspondência Se em Foucault colhemos a ontologia histórica de nós mesmos esta não se fez sem a leitura da ontologia fundamental de Heidegger SOLER 2017 Nas palavras do próprio Foucault Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial Comecei a ler Hegel depois Marx e me pus a ler Heidegger em 1951 ou 1952 e ainda em 1953 ou 1952 não me lembro mais li Nietzsche Ainda tenho as notas que tomei sobre Heidegger no momento em que o lia são toneladas e elas são muito mais importantes do que aquelas que tomei sobre Hegel ou Marx Todo o meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger FOUCAULT 2004 p 253 A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 81 O efeito despsicologizante da ontologia fenomenológica de Heidegger em sua analítica da existência como caminho indispensável para a retomada da questão sobre o sentido do ser teve certamente efeitos sobre a ontologia histórica e desconstrução operadas por Foucault Em função de nossa indigência ontológicoexistencial sempre nos tomamos como algo de início a partir da sedimentação histórica inclusive como entes psicológicos dotados de psiché Em Ser e tempo 19272002 o filósofo alemão mostra que todo saber seja ou não ciência é tradição sedimentada de mundo na forma de interpretações já dadas pelas quais o sernomundo se interpreta e se reconhece de início Na analítica do dasein no entanto fica explicitado que o seraí é os seus modos de ser e somente isto Toda subjetividade ou identidade é tardia uma vez que somos constituídos por experiências não as constituímos Notese aí a despsicologização radical operada pela análise existencial Se algo compreendido como sujeito psicológico é tardio em relação à existência qualquer ciência que trate deste sujeito também o é Se mundo é a normatividade que nos precede dele faz parte toda ciência do homem incluindo a psicologia e a psicanálise que definirão o dasein como homem ou sujeito Estes saberes também são tardios em relação à existência que é o mais originário e que abre mundo como campo de manifestabilidade do ente CASANOVA 2017 Mas o dasein é absorvido pelo mundo e a medida da adequação é dada pela capa de preconceitos CASANOVA 2017 Assim dasein se deixa absorver pela medida que o mundo fornece pela verdade estruturada por preconceitos tomandose como sujeito psicológico O fundamento da adequação é a tradição restrita O que não impede que se acompanhe esses modos de ser que constituem o dasein A este acompanhar chamamos clínica ou análise existencial Esta permite alcançar a superação da absorção nas restrições produzidas pelo encurtamento da tradição Quando ocorre uma crise da experiência inicial de absorção no mundo tornase possível o desvelamento ou Alétheia que tem caráter negativo de supressão do esquecimento Significa deixar que o horizonte de aparição se desvele e assim torna possível a rearticulação com o fundamento da verdade que é abertura de mundo Destruir a tradição sedimentada que pensa o homem como subsistência suprimindo o caráter temporal do existir é reconduzir ao tempo portanto ao sentido da existência O fenômeno da angústia é a aparição dessa indeterminação que não pode ser eliminada Pelo fato de não ser impelido a nada é que é preciso pôr a si mesmo A experiência é de desterro e estrangeiridade radical no confronto com a ausência radical de sentido O mundo aparece como insignificante e indiferente CASANOVA 2017 Cristine Monteiro Mattar 82 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 Ser e tempo 19272002 provoca uma crise de desterro nas ciências humanas modernas ao descrever o homem e todos os modos de subjetivação que lhe foram atribuídos como tardios em relação à existência como seraí isto é à correlação originária e intencional com o ser Toda a tradição psicologizante do Ocidente aparece como o que ela é sedimentação identitária que obscurece o campo fenomênico originário e radical a existência Heidegger afirma que interpretar as estruturas principais que perfazem o ser do aí seu existir é a analítica existencial Esta esclarece como deve ser colocado o ser homem para que a determinação do homem corresponda ao fenômeno fundamental da abertura do ser a compreensão de que o ser do aí é ekstático isto é saída de si A analítica do Dasein é uma espécie de ontologia p 148 fundamental uma vez que prepara a questão fundamental do ser como ser Sobre a psicologia como ciência natural somente poder ser fundamentada no horizonte de interpretação daseinsanalítico Heidegger esclarece que quando duas pessoas conversam já necessariamente ocorreu se interpelarem como daseins existentes mutuamente relacionados como daseins a quem interessa o próprio Dasein Neste interesse o outro está presente no horizonte da determinação daseinsanalítica do seraí Interpretar o ser desse ente é tarefa da analítica do Dasein sintonizar onticamente neste elemento existente é a da análise existencial Uma conversa não é uma analítica do Dasein mas ela só se torna possível a partir do horizonte da determinação daseinsanalítica do Dasein A analítica interpreta a condição de possibilidade de todo encontro e diálogo ou seja a presença que se abre ontologicamente Na análise existencial diante do outro como elementos existentes mutuamente relacionados há uma sintonia ôntica A palavra sintonia deriva do grego Syntonía acordo mútuo harmonia reciprocidade na mesma frequência de Literalmente significa estirado junto Synteínen syn junto teínen alongar estirar Podese dizer que a Psicologia e a psicoterapia teriam como base essa sintonia ôntica entre entes existentes estirados mutuamente junto a Cuidar é afinarse O que fez Kierkegaard afirmar que para ajudar é preciso aproximarse de onde o outro está KIERKEGAARD 18591986 Heidegger 2001a arremata que na Psicologia a relação entre daseinsanalista e analisando só pode ser vivida como uma relação de Dasein para Dasein Mas não seria qualquer relação sempre de Dasein para Dasein Inicialmente não uma vez que se dá ao modo da indiferença e desinteresse Entendemos que o filósofo aqui se refere a uma relação interessada onde o analisando não é mais tomado como coisa entre coisas O analista pode perguntar o que caracteriza A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 83 o serunscomosoutros pode refletir sobre os sonhos em geral ao mesmo tempo em que interpreta os sonhos do analisando como essa determinada pessoa existente Desse modo a reflexão alcança o âmbito de uma ontologia do Dasein que esclarece o fundamento ontológico dos problemas apresentados e da clínica É decisivo que cada fenômeno que surge na relação de analisando e analista seja discutido em sua pertinência ao paciente concreto em questão a partir de si em seu conteúdo fenomenal e não seja simples e genericamente subordinado a um existencial HEIDEGGER 2001a p 150 Nesse trecho Heidegger previne qualquer tentativa de categorização do existente a partir dos existenciais deixando claro que o exercício será sempre o de discutir cada fenômeno em sua pertinência ao paciente concreto em questão isto é o horizonte de aparição ou conteúdo fenomenal a partir do qual o próprio paciente concreto e suas questões empíricas podem surgir enquanto tais A situação clínica fenomenológica suspende os modos identitários de ser ao desnaturalizálos e coloca em movimento o processo de apropriação da constituição identitária mesma sempre em jogo sempre provisória A análise existencial se dá no sentido da comprovação e descrição de fenômenos que se mostram factualmente em cada caso em um determinado Dasein existente HEIDEGGER 2001a p 151 Não se trata do relato de fatos empíricos o que pode se configurar como falatório ou narrativa serializada mas de ver através destes a existência Ou seja ao contrário do que pensam muitos psicólogos que procuram se apropriar do pensamento heideggeriano não se trata de colher narrativas empíricas do analisando o que não tornaria a análise existencial diferente de nenhuma outra abordagem psicológica que ouve histórias e narrativas de vida Isto a psicologia já faz A descrição de fenômenos factuais significa interromper e remover as narrativas empíricas serializadas para que o fenômeno se dê em sua mostração originária ou seja para que se anuncie a existência como negatividade Tanto que Heidegger afirma ser essa análise ainda que sempre dirigida a um existente em cada caso orientada pelas determinações do ser do ente os existenciais Considerações finais A conceituação de Giorgio Agamben sobre O que é o contemporâneo foi inspirada nas Considerações Intempestivas ou Extemporâneas de Friedrich Nietzsche Contemporâneo é o intempestivo o inoportuno súbito imprevisto É ao mesmo tempo o obscuro de uma época e aquele que consegue enxergálo assumindo uma posição em Cristine Monteiro Mattar 84 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 relação ao seu tempo Pertence ao seu tempo por não coincidir com este sendolhe inatual Por esse deslocamento consegue apreendêlo Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo AGAMBEN 2009 p 64 É aquele que é intempestivo e extemporâneo em relação ao seu próprio tempo Ao desvelar o horizonte epocal no qual nos movemos em uma conferência de 1953 intitulada A questão da técnica Heidegger desloca o olhar da obviedade dos instrumentos técnicos utilizados pelo homem para determinados fins a fim de deixar ver as obscuridades da técnica que tais instrumentos não mostram a composição que constitui a essência da técnica moderna e que a tudo dispõe previamente homem vida natureza ciência e tecnologia como recursos provocados a estarem disponíveis ao uso à estocagem e à exploração Isto quer dizer que todo ente aparece como recurso e fundo de reserva e a correspondência ao ser dos entes tornase uma caça aos entes até o seu esgotamento O modo como a técnica se confunde conosco mesmos nos constituindo mas mantendo a ilusão de que a contemos e controlamos nos mantém em geral alheios a este processo Tal é o espírito da época Não lhe podemos ser contemporâneos a não ser que o estranhemos e percebamos seus perigos não mais tomando de maneira ingênua a cadência ditada pela cotidianidade mediana como sendo a temporalidade originária Se no chamado primeiro Heidegger a análise revela a crise da existência constituída pela tradição deixando aparecer o caráter existencial e fenomênico a partir dos anos 1930 não é a existência em crise propriamente que está em análise mas o horizonte histórico da técnica moderna como subjetividade incondicionada que dispõe a estrutura sernomundo não sendo mais possível uma mudança na configuração do mundo a partir da crise existencial A técnica é o envio de sentido do ser em nosso tempo que impede que algo subsista Se Canguilhem suspeitava do caráter normativo da psicologia comportamental e Foucault do caráter disciplinador ou de controle das práticas psi ainda que pela desregulamentação a reflexão heideggeriana sobre a técnica revela a composição como conjuntura a partir da qual tudo é disposto em um plano de indiferenciação no qual nada cria raízes Os problemas considerados pessoais ou psicológicos reverberam as determinações desse horizonte epocal seja quando se sofre na forma de falha funcional ou quando se tenta incessantemente capacitar e incrementar a vida na constante insatisfação e na sensação de nunca estar pronto ou nunca ser bom o suficiente sempre podendo e devendo mudar ampliar renovar turbinar Análise existencial não significa dividir a existência para analisála mas sim que qualquer análise de uma situação clínica concreta será sempre tardia em relação à A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 85 existência como fenômeno Exercendo a redução fenomenológica chega à base radical que é a existência enquanto campo fenomênico mais originário Se para Foucault não é possível uma psicologia não normativa o que se quer pensar aqui é que a técnica moderna é já uma normatividade ontológica que regula a vida em escala planetária ainda que seja ao modo da desregulamentação do desenraizamento da proliferação de modos de vida sem nenhuma relevância ou fixação possível A psicologia já surge afinada com este horizonte epocal portanto só pode ser também ela normativa Não obstante se quer pensar de que modo uma psicologia que se sabe sob suspeita porque psicologizante seja na forma disciplinadora e adaptadora seja na desregulamentação poderá atuar na clínica psicoterápica chamada a cuidar do sofrimento Nossa conclusão é de que a análise existencial é uma possibilidade de cuidado clínico que acontece como despsicologização do olhar da escuta e das situações de sofrimento que se dão em seu mostrarse Análise existencial é suspensão das determinações já dadas para que o campo fenomênico possa aparecer Se ser contemporâneo é ser inatual em relação ao que nos fala em nosso tempo mas que não se pode escutar a clínica será um espaço possível de inatualidade e contemporaneidade isto é de escuta do inarticulado destino do nosso tempo Espaço onde a crise do encurtamento da tradição ou a nãocrise da técnica moderna possa aparecer e ser cuidada não novamente obscurecida por recomendações e prescrições mas permitindo a recondução aos fenômenos originários ao não esquecimento Se a tradição ou a composição desoneram o existente de reinterpretar e rearticular a existência para que supere a absorção no tempo cotidiano onde nada propriamente me concerne CASANOVA 2017 a situação clínica será aquela onde a situação existencial pode aparecer em sua dação originária como condição ontológica radical de tudo o que consideramos como sofrimento e de suas formas de tratamento Atender nessa perspectiva clínica significa atentar colocar em suspenso todas as determinações nítidas em jogo no nosso tempo silenciar o burburinho tranquilizador ou incitador que vigora para abrirse e escutar as determinações mais originárias que se mantêm no obscurecimento e esquecimento a fim de que aquele que busca ajuda possa escutar a si mesmo ao clamor que conclama a assumir o próprio existir como questão Algo como o que Heidegger denominou com a expressão a prontidão serena de espantarse em sua conferência sobre a técnica moderna HEIDEGGER 2001b p 25 um tipo de escuta que apreende o verdadeiro desvelamento essencial não o exato relato informação Cristine Monteiro Mattar 86 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 Tudo que é essencial não apenas a essência da técnica moderna se mantém por toda parte o maior tempo possível encoberto Todavia a sua regência antecede tudo sendo o primordial Os pensadores gregos já o sabiam ao dizer o primeiro no vigor de sua regência a nós homens só se manifesta posteriormente O originário só se mostra ao homem por último Por isso um esforço de pensamento que visa a pensar mais originariamente o que se pensou na origem não é a caturrice sem sentido de renovar o passado mas a prontidão serena de espantarse com o porvir do princípio O diálogo clínico pode ser visto como poético muito mais do que como técnico Não seria aliás a poesia uma escuta privilegiada do Ser Em Cordas de aço 1976 Cartola 19081980 conversa com o violão que o escuta compreende e acompanha cuidado derramado em versos e melodia para pensar feridas Na vida difícil do poeta compor foi terapia modo outro de lida com a dor Ah Estas cordas de aço Este minúsculo braço do violão Que os dedos meus acariciam Ah Este bojo perfeito Que trago junto ao meu peito Só você violão compreende porque Perdi toda alegria E no entanto meu pinho Pode crer eu advinho Aquela mulher até hoje está nos esperando Solte o seu som da madeira Eu você e a companheira À madrugada iremos pra casa cantando A escuta clínica entre a psicologização e a análise fenomenológicoexistencial Arquivos do IPUB Online v 1 n 1 p 7287 janabr 2019 87 Referências AGAMBEN G O que é o contemporâneo Em O que é o contemporâneo e outros ensaios Chapecó Argos 2009 CARTOLA Cordas de aço Rio de Janeiro Discos Marcus Pereira 1976 Suporte 215 CASANOVA Marco Antonio A falta que Marx nos faz Rio de Janeiro Via Verita 2017 FOUCAULT Michel Filosofia e Psicologia Em Foucault M Ditos e Escritos I Problematização do sujeito Psicologia e Psiquiatria Rio de Janeiro Forense Universitária 2002 FOUCAULT Michel O Retorno da Moral Em Foucault M Ditos e Escritos V ética sexualidade política Rio de Janeiro Forense Universitária 2004 HEIDEGGER Martin Seminários de Zollikon Petrópolis Vozes 2001a HEIDEGGER Martin A questão da técnica Em HEIDEGGER M Ensaios e conferências Petrópolis Vozes 2001b HEIDEGGER Martin Ser e Tempo Parte I Petrópolis Vozes 2002 Originalmente publicado em 1927 KIERKEGAARD Søren Aaybe O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates Petrópolis Vozes 2006 Originalmente publicado em 1841 KIERKEGAARD Søren Aaybe O desespero humano São Paulo Martin Claret 2002 Original publicado em 1849 KIERKEGAARD Søren Aaybe Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor Lisboa Edições 70 1986 Original publicado em 1859 MATTAR Cristine Monteiro Psicologia cuidado de si e clínica diálogos com Kierkegaard e Foucault Rio de Janeiro Via Verita 2016 ROGERS C R Psicoterapia e consulta psicológica São Paulo Martins Fontes 1997 Originalmente publicado em 1942 SENNETT R O declínio do homem público tiranias da intimidade São Paulo Companhia das Letras 1999 SOLER R Foucault leitor de Heidegger da ontologia fundamental à ontologia histórica de nós mesmos Rev Synth Let Educ Humanid Lages v 2 n 2 p 513 dez 2017 ZAHAVI D A fenomenologia de Husserl Rio de Janeiro Via Verita 2015 Recebido em 8 de julho de 2018 Aceito em 10 de agosto de 2018