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Copyright 1992 by Alfredo Bosi Capa Ettore Bottini sobre foto de Maureen Bisilliat Preparação Marcia Copola Revisão Carmen Simões da Costa Eliana Antonioli 1ª edição 1992 com 3 reimpressões Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Bosi Alfredo 1936 Dialética da colonização Alfredo Bosi São Paulo Companhia das Letras 1992 ISBN 8571642761 1 Brasil Civilização 2 Brasil Colonização 3 Brasil História Período colonial 4 Cultura Brasil I Título 922347 cdd981 Índices para catálogo sistemático 1 Brasil Civilização 981 2 Brasil História Social 981 1998 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARZ LTDA Rua Bandeira Paulista 702 cj 72 04532002 São Paulo SP Telefone 011 8660801 Fax 011 8660814 email coletorasmtecnestpcombr 6 UM MITO SACRIFICIAL O INDIANISMO DE ALENCAR É próprio da imaginação histórica edificar mitos que muitas vezes ajudam a compreender antes o tempo que os forjou do que o universo remoto para o qual foram inventados Acreditando nessa proposição arriscome a revisitar um lugar comum dos comparatistas literários que afirmam o indianismo brasileiro pelo diapasão europeu da romantização das origens nacionais Lá figuras e cenas medievais cá o mundo indígena tal e qual os surpreenderam os descobridores Cá e lá uma operação de retorno um esforço para bem cumprir o voto micheletiano de ressuscitar o passado ao mesmo tempo que confesso da historiografia romântica Até que ponto esse paralelismo se sustent do assumido prazerosamente pelos conservadores até a subida da maré liberal nos anos 60 precisamente os três decênios que viram o surgimento e o clímax da nossa literatura romântica Observase em todo esse período uma espécie de enclausuramento das posições liberalradicais que levaram à abdicação de Pedro I e aos sucessos tumultuosos da Regência O fenômeno que já foi diagnosticado em termos de consolidação do poder escravista não é de todo estranho às formas paradoxais pelas quais uma figura de nítido corte rousseauísta como o bon sauvage acabou compondo o nosso imaginário mais conservador Gigante pela própria natureza o índio entrou em extremis na sociedade literária do Segundo Império Remontese um pouco no tempo O processo da independência gerou ao desencadearse uma dialética de oposição Mesmo considerando que os estratos dominantes foram os arquitetos e os beneficiários da patria del criollo força convir que contradição houve tanto no nível dos interesses materiais coibidos pelo antigo monopólio quanto no delicado tecido da vida simbólica Viveuse uma fase de tensão aguda entre a Colônia que se emancipava e a Metrópole que se enriquicia na defesa do seu caducante Império O primeiro quartel do século XIX foi em toda a América Latina um tempo de ruptura O corte naçãocolônia novoantigo exigia na moldagem das identidades a articulação de um eixo de um lado o pólo brasileiro que enfim levantava a cabeça e dizia o seu nome de outro o pólo português que resistia à perda do seu melhor quinhão Segundo esse desenho de contrastes o esperável seria que o índio ocupasse no imaginário póscolonial o lugar que lhe competia o papel de rebelde Era afinal o nativo por excelência em face do invasor o americano como se chamava metonimicamente versus o europeu Mas não foi precisamente o que se passou em nossa ficção romântica mais significativa O índio de Alencar entra em íntima comunhão como o colonizador Peri é literal e voluntariamente escravo de Ceci a quem venera como sua Iara senhora e vassalo fidelíssimo de dom Antônio No desfecho do romance em face da catástrofe iminente o fidalgos batiza o indígena dandolhe o seu próprio nome condição que exigia necessária para conceder a um selvagem a honra de salvar a filha da morte certa a que osaimores tinham condenado os moradores do solar 177 Se tu fosses cristão Peri O índio voltouse extremamente admirado daquelas palavras Por quê perguntou ele Por quê disse lentamente o fidalgo Porque se tu fosses cristão eu te confiaria a salvação de minha Cecília e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro à minha irmã Peri quer ser cristão exclamou ele D António lançoulhe um olhar úmido de reconhecimento O índio caiu aos pés do velho cavaleiro que impôslhe as mãos sobre a cabeça Sê cristão Doute o meu nome O guarani parte IV cap X A conversão acompanhada de mudança de nome ocorre igualmente com o índio Poti de Iracema batizado como Antônio Felipe Camarão o futuro herói da resistência aos holandeses E Arnaldo o sósia rústico de Peri de O sertanejo é agraciado com o sobrenome do capitãomor durante este diálogo edificante E para si Arnaldo que deseja insistiu Campelo Que o sr CapitãoMor me deixe beijar sua mão bastame isso Tu és um homem e de hoje em diante quero que te chames Arnaldo Louredo Campelo O sertanejo parte II cap XXI É o senhor colonial que nos três episódios outorga pelo ato da renomeação nova identidade religiosa e pessoal ao índio e ao sertanejo Quanto aos aimorés que são os verdadeiros inimigos do conquistador no Guarani aparecem marcados pelos epítetos de bárbaros horrendos satânicos carniceiros sinistros horríveis sedentos de vingança ferozes diabólicos Iracema no belo poema em prosa que traz o seu nome apaixonase por Martim Soares Moreno o colonizador do Ceará por amor de quem rompe com a sua nação tabajara depois de violar o segredo da jurema Nas histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é incondicional fazse de corpo e alma implicando sacrifício e aban dono da sua pertença à tribo de origem Uma partida sem retorno Da virgem de lábios de mel disse Machado de Assis em artigo que escreveu logo que saiu o romance Não resiste nem indaga desde que os olhos de Martin se trocaram com os seus a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão O risco de sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação como se a sua atitude devota para com o branco representasse o cumprimento de um destino que Alencar apresenta em termos heroicos ou idílicos Creio que é possível detectar a existência de um complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar Comparemse os desfechos dos seus romances coloniais e indianistas com os destinos de Carolina a cortesã de As asas de um anjo remida e punida em A expiação de Lúciola no romance homônimo e de Joana em Mãe São todas obras cujas tramas narrativas ou dramáticas se resolvem pela imolação voluntária dos protagonistas o índio a índia a mulher prostituída a mãe negra A nobreza dos fracos só se conquista pelo sacrifício de suas vidas Paradoxalmente O guarani e Iracema fundaram o romance nacional não está em causa nestas observações a sinceridade patriótica do narrador sentimento que de resto não guardaria qualquer relação causal com o valor estético dos seus textos O que importa é ver como a figura do índio belo forte e livre se modelou em um regime de combinação com a franca apologia do colonizador Essa conciliação dada como espontânea por Alencar viola abertamente a história da ocupação portuguesa no primeiro século é só ler a crônica da maioria das capitanias para saber o que aconteceu toca o inversíssimo no caso de Peri enfim é pesadamente ideológica como interpretação do processo colonial Nada disso impede porém que a linguagem narrativa de Alencar acione em mais de um passo a tecla da poesia A beleza da prosa lírica reverbera a quem ou em outro sentido além da representação do dado empírico que a crônica realista busca espelhar E o mito que essa prosa entretece se faz aqui além da cadeia narrativa verossímil Aqui o mito não requer o teste da verificação nem se vale daquelas provas testemunhais que fornecem passaporte idôneo ao discurso historiográfico Ou além o valor estético de um texto mítico transcende o seu horizonte factual e o recorte preciso da situação evocada O mito como poesia arcaica é conhecimento de primeiro grau préconceitual e ao mesmo tempo é forma expressiva do desejo que quer antes de refletir Há um nó apertado de pensamento conservador mito indianista e metáfora romântica na rede narrativa de O guarani Ao tentar desfazêlo o leitor crítico deve tomar o cuidado de não emaranhar a análise dos valores do autor tarefa que compete a história das ideologias com o julgamento dos seus tentos literários mais criativos O mito é uma instância mediadora uma cabeça bifronte Na face que olha para a História o mito reflete contradições reais mas de modo a convertêlas e a resolvêlas em figuras que perfecçam em si a coincidentia oppositorum Assim o mito alencariano reune sob a imagem comum do herói o colonizador tido como generoso feudalista e o colonizado visto ao mesmo tempo como súdito fiel e bom selvagem Na outra face que contempla a invenção traz o mito signos produzidos conforme uma semântica analógica sendo um processo figural uma expressão romanesca uma imagem poética Na medida que alcança essa qualidade propriamente estética o mito re mo a beleza a naturalidade brilhem em si e para si eles se constelam em torno de um ímã o conquistador dotado de um poder infuso de atraílos e incorporálos Não sei de outra formação nacional expressa do antigo sistema colonial onde o nativismo tenha perdido para bem e para mal tanto da sua identidade e da sua consistência Augusto Meyer em um soberbo estudo que dedicou a Alencar tudo remete ao conceito de tenuidade brasileira para dar conta desses e de outros singulares descompassos de nossa cultura romântica Suspeitando porém que o teor ambíguo desse nativismo não poderia em razão do seu modo de comportarse manter sempre uma face homogênea busquei a exceção a rara exceção e afinal a encontrei em uma breve passagem uma nota etnográfica aposta à lenda de Ubirajara Foi a última obra em que Alencar voltou ao assunto Tratase de uma poetização da vida indígena anterior ao descobrimento A nota sugere uma leitura da colonização portuguesa como um feito de violência Defendendo os tupis da pecha de traidores com que os infamaram alguns cronistas assim lhes rebate Alencar Foi depois da colonização que os portugueses assaltandoos como a feras e caçandoos a dente de cão ensinaramlhes a traição que eles não conheciam É verdade que esse juízo cortante não tem força retroativa chega tarde e não pode alterar a simbiose lusotupi que Alencar armara tão solidamente nos romances coloniais onde o destino do nativo era tratado como sacrifício espontâneo e sublime Mas a veemência do tom assaltandoos como a feras e caçandoos a dente de cão parecem expressões de missionários incriminando colonos e bandeirantes ganha sentido se vista à luz das ásperas polêmicas literárias que Alencar precisou travar nos seus últimos e sombrios anos de vida Zoilos portugueses e penas intolerantes o acusavam de inventar um selvagem falso e o que era pior escrever em uma língua inca de americanismos desviando do cânon da matriz As respostas irritadamente nacionalistas de Alencar se leem no longo prefácio que fez para um dos seus últimos romances Sonhos douro que saiu em 1872 O texto é um documento interessante de política cultural bra sileirista post festum Seria instrutivo esboçar um confronto da ficção de Alencar com a poesia americana de Gonçalves Dias que precedeu de uma geração Nos Primeiros cantos do maranhense lateja a consciência do destino atroz que aguardava as tribos tupis quando se pôs em marcha a conquista européia O conflito das civilizações é trabalhado pelo poeta na sua dimensão de tragédia Poemas fortes como O canto do tiaga e Depravação são agouros do massacre que dizimaria o selvagem mal descessem os brancos de suas caravelas Pelo seu tom entre espantado e solene lembram esses cantos os presságios que os vates astecas anunciaram ao seu povo alguns anos antes da invasão espanhola São vozes de gente prestes a sucumbir a ferro e fogo e o modo pelo qual sobreviveria a matança era tão incompreensível para as vítimas que só palavras misteriosas de visão e agouro poderiam dizêlo Por intermédio do pajé o piaga divino em transe falam os deuses ou mais precisamente fala um espectro que viu o mundo às aves o sol energecido a coruja piando de dia copas da floresta e se agitem em plena calma e a lua ardendo em fogo e sangue Tu não viste nos céus um negrume Toda a face do sol ofuscar Não ouviste a coruja de dia Seus estrídulos torna soltar Tu não viste dos bosques a coma Sem aragem vergar e gemer Nem a lua de fogo entre nuvens Qual em vestes de sangue nascer Em A visão dos vencidos Miguel LeónPortilla transcreve presságios que inicialmente redigidos em náuatle pelos alunos de um missionário frei Bernardino de Sahagún só conheceram versão em espanhol nos meados do século xx graças à erudição de Ángel María Garibay Impressiona nesses cantos mexicanos a obsessão do fogo que sobe em pirâmides e colunas contra o sol a pino e em um dado momento o encrustarse e o referir da lagoa que se move por si mesma sem vento algum como sem aragem se dobram os ramos no poema brasileiro Tanto na fala do xamã tupi como nas predicações asmáticas surgem do mar figuras monstruosas para extermínio de nações impotentes Manitós já fugiram da Taba ó desgraça ó ruína ó Túpã Como é de todo improvável que se tenha dado qualquer interação entre os então ignorados manuscritos em náuatle e os poemas americanos do nosso grande romântico só nos resta considerar o vasto campo de afinidades de tema e de imaginário que a colação das passagens revela à primeira leitura O jovem Gonçalves Dias ainda estava próximo no tempo e no espaço do nativismo exaltado latinoamericano Talvez a familiaridade do maranhense com a luta entre brasileiros e marinheiros que marcou nas províncias do Norte os anos da Independência explique a aura violenta e aterrada que rodeia aqueles versos de primeira mocidade Em Alencar ao contrário a imagem do conflito retrocederia para épocas remotas passando por um decidido processo de atenuação e sublimação Gonçalves Dias nasceu sob o signo de tensões locais antilusitanas que vão de 1822 aos Balaios Alencar formouse no período que vai da maioridade precoce de Pedro II de que seu pai fora um hábil articulador à conciliação partidária dos anos 50 O nacionalismo de ambos aparentemente comum merece uma análise diferencial pois forjouse em cadinhos políticos diversos Sondar uma possível gênese dos modos que assumiu entre nós o nativismo romântico decreto concreto para entender as formas opostas de tratar o destino das populações conquistadas E junto com a perspectiva ideológica fruindo embora de um apreciável grau de liberdade poética vãose traçando os respectivos esquemas de representação O poético supera conservando o ideológico não o suprime Quanto às figuras do desastre iminente concebidas pelo primeiro G Dias creio que o seu modelo se encontre nas visões do Apocalipse joanino É no livrofechado do Novo Testamento que aparecem contíguos na mesma visão o sol escurecido em pleno dia e a lua tinta em sangue Seria nessa matriz que iriam colher os sinais cósmicos das grandes catástrofes e os discursos escatológicos proferidos ao longo da história do cristianismo É de supor que também a voz do poeta brasileiro culto falando embora pela boca do pajé tenha recorrido ao imaginário bíblico para predizer o fim de um mundo Em paralelo os vates astecas anunciaram o seu próprio extermínio narrando os prodígios que viriam antes da chegada dos invasores A afinidade que resulta da leitura dos poemas de Gonçalves Dias e dos agouros mexicanos em termos de figuração advém de um sentimento comum de terror expresso por uma rede de sinais apocalípticos no sentido amplo e trans cultural de imagens prenunciadoras de um cataclismo a um só tempo social e cósmico O fim de um povo é descrito como o fim do mundo O poeta guardou em seus últimos versos aquela visão trágica da conquista No derradeiro canto que dedicou ao selvagem a epopéia inacabada dos Timbiras retornam os vaticínios do piaga desta vez chorase a sorte da América a América infeliz com a sua natureza profanada e as suas gentes vencidas Chamelhe progresso Quem do extermínio secular se ufana Eu modesto cantor do povo extinto Chorarei nos vastíssimos sepulcros Que vão do mar aos Andes e do Prata ao largo e doce mar das Amazonas O que resultou do encontro foi uma nação que tem por base Os frios ossos da nação senhora E por cimento a cinza profanada Dos mortos amassada aos pés de escravos Quanto ao colonizador português aparece como velho tutor e avaro cobiçoso da beleza de sua pupila a América E voltam os signos da convulsão dos elementos naturais agora decifrados como estragos produzidos pelas armas de fogo do invasor branco Ardia o prélo Fervia o mar em fogo à meianoite Nuvem de espesso fumo condensado Toldava astros e céus e o mar e os montes Acordavam rugindo aos sons troantes Da insólita peleja Canto III Em direção oposta à dos Primeiros cantos e dos Timbiras o romance histórico de Alencar voltouse não para a destruição das tribos tupis mas para a construção ideal de uma nova nacionalidade o Brasil que emerge do contexto colonial Daí a atenção que merecem os modos pelos quais o narrador trabalhou a assimetria das forças em presença na sua primeira síntese romanesca É minha hipótese que o mito sacrifical latente na visão alencariana dos vencidos se tenha casado com o seu esquema feudalizante de interpretação da nossa história Dentro de um contexto marcado pelas relações de senhor e ser e o abismo em redor oferecem à casa de dom António segurança digna de um castelo medieval Assim a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português menos as ameias e a barbacã as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável entre os troncos dessas árvores uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável A tônica posta no indevassado no fechamento na inteira defesa amarra os elementos naturais à esfera da pequena comunidade que reproduz na selva o modelo da vida medieval Na transposição o núcleo do complexo patriarcal europeu reponta com uma tipicidade ainda mais angulosa e pura A imponência e solenidade do castelo acachapavase e descarnavase sob a forma da casagrande edificada com a arquitetura simples e grosseira que ainda apresentam as nossas primitivas habitações tinha cinco janelas de frente baixas largas quase quadradas O simples o grosseiro o quadrado da frontaria não dão porém acesso a um estilo novo rústico de moradia Abrese pesada porta de jacarandá e penetrase no interior do solar respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto como era então aquele sítio As paredes são apenas caídas mas a decoração é heráldica com brasões de armas escudos e elmos de prata despejados sobre o portal além de bordados no largo reposteiro de damasco vermelho O gosto do severo e até do triste já permeia o que viria a ser o kitsch colonialromântico aqui dispõe cadeiras de couro de alcatra cigana uma garça real empalhada segurando com o bico o cortinado de tafetá azul e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas Com blocos heráldicos e resíduos da selva tropical mudados em curiosidades recheiamse as descrições do nosso primeiro romance histórico romântico Nesse ambiente e no cenário para ele pintado movemse as pessoas que arrancamse do feudo ou da selva os traços definidos Na interação dos caracteres o princípio que tudo rege é o que faz a natureza braisileira é posta a serviço do nobre conquistador O solar do fidalgos está fincado solidamente na paisagem que de todos os lados o protege e seja a muralha não é feita por mão humana é porque se utilizou a rocha cortada a pique A eminência da pedra seria a rigor a única fonte de tensão capaz de gerar um dissídio no interior da obra Dom António de Mariz um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro e que jurara fidelidade à Coroa lusa perante o altar da natureza aparece como o instaurador do elo a conquista das terras americanas funda um modo de viver em que a violência do domínio apetece respeitada pela coragem das primeiras lutas contra a selva os índios e os piratas Em dom António como em sua filha dileta Cecília a síntese colonialromântica se perfaz de modo cabal ambos admiram intensamente Peri ambos respeitam os selvagens ao passo que dona Lauriana e seu filho Diogo que constituem a fidalguias extremada verão com desdém o bugre atitude que acabará por ser fatal ao equilíbrio da história Essa diferenciação interna é peça forte da ideologia ao mesmo tempo conservadora e nativista de Alencar o senhorio da terra direito da nobreza conquistadora deve reconhecer nos índios aquelas virtudes naturais de altivez e fidalguia que seriam comuns ao português e ao aborígene Assim a violação do último período que de fato instaurou o contato entre ambos parece ceder a um compromisso de honra entre iguais Por isso quando o jovem dom Diogo de Mariz mata inadvertidamente uma índia na selva o pai o repreende com dureza porque assassinar uma mulher é ação indigna do nome que vos dei A ofensa não passaria impune a vingança dos aimorés será uma das molas do desenlace de O guarani A honra constituiu como se sabe a pedra de toque das relações pessoais préburguesas Ela demandou todos os sacrifícios não executado o da vida mas incorpor na sua dinâmica a fatalidade da vingança desde que esta não se mantenha como a menor indignidade O olho aristocrático discerne a priori os homens capazes de viver naturalmente uma existência honrada e os outros vilões de quem se podem esperar ações ignóbeis O que marca o indianismo de Alencar é a inclusão do selvagem nessa esfera de nobreza na qual cabem sentimento de devoção absoluta de Peri a Ceci e também de ódio sem margens dos aimorés aos brancos do solar Tal sistema de expectativas de honra só não reproduz simplesmente o modelo da convivência entre fidalgos europeus porque não é uma relação entre iguais quem o instalou pretende subjugar ou retirar ao seu próprio mundo de dominação Mas como sua premissa fica em geral subentendida o que aparece em primeiro plano é a interseção de fidalgo e selvagem que se cruzam na posse das virtudes propriamente senhoriais coragem e altivez abnegação e lealdade Os predicados não se esgotam na formação dos tipos Não sendo inertes a sua ação vai operando ao longo da história é difícil contar às vezes em que do primeiro ao último capítulo a audácia e o devotamento de Peri salvam os Mariz da morte certa e atroz Seguemno de perto no cometimento de atos heroicos dom António e dom Álvaro de Sá que do primeiro tinha recebido todos os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós Peri é ao mesmo tempo tão nobre quanto os mais ilustres barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis o rei cavaleiro e servo espontâneo de Cecília a quem chama Uiará isto é senhora Também Iracema no romance homônimo tornase mulher de Martin Soares Moreno mas a relação de sexos importa aí menos que a de domínio a índia não é senhora mas serva do conquistador e morrerá por sua causa Se o solar dos Mariz fosse realmente o que Alencar projetou fazer dele um castelo no trópico bastaria a vingança dos aimorés para provocar no interior do sistema o desequilíbrio que levaria à catástrofe Mas esse fator previsível não é o único a compor a trama Já no primeiro capítulo o leitor é informado de que o fundo da casa inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas que serviam de moradia a aventureiros e acostados E o que fazem esses acostados junto a dom António A primeira vista recebiam dele abrigo e proteção mas logo adiante está dito que recambiavam o fator assegurando ao fidalgo o direito de metade dos lucros auferidos nas explorações e correrias pelo sertão O pacto com mercenários faz entrar uma realidade nova o ganho o dinheiro instituto alheio à rede feudal de valores A brecha se bem pensada teria ensinado a Alencar que a Colônia não repetia a Idade Média mas abraçava uma sociedade já aberta em interação frequente com o mundo Quando chegava a época da venda dos produtos que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro apurava o ganho fazia a troca dos objet As páginas finais descrevem a fuga de Cecília e Peri pela floresta e pelo rio Cancelamse aqui os limites históricos desfazemse os contornos da vida em sociedade e a narração voltase para as fontes arcanas do romance histórico a lenda O homem e a natureza e entre ambos a natureza mais humana a humanidade mais natural a mulher O homem deve livrar a mulher da morte pela mediacão da natureza protetora E só no desfecho em que a vida reflui para a selva cerrada natural É como se o cronista leitor de Walter Scott pusesse a História entre parenteses e imergisse em uma paisagem sem tempo O passado substância da crônica perde celeremente todo peso Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia sua alma inocente e ignorante tinhase iluminado com uma súbita revelação novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento Voltando ao passado admiravase de sua existência como os olhos se deslumbra com a claridade depois de um sono profundo não se reconhecia na imagem do que fora outrora na menina isenta e travessa Na solidão da mata na canoa que resvala sobre a água lida do Paraíba a narrativa se arma sinuosamente para as formas do idílio A relação fundamental homemmulher franquia nesse momento de abertura à natureza o intervalo de raça e de status que se manteve constante ao longo da história No meio de homens civilizados Peri era um índio ignorante nascido de uma raça bárbara a quem a civilização repelía e marcava o lugar de cativo Embora para Cecília e dom António fosse um amigo era apenas um escravo Aqui porém todas as distinções desapareciam o filho das matas voltando ao seio de sua mãe recebava a liberdade era o rei do deserto o senhor das florestas dominando pelo direito da força e da coragem Para Cecília a presença desse homem novo e inteiro no seu estado natural tem ares de revelação Um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher O diálogo da senhora com o escravo cede a inflexões confiantes e diretas de conversa entre irmã e irmão que mal escondem outros tons mais ardentes E situações novas ditam a Peri relatos em forma de mitos O primeiro é alegoria amorosa posto que sublimada na intenção do índio Escuta disse ele Os velhos da tribo ouviram de seus pais que a alma do homem quando sai do corpo se esconde numa flor e fica ali até que a ave do céu venha buscála e levála bem longe É por isso que te vês o guanumbí saltando de flor em flor beijando uma beijando outra e depois batendo as asas e fugindo Peri não leva a sua alma no corpo deixaa nesta flor Tu não ficas só À fantasia do selvagem responde o projeto declarado de Alencar a poética do amor romântico Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer e que não vê uma borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança Como a humanidade na infância o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia mitologia mais grandiosa e poética do que as criações da Grécia o amor é o seu Olimpo povoado de deuses ou deuses de uma beleza celeste ou imortal A situação final é epifania do grande mito do dilúvio apresenta o evento primitivo de sorte a reexer o sua função exemplar O cataclismo das chuvas o perecimento de todos os homens a palmeira que sobreabundou a salvação de Tamandaré e de sua mulher reiteramse no episódio que fecha O guarani Na hora do perigo supremo o poder de salvar vem do alto o Senhor falava de noite a Tamandaré e de dia ensinava aos filhos da tribo o que aprendera no céu No romance a força emana do interior do herói Peri inspirase na sua devoção à mulher Do ponto de vista da estrutura do romance a narração do novo dilúvio tem papel decisivo propicia o gesto do amor e abre a história para um espaço indeterminado como os do próprio mito redivivo A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia E sumiuse no horizonte
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rousseauísta como o bon sauvage acabou compondo o nosso imaginário mais conservador Gigante pela própria natureza o índio entrou em extremis na sociedade literária do Segundo Império Remontese um pouco no tempo O processo da independência gerou ao desencadearse uma dialética de oposição Mesmo considerando que os estratos dominantes foram os arquitetos e os beneficiários da patria del criollo força convir que contradição houve tanto no nível dos interesses materiais coibidos pelo antigo monopólio quanto no delicado tecido da vida simbólica Viveuse uma fase de tensão aguda entre a Colônia que se emancipava e a Metrópole que se enriquicia na defesa do seu caducante Império O primeiro quartel do século XIX foi em toda a América Latina um tempo de ruptura O corte naçãocolônia novoantigo exigia na moldagem das identidades a articulação de um eixo de um lado o pólo brasileiro que enfim levantava a cabeça e dizia o seu nome de outro o pólo português que resistia à perda do seu melhor quinhão Segundo esse desenho de contrastes o esperável seria que o índio ocupasse no imaginário póscolonial o lugar que lhe competia o papel de rebelde Era afinal o nativo por excelência em face do invasor o americano como se chamava metonimicamente versus o europeu Mas não foi precisamente o que se passou em nossa ficção romântica mais significativa O índio de Alencar entra em íntima comunhão como o colonizador Peri é literal e voluntariamente escravo de Ceci a quem venera como sua Iara senhora e vassalo fidelíssimo de dom Antônio No desfecho do romance em face da catástrofe iminente o fidalgos batiza o indígena dandolhe o seu próprio nome condição que exigia necessária para conceder a um selvagem a honra de salvar a filha da morte certa a que osaimores tinham condenado os moradores do solar 177 Se tu fosses cristão Peri O índio voltouse extremamente admirado daquelas palavras Por quê perguntou ele Por quê disse lentamente o fidalgo Porque se tu fosses cristão eu te confiaria a salvação de minha Cecília e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro à minha irmã Peri quer ser cristão exclamou ele D António lançoulhe um olhar úmido de reconhecimento O índio caiu aos pés do velho cavaleiro que impôslhe as mãos sobre a cabeça Sê cristão Doute o meu nome O guarani parte IV cap X A conversão acompanhada de mudança de nome ocorre igualmente com o índio Poti de Iracema batizado como Antônio Felipe Camarão o futuro herói da resistência aos holandeses E Arnaldo o sósia rústico de Peri de O sertanejo é agraciado com o sobrenome do capitãomor durante este diálogo edificante E para si Arnaldo que deseja insistiu Campelo Que o sr CapitãoMor me deixe beijar sua mão bastame isso Tu és um homem e de hoje em diante quero que te chames Arnaldo Louredo Campelo O sertanejo parte II cap XXI É o senhor colonial que nos três episódios outorga pelo ato da renomeação nova identidade religiosa e pessoal ao índio e ao sertanejo Quanto aos aimorés que são os verdadeiros inimigos do conquistador no Guarani aparecem marcados pelos epítetos de bárbaros horrendos satânicos carniceiros sinistros horríveis sedentos de vingança ferozes diabólicos Iracema no belo poema em prosa que traz o seu nome apaixonase por Martim Soares Moreno o colonizador do Ceará por amor de quem rompe com a sua nação tabajara depois de violar o segredo da jurema Nas histórias de Peri e de Iracema a entrega do índio ao branco é incondicional fazse de corpo e alma implicando sacrifício e aban dono da sua pertença à tribo de origem Uma partida sem retorno Da virgem de lábios de mel disse Machado de Assis em artigo que escreveu logo que saiu o romance Não resiste nem indaga desde que os olhos de Martin se trocaram com os seus a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão O risco de sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação como se a sua atitude devota para com o branco representasse o cumprimento de um destino que Alencar apresenta em termos heroicos ou idílicos Creio que é possível detectar a existência de um complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar Comparemse os desfechos dos seus romances coloniais e indianistas com os destinos de Carolina a cortesã de As asas de um anjo remida e punida em A expiação de Lúciola no romance homônimo e de Joana em Mãe São todas obras cujas tramas narrativas ou dramáticas se resolvem pela imolação voluntária dos protagonistas o índio a índia a mulher prostituída a mãe negra A nobreza dos fracos só se conquista pelo sacrifício de suas vidas Paradoxalmente O guarani e Iracema fundaram o romance nacional não está em causa nestas observações a sinceridade patriótica do narrador sentimento que de resto não guardaria qualquer relação causal com o valor estético dos seus textos O que importa é ver como a figura do índio belo forte e livre se modelou em um regime de combinação com a franca apologia do colonizador Essa conciliação dada como espontânea por Alencar viola abertamente a história da ocupação portuguesa no primeiro século é só ler a crônica da maioria das capitanias para saber o que aconteceu toca o inversíssimo no caso de Peri enfim é pesadamente ideológica como interpretação do processo colonial Nada disso impede porém que a linguagem narrativa de Alencar acione em mais de um passo a tecla da poesia A beleza da prosa lírica reverbera a quem ou em outro sentido além da representação do dado empírico que a crônica realista busca espelhar E o mito que essa prosa entretece se faz aqui além da cadeia narrativa verossímil Aqui o mito não requer o teste da verificação nem se vale daquelas provas testemunhais que fornecem passaporte idôneo ao discurso historiográfico Ou além o valor estético de um texto mítico transcende o seu horizonte factual e o recorte preciso da situação evocada O mito como poesia arcaica é conhecimento de primeiro grau préconceitual e ao mesmo tempo é forma expressiva do desejo que quer antes de refletir Há um nó apertado de pensamento conservador mito indianista e metáfora romântica na rede narrativa de O guarani Ao tentar desfazêlo o leitor crítico deve tomar o cuidado de não emaranhar a análise dos valores do autor tarefa que compete a história das ideologias com o julgamento dos seus tentos literários mais criativos O mito é uma instância mediadora uma cabeça bifronte Na face que olha para a História o mito reflete contradições reais mas de modo a convertêlas e a resolvêlas em figuras que perfecçam em si a coincidentia oppositorum Assim o mito alencariano reune sob a imagem comum do herói o colonizador tido como generoso feudalista e o colonizado visto ao mesmo tempo como súdito fiel e bom selvagem Na outra face que contempla a invenção traz o mito signos produzidos conforme uma semântica analógica sendo um processo figural uma expressão romanesca uma imagem poética Na medida que alcança essa qualidade propriamente estética o mito re mo a beleza a naturalidade brilhem em si e para si eles se constelam em torno de um ímã o conquistador dotado de um poder infuso de atraílos e incorporálos Não sei de outra formação nacional expressa do antigo sistema colonial onde o nativismo tenha perdido para bem e para mal tanto da sua identidade e da sua consistência Augusto Meyer em um soberbo estudo que dedicou a Alencar tudo remete ao conceito de tenuidade brasileira para dar conta desses e de outros singulares descompassos de nossa cultura romântica Suspeitando porém que o teor ambíguo desse nativismo não poderia em razão do seu modo de comportarse manter sempre uma face homogênea busquei a exceção a rara exceção e afinal a encontrei em uma breve passagem uma nota etnográfica aposta à lenda de Ubirajara Foi a última obra em que Alencar voltou ao assunto Tratase de uma poetização da vida indígena anterior ao descobrimento A nota sugere uma leitura da colonização portuguesa como um feito de violência Defendendo os tupis da pecha de traidores com que os infamaram alguns cronistas assim lhes rebate Alencar Foi depois da colonização que os portugueses assaltandoos como a feras e caçandoos a dente de cão ensinaramlhes a traição que eles não conheciam É verdade que esse juízo cortante não tem força retroativa chega tarde e não pode alterar a simbiose lusotupi que Alencar armara tão solidamente nos romances coloniais onde o destino do nativo era tratado como sacrifício espontâneo e sublime Mas a veemência do tom assaltandoos como a feras e caçandoos a dente de cão parecem expressões de missionários incriminando colonos e bandeirantes ganha sentido se vista à luz das ásperas polêmicas literárias que Alencar precisou travar nos seus últimos e sombrios anos de vida Zoilos portugueses e penas intolerantes o acusavam de inventar um selvagem falso e o que era pior escrever em uma língua inca de americanismos desviando do cânon da matriz As respostas irritadamente nacionalistas de Alencar se leem no longo prefácio que fez para um dos seus últimos romances Sonhos douro que saiu em 1872 O texto é um documento interessante de política cultural bra sileirista post festum Seria instrutivo esboçar um confronto da ficção de Alencar com a poesia americana de Gonçalves Dias que precedeu de uma geração Nos Primeiros cantos do maranhense lateja a consciência do destino atroz que aguardava as tribos tupis quando se pôs em marcha a conquista européia O conflito das civilizações é trabalhado pelo poeta na sua dimensão de tragédia Poemas fortes como O canto do tiaga e Depravação são agouros do massacre que dizimaria o selvagem mal descessem os brancos de suas caravelas Pelo seu tom entre espantado e solene lembram esses cantos os presságios que os vates astecas anunciaram ao seu povo alguns anos antes da invasão espanhola São vozes de gente prestes a sucumbir a ferro e fogo e o modo pelo qual sobreviveria a matança era tão incompreensível para as vítimas que só palavras misteriosas de visão e agouro poderiam dizêlo Por intermédio do pajé o piaga divino em transe falam os deuses ou mais precisamente fala um espectro que viu o mundo às aves o sol energecido a coruja piando de dia copas da floresta e se agitem em plena calma e a lua ardendo em fogo e sangue Tu não viste nos céus um negrume Toda a face do sol ofuscar Não ouviste a coruja de dia Seus estrídulos torna soltar Tu não viste dos bosques a coma Sem aragem vergar e gemer Nem a lua de fogo entre nuvens Qual em vestes de sangue nascer Em A visão dos vencidos Miguel LeónPortilla transcreve presságios que inicialmente redigidos em náuatle pelos alunos de um missionário frei Bernardino de Sahagún só conheceram versão em espanhol nos meados do século xx graças à erudição de Ángel María Garibay Impressiona nesses cantos mexicanos a obsessão do fogo que sobe em pirâmides e colunas contra o sol a pino e em um dado momento o encrustarse e o referir da lagoa que se move por si mesma sem vento algum como sem aragem se dobram os ramos no poema brasileiro Tanto na fala do xamã tupi como nas predicações asmáticas surgem do mar figuras monstruosas para extermínio de nações impotentes Manitós já fugiram da Taba ó desgraça ó ruína ó Túpã Como é de todo improvável que se tenha dado qualquer interação entre os então ignorados manuscritos em náuatle e os poemas americanos do nosso grande romântico só nos resta considerar o vasto campo de afinidades de tema e de imaginário que a colação das passagens revela à primeira leitura O jovem Gonçalves Dias ainda estava próximo no tempo e no espaço do nativismo exaltado latinoamericano Talvez a familiaridade do maranhense com a luta entre brasileiros e marinheiros que marcou nas províncias do Norte os anos da Independência explique a aura violenta e aterrada que rodeia aqueles versos de primeira mocidade Em Alencar ao contrário a imagem do conflito retrocederia para épocas remotas passando por um decidido processo de atenuação e sublimação Gonçalves Dias nasceu sob o signo de tensões locais antilusitanas que vão de 1822 aos Balaios Alencar formouse no período que vai da maioridade precoce de Pedro II de que seu pai fora um hábil articulador à conciliação partidária dos anos 50 O nacionalismo de ambos aparentemente comum merece uma análise diferencial pois forjouse em cadinhos políticos diversos Sondar uma possível gênese dos modos que assumiu entre nós o nativismo romântico decreto concreto para entender as formas opostas de tratar o destino das populações conquistadas E junto com a perspectiva ideológica fruindo embora de um apreciável grau de liberdade poética vãose traçando os respectivos esquemas de representação O poético supera conservando o ideológico não o suprime Quanto às figuras do desastre iminente concebidas pelo primeiro G Dias creio que o seu modelo se encontre nas visões do Apocalipse joanino É no livrofechado do Novo Testamento que aparecem contíguos na mesma visão o sol escurecido em pleno dia e a lua tinta em sangue Seria nessa matriz que iriam colher os sinais cósmicos das grandes catástrofes e os discursos escatológicos proferidos ao longo da história do cristianismo É de supor que também a voz do poeta brasileiro culto falando embora pela boca do pajé tenha recorrido ao imaginário bíblico para predizer o fim de um mundo Em paralelo os vates astecas anunciaram o seu próprio extermínio narrando os prodígios que viriam antes da chegada dos invasores A afinidade que resulta da leitura dos poemas de Gonçalves Dias e dos agouros mexicanos em termos de figuração advém de um sentimento comum de terror expresso por uma rede de sinais apocalípticos no sentido amplo e trans cultural de imagens prenunciadoras de um cataclismo a um só tempo social e cósmico O fim de um povo é descrito como o fim do mundo O poeta guardou em seus últimos versos aquela visão trágica da conquista No derradeiro canto que dedicou ao selvagem a epopéia inacabada dos Timbiras retornam os vaticínios do piaga desta vez chorase a sorte da América a América infeliz com a sua natureza profanada e as suas gentes vencidas Chamelhe progresso Quem do extermínio secular se ufana Eu modesto cantor do povo extinto Chorarei nos vastíssimos sepulcros Que vão do mar aos Andes e do Prata ao largo e doce mar das Amazonas O que resultou do encontro foi uma nação que tem por base Os frios ossos da nação senhora E por cimento a cinza profanada Dos mortos amassada aos pés de escravos Quanto ao colonizador português aparece como velho tutor e avaro cobiçoso da beleza de sua pupila a América E voltam os signos da convulsão dos elementos naturais agora decifrados como estragos produzidos pelas armas de fogo do invasor branco Ardia o prélo Fervia o mar em fogo à meianoite Nuvem de espesso fumo condensado Toldava astros e céus e o mar e os montes Acordavam rugindo aos sons troantes Da insólita peleja Canto III Em direção oposta à dos Primeiros cantos e dos Timbiras o romance histórico de Alencar voltouse não para a destruição das tribos tupis mas para a construção ideal de uma nova nacionalidade o Brasil que emerge do contexto colonial Daí a atenção que merecem os modos pelos quais o narrador trabalhou a assimetria das forças em presença na sua primeira síntese romanesca É minha hipótese que o mito sacrifical latente na visão alencariana dos vencidos se tenha casado com o seu esquema feudalizante de interpretação da nossa história Dentro de um contexto marcado pelas relações de senhor e ser e o abismo em redor oferecem à casa de dom António segurança digna de um castelo medieval Assim a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português menos as ameias e a barbacã as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável entre os troncos dessas árvores uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável A tônica posta no indevassado no fechamento na inteira defesa amarra os elementos naturais à esfera da pequena comunidade que reproduz na selva o modelo da vida medieval Na transposição o núcleo do complexo patriarcal europeu reponta com uma tipicidade ainda mais angulosa e pura A imponência e solenidade do castelo acachapavase e descarnavase sob a forma da casagrande edificada com a arquitetura simples e grosseira que ainda apresentam as nossas primitivas habitações tinha cinco janelas de frente baixas largas quase quadradas O simples o grosseiro o quadrado da frontaria não dão porém acesso a um estilo novo rústico de moradia Abrese pesada porta de jacarandá e penetrase no interior do solar respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto como era então aquele sítio As paredes são apenas caídas mas a decoração é heráldica com brasões de armas escudos e elmos de prata despejados sobre o portal além de bordados no largo reposteiro de damasco vermelho O gosto do severo e até do triste já permeia o que viria a ser o kitsch colonialromântico aqui dispõe cadeiras de couro de alcatra cigana uma garça real empalhada segurando com o bico o cortinado de tafetá azul e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas Com blocos heráldicos e resíduos da selva tropical mudados em curiosidades recheiamse as descrições do nosso primeiro romance histórico romântico Nesse ambiente e no cenário para ele pintado movemse as pessoas que arrancamse do feudo ou da selva os traços definidos Na interação dos caracteres o princípio que tudo rege é o que faz a natureza braisileira é posta a serviço do nobre conquistador O solar do fidalgos está fincado solidamente na paisagem que de todos os lados o protege e seja a muralha não é feita por mão humana é porque se utilizou a rocha cortada a pique A eminência da pedra seria a rigor a única fonte de tensão capaz de gerar um dissídio no interior da obra Dom António de Mariz um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro e que jurara fidelidade à Coroa lusa perante o altar da natureza aparece como o instaurador do elo a conquista das terras americanas funda um modo de viver em que a violência do domínio apetece respeitada pela coragem das primeiras lutas contra a selva os índios e os piratas Em dom António como em sua filha dileta Cecília a síntese colonialromântica se perfaz de modo cabal ambos admiram intensamente Peri ambos respeitam os selvagens ao passo que dona Lauriana e seu filho Diogo que constituem a fidalguias extremada verão com desdém o bugre atitude que acabará por ser fatal ao equilíbrio da história Essa diferenciação interna é peça forte da ideologia ao mesmo tempo conservadora e nativista de Alencar o senhorio da terra direito da nobreza conquistadora deve reconhecer nos índios aquelas virtudes naturais de altivez e fidalguia que seriam comuns ao português e ao aborígene Assim a violação do último período que de fato instaurou o contato entre ambos parece ceder a um compromisso de honra entre iguais Por isso quando o jovem dom Diogo de Mariz mata inadvertidamente uma índia na selva o pai o repreende com dureza porque assassinar uma mulher é ação indigna do nome que vos dei A ofensa não passaria impune a vingança dos aimorés será uma das molas do desenlace de O guarani A honra constituiu como se sabe a pedra de toque das relações pessoais préburguesas Ela demandou todos os sacrifícios não executado o da vida mas incorpor na sua dinâmica a fatalidade da vingança desde que esta não se mantenha como a menor indignidade O olho aristocrático discerne a priori os homens capazes de viver naturalmente uma existência honrada e os outros vilões de quem se podem esperar ações ignóbeis O que marca o indianismo de Alencar é a inclusão do selvagem nessa esfera de nobreza na qual cabem sentimento de devoção absoluta de Peri a Ceci e também de ódio sem margens dos aimorés aos brancos do solar Tal sistema de expectativas de honra só não reproduz simplesmente o modelo da convivência entre fidalgos europeus porque não é uma relação entre iguais quem o instalou pretende subjugar ou retirar ao seu próprio mundo de dominação Mas como sua premissa fica em geral subentendida o que aparece em primeiro plano é a interseção de fidalgo e selvagem que se cruzam na posse das virtudes propriamente senhoriais coragem e altivez abnegação e lealdade Os predicados não se esgotam na formação dos tipos Não sendo inertes a sua ação vai operando ao longo da história é difícil contar às vezes em que do primeiro ao último capítulo a audácia e o devotamento de Peri salvam os Mariz da morte certa e atroz Seguemno de perto no cometimento de atos heroicos dom António e dom Álvaro de Sá que do primeiro tinha recebido todos os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós Peri é ao mesmo tempo tão nobre quanto os mais ilustres barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis o rei cavaleiro e servo espontâneo de Cecília a quem chama Uiará isto é senhora Também Iracema no romance homônimo tornase mulher de Martin Soares Moreno mas a relação de sexos importa aí menos que a de domínio a índia não é senhora mas serva do conquistador e morrerá por sua causa Se o solar dos Mariz fosse realmente o que Alencar projetou fazer dele um castelo no trópico bastaria a vingança dos aimorés para provocar no interior do sistema o desequilíbrio que levaria à catástrofe Mas esse fator previsível não é o único a compor a trama Já no primeiro capítulo o leitor é informado de que o fundo da casa inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas que serviam de moradia a aventureiros e acostados E o que fazem esses acostados junto a dom António A primeira vista recebiam dele abrigo e proteção mas logo adiante está dito que recambiavam o fator assegurando ao fidalgo o direito de metade dos lucros auferidos nas explorações e correrias pelo sertão O pacto com mercenários faz entrar uma realidade nova o ganho o dinheiro instituto alheio à rede feudal de valores A brecha se bem pensada teria ensinado a Alencar que a Colônia não repetia a Idade Média mas abraçava uma sociedade já aberta em interação frequente com o mundo Quando chegava a época da venda dos produtos que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro apurava o ganho fazia a troca dos objet As páginas finais descrevem a fuga de Cecília e Peri pela floresta e pelo rio Cancelamse aqui os limites históricos desfazemse os contornos da vida em sociedade e a narração voltase para as fontes arcanas do romance histórico a lenda O homem e a natureza e entre ambos a natureza mais humana a humanidade mais natural a mulher O homem deve livrar a mulher da morte pela mediacão da natureza protetora E só no desfecho em que a vida reflui para a selva cerrada natural É como se o cronista leitor de Walter Scott pusesse a História entre parenteses e imergisse em uma paisagem sem tempo O passado substância da crônica perde celeremente todo peso Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia sua alma inocente e ignorante tinhase iluminado com uma súbita revelação novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento Voltando ao passado admiravase de sua existência como os olhos se deslumbra com a claridade depois de um sono profundo não se reconhecia na imagem do que fora outrora na menina isenta e travessa Na solidão da mata na canoa que resvala sobre a água lida do Paraíba a narrativa se arma sinuosamente para as formas do idílio A relação fundamental homemmulher franquia nesse momento de abertura à natureza o intervalo de raça e de status que se manteve constante ao longo da história No meio de homens civilizados Peri era um índio ignorante nascido de uma raça bárbara a quem a civilização repelía e marcava o lugar de cativo Embora para Cecília e dom António fosse um amigo era apenas um escravo Aqui porém todas as distinções desapareciam o filho das matas voltando ao seio de sua mãe recebava a liberdade era o rei do deserto o senhor das florestas dominando pelo direito da força e da coragem Para Cecília a presença desse homem novo e inteiro no seu estado natural tem ares de revelação Um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher O diálogo da senhora com o escravo cede a inflexões confiantes e diretas de conversa entre irmã e irmão que mal escondem outros tons mais ardentes E situações novas ditam a Peri relatos em forma de mitos O primeiro é alegoria amorosa posto que sublimada na intenção do índio Escuta disse ele Os velhos da tribo ouviram de seus pais que a alma do homem quando sai do corpo se esconde numa flor e fica ali até que a ave do céu venha buscála e levála bem longe É por isso que te vês o guanumbí saltando de flor em flor beijando uma beijando outra e depois batendo as asas e fugindo Peri não leva a sua alma no corpo deixaa nesta flor Tu não ficas só À fantasia do selvagem responde o projeto declarado de Alencar a poética do amor romântico Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer e que não vê uma borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança Como a humanidade na infância o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia mitologia mais grandiosa e poética do que as criações da Grécia o amor é o seu Olimpo povoado de deuses ou deuses de uma beleza celeste ou imortal A situação final é epifania do grande mito do dilúvio apresenta o evento primitivo de sorte a reexer o sua função exemplar O cataclismo das chuvas o perecimento de todos os homens a palmeira que sobreabundou a salvação de Tamandaré e de sua mulher reiteramse no episódio que fecha O guarani Na hora do perigo supremo o poder de salvar vem do alto o Senhor falava de noite a Tamandaré e de dia ensinava aos filhos da tribo o que aprendera no céu No romance a força emana do interior do herói Peri inspirase na sua devoção à mulher Do ponto de vista da estrutura do romance a narração do novo dilúvio tem papel decisivo propicia o gesto do amor e abre a história para um espaço indeterminado como os do próprio mito redivivo A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia E sumiuse no horizonte