·
Psicologia ·
Psicologia Social
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
22
Interpretações Fenomenológico-Existenciais para o Sofrimento Psíquico na Atualidade - Segunda Edição Revisada
Psicologia Social
UMESP
15
Interpretações Fenomenológico-Existenciais para o Sofrimento Psíquico na Atualidade
Psicologia Social
UMESP
7
A Clínica Daseinsanalítica: Considerações Preliminares
Psicologia Social
UMESP
15
A Relevância da Atuação do Psicólogo em Instituição de Longa Permanência para Idoso
Psicologia Social
UMESP
262
Dados de Copyright e Catalogação da Obra
Psicologia Social
UMESP
22
Investigação Fenomenológica em Psicoterapia: Estruturas e Temáticas das Falas do Cliente
Psicologia Social
UMESP
16
Existências Desumanizadas pela Colonialidade do Poder: Necropolítica e Antinegritude Brasileira
Psicologia Social
UMESP
13
Dor, Sofrimento e Escuta Clínica: Análise Psicológica
Psicologia Social
UMESP
61
O Poder do Macho - Heleieth Saffioti
Psicologia Social
UMESP
15
Relato de Visita ao Estágio em Saúde e Comunitária
Psicologia Social
UMESP
Texto de pré-visualização
Universidade de Brasília UnB Instituto de Psicologia IP Departamento de Psicologia Clínica PCL Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura PPGPsiCC Depressão e ansiedade como expressões da angústia existencial uma perspectiva fenomenológica do sofrimento psíquico na pósmodernidade Mariana Monção de Lima Orientador Prof Dr Jorge Ponciano Ribeiro Brasília 2020 2 Universidade de Brasília UnB Instituto de Psicologia IP Departamento de Psicologia Clínica PCL Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura PPGPsiCC Depressão e ansiedade como expressões da angústia existencial uma perspectiva fenomenológica do sofrimento psíquico na pósmodernidade Mariana Monção de Lima Orientador Prof Dr Jorge Ponciano Ribeiro Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura Departamento de Psicologia Clínica Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Psicologia Clínica e Cultura Brasília 2020 3 Universidade de Brasília Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Clínica Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura PPGPsiCCUnB Depressão e ansiedade como expressões da angústia existencial uma perspectiva fenomenológica do sofrimento psíquico na pósmodernidade Mariana Monção de Lima Banca examinadora Prof Dr Jorge Ponciano Ribeiro Presidente PsiCCPCLIPUnB Prof Dr Marcelo S A Tavares Membro Titular PsiCCPCLIPUnB Prof Dr Adriano F Holanda Membro Externo UFPR Prof Dr Maurício S Neubern Membro Suplente PsiCCPCLIPUnB 4 Quem passou pela vida em branca nuvem E em plácido repouso adormeceu Quem não sentiu o frio da desgraça Quem passou pela vida e não sofreu Foi espectro de homem não foi homem Só passou pela vida não viveu Francisco Otaviano Ilusões da Vida 5 Agradecimentos À minha Matriarca Cristina Soares sem a qual este trabalho não seria possível Seu suporte e amor ao longo da vida deram as condições para me desenvolver enquanto pessoa Seu gosto pelo pensamento crítico seu cuidado no olhar para o outro traduzido em consciência política e social sua curiosidade infindável diante da vida e o amor pela leitura passados com tanto carinho em seus ensinamentos pavimentaram meu caminho profissional e como pesquisadora Obrigada pelo incentivo e palavras de conselho pela revisão cuidadosa e preciosas sugestões e sobretudo por ser o porto seguro que me dá confiança para me aventurar nos mares da existência Ao querido professor Jorge Ponciano grande referência de ser humano e profissional por emprestar sua incomparável experiência e afetuoso apoio nesta caminhada Dentre todas as contribuições do Instituto de GestaltTerapia de Brasília à minha formação como psicóloga sem dúvidas o nosso encontro foi a mais preciosa Muito devo à sua tranquilidade escuta compreensiva e amorosa orientação sem as quais não teria chegado até aqui Considero uma grande honra ter tido sua companhia nesta jornada e serei sempre grata pela luz que sua presença ofereceu quando o caminho parecia mais obscuro À Giulia Conte grande amiga e companheira intelectual por sua inestimável presença em todo o processo de transformar esta ideia em concretude Na indeferição e na aprovação nas dificuldades de mobilidade para prestar a seleção com o pé quebrado na dança de vitória ao receber a bolsa nas alegrias na frustração e no desespero que permearam este processo nas ideias discutidas em incontáveis Quintas do Vinho na dificuldade das manhãs e tardes e noites passadas estudando em casa no bar ou na biblioteca não poderia pedir por companhia melhor que a sua Que o destino agente promotor do nosso reencontro permita que eu esteja sempre ao seu lado para exaltar seu brilhantismo e que a nossa amizade se faça constância diante desse mundo tão líquido 6 À Naiara Lima açúcar que torna palatável mesmo os momentos mais intragáveis da existência por ser força em minha fraqueza e apoio em meus tropeços e por se fazer presente em todos os momentos Seu amor me ancora e me dá coragem para enfrentar as situações desafiadoras É um grande privilégio te ter como irmã e saber que posso contar com sua gentileza sua doçura e seu senso de humor ímpar para me guiar pelos caminhos tortuosos da vida Aos meus pacientes antigos e atuais em especial os profissionais rodoviários pela confiança que permite crescer como profissional e humana e por dividirem comigo sua experiência de existir neste mundo Ao professor Ileno Costa pelas supervisões do GIPSI onde aprendi uma nova perspectiva sobre o sofrimento humano por acreditar em meu tema de pesquisa e por seu investimento na missão de ampliar o espaço da Fenomenologia em nossa Universidade À professora Eliane Seidl cujos ensinamentos transmitidos na disciplina de Redação de Artigo Científico foram essenciais para o desenvolvimento deste trabalho À Universidade de Brasília precioso espaço de desenvolvimento acadêmico e pessoal pelos lindos encontros que me possibilitaram abrir os olhos para novas dimensões de vivência e pelo compromisso com a educação pública de qualidade Ao Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura pelo acolhimento e fornecimento dos recursos necessários para as investigações aqui realizadas À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES pela concessão da bolsa de mestrado que financiou essa pesquisa 7 Sumário Lista de Tabelas9 Resumo10 Abstract11 Introdução 12 Capítulo 1 A questão da pósmodernidade 23 Modernidade e o projeto moderno24 Pósmodernidade e a era do vazio34 Capítulo 2 Fenomenologia enquanto dimensão de análise do ser humano48 Observando os sentidos do fenômeno a redução eidética49 Redução transcendental quem é o sujeito que produz o sentido49 Husserl positivismo psicologismo e críticas52 O Ser em Heidegger54 O Dasein55 A angústia59 O Ser e o Nada perspectiva sartreana da existência60 Existência Autêntica diálogos entre Heidegger e Sartre66 Autenticidade inautenticidade e serparaamorte70 Produzindo sentidos autenticidade como dimensão de cuidado71 Tempo espaço e corpo dimensões fenomenológicas de compreensão do ser71 Fenomenologia e Psicologia psicopatologia fenomenológica77 Capítulo 3 Sofrimento psíquico e ser em situação possibilidades de existência na pósmodernidade80 Transtorno depressivo o diagnóstico em epoché82 Ansiedade diagnóstico e redução eidética86 Depressão e ansiedade redução transcendental dos critérios diagnósticos88 Tecendo considerações para além dos sintomas do diagnóstico92 Situação pósmoderna sofrimento e possibilidades de existência94 O grito do corpo sintoma como expressão de desconforto com a realidade105 Existência autêntica como dimensão clínica de cuidado108 Considerações Finais112 8 Lista de Tabelas Tabela 182 Tabela 283 Tabela 387 9 Resumo Tomando como ponto de partida a alta incidência da depressão e ansiedade na sociedade contemporânea resultante na categorização destes fenômenos por parte da Organização Mundial de Saúde como transtornos mentais comuns e considerando que cada sociedade produz formas específicas de sofrimento este trabalho propõe investigar sob uma perspectiva fenomenológica as possibilidades subjetivas dadas em nossa época pósmodernidade a fim de identificar tendências que justifiquem o crescimento epidemiológico da ansiedade e depressão e de levantar possíveis estratégias clínicas de acolhimento e cuidado a sujeitos experienciando essas modalidades de sofrimento Para tal propomos identificar as principais características da pósmodernidade sobretudo as apresentadas nas teorias de Bauman Harvey Berman e Lipovestky Em seguida buscamos apresentar a ontologia e método fenomenológicos com ênfase no conceito de existência autêntica expresso em Heidegger e Sartre a serem utilizados posteriormente como dispositivos de análise Por fim o método fenomenológico é aplicado aos critérios diagnósticos presentes nos manuais CID10 e DSM V e articulamos as condições da pósmodernidade com a vivência das pessoas depressivas e ansiosas tecendo considerações a respeito da existência na pósmodernidade Nossas reflexões sugerem que o contexto sociocultural contemporâneo não é favorável ao desenvolvimento de uma existência plena de sentido além de evidenciarem paralelos entre fatores estruturantes de nossa sociedade e as formas de sofrimento de interesse deste trabalho Sugerimos portanto que a noção de existência autêntica possa ser utilizada como dispositivo clínico de cuidado destacando a necessidade de repensar a prática clínica de forma a contemplar a influência dos fenômenos sociais na subjetividade dos indivíduos Palavraschave Ansiedade Depressão Pósmodernidade Fenomenologia Existência Autêntica 10 Abstract Taking as a startpoint the high incidence of depression and anxiety in contemporary society resulting in the categorization of these phenomena by the Global Health Organization as common mental disorders and considering that each society produces specific modalities of suffering this paper proposes to investigate under a phenomonological perspective the subjective possibilities present in our time postmodernity in order to identify tendencies that justify the epidemiological growth of anxiety and depression and to raise possible clinical strategies of care for individuals experiencing these forms of suffering To that effect we propose to identify the main characteristics of postmodernity specially those presented in the theories of Bauman Harvey Berman and Lipovetsky Moving on we aim to introduce the pehnomenological method and onthology emphasizing the concept of autenticity as shown in Heidegger and Sartre to be used henceforth as an analytical stepstone The phenomenological method will be applied to the diagnosis criteria expressed in both the ICD10 and DSMV manuals and a parallel is develloped between the previously identified postmodern conditions and the specific conditions of those living with depression and anxiety The results of these observations suggest that the contemporary sociocultural context is not in favour of the development of a meaningfull existence according with an existentialist perspective Moreover connections between structural factors of our society and the modalities of suffering analised in this paper are be presented We suggest therefore that the concept of authenticity may be used as a clynical tool highlighting the importante of rethinking the clinical practice in order to contemplate the influency of social phenomena in the development of ones subjectivity Keywords Anxiety Depression Postmodernity Phenomenology Authenticity 11 Depressão e Ansiedade como Expressões da Angústia Existencial uma Perspectiva Fenomenológica do Sofrimento Psíquico na PósModernidade Ao voltar o olhar para as demandas clínicas na atualidade é perceptível o aumento de casos específicos de sofrimento psíquico os chamados transtornos depressivo e de ansiedade cuja incidência vem aumentando constantemente desde 2005 a ponto de serem categorizados pela Organização Mundial de Saúde OMS como transtornos mentais comuns devido à sua alta prevalência WHO 2017 A epidemiologia dessas formas de sofrimento evidencia uma problemática no sentido em que o aumento alarmante do número de casos comunica um malestar que afeta uma parcela significativa da sociedade e consequentemente não pode ser contido exclusivamente na esfera individual A psiquiatria tradicional na qual os manuais diagnósticos se embasam tende a encarar fenômenos tais quais a depressão e a ansiedade como desequilíbrios neurológicos a serem corrigidos com medicamentos legando a responsabilidade pelo chamado adoecimento a características do indivíduo que dele padece Entretanto parece haver algo da ordem coletiva e social que influencia na modalidade em que os indivíduos adoecem que é deixado de lado na perspectiva tradicional Watters 2010 realiza uma discussão muito interessante da influência do imperialismo cultural nas formas de sofrimento defendendo a posição de que as enfermidades mentais nunca foram as mesmas ao redor do mundo tanto em prevalência quanto em forma sendo inevitavelmente desencadeadas e moldadas pelo ethos de épocas e locais particulares p103 Em seu texto destaca exemplos de formas de loucura presentes em sociedades tradicionais como a japonesa e como estas foram se transformando desaparecendo e dando lugar a novas expressões de sofrimento psíquico mais características da sociedade estadounidense tais como anorexia e bulimia paralelamente ao crescimento da 12 influência cultural dos Estados Unidos no Japão e em demais países promovendo o que o autor considera como uma homogeneização da forma como o mundo enlouquece p 102 É com base nesta compreensão de que as configurações sociais influenciam a maneira como os indivíduos se subjetivam a forma como se constroem no mundo e como expressam seus sofrimentos que este trabalho surge buscando trazer uma perspectiva sociopolítica para a discussão dos fenômenos de depressão e ansiedade na sociedade contemporânea Sofrimento Compreendido como Transtorno a Patologização da Angústia Ao referenciar a categorização da OMS da depressão e ansiedade como transtornos WHO 2017 fazse necessária logo de saída uma pequena digressão a respeito do termo transtorno mental a fim de contextualizar a perspectiva a ser adotada neste trabalho em relação à depressão e à ansiedade Partindo do pressuposto de que fenômenos denominados de doença mental loucura sofrimento psíquico etc têm sido abordados de formas diversas em acordância com épocas específicas propomos trazer inicialmente a análise histórica de Michel Foucault 19721978 em sua obra História da Loucura para discutir a forma como este entendimento vem se configurando desde a Idade Média até a Modernidade de maneira a realizar uma breve contextualização histórica do conceito de adoecimento e fundamentar a perspectiva que será adotada em nosso trabalho Em sua genealogia da loucura Foucault 19721978 aponta para o surgimento das instituições de reclusão na Idade Média como um primeiro passo para a institucionalização da doença mental Inicialmente construídos para isolar indivíduos que manifestavam sinais de lepra logo os centros de reclusão se tornaram instituições semi jurídicas destinadas a arrebanhar indivíduos considerados de alguma forma perigosos para a sociedade É a partir do século XVIII que a ciência médica estende seu pensamento sobre o adoecimento psíquico criando a possibilidade de uma psiquiatria da observação da transformação do internamento 13 que enclausurava para um que propõe algo de hospitalar e o louco passa a ser foco de análise da ciência médica A herança do estigma do leproso é apontada em História da Loucura 19721978 como elemento para a construção ideológica do louco enquanto elemento de periculosidade no momento em que a psiquiatria se desenvolve e surge uma proposta de cura e de diálogo o louco já está irremediavelmente associado à esta noção de algo que deve ser contido e afastado algo que permeia o imaginário social inclusive nos tempos atuais e que vêm sofrendo tentativas de desconstrução com a Reforma Psiquiátrica O internamento entretanto da forma como foi concebido nos séculos XVII e XVIII passa por uma grande crise que não é proveniente de seu interior e sim ligada a um horizonte econômico e social À medida que o século XVIII avança com as transformações socioeconômicas da Revolução Industrial e a adoção da lógica protestantista o interesse econômico voltase cada vez mais para a produtividade e para a necessidade de mão de obra barata de forma que tornase interessante separar a loucura de outras questões que estavam juntas no balaio da forma de internação clássica a miséria o desatino as doenças entre outras Assim a transformação da casa de internamento em asilo e a adoção de um discurso voltado para a reabilitação dos indivíduos não se deu tão somente pela introdução progressiva da medicina no campo da internação mas também através de uma reestruturação interna deste espaço antes caracterizado pela exclusão e correção em prol de algo que melhor servisse aos interesses da nova sociedade É nesse contexto e em meio a essas práticas discursivas que a ciência psicológica desponta partindo não de uma humanização da justiça e suas práticas mas de uma exigência moral e de uma nova forma de controle dos corpos e dos indivíduos Nossa ciência portanto apesar de ter seu foco no indivíduo provém de uma reorganização da consciência social e tem sua gênese dentro de uma lógica biopolítica de gestão da vida 14 Este breve panorama histórico já fornece por si só elementos para que a prática psicológica seja sempre repensada Se considerarmos que toda ciência é fruto de determinados discursos e evolui imbricada no pensamento vigente de cada época Foucault 19631977 é fundamental que o psicólogo tenha como parte de sua prática uma autocrítica constante a fim de examinar a quem serve o seu trabalho quais são as lógicas que permeiam seu discurso e principalmente qual sua função em relação aos indivíduos a quem atende A arqueogenealogia de Foucault 19721978 ao evidenciar o plano de fundo que embasa o entendimento da loucura em diversos momentos demonstra claramente como formas diferentes de entendimento foram sendo construídas a respeito da loucura e do sofrimento psíquico em geral até um ponto onde os hospitais psiquiátricos e a ciência médica voltam suas atividades para a busca de uma cura Whitaker 2005 em seu artigo Anatomia de uma Epidemia considera a era moderna da psiquiatria como iniciada em 1955 quando a droga Thorazine foi introduzida nos manicômios em um momento em que as internações nos Estados Unidos tinham atingido um ápice histórico O declínio do número de internações foi atribuído ao sucesso do uso dessa droga e logo outras medicações psiquiátricas vieram a surgir no mercado inicialmente o Haldol e outros antipsicóticos e em seguida ansiolíticos e antidepressivos A psiquiatria começa portanto a ter acesso a todo um arsenal de substâncias para tratar de especificidades dos adoecimentos a loucura antes pouco diferenciada de outras questões de saúde pública ganha espaços teóricos e práticos que contemplem suas particularidades o que pode ser considerado um grande avanço no campo da saúde mental Foucault 19721978 Whitaker 2005 aponta contudo que é justamente no despontar desta nova era da psiquiatria que há uma explosão de casos de adoecimento psíquico pois apesar do declínio no número de internações o autor cita outros indicadores que sugerem maior incidência de indivíduos em sofrimento Whitaker também chama atenção para os efeitos 15 colaterais das drogas psiquiátricas sobretudo em relação a seu potencial de agravar a condição do indivíduo como consequência da alteração medicamentosa da química cerebral Neste ponto propomos articular o que Whitaker 2005 e Foucault 19721978 expõem a respeito do tratamento da loucura com determinadas características sociais em voga na pósmodernidade É possível traçar um paralelo entre a lógica farmacológica de tratamento do sofrimento humano com a lógica capitalista de produtividade em uma sociedade consumista não é de se admirar que a própria ideia de bemestar tenha se transformado em um produto Bauman 1998 2001 Harvey 19892017 Em um mundo onde tudo está à venda o indivíduo em sofrimento só precisa de um novo produto revolucionário para preencher o vazio e redirecionálo no caminho da busca constante pelo prazer Esta compreensão de mundo ainda que atraente por oferecer uma solução externa e relativamente rápida tornase cruel se considerarmos que de acordo com Whitaker 2005 a capacidade dos remédios de solucionar sequer os sintomas iniciais é questionável quanto mais agir sobre as causas subjacentes e os sentidos associados ao sofrimento humano O próprio papel do sofrimento condição integrante da vivência humana fica comprometido no imaginário social pósmoderno sendo este considerado como fenômeno intrinsecamente negativo e portanto algo que deve ser evitado Dantas Sá e Carreteiro 2009 em seu artigo A patologização da angústia no mundo contemporâneo fazem uma discussão notável da questão do ponto de vista fenomenológico apresentando a angústia como parte inexorável da vida Há para eles uma disposição afetiva fundamental que perturba a existência p7 a angústia tem como origem a realidade da morte e da finitude da vida podendo ser afastada à medida em que o indivíduo produz sentidos sobre ela e sobre a existência mas sendo em última instância impossível de ser eliminada Assim a sociedade contemporânea busca negar e esconder algo que é tão parte da 16 existência quanto a própria finitude do ser sugerindo curas e medicações que acabam por interferir no processo de produção de sentido e vivência plena como ser humano Nesta perspectiva apenas a escuta e o entrar em contato com a angústia podem transformála em disposição afetiva e produtora de sentido de vida Sartre 19432007 Heidegger 19272018 Quanto maior o silenciamento diante da manifestação dessa angústia menor a capacidade do indivíduo de produzir sentido sobre o existir e consequentemente maior seu sofrimento uma vez que o não acessar da angústia a extirpa de sua capacidade mobilizadora e produtora de mudança o que poderia ser uma explicação viável de porquê apesar do constante avanço da psiquiatria e das ciências farmacológicas a depressão e a ansiedade seguem tendo crescimento constante na contemporaneidade É com base nessa hipótese e adotando a perspectiva da angústia como disposição fundamental do existir Heidegger 19272018 Sartre 19432007 que propomos realizar as discussões deste trabalho consequentemente fazse necessária uma crítica à visão das perturbações psicológicas enquanto doença e sobretudo à cultura vigente de silenciar a angústia através da medicalização Reconhecemos a importância do uso de medicamentos em casos graves de sofrimento quando o indivíduo não se encontra em condição de pensar sua própria angústia e existência neste ponto é fundamental uma contenção dos sintomas mais graves a fim de possibilitar a reflexão e adaptação da pessoa à realidade do mundo É necessária entretanto uma crítica à atual cultura de medicalizar o sofrimento tendo em vista que este é parte componente da experiência humana e consequentemente há um risco de na tentativa de silenciar o incômodo provocado pelo sintoma silenciar também seu potencial expressivo reduzindo a experiência do ser de um indivíduo completo que tem o sofrer como parte fundamental da vivência humana para a de um sujeito vazio e despido de sentido Consideramos que compreender como doença as modalidades através das quais a 17 angústia se expressa é incorrer na armadilha de buscar camuflar algo que é intrínseco ao indivíduo Desta forma termos como adoecimento transtorno mental e correlatos serão utilizados aqui apenas em referência aos manuais diagnósticos que trazem esta concepção de saúde e doença imbricada em sua gênese e sempre colocados entre aspas a fim de evocar as reflexões acima realizadas Em nossa análise optaremos por compreender e significar a depressão ansiedade e demais manifestações da angústia com o termo sofrimento psíquico a fim de desatrelar a ideia de sofrimento da noção de adoecimento visando uma perspectiva do sofrimento enquanto parte fundamental da existência humana Costa 2014 Sofrimento e Sociedade Inquietações Iniciais Este trabalho nasce de uma inquietação florescida na prática clínica durante experiência de prestação de serviços a um plano de saúde exclusivo dos profissionais rodoviários em especial motoristas e cobradores de ônibus de transporte coletivo A grande maioria desses pacientes apresentava sintomas de depressão eou ansiedade que no decorrer do acompanhamento terapêutico identificaram como relacionados ao trabalho ou a fatores diretamente atrelados à suas condições de vida sobretudo dificuldades financeiras questões de gênero e raciais estresse e más condições relacionadas ao ambiente laboral Desta forma tornouse evidente que pessoas em condições análogas de vida estavam desenvolvendo sintomas semelhantes o que parecia não ser explicado pela visão clássica de desequilíbrio químico como produtor das chamadas doenças mentais Entretanto muito da prática clínica tradicional em Psicologia envolve ajudar um indivíduo supostamente adoecido a ressignificar suas vivências particulares como se o sofrimento fosse decorrente apenas da forma como a pessoa escolhe encarar a vida Paralelamente os próprios pacientes apresentavam uma percepção de estarem adoecidos ou incapazes de suportar a vida normal quando a vivência clínica sugeria que não estávamos tratando de uma dificuldade individual 18 e sim de algo que envolvia claramente as configurações sociais e a situação do mundo na qual os pacientes viviam Esta percepção ampliouse ao observar os dados de incidência de depressão e ansiedade no mundo estimativas da Organização Mundial de Saúde WHO 2017 apontam que em 2015 a ansiedade atingiu 36 da população mundial com um total de 264 milhões de pessoas apresentando essa modalidade de sofrimento naquele ano Este total representa um aumento de 149 dos casos em comparação com estimativas de 2005 variação atribuída pela OMS ao crescimento e envelhecimento populacional O índice de indivíduos afetados pela depressão é ainda maior representando 44 da população mundial no ano de 2015 Números tão significativos sugerem algo que realmente não pode ser contido na esfera individual algo que comunica uma mudança do sofrimento pessoal para um status de epidemia Torrey 2001 E em se falando de epidemia há que se pensar nas condições que favorecem seu surgimento Assim este trabalho surgiu a partir da indagação o que há na nossa sociedade que favorece o surgimento das modalidades específicas de sofrimento depressão e ansiedade Tavares 2010 considera que as queixas clínicas produzem de certa maneira um autorretrato de cada época seguindo este raciocínio consideramos que as condições do mundo dentro de cada momento histórico produzem formas particulares de subjetivação e consequentemente males específicos Analogamente as próprias concepções de sujeito e fazer científico se adaptam às características de cada tempo É possível portanto falar em um sintoma social como campo que engloba o singular da angústia do sujeito em concomitância com o universal de um malestar presente no campo social ou mesmo como expressão da própria angústia existencial caracterizadora da vivência humana O sintoma social tornase desta forma uma metáfora partilhada por um grupo do malestar submetida e provocada pelo discurso dominante de uma época 19 Vorcaro 2004 p 62 Assim há algo do sujeito e de sua vivência que é único da mesma maneira que parece haver algo de coletivo na maneira como o indivíduo se subjetiva percebe e lida com os sofrimentos aos quais está sujeito para não falar dos desafios e especificidades do sofrimento em si em cada sociedade relacionados à forma como este é percebido dentro de configurações sociais específicas Para compreender nosso problema portanto fazse necessário identificar as condições da época na qual o fenômeno se apresenta assim como delimitar as referências epistemológicas a partir da qual faremos nossa análise Desta maneira nossa questão começa a se apresentar como trifacetada temos os fenômenos depressão e ansiedade como foco de interesse cuja alta incidência ocorre na contemporaneidade ou seja na sociedade pós moderna e que abordaremos a partir de um referencial teóricofilosófico específico a saber a fenomenologia Buscando explicitar cada uma dessas facetas este trabalho será dividido em três partes em primeiro lugar definiremos as principais características da pósmodernidade como condição na qual os sujeitos estão inseridos capítulo 1 a seguir delinearemos o entendimento de fenômenos e ser humano baseados na fenomenologia e no existencialismo sobretudo nas ideias de Heidegger 19272018 e Sartre 19432007 a respeito da existência autêntica capítulo 2 por fim faremos uma análise fenomenológica dos critérios diagnósticos da depressão e ansiedade e buscaremos articular estes dados com o funcionamento social pósmoderno capítulo 3 a fim de criar um diálogo a respeito da experiência do sujeito que sofre com sintomas depressivos e ansiosos sob uma perspectiva coletiva de vivência humana em situação Sartre 19432007 ou seja que acontece no mundo e portanto é indissociável das condições que este mundo oferece Objetivos 20 O objetivo geral desta dissertação é propor um olhar alternativo sobre os ditos transtornos mentais comuns na pósmodernidade pautado em teorias fenomenológicas da existência visando analisar a relação entre características específicas do modelo socioeconômico vigente na sociedade ocidental e formas de sofrimento psíquico características desta época Para tal os objetivos específicos são levantar as principais características da pós modernidade explicitar a compreensão fenomenológica do sujeito realizar uma análise fenomenológica dos critérios diagnósticos da depressão e ansiedade e tecer considerações a respeito da relação entre as condições sociais pósmodernas e o fenômeno do sofrimento psíquico do tipo ansioso e depressivo Justificativas Teórica e Social Este trabalho justificase na perspectiva teórica pela aplicação do método fenomenológico a nosso objeto de pesquisa Apesar de seu impacto no pensamento contemporâneo a Fenomenologia ocupa espaço limitado no panorama nacional Holanda 2016 há portanto um solo rico de possibilidades de investigação aplicadas ao contexto brasileiro em especial no âmbito da psicologia clínica tendo em vista a estreita relação entre teorias fenomenológicas e a psicologia Holanda 2009 Ademais realizaremos um apanhado das características sociais de nosso tempo condensando a perspectiva de múltiplos autores em especial Bauman 1998 2001 2004 Lipovetsky Charles 20042018 e Harvey 19892017 a fim de identificar os principais pontos de acordância entre esses expressivos teóricos da pósmodernidade a respeito dos fatores que a compõem Complementarmente faremos a aplicação do método fenomenológico aos critérios relativos à depressão e ansiedade utilizados nos principais manuais diagnósticos CID10 e DSMV apresentando uma perspectiva teórica alternativa para a compreensão destes manuais 21 Sobretudo acreditamos que nossa pesquisa se justifica na perspectiva social em parte por termos a sociedade contemporânea como objeto de interesse mas principalmente por propor um olhar coletivo a questões que vem sendo tratadas tradicionalmente em âmbito individual Desta forma procuramos contribuir para uma clínica que contemple o indivíduo em situação e abarque em sua prática o olhar para questões sociopolíticas inclusive no sentido de ajudar os sujeitos a perceberem sua realidade nomundo Sartre 19432007 e a contribuição que as condições de vida acarretam na experiência de ser e consequentemente nas experiências de sofrimento e angústia 22 Capítulo 1 A Questão da PósModernidade A proposta de realizar uma análise de conjunturas da pósmodernidade que contribuem para a configuração subjetiva dos indivíduos acarreta alguns desafios em primeiro lugar há a dificuldade de se elaborar considerações sobre a época em que o próprio sujeito está inserido Bauman 1998 tendo em vista que certas configurações só vêm a ser compreendidas através de uma perspectiva histórica ou seja o entendimento dos momentos históricos beneficiase de uma análise em retrospectiva Em seguida há a questão da fluidez enquanto característica marcante da pósmodernidade que suscita a pergunta como definir algo que está em constante mudança Para além disso há a problemática da delimitação temporal quando de fato se inicia a pósmodernidade O próprio termo pósmodernidade é ponto de discordância entre os diversos autores que estudam a sociedade contemporânea cada qual defendendo o uso de uma nomenclatura específica para o período Antes portanto de procurar falar sobre as características desta nossa época e seu impacto sobre os indivíduos propomos nos debruçar brevemente sobre os pontos supracitados a fim de responder da melhor maneira possível a questão fundamental que será ponto de partida para as demais considerações aqui propostas o que afinal estamos chamando de pósmodernidade Berman 1998 afirma que retornar ao passado pode ser uma forma de ir adiante Este ato de relembrar pode ajudar a trazer o modernismo de volta às suas raízes de forma que possa se nutrir e se renovar para confrontar as aventuras e perigos que estão por vir Se apropriar das modernidades de ontem pode ser ao mesmo tempo uma crítica das modernidades de 23 hoje e um ato de fé nas modernidades e nos homens e mulheres modernos de amanhã p 36 Fazse portanto necessário investigar as origens as configurações socioculturais que propiciaram que o momento atual se desenvolvesse da maneira como o fez isso implica em abordar a modernidade enquanto momento precursor de nossa época seguindo a tradição dos autores aqui abordados cujas análises foram realizadas de maneira comparativa evocando o panorama moderno para delimitar e esclarecer a pósmodernidade enquanto um momento que de certa forma é o próprio desenrolar do projeto moderno Modernidade e o Projeto Moderno Osborne 1992 chama atenção para os desafios do problema de se definir modernidade tanto em relação à pósmodernidade quanto como categoria em si Sua análise desta temática parte da divisão do conceito de modernidade em três pontos distintos período histórico qualidade de vivência social e projeto incompleto Ao levantar a questão de que a ideia da modernidade em si marca uma nova maneira de periodizar a história criando uma distinção entre o tempo histórico no qual a modernidade se desenrola e o que o autor chama de a lógica do modernismo Osborne 1992 defende a existência de um senso abstrato do significado histórico do presente p26 que culmina em um entendimento da modernidade que distancia a contemporaneidade da própria época em que se classifica separando de certa forma o presente mesmo do passado mais recente tornandose algo que acontece e ao mesmo tempo continua acontecendo p30 O autor inclinase portanto em direção a uma interpretação da modernidade como uma categoria qualitativa e não cronológica A análise de Osborne 1992 evoca mais uma vez os desafios de se buscar compreender modernidade e pósmodernidade sob uma ótica históricotemporal ponto que esclarece as discordâncias entre as análises de múltiplos autores em relação a quando se inicia 24 e quando ou se se extingue a modernidade e iniciase a pósmodernidade Para alguns a modernidade é um projeto que ainda está acontecendo Osborne 1992 outros situam seu final em épocas divergentes Bauman 1998 Harvey 19892017 ou ainda defendem que a própria pósmodernidade foi um período de adaptação e que já estamos vivendo uma hipermodernidade Lipovetsky Charles 20042018 Harvey 19892017 p 22 afirma que a transitoriedade das coisas dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica Sabidamente a transitoriedade é uma das características mais marcantes da pósmodernidade como pretendemos mostrar mais adiante Assim tendo em vista a dificuldade de se tecer um panorama claro de nosso próprio tempo e as múltiplas divergências entre os teóricos da pósmodernidade a análise aqui proposta não pretende se vincular a uma teoria específica que objetive compreender de maneira estruturada o fenômeno ao invés disso optamos por tirar o foco das divergências e levantar os pontos de concordância entre as principais teorias disponíveis com o objetivo de apresentar um quadro que não pretende ser completo mas que contemple os principais aspectos indiscutivelmente caracterizantes de nossa época Neste ponto fazse necessário explicar que a escolha pelo uso do termo pós modernidade nas considerações aqui tecidas não foi realizada com a intenção de endossar nenhuma teoria em particular pelo contrário optamos pelo termo que parecia mais popular enquanto descritor de um fenômeno em diversas instâncias acadêmicas tendo sido utilizado nas obras de teóricos de diversas disciplinas como antropologia sociologia geografia etc além de amplamente discutido na mídia A decisão por utilizar esse termo passa portanto pelo desejo de adotar uma nomenclatura que seja o mais neutra possível com o objetivo de distanciar o presente trabalho das divergências entre as teorias dos grandes estudiosos da área e em seguir a proposta de desenvolver um quadro geral que sirva ao objetivo de contextualizar as possibilidades 25 subjetivas do nosso tempo para em seguida analisar o impacto dessas transformações em uma perspectiva micro ou seja focada no indivíduo suas potencialidades modos de relação e sofrimentos Para tal iniciamos com a tentativa de descrever a modernidade como ponto de partida da formação da sociedade pósmoderna Berman 1988 define modernidade como um modo de experiência vital do espaço e tempo do self e dos outros das possibilidades e perigos da vida que é compartilhado por homens e mulheres do mundo inteiro atualmente p 15 Para ele ser moderno é estar em um ambiente que nos promete aventura poder alegria crescimento transformação de nós mesmos e do mundo e ao mesmo tempo que ameaça destruir tudo o que temos tudo o que conhecemos tudo o que somos Berman 1988 p 15 Mas como exatamente se desenvolveu esse modo de experiência e de organização social e quais são suas características Em sua obra Berman 1988 divide a modernidade em três fases a primeira entre o início do século XVI e o final do século XVIII onde os indivíduos começam a experienciar a modernidade porém sem consciência desta A segunda fase se inicia com as ondas revolucionárias da década de 1790 onde o sentimento de revolução conviveu com a memória de uma sociedade absolutamente tradicional é a partir da dicotomia entre essas duas modalidades sociais que as ideias de modernização e modernismo despontam e começam a se desenvolver Podese afirmar que é a partir desse momento que a modernidade começa a se caracterizar enquanto projeto Na terceira fase iniciada no século XX o processo de modernização passa a se estender para envolver o mundo todo desenvolvendo uma cultura de modernismo que se fragmenta à medida em que se expande processo que resulta na perda da capacidade de fornecer sentido à vida das pessoas Berman 1988 p 17 26 Neste movimento de desenvolver uma nova forma de configuração social Berman 1988 destaca alguns pontos característicos do que veio a se tornar a modernidade as grandes descobertas e o desenvolvimento científicotecnológico a industrialização da produção criação de novos ambientes e destruição de antigos aceleração no tempo da vida geração de novas formas de poder corporativo e de classes sociais crescimento urbano acelerado sistemas de comunicação de massa crescimento do poder do Estado burocracia busca por expansão da influência de alguns países sobre os demais surgimento de movimentos sociais altamente expressivos e sobretudo o mercado capitalista e suas flutuações De certa forma falar de modernidade e de pósmodernidade é falar de capitalismo O projeto moderno surge de maneira indissociável do desenvolvimento deste modelo socioeconômico podese portanto afirmar que há uma confluência entre os modos de configurações sociais modernos e consequentemente pósmodernos e o projeto econômico do capitalismo de tal forma que ao analisar as relações humanas a partir do século XVIII facilmente se encontra a lógica do mercado imbricada nas modalidades de interações sociais e nas possibilidades de vida disponíveis em cada fase da idade moderna Assim a pós modernidade se relaciona com o chamado capitalismo tardio da mesma forma que a modernidade do início até meados do século XX se relaciona com o capitalismo fordista Harvey 19892017 Harvey 19892017 realiza uma análise minuciosa das mudanças no capitalismo fordista que podemos associar diretamente às condições da modernidade no momento histórico que sucede a segunda revolução industrial final do séc XIX sua evolução para uma forma flexível de acumulação de capital e as transformações socioculturais decorrentes deste processo 27 Considerase que há uma materialização do regime de acumulação que toma a forma de normas hábitos leis redes de regulamentação etc que garantem a unidade do processo Harvey 19892017 p117 ou seja que para o sistema funcionar de maneira mais ou menos equilibrada na esfera econômica é necessário adaptar toda a sociedade e a cultura às demandas desse sistema Esta influência opera nos mais diversos âmbitos sejam eles materiais expressos na arquitetura nas artes nas instituições etc sejam subjetivos expressos nos modos de relação nas possibilidades subjetivas na produção de desejos e formas de organização cultural entre outros Essas considerações evidenciam a dimensão do fenômeno que propomos abordar assim como a dificuldade da tarefa Berman 1988 em sua busca por interpretar o modernismo através de um prisma marxista afirma que as energias insights e ansiedades características desse modo de funcionamento moderno surgem a partir do direcionamento e das tensões da vida econômica moderna de sua pressão insaciável e sem limites pelo crescimento e progresso da expansão dos desejos humanos para além dos limites locais nacionais e morais da demanda de que as pessoas explorem não apenas outras pessoas mas elas mesmas a volátil e sem fim metamorfose dos valores no turbilhão do mercado mundial a destruição impiedosa de todos e tudo que não puder ser usado Berman 1988 p 121 Assim a sociedade moderna se vincula de maneira indissociável com o modelo econômico de produção que é característico dessa época de tal forma que tratar do sofrimento psíquico dos indivíduos modernos e pósmodernos é também tratar do sofrimento proporcionado pelas condições de subjetivação presentes no capitalismo Osborne 1992 tece uma crítica à ideia de pósmodernidade enquanto um momento histórico que sucede à modernidade considerando que o projeto moderno ainda está em desenvolvimento e argumentando que o tornarse pósmoderno consiste em permanecer 28 moderno Referenciando Lyotard Osborne apresenta a citação O que é então o pós moderno Sem dúvida parte do moderno Pósmodernismo não é modernismo em seu final mas em seu estágio nascente e esse estágio é constante Lyotard 1984 p79 citado em Osborne 1992 p29 É importante frisar que Lyotard adota o termo pósmoderno definindoo como uma atitude de incredulidade em relação às metanarrativas as quais podem ser consideradas como a base do pensamento moderno enquanto um projeto social Lyotard 19791984 Bauman 1998 apresenta a ideia da modernidade como uma época de certezas sólidas onde as instituições e o Estado cooperavam em busca do progresso do desenvolvimento de uma sociedade ideal e evoluída Havia uma noção de verdade e de ponto máximo da evolução em direção ao qual a humanidade como um todo deveria caminhar presente de forma marcante na primeira metade do século XX É em parte a crise nesse paradigma aliada ao desenvolvimento de novas configurações do capitalismo e às transformações sociais que se seguiram que marcam o surgimento do conceito de pósmodernidade não como um novo período que se opõe à modernidade como esta propõe oporse à Idade Média como aponta Osborne 1992 e sim como um novo estágio daquilo que foi a modernidade que não se dissocia completamente do projeto moderno mas que se diferencia inquestionavelmente daquilo que se apresentava como modernidade no século passado Assim mais uma vez se evidencia como a tarefa de falar da pósmodernidade passa necessariamente pela análise da modernidade pois em certo sentido ser pósmoderno é ser moderno em um grau diferenciado Harvey 19892017 situa o início da modernidade enquanto projeto no século XVIII quando havia uma espécie de otimismo generalizado expresso pela crença de que o desenvolvimento científico e social culminaria na libertação do ser humano das irracionalidades revelando qualidades universais e imutáveis da humanidade a tradição 29 iluminista seguiu essa ideia abraçando a necessidade de mudança e reconstrução como parte fundamental do processo de construção de uma sociedade ideal racional e universal O autor aponta indícios entretanto de que tal projeto acabaria por caminhar em direção a um sistema de opressão generalizado uma vez que a construção dessa sociedade ideal perpassaria necessariamente por um controle ativo das possibilidades de existência como evidenciado por Foucault em sua análise da sociedade disciplinar 19752014 ou naquilo que Bauman 1998 caracteriza como a produção dos estranhos modernos Bauman 1998 afirma que toda sociedade produz estranhos aqueles que não se encaixam no mapa cognitivo moral ou estético do mundo p27 A partir do momento em que cada sociedade é regida por regras específicas de conduta os indivíduos que de certa forma confundem ou flexibilizam essas regras são considerados uma ameaça ao funcionamento social No modernismo a questão dos estranhos se faz excepcionalmente presente tendo em vista a característica do projeto moderno de transformar a questão da identidade de algo que era herdado ou atribuído em uma realização cuja responsabilidade era atribuída ao próprio indivíduo assim havia um firme vínculo entre a ordem social como projeto e a vida individual como projeto Bauman 1998 p 31 e se não fossem os esforços coletivos com o fim de assegurar um cenário de confiança duradouro estável previsível para atos e escolhas individuais construir uma identidade clara e duradoura seria quase impossível Bauman 1998 p 31 O pacto era do indivíduo se construir como ser civilizado enquanto o Estado garantiria as condições para tal e aqueles que quebrassem esse pacto os estranhos deveriam ser assimilados ao projeto moderno ou eliminados de forma a não atribular o plano idealizado de progresso Consequentemente tratavase de uma sociedade predominantemente sólida de certezas concretas 30 A modernidade então pode ser definida como a época em que uma pretensa noção de liberdade e igualdade que na prática não estava disponível para todos se opunha ao tradicional em busca de uma emancipação coletiva da humanidade a qual deveria ser obtida através dos esforços individuais de cada cidadão e de um direcionamento cuidadoso por parte do Estado e das instituições Esse projeto entretanto passa a ser regido pelas disciplinas e por um controle social expresso pelo crescimento do poder estatal e ameaçado pelas crises e desafios decorrentes desse modo de organização produzindo uma sociedade que paradoxalmente buscava o progresso o novo e o tecnológico ao mesmo tempo em que temia as diferenças e as mudanças na ordem que a regia e nas tradições que a própria modernidade começava a instituir Para fins desta discussão considerando o objetivo de comparar com a pós modernidade pretendemos focar na modernidade do início até meados do século XX altura em que começa a sofrer transformações significativas que culminam em um consenso de que há uma alteração nas práticas e formações discursivas que diferenciam o período pós moderno dos pressupostos do período que o precede Harvey 19892017 Permeada por essa lógica desenvolvimentista a modernidade se configura no âmbito social por uma marcada tradição da instituição familiar pelo levante de movimentos sociais em prol dos direitos de grupos minoritários pelas organizações sindicais movimentos de liberação sexual e rompimento com tradições antigas No âmbito econômico podemos citar o acelerado desenvolvimento tecnológico industrial a expansão dos meios de produção e crescimento do setor secundário o uso em larga escala dos modelos fordista e taylorista de produção fabril aumento das exportações e formação do capital financeiro surgimento das grandes indústrias e conglomerados e marcada tendência de expansão do projeto moderno através do imperialismo 31 O próprio imperialismo merece destaque uma vez que em seu movimento de espalhar os dispositivos do mercado para o resto do globo transportou também manifestações culturais e lógicas discursivas e disciplinares da sociedade ocidental para outros campos do planeta De fato a globalização é um bom exemplo de como frequentemente a lógica do capital e os ideais do projeto moderno caminharam lado a lado de tal forma que é difícil separar o que seria do âmbito de cada um O movimento de expansão do comércio e do capital para países asiáticos e para aqueles que eram considerados na divisão socioeconômica da época como de terceiro mundo simultaneamente serviu às necessidades de mercado de encontrar novos consumidores e mão de obra mais barata e ao discurso do modernismo que pregava um único modelo de sociedade do progresso como ideal para todos os seres humanos cujos valores deveriam ser transmitidos ao países considerados menos civilizados As implicações dessa retórica foram evidentes aniquilação de potencialidades culturais dos países menos desenvolvidos economicamente surgimento de uma marcada onda de neocolonialismo a necessidade da criação de um Estado forte e capaz de ditar as regras de controle a fim de dirigir os seres humanos rumo ao tão almejado progresso considerando aqueles que não seguiam os passos dessa caminhada como empecilhos a serem removidos na estrada para o desenvolvimento Esta visão do papel do Estado permeou todas as grandes teorias políticas da época a democracia intervencionista dos EUA o socialismo da URSS o nazismo alemão e demais movimentos fascistas europeus todos pautados em uma corrente de pensamento que propunha eliminar os inimigos em nome de um sistema supostamente mais evoluído sobre o qual se afirmava em última instância que beneficiaria a todos os seres humanos ou mais especificamente a todos considerados por cada sistema como dignos do título de humano 32 Alguns marcos históricos podem ser citados como consequência dessa forma de política as grandes Guerras Mundiais e a própria Guerra Fria podem ser analisadas sob um prisma de resultado da tentativa de Estados dominadores estenderem globalmente sua influência as crises econômicas seja a Grande Depressão de 1929 nos EUA ou a Grande Fome chinesa marcam falhas gravíssimas em sistemas políticos que prometiam ser o único caminho para uma sociedade plena O custo humano das ditaduras na América Latina também deve ser mencionado uma vez que o movimento de tomada de poder através de forças militares participava do discurso anticomunista e defendia os interesses do capital assim como do projeto moderno Em suma as implicações históricas e as falhas aparentes do sistema sociopolítico vigente na época acabaram por promover uma onda de descrença e o fim do otimismo tão presente no discurso iluminista e no surgimento dos ideais modernos A partir da segunda metade do século XX há uma notável crise de paradigmas expressa tanto nas ciências quanto na descrença da população em relação à política na onda de oposição popular a novas guerras no surgimento de movimentos de contracultura como o hippie que se opunha à lógica de mercado tradicional entre outros É a partir desse momento que a certeza do progresso começa a ruir e ser substituída por uma falta de horizonte e sentido que se faz marcadamente presente ainda na pós modernidade É neste processo também que as certezas e a solidez modernas começam a ser questionadas e substituídas pelas múltiplas possibilidades e por um ritmo tão diferente de mudanças que já não caberia naquilo que foi o projeto moderno A partir desse movimento começa a despontar nosso foco de interesse aquilo que estamos chamando de pós modernidade Em resumo o indivíduo moderno do séc XX existia em um mundo de certezas mais ou menos definidas de instituições sólidas e com um Estado forte que com sua política de 33 bemestar se responsabilizava em suprir de certa maneira os custos humanos do capitalismo Bauman 1998 Os ideais de liberdade e democracia estavam em voga e os modos de relacionamento tendiam para vínculos sólidos e duradouros com a religião ainda ocupando importante papel em manter estruturas firmes como a família e um conjunto específico de regras de conduta social Obviamente essa configuração não significa que os sujeitos modernos vivessem em um mundo estável como comprovado pelas diversas transformações históricas guerras e crises que eclodiram no século passado mas sim que as estruturas da sociedade estavam organizadas de tal maneira que havia possibilidade de o sujeito construir um plano de futuro relativamente concreto Podese afirmar que o principal luxo que o humano moderno possuía imerso como estava em um momento histórico que buscava promover mudanças e que se perdeu quando entramos na pósmodernidade estava expresso nas condições de vida estáveis o suficiente para que se pudesse prever mais ou menos um horizonte de possibilidades e a partir daí realizar planos sólidos para o futuro Veremos mais adiante como essa perspectiva fica ameaçada com a modalidade pósmoderna de funcionamento social desenvolvendo o pensamento de Lipovetsky Charles 20042018 A pósmodernidade representa o momento histórico em que todos os freios institucionais que se opunham à emancipação individual desmoronam e desaparecem As grandes estruturas socializantes perdem sua autoridade as grandes ideologias já não trazem nada de novo os projetos históricos já não mobilizam o campo social é apenas o prolongamento da esfera privada a era do vazio instalase p 25 PósModernidade e a Era do Vazio A pósmodernidade tendo em vista as considerações acima tecidas pode ser compreendida ao mesmo tempo como uma continuação adaptação e crise do projeto 34 moderno É nessa época que fica evidente a falha do Projeto das Luzes Lipovestky Charles 20042018 e de diversos outros paradigmas modernos seja nas ciências nas ideologias ou nas estruturas sociais como a família tornandose necessária uma substituição de certos modelos Porém é precisamente pela forma como essa substituição ocorre que a pós modernidade se caracteriza como uma evolução da modernidade pois não houve exatamente uma ruptura as estruturas foram adaptandose e transformandose em uma espécie de mutação descontrolada do cuidadoso projeto moderno de construção da sociedade ideal Em parte por essa razão que a tarefa de situar historicamente a pósmodernidade é tão complexa Podemos tomar a queda do Muro de Berlim como o evento histórico que marca o início dessa nova forma de organização social uma vez que este acontecimento simboliza o fim das grandes batalhas ideológicas do século passado De fato é possível traçar uma diferença entre as guerras ocorridas no século XX principalmente até a década de 80 incluindo a Guerra Fria e as ocorridas posteriormente se argumentarmos que as primeiras foram decorrentes de conflitos ideológicos e da tentativa de estender influência política capitalista sobre outros modelos de sociedade e que as últimas podem ser mais relacionadas à expressão de interesses mercadológicos em uma sociedade já quase exclusivamente capitalista a nível global Essa ruptura nas ideologias sólidas é um grande marco da pósmodernidade e possivelmente a maior diferença entre o projeto moderno e o que hoje ocorre a nível de configurações discursivas que regem a nossa sociedade Podemos entender algumas mudanças por exemplo a criação dos meios de comunicação de massa e o boom tecnológico como uma evolução natural daquilo já ocorria na modernidade com a busca pelo máximo desenvolvimento técnicocientífico é possível também pensar certas alterações nos modos de relacionamento e quebras nas tradições modernas como fruto do próprio projeto de busca pela liberdade individual e resultado direto de lutas sociais como é o caso da instituição familiar 35 tradicional que hoje se vê completamente reconfigurada para acolher modalidades de família que abarquem a emancipação feminina e os direitos LGBTQ É na crise das ideologias sólidas entretanto que a pósmodernidade demonstra uma ruptura com o projeto moderno e sendo possível argumentar que é justamente a partir desta crise que se desenvolvem as grandes transformações sociais que fogem ao escopo do que era o projeto moderno De certa maneira no modernismo a lógica do mercado servia como apoio como meio para um fim que propunha em última instância a obtenção da emancipação do ser humano Agora parece que a lógica do capital engoliu as diversas ideologias transformandoas em produtos que podem ou não ser adquiridos mas cuja necessidade tornase de certa forma obsoleta uma vez que a organização sociopolítica contemporânea parece ser composta não pelo mercado alimentando um projeto específico e sim por uma retroalimentação do capital que passa a sujeitar todos os outros aspectos da configuração pósmoderna à sua própria lógica de uma maneira terceirizada Em algum momento do percurso quando a própria noção de sociedade ideal se deteriora abrese espaço para a aceitação das diferenças como algo positivo Bauman 1998 enquanto paradoxalmente o imperialismo cultural e o intervencionismo continuam a espalhar para o mundo atualizações dos moldes de relação da sociedade capitalista contemporânea Há neste ponto uma transformação do que seriam os estranhos o que pode ser considerado mais uma evidência de que houve uma transformação social clara Atualmente o estranho não é mais aquele que é diferente no sentido de não seguir regras de comportamento determinadas como civilizadas O estranho pósmoderno é aquele que não participa da lógica do capital ou seja que não exerce seu papel de agente do consumo Bauman 1998 A dignidade humana não está mais vinculada a um padrão específico de comportamento social o novo e o diferente passam a ser considerados 36 aceitáveis e até mesmo desejáveis desde que possam ser consumidos e deixados de lado de acordo com os interesses individuais e de mercado Um exemplo deste fenômeno é a maneira como as próprias lutas de classe de raça e por direitos das minorias no geral passam a ser comercializadas ironia expressa na quantidade de camisetas vendidas com estampa de líderes revolucionários como Che Guevara na variedade de produtos estéticos que apresentam rótulos feministas ou na quantidade de empresas que hoje oferecem opções veganas enquanto continuam comercializando produtos confeccionados à base da exploração animal Dessa forma as próprias modalidades de resistência e tentativas de transformação do sistema são incorporadas em um processo no qual muito pouco há que não possa ser comercializado as ideias surgidas a partir das lutas de movimentos sociais se tornam também mercadorias Falar em comunismo por exemplo não é mais por si só uma ameaça à ordem social até porque esta ordem social também já não é um projeto específico Na era da liberdade todas as ideologias são válidas desde que possam ser comercializadas de alguma forma convertendose assim em alimento para o mercado Assim podemos traçar um paralelo entre a complexidade da época pósmoderna com o mito da hidra animal mitológico composto por diversas cabeças que quando cortadas imediatamente dariam origem a outras Ao se desvencilhar de um projeto específico a organização social capitalista se torna muito mais difícil de compreender pois sua estruturação já não passa por um único eixo acontecendo em uma espécie de autogestão intrincada onde as diversas partes envolvidas buscam fazer o possível para influenciar o sistema de forma a melhorar cada vez mais sua própria condição em detrimento da coletividade Esta transição entre o pensamento coletivo apoiado na proposta de organizar a sociedade como um todo e a lógica individualista vigente onde cada um é responsável por si 37 merece também destaque como uma das grandes diferenças entre a modernidade e aquilo que veio depois Podemos portanto afirmar que parte da enorme dificuldade em definir o que é o nosso momento atual é devida ao fato de que não é uma época exatamente passível de definições sendo essa possivelmente sua maior característica A pósmodernidade é um período de rupturas de constantes transformações de referências flutuantes e é possível que a tarefa de a definir por completo esteja sempre fadada à incompletude tendo em vista as dificuldades inerentes à esta fluidez Uma vez tendo em mente essa característica podemos nos esforçar para delinear um esboço do fenômeno à medida em que o comparamos com a modernidade do final do século XIX e início do século XX É a partir da evidenciação das diferenças entre este recente passado e o agora que se propõe começar a especificar o que é afinal o nosso momento e a partir daí o que podemos inferir a respeito do ser humano contemporâneo e seus modos tão específicos de sofrimento Vamos a seguir delinear as principais características da pós modernidade buscando contextualizálas em relação com o modelo moderno de funcionamento social Como anteriormente exposto a sociedade moderna era sobretudo uma sociedade de certezas a política as instituições os modos de relação todos eram pensados para durar seguindo a ideia de que a humanidade estava cada vez mais próxima da fórmula ideal de organização de uma sociedade que purificasse a natureza humana mantendo apenas nossas potencialidades A pósmodernidade como vimos é marcada justamente pela ausência de certezas o que Bauman 1998 nomeia de liquidez e o que Berman menciona quando cita a afirmação de Marx de que tudo que é sólido dissolvese no ar Berman 1988 p 240 Mas uma vez que o discurso do progresso já não serve como substituílo 38 Neste ponto podemos citar a terceirização como um fenômeno marcante da pós modernidade Não apenas a terceirização dos serviços mas principalmente a terceirização das responsabilidades e da tarefa de atribuir sentido às coisas Se a modernidade ofereceu a condição de transformar a identidade do indivíduo de atribuição algo de sua natureza em um projeto que consequentemente pode ser construído por cada um Bauman 1998 podemos dizer que a pósmodernidade transformou esse projeto em um produto ou uma série de produtos O indivíduo passa a ser uma equação entre aquilo que consome e aquilo que produz ou seja sua identidade passa a ser elaborada a partir do seu papel no jogo do mercado Dentro desta lógica podemos considerar que o humano pósmoderno é mais livre em termos da quantidade de opções à sua disposição já que não se acredita mais em sociedade ideal de repente abrese as portas para múltiplas possibilidades políticas religiosas subjetivas É facultado ao indivíduo o direito de ser aquilo que quiser desde que possa arcar com os custos dessa vivência Assim a dignidade humana passa a ser medida através de seu acesso aos bens de consumo e seu valor é medido através de sua eficácia enquanto consumidor A qualidade de vida passa também a ser perpassada pelo fenômeno da terceirização a responsabilidade de garantir uma sociedade estável e o bemestar de todos migra das mãos do Estado para o colo de cada um devendo cada sujeito fazer o possível para obter suas condições ideais de desenvolvimento dentro de uma lógica marcadamente meritocrata Se antes era papel do Estado dar conta do custo humano gerado pelo sistema econômico cuidando por exemplo dos trabalhadores que este sistema requeria que fossem mantidos como mão de obra excedente para seu bom funcionamento hoje em dia se acredita que já não podemos arcar com tais custos a visão do desempregado transformase da figura de alguém que está em um momento de másorte e precisa de capacitação para retornar ao 39 mercado para alguém que drena os recursos daqueles que realmente contribuem para a sociedade Bauman 1998 Considerando então a influência da lógica do capital optamos por iniciar nossa tarefa de discorrer sobre a pósmodernidade do ponto de vista econômico A sociedade pósmoderna é marcada pela terceira revolução do capitalismo desenvolvimento tecnológico acelerado armas nucleares terceirização dos serviços precarização das condições de trabalho enfraquecimento dos movimentos sindicais consumo e comunicação de massa Como consequência houve o surgimento de diversos novos setores de serviços e produtos damos destaque para o setor de informação Bauman 1998 Harvey 19892017 Atualmente o comércio de dados a respeito dos indivíduos visando estabelecer seus padrões de consumo e criar necessidades específicas para cada um é um dos negócios mais lucrativos existentes Podemos pensar nas consequências que a mercantilização da informação acarreta para a sociedade sendo a mais óbvia a hiper exposição e o comprometimento da privacidade De fato a própria noção de privacidade sofreu uma grande transformação com o advento dos meios de comunicação em massa Para Bauman 1998 as fronteiras entre o público e o individual se fragilizaram Lipovetsky traz a noção de moda enquanto manifestação do individual que marca a possibilidade do indivíduo pósmoderno de se construir e evidencia as múltiplas possibilidades de ser na contemporaneidade Lipovetsky Charles 20042018 Novamente estamos abordando um fenômeno social que traz consigo a lógica de mercado seja utilizando as informações veiculadas para propaganda seja divulgando através das mídias sociais a ideia de uma vida perfeita como é o caso dos influenciadores digitais Não buscamos afirmar que o fenômeno da flexibilização da divisão entre público e privado deuse exclusivamente em decorrência de uma organização capitalista mas não há como discutir que o mercado se apropriou desse fenômeno para seus próprios interesses De 40 qualquer maneira noções abstratas como felicidade empoderamento e saúde são corriqueiramente associadas ao consumo de produtos específicos e a divulgação da vida pessoal está muito ligada ao consumo de bens e serviços postar fotos de determinados produtosvivências assim como à divulgação de determinados estilos de vida influenciadores fitness de moda entre outros Podemos marcar dois fenômenos que acompanham o boom nos meios de comunicação em massa e o surgimento dessa sociedade do espetáculo Bauman 1998 em primeiro lugar as novas formas de controle social exercidas pelos governos e empresas que têm acesso a uma infinidade de dados sobre os indivíduos suas preferências padrões de consumo inclinações políticas etc Podemos citar o Patriot Act dos EUA ou a Lei Antiterrorista brasileira como exemplos dessa nova modalidade de controle dos governos que no caso dos EUA permite a interferência do Estado nos dados privados dos cidadãos e no caso brasileiro permite o controle e repressão de manifestações sociais Além dos dispositivos de vigilância institucionalizados podemos citar diversos escândalos como evidências de abuso de poder por parte dos governos como o caso denunciado pelo Wikileaks de espionagem internacional perpetrada pelos EUA Nunes 2018 Além disso empresas privadas participam do comércio legal ou não de dados e informações a respeito dos indivíduos Em segundo lugar a maneira como as pessoas se relacionam parece ter sido profundamente afetada pelo uso da internet e das redes sociais de tal forma que o fenômeno da flexibilização da privacidade ocorre também a nível relacional É importante ressaltar a frequência e a qualidade das comunicações muito diferentes do que era possível na era moderna Se no século XX o indivíduo só tinha a possibilidade de ver sua vida exposta a público através da mídia tradicional como jornais e revistas atualmente qualquer um com 41 acesso à internet pode divulgar os detalhes mais particulares de suas experiências e ser lido e compartilhado por milhares de pessoas ao redor do globo Tornase viável também o acesso a outras culturas e indivíduos abrindo possibilidade de novas modalidades de relacionamento como o chamado webnamoro onde indivíduos que nunca se encontraram pessoalmente iniciam um relacionamento romântico fóruns como o Reddit que possibilitam a discussão de interesses similares entre desconhecidos ou a modalidade de sexting que incorpora as redes sociais nas práticas afetivas e sexuais Atualmente o uso das tecnologias tornase cada vez menos opcional e mais obrigatório Se o ser humano é um ser social e as mídias regem as formas de se relacionar então fazse necessário tomar parte delas sob pena de ser excluído de determinados círculos Um exemplo dessa tendência são os convites para eventos sociais como festas de aniversário ou reuniões que frequentemente são realizados apenas através do Facebook sendo necessário que o indivíduo participe dessa rede para poder ser incluído Se considerarmos a presença online como praticamente mandatória a necessidade de aparentar ser bemsucedidopopular fazse ainda mais compreensível de certa forma as redes sociais tornaramse um cartão de visitas uma imagem pública daquilo que cada um é ou tem a oferecer enquanto indivíduo Desta maneira abrese a vida para o julgamento coletivo e tornase de extrema importância se apresentar sob uma luz o mais favorável possível É nesse sentido que podemos afirmar que vivemos na era em que o parecer suplanta o ser tendo em vista que aquilo que se apresenta para o mundo é mais valorizado do que ações concretas como expresso no atual dito popular se não postou foto não aconteceu Podemos pensar na questão das redes sociais como expressão de um fenômeno social maior que pode ser definido como o impulso da individualização Com a queda das grandes ideologias o humano pósmoderno tornase um ser que se preocupa consigo mesmo e suas próprias necessidades em exercer sua liberdade o máximo possível com o mínimo de limites 42 e compromissos Se por um lado desejamos estabilidade por outro não queremos perder as possibilidades o que fica muito evidente nas formas pósmodernas de se relacionar Não é à toa que a pósmodernidade trouxe a desconstrução da ideia de monogamia e do casamento como estágio necessário da vida e colocou em voga novas propostas de vínculos como o poliamor relacionamento sério com múltiplos parceiros os relacionamentos nãomonogâmicos e uma maior valorização nas experiências da vida de solteiro Da mesma forma houve transformação nos vínculos familiares assim como um enfraquecimento da noção tradicional em prol de uma concepção mais abrangente de família Em todos os âmbitos relacionais incluindo as amizades parece haver uma lógica mercantilista que permeia a forma como os indivíduos pósmodernos se relacionam não é mais sobre construir um vínculo em si pois este vínculo pode ser quebrado com facilidade uma vez que nada é constante e sim sobre uma espécie de mutualismo onde pessoas constroem relações baseadas na troca de interesses que podem facilmente ser interrompidas quando deixam de ser vantajosas para uma das partes Podemos detectar portanto uma marcada tendência para o individualismo Em um mundo onde já não há um objetivo social comum e os vínculos se encontram fragilizados o ser humano se direciona para a satisfação da maior quantidade possível de impulsos fenômeno expresso no consumo exacerbado e na acumulação de bens enquanto parte do cotidiano dos indivíduos Através do marketing os produtos deixam de ser apenas itens de necessidade e passam a carregar um status como é o caso das roupas de grife ou de marcas que afirmam ser comprometidas com causas sociais A construção da identidade do indivíduo perpassa também por aquilo que este consome Desta forma todos são livres para escolher sua identidade que se apresenta não mais necessariamente como um projeto como na era moderna mas como um conjunto de práticas e principalmente de itens aos quais o indivíduo se vincula Esta identidade pode facilmente ser 43 alterada mas necessariamente estará vinculada às práticas do mercado no sentido de que existem produtos específicos voltados para cada grupo identitário e esperase um alinhamento dos hábitos de consumo do sujeito ao seu projeto de identidade O indivíduo pósmoderno é portanto em primeiro lugar mutável pois renuncia à segurança das certezas sólidas em prol da aparente liberdade de poder fazerse como quiser Bauman 1998 Porém se já não há solidez como é possível construir um projeto identitário Neste ponto os desejos produzidos pela mídia parecem passar a se configurar como suplentes da necessidade de um projeto existencial como será posteriormente discutido Os modos de relação também permeados pela lógica do mercado constituem um plano relacional líquido como afirma Bauman 1998 Tudo isso contribui para uma configuração social marcada pela ausência de estabilidade Do ponto de vista político podemos considerar um rompimento com as grandes ideologias senso geral de insatisfação descrença dos ideais de democracia e atualmente um avanço das ondas conservadoras marcado pelo crescimento da extremadireita em diversos países e pelo neofascismo David Harvey 19892017 afirma haver à época da publicação de sua obra Condição PósModerna um consenso de que o capitalismo está em crise Essa sensação de desestrutura políticosocial também pode ser percebida nas ondas de manifestações sociais que eclodiram em diversos países nos últimos anos Trazendo como exemplo o caso do Brasil entre o ano de 2012 e 2013 eclodiram movimentos populares que pareciam ter características muito peculiares milhares de brasileiros foram às ruas levantar uma série de pautas não sendo incomum encontrar em uma mesma passeata pessoas contra e a favor do governo vigente à época protestos contra tópicos gerais como a corrupção e específicos como o aumento da passagem de ônibus e outros projetos de lei que dificultariam a vida da população É interessante observar como um movimento autêntico e apartidário que parece ter eclodido de forma mais ou menos 44 espontânea com o tempo foi sendo apropriado pela mídia promotora de um redirecionamento da insatisfação popular em prol de uma agenda política e econômica favorável aos interesses neoliberais no país Tatagiba Galvão 2019 Assim a política parece estar sujeita também à uma nova lógica onde a crítica ao modelo proposto já não é uma ameaça per si uma vez que já não se preza por uma ordem social única Em não havendo um projeto moderno a ser defendido as ameaças ao sistema deixam de ser da ordem ideológica de fato as ideias de liberdade permitem que atualmente cada indivíduo expresse suas convicções políticas podemos até mesmo argumentar que a prática social em torno da discussão ideológica alterouse visto que há algumas décadas política e religião por exemplo eram considerados assuntos tabus enquanto hoje se incentiva que as pessoas se posicionem e debatam entre si É nesse sentido que se pode falar de uma lógica mercadológica que se retroalimenta e engloba as diferenças Dessa maneira as grandes ideologias já não representam uma ameaça como na época moderna uma vez que o próprio projeto moderno se transmutou De fato é nas ações sobretudo nas práticas de consumo que aparentemente hoje se encontra a maior ameaça para a ordem social contemporânea Curiosamente essa ameaça se constitui à medida em que perpassa o mercado é exatamente através do consumo que as grandes mudanças sociais são obtidas atualmente Um exemplo disso é o fenômeno do pink money nomenclatura dada ao poder de compra da comunidade LGBT através do qual diversos marcos de representatividade foram alcançados Silva 2015 em um movimento onde empresas buscando atrair um público consumidor específico lançam campanhas e produtos voltados para as necessidades deste grupo social Outro exemplo das repercussões desta modalidade de ativismo financeiro é o veganismo filosofia de consumo que mantém em voga a pauta dos direitos dos animais Assim empresas que não são afetadas pela ideologia podem ser atingidas por meio da prática de consumo 45 como no caso de redes de fast food que claramente se beneficiam da exploração animal e entretanto vêm lançando produtos veganos buscando atingir um nicho específico de mercado Em resumo podemos argumentar que da mesma forma que os estranhos passaram daqueles que não seguiam as regras de comportamento sociais adequadas ao projeto moderno para aqueles que não participam ou não podem participar do jogo do consumo a política também parece ter passado de um embate ideológico em direção a algo diferente muito mais permeado pelos interesses do mercado do que de uma verdade que buscasse a emancipação do ser humano No âmbito geográfico a globalização altera a configuração das cidades criando um distanciamento nos espaços A relação homemnatureza encontrase comprometida tendo em vista a tendência de se criar espaços fechados e isolados das vicissitudes do clima e das estações como conglomerados de escritórios shopping centers entre outros Com essas mudanças o humano pósmoderno encontrase em uma situação em que uma série de novas possibilidades se abrem a facilidade de locomoção por exemplo permite que se tenha acesso a novos espaços produtos e serviços anteriormente indisponíveis Tal liberdade entretanto traz como consequência um distanciamento da natureza expressa tanto no espaço das cidades que são cada vez menos arborizadas quanto em manifestações de prognóstico mais sinistro como é o caso do aquecimento global e de outros fenômenos climáticos O próprio tempo é ressignificado na contemporaneidade sendo dissociado do tempo natural em prol de uma aceleração da produtividade Assim o humano pósmoderno goza de possibilidades múltiplas ao mesmo tempo que é preso a uma temporalidade artificial O sujeito pósmoderno então sofre como é inerente ao ser humano em todas as épocas e entretanto o faz de maneiras específicas sendo invadido por possibilidades que proliferam neste aquiagora dentro de um contexto econômico e sociocultural muito 46 específico Buscamos aqui explicitar um pouco das configurações que permeiam a sociedade contemporânea A seguir pretendemos apresentar a perspectiva fenomenológica da existência e de como lidar com as angústias dela recorrentes para posteriormente comparar essa proposta fenomenológica de sernomundo com os fatores da pósmodernidade aqui descritos 47 Capítulo 2 Fenomenologia Enquanto Dimensão de Análise do Ser Humano Para dar início à esta segunda parte da nossa discussão convém primeiramente realizar uma contextualização da Fenomenologia assim como do sentido no qual pretendemos utilizála para compor a análise proposta das modalidades de sofrimento psíquico na pósmodernidade Partindo de sua gênese propomos então trazer Husserl considerado o pai desse movimento filosófico para iniciar o processo de delimitar o que é a Fenomenologia e de qual forma ela se aplica ao nosso trabalho AlesBello 2006 aponta a dificuldade de se estudar Husserl tendo em vista que este não escreveu uma obra delineando claramente todo seu processo investigativo A autora busca em sua obra Introdução à Fenomenologia delimitar esse processo levantando a história e o percurso da fenomenologia husserliana Por este motivo considerando a limitação temporal deste trabalho optamos por não trazer o pensamento de Husserl em sua obra original lançando mão do valioso material produzido por AlesBello 2006 e Molina 2007 para explicitar o caminho percorrido por Husserl desde o surgimento da Fenomenologia ao final do século XIX Fenomenologia pode ser definida como a investigação dos fenômenos compreendidos como aquilo que se mostra AlesBello 2006 A relação fundamental dessa investigação está no que ocorre entre aquilo que se mostra fenômeno e aquele ao qual se mostra ou seja o ser humano O fenômeno se apresenta no mundo e cabe ao indivíduo voltado para o mundo produzir sentidos sobre aquilo que a ele se apresenta Podemos então considerar o sentido como a grande questão de interesse deste movimento filosófico e a Fenomenologia husserliana como um método para se investigar o processo de produzir sentido Husserl propõe que para alcançar a compreensão dos fenômenos é necessário seguir um caminho investigativo composto por duas etapas a primeira voltada para o sentido dos fenômenos chamada de redução eidética e a segunda focada na investigação do sujeito que 48 busca o sentido chamada redução transcendental O conjunto dessas etapas constitui a base do que se denomina método fenomenológico ou o caminho de investigação através do qual tornase possível buscar a compreensão de tudo aquilo que se mostra no mundo seja físico ou abstrato objeto ou conjunto de relações AlesBello 2006 Observando o Sentido dos Fenômenos a Redução Eidética A proposta da redução eidética pautase na ideia de que o ser humano é capaz de certa forma de intuir o sentido das coisas Apesar da compreensão do sentido nem sempre ser imediata é nela que reside o interesse da investigação fenomenológica Husserl considera como uma capacidade humana a possibilidade de intuir esse sentido das coisas Assim os fatos são analisados em busca da sua essência de seu significado AlesBello 2006 A redução eidética portanto consiste em voltarse à coisa mesma e buscar observar o fenômeno da maneira como este se mostra para o observador Para tal é necessário suspender tudo aquilo que se julga conhecer previamente a respeito do fato observado descrevendo apenas o que se apresenta A este processo denominase epoché o colocar entre parênteses as informações armazenadas na consciência de forma a possibilitar que se intua o sentido do fenômeno da maneira mais pura possível Redução Transcendental Quem é o Sujeito que Produz o Sentido A redução transcendental busca investigar quem é o sujeito e como este opera a produção do sentido Neste ponto diferenciase experiência perceptiva de reflexão A experiência perceptiva é o perceber notar os fenômenos saber que estão ali e que ocorrem porém sem voltar a consciência para eles Já na reflexão a atenção é focada no fenômeno que está sendo percebido Podemos fazer um paralelo desses dois momentos com o conceito de figura e fundo da Gestalt na experiência perceptiva os fenômenos estão ali são percebidos mas representam um fundo composto de diversos objetos Na reflexão quando o olhar da consciência se 49 direciona ao fenômeno este passa a caracterizarse enquanto figura ou seja enquanto foco da atenção do sujeito que observa e a partir daí pode intuir e produzir o sentido do fenômeno observado Em termos simplificados a redução eidética tem seu foco no fenômeno objeto e a redução transcendental tem como foco a relação pessoaobjeto processo reflexivo implicando o sujeito no processo de elaboração do sentido do fenômeno Partindo da experiência perceptiva Husserl desenvolve sua investigação considerando que a percepção que ocorre por meio das sensações é uma porta uma forma de ingresso uma passagem para entrar no sujeito ou seja para compreender como o ser humano é feito AlesBello 2006 p 30 E a percepção por sua vez se dá através da consciência ponto central de interesse de Husserl na redução transcendental A questão da consciência é uma das grandes contribuições de Husserl para o entendimento do ser humano para ele esta não é um fato psíquico independente como era compreendida pelas teorias mentalistas e sim um processo Desta forma o conceito de intencionalidade é desenvolvido para explicar que a consciência não pode ser emsi ou seja sempre será consciência de algo existindo apenas em relação com os objetos do mundo Assim o ser humano é permeado por vivências atos de interagir com o mundo e considerase que a consciência pode ser dividida em dois momentos o darse conta das vivências e o refletir sobre as vivências percebidas O ato reflexivo portanto é uma vivência em segundo grau AlesBello 2006 p 33 de forma que podemos falar em um primeiro nível da consciência que ocorre na instância dos atos perceptivos e um segundo nível onde se dão os atos reflexivos porém sempre em processo intencional de relacionarse a algo que está no mundo Em se tratando de atos perceptivos há uma grande importância da interação do ser e do mundo uma vez que a percepção é dada através dos sentidos O corpo parte fundamental desse processo é percebido de maneira muito distinta da dicotomia cartesiana é através dos 50 sentidos em especial do tato que interagimos com o mundo e assim podemos percebêlo É pelo corpo que são dados os limites e as possibilidades de percepção de cada um e as vivências ocorrem atravessando o corpo de tal forma que é impossível separar a dimensão corporal da dimensão psíquica Por este motivo o sujeito também não pode ser emsi ele é nomundo ou seja se constrói a partir da relação eumundo que é sempre permeada pelo corpo Husserl realiza uma análise da corporeidade essa dimensão do corpo que opera a percepção concluindo ser através das sensações corpóreas registradas que podemos afirmar o fato de temos um corpo As coisas físicas são conhecidas através da corporeidade Ales Bello 2006 p 37 como abordaremos em mais detalhes em seção específica a respeito da corporeidade Assim temos a vivência produto das sensações do corpo e o primeiro nível da percepção e também temos uma capacidade de refletir sobre fatos vividos consequência direta da habilidade de registrar as vivências através desse registro das experiências tornase possível ao ser humano ter consciência das coisas Husserl considera haver atos relativos ao instinto revestidos de caráter psíquico atos de caráter corpóreo e uma terceira instância que nos permite controlar o corpo e a psique relativa ao que se considera em Fenomenologia ser pertinente à esfera do espírito AlesBello 2006 Desta forma Husserl propõe um entendimento de ser humano integrado pelas dimensões corpopsiqueespírito muito diferente da concepção positivista e da diferenciação mentecorpo vigentes à época e que ainda hoje permeiam diversos discursos a respeito do indivíduo As análises aqui realizadas serão vinculadas à concepção fenomenológica do sujeito considerando o físico o psíquico e o espiritual como interligados e indivisíveis sendo necessário abordar cada um desses aspectos na busca pela compreensão do fenômeno do ser e a partir disso tecer considerações a respeito do sernomundo pósmoderno 51 Husserl Positivismo Psicologismo e Críticas As críticas de Husserl ao positivismo configuramse como parte de sua trajetória na construção do método fenomenológico De certa forma podese dizer que é buscando suprir determinadas inquietações com o positivismo e reações ao psicologismo lógico que Husserl passa a desenvolver o pensamento fenomenológico Sua trajetória na psicologia iniciase com a busca por aliar os fenômenos da percepção a um rigor lógicomatemático filiandose inicialmente a um pensamento positivista Posteriormente influenciado pelas ideias de Franz Brentano passa a realizar críticas ferrenhas ao que considerava um psicologismo lógico e o positivismo considerandoos responsáveis por uma crise nas ciências da época AlesBello 2006 Para Husserl o positivismo foi responsável por conduzir a uma crise da Filosofia e consequente perda do humanismo uma vez que a redução da realidade a fatos físicos e psíquicos produz uma desumanização do homem Molina 2007 Considerase que há uma atitude antimetafísica expressa na hipervalorização dos fatos empíricos e do método das ciências naturais e que na busca por transformar a psicologia em uma ciência empírica há marcada tendência de se negar a filosofia e o sentido Como consequência dessas narrativas para Husserl a humanidade encontravase imersa em um cientificismo alienante no sentido de que o naturalismo restringe o espaço do humanismo em sua busca por reduzir a realidade a fatos empíricos O próprio psiquismo passa a ser compreendido como uma série de fenômenos ligados ao físico Em seus estudos das análises lógicas e psicológicas do mundo enquanto conceitos matemáticos Husserl embarca na corrente do psicologismo lógico Entretanto tendo sofrido influências da corrente neokantiana e do pensamento de Brentano passou a criticar a tendência ao psicologismo lógico considerandoo uma forma de positivismo uma vez que reduz toda a forma lógica a processos psíquicos que por sua vez são reduzidos a fatos empíricos Molina 2007 52 É necessário ressaltar que sua crítica é direcionada não à Psicologia como um todo mas ao psicologismo lógico à tendência a reduzir a teoria do conhecimento a meros fatos psíquicos o que em sua visão proporcionava uma morte da Filosofia e uma desumanização do sujeito Para Husserl é inaceitável que se considere essa forma de Psicologia como a base das demais ciências considerando que se utilizou do método físico matemático para traçar suas bases Em sua perspectiva a ciência que fundamenta todas as demais não pode estar no mesmo plano dos atos nem ser destrinchada em uma série de atos psíquicos devendose dividir as ciências entre empíricas e eidéticas ou essenciais Esta crítica como explica Zapata Molina 2007 baseiase em dois aspectos primeiramente que o positivismo lógico conduz a um relativismo cético Se a lógica se reduz a estados psíquicos só se pode falar em probabilidade de juízos lógicos e não em certeza de onde se deriva o ceticismo Outra consequência é a redução das leis lógicas a fenômenos psíquicos de tal forma que a lógica se encontra privada de seu caráter universal e seria impossível aplicar um mesmo princípio e lógica a todas as ciências Os princípios portanto limitarseiam a particulares com sua amplitude restringida ao empírico resultando em um ceticismo em relação a uma lógica universal Assim Husserl distanciase do psicologismo em busca de uma corrente capaz de transformar a Filosofia em uma ciência especificamente rigorosa iniciando sua busca por uma teoria da lógica pura e universal não baseada essencialmente nos fenômenos psíquicos É a partir daí que surge o método fenomenológico como a tentativa de chegar às coisas mesmas AlesBello 2006 Nessa concepção husserliana da lógica os atos psíquicos do pensar seriam então matéria da psicologia e não da lógica Considerase que a lógica não se ocupa dos objetos empíricos e sim de um mundo do ser ideal constituindose uma lógica pura dos objetos 53 ideais cujo foco de interesse está na relação destes objetos ideais com suas formas gerais Assim a lógica se configura como uma ciência eidética formal ciência ideal e a priori enquanto a Psicologia seria uma ciência empírica e a posteirori Molina 2007 Desta forma distinguese o processo lógico entre o pensar o objeto ao qual o pensar se refere e o próprio pensamento ou significação A significação aparece entre a palavra significante e o objeto significado e o erro do psicologismo estaria em considerar o pensar e o pensamento como um mesmo fenômeno expresso em atos psíquicos enquanto para Husserl a significação pensamento é independente do pensar sendo o primeiro ativo enquanto o último configurase como processo passivo E uma vez considerados como fenômenos distintos surge a necessidade de ciências distintas para compreendêlos a Psicologia portanto é a ciência do pensar enquanto a lógica pura seria a ciência do pensamento ou da significação Molina 2007 Partindo dessas reflexões a respeito dos efeitos do psicologismo e do positivismo nas ciências surge a Fenomenologia enquanto proposta de método preocupandose não com o fato em si com o dado empírico concreto mas com o sentido do fato a significação aquilo que é da ordem da lógica e do pensamento Tornase possível portanto colocar a existência de fatos entre parênteses na busca de compreender a essência de um fenômeno Assim o foco de interesse está não no fato em si mas na compreensão do sentido deste fato A questão do sentido surge como o problema de fundo da Filosofia uma vez que se procura o sentido e não os aspectos do objeto com os quais o positivismo de ocupa e que devem ser examinados porém como parte de um processo mais amplo de busca de significado pois a verdade do ponto de vista humano reside no sentido e não no fato AlesBello 2006 p 24 O Ser em Heidegger Heidegger considerado um dos mais importantes filósofos alemães da atualidade 54 diferenciase de Husserl na direção de suas investigações enquanto a epoché de Husserl coloca a existência entre parênteses buscando determinar a essência dos fenômenos Heidegger foca sua investigação na existência em si buscando captar o sentido do Ser do existente Para Heidegger então o problema fundamental é o do sentido do Ser que deve ser investigado de maneira concreta trabalhando em uma perspectiva existencialista buscando desenvolver uma teoria geral do Ser E desta forma distingue a existência do Ser metafísica da existência do ser humano ente tendo o tempo como horizonte de compreensão do Ser Molina 2007 A diferenciação de ser e ente é um eixo fundamental de seu pensamento a partir do qual começa a evidenciarse o problema do Ser enquanto algo cuja definição parece inalcançável uma vez que compreendemos seu uso porém não seu sentido ou sua relação com o ente Assim Heidegger procura retomar do início a questão do Ser em busca de estabelecer o seu sentido de forma descritiva e fenomenológica e tendo como objeto o sermesmo do sujeito existente Dasein objetivando através da análise fenomenológica compreender o sermesmo geral a partir do sermesmo individual passando do sentido ôntico ao ontológico Molina 2007 O Dasein Zapata Molina 2007 identificou alguns desafios na leitura de Heidegger os quais dificultam também o entendimento do conceito de Dasein fundamental para o projeto heideggeriano de compreensão do Ser Em primeiro lugar as controvérsias de tradução tendo sido traduzido para o português como presença mas havendo uma tendência internacional de 55 manter a palavra original Roehe Dutra 2014 Em segundo lugar porém não menor em desafio há a questão da própria complexidade do pensamento de Heidegger Buscaremos aqui explicitar da melhor forma possível o conceito do Dasein do qual nos serviremos para orientar a compreensão do ser que embasará nossas análises do humano pós moderno O Dasein pode ser definido grosso modo como seraí Esta definição aparentemente simples tornase complexa a partir do momento em que pensamos nas ramificações e implicações desta forma de compreender o modo de ser do humano nomundo Heidegger considera o ente humano como o único dotado de capacidade de questionar e vir a conhecer o Ser Assim o simesmo apresentase como ente a ser analisado e questionado por cada um que é que existe no mundo Isso implica em uma compreensão da existência que vai de encontro a diversas tendências da época de se analisar o ser humano não estamos mais diante de um sujeito operante de respostas condicionadas ou cujas ações são resultados diretos de processos inconscientes a análise heideggeriana do sujeito foca no projeto de existência na escolha proativa na experiência consciente e na ação direcionada às possibilidades encontradas no mundo Roehe Dutra 2014 Passase a compreender o humano como um todo inserido nomundo com hífen para indicar a relação imanente não é possível haver mundo sem ser ou ser sem mundo A existência é compreendida como um processo relacional em oposição à dicotomia cartesiana clássica ao mecanicismo materialista e ao mentalismo determinista Roehe Dutra 2014 Assim o indivíduo não é em si e sim énomundo de forma indissociável Dasein então referese ao modo de ser humano de sernomundo da capacidade humana de descobrir o próprio Ser a nível ontológico a partir de sua experiência de existir O Dasein é o ente para o qual o Ser se mostra Roehe Dutra 2014 Isto é a partir do momento em que o sujeito existe nomundo ele é afetado por esse mundo e existe em 56 relação de tal forma que as elaborações racionais sobre o Ser sucedem o fato do serno mundo Desta forma entendese que o ser humano pode constituirse como pessoa a partir de suas possibilidades de existência diretamente relacionadas com sua condição nomundo De maneira simplificada o ser humano existe nomundo ou seja em relação O fato concreto dessa presença nomundo se traduz em possibilidades de ser no estado de jásempre agora e perpetuamente ser afetado pela relação de estar nomundo Dasein portanto refere se a essa dimensão exclusivamente humana da experiência de existir em relação com as coisas consciente desta relação e a partir disso poder pensar as próprias possibilidades Heidegger considera que o Dasein é constituído por características equiprimordiais entre elas o sernomundo e a disposição afetiva com destaque para a angústia A disposição afetiva presume que o homem não existe de maneira neutra sendo constantemente afetado pela realidade o fato de seraí ser em relação indica uma afetividade direcionada ao espaço onde se existe O Dasein é afetado pelas coisas do mundo pelos outros de tal maneira que não se pode falar em neutralidade O humor portanto não é um estado intrapsíquico mas se desenvolve a partir de si mesmo na relação eumundo não podendo ser contido dentro ou fora do indivíduo uma vez que o próprio indivíduo existe em relação com o mundo Assim o Dasein é envolvido no mundo é interessado em função de outra estrutura existencial a disposição afetiva Roehe Dutra 2014 p 108 Partindo desta interpretação surge o conceito de facticidade o jásempre de se estar em um determinado humor ou a condição de ser constantemente perpassado pela disposição afetiva Sernomundo enquanto condição existencial é ser tocado e constituído pelas 57 condições históricas culturais discursivas físicas etc deste mundo no qual se existe Roehe Dutra 2014 A existência do Dasein é condicionada às possibilidades do ser considerandoo como seraí presença ou característica da existência humana apresentase a partir do modo de ser e do lidar do indivíduo com suas próprias possibilidades na existência É no entendimento do poder ser do viraser que o sujeito humano se destaca em sua habilidade de compreender a questão do Ser a nível ontológico a partir de sua experiência ôntica no mundo de tal maneira que podese afirmar que o Dasein manifestase a partir da compreensão das possibilidades É necessário ressaltar que o termo possibilidade em Heidegger vinculase à ideia de projeto existencial característico da estrutura existencial do sujeito e o Dasein compreende projetando ou seja não se encerra no aquiagora contendo em si o porvir enquanto facticidade uma vez que o ser humano é suas possibilidades Roehe Dutra 2014 Considerando o seraí o entendimento do ser humano passa a ser ontologicamente caracterizado pela convivência aspecto existencial do Dasein Roehe e Dutra 2014 destacam como o termo preocupação é utilizado em Heidegger para designar os relacionamentos possíveis entre os seres humanos A inovação do pensamento heideggeriano assim como o husserliano em comparação com o individualismo e o mentalismo característicos da época consiste em compreender o indivíduo como existente em um mundo que é compartilhado em oposição a ideia de que o ser experiencia uma realidade mental isolada O significado existencial da preocupação besorgen se refere às possibilidades do Dasein uma vez que é a forma predominante de relação do sernomundo Zapata Molina 2007 afirma que podemos investigar essa forma de existência através de três ângulos o mundo o existente que se apresenta em seu Dasein através do modo de ser cotidiano nível 58 ôntico e o serem da ordem da estrutura concreta do ser nível ontológico A preocupação forma parte dessa estrutura ontológica do ser Em resumo a essência do ser é sua existência e o Dasein é a possibilidade concreta total da existência de cada um Molina 2007 É necessário destacar que Heidegger traça uma distinção entre existência e existentia a primeira expressando o modo de ser do Dasein o estarnomundo ser por ele afetado e ter consciência de suas possibilidades e a segunda designando a presença no mundo como dado Molina 2007 O Dasein dista igualmente do ser e da possibilidade e encontrase situado entre a existência autêntica e a inautêntica conceito que abordaremos posteriormente em mais detalhes Assim na busca por esclarecer o problema do Ser a nível ontológico é necessário partir do cotidiano e do ôntico pois é através da consciência de suas possibilidades de existência no mundo que o indivíduo pode conhecer o Dasein A Angústia O conhecimento do Dasein apesar deste ser condição da existência humana na perspectiva de Heidegger não é um processo dado engloba um movimento ativo de criar consciência das próprias possibilidades e responsabilizarse pelas escolhas Para Heidegger este movimento é operado a partir da angústia decorrente da disposição afetiva e considerado fundamental para o entendimento do Dasein uma vez que revela o sernomundo como tal Roehe Dutra 2014 Este processo ocorre a partir de um desligamento do intramundano ou seja a partir do momento que o indivíduo se dissocia das condições que o mundo lhe apresenta enquanto escolhas fundamentalmente prontas e passa a questionar seu papel no cotidiano A angústia portanto mobiliza uma estranheza em relação ao que é dado no mundo àquilo que se considera fato estabelecido Somente partindo desta estranheza que se torna possível para o indivíduo romper o fluxo do habitual e implicarse enquanto sujeito ativo e de escolha 59 Tomemos como exemplo uma pessoa que cresceu em um meio religioso seguindo regras sociais específicas adequando seu comportamento às tradições estabelecidas pelo meio no qual se insere Este indivíduo que énomundo afetado pela intramundaneidade comportase de determinada forma porque assim são as coisas Neste estágio não há uma consciência ou reflexão do seu papel na escolha de agir da forma como age assim como não há responsabilidade uma vez que o indivíduo pode facilmente justificar seu comportamento afirmando que as coisas são assim e sempre foram assim e seguir sua existência dessa forma sem implicarse em suas próprias possibilidades e portanto sem acessar o próprio Dasein Agora imaginemos que por algum motivo esta pessoa é tocada pela angústia aquilo que parecia normal começa a inquietar a ser observado com um olhar de estranheza Começa se a questionar o porquê qual o sentido de agir de determinada forma e através deste questionamento a pessoa tem a possibilidade de acessar seu Dasein e compreenderse como sujeitonomundo o que implica em compreender a si ao mundo e a essa relação e implicar se no processo de escolha responsabilizandose por aquilo que opta por fazer É possível que neste processo o indivíduo opte por seguir com os comportamentos anteriores em nosso exemplo a pessoa pode angustiarse refletir e decidir ou não continuar seguindo a religião que lhe foi ensinada A diferença está no fato de fazer algo irrefletidamente porque assim as coisas são feitas em seu meio e em seu tempo e fazêlo porque houve um processo de consciência e reflexão onde o indivíduo encontra um sentido próprio para sua escolha Esta é uma diferença fundamental em suas implicações que abordaremos com mais detalhes na seção a respeito da existência autêntica ainda que o resultado objetivo comportamento seja o mesmo O Ser e o Nada Perspectiva Sartreana da Existência Sartre iniciou seu interesse pela Fenomenologia como caminho de resposta a algumas 60 inquietações levantadas em sua busca por criar uma Psicologia que compreendesse o sujeito a partir de uma perspectiva diferente do mecanicismo em voga à época defrontado com a necessidade de refazer as bases ontológicas e de seguir uma epistemologia que fornecesse uma compreensão de ser alternativa à perspectiva vigente voltase para a Fenomenologia em busca dessa nova forma de se compreender o ser humano Realizando uma leitura minuciosa das obras de Husserl e Heidegger Sartre elabora seu pensamento a partir da crítica da Fenomenologia alemã de tal forma que sua obra assimila diversas ideias em especial heideggerianas ao mesmo tempo em que procura desenvolver pontos que considerava problemáticos nas obras de Heidegger e Husserl chegando a romper com o pensamento de Husserl tornandose crítico contundente de Heidegger e sendo por este criticado apesar de ter incorporado em sua obra diversos conceitos heideggerianos como sernomundo mundaneidade nadificação temporalidade entre outros Schneider 2011 Tal como optamos por fazer no capítulo anterior este trabalho não se deterá nas divergências teóricas entre os pensadores aqui abordados reconhecemos sua existência porém nosso foco de interesse não está em buscar defender ou endossar determinado ponto de vista e sim em delinear conceitos gerais e convergências teóricas que permitam esboçar de forma geral como a ótica fenomenológica propõe compreender o ser humano Assim trazemos o pensamento de Sartre por seu projeto de criar uma nova psicologia com uma compreensão ampliada do ser humano Partindo da noção de intencionalidade consciência não existe como fato psíquico sendo consciência de algo que lhe permite questionar o mito da interioridade Schneider 2011 Sartre passa a se debruçar sobre a ontologia do eu criando uma distinção entre as dimensões ego e consciência o ego surge como ser transcendente não contido na 61 consciência e esmiuçando as noções de emsi e parasi para definir a dialética do ser e do nada ou da objetividade e da subjetividade Assim como Husserl e Heidegger Sartre encontra na Fenomenologia um caminho para romper com as teorias mentalistas e buscar um entendimento mais concreto do ser e seus fenômenos É precisamente nessa busca por romper com as concepções metafísicas que acaba por distanciarse de Husserl considerando que sua teoria do eu transcendental incorre em uma preservação do idealismo ao qual se propunha contestar Schneider 2011 entretanto segue considerando a Fenomenologia como método de acesso à realidade e assim passa a desenvolver suas ideias a respeito do ser e do nada condição para existência do ser Em sua obra O Ser e o Nada 19432007 Sartre procura refletir a respeito da ontologia de maneira a contribuir para seu projeto da criação de uma nova psicologia Preocupase com a questão do ser aparente defendendo que o ser é composto por sua série de aparências ou seja não há uma realidade oculta e plena do ser da qual os fenômenos são uma expressão incompleta como defende Platão 1983 ao explicar seu mundo das ideias Para Sartre a forma como o ser se mostra no mundo é parte da totalidade de expressões que o compõem o que implica que é através da observação do fenômeno como se mostra no mundo que podemos conhecer o ser justamente a concepção fenomenológica do voltar às coisas mesmas para entender a essência dos fenômenos Desta forma o ser é indicativo de si e só pode ser conhecido através da série de suas aparições Sartre 19432007 p 11 Podemos exemplificar a diferença entre a concepção platônica cartesiana e sartreana da existência por meio de alusão a uma representação visual se o Ser fosse um objeto como um cubo para desenvolver exemplo citado por Schenider 2011 para Platão este existiria plenamente apenas no Mundo das Ideias e sua manifestação na realidade seria mera sombra deste cubo Para Descartes o cubo existe na realidade concreta porém sua essência encontra 62 se trancada em seu interior e há uma diferenciação entre a parte externa corpo e a interna mente Para Sartre o cubo existe no mundo como um objeto sólido de várias faces e para conhecêlo basta apenas observar seus diversos ângulos ou as várias formas como ele pode se apresentar Sartre vai afirmar que a existência precede a essência O ser existe se mostra no mundo e a partir da forma como se mostra podemos conhecer sua essência ou como expresso por Schneider 2011 O que seria nessa acepção a essência das coisas Seria como desdobramento aquilo que preside a lógica das aparições a razão da série p78 As implicações disso são muito bem definidas pela autora Pretendiase com essas concepções dissolver uma série de dualismos que dominam o pensamento filosófico o que opõe exterior a interior pois não há mais o entendimento de que há uma pele superficial que dissimule a verdadeira natureza do objeto o que distingue potência de ato pois agora tudo está em ato e finalmente o que opõe existência a essência pois agora a aparência não esconde a essência mas a revela ela é a essência No entanto Sartre critica que todos esses dualismos acabaram por ser convertidos pela fenomenologia em um único o do finito e infinito se a aparição é finita singular a série de aparições é no entanto infinita se a aparição se revela única para um sujeito em perpétua mudança este pode no entanto multiplicar seus pontos de vista ao infinito Como é possível então terse segurança do conhecimento se é sempre possível olhálo dos mais diversos ângulos Schneider 2011 p 78 A inovação de Sartre consiste em propor uma solução para aquilo que o autor considerava o problema da metafísica dentro da Fenomenologia em seu entendimento haveria a necessidade de romper definitivamente com sua lógica Consequentemente propõe 63 a revisão dos fundamentos da fenomenologia husserliana e do existencialismo de Heidegger em vista de eliminar a metafísica como explicação para o entendimento do ser Sartre aponta que Husserl incorre no recurso ao infinito ou seja considera que se é possível ao fenômeno se mostrar de infinitas formas tornase impossível conhecêlo de maneira absoluta e portanto apreender sua essência Assim Husserl voltase para o imanente deixando o mundo transcendente entre parênteses Schneider 2011 e dessa forma continua conectado ao idealismo considerando o eu transcendental como fonte última de apreensão do sentido de todas as coisas Sartre considera que neste ponto a Fenomenologia confunde o aspecto ontológico com o epistemológico buscando compreender o ser através do processo de conhecimento confundemse planos conceituais distintos Schneider 2011 e a metafísica apresentase como caminho necessário para explicar o ser dentro dessa confusão conceitual Em O Ser e o Nada 19432007 Sartre busca distinguir o aspecto ontológico do epistemológico em uma tentativa de romper com a metafísica tradicional na explicação do ser e sua essência tratando da relação sujeitoobjeto sob uma nova ótica Em sua concepção não se distingue aparência de essência o ser é o que aparenta ser entretanto o ser do fenômeno não é reduzível ao aparecer ou seja aquilo que se aparenta fenômeno do ser é um aspecto do seremsi que só pode ser conhecido através do fenômeno Portanto o ser não é exterior ao fenômeno de tal forma que o objeto e sua essência sejam coisas distintas o ser se expressa em suas aparições ao mesmo tempo que não pode ser contido nelas O fenômeno exige a transfenomenalidade do ser ou seja que o ser seja muito mais do que o seu aparecer mas não enquanto oculto enquanto outro ser mas enquanto irredutível Schneider 2011 Desta forma o ser não está reduzido ao conhecimento que se 64 tem dele e nem pode ser contido no conhecimento o ser é emsi ou seja existe independente do conhecimento que é uma das formas em que o ser se manifesta Podemos resgatar o exemplo do cubo para explicar essa concepção um cubo é um cubo apesar de que é impossível ver todas as suas faces ao mesmo tempo Sempre haverá uma face oculta se girarmos o objeto para ver o outro lado aquilo que estava visível desaparecerá e dará lugar a outro ângulo do mesmo objeto que entretanto não deixará de ser um cubo e nem dizemos que sua forma é inconcebível apenas por não conseguir visualizála simultaneamente em sua totalidade Observando as faces visíveis fenômenos do ser intuímos o restante de sua forma sua razão e passamos a identificálo como cubo ou a conhecer o ser Assim é o ser para Sartre O emsi na medida em que se dá a conhecer desperta a dimensão da consciência que constata o fenômeno do ser consciência que é intencional ou seja ocorre sempre em direção a alguma coisa Consciência é sempre consciência de algo e tem a transcendência como sua característica primordial assim as coisas não existem em representação na consciência que é um acontecimento concreto no mundo o que implica que a consciência se dá em ação em movimento em parasi pois é fruto de uma relação euobjeto Sartre 19432007 Este entendimento da consciência implica em uma distinção fundamental entre consciência e conhecimento como expõe Schneider 2011 o conhecimento passa a ser considerado como advindo da reflexão que é uma forma de consciência dentre outras como percepção emoção etc irredutíveis e autônomas em relação à reflexão e ao conhecimento Consequentemente podese falar em consciências préreflexivas a partir das quais tornase possível o ato de reflexão Assim a consciência é a base a partir da qual todo conhecimento pode ser formado mas não é emsi pois não está no mundo como um ser sendo composta em relação e portanto é o nada que compõe nossa possibilidade de perceber o ser 65 Em termos simplificados a condição fundamental para se ter consciência é ter um objeto sobre o qual essa consciência opera Sem o objeto ela não pode existir E se depende de algo além dela para existir não pode existir sozinha ou seja só acontece em relação Porém uma vez direcionada ao objeto a consciência pode surgir de diferentes formas na modalidade préreflexiva onde se percebe algo mas não se reflete sobre aquilo como emoção que segue uma lógica distinta da racional como conhecimento que surge após a reflexão do fato percebido entre outras As implicações desta ontologia são claras como exposto por Schneider 2011 Eis a ontologia de Sartre Com ela podese colocar a epistemologia no seu devido lugar já que se acaba com a primazia do conhecimento o ser do fenômeno é transfenomenal escapa ao conhecimento a consciência também é transfenomenal Dessa forma o conhecimento não está dado a priori é sempre segundo quer dizer é uma construção resultante da relação da consciência com as coisas do homem com o mundo Somente assim devolvemos ao homem a sua condição de ser sujeito sujeito do conhecimento e em consequência sujeito da sua própria história individual e humana p 92 Existência Autêntica Diálogos entre Heidegger e Sartre Buscamos até o presente momento contextualizar o pensamento fenomenológico expondo suas implicações para a compreensão do ser humano Abordaremos agora alguns conceitos primordiais elaborados pelos fenomenólogos em decorrência dessa nova ontologia Ressaltamos que o foco dessa exposição será nos pontos em comum das teorias dos diferentes pensadores a fim de fundamentar a maneira pela qual cada uma dessas ideias será apropriada no decorrer de nossa análise da experiência do ser humano na sociedade pósmoderna A noção de existência autêntica é crucial para a compreensão do sernomundo e a forma como cada indivíduo navega sua existência Em Heidegger ela pode ser explicada a 66 partir da concepção de Dasein se o compreendermos como a possibilidade total da existência acessado através da consciência das possibilidades de cada indivíduo surgem duas formas possíveis de estar no mundo uma consciente do Dasein ou seja de suas possibilidades e uma que o ignore Assim a existência pode ser autêntica na medida em que se conscientiza de suas escolhas e por elas se responsabiliza ou inautêntica quando se foge dessa condição de sernomundo tomando a existência como algo que simplesmente acontece desconectada da ação do próprio ser Heidegger 2018 Em Sartre a compreensão da existência autêntica perpassa o conceito de liberdade O homem ser em situação tem diante de si condições nas quais está inserido e a liberdade para escolher como se posicionará perante essas condições Assim o ser humano não possui uma essência prédeterminada mas singulariza seu existir a partir de suas escolhas Sartre 19432007 A situação é condição do existir que limita as possibilidades do ser assim como a liberdade de escolher é indissociável da existência surgindo como um fim que o indivíduo atribui à situação Nessa perspectiva a autenticidade relacionase com aceitar a responsabilidade de escolher perante a situação e inautêntico é aquele que procura fugir dessa responsabilidade ou da situação em si Sartre apresenta o conceito de máfé como a capacidade do homem de mentir para si mesmo com objetivo de não reconhecer essa liberdade e não aceitar a responsabilidade nela implicada um negar a si mesmo que pode ser expresso no agir sobre valores préfixados em oposição à sinceridade na qual o indivíduo busca fazerse de acordo como é Desta forma o homem se constitui enquanto projeto possibilitado pela liberdade e é ao reconhecer a liberdade e se implicar no projeto de constituirse que a existência se faz autêntica Barros 2010 Podemos perceber que a despeito da concepção ontológica de cada autor a noção de autenticidade está intimamente ligada à capacidade do indivíduo de questionar sobre a própria 67 vida e constituirse como projeto no sentido de escolher como se posicionará no mundo face às condições que lhe são impostas pela existência É através deste processo e do rejeitar de concepções préestabelecidas que é dado ao sujeito a possibilidade de produzir sentido sobre sua vida Se tomarmos como verdade que o sofrimento é condição da existência humana a angústia tornase ponto central de interesse para o existencialismo Em Sartre 19432007 ela será um subproduto da liberdade surgida da necessidade que o ser humano tem de forçosamente realizar escolhas que implicam na abstenção de outras possibilidades Para Heidegger 19272018 como vimos anteriormente a angústia é produto da disposição afetiva humana e caminho de acesso à compreensão do Dasein Em ambos os casos podemos considerar que é através da angústia que tornase possível ao indivíduo constituirse como projeto o estranhamento da realidade o força a refletir e a se posicionar diante dessa realidade e ao fazêlo o ser se faz como existente pleno e implicado na própria existência ou seja como autêntico em seu existir Analogamente podemos pensar nos efeitos da angústia não elaborada Se esta é presente na vida enquanto parte condicionante da existência não se torna uma questão de haver ou não angústia e sim do que fazemos com ela Se o pensar a angústia permite que o ser se construa enquanto projeto quais os efeitos de não pensála de buscar afastarse da responsabilidade sobre próprias escolhas Ou em outras palavras quais as consequências para o indivíduo de uma existência inautêntica Resgatando o conceito sartreano de máfé como a capacidade do indivíduo de mentir para si mesmo a respeito de sua liberdade e responsabilidade sobre a vida fazse necessário sinalizar que este enganarse implica ter consciência que se está enganando Barros 2010 o que sugere que o ser humano sempre será confrontado com a angústia e sempre terá em algum nível consciência da necessidade de se posicionar 68 Consequentemente é impossível se manter neutro diante da vida pois o próprio não se posicionar é uma escolha Assim o sujeito que segue uma existência inautêntica procura enganarse a respeito de sua responsabilidade jogandoa para o mundo como se pelo fato de o mundo dispor uma situação da qual não se pode fugir a pessoa estivesse impotente diante da própria existência Entretanto em algum nível há a consciência de que cada um é responsável pela própria condição e este conhecimento também produz angústia Partindo desse pressuposto podemos argumentar que a diferença entre a autenticidade e inautenticidade não está no fato do indivíduo sentir ou não a angústia e sim em se permitir ser por ela mobilizado em direção a produzir um sentido para sua situação Assim na busca por evitar a angústia o sujeito frequentemente abre mão de implicarse em sua liberdade delegando ao mundo e às convenções sociais o poder da escolha Este processo porém é ilusório pois como vimos a máfé não elimina a consciência do indivíduo do fato de estar se enganando Portanto a pessoa que na busca por não se defrontar com a angústia de escolher afirma sou assim porque é assim determinado por fatores externos não está de fato se esquivando da angústia que sempre será presente em maior ou menor grau O que ocorre como consequência desse posicionamento é que o indivíduo acaba por abdicar de sua capacidade de produzir sentido sobre suas ações e sua vida É partindo deste raciocínio que podemos falar em uma crise de sentido como efeito da existência inautêntica pois colocandose em uma posição de aceitar passivamente o que fontes externas dizem que deve ser feito o sujeito encontrase privado da possibilidade de se apropriar do sentido de seus atos e consequentemente distanciase não da angústia condição essencial da existência mas de sua potencialidade mobilizadora encontrandose paralisado em uma postura submissa diante da vida Esta característica da existência inautêntica será essencial nas considerações que pretendemos abordar no próximo capítulo 69 Autenticidade Inautenticidade e Serparaamorte O conceito da existência autêntica está intimamente relacionado com a noção de ser paraamorte Todo ser humano tem como condição de sua existência a finitude Nesse sentido existir é necessariamente caminhar em direção à morte como bem expresso no dito popular para morrer basta estar vivo A angústia do existir está intimamente relacionada com o fato dessa existência ser temporária e com o conhecimento de que iremos fatalmente morrer Dantas Sá Carreteiro 2000 Desta forma não é possível evitar a angústia mais do que é possível evitar a morte Ambas são condicionantes da vida sendo a primeira efeito da factualidade da última Nessa perspectiva buscar eliminar a angústia é um esforço fadado ao fracasso pois o serparaa morte é inexorável Sendo a angústia inquestionável a única questão possível é o que faremos dela É neste ponto que a existência autêntica ou inautêntica se apresenta como resposta diante da inevitabilidade da morte em um existir onde cada dia também é necessariamente um dia a menos A qualidade da existência portanto é a resposta para a indagação fundamental se o angustiarse existe como fato irremediável da vida o que fazer com essa angústia Nessas condições existem apenas duas possibilidades o caminho da inautenticidade ou da máfé de fugir e negar o fato o que não altera sua existência e portanto qualquer sentido apreendido neste processo não pode ser pleno uma vez que é realizado sobre uma perspectiva incompleta da existência omitindo uma de suas partes fundamentais Ou alternativamente a autenticidade que exige entrar em contato com a realidade de ser humano e buscar produzir sentidos sobre a condição completa do existir reconhecendo a angústia como parte da vida e passando a atribuir um significado para essa vida em suas múltiplas facetas de beleza sofrimento e finitude 70 Produzindo Sentidos Autenticidade como Dimensão de Cuidado Partindo do entendimento da autenticidade como o processo de fazerse existente através das escolhas e possibilidades argumentamos que é direcionandose à existência autêntica que é dado ao ser humano a capacidade de produzir sentido sobre a própria vida e transformar a angústia de fator paralisante em agente mobilizador Pensandoa como uma estranheza ao que é cotidiano Heidegger 19272018 a produção de sentidos sobre essa estranheza parece ser o único caminho para lidar com a angústia uma vez que sendo condição da existência esta não é passível de ser erradicada Analogamente podemos dizer que a falta de questionamento e a fuga em responsabilizarse condena o indivíduo à uma angústia que paralisa desta maneira passamos a considerar a busca pela autenticidade como uma dimensão de cuidado na medida em que o indivíduo é convidado a responsabilizarse e refletir sobre suas inquietações É partindo deste questionamento que se torna possível fazer algo com a angústia ou seja transformála de sofrimento mais ou menos constante para dispositivo de produção de sentido resgatando seu potencial mobilizador Nesse sentido podemos dizer que trabalhar a angústia é possibilitar que o indivíduo tenha acesso a liberarse de seu peso ressignificando a forma como é por ela afetado e expandindo os repertórios de maneiras de lidar com a liberdade com o sernomundo e a situação de cada um Assim a prática clínica se aproxima da Filosofia em seu sentido mais puro de questionar a realidade em um processo investigativo das formas como o sujeito pensa a própria vida que busque compreender a realidade de cada um em situação nomundo e portanto afetando esse mundo imprimindo a própria subjetividade no processo de existir e perceber a realidade Tempo Espaço e Corpo Dimensões Fenomenológicas de Compreensão do Ser Por entender o ser humano como sujeito que se faz nomundo em relação que 71 constituise a partir de um processo de intencionalidade que está sempre voltado a alguma coisa a Fenomenologia compreende certas dimensões de experiências do real como operadas também em relação isto é o sujeito experiencia sua realidade de acordo com o movimento de sua intencionalidade ou de seu Dasein ou de sua liberdade e não atrelada a um real puro e objetivo Ou seja nossa percepção uma vez que sempre feita através da interação dos sentidos com a consciência de é indissociável da subjetividade de tal forma que a maneira que experienciamos o mundo também comunica sobre o fenômeno do existir de cada indivíduo Tentaremos nesta seção abordar e explicar brevemente algumas dessas dimensões experienciais do mundo e a forma como são percebidas na perspectiva fenomenológica 1 Temporalidade Para desenvolver o conceito de temporalidade vamos recorrer à perspectiva existencialista e à teoria de Heidegger a respeito do Dasein Josgrilberg 2007 aponta a tentativa de Heidegger de definir o tempo de forma diferente do conceito físico contemplandoo como algo que não é objetivo e nem mensurável uma vez que perpassa o horizonte de possibilidades do ser Desta forma a experiência do tempo não pode ser considerada objetiva Um exemplo de como a temporalidade opera de maneira diferente do tempo cronológico é pensar como determinada medida temporal pode ser percebida de maneiras diversas por pessoas diferentes e até pela mesma pessoa em circunstâncias variadas Para alguém que se diverte uma hora pode parecer pouco tempo enquanto poucos minutos de uma atividade física extenuante parecem não passar nunca Podemos pensar também em alguém que sofreu um trauma e anos depois sofre com a mesma intensidade declarando que parece 72 que foi ontem o que denota uma relação com o passado que não pode ser contida na ideia de tempo como uma sucessão de momentos de acordo com o modo aristotélico Josgrilberg 2007 explica o modo aristotélico como uma das possibilidades de compreensão do tempo vinculada ao relógio e ao calendário mensurada de forma concreta e compreendida como um processo linear De fato esta é a concepção de tempo mais comum na nossa sociedade atual permeando as teorias da psicologia tradicional que compreende passado e futuro como abstrações relacionadas à memória Assim as alterações temporais são investigadas na concepção clássica da psicologia a partir do tempo cronológico e suas determinações quantitativas O tempo fenomenológico entretanto é de uma outra ordem Heidegger considera o tempo como uma dimensão com a qual nos relacionamos de antemão antes mesmo de ter consciência de suas medidas objetivas O tempo também opera em relação a um para que no sentido de que nunca me refiro a um amanhã vazio para o que farei e acontecerá Josgrilberg 2007 Assim o filósofo apresenta quatro dimensões de compreensão do tempo Interpretabilidade o tempo é sempre tempo para algo é característica do próprio tempo que se destine a alguma coisa Databilidade característica do tempo de referirse a um dado e a um contexto associado a esse momento Amplitude o tempo pode referirse a diferentes durações não é apenas composto por uma série de instantes mensuráveis Um agora pode referirse a diferentes extensões temporais Estado público o agora revela a relação de múltiplos Daseins assumindo uma acessibilidade de todos Na perspectiva heideggeriana o tempo é pensado tridimensionalmente passado presente e futuro interconectados e não como algo que se apresenta consecutivamente como 73 já vimos O tempo é para alguma coisa Josgrilberg 2007 ou seja é pensado em relação a algo então a forma como o experienciamos está intimamente relacionada com a forma como existimos e as possibilidades de ser que enxergamos Desta forma a temporalidade está muito além do tempo cronológico tendo em vista que a subjetividade daquele que experiencia o tempo altera a forma como o indivíduo percebe esse tempo 2 Espacialidade Se considerarmos o caráter intencional da consciência e o homem como ser existente nomundo este mundo tornase foco de interesse como algo além de um simples plano ou dimensão dados na realidade ou seja ao encararmos o homem como em relação com seu mundo já não é possível ver o espaço como algo que só pode ser concebido à medida em que nos voltamos ao mundo onde estão dispostos objetos que ocupam lugares e cujas distâncias podem ser facilmente mensuradas Leite 2013 Assim o homem está no espaço em relação da mesma forma que sua existência se dá através do seraí é por meio do Dasein que se opera a relação do indivíduo com o espaço Neste sentido a relação do ser humano com o espaço diferenciase da relação dos objetos e seres aos quais não é dada a capacidade de questionar sobre a própria existência Heidegger postula então que para se investigar o espaço e a espacialidade que é característica do Dasein devese focar nesse caráter intramundano do espaço Leite 2013 p 193 Leite 2013 explica esta relação da seguinte maneira É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e distância do que está imediatamente à mão no mundo circundante HEIDEGGER 1987 p 156 Quando eu digo estes óculos estão à mão eu estou dizendo sim que posso tocá los mas tocar aqui significa desvelar o sentido de seu ser emsi desvelar aquilo para que esta coisa chamada óculos me serve tomando como referência um 74 quadro de significância que é sempre o meu mundo Nesse sentido esse instrumento que uso para ver os óculos os meus óculos do ponto de vista do intervalo estão tão próximos que os trago no nariz mas do ponto de vista do mundo circundante achase mais distante do que o quadro da parede em frente HEIDEGGER 1987 21 p 155 Os óculos estão tão junto de mim que não me causam surpresa p 193 Disto podemos apreender que as coisas no mundo não podem ser pensadas dissociadas de suas relações implicadas na consciência intencional ou seja os objetos têm sua função e sua fenomenalidade reveladas através do contato com a consciência humana e sua subjetividade Desta forma somos afetados pelos objetos e pela maneira como estes estão distribuídos nos espaços e nossa interpretação das coisas do mundo é perpassada pela própria condição de ser enquanto ente intramundano relacionado às coisas e assim o mesmo mundo físico não será percebido da mesma maneira por diferentes indivíduos o que implica na necessidade de se compreender o sujeito em sua relação com os demais entes do mundo e a forma como é por eles afetado 3 Corporeidade Retomando o entendimento a respeito do corpo brevemente abordado na seção sobre Husserl procuramos aqui explicitar melhor o conceito da corporeidade Em se falando de corporeidade é impossível não se evocar MerleauPonty 19451998 e sua obra Fenomenologia da Percepção onde o autor aborda a questão do corpo como lugar através do qual a consciência se desvela ou seja se o indivíduo énomundo é através do corpo que o caráter intencional da consciência tornase possível Pensar em corpo desta forma implica em uma concepção completamente diferente do dualismo cartesiano tão em voga na ciência ocidental que propõe uma divisão de mente e corpo como instâncias separadas do ser 75 Sob um ponto de vista fenomenológico o ser humano é compreendido como multidimensional estando mente corpo e espírito interligados de maneira indissociável Consequentemente a busca pela compreensão do fenômeno do ser contempla a observação de todas essas esferas Na clínica isso equivale a dizer que não é possível conhecer e tratar um paciente sem observálo em sua totalidade o que inclui os fenômenos psíquicos corporais e do espírito Podemos perceber como este entendimento altera diretamente o fazer clínico assim como o olhar filosófico perante o fenômeno da existência o corpo muitas vezes relegado ao segundo plano dentro da perspectiva mentalista assume um caráter de extrema importância como dimensão do self através da qual o sujeito toca e é tocado pelo mundo Resgatando a máxima fenomenológica a existência precede a essência podemos dizer que o corpo permeia as outras instâncias do sujeito uma vez que é através do corpo e do contato com o mundo que é dado ao indivíduo a possibilidade de fazerse sujeito Dentz 2008 explica que sendo a consciência uma estrutura relacional de presença é através do corpo que temos um indicativo do modo de estar presente da subjetividade de cada indivíduo resgatando o conceito de historicidade como algo que se realiza expressandose nomundo ou seja a existência humana desvelase enquanto ocorre em sua expressão de existir como presença intramundana assim não há um sujeito completo e interior que rege o corpo e sim uma única existência que se faz através do corpo na realidade concreta do mundo Assim não é possível falar do sentido do Ser e nem pensar no sofrimento humano sem contemplar o corpo nomundo enquanto campo onde a subjetividade se desvela Acreditamos que as implicações dessa concepção ontológica do ser e de suas dimensões estejam claras alterando o entendimento do indivíduo e da forma como este afeta e é afetado pelo mundo modificase também a maneira como encaramos a existência e os fenômenos psíquicos o que é necessário para uma investigação verdadeiramente 76 fenomenológica do fenômeno do sofrimento É com base nessa concepção de Ser que pretendemos desenvolver as análises posteriores buscando investigar como o sujeito contemporâneo encontrase em relação em um mundo de situação pósmoderna e como este opera suas possibilidades de existência lida com suas angústias adoece e relacionase tendo em vista as implicações dos conceitos de corporeidade temporalidade e espacialidade A seguir abordaremos brevemente a concepção fenomenológica da psicopatologia e como essa vertente servese das teorias supracitadas para pautar a observação dos sujeitos em sofrimento Fenomenologia e Psicologia Psicopatologia Fenomenológica A Fenomenologia clássica por sua proposta de método investigativo impactou em diversas áreas do conhecimento Na Psicologia surge uma nova forma de compreender os chamados adoecimentos mentais baseada na ontologia fenomenológica e existencialista Exporemos a seguir um pouco da perspectiva da psicopatologia aliada à visão fenomenológica de compreensão do sujeito Da mesma forma que o ponto de partida de Husserl Heidegger e Sartre em suas considerações estava conectado à busca por uma nova forma de compreender o ser humano implicandoo em seu humanismo e resgatando dimensões antes renegadas a psicopatologia fenomenológica também parte da necessidade de entender o sujeito sob uma ótica diversa da psiquiatria tradicional o foco de investigação não estará na sintomatologia e sim na experiência do indivíduo que sofre tomando a Fenomenologia como base epistemológica e método investigativo Zapata Molina 2007 considera que as enfermidades tendem a ser reduzidas na psiquiatria clássica a uma causa somática desconsiderando a possibilidade de causas psíquicas e ressalta a necessidade de descrever primeiro para tecer considerações posteriormente de tal maneira que a descrição seguida pela interpretação e pela explicação 77 tornamse os três estágios de investigação em psicopatologia É possível notar como esse processo está em harmonia com o método fenomenológico e refletir a respeito de suas consequências Se formos apontar uma divergência fundamental entre a psiquiatria clássica e a psicopatologia fenomenológica sem dúvida seria referente ao enfoque enquanto a primeira ocupase do sintoma a última procura partindo da experiência do ser humano entender sua realidade o que contempla também seu sofrimento Como consequência disto a psicopatologia fenomenológica resgata a pessoa como um foco de interesse do processo investigativo do sofrimento uma vez que os dados a respeito da existência são extraídos do sujeito como é mostrandose como fenômeno nomundo Zapata Molina 2007 considera que a gênese da manifestação psicopatológica pode ser predominantemente psicológica genética ou orgânica e que a investigação desses fenômenos deve ser iniciada partindo da fenomenologia uma vez que a vivência é constituinte do ser Desta forma é do interesse da psicopatologia conhecer a pessoa enferma e sua enfermidade servindose do método fenomenológico tendo sempre em conta que a tarefa do clínico psicólogo ou psiquiatra não é tanto diagnosticar como conhecer a pessoa enferma pois sobretudo o que nos interessa é a experiência pessoal dessa psique enferma por ser ela que constitui seu mundo peculiar que nos dá a conhecer mediante a verbalização Molina 2007 p 99 O diagnóstico portanto deve considerar primeiro as vivências relatadas pelo paciente que através de suas falas possibilita que acessemos a seu mundo interno Em resumo a fenomenologia psicopatológia privilegia a subjetividade do paciente como parte integrante do fenômeno de seu sofrimento o que implica naturalmente em uma escuta diferenciada assim como em um entendimento de sujeito como ser completo 78 transcendente e impossível de ser contido apenas em um diagnóstico ou resumido em uma lista de sinais e sintomas específicos Assim Zapata Molina 2007 considera que o psicodiagnóstigo dividese em diversos aspectos inciandose pela entrevista que é aspecto essencial seguido da aplicação de conjunto de testes projetivos e por fim de testes explicativos alinhandose assim às etapas do método fenomenológico de descrição interpretação e por fim explicação É partindo desta perspectiva que procuraremos abordar no capítulo seguinte a questão da ansiedade e da depressão em nossa época pósmoderna entendendoa como uma expressão de modo de funcionamento que perpassa a existência dos sujeitos em relação em oposição a considerar a priori esses fenômenos como desequilíbrios orgânicos ou genéticos 79 Capítulo 3 Sofrimento Psíquico e Ser em Situação Possibilidades de Existência na PósModernidade Até o presente momento nos esforçamos em desvelar as principais características que compõem o pano de fundo da nossa época assim como delinear a concepção fenomenológica de sujeito enquanto dispositivo de análise a ser utilizado Neste capítulo pretendemos articular as condições da vida pósmoderna com as possibilidades de existência e as formas mais comuns de sofrimento psíquico que se apresentam na clínica Para tal fazse necessário reiterar que adotamos uma visão de sofrimento como parte fundamental da existência cabendo a cada indivíduo a responsabilidade de ampliar a consciência sobre seu modo de funcionar e produzir sentidos a partir de sua experiência de ser em oposição à tendência contemporânea de patologização da angústia ou seja de compreendêla como adoecimento ou fenômeno a ser evitado Ao propor um entendimento diverso da perspectiva positivista tradicional é na Fenomenologia que pretendemos nos apoiar adotandoa em duas frentes como método de investigação e base epistemológica para alicerçar nosso olhar sobre o sujeito Isto implica em abraçar uma visão de pessoa multidimensional composta integralmente de corpo psique e espírito dotada de intencionalidade em sua consciência e que se encontra no mundo em situação É justamente sobre esta situação que pretendemos direcionar nossa análise que se propõe a ser geral e identificar tendências porém sem deixar de reconhecer a importância da dimensão particular de cada indivíduo E desta forma começamos enfim a nos debruçar sobre nossa grande questão de interesse há algo nas condições da pósmodernidade que contribui para modalidades específicas de sofrimento Escolher abraçar uma concepção fenomenológica e existencial do ser implica necessariamente em aceitar o papel da angústia na vida de cada um de nós Em Sartre ela 80 surge como uma espécie de condição da liberdade do ser 19432007 em Heidegger é condicionante do Dasein 19272018 A capacidade de conhecer e intuir o sentido dos fenômenos vinculase à consciência da morte assim como à responsabilização pelas próprias escolhas grandes fatores mobilizadores de angústia Existir é de certa forma sofrer estar sujeito a ser afetado pelo mundo às perdas dúvidas frustrações Como podemos falar de sofrimento como algo a ser expurgado se este é condição essencial da vida Neste trabalho propomos tecer articulações a respeito das formas mais populares de adoecimento clínico a depressão e a ansiedade Mas compreendendo o papel da angústia enquanto fator mobilizador como separar o que é adoecimento e o que é parte da vida Neste ponto a perspectiva fenomenológica oferece uma boa resposta não é necessário separar a priori Estamos interessados na vivência do indivíduo muito mais do que nos rótulos que podem conter essa experiência de existir Isso não implica dizer que não existe adoecimento mas que nosso foco de interesse é não está em definir o que se encaixa ou não nesta concepção e sim em pensar a vivência das pessoas que sofrem Portanto vamos nos debruçar sobre esta questão à luz da fenomenologia observando um pouco do que sabemos sobre nossos fenômenos de interesse reservando nossas considerações para um segundo momento Iniciaremos esta análise observando dados da Organização Mundial da Saúde WHO 2017 sobretudo utilizando os critérios diagnósticos do manual de Classificação Internacional de Doenças CID10 produzido por esta entidade WHO 2004 assim como o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais DSMV American Psychiatrist Association 2013 À primeira vista pode parecer contraditório referenciar um manual cuja base epistemológica segue a linha da psiquiatria tradicional Esta escolha justificase em duas principais vias em primeiro lugar pela posição ocupada pela OMS enquanto órgão que pauta as decisões relacionadas à saúde inclusive à saúde mental no mundo Em segundo lugar 81 pelo fato de o manual representar a concepção mais em voga vigente na comunidade científica em relação ao sofrimento psíquico Compreendemos também que os manuais diagnósticos cumprem importante papel em facilitar o diálogo multidisciplinar entre as diversas áreas da saúde que podem auxiliar o indivíduo a lidar com suas vivências Complementarmente os manuais diagnósticos suprem uma limitação metodológica de nosso trabalho no sentido de que se servem em sua elaboração de recursos muito além dos aqui disponíveis para delinear nossos fenômenos de interesse Simplificando seria impossível traçar um quadro completo do que é de fato ansiedade e depressão tendo em vista sua complexidade Assim na inviabilidade de se trazer para este trabalho o fenômeno emsi adotaremos sua representação diagnóstica como base a partir das quais serão tecidas as observações propostas neste capítulo iniciando com a depressão e em seguida abordando a questão da ansiedade Transtorno Depressivo o Diagnóstico em Epoché A depressão é considerada pela Organização Mundial de Saúde um dos transtornos mentais mais recorrentes na atualidade atingindo no ano de 2015 cerca de 44 da população mundial WHO 2017 Representa uma das demandas que mais aparecem na clínica psicológica e é amplamente discutida em revistas científicas e na mídia em geral Propomos neste momento em harmonia com o método fenomenológico observar o fenômeno ou no caso sua representação diagnóstica em epoché ou realizando uma redução eidética isto é deixando de lado tudo que sabemos sobre ele e observando as informações trazidas pelo manual de diagnósticos referência no tratamento dos chamados transtornos mentais e que se propõe a resumir o fenômeno de forma clara que possibilite o diagnóstico a saber o DSM5 APA 2013 assim como a Classificação Internacional de Doenças CID 10 produzida pela Organização Mundial da Saúde WHO 2017 O DSM5 apresenta modalidades diversas do fenômeno depressão inseridas no rol de 82 transtornos depressivos APA 2013 De acordo com o manual o ponto em comum entre as diversas formas que a depressão pode se apresentar é a presença de humor triste vazio ou irritável acompanhado de mudanças somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo APA 2013 p 155 Considerase também que há uma avaliação cuidadosa para delinear o que são tristeza e luto normais de um episódio depressivo maior APA 2013 p 155 Por sua vez o CID10 coloca que o indivíduo costumeiramente sofre de humor deprimido perda de interesse e fatigabilidade associados a outros sintomas WHO 2004 Como mencionado a fim de pautar a discussão a ser elaborada neste capítulo buscaremos inicialmente realizar uma análise fenomenológica do que é apresentado nos manuais como fenômeno da depressão Para tal as Tabelas 1 e 2 ilustram as condições para o diagnóstico de episódio depressivo maior de acordo com o DSMV APA 2013 e o CID10 WHO 2004 respectivamente Convém ressaltar que ambos os manuais apresentam outras modalidades de depressão com pequenas variações na quantidade de sintomas e duração dos episódios por razões de brevidade escolhemos o episódio depressivo maior como um exemplo de como é realizado o diagnóstico a partir do qual teceremos nossas considerações Tabela 1 Critérios diagnósticos de episódio depressivo maior 29699 de acordo com o DSMV Sintomas típicos 1 Humor deprimido Perda de interesse Outros sintomas Alterações de peso eou apetite Alterações no sono Agitação ou retardo psicomotor Fatigabilidade Sentimento de culpa ou inutilidade Diminuição na capacidade de tomar decisões Ideação suicida Demais critérios Os sintomas causam sofrimento ou prejuízo socialocupacional O episódio não é melhor explicado por outra condição médica ou uso de substâncias Nota O paciente deve apresentar pelo menos cinco sintomas incluindo no mínimo um dos sintomas típicos a duração dos sintomas deve ser de pelo menos duas semanas 83 Tabela 2 Critérios diagnósticos de episódio depressivo maior F322 de acordo com o CID10 Sintomas típicos essenciais Humor deprimido Perda de interesse Energia reduzidafatigabilidade Outros sintomas 4 Atenção e concentração reduzidas Autoestima e autoconfiança reduzidas Sentimento de culpa e inutilidade Visão pessimista do futuro Ideação suicida ou de autolesão Perturbação do sono Diminuição do apetite Nota O episódio deve usualmente durar por tempo superior a duas semanas mas não se exclui o diagnóstico antes deste período Partido da observação das Tabelas 1 e 2 o humor deprimido e a perda de interesse nas atividades e fadiga destacamse como os principais sinais para a realização do diagnóstico seguidos pela fatigabilidade convidando a um olhar mais cuidadoso sobre cada um Podemos considerar que perda de interesse nas atividades sugere um interesse anterior assim como atividades específicas que variam de indivíduo para indivíduo Assim falase de algo que estava presente e diminuiu ou se esvaiu Em relação à fadiga parece que estamos considerando uma categoria mais ampla de alterações no sono envolvendo hipersonia ou insônia ou seja há uma modificação no ritmo de sono e descanso do sujeito Agora como podemos definir humor deprimido Neste caso em primeiro lugar observamos o próprio manual diagnóstico do DSM5 APA 2004 Uma busca pelo termo depressed mood humor deprimido tradução nossa retornou um resultado de 72 vezes em que este aparece ao longo do manual Entretanto não foi possível encontrar uma definição clara do que é considerado humor depressivo O que notamos de mais próximo de uma definição encontrase no trecho uma qualidade distinta do humor deprimido caracterizada por desânimo profundo desespero eou morosidade ou pelo chamado humor vazio APA 2004 p 185 Uma busca no CID10 WHO 2004 resultou em três correspondências para depressed mood incluindoo como fator importante para o diagnóstico de depressão 84 Entretanto este manual também não apresenta uma definição do conceito Em busca de uma explicação mais detalhada buscamos no livro Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais Dalgalarrondo 2019 amplamente utilizado em disciplinas de Psicopatologia em todo o país uma definição de humor deprimido Não obstante o resultado não foi muito diferente da busca nos manuais diagnósticos encontramos onze correspondências para o termo humor deprimido e seis para o termo humor depressivo porém nenhuma delas estava atrelada a uma definição clara O mais próximo de uma definição encontrase nos dois trechos a seguir os sintomas depressivos mais importantes são em primeiro lugar o humor deprimido triste na maior parte do dia na maioria dos dias Dalgalarrondo 2019 p 617 onde se associa humor deprimido ao termo triste e ao explicar o conceito de catatimia O delírio de ruína ou culpa do indivíduo com depressão grave é compreensível e derivável psicologicamente de estado de humor alterado catatimia de forma profunda constitui mais um aspecto mais uma dimensão que o humor depressivo adquire Dalgalarrondo 2019 p 387 Através dessa busca simples utilizando palavraschave não ficou claro se há diferença entre humor deprimido e humor depressivo ou se são utilizados como sinônimos concomitantemente pudemos perceber que a definição que procurávamos não se encontra disponível nos manuais Outro ponto relevante que podemos observar nas tabelas é a questão da produtividade expressa no trecho que menciona prejuízo no funcionamento social ou ocupacional Está claro que para haver prejuízo é necessário que exista um estado anterior no qual o indivíduo apresentasse desempenho acima do que apresenta no momento do diagnóstico 85 O DSMV APA 2004 aponta que este prejuízo pode ser aferido a partir da percepção do sujeito e das pessoas com quem este se relaciona É interessante notar a questão do tempo do luto associada ao humor depressivo assinalando que a tristeza por um período superior a dois meses é considerada indício de depressão assim como a expressão sofrimento clinicamente significativo sugerindo que há uma forma de se mensurar o sofrimento acima ou abaixo do que seria considerado relevante para o contexto clínico e de diagnóstico Em adição a diminuição na capacidade de se concentrar igualmente sugere um estado anterior ideal ou melhor de concentração e produtividade seguido de declínio As tabelas também fazem alusão a agitação ou retardo psicomotor que devem ser observados não apenas pelo sujeito considerando a percepção de pessoas do seu convívio e à alterações no apetite contemplando aumento ou diminuição significativas na disposição do indivíduo em ingerir alimentos Chama atenção também o critério que envolve sentimentos de inutilidade e culpa considerada excessiva ou inadequada e que se manifesta com frequência quase diária Este é mais um indício que depende da compreensão do sujeito e do relato realizado a respeito de sua percepção de mundo O DSMV APA 2004 ressalta que esses sentimentos devem ir além da mera culpa por estar doente podemos inferir que haja múltiplas possibilidades que suscitem a sensação de culpa que dependerão da experiência do indivíduo Por fim cabe ressaltar que dentro dos critérios diagnósticos do DSMV APA 2004 pelo menos um dos sintomas apresentados deve ser humor deprimido ou perda de interesse nas atividades e que há um critério temporal de duração onde os sintomas devem estar presentes de forma contínua por pelo menos duas semanas Ansiedade Diagnóstico e Redução Eidética O DSMV APA 2004 apresenta um capítulo a respeito dos transtornos de ansiedade incluindo diversas variações de acordo com o tipo de objeto ou situação que induz uma 86 resposta ansiosa O capítulo propõe uma diferenciação entre medo e ansiedade sendo a última definida como antecipação de ameaça futura enquanto o primeiro é considerado uma resposta emocional a ameaça percebida ou iminente p189 Diferenciase o que é considerado um transtorno do que seria um medo ou ansiedade apropriados principalmente por perdurar além da fase de desenvolvimento em que seria esperado O manual também considera o tempo de duração em geral superior a seis meses como importante para diferenciar de um medo ou ansiedade temporários Um ponto interessante dentre os critérios diagnósticos gerais é a questão da determinação se o medo sentido pelo paciente é excessivo ou fora de proporção que fica a encargo do profissional clínico tendo em vista que indivíduos com transtorno de ansiedade tipicamente superestimam o perigo nas situações que temem ou evitam APA 2004 p 189 é papel do profissional considerar fatores do contexto cultural ao realizar esta análise No supracitado capítulo são mencionadas onze formas de ansiedade organizadas de acordo com a fase de desenvolvimento na qual costumam se manifestar ansiedade de separação mutismo seletivo fobia específica fobia social transtorno do pânico agorafobia ansiedade generalizada ansiedade induzida por substância ou medicamento ansiedade devida a outra condição clínica transtorno ansioso tipificado de outras formas e transtorno ansioso não especificado Estas modalidades distinguemse entre si principalmente pelas situações que tendem a ser temidas ou evitadas e pelo conteúdo das crenças associadas Entretanto aponta se que há tendência notável de comorbidade entre as diferentes modalidades especificadas no manual APA 2004 Para fins da discussão a ser realizada neste capítulo traremos os critérios diagnósticos da ansiedade generalizada como representativo dos transtornos ansiosos ver Tabela 3 tendo em vista que seria pouco prático avaliar cada uma das onze modalidades contidas no manual Uma vez que os mesmos sintomas estão presentes em grande parte das múltiplas categorias de 87 ansiedade que diferem entre si principalmente em relação ao objeto que desperta medo acreditamos que este recorte na análise pode ser realizado sem grande prejuízo para os objetivos de nosso trabalho Tabela 3 Critérios diagnósticos de ansiedade generalizada de acordo com o DSMV Sintomas típicos essenciais Ansiedade e preocupação excessivas relacionadas a temas específicos presente em um período superior a seis meses Dificuldade em controlar a preocupação Outros sintomas 3 Inquietação Fatigabilidade Dificuldade de concentração Irritabilidade Tensão muscular Perturbação no sono Demais critérios Perturbação ou prejuízo clinicamente significativos Condição não ser melhor explicada por outra condição médica ou uso de substâncias Podemos observar na Tabela 3 algumas questões já mencionadas como o critério temporal e a classificação do medo como excessivo em adição há a dificuldade do indivíduo de controlar as preocupações que devem estar associadas a pelo menos três dos seis sintomas a seguir sentimentos de inquietação fatiga dificuldade de concentração ou brancos no pensamento irritabilidade tensão muscular e perturbações no sono As perturbações do sono diferemse da depressão pois não é mencionada hipersonia apenas dificuldade para dormir ou não se sentir descansado o suficiente É necessário que os sintomas estejam causando sofrimento ou dificuldades clinicamente significativas que não sejam atribuídas a uso de substâncias ou a efeitos de outras condições clínicas e que as perturbações experienciadas pelo indivíduo não sejam melhor explicadas por outra condição psicológica Depressão e Ansiedade Redução Transcendental dos Critérios Diagnósticos As observações nas seções acima foram realizadas em epoché ou seja suspendendo 88 todo o conhecimento prévio de forma a poder enxergar o mais claramente possível o fenômeno Neste momento daremos prosseguimento ao uso do método fenomenológico realizando a redução transcendental dos fenômenos da depressão e da ansiedade isto é faremos a reapropriação dos conhecimentos prévios que foram a princípio colocados entre parênteses no momento da redução eidética a fim de tecer alguns comentários a respeito dos dados percebidos a começar pela intrigante questão do humor deprimido no diagnóstico de depressão Com frequência nos deparamos com categorias conceituais que parecem auto evidentes entretanto em harmonia com o método fenomenológico é importante que realizemos uma análise aprofundada a fim de compreender o que exatamente essas categorias propõem Este parece ser o caso do conceito de humor deprimido amplamente mencionado nos manuais diagnósticos APA 2013 WHO 2004 porém sem ter sua definição explicitada Chama atenção que um dos critérios diagnósticos mais importantes para a depressão não seja detalhadamente esclarecido o que pode favorecer o risco de que os profissionais que se utilizam deste critério considerem o conceito como auto explicativo gerando margem para confusões conceituais e interpretações variadas Gostaríamos de sinalizar que esta informação não representa uma falha nos manuais tendo em vista sua proposta mas evidencia a necessidade de que estes sejam percebidos como mais um instrumento útil dentre outros a serem utilizados no processo complexo de diagnosticar o sofrimento e não como fonte única de informações sobre os fenômenos de sofrimento psíquico Em relação ao funcionamento social ou ocupacional podemos associar a noção de prejuízo nesta área com a questão da produtividade no mundo contemporâneo onde o valor do indivíduo muitas vezes encontrase atrelado ao seu poder de consumo Bauman 1998 e consequentemente a seu papel como trabalhador e produtor de renda A questão do funcionamento social também é relevante tendo em vista a forma como os relacionamentos 89 são operados na atualidade suscitando a indagação se existe um ideal de produzir e se relacionar aquém do qual o sujeito passa a ser considerado como adoecido No diagnóstico da ansiedade mencionase dificuldade de concentração Porém há que se ter em vista que a capacidade de concentração média do ser humano é alterada pela quantidade de estímulos a que este é submetido e que esta tem diminuído ao longo dos anos aparentemente consequência da cultura de informações aceleradas em que vivemos Lorenz Spreen Mønsted Hövel Lehmann 2019 Desta forma ao escutar a respeito da percepção do indivíduo sobre sua capacidade de concentrarse é importante que levemos em conta seu modo de vida e o contexto no qual se insere assim como observar se esta falta de concentração é generalizada ou restrita a setores específicos de sua vida como no trabalho ou nas relações O tempo de luto previsto como saudável no manual gerou certa discussão na comunidade acadêmica Boris e Carneiro 2018 apontam como em pouco mais de meio século a perspectiva do luto pelo DSM passou da não abordagem do fenômeno para a patologização com a proposta de se criar uma categoria de Transtorno do Luto Complexo Persistente Michel e Freitas 2019 analisam os argumentos a favor e contra da criação dessa categoria considerando que a exclusão do critério pode levar à patologização de reações esperadas em caso de luto enquanto que os argumentos contrários sugerem que o luto não deveria ser considerado como motivo de exclusão para um diagnóstico de depressão tendo em vista que outros tipos de perda não fazem parte dos critérios de exclusão diagnóstica da depressão Não pretendemos para efeitos deste trabalho tomar parte nesta discussão entretanto vale a pena assinalar como a noção de tempo aceitável para processos de sofrimento permeia os critérios diagnósticos do fenômeno da depressão assim como o fato de eventos de perda absolutamente característicos da vivência humana poderem ser abarcados sob o leque dos 90 critérios diagnósticos a depender da maneira como os indivíduos reajam a eles Isso suscita a questão do tempo na pósmodernidade assim como a cultura de reprimir os sentimentos desconfortáveis pois parece sugerir que há uma forma e prazo adequados para lidar com tais eventos além da qual passa a se considerar o processo como adoecimento Dando prosseguimento à nossa análise ao observar a expressão sofrimento clinicamente significativo e suas implicações cabe questionar como podemos mensurar o que é ou não clinicamente significativo Como é possível determinar o que seria uma tristeza ou medo normais Podemos estender a mesma reflexão ao conceito de culpa excessiva ou inadequada presente no diagnóstico da depressão Neste ponto convém assinalar a importância da implicação da subjetividade do paciente mesmo dentro da psiquiatria tradicional uma vez que o DSMV APA 2004 apresenta múltiplos sintomas que dependem do relato do indivíduo ou de pessoas do seu convívio como é a questão do desânimo da queda de produtividade e motivação e das alterações psicomotoras Entretanto as consultas rápidas prática comum nos consultórios de psiquiatria caminham na contramão da possibilidade de contemplar a realidade da pessoa no processo diagnóstico Desta forma frisamos que os manuais são instrumentos valiosos para a compreensão dos fenômenos de sofrimento frutos de rigoroso trabalho investigativo não obstante este instrumento é utilizado por profissionais que também estão nomundo e como tal estão sujeitos às influências e práticas discursivas de sua época Assim procuramos aqui tecer uma crítica não aos manuais em si mas à forma como estes são apropriados em nossa cultura para abordar o sofrimento É necessário ter em mente que para além do diagnóstico estamos falando de pessoas ainda que os sintomas sejam semelhantes a experiência do sujeito que sofre sempre será única em seu contexto de existência e portanto deve ser considerada como essencial a 91 qualquer proposta de tratamento E quando falamos em contemplar o sujeito considerando que este se faz nomundo tornase imprescindível observar também as condições nas quais a pessoa está inserida E é deste entendimento que surge a proposta deste capítulo de aproximar as características da ansiedade e depressão das configurações do modo de vida contemporâneo em busca de relações significativas Tecendo Considerações Para além dos Sintomas do Diagnóstico Nas seções anteriores procuramos observar o que os principais manuais diagnósticos têm a dizer a respeito das modalidades de sofrimento de interesse para esse trabalho Neste momento pretendemos abordar algo que está para além dos sintomas e do diagnóstico a fim de pensar a respeito da realidade do indivíduo que apresenta esses sinais em sua maneira de existir Os sintomas são importantes para entender o quadro mas são manifestações de algo maior a saber o sofrimento do sujeito Como coloca Ribeiro 2019 essa é uma das funções da psicoterapia mais do que lidar com a estrutura do sintoma descobrir como ele se estruturou conduz ao caminho de novas mudanças p 192 Como podemos definir esse sofrimento Decerto é essencial contemplar a individualidade nesse processo buscando o significado dos comportamentos em relação com a realidade da pessoa o que altera a questão principal de quais são os sintomas para o que eles representam na vida do sujeito e o que estão comunicando Como apresentado em Heidegger 19272018 e Sartre 19432007 a angústia é revestida de potencial mobilizador desde que haja um questionamento da situação na qual a pessoa se encontra e de sua responsabilidade em relação às escolhas de vida em um mundo carregado de informações a respeito do que se deve sentir pensar fazer e falar Por exemplo observando os principais sintomas depressivos é notável a diminuição no ritmo do sujeito que se expressa também no corpo Podemos dizer que a pessoa adota um modo lento de funcionar condizente com uma temporalidade interna que não acompanha o 92 ritmo social do mundo Da mesma forma os gestos lânguidos o excesso de sono e alterações no apetite comunicam uma corporeidade desacelerada enquanto o humor depressivo e os sentimentos de culpa falam de uma angústia que não surge no vazio ou seja relacionase a algo que seja significativo dentro da realidade do sujeito o que indica como a vivência do tempo temporalidade e do espaço espacialidade afeta o modo de ser do indivíduo MerleauPonty 19451999 Na ansiedade a temporalidade e espacialidade se apresentam de maneira diversa que sugere uma paralisação ativa no sentido de que a pessoa tem dificuldade de concentrarse nas atividades do aquiagora pois sua energia encontrase focada em antecipar possíveis riscos e propiciar um estado de alerta para reagir expressa no corpo através da falta de sono da agitação nos gestos e tensão muscular E sendo o estar alerta necessariamente estar alerta a alguma coisa tornase evidente a existência dessa alguma coisa na experiência do sujeito no mundo que se configura como ameaça constante Desta forma o sintoma desenrolase como possível questionamento de facetas da experiência de existir que não estão necessariamente sendo observadas analiticamente pela pessoa mas que se encontram presentes de forma ativa na totalidade de seu ser e em suas possibilidades de ação A partir daí podemos perceber seu grande valor enquanto dado concreto a respeito do funcionamento do indivíduo a tal ponto que seria possível afirmar que não é possível se conhecer sem conhecer também os próprios padrões e sintomas Paralelamente o silenciamento do sintoma incorre na perda dessa fonte valiosa de informações sobre o sujeito Ressaltando a necessidade de se compreender a vivência específica de cada um passaremos a analisar as condições da pósmodernidade enquanto componentes da situação dos indivíduos buscando pensar a relação entre o sujeito que se encontra nomundo com as condições dadas atualmente pois dado que o ser humano é livre para escolher o que fazer 93 diante da situação do mundo esta situação tem papel ativo em limitar ou fornecer as condições da existência Situação PósModerna Sofrimento e Possibilidades de Existência Resgatando as considerações a respeito da pósmodernidade tecidas no capítulo 1 podemos considerar que talvez sua principal característica seja a crise nas metanarrativas Bauman 1998 Harvey 19892017 Lipovetsky Charles 20042018 e o rompimento com grandes discursos e paradigmas das mais diversas áreas incluindo ciência religião e política entre outras Vivemos em uma época de ruptura com ideologias e de uma incredulidade generalizada Podese considerar que houve grande mudança na perspectiva que temos sobre o que é a verdade além do surgimento de marcada desconfiança em relação às instituições Na era moderna o indivíduo vivia com a tranquilidade das certezas sólidas na pós modernidade vivese com a angústia das mudanças constantes Neste contexto há um aumento da possibilidade de o indivíduo questionar os múltiplos sistemas de crenças disponíveis entretanto parece haver também uma espécie de desconexão uma liquidez para usar o conceito de Bauman 2001 que dificulta a interpretação do mundo e principalmente as possibilidades de se criar planos futuros tendo em vista que os panoramas atuais podem se alterar e reconfigurar com extrema rapidez Bauman 1998 e Harvey 19892017 apontam as implicações disto na criação de planos e de um projeto de futuro Podemos estender essa reflexão para considerar a questão da produção de sentido por parte do sujeito pósmoderno como fica o indivíduo em um mundo de certezas fluidas Não é difícil imaginar o impacto dessa tendência social nos indivíduos convivendo com nossos diagnósticos de interesse para as pessoas ansiosas a incerteza pode se traduzir em insegurança e medo de um futuro imprevisível para os depressivos em descrença e 94 pessimismo em relação a este futuro além de despropósito em relação ao presente Afinal se nada é garantido e tudo pode mudar de uma hora para a outra qual o sentido de agir e executar planos no presente Do que adianta ser livre para escolher se não há mais segurança para avaliar as consequências de cada escolha A questão da liberdade continua em voga desde o Projeto das Luzes passando pelos ideais modernos e continuando expressiva em nosso tempo É dada ao sujeito a possibilidade de construirse como quiser com uma infinidade de opções para fazerse enquanto pessoa e expressar sua individualidade havendo mesmo uma tendência ao individualismo e a um mínimo de limites e compromissos estando a sociedade voltada para uma busca constante pelo prazer Bauman 1998 Entretanto podemos falar em um outro lado desta moeda Bauman 1998 coloca que o indivíduo pósmoderno renunciou a sua segurança em troca da promessa de liberdade Como vimos esta barganha acarreta um alto custo mental Adicionalmente é necessário questionar a quem é dado o direito de se fazer como quiser Como aponta o autor a dignidade humana está atualmente atrelada ao poder de consumo assim o estar livre encontrase condicionado ao poder do sujeito de acessar a infinidade de produtos e serviços disponíveis de forma que a liberdade tem um custo bastante literal além do psíquico Além do mais o Estado já não se responsabiliza como antes pelo bemestar de seus cidadãos e os ideais de meritocracia direcionam para o sujeito a responsabilidade de criar seus caminhos muitas vezes desconsiderando as condições a ele oferecidas Podemos pensar aqui no impacto da liberdade pósmoderna para nosso sujeito depressivo as ideias de desvalorização de si de não ser capaz ou suficiente só podem ser agravadas pela realidade supra descrita Adicionalmente a busca constante pelo prazer sem sentido incapaz de preencher o vazio existencial pode agravar o embotamento característico da depressão 95 O funcionamento ansioso por seu lado pode ter sua temporalidade afetada pelo discurso dos prazeres efêmeros ou seja encontrarse suscetível à ideia de que sempre há algo melhor e mais divertido disponível consequentemente agitandose em direção ao futuro e apresentando dificuldade em focar nas vivências de cada momento Ademais se o direito à dignidade humana é facultado apenas àqueles que tem poder de compra a possibilidade de perder esta condição ou seja a preocupação com dinheiro e com trabalho é um constante temor na vida de todos os indivíduos contemporâneos estando os ansiosos particularmente vulneráveis a essas inquietações Retomando a análise das configurações de nossa sociedade a marcada tendência à transitoriedade dificulta o estabelecimento de planos sólidos sem a certeza da durabilidade das instituições e com o ritmo acelerado com que a sociedade se transforma tornase quase impossível prever com acuidade um panorama de futuro e consequentemente tomar decisões que possibilitem construir um projeto para os dias vindouros Paralelamente a responsabilidade da tarefa de atribuir sentido às coisas migra de um grande projeto de sociedade como foi na idade moderna para uma espécie de terceirização ou seja há um vazio que deve ser preenchido e uma infinidade de empresas discursos e produtos disputando a chance de ocupar momentaneamente esse lugar até que a próxima grande solução apareça Este ponto dialoga especialmente com a ausência de sentido e o tédio existencial apresentados pelos indivíduos depressivos Outro ponto marcante da pósmodernidade é o desenvolvimento tecnológico acelerado principalmente os meios de comunicação em massa advindos das possibilidades que a internet traz mas também tecnologias nucleares de transporte robótica avanços na medicina e nos meios de produção o que acarreta em diversas novas modalidades de serviços e estratégias empresariais como a possibilidade de fabricar diferentes partes de um mesmo produto em países diversos explorando a mão de obra mais barata possível 96 Com as novas modalidades de trabalho manifestase uma tendência à terceirização enfraquecimento das organizações sindicais flexibilização nas leis trabalhistas e valorização do chamado empreendedorismo ou seja ideais de que o mercado informal guarda oportunidades maiores de crescimento em oposição à fé na estabilidade presente na época moderna Harvey 19892017 realiza uma análise muito interessante da experiência de tempo e espaço nas sociedades moderna e pós moderna principiando pela observação de que apesar de serem categorias fundamentais da experiência humana pouco nos questionamos sobre o seu sentido Entretanto para o autor tempo e espaço só podem ser considerados a partir dos processos materiais que os fundamentam ou seja cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos do tempo e espaço p189 Consequentemente as transformações sociais advindas da pósmodernidade também atuam uma transformação nas relações de tempo e espaço processo iniciado no final da Idade Média com a gradativa mercantilização dessas dimensões da experiência e que se desenrola até os dias atuais Para Harvey 19892017 as relações entre dinheiro espaço e tempo operam na sociedade contemporânea como fontes interligadas de poder social As consequências desta interligação são diversas na pósmodernidade houve uma intensa fase de compressão do tempoespaço que tem tido um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas políticoeconômicas sobre o equilíbrio de poder de classe bem como sobre a vida social e cultural Harvey 19892017 p257 Assim espaço e tempo passam a ser pensados em função da relação com o capital Isto implica em uma sujeição do tempo ao giro monetário cujo efeito propiciou uma sociedade acelerada em seu ritmo Quanto mais se produz e se vende maiores os lucros portanto volatilidade tornase a palavra de ordem no sentido em que há ênfase nos valores da 97 instantaneidade que terminam por produzir um contexto cultural onde se preza pelo rápido descarte e substituição de produtos princípios e relações entre outros o que por sua vez impacta diretamente na experiência cotidiana dos sujeitos Harvey 19892017 Para operar a volatilidade fazse necessário manipular as preferências e opiniões assim como apresentar novidades reais ou aparentes de forma constante Neste ponto o papel da mídia e da publicidade tornase especialmente relevante transmutando sua principal função de informar e promover em um fenômeno muito maior de influenciar e mesmo manufaturar desejos e gostos a fim de promover altos índices de consumo De forma complementar é exigido que a produtividade esteja sempre em alta para suprir a demanda que é criada por este sistema Em resumo buscase que o ciclo de produção e comercialização gire o mais aceleradamente possível maximizando os lucros até o limite do viável ou seja o tempo deve trabalhar em função do fluxo de capital Por conseguinte há uma aceleração tal na relação com o tempo que podemos afirmar que a pósmodernidade apresenta a organização social mais acelerada da História o que em parte se deve ao desenvolvimento de novas tecnologias de produção e comunicação de caráter essencial em termos de possibilitar que esta mudança na temporalidade acontecesse Uma destas tecnologias que merece destaque são os meios de comunicação em massa tendo em vista o impacto que produziram na sociedade possibilitando a comunicação instantânea as modalidades de relacionamento se alteraram assim como o alcance de propagandas e a relação com o conceito de privacidade Bauman 2011 certa vez comentou em entrevista que um dos momentos que marcam o início da pósmodernidade ocorreu em um programa de televisão onde uma dona de casa compartilhou detalhes de sua vida sexual com o marido O que atualmente parece uma prática comum com espaços virtuais como Facebook e Twitter dedicados ao compartilhamento de 98 informações pessoais na época sinalizou uma grande mudança no paradigma da privacidade uma vez que anteriormente se considerava que detalhes da vida de cada um deveriam ser mantidos em segredo ou divididos apenas com pessoas do círculo íntimo de confiança Na contemporaneidade a hiperexposição é condição para o fazerse visto em íntima relação com a noção de identidade como projeto Bauman 1998 Tavares 2010 resgata o conceito de sociedade espetacular afirmando que é no cenário concebido como espetáculo que a performance exibicionista dos sujeitos visa ao reconhecimento contínuo de seus espectadores e para isso pagase o preço das identidades fluidas e vazias de sentido e significado p34 Desta forma a exposição vinculase ao processo de se construir enquanto sujeito em uma sociedade onde não há tempo ou condições favoráveis para a criação de identidades duradouras Podemos relacionar a cultura da hiperexposição com características depressivas tanto quanto ansiosas no primeiro caso as ideias de baixo valor em relação aos outros podem no mínimo ser exacerbadas por uma configuração social que preza pela exposição de supostas vidas perfeitas na internet Em termos simplificados não é difícil se sentir pior do que os outros quando o que conhecemos desses outros é um recorte de momentos que os apresentam sempre sob luz favorável E no caso da ansiedade a preocupação excessiva com o julgamento do outro é alimentada pela cultura que possibilita que mesmo o indivíduo mais comum esteja sob os holofotes da opinião pública Nesta ótica o parecer ganha importância em relação ao ser ademais um ambiente subjetivo vazio de sentido é um meio fértil para a proliferação dos efeitos das propagandas presentes também em novas modalidades como é o caso dos influencers pessoas com visibilidade nas redes sociais que recebem contratos publicitários e produtos para divulgar determinadas marcas como parte de seu estilo de vida e portanto de uma identidade que é passível de ser comercializada 99 Outro impacto relevante da superexposição relacionase ao controle social por meio de dados se a identidade é vinculada ao consumo informações a respeito das preferências e práticas dos indivíduos tornamse extremamente valiosas para direcionar as propagandas e prever tendências de comportamento Assim os dados relativos a cada indivíduo configuram uma commodity valiosa tanto para as empresas quanto para os governos O papel da informação e dos meios de comunicação de massa na política vem sendo cada vez mais explorado nas últimas eleições por exemplo a formação de opinião por meio das redes sociais e principalmente do whatsapp influenciaram diretamente no processo eleitoral O monitoramento de opiniões expressas online também é largamente utilizado para traçar estratégias governamentais e campanhas políticas Considerando o acima exposto parece claro que as organizações sociais contemporâneas orientamse em torno das demandas do sistema econômico e são constantemente permeadas por sua lógica Mas como ficam as possibilidades de existência nessa situação Em primeiro lugar o indivíduo pósmoderno é livre como poucos sistemas anteriores permitiam existindo em uma configuração socioeconômica que possibilita mobilidade social e acolhe a ideia da essência de cada um como um processo e não mais como algo pré determinado pelo nascimento Bauman 1998 pode deslocarse para diversos lugares no planeta acessar conhecimentos e conteúdos informacionais com extrema facilidade e obter sem muita demora tudo aquilo que deseje ou necessite desde que possa arcar com os custos Em contrapartida existe em um mundo de certezas fugazes com seu valor enquanto ser humano atrelado a sua capacidade de acumular capital O rompimento com os grandes discursos a cultura da descartabilidade e a falta de confiança nas instituições delineiam um mundo incerto consequentemente o sujeito sofre com a incerteza a dificuldade de traçar planos de futuro e o conflito entre o planejamento 100 sólido moderno e as circunstâncias atuais Um exemplo disto são os estudantes universitários que seguem um projeto de vida pautado no discurso moderno da estabilidade estudar e ter acesso a uma boa formação como forma de garantir um emprego sólido e a partir disto estabelecer a vida plano que é atualmente confrontado com a realidade de um mercado instável e condições econômicas instáveis Assim podemos dizer que apesar da quebra nos grandes discursos ainda há um desejo por estabilidade e por se encontrar enquanto sujeito no mundo Entretanto tal desejo conflita com as condições da pósmodernidade o que configura potencial fonte de angústia passível de atingir a todos que vivenciam essas circunstâncias sociais Há algo da própria relação com a angústia que é extremamente relevante para nossa discussão o indivíduo contemporâneo parece ter aversão à ideia de estar mal o que já sugere uma atitude de considerar essa angústia como algo necessariamente negativo e que deve ser evitado a todo custo Em uma época de marcado hedonismo e que preza pela busca do máximo possível de prazer individual qualquer incômodo é encarado como algo que deve ser erradicado Esta visão é problemática em dois sentidos primeiro por desvincular o sujeito de experiências que são parte da vivência humana e segundamente por estar atrelada à lógica de consumo e meritocracia na qual todos supostamente podem ser felizes e bemsucedidos desde que se esforcem o suficiente o que acarreta um sentimento de culpa associado ao não estar bem Se a noção de felicidade é associada a produtos nas propagandas o indivíduo que não é feliz falhou como consumidor e portanto como sujeito na era do consumo Além disso há uma atitude blasé decorrente do bloqueio de estímulos sensoriais em resposta à sobrecarga sensorial gerada pelo bombardeio de informações possibilitados pelos meios de comunicação em massa Harvey 19892017 o que sugere que a pessoa já não é afetada pela relação sernomundo da mesma maneira que era em outras épocas Estudos 101 apontam que a capacidade de concentração também fica prejudicada LorenzSpreen Mønsted Hövel Lehmann 2019 pela quantidade de informações associadas ao uso de redes sociais As novas modalidades de comunicação também reconfiguraram a questão do consumo Harvey 19892017 exacerbando as práticas de comprar e modificando a relação das pessoas com este ato além de terem expandido a gama do que é possível consumir possibilitando a comercialização muito além de meros produtos mas de ideias serviços e até mesmo de estilos de vida Podemos perceber esta relação permeando a questão da estética por exemplo Há uma variedade incrível de produtos serviços e práticas vinculados a ideia do corpo perfeito desta forma o indivíduo que adquire uma máquina de exercícios ou um creme facial rejuvenescedor ou um curso de alimentação low carb raramente está adquirindo o produto em si e sim a ideia de atingir uma estética considerada ideal e através dela obter uma vida mais plena e feliz Aliás a preocupação estética permeia a questão do corpo dimensão imprescindível da relação humana com o ambiente e que se encontra profundamente adoecida na atualidade Considerando o estilo de vida acelerado a dicotomia cartesiana que permeia os principais discursos e o produtivismo há um desligamento da vivência do corpo que parece ser considerado como algo a ser moldado e apresentado para os outros muito mais do que uma parte integrante do sujeito e fonte de experiências Desta forma o corpo é relegado a segundo plano ao mesmo tempo em que se preza pelo conforto e se exige uma estética padronizada o estilo de vida contemporâneo não permite muito tempo para ouvir as demandas do corpo e com ele se relacionar Se pensarmos que a jornada média de trabalho é de 40 horas semanais sem contar o trabalho doméstico e tempo de deslocamento que o trabalho não respeita a lógica do corpo 102 seja sujeitandoo a condições de esforço extremo ou a horas seguidas sentado e sem movimentação que o tempo acelerado exige soluções rápidas alimentação rápida etc podemos afirmar que as condições atuais contribuem para um estilo de vida muito pouco saudável Entretanto as pressões estéticas frequentemente vinculadas ao discurso de preocupação com a saúde exigem que a pessoa se apresente com o melhor corpo possível o que parece produzir uma corporeidade bastante confusa onde estamos desligados do corpo e concomitantemente extremamente preocupados com ele enquanto forma de se apresentar para os outros Na lógica de que pessoas passam a serem pensadas também como uma espécie de produto o corpo tornase precioso enquanto embalagem ou representação daquilo que se deseja transmitir o que evidencia uma relação de subordinação e exibição deste corpo que é estranho e ao mesmo tempo implicado na busca pelo prazer pois é dimensão de vivência do prazer instrumento de manifestação do narcisismo em voga porém desconhecido e pouco experienciado em sua totalidade pelo indivíduo Outro desdobramento da influência da lógica mercantil sobre os indivíduos é o modo com que as pessoas se relacionam Em sua obra Amor Líquido Bauman 2004 realiza uma análise das relações nesta época de incertezas na qual aponta como a lógica do consumo veio a permear as interações humanas Há uma disparidade entre o desejo de se relacionar e o medo das restrições que a condição de estar ligado ao outro inevitavelmente impõe além da dificuldade de se comprometer em um mundo que preza pelo descarte e substituição constante pelo novo e melhor Desta forma a promessa de aprender a arte de amar é a oferta falsa enganosa mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira de construir a experiência amorosa à semelhança de outras mercadorias que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e 103 prometem desejo sem ansiedade esforço sem suor e resultados sem esforço Bauman 2004 p12 Compõese então um cenário onde os indivíduos precisam conectarse desejam afeto e os benefícios que as relações trazem entretanto as relações não tem a garantia da permanência Bauman 2004 p 6 sendo os laços facilmente desfeitos de acordo com qualquer mudança de cenário ou problema que a relação venha a apresentar A própria ânsia pela conexão vem acompanhada da aversão ao compromisso e à perda de possíveis oportunidades melhores Em consequência desse cenário as relações tendem a ser rasas com cada qual buscando o máximo de benefícios com o mínimo possível de envolvimento inicialmente por opção mas depois por falta de recursos para fazer de outra forma Bauman 2004 também ressalta a substituição da ideia de laços e compromissos por redes e conexões múltiplas relações fluidas e de pouca profundidade em oposição a relações profundas e duradouras que esperavase que durassem a vida toda Inserido neste panorama o humano pósmoderno é livre para fazerse enquanto sujeito porém perdido e angustiado em um mundo de possibilidades vastas e descartáveis Existe em um solo sociocultural fértil para que surja um sentimento de culpa pela angústia sentida uma vez que a lógica meritocrata e individualista vigente responsabiliza o sujeito por sua condição no mundo e as tendências ao hedonismo e busca pelo prazer máximo produzem um entendimento dessa angústia como algo a ser erradicado Bombardeado de estímulos acaba por incorrer em uma desconexão com o mundo normatizando as mudanças aceleradas e buscando o máximo de prazer e liberdade Desta forma realiza sua busca de sentido para a experiência humana em produtos e discursos externos oferecidos de forma constante Preocupase em demasia com as aparências e aquisições em harmonia com a cultura da descartabilidade e aceita a vigilância e a 104 hiperexposição como condição para o ser visto pelos outros com os quais se relaciona de forma supérflua onde a palavra de ordem é quantidade e a ruptura pode ocorrer a qualquer momento Há uma dificuldade manifesta de sentir o outro tanto nas relações íntimas quanto de forma geral o sujeito tem dificuldade para se colocar no lugar do outro e empatizar e há uma tendência a mercantilizar as relações tratando as pessoas como produtos Bauman 2004 Em contrapartida as pessoas sentem o vazio de serem tratadas desta forma pelos outros e encontramse em um estado paradoxal de desejar e temer os vínculos profundos almejando afeto mas evitando qualquer responsabilidade a ele atrelada Em resumo parece haver uma fome constante por conexões acompanhada da aversão a conectarse de forma que o indivíduo vive suas relações como um rio que corre veloz com as mudanças mas carece de profundidade de tal forma que o vazio não é preenchido por significados plenos e sim por tapaburacos modas e sentidos passageiros O Grito do Corpo Sintoma como Expressão de Desconforto com a Realidade É importante ressaltar que estamos analisando uma tendência dadas as condições do mundo e considerando que o sujeito se faz em situação Desta forma a análise acima realizada busca explicitar quais condições de existência são facilitadas pela situação do mundo decorrente de nossa organização sociocultural contemporânea Para este efeito procuramos construir um quadro geral da sociedade contemporânea e é necessário frisar que apesar do processo de globalização ter disseminado a cultura ocidental em especial a estadounidense pelo globo a pósmodernidade não é igual em todos os lugares do mundo Neste aspecto sem dúvida nossa análise constitui um esboço que carece de estudos mais aprofundados particularmente se considerarmos o contexto brasileiro e suas especificidades Adicionalmente as observações a respeito das tendências aqui descritas deve ser 105 relativizadas também para contemplar a subjetividade de cada um e a forma como a pessoa se relaciona com as influências do mundo e é por elas afetada entretanto dado que sujeito se faz nomundo não há como dissociar sua subjetividade das condições nas quais ele existe Consequentemente não há como dissociar seu sofrimento da situação em que está inserido Assim a depressão e a ansiedade não devem ser percebidas apenas como maneiras do sujeito funcionar como se esse existisse no vazio e sim pensadas em relação com as circunstâncias migrando de uma causalidade individual e da responsabilização do sujeito por seu adoecimento para um panorama de possibilidades e tendências regidos pelas configurações sociais e que devem levar em conta essas configurações e seu impacto na existência ao pensar um plano de tratamento Resgatemos agora o que observamos a respeito dessas modalidades de sofrimento de acordo com os critérios diagnósticos do DSMV APA 2013 e CID10 WHO 2004 em conexão com o entendimento de que os sintomas são uma forma do corpo comunicar que algo não está bem Uma característica marcante tanto da depressão quanto da ansiedade é a dificuldade em produzir da mesma forma que antes ou seja parece haver uma paralização do indivíduo Na depressão ela opera uma languidez do corpo como se faltasse energia para continuar na ansiedade acelera os movimentos e há um estado de se preparar constantemente para reagir a possíveis ameaças tirando a concentração do indivíduo no aquiagora e voltandoa para a preocupação com um futuro que é incerto Tendo em vista o que conhecemos a respeito da temporalidade e da exigência de produtividade na era pósmoderna é interessante perceber que os principais transtornos mentais agem justamente no sentido de alterar o tempo do sujeito e interferir nessa produtividade A seguir podemos ressaltar os pensamentos associados a essas duas modalidades de sofrimento e como eles se relacionam com os discursos vigentes na contemporaneidade a 106 depressão por exemplo vem associada a sentimentos de inutilidade e culpa o que parece fazer todo o sentido tendo em vista a lógica de mercantilizar o valor do indivíduo assim como as ideias de meritocracia que acompanham tal raciocínio Por sua vez a ansiedade parece ser um estado de estar sempre pronto para reagir a uma incerteza do futuro o que evoca a situação de fluidez constante falta de instituições sólidas e mudanças aceleradas da pós modernidade que muitas vezes culminam na precarização dos modos de vida Além disso há a questão do vazio existencial presente nas mais diversas demandas clínicas mas principalmente na depressão o indivíduo relata sentirse esvaziado sem sentido e propósito com dificuldade de vislumbrar um futuro e fazer planos para sua chegada Essa sensação remete diretamente ao caldo cultural pósmoderno tendo em vista que nossa época é chamada de era do vazio Bauman 1998 Desta forma não podemos pensar na dificuldade do sujeito em produzir seu próprio sentido sem considerar que as articulações sociais direcionam para uma ausência de significados profundos a fim de estimular o consumo de produtos e modas passageiras Chama atenção também a forma de se relacionar tanto na ansiedade quanto na depressão os laços sociais são afetados Na última há uma dificuldade de se doar e de fazer a manutenção dos vínculos a sensação de que as pessoas não se importam e o desejo por se isolar porém acompanhado pela necessidade de ser cuidado Já na ansiedade os indivíduos podem experienciar angústia com a ideia de obrigações sociais desconforto em se sentirem observados medo do olhar e da percepção julgamento dos outros Esses sentimentos evocam as formas de se relacionar da nossa época os desafios de se conectar a super exposição e o desejo de receber cuidado e afeto sem estar disposto ou conseguir arcar com as responsabilidades e o custo deste afeto Desta forma o sintoma aparece como potencial comunicador e mesmo de resistência às tendências da situação atual convidando o sujeito a repensar seu modo de existir no 107 mundo Não propomos aqui traçar uma relação de causalidade e sim levantar articulações entre o funcionamento social e a forma como o sofrimento se manifesta defendendo a posição de que este sofrimento não se faz no vazio e não se desenvolve de maneiras específicas por acaso Consequentemente não pretendemos afirmar que a função do sintoma é uma espécie de protesto do corpo a determinadas condições de existência apesar de ser uma hipótese interessante a ser mais amplamente investigada entretanto consideramos que o sintoma pode ser utilizado para acessar os incômodos do sujeito com sua situação e promover elaborações a respeito disso Existência Autêntica como Dimensão Clínica de Cuidado Tendo em vista as análises realizadas e a percepção da fenomenologia em relação ao papel da angústia na vida dos sujeitos propomos pensar no papel da autenticidade em meio a este panorama social e principalmente no caso dos indivíduos em sofrimento do tipo depressivo ou ansioso Esperamos que neste ponto esteja clara a necessidade de envolver o sujeito em qualquer estudo a respeito da subjetividade assim como a indissociabilidade do que é o sujeito de sua relação nomundo Nesta seção resgataremos o conceito de existência autêntica e inautêntica em contraste com a situação pós moderna ou seja convidamos o leitor a questionar dadas as condições de existência atuais qual espaço há para o ser humano desenvolver uma existência plena de significado e autenticidade Desta forma convém ressaltar o papel da angústia para uma existência autêntica e repleta de significado uma vez que é através dela que o sujeito pode ser mobilizado no sentido de questionar sua realidade seu papel no mundo enquanto indivíduo livre para realizar escolhas e sua responsabilidade por estas Na perspectiva de Sartre 19432007 e Heidegger 19272018 é partindo da angústia que o indivíduo se constitui de forma plena e 108 implicada nomundo Por conseguinte acessar e trabalhar essa angústia é fundamental para a constituição de uma existência autêntica E como visto anteriormente no caso de pacientes em sofrimento o sintoma pode ser utilizado como ponto de partida para acessar a angústia Tomando como exemplo as modalidades de sofrimento de interesse do nosso trabalho é possível melhor evidenciar a relação entre sintoma sofrimento como parte da vida sofrimento paralisante e a angústia em seu papel fundamental Em um indivíduo que sofre de ansiedade eou depressão os sintomas operam como agente comunicador de que algo não está bem Associados a esses sintomas existem gatilhos e pensamentos que podem ser utilizados como pistas para definir esse algo ou seja para delimitar de que forma a angústia está operando na existência daquela pessoa Per si a angústia é parte da vida pois estamos todos sujeitos a perdas frustrações e à finitude da morte Entretanto a forma de acessála ou a reprimir que diferencia o sofrimento como solo de produção de sentido em harmonia com a noção de existência autêntica Sartre 19432007 Heidegger 19272018 do sofrimento paralisante e com potencial destrutivo Partindo desta concepção e articulando com o que conhecemos sobre o funcionamento sociocultural pósmoderno já nos deparamos com o primeiro grande desafio à busca pela autenticidade não há muito lugar em nossa sociedade para a angústia e inquietação existencial O zeitgeist hedonista impulsiona a busca pelo prazer com o mínimo possível de esforço contribuindo para uma desconexão do sujeito com certas dimensões da vivência humana que são encaradas como negativas e portanto algo a ser silenciado em geral por meio da aquisição de algum produto Desta forma o sujeito pósmoderno teme a angústia e diante dela sua resposta tende a ser a paralisia ou a busca por erradicar o incômodo no que é auxiliado por diversos medicamentos e práticas que promovem uma concepção de saúde que não contempla o sofrimento como parte necessária da vivência humana Porém se a angústia é suprimida o 109 mesmo ocorre com seu potencial mobilizador e consequentemente com as produções que poderiam ser elaboradas a partir dela incluindo a autenticidade Apenas por este motivo já poderíamos especular que a pósmodernidade é um solo árido para o desenvolvimento de uma existência autêntica em adição devemos considerar a fluidez da época e o impacto que as mudanças têm sobre a capacidade do indivíduo de pensar as coisas a longo prazo e tecer elaborações Harvey 19892017 Bauman 1998 de tal forma que parece mais difícil realizar reflexões filosóficas e existenciais em um mundo em constante mudança e que carece de referências fixas Para além disso a questão da temporalidade acelerada e a desconexão com o corpo enquanto parte integrante do ser também são fatores que dificultam uma existência que tenha um tempo próprio e esteja integrada em suas dimensões de psique corpo e espírito enquanto constituintes desse ser autêntico Por fim podemos citar também a questão da cultura da descartabilidade a dificuldade em se comprometer e necessidade de que o indivíduo seja flexível fatores que podem influenciar negativamente o processo de se construir enquanto sujeito autêntico uma vez que a autenticidade parece requerer uma identidade sólida Dadas essas circunstâncias defendemos que resgatar a angústia enquanto fator mobilizador do sujeito trabalhar a temporalidade a conexão com o corpo e instrumentalizar a pessoa a se responsabilizar pela existência e a produzir o próprio sentido de vida através da reflexão quanto às suas escolhas são formas essenciais de cuidar de sujeitos que estão perdidos e sofrem com isso Ou seja as condições da sociedade atual não parecem favorecer o desenvolvimento da autenticidade mas na clínica fenomenológica podemos fazer um trabalho de subversão desta tendência É nesse sentido que o conceito de existência autêntica pode ser apropriado enquanto dimensão clínica de cuidado fundamentando um plano terapêutico que busque 1 Reconhecer a influência da situação promovendo um questionamento filosófico do 110 mundo de forma a dissociar o sofrimento da noção de doença e da causalidade exclusivamente no âmbito individual 2 Instrumentalizar o sujeito para se responsabilizar por suas escolhas diante da situação na qual está inserido 3 Acessar e trabalhar a angústia em seu potencial mobilizador a fim de promover a busca pela autenticidade e por uma existência plena de sentidos de elaboração própria do paciente Desta forma visamos que o entendimento e acolhimento clínico do sujeito que sofre possa ser realizado no sentido de promover qualidade de vida e de confrontar a angústia como dimensão essencial do ser e principalmente de promover autonomia para que o indivíduo se construa enquanto pessoa e se implique no processo de pensar a própria existência e subjetividade desenvolvendo recursos para um desenvolvimento pleno do indivíduo em situação de sujeito pósmoderno 111 Considerações Finais A ansiedade e a depressão são consideradas uma questão de saúde pública devido a seu impacto na vida de milhões de indivíduos e ao alto custo econômico e social associado a esses fenômenos WHO 2017 Partindo do pressuposto de que os sintomas não se produzem no vazio havendo ampla influência das organizações socioculturais na forma como os indivíduos se subjetivam Foucault 19631977 Tavares 2010 Watters 2010 Dantas Sá Carreteiro 2009 este trabalho procurou investigar as principais características da sociedade contemporânea e a maneira com que estas se relacionam com as modalidades de sofrimento do tipo depressivo e ansioso Partimos da concepção fenomenológica de sujeito que existe nomundo ou seja se constrói como indivíduo a partir de sua relação com o mundo no qual se encontra espaço tecido pelo conjunto de situações Sartre 19432007 que compõe o pano da realidade Adotamos também uma perspectiva fenomenológica do sofrimento compreendendoo como algo que é parte fundamental da vivência humana e como tal rico de potencialidades cabendo a cada sujeito produzir sentido sobre suas angústias e implicarse em sua própria vivência a fim de produzir uma existência plena de autenticidade Heidegger 19272018 Sartre 19432007 O caminho a ser percorrido na investigação de nosso problema foi dividido em três etapas Primeiramente procuramos definir as principais características da pósmodernidade Este processo não foi isento de dificuldades tendo em vista o desafio de se traçar um panorama de uma época na qual o próprio sujeitopesquisador está inserido Bauman 1998 Harvey 19892017 assim como o equilíbrio delicado de expor a perspectiva de grandes nomes da área Bauman 1998 2001 2004 Harvey 19892017 Lipovetsky Charles 20042018 sem filiarse a uma teoria específica e sim procurando esboçar um quadro geral de nossas configurações sociais contemporâneas 112 Em segundo lugar nos lançamos à tarefa de apresentar a perspectiva fenomenológica do sujeito AllesBelo 2006 Heidegger 19272018 Sartre 19432007 e seu impacto na compreensão clínica e teórica dos fenômenos de sofrimento psíquico paralelamente buscamos apresentar o método fenomenológico como ferramenta de investigação e esmiuçar o conceito de existência autêntica e seus desdobramentos no estudo da angústia e do sofrimento humano Por fim foi realizada uma aplicação do método fenomenológico sobre os critérios diagnósticos de depressão e ansiedade do DSMV e CID10 a partir dos quais tecemos considerações relacionando os sintomas compreendidos como modalidades de expressão de angústia e as características da organização social pósmoderna Este processo evidenciou paralelos entre as condições do mundo contemporâneo e a forma como as pessoas sofrem corroborando a hipótese inicial de que há algo no modo de vida pósmoderno que contribui para o desenvolvimento da depressão e da ansiedade Este algo foi identificado durante o desenvolvimento do trabalho como uma série de condições da organização social contemporânea que caminham na contramão da existência autêntica ou seja que nossa sociedade acabou por tornarse facilitadora de uma vivência alienada de si A partir dessas reflexões apresentamos a noção de existência autêntica como dimensão clínica de cuidado isto é considerando a necessidade de se pensar na clínica como espaço de construção de subjetividade que respeite o tempo do sujeito resgate o potencial mobilizador da angústia e facilite a responsabilização do sujeito por sua própria existência e pela produção de sentidos Neste ponto convém realizar uma breve reflexão a respeito do papel social e político da clínica Como é sabido as raízes da Psicologia associam irremediavelmente nossa ciência com uma tradição mantenedora do status quo tendo sua gênese imbricada em formações discursivas que remetem à dicotomias como mente e corpo normal e patológico entre outras 113 que estão veiculadas a um movimento de controle biopolítico Foucault 19721978 Foucault 19631977 além de ter sido frequentemente permeada por discursos racistas e sexistas e de frequentemente ter sido utilizada como ferramenta de controle social Chambers 2013 Suman 2017 Que o nosso berço enquanto ciência é burguês e elitizado é um fato histórico O rumo para o qual a Psicologia se dirige entretanto é um caminho tecido por uma infinidade de fios compostos pela prática de cada clínico cada pesquisador cada psicólogo Como aponta Foucault 19631977 é impossível produzir conhecimento no vazio pois toda teoria é produto de determinadas formações discursivas em voga na época de sua gênese ignorar nossas origens portanto é correr o risco de corroborar com a tradição não por escolha consciente mas por falta de reflexão crítica Assim em todas as áreas é necessário que se tenha consciência de quais discursos estão sendo corroborados pela prática profissional Na Psicologia tal reflexão é duplamente importante tendo em vista os discursos que permeiam nossa origem enquanto ciência Na clínica essa importância cresce exponencialmente considerando a responsabilidade indissociável do lugar do psicólogo enquanto agente facilitador de produção de subjetividade Nas palavras de Ribeiro 2013 A psicoterapia convive com um tríplice modelo de valores os do cliente os do psicoterapeuta e os da sociedade em que ele vive Por mais isento que o psicoterapeuta seja por mais que ele se coloque entre parênteses assumindo uma postura de total neutralidade diante da problemática do cliente ele sofre a angústia da neutralidade e da observação de uma ética sem a qual nenhuma forma de psicoterapia seria viável p230 Desta forma podemos afirmar que toda clínica é política independente do profissional se perceber ou não como parte desse movimento Não há possibilidade de ser apolítico 114 quando a própria subjetividade é construída a partir das condições de um mundo que é politizado É necessário termos essa consciência em nossa prática considerando a clínica também como um espaço de psicoeducação no sentido de ajudar o indivíduo a se perceber como afetado pelas configurações sociais e a ressignificar o sofrimento como parte da experiência humana e sempre considerando os desdobramentos práticos de cada filiação epistemológica Estendendo estas reflexões ao nosso tema de interesse os ditos transtornos mentais comuns tornase evidente a necessidade de maiores investigações das características sociais e dos modos de relação pósmodernos como possíveis fatores de risco para o bem estar psíquico dos indivíduos Assim acreditamos que a discussão seria enriquecida por mais estudos na área Paralelamente os achados deste trabalho sugerem a importância de se questionar no âmbito clínico os uso irrefletido de métodos tradicionais de tratamento os discursos meritocratas e de positividade exacerbada e sobretudo a responsabilidade clínica de evitar a armadilha de atribuir aos sujeitos a responsabilidade por algo que pode ter suas origens na própria estruturação social Neste sentido nossa opção por compreender o sujeito em suas múltiplas dimensões de psique corpo e espírito como um sernomundo e afetado pelas configurações sociais em harmonia com a epistemologia fenomenológica foi uma escolha política Procuramos manter essa perspectiva no decorrer de todo o trabalho não poderia portanto ser diferente ao final de nossa caminhada Assim ao identificar na contemporaneidade uma tendência social à alienação de si passamos a concluir a necessidade de pensar a clínica enquanto espaço de desconstrução e ressignificação dessa tendência a fim de facilitar aos indivíduos se implicarem em suas decisões e produzirem uma existência plena de sentido em oposição ao fenômeno de terceirização do sentido observado no capítulo 3 Desta forma finalizamos as reflexões aqui realizadas com um convite a problematizar 115 no espaço clínico a noção de responsabilidade exclusivamente individual do sujeito pelo seu estado de sofrimento a pensar nas influências do meio e das relações na formação da subjetividade e a adotar um olhar holístico que busque compreender o humano em todas suas dimensões sendo a clínica rica de possibilidades para se pensar também o corpo o espírito as conexões e a política Souza 19622003 apresenta em sua obra Sobre a Construção do Sentido uma visão do filosofar em seu sentido mais pleno como a busca por compreender ou criar sentidos para a aventura humana do viver ou seja como um indagar de si e da realidade com propósito de entender a existência sobretudo nos momentos de crise Seguindo esta perspectiva convidamos a um pensar clínico que caminhe na direção do resgate da filosofia em sua forma mais pura de admirarse com o mundo em um movimento de desformalização da prática tradicional e de buscar promover inquietações a partir das quais o sujeito ressignifique sua angústia de fenômeno paralisante para solo fértil de produção de significado implicandose ativamente no processo humano de fazerse pessoa 116 116 Referências AlesBello A 2006 Introdução à Fenomenologia Edusc American Psychiatric Association APA 2013 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders Fifth Edition DSMV American Psychiatric Association Barros W 2010 Sobre a autenticidade na filosofia de Sartre Argumentos 2 3 178186 Bauman Z 1998 O MalEstar da PósModernidade Zahar Bauman Z 2001 Modernidade Líquida Zahar Bauman Z 2004 Amor Líquido Zahar Bauman Z 2011 Zigmund Bauman comenta episódio marcante do início da pós modernidade Entrevista Fronteiras do Pensamento canal do Youtube Berman M 19821988 All That is Solid Melts Into Air the Experience of Modernity Penguin Books Boris G D Carneiro S V 2018 A Patologização do Luto no DSM Uma Análise Sartreana Trabalho apresentado em Proceedings of International conference on philosophy psychiatry and psychology Disponível em httpsproceedingsscienceinpptrabalhosapatologizacaodolutonodsmuma analisesartreanalangptbr Acesso em 02 set 2020 Chambers C 2013 5 de novembro The dark side os psychology in abuse and interrogation The Guardian Disponível em httpswwwtheguardiancomscience2013nov05thedark sideofpsychologyinabuseandinterrogation Costa I I 2014 Sofrimento Humano Crise Psíquica e Cuidado Dimensões do Sofrimento e do Cuidado Humano na Contemporaneidade Editora UnB Dalgalarrondo P 2019 Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais Artmed Dantas J B Sá R N Carreteiro T C 2009 A patologização da angústia no mundo contemporâneo Arquivos Brasileiros de Psicologia 61 2 19 Dentz R A 2008 Corporeidade e subjetividade em MerleauPonty Intuitio 1 2 296 117 307 Foucault M 19752014 Vigiar e Punir Vozes Foucault M 19721978 História da Loucura na Idade Clássica Perspectiva Foucault M 19631977 O Nascimento da Clínica Forense Universitária Harvey D 19892017 Condição PósModerna Edições Loyola Heidegger M 19272018 Ser e Tempo Vozes Holanda A F 2009 Fenomenologia e Psicologia diálogos e interlocuções Revista da Abordagem Gestáltica 15 2 8792 Holanda A F 2016 Fenomenologia e Psicologia no Brasil aspectos históricos Estudos de Psicologia de Campinas 33 3 383394 Josgrilberg F 2007 A temporalidade a partir da perspectiva existencial Revista da Abordagem Gestáltica 13 1 6373 Leite M B 2013 Heidegger e o fundamento ontológico do espaço Diálogos 8 178195 Lipovestky G Charles S 20042018 Os Tempos Hipermodernos Edições 70 LorenzSpreen P Mønsted B M Hövel P Lehmann S 2019 Accelerating dynamics of collective attention Nature Communications 101759 1 9 Doi httpsdoiorg101038s4146701909311w Lyotard J F 19791984 The Postmodern Condition a report on knowledge Unniversity of Minessota Press MerleauPonty M 19451999 Fenomenologia da Percepção Martins Fontes Michel LH Freitas J L 2019 A clínica do luto e seus critérios diagnósticos possíveis contribuições de Tatossian Psicologia USP 30 e180185 Doi httpsdoiorg10159001036564e180185 Molina A Z 2007 Psicopatología Fenomenologica y Existencial Digitalia Nunes E M 2018 Wikileaks o vazamento de informações secretas como forma de contra 118 hegemonia Fronteira 17 33 6377 Osborne P 1992 Modernity is a qualitative not a chronological category Em Barker F Hulme P Iversen M Ed Postmodernism and the rereading of modernity Pp 2346 Manchester University Press Platão 1983 O banquete Em J C Souza trad Platão Diálogos Abril Cultural Coleção Os Pensadores Ribeiro J P 2013 Psicoterapia teorias e técnicas psicoterápicas Summus Ribeiro J P 2019 O Ciclo do Contato temas básicos na abordagem gestáltica Summus Roehe M V Dutra E 2014 Dasein o entendimento de Heidegger sobre o modo de ser humano Avances en Psicología Latinoamericana 32 1 105113 Sartre J P 19432007 Ser e Nada Vozes Schneider D 2011 Sartre e a Psicologia Clínica Editora UFSC Silva A N 2015 Homossexualidade do preconceito aos padrões de consumo Caravansarai Souza R T 20031962 Sobre a Construção do Sentido Perspectiva Suman F 2017 Institutional Racism in Psychiatry and Clynical Psychology Pallgrave McMillan Tatagiba L Galvão A 2019 Os protestos no Brasil em tempos de crise 20112016 Opinião Pública 25 1 6396 Tavares LA 2010 A Depressão como malestar contemporâneo medicalização e ex sistência do sujeito depressivo Editora UNESP Torrey E E 2001 The invisible plague the rise of mental illness from 1750 to the present Rutgers University Press Vorcaro A 2004 Seria a toxicomania um sintoma social Mental 2 3 6173 Watters E 2010 A americanização da doença mental Revista Latinoamericana de 119 Psicopatologia Fundamental 13 1 102115 Whitaker R 2005 Anatomy of an epidemic psychiatric drugs and the astonishing rise of mental illness in America Ethical Human Psychology and Psychiatry7 1 23 35 World Health Organization WHO 2004 ICD10 International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems tenth revision Global Health Organization World Health Organization WHO 2017 Depression and Other Common Mental Health Disorders Global Health Estimates Global Health Organization
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
22
Interpretações Fenomenológico-Existenciais para o Sofrimento Psíquico na Atualidade - Segunda Edição Revisada
Psicologia Social
UMESP
15
Interpretações Fenomenológico-Existenciais para o Sofrimento Psíquico na Atualidade
Psicologia Social
UMESP
7
A Clínica Daseinsanalítica: Considerações Preliminares
Psicologia Social
UMESP
15
A Relevância da Atuação do Psicólogo em Instituição de Longa Permanência para Idoso
Psicologia Social
UMESP
262
Dados de Copyright e Catalogação da Obra
Psicologia Social
UMESP
22
Investigação Fenomenológica em Psicoterapia: Estruturas e Temáticas das Falas do Cliente
Psicologia Social
UMESP
16
Existências Desumanizadas pela Colonialidade do Poder: Necropolítica e Antinegritude Brasileira
Psicologia Social
UMESP
13
Dor, Sofrimento e Escuta Clínica: Análise Psicológica
Psicologia Social
UMESP
61
O Poder do Macho - Heleieth Saffioti
Psicologia Social
UMESP
15
Relato de Visita ao Estágio em Saúde e Comunitária
Psicologia Social
UMESP
Texto de pré-visualização
Universidade de Brasília UnB Instituto de Psicologia IP Departamento de Psicologia Clínica PCL Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura PPGPsiCC Depressão e ansiedade como expressões da angústia existencial uma perspectiva fenomenológica do sofrimento psíquico na pósmodernidade Mariana Monção de Lima Orientador Prof Dr Jorge Ponciano Ribeiro Brasília 2020 2 Universidade de Brasília UnB Instituto de Psicologia IP Departamento de Psicologia Clínica PCL Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura PPGPsiCC Depressão e ansiedade como expressões da angústia existencial uma perspectiva fenomenológica do sofrimento psíquico na pósmodernidade Mariana Monção de Lima Orientador Prof Dr Jorge Ponciano Ribeiro Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura Departamento de Psicologia Clínica Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Psicologia Clínica e Cultura Brasília 2020 3 Universidade de Brasília Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Clínica Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura PPGPsiCCUnB Depressão e ansiedade como expressões da angústia existencial uma perspectiva fenomenológica do sofrimento psíquico na pósmodernidade Mariana Monção de Lima Banca examinadora Prof Dr Jorge Ponciano Ribeiro Presidente PsiCCPCLIPUnB Prof Dr Marcelo S A Tavares Membro Titular PsiCCPCLIPUnB Prof Dr Adriano F Holanda Membro Externo UFPR Prof Dr Maurício S Neubern Membro Suplente PsiCCPCLIPUnB 4 Quem passou pela vida em branca nuvem E em plácido repouso adormeceu Quem não sentiu o frio da desgraça Quem passou pela vida e não sofreu Foi espectro de homem não foi homem Só passou pela vida não viveu Francisco Otaviano Ilusões da Vida 5 Agradecimentos À minha Matriarca Cristina Soares sem a qual este trabalho não seria possível Seu suporte e amor ao longo da vida deram as condições para me desenvolver enquanto pessoa Seu gosto pelo pensamento crítico seu cuidado no olhar para o outro traduzido em consciência política e social sua curiosidade infindável diante da vida e o amor pela leitura passados com tanto carinho em seus ensinamentos pavimentaram meu caminho profissional e como pesquisadora Obrigada pelo incentivo e palavras de conselho pela revisão cuidadosa e preciosas sugestões e sobretudo por ser o porto seguro que me dá confiança para me aventurar nos mares da existência Ao querido professor Jorge Ponciano grande referência de ser humano e profissional por emprestar sua incomparável experiência e afetuoso apoio nesta caminhada Dentre todas as contribuições do Instituto de GestaltTerapia de Brasília à minha formação como psicóloga sem dúvidas o nosso encontro foi a mais preciosa Muito devo à sua tranquilidade escuta compreensiva e amorosa orientação sem as quais não teria chegado até aqui Considero uma grande honra ter tido sua companhia nesta jornada e serei sempre grata pela luz que sua presença ofereceu quando o caminho parecia mais obscuro À Giulia Conte grande amiga e companheira intelectual por sua inestimável presença em todo o processo de transformar esta ideia em concretude Na indeferição e na aprovação nas dificuldades de mobilidade para prestar a seleção com o pé quebrado na dança de vitória ao receber a bolsa nas alegrias na frustração e no desespero que permearam este processo nas ideias discutidas em incontáveis Quintas do Vinho na dificuldade das manhãs e tardes e noites passadas estudando em casa no bar ou na biblioteca não poderia pedir por companhia melhor que a sua Que o destino agente promotor do nosso reencontro permita que eu esteja sempre ao seu lado para exaltar seu brilhantismo e que a nossa amizade se faça constância diante desse mundo tão líquido 6 À Naiara Lima açúcar que torna palatável mesmo os momentos mais intragáveis da existência por ser força em minha fraqueza e apoio em meus tropeços e por se fazer presente em todos os momentos Seu amor me ancora e me dá coragem para enfrentar as situações desafiadoras É um grande privilégio te ter como irmã e saber que posso contar com sua gentileza sua doçura e seu senso de humor ímpar para me guiar pelos caminhos tortuosos da vida Aos meus pacientes antigos e atuais em especial os profissionais rodoviários pela confiança que permite crescer como profissional e humana e por dividirem comigo sua experiência de existir neste mundo Ao professor Ileno Costa pelas supervisões do GIPSI onde aprendi uma nova perspectiva sobre o sofrimento humano por acreditar em meu tema de pesquisa e por seu investimento na missão de ampliar o espaço da Fenomenologia em nossa Universidade À professora Eliane Seidl cujos ensinamentos transmitidos na disciplina de Redação de Artigo Científico foram essenciais para o desenvolvimento deste trabalho À Universidade de Brasília precioso espaço de desenvolvimento acadêmico e pessoal pelos lindos encontros que me possibilitaram abrir os olhos para novas dimensões de vivência e pelo compromisso com a educação pública de qualidade Ao Programa de PósGraduação em Psicologia Clínica e Cultura pelo acolhimento e fornecimento dos recursos necessários para as investigações aqui realizadas À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES pela concessão da bolsa de mestrado que financiou essa pesquisa 7 Sumário Lista de Tabelas9 Resumo10 Abstract11 Introdução 12 Capítulo 1 A questão da pósmodernidade 23 Modernidade e o projeto moderno24 Pósmodernidade e a era do vazio34 Capítulo 2 Fenomenologia enquanto dimensão de análise do ser humano48 Observando os sentidos do fenômeno a redução eidética49 Redução transcendental quem é o sujeito que produz o sentido49 Husserl positivismo psicologismo e críticas52 O Ser em Heidegger54 O Dasein55 A angústia59 O Ser e o Nada perspectiva sartreana da existência60 Existência Autêntica diálogos entre Heidegger e Sartre66 Autenticidade inautenticidade e serparaamorte70 Produzindo sentidos autenticidade como dimensão de cuidado71 Tempo espaço e corpo dimensões fenomenológicas de compreensão do ser71 Fenomenologia e Psicologia psicopatologia fenomenológica77 Capítulo 3 Sofrimento psíquico e ser em situação possibilidades de existência na pósmodernidade80 Transtorno depressivo o diagnóstico em epoché82 Ansiedade diagnóstico e redução eidética86 Depressão e ansiedade redução transcendental dos critérios diagnósticos88 Tecendo considerações para além dos sintomas do diagnóstico92 Situação pósmoderna sofrimento e possibilidades de existência94 O grito do corpo sintoma como expressão de desconforto com a realidade105 Existência autêntica como dimensão clínica de cuidado108 Considerações Finais112 8 Lista de Tabelas Tabela 182 Tabela 283 Tabela 387 9 Resumo Tomando como ponto de partida a alta incidência da depressão e ansiedade na sociedade contemporânea resultante na categorização destes fenômenos por parte da Organização Mundial de Saúde como transtornos mentais comuns e considerando que cada sociedade produz formas específicas de sofrimento este trabalho propõe investigar sob uma perspectiva fenomenológica as possibilidades subjetivas dadas em nossa época pósmodernidade a fim de identificar tendências que justifiquem o crescimento epidemiológico da ansiedade e depressão e de levantar possíveis estratégias clínicas de acolhimento e cuidado a sujeitos experienciando essas modalidades de sofrimento Para tal propomos identificar as principais características da pósmodernidade sobretudo as apresentadas nas teorias de Bauman Harvey Berman e Lipovestky Em seguida buscamos apresentar a ontologia e método fenomenológicos com ênfase no conceito de existência autêntica expresso em Heidegger e Sartre a serem utilizados posteriormente como dispositivos de análise Por fim o método fenomenológico é aplicado aos critérios diagnósticos presentes nos manuais CID10 e DSM V e articulamos as condições da pósmodernidade com a vivência das pessoas depressivas e ansiosas tecendo considerações a respeito da existência na pósmodernidade Nossas reflexões sugerem que o contexto sociocultural contemporâneo não é favorável ao desenvolvimento de uma existência plena de sentido além de evidenciarem paralelos entre fatores estruturantes de nossa sociedade e as formas de sofrimento de interesse deste trabalho Sugerimos portanto que a noção de existência autêntica possa ser utilizada como dispositivo clínico de cuidado destacando a necessidade de repensar a prática clínica de forma a contemplar a influência dos fenômenos sociais na subjetividade dos indivíduos Palavraschave Ansiedade Depressão Pósmodernidade Fenomenologia Existência Autêntica 10 Abstract Taking as a startpoint the high incidence of depression and anxiety in contemporary society resulting in the categorization of these phenomena by the Global Health Organization as common mental disorders and considering that each society produces specific modalities of suffering this paper proposes to investigate under a phenomonological perspective the subjective possibilities present in our time postmodernity in order to identify tendencies that justify the epidemiological growth of anxiety and depression and to raise possible clinical strategies of care for individuals experiencing these forms of suffering To that effect we propose to identify the main characteristics of postmodernity specially those presented in the theories of Bauman Harvey Berman and Lipovetsky Moving on we aim to introduce the pehnomenological method and onthology emphasizing the concept of autenticity as shown in Heidegger and Sartre to be used henceforth as an analytical stepstone The phenomenological method will be applied to the diagnosis criteria expressed in both the ICD10 and DSMV manuals and a parallel is develloped between the previously identified postmodern conditions and the specific conditions of those living with depression and anxiety The results of these observations suggest that the contemporary sociocultural context is not in favour of the development of a meaningfull existence according with an existentialist perspective Moreover connections between structural factors of our society and the modalities of suffering analised in this paper are be presented We suggest therefore that the concept of authenticity may be used as a clynical tool highlighting the importante of rethinking the clinical practice in order to contemplate the influency of social phenomena in the development of ones subjectivity Keywords Anxiety Depression Postmodernity Phenomenology Authenticity 11 Depressão e Ansiedade como Expressões da Angústia Existencial uma Perspectiva Fenomenológica do Sofrimento Psíquico na PósModernidade Ao voltar o olhar para as demandas clínicas na atualidade é perceptível o aumento de casos específicos de sofrimento psíquico os chamados transtornos depressivo e de ansiedade cuja incidência vem aumentando constantemente desde 2005 a ponto de serem categorizados pela Organização Mundial de Saúde OMS como transtornos mentais comuns devido à sua alta prevalência WHO 2017 A epidemiologia dessas formas de sofrimento evidencia uma problemática no sentido em que o aumento alarmante do número de casos comunica um malestar que afeta uma parcela significativa da sociedade e consequentemente não pode ser contido exclusivamente na esfera individual A psiquiatria tradicional na qual os manuais diagnósticos se embasam tende a encarar fenômenos tais quais a depressão e a ansiedade como desequilíbrios neurológicos a serem corrigidos com medicamentos legando a responsabilidade pelo chamado adoecimento a características do indivíduo que dele padece Entretanto parece haver algo da ordem coletiva e social que influencia na modalidade em que os indivíduos adoecem que é deixado de lado na perspectiva tradicional Watters 2010 realiza uma discussão muito interessante da influência do imperialismo cultural nas formas de sofrimento defendendo a posição de que as enfermidades mentais nunca foram as mesmas ao redor do mundo tanto em prevalência quanto em forma sendo inevitavelmente desencadeadas e moldadas pelo ethos de épocas e locais particulares p103 Em seu texto destaca exemplos de formas de loucura presentes em sociedades tradicionais como a japonesa e como estas foram se transformando desaparecendo e dando lugar a novas expressões de sofrimento psíquico mais características da sociedade estadounidense tais como anorexia e bulimia paralelamente ao crescimento da 12 influência cultural dos Estados Unidos no Japão e em demais países promovendo o que o autor considera como uma homogeneização da forma como o mundo enlouquece p 102 É com base nesta compreensão de que as configurações sociais influenciam a maneira como os indivíduos se subjetivam a forma como se constroem no mundo e como expressam seus sofrimentos que este trabalho surge buscando trazer uma perspectiva sociopolítica para a discussão dos fenômenos de depressão e ansiedade na sociedade contemporânea Sofrimento Compreendido como Transtorno a Patologização da Angústia Ao referenciar a categorização da OMS da depressão e ansiedade como transtornos WHO 2017 fazse necessária logo de saída uma pequena digressão a respeito do termo transtorno mental a fim de contextualizar a perspectiva a ser adotada neste trabalho em relação à depressão e à ansiedade Partindo do pressuposto de que fenômenos denominados de doença mental loucura sofrimento psíquico etc têm sido abordados de formas diversas em acordância com épocas específicas propomos trazer inicialmente a análise histórica de Michel Foucault 19721978 em sua obra História da Loucura para discutir a forma como este entendimento vem se configurando desde a Idade Média até a Modernidade de maneira a realizar uma breve contextualização histórica do conceito de adoecimento e fundamentar a perspectiva que será adotada em nosso trabalho Em sua genealogia da loucura Foucault 19721978 aponta para o surgimento das instituições de reclusão na Idade Média como um primeiro passo para a institucionalização da doença mental Inicialmente construídos para isolar indivíduos que manifestavam sinais de lepra logo os centros de reclusão se tornaram instituições semi jurídicas destinadas a arrebanhar indivíduos considerados de alguma forma perigosos para a sociedade É a partir do século XVIII que a ciência médica estende seu pensamento sobre o adoecimento psíquico criando a possibilidade de uma psiquiatria da observação da transformação do internamento 13 que enclausurava para um que propõe algo de hospitalar e o louco passa a ser foco de análise da ciência médica A herança do estigma do leproso é apontada em História da Loucura 19721978 como elemento para a construção ideológica do louco enquanto elemento de periculosidade no momento em que a psiquiatria se desenvolve e surge uma proposta de cura e de diálogo o louco já está irremediavelmente associado à esta noção de algo que deve ser contido e afastado algo que permeia o imaginário social inclusive nos tempos atuais e que vêm sofrendo tentativas de desconstrução com a Reforma Psiquiátrica O internamento entretanto da forma como foi concebido nos séculos XVII e XVIII passa por uma grande crise que não é proveniente de seu interior e sim ligada a um horizonte econômico e social À medida que o século XVIII avança com as transformações socioeconômicas da Revolução Industrial e a adoção da lógica protestantista o interesse econômico voltase cada vez mais para a produtividade e para a necessidade de mão de obra barata de forma que tornase interessante separar a loucura de outras questões que estavam juntas no balaio da forma de internação clássica a miséria o desatino as doenças entre outras Assim a transformação da casa de internamento em asilo e a adoção de um discurso voltado para a reabilitação dos indivíduos não se deu tão somente pela introdução progressiva da medicina no campo da internação mas também através de uma reestruturação interna deste espaço antes caracterizado pela exclusão e correção em prol de algo que melhor servisse aos interesses da nova sociedade É nesse contexto e em meio a essas práticas discursivas que a ciência psicológica desponta partindo não de uma humanização da justiça e suas práticas mas de uma exigência moral e de uma nova forma de controle dos corpos e dos indivíduos Nossa ciência portanto apesar de ter seu foco no indivíduo provém de uma reorganização da consciência social e tem sua gênese dentro de uma lógica biopolítica de gestão da vida 14 Este breve panorama histórico já fornece por si só elementos para que a prática psicológica seja sempre repensada Se considerarmos que toda ciência é fruto de determinados discursos e evolui imbricada no pensamento vigente de cada época Foucault 19631977 é fundamental que o psicólogo tenha como parte de sua prática uma autocrítica constante a fim de examinar a quem serve o seu trabalho quais são as lógicas que permeiam seu discurso e principalmente qual sua função em relação aos indivíduos a quem atende A arqueogenealogia de Foucault 19721978 ao evidenciar o plano de fundo que embasa o entendimento da loucura em diversos momentos demonstra claramente como formas diferentes de entendimento foram sendo construídas a respeito da loucura e do sofrimento psíquico em geral até um ponto onde os hospitais psiquiátricos e a ciência médica voltam suas atividades para a busca de uma cura Whitaker 2005 em seu artigo Anatomia de uma Epidemia considera a era moderna da psiquiatria como iniciada em 1955 quando a droga Thorazine foi introduzida nos manicômios em um momento em que as internações nos Estados Unidos tinham atingido um ápice histórico O declínio do número de internações foi atribuído ao sucesso do uso dessa droga e logo outras medicações psiquiátricas vieram a surgir no mercado inicialmente o Haldol e outros antipsicóticos e em seguida ansiolíticos e antidepressivos A psiquiatria começa portanto a ter acesso a todo um arsenal de substâncias para tratar de especificidades dos adoecimentos a loucura antes pouco diferenciada de outras questões de saúde pública ganha espaços teóricos e práticos que contemplem suas particularidades o que pode ser considerado um grande avanço no campo da saúde mental Foucault 19721978 Whitaker 2005 aponta contudo que é justamente no despontar desta nova era da psiquiatria que há uma explosão de casos de adoecimento psíquico pois apesar do declínio no número de internações o autor cita outros indicadores que sugerem maior incidência de indivíduos em sofrimento Whitaker também chama atenção para os efeitos 15 colaterais das drogas psiquiátricas sobretudo em relação a seu potencial de agravar a condição do indivíduo como consequência da alteração medicamentosa da química cerebral Neste ponto propomos articular o que Whitaker 2005 e Foucault 19721978 expõem a respeito do tratamento da loucura com determinadas características sociais em voga na pósmodernidade É possível traçar um paralelo entre a lógica farmacológica de tratamento do sofrimento humano com a lógica capitalista de produtividade em uma sociedade consumista não é de se admirar que a própria ideia de bemestar tenha se transformado em um produto Bauman 1998 2001 Harvey 19892017 Em um mundo onde tudo está à venda o indivíduo em sofrimento só precisa de um novo produto revolucionário para preencher o vazio e redirecionálo no caminho da busca constante pelo prazer Esta compreensão de mundo ainda que atraente por oferecer uma solução externa e relativamente rápida tornase cruel se considerarmos que de acordo com Whitaker 2005 a capacidade dos remédios de solucionar sequer os sintomas iniciais é questionável quanto mais agir sobre as causas subjacentes e os sentidos associados ao sofrimento humano O próprio papel do sofrimento condição integrante da vivência humana fica comprometido no imaginário social pósmoderno sendo este considerado como fenômeno intrinsecamente negativo e portanto algo que deve ser evitado Dantas Sá e Carreteiro 2009 em seu artigo A patologização da angústia no mundo contemporâneo fazem uma discussão notável da questão do ponto de vista fenomenológico apresentando a angústia como parte inexorável da vida Há para eles uma disposição afetiva fundamental que perturba a existência p7 a angústia tem como origem a realidade da morte e da finitude da vida podendo ser afastada à medida em que o indivíduo produz sentidos sobre ela e sobre a existência mas sendo em última instância impossível de ser eliminada Assim a sociedade contemporânea busca negar e esconder algo que é tão parte da 16 existência quanto a própria finitude do ser sugerindo curas e medicações que acabam por interferir no processo de produção de sentido e vivência plena como ser humano Nesta perspectiva apenas a escuta e o entrar em contato com a angústia podem transformála em disposição afetiva e produtora de sentido de vida Sartre 19432007 Heidegger 19272018 Quanto maior o silenciamento diante da manifestação dessa angústia menor a capacidade do indivíduo de produzir sentido sobre o existir e consequentemente maior seu sofrimento uma vez que o não acessar da angústia a extirpa de sua capacidade mobilizadora e produtora de mudança o que poderia ser uma explicação viável de porquê apesar do constante avanço da psiquiatria e das ciências farmacológicas a depressão e a ansiedade seguem tendo crescimento constante na contemporaneidade É com base nessa hipótese e adotando a perspectiva da angústia como disposição fundamental do existir Heidegger 19272018 Sartre 19432007 que propomos realizar as discussões deste trabalho consequentemente fazse necessária uma crítica à visão das perturbações psicológicas enquanto doença e sobretudo à cultura vigente de silenciar a angústia através da medicalização Reconhecemos a importância do uso de medicamentos em casos graves de sofrimento quando o indivíduo não se encontra em condição de pensar sua própria angústia e existência neste ponto é fundamental uma contenção dos sintomas mais graves a fim de possibilitar a reflexão e adaptação da pessoa à realidade do mundo É necessária entretanto uma crítica à atual cultura de medicalizar o sofrimento tendo em vista que este é parte componente da experiência humana e consequentemente há um risco de na tentativa de silenciar o incômodo provocado pelo sintoma silenciar também seu potencial expressivo reduzindo a experiência do ser de um indivíduo completo que tem o sofrer como parte fundamental da vivência humana para a de um sujeito vazio e despido de sentido Consideramos que compreender como doença as modalidades através das quais a 17 angústia se expressa é incorrer na armadilha de buscar camuflar algo que é intrínseco ao indivíduo Desta forma termos como adoecimento transtorno mental e correlatos serão utilizados aqui apenas em referência aos manuais diagnósticos que trazem esta concepção de saúde e doença imbricada em sua gênese e sempre colocados entre aspas a fim de evocar as reflexões acima realizadas Em nossa análise optaremos por compreender e significar a depressão ansiedade e demais manifestações da angústia com o termo sofrimento psíquico a fim de desatrelar a ideia de sofrimento da noção de adoecimento visando uma perspectiva do sofrimento enquanto parte fundamental da existência humana Costa 2014 Sofrimento e Sociedade Inquietações Iniciais Este trabalho nasce de uma inquietação florescida na prática clínica durante experiência de prestação de serviços a um plano de saúde exclusivo dos profissionais rodoviários em especial motoristas e cobradores de ônibus de transporte coletivo A grande maioria desses pacientes apresentava sintomas de depressão eou ansiedade que no decorrer do acompanhamento terapêutico identificaram como relacionados ao trabalho ou a fatores diretamente atrelados à suas condições de vida sobretudo dificuldades financeiras questões de gênero e raciais estresse e más condições relacionadas ao ambiente laboral Desta forma tornouse evidente que pessoas em condições análogas de vida estavam desenvolvendo sintomas semelhantes o que parecia não ser explicado pela visão clássica de desequilíbrio químico como produtor das chamadas doenças mentais Entretanto muito da prática clínica tradicional em Psicologia envolve ajudar um indivíduo supostamente adoecido a ressignificar suas vivências particulares como se o sofrimento fosse decorrente apenas da forma como a pessoa escolhe encarar a vida Paralelamente os próprios pacientes apresentavam uma percepção de estarem adoecidos ou incapazes de suportar a vida normal quando a vivência clínica sugeria que não estávamos tratando de uma dificuldade individual 18 e sim de algo que envolvia claramente as configurações sociais e a situação do mundo na qual os pacientes viviam Esta percepção ampliouse ao observar os dados de incidência de depressão e ansiedade no mundo estimativas da Organização Mundial de Saúde WHO 2017 apontam que em 2015 a ansiedade atingiu 36 da população mundial com um total de 264 milhões de pessoas apresentando essa modalidade de sofrimento naquele ano Este total representa um aumento de 149 dos casos em comparação com estimativas de 2005 variação atribuída pela OMS ao crescimento e envelhecimento populacional O índice de indivíduos afetados pela depressão é ainda maior representando 44 da população mundial no ano de 2015 Números tão significativos sugerem algo que realmente não pode ser contido na esfera individual algo que comunica uma mudança do sofrimento pessoal para um status de epidemia Torrey 2001 E em se falando de epidemia há que se pensar nas condições que favorecem seu surgimento Assim este trabalho surgiu a partir da indagação o que há na nossa sociedade que favorece o surgimento das modalidades específicas de sofrimento depressão e ansiedade Tavares 2010 considera que as queixas clínicas produzem de certa maneira um autorretrato de cada época seguindo este raciocínio consideramos que as condições do mundo dentro de cada momento histórico produzem formas particulares de subjetivação e consequentemente males específicos Analogamente as próprias concepções de sujeito e fazer científico se adaptam às características de cada tempo É possível portanto falar em um sintoma social como campo que engloba o singular da angústia do sujeito em concomitância com o universal de um malestar presente no campo social ou mesmo como expressão da própria angústia existencial caracterizadora da vivência humana O sintoma social tornase desta forma uma metáfora partilhada por um grupo do malestar submetida e provocada pelo discurso dominante de uma época 19 Vorcaro 2004 p 62 Assim há algo do sujeito e de sua vivência que é único da mesma maneira que parece haver algo de coletivo na maneira como o indivíduo se subjetiva percebe e lida com os sofrimentos aos quais está sujeito para não falar dos desafios e especificidades do sofrimento em si em cada sociedade relacionados à forma como este é percebido dentro de configurações sociais específicas Para compreender nosso problema portanto fazse necessário identificar as condições da época na qual o fenômeno se apresenta assim como delimitar as referências epistemológicas a partir da qual faremos nossa análise Desta maneira nossa questão começa a se apresentar como trifacetada temos os fenômenos depressão e ansiedade como foco de interesse cuja alta incidência ocorre na contemporaneidade ou seja na sociedade pós moderna e que abordaremos a partir de um referencial teóricofilosófico específico a saber a fenomenologia Buscando explicitar cada uma dessas facetas este trabalho será dividido em três partes em primeiro lugar definiremos as principais características da pósmodernidade como condição na qual os sujeitos estão inseridos capítulo 1 a seguir delinearemos o entendimento de fenômenos e ser humano baseados na fenomenologia e no existencialismo sobretudo nas ideias de Heidegger 19272018 e Sartre 19432007 a respeito da existência autêntica capítulo 2 por fim faremos uma análise fenomenológica dos critérios diagnósticos da depressão e ansiedade e buscaremos articular estes dados com o funcionamento social pósmoderno capítulo 3 a fim de criar um diálogo a respeito da experiência do sujeito que sofre com sintomas depressivos e ansiosos sob uma perspectiva coletiva de vivência humana em situação Sartre 19432007 ou seja que acontece no mundo e portanto é indissociável das condições que este mundo oferece Objetivos 20 O objetivo geral desta dissertação é propor um olhar alternativo sobre os ditos transtornos mentais comuns na pósmodernidade pautado em teorias fenomenológicas da existência visando analisar a relação entre características específicas do modelo socioeconômico vigente na sociedade ocidental e formas de sofrimento psíquico características desta época Para tal os objetivos específicos são levantar as principais características da pós modernidade explicitar a compreensão fenomenológica do sujeito realizar uma análise fenomenológica dos critérios diagnósticos da depressão e ansiedade e tecer considerações a respeito da relação entre as condições sociais pósmodernas e o fenômeno do sofrimento psíquico do tipo ansioso e depressivo Justificativas Teórica e Social Este trabalho justificase na perspectiva teórica pela aplicação do método fenomenológico a nosso objeto de pesquisa Apesar de seu impacto no pensamento contemporâneo a Fenomenologia ocupa espaço limitado no panorama nacional Holanda 2016 há portanto um solo rico de possibilidades de investigação aplicadas ao contexto brasileiro em especial no âmbito da psicologia clínica tendo em vista a estreita relação entre teorias fenomenológicas e a psicologia Holanda 2009 Ademais realizaremos um apanhado das características sociais de nosso tempo condensando a perspectiva de múltiplos autores em especial Bauman 1998 2001 2004 Lipovetsky Charles 20042018 e Harvey 19892017 a fim de identificar os principais pontos de acordância entre esses expressivos teóricos da pósmodernidade a respeito dos fatores que a compõem Complementarmente faremos a aplicação do método fenomenológico aos critérios relativos à depressão e ansiedade utilizados nos principais manuais diagnósticos CID10 e DSMV apresentando uma perspectiva teórica alternativa para a compreensão destes manuais 21 Sobretudo acreditamos que nossa pesquisa se justifica na perspectiva social em parte por termos a sociedade contemporânea como objeto de interesse mas principalmente por propor um olhar coletivo a questões que vem sendo tratadas tradicionalmente em âmbito individual Desta forma procuramos contribuir para uma clínica que contemple o indivíduo em situação e abarque em sua prática o olhar para questões sociopolíticas inclusive no sentido de ajudar os sujeitos a perceberem sua realidade nomundo Sartre 19432007 e a contribuição que as condições de vida acarretam na experiência de ser e consequentemente nas experiências de sofrimento e angústia 22 Capítulo 1 A Questão da PósModernidade A proposta de realizar uma análise de conjunturas da pósmodernidade que contribuem para a configuração subjetiva dos indivíduos acarreta alguns desafios em primeiro lugar há a dificuldade de se elaborar considerações sobre a época em que o próprio sujeito está inserido Bauman 1998 tendo em vista que certas configurações só vêm a ser compreendidas através de uma perspectiva histórica ou seja o entendimento dos momentos históricos beneficiase de uma análise em retrospectiva Em seguida há a questão da fluidez enquanto característica marcante da pósmodernidade que suscita a pergunta como definir algo que está em constante mudança Para além disso há a problemática da delimitação temporal quando de fato se inicia a pósmodernidade O próprio termo pósmodernidade é ponto de discordância entre os diversos autores que estudam a sociedade contemporânea cada qual defendendo o uso de uma nomenclatura específica para o período Antes portanto de procurar falar sobre as características desta nossa época e seu impacto sobre os indivíduos propomos nos debruçar brevemente sobre os pontos supracitados a fim de responder da melhor maneira possível a questão fundamental que será ponto de partida para as demais considerações aqui propostas o que afinal estamos chamando de pósmodernidade Berman 1998 afirma que retornar ao passado pode ser uma forma de ir adiante Este ato de relembrar pode ajudar a trazer o modernismo de volta às suas raízes de forma que possa se nutrir e se renovar para confrontar as aventuras e perigos que estão por vir Se apropriar das modernidades de ontem pode ser ao mesmo tempo uma crítica das modernidades de 23 hoje e um ato de fé nas modernidades e nos homens e mulheres modernos de amanhã p 36 Fazse portanto necessário investigar as origens as configurações socioculturais que propiciaram que o momento atual se desenvolvesse da maneira como o fez isso implica em abordar a modernidade enquanto momento precursor de nossa época seguindo a tradição dos autores aqui abordados cujas análises foram realizadas de maneira comparativa evocando o panorama moderno para delimitar e esclarecer a pósmodernidade enquanto um momento que de certa forma é o próprio desenrolar do projeto moderno Modernidade e o Projeto Moderno Osborne 1992 chama atenção para os desafios do problema de se definir modernidade tanto em relação à pósmodernidade quanto como categoria em si Sua análise desta temática parte da divisão do conceito de modernidade em três pontos distintos período histórico qualidade de vivência social e projeto incompleto Ao levantar a questão de que a ideia da modernidade em si marca uma nova maneira de periodizar a história criando uma distinção entre o tempo histórico no qual a modernidade se desenrola e o que o autor chama de a lógica do modernismo Osborne 1992 defende a existência de um senso abstrato do significado histórico do presente p26 que culmina em um entendimento da modernidade que distancia a contemporaneidade da própria época em que se classifica separando de certa forma o presente mesmo do passado mais recente tornandose algo que acontece e ao mesmo tempo continua acontecendo p30 O autor inclinase portanto em direção a uma interpretação da modernidade como uma categoria qualitativa e não cronológica A análise de Osborne 1992 evoca mais uma vez os desafios de se buscar compreender modernidade e pósmodernidade sob uma ótica históricotemporal ponto que esclarece as discordâncias entre as análises de múltiplos autores em relação a quando se inicia 24 e quando ou se se extingue a modernidade e iniciase a pósmodernidade Para alguns a modernidade é um projeto que ainda está acontecendo Osborne 1992 outros situam seu final em épocas divergentes Bauman 1998 Harvey 19892017 ou ainda defendem que a própria pósmodernidade foi um período de adaptação e que já estamos vivendo uma hipermodernidade Lipovetsky Charles 20042018 Harvey 19892017 p 22 afirma que a transitoriedade das coisas dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica Sabidamente a transitoriedade é uma das características mais marcantes da pósmodernidade como pretendemos mostrar mais adiante Assim tendo em vista a dificuldade de se tecer um panorama claro de nosso próprio tempo e as múltiplas divergências entre os teóricos da pósmodernidade a análise aqui proposta não pretende se vincular a uma teoria específica que objetive compreender de maneira estruturada o fenômeno ao invés disso optamos por tirar o foco das divergências e levantar os pontos de concordância entre as principais teorias disponíveis com o objetivo de apresentar um quadro que não pretende ser completo mas que contemple os principais aspectos indiscutivelmente caracterizantes de nossa época Neste ponto fazse necessário explicar que a escolha pelo uso do termo pós modernidade nas considerações aqui tecidas não foi realizada com a intenção de endossar nenhuma teoria em particular pelo contrário optamos pelo termo que parecia mais popular enquanto descritor de um fenômeno em diversas instâncias acadêmicas tendo sido utilizado nas obras de teóricos de diversas disciplinas como antropologia sociologia geografia etc além de amplamente discutido na mídia A decisão por utilizar esse termo passa portanto pelo desejo de adotar uma nomenclatura que seja o mais neutra possível com o objetivo de distanciar o presente trabalho das divergências entre as teorias dos grandes estudiosos da área e em seguir a proposta de desenvolver um quadro geral que sirva ao objetivo de contextualizar as possibilidades 25 subjetivas do nosso tempo para em seguida analisar o impacto dessas transformações em uma perspectiva micro ou seja focada no indivíduo suas potencialidades modos de relação e sofrimentos Para tal iniciamos com a tentativa de descrever a modernidade como ponto de partida da formação da sociedade pósmoderna Berman 1988 define modernidade como um modo de experiência vital do espaço e tempo do self e dos outros das possibilidades e perigos da vida que é compartilhado por homens e mulheres do mundo inteiro atualmente p 15 Para ele ser moderno é estar em um ambiente que nos promete aventura poder alegria crescimento transformação de nós mesmos e do mundo e ao mesmo tempo que ameaça destruir tudo o que temos tudo o que conhecemos tudo o que somos Berman 1988 p 15 Mas como exatamente se desenvolveu esse modo de experiência e de organização social e quais são suas características Em sua obra Berman 1988 divide a modernidade em três fases a primeira entre o início do século XVI e o final do século XVIII onde os indivíduos começam a experienciar a modernidade porém sem consciência desta A segunda fase se inicia com as ondas revolucionárias da década de 1790 onde o sentimento de revolução conviveu com a memória de uma sociedade absolutamente tradicional é a partir da dicotomia entre essas duas modalidades sociais que as ideias de modernização e modernismo despontam e começam a se desenvolver Podese afirmar que é a partir desse momento que a modernidade começa a se caracterizar enquanto projeto Na terceira fase iniciada no século XX o processo de modernização passa a se estender para envolver o mundo todo desenvolvendo uma cultura de modernismo que se fragmenta à medida em que se expande processo que resulta na perda da capacidade de fornecer sentido à vida das pessoas Berman 1988 p 17 26 Neste movimento de desenvolver uma nova forma de configuração social Berman 1988 destaca alguns pontos característicos do que veio a se tornar a modernidade as grandes descobertas e o desenvolvimento científicotecnológico a industrialização da produção criação de novos ambientes e destruição de antigos aceleração no tempo da vida geração de novas formas de poder corporativo e de classes sociais crescimento urbano acelerado sistemas de comunicação de massa crescimento do poder do Estado burocracia busca por expansão da influência de alguns países sobre os demais surgimento de movimentos sociais altamente expressivos e sobretudo o mercado capitalista e suas flutuações De certa forma falar de modernidade e de pósmodernidade é falar de capitalismo O projeto moderno surge de maneira indissociável do desenvolvimento deste modelo socioeconômico podese portanto afirmar que há uma confluência entre os modos de configurações sociais modernos e consequentemente pósmodernos e o projeto econômico do capitalismo de tal forma que ao analisar as relações humanas a partir do século XVIII facilmente se encontra a lógica do mercado imbricada nas modalidades de interações sociais e nas possibilidades de vida disponíveis em cada fase da idade moderna Assim a pós modernidade se relaciona com o chamado capitalismo tardio da mesma forma que a modernidade do início até meados do século XX se relaciona com o capitalismo fordista Harvey 19892017 Harvey 19892017 realiza uma análise minuciosa das mudanças no capitalismo fordista que podemos associar diretamente às condições da modernidade no momento histórico que sucede a segunda revolução industrial final do séc XIX sua evolução para uma forma flexível de acumulação de capital e as transformações socioculturais decorrentes deste processo 27 Considerase que há uma materialização do regime de acumulação que toma a forma de normas hábitos leis redes de regulamentação etc que garantem a unidade do processo Harvey 19892017 p117 ou seja que para o sistema funcionar de maneira mais ou menos equilibrada na esfera econômica é necessário adaptar toda a sociedade e a cultura às demandas desse sistema Esta influência opera nos mais diversos âmbitos sejam eles materiais expressos na arquitetura nas artes nas instituições etc sejam subjetivos expressos nos modos de relação nas possibilidades subjetivas na produção de desejos e formas de organização cultural entre outros Essas considerações evidenciam a dimensão do fenômeno que propomos abordar assim como a dificuldade da tarefa Berman 1988 em sua busca por interpretar o modernismo através de um prisma marxista afirma que as energias insights e ansiedades características desse modo de funcionamento moderno surgem a partir do direcionamento e das tensões da vida econômica moderna de sua pressão insaciável e sem limites pelo crescimento e progresso da expansão dos desejos humanos para além dos limites locais nacionais e morais da demanda de que as pessoas explorem não apenas outras pessoas mas elas mesmas a volátil e sem fim metamorfose dos valores no turbilhão do mercado mundial a destruição impiedosa de todos e tudo que não puder ser usado Berman 1988 p 121 Assim a sociedade moderna se vincula de maneira indissociável com o modelo econômico de produção que é característico dessa época de tal forma que tratar do sofrimento psíquico dos indivíduos modernos e pósmodernos é também tratar do sofrimento proporcionado pelas condições de subjetivação presentes no capitalismo Osborne 1992 tece uma crítica à ideia de pósmodernidade enquanto um momento histórico que sucede à modernidade considerando que o projeto moderno ainda está em desenvolvimento e argumentando que o tornarse pósmoderno consiste em permanecer 28 moderno Referenciando Lyotard Osborne apresenta a citação O que é então o pós moderno Sem dúvida parte do moderno Pósmodernismo não é modernismo em seu final mas em seu estágio nascente e esse estágio é constante Lyotard 1984 p79 citado em Osborne 1992 p29 É importante frisar que Lyotard adota o termo pósmoderno definindoo como uma atitude de incredulidade em relação às metanarrativas as quais podem ser consideradas como a base do pensamento moderno enquanto um projeto social Lyotard 19791984 Bauman 1998 apresenta a ideia da modernidade como uma época de certezas sólidas onde as instituições e o Estado cooperavam em busca do progresso do desenvolvimento de uma sociedade ideal e evoluída Havia uma noção de verdade e de ponto máximo da evolução em direção ao qual a humanidade como um todo deveria caminhar presente de forma marcante na primeira metade do século XX É em parte a crise nesse paradigma aliada ao desenvolvimento de novas configurações do capitalismo e às transformações sociais que se seguiram que marcam o surgimento do conceito de pósmodernidade não como um novo período que se opõe à modernidade como esta propõe oporse à Idade Média como aponta Osborne 1992 e sim como um novo estágio daquilo que foi a modernidade que não se dissocia completamente do projeto moderno mas que se diferencia inquestionavelmente daquilo que se apresentava como modernidade no século passado Assim mais uma vez se evidencia como a tarefa de falar da pósmodernidade passa necessariamente pela análise da modernidade pois em certo sentido ser pósmoderno é ser moderno em um grau diferenciado Harvey 19892017 situa o início da modernidade enquanto projeto no século XVIII quando havia uma espécie de otimismo generalizado expresso pela crença de que o desenvolvimento científico e social culminaria na libertação do ser humano das irracionalidades revelando qualidades universais e imutáveis da humanidade a tradição 29 iluminista seguiu essa ideia abraçando a necessidade de mudança e reconstrução como parte fundamental do processo de construção de uma sociedade ideal racional e universal O autor aponta indícios entretanto de que tal projeto acabaria por caminhar em direção a um sistema de opressão generalizado uma vez que a construção dessa sociedade ideal perpassaria necessariamente por um controle ativo das possibilidades de existência como evidenciado por Foucault em sua análise da sociedade disciplinar 19752014 ou naquilo que Bauman 1998 caracteriza como a produção dos estranhos modernos Bauman 1998 afirma que toda sociedade produz estranhos aqueles que não se encaixam no mapa cognitivo moral ou estético do mundo p27 A partir do momento em que cada sociedade é regida por regras específicas de conduta os indivíduos que de certa forma confundem ou flexibilizam essas regras são considerados uma ameaça ao funcionamento social No modernismo a questão dos estranhos se faz excepcionalmente presente tendo em vista a característica do projeto moderno de transformar a questão da identidade de algo que era herdado ou atribuído em uma realização cuja responsabilidade era atribuída ao próprio indivíduo assim havia um firme vínculo entre a ordem social como projeto e a vida individual como projeto Bauman 1998 p 31 e se não fossem os esforços coletivos com o fim de assegurar um cenário de confiança duradouro estável previsível para atos e escolhas individuais construir uma identidade clara e duradoura seria quase impossível Bauman 1998 p 31 O pacto era do indivíduo se construir como ser civilizado enquanto o Estado garantiria as condições para tal e aqueles que quebrassem esse pacto os estranhos deveriam ser assimilados ao projeto moderno ou eliminados de forma a não atribular o plano idealizado de progresso Consequentemente tratavase de uma sociedade predominantemente sólida de certezas concretas 30 A modernidade então pode ser definida como a época em que uma pretensa noção de liberdade e igualdade que na prática não estava disponível para todos se opunha ao tradicional em busca de uma emancipação coletiva da humanidade a qual deveria ser obtida através dos esforços individuais de cada cidadão e de um direcionamento cuidadoso por parte do Estado e das instituições Esse projeto entretanto passa a ser regido pelas disciplinas e por um controle social expresso pelo crescimento do poder estatal e ameaçado pelas crises e desafios decorrentes desse modo de organização produzindo uma sociedade que paradoxalmente buscava o progresso o novo e o tecnológico ao mesmo tempo em que temia as diferenças e as mudanças na ordem que a regia e nas tradições que a própria modernidade começava a instituir Para fins desta discussão considerando o objetivo de comparar com a pós modernidade pretendemos focar na modernidade do início até meados do século XX altura em que começa a sofrer transformações significativas que culminam em um consenso de que há uma alteração nas práticas e formações discursivas que diferenciam o período pós moderno dos pressupostos do período que o precede Harvey 19892017 Permeada por essa lógica desenvolvimentista a modernidade se configura no âmbito social por uma marcada tradição da instituição familiar pelo levante de movimentos sociais em prol dos direitos de grupos minoritários pelas organizações sindicais movimentos de liberação sexual e rompimento com tradições antigas No âmbito econômico podemos citar o acelerado desenvolvimento tecnológico industrial a expansão dos meios de produção e crescimento do setor secundário o uso em larga escala dos modelos fordista e taylorista de produção fabril aumento das exportações e formação do capital financeiro surgimento das grandes indústrias e conglomerados e marcada tendência de expansão do projeto moderno através do imperialismo 31 O próprio imperialismo merece destaque uma vez que em seu movimento de espalhar os dispositivos do mercado para o resto do globo transportou também manifestações culturais e lógicas discursivas e disciplinares da sociedade ocidental para outros campos do planeta De fato a globalização é um bom exemplo de como frequentemente a lógica do capital e os ideais do projeto moderno caminharam lado a lado de tal forma que é difícil separar o que seria do âmbito de cada um O movimento de expansão do comércio e do capital para países asiáticos e para aqueles que eram considerados na divisão socioeconômica da época como de terceiro mundo simultaneamente serviu às necessidades de mercado de encontrar novos consumidores e mão de obra mais barata e ao discurso do modernismo que pregava um único modelo de sociedade do progresso como ideal para todos os seres humanos cujos valores deveriam ser transmitidos ao países considerados menos civilizados As implicações dessa retórica foram evidentes aniquilação de potencialidades culturais dos países menos desenvolvidos economicamente surgimento de uma marcada onda de neocolonialismo a necessidade da criação de um Estado forte e capaz de ditar as regras de controle a fim de dirigir os seres humanos rumo ao tão almejado progresso considerando aqueles que não seguiam os passos dessa caminhada como empecilhos a serem removidos na estrada para o desenvolvimento Esta visão do papel do Estado permeou todas as grandes teorias políticas da época a democracia intervencionista dos EUA o socialismo da URSS o nazismo alemão e demais movimentos fascistas europeus todos pautados em uma corrente de pensamento que propunha eliminar os inimigos em nome de um sistema supostamente mais evoluído sobre o qual se afirmava em última instância que beneficiaria a todos os seres humanos ou mais especificamente a todos considerados por cada sistema como dignos do título de humano 32 Alguns marcos históricos podem ser citados como consequência dessa forma de política as grandes Guerras Mundiais e a própria Guerra Fria podem ser analisadas sob um prisma de resultado da tentativa de Estados dominadores estenderem globalmente sua influência as crises econômicas seja a Grande Depressão de 1929 nos EUA ou a Grande Fome chinesa marcam falhas gravíssimas em sistemas políticos que prometiam ser o único caminho para uma sociedade plena O custo humano das ditaduras na América Latina também deve ser mencionado uma vez que o movimento de tomada de poder através de forças militares participava do discurso anticomunista e defendia os interesses do capital assim como do projeto moderno Em suma as implicações históricas e as falhas aparentes do sistema sociopolítico vigente na época acabaram por promover uma onda de descrença e o fim do otimismo tão presente no discurso iluminista e no surgimento dos ideais modernos A partir da segunda metade do século XX há uma notável crise de paradigmas expressa tanto nas ciências quanto na descrença da população em relação à política na onda de oposição popular a novas guerras no surgimento de movimentos de contracultura como o hippie que se opunha à lógica de mercado tradicional entre outros É a partir desse momento que a certeza do progresso começa a ruir e ser substituída por uma falta de horizonte e sentido que se faz marcadamente presente ainda na pós modernidade É neste processo também que as certezas e a solidez modernas começam a ser questionadas e substituídas pelas múltiplas possibilidades e por um ritmo tão diferente de mudanças que já não caberia naquilo que foi o projeto moderno A partir desse movimento começa a despontar nosso foco de interesse aquilo que estamos chamando de pós modernidade Em resumo o indivíduo moderno do séc XX existia em um mundo de certezas mais ou menos definidas de instituições sólidas e com um Estado forte que com sua política de 33 bemestar se responsabilizava em suprir de certa maneira os custos humanos do capitalismo Bauman 1998 Os ideais de liberdade e democracia estavam em voga e os modos de relacionamento tendiam para vínculos sólidos e duradouros com a religião ainda ocupando importante papel em manter estruturas firmes como a família e um conjunto específico de regras de conduta social Obviamente essa configuração não significa que os sujeitos modernos vivessem em um mundo estável como comprovado pelas diversas transformações históricas guerras e crises que eclodiram no século passado mas sim que as estruturas da sociedade estavam organizadas de tal maneira que havia possibilidade de o sujeito construir um plano de futuro relativamente concreto Podese afirmar que o principal luxo que o humano moderno possuía imerso como estava em um momento histórico que buscava promover mudanças e que se perdeu quando entramos na pósmodernidade estava expresso nas condições de vida estáveis o suficiente para que se pudesse prever mais ou menos um horizonte de possibilidades e a partir daí realizar planos sólidos para o futuro Veremos mais adiante como essa perspectiva fica ameaçada com a modalidade pósmoderna de funcionamento social desenvolvendo o pensamento de Lipovetsky Charles 20042018 A pósmodernidade representa o momento histórico em que todos os freios institucionais que se opunham à emancipação individual desmoronam e desaparecem As grandes estruturas socializantes perdem sua autoridade as grandes ideologias já não trazem nada de novo os projetos históricos já não mobilizam o campo social é apenas o prolongamento da esfera privada a era do vazio instalase p 25 PósModernidade e a Era do Vazio A pósmodernidade tendo em vista as considerações acima tecidas pode ser compreendida ao mesmo tempo como uma continuação adaptação e crise do projeto 34 moderno É nessa época que fica evidente a falha do Projeto das Luzes Lipovestky Charles 20042018 e de diversos outros paradigmas modernos seja nas ciências nas ideologias ou nas estruturas sociais como a família tornandose necessária uma substituição de certos modelos Porém é precisamente pela forma como essa substituição ocorre que a pós modernidade se caracteriza como uma evolução da modernidade pois não houve exatamente uma ruptura as estruturas foram adaptandose e transformandose em uma espécie de mutação descontrolada do cuidadoso projeto moderno de construção da sociedade ideal Em parte por essa razão que a tarefa de situar historicamente a pósmodernidade é tão complexa Podemos tomar a queda do Muro de Berlim como o evento histórico que marca o início dessa nova forma de organização social uma vez que este acontecimento simboliza o fim das grandes batalhas ideológicas do século passado De fato é possível traçar uma diferença entre as guerras ocorridas no século XX principalmente até a década de 80 incluindo a Guerra Fria e as ocorridas posteriormente se argumentarmos que as primeiras foram decorrentes de conflitos ideológicos e da tentativa de estender influência política capitalista sobre outros modelos de sociedade e que as últimas podem ser mais relacionadas à expressão de interesses mercadológicos em uma sociedade já quase exclusivamente capitalista a nível global Essa ruptura nas ideologias sólidas é um grande marco da pósmodernidade e possivelmente a maior diferença entre o projeto moderno e o que hoje ocorre a nível de configurações discursivas que regem a nossa sociedade Podemos entender algumas mudanças por exemplo a criação dos meios de comunicação de massa e o boom tecnológico como uma evolução natural daquilo já ocorria na modernidade com a busca pelo máximo desenvolvimento técnicocientífico é possível também pensar certas alterações nos modos de relacionamento e quebras nas tradições modernas como fruto do próprio projeto de busca pela liberdade individual e resultado direto de lutas sociais como é o caso da instituição familiar 35 tradicional que hoje se vê completamente reconfigurada para acolher modalidades de família que abarquem a emancipação feminina e os direitos LGBTQ É na crise das ideologias sólidas entretanto que a pósmodernidade demonstra uma ruptura com o projeto moderno e sendo possível argumentar que é justamente a partir desta crise que se desenvolvem as grandes transformações sociais que fogem ao escopo do que era o projeto moderno De certa maneira no modernismo a lógica do mercado servia como apoio como meio para um fim que propunha em última instância a obtenção da emancipação do ser humano Agora parece que a lógica do capital engoliu as diversas ideologias transformandoas em produtos que podem ou não ser adquiridos mas cuja necessidade tornase de certa forma obsoleta uma vez que a organização sociopolítica contemporânea parece ser composta não pelo mercado alimentando um projeto específico e sim por uma retroalimentação do capital que passa a sujeitar todos os outros aspectos da configuração pósmoderna à sua própria lógica de uma maneira terceirizada Em algum momento do percurso quando a própria noção de sociedade ideal se deteriora abrese espaço para a aceitação das diferenças como algo positivo Bauman 1998 enquanto paradoxalmente o imperialismo cultural e o intervencionismo continuam a espalhar para o mundo atualizações dos moldes de relação da sociedade capitalista contemporânea Há neste ponto uma transformação do que seriam os estranhos o que pode ser considerado mais uma evidência de que houve uma transformação social clara Atualmente o estranho não é mais aquele que é diferente no sentido de não seguir regras de comportamento determinadas como civilizadas O estranho pósmoderno é aquele que não participa da lógica do capital ou seja que não exerce seu papel de agente do consumo Bauman 1998 A dignidade humana não está mais vinculada a um padrão específico de comportamento social o novo e o diferente passam a ser considerados 36 aceitáveis e até mesmo desejáveis desde que possam ser consumidos e deixados de lado de acordo com os interesses individuais e de mercado Um exemplo deste fenômeno é a maneira como as próprias lutas de classe de raça e por direitos das minorias no geral passam a ser comercializadas ironia expressa na quantidade de camisetas vendidas com estampa de líderes revolucionários como Che Guevara na variedade de produtos estéticos que apresentam rótulos feministas ou na quantidade de empresas que hoje oferecem opções veganas enquanto continuam comercializando produtos confeccionados à base da exploração animal Dessa forma as próprias modalidades de resistência e tentativas de transformação do sistema são incorporadas em um processo no qual muito pouco há que não possa ser comercializado as ideias surgidas a partir das lutas de movimentos sociais se tornam também mercadorias Falar em comunismo por exemplo não é mais por si só uma ameaça à ordem social até porque esta ordem social também já não é um projeto específico Na era da liberdade todas as ideologias são válidas desde que possam ser comercializadas de alguma forma convertendose assim em alimento para o mercado Assim podemos traçar um paralelo entre a complexidade da época pósmoderna com o mito da hidra animal mitológico composto por diversas cabeças que quando cortadas imediatamente dariam origem a outras Ao se desvencilhar de um projeto específico a organização social capitalista se torna muito mais difícil de compreender pois sua estruturação já não passa por um único eixo acontecendo em uma espécie de autogestão intrincada onde as diversas partes envolvidas buscam fazer o possível para influenciar o sistema de forma a melhorar cada vez mais sua própria condição em detrimento da coletividade Esta transição entre o pensamento coletivo apoiado na proposta de organizar a sociedade como um todo e a lógica individualista vigente onde cada um é responsável por si 37 merece também destaque como uma das grandes diferenças entre a modernidade e aquilo que veio depois Podemos portanto afirmar que parte da enorme dificuldade em definir o que é o nosso momento atual é devida ao fato de que não é uma época exatamente passível de definições sendo essa possivelmente sua maior característica A pósmodernidade é um período de rupturas de constantes transformações de referências flutuantes e é possível que a tarefa de a definir por completo esteja sempre fadada à incompletude tendo em vista as dificuldades inerentes à esta fluidez Uma vez tendo em mente essa característica podemos nos esforçar para delinear um esboço do fenômeno à medida em que o comparamos com a modernidade do final do século XIX e início do século XX É a partir da evidenciação das diferenças entre este recente passado e o agora que se propõe começar a especificar o que é afinal o nosso momento e a partir daí o que podemos inferir a respeito do ser humano contemporâneo e seus modos tão específicos de sofrimento Vamos a seguir delinear as principais características da pós modernidade buscando contextualizálas em relação com o modelo moderno de funcionamento social Como anteriormente exposto a sociedade moderna era sobretudo uma sociedade de certezas a política as instituições os modos de relação todos eram pensados para durar seguindo a ideia de que a humanidade estava cada vez mais próxima da fórmula ideal de organização de uma sociedade que purificasse a natureza humana mantendo apenas nossas potencialidades A pósmodernidade como vimos é marcada justamente pela ausência de certezas o que Bauman 1998 nomeia de liquidez e o que Berman menciona quando cita a afirmação de Marx de que tudo que é sólido dissolvese no ar Berman 1988 p 240 Mas uma vez que o discurso do progresso já não serve como substituílo 38 Neste ponto podemos citar a terceirização como um fenômeno marcante da pós modernidade Não apenas a terceirização dos serviços mas principalmente a terceirização das responsabilidades e da tarefa de atribuir sentido às coisas Se a modernidade ofereceu a condição de transformar a identidade do indivíduo de atribuição algo de sua natureza em um projeto que consequentemente pode ser construído por cada um Bauman 1998 podemos dizer que a pósmodernidade transformou esse projeto em um produto ou uma série de produtos O indivíduo passa a ser uma equação entre aquilo que consome e aquilo que produz ou seja sua identidade passa a ser elaborada a partir do seu papel no jogo do mercado Dentro desta lógica podemos considerar que o humano pósmoderno é mais livre em termos da quantidade de opções à sua disposição já que não se acredita mais em sociedade ideal de repente abrese as portas para múltiplas possibilidades políticas religiosas subjetivas É facultado ao indivíduo o direito de ser aquilo que quiser desde que possa arcar com os custos dessa vivência Assim a dignidade humana passa a ser medida através de seu acesso aos bens de consumo e seu valor é medido através de sua eficácia enquanto consumidor A qualidade de vida passa também a ser perpassada pelo fenômeno da terceirização a responsabilidade de garantir uma sociedade estável e o bemestar de todos migra das mãos do Estado para o colo de cada um devendo cada sujeito fazer o possível para obter suas condições ideais de desenvolvimento dentro de uma lógica marcadamente meritocrata Se antes era papel do Estado dar conta do custo humano gerado pelo sistema econômico cuidando por exemplo dos trabalhadores que este sistema requeria que fossem mantidos como mão de obra excedente para seu bom funcionamento hoje em dia se acredita que já não podemos arcar com tais custos a visão do desempregado transformase da figura de alguém que está em um momento de másorte e precisa de capacitação para retornar ao 39 mercado para alguém que drena os recursos daqueles que realmente contribuem para a sociedade Bauman 1998 Considerando então a influência da lógica do capital optamos por iniciar nossa tarefa de discorrer sobre a pósmodernidade do ponto de vista econômico A sociedade pósmoderna é marcada pela terceira revolução do capitalismo desenvolvimento tecnológico acelerado armas nucleares terceirização dos serviços precarização das condições de trabalho enfraquecimento dos movimentos sindicais consumo e comunicação de massa Como consequência houve o surgimento de diversos novos setores de serviços e produtos damos destaque para o setor de informação Bauman 1998 Harvey 19892017 Atualmente o comércio de dados a respeito dos indivíduos visando estabelecer seus padrões de consumo e criar necessidades específicas para cada um é um dos negócios mais lucrativos existentes Podemos pensar nas consequências que a mercantilização da informação acarreta para a sociedade sendo a mais óbvia a hiper exposição e o comprometimento da privacidade De fato a própria noção de privacidade sofreu uma grande transformação com o advento dos meios de comunicação em massa Para Bauman 1998 as fronteiras entre o público e o individual se fragilizaram Lipovetsky traz a noção de moda enquanto manifestação do individual que marca a possibilidade do indivíduo pósmoderno de se construir e evidencia as múltiplas possibilidades de ser na contemporaneidade Lipovetsky Charles 20042018 Novamente estamos abordando um fenômeno social que traz consigo a lógica de mercado seja utilizando as informações veiculadas para propaganda seja divulgando através das mídias sociais a ideia de uma vida perfeita como é o caso dos influenciadores digitais Não buscamos afirmar que o fenômeno da flexibilização da divisão entre público e privado deuse exclusivamente em decorrência de uma organização capitalista mas não há como discutir que o mercado se apropriou desse fenômeno para seus próprios interesses De 40 qualquer maneira noções abstratas como felicidade empoderamento e saúde são corriqueiramente associadas ao consumo de produtos específicos e a divulgação da vida pessoal está muito ligada ao consumo de bens e serviços postar fotos de determinados produtosvivências assim como à divulgação de determinados estilos de vida influenciadores fitness de moda entre outros Podemos marcar dois fenômenos que acompanham o boom nos meios de comunicação em massa e o surgimento dessa sociedade do espetáculo Bauman 1998 em primeiro lugar as novas formas de controle social exercidas pelos governos e empresas que têm acesso a uma infinidade de dados sobre os indivíduos suas preferências padrões de consumo inclinações políticas etc Podemos citar o Patriot Act dos EUA ou a Lei Antiterrorista brasileira como exemplos dessa nova modalidade de controle dos governos que no caso dos EUA permite a interferência do Estado nos dados privados dos cidadãos e no caso brasileiro permite o controle e repressão de manifestações sociais Além dos dispositivos de vigilância institucionalizados podemos citar diversos escândalos como evidências de abuso de poder por parte dos governos como o caso denunciado pelo Wikileaks de espionagem internacional perpetrada pelos EUA Nunes 2018 Além disso empresas privadas participam do comércio legal ou não de dados e informações a respeito dos indivíduos Em segundo lugar a maneira como as pessoas se relacionam parece ter sido profundamente afetada pelo uso da internet e das redes sociais de tal forma que o fenômeno da flexibilização da privacidade ocorre também a nível relacional É importante ressaltar a frequência e a qualidade das comunicações muito diferentes do que era possível na era moderna Se no século XX o indivíduo só tinha a possibilidade de ver sua vida exposta a público através da mídia tradicional como jornais e revistas atualmente qualquer um com 41 acesso à internet pode divulgar os detalhes mais particulares de suas experiências e ser lido e compartilhado por milhares de pessoas ao redor do globo Tornase viável também o acesso a outras culturas e indivíduos abrindo possibilidade de novas modalidades de relacionamento como o chamado webnamoro onde indivíduos que nunca se encontraram pessoalmente iniciam um relacionamento romântico fóruns como o Reddit que possibilitam a discussão de interesses similares entre desconhecidos ou a modalidade de sexting que incorpora as redes sociais nas práticas afetivas e sexuais Atualmente o uso das tecnologias tornase cada vez menos opcional e mais obrigatório Se o ser humano é um ser social e as mídias regem as formas de se relacionar então fazse necessário tomar parte delas sob pena de ser excluído de determinados círculos Um exemplo dessa tendência são os convites para eventos sociais como festas de aniversário ou reuniões que frequentemente são realizados apenas através do Facebook sendo necessário que o indivíduo participe dessa rede para poder ser incluído Se considerarmos a presença online como praticamente mandatória a necessidade de aparentar ser bemsucedidopopular fazse ainda mais compreensível de certa forma as redes sociais tornaramse um cartão de visitas uma imagem pública daquilo que cada um é ou tem a oferecer enquanto indivíduo Desta maneira abrese a vida para o julgamento coletivo e tornase de extrema importância se apresentar sob uma luz o mais favorável possível É nesse sentido que podemos afirmar que vivemos na era em que o parecer suplanta o ser tendo em vista que aquilo que se apresenta para o mundo é mais valorizado do que ações concretas como expresso no atual dito popular se não postou foto não aconteceu Podemos pensar na questão das redes sociais como expressão de um fenômeno social maior que pode ser definido como o impulso da individualização Com a queda das grandes ideologias o humano pósmoderno tornase um ser que se preocupa consigo mesmo e suas próprias necessidades em exercer sua liberdade o máximo possível com o mínimo de limites 42 e compromissos Se por um lado desejamos estabilidade por outro não queremos perder as possibilidades o que fica muito evidente nas formas pósmodernas de se relacionar Não é à toa que a pósmodernidade trouxe a desconstrução da ideia de monogamia e do casamento como estágio necessário da vida e colocou em voga novas propostas de vínculos como o poliamor relacionamento sério com múltiplos parceiros os relacionamentos nãomonogâmicos e uma maior valorização nas experiências da vida de solteiro Da mesma forma houve transformação nos vínculos familiares assim como um enfraquecimento da noção tradicional em prol de uma concepção mais abrangente de família Em todos os âmbitos relacionais incluindo as amizades parece haver uma lógica mercantilista que permeia a forma como os indivíduos pósmodernos se relacionam não é mais sobre construir um vínculo em si pois este vínculo pode ser quebrado com facilidade uma vez que nada é constante e sim sobre uma espécie de mutualismo onde pessoas constroem relações baseadas na troca de interesses que podem facilmente ser interrompidas quando deixam de ser vantajosas para uma das partes Podemos detectar portanto uma marcada tendência para o individualismo Em um mundo onde já não há um objetivo social comum e os vínculos se encontram fragilizados o ser humano se direciona para a satisfação da maior quantidade possível de impulsos fenômeno expresso no consumo exacerbado e na acumulação de bens enquanto parte do cotidiano dos indivíduos Através do marketing os produtos deixam de ser apenas itens de necessidade e passam a carregar um status como é o caso das roupas de grife ou de marcas que afirmam ser comprometidas com causas sociais A construção da identidade do indivíduo perpassa também por aquilo que este consome Desta forma todos são livres para escolher sua identidade que se apresenta não mais necessariamente como um projeto como na era moderna mas como um conjunto de práticas e principalmente de itens aos quais o indivíduo se vincula Esta identidade pode facilmente ser 43 alterada mas necessariamente estará vinculada às práticas do mercado no sentido de que existem produtos específicos voltados para cada grupo identitário e esperase um alinhamento dos hábitos de consumo do sujeito ao seu projeto de identidade O indivíduo pósmoderno é portanto em primeiro lugar mutável pois renuncia à segurança das certezas sólidas em prol da aparente liberdade de poder fazerse como quiser Bauman 1998 Porém se já não há solidez como é possível construir um projeto identitário Neste ponto os desejos produzidos pela mídia parecem passar a se configurar como suplentes da necessidade de um projeto existencial como será posteriormente discutido Os modos de relação também permeados pela lógica do mercado constituem um plano relacional líquido como afirma Bauman 1998 Tudo isso contribui para uma configuração social marcada pela ausência de estabilidade Do ponto de vista político podemos considerar um rompimento com as grandes ideologias senso geral de insatisfação descrença dos ideais de democracia e atualmente um avanço das ondas conservadoras marcado pelo crescimento da extremadireita em diversos países e pelo neofascismo David Harvey 19892017 afirma haver à época da publicação de sua obra Condição PósModerna um consenso de que o capitalismo está em crise Essa sensação de desestrutura políticosocial também pode ser percebida nas ondas de manifestações sociais que eclodiram em diversos países nos últimos anos Trazendo como exemplo o caso do Brasil entre o ano de 2012 e 2013 eclodiram movimentos populares que pareciam ter características muito peculiares milhares de brasileiros foram às ruas levantar uma série de pautas não sendo incomum encontrar em uma mesma passeata pessoas contra e a favor do governo vigente à época protestos contra tópicos gerais como a corrupção e específicos como o aumento da passagem de ônibus e outros projetos de lei que dificultariam a vida da população É interessante observar como um movimento autêntico e apartidário que parece ter eclodido de forma mais ou menos 44 espontânea com o tempo foi sendo apropriado pela mídia promotora de um redirecionamento da insatisfação popular em prol de uma agenda política e econômica favorável aos interesses neoliberais no país Tatagiba Galvão 2019 Assim a política parece estar sujeita também à uma nova lógica onde a crítica ao modelo proposto já não é uma ameaça per si uma vez que já não se preza por uma ordem social única Em não havendo um projeto moderno a ser defendido as ameaças ao sistema deixam de ser da ordem ideológica de fato as ideias de liberdade permitem que atualmente cada indivíduo expresse suas convicções políticas podemos até mesmo argumentar que a prática social em torno da discussão ideológica alterouse visto que há algumas décadas política e religião por exemplo eram considerados assuntos tabus enquanto hoje se incentiva que as pessoas se posicionem e debatam entre si É nesse sentido que se pode falar de uma lógica mercadológica que se retroalimenta e engloba as diferenças Dessa maneira as grandes ideologias já não representam uma ameaça como na época moderna uma vez que o próprio projeto moderno se transmutou De fato é nas ações sobretudo nas práticas de consumo que aparentemente hoje se encontra a maior ameaça para a ordem social contemporânea Curiosamente essa ameaça se constitui à medida em que perpassa o mercado é exatamente através do consumo que as grandes mudanças sociais são obtidas atualmente Um exemplo disso é o fenômeno do pink money nomenclatura dada ao poder de compra da comunidade LGBT através do qual diversos marcos de representatividade foram alcançados Silva 2015 em um movimento onde empresas buscando atrair um público consumidor específico lançam campanhas e produtos voltados para as necessidades deste grupo social Outro exemplo das repercussões desta modalidade de ativismo financeiro é o veganismo filosofia de consumo que mantém em voga a pauta dos direitos dos animais Assim empresas que não são afetadas pela ideologia podem ser atingidas por meio da prática de consumo 45 como no caso de redes de fast food que claramente se beneficiam da exploração animal e entretanto vêm lançando produtos veganos buscando atingir um nicho específico de mercado Em resumo podemos argumentar que da mesma forma que os estranhos passaram daqueles que não seguiam as regras de comportamento sociais adequadas ao projeto moderno para aqueles que não participam ou não podem participar do jogo do consumo a política também parece ter passado de um embate ideológico em direção a algo diferente muito mais permeado pelos interesses do mercado do que de uma verdade que buscasse a emancipação do ser humano No âmbito geográfico a globalização altera a configuração das cidades criando um distanciamento nos espaços A relação homemnatureza encontrase comprometida tendo em vista a tendência de se criar espaços fechados e isolados das vicissitudes do clima e das estações como conglomerados de escritórios shopping centers entre outros Com essas mudanças o humano pósmoderno encontrase em uma situação em que uma série de novas possibilidades se abrem a facilidade de locomoção por exemplo permite que se tenha acesso a novos espaços produtos e serviços anteriormente indisponíveis Tal liberdade entretanto traz como consequência um distanciamento da natureza expressa tanto no espaço das cidades que são cada vez menos arborizadas quanto em manifestações de prognóstico mais sinistro como é o caso do aquecimento global e de outros fenômenos climáticos O próprio tempo é ressignificado na contemporaneidade sendo dissociado do tempo natural em prol de uma aceleração da produtividade Assim o humano pósmoderno goza de possibilidades múltiplas ao mesmo tempo que é preso a uma temporalidade artificial O sujeito pósmoderno então sofre como é inerente ao ser humano em todas as épocas e entretanto o faz de maneiras específicas sendo invadido por possibilidades que proliferam neste aquiagora dentro de um contexto econômico e sociocultural muito 46 específico Buscamos aqui explicitar um pouco das configurações que permeiam a sociedade contemporânea A seguir pretendemos apresentar a perspectiva fenomenológica da existência e de como lidar com as angústias dela recorrentes para posteriormente comparar essa proposta fenomenológica de sernomundo com os fatores da pósmodernidade aqui descritos 47 Capítulo 2 Fenomenologia Enquanto Dimensão de Análise do Ser Humano Para dar início à esta segunda parte da nossa discussão convém primeiramente realizar uma contextualização da Fenomenologia assim como do sentido no qual pretendemos utilizála para compor a análise proposta das modalidades de sofrimento psíquico na pósmodernidade Partindo de sua gênese propomos então trazer Husserl considerado o pai desse movimento filosófico para iniciar o processo de delimitar o que é a Fenomenologia e de qual forma ela se aplica ao nosso trabalho AlesBello 2006 aponta a dificuldade de se estudar Husserl tendo em vista que este não escreveu uma obra delineando claramente todo seu processo investigativo A autora busca em sua obra Introdução à Fenomenologia delimitar esse processo levantando a história e o percurso da fenomenologia husserliana Por este motivo considerando a limitação temporal deste trabalho optamos por não trazer o pensamento de Husserl em sua obra original lançando mão do valioso material produzido por AlesBello 2006 e Molina 2007 para explicitar o caminho percorrido por Husserl desde o surgimento da Fenomenologia ao final do século XIX Fenomenologia pode ser definida como a investigação dos fenômenos compreendidos como aquilo que se mostra AlesBello 2006 A relação fundamental dessa investigação está no que ocorre entre aquilo que se mostra fenômeno e aquele ao qual se mostra ou seja o ser humano O fenômeno se apresenta no mundo e cabe ao indivíduo voltado para o mundo produzir sentidos sobre aquilo que a ele se apresenta Podemos então considerar o sentido como a grande questão de interesse deste movimento filosófico e a Fenomenologia husserliana como um método para se investigar o processo de produzir sentido Husserl propõe que para alcançar a compreensão dos fenômenos é necessário seguir um caminho investigativo composto por duas etapas a primeira voltada para o sentido dos fenômenos chamada de redução eidética e a segunda focada na investigação do sujeito que 48 busca o sentido chamada redução transcendental O conjunto dessas etapas constitui a base do que se denomina método fenomenológico ou o caminho de investigação através do qual tornase possível buscar a compreensão de tudo aquilo que se mostra no mundo seja físico ou abstrato objeto ou conjunto de relações AlesBello 2006 Observando o Sentido dos Fenômenos a Redução Eidética A proposta da redução eidética pautase na ideia de que o ser humano é capaz de certa forma de intuir o sentido das coisas Apesar da compreensão do sentido nem sempre ser imediata é nela que reside o interesse da investigação fenomenológica Husserl considera como uma capacidade humana a possibilidade de intuir esse sentido das coisas Assim os fatos são analisados em busca da sua essência de seu significado AlesBello 2006 A redução eidética portanto consiste em voltarse à coisa mesma e buscar observar o fenômeno da maneira como este se mostra para o observador Para tal é necessário suspender tudo aquilo que se julga conhecer previamente a respeito do fato observado descrevendo apenas o que se apresenta A este processo denominase epoché o colocar entre parênteses as informações armazenadas na consciência de forma a possibilitar que se intua o sentido do fenômeno da maneira mais pura possível Redução Transcendental Quem é o Sujeito que Produz o Sentido A redução transcendental busca investigar quem é o sujeito e como este opera a produção do sentido Neste ponto diferenciase experiência perceptiva de reflexão A experiência perceptiva é o perceber notar os fenômenos saber que estão ali e que ocorrem porém sem voltar a consciência para eles Já na reflexão a atenção é focada no fenômeno que está sendo percebido Podemos fazer um paralelo desses dois momentos com o conceito de figura e fundo da Gestalt na experiência perceptiva os fenômenos estão ali são percebidos mas representam um fundo composto de diversos objetos Na reflexão quando o olhar da consciência se 49 direciona ao fenômeno este passa a caracterizarse enquanto figura ou seja enquanto foco da atenção do sujeito que observa e a partir daí pode intuir e produzir o sentido do fenômeno observado Em termos simplificados a redução eidética tem seu foco no fenômeno objeto e a redução transcendental tem como foco a relação pessoaobjeto processo reflexivo implicando o sujeito no processo de elaboração do sentido do fenômeno Partindo da experiência perceptiva Husserl desenvolve sua investigação considerando que a percepção que ocorre por meio das sensações é uma porta uma forma de ingresso uma passagem para entrar no sujeito ou seja para compreender como o ser humano é feito AlesBello 2006 p 30 E a percepção por sua vez se dá através da consciência ponto central de interesse de Husserl na redução transcendental A questão da consciência é uma das grandes contribuições de Husserl para o entendimento do ser humano para ele esta não é um fato psíquico independente como era compreendida pelas teorias mentalistas e sim um processo Desta forma o conceito de intencionalidade é desenvolvido para explicar que a consciência não pode ser emsi ou seja sempre será consciência de algo existindo apenas em relação com os objetos do mundo Assim o ser humano é permeado por vivências atos de interagir com o mundo e considerase que a consciência pode ser dividida em dois momentos o darse conta das vivências e o refletir sobre as vivências percebidas O ato reflexivo portanto é uma vivência em segundo grau AlesBello 2006 p 33 de forma que podemos falar em um primeiro nível da consciência que ocorre na instância dos atos perceptivos e um segundo nível onde se dão os atos reflexivos porém sempre em processo intencional de relacionarse a algo que está no mundo Em se tratando de atos perceptivos há uma grande importância da interação do ser e do mundo uma vez que a percepção é dada através dos sentidos O corpo parte fundamental desse processo é percebido de maneira muito distinta da dicotomia cartesiana é através dos 50 sentidos em especial do tato que interagimos com o mundo e assim podemos percebêlo É pelo corpo que são dados os limites e as possibilidades de percepção de cada um e as vivências ocorrem atravessando o corpo de tal forma que é impossível separar a dimensão corporal da dimensão psíquica Por este motivo o sujeito também não pode ser emsi ele é nomundo ou seja se constrói a partir da relação eumundo que é sempre permeada pelo corpo Husserl realiza uma análise da corporeidade essa dimensão do corpo que opera a percepção concluindo ser através das sensações corpóreas registradas que podemos afirmar o fato de temos um corpo As coisas físicas são conhecidas através da corporeidade Ales Bello 2006 p 37 como abordaremos em mais detalhes em seção específica a respeito da corporeidade Assim temos a vivência produto das sensações do corpo e o primeiro nível da percepção e também temos uma capacidade de refletir sobre fatos vividos consequência direta da habilidade de registrar as vivências através desse registro das experiências tornase possível ao ser humano ter consciência das coisas Husserl considera haver atos relativos ao instinto revestidos de caráter psíquico atos de caráter corpóreo e uma terceira instância que nos permite controlar o corpo e a psique relativa ao que se considera em Fenomenologia ser pertinente à esfera do espírito AlesBello 2006 Desta forma Husserl propõe um entendimento de ser humano integrado pelas dimensões corpopsiqueespírito muito diferente da concepção positivista e da diferenciação mentecorpo vigentes à época e que ainda hoje permeiam diversos discursos a respeito do indivíduo As análises aqui realizadas serão vinculadas à concepção fenomenológica do sujeito considerando o físico o psíquico e o espiritual como interligados e indivisíveis sendo necessário abordar cada um desses aspectos na busca pela compreensão do fenômeno do ser e a partir disso tecer considerações a respeito do sernomundo pósmoderno 51 Husserl Positivismo Psicologismo e Críticas As críticas de Husserl ao positivismo configuramse como parte de sua trajetória na construção do método fenomenológico De certa forma podese dizer que é buscando suprir determinadas inquietações com o positivismo e reações ao psicologismo lógico que Husserl passa a desenvolver o pensamento fenomenológico Sua trajetória na psicologia iniciase com a busca por aliar os fenômenos da percepção a um rigor lógicomatemático filiandose inicialmente a um pensamento positivista Posteriormente influenciado pelas ideias de Franz Brentano passa a realizar críticas ferrenhas ao que considerava um psicologismo lógico e o positivismo considerandoos responsáveis por uma crise nas ciências da época AlesBello 2006 Para Husserl o positivismo foi responsável por conduzir a uma crise da Filosofia e consequente perda do humanismo uma vez que a redução da realidade a fatos físicos e psíquicos produz uma desumanização do homem Molina 2007 Considerase que há uma atitude antimetafísica expressa na hipervalorização dos fatos empíricos e do método das ciências naturais e que na busca por transformar a psicologia em uma ciência empírica há marcada tendência de se negar a filosofia e o sentido Como consequência dessas narrativas para Husserl a humanidade encontravase imersa em um cientificismo alienante no sentido de que o naturalismo restringe o espaço do humanismo em sua busca por reduzir a realidade a fatos empíricos O próprio psiquismo passa a ser compreendido como uma série de fenômenos ligados ao físico Em seus estudos das análises lógicas e psicológicas do mundo enquanto conceitos matemáticos Husserl embarca na corrente do psicologismo lógico Entretanto tendo sofrido influências da corrente neokantiana e do pensamento de Brentano passou a criticar a tendência ao psicologismo lógico considerandoo uma forma de positivismo uma vez que reduz toda a forma lógica a processos psíquicos que por sua vez são reduzidos a fatos empíricos Molina 2007 52 É necessário ressaltar que sua crítica é direcionada não à Psicologia como um todo mas ao psicologismo lógico à tendência a reduzir a teoria do conhecimento a meros fatos psíquicos o que em sua visão proporcionava uma morte da Filosofia e uma desumanização do sujeito Para Husserl é inaceitável que se considere essa forma de Psicologia como a base das demais ciências considerando que se utilizou do método físico matemático para traçar suas bases Em sua perspectiva a ciência que fundamenta todas as demais não pode estar no mesmo plano dos atos nem ser destrinchada em uma série de atos psíquicos devendose dividir as ciências entre empíricas e eidéticas ou essenciais Esta crítica como explica Zapata Molina 2007 baseiase em dois aspectos primeiramente que o positivismo lógico conduz a um relativismo cético Se a lógica se reduz a estados psíquicos só se pode falar em probabilidade de juízos lógicos e não em certeza de onde se deriva o ceticismo Outra consequência é a redução das leis lógicas a fenômenos psíquicos de tal forma que a lógica se encontra privada de seu caráter universal e seria impossível aplicar um mesmo princípio e lógica a todas as ciências Os princípios portanto limitarseiam a particulares com sua amplitude restringida ao empírico resultando em um ceticismo em relação a uma lógica universal Assim Husserl distanciase do psicologismo em busca de uma corrente capaz de transformar a Filosofia em uma ciência especificamente rigorosa iniciando sua busca por uma teoria da lógica pura e universal não baseada essencialmente nos fenômenos psíquicos É a partir daí que surge o método fenomenológico como a tentativa de chegar às coisas mesmas AlesBello 2006 Nessa concepção husserliana da lógica os atos psíquicos do pensar seriam então matéria da psicologia e não da lógica Considerase que a lógica não se ocupa dos objetos empíricos e sim de um mundo do ser ideal constituindose uma lógica pura dos objetos 53 ideais cujo foco de interesse está na relação destes objetos ideais com suas formas gerais Assim a lógica se configura como uma ciência eidética formal ciência ideal e a priori enquanto a Psicologia seria uma ciência empírica e a posteirori Molina 2007 Desta forma distinguese o processo lógico entre o pensar o objeto ao qual o pensar se refere e o próprio pensamento ou significação A significação aparece entre a palavra significante e o objeto significado e o erro do psicologismo estaria em considerar o pensar e o pensamento como um mesmo fenômeno expresso em atos psíquicos enquanto para Husserl a significação pensamento é independente do pensar sendo o primeiro ativo enquanto o último configurase como processo passivo E uma vez considerados como fenômenos distintos surge a necessidade de ciências distintas para compreendêlos a Psicologia portanto é a ciência do pensar enquanto a lógica pura seria a ciência do pensamento ou da significação Molina 2007 Partindo dessas reflexões a respeito dos efeitos do psicologismo e do positivismo nas ciências surge a Fenomenologia enquanto proposta de método preocupandose não com o fato em si com o dado empírico concreto mas com o sentido do fato a significação aquilo que é da ordem da lógica e do pensamento Tornase possível portanto colocar a existência de fatos entre parênteses na busca de compreender a essência de um fenômeno Assim o foco de interesse está não no fato em si mas na compreensão do sentido deste fato A questão do sentido surge como o problema de fundo da Filosofia uma vez que se procura o sentido e não os aspectos do objeto com os quais o positivismo de ocupa e que devem ser examinados porém como parte de um processo mais amplo de busca de significado pois a verdade do ponto de vista humano reside no sentido e não no fato AlesBello 2006 p 24 O Ser em Heidegger Heidegger considerado um dos mais importantes filósofos alemães da atualidade 54 diferenciase de Husserl na direção de suas investigações enquanto a epoché de Husserl coloca a existência entre parênteses buscando determinar a essência dos fenômenos Heidegger foca sua investigação na existência em si buscando captar o sentido do Ser do existente Para Heidegger então o problema fundamental é o do sentido do Ser que deve ser investigado de maneira concreta trabalhando em uma perspectiva existencialista buscando desenvolver uma teoria geral do Ser E desta forma distingue a existência do Ser metafísica da existência do ser humano ente tendo o tempo como horizonte de compreensão do Ser Molina 2007 A diferenciação de ser e ente é um eixo fundamental de seu pensamento a partir do qual começa a evidenciarse o problema do Ser enquanto algo cuja definição parece inalcançável uma vez que compreendemos seu uso porém não seu sentido ou sua relação com o ente Assim Heidegger procura retomar do início a questão do Ser em busca de estabelecer o seu sentido de forma descritiva e fenomenológica e tendo como objeto o sermesmo do sujeito existente Dasein objetivando através da análise fenomenológica compreender o sermesmo geral a partir do sermesmo individual passando do sentido ôntico ao ontológico Molina 2007 O Dasein Zapata Molina 2007 identificou alguns desafios na leitura de Heidegger os quais dificultam também o entendimento do conceito de Dasein fundamental para o projeto heideggeriano de compreensão do Ser Em primeiro lugar as controvérsias de tradução tendo sido traduzido para o português como presença mas havendo uma tendência internacional de 55 manter a palavra original Roehe Dutra 2014 Em segundo lugar porém não menor em desafio há a questão da própria complexidade do pensamento de Heidegger Buscaremos aqui explicitar da melhor forma possível o conceito do Dasein do qual nos serviremos para orientar a compreensão do ser que embasará nossas análises do humano pós moderno O Dasein pode ser definido grosso modo como seraí Esta definição aparentemente simples tornase complexa a partir do momento em que pensamos nas ramificações e implicações desta forma de compreender o modo de ser do humano nomundo Heidegger considera o ente humano como o único dotado de capacidade de questionar e vir a conhecer o Ser Assim o simesmo apresentase como ente a ser analisado e questionado por cada um que é que existe no mundo Isso implica em uma compreensão da existência que vai de encontro a diversas tendências da época de se analisar o ser humano não estamos mais diante de um sujeito operante de respostas condicionadas ou cujas ações são resultados diretos de processos inconscientes a análise heideggeriana do sujeito foca no projeto de existência na escolha proativa na experiência consciente e na ação direcionada às possibilidades encontradas no mundo Roehe Dutra 2014 Passase a compreender o humano como um todo inserido nomundo com hífen para indicar a relação imanente não é possível haver mundo sem ser ou ser sem mundo A existência é compreendida como um processo relacional em oposição à dicotomia cartesiana clássica ao mecanicismo materialista e ao mentalismo determinista Roehe Dutra 2014 Assim o indivíduo não é em si e sim énomundo de forma indissociável Dasein então referese ao modo de ser humano de sernomundo da capacidade humana de descobrir o próprio Ser a nível ontológico a partir de sua experiência de existir O Dasein é o ente para o qual o Ser se mostra Roehe Dutra 2014 Isto é a partir do momento em que o sujeito existe nomundo ele é afetado por esse mundo e existe em 56 relação de tal forma que as elaborações racionais sobre o Ser sucedem o fato do serno mundo Desta forma entendese que o ser humano pode constituirse como pessoa a partir de suas possibilidades de existência diretamente relacionadas com sua condição nomundo De maneira simplificada o ser humano existe nomundo ou seja em relação O fato concreto dessa presença nomundo se traduz em possibilidades de ser no estado de jásempre agora e perpetuamente ser afetado pela relação de estar nomundo Dasein portanto refere se a essa dimensão exclusivamente humana da experiência de existir em relação com as coisas consciente desta relação e a partir disso poder pensar as próprias possibilidades Heidegger considera que o Dasein é constituído por características equiprimordiais entre elas o sernomundo e a disposição afetiva com destaque para a angústia A disposição afetiva presume que o homem não existe de maneira neutra sendo constantemente afetado pela realidade o fato de seraí ser em relação indica uma afetividade direcionada ao espaço onde se existe O Dasein é afetado pelas coisas do mundo pelos outros de tal maneira que não se pode falar em neutralidade O humor portanto não é um estado intrapsíquico mas se desenvolve a partir de si mesmo na relação eumundo não podendo ser contido dentro ou fora do indivíduo uma vez que o próprio indivíduo existe em relação com o mundo Assim o Dasein é envolvido no mundo é interessado em função de outra estrutura existencial a disposição afetiva Roehe Dutra 2014 p 108 Partindo desta interpretação surge o conceito de facticidade o jásempre de se estar em um determinado humor ou a condição de ser constantemente perpassado pela disposição afetiva Sernomundo enquanto condição existencial é ser tocado e constituído pelas 57 condições históricas culturais discursivas físicas etc deste mundo no qual se existe Roehe Dutra 2014 A existência do Dasein é condicionada às possibilidades do ser considerandoo como seraí presença ou característica da existência humana apresentase a partir do modo de ser e do lidar do indivíduo com suas próprias possibilidades na existência É no entendimento do poder ser do viraser que o sujeito humano se destaca em sua habilidade de compreender a questão do Ser a nível ontológico a partir de sua experiência ôntica no mundo de tal maneira que podese afirmar que o Dasein manifestase a partir da compreensão das possibilidades É necessário ressaltar que o termo possibilidade em Heidegger vinculase à ideia de projeto existencial característico da estrutura existencial do sujeito e o Dasein compreende projetando ou seja não se encerra no aquiagora contendo em si o porvir enquanto facticidade uma vez que o ser humano é suas possibilidades Roehe Dutra 2014 Considerando o seraí o entendimento do ser humano passa a ser ontologicamente caracterizado pela convivência aspecto existencial do Dasein Roehe e Dutra 2014 destacam como o termo preocupação é utilizado em Heidegger para designar os relacionamentos possíveis entre os seres humanos A inovação do pensamento heideggeriano assim como o husserliano em comparação com o individualismo e o mentalismo característicos da época consiste em compreender o indivíduo como existente em um mundo que é compartilhado em oposição a ideia de que o ser experiencia uma realidade mental isolada O significado existencial da preocupação besorgen se refere às possibilidades do Dasein uma vez que é a forma predominante de relação do sernomundo Zapata Molina 2007 afirma que podemos investigar essa forma de existência através de três ângulos o mundo o existente que se apresenta em seu Dasein através do modo de ser cotidiano nível 58 ôntico e o serem da ordem da estrutura concreta do ser nível ontológico A preocupação forma parte dessa estrutura ontológica do ser Em resumo a essência do ser é sua existência e o Dasein é a possibilidade concreta total da existência de cada um Molina 2007 É necessário destacar que Heidegger traça uma distinção entre existência e existentia a primeira expressando o modo de ser do Dasein o estarnomundo ser por ele afetado e ter consciência de suas possibilidades e a segunda designando a presença no mundo como dado Molina 2007 O Dasein dista igualmente do ser e da possibilidade e encontrase situado entre a existência autêntica e a inautêntica conceito que abordaremos posteriormente em mais detalhes Assim na busca por esclarecer o problema do Ser a nível ontológico é necessário partir do cotidiano e do ôntico pois é através da consciência de suas possibilidades de existência no mundo que o indivíduo pode conhecer o Dasein A Angústia O conhecimento do Dasein apesar deste ser condição da existência humana na perspectiva de Heidegger não é um processo dado engloba um movimento ativo de criar consciência das próprias possibilidades e responsabilizarse pelas escolhas Para Heidegger este movimento é operado a partir da angústia decorrente da disposição afetiva e considerado fundamental para o entendimento do Dasein uma vez que revela o sernomundo como tal Roehe Dutra 2014 Este processo ocorre a partir de um desligamento do intramundano ou seja a partir do momento que o indivíduo se dissocia das condições que o mundo lhe apresenta enquanto escolhas fundamentalmente prontas e passa a questionar seu papel no cotidiano A angústia portanto mobiliza uma estranheza em relação ao que é dado no mundo àquilo que se considera fato estabelecido Somente partindo desta estranheza que se torna possível para o indivíduo romper o fluxo do habitual e implicarse enquanto sujeito ativo e de escolha 59 Tomemos como exemplo uma pessoa que cresceu em um meio religioso seguindo regras sociais específicas adequando seu comportamento às tradições estabelecidas pelo meio no qual se insere Este indivíduo que énomundo afetado pela intramundaneidade comportase de determinada forma porque assim são as coisas Neste estágio não há uma consciência ou reflexão do seu papel na escolha de agir da forma como age assim como não há responsabilidade uma vez que o indivíduo pode facilmente justificar seu comportamento afirmando que as coisas são assim e sempre foram assim e seguir sua existência dessa forma sem implicarse em suas próprias possibilidades e portanto sem acessar o próprio Dasein Agora imaginemos que por algum motivo esta pessoa é tocada pela angústia aquilo que parecia normal começa a inquietar a ser observado com um olhar de estranheza Começa se a questionar o porquê qual o sentido de agir de determinada forma e através deste questionamento a pessoa tem a possibilidade de acessar seu Dasein e compreenderse como sujeitonomundo o que implica em compreender a si ao mundo e a essa relação e implicar se no processo de escolha responsabilizandose por aquilo que opta por fazer É possível que neste processo o indivíduo opte por seguir com os comportamentos anteriores em nosso exemplo a pessoa pode angustiarse refletir e decidir ou não continuar seguindo a religião que lhe foi ensinada A diferença está no fato de fazer algo irrefletidamente porque assim as coisas são feitas em seu meio e em seu tempo e fazêlo porque houve um processo de consciência e reflexão onde o indivíduo encontra um sentido próprio para sua escolha Esta é uma diferença fundamental em suas implicações que abordaremos com mais detalhes na seção a respeito da existência autêntica ainda que o resultado objetivo comportamento seja o mesmo O Ser e o Nada Perspectiva Sartreana da Existência Sartre iniciou seu interesse pela Fenomenologia como caminho de resposta a algumas 60 inquietações levantadas em sua busca por criar uma Psicologia que compreendesse o sujeito a partir de uma perspectiva diferente do mecanicismo em voga à época defrontado com a necessidade de refazer as bases ontológicas e de seguir uma epistemologia que fornecesse uma compreensão de ser alternativa à perspectiva vigente voltase para a Fenomenologia em busca dessa nova forma de se compreender o ser humano Realizando uma leitura minuciosa das obras de Husserl e Heidegger Sartre elabora seu pensamento a partir da crítica da Fenomenologia alemã de tal forma que sua obra assimila diversas ideias em especial heideggerianas ao mesmo tempo em que procura desenvolver pontos que considerava problemáticos nas obras de Heidegger e Husserl chegando a romper com o pensamento de Husserl tornandose crítico contundente de Heidegger e sendo por este criticado apesar de ter incorporado em sua obra diversos conceitos heideggerianos como sernomundo mundaneidade nadificação temporalidade entre outros Schneider 2011 Tal como optamos por fazer no capítulo anterior este trabalho não se deterá nas divergências teóricas entre os pensadores aqui abordados reconhecemos sua existência porém nosso foco de interesse não está em buscar defender ou endossar determinado ponto de vista e sim em delinear conceitos gerais e convergências teóricas que permitam esboçar de forma geral como a ótica fenomenológica propõe compreender o ser humano Assim trazemos o pensamento de Sartre por seu projeto de criar uma nova psicologia com uma compreensão ampliada do ser humano Partindo da noção de intencionalidade consciência não existe como fato psíquico sendo consciência de algo que lhe permite questionar o mito da interioridade Schneider 2011 Sartre passa a se debruçar sobre a ontologia do eu criando uma distinção entre as dimensões ego e consciência o ego surge como ser transcendente não contido na 61 consciência e esmiuçando as noções de emsi e parasi para definir a dialética do ser e do nada ou da objetividade e da subjetividade Assim como Husserl e Heidegger Sartre encontra na Fenomenologia um caminho para romper com as teorias mentalistas e buscar um entendimento mais concreto do ser e seus fenômenos É precisamente nessa busca por romper com as concepções metafísicas que acaba por distanciarse de Husserl considerando que sua teoria do eu transcendental incorre em uma preservação do idealismo ao qual se propunha contestar Schneider 2011 entretanto segue considerando a Fenomenologia como método de acesso à realidade e assim passa a desenvolver suas ideias a respeito do ser e do nada condição para existência do ser Em sua obra O Ser e o Nada 19432007 Sartre procura refletir a respeito da ontologia de maneira a contribuir para seu projeto da criação de uma nova psicologia Preocupase com a questão do ser aparente defendendo que o ser é composto por sua série de aparências ou seja não há uma realidade oculta e plena do ser da qual os fenômenos são uma expressão incompleta como defende Platão 1983 ao explicar seu mundo das ideias Para Sartre a forma como o ser se mostra no mundo é parte da totalidade de expressões que o compõem o que implica que é através da observação do fenômeno como se mostra no mundo que podemos conhecer o ser justamente a concepção fenomenológica do voltar às coisas mesmas para entender a essência dos fenômenos Desta forma o ser é indicativo de si e só pode ser conhecido através da série de suas aparições Sartre 19432007 p 11 Podemos exemplificar a diferença entre a concepção platônica cartesiana e sartreana da existência por meio de alusão a uma representação visual se o Ser fosse um objeto como um cubo para desenvolver exemplo citado por Schenider 2011 para Platão este existiria plenamente apenas no Mundo das Ideias e sua manifestação na realidade seria mera sombra deste cubo Para Descartes o cubo existe na realidade concreta porém sua essência encontra 62 se trancada em seu interior e há uma diferenciação entre a parte externa corpo e a interna mente Para Sartre o cubo existe no mundo como um objeto sólido de várias faces e para conhecêlo basta apenas observar seus diversos ângulos ou as várias formas como ele pode se apresentar Sartre vai afirmar que a existência precede a essência O ser existe se mostra no mundo e a partir da forma como se mostra podemos conhecer sua essência ou como expresso por Schneider 2011 O que seria nessa acepção a essência das coisas Seria como desdobramento aquilo que preside a lógica das aparições a razão da série p78 As implicações disso são muito bem definidas pela autora Pretendiase com essas concepções dissolver uma série de dualismos que dominam o pensamento filosófico o que opõe exterior a interior pois não há mais o entendimento de que há uma pele superficial que dissimule a verdadeira natureza do objeto o que distingue potência de ato pois agora tudo está em ato e finalmente o que opõe existência a essência pois agora a aparência não esconde a essência mas a revela ela é a essência No entanto Sartre critica que todos esses dualismos acabaram por ser convertidos pela fenomenologia em um único o do finito e infinito se a aparição é finita singular a série de aparições é no entanto infinita se a aparição se revela única para um sujeito em perpétua mudança este pode no entanto multiplicar seus pontos de vista ao infinito Como é possível então terse segurança do conhecimento se é sempre possível olhálo dos mais diversos ângulos Schneider 2011 p 78 A inovação de Sartre consiste em propor uma solução para aquilo que o autor considerava o problema da metafísica dentro da Fenomenologia em seu entendimento haveria a necessidade de romper definitivamente com sua lógica Consequentemente propõe 63 a revisão dos fundamentos da fenomenologia husserliana e do existencialismo de Heidegger em vista de eliminar a metafísica como explicação para o entendimento do ser Sartre aponta que Husserl incorre no recurso ao infinito ou seja considera que se é possível ao fenômeno se mostrar de infinitas formas tornase impossível conhecêlo de maneira absoluta e portanto apreender sua essência Assim Husserl voltase para o imanente deixando o mundo transcendente entre parênteses Schneider 2011 e dessa forma continua conectado ao idealismo considerando o eu transcendental como fonte última de apreensão do sentido de todas as coisas Sartre considera que neste ponto a Fenomenologia confunde o aspecto ontológico com o epistemológico buscando compreender o ser através do processo de conhecimento confundemse planos conceituais distintos Schneider 2011 e a metafísica apresentase como caminho necessário para explicar o ser dentro dessa confusão conceitual Em O Ser e o Nada 19432007 Sartre busca distinguir o aspecto ontológico do epistemológico em uma tentativa de romper com a metafísica tradicional na explicação do ser e sua essência tratando da relação sujeitoobjeto sob uma nova ótica Em sua concepção não se distingue aparência de essência o ser é o que aparenta ser entretanto o ser do fenômeno não é reduzível ao aparecer ou seja aquilo que se aparenta fenômeno do ser é um aspecto do seremsi que só pode ser conhecido através do fenômeno Portanto o ser não é exterior ao fenômeno de tal forma que o objeto e sua essência sejam coisas distintas o ser se expressa em suas aparições ao mesmo tempo que não pode ser contido nelas O fenômeno exige a transfenomenalidade do ser ou seja que o ser seja muito mais do que o seu aparecer mas não enquanto oculto enquanto outro ser mas enquanto irredutível Schneider 2011 Desta forma o ser não está reduzido ao conhecimento que se 64 tem dele e nem pode ser contido no conhecimento o ser é emsi ou seja existe independente do conhecimento que é uma das formas em que o ser se manifesta Podemos resgatar o exemplo do cubo para explicar essa concepção um cubo é um cubo apesar de que é impossível ver todas as suas faces ao mesmo tempo Sempre haverá uma face oculta se girarmos o objeto para ver o outro lado aquilo que estava visível desaparecerá e dará lugar a outro ângulo do mesmo objeto que entretanto não deixará de ser um cubo e nem dizemos que sua forma é inconcebível apenas por não conseguir visualizála simultaneamente em sua totalidade Observando as faces visíveis fenômenos do ser intuímos o restante de sua forma sua razão e passamos a identificálo como cubo ou a conhecer o ser Assim é o ser para Sartre O emsi na medida em que se dá a conhecer desperta a dimensão da consciência que constata o fenômeno do ser consciência que é intencional ou seja ocorre sempre em direção a alguma coisa Consciência é sempre consciência de algo e tem a transcendência como sua característica primordial assim as coisas não existem em representação na consciência que é um acontecimento concreto no mundo o que implica que a consciência se dá em ação em movimento em parasi pois é fruto de uma relação euobjeto Sartre 19432007 Este entendimento da consciência implica em uma distinção fundamental entre consciência e conhecimento como expõe Schneider 2011 o conhecimento passa a ser considerado como advindo da reflexão que é uma forma de consciência dentre outras como percepção emoção etc irredutíveis e autônomas em relação à reflexão e ao conhecimento Consequentemente podese falar em consciências préreflexivas a partir das quais tornase possível o ato de reflexão Assim a consciência é a base a partir da qual todo conhecimento pode ser formado mas não é emsi pois não está no mundo como um ser sendo composta em relação e portanto é o nada que compõe nossa possibilidade de perceber o ser 65 Em termos simplificados a condição fundamental para se ter consciência é ter um objeto sobre o qual essa consciência opera Sem o objeto ela não pode existir E se depende de algo além dela para existir não pode existir sozinha ou seja só acontece em relação Porém uma vez direcionada ao objeto a consciência pode surgir de diferentes formas na modalidade préreflexiva onde se percebe algo mas não se reflete sobre aquilo como emoção que segue uma lógica distinta da racional como conhecimento que surge após a reflexão do fato percebido entre outras As implicações desta ontologia são claras como exposto por Schneider 2011 Eis a ontologia de Sartre Com ela podese colocar a epistemologia no seu devido lugar já que se acaba com a primazia do conhecimento o ser do fenômeno é transfenomenal escapa ao conhecimento a consciência também é transfenomenal Dessa forma o conhecimento não está dado a priori é sempre segundo quer dizer é uma construção resultante da relação da consciência com as coisas do homem com o mundo Somente assim devolvemos ao homem a sua condição de ser sujeito sujeito do conhecimento e em consequência sujeito da sua própria história individual e humana p 92 Existência Autêntica Diálogos entre Heidegger e Sartre Buscamos até o presente momento contextualizar o pensamento fenomenológico expondo suas implicações para a compreensão do ser humano Abordaremos agora alguns conceitos primordiais elaborados pelos fenomenólogos em decorrência dessa nova ontologia Ressaltamos que o foco dessa exposição será nos pontos em comum das teorias dos diferentes pensadores a fim de fundamentar a maneira pela qual cada uma dessas ideias será apropriada no decorrer de nossa análise da experiência do ser humano na sociedade pósmoderna A noção de existência autêntica é crucial para a compreensão do sernomundo e a forma como cada indivíduo navega sua existência Em Heidegger ela pode ser explicada a 66 partir da concepção de Dasein se o compreendermos como a possibilidade total da existência acessado através da consciência das possibilidades de cada indivíduo surgem duas formas possíveis de estar no mundo uma consciente do Dasein ou seja de suas possibilidades e uma que o ignore Assim a existência pode ser autêntica na medida em que se conscientiza de suas escolhas e por elas se responsabiliza ou inautêntica quando se foge dessa condição de sernomundo tomando a existência como algo que simplesmente acontece desconectada da ação do próprio ser Heidegger 2018 Em Sartre a compreensão da existência autêntica perpassa o conceito de liberdade O homem ser em situação tem diante de si condições nas quais está inserido e a liberdade para escolher como se posicionará perante essas condições Assim o ser humano não possui uma essência prédeterminada mas singulariza seu existir a partir de suas escolhas Sartre 19432007 A situação é condição do existir que limita as possibilidades do ser assim como a liberdade de escolher é indissociável da existência surgindo como um fim que o indivíduo atribui à situação Nessa perspectiva a autenticidade relacionase com aceitar a responsabilidade de escolher perante a situação e inautêntico é aquele que procura fugir dessa responsabilidade ou da situação em si Sartre apresenta o conceito de máfé como a capacidade do homem de mentir para si mesmo com objetivo de não reconhecer essa liberdade e não aceitar a responsabilidade nela implicada um negar a si mesmo que pode ser expresso no agir sobre valores préfixados em oposição à sinceridade na qual o indivíduo busca fazerse de acordo como é Desta forma o homem se constitui enquanto projeto possibilitado pela liberdade e é ao reconhecer a liberdade e se implicar no projeto de constituirse que a existência se faz autêntica Barros 2010 Podemos perceber que a despeito da concepção ontológica de cada autor a noção de autenticidade está intimamente ligada à capacidade do indivíduo de questionar sobre a própria 67 vida e constituirse como projeto no sentido de escolher como se posicionará no mundo face às condições que lhe são impostas pela existência É através deste processo e do rejeitar de concepções préestabelecidas que é dado ao sujeito a possibilidade de produzir sentido sobre sua vida Se tomarmos como verdade que o sofrimento é condição da existência humana a angústia tornase ponto central de interesse para o existencialismo Em Sartre 19432007 ela será um subproduto da liberdade surgida da necessidade que o ser humano tem de forçosamente realizar escolhas que implicam na abstenção de outras possibilidades Para Heidegger 19272018 como vimos anteriormente a angústia é produto da disposição afetiva humana e caminho de acesso à compreensão do Dasein Em ambos os casos podemos considerar que é através da angústia que tornase possível ao indivíduo constituirse como projeto o estranhamento da realidade o força a refletir e a se posicionar diante dessa realidade e ao fazêlo o ser se faz como existente pleno e implicado na própria existência ou seja como autêntico em seu existir Analogamente podemos pensar nos efeitos da angústia não elaborada Se esta é presente na vida enquanto parte condicionante da existência não se torna uma questão de haver ou não angústia e sim do que fazemos com ela Se o pensar a angústia permite que o ser se construa enquanto projeto quais os efeitos de não pensála de buscar afastarse da responsabilidade sobre próprias escolhas Ou em outras palavras quais as consequências para o indivíduo de uma existência inautêntica Resgatando o conceito sartreano de máfé como a capacidade do indivíduo de mentir para si mesmo a respeito de sua liberdade e responsabilidade sobre a vida fazse necessário sinalizar que este enganarse implica ter consciência que se está enganando Barros 2010 o que sugere que o ser humano sempre será confrontado com a angústia e sempre terá em algum nível consciência da necessidade de se posicionar 68 Consequentemente é impossível se manter neutro diante da vida pois o próprio não se posicionar é uma escolha Assim o sujeito que segue uma existência inautêntica procura enganarse a respeito de sua responsabilidade jogandoa para o mundo como se pelo fato de o mundo dispor uma situação da qual não se pode fugir a pessoa estivesse impotente diante da própria existência Entretanto em algum nível há a consciência de que cada um é responsável pela própria condição e este conhecimento também produz angústia Partindo desse pressuposto podemos argumentar que a diferença entre a autenticidade e inautenticidade não está no fato do indivíduo sentir ou não a angústia e sim em se permitir ser por ela mobilizado em direção a produzir um sentido para sua situação Assim na busca por evitar a angústia o sujeito frequentemente abre mão de implicarse em sua liberdade delegando ao mundo e às convenções sociais o poder da escolha Este processo porém é ilusório pois como vimos a máfé não elimina a consciência do indivíduo do fato de estar se enganando Portanto a pessoa que na busca por não se defrontar com a angústia de escolher afirma sou assim porque é assim determinado por fatores externos não está de fato se esquivando da angústia que sempre será presente em maior ou menor grau O que ocorre como consequência desse posicionamento é que o indivíduo acaba por abdicar de sua capacidade de produzir sentido sobre suas ações e sua vida É partindo deste raciocínio que podemos falar em uma crise de sentido como efeito da existência inautêntica pois colocandose em uma posição de aceitar passivamente o que fontes externas dizem que deve ser feito o sujeito encontrase privado da possibilidade de se apropriar do sentido de seus atos e consequentemente distanciase não da angústia condição essencial da existência mas de sua potencialidade mobilizadora encontrandose paralisado em uma postura submissa diante da vida Esta característica da existência inautêntica será essencial nas considerações que pretendemos abordar no próximo capítulo 69 Autenticidade Inautenticidade e Serparaamorte O conceito da existência autêntica está intimamente relacionado com a noção de ser paraamorte Todo ser humano tem como condição de sua existência a finitude Nesse sentido existir é necessariamente caminhar em direção à morte como bem expresso no dito popular para morrer basta estar vivo A angústia do existir está intimamente relacionada com o fato dessa existência ser temporária e com o conhecimento de que iremos fatalmente morrer Dantas Sá Carreteiro 2000 Desta forma não é possível evitar a angústia mais do que é possível evitar a morte Ambas são condicionantes da vida sendo a primeira efeito da factualidade da última Nessa perspectiva buscar eliminar a angústia é um esforço fadado ao fracasso pois o serparaa morte é inexorável Sendo a angústia inquestionável a única questão possível é o que faremos dela É neste ponto que a existência autêntica ou inautêntica se apresenta como resposta diante da inevitabilidade da morte em um existir onde cada dia também é necessariamente um dia a menos A qualidade da existência portanto é a resposta para a indagação fundamental se o angustiarse existe como fato irremediável da vida o que fazer com essa angústia Nessas condições existem apenas duas possibilidades o caminho da inautenticidade ou da máfé de fugir e negar o fato o que não altera sua existência e portanto qualquer sentido apreendido neste processo não pode ser pleno uma vez que é realizado sobre uma perspectiva incompleta da existência omitindo uma de suas partes fundamentais Ou alternativamente a autenticidade que exige entrar em contato com a realidade de ser humano e buscar produzir sentidos sobre a condição completa do existir reconhecendo a angústia como parte da vida e passando a atribuir um significado para essa vida em suas múltiplas facetas de beleza sofrimento e finitude 70 Produzindo Sentidos Autenticidade como Dimensão de Cuidado Partindo do entendimento da autenticidade como o processo de fazerse existente através das escolhas e possibilidades argumentamos que é direcionandose à existência autêntica que é dado ao ser humano a capacidade de produzir sentido sobre a própria vida e transformar a angústia de fator paralisante em agente mobilizador Pensandoa como uma estranheza ao que é cotidiano Heidegger 19272018 a produção de sentidos sobre essa estranheza parece ser o único caminho para lidar com a angústia uma vez que sendo condição da existência esta não é passível de ser erradicada Analogamente podemos dizer que a falta de questionamento e a fuga em responsabilizarse condena o indivíduo à uma angústia que paralisa desta maneira passamos a considerar a busca pela autenticidade como uma dimensão de cuidado na medida em que o indivíduo é convidado a responsabilizarse e refletir sobre suas inquietações É partindo deste questionamento que se torna possível fazer algo com a angústia ou seja transformála de sofrimento mais ou menos constante para dispositivo de produção de sentido resgatando seu potencial mobilizador Nesse sentido podemos dizer que trabalhar a angústia é possibilitar que o indivíduo tenha acesso a liberarse de seu peso ressignificando a forma como é por ela afetado e expandindo os repertórios de maneiras de lidar com a liberdade com o sernomundo e a situação de cada um Assim a prática clínica se aproxima da Filosofia em seu sentido mais puro de questionar a realidade em um processo investigativo das formas como o sujeito pensa a própria vida que busque compreender a realidade de cada um em situação nomundo e portanto afetando esse mundo imprimindo a própria subjetividade no processo de existir e perceber a realidade Tempo Espaço e Corpo Dimensões Fenomenológicas de Compreensão do Ser Por entender o ser humano como sujeito que se faz nomundo em relação que 71 constituise a partir de um processo de intencionalidade que está sempre voltado a alguma coisa a Fenomenologia compreende certas dimensões de experiências do real como operadas também em relação isto é o sujeito experiencia sua realidade de acordo com o movimento de sua intencionalidade ou de seu Dasein ou de sua liberdade e não atrelada a um real puro e objetivo Ou seja nossa percepção uma vez que sempre feita através da interação dos sentidos com a consciência de é indissociável da subjetividade de tal forma que a maneira que experienciamos o mundo também comunica sobre o fenômeno do existir de cada indivíduo Tentaremos nesta seção abordar e explicar brevemente algumas dessas dimensões experienciais do mundo e a forma como são percebidas na perspectiva fenomenológica 1 Temporalidade Para desenvolver o conceito de temporalidade vamos recorrer à perspectiva existencialista e à teoria de Heidegger a respeito do Dasein Josgrilberg 2007 aponta a tentativa de Heidegger de definir o tempo de forma diferente do conceito físico contemplandoo como algo que não é objetivo e nem mensurável uma vez que perpassa o horizonte de possibilidades do ser Desta forma a experiência do tempo não pode ser considerada objetiva Um exemplo de como a temporalidade opera de maneira diferente do tempo cronológico é pensar como determinada medida temporal pode ser percebida de maneiras diversas por pessoas diferentes e até pela mesma pessoa em circunstâncias variadas Para alguém que se diverte uma hora pode parecer pouco tempo enquanto poucos minutos de uma atividade física extenuante parecem não passar nunca Podemos pensar também em alguém que sofreu um trauma e anos depois sofre com a mesma intensidade declarando que parece 72 que foi ontem o que denota uma relação com o passado que não pode ser contida na ideia de tempo como uma sucessão de momentos de acordo com o modo aristotélico Josgrilberg 2007 explica o modo aristotélico como uma das possibilidades de compreensão do tempo vinculada ao relógio e ao calendário mensurada de forma concreta e compreendida como um processo linear De fato esta é a concepção de tempo mais comum na nossa sociedade atual permeando as teorias da psicologia tradicional que compreende passado e futuro como abstrações relacionadas à memória Assim as alterações temporais são investigadas na concepção clássica da psicologia a partir do tempo cronológico e suas determinações quantitativas O tempo fenomenológico entretanto é de uma outra ordem Heidegger considera o tempo como uma dimensão com a qual nos relacionamos de antemão antes mesmo de ter consciência de suas medidas objetivas O tempo também opera em relação a um para que no sentido de que nunca me refiro a um amanhã vazio para o que farei e acontecerá Josgrilberg 2007 Assim o filósofo apresenta quatro dimensões de compreensão do tempo Interpretabilidade o tempo é sempre tempo para algo é característica do próprio tempo que se destine a alguma coisa Databilidade característica do tempo de referirse a um dado e a um contexto associado a esse momento Amplitude o tempo pode referirse a diferentes durações não é apenas composto por uma série de instantes mensuráveis Um agora pode referirse a diferentes extensões temporais Estado público o agora revela a relação de múltiplos Daseins assumindo uma acessibilidade de todos Na perspectiva heideggeriana o tempo é pensado tridimensionalmente passado presente e futuro interconectados e não como algo que se apresenta consecutivamente como 73 já vimos O tempo é para alguma coisa Josgrilberg 2007 ou seja é pensado em relação a algo então a forma como o experienciamos está intimamente relacionada com a forma como existimos e as possibilidades de ser que enxergamos Desta forma a temporalidade está muito além do tempo cronológico tendo em vista que a subjetividade daquele que experiencia o tempo altera a forma como o indivíduo percebe esse tempo 2 Espacialidade Se considerarmos o caráter intencional da consciência e o homem como ser existente nomundo este mundo tornase foco de interesse como algo além de um simples plano ou dimensão dados na realidade ou seja ao encararmos o homem como em relação com seu mundo já não é possível ver o espaço como algo que só pode ser concebido à medida em que nos voltamos ao mundo onde estão dispostos objetos que ocupam lugares e cujas distâncias podem ser facilmente mensuradas Leite 2013 Assim o homem está no espaço em relação da mesma forma que sua existência se dá através do seraí é por meio do Dasein que se opera a relação do indivíduo com o espaço Neste sentido a relação do ser humano com o espaço diferenciase da relação dos objetos e seres aos quais não é dada a capacidade de questionar sobre a própria existência Heidegger postula então que para se investigar o espaço e a espacialidade que é característica do Dasein devese focar nesse caráter intramundano do espaço Leite 2013 p 193 Leite 2013 explica esta relação da seguinte maneira É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e distância do que está imediatamente à mão no mundo circundante HEIDEGGER 1987 p 156 Quando eu digo estes óculos estão à mão eu estou dizendo sim que posso tocá los mas tocar aqui significa desvelar o sentido de seu ser emsi desvelar aquilo para que esta coisa chamada óculos me serve tomando como referência um 74 quadro de significância que é sempre o meu mundo Nesse sentido esse instrumento que uso para ver os óculos os meus óculos do ponto de vista do intervalo estão tão próximos que os trago no nariz mas do ponto de vista do mundo circundante achase mais distante do que o quadro da parede em frente HEIDEGGER 1987 21 p 155 Os óculos estão tão junto de mim que não me causam surpresa p 193 Disto podemos apreender que as coisas no mundo não podem ser pensadas dissociadas de suas relações implicadas na consciência intencional ou seja os objetos têm sua função e sua fenomenalidade reveladas através do contato com a consciência humana e sua subjetividade Desta forma somos afetados pelos objetos e pela maneira como estes estão distribuídos nos espaços e nossa interpretação das coisas do mundo é perpassada pela própria condição de ser enquanto ente intramundano relacionado às coisas e assim o mesmo mundo físico não será percebido da mesma maneira por diferentes indivíduos o que implica na necessidade de se compreender o sujeito em sua relação com os demais entes do mundo e a forma como é por eles afetado 3 Corporeidade Retomando o entendimento a respeito do corpo brevemente abordado na seção sobre Husserl procuramos aqui explicitar melhor o conceito da corporeidade Em se falando de corporeidade é impossível não se evocar MerleauPonty 19451998 e sua obra Fenomenologia da Percepção onde o autor aborda a questão do corpo como lugar através do qual a consciência se desvela ou seja se o indivíduo énomundo é através do corpo que o caráter intencional da consciência tornase possível Pensar em corpo desta forma implica em uma concepção completamente diferente do dualismo cartesiano tão em voga na ciência ocidental que propõe uma divisão de mente e corpo como instâncias separadas do ser 75 Sob um ponto de vista fenomenológico o ser humano é compreendido como multidimensional estando mente corpo e espírito interligados de maneira indissociável Consequentemente a busca pela compreensão do fenômeno do ser contempla a observação de todas essas esferas Na clínica isso equivale a dizer que não é possível conhecer e tratar um paciente sem observálo em sua totalidade o que inclui os fenômenos psíquicos corporais e do espírito Podemos perceber como este entendimento altera diretamente o fazer clínico assim como o olhar filosófico perante o fenômeno da existência o corpo muitas vezes relegado ao segundo plano dentro da perspectiva mentalista assume um caráter de extrema importância como dimensão do self através da qual o sujeito toca e é tocado pelo mundo Resgatando a máxima fenomenológica a existência precede a essência podemos dizer que o corpo permeia as outras instâncias do sujeito uma vez que é através do corpo e do contato com o mundo que é dado ao indivíduo a possibilidade de fazerse sujeito Dentz 2008 explica que sendo a consciência uma estrutura relacional de presença é através do corpo que temos um indicativo do modo de estar presente da subjetividade de cada indivíduo resgatando o conceito de historicidade como algo que se realiza expressandose nomundo ou seja a existência humana desvelase enquanto ocorre em sua expressão de existir como presença intramundana assim não há um sujeito completo e interior que rege o corpo e sim uma única existência que se faz através do corpo na realidade concreta do mundo Assim não é possível falar do sentido do Ser e nem pensar no sofrimento humano sem contemplar o corpo nomundo enquanto campo onde a subjetividade se desvela Acreditamos que as implicações dessa concepção ontológica do ser e de suas dimensões estejam claras alterando o entendimento do indivíduo e da forma como este afeta e é afetado pelo mundo modificase também a maneira como encaramos a existência e os fenômenos psíquicos o que é necessário para uma investigação verdadeiramente 76 fenomenológica do fenômeno do sofrimento É com base nessa concepção de Ser que pretendemos desenvolver as análises posteriores buscando investigar como o sujeito contemporâneo encontrase em relação em um mundo de situação pósmoderna e como este opera suas possibilidades de existência lida com suas angústias adoece e relacionase tendo em vista as implicações dos conceitos de corporeidade temporalidade e espacialidade A seguir abordaremos brevemente a concepção fenomenológica da psicopatologia e como essa vertente servese das teorias supracitadas para pautar a observação dos sujeitos em sofrimento Fenomenologia e Psicologia Psicopatologia Fenomenológica A Fenomenologia clássica por sua proposta de método investigativo impactou em diversas áreas do conhecimento Na Psicologia surge uma nova forma de compreender os chamados adoecimentos mentais baseada na ontologia fenomenológica e existencialista Exporemos a seguir um pouco da perspectiva da psicopatologia aliada à visão fenomenológica de compreensão do sujeito Da mesma forma que o ponto de partida de Husserl Heidegger e Sartre em suas considerações estava conectado à busca por uma nova forma de compreender o ser humano implicandoo em seu humanismo e resgatando dimensões antes renegadas a psicopatologia fenomenológica também parte da necessidade de entender o sujeito sob uma ótica diversa da psiquiatria tradicional o foco de investigação não estará na sintomatologia e sim na experiência do indivíduo que sofre tomando a Fenomenologia como base epistemológica e método investigativo Zapata Molina 2007 considera que as enfermidades tendem a ser reduzidas na psiquiatria clássica a uma causa somática desconsiderando a possibilidade de causas psíquicas e ressalta a necessidade de descrever primeiro para tecer considerações posteriormente de tal maneira que a descrição seguida pela interpretação e pela explicação 77 tornamse os três estágios de investigação em psicopatologia É possível notar como esse processo está em harmonia com o método fenomenológico e refletir a respeito de suas consequências Se formos apontar uma divergência fundamental entre a psiquiatria clássica e a psicopatologia fenomenológica sem dúvida seria referente ao enfoque enquanto a primeira ocupase do sintoma a última procura partindo da experiência do ser humano entender sua realidade o que contempla também seu sofrimento Como consequência disto a psicopatologia fenomenológica resgata a pessoa como um foco de interesse do processo investigativo do sofrimento uma vez que os dados a respeito da existência são extraídos do sujeito como é mostrandose como fenômeno nomundo Zapata Molina 2007 considera que a gênese da manifestação psicopatológica pode ser predominantemente psicológica genética ou orgânica e que a investigação desses fenômenos deve ser iniciada partindo da fenomenologia uma vez que a vivência é constituinte do ser Desta forma é do interesse da psicopatologia conhecer a pessoa enferma e sua enfermidade servindose do método fenomenológico tendo sempre em conta que a tarefa do clínico psicólogo ou psiquiatra não é tanto diagnosticar como conhecer a pessoa enferma pois sobretudo o que nos interessa é a experiência pessoal dessa psique enferma por ser ela que constitui seu mundo peculiar que nos dá a conhecer mediante a verbalização Molina 2007 p 99 O diagnóstico portanto deve considerar primeiro as vivências relatadas pelo paciente que através de suas falas possibilita que acessemos a seu mundo interno Em resumo a fenomenologia psicopatológia privilegia a subjetividade do paciente como parte integrante do fenômeno de seu sofrimento o que implica naturalmente em uma escuta diferenciada assim como em um entendimento de sujeito como ser completo 78 transcendente e impossível de ser contido apenas em um diagnóstico ou resumido em uma lista de sinais e sintomas específicos Assim Zapata Molina 2007 considera que o psicodiagnóstigo dividese em diversos aspectos inciandose pela entrevista que é aspecto essencial seguido da aplicação de conjunto de testes projetivos e por fim de testes explicativos alinhandose assim às etapas do método fenomenológico de descrição interpretação e por fim explicação É partindo desta perspectiva que procuraremos abordar no capítulo seguinte a questão da ansiedade e da depressão em nossa época pósmoderna entendendoa como uma expressão de modo de funcionamento que perpassa a existência dos sujeitos em relação em oposição a considerar a priori esses fenômenos como desequilíbrios orgânicos ou genéticos 79 Capítulo 3 Sofrimento Psíquico e Ser em Situação Possibilidades de Existência na PósModernidade Até o presente momento nos esforçamos em desvelar as principais características que compõem o pano de fundo da nossa época assim como delinear a concepção fenomenológica de sujeito enquanto dispositivo de análise a ser utilizado Neste capítulo pretendemos articular as condições da vida pósmoderna com as possibilidades de existência e as formas mais comuns de sofrimento psíquico que se apresentam na clínica Para tal fazse necessário reiterar que adotamos uma visão de sofrimento como parte fundamental da existência cabendo a cada indivíduo a responsabilidade de ampliar a consciência sobre seu modo de funcionar e produzir sentidos a partir de sua experiência de ser em oposição à tendência contemporânea de patologização da angústia ou seja de compreendêla como adoecimento ou fenômeno a ser evitado Ao propor um entendimento diverso da perspectiva positivista tradicional é na Fenomenologia que pretendemos nos apoiar adotandoa em duas frentes como método de investigação e base epistemológica para alicerçar nosso olhar sobre o sujeito Isto implica em abraçar uma visão de pessoa multidimensional composta integralmente de corpo psique e espírito dotada de intencionalidade em sua consciência e que se encontra no mundo em situação É justamente sobre esta situação que pretendemos direcionar nossa análise que se propõe a ser geral e identificar tendências porém sem deixar de reconhecer a importância da dimensão particular de cada indivíduo E desta forma começamos enfim a nos debruçar sobre nossa grande questão de interesse há algo nas condições da pósmodernidade que contribui para modalidades específicas de sofrimento Escolher abraçar uma concepção fenomenológica e existencial do ser implica necessariamente em aceitar o papel da angústia na vida de cada um de nós Em Sartre ela 80 surge como uma espécie de condição da liberdade do ser 19432007 em Heidegger é condicionante do Dasein 19272018 A capacidade de conhecer e intuir o sentido dos fenômenos vinculase à consciência da morte assim como à responsabilização pelas próprias escolhas grandes fatores mobilizadores de angústia Existir é de certa forma sofrer estar sujeito a ser afetado pelo mundo às perdas dúvidas frustrações Como podemos falar de sofrimento como algo a ser expurgado se este é condição essencial da vida Neste trabalho propomos tecer articulações a respeito das formas mais populares de adoecimento clínico a depressão e a ansiedade Mas compreendendo o papel da angústia enquanto fator mobilizador como separar o que é adoecimento e o que é parte da vida Neste ponto a perspectiva fenomenológica oferece uma boa resposta não é necessário separar a priori Estamos interessados na vivência do indivíduo muito mais do que nos rótulos que podem conter essa experiência de existir Isso não implica dizer que não existe adoecimento mas que nosso foco de interesse é não está em definir o que se encaixa ou não nesta concepção e sim em pensar a vivência das pessoas que sofrem Portanto vamos nos debruçar sobre esta questão à luz da fenomenologia observando um pouco do que sabemos sobre nossos fenômenos de interesse reservando nossas considerações para um segundo momento Iniciaremos esta análise observando dados da Organização Mundial da Saúde WHO 2017 sobretudo utilizando os critérios diagnósticos do manual de Classificação Internacional de Doenças CID10 produzido por esta entidade WHO 2004 assim como o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos Mentais DSMV American Psychiatrist Association 2013 À primeira vista pode parecer contraditório referenciar um manual cuja base epistemológica segue a linha da psiquiatria tradicional Esta escolha justificase em duas principais vias em primeiro lugar pela posição ocupada pela OMS enquanto órgão que pauta as decisões relacionadas à saúde inclusive à saúde mental no mundo Em segundo lugar 81 pelo fato de o manual representar a concepção mais em voga vigente na comunidade científica em relação ao sofrimento psíquico Compreendemos também que os manuais diagnósticos cumprem importante papel em facilitar o diálogo multidisciplinar entre as diversas áreas da saúde que podem auxiliar o indivíduo a lidar com suas vivências Complementarmente os manuais diagnósticos suprem uma limitação metodológica de nosso trabalho no sentido de que se servem em sua elaboração de recursos muito além dos aqui disponíveis para delinear nossos fenômenos de interesse Simplificando seria impossível traçar um quadro completo do que é de fato ansiedade e depressão tendo em vista sua complexidade Assim na inviabilidade de se trazer para este trabalho o fenômeno emsi adotaremos sua representação diagnóstica como base a partir das quais serão tecidas as observações propostas neste capítulo iniciando com a depressão e em seguida abordando a questão da ansiedade Transtorno Depressivo o Diagnóstico em Epoché A depressão é considerada pela Organização Mundial de Saúde um dos transtornos mentais mais recorrentes na atualidade atingindo no ano de 2015 cerca de 44 da população mundial WHO 2017 Representa uma das demandas que mais aparecem na clínica psicológica e é amplamente discutida em revistas científicas e na mídia em geral Propomos neste momento em harmonia com o método fenomenológico observar o fenômeno ou no caso sua representação diagnóstica em epoché ou realizando uma redução eidética isto é deixando de lado tudo que sabemos sobre ele e observando as informações trazidas pelo manual de diagnósticos referência no tratamento dos chamados transtornos mentais e que se propõe a resumir o fenômeno de forma clara que possibilite o diagnóstico a saber o DSM5 APA 2013 assim como a Classificação Internacional de Doenças CID 10 produzida pela Organização Mundial da Saúde WHO 2017 O DSM5 apresenta modalidades diversas do fenômeno depressão inseridas no rol de 82 transtornos depressivos APA 2013 De acordo com o manual o ponto em comum entre as diversas formas que a depressão pode se apresentar é a presença de humor triste vazio ou irritável acompanhado de mudanças somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo APA 2013 p 155 Considerase também que há uma avaliação cuidadosa para delinear o que são tristeza e luto normais de um episódio depressivo maior APA 2013 p 155 Por sua vez o CID10 coloca que o indivíduo costumeiramente sofre de humor deprimido perda de interesse e fatigabilidade associados a outros sintomas WHO 2004 Como mencionado a fim de pautar a discussão a ser elaborada neste capítulo buscaremos inicialmente realizar uma análise fenomenológica do que é apresentado nos manuais como fenômeno da depressão Para tal as Tabelas 1 e 2 ilustram as condições para o diagnóstico de episódio depressivo maior de acordo com o DSMV APA 2013 e o CID10 WHO 2004 respectivamente Convém ressaltar que ambos os manuais apresentam outras modalidades de depressão com pequenas variações na quantidade de sintomas e duração dos episódios por razões de brevidade escolhemos o episódio depressivo maior como um exemplo de como é realizado o diagnóstico a partir do qual teceremos nossas considerações Tabela 1 Critérios diagnósticos de episódio depressivo maior 29699 de acordo com o DSMV Sintomas típicos 1 Humor deprimido Perda de interesse Outros sintomas Alterações de peso eou apetite Alterações no sono Agitação ou retardo psicomotor Fatigabilidade Sentimento de culpa ou inutilidade Diminuição na capacidade de tomar decisões Ideação suicida Demais critérios Os sintomas causam sofrimento ou prejuízo socialocupacional O episódio não é melhor explicado por outra condição médica ou uso de substâncias Nota O paciente deve apresentar pelo menos cinco sintomas incluindo no mínimo um dos sintomas típicos a duração dos sintomas deve ser de pelo menos duas semanas 83 Tabela 2 Critérios diagnósticos de episódio depressivo maior F322 de acordo com o CID10 Sintomas típicos essenciais Humor deprimido Perda de interesse Energia reduzidafatigabilidade Outros sintomas 4 Atenção e concentração reduzidas Autoestima e autoconfiança reduzidas Sentimento de culpa e inutilidade Visão pessimista do futuro Ideação suicida ou de autolesão Perturbação do sono Diminuição do apetite Nota O episódio deve usualmente durar por tempo superior a duas semanas mas não se exclui o diagnóstico antes deste período Partido da observação das Tabelas 1 e 2 o humor deprimido e a perda de interesse nas atividades e fadiga destacamse como os principais sinais para a realização do diagnóstico seguidos pela fatigabilidade convidando a um olhar mais cuidadoso sobre cada um Podemos considerar que perda de interesse nas atividades sugere um interesse anterior assim como atividades específicas que variam de indivíduo para indivíduo Assim falase de algo que estava presente e diminuiu ou se esvaiu Em relação à fadiga parece que estamos considerando uma categoria mais ampla de alterações no sono envolvendo hipersonia ou insônia ou seja há uma modificação no ritmo de sono e descanso do sujeito Agora como podemos definir humor deprimido Neste caso em primeiro lugar observamos o próprio manual diagnóstico do DSM5 APA 2004 Uma busca pelo termo depressed mood humor deprimido tradução nossa retornou um resultado de 72 vezes em que este aparece ao longo do manual Entretanto não foi possível encontrar uma definição clara do que é considerado humor depressivo O que notamos de mais próximo de uma definição encontrase no trecho uma qualidade distinta do humor deprimido caracterizada por desânimo profundo desespero eou morosidade ou pelo chamado humor vazio APA 2004 p 185 Uma busca no CID10 WHO 2004 resultou em três correspondências para depressed mood incluindoo como fator importante para o diagnóstico de depressão 84 Entretanto este manual também não apresenta uma definição do conceito Em busca de uma explicação mais detalhada buscamos no livro Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais Dalgalarrondo 2019 amplamente utilizado em disciplinas de Psicopatologia em todo o país uma definição de humor deprimido Não obstante o resultado não foi muito diferente da busca nos manuais diagnósticos encontramos onze correspondências para o termo humor deprimido e seis para o termo humor depressivo porém nenhuma delas estava atrelada a uma definição clara O mais próximo de uma definição encontrase nos dois trechos a seguir os sintomas depressivos mais importantes são em primeiro lugar o humor deprimido triste na maior parte do dia na maioria dos dias Dalgalarrondo 2019 p 617 onde se associa humor deprimido ao termo triste e ao explicar o conceito de catatimia O delírio de ruína ou culpa do indivíduo com depressão grave é compreensível e derivável psicologicamente de estado de humor alterado catatimia de forma profunda constitui mais um aspecto mais uma dimensão que o humor depressivo adquire Dalgalarrondo 2019 p 387 Através dessa busca simples utilizando palavraschave não ficou claro se há diferença entre humor deprimido e humor depressivo ou se são utilizados como sinônimos concomitantemente pudemos perceber que a definição que procurávamos não se encontra disponível nos manuais Outro ponto relevante que podemos observar nas tabelas é a questão da produtividade expressa no trecho que menciona prejuízo no funcionamento social ou ocupacional Está claro que para haver prejuízo é necessário que exista um estado anterior no qual o indivíduo apresentasse desempenho acima do que apresenta no momento do diagnóstico 85 O DSMV APA 2004 aponta que este prejuízo pode ser aferido a partir da percepção do sujeito e das pessoas com quem este se relaciona É interessante notar a questão do tempo do luto associada ao humor depressivo assinalando que a tristeza por um período superior a dois meses é considerada indício de depressão assim como a expressão sofrimento clinicamente significativo sugerindo que há uma forma de se mensurar o sofrimento acima ou abaixo do que seria considerado relevante para o contexto clínico e de diagnóstico Em adição a diminuição na capacidade de se concentrar igualmente sugere um estado anterior ideal ou melhor de concentração e produtividade seguido de declínio As tabelas também fazem alusão a agitação ou retardo psicomotor que devem ser observados não apenas pelo sujeito considerando a percepção de pessoas do seu convívio e à alterações no apetite contemplando aumento ou diminuição significativas na disposição do indivíduo em ingerir alimentos Chama atenção também o critério que envolve sentimentos de inutilidade e culpa considerada excessiva ou inadequada e que se manifesta com frequência quase diária Este é mais um indício que depende da compreensão do sujeito e do relato realizado a respeito de sua percepção de mundo O DSMV APA 2004 ressalta que esses sentimentos devem ir além da mera culpa por estar doente podemos inferir que haja múltiplas possibilidades que suscitem a sensação de culpa que dependerão da experiência do indivíduo Por fim cabe ressaltar que dentro dos critérios diagnósticos do DSMV APA 2004 pelo menos um dos sintomas apresentados deve ser humor deprimido ou perda de interesse nas atividades e que há um critério temporal de duração onde os sintomas devem estar presentes de forma contínua por pelo menos duas semanas Ansiedade Diagnóstico e Redução Eidética O DSMV APA 2004 apresenta um capítulo a respeito dos transtornos de ansiedade incluindo diversas variações de acordo com o tipo de objeto ou situação que induz uma 86 resposta ansiosa O capítulo propõe uma diferenciação entre medo e ansiedade sendo a última definida como antecipação de ameaça futura enquanto o primeiro é considerado uma resposta emocional a ameaça percebida ou iminente p189 Diferenciase o que é considerado um transtorno do que seria um medo ou ansiedade apropriados principalmente por perdurar além da fase de desenvolvimento em que seria esperado O manual também considera o tempo de duração em geral superior a seis meses como importante para diferenciar de um medo ou ansiedade temporários Um ponto interessante dentre os critérios diagnósticos gerais é a questão da determinação se o medo sentido pelo paciente é excessivo ou fora de proporção que fica a encargo do profissional clínico tendo em vista que indivíduos com transtorno de ansiedade tipicamente superestimam o perigo nas situações que temem ou evitam APA 2004 p 189 é papel do profissional considerar fatores do contexto cultural ao realizar esta análise No supracitado capítulo são mencionadas onze formas de ansiedade organizadas de acordo com a fase de desenvolvimento na qual costumam se manifestar ansiedade de separação mutismo seletivo fobia específica fobia social transtorno do pânico agorafobia ansiedade generalizada ansiedade induzida por substância ou medicamento ansiedade devida a outra condição clínica transtorno ansioso tipificado de outras formas e transtorno ansioso não especificado Estas modalidades distinguemse entre si principalmente pelas situações que tendem a ser temidas ou evitadas e pelo conteúdo das crenças associadas Entretanto aponta se que há tendência notável de comorbidade entre as diferentes modalidades especificadas no manual APA 2004 Para fins da discussão a ser realizada neste capítulo traremos os critérios diagnósticos da ansiedade generalizada como representativo dos transtornos ansiosos ver Tabela 3 tendo em vista que seria pouco prático avaliar cada uma das onze modalidades contidas no manual Uma vez que os mesmos sintomas estão presentes em grande parte das múltiplas categorias de 87 ansiedade que diferem entre si principalmente em relação ao objeto que desperta medo acreditamos que este recorte na análise pode ser realizado sem grande prejuízo para os objetivos de nosso trabalho Tabela 3 Critérios diagnósticos de ansiedade generalizada de acordo com o DSMV Sintomas típicos essenciais Ansiedade e preocupação excessivas relacionadas a temas específicos presente em um período superior a seis meses Dificuldade em controlar a preocupação Outros sintomas 3 Inquietação Fatigabilidade Dificuldade de concentração Irritabilidade Tensão muscular Perturbação no sono Demais critérios Perturbação ou prejuízo clinicamente significativos Condição não ser melhor explicada por outra condição médica ou uso de substâncias Podemos observar na Tabela 3 algumas questões já mencionadas como o critério temporal e a classificação do medo como excessivo em adição há a dificuldade do indivíduo de controlar as preocupações que devem estar associadas a pelo menos três dos seis sintomas a seguir sentimentos de inquietação fatiga dificuldade de concentração ou brancos no pensamento irritabilidade tensão muscular e perturbações no sono As perturbações do sono diferemse da depressão pois não é mencionada hipersonia apenas dificuldade para dormir ou não se sentir descansado o suficiente É necessário que os sintomas estejam causando sofrimento ou dificuldades clinicamente significativas que não sejam atribuídas a uso de substâncias ou a efeitos de outras condições clínicas e que as perturbações experienciadas pelo indivíduo não sejam melhor explicadas por outra condição psicológica Depressão e Ansiedade Redução Transcendental dos Critérios Diagnósticos As observações nas seções acima foram realizadas em epoché ou seja suspendendo 88 todo o conhecimento prévio de forma a poder enxergar o mais claramente possível o fenômeno Neste momento daremos prosseguimento ao uso do método fenomenológico realizando a redução transcendental dos fenômenos da depressão e da ansiedade isto é faremos a reapropriação dos conhecimentos prévios que foram a princípio colocados entre parênteses no momento da redução eidética a fim de tecer alguns comentários a respeito dos dados percebidos a começar pela intrigante questão do humor deprimido no diagnóstico de depressão Com frequência nos deparamos com categorias conceituais que parecem auto evidentes entretanto em harmonia com o método fenomenológico é importante que realizemos uma análise aprofundada a fim de compreender o que exatamente essas categorias propõem Este parece ser o caso do conceito de humor deprimido amplamente mencionado nos manuais diagnósticos APA 2013 WHO 2004 porém sem ter sua definição explicitada Chama atenção que um dos critérios diagnósticos mais importantes para a depressão não seja detalhadamente esclarecido o que pode favorecer o risco de que os profissionais que se utilizam deste critério considerem o conceito como auto explicativo gerando margem para confusões conceituais e interpretações variadas Gostaríamos de sinalizar que esta informação não representa uma falha nos manuais tendo em vista sua proposta mas evidencia a necessidade de que estes sejam percebidos como mais um instrumento útil dentre outros a serem utilizados no processo complexo de diagnosticar o sofrimento e não como fonte única de informações sobre os fenômenos de sofrimento psíquico Em relação ao funcionamento social ou ocupacional podemos associar a noção de prejuízo nesta área com a questão da produtividade no mundo contemporâneo onde o valor do indivíduo muitas vezes encontrase atrelado ao seu poder de consumo Bauman 1998 e consequentemente a seu papel como trabalhador e produtor de renda A questão do funcionamento social também é relevante tendo em vista a forma como os relacionamentos 89 são operados na atualidade suscitando a indagação se existe um ideal de produzir e se relacionar aquém do qual o sujeito passa a ser considerado como adoecido No diagnóstico da ansiedade mencionase dificuldade de concentração Porém há que se ter em vista que a capacidade de concentração média do ser humano é alterada pela quantidade de estímulos a que este é submetido e que esta tem diminuído ao longo dos anos aparentemente consequência da cultura de informações aceleradas em que vivemos Lorenz Spreen Mønsted Hövel Lehmann 2019 Desta forma ao escutar a respeito da percepção do indivíduo sobre sua capacidade de concentrarse é importante que levemos em conta seu modo de vida e o contexto no qual se insere assim como observar se esta falta de concentração é generalizada ou restrita a setores específicos de sua vida como no trabalho ou nas relações O tempo de luto previsto como saudável no manual gerou certa discussão na comunidade acadêmica Boris e Carneiro 2018 apontam como em pouco mais de meio século a perspectiva do luto pelo DSM passou da não abordagem do fenômeno para a patologização com a proposta de se criar uma categoria de Transtorno do Luto Complexo Persistente Michel e Freitas 2019 analisam os argumentos a favor e contra da criação dessa categoria considerando que a exclusão do critério pode levar à patologização de reações esperadas em caso de luto enquanto que os argumentos contrários sugerem que o luto não deveria ser considerado como motivo de exclusão para um diagnóstico de depressão tendo em vista que outros tipos de perda não fazem parte dos critérios de exclusão diagnóstica da depressão Não pretendemos para efeitos deste trabalho tomar parte nesta discussão entretanto vale a pena assinalar como a noção de tempo aceitável para processos de sofrimento permeia os critérios diagnósticos do fenômeno da depressão assim como o fato de eventos de perda absolutamente característicos da vivência humana poderem ser abarcados sob o leque dos 90 critérios diagnósticos a depender da maneira como os indivíduos reajam a eles Isso suscita a questão do tempo na pósmodernidade assim como a cultura de reprimir os sentimentos desconfortáveis pois parece sugerir que há uma forma e prazo adequados para lidar com tais eventos além da qual passa a se considerar o processo como adoecimento Dando prosseguimento à nossa análise ao observar a expressão sofrimento clinicamente significativo e suas implicações cabe questionar como podemos mensurar o que é ou não clinicamente significativo Como é possível determinar o que seria uma tristeza ou medo normais Podemos estender a mesma reflexão ao conceito de culpa excessiva ou inadequada presente no diagnóstico da depressão Neste ponto convém assinalar a importância da implicação da subjetividade do paciente mesmo dentro da psiquiatria tradicional uma vez que o DSMV APA 2004 apresenta múltiplos sintomas que dependem do relato do indivíduo ou de pessoas do seu convívio como é a questão do desânimo da queda de produtividade e motivação e das alterações psicomotoras Entretanto as consultas rápidas prática comum nos consultórios de psiquiatria caminham na contramão da possibilidade de contemplar a realidade da pessoa no processo diagnóstico Desta forma frisamos que os manuais são instrumentos valiosos para a compreensão dos fenômenos de sofrimento frutos de rigoroso trabalho investigativo não obstante este instrumento é utilizado por profissionais que também estão nomundo e como tal estão sujeitos às influências e práticas discursivas de sua época Assim procuramos aqui tecer uma crítica não aos manuais em si mas à forma como estes são apropriados em nossa cultura para abordar o sofrimento É necessário ter em mente que para além do diagnóstico estamos falando de pessoas ainda que os sintomas sejam semelhantes a experiência do sujeito que sofre sempre será única em seu contexto de existência e portanto deve ser considerada como essencial a 91 qualquer proposta de tratamento E quando falamos em contemplar o sujeito considerando que este se faz nomundo tornase imprescindível observar também as condições nas quais a pessoa está inserida E é deste entendimento que surge a proposta deste capítulo de aproximar as características da ansiedade e depressão das configurações do modo de vida contemporâneo em busca de relações significativas Tecendo Considerações Para além dos Sintomas do Diagnóstico Nas seções anteriores procuramos observar o que os principais manuais diagnósticos têm a dizer a respeito das modalidades de sofrimento de interesse para esse trabalho Neste momento pretendemos abordar algo que está para além dos sintomas e do diagnóstico a fim de pensar a respeito da realidade do indivíduo que apresenta esses sinais em sua maneira de existir Os sintomas são importantes para entender o quadro mas são manifestações de algo maior a saber o sofrimento do sujeito Como coloca Ribeiro 2019 essa é uma das funções da psicoterapia mais do que lidar com a estrutura do sintoma descobrir como ele se estruturou conduz ao caminho de novas mudanças p 192 Como podemos definir esse sofrimento Decerto é essencial contemplar a individualidade nesse processo buscando o significado dos comportamentos em relação com a realidade da pessoa o que altera a questão principal de quais são os sintomas para o que eles representam na vida do sujeito e o que estão comunicando Como apresentado em Heidegger 19272018 e Sartre 19432007 a angústia é revestida de potencial mobilizador desde que haja um questionamento da situação na qual a pessoa se encontra e de sua responsabilidade em relação às escolhas de vida em um mundo carregado de informações a respeito do que se deve sentir pensar fazer e falar Por exemplo observando os principais sintomas depressivos é notável a diminuição no ritmo do sujeito que se expressa também no corpo Podemos dizer que a pessoa adota um modo lento de funcionar condizente com uma temporalidade interna que não acompanha o 92 ritmo social do mundo Da mesma forma os gestos lânguidos o excesso de sono e alterações no apetite comunicam uma corporeidade desacelerada enquanto o humor depressivo e os sentimentos de culpa falam de uma angústia que não surge no vazio ou seja relacionase a algo que seja significativo dentro da realidade do sujeito o que indica como a vivência do tempo temporalidade e do espaço espacialidade afeta o modo de ser do indivíduo MerleauPonty 19451999 Na ansiedade a temporalidade e espacialidade se apresentam de maneira diversa que sugere uma paralisação ativa no sentido de que a pessoa tem dificuldade de concentrarse nas atividades do aquiagora pois sua energia encontrase focada em antecipar possíveis riscos e propiciar um estado de alerta para reagir expressa no corpo através da falta de sono da agitação nos gestos e tensão muscular E sendo o estar alerta necessariamente estar alerta a alguma coisa tornase evidente a existência dessa alguma coisa na experiência do sujeito no mundo que se configura como ameaça constante Desta forma o sintoma desenrolase como possível questionamento de facetas da experiência de existir que não estão necessariamente sendo observadas analiticamente pela pessoa mas que se encontram presentes de forma ativa na totalidade de seu ser e em suas possibilidades de ação A partir daí podemos perceber seu grande valor enquanto dado concreto a respeito do funcionamento do indivíduo a tal ponto que seria possível afirmar que não é possível se conhecer sem conhecer também os próprios padrões e sintomas Paralelamente o silenciamento do sintoma incorre na perda dessa fonte valiosa de informações sobre o sujeito Ressaltando a necessidade de se compreender a vivência específica de cada um passaremos a analisar as condições da pósmodernidade enquanto componentes da situação dos indivíduos buscando pensar a relação entre o sujeito que se encontra nomundo com as condições dadas atualmente pois dado que o ser humano é livre para escolher o que fazer 93 diante da situação do mundo esta situação tem papel ativo em limitar ou fornecer as condições da existência Situação PósModerna Sofrimento e Possibilidades de Existência Resgatando as considerações a respeito da pósmodernidade tecidas no capítulo 1 podemos considerar que talvez sua principal característica seja a crise nas metanarrativas Bauman 1998 Harvey 19892017 Lipovetsky Charles 20042018 e o rompimento com grandes discursos e paradigmas das mais diversas áreas incluindo ciência religião e política entre outras Vivemos em uma época de ruptura com ideologias e de uma incredulidade generalizada Podese considerar que houve grande mudança na perspectiva que temos sobre o que é a verdade além do surgimento de marcada desconfiança em relação às instituições Na era moderna o indivíduo vivia com a tranquilidade das certezas sólidas na pós modernidade vivese com a angústia das mudanças constantes Neste contexto há um aumento da possibilidade de o indivíduo questionar os múltiplos sistemas de crenças disponíveis entretanto parece haver também uma espécie de desconexão uma liquidez para usar o conceito de Bauman 2001 que dificulta a interpretação do mundo e principalmente as possibilidades de se criar planos futuros tendo em vista que os panoramas atuais podem se alterar e reconfigurar com extrema rapidez Bauman 1998 e Harvey 19892017 apontam as implicações disto na criação de planos e de um projeto de futuro Podemos estender essa reflexão para considerar a questão da produção de sentido por parte do sujeito pósmoderno como fica o indivíduo em um mundo de certezas fluidas Não é difícil imaginar o impacto dessa tendência social nos indivíduos convivendo com nossos diagnósticos de interesse para as pessoas ansiosas a incerteza pode se traduzir em insegurança e medo de um futuro imprevisível para os depressivos em descrença e 94 pessimismo em relação a este futuro além de despropósito em relação ao presente Afinal se nada é garantido e tudo pode mudar de uma hora para a outra qual o sentido de agir e executar planos no presente Do que adianta ser livre para escolher se não há mais segurança para avaliar as consequências de cada escolha A questão da liberdade continua em voga desde o Projeto das Luzes passando pelos ideais modernos e continuando expressiva em nosso tempo É dada ao sujeito a possibilidade de construirse como quiser com uma infinidade de opções para fazerse enquanto pessoa e expressar sua individualidade havendo mesmo uma tendência ao individualismo e a um mínimo de limites e compromissos estando a sociedade voltada para uma busca constante pelo prazer Bauman 1998 Entretanto podemos falar em um outro lado desta moeda Bauman 1998 coloca que o indivíduo pósmoderno renunciou a sua segurança em troca da promessa de liberdade Como vimos esta barganha acarreta um alto custo mental Adicionalmente é necessário questionar a quem é dado o direito de se fazer como quiser Como aponta o autor a dignidade humana está atualmente atrelada ao poder de consumo assim o estar livre encontrase condicionado ao poder do sujeito de acessar a infinidade de produtos e serviços disponíveis de forma que a liberdade tem um custo bastante literal além do psíquico Além do mais o Estado já não se responsabiliza como antes pelo bemestar de seus cidadãos e os ideais de meritocracia direcionam para o sujeito a responsabilidade de criar seus caminhos muitas vezes desconsiderando as condições a ele oferecidas Podemos pensar aqui no impacto da liberdade pósmoderna para nosso sujeito depressivo as ideias de desvalorização de si de não ser capaz ou suficiente só podem ser agravadas pela realidade supra descrita Adicionalmente a busca constante pelo prazer sem sentido incapaz de preencher o vazio existencial pode agravar o embotamento característico da depressão 95 O funcionamento ansioso por seu lado pode ter sua temporalidade afetada pelo discurso dos prazeres efêmeros ou seja encontrarse suscetível à ideia de que sempre há algo melhor e mais divertido disponível consequentemente agitandose em direção ao futuro e apresentando dificuldade em focar nas vivências de cada momento Ademais se o direito à dignidade humana é facultado apenas àqueles que tem poder de compra a possibilidade de perder esta condição ou seja a preocupação com dinheiro e com trabalho é um constante temor na vida de todos os indivíduos contemporâneos estando os ansiosos particularmente vulneráveis a essas inquietações Retomando a análise das configurações de nossa sociedade a marcada tendência à transitoriedade dificulta o estabelecimento de planos sólidos sem a certeza da durabilidade das instituições e com o ritmo acelerado com que a sociedade se transforma tornase quase impossível prever com acuidade um panorama de futuro e consequentemente tomar decisões que possibilitem construir um projeto para os dias vindouros Paralelamente a responsabilidade da tarefa de atribuir sentido às coisas migra de um grande projeto de sociedade como foi na idade moderna para uma espécie de terceirização ou seja há um vazio que deve ser preenchido e uma infinidade de empresas discursos e produtos disputando a chance de ocupar momentaneamente esse lugar até que a próxima grande solução apareça Este ponto dialoga especialmente com a ausência de sentido e o tédio existencial apresentados pelos indivíduos depressivos Outro ponto marcante da pósmodernidade é o desenvolvimento tecnológico acelerado principalmente os meios de comunicação em massa advindos das possibilidades que a internet traz mas também tecnologias nucleares de transporte robótica avanços na medicina e nos meios de produção o que acarreta em diversas novas modalidades de serviços e estratégias empresariais como a possibilidade de fabricar diferentes partes de um mesmo produto em países diversos explorando a mão de obra mais barata possível 96 Com as novas modalidades de trabalho manifestase uma tendência à terceirização enfraquecimento das organizações sindicais flexibilização nas leis trabalhistas e valorização do chamado empreendedorismo ou seja ideais de que o mercado informal guarda oportunidades maiores de crescimento em oposição à fé na estabilidade presente na época moderna Harvey 19892017 realiza uma análise muito interessante da experiência de tempo e espaço nas sociedades moderna e pós moderna principiando pela observação de que apesar de serem categorias fundamentais da experiência humana pouco nos questionamos sobre o seu sentido Entretanto para o autor tempo e espaço só podem ser considerados a partir dos processos materiais que os fundamentam ou seja cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos do tempo e espaço p189 Consequentemente as transformações sociais advindas da pósmodernidade também atuam uma transformação nas relações de tempo e espaço processo iniciado no final da Idade Média com a gradativa mercantilização dessas dimensões da experiência e que se desenrola até os dias atuais Para Harvey 19892017 as relações entre dinheiro espaço e tempo operam na sociedade contemporânea como fontes interligadas de poder social As consequências desta interligação são diversas na pósmodernidade houve uma intensa fase de compressão do tempoespaço que tem tido um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas políticoeconômicas sobre o equilíbrio de poder de classe bem como sobre a vida social e cultural Harvey 19892017 p257 Assim espaço e tempo passam a ser pensados em função da relação com o capital Isto implica em uma sujeição do tempo ao giro monetário cujo efeito propiciou uma sociedade acelerada em seu ritmo Quanto mais se produz e se vende maiores os lucros portanto volatilidade tornase a palavra de ordem no sentido em que há ênfase nos valores da 97 instantaneidade que terminam por produzir um contexto cultural onde se preza pelo rápido descarte e substituição de produtos princípios e relações entre outros o que por sua vez impacta diretamente na experiência cotidiana dos sujeitos Harvey 19892017 Para operar a volatilidade fazse necessário manipular as preferências e opiniões assim como apresentar novidades reais ou aparentes de forma constante Neste ponto o papel da mídia e da publicidade tornase especialmente relevante transmutando sua principal função de informar e promover em um fenômeno muito maior de influenciar e mesmo manufaturar desejos e gostos a fim de promover altos índices de consumo De forma complementar é exigido que a produtividade esteja sempre em alta para suprir a demanda que é criada por este sistema Em resumo buscase que o ciclo de produção e comercialização gire o mais aceleradamente possível maximizando os lucros até o limite do viável ou seja o tempo deve trabalhar em função do fluxo de capital Por conseguinte há uma aceleração tal na relação com o tempo que podemos afirmar que a pósmodernidade apresenta a organização social mais acelerada da História o que em parte se deve ao desenvolvimento de novas tecnologias de produção e comunicação de caráter essencial em termos de possibilitar que esta mudança na temporalidade acontecesse Uma destas tecnologias que merece destaque são os meios de comunicação em massa tendo em vista o impacto que produziram na sociedade possibilitando a comunicação instantânea as modalidades de relacionamento se alteraram assim como o alcance de propagandas e a relação com o conceito de privacidade Bauman 2011 certa vez comentou em entrevista que um dos momentos que marcam o início da pósmodernidade ocorreu em um programa de televisão onde uma dona de casa compartilhou detalhes de sua vida sexual com o marido O que atualmente parece uma prática comum com espaços virtuais como Facebook e Twitter dedicados ao compartilhamento de 98 informações pessoais na época sinalizou uma grande mudança no paradigma da privacidade uma vez que anteriormente se considerava que detalhes da vida de cada um deveriam ser mantidos em segredo ou divididos apenas com pessoas do círculo íntimo de confiança Na contemporaneidade a hiperexposição é condição para o fazerse visto em íntima relação com a noção de identidade como projeto Bauman 1998 Tavares 2010 resgata o conceito de sociedade espetacular afirmando que é no cenário concebido como espetáculo que a performance exibicionista dos sujeitos visa ao reconhecimento contínuo de seus espectadores e para isso pagase o preço das identidades fluidas e vazias de sentido e significado p34 Desta forma a exposição vinculase ao processo de se construir enquanto sujeito em uma sociedade onde não há tempo ou condições favoráveis para a criação de identidades duradouras Podemos relacionar a cultura da hiperexposição com características depressivas tanto quanto ansiosas no primeiro caso as ideias de baixo valor em relação aos outros podem no mínimo ser exacerbadas por uma configuração social que preza pela exposição de supostas vidas perfeitas na internet Em termos simplificados não é difícil se sentir pior do que os outros quando o que conhecemos desses outros é um recorte de momentos que os apresentam sempre sob luz favorável E no caso da ansiedade a preocupação excessiva com o julgamento do outro é alimentada pela cultura que possibilita que mesmo o indivíduo mais comum esteja sob os holofotes da opinião pública Nesta ótica o parecer ganha importância em relação ao ser ademais um ambiente subjetivo vazio de sentido é um meio fértil para a proliferação dos efeitos das propagandas presentes também em novas modalidades como é o caso dos influencers pessoas com visibilidade nas redes sociais que recebem contratos publicitários e produtos para divulgar determinadas marcas como parte de seu estilo de vida e portanto de uma identidade que é passível de ser comercializada 99 Outro impacto relevante da superexposição relacionase ao controle social por meio de dados se a identidade é vinculada ao consumo informações a respeito das preferências e práticas dos indivíduos tornamse extremamente valiosas para direcionar as propagandas e prever tendências de comportamento Assim os dados relativos a cada indivíduo configuram uma commodity valiosa tanto para as empresas quanto para os governos O papel da informação e dos meios de comunicação de massa na política vem sendo cada vez mais explorado nas últimas eleições por exemplo a formação de opinião por meio das redes sociais e principalmente do whatsapp influenciaram diretamente no processo eleitoral O monitoramento de opiniões expressas online também é largamente utilizado para traçar estratégias governamentais e campanhas políticas Considerando o acima exposto parece claro que as organizações sociais contemporâneas orientamse em torno das demandas do sistema econômico e são constantemente permeadas por sua lógica Mas como ficam as possibilidades de existência nessa situação Em primeiro lugar o indivíduo pósmoderno é livre como poucos sistemas anteriores permitiam existindo em uma configuração socioeconômica que possibilita mobilidade social e acolhe a ideia da essência de cada um como um processo e não mais como algo pré determinado pelo nascimento Bauman 1998 pode deslocarse para diversos lugares no planeta acessar conhecimentos e conteúdos informacionais com extrema facilidade e obter sem muita demora tudo aquilo que deseje ou necessite desde que possa arcar com os custos Em contrapartida existe em um mundo de certezas fugazes com seu valor enquanto ser humano atrelado a sua capacidade de acumular capital O rompimento com os grandes discursos a cultura da descartabilidade e a falta de confiança nas instituições delineiam um mundo incerto consequentemente o sujeito sofre com a incerteza a dificuldade de traçar planos de futuro e o conflito entre o planejamento 100 sólido moderno e as circunstâncias atuais Um exemplo disto são os estudantes universitários que seguem um projeto de vida pautado no discurso moderno da estabilidade estudar e ter acesso a uma boa formação como forma de garantir um emprego sólido e a partir disto estabelecer a vida plano que é atualmente confrontado com a realidade de um mercado instável e condições econômicas instáveis Assim podemos dizer que apesar da quebra nos grandes discursos ainda há um desejo por estabilidade e por se encontrar enquanto sujeito no mundo Entretanto tal desejo conflita com as condições da pósmodernidade o que configura potencial fonte de angústia passível de atingir a todos que vivenciam essas circunstâncias sociais Há algo da própria relação com a angústia que é extremamente relevante para nossa discussão o indivíduo contemporâneo parece ter aversão à ideia de estar mal o que já sugere uma atitude de considerar essa angústia como algo necessariamente negativo e que deve ser evitado a todo custo Em uma época de marcado hedonismo e que preza pela busca do máximo possível de prazer individual qualquer incômodo é encarado como algo que deve ser erradicado Esta visão é problemática em dois sentidos primeiro por desvincular o sujeito de experiências que são parte da vivência humana e segundamente por estar atrelada à lógica de consumo e meritocracia na qual todos supostamente podem ser felizes e bemsucedidos desde que se esforcem o suficiente o que acarreta um sentimento de culpa associado ao não estar bem Se a noção de felicidade é associada a produtos nas propagandas o indivíduo que não é feliz falhou como consumidor e portanto como sujeito na era do consumo Além disso há uma atitude blasé decorrente do bloqueio de estímulos sensoriais em resposta à sobrecarga sensorial gerada pelo bombardeio de informações possibilitados pelos meios de comunicação em massa Harvey 19892017 o que sugere que a pessoa já não é afetada pela relação sernomundo da mesma maneira que era em outras épocas Estudos 101 apontam que a capacidade de concentração também fica prejudicada LorenzSpreen Mønsted Hövel Lehmann 2019 pela quantidade de informações associadas ao uso de redes sociais As novas modalidades de comunicação também reconfiguraram a questão do consumo Harvey 19892017 exacerbando as práticas de comprar e modificando a relação das pessoas com este ato além de terem expandido a gama do que é possível consumir possibilitando a comercialização muito além de meros produtos mas de ideias serviços e até mesmo de estilos de vida Podemos perceber esta relação permeando a questão da estética por exemplo Há uma variedade incrível de produtos serviços e práticas vinculados a ideia do corpo perfeito desta forma o indivíduo que adquire uma máquina de exercícios ou um creme facial rejuvenescedor ou um curso de alimentação low carb raramente está adquirindo o produto em si e sim a ideia de atingir uma estética considerada ideal e através dela obter uma vida mais plena e feliz Aliás a preocupação estética permeia a questão do corpo dimensão imprescindível da relação humana com o ambiente e que se encontra profundamente adoecida na atualidade Considerando o estilo de vida acelerado a dicotomia cartesiana que permeia os principais discursos e o produtivismo há um desligamento da vivência do corpo que parece ser considerado como algo a ser moldado e apresentado para os outros muito mais do que uma parte integrante do sujeito e fonte de experiências Desta forma o corpo é relegado a segundo plano ao mesmo tempo em que se preza pelo conforto e se exige uma estética padronizada o estilo de vida contemporâneo não permite muito tempo para ouvir as demandas do corpo e com ele se relacionar Se pensarmos que a jornada média de trabalho é de 40 horas semanais sem contar o trabalho doméstico e tempo de deslocamento que o trabalho não respeita a lógica do corpo 102 seja sujeitandoo a condições de esforço extremo ou a horas seguidas sentado e sem movimentação que o tempo acelerado exige soluções rápidas alimentação rápida etc podemos afirmar que as condições atuais contribuem para um estilo de vida muito pouco saudável Entretanto as pressões estéticas frequentemente vinculadas ao discurso de preocupação com a saúde exigem que a pessoa se apresente com o melhor corpo possível o que parece produzir uma corporeidade bastante confusa onde estamos desligados do corpo e concomitantemente extremamente preocupados com ele enquanto forma de se apresentar para os outros Na lógica de que pessoas passam a serem pensadas também como uma espécie de produto o corpo tornase precioso enquanto embalagem ou representação daquilo que se deseja transmitir o que evidencia uma relação de subordinação e exibição deste corpo que é estranho e ao mesmo tempo implicado na busca pelo prazer pois é dimensão de vivência do prazer instrumento de manifestação do narcisismo em voga porém desconhecido e pouco experienciado em sua totalidade pelo indivíduo Outro desdobramento da influência da lógica mercantil sobre os indivíduos é o modo com que as pessoas se relacionam Em sua obra Amor Líquido Bauman 2004 realiza uma análise das relações nesta época de incertezas na qual aponta como a lógica do consumo veio a permear as interações humanas Há uma disparidade entre o desejo de se relacionar e o medo das restrições que a condição de estar ligado ao outro inevitavelmente impõe além da dificuldade de se comprometer em um mundo que preza pelo descarte e substituição constante pelo novo e melhor Desta forma a promessa de aprender a arte de amar é a oferta falsa enganosa mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira de construir a experiência amorosa à semelhança de outras mercadorias que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e 103 prometem desejo sem ansiedade esforço sem suor e resultados sem esforço Bauman 2004 p12 Compõese então um cenário onde os indivíduos precisam conectarse desejam afeto e os benefícios que as relações trazem entretanto as relações não tem a garantia da permanência Bauman 2004 p 6 sendo os laços facilmente desfeitos de acordo com qualquer mudança de cenário ou problema que a relação venha a apresentar A própria ânsia pela conexão vem acompanhada da aversão ao compromisso e à perda de possíveis oportunidades melhores Em consequência desse cenário as relações tendem a ser rasas com cada qual buscando o máximo de benefícios com o mínimo possível de envolvimento inicialmente por opção mas depois por falta de recursos para fazer de outra forma Bauman 2004 também ressalta a substituição da ideia de laços e compromissos por redes e conexões múltiplas relações fluidas e de pouca profundidade em oposição a relações profundas e duradouras que esperavase que durassem a vida toda Inserido neste panorama o humano pósmoderno é livre para fazerse enquanto sujeito porém perdido e angustiado em um mundo de possibilidades vastas e descartáveis Existe em um solo sociocultural fértil para que surja um sentimento de culpa pela angústia sentida uma vez que a lógica meritocrata e individualista vigente responsabiliza o sujeito por sua condição no mundo e as tendências ao hedonismo e busca pelo prazer máximo produzem um entendimento dessa angústia como algo a ser erradicado Bombardeado de estímulos acaba por incorrer em uma desconexão com o mundo normatizando as mudanças aceleradas e buscando o máximo de prazer e liberdade Desta forma realiza sua busca de sentido para a experiência humana em produtos e discursos externos oferecidos de forma constante Preocupase em demasia com as aparências e aquisições em harmonia com a cultura da descartabilidade e aceita a vigilância e a 104 hiperexposição como condição para o ser visto pelos outros com os quais se relaciona de forma supérflua onde a palavra de ordem é quantidade e a ruptura pode ocorrer a qualquer momento Há uma dificuldade manifesta de sentir o outro tanto nas relações íntimas quanto de forma geral o sujeito tem dificuldade para se colocar no lugar do outro e empatizar e há uma tendência a mercantilizar as relações tratando as pessoas como produtos Bauman 2004 Em contrapartida as pessoas sentem o vazio de serem tratadas desta forma pelos outros e encontramse em um estado paradoxal de desejar e temer os vínculos profundos almejando afeto mas evitando qualquer responsabilidade a ele atrelada Em resumo parece haver uma fome constante por conexões acompanhada da aversão a conectarse de forma que o indivíduo vive suas relações como um rio que corre veloz com as mudanças mas carece de profundidade de tal forma que o vazio não é preenchido por significados plenos e sim por tapaburacos modas e sentidos passageiros O Grito do Corpo Sintoma como Expressão de Desconforto com a Realidade É importante ressaltar que estamos analisando uma tendência dadas as condições do mundo e considerando que o sujeito se faz em situação Desta forma a análise acima realizada busca explicitar quais condições de existência são facilitadas pela situação do mundo decorrente de nossa organização sociocultural contemporânea Para este efeito procuramos construir um quadro geral da sociedade contemporânea e é necessário frisar que apesar do processo de globalização ter disseminado a cultura ocidental em especial a estadounidense pelo globo a pósmodernidade não é igual em todos os lugares do mundo Neste aspecto sem dúvida nossa análise constitui um esboço que carece de estudos mais aprofundados particularmente se considerarmos o contexto brasileiro e suas especificidades Adicionalmente as observações a respeito das tendências aqui descritas deve ser 105 relativizadas também para contemplar a subjetividade de cada um e a forma como a pessoa se relaciona com as influências do mundo e é por elas afetada entretanto dado que sujeito se faz nomundo não há como dissociar sua subjetividade das condições nas quais ele existe Consequentemente não há como dissociar seu sofrimento da situação em que está inserido Assim a depressão e a ansiedade não devem ser percebidas apenas como maneiras do sujeito funcionar como se esse existisse no vazio e sim pensadas em relação com as circunstâncias migrando de uma causalidade individual e da responsabilização do sujeito por seu adoecimento para um panorama de possibilidades e tendências regidos pelas configurações sociais e que devem levar em conta essas configurações e seu impacto na existência ao pensar um plano de tratamento Resgatemos agora o que observamos a respeito dessas modalidades de sofrimento de acordo com os critérios diagnósticos do DSMV APA 2013 e CID10 WHO 2004 em conexão com o entendimento de que os sintomas são uma forma do corpo comunicar que algo não está bem Uma característica marcante tanto da depressão quanto da ansiedade é a dificuldade em produzir da mesma forma que antes ou seja parece haver uma paralização do indivíduo Na depressão ela opera uma languidez do corpo como se faltasse energia para continuar na ansiedade acelera os movimentos e há um estado de se preparar constantemente para reagir a possíveis ameaças tirando a concentração do indivíduo no aquiagora e voltandoa para a preocupação com um futuro que é incerto Tendo em vista o que conhecemos a respeito da temporalidade e da exigência de produtividade na era pósmoderna é interessante perceber que os principais transtornos mentais agem justamente no sentido de alterar o tempo do sujeito e interferir nessa produtividade A seguir podemos ressaltar os pensamentos associados a essas duas modalidades de sofrimento e como eles se relacionam com os discursos vigentes na contemporaneidade a 106 depressão por exemplo vem associada a sentimentos de inutilidade e culpa o que parece fazer todo o sentido tendo em vista a lógica de mercantilizar o valor do indivíduo assim como as ideias de meritocracia que acompanham tal raciocínio Por sua vez a ansiedade parece ser um estado de estar sempre pronto para reagir a uma incerteza do futuro o que evoca a situação de fluidez constante falta de instituições sólidas e mudanças aceleradas da pós modernidade que muitas vezes culminam na precarização dos modos de vida Além disso há a questão do vazio existencial presente nas mais diversas demandas clínicas mas principalmente na depressão o indivíduo relata sentirse esvaziado sem sentido e propósito com dificuldade de vislumbrar um futuro e fazer planos para sua chegada Essa sensação remete diretamente ao caldo cultural pósmoderno tendo em vista que nossa época é chamada de era do vazio Bauman 1998 Desta forma não podemos pensar na dificuldade do sujeito em produzir seu próprio sentido sem considerar que as articulações sociais direcionam para uma ausência de significados profundos a fim de estimular o consumo de produtos e modas passageiras Chama atenção também a forma de se relacionar tanto na ansiedade quanto na depressão os laços sociais são afetados Na última há uma dificuldade de se doar e de fazer a manutenção dos vínculos a sensação de que as pessoas não se importam e o desejo por se isolar porém acompanhado pela necessidade de ser cuidado Já na ansiedade os indivíduos podem experienciar angústia com a ideia de obrigações sociais desconforto em se sentirem observados medo do olhar e da percepção julgamento dos outros Esses sentimentos evocam as formas de se relacionar da nossa época os desafios de se conectar a super exposição e o desejo de receber cuidado e afeto sem estar disposto ou conseguir arcar com as responsabilidades e o custo deste afeto Desta forma o sintoma aparece como potencial comunicador e mesmo de resistência às tendências da situação atual convidando o sujeito a repensar seu modo de existir no 107 mundo Não propomos aqui traçar uma relação de causalidade e sim levantar articulações entre o funcionamento social e a forma como o sofrimento se manifesta defendendo a posição de que este sofrimento não se faz no vazio e não se desenvolve de maneiras específicas por acaso Consequentemente não pretendemos afirmar que a função do sintoma é uma espécie de protesto do corpo a determinadas condições de existência apesar de ser uma hipótese interessante a ser mais amplamente investigada entretanto consideramos que o sintoma pode ser utilizado para acessar os incômodos do sujeito com sua situação e promover elaborações a respeito disso Existência Autêntica como Dimensão Clínica de Cuidado Tendo em vista as análises realizadas e a percepção da fenomenologia em relação ao papel da angústia na vida dos sujeitos propomos pensar no papel da autenticidade em meio a este panorama social e principalmente no caso dos indivíduos em sofrimento do tipo depressivo ou ansioso Esperamos que neste ponto esteja clara a necessidade de envolver o sujeito em qualquer estudo a respeito da subjetividade assim como a indissociabilidade do que é o sujeito de sua relação nomundo Nesta seção resgataremos o conceito de existência autêntica e inautêntica em contraste com a situação pós moderna ou seja convidamos o leitor a questionar dadas as condições de existência atuais qual espaço há para o ser humano desenvolver uma existência plena de significado e autenticidade Desta forma convém ressaltar o papel da angústia para uma existência autêntica e repleta de significado uma vez que é através dela que o sujeito pode ser mobilizado no sentido de questionar sua realidade seu papel no mundo enquanto indivíduo livre para realizar escolhas e sua responsabilidade por estas Na perspectiva de Sartre 19432007 e Heidegger 19272018 é partindo da angústia que o indivíduo se constitui de forma plena e 108 implicada nomundo Por conseguinte acessar e trabalhar essa angústia é fundamental para a constituição de uma existência autêntica E como visto anteriormente no caso de pacientes em sofrimento o sintoma pode ser utilizado como ponto de partida para acessar a angústia Tomando como exemplo as modalidades de sofrimento de interesse do nosso trabalho é possível melhor evidenciar a relação entre sintoma sofrimento como parte da vida sofrimento paralisante e a angústia em seu papel fundamental Em um indivíduo que sofre de ansiedade eou depressão os sintomas operam como agente comunicador de que algo não está bem Associados a esses sintomas existem gatilhos e pensamentos que podem ser utilizados como pistas para definir esse algo ou seja para delimitar de que forma a angústia está operando na existência daquela pessoa Per si a angústia é parte da vida pois estamos todos sujeitos a perdas frustrações e à finitude da morte Entretanto a forma de acessála ou a reprimir que diferencia o sofrimento como solo de produção de sentido em harmonia com a noção de existência autêntica Sartre 19432007 Heidegger 19272018 do sofrimento paralisante e com potencial destrutivo Partindo desta concepção e articulando com o que conhecemos sobre o funcionamento sociocultural pósmoderno já nos deparamos com o primeiro grande desafio à busca pela autenticidade não há muito lugar em nossa sociedade para a angústia e inquietação existencial O zeitgeist hedonista impulsiona a busca pelo prazer com o mínimo possível de esforço contribuindo para uma desconexão do sujeito com certas dimensões da vivência humana que são encaradas como negativas e portanto algo a ser silenciado em geral por meio da aquisição de algum produto Desta forma o sujeito pósmoderno teme a angústia e diante dela sua resposta tende a ser a paralisia ou a busca por erradicar o incômodo no que é auxiliado por diversos medicamentos e práticas que promovem uma concepção de saúde que não contempla o sofrimento como parte necessária da vivência humana Porém se a angústia é suprimida o 109 mesmo ocorre com seu potencial mobilizador e consequentemente com as produções que poderiam ser elaboradas a partir dela incluindo a autenticidade Apenas por este motivo já poderíamos especular que a pósmodernidade é um solo árido para o desenvolvimento de uma existência autêntica em adição devemos considerar a fluidez da época e o impacto que as mudanças têm sobre a capacidade do indivíduo de pensar as coisas a longo prazo e tecer elaborações Harvey 19892017 Bauman 1998 de tal forma que parece mais difícil realizar reflexões filosóficas e existenciais em um mundo em constante mudança e que carece de referências fixas Para além disso a questão da temporalidade acelerada e a desconexão com o corpo enquanto parte integrante do ser também são fatores que dificultam uma existência que tenha um tempo próprio e esteja integrada em suas dimensões de psique corpo e espírito enquanto constituintes desse ser autêntico Por fim podemos citar também a questão da cultura da descartabilidade a dificuldade em se comprometer e necessidade de que o indivíduo seja flexível fatores que podem influenciar negativamente o processo de se construir enquanto sujeito autêntico uma vez que a autenticidade parece requerer uma identidade sólida Dadas essas circunstâncias defendemos que resgatar a angústia enquanto fator mobilizador do sujeito trabalhar a temporalidade a conexão com o corpo e instrumentalizar a pessoa a se responsabilizar pela existência e a produzir o próprio sentido de vida através da reflexão quanto às suas escolhas são formas essenciais de cuidar de sujeitos que estão perdidos e sofrem com isso Ou seja as condições da sociedade atual não parecem favorecer o desenvolvimento da autenticidade mas na clínica fenomenológica podemos fazer um trabalho de subversão desta tendência É nesse sentido que o conceito de existência autêntica pode ser apropriado enquanto dimensão clínica de cuidado fundamentando um plano terapêutico que busque 1 Reconhecer a influência da situação promovendo um questionamento filosófico do 110 mundo de forma a dissociar o sofrimento da noção de doença e da causalidade exclusivamente no âmbito individual 2 Instrumentalizar o sujeito para se responsabilizar por suas escolhas diante da situação na qual está inserido 3 Acessar e trabalhar a angústia em seu potencial mobilizador a fim de promover a busca pela autenticidade e por uma existência plena de sentidos de elaboração própria do paciente Desta forma visamos que o entendimento e acolhimento clínico do sujeito que sofre possa ser realizado no sentido de promover qualidade de vida e de confrontar a angústia como dimensão essencial do ser e principalmente de promover autonomia para que o indivíduo se construa enquanto pessoa e se implique no processo de pensar a própria existência e subjetividade desenvolvendo recursos para um desenvolvimento pleno do indivíduo em situação de sujeito pósmoderno 111 Considerações Finais A ansiedade e a depressão são consideradas uma questão de saúde pública devido a seu impacto na vida de milhões de indivíduos e ao alto custo econômico e social associado a esses fenômenos WHO 2017 Partindo do pressuposto de que os sintomas não se produzem no vazio havendo ampla influência das organizações socioculturais na forma como os indivíduos se subjetivam Foucault 19631977 Tavares 2010 Watters 2010 Dantas Sá Carreteiro 2009 este trabalho procurou investigar as principais características da sociedade contemporânea e a maneira com que estas se relacionam com as modalidades de sofrimento do tipo depressivo e ansioso Partimos da concepção fenomenológica de sujeito que existe nomundo ou seja se constrói como indivíduo a partir de sua relação com o mundo no qual se encontra espaço tecido pelo conjunto de situações Sartre 19432007 que compõe o pano da realidade Adotamos também uma perspectiva fenomenológica do sofrimento compreendendoo como algo que é parte fundamental da vivência humana e como tal rico de potencialidades cabendo a cada sujeito produzir sentido sobre suas angústias e implicarse em sua própria vivência a fim de produzir uma existência plena de autenticidade Heidegger 19272018 Sartre 19432007 O caminho a ser percorrido na investigação de nosso problema foi dividido em três etapas Primeiramente procuramos definir as principais características da pósmodernidade Este processo não foi isento de dificuldades tendo em vista o desafio de se traçar um panorama de uma época na qual o próprio sujeitopesquisador está inserido Bauman 1998 Harvey 19892017 assim como o equilíbrio delicado de expor a perspectiva de grandes nomes da área Bauman 1998 2001 2004 Harvey 19892017 Lipovetsky Charles 20042018 sem filiarse a uma teoria específica e sim procurando esboçar um quadro geral de nossas configurações sociais contemporâneas 112 Em segundo lugar nos lançamos à tarefa de apresentar a perspectiva fenomenológica do sujeito AllesBelo 2006 Heidegger 19272018 Sartre 19432007 e seu impacto na compreensão clínica e teórica dos fenômenos de sofrimento psíquico paralelamente buscamos apresentar o método fenomenológico como ferramenta de investigação e esmiuçar o conceito de existência autêntica e seus desdobramentos no estudo da angústia e do sofrimento humano Por fim foi realizada uma aplicação do método fenomenológico sobre os critérios diagnósticos de depressão e ansiedade do DSMV e CID10 a partir dos quais tecemos considerações relacionando os sintomas compreendidos como modalidades de expressão de angústia e as características da organização social pósmoderna Este processo evidenciou paralelos entre as condições do mundo contemporâneo e a forma como as pessoas sofrem corroborando a hipótese inicial de que há algo no modo de vida pósmoderno que contribui para o desenvolvimento da depressão e da ansiedade Este algo foi identificado durante o desenvolvimento do trabalho como uma série de condições da organização social contemporânea que caminham na contramão da existência autêntica ou seja que nossa sociedade acabou por tornarse facilitadora de uma vivência alienada de si A partir dessas reflexões apresentamos a noção de existência autêntica como dimensão clínica de cuidado isto é considerando a necessidade de se pensar na clínica como espaço de construção de subjetividade que respeite o tempo do sujeito resgate o potencial mobilizador da angústia e facilite a responsabilização do sujeito por sua própria existência e pela produção de sentidos Neste ponto convém realizar uma breve reflexão a respeito do papel social e político da clínica Como é sabido as raízes da Psicologia associam irremediavelmente nossa ciência com uma tradição mantenedora do status quo tendo sua gênese imbricada em formações discursivas que remetem à dicotomias como mente e corpo normal e patológico entre outras 113 que estão veiculadas a um movimento de controle biopolítico Foucault 19721978 Foucault 19631977 além de ter sido frequentemente permeada por discursos racistas e sexistas e de frequentemente ter sido utilizada como ferramenta de controle social Chambers 2013 Suman 2017 Que o nosso berço enquanto ciência é burguês e elitizado é um fato histórico O rumo para o qual a Psicologia se dirige entretanto é um caminho tecido por uma infinidade de fios compostos pela prática de cada clínico cada pesquisador cada psicólogo Como aponta Foucault 19631977 é impossível produzir conhecimento no vazio pois toda teoria é produto de determinadas formações discursivas em voga na época de sua gênese ignorar nossas origens portanto é correr o risco de corroborar com a tradição não por escolha consciente mas por falta de reflexão crítica Assim em todas as áreas é necessário que se tenha consciência de quais discursos estão sendo corroborados pela prática profissional Na Psicologia tal reflexão é duplamente importante tendo em vista os discursos que permeiam nossa origem enquanto ciência Na clínica essa importância cresce exponencialmente considerando a responsabilidade indissociável do lugar do psicólogo enquanto agente facilitador de produção de subjetividade Nas palavras de Ribeiro 2013 A psicoterapia convive com um tríplice modelo de valores os do cliente os do psicoterapeuta e os da sociedade em que ele vive Por mais isento que o psicoterapeuta seja por mais que ele se coloque entre parênteses assumindo uma postura de total neutralidade diante da problemática do cliente ele sofre a angústia da neutralidade e da observação de uma ética sem a qual nenhuma forma de psicoterapia seria viável p230 Desta forma podemos afirmar que toda clínica é política independente do profissional se perceber ou não como parte desse movimento Não há possibilidade de ser apolítico 114 quando a própria subjetividade é construída a partir das condições de um mundo que é politizado É necessário termos essa consciência em nossa prática considerando a clínica também como um espaço de psicoeducação no sentido de ajudar o indivíduo a se perceber como afetado pelas configurações sociais e a ressignificar o sofrimento como parte da experiência humana e sempre considerando os desdobramentos práticos de cada filiação epistemológica Estendendo estas reflexões ao nosso tema de interesse os ditos transtornos mentais comuns tornase evidente a necessidade de maiores investigações das características sociais e dos modos de relação pósmodernos como possíveis fatores de risco para o bem estar psíquico dos indivíduos Assim acreditamos que a discussão seria enriquecida por mais estudos na área Paralelamente os achados deste trabalho sugerem a importância de se questionar no âmbito clínico os uso irrefletido de métodos tradicionais de tratamento os discursos meritocratas e de positividade exacerbada e sobretudo a responsabilidade clínica de evitar a armadilha de atribuir aos sujeitos a responsabilidade por algo que pode ter suas origens na própria estruturação social Neste sentido nossa opção por compreender o sujeito em suas múltiplas dimensões de psique corpo e espírito como um sernomundo e afetado pelas configurações sociais em harmonia com a epistemologia fenomenológica foi uma escolha política Procuramos manter essa perspectiva no decorrer de todo o trabalho não poderia portanto ser diferente ao final de nossa caminhada Assim ao identificar na contemporaneidade uma tendência social à alienação de si passamos a concluir a necessidade de pensar a clínica enquanto espaço de desconstrução e ressignificação dessa tendência a fim de facilitar aos indivíduos se implicarem em suas decisões e produzirem uma existência plena de sentido em oposição ao fenômeno de terceirização do sentido observado no capítulo 3 Desta forma finalizamos as reflexões aqui realizadas com um convite a problematizar 115 no espaço clínico a noção de responsabilidade exclusivamente individual do sujeito pelo seu estado de sofrimento a pensar nas influências do meio e das relações na formação da subjetividade e a adotar um olhar holístico que busque compreender o humano em todas suas dimensões sendo a clínica rica de possibilidades para se pensar também o corpo o espírito as conexões e a política Souza 19622003 apresenta em sua obra Sobre a Construção do Sentido uma visão do filosofar em seu sentido mais pleno como a busca por compreender ou criar sentidos para a aventura humana do viver ou seja como um indagar de si e da realidade com propósito de entender a existência sobretudo nos momentos de crise Seguindo esta perspectiva convidamos a um pensar clínico que caminhe na direção do resgate da filosofia em sua forma mais pura de admirarse com o mundo em um movimento de desformalização da prática tradicional e de buscar promover inquietações a partir das quais o sujeito ressignifique sua angústia de fenômeno paralisante para solo fértil de produção de significado implicandose ativamente no processo humano de fazerse pessoa 116 116 Referências AlesBello A 2006 Introdução à Fenomenologia Edusc American Psychiatric Association APA 2013 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders Fifth Edition DSMV American Psychiatric Association Barros W 2010 Sobre a autenticidade na filosofia de Sartre Argumentos 2 3 178186 Bauman Z 1998 O MalEstar da PósModernidade Zahar Bauman Z 2001 Modernidade Líquida Zahar Bauman Z 2004 Amor Líquido Zahar Bauman Z 2011 Zigmund Bauman comenta episódio marcante do início da pós modernidade Entrevista Fronteiras do Pensamento canal do Youtube Berman M 19821988 All That is Solid Melts Into Air the Experience of Modernity Penguin Books Boris G D Carneiro S V 2018 A Patologização do Luto no DSM Uma Análise Sartreana Trabalho apresentado em Proceedings of International conference on philosophy psychiatry and psychology Disponível em httpsproceedingsscienceinpptrabalhosapatologizacaodolutonodsmuma analisesartreanalangptbr Acesso em 02 set 2020 Chambers C 2013 5 de novembro The dark side os psychology in abuse and interrogation The Guardian Disponível em httpswwwtheguardiancomscience2013nov05thedark sideofpsychologyinabuseandinterrogation Costa I I 2014 Sofrimento Humano Crise Psíquica e Cuidado Dimensões do Sofrimento e do Cuidado Humano na Contemporaneidade Editora UnB Dalgalarrondo P 2019 Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais Artmed Dantas J B Sá R N Carreteiro T C 2009 A patologização da angústia no mundo contemporâneo Arquivos Brasileiros de Psicologia 61 2 19 Dentz R A 2008 Corporeidade e subjetividade em MerleauPonty Intuitio 1 2 296 117 307 Foucault M 19752014 Vigiar e Punir Vozes Foucault M 19721978 História da Loucura na Idade Clássica Perspectiva Foucault M 19631977 O Nascimento da Clínica Forense Universitária Harvey D 19892017 Condição PósModerna Edições Loyola Heidegger M 19272018 Ser e Tempo Vozes Holanda A F 2009 Fenomenologia e Psicologia diálogos e interlocuções Revista da Abordagem Gestáltica 15 2 8792 Holanda A F 2016 Fenomenologia e Psicologia no Brasil aspectos históricos Estudos de Psicologia de Campinas 33 3 383394 Josgrilberg F 2007 A temporalidade a partir da perspectiva existencial Revista da Abordagem Gestáltica 13 1 6373 Leite M B 2013 Heidegger e o fundamento ontológico do espaço Diálogos 8 178195 Lipovestky G Charles S 20042018 Os Tempos Hipermodernos Edições 70 LorenzSpreen P Mønsted B M Hövel P Lehmann S 2019 Accelerating dynamics of collective attention Nature Communications 101759 1 9 Doi httpsdoiorg101038s4146701909311w Lyotard J F 19791984 The Postmodern Condition a report on knowledge Unniversity of Minessota Press MerleauPonty M 19451999 Fenomenologia da Percepção Martins Fontes Michel LH Freitas J L 2019 A clínica do luto e seus critérios diagnósticos possíveis contribuições de Tatossian Psicologia USP 30 e180185 Doi httpsdoiorg10159001036564e180185 Molina A Z 2007 Psicopatología Fenomenologica y Existencial Digitalia Nunes E M 2018 Wikileaks o vazamento de informações secretas como forma de contra 118 hegemonia Fronteira 17 33 6377 Osborne P 1992 Modernity is a qualitative not a chronological category Em Barker F Hulme P Iversen M Ed Postmodernism and the rereading of modernity Pp 2346 Manchester University Press Platão 1983 O banquete Em J C Souza trad Platão Diálogos Abril Cultural Coleção Os Pensadores Ribeiro J P 2013 Psicoterapia teorias e técnicas psicoterápicas Summus Ribeiro J P 2019 O Ciclo do Contato temas básicos na abordagem gestáltica Summus Roehe M V Dutra E 2014 Dasein o entendimento de Heidegger sobre o modo de ser humano Avances en Psicología Latinoamericana 32 1 105113 Sartre J P 19432007 Ser e Nada Vozes Schneider D 2011 Sartre e a Psicologia Clínica Editora UFSC Silva A N 2015 Homossexualidade do preconceito aos padrões de consumo Caravansarai Souza R T 20031962 Sobre a Construção do Sentido Perspectiva Suman F 2017 Institutional Racism in Psychiatry and Clynical Psychology Pallgrave McMillan Tatagiba L Galvão A 2019 Os protestos no Brasil em tempos de crise 20112016 Opinião Pública 25 1 6396 Tavares LA 2010 A Depressão como malestar contemporâneo medicalização e ex sistência do sujeito depressivo Editora UNESP Torrey E E 2001 The invisible plague the rise of mental illness from 1750 to the present Rutgers University Press Vorcaro A 2004 Seria a toxicomania um sintoma social Mental 2 3 6173 Watters E 2010 A americanização da doença mental Revista Latinoamericana de 119 Psicopatologia Fundamental 13 1 102115 Whitaker R 2005 Anatomy of an epidemic psychiatric drugs and the astonishing rise of mental illness in America Ethical Human Psychology and Psychiatry7 1 23 35 World Health Organization WHO 2004 ICD10 International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems tenth revision Global Health Organization World Health Organization WHO 2017 Depression and Other Common Mental Health Disorders Global Health Estimates Global Health Organization