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Psicologia ·
Psicanálise
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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivrosInfo ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível CARTAS A UM JOVEM TERAPEUTA Contardo Calligaris Reflexões para psicoterapeutas aspirantes e curiosos 2004 Elsevier Editora Ltda Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19021998 Nenhuma parte deste livro sem autorização prévia por escrito da editora poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados eletrônicos mecânicos fotográficos gravação ou quaisquer Outros Projeto Gráfico Folio Design Editora ção Eletrônica Estúdio Casteliani Copídesque Shirley Revisão Gráfica Edna Cavalcanti Roberta Borgas Fotos de capa Luciana Cattani e Gabriel Boieras Elsevier Editora Ltda A Qualidade da Informação Rua Sete de Setembro 111 1 6 andar 20050006 Rio de Janeiro RJ Brasil Telefono 2139709300 FAX 2125071991 Email infoelseviercombr Escritório São Paulo Rua Elvira Ferras 198 04552040 Vila Olímpia São Paulo SP Tel 1138418555 ISBN 8535214933 CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Calligaris Contardo 1948 Cartas a um jovem terapeuta o que é importante para ter sucesso profissional Contardo Calligaris Rio de Janeiro Elsevier 2004 Cartas a um jovem 1 Psicoterapia 2 Psicanálise 3 Psicanalistas 4 Orientação profissional 1 Titulo II Série COO 6168914 COIJ 615851 04 05 06 07 SUMÁRIO 1 Vocação profissional 2 Quatro bilhetes 3 O primeiro paciente 4 Amores terapêuticos 5 Formação 6 Curar ou não curar 7 O que fazer para ter mais pacientes 8 Questões práticas 9 Conflitos inúteis 10 Infância e atualidade causas internas e causas externas 11 Que mais 1 VOCAÇÃO PROFISSIONAL Meu jovem amigo Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão Você estaria procurando neste livro alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar psicoterapeuta E estaria perguntando antes de começar uma formação que vai durar no mínimo uma década e custar uma nota preta será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo É uma ótima pergunta Para ser um bom psicoterapeuta é úti l que a gente possua alguns traços de caráter ou de personalidade que dito aqui entre nós dificilmente podem ser adquiridos no decorrer da formação melhor mesmo que eles estejam com voc ê desde o começo Um exemplo só para começar Meu pai era médico internista e cardiologista mas funcionava para muitos de seus pacientes como o médico da família A cada ano no Natal na Páscoa e no dia de São José ele se chamava Giuseppe nossa casa se enchia de presentes Mas enchia mesmo a sala era abarrotada de caixas de vinhos e liquores panetones doces cestas de frutas exóticas sem contar a prataria e os objetos variados de decoração as canetas as agendas e os conjuntos para escrivaninha Nos últimos dias antes da festa a campainha não parava de tocar Nós crianças tínhamos a função e o privilégio de abrir os pacotes deixando cuidadosamente os cartões que os acompanhavam para que meu pai pudesse responder agradecendo Pois é se eu tivesse escolhido a profissão de psicanalista e psicoterapeuta para receber a mesma variedade e fartura de presentes minha vida seria um fracasso Você pode querer ser médico ou coisa que o valha porque é essencial para você ser olhado com gratidão e respeito por seus pacientes e pelos outros em geral Claro todo o mundo gosta disso não é Mas há sujeitos para quem é crucial ser constantemente o objeto de uma veneração amorosa Quer saber por quê Pense por exemplo no olhar de uma mãe para um caçula que teria nascido depois da morte do pai Desde seu primeiro vagido esse filho seria para a mãe ao mesmo tempo uma compensação e um memorial do marido que ela perdeu ele seria objeto de veneração e de eterna gratidão a Deus Escolho esse exemplo porque foi o caso justamente de meu pai ele nasceu quatro meses depoi s da morte do seu pai meu avô Obviamente não é isso que fez dele um grande médico Mas na escolha de sua profissão deve ter contado a necessidade de repetir a experiência inicial do olhar adorador de sua mãe Essa necessidade também deve ter contado na sua capacidade de ganhar uma gratidão que não se resolvia no pagamento dos honorários e portanto se expressava naquelas orgias festivas de presentes Pois bem se por alguma razão que não precisa ser a mesma do meu pai é importante para você se alimentar no reconhecimento e no agradecimento infinitos dos outros então não escolha a profissão de psicoterapeuta Por duas razões Primeiro na vida social o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espécie de gratidão que no geral é reservada ao médico como um agradecimento preventivo caso acabemos em suas mãos O psicoterapeuta encontra uma atitude nem sempre escondida por trás da polidez dos costumes que é uma mistura de temor com escárnio Funciona assim ao redor das mesas de jantar Puxa este cara aqui ao meu lado é psicocoiso vai ver que ele sabe ou entende sobre mim e minhas motivações mais do que eu mesmo sei e certamente mais do que eu gostaria que os outros soubessem A medida protetora mais banal é o ataque Ah você é psicanalista Justamente acabo de ler uma matéria onde é que era sabe daqueles americanos que provam que a psicanálise é uma baboseira você leu Segundo o psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes Nada de presentes no Natal na Páscoa ou nas outras festas Nas curas que proporciona o psicoterapeuta é por assim dizer el e mesmo o remédio E nos melhores dos casos quando tudo dá certo ele acaba exatamente como um remédi o que a gente usou e que fez seu efeito uma caixinha aberta com as poucas pílulas que sobraram no fundo do armário do banheiro A caixinha é guardada durante um tempo porque nunca se sabe um dia a gente a encontra não se lembra mais qual era seu uso constata que de qualquer forma o remédio está vencido e joga fora E é bom que seja assim Tento explicarlhe por quê Em regra idealizamos nossos profissionais da saúde médicos enfermeiros fisioterapeutas acupuntores dentistas eutonistas psicoterapeutas a lista é longa Quando os consultamos levandolhes nossas dores depositamos neles toda nossa confiança porque imaginamos supomos que eles saibam sobre nós e nossos males exatamente o que é preciso para que eles possam nos curar É bem possível que essa confiança seja excessiva mas mesmo em seu excesso ela é útil para que uma cura funcione Acreditar no médico que nos prescreve um remédio não é tudo claro ainda é preciso que ele prescreva o remédio certo Mas é bem provável que para quem acredita em seu médico aumentem as chances de que o remédio prescrito seja eficaz de que o paciente não caia na percentagem estatística dos que sempre existem não obtêm efeito algum com o remédio A importância da confiança para que as curas funcionem vale provavelmente para todas as profissões da saúde E vale mais ainda no caso da psicoterapia Então por que o psicoterapeuta não poderia esperar o tipo de vínculo duradouro e afetuoso que garante panetones vinho e outros presentes nas festas Voltarei sobre isso em outras cartas mas desde já aqui vai nenhuma psicoterapia seja ela qual for deveria almejar a dependência do paciente Como disse antes na psicoterapia o terapeuta funciona um pouco como o remédio Ora transformar a confiança inicial numa eterna admiração e gratidão seria como substituir uma doença por uma toxicomania você não tem mais pneumonia mas tem uma necessidade visceral de tomar e venerar antibióticos Ou ainda seria como curar um alcoolista tornandoo heroinômano De fato se a psicoterapia faz seu efeito o paciente para de idealizar o terapeuta Tudo isso apenas para dizer que se você gosta da ideia de ser um notável na cidade e de se sentir amado a psicoterapia talvez não seja a melhor escolha profissional para você Só uma nota à margem para ser sincero Há terapeutas que aparentemente cultivam o amor a admiração e a gratidão de seus pacientes acima de tudo Eles parecem se importar mais com isso do que com a eficácia das curas Ou seja há terapeutas que escolheram a profissão com uma boa dose daquela vontade de ser amado e admirado a mesma que acabo de lhe dizer talvez seja uma contraindicação para o exercício da profissão Pois bem devo lhe confessar que alguns desses terapeutas podem ter o maior sucesso eles se tornam frequentemente aliás chefes de escolas e talvez empurrados pela necessidade de ser admirados podem vir a ser teóricos brilhantes e inventivos Seus consultórios são eventualmente abarrotados mas eles devem seu sucesso profissional ao amor e à admiração que nunca se esquecem de alimentar em seus pacientes De fato pela experiência acumulada pelo talento e pela capacidade de inspirar confiança eles são em geral ótimos terapeutas no começo das curas Mas os tratamentos que dirigem duram para sempre transformamse em dependências químicas Não é raro que esse tipo de terapeuta considere e vivencie mesmo o fim ou a interrupção de uma cura como uma espécie de traição amorosa de seu paciente Essa perpetuação das curas não é o único problema É fácil reparar que em quase todas as orientações da psicoterapia a história da disciplina não é feita de discussões confrontação de ideias e resultados interrogações e pesquisas mas se apresenta como um vaudevilie nem sempre engraçado em que se alternam fiéis e infiéis lugartenentes e traidores Ou seja é uma história de amores desamores e ódios pessoais Nisso aliás a psicanális e ganha o prêmio Poi s é tudo isso tem uma origem comum os chefes de escola vieram à psicoterapia como crianças decididas a viver para sempre com a agradável sensação de ser objetos insubstituívei s de amores e gratidões maternas E delegaram a tarefa de manter essa ilusão a alunos e pacientes Por isso insisto As psicoterapias em geral se beneficiariam muito com algumas décadas de menos brilho menos neurose de seus chefes e mais cuidado com os pacientes Portanto por favor se sua personalidade pede amor e admiração ao mundo invente uma crença tornese médico mas pelo bem das psicoterapias desista Ou então mas este é um caminho longo antes de se autorizar a ser psicoterapeuta faça o necessário para mudar mesmo Mas deixemos as razões de desistir e vamos ao que importa Esta carta deveria tratar dos traços de caráter que eu procurari a em quem quisesse se tornar psicoterapeuta Não sei decidira ordem mas todos estes eu gostaria de encontrar 1 Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas por diferentes que sejam de você Proponholhe um teste um pouco difícil mas afinal você deve tomar uma decisão importante bata um papo com dois ou três moradores de rua aproximese deixeos falar o que em geral ninguém escuta salvo justamente os psicoterapeutas dos Centros de Atenção Psicossocial Se você conseguir escutar digamos uma hora sem que o discurso quase sempre desconexo abale sua atenção e se não recuou instintivamente quando eles passaram uma mão encardida na sua camisa ou direto no seu braço passou no teste Repita se possível com outras amostras pacientes psiquiátricos numa enfermaria ou num hospício pacientes terminais num hospital geral e pessoas assoladas por um luto Sei claro que são provas que podem parecer estranhas e extremas sugeridas por alguém eu no caso que tem desde sempre uma simpati a senão uma atração pelas sarjetas do mundo Mas minha intenção é prevenir Vej a bem eu me formei numa escol a de gente engravatada ou então alardeando camisas de seda modelo Revolução Cultural Chinesa Alguns anos depois de ter começado minha prática de psicanalista decidi trabalhar durante um tempo foram dois anos num IME Instituto Médico Educativo do norte da França em Le Havre Eu seria terapeuta de crianças que só tinham em comum o traço seguinte todos os pais a assistência social a escola haviam desistido delas Durante a visita preliminar para obtero emprego sentei no páti o da instituição contemplando a estranha agitação ao meu redor De repente um menino bonito e inquietante pel o olhar esbugalhado vei o até mim subiu no meu colo eu pensei legal ele me acha simpático não é e começou a comer meu rosto Não eram mordidas eram chupadas largas de boc a aberta nos olhos no nariz nas bochechas num instante minha cara estava coberta de uma saliva espessa que tinha o cheiro e o gosto inconfundíveis de café com leite ruim como só a instituição psiquiátrica consegue fazer Durou uma eternidade e eu deixei até que ele mesmo talvez estranhando que eu não o afastasse nauseado parou e ficou me olhando Passei a mão na cabeça dele devagar para não assustálo num gesto que queria dizer está bem entendi que este é seu jeito de falar esta é literalmente sua língua pode falar comigo O diretor da instituição que estava sentado ao meu lado comentou bom acho que você foi aprovado E pensei o seguinte isso deveria ter acontecido comigo muito tempo atrás antes de começar minha formação quando ainda daria para desistir Por sorte passei nesse teste tardio 2 Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito Você pode ter crenças e convicções Aliás é ótimo que as tenha mas se essas convicções acarretam aprovação ou desaprovação morais preconcebidas das condutas humanas sua chance de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida para não dizer nula Explico melhor Você pode ser religioso acreditar em Deus numa revelação e mesmo numa ordem do mundo No entanto se essa fé comportar para você uma noção do bem e do mal que lhe permite saber de antemão quais condutas humanas são louváveis e quais condenáveis por favor abstenhase seu trabalho de psicoterapeuta será desastroso A preocupação moral não é estrangeira ao trabalho psicoterápico mas para o terapeuta o bem e o mal de uma vida não se decidem a partir de princípios pré estabelecidos eles se decidem na complexidade da própria vida da qual se trata Um mesmo sintoma pode será razão do sucesso ou do fracasso de uma existência Se você sofre de insônia porque por exemplo sua história o condena a ser para sempre a sentinela da casa pode acontecer que você se torne o responsável noturno mais confiável de uma central nuclear ou ao contrário que você atravesse a vida de café em café numa luta extenuante contra o sono que obviamente sobra para o dia Em suma a insônia não é nem ruim nem boa Agora aplique a mesma ideia ao caso de uma preferência ou de uma fantasia sexual e entenderá que um terapeuta que tivesse um juízo moral preconcebido sobre a tal fantasia ou preferência não teria condição de respeitar a singularidade de seu paciente Você poderia perguntar mas será que não há condutas que eu posso julgar desprezíveis seja qual for seu lugar origem e função na vida de meu paciente O que faço se meu trisavô era Zumbi dos Palmares e alguém se apresenta me conta que odeia negros e orientais acredita na supremacia da raça branca e quer ajuda porque o exemplo é real só consegue desejar corpos dessas outras raças Pois bem de duas uma ou você pode escutar esse paciente sem juízo moral preconcebido mas sem mesmo ou então é um limite um caso do qual você não pode se ocupar Encaminhe para outro terapeuta que talvez tenha limites diferentes É fácil entender que se você tiver opiniões morais prontas sobre a metade dos atos possíveis nesta terra é melhor deixar a profissão de terapeuta para quem tem mais indulgência pela variedade da experiência humana 3 Este ponto é controvertido além de uma grande e indulgente curiosidade pela variedade da experiência humana eu gostaria que o futuro terapeuta já tivesse nessa variedade uma certa quilometragem rodada Claro sei que Freud era ao que parece bem certinho e isso não impediu que ele se tornasse capaz de lidar como terapeuta e não como moralista com sintomas e fantasias sexuais que sua época condenava radicalmente Também não impediu a descoberta da existência da sexualidade infantil da qual ninguém queria sequer ouvir falar Como ele conseguiu É que na sua própri a análise ou autoanálise que fosse el e soube encontrar fantasias e desejos que não eram muito distantes dos que animam vidas estranhas e reprovadas socialmente Ele aprendeu em suma que é difícil senão impossível encontrar desvios pelos quais ao menos uma parte de nossa mente não se tenha engajado em algum momento Por que qualquer terapeuta não faria o mesmo Acontece que duvido que a coragem analítica de Freud possa ser compartilhada por muitos Por isso prefiro contar com a experiência efetiva ou seja gostari a que a capacidade de considerar a variedade das vidas e das condutas com carinho e indulgência viesse ao terapeuta da variedade animada de sua própria vida No caso de Freud essa exigência teria sido inútil e enganosa Mas como considero Freud uma exceção na hora de escolher um terapeuta minha preferência iria para alguém que não fosse um cartãopostal do conformismo Portanto se você estiver hesitando em escolher a profissão de psicoterapeuta só porque por uma razão qualquer voc ê não é um model o de normalidade esqueç a essa preocupação Claro é possível que voc ê ainda encontre no seu caminho instituições de formação muito preocupadas em não comprometer sua aura de respeitabilidade social Até pouc o tempo atrás por exemplo havia instituto de formação de psicanalistas que consideravam que um ou uma psicanalista não poderiam ser homossexuais A justificativa era que os tais sujeitos não teriam chegado à suposta maturidade genital ou seja àquel e estágio mas seria melhor dizer àquel e estado da sexualidade em que as pessoas transariam só para fazer filhos direitinho Provavelmente tratavase sobretudo de fazer bonito aos olhos da sociedade bem pensante cujos membros são afinal os melhores pacientes ou seja neste caso aqueles que podem pagar mais A prova disso é que os mesmos institutos durante anos recusaram dar formação a candidato que tivessem algum tipo de deformidade física Diziam que os defeitos visíveis impediriam que os pacientes idealizassem seu terapeuta como é necessário que aconteça inicialmente para que a cura funcione Os psicanalistas eram no começo da história da psicanálise um bando de tipos excêntricos marginais da medicina e das ciências sociais Entendese que alguns ficassem ansiosos em ganhar cartas de recomendação para os clubes dos notáveis normais e bonitos Mas não se entende que essa fachada de normalidade possa ser hoje um critério na hora de selecionar candidatos para formação Enfim se sua vida sexual for um pouc o colorida e voc ê esbarrar numa instituição que condena seu desejo não hesite passe longe siga em frente e procure outra instituição Lembrese de duas coisas Primeiro um psicoterapeuta e ainda mais um psicanalista que define uma conduta como desvio não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome da psicanálise Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social quer seja em nome de seu esforço para reprimir nele mesmo o desej o que parece condenar Segundo e mai s geral quem estigmatiza categorias universais como os homossexuais os sadomasoquistas os exibicionistas etc é um atacadista enquanto a psicanálise trabalha no varejo a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares 4 O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico Desaconselho a profissão a quem está muito bem obrigado por duas razões Primeiro uma parte essencial da formação de um terapeuta que trabalhará com as motivações conscientes ou inconscientes de seus pacientes consiste no seguinte o futuro terapeuta deve el e mesmo ser paciente durante um bom tempo Certo é possível aparentemente submeterse a uma terapi a ou a uma psicanálise só por razões didáticas para aprender o método ou como dizem alguns para se conhecer melhor Mas insisto no aparentemente pois de fato é improvável que uma psicanálise aconteça sem que um sofrimento reconhecido motive o paciente O processo não é necessariamente desagradável mas pede uma determinação e uma coragem que podem falhar mai s facilmente em quem não precis a de tratamento Por que diabo me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça lugares malcheirosos e arriscados se eu não for empurrado pel a vontade de resolver um conflito acalmar um sintoma e conseguir viver melhor Uma terapia puramente didática é geralmente uma simulação de terapia E eis uma segunda razão para preferir que o futuro psicoterapeuta traga consigo uma boa dose de sofrimento psíquico e precise se curar Durante os anos de sua prática clínica no futuro muitas vezes voc ê duvidará da eficácia de seu trabalho Encontrará pacientes que não melhoram agarrados a seus sintomas mai s dolorosos como um náufrago a um salvavida viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão alfinetes de brinquedo agitados em vão contra forças imensamente superiores Nesses momentos que acredite serão frequentes será bom lembrar que você sabe mesmo e não só pelos livros que sua prática adianta Sabe porque a prática que você propõe a seus pacientes já curou ao menos um você Resumindo meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta se você sofre se seus desejos são um pouc o ou mesmo muito estranhos se graças à sua estranheza você contempla com carinho e sem julgar ou quase a variedade das condutas humanas se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade amado e respeitado pela vida afora então bemvindo ao clube talvez a psicoterapia sej a uma profissão para você Abç 2 QUATRO BILHETES BILHETE 1 Caro amigo recebi sim seu bilhete Gostei da provocação Lida a minha primeira carta você me pergunta se então não haveria nenhum desvio apreciei as aspas que impediria que um sujeito se tornas s e psicoterapeuta e acrescenta Poderi a um travesti ser psicoterapeuta ou psicanalista E você iria num ou numa terapeuta travesti Pois é eu escolheria um analista em que tivesse confiança As razões dessa confiança seriam provavelmente imponderáveis e eventualmente irrisórias desde a recomendação de um amigo até a decoração do consultório passando por uma contribuição decisiva do terapeuta à última enciclopédia de bridge ou por algo que ele ou ela disse ou escreveu em matéri a de psicanálise De qualquer forma quando escolhi meu analista não me lembro de ter pensado que escolhia um analista heterossexual Suas fantasias e preferências sexuai s não o definiam eram irrelevantes aos meus olhos A coisa seria diferente na escolha de um analista travesti Sim e não Escolher um ou uma analista travesti teri a um significado muito especial para quem compartilha com a cultura dominante a atitude seguinte geralmente pensamos que um sujeito que tenha e assuma uma preferência sexual excêntrica digamos assim seja necessariamente um sujeito que só pens a nisso um tarado ou seja um sujeito que se definiri a exclusiva mente por seu desejo sexual Essa convicção é sempre fruto de alguma repressão Funciona assim se reprimo minhas fantasias por mínimas que sejam de experimentar os prazeres que imagino sejam reservados ao outro sexo quem parece viver essas fantasias o travesti no caso me aparecerá como o símbolo vivente da lubricidade Claro tratase somente da lubricidade que não me autorizo ter Pois de fato na maioria das vezes os travestis são mais preocupados em definir sua identidade do que afobados de gozar como míticos hermafroditas Em suma se você imagina que qualquer travesti é um ser que conhece os prazeres de ambos os sexos e é afoito por ambos talvez um travesti não sej a para você o terapeuta ideal A menos que você não queira justamente um terapeuta ou analista que lhe apareça de imediato como depositário de um extraordinário saber sobre o sexo Nesse caso por que não Por outro lado se você não caminha com a cultura dominante ou seja não transforma uma preferência excêntrica numa tara sexual um terapeuta ou analista travesti não será para você muito diferente de um terapeuta ou analista de terno ou tailleur Armani Agora não sei se há analistas ou terapeutas travestis Portanto não adianta me pedir telefone e endereço do consultório BILHETE 2 Gosto disso você é persistente e agora pergunta E um pedófilo poderia ser terapeuta ou analista Você quer que eu estabeleç a um limite ou seja que coloque alguma prática ou fantasia sexuai s no campo de uma anormalidade que tornasse por si só impossível o exercício da psicoterapia ou da análise Por isso você recorre a uma preferência sexual que é além de ilegal repulsiva pois há ótimas razões em nossa cultura para que a infância seja protegida do desejo sexual dos adultos Mas disso em princípio cuida a nossa polícia A objeção à ideia de um terapeuta pedófilo existe mas é de outra natureza A fantasia do pedófilo é propor ou impor seus desejos a um sujeito que mal entende o que está sendo feito com ele e com seu corpo É uma fantasia de domínio e sobretudo de domínio pelo saber É a história verídica daquele padre americano que pedia sexo oral explicando a seu coroinha que era uma forma de santa comunhão Não é difícil entender que essa fantasia não é compatível com o exercício da psicoterapia ou da análise Claro no começo de uma terapia ou análise o paciente sempre supõe que seu terapeuta saiba muito mais do que ele sobretudo em matéria de desejo e de sexo Justamente esperase de uma terapi a que el a não transforme essa suposição numa dependência crônica Ora é exatamente o que acontecerá se o terapeuta se servir da suposição inicial do paciente para realizar sua própria fantasia sexual ou seja se ele propriamente encontrar seu goz o na suposta supremacia de seu saber E se o terapeuta for pedófilo a tentação será grande BILHETE 3 Desta vez voc ê pergunta Qual é seu limite Qual é o paciente que voc ê recusaria e encaminharia alhures E será que existem limites por assim dizer universais Ou seja sujeitos que nenhum terapeuta ou analista deveria aceitar Um grande analista francês Jacques Lacan disse uma vez durante uma supervisão que a gente não deveria oferecer tratamento aos parricidas Mas não explicou por quê É sempre possível construir uma teoria geral do parricídio como infâmi a inaceitável Mas suspeito que se tratasse de um limite pessoal de Lacan ou seja que ele Lacan não tinha condição de oferecer análise a um parricida Por quê Pois é se você conhecesse a raiva famélica com a qual os filhos espirituai s de Lacan se jogaram em cima de seu cadáver ainda antes de sua morte entenderi a facilmente não me eximo da crítica participei do festim Talvez nos últimos anos de sua vida Lacan já sentisse hálitos carniceiros perto de seu pescoço e com isso achasse os parricidas pouco simpáticos E eu Qual é meu limite Há só um que me pareç a evidente são aqueles sujeitos que conseguem se autorizar a cometer pequenos ou grandes horrores participando de aventuras coletivas que os absolvem de antemão N o fi m dos anos 70 em Paris por falar italiano recebi alguns pedidos de terapi a de brigadistas vermelhos que fugiam da Justiça italiana exilandose na França Todos viviam numa espécie de divisão Eram sujeitos atormentados por dúvidas dívidas e culpas em mi l aspectos de suas vidas privadas Mas seus atos militantes pertenciam por assim dizer a outro mundo no qual não cabi a nenhum questionamento subjetivo fora naturalmente a interrogação Sou ou não sou fui ou não fui um bom militante Por exemplo um jovem aflito por pensamentos obsessivos e impotência sexual não tinha nada para comentar sobre o fato de que numa manhã de inverno el e enfiara duas balas calibre 45 nos joelhos de um sindicalista da FIAT bem na hora em que saindo para o trabalho o homem se virava para dizer tchau à mulher e à filha Pernizar gambizzare atirar nas pernas como se dizia na época e deixar inválido um pai de família não era para esse jovem um ato do qual el e reconhecesse propriamente a autoria Pernizar era a expressão normal da máquina revolucionária da qual ele era uma engrenagem Poi s bem consegui oferecer tratamento a somente um desses brigadistas exilados E foi porque logo nas primeiras entrevistas ao expor o passado militante sua confortável sensação de ter sido apenas um instrumento do brigadismo não resistiu e ele descobriu com um certo horror que o dedo que puxara o gatilho tinha sido o seu Pode ser que meu limite neste caso decorra de uma antipatia atávica por todos os grupos que nos fornecem a ocasião de agir como instrumentos de uma causa adormecendo os espectros da consciência Afinal desse ponto de vista os jovens brigadistas não deviam ser muito diferentes dos fascistas que perseguiram meu pai Mas talvez meu limite coincida com o limite universal sobre o qual você me questiona Talvez um terapeuta ou um analista não tenham nunca o que propor a quem burocrata militante ou crente consegue agir e perpetrar pequenos ou grandes horrores sem que sua subjetividade esteja envolvida Você já ouviu não é Essas eram as ordens esta é a regra isso é o que manda nossa fé BILHETE 4 Você pergunta Será que não deveríamos acrescentar entre os traços de caráter esperados num terapeuta uma vontade de mexer com a vida dos outros de ensiná los influenciálos Admito sem dificuldade que no decorrer de uma terapia ou de uma análise há momentos em que o terapeuta ou analista é levado a apontar um caminho e mesmo a empurrar o paciente na direção que parec e mai s certa Nenhuma vergonha nisso Aliás a maior associação de psicoterapeutas dos Estados Unidos da qual sou membro chamas e American Counseling Association counselor significa conselheiro não no sentido honorífico simplesmente alguém que dá conselhos Será que o terapeuta ou analista não é também voc ê pergunta alguém que gosta de aconselhar com os privilégios ilusórios que es s a posição comporta sensação de relevância de sabedoria efetiva Quando era moleque detestava conselhos como a maioria de meus colegas Quem oferecia conselhos era chamado pela gente na Itália de cagasenno ou seja melhorando a chulice na tradução defecador de sapiência Ora o conselheiro cagasenno é aquel e que se prevalece de um saber externo à situação sua experiência pretensamente maior seu elevado senso moral ou uma reserva de banalidades que ele chama de sabedoria ancestral Em nome desse saber o cagasenno quer escolher pela gente Como se espera que aja o terapeuta ou analista na hora em que for preciso empurrar o paciente para frente A escolha da direção ou do caminho não deve ser decidida por uma norma nem mesmo por uma sabedoria Esperas e que o terapeuta ou analista empurre o paciente na direção de seu desejo Aliás é por isso que uma terapia leva tempo porque antes de empurrar é preciso que esse desejo consiga se manifestar um pouco Mesmo assim na hora de empurrar é difícil para o terapeuta respeitar a direção apontada pel o desej o do paciente ou seja é difícil não achar que o desej o do paciente se parece sempre olhe só que coincidência com o que a gente escolheria se estivesse na mesma encruzilhada Por isso é bom que o terapeuta ou analista não tenha uma grande paixão pedagógica Se ele for cagasenno de caráter empurrará na direção que lhe parece certa à vista de seus conceitos ou preconceitos Falando nisso um episódio recente foi particularmente tragicômico uma igrej a evangélica quis e tentou se constitui r como centro de formação psicanalítica Nota aparentemente apesar dos ataques que ela recebe a psicanál i se ainda deve ser uma denominação interessante Fora isso dá calafrios a ideia de terapeutas convencidos de que o Senhor e Bom Pastor sabe o caminho certo para cada ovelha e o comunicará a seus ministros de modo que eles possam encaminhar as ditas ovelhas pela via do bem Brrrrrrr Em suma muito mais do que a vontade de ensinar os outros e de mexer com suas vidas é importante como já lhe disse a aceitação carinhosa da variedade das vidas com todas as suas diferenças Sei como esse carinho se manifestava em mim quando era ainda criança Sobretudo aos sábados eu voltava para casa do cineclube de meu colégio no fim da tarde Em Milão já era noite Caminhava devagar olhando para cima gostava de ver as janelas iluminadas a cor das cortinas o brilho dos lustres a luz trêmula dos primeiros televisores branco e preto No verão chegavam aos meus ouvidos o tilintar das mesas que estavam sendo postas e das cozinhas alguns gritos chamados e mesmo pequenas brigas música e vozes do rádio Eu ficava nostálgico daquelas existências que imaginava ao mesmo tempo parecidas com a minha e diferentes Sentia pena por todas as vidas que eu não viveria e uma certa alegria porque pensava que de todas no fundo eu podia reconhecer ao menos o barulho e o cheiro que me eram estranhamente familiares Mais comum do que o gosto pelas janelas iluminadas a paixão pela literatura é geralmente sinal do mesmo carinho e da mesma aceitação diante da variedade das vidas Detalhe o amor pela literatura pode ser indiferentemente amor pelos autores de cordel ou pelos clássicos mas é sempre amor por muitos livros Como dizi a Santo Tomás apenas modificado Temo o psicoterapeuta de um livro só Abç 3 O PRIMEIRO PACIENTE Minha jovem colega Imagino que você seja recémformada o que não significa apenas recémsaída dos bancos de sua faculdade mas disso falaremos outra vez prestes a começar a atender seu primeiro paciente Você poderia perder coragem perguntandose mas quem me escolherá como terapeuta com tantos profissionais experientes e medalhões na praça Um kamikaze Pois é deixe que lhe conte a história de meu primeiro paciente Resolvi me tornar psicanalista em 1974 Antes daquela data eu ensinava teoria literária na Universidade de Genebra onde havia terminado minhas graduações Não tinha a menor ambição ou desejo de me tornar psicanalista Mas há anos passava quatro dias por semana em Pari s para me analisar Da psicanálise eu esperava que curas s e minhas assíduas angústias e uma gastrite crôni c a que desde a adolescência fazi a do Buscopan meu companheiro mais fiel As angústias se amenizaram e a gastrite sumiu Por isso mesmo a psicanálise começou a me interessar seriamente passei a freqüentar além do seminári o de Lacan a missa semanal parisiense cursos e grupos de estudo da École Freudienne de Paris que era a instituição à qual pertencia meu analista Mesmo assim seguia pensando que meu futuro seria pesquisar ensinar e escrever certamente não clinicar Em 74 então recebi uma proposta que me acuou Alguém tinha gostado de um livro que eu acabara de publicar e que era uma interpretação da grande mudança na pintura francesa de Courbet a Duchamps Esse alguém Yves Velan um escritor e um homem fora do comum que infelizmente perdi de vista ensinava numa universidade americana e propôs que me candidatasse a um posto que coincidi a com minhas qualificações As grandes decisões da minha vida sempre foram assim na hora em que os ingredientes chegam na boc a do funil Aceitar a proposta americana significaria impulsionar de vez uma carreira acadêmica que de fato eu já começara mas significaria também deixar Pari s minha análise e a École Freudienne Pois é decidi de repente que a vida acadêmica não era mais o que eu queria A psicanálise me interessava mais Na École Freudienne de Paris para que um membro começasse a atender não era prescrito nenhum exame ou entrevista específica Mas era preciso que quando se considerasse pronto para receber seu primeiro paciente ele anunciasse a decisão ao seu analista O dito analista não daria nenhuma autorização oral ou escrita que fosse era apenas esperado que ele se opusesse caso necessário O sistema parecia fácil demais sem currículo para ser preenchido e sem entrevistas de seleção Na realidade era assustador pois forçava cada um a encarar a responsabilidade de sua decisão sem um carimbo que o autorizasse A ideia do consenso tácito do analista fazia a festa de alguns e o drama de outros Os candidatos histéricos eram sempre convencidos de que seu analista mal tinha conseguido esconder o júbilo os candidatos obsessivos nunca paravam de perguntar se será que ficou calado porque acha que estou pronto porque não ouviu direito porque considera apenas que não serei uma calamidade porque acha que serei mas não quis me magoar ou porque não soube o que dizer O fato é que quando lhe comuniquei que começaria a atender pacientes Serge Leclaire meu analista não disse nada E lá fui eu Na época com o salário de professor assistente da Universidade de Genebra magro mas em francos suíços pagava minhas viagens trem de segunda classe minha análise e o aluguel de um apartamento de quarto e sala em que morava em Paris Em Genebra me hospedava em casa de amigos A transformação de meu quarto e sala do 32 rue St Paul deu nisto a sala se tornou sala de espera e o pequeno quarto se tornou consultório À noite a sala de espera se transformava em quarto graças a um sofácama Comprei minha poltrona numa liquidação da Samaritaine a poltroninha para os pacientes achei no mercado das pulgas a bas e do divã confesso que achei na rua um amigo me deu um colchão que lhe sobrava e uma amiga costurou uma colcha de retalhos que dava ao conjunto um aspecto tipo Freud dos pobres A mesa que ainda carrego comigo encontrei na demolição de um bar perto de casa Estava pronto só faltavam os pacientes Meu primeiro paciente foi indicado por uma amiga Nicoil e SeIs que era analista e bibliotecária da École Freudienne e que confiava em mim como futuro analista pel a razão seguinte ela sabia que por mai s que a psicanálise me tivesse conquistado eu continuava apaixonado por muitas outras coisas que me seduziam tanto quanto e sobre as quais conversávamos assiduamente repetindo capucinos num bar da rue GayLussac Falávamos com o mesmo prazer dos romances de Barbara Cartland ou do último prêmio Goncourt das personagens mais excêntricas do século XVII que era meu século preferido da história da psiquiatria de crimes verídicos romances policiais e por aí vai O critério que aparentemente valeu para que ela me encaminhasse um paciente val e hoje para mim na hora de encaminhar um paciente prefiro os analistas cuja curiosidade para com o mundo a vida e a cultura se estenda além das quatro paredes do consultório Quando chegou o dia da primeira entrevista do primeiro paciente eu tinha uma preocupação dupla queri a que o apartamento tivesse cara de consultório mas também queri a que não tivesse cara de consultóri o no di a de sua inauguração Afinal eu pensava qual paciente gostaria de descobrir que o analista em que ele vem depositar uma esperança de cura é um novato absoluto Cuidei dos detalhes uma certa desordem de papéis e notas na mesa uma pequena desarrumação do acolchoado do divã para mostrar que alguém já deitara ali três ou quatro baganas no cinzeiro na época não só eu mas a França inteira fumava para mostrar que naquela tarde já me debruçara sobre outros destinos cabeludos Esse primeiro paciente se analisou comigo durante sete anos Era um jovem psiquiatra que se tornou analista por sua vez Alguns anos depois de ele terminar sua análise quando eujá era um analista reconhecido e estabelecido nos encontramos por acaso num congresso e conversamos um pouco De repente el e me perguntou Eu fui seu primeiro paciente não fui Hoje responderia imediatamente a verdade Na época eu ainda me preocupava em defender a aura de mistério atrás da qual os terapeutas gostam de se esconder sob pretexto de que o paciente precisa idealizar seu terapeuta Portanto fiquei perplexo e calado com aquela cara de Há que os analistas usam para fazer pensar que primeiro eles já estariam vendo a razão verdadeira da pergunta que está sendo feita e que segundo essa razão desconhecida por quem pergunta é infinitamente mais interessante do que a resposta que eles deveriam dar Mas meu expaciente aparentemente sua análise tinha funcionado não deixou para menos e continuou Acho mesmo que fui seu primeiro paciente não sei se você sabe mas é o que eu tinha pedido para Nicolle que me deu seu endereço na época Quero um analista eu lhe havia dito de quem serei o primeiro paciente E acho que ela respeitou meu pedido Queria ser o primeiro paciente porque pensava que como meus problemas eram meio banais só um analista debutante me escutaria com toda sua atenção Gostaria de poder dizer que ele estava enganado que durante todos estes anos escutei meus pacientes com a mesma paixão vontade de entender e de dizer a coisa certa que eu sentia no começo daquela primeira análise E é verdade que até agora consigo quase sempre me surpreender com cada história Afinal se um terapeuta não enxergasse mais a intensidade e a originalidade do drama e da tragédia por trás da eventual banalidade de cada vida que lhe é contada ele estaria precisando de reciclagem urgente Mas admito o seguinte lembrome do primeiro sonho daquele paciente em cada detalhe não posso dizer a mesma coisa de todos os primeiros sonhos dos pacientes que seguiram Claro nada garante que a voracidade da escuta e uma atenção exacerbada sejam as melhores conselheiras para um terapeuta Além disso dificilmente o desejo de ser o primeiro paciente de seu analista é apenas um jeito de garantir uma escuta especial e atenta Meu paciente escondia de seus pais algumas escolhas de vida que se fossem conhecidas lhe valeriam um repúdio No mínimo era o que ele imaginava Não estranha que el e quisesse ser de uma certa forma o legítimo primogênito de alguém para quem ele poderia contar tudo A escolha de um terapeuta é sempre guiada por razões um pouco mais complexas e reveladoras do que o próprio paciente imagina Essa história deixa alguns ensinamentos 1 Nem sempre é verdade que os pacientes preferem terapeutas experientes 2 Como os caminhos pelos quai s um paciente coloca sua confiança num terapeuta são muitos se não são inúmeros o mais simples talvez sej a que nos contentemos em ser nós mesmos não é preciso desarrumar colchas e deixar baganas nos cinzeiros 3 A experiência certamente ajuda na conduta das curas mas de qualquer forma seria bom que guardássemos sempre alguns elementos do espírito do debutante a curiosidade a vontade de escutar e por que não o calor de quem a cada vez acha extraordinário que alguém lhe faça confiança Abç 4 AMORES TERAPÊUTICOS Caro amigo Você me perguntou O que faço se me apaixono por uma paciente E lhe respondi laconicamente Será que é uma questão urgente Você replicou Desde o começ o de minha formação pratico só de vez em quando não se preocupe um devaneio em que curo milagrosamente uma moça emudecida por sua loucura e lógico nos amamos para sempre Depois disso decidi levar sua pergunta a sério Talvez você se lembre de que na minha primeira carta falei um pouc o da admiração do respeito e em geral dos sentimentos que destinamos às pessoas a quem pedimos algum tipo de cura para nossos males Comentei que era bom que fosse assim pois esses afetos facilitam o trabalho do terapeuta E acrescentei que isso é especialmente verdadeiro no caso da psicoterapia com a exceção de que neste caso esperas e que o encantamento se resolva acabe um dia Sem isso a psicoterapia condenaria o paciente a uma eterna dependência afetiva Repare que às vezes sentimentos negativos como o ódio permitem e facilitam o trabalho psicoterápico tanto quanto o amor Mas é certo que o amor é a forma mais comum dos sentimentos cuja presença assegura o começo de uma psicoterapia Ou seja é muito frequente que umuma paciente se apaixone por seu terapeuta A psicanálise deu a essa paixão um nome específico amor de transferência O termo sugere que o afeto por mais que seja genuíno sincero e às vezes brutal teria sido transferido transplantado Ele se endereçaria ao terapeuta por procuração enquanto seu verdadeiro alvo estaria alhures na vida ou na lembrança do paciente Você já deve ter ouvido mil vezes o amor de transferência grande ou pequeno é a mola da cura Primeiro ele possibilita que a cura continue apesar dos trancos e dos barrancos Segundo ele permite ao paciente viver ou reviver na relação com o terapeuta a gama de afetos e paixões que são ou foram também dominantes em sua vida essa nova vivência aliás é a ocasião de modificar os rumos e o desfecho dos padrões afetivos que geralmente assolam uma vida repetindose até o enjôo Terceiro ele pode às vezes ser o argumento de uma chantagem benéfica o paciente pode largar seu sofrimento por amor ao terapeuta para lhe oferecer um sucesso para ganhar seu sorriso para fazêlo feliz Esse terceiro caso apresenta alguns inconvenientes óbvios o paciente que melhorar por amor a seu terapeuta nunc a se afastará dele pois parar de amar seria para ele largara razão pela qual se curou ou seja voltar a sofrer como antes ou mais ainda Você deve também ter ouvido mil vezes que umuma terapeuta não pode e não deve aproveitarse do amor do paciente ou da paciente Você pode ter carinho e simpatia por seusua paciente mas transformar a relação terapêutica em relação amorosa e sexual é mais do que desaconselhado Por quê Nota para simplificar no que segue falarei do terapeuta no masculino e da paciente no feminino Mas o mesmo vale sej a qual for o sexo do terapeuta e sej a qual for o sexo do paciente incluindo os casos em que esse sexo é o mesmo Um argumento que é usado tradicionalmente para justificar essa interdição é o seguinte o afeto que uma paciente pode sentir por seu terapeuta é fruto de uma espécie de quiproquó O terapeuta não é quem a paciente imagina A situação leva a paciente a supor que seu terapeuta detenha o segredo ou algum segredo de sua vida e que graças a esse saber ele poderá entendêla transformála e fazêl a feliz Ou seja a paciente idealiza o terapeuta e quem idealiza acaba se apaixonando Conclusão o apaixonamento da paciente é um equívoco E não é bom construir uma relação amorosa e sexual sobre um equívoco Se paciente e terapeuta se juntarem a coisa mais cedo ou mais tarde produzirá no mínimo uma decepção e frequentemente uma catástrofe emocional pois a decepção virá de um lugar que pode ter sido idealizado além da conta Esse argumento na verdade vale pouco Explico por quê a paixão de transferência é de fato igual a qualquer outra paixão Em outras palavras os amores da vida são fundados num qüiproquó tanto quanto os amores terapêuticos Quando nos apaixonamos por alguém a coisa funciona assim nós lhe atribuímos qualidades dons e aptidões que ele ou ela eventualmente não têm em suma idealizamos nosso objeto de amor E não é por generosidade é porque queremos e esperamos ser amados por alguém cujo amor por nós valeria como lisonja Ou seja idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amávei s aos olhos de nossos próprios ideais Então se o amor de transferência não é muito diferente de qualquer amor será que está liberado Pois é não está liberado há outros argumentos contra e são de peso eles não se situam do lado do paciente cujo amor é bem parecido com um amor verdadeiro estão do lado do terapeuta Por que um terapeuta toparia a proposta amorosa de uma paciente Por que ele se declararia disponível e proporia um amor quase irrecusável a uma paciente já seduzida pela situação terapêutica Há três possibilidades 1 A primeira é perfeitamente explicada no autodefé do expresidente Clinton quando em suas memórias recentemente publicadas ele narra e tenta entender seu famoso envolvimento com uma estagiári a da Cas a Branca Moni c a Lewinski Com notável honestidade e capacidade analítica Clinton não justifica seus atos pelo transporte da paixão mas declara que el e se deixou seduzi r ou tanto faz que ele seduziu Lewinski simplesmente porque podia Ele acrescenta admiravelmente que de todas as razões possíveis essa é a pior a mais condenável Transar porque pode não significa só transar porque é fácil porque o outro é acessível Significa transar pelo prazer de poder É como se a gente gostasse de bater em enfermo porque isso dá a sensação de ser forte O consultório do terapeuta tomado por essa fantasia se transforma num templo ou num quarto de motel em que as pacientes são chamadas a participar de ritos que celebram a potência do senhor Esse abuso dos corpos produz estragos dolorosos porque ele se vale de uma oferta generosa de amor Posto que você me ama ajoelhese É uma situação próxima à do abuso de uma criança quando os adultos que ela ama e em quem confia se revelam sedentos de demonstrar sua autoridade pelas vias de fato na cama ou a tapas Invariavelmente o terapeuta deslumbrado pela descoberta de que ele pode agir do mesmo modo com as pacientes com quem el e transa e com aquelas com quem el e não transa A fantas i a de abuso invade todo seu trabalho terapêutico ou seja el e não analisa nem aconselha ele dirige e manda pois ele goza de e com seu poder 2 Mas há terapeutas você me dirá que se apaixonam mesmo por uma paciente e até casam Concordo Aliás essa é a segunda possibilidade O curioso é que em regra os analistas que se apaixonam pelas pacientes que os amam são recidivistas Eles se casam com várias pacientes uma atrás da outra Um psicanalista famoso de tanto casar com pacientes ganhou o apelido Divã o Terrível Conheço as desculpas a gente trabalha duro e não tem tempo para sair na noite onde a gente encontraria uma companheira Afinal não é banal que as pessoas encontrem suas metades no ambiente de trabalho Além disso o terapeuta se apaixona por alguém que ele conhece ou imagina conhecer muito bem essa não é uma garanti a da qualidade de seus sentimentos Pode ser Mas resta uma dúvida que se torna quase certeza à vista da repetição Esses psicoterapeutas ou psicanalistas que se juntam com verdadeiras séries de pacientes devem ser tão cativos da situação terapêutica quanto suas pacientes Explico A paciente se apaixona porque tudo a leva a idealizar seu terapeuta O terapeuta deveria saber que é útil que seja assim mas também deveria saber que de fato sua modesta pessoa não é o remédio milagroso e definitivo que curará os males de sua paciente Ora é provavelmente disto que ele se esquece O terapeuta seduzido pela idealização de sua pessoa como o corvo da fábula acredita no que diz o amor de sua paciente ou seja acredita ser a panacei a que tornará sua paciente feliz para sempre Generoso Ingênuo Nada disso apenas vítima por exemplo de uma obstinada esperança de voltar a ser o nené que por um mítico instante no passado teria feito sua mãe absurdamente feliz A série continua porque a decepção é garantida O terapeuta como homem e companheiro não é uma panaceia ninguém é A paciente com quem ele se casou uma vez feita essa descoberta trivial manifestará sua insatisfação e com isso fará a infelicidade do nené caprichoso com quem casou Pronto acaba o casamento Entretanto como disse a esperança do terapeuta é obstinada não é fácil desistir do projeto de ser aquela coisa que traz ao outro uma satisfação absoluta Por que não tentar outra vez Os terapeutas recebem regularmente em seus consultórios os cacos desses doi s tipos de desastres o das abusadas e o das casadas e abandonadas por não se terem mostrado perfeitamente satisfeitas São cacos difícei s de serem recolados A decepção amoros a da paciente é violenta afinal ela foi enganada por um objeto de amor ao qual atribuía poderes e saberes quase mágicos O pior desserviço desses desastres é que de fato eles impedem que as vítimas encontrem a ajuda da qual precisam Frequentemente ao tentar uma nov a terapia elas não param de esperar que se engate uma nova relação erótica pois lhes foi ensinado por assim dizer que a cura virá de um amor correspondido com seu terapeuta Outra eventualidade é que elas nunc a mais consigam estabelecer a confianç a necessári a para que um novo tratamento se torne possível 3 Existe uma terceira possibilidade para os amores terapêuticos É possível que se apaixone porsua paciente um terapeuta que não queira apenas gozar de seu poder e que não seja aflito pela síndrome de fazer a mamma feliz E é possível que uma paciente se apaixone por seu terapeuta sem acreditar que ele seja o remédio a todos os seus males Afinal não é impensável que dois sujeitos que tenham algumas boas razões de gostarem um do outro se encontrem num consultório Todos sabemos que um verdadeiro encontro é muito raro e é compreensível que um terapeuta não faça prova da abnegação profissional necessária para deixar passar a ocasião Mas convenhamos se esse tipo de encontro é tão raro é difícil acreditar que possa repetirse em série Como diz o provérbio errar é humano perseverar é diabólico Ou seja pode acontecer uma vez numa vida A parti r de duas a série é suficiente para provar que o terapeuta está precisando de terapia Abç BILHETE 1 Caro amigo recebi sua notinha um pouco irônica Sua observação é correta Embora eu tenha especificado que os amores terapêuticos acontecem tanto com terapeutas homens como com terapeutas mulheres é verdade que em minha carta para simplificar foi o que eu disse usei o masculino para o terapeuta e o feminino para a paciente Não foi por acaso você tem razão Provavelmente esses desastres acontecem mai s entre terapeutas homens e pacientes mulheres do que entre terapeutas mulheres e pacientes homens Mas não é como você sugere porque os homens são sempre mais assanhados A razão é outra muitos homens diferentemente das mulheres acreditam terem sido ao nascer a única e inigualável razão da satisfação de suas mães É isso que explica que os terapeutas sejam mais propensos a se oferecer a suas pacientes como panaceias amorosas BILHETE 2 Agora você quer que eu lhe diga caso se apaixone por uma paciente como você saberá se a coisa se enquadra no caso dois ou no caso três Ou seja como saberá se está se rendendo à raridade de um encontro amoroso excepcional ou se é apenas o começo de uma séri e que demonstraria que na verdade você se enganou um pouco de profissão Poi s é salvo esperar para ver se a coisa se repete o único que poderi a dizer seria seu analista É por isso aliás que é sempre bom que um terapeuta de vez em quando volte a ser paciente Enfim na dúvida abstenhase 5 FORMAÇÃO A Minha jovem amiga Você tem razão falei em minha primeira carta dos traços de caráter que gostari a de encontrar num terapeuta mas não disse nada dos caminhos pelos quais ele deveria formarse Por exemplo voc ê me pergunta que faculdade voc ê recomendaria cursar Medicina e psiquiatria ou psicologia clínica Na verdade tanto faz porque nem o psiquiatra nem o psicólogo clínico se formam para serem psicoterapeutas Se voc ê quer ser psicoterapeuta o essencial de sua formação acontecerá depois da faculdade ou quem sabe durante seus estudos De qualquer forma se dará fora da academia E há por isso uma razão intransponível uma peça chave da formação de um psicoterapeuta é o tratamento ao qual ele mesmo se submete E essa cura não pode ser uma demonstração pedagógica abstrata não pode ser limitada a um fazer de conta durante o qual se transmitiria uma técnica Ao contrário esperase que nesta experiência o futuro terapeuta se depare com a complexidade de suas motivações sintomas e fantasias conscientes e inconscientes Pois para o terapeuta não há melhor introdução à variedade do sofrimento humano do que a descoberta de que em algum canto de seus pensamentos el e pode encontrar palavras lembranças razões visões e pensamentos parecidos com aqueles que afetam agitam ou mesmo enlouquecem seus pacientes É óbvio que essa experiência por si só não forma um terapeuta Desde o fim do século XIX vem se constituindo uma imensa biblioteca de depoimentos pesquisas e construções teóricas sobre o sofrimento psíquico as motivações humanas e os caminhos terapêuticos possíveis Esperase que um terapeuta conheça o essencial da tortuosa história dessas ideias não por gosto erudito mas porque essa história apresenta as respostas que nós humanos e modernos construímos para entender quem somos Ela é em suma uma vasta patologi a das racionalizações que somos capazes de inventar para explicar nosso malestar Esperase também que nesse emaranhado o terapeuta escolha um fio e o percorra detalhadamente lendo e estudando Muito bem você dirá entendo facilmente que a própria análise ou terapia de quem está se formando não possa fazer parte de um curs o universitário Como seri a avaliada com que notas E quem garantiria a absoluta confidencialidade das coisas ditas Qual seria a qualidade da relação terapêutica se ela for ao mesmo tempo uma espécie de exame Mas e o estudo dos textos por que não seria responsabilidade de um curso universitário D e fato existem hoj e mestrados em psicologia clínica e em psicanálise nos quai s esse estudo é proposto e acontece No entanto a diversidade das orientações psicoterápicas pediria uma multiplicação de pós graduações s ó em psicanálise seriam necessários cinc o ou seis cursos diferentes Além disso de qualquer forma o estudo universitári o não é exatamente equivalente ao estudo proporcionado pelos institutos de formação A compreensão dos textos não é a mesma Há uma diferença relevante entre ler como estudante que deve dar conta do que aprendeu e ler como terapeuta em formação que interpreta os textos a partir da experiência singular de sua própria terapia ou análise Por essas razões no mundo inteiro a formação do psicoterapeuta é proposta por instituições privadas que inventam cada uma de seu jeito formas de ensino e de aprovação e reprovação compatíveis com este estranho currículo no centro do qual está a coragem do candidato que se questiona radicalmente em sua terapia ou análise Anos atrás o governo italiano foi pressionado pela classe médica a regulamentar a profissão de psicoterapeuta A ideia dos médicos e psiquiatras que pediam essa legislação era definir oficialmente a psicoterapia como ato médico podendo ser praticado legitimamente só por doutores em medicina Com isso os psicólogos e demai s terapeutas nãomédicos estariam sob tutela ou seja pagariam para os médicos supervisões obrigatórias O governo achou a proposta boa examinou a questão e chegou à seguinte conclusão nem médicos psiquiatras nem psicólogos recebem uma formação acadêmica que possa ser considerada suficiente para exercer a psicoterapia sem constituir perigo para a saúde mental do cidadão A dita formação é administrada por instituições privadas de várias orientações Portanto foi constituído um conselho das instituições estabelecidas e reconhecidas e esse conselho decide quem é habilitado ao exercício da psicoterapia O governo italiano agiu de maneira certa Contudo minha preferência é para a situação que vige hoje no Brasil e na maiori a dos países em que a práti c a da psicoterapi a não é regulamentada Claro para quem procura um psicoterapeuta seria simpático que um carimbo oficial garantisse que o terapeuta foi formado por uma instituição reconhecida O problema é que isso implicaria que cada terapeuta se formasse inteiramente numa única instituição da qual seria membro carimbado Sumiriam na ilegalidade portanto os numerosos terapeutas e analistas digamos assim independentes sem carteirinha de um partido só Formações unívocas ligadas à doutrina de uma instituição só ganhariam em rigor mas perderiam em complexidade em liberdade A perda a meu ver seria maior do que o ganho Alguém me lembrará que vários institutos e formação psicanalítica não são doutrinários ao contrário eles cultivam a pluralidade Concordo e são os institutos que prefiro Mas a liberdade da qual fal o vai além disso Por exemplo acho que um pouc o de formação em terapi a cognitiva ou sistêmica seri a úti l para um psicoterapeuta motivacional A grande maioria de meus colegas psicanalistas achará que essa afirmação é um disparate Alguns se eu foss e membro de sua instituição levariam o cas o ao comitê central para que tomasse providências Parênteses não é disparate nenhum de fato como aquel a personagem de Molière que falava em prosa e não sabia até um psicanalista purista age como terapeuta cognitivo várias vezes por dia só que não sabe Mas voltemos ao essencial desta carta Imagino que nesta altura voc ê observe se a formação acontece depoi s da faculdade em instituições privadas por que deveríamos escolher ou privilegiar a formação acadêmica em psiquiatria ou psicologia Se eu quiser me tornar psicoterapeuta e estiver ainda na hora do vestibular por que não escolheria qualquer faculdade que quem sabe me interesse mais Sei lá filosofia direito história ou matemática De fato quase todas as instituições privadas que formam psicoterapeutas aceitam candidatos que não são nem psicólogos nem psiquiatras Mas meu conselho é o seguinte se você decidir se tornar psicoterapeuta já no meio de sua vida e sua formação acadêmic a for diferente de psiquiatria e psicologia não volte ao vestibular e aos bancos da universidade simplesmente comece sua formação na instituição de sua escolha Não ser psiquiatra nem psicólogo não constitui um impedimento decisivo Mas se você estiver decidindo se tornar psicoterapeuta na hora de escolher sua faculdade escolha sem hesitar ou psicologia ou medicina e psiquiatria Pois seria errado pensar que na formação de um psicoterapeuta os currículos acadêmicos de psiquiatria e psicologia não adiantariam nada Certo só uma parte pequena do que você aprende na faculdade lhe será de alguma ajuda no seu trabalho futuro Certo sua formação efetiva começará provavelmente depois da faculdade Mas mesmo assim há algumas boas razões para não desprezar os estudos de psicologia ou de psiquiatria As que são invocadas mais frequentemente são também as menos importantes Concernem a experiências e saberes que poderão fazer falta na sua formação de psicoterapeuta mas que ambos experiências e saberes poderão ser encontrados de outro jeito Por exemplo é indispensável que um psicoterapeuta tenha instrumentos diagnósticos para não confundir se possível uma amnésia histérica com o começo de uma arteriosclerose ou de um Alzheimer e para se lembrar que uma depressão pode ser o efeito de uma insuficiência de hormôni o da tireóide Na suspeita é bom encaminhar o paciente para um checkup neurológico vascular e endocrinológico É também indispensável que um psicoterapeuta tenha um conhecimento dos princípios ativos dos remédios psicotrópicos mais comuns pois embora ele não prescreva lidará em muitas ocasiões com pacientes que precisam de medicação ou já estão sendo medicados É importante poder colaborar com o psiquiatra que prescreverá assim como é importante distinguir o efeito medicamentoso das mudanças que nada têm a ver com esse efeito É úti l que um psicoterapeuta conheça os princípios diagnósticos do Manual Estatístico Diagnóstico adotado pela Organização Mundial da Saúde Num mundo em que se viaja muito não é raro que a gente receba pacientes que carregam consigo diagnósticos dos quais é bom entender como foram estabelecidos e o que eles significam E não é raro que a gente deva encaminhar um paciente para um psiquiatra desconhecido num país onde não há terapeutas da mesma orientação que a nossa Você não acha Pois é se um dia um paciente seu apresentar um surto agitado num hotel de Cingapura tente explicar por telefone a um residente em psiquiatria local que seu paciente não é psicótico Logo constatará que o DSM pode ser de grande ajuda Também é necessário a meu ver que um psicoterapeuta passe por uma experiência efetiva e consistente com pacientes psicóticos e se possível com toxicômanos Os estágios clínicos universitários respondem a essa necessidade Agora esses saberes e essas experiências podem ser adquiridos sem passar pelas faculdades de psicologia ou de medicina e psiquiatria Meu caso é uma boa ilustração Minha graduação em Genebra foi entre filosofia e epistemologia teoria do conhecimento Isso me tornou psicólogo o suficiente para poder mai s tarde completar um doutorado em psicopatologia clínica Mas de fato em minha graduação em Genebra quando Piaget ainda ensinava só me interessei em entender como se constituem no desenvolvimento humano as operações mentai s graças às quais conseguimos pensar O que aprendi seri a de grande ajuda se hoje eu fosse psicólogo escolar saberi a diagnosticar anomalias e atrasos cognitivos Mas na faculdade meu treinamento clínic o foi nulo Ou seja quando decidi me consagrar à clínica não tinha passado por nenhum estágio não conhecia o DSM nem os princípios ativos dos remédios psicotrópicos etc Em suma não preenchia nenhum dos requisitos que mencionei antes e que constituem o pano de fundo garantido pelo ensino de psiquiatria ou de psicologia clínica O que eu fiz Organizei um grupo com alguns amigos e pedimos a um psiquiatra de boa formação em biopsiquiatria que ele nos desse aula durante um ano Inicialmente esnobei o DSM pois essa era a moda em Paris mas recuperei o tempo perdido mais tarde e voltei ao DSM ainda muito recentemente quando praticando nos Estados Unidos tive de preencher sistematicamente formulários diagnósticos para o seguro saúde de meus pacientes Muito cedo em minha formação tive a sorte de ser admitido para frequentar as apresentações de pacientes psicóticos que Jacques Lacan oferecia semanalmente no hospital Sainte Anne E inventei minha própri a residência me apressei a conseguir trabalho no Instituto Médico Educativo que mencionei em minha primeira carta Lá aprendi por exemplo que autismo e psicos e não são bem a mesma coisa e também que abuso abandono e desamparo social sobretudo para uma criança ou um adolescente podem se confundir com a deterioração e o sofrimento psíquicos mais profundos Em suma batalhei um pouco mas não foi impossível compensar uma formação acadêmica nãoclínica Ora há uma outra razão que torna o currículo de psicologia clínica ou de psiquiatria interessante para um psicoterapeuta É esta razão que me parece hoje a mais importante quem não passa pelo ensino clínico universitário em geral formase só e exclusivamente na orientação específica da instituição que escolheu Por exemplo minha formação foi na École Freudienne de Paris a escola fundada e dirigida por Jacques Lacan Por graça divina e vontade de Lacan sem dúvida era considerado crucial ler a obra de Freud até cansar Salvo as devidas exceções e as curiosidades pessoais de alguns o clima geral sugeria que para a psicanálise anglosaxã por exemplo era suficiente conhecer chavões críticos e palavras de ordem irônicas Depois da morte de Lacan a coisa piorou Cada vez mais lacaniano só lê Lacan Você pergunta qual é o problema À primeira vista poderíamos pensar que é melhor assim afinal o terapeuta aprende mais da orientação que sustentará sua prática ou seja aprende mais do que importa não é Pode ser Acontece que de fato medindo cuidadosamente as palavras uma formação policiada para ficar circunscrita a uma prática só e ao ensino que lhe corresponde está levando gerações de terapeutas e analistas a valorizar não o compromisso com os pacientes mas a reprodução e a preservação da doutrina na qual se formaram A orientação terapêutica na qual você se formou ou está se formando minha jovem amiga não é uma ideologia nem uma fé na qual seria preciso que voc ê acreditasse nem uma espécie de dívida que você contraiu com seus mestres e que a forçaria a se fazer seu repetidor e arauto fiel Nisso uma formação acadêmica de psicólogo ou psiquiatra pode ser de grande auxílio Apesar da multiplicação de departamentos vigiados por obediências teóricas a variedade do ensino universitário ajuda a levar a sério a frase famosa de Aristóteles apenas modificada Platão é meu amigo mas meus pacientes são mais amigos ainda Abç 6 CURAR OU NÃO CURAR Cara amiga Você vai ter dificuldade em acreditar mas é assim um bom número de meus colegas psicanalistas achará estranho que nestas cartas eu fal e de psicoterapia e de psicanálise como se fossem parentes próximos Aliás eles julgarão curioso que um psicanalista escreva Cartas a um jovem terapeuta Em princípio eles certamente reconhecem que a psicanálise é a matriz mais importante de qualquer terapia que opere com as motivações conscientes e inconscientes de quem sofre Mas não aceitam de jeito nenhum que a psicanálise seja uma psicoterapia recusam a ideia de que o psicanalista se proponha a curar de uma maneira ou de outra o sofrimento de seus pacientes N a origem dessa recusa que é à primeira vista um pouco surpreendente há algumas reservas bem justificadas quanto aos efeitos da vontade e da pressa de curar Essas reservas são úteis para o psicoterapeuta Freud por exemplo recomendava que os psicanalistas não tivessem pressa de curar Por quê Em muitos casos o paciente nos consulta por um problema bem definido um medo específico uma ejaculação precoce um pensamento obsessivo ou mesmo uma encruzilhada da vida em que lhe é difícil tomar uma decisão Às vezes aliás ele já pensou bastante no assunto e nos dá sua própria explicação para o que lhe acontece Se o terapeuta estiver com pressa de agir acreditará que a queixa apresentada com a explicação que a acompanha diz mesmo o essencial do que atormenta o paciente E tentará imediatamente combater o sintoma ou ajudar na solução do dilema Neste caso quase sempre o sintoma e o dilema apenas se deslocarão migrarão alhures pois o sofrimento psíquico é como a massinha de modelar de nossa infância você não a quer num determinado quartinho da casa de boneca empurra com força consegue deslocála mas ela não sumiu apenas se insinuou pelas frestas e reaparece no quarto ao lado Um exemplo Nos últimos anos atendi pacientes brasileiros que viviam em Nova York Muitos vinham me ver com um problema só queriam decidi r se voltariam para cas a ou ficariam nos Estados Unidos Chegavam com verdadeiras listas de argumentos contrapostos que acabavam num empate que os imobilizava Também estavam com pressa renovo o visto ou não renovo E o contrato de aluguel que acaba daqui a seis meses Era grande a tentação de tomálos ao pé da letra e ajudálos a decidir pesando de novo os argumentos acrescentando outros que quem sabe eles não tivessem contemplado e sobretudo jogando na balança o peso de um conselho que justo ou errado teria a vantagem de tirálos de uma hesitação excruciante Claro escutava com calma a exposição dos dilemas e de suas razões mas me guardava da pressa À força de perguntas encorajavaos a voltar no tempo Não era fácil pois a reação imediata era de impaciência Tudo bem vou falar daquela viagem ao Canadá quando era criança tudo isso é bem bonito e interessante mas eu devo decidir agora você entende Ora quase sem exceções o dilema do momento por mais imperativo e efetivo que fosse era o herdeiro de conflitos mais antigos que quase sempre tinham sido ilusoriamente resolvidos pela própria saída do Brasil Era a necessidade de realizar um desejo fracassado dos pais impressionante quantas crianças nascidas ou concebidas durante o doutorado do pai ou da mãe nos Estados Unidos se perguntam um dia por que diabo acabaram emigrando Era a necessidade de repetir o gesto mítico do ancestral que foi embora de algum país europeu para o Brasil maneira de reivindicar para si a suprema autoridade simbólica da família mas a que preço Eram as mil faces do eterno conflito de qualquer adolescente tardio dividido entre o desejo paterno de que ele dê prova de sua autonomia e o desejo também paterno de que ele fique perto de casa no abraç o quente dos seus Havi a filhas que precisavam demonstrar coragem e autonomias muito machas para competir com os irmãos caçulas que sonhavam em ser o filho pródigo da parábola filhos mais velhos que só se sentiriam legítimos se conquistassem sua primogenitura na marra Havia sujeitos só capazes de amar e ser amados à distância E por aí vai O fato é que a pressa de curar e decidir teria sido péssima conselheira Meus pacientes de volta ao Brasil ou estabelecidos de vez em Nova York tanto faz teriam certamente encarado algum dia uma nova forma do mesmo dilema não resolvido tão angustiante quanto O preceito de não se apressar é quase equivalente à recomendação médica segundo a qual nem sempre é bom suprimir os sintomas antes que a doença se declare Não há nada nessa desconfiança da pressa que sej a um privilégio da psicanálise e ainda menos que livre a psicanálise da tarefa de curar claro sem que a pressa atropele a cura Um outro argumento para desconfiar da ideia de que a psicanálise seria uma forma de terapia é o seguinte as definições tradicionais do que é curar dizem que curar significa restabelecer a normalidade funcional ou então levar o sujeito de volta a seu estado anterior à doença Nesta altura voc ê já sabe que a psicanálise e a mesma coi s a val e para qualquer psicoterapia não tem nem quer ter uma noção preestabelecida de normalidade Ou melhor nosso ideal de normalidade é o estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades ou seja o estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível nos limites impostos por sua história e sua constituição Se a normalidade for definida assim ela pode perfeitamente ser o alvo de nossas curas Quanto à ideia de que curar seria levar de volta um sujeito ao estado anterior à doença é óbvio que uma psicoterapia não funciona nunca como a extirpação cirúrgica de um cisto ou como a exterminação de uma bactéria atos que devolveriam o corpo a seu estado anterior Uma psicoterapia é uma experiência que transforma podese sair dela sem o sofrimento do qual a gente se queixava inicialmente mas ao custo de uma mudança Na saída não somos os mesmos sem dor somos outros diferentes Em suma os argumentos apresentados até aqui nos encorajam a redefinir o que é a cura que pode ser esperada de uma psicoterapia e sugerem que justamente para curar direito o psicoterapeuta não deve se apressar Nada nesses argumentos explicari a um divórcio necessário entre psicanálise e psicoterapia De onde vem então o estranhamento de meus colegas Por que a psicanálise não seria uma terapia Por que a ideia de curar o sofrimento psíquico se tornou objeto do escárnio de muitos psicanalistas Há primeiro uma razão histórica A coisa começou no fim dos anos 60 época triunfante da contracultura americana e do espírito do maio francês em que a crítica e a revolta eram o único sinal verdadeiramente aceitável de saúde mental Naqueles anos nasceu o movimento antipsiquiátrico Era o projeto de esvaziar os asilos onde apodreciam legiões de pacientes de quem se esperava apenas que se tornassem crônicos e permanecessem presos para não atrapalhar a vida dos outros Era também a ideia de que os loucos uma vez liberados poderiam se tornar uma força revolucionária que transformaria a vida de todos Melhor ao se tornarem revolucionários eles de uma certa forma estariam curados o engajamento político seria sua terapia final Em 69 se me lembro direito eu estava na plateia e um pouco na organização pois servia de tradutor do primeiro congresso Psicanálise e Política em Milão Perdido entre as estrelas Deleuze Guattari Giovanni Jervi s da equipe de Basaglia etc um honesto psicanalista milanês Enzo Morpurgo apresentou o caso de uma paciente Não me lembro dos detalhes do caso mas lembro da discussão o público quase linchou o conferencista porque o tratamento que el e apresentava havia melhorado a condição de sua paciente A palavra adaptação voava no ar como o último xingamento Curar significava permitir que um paciente estivesse melhor portanto que ele perdesse seu potencial de revolta ficasse mais resignado e complacente com a realidade política e social do momento Quem curava traía a causa do proletariado e da revolução Quem curava levava seu paciente a esquecerse de que ninguém deve salvarse sozinho O pobre analista milanês enfim para protegerse dos tomates verbais que choviam no palco acrescentou um epílogo verdadeiro ou improvisado nunca saberemos à exposição do caso Declarou Mas aconteceu algo que devemos considerar Quando a paciente veio me ver ela era membro do Partido Comunista Italiano que era na época considerado desprezivelmente rosaclaro reformista e traidor Quando a análise terminou continuou o analista el a deixou o partido e entrou no Manifesto O Manifesto era uma dissidência crítica e revolucionária do partido só para entender é como se um psicoterapeuta dissesse no Brasil de hoje que seu paciente saiu do PT e foi fundar um partido com Babá e Luciana Genro Hoje esse episódi o parece cômico e estranhamente distante As coisas mudaram provavelmente para melhor não acredito que haja um psicanalista ou um psicoterapeuta que mesmo coagido por uma plateia enfurecida alegaria a mudança de partido de uma paciente como prova da excelência dos resultados de sua prática Mas algo daquela época permaneceu no mínimo até os anos 90 O quê A ideia de que a pretensão de curarse de ser um pouco mai s feliz seria só uma idiotice vendida pela propaganda de iogurte carros e cartão de crédito um sonho de consumo feito para nos distrair do que importa Nisso a rebeldia nascida nos anos 60 reata com a tradição romântica do século XIX glorificando a inquietude a angústia e mesmo o sofrimento psíquico como provas de vitalidade subjetiva Nota à margem É um estranho paradoxo é bem possível que o sonho de felicidade seja a cenoura atrás da qual nossa cultura individualista e liberal força todos a correr mas é certo também que o sonho só é uma cenoura eficaz à condição que seja entretida uma insatisfação permanente com nosso destino Ou seja é preciso não ser feliz para correr atrás da felicidade e de seus substitutos O culto da inquietude inconformada e angustiada é tão essencial ao funcionamento de uma sociedade liberal quanto o sonho de felicidade Mas enfim esses eram e ainda são os tempos Para entender as origens da resistência à ideia de uma cura psíquica é bom levar em conta ainda outros fatores Por exemplo os intelectuais europeus sobretudo italianos e franceses dos anos 70 descobriram os sociólogos e psicossociólogos da escol a de Frankfurt Na verdade enquanto os italianos liam poi s quas e tudo era traduzido do alemão para o italiano os franceses confiavam na segundamão pois as traduções francesas chegaram bem mais tarde com isso dessa nãoleitura sobraram aos franceses os chavões o maior deles sendo a convicção férrea e abstrata de que uma das raízes do mal é a cultura de massa Qualquer coisa que agradasse ao grande número devia ser reprovável portanto se o grande número quando está mal quer ser curado é porque o grande número está sendo enganado pela cultura de massa Com isso as vanguardas da époc a viviam um paradoxo extremo queriam ser populares e sonhavam com a alianç a de estudantes e proletários mas praticavam propositalmente um elitismo exacerbado que lhes parecia a única reação contra a burrice da cultura de massa ou seja contra tudo o que pensavam as próprias massas com as quais as vanguardas queriam aliarse Talvez esse quadro ajude a entender por que a psicanálise francesa dos anos 60 e 70 na qual me formei e que teve uma grande influência direta e indireta no Brasil dos anos 80 desconfiava da ideia de que a psicanálise fosse uma terapia e por que ela produziu um corpo teórico de acesso dificílimo quase críptico e curiosamente afastado do diaadi a da clínica A psicanálise frances a daqueles anos era em suma permitame a ironia perfeitamente adaptada à sua época cultivando o exoterismo de sua doutrina e preferindo apresentarse como uma experiência mais iniciática do que terapêutica mais para os adeptos do que para os pacientes N o mei o desse clima produzias e um outro fenômeno A partir dos anos 60 crescia o número de jovens que tinham acesso ao ensino universitário efeito de desenvolvimento do bemestar e mais tarde também de governos satisfeitos com a ideia de atrasar por quatro ou cinco anos a chegada ao mercado de trabalho de jovens que seriam sem isso desempregados no fim do secundário Obviamente a geração rebelde era seduzida pelas ciências humanas as faculdades de sociologia e psicologia estavam abarrotadas Ora nos anos 70 e 80 os psicanalistas americanos por exemplo queixavams e de uma diminuição do número de pacientes e de candidatos e explicavam a penúria pelo fato de que talvez a psicanálise clássica fosse uma cura longa e trabalhosa demais No entanto na Europa de fato sobretudo na França e na Itália assistiase a uma difusão sem precedentes da prática psicanalítica e a uma acelerada reprodução de analistas Claro nos cafés de Paris comentavase que a psicanálise americana se ferrava por seu próprio empirismo adaptador ou seja por não entender que na verdade o povo não quer adaptação o povo quer revolução e complicação Talvez seja melhor não acreditar nos cafés de Paris e considerar que o sucesso de mercado da psicanálise francesa daquela época e especificamente do ensino de jacques Lacan foi o fruto de uma extraordinária adequação ao momento Uma geração revoltada apaixonada pelas ciências humanas e ameaçada de desemprego estav a entregue a furores abstratos a psicanálise francesa respondeu perfeitamente ao malestar dessa geração Na próxima carta tentarei lhe mostrar como isso se deu e com quais consequências que em parte ainda duram Desta vez bastame ter exposto o clima que predispunha a psicanálise francesa dos anos 70 a considerar a ideia de curar como anátema Aliás desde aquela época há meios psicanalíticos em que a palavra paciente é malvista Paciente é o chato que se queixa e quer ser curado enquanto quem faz análise é analisando ou analisante não paciente pois ele deve esperar análise e não cura Você deve ter notado que penso diferente A psicanálise me interessa por sua capacidade de transformar as vidas e atenuar a dor Se tenho uma reserv a diante da palavra paciente é porque espero que todos sejamos impacientes com o sofrimento desnecessário que eventualmente estraga nossos dias 7 O QUE FAZER PARA TER MAIS PACIENTES Meu caro amigo Respondo a uma preocupação que voc ê manifestou depoi s de minha terceira carta Você escreveu Receber um primeiro paciente é fácil fazer que o consultório da gente cresça e se torne viável é uma outra história não é Por sorte para responder terei de completar a históri a que comecei na última carta Em 1974 acredito um pouco antes que começasse a atender fui visitar Christian Simatos que era o secretári o da École Freudienne de Pari s secretário neste caso não designa um emprego administrativo mas um cargo essencial no funcionamento da instituição ocupado por um psicanalista Tratavase de formalizar minha candidatura ao estatuto de membro da Écolee de anunciar que eu me aprestava a receber pacientes Fiz meu pedido e apresentei meu currículo com nome do analista tempo de análise grupos de estudos dos quai s eu participava etc que seria examinado na próxima reunião da direção Depois disso conversamos um bom momento No decorrer desse papo amigável perguntei a Simatos o que ele achava que eu deveria fazer para que alguém me encaminhasse pacientes de maneira que pudesse começar minha atividade Sabi a que a Écol e não tinha uma política de encaminhamento para os jovens analistas só nos últimos anos foi instituído um comitê responsável para receber os pedidos de análise e terapia que chegavam diretamente à instituição es s e pequeno comitê encaminhava os pedidos a membros da instituição mas segundo os critérios escolhidos pelos analistas que compunham o comitê não segundo uma política formal Pensava também que talvez essa ausência de política de encaminhamento foss e proposital uma espécie de seleção social uma última prova depois da formação afinal ser psicanalista é um ofício liberal e uma certa capacidade social de inspirar confiança e receber demandas poderia ser considerada como um requisito de qualquer profissão liberal Essa ideia embora nada explícita ressurgia na vida da instituição na hora de os membros serem designados com o título de analista membro Não havia candidatura para isso o que contava de fato era ter durado ao menos dez anos na prática clínica dar o sem fazer estragos Enfim coloquei a pergunta e Simatos me respondeu Faitesvous connattre façase conhecer Era uma resposta de bom senso sobretudo se você começa a trabalhar numa cidade que não é sua de origem na qual talvez você tivesse uma rede de amigos colegas desde o primário parentes etc é preciso no mínimo que as pessoas saibam que você existe Entretanto no contexto daqueles anos a resposta assumia um sentido um pouco diferente Lembrase da última carta Pois é na época contribuir ao exercício e à doutrina da psicanálise parecia mais importante do que curar pacientes Isso fazia com que para cada um a relação com os colegas da École com os outros analistas fosse mais relevante do que a relação com a cidade e em geral com o resto da sociedade Consequência disso todo o mundo parecia convencido de que assim como as batatas vêm da terra os pacientes só vêm de outros analistas e terapeutas mais abastados Portanto fazerse conhecer não significava ganhar a confiança de quem está na primeira linha de embate com o sofrimento cotidiano o padre da igreja o quiroprático o médico de família ou mesmo os vizinhos do prédio significava impor respeito aos colegas da instituição Na mesma linha mostrar que a gente era digno de confiança não significava dar provas práticas da capacidade de ajudar pacientes significava dar prova de uma excelência teórica que impressionaria os colegas Quem seguisse o conselho que eu acabava de receber e quisesse s e fazer conhecer não pensava por exemplo em conseguir trabalho num dispensário público de saúde mental onde se mostraria capaz de lidar com a demanda de quem sofre e pede ajuda sem salamaleques ou seja sem a reverência garantida de quem já saberi a que a psicanálise era uma aventura especial reservada aos entendidos Naquela época quem se dispusesse a seguir o conselho de Simatos ao contrário pensava em outras coisas Pensava em dar prova de extraordinários brilho inteligência e saber num seminário fechado entre analistas consequência paradoxal disso nos seminários falavase pouco pois o risco de perder pontos parecia maior do que a chance de ganhálos Pensava em conseguir apresentar uma comunicação num congresso ou numa jornada de trabalho da École mesmo que fosse às 8 da manhã na sala D Pensava em publicar a dita comunicação ou então em publicar um artigo em alguma revista Ou sonho supremo pensava em escrever um dia um livro para a Éditions du Seuil Mas cuidado em sua maioria essas intervenções e comunicações esses artigos e livros não nasceriam propriamente como contribuições a uma disciplina e sim como esforços para conquistar um espaço mais ensolarado na hierarquia imaginária ou real da instituição Eram como a roupa da semana da moda de São Paulo ou do Rio fashion para dar lustre à marca vestimenta só para a passarela não para usar De fato na históri a de poucas disciplinas houve uma proliferação de produção digamos teórica tão intensa como na psicanálise francesa desde 1970 Multiplicavamse as revistas e as séries editoriais Depois da dissolução da École Freudienne quando Lacan estava se apagando a comunidade fragmentouse não tanto por diferenças na interpretação da obra ou no entendimento da psicanálise Ela se fragmentou como se fragmentaria um exército em que todos achassem vital ser generais Cem grupos permitem a existência de cem chefes de escola por pequena que cada uma seja com cem escolas há mi l membros de diretorias 2 mil analistas encarregados de ensino e sobretudo cada grupo convocando deus e todo o mundo para seus congressos centenas de ocasiões de subir num pódio Na vida das instituições desta época vamos fazer de conta que não seja mais o caso não havia temas que se impusessem como questões comuns e motivassem números especiais de revistas ou encontros Havia isso sim a necessidade institucional de garantir espaço a todos os membros que se sentiam compelidos a tomar a palavra ou a caneta para s e fazer conhecer A produção psicanalítica deste período com as exceções que são sempre devidas claro é fundamentalmente uma vasta e desordenada máquina de propaganda E à diferenç a do que acontecia nos começos da psicanálise quando se tratava de estabelecer a legitimidade da disciplina o objeto da propaganda deste período não era a psicanálise eram as instituições as marcas e as pessoas os modelos Consequência e prova disso essa produção surpreendentemente exuberante não tinha nenhum efeito acumulativo Alguém podia escrever e publicar hoj e uma interpretação sofisticadíssima de um sintoma extremamente raro sei lá síndrome de Tourette com tique do olho esquerdo e palavrões em chinês Pois bem amanhã outra pessoa escreveria e publicaria outra interpretação sofisticadíssima da mesma síndrome só que absolutamente oposta à anterior Nem por isso haveri a debate ou acumulação de um saber Citações do trabalho anterior nem pensar As ideias se sucediam como num desfile de achados sem conexão Por que um debate posto que o propósito dos autores não era interpretar a dita síndrome ainda menos curála Deus nos livre disso mas assinar uma interpretação suficientemente sofisticada para impressionar os colegas Havia uma outra razão para que não acontecesse debate nem acumulação de saber Não era raro que continuando o mesmo exemplo nenhum dos autores das interpretações opostas tivesse sequer visto um paciente com síndrome de Tourette É certo que o racionalismo tradicional da cultura francesa alimenta a ilusão de que a verdade surgiria à la Descartes ou seja não do exame dos fatos mas por pureza lógica de deduções abstratas Mas é mais certo ainda que o imperativo de ganhar visibilidade empurrava especificamente os psicanalistas menos experientes a escrever comunicar e ensinar Tenho uma certa birra daquela época pois me parece que vi alguns dos melhores cérebros de minha geração não agonizantes na sarjeta como escreveu um grande poeta da contracultura Allen Ginsberg mas perdidos em elucubrações sem diálogo e sem relação com a gravidade e a seriedade de suas práticas Quem lia essa mass a de livros e artigos Quem escutava o murmúri o incessante de seminários e comunicações De certa forma ninguém Em regra lias e para adquirir o código comum e colocar em dia o ranking dos analistas Além disso liase só para cima numa espécie de pirâmide As sumidades eram perfeitos autodidatas só liam o que eles mesmos escreviam os que estavam embaixo deles só liam as sumidades e por aí vai descendo até a massa dos jovens que eram o embasamento e a sustentação entre outros financeira da pirâmide pois a necessidade de fazerse conhecer os levava a pagar seu ingresso em todos os congressos comprar todos os livros e todas as revistas De qualquer forma não é de estranhar que as contribuições não fossem levadas a sério pois de fato em sua maioria não eram escritas para divulgar ideias Você poderia me perguntar mas falando em finanças como uma tal quantidade e diversidade de editoras deficitárias de congressos dispendiosos de locai s alugados por instituições que pagavam funcionários imprimiam programas etc como tudo isso podia ser sustentado só pela presença e pela leitura assídua e fiel dos jovens médicos e psicólogos que queriam se tornar analistas Afinal o número não devia ser imenso não é Poi s é a solução vei o do própri o ensino de Lacan Certamente não foi uma sacação maquiavélica Uma ideia de Lacan nos anos 60 criou as condições para que a pirâmide se constituísse e também para que a psicanálise francesa durante ao menos duas décadas não conhecesse dificuldade de clientela e sobretudo de pedidos de formação Aconteceu assim Lacan se perguntava o que seria o fim de uma análise ou seja como definir uma análise propriamente terminada Sua resposta foi a seguinte o fi m de uma análise diferentemente de uma interrupção não é o esgotamento dos assuntos o sumi ç o dos sintomas o fim das queixas ou coisa que o valha O fim de uma análise propriamente dito seria uma experiência radical produzida pelo próprio processo analítico Pouco importa aqui examinar como Lacan entendia essa experiência e o processo que a ela levaria Mas descrita em termos psicológicos e muito simples que ele teria detestado seria a experiência de que não somos grande coisa e em particular não somos a única coisa que falta para que o mundo seja perfeito e para que a nossa mãe seja feliz Isso parece e é uma coisa fácil de saber e mesmo de admitir mas uma experiência efetiva dessa superfluidade de nos s a existência é uma outra história Nes s e momento final o sujeito vivenciaria logicamente uma espécie de desamparo depressivo mas também uma extrema liberação Por que liberação Pois é o que mais nos faz sofrer talvez seja justamente a relevância excessiva que atribuímos à nossa presença no mundo pois essa relevância é a pedra de fundação de todas nossas obstinadas repetições é graças a ela que insistimos em ser sempre iguais a nós mesmos sendo que no caso essa expressão não tem um sentido positivo Há boas razões para se pensar que uma vez essa experiência feita a gente possa passar a viajar pela vida carregando malas um pouco mais leves Ou seja seríamos capazes de largar os sintomas que nos devastam e que obviamente adoramos a tal ponto que não conseguimos desistir deles Em suma essa experiência conclusiva teria um valor terapêutico A questão do fim de análise é de grande interesse clínico Eu mesmo escrevi meu primeiro livro de psicanálise no começo dos anos 80 para tentar entender se e como essa experiência tinha acontecido para alguns de meus pacientes Até aqui tudo bem O problema é que à sua descrição do fim de análise Lacan acrescentou uma observação que teve consequências propriamente sociai s El e notou que essa experiênc i a produzia nos sujeitos que a atravessavam uma qualidade analítica uma disposição digamos assim a exercer a função de psicanalista Com os poucos elementos de descrição psicológica da experiência que acabo de esboçar já dá para entender o porquê Para lidar corretamente com o sofrimento dos outros não é necessário ser normais nem é preciso estarmos curados de nossas neuroses mas seri a bemvindo que a gente não se tomasse pelo ouro do mundo Você deve lembrar por exemplo que já mais de uma vez em nossa correspondência lhe apontei alguns problemas da prática de quem acredita que sua presença deveria bastar para fazer cada paciente feliz Em geral esse terapeuta cas a com uma série de pacientes ou mantém todos numa eterna dependência ou terceira possibilidade1 faz os dois Ora a observação de Lacan levou todo mundo às conclusões seguintes 1 só seria analista mesmo quem passasse pela experiência do fim de análise 2 passar pelo fim de análise seria o suprassumo do que é preciso para tornarse psicanalista As consequências são previsíveis Para a psicanálise na França e em boa parte do mundo elas foram devastadoras embora paradoxalmente positivas para o mercado da psicanálise Aconteceu o seguinte Os que estavam se formando entenderam que deveriam necessariamente ir até o fim de suas análises Mas a dita experiência não é um evento pontual que seja reconhecível porque de repente se acenderi a uma luz verde Tanto o paciente quanto seu analista poderão eventualmente entender o posteriori que uma experiênc i a daquele tipo aconteceu mas nenhum dos dois poderá certificála na hora em que ela se der se é que se trata de uma hora e não como é bem mais provável de um processo tortuoso Por consequência as análises de quem estava se formando tornaramse infinitas eternamente suspensas à questão insolúvel será que cheguei lá ou ainda não O cúmulo é que desta forma uma experiência que devia implicar um certo desprendimento era procurada como se fosse o ponto G do gozo Ou seja a observação de Lacan mal interpretada fazia com que no momento de largar suas malas mais pesadas os pacientes em formação as trocassem por um enorme baú Em outras palavras ainda Lacan descreve uma possível experiência de saudável embora doloroso abal o das fundações do narcisismo essa experiênc i a foi entendida como a porta de acesso ao prestígio da profissão desejada O momento em que eu realizasse a experiência de que não sou nada seria o momento em que finalmente conseguiria ser alguma coisa ou mesmo alguém Acredito que a experiência que Lacan tentou descrever existisse mesmo Agora é de se perguntar se ela não se tornou impossível a partir do momento em que passou a prometer como prêmio justamente uma identificação uma certeza narcisista cheguei enfim sou analista Naqueles anos teria sido possível escrever uma espécie de etiqueta para quem quisesse mostrar ao mundo que havia atravessado a experiência do fim de análise e portanto era analista Era bom claro mostrarse sempre deprimido evitar com desdém qualquer conversa fútil e qual não é tomar a palavra só transmitindo a impressão de que a gente está se forçando a falar pois na verdade como todos podem ver não é tomar a palavra parece agora uma jactância e por aí vai Uma série de caretas e posturas quase cômicas Já é meio estranho escutar alguém esbofandose a contragosto para anunciar que sabe que ele é só um objeto inútil e descartável Agora quando esse alguém está esbofandose num palco diante de 800 pessoas que pagaram algo como R50 para escutálo esbofar está na hora de rir Seja como for do ponto de vista do mercado da psicanálise essa transformação de uma hipotética experiência num carimbo de autorização e reciprocamente do carimbo numa hipotética e enigmática experiência foi ótima pois manteve durante anos deitados no divã pacientes em formação que sem isso já estariam correndo pelas ruas Mas há mais A ideia de que qualquer análise terminada seria o essencial de uma formação termine a análise e tornarseá analista uma vez vulgarizada transformou todos os pacientes ou quase todos em candidatos potenciais Com os efeitos seguintes 1 a grande massa dos pacientes veio engrossar a base da pirâmide que mencionei antes frequentando congressos seminários e colóquios comprando revistas e livros pagando as mensalidades das instituições etc 2 começar uma anális e tornous e mai s tentador mesmo que não acredite que essa coisa possa melhorar minha vida curando meus sintomas será que não a melhorarei achando enfim uma profissão lembrese das massas de estudantes de humanas prometidos ao desemprego 3 a psicanálise se afastou ainda mais do projeto terapêutico a ideia de que curar fosse acessório senão supérfluo além de ser um trejeito ideológico da contracultura tornous e um fato estabelecido pel a própri a finalidade da análise A experiência do fim de análise era para isso que a análise servia Que ao longo do caminho a gente pudesse curar uma gastrite uma obsessão ou uma incapacidade de amar isso era coisa para a espécie inferior dos psicoterapeutas Na verdade seria possível dizer que a psicanálise não se afastou de um projeto terapêutico apenas passou a propor a todos como cura a chance de tornars e psicanalista Com isso aliás curou suas próprias finanças e qualquer crise de clientela Ironia da história Lacan avançara seu entendimento do fim da análise também para polemizar com a ideia de que o fim de uma análise seria uma identificação com o analista que é de fato uma ideia suspeita você estará bem quando ficar parecido comigo Ora tudo na mesma com o fim da análise como passaporte para transitar do divã para a poltrona O prognóstico dessa história não é bom Uma prática e uma disciplina têm seus dias contados s e perdem o rumo de sua utilidade social para se preocuparem apenas com sua própria reprodução A base da pirâmide passado o entusiasmo inicial só pode descobrir que não lhe foi dada formação alguma apenas lhe foram transmitidos os tiques os anseios e a ilusão de uma militância esperançosa A promessa do bem estar foi substituída pela promessa de entrar no clube de ganhar status e trabalho E dessa promessa só se realizou se é que se realizou a primeira parte Quem acreditou na promessa ganhou os encargos do clube o dever de pagar a mensalidade sem qualquer benefício Entretanto a longo prazo a massa de cidadãos que não são seduzidos por essa promessa acabará se perguntando por que diabo levaria as queixas de sua vida a quem parece se importar sobretudo em produzi r adeptos Para isso bastam as igrejas evangélicas não é Enfim essa história contém lições que podem ser valiosas para você especificamente na hora em que se pergunta como estabelecer sua clínica Seu primeiro compromisso não é com a psicanálise ou a psicoterapia nem com Freud Melanie Klein Lacan ou qualquer outro chefe de escola nem com a instituição na qual você se formou Seu primeiro compromisso é com as pessoas que confiam em você e trazem para seu consultóri o uma queixa que pede para ser escutada e por que não resolvida Ou mais geralmente seu primeiro compromisso é com a comunidade na qual você presta serviços E o compromisso é de prestar o melhor serviço possível Talvez uma comparação resuma melhor O destino da União Soviética teria sido diferente se os bolcheviques se lembrassem que seu compromisso não era com o partido nem com Lenin nem com a teoria marxista mas com o povo russo Ajudou Conteilhe essa história para chegar à resposta que eu lhe daria hoje se você me perguntasse o que na época eu perguntei a Simatos O que fazer para que mais pacientes cheguem até meu consultório Diria Para estabelecer sua clínica vale esta máxima se seu compromisso for com os pacientes não se preocupe eles vão acabar sabendo Abç BILHETE Você observa que às vezes lendo textos psicanalíticos dos anos 70 e 80 hoje a coisa tende a melhorar não é simples fazer a diferença entre uma contribuição valiosa e um exercício de autopromoção o esti l o pode ser o mesmo inutilmente torto propositalmente incompreensível Como não confundir Não sei A verdade é que a obscuridade desses textos me afasta por razões propriamente clínicas Os textos psicanalíticos obscuros são geralmente concebidos para produzir e alimentar amores de transferência Funciona assim se você não entende bulhufas é que meu texto diz coisas que você não quer saber deve tratar de coisas que têm tudo a ver com você Portanto quanto menos voc ê entende tanto mais voc ê pode e deve me idealizar e me amar como detentor de uma verdade sua que você desconhece e que eu conheço Numa terapi a ou numa análise esperas e que um dia a idealização do terapeuta acabe Esperase também que o terapeuta queira que isso aconteça N o cas o dos textos obscuros parece que seus autores preferem manter os leitores e admiradores boquiabertos para sempre Pois escrevem não para transmitir o que sabem a revelação liquidaria a idealização cega mas para serem idealizados Só uma consolação sempre chega um dia em que o truque para de funcionar e parece evidente que quando você não entende é porque o autor não tem grande coisa para dizer ou mesmo que tenha algo para dizer prefere preservar sua aura de mistério a transmitir o que sabe Em ambos os casos provavelmente não vale a pena se esforçar Sou um leitor obstinado Os textos com os quai s mai s penei foram a Fenomenologi a do espírito de Hegel e os Escritos de Lacan um ano para cada um a tempo pleno Eles me servem de referência quando o esforço de leitura se aproxima do que eles exigiram de mim é bom que o texto prometa um conteúdo de riqueza equivalente o que é raro Se não for o caso passo adiante Fora isso há momentos em que um sólido senso de humor pode ser salutar para evitar as armadilhas transferenciais da obscuridade No ano passado em Boston Estados Unidos fui escutar com um amigo e colega americano um professor universitário inglês que proferi a uma conferência supostamente de teoria psicanalítica de inspiração francesa No fim de uma incompreensível sucessão de afirmações sem referência empírica destacando as palavras para marcar a extrema dramaticidade da questão conclusiva de sua exposição o palestrante perguntou Será que a pulsão se curva E deixou o silêncio compenetrar o momento solene Meu amigo americano observou discretamente É uma questão muito interessante mas ultimamente o que tem me ocupado mesmo é outra questão quantos anjos voc ê acha que cabem na cabeça de um alfinete Sério comentei Depende anjos em pé ou sentados Fomos tomados por um acesso de riso incontrolável O curioso é que o auditório embora ninguém tivesse ouvido nossa troc a bemhumorada foi contagiado e aliviado por nossa hilaridade O conferencista ainda deve estar se perguntando o que há com estes americanos que em vez de aplaudir caem na gargalhada E provavelmente está contando para seus amigos que ele verificou pessoalmente o que todos já sabem os americanos são refratários à psicanálise 8 QUESTÕES PRÁTICAS Minha jovem colega Vou tentar responder numa só carta aos vários bilhetes que voc ê me mandou na semana passada São questões que quas e sempre embora sejam objetos de reflexões teóricas complexas às vezes inutilmente complexas merecem ser resolvidas com uma dose certa de bom senso REGRAS Você me pergunta se no começo de uma cura é bom dar alguma indicação ao paciente ou mesmo explicitar algumas regras Sei que você está pensando por exemplo no que se chama em psicanálise a regra da associação livre Algo assim Aqui voc ê deve poder falar livremente de tudo o que lhe ocorrer mesmo e sobretudo se a coisa lhe parecer fútil sem medo de falar besteiras e exercendo o mínimo de censura possível pode falar de sonhos fantasias pensamentos estranhos lembranças aparentemente sem importância etc tudo o que passar pela sua cabeça nos interessa É importante que a regra se for dita não seja recitada como uma reza que a gente conheceria de cor e repetiri a sempre do mesmo jeito melhor improvisar de cada vez como acabo de fazer O pressuposto que justifica essa regra é o seguinte no que a gente fala opera uma lógica interna que nós não percebemos Quanto menor nos s a intervenção na escolha e na organização do que falamos tanto mais essa lógica interna poderá nos levar a dizer coisas inesperadas por nós mesmos a descobrir algo que estava em nossos pensamentos sem que soubéssemos Alguns analistas e terapeutas enunciam essa regra no começo de cada cura e a repetem regularmente para que o paciente não se perca por exemplo em meandros de explicações e elaborações preparadas de antemão Outros analistas e terapeutas notam com razão que a dita lógica se impõe de qualquer forma na fala de nós todos mesmo quando fazemos o possível para controlar nossas palavras Aliás geralmente é logo quando tentamos policiar cuidadosamente nos s o discurso que podemos cometer um lapso revelador Além disso a experiênc i a mostra o seguinte quase sempre mesmo o paciente mais prevenido que anotou seus tópicos por medo de perder seu tempo ou de não ter nada para dizer acaba sendo levado no decorrer da sessão a falar de coisas que ele não previu Um detalhe se um paciente chegar de papel na mão decidido a ler o que preparou e se isso deixar você incomodado voc ê poderá pedi r para el e guardar o papel e falar espontaneamente pois certamente ele deve se lembrar dos temas que previu tratar Agora lembrese do seguinte de qualquer forma as palavras sempre levarão seu paciente por terras imprevistas Então formular ou não a regra fundamental Não perca muito tempo debruçandose sobre essa questão Decida voc ê também livremente ou seja explicite a regra quando lhe parecer importante ajudar o paciente a ultrapassar seu pudor sua vontade de se mostrar inteligente ou sua necessidade de construir explicações racionais Mas cuide disto enunciar a regra deve servir para autorizar o paciente a falar não para obrigálo a falar do que você quer ouvir É possível se esconder de si mesmo por trás de racionalizações e assuntos preparados Mas é possível também se esconder por trás de associações quase poéticas que pulam de palavra em palavra Agora há duas outras regras que o próprio Freud considerava com simpatia e que um pouco esquecidas talvez mereçam sua atenção A primeira quase ninguém mais usa Ela pede ao paciente que durante sua análise ou terapia evite tomar decisões cruciais e irreversíveis na condução de sua vida Não é só porque as melhores decisões seriam tomadas no fi m quer dizer quando presumivelmente as motivações e os conflitos estariam em cima da mesa É também porque o tratamento agita fortes emoções e talvez não seja uma boa ideia tomar grandes decisões sob esse impacto A regra é sábia mas encontra dois problemas 1 hoje as curas tendem a durar muito tempo e pedir que alguém suspenda por assim dizer sua vida durante anos parece impossível e injusto seri a pedi r muita paciência ao paciente 2 é frequente que alguém recorra a um analista ou terapeuta para conseguir tomar uma decisão difícil mudar de emprego separarse casarse adotar uma criança emigrar e por aí vai Esse tipo de paciente nos consulta porque se sente paralisado pela incerteza faç o ou não faço Não seria curioso pedirlhe que se engaje a não decidir nada ou seja a persisti r na hesitação da qual se queixa A segunda regra é também um pouco esquecida mas a meu ver injustamente Ela pede que o paciente se comprometa a não falar de sua terapia com os seus próximos familiares e amigos Há ao menos duas razões que justifica o us o dessa regra 1 Muitos amigos ou parentes pode hostilizar a cura de um paciente porque receiam com razão aliás que o tratamento modifique a relação que o paciente mantém com eles Como cada relação é um encaixe em que convivem mai s ou menos harmonios a mente as neuroses de todos os interessados é claro que mexer num dos elos significa atrapalhar a vida de todos Ora já não é fácil para o paciente encontrar coragem de mexer em sua própria vida parece melhor evitar a tarefa suplementar de lidar com as resistências de seus próximos 2 A outra razão para fazer valer a regra do silêncio concerne mai s especificamente aos casais Acontece que os membros de um casal recorrem separadamente a analistas ou terapeutas distintos Às vezes o casal está em crise ambos desejam ou declaram desejar que a relação continue e cada um espera justamente que o outro mude um pouco graças à terapia É banal nesses casos que as curas se tornem o objeto favorito da conversa familiar O que disse hoje o seu psi E o que disse a sua Pois é quas e sempre olhe só que coincidência o que disse o terapeuta de um membro do casal vale como uma acusação feita ao outro e viceversa A paz projetada se transforma numa guerra familiar combatida por terapeutas interpostos com as interpretações e intervenções dos terapeutas servindo como armas O meu disse que você ainda não entendeu que a sua família é esta não a casa de sua mãe Ah é Engraçado porque a minha disse que você passa o tempo todo me criticando para preservar a imagem de seu pai E por aí vai Pena pois se ambos ficassem calados as palavras dos terapeutas poderiam mesmo surtir o efeito que ambos declaram desejar SETTING Você me escreve que nunca sabe direito por que quando e como propor a um paciente que deite no divã e por que quando e como deixar ou pedi r que ele continue sentado na sua frente Sobre essa questão há uma vasta bibliografia Não vou resumi r argumentos teóricos que você já conhece ou que pode facilmente ler e meditar Uma coisa é certa há análises de formação de psicanalistas famosos e reconhecidos que se deram inteiramente no face a face Ninguém sabe por quê nem os analistas que se formaram sentados e talvez nem os analistas que os analisaram sentados A coisa aparentemente não foi decidida por alguma razão clínica argumentada Eu me formei deitado mas em compensação meu analista preferi a me falar no fim da sessão no face a face quando eu acabava de me levantar Então talvez tenha me formado em pé Minha sugestão é a seguinte claro leia e cogite sobre essa questão mas leve em conta que como disse o próprio Freud talvez a decisão possa depender simplesmente de uma questão de conforto seu e de seu paciente Para começar há pacientes que não aguentam a ideia de falar sem ver a cara de quem escuta e há pacientes que ao contrário não aguentam encontrar o olhar de seu terapeuta Por mais que essas intolerâncias possam lhe parecer sintomáticas forçar a barra não tem sentido A imposição de um setting não vai curar ninguém e seu propósito não é colocar condições que dificultem a relação terapêutica mas permitir que o paciente se engaje na cura Além disso leve em conta suas próprias exigências Durante muitos anos em São Paulo eu atendi meus pacientes de maneira concentrada pois permanecia na cidade pouco mais de uma semana por mês Aos poucos fui deixando que muitas análises acontecessem face a face Quando me dei conta e me perguntei por que eu não estava mais convidando meus pacientes em análise a se deitar no divã descobri o seguinte no fundo gostava de têlos na minha frente porque queri a guardar uma lembrança visual de seus rostos durante os tempos de separação E supunha claro que o mesmo valesse para eles Alguns colegas poderiam me dizer que essa ideia é cretina pois o que importa numa análise não são as caras e as caretas mas as palavras Concordo sem discutir mas repito não tenho nem procuro argumentos teóricos apenas sentia a exigência de me lembrar bem das caras de quem contava comigo E não estou convencido de que essa exigência me servisse para ocultar ou esquecer as palavras Na contramão dessa exigência situase o cansaço produzido por uma série de sessões face a face Nem todos os analistas ou terapeutas aguentam passar o dia expostos a uma sucessão de olhares escrutadores que inevitavelmente tentam ler ou adivinhar na cara do terapeuta um sinal de aprovação e simpatia ou então de rechaço e ironia Enfim nesta matéria quatro conselhos 1 Aja de maneira que sua escolha não seja forçada Nenhum paciente gostaria de perceber que seu terapeuta no consultório obedece a formas estabelecidas sem construir e propor seu próprio espaço 2 Lembrese de que em última instância o setting não é condição nem garanti a de nada Uma análise ou uma terapia acontecem pelas palavras trocadas e pelas relações que elas organizam não pelas disposições dos traseiros dos interessados Durante a ditadura militar na Argentina mais de um analista se dispunha a encontrar seus pacientes na clandestinidade no carro dirigindo pegandoos de carona 3 Lembrese também de que nem o paciente nem o terapeuta estão presos no divã ou na poltrona por parafuso algum Um paciente deitado há tempo pode decidir um dia que há algo que ele quer dizer olho no olho 4 Pode acontecer que manter e impor o setting prescrito por sua formação se torne um dia para você uma espécie de condição do tipo se esta paciente não deitar no divã não haverá análise possível Essa rigidez surge em geral com um ou outro paciente específico Bom se isso acontecer considere a possibilidade de que voc ê esteja transformando sua poltrona numa fortificação militar e então perguntese por quê ENTREVISTAS PRELIMINARES Você quer saber quais são as perguntas que coloco e me coloco durante os primeiros encontros com um paciente Isso é claro além das que ajudam o paciente a contar sua história e suas dores e nos ajudam a construir um primeiro esboço do problema De fato há sim duas perguntas que sempre surgem 1 A primeira coloco para mim mesmo na hora de concluir no fim das primeiras entrevistas Perguntome se neste caso eu poderia ser de algum auxílio Não há quadros patológicos que eu recuse apriori e há poucos casos em que encontro o limite do que aguento escutar deste tipo de limite já lhe falei em minha primeira carta lembra A pergunta que acabo de mencionar introduz um outro critério Digamos assim prefiro me engajar com pacientes com quem me parece possível estabelecer uma aliança Não quero me engajar na cura de um paciente que não possa acolher no dia de sua sessão com um pouco de entusiasmo A ideia de uma aliança do terapeuta com o paciente foi muito criticada Entendese por quê numa aliança nada prova que não sejamos aliados justamente dos sintomas do paciente Concordo mas é possível imaginar uma aliança diferente é possível ser o aliado do desejo do paciente contra as razões pelas quais ele se impede de desejar Enfim o que importa aqui é de onde me vem a sensação de uma aliança possível Sei por certo que ela não depende de alguma similitude de história sintoma ou fantasia Nunca me incomoda por exemplo que as fantasias sexuai s de um paciente sejam muito distantes das minhas ou mesmo que elas me pareçam um pouco repulsivas Nos anos 80 fui por exemplo o último recurso de um paciente coprófago que comia seus excrementos quase a cada dia e que não conseguia encontrar um terapeuta em que a repugnância não falasse alto demais No fundo acho que a sensação de uma aliança possível me vem do mesmo tipo de consonâncias nem sempre ponderáveis que decidem por exemplo que ao encontrar alguém pela primeira vez sabemos se poderia ou não ser nosso amigo É provavelmente uma questão de pequenos traços que parecem sem importância Um exemplo de pequeno traço A voz Há vozes que gosto e outras que me incomodam Não sei bem por quê Imagino que nossa relação com a modulação da voz seja o resto de algo muito antigo o ouvido é um sentido que se desenvolve plenamente já no ventre materno Talvez cada um de nós guarde uma estranha mixagem de músicas e ruídos intrauterinos cânticos de ninar conversas familiares etc que ficam para sempre ligados a uma certa sensação de bemestar E talvez exista em nós uma outra mixagem que seria a coluna sonora do desamparo e da cólica O fato é que um terapeuta ou analista não é indiferente às vozes dos pacientes é bom renderse a essa evidência Não vejo por que deixaria que um paciente tivesse de lutar em sua terapia contra meu desagrado auditivo Claro o problema invers o também existe há vozes que encantam e não é bemvindo escutar um paciente como se escuta uma música Outro caso ainda são as vozes que adormecem O sono do terapeuta é geralmente interpretado como uma vontade de não escutar uma defesa Mas Roland Barthes que obviamente falava bastante em público me fez um dia esta confidência nas suas palestras nada lhe dava uma satisfação maior ele me disse do que constatar que alguém na platéia dormia profundamente El e não achava nem um instante que o sono de seu ouvinte fosse prova de desprezo Ao contrário pensava o seguinte quem prestava atenção recompensava os frutos de sua inteligência mas quem dormia demonstrava uma aceitação e uma simpatia mai s profunda quem dormia não gostava tanto da abstração de suas ideias quanto da concretude física de sua voz Em suma Barthes se sentia lisonjeado quando conseguia adormecer um de seus ouvintes Talvez o sono do terapeuta seja também às vezes o fruto da sedução exercida pela voz do paciente Bom seja como for melhor não dormir 2 A outra pergunta que coloc o nas entrevistas preliminares é para o paciente É uma pergunta que comecei a fazer só recentemente quero saber o que o paciente espera da terapia que começa É óbvio que não confundo o que ele declara esperar com o que ele quer mesmo A pergunta não é feita na ilusão de que o paciente diri a assim de repente e às claras seu desejo recôndito Ao contrário a resposta em geral manifesta sobretudo por quais caminhos o paciente está bem decidido a obstaculizar seu desejo Por exemplo espero que voc ê me ajude a me separar deste homem pode significar amo este homem e não há catástrofe pior na minha vida do que a separação que me espreita mas disso não quero nem ouvir falar viu Em suma nada prova que o terapeuta deva adotar a esperança declarada do paciente como se fosse o alvo de seu trabalho Então por que a pergunta Nos últimos anos praticando nos Estados Unidos lidei com a necessidade de preencher regularmente balanços e prognósticos dos tratamentos para as companhias de seguro de meus pacientes Essa chatice burocrática teve um efeito interessante fui levado a me perguntar a cada três ou quatro meses O que mudou Qual foi o caminho percorrido Onde estamos agora É diferente de onde estávamos no começo Pois bem descobri que uma maneira de medir o andamento de uma cura consiste em repetir regularmente aquela pergunta inicial Pois é frequente que a resposta do paciente mude que ele passe a esperar de sua terapia algo diferente do que ele esperava no começo Quer seja sejamos otimistas porque se aproximou do que ele deseja mesmo e consegue pedilo a si mesmo ao terapeuta e à vida quer sej a porque achou novos caminhos talvez menos penosos de organizar sua fuga do que ele quer De qualquer forma a mudança da resposta me orienta A DURAÇÃO DA SESSÃO Você me pergunta qual é a duração de uma sessão Mal posso lhe dizer quanto dura mais ou menos uma sessão comigo Numa época pareciame que a duração das sessões fosse uma questão crucial da qual dependiam o alcance e o sentido da cura De fato a maneira de medir o tempo da sessão revela modelos terapêuticos diferentes A sessão com tempo fixo 45 ou 50 minutos batidos por algum relógio supõe um modelo radiológico um pouco como se a cura dependesse do número de horas de exposição do paciente ao terapeuta A sessão com tempo variável supõe um modelo mais próximo da prática médica ou cirúrgica Se voc ê está deitado numa cama de operação enquanto lhe retiram o apêndice inflamado você quer que a coisa leve o tempo necessário e se por sorte a intervenção for rápida você não despertará da anestesia para protestar acusando o cirurgião de não dedicar mais tempo à sua barriga Na verdade hoje acho que a psicoterapia e a análise talvez sejam mai s próximas de um terceiro modelo o de muitas terapias do corpo A cada vez a postura é corrigida a coluna estalada os músculos relaxados mas um resultado que não seja apenas um alívio temporário pede uma série indefinida de repetições Do ponto de vista do tempo é um modelo intermediário a cada vez leva um tempo variável que depende dos músculos e ossos interessados de quanto o paciente aguenta naquele dia etc Mas não estou mais disposto a fazer desta questão o cavalo de uma batalha teórica Conheço pessoas que parecem terse beneficiado bastante de uma terapia e outras para quem a experiência aparentemente foi sem consequência a duração das sessões não parece ter sido um fator decisivo no sucesso ou insucesso das curas Minha formação foi como já lhe disse na École Freudienne de Paris a escola de Lacan as sessões variáveis e breves eram um dogma ao qual aliás nem todo o mundo obedecia a começar pelo meu analista Durante anos trabalhei com sessões breves das quais apreciava a tensão e o sentimento de urgência que matavam a preguiça da escuta e excluíam rapidamente o papo furado Nos Estados Unidos pratiquei sessões de aproximadamente 50 minutos conformandome ao padrão exigido pelos seguros americanos e descobri por exemplo que o próprio andamento da sessão suas pausas recuos e avanços é matéria de interpretação Hoje minha fórmul a preferida é um tempo variável mas não breve Talvez por temperamento ou pela idade que avança esteja apenas escolhendo uma atitude intermediária e conciliatória Mai s provavelmente encontrei um ritmo que convém à minha atenção e à minha maneira de escutar e intervir Gosto de ter o tempo para que uma lembrança seja evocada e explorada e para que um sonho seja analisado Mas me reservo a possibilidade de interromper a sessão quando um pequeno ou grande achado poderia ser anulado pela necessidade de encher linguiça para preencher o horário Tenho um hábito que alguns pacientes estranham não costumo atribuir horários definitivos prefiro marcar a cada vez ou quase É um incômodo certo mas gosto de ser surpreendido pela pessoa que encontro na sala de espera Evito em suma a rotina que transforma Fulano no paciente das 9 e Sicrana na paciente das 10 Outro detalhe acontece que me atrase não só porque às vezes uma sessão pode durar muito mais do que o previsto mas sobretudo porque como anuncio a meus pacientes tento ser disponível numa urgência Se um paciente por alguma razão quer me falar de repente naquele mesmo dia invento um horário Todos esses jeitos não constituem um modelo e de fato não têm não quero que tenham uma justificativa teórica Minha intenção ao expôlos não é sugeri r que voc ê os adote Ao contrário quero sobretudo encorajála a inventar uma maneira de atender que seja a sua PAGAMENTO Pois é quem paga Como Durante minha formação e quando era jovem analista em Paris vigia a ideia de que uma terapia e mais ainda uma análise deveriam ser pagas pelo bolso do próprio paciente Ouso de qualquer forma de seguro parecia uma heresia fadada ao fracasso o acesso ao desejo da gente diziase sem hesitar não é um direito social é preciso conquistálo com sacrifício Inventavamse aliás artifícios extraordinários para que também a prática com crianças e adolescentes respeitasse o dogma Claro os pais pagavam mas a criança devia trazer a cada vez um desenho o adolescente levava o cheque de 140 francos e acrescentava 10 da sua mesada e por aí vai Pairavam sobre nós ameaças apavorantes se seu paciente não tirar o dinheiro do bolso ele pagará com sua carne No mínimo o paciente que recorresse ao seguro saúde se amputaria um dedo a cada noite na hora de cortar o pão e a culpa seria nossa Quem trabalhava em ambulatóri o ou em outras instituições públicas era considerado com suspeita não eram verdadeiros terapeutas e ainda menos analistas pois por mais que eles se comportassem direitinho seus pacientes não pagavam Ainda hoje há quem esnobe convênios sob o mesmo pretexto Ora quem trabalhou no serviço público sabe que nada disso é verdadeiro As resistências de um paciente a seu própri o tratamento não são vencidas pel o esforç o de pagar Aliás há pacientes para quem pagar é uma boa desculpa estou fazendo tudo o que preciso para melhorar prova disso estou pagando Além disso para um adolescente por exemplo ver a mãe ou o pai preenchendo um cheque pode ser um pagamento bem mai s pesado do que dedicar à terapi a uma parte de sua mesada para outro sujeito o esforço de vir de longe é um sacrifício bem maior do que pagar o valor da sessão O engraçado é que na França quando a situação econômica apertava um pouco os medalhões que nos ensinavam que o paciente devia imperativamente pagar de seu bolso sem isso ele nos ofereceria pedaços de sua carne passavam a preencher e assinar alegremente os formulários do segurosaúde de seus pacientes Mais uma questão é frequente que o orçamento do paciente determine o número de sessões que ele poderá ter por semana Pode pagar três Não pode Então duas Não me conformo com esse cálculo A frequência das sessões deveria depender das necessidades da cura que aliás podem variar Há momentos quer sej a produtivos e acelerados quer sej a de uma viscosidade quase parada em que posso querer encontrar meu paciente a cada dia há outros momentos em que a cura parece precisar de um tempo de suspensão ou de digestão Às vezes sonho com um sistema em que o paciente pagari a uma mensalidade fixa e o número de sessões do mês seria variável segundo o que pedem a cura e seu momento Mas é uma utopia claro SUPERVISOR Quanto à escolha de um supervisor só duas indicações 1 Sua supervisão não deveria custar mais do que você ganha atendendo o paciente cujo caso você decidiu supervisionar 2 Como reconhecer um bom supervisor É simples A supervisão não é uma aula de clínica ou de arte diagnóstica Também não é a ocasião para o supervisor mostrar como e por que ele teria agido diferente de você A função da supervisão de um jovem terapeuta ou analista salvo situações catastróficas deve ser autorizar o terapeuta inspirarlhe a confiança em seus próprios atos sem a qual nenhuma cura vai ser possível Aliás falando em confiança eu queri a que voc ê deduzisse desta pequena séri e de notas práticas só uma regra confiou a ponto de autorizarse a atender continue Abç 09 CONFLITOS INÚTEIS Meu jovem colega Entendo sua preocupação com fármacos e neurociências Ao saber que você é psicoterapeuta ou psicanalista além disso jovem quase sempre haverá alguém que com uma espécie de comiseração perguntará se voc ê não recei a ters e engajado numa profissão sem futuro Afinal acrescentarão com os progressos da farmacologia e das neurociências quem vai precisar do transtorno de uma terapia quando poderia regrar a questão com uma pílul a ou duas ou quem sabe no futuro com uma pequena intervenção neurocirúrgica laser claro ninguém gosta de bisturi na cabeça Já lhe disse que em regra essas observações a mistosas manifestam sobretudo o temor imotivado que é produzido por sua presença São jeitos de seus comensais se protegerem de um saber que eles mesmos lhe atribuem Só vale a pena acrescentar o seguinte em regra a disputa entre psicoterapia ou psicanálise de um lado e biopsiquiatri a ou neurociências do outro é uma fals a disputa Na minha experiência quem alimenta es s a oposição não conhec e quas e nada de psicoterapi a ou psicanálise e sabe ainda menos de farmacologia e de neurociência Quem conhece os assuntos e pratica ou pesquisa numa das ditas disciplinas sabe que não há disputa alguma nem de fato nem de princípio Se uma espécie de controvérsia ressurge regularmente isso se deve a duas razões para a mídia o tema é bom para um especial do domingo para alguns interessados as companhias farmacêuticas e alguns profissionais das três áreas talvez funcione a ideia de que é preciso defender sua fatia de mercado Deveria parar por aqui mas enfim vou lhe dizer muito brevemente o que respondo quando não tenho como mudar de mesa Primeiro a pretensa oposição entre psicoterapia e fármacos Sou materialista Não acredito na existência de humores que não sejam alterações químicas do meu cérebro Se alguém me xinga se morre um amigo se por acaso me lembro de um evento feliz de minha infância as emoções que me invadirão boas ou ruins podem sempre e legitimamente ser descritas como fenômenos químicos que acontecem no meu cérebro Aliás são fenômenos químicos Hoje somos capazes de descrever quimicamente algumas emoções de uma maneira ainda incipiente mas já relativamente fina É ótimo porque isso abre a possibilidade de agir sobre essas emoções Fico triste porque meu amigo morreu quem sabe no futuro exista um inibidor da captação da serotonina de ação imediata e poderei engolir a sec o uma pílul a que numa mei a hora permitirá que eu volte sorrir É óbvio que não terei agido sobre a causa de minha tristeza meu amigo continua morto mas graças à descrição químic a de minha emoção terei conseguido modificar meu humor A mesma coisa aconteceria caso recorresse a um fármaco para aliviar os efeitos maníacos de minha lembrança de infância feliz A farmacopéi a pode agir sobre a caus a de meu humor e não apenas sobre meu humor quando meu humor não é só um estado químico este é sempre o caso mas é também de origem química Por exemplo uma depressão produzida por uma insuficiência da tireoide é um humor de origem química que é portanto propriamente curado em sua caus a por um suplemento hormonal correto Esses casos são relativamente raros Mesmo as depressões ditas endógenas ou seja que não parecem ser causadas por fatos externos à vida do paciente são em geral efeito de processos complexos de pensamentos e representações O que de novo não significa que não sejam descritas adequadamente em termos químicos Ora é óbvio para qualquer psicoterapeuta que em muitas situações é aconselhável tentar modificar o humor do paciente quimicamente Por exemplo um paciente deprimido a ponto de não sair da cama e não abrir a boca também não terá a mínima motivação necessária para operar algumas mudanças em sua vida com ou sem a ajuda de um terapeuta Uma correção química do nível de serotonina poderá com um pouco de sorte permitir que ele encontre as forças para se mexer Mas ninguém com a exceção talvez dos acionistas das companhias farmacêuticas sonha com um mundo em que as causas de nossos afetos seriam sistematicamente negligenciadas e nossos humores pacificados com uma contínua intervenção química capaz de impor ao cérebro um equilíbrio ideal Todos sabemos que por mais que eu tome a pílula mágica na hora da morte de meu amigo algum dia terei de enfrentar a dor de um luto A não ser que decida viver para o resto de minha vida sob anestesia Vamos às neurociências Aqui a ideia de um conflito é mais engraçada ainda Parece que os próprios psicoterapeutas e psicanalistas adoram encontrar nas descrições neurocientíficas alguma confirmação de suas hipóteses Estaríamos todos esperando que alguém nos aponte onde está o supereu onde está o inconsciente Cadê minha mãe cadê meu pai Ou então torcendo para que as descrições da atividade neuronal nos digam enfim o que é uma lembrança o que é uma associação como se impõe um pensamento obsessivo como somos invadidos por uma fantasia sexual etc É bem possível que um dia as neurociências correspondam a nossas expectativas O que será de grandíssima ajuda na clínica de lesões cerebrais e disfunções de todo tipo etc No entanto os efeitos dessas descobertas sobre a prática da psicoterapia ou da psicanálise serão mínimos se não nulos Porquê Porque a descrição neurocientífica de nossa atividade cerebral não altera nem um pouco as condições de nossa experiência Um exemplo vai logo explicar Imagino que voc ê não acredite na existência de uma alma fora do corpo e diferente dele Você também sabe que o corpo humano com cérebro e tudo é um complexo de células e moléculas sem contar os íons Em particular você sabe que somos compostos de 70 a 75 de água Agora será que em algum momento você se enxerga mesmo como 40 litros de água e uma espiral de DNA Claro que não Sua experiência da vida não é modificada por esse saber do qual você está justamente convencido Uma coisa é a descrição científica de nós mesmos outra coisa é nossa experiência Se um dia alguém descobrir o eletrodo certo e o lugar correto onde aplicálo claro para que eu pare de pensar num acidente cuja lembrança não me deixa dormir imaginemos que eu peça para ser livrado dessa lembrança Ora na hora da intervenção mesmo que eu seja neurocientista minha experiência do que estará sendo feito comigo será a experiência de uma mudança imposta à minha subjetividade não a meus neurônios A descrição neuronal da subjetividade não altera nossa vivência subjetiva Procurar uma correspondência entre a sensação de que o olhar de Deus paira sobre mim e uma repetida agitação neuronal em alguma área do meu cérebro é fútil Cada descrição introduz a possibilidade de clínicas diferentes sobre objetos diferentes A conversa entre essas descrições e essas clínicas é de grande interesse mas é tudo salvo um conflito Abç 10 INFÂNCIA E ATUALIDADE CAUSAS INTERNAS E CAUSAS EXTERNAS Cara amiga Pelo que você me conta seus primeiros pacientes falam sobretudo do que lhes acontece hoje Queixamse das dores do dia e eventualmente da sensação de uma certa falta de futuro É você com suas perguntas que tenta evocar o passado especialmente a infância Aliás de vez em quando leva uma bronca como daquele paciente que lhe disse Olhe eu não estou aqui para falar de meus pais de meus irmãos e de meus primeiros anos no interior meu problema é agora Claro voc ê não se deixa abalar e segue perguntando Afinal passou anos de formação aprendendo que para que a cura aconteça é preciso tocar na raiz das dores de seus pacientes e que essa raiz de uma maneira ou de outra está na infância Mesmo assim você se pergunta deveríamos sempre procurar na infância e só na infância as razões do sofrimento psíquico mesmo que nosso paciente afirme o contrário É certo insistir na evocação do passado diante de uma catástrofe atual Às vezes voc ê observa sintome um pouco idiota Perdi o emprego e estou desesperado anuncia o paciente e eu faço o quê Perguntolhe se lembra de quando o filho dos vizinhos roubou o seu carrinho de madeira O que você acha N a verdade não faço uma grande diferenç a entre acontecimentos da infância e acontecimentos da vida adulta também não sei muito bem quando começa a vida adulta Explico melhor não estou nada certo de que os acontecimentos da infância sejam de uma naturez a diferente do que nos acontec e hoje Tampouco sei se é verdade que pela receptividade de nossos primeiros anos eles nos marcam com um ferro mai s quente que deixaria vestígios para a vida inteira Mas uma coisa sei qualquer evento nos marca e nos transforma só na repetição ou melhor dito num segundo momento em que ele é evocado retomado revivido Por exemplo fictício e obviamente simplificado se eu fui abandonado na porta da igreja quando nené esse evento por si só não tem uma implicação necessária em minha vida mas ele se torna decisivo no dia em que aos quinze anos minha namorada some de uma festa para onde fomos juntos de mãos dadas É esse segundo evento que dá destaque consciente ou inconsciente ao primeiro É a parti r desse segundo evento que eventualmente começarei a viver uma angústia desamparada cada vez que estiver sozinho ou também possível a não tolerar a presença de ninguém ao meu lado pois sei que todos são traidores que abandonam O funcionamento do trauma propriamente dito é o melhor exemplo Você sabe que a categoria de transtornos de estresse póstraumático foi proposta por psiquiatras americanos que trabalhavam com veteranos da guerra do Vietnã Eles constataram duas coisas 1 a guerra do Vietnã produziu uma percentagem de veteranos traumatizados muito maior do que qualquer outra guerra americana Segunda Guerra Mundial Guerra da Coréia 2 os sintomas de estresse póstraumáticos não apareciam logo após as situações extremas de batalha eles apareciam quase sempre quando o veterano terminava seu tempo de serviço voltava ao país e deixava o exército Concluíram assim o caráter traumáti c o de um acontecimento não depende de alguma qualidade específica da experiência vivida mas é um efeito de como mai s tarde essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido para o sujeito Os veteranos da Guerra da Coréia e ainda mai s os da Segunda Guerra viveram situações tão horríveis quanto os combatentes do Vietnã mas ao voltar para casa eles encontraram multidões agitando bandeirinhas de boasvindas Os veteranos do Vietnã voltaram para um país indignado e envergonhado com uma guerra que parecia não ter sentido para ninguém U m trauma é isso um evento mai s ou menos difícil que num segundo momento não consegue ser integrado na história do sujeito Outro exemplo Será que um tapa na cara de uma criança constitui um trauma ou não Não é possível responder ainda é preciso saber se mais tarde o sujeito esbofeteado encontrará ou não argumentos para dar algum sentido ao dito tapa Os sentidos que podem ser encontrados aposteriori são muitos o nosso sujeito num segundo momento poderá entender o tapa como a expressão de uma autêntica vontade pedagógica de pais amorosos ou como a manifestação de uma irritação que não tinha nada a ver com ele ou do desespero de quem não consegue ser pai ou mãe O tapa será propriamente um trauma caso o sujeito num segundo momento não encontre sentido algum para a violência que o golpeou Mas não é a definição do trauma que nos importa Com esses exemplos queria apenas lhe mostrar que os fatos de nossas vidas agem em nós pel a históri a em que se integram ou melhor pela história em que conseguimos ou não integrálos Não que a vida seja um continuum Ao contrário não é reconstituir melhor dito inventar um sentido que ligue o presente ao passado é uma obra incessante que nos oferec e um conforto necessário nos dá a sensação de que atos e fatos se inserem numa história num conjunto que somos nós Aliás reinterpretar o passado descobri r ou inventar novos sentidos para o que aconteceu é quase sempre uma maneira de mudar nosso presente Pois no fim dessa empreitada sendo o resultado de uma narração diferente somos mesmo diferentes Qualquer cura tem duas faces uma digamos assim demolidora que desfaz as certezas cristalizadas da história que nos acua em sintomas que à vista de nosso passado parecem inelutáveis e outra construtiva que nos permite reinventar ou modificar um pouco a história da qual seríamos o fruto Talvez tenha conseguido explicar um pouco por que a infância se torna importante no nosso trabalho Não é porque os eventos da infância seriam mais marcantes do que os de hoje mas porque os eventos de hoje tomam relevância e sentido a parti r dos de nosso passado e portanto de nossa infância Agora cuidado um dos traços evidentes de nossos tempos é que o sentido do presente é procurado muito mais no futuro do que no passado Era inevitável a modernidade define o sujeito não por sua herança mas por suas potencialidades À primeira vista é uma libertação o passado não nos define mais com a mesma veemência os anseios de mudança podem salvar meu dia De fato a libertação é apenas aparente o futuro projeta sobre o presente uma sombra tão escura quanto a que antigamente era projetada pelo passado Parece que saímos de uma cultura em que o passado nos impedia de inventar o presente para entrar numa cultura em que o futuro nos impede de saborear o que estamos vivendo É frequente por exemplo que alguém recuse um namoro porque não sei no que vai dar O prazer que uma relação proporciona é preterido porque duvidamos de seu futuro Mai s um exemplo que conheço bem por têlo encontrado em muitos pacientes e por ter passado perto de vivêlo Durante quase dez anos vivi entre Nova York e São Paulo O grande prazer de viver em duas metrópoles entre as mais interessantes do mundo podia ser facilmente estragado pela incumbência da escolha futura do lugar onde fincaria pé na hora em que parasse de viajar Enfim para entender como e quanto o futuro pode parasitar o presente pergunte aos adolescentes Em geral eles não aguentam mais ser considerados sempre como promessas de um futuro e vivem na impressão de que os adultos que mai s os amam desconsideram o presente de suas vidas Duas razões então para que façamos o esforç o de evocar o passado em cada cura para reinventar o sentido de uma história e para amenizar o pes o do futuro devolvendo assim quem sabe seu justo lugar ao presente de nossas vidas Você se queixa também de que alguns de seus pacientes parecem considerar que todos os seus males são por assim dizer resultados de causas externas perderam o emprego e não encontram um que os satisfaça foram abandonados por suas esposas e esposos carregam uma doença que os ameaça e os assola Enfim eles lhe propõem o catálogo de todos os vasos de flores que um ser humano pode receber na cabeça ao sair de casa Claro você me escreve deve ser possível ajudálos a aguentar melhor os golpes do destino e mesmo a reagir com mais eficácia mas no fundo ao escutálos parec e que sofrem só da adversidade do mundo Às vezes você acha que sua intervenção seria mais eficaz se você se transformasse em casamenteira agência de emprego ou orientadora profissional Chega a suspeitar que suas perguntas sejam desonestas como se elas supusessem sempre a responsabilidade de seu paciente e como se essa suposição tivesse como finalidade a de convencer seu paciente da utilidade de recorrer aos seus serviços Essa distinção entre eventos externos e eventos internos culpa da gente e culpa dos outros alimenta um conflito infindável entre sociólogos e psicoterapeutas ou às vezes entre psicólogos sociais e psicólogos clínicos No ringue parece que se enfrentam dois lutadores de um lado os que acham que a personalidade e os sintomas são frutos da cultura do emaranhado das relações e dos acidentes da vida do outro os que acham que personalidade e sintomas são frutos da dinâmica interna de impulsões desejos e censuras que se originariam no fundo singular da alma É um enfrentamento idiota mais um na lista dos conflitos inúteis Primeiro Fernando Pessoa em muitas ocasiões os poetas são mais sábios do que os psicanalistas já sabia que o mundo exterior é uma realidade interior Segundo como disse uma vez Lacan o inconsciente não é nem individual nem coletivo ele é o coletivo mesmo Em outras palavras nosso lugar único e singular é como o assento que nos é reservado numa sal a de teatro ele é o nosso está escrito no ingresso mas ele é o lugar imposto pela distribuição dos outros na mesma sala às vezes há lugares sobrando e no meio do espetáculo dá para mudar e se aproximar do palco mas será um pouc o de penetra nosso lugar designado é o que recebemos na compra do bilhete Será que faz sentido perguntarse se é um lugar individual o coletivo posto que é o nosso mas é decidido pela distribuição na sala dos que assistem ao espetáculo junto com a gente Acrescente a isso a constatação de que uma vez sentados o que comandará nossas emoções e nossa participação na peça será sim nossa singularidade mas uma singularidade feita de valores obrigações censuras repressões e desejos que são os mesmos que agitam os outros espectadores os quais aplaudem riem choram ou vaiam conosco Também considere esse é um conselho clínico que existe uma ampl a gama de transformações da personalidade que são propriamente ditadas pela situação coletiva na qual um sujeito se encontra Por exemplo a mudanç a de cultura que acontec e numa migração acarreta verdadeiras mudanças subjetivas Menos benigno e muito frequente é o caso dos sujeitos que sucumbem ao fascínio do grupo É bem conhecido o exempl o de homens comuns de todos os horizontes da vida que se transformaram em torturadores ou assassinos de massa nas burocracias totalitárias sem que nada na singularidade de suas histórias sintomas ou fantasias os predispusesse a essas tarefas Desistiram de seus valores de seus desejos de suas repressões singulares e ganharam em troca o conforto de uma vida regrada por uma só exigência a de ser um membro funcional do grupo um bom funcionário A gangue de adolescentes produz resultados parecidos transformando facilmente cordeiros em assassinos Nela cada um suspende radicalmente sua existência à a provação dos outros São casos aparentemente extremos pelas consequências que acarretam Mas não esqueça que somos todos membros de algum grupo burocrático assim como somos todos suficientemente narcisistas para deixar ao olhar dos outros o cuidado de decidir quem somos Enfim psicólogo social e psicoterapeuta não têm mesmo por que brigar O psicólogo social pode não ser psicoterapeuta o psicoterapeuta não pode não ser de alguma forma psicólogo social Pois se ele entender e abordar seu paciente como se fosse um Robinson Crusoé vivendo desde sempre na ilha deserta e sem nunc a encontrar Sexta Feira o terapeuta se parecerá com um físico de antes da física moderna Sabe aqueles que achavam que os corpos caem por uma propriedade interna porque são obstinadamente pesados Parece que desde então descobriuse que os corpos caem porque há muitos corpos de tamanhos diferentes e eles se atraem Abç 11 QUE MAIS Você me pergunta Que mais você gostaria de me dizer antes que a gente se separe Meu jovem amigo Claro há mais mil coisas das quais gostaria de lhe falar um pouco De qualquer forma como lembrava Freud a gente nunca consegue transmitir o que sabe de melhor Você me escreveu uma vez acho que foi depois de minha carta sobre a formação Entendo que identificarse ao analista não possa nem deva ser o que o paciente espera de uma cura mas me parece difícil imaginar que ao longo do tratamento não haja um pouco ou mesmo muito disso Afinal você repetiu várias vezes que os pacientes nos idealizam e é bom que seja assim é bom que eles suponham que sabemos mais do que sabemos de fato Isso ajuda a cura a funcionar Mas pergunto se nos idealizam como eles não estariam a fi m de se identificar conosco Pois é disse que identificarse com o terapeuta não pode ser o que se espera de uma terapia Acrescentei que entender o fim da análise como o momento de tornar se analista é mais uma maneira de propor a identificação ao terapeuta como solução Há nisso uma certa covardia terapêutica não sei o que fazer com seus problemas mas igualmente continue vindo aqui pois em troca você se tornará analista como eu O que voc ê diria a um médico que não conseguisse curar sua pneumonia mas em compensação lhe trouxesse a ficha de inscrição do vestibular de medicina Haja paciência Isso dito no decorrer da cura há muitos momentos em que é inevitável que o paciente nos considere e nos use como modelos Houve uma époc a em que recémchegado ao Brasil eu era considerado um psicanalista muito estrangeiro Esse trademark made in France fazi a parte de meus atributos mais facilmente idealizáveis É curioso o número de meus pacientes que decidiram um dia fazer um doutorado ou um pósdoutorado no exterior Concordo são efeitos de identificação ao analista Enfim voc ê acrescenta Se é assim será que o terapeuta não deveria de alguma forma levar em conta esses percalços da cura e assumir a responsabilidade que vai junto Se entendo direito você se pergunta se não deveríamos considerar que bem ou mal a um momento ou outro serviremos de exemplo para nossos pacientes e portanto aceitar a responsabilidade de quem pode servir de exemplo para muitos Não discordo do princípio Só não sei se concordamos sobre qual é o exemplo que importa Pois é claro que por este caminho seria fácil chegar à ideia de que o terapeuta deve mostrar ao mundo e a seus pacientes uma face feita de normalidade tranquila de bemestar equilibrado Em suma o casaco que a gente veste no consultório deveria ser uma fachada que pudesse ter para os pacientes uma virtude terapêutica Afinal contemplando a segurança aparente com a qual atravessamos a vida e escolhendoa como modelo quem sabe os pacientes consigam apaziguar algumas de suas dores É isso Poi s é não tenho nada contra um pouc o de identificação Como lhe disse concordo em pensar que seja um mal inevitável E concordo também que a identificação dos pacientes conosco nos impõe uma responsabilidade Só que entendo essa responsabilidade de outro jeito A longo prazo identificarse com uma máscara é desesperador Pedir ao terapeuta que ele se fantasie para propor a seus pacientes um modelo legal significa condenar os pacientes à tristeza de uma eterna quartafeira de cinzas Portanto se voc ê sente uma responsabilidade diante da tendência de seus pacientes a se identificarem com você essa responsabilidade deveria lhe sugerir o seguinte sej a você mesmo Ou seja não aja para apresentar a seu paciente e ao mundo uma imagem que seria agradável ou mesmo presumivelmente boa para quem a ela se identificasse mas aja quanto mais perto possível de seu desejo Você não deve se vestir conter seus gestos modular sua aparência ou inibir sua vida pública de forma a compor a vinheta de uma normalidade desejável Deveria ao contrário comportarse pública e privadamente como seu desejo manda Você me pergunta por quê Aqui vai Concordei com você em alguma medida inevitavelmente o paciente se identifica com o terapeuta Concordo também com a ideia de que isso implica uma responsabilidade do analista Ora sua responsabilidade é de viver quanto mais próximo possível de seu desejo de forma que se o paciente procurar um exemplo em você será o exemplo de quem ousa se permitir o que deseja Uma anedota Nos últimos tempos de minha análise em Paris quando já era jovem analista fui convidado a um baile de máscaras O convite dizia que a fantasia era obrigatória Claro assim como vários jovens colegas aceitei o convite com prazer cogitei uma fantasia mas na hora do vamos ver cheguei na festa com meu terno de flanela Óbvio ninguém me barrou na porta No entanto mais tarde enquanto eu conversava numa roda composta de convidados sem fantasia a donadecasa se aproximou e perguntou irônica E vocês então cadê suas fantasias Com boa presenç a de espírito um amigo respondeu Mas estamos todos fantasiados fantasiados de psicanalista lacaniano A piada produziu a hilaridade geral porque dizia a exata verdade todos naquela roda tínhamos preferido não nos fantasiar porque queríamos convencer o mundo sem contar os eventuais pacientes que poderiam estar na festa de que éramos psicanalistas Resultado estávamos mesmo fantasiados de psicanalista Se tivéssemos escolhido uma máscara de Arlequim ou Pierrô pelo prazer da festa estaríamos menos fantasiados e com isso talvez seríamos mais psicanalistas Mas a história não acaba aqui No meio da festa eis que alguém me assinal a que meu analista tinha chegado E de fato Serge Leclaire estava lá numa suntuosa fantasia de dama do século XVIII talvez a própria marquesa de Merteull das Ligações Perigosas com tudo o que tinha direito amplo vestido rendado leque na mão pancakee pó quase branco alta peruca sinal falso e generoso decote depilado claro Pois bem não era a hora de minha sessão mas ganhei de graça uma das melhores interpretações de minha análise Há uma outra pergunta sua que ficou até agora sem resposta Você me escreveu o seguinte Entendi que você não defende normalidade alguma você não quer definir uma maneira de ser que lhe pareceria mais certa do que as outras Mas será que não há algo que de alguma forma mesmo sem querer você promove em seus pacientes Pensando bem não sou tão neutro quanto disse É verdade que nada me parece patológico a menos que seja direta ou indiretamente o objeto da queixa do paciente Mas você tem razão há uma coisa que prezo e outra que de uma certa forma antagonizo e tento contrariar mesmo que não seja objeto de queixa Prezo a qualidade da experiência vivida Mas a qualidade não é uma questão de agrado ou desagrado a qualidade da experiência é função da intensidade com a qual nos permitimos viver O destino digamos assim nos serve pratos variados alguns dolorosos outros jocosos e festivos O importante para mim não é que os dolorosos sejam evitados o importante é que todos sejam saborosos ou seja que topemos saboreálos É muito raro por exemplo que entenda o trabalho psicoterápico como uma forma de consolação que tentaria atenuar o impacto de uma lembrança ou de um evento penosos Das várias formas possíveis de infelicidade a que me parece mais aflitiva não é necessariamente a que mais dói Muito mais trágico me parece o destino de quem atravessa a vida sem se molhar como se os efeitos felizes ou nefastos escorressem sobre a pele como água sobre as plumas de um pato Com seus altos e baixos imagine nossa vida como uma breve passagem por um circuito de montanhas russas Quem atravessasse a experiência anestesiado sem gritos pavor e risos teria jogado fora o dinheiro do bilhete Tenho a ambição ao contrário de ajudar meus pacientes a viver de tal forma que chegando o fim eles possam dizerse que a corrida foi boa Vamos ao que antagonizo mesmo que não seja objeto de queixa do paciente Antagonizo em geral os artifícios pelos quai s desistimos de ser sujeitos ou seja as estratégias que encontramos para evitar aquelas dificuldades de viver que fazem parte do lote standard de nossa cultura Sobretudo as estratégias coletivas desconfi o das instituições políticas religiosas burocráticas que oferecem a seus adeptos uma chanc e de esquivars e das expressões básicas da subjetividade moderna desde a incerteza moral o que é justo o que é errado até a questão sempre aberta sobre o nosso desejo qual é o meu querer Por que antagonizar essas formas de descanso da subjetividade Fechando o circulo porque elas diminuem a intensidade da experiência tornam a corrida sem graça Enfim você me pergunta qual seria minha última recomendação Aqui vai seja humilde Não quanto aos efeitos e resultados que voc ê espera de seu trabalho Mas sej a humilde na aceitação das condições impostas por seus pacientes Haverá os que não conseguem nem sentar nem deitar mas só podem falar caminhando Haverá os que devem ficar silenciosos durante semanas para se convencerem de que não é proibido calarse Haverá os que só querem vir de vez em quando porque não toleram uma obrigação em suas vidas Haverá os que somem durante semanas a cada vez que você viaja porque não podem se impedir de punir quem os abandonou Haverá os que querem vir cada dia só para sentir o cheiro de uma presença amiga Haverá os que não falam mas perguntam o que você acha porque precisam ouvir sua voz e pouco importa o que você dirá Haverá os que se irritam porque você não os abraça e os que não aguentam ser tocados Eles querem mudar e você também junto com eles pode querer que eles mudem Mas uma mudança não é coisa que possa ser imposta Ela não virá da imposição do rigor abstrato da técnica que você aprendeu do setting no qual você se formou ou da teoria com a qual você escolheu justificar suas palavras e seus atos terapêuticos Ao contrário para que uma mudanç a aconteça um dia é preciso que uma relação comece e uma relação só pode começar nas condições que são irrenunciáveis por seu paciente Em suma avance desarmado Um abraço desta vez com todas as letras
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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivrosInfo ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível CARTAS A UM JOVEM TERAPEUTA Contardo Calligaris Reflexões para psicoterapeutas aspirantes e curiosos 2004 Elsevier Editora Ltda Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19021998 Nenhuma parte deste livro sem autorização prévia por escrito da editora poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados eletrônicos mecânicos fotográficos gravação ou quaisquer Outros Projeto Gráfico Folio Design Editora ção Eletrônica Estúdio Casteliani Copídesque Shirley Revisão Gráfica Edna Cavalcanti Roberta Borgas Fotos de capa Luciana Cattani e Gabriel Boieras Elsevier Editora Ltda A Qualidade da Informação Rua Sete de Setembro 111 1 6 andar 20050006 Rio de Janeiro RJ Brasil Telefono 2139709300 FAX 2125071991 Email infoelseviercombr Escritório São Paulo Rua Elvira Ferras 198 04552040 Vila Olímpia São Paulo SP Tel 1138418555 ISBN 8535214933 CIPBrasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Calligaris Contardo 1948 Cartas a um jovem terapeuta o que é importante para ter sucesso profissional Contardo Calligaris Rio de Janeiro Elsevier 2004 Cartas a um jovem 1 Psicoterapia 2 Psicanálise 3 Psicanalistas 4 Orientação profissional 1 Titulo II Série COO 6168914 COIJ 615851 04 05 06 07 SUMÁRIO 1 Vocação profissional 2 Quatro bilhetes 3 O primeiro paciente 4 Amores terapêuticos 5 Formação 6 Curar ou não curar 7 O que fazer para ter mais pacientes 8 Questões práticas 9 Conflitos inúteis 10 Infância e atualidade causas internas e causas externas 11 Que mais 1 VOCAÇÃO PROFISSIONAL Meu jovem amigo Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão Você estaria procurando neste livro alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar psicoterapeuta E estaria perguntando antes de começar uma formação que vai durar no mínimo uma década e custar uma nota preta será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo É uma ótima pergunta Para ser um bom psicoterapeuta é úti l que a gente possua alguns traços de caráter ou de personalidade que dito aqui entre nós dificilmente podem ser adquiridos no decorrer da formação melhor mesmo que eles estejam com voc ê desde o começo Um exemplo só para começar Meu pai era médico internista e cardiologista mas funcionava para muitos de seus pacientes como o médico da família A cada ano no Natal na Páscoa e no dia de São José ele se chamava Giuseppe nossa casa se enchia de presentes Mas enchia mesmo a sala era abarrotada de caixas de vinhos e liquores panetones doces cestas de frutas exóticas sem contar a prataria e os objetos variados de decoração as canetas as agendas e os conjuntos para escrivaninha Nos últimos dias antes da festa a campainha não parava de tocar Nós crianças tínhamos a função e o privilégio de abrir os pacotes deixando cuidadosamente os cartões que os acompanhavam para que meu pai pudesse responder agradecendo Pois é se eu tivesse escolhido a profissão de psicanalista e psicoterapeuta para receber a mesma variedade e fartura de presentes minha vida seria um fracasso Você pode querer ser médico ou coisa que o valha porque é essencial para você ser olhado com gratidão e respeito por seus pacientes e pelos outros em geral Claro todo o mundo gosta disso não é Mas há sujeitos para quem é crucial ser constantemente o objeto de uma veneração amorosa Quer saber por quê Pense por exemplo no olhar de uma mãe para um caçula que teria nascido depois da morte do pai Desde seu primeiro vagido esse filho seria para a mãe ao mesmo tempo uma compensação e um memorial do marido que ela perdeu ele seria objeto de veneração e de eterna gratidão a Deus Escolho esse exemplo porque foi o caso justamente de meu pai ele nasceu quatro meses depoi s da morte do seu pai meu avô Obviamente não é isso que fez dele um grande médico Mas na escolha de sua profissão deve ter contado a necessidade de repetir a experiência inicial do olhar adorador de sua mãe Essa necessidade também deve ter contado na sua capacidade de ganhar uma gratidão que não se resolvia no pagamento dos honorários e portanto se expressava naquelas orgias festivas de presentes Pois bem se por alguma razão que não precisa ser a mesma do meu pai é importante para você se alimentar no reconhecimento e no agradecimento infinitos dos outros então não escolha a profissão de psicoterapeuta Por duas razões Primeiro na vida social o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espécie de gratidão que no geral é reservada ao médico como um agradecimento preventivo caso acabemos em suas mãos O psicoterapeuta encontra uma atitude nem sempre escondida por trás da polidez dos costumes que é uma mistura de temor com escárnio Funciona assim ao redor das mesas de jantar Puxa este cara aqui ao meu lado é psicocoiso vai ver que ele sabe ou entende sobre mim e minhas motivações mais do que eu mesmo sei e certamente mais do que eu gostaria que os outros soubessem A medida protetora mais banal é o ataque Ah você é psicanalista Justamente acabo de ler uma matéria onde é que era sabe daqueles americanos que provam que a psicanálise é uma baboseira você leu Segundo o psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes Nada de presentes no Natal na Páscoa ou nas outras festas Nas curas que proporciona o psicoterapeuta é por assim dizer el e mesmo o remédio E nos melhores dos casos quando tudo dá certo ele acaba exatamente como um remédi o que a gente usou e que fez seu efeito uma caixinha aberta com as poucas pílulas que sobraram no fundo do armário do banheiro A caixinha é guardada durante um tempo porque nunca se sabe um dia a gente a encontra não se lembra mais qual era seu uso constata que de qualquer forma o remédio está vencido e joga fora E é bom que seja assim Tento explicarlhe por quê Em regra idealizamos nossos profissionais da saúde médicos enfermeiros fisioterapeutas acupuntores dentistas eutonistas psicoterapeutas a lista é longa Quando os consultamos levandolhes nossas dores depositamos neles toda nossa confiança porque imaginamos supomos que eles saibam sobre nós e nossos males exatamente o que é preciso para que eles possam nos curar É bem possível que essa confiança seja excessiva mas mesmo em seu excesso ela é útil para que uma cura funcione Acreditar no médico que nos prescreve um remédio não é tudo claro ainda é preciso que ele prescreva o remédio certo Mas é bem provável que para quem acredita em seu médico aumentem as chances de que o remédio prescrito seja eficaz de que o paciente não caia na percentagem estatística dos que sempre existem não obtêm efeito algum com o remédio A importância da confiança para que as curas funcionem vale provavelmente para todas as profissões da saúde E vale mais ainda no caso da psicoterapia Então por que o psicoterapeuta não poderia esperar o tipo de vínculo duradouro e afetuoso que garante panetones vinho e outros presentes nas festas Voltarei sobre isso em outras cartas mas desde já aqui vai nenhuma psicoterapia seja ela qual for deveria almejar a dependência do paciente Como disse antes na psicoterapia o terapeuta funciona um pouco como o remédio Ora transformar a confiança inicial numa eterna admiração e gratidão seria como substituir uma doença por uma toxicomania você não tem mais pneumonia mas tem uma necessidade visceral de tomar e venerar antibióticos Ou ainda seria como curar um alcoolista tornandoo heroinômano De fato se a psicoterapia faz seu efeito o paciente para de idealizar o terapeuta Tudo isso apenas para dizer que se você gosta da ideia de ser um notável na cidade e de se sentir amado a psicoterapia talvez não seja a melhor escolha profissional para você Só uma nota à margem para ser sincero Há terapeutas que aparentemente cultivam o amor a admiração e a gratidão de seus pacientes acima de tudo Eles parecem se importar mais com isso do que com a eficácia das curas Ou seja há terapeutas que escolheram a profissão com uma boa dose daquela vontade de ser amado e admirado a mesma que acabo de lhe dizer talvez seja uma contraindicação para o exercício da profissão Pois bem devo lhe confessar que alguns desses terapeutas podem ter o maior sucesso eles se tornam frequentemente aliás chefes de escolas e talvez empurrados pela necessidade de ser admirados podem vir a ser teóricos brilhantes e inventivos Seus consultórios são eventualmente abarrotados mas eles devem seu sucesso profissional ao amor e à admiração que nunca se esquecem de alimentar em seus pacientes De fato pela experiência acumulada pelo talento e pela capacidade de inspirar confiança eles são em geral ótimos terapeutas no começo das curas Mas os tratamentos que dirigem duram para sempre transformamse em dependências químicas Não é raro que esse tipo de terapeuta considere e vivencie mesmo o fim ou a interrupção de uma cura como uma espécie de traição amorosa de seu paciente Essa perpetuação das curas não é o único problema É fácil reparar que em quase todas as orientações da psicoterapia a história da disciplina não é feita de discussões confrontação de ideias e resultados interrogações e pesquisas mas se apresenta como um vaudevilie nem sempre engraçado em que se alternam fiéis e infiéis lugartenentes e traidores Ou seja é uma história de amores desamores e ódios pessoais Nisso aliás a psicanális e ganha o prêmio Poi s é tudo isso tem uma origem comum os chefes de escola vieram à psicoterapia como crianças decididas a viver para sempre com a agradável sensação de ser objetos insubstituívei s de amores e gratidões maternas E delegaram a tarefa de manter essa ilusão a alunos e pacientes Por isso insisto As psicoterapias em geral se beneficiariam muito com algumas décadas de menos brilho menos neurose de seus chefes e mais cuidado com os pacientes Portanto por favor se sua personalidade pede amor e admiração ao mundo invente uma crença tornese médico mas pelo bem das psicoterapias desista Ou então mas este é um caminho longo antes de se autorizar a ser psicoterapeuta faça o necessário para mudar mesmo Mas deixemos as razões de desistir e vamos ao que importa Esta carta deveria tratar dos traços de caráter que eu procurari a em quem quisesse se tornar psicoterapeuta Não sei decidira ordem mas todos estes eu gostaria de encontrar 1 Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas por diferentes que sejam de você Proponholhe um teste um pouco difícil mas afinal você deve tomar uma decisão importante bata um papo com dois ou três moradores de rua aproximese deixeos falar o que em geral ninguém escuta salvo justamente os psicoterapeutas dos Centros de Atenção Psicossocial Se você conseguir escutar digamos uma hora sem que o discurso quase sempre desconexo abale sua atenção e se não recuou instintivamente quando eles passaram uma mão encardida na sua camisa ou direto no seu braço passou no teste Repita se possível com outras amostras pacientes psiquiátricos numa enfermaria ou num hospício pacientes terminais num hospital geral e pessoas assoladas por um luto Sei claro que são provas que podem parecer estranhas e extremas sugeridas por alguém eu no caso que tem desde sempre uma simpati a senão uma atração pelas sarjetas do mundo Mas minha intenção é prevenir Vej a bem eu me formei numa escol a de gente engravatada ou então alardeando camisas de seda modelo Revolução Cultural Chinesa Alguns anos depois de ter começado minha prática de psicanalista decidi trabalhar durante um tempo foram dois anos num IME Instituto Médico Educativo do norte da França em Le Havre Eu seria terapeuta de crianças que só tinham em comum o traço seguinte todos os pais a assistência social a escola haviam desistido delas Durante a visita preliminar para obtero emprego sentei no páti o da instituição contemplando a estranha agitação ao meu redor De repente um menino bonito e inquietante pel o olhar esbugalhado vei o até mim subiu no meu colo eu pensei legal ele me acha simpático não é e começou a comer meu rosto Não eram mordidas eram chupadas largas de boc a aberta nos olhos no nariz nas bochechas num instante minha cara estava coberta de uma saliva espessa que tinha o cheiro e o gosto inconfundíveis de café com leite ruim como só a instituição psiquiátrica consegue fazer Durou uma eternidade e eu deixei até que ele mesmo talvez estranhando que eu não o afastasse nauseado parou e ficou me olhando Passei a mão na cabeça dele devagar para não assustálo num gesto que queria dizer está bem entendi que este é seu jeito de falar esta é literalmente sua língua pode falar comigo O diretor da instituição que estava sentado ao meu lado comentou bom acho que você foi aprovado E pensei o seguinte isso deveria ter acontecido comigo muito tempo atrás antes de começar minha formação quando ainda daria para desistir Por sorte passei nesse teste tardio 2 Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito Você pode ter crenças e convicções Aliás é ótimo que as tenha mas se essas convicções acarretam aprovação ou desaprovação morais preconcebidas das condutas humanas sua chance de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida para não dizer nula Explico melhor Você pode ser religioso acreditar em Deus numa revelação e mesmo numa ordem do mundo No entanto se essa fé comportar para você uma noção do bem e do mal que lhe permite saber de antemão quais condutas humanas são louváveis e quais condenáveis por favor abstenhase seu trabalho de psicoterapeuta será desastroso A preocupação moral não é estrangeira ao trabalho psicoterápico mas para o terapeuta o bem e o mal de uma vida não se decidem a partir de princípios pré estabelecidos eles se decidem na complexidade da própria vida da qual se trata Um mesmo sintoma pode será razão do sucesso ou do fracasso de uma existência Se você sofre de insônia porque por exemplo sua história o condena a ser para sempre a sentinela da casa pode acontecer que você se torne o responsável noturno mais confiável de uma central nuclear ou ao contrário que você atravesse a vida de café em café numa luta extenuante contra o sono que obviamente sobra para o dia Em suma a insônia não é nem ruim nem boa Agora aplique a mesma ideia ao caso de uma preferência ou de uma fantasia sexual e entenderá que um terapeuta que tivesse um juízo moral preconcebido sobre a tal fantasia ou preferência não teria condição de respeitar a singularidade de seu paciente Você poderia perguntar mas será que não há condutas que eu posso julgar desprezíveis seja qual for seu lugar origem e função na vida de meu paciente O que faço se meu trisavô era Zumbi dos Palmares e alguém se apresenta me conta que odeia negros e orientais acredita na supremacia da raça branca e quer ajuda porque o exemplo é real só consegue desejar corpos dessas outras raças Pois bem de duas uma ou você pode escutar esse paciente sem juízo moral preconcebido mas sem mesmo ou então é um limite um caso do qual você não pode se ocupar Encaminhe para outro terapeuta que talvez tenha limites diferentes É fácil entender que se você tiver opiniões morais prontas sobre a metade dos atos possíveis nesta terra é melhor deixar a profissão de terapeuta para quem tem mais indulgência pela variedade da experiência humana 3 Este ponto é controvertido além de uma grande e indulgente curiosidade pela variedade da experiência humana eu gostaria que o futuro terapeuta já tivesse nessa variedade uma certa quilometragem rodada Claro sei que Freud era ao que parece bem certinho e isso não impediu que ele se tornasse capaz de lidar como terapeuta e não como moralista com sintomas e fantasias sexuais que sua época condenava radicalmente Também não impediu a descoberta da existência da sexualidade infantil da qual ninguém queria sequer ouvir falar Como ele conseguiu É que na sua própri a análise ou autoanálise que fosse el e soube encontrar fantasias e desejos que não eram muito distantes dos que animam vidas estranhas e reprovadas socialmente Ele aprendeu em suma que é difícil senão impossível encontrar desvios pelos quais ao menos uma parte de nossa mente não se tenha engajado em algum momento Por que qualquer terapeuta não faria o mesmo Acontece que duvido que a coragem analítica de Freud possa ser compartilhada por muitos Por isso prefiro contar com a experiência efetiva ou seja gostari a que a capacidade de considerar a variedade das vidas e das condutas com carinho e indulgência viesse ao terapeuta da variedade animada de sua própria vida No caso de Freud essa exigência teria sido inútil e enganosa Mas como considero Freud uma exceção na hora de escolher um terapeuta minha preferência iria para alguém que não fosse um cartãopostal do conformismo Portanto se você estiver hesitando em escolher a profissão de psicoterapeuta só porque por uma razão qualquer voc ê não é um model o de normalidade esqueç a essa preocupação Claro é possível que voc ê ainda encontre no seu caminho instituições de formação muito preocupadas em não comprometer sua aura de respeitabilidade social Até pouc o tempo atrás por exemplo havia instituto de formação de psicanalistas que consideravam que um ou uma psicanalista não poderiam ser homossexuais A justificativa era que os tais sujeitos não teriam chegado à suposta maturidade genital ou seja àquel e estágio mas seria melhor dizer àquel e estado da sexualidade em que as pessoas transariam só para fazer filhos direitinho Provavelmente tratavase sobretudo de fazer bonito aos olhos da sociedade bem pensante cujos membros são afinal os melhores pacientes ou seja neste caso aqueles que podem pagar mais A prova disso é que os mesmos institutos durante anos recusaram dar formação a candidato que tivessem algum tipo de deformidade física Diziam que os defeitos visíveis impediriam que os pacientes idealizassem seu terapeuta como é necessário que aconteça inicialmente para que a cura funcione Os psicanalistas eram no começo da história da psicanálise um bando de tipos excêntricos marginais da medicina e das ciências sociais Entendese que alguns ficassem ansiosos em ganhar cartas de recomendação para os clubes dos notáveis normais e bonitos Mas não se entende que essa fachada de normalidade possa ser hoje um critério na hora de selecionar candidatos para formação Enfim se sua vida sexual for um pouc o colorida e voc ê esbarrar numa instituição que condena seu desejo não hesite passe longe siga em frente e procure outra instituição Lembrese de duas coisas Primeiro um psicoterapeuta e ainda mais um psicanalista que define uma conduta como desvio não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome da psicanálise Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social quer seja em nome de seu esforço para reprimir nele mesmo o desej o que parece condenar Segundo e mai s geral quem estigmatiza categorias universais como os homossexuais os sadomasoquistas os exibicionistas etc é um atacadista enquanto a psicanálise trabalha no varejo a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares 4 O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico Desaconselho a profissão a quem está muito bem obrigado por duas razões Primeiro uma parte essencial da formação de um terapeuta que trabalhará com as motivações conscientes ou inconscientes de seus pacientes consiste no seguinte o futuro terapeuta deve el e mesmo ser paciente durante um bom tempo Certo é possível aparentemente submeterse a uma terapi a ou a uma psicanálise só por razões didáticas para aprender o método ou como dizem alguns para se conhecer melhor Mas insisto no aparentemente pois de fato é improvável que uma psicanálise aconteça sem que um sofrimento reconhecido motive o paciente O processo não é necessariamente desagradável mas pede uma determinação e uma coragem que podem falhar mai s facilmente em quem não precis a de tratamento Por que diabo me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça lugares malcheirosos e arriscados se eu não for empurrado pel a vontade de resolver um conflito acalmar um sintoma e conseguir viver melhor Uma terapia puramente didática é geralmente uma simulação de terapia E eis uma segunda razão para preferir que o futuro psicoterapeuta traga consigo uma boa dose de sofrimento psíquico e precise se curar Durante os anos de sua prática clínica no futuro muitas vezes voc ê duvidará da eficácia de seu trabalho Encontrará pacientes que não melhoram agarrados a seus sintomas mai s dolorosos como um náufrago a um salvavida viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão alfinetes de brinquedo agitados em vão contra forças imensamente superiores Nesses momentos que acredite serão frequentes será bom lembrar que você sabe mesmo e não só pelos livros que sua prática adianta Sabe porque a prática que você propõe a seus pacientes já curou ao menos um você Resumindo meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta se você sofre se seus desejos são um pouc o ou mesmo muito estranhos se graças à sua estranheza você contempla com carinho e sem julgar ou quase a variedade das condutas humanas se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade amado e respeitado pela vida afora então bemvindo ao clube talvez a psicoterapia sej a uma profissão para você Abç 2 QUATRO BILHETES BILHETE 1 Caro amigo recebi sim seu bilhete Gostei da provocação Lida a minha primeira carta você me pergunta se então não haveria nenhum desvio apreciei as aspas que impediria que um sujeito se tornas s e psicoterapeuta e acrescenta Poderi a um travesti ser psicoterapeuta ou psicanalista E você iria num ou numa terapeuta travesti Pois é eu escolheria um analista em que tivesse confiança As razões dessa confiança seriam provavelmente imponderáveis e eventualmente irrisórias desde a recomendação de um amigo até a decoração do consultório passando por uma contribuição decisiva do terapeuta à última enciclopédia de bridge ou por algo que ele ou ela disse ou escreveu em matéri a de psicanálise De qualquer forma quando escolhi meu analista não me lembro de ter pensado que escolhia um analista heterossexual Suas fantasias e preferências sexuai s não o definiam eram irrelevantes aos meus olhos A coisa seria diferente na escolha de um analista travesti Sim e não Escolher um ou uma analista travesti teri a um significado muito especial para quem compartilha com a cultura dominante a atitude seguinte geralmente pensamos que um sujeito que tenha e assuma uma preferência sexual excêntrica digamos assim seja necessariamente um sujeito que só pens a nisso um tarado ou seja um sujeito que se definiri a exclusiva mente por seu desejo sexual Essa convicção é sempre fruto de alguma repressão Funciona assim se reprimo minhas fantasias por mínimas que sejam de experimentar os prazeres que imagino sejam reservados ao outro sexo quem parece viver essas fantasias o travesti no caso me aparecerá como o símbolo vivente da lubricidade Claro tratase somente da lubricidade que não me autorizo ter Pois de fato na maioria das vezes os travestis são mais preocupados em definir sua identidade do que afobados de gozar como míticos hermafroditas Em suma se você imagina que qualquer travesti é um ser que conhece os prazeres de ambos os sexos e é afoito por ambos talvez um travesti não sej a para você o terapeuta ideal A menos que você não queira justamente um terapeuta ou analista que lhe apareça de imediato como depositário de um extraordinário saber sobre o sexo Nesse caso por que não Por outro lado se você não caminha com a cultura dominante ou seja não transforma uma preferência excêntrica numa tara sexual um terapeuta ou analista travesti não será para você muito diferente de um terapeuta ou analista de terno ou tailleur Armani Agora não sei se há analistas ou terapeutas travestis Portanto não adianta me pedir telefone e endereço do consultório BILHETE 2 Gosto disso você é persistente e agora pergunta E um pedófilo poderia ser terapeuta ou analista Você quer que eu estabeleç a um limite ou seja que coloque alguma prática ou fantasia sexuai s no campo de uma anormalidade que tornasse por si só impossível o exercício da psicoterapia ou da análise Por isso você recorre a uma preferência sexual que é além de ilegal repulsiva pois há ótimas razões em nossa cultura para que a infância seja protegida do desejo sexual dos adultos Mas disso em princípio cuida a nossa polícia A objeção à ideia de um terapeuta pedófilo existe mas é de outra natureza A fantasia do pedófilo é propor ou impor seus desejos a um sujeito que mal entende o que está sendo feito com ele e com seu corpo É uma fantasia de domínio e sobretudo de domínio pelo saber É a história verídica daquele padre americano que pedia sexo oral explicando a seu coroinha que era uma forma de santa comunhão Não é difícil entender que essa fantasia não é compatível com o exercício da psicoterapia ou da análise Claro no começo de uma terapia ou análise o paciente sempre supõe que seu terapeuta saiba muito mais do que ele sobretudo em matéria de desejo e de sexo Justamente esperase de uma terapi a que el a não transforme essa suposição numa dependência crônica Ora é exatamente o que acontecerá se o terapeuta se servir da suposição inicial do paciente para realizar sua própria fantasia sexual ou seja se ele propriamente encontrar seu goz o na suposta supremacia de seu saber E se o terapeuta for pedófilo a tentação será grande BILHETE 3 Desta vez voc ê pergunta Qual é seu limite Qual é o paciente que voc ê recusaria e encaminharia alhures E será que existem limites por assim dizer universais Ou seja sujeitos que nenhum terapeuta ou analista deveria aceitar Um grande analista francês Jacques Lacan disse uma vez durante uma supervisão que a gente não deveria oferecer tratamento aos parricidas Mas não explicou por quê É sempre possível construir uma teoria geral do parricídio como infâmi a inaceitável Mas suspeito que se tratasse de um limite pessoal de Lacan ou seja que ele Lacan não tinha condição de oferecer análise a um parricida Por quê Pois é se você conhecesse a raiva famélica com a qual os filhos espirituai s de Lacan se jogaram em cima de seu cadáver ainda antes de sua morte entenderi a facilmente não me eximo da crítica participei do festim Talvez nos últimos anos de sua vida Lacan já sentisse hálitos carniceiros perto de seu pescoço e com isso achasse os parricidas pouco simpáticos E eu Qual é meu limite Há só um que me pareç a evidente são aqueles sujeitos que conseguem se autorizar a cometer pequenos ou grandes horrores participando de aventuras coletivas que os absolvem de antemão N o fi m dos anos 70 em Paris por falar italiano recebi alguns pedidos de terapi a de brigadistas vermelhos que fugiam da Justiça italiana exilandose na França Todos viviam numa espécie de divisão Eram sujeitos atormentados por dúvidas dívidas e culpas em mi l aspectos de suas vidas privadas Mas seus atos militantes pertenciam por assim dizer a outro mundo no qual não cabi a nenhum questionamento subjetivo fora naturalmente a interrogação Sou ou não sou fui ou não fui um bom militante Por exemplo um jovem aflito por pensamentos obsessivos e impotência sexual não tinha nada para comentar sobre o fato de que numa manhã de inverno el e enfiara duas balas calibre 45 nos joelhos de um sindicalista da FIAT bem na hora em que saindo para o trabalho o homem se virava para dizer tchau à mulher e à filha Pernizar gambizzare atirar nas pernas como se dizia na época e deixar inválido um pai de família não era para esse jovem um ato do qual el e reconhecesse propriamente a autoria Pernizar era a expressão normal da máquina revolucionária da qual ele era uma engrenagem Poi s bem consegui oferecer tratamento a somente um desses brigadistas exilados E foi porque logo nas primeiras entrevistas ao expor o passado militante sua confortável sensação de ter sido apenas um instrumento do brigadismo não resistiu e ele descobriu com um certo horror que o dedo que puxara o gatilho tinha sido o seu Pode ser que meu limite neste caso decorra de uma antipatia atávica por todos os grupos que nos fornecem a ocasião de agir como instrumentos de uma causa adormecendo os espectros da consciência Afinal desse ponto de vista os jovens brigadistas não deviam ser muito diferentes dos fascistas que perseguiram meu pai Mas talvez meu limite coincida com o limite universal sobre o qual você me questiona Talvez um terapeuta ou um analista não tenham nunca o que propor a quem burocrata militante ou crente consegue agir e perpetrar pequenos ou grandes horrores sem que sua subjetividade esteja envolvida Você já ouviu não é Essas eram as ordens esta é a regra isso é o que manda nossa fé BILHETE 4 Você pergunta Será que não deveríamos acrescentar entre os traços de caráter esperados num terapeuta uma vontade de mexer com a vida dos outros de ensiná los influenciálos Admito sem dificuldade que no decorrer de uma terapia ou de uma análise há momentos em que o terapeuta ou analista é levado a apontar um caminho e mesmo a empurrar o paciente na direção que parec e mai s certa Nenhuma vergonha nisso Aliás a maior associação de psicoterapeutas dos Estados Unidos da qual sou membro chamas e American Counseling Association counselor significa conselheiro não no sentido honorífico simplesmente alguém que dá conselhos Será que o terapeuta ou analista não é também voc ê pergunta alguém que gosta de aconselhar com os privilégios ilusórios que es s a posição comporta sensação de relevância de sabedoria efetiva Quando era moleque detestava conselhos como a maioria de meus colegas Quem oferecia conselhos era chamado pela gente na Itália de cagasenno ou seja melhorando a chulice na tradução defecador de sapiência Ora o conselheiro cagasenno é aquel e que se prevalece de um saber externo à situação sua experiência pretensamente maior seu elevado senso moral ou uma reserva de banalidades que ele chama de sabedoria ancestral Em nome desse saber o cagasenno quer escolher pela gente Como se espera que aja o terapeuta ou analista na hora em que for preciso empurrar o paciente para frente A escolha da direção ou do caminho não deve ser decidida por uma norma nem mesmo por uma sabedoria Esperas e que o terapeuta ou analista empurre o paciente na direção de seu desejo Aliás é por isso que uma terapia leva tempo porque antes de empurrar é preciso que esse desejo consiga se manifestar um pouco Mesmo assim na hora de empurrar é difícil para o terapeuta respeitar a direção apontada pel o desej o do paciente ou seja é difícil não achar que o desej o do paciente se parece sempre olhe só que coincidência com o que a gente escolheria se estivesse na mesma encruzilhada Por isso é bom que o terapeuta ou analista não tenha uma grande paixão pedagógica Se ele for cagasenno de caráter empurrará na direção que lhe parece certa à vista de seus conceitos ou preconceitos Falando nisso um episódio recente foi particularmente tragicômico uma igrej a evangélica quis e tentou se constitui r como centro de formação psicanalítica Nota aparentemente apesar dos ataques que ela recebe a psicanál i se ainda deve ser uma denominação interessante Fora isso dá calafrios a ideia de terapeutas convencidos de que o Senhor e Bom Pastor sabe o caminho certo para cada ovelha e o comunicará a seus ministros de modo que eles possam encaminhar as ditas ovelhas pela via do bem Brrrrrrr Em suma muito mais do que a vontade de ensinar os outros e de mexer com suas vidas é importante como já lhe disse a aceitação carinhosa da variedade das vidas com todas as suas diferenças Sei como esse carinho se manifestava em mim quando era ainda criança Sobretudo aos sábados eu voltava para casa do cineclube de meu colégio no fim da tarde Em Milão já era noite Caminhava devagar olhando para cima gostava de ver as janelas iluminadas a cor das cortinas o brilho dos lustres a luz trêmula dos primeiros televisores branco e preto No verão chegavam aos meus ouvidos o tilintar das mesas que estavam sendo postas e das cozinhas alguns gritos chamados e mesmo pequenas brigas música e vozes do rádio Eu ficava nostálgico daquelas existências que imaginava ao mesmo tempo parecidas com a minha e diferentes Sentia pena por todas as vidas que eu não viveria e uma certa alegria porque pensava que de todas no fundo eu podia reconhecer ao menos o barulho e o cheiro que me eram estranhamente familiares Mais comum do que o gosto pelas janelas iluminadas a paixão pela literatura é geralmente sinal do mesmo carinho e da mesma aceitação diante da variedade das vidas Detalhe o amor pela literatura pode ser indiferentemente amor pelos autores de cordel ou pelos clássicos mas é sempre amor por muitos livros Como dizi a Santo Tomás apenas modificado Temo o psicoterapeuta de um livro só Abç 3 O PRIMEIRO PACIENTE Minha jovem colega Imagino que você seja recémformada o que não significa apenas recémsaída dos bancos de sua faculdade mas disso falaremos outra vez prestes a começar a atender seu primeiro paciente Você poderia perder coragem perguntandose mas quem me escolherá como terapeuta com tantos profissionais experientes e medalhões na praça Um kamikaze Pois é deixe que lhe conte a história de meu primeiro paciente Resolvi me tornar psicanalista em 1974 Antes daquela data eu ensinava teoria literária na Universidade de Genebra onde havia terminado minhas graduações Não tinha a menor ambição ou desejo de me tornar psicanalista Mas há anos passava quatro dias por semana em Pari s para me analisar Da psicanálise eu esperava que curas s e minhas assíduas angústias e uma gastrite crôni c a que desde a adolescência fazi a do Buscopan meu companheiro mais fiel As angústias se amenizaram e a gastrite sumiu Por isso mesmo a psicanálise começou a me interessar seriamente passei a freqüentar além do seminári o de Lacan a missa semanal parisiense cursos e grupos de estudo da École Freudienne de Paris que era a instituição à qual pertencia meu analista Mesmo assim seguia pensando que meu futuro seria pesquisar ensinar e escrever certamente não clinicar Em 74 então recebi uma proposta que me acuou Alguém tinha gostado de um livro que eu acabara de publicar e que era uma interpretação da grande mudança na pintura francesa de Courbet a Duchamps Esse alguém Yves Velan um escritor e um homem fora do comum que infelizmente perdi de vista ensinava numa universidade americana e propôs que me candidatasse a um posto que coincidi a com minhas qualificações As grandes decisões da minha vida sempre foram assim na hora em que os ingredientes chegam na boc a do funil Aceitar a proposta americana significaria impulsionar de vez uma carreira acadêmica que de fato eu já começara mas significaria também deixar Pari s minha análise e a École Freudienne Pois é decidi de repente que a vida acadêmica não era mais o que eu queria A psicanálise me interessava mais Na École Freudienne de Paris para que um membro começasse a atender não era prescrito nenhum exame ou entrevista específica Mas era preciso que quando se considerasse pronto para receber seu primeiro paciente ele anunciasse a decisão ao seu analista O dito analista não daria nenhuma autorização oral ou escrita que fosse era apenas esperado que ele se opusesse caso necessário O sistema parecia fácil demais sem currículo para ser preenchido e sem entrevistas de seleção Na realidade era assustador pois forçava cada um a encarar a responsabilidade de sua decisão sem um carimbo que o autorizasse A ideia do consenso tácito do analista fazia a festa de alguns e o drama de outros Os candidatos histéricos eram sempre convencidos de que seu analista mal tinha conseguido esconder o júbilo os candidatos obsessivos nunca paravam de perguntar se será que ficou calado porque acha que estou pronto porque não ouviu direito porque considera apenas que não serei uma calamidade porque acha que serei mas não quis me magoar ou porque não soube o que dizer O fato é que quando lhe comuniquei que começaria a atender pacientes Serge Leclaire meu analista não disse nada E lá fui eu Na época com o salário de professor assistente da Universidade de Genebra magro mas em francos suíços pagava minhas viagens trem de segunda classe minha análise e o aluguel de um apartamento de quarto e sala em que morava em Paris Em Genebra me hospedava em casa de amigos A transformação de meu quarto e sala do 32 rue St Paul deu nisto a sala se tornou sala de espera e o pequeno quarto se tornou consultório À noite a sala de espera se transformava em quarto graças a um sofácama Comprei minha poltrona numa liquidação da Samaritaine a poltroninha para os pacientes achei no mercado das pulgas a bas e do divã confesso que achei na rua um amigo me deu um colchão que lhe sobrava e uma amiga costurou uma colcha de retalhos que dava ao conjunto um aspecto tipo Freud dos pobres A mesa que ainda carrego comigo encontrei na demolição de um bar perto de casa Estava pronto só faltavam os pacientes Meu primeiro paciente foi indicado por uma amiga Nicoil e SeIs que era analista e bibliotecária da École Freudienne e que confiava em mim como futuro analista pel a razão seguinte ela sabia que por mai s que a psicanálise me tivesse conquistado eu continuava apaixonado por muitas outras coisas que me seduziam tanto quanto e sobre as quais conversávamos assiduamente repetindo capucinos num bar da rue GayLussac Falávamos com o mesmo prazer dos romances de Barbara Cartland ou do último prêmio Goncourt das personagens mais excêntricas do século XVII que era meu século preferido da história da psiquiatria de crimes verídicos romances policiais e por aí vai O critério que aparentemente valeu para que ela me encaminhasse um paciente val e hoje para mim na hora de encaminhar um paciente prefiro os analistas cuja curiosidade para com o mundo a vida e a cultura se estenda além das quatro paredes do consultório Quando chegou o dia da primeira entrevista do primeiro paciente eu tinha uma preocupação dupla queri a que o apartamento tivesse cara de consultório mas também queri a que não tivesse cara de consultóri o no di a de sua inauguração Afinal eu pensava qual paciente gostaria de descobrir que o analista em que ele vem depositar uma esperança de cura é um novato absoluto Cuidei dos detalhes uma certa desordem de papéis e notas na mesa uma pequena desarrumação do acolchoado do divã para mostrar que alguém já deitara ali três ou quatro baganas no cinzeiro na época não só eu mas a França inteira fumava para mostrar que naquela tarde já me debruçara sobre outros destinos cabeludos Esse primeiro paciente se analisou comigo durante sete anos Era um jovem psiquiatra que se tornou analista por sua vez Alguns anos depois de ele terminar sua análise quando eujá era um analista reconhecido e estabelecido nos encontramos por acaso num congresso e conversamos um pouco De repente el e me perguntou Eu fui seu primeiro paciente não fui Hoje responderia imediatamente a verdade Na época eu ainda me preocupava em defender a aura de mistério atrás da qual os terapeutas gostam de se esconder sob pretexto de que o paciente precisa idealizar seu terapeuta Portanto fiquei perplexo e calado com aquela cara de Há que os analistas usam para fazer pensar que primeiro eles já estariam vendo a razão verdadeira da pergunta que está sendo feita e que segundo essa razão desconhecida por quem pergunta é infinitamente mais interessante do que a resposta que eles deveriam dar Mas meu expaciente aparentemente sua análise tinha funcionado não deixou para menos e continuou Acho mesmo que fui seu primeiro paciente não sei se você sabe mas é o que eu tinha pedido para Nicolle que me deu seu endereço na época Quero um analista eu lhe havia dito de quem serei o primeiro paciente E acho que ela respeitou meu pedido Queria ser o primeiro paciente porque pensava que como meus problemas eram meio banais só um analista debutante me escutaria com toda sua atenção Gostaria de poder dizer que ele estava enganado que durante todos estes anos escutei meus pacientes com a mesma paixão vontade de entender e de dizer a coisa certa que eu sentia no começo daquela primeira análise E é verdade que até agora consigo quase sempre me surpreender com cada história Afinal se um terapeuta não enxergasse mais a intensidade e a originalidade do drama e da tragédia por trás da eventual banalidade de cada vida que lhe é contada ele estaria precisando de reciclagem urgente Mas admito o seguinte lembrome do primeiro sonho daquele paciente em cada detalhe não posso dizer a mesma coisa de todos os primeiros sonhos dos pacientes que seguiram Claro nada garante que a voracidade da escuta e uma atenção exacerbada sejam as melhores conselheiras para um terapeuta Além disso dificilmente o desejo de ser o primeiro paciente de seu analista é apenas um jeito de garantir uma escuta especial e atenta Meu paciente escondia de seus pais algumas escolhas de vida que se fossem conhecidas lhe valeriam um repúdio No mínimo era o que ele imaginava Não estranha que el e quisesse ser de uma certa forma o legítimo primogênito de alguém para quem ele poderia contar tudo A escolha de um terapeuta é sempre guiada por razões um pouco mais complexas e reveladoras do que o próprio paciente imagina Essa história deixa alguns ensinamentos 1 Nem sempre é verdade que os pacientes preferem terapeutas experientes 2 Como os caminhos pelos quai s um paciente coloca sua confiança num terapeuta são muitos se não são inúmeros o mais simples talvez sej a que nos contentemos em ser nós mesmos não é preciso desarrumar colchas e deixar baganas nos cinzeiros 3 A experiência certamente ajuda na conduta das curas mas de qualquer forma seria bom que guardássemos sempre alguns elementos do espírito do debutante a curiosidade a vontade de escutar e por que não o calor de quem a cada vez acha extraordinário que alguém lhe faça confiança Abç 4 AMORES TERAPÊUTICOS Caro amigo Você me perguntou O que faço se me apaixono por uma paciente E lhe respondi laconicamente Será que é uma questão urgente Você replicou Desde o começ o de minha formação pratico só de vez em quando não se preocupe um devaneio em que curo milagrosamente uma moça emudecida por sua loucura e lógico nos amamos para sempre Depois disso decidi levar sua pergunta a sério Talvez você se lembre de que na minha primeira carta falei um pouc o da admiração do respeito e em geral dos sentimentos que destinamos às pessoas a quem pedimos algum tipo de cura para nossos males Comentei que era bom que fosse assim pois esses afetos facilitam o trabalho do terapeuta E acrescentei que isso é especialmente verdadeiro no caso da psicoterapia com a exceção de que neste caso esperas e que o encantamento se resolva acabe um dia Sem isso a psicoterapia condenaria o paciente a uma eterna dependência afetiva Repare que às vezes sentimentos negativos como o ódio permitem e facilitam o trabalho psicoterápico tanto quanto o amor Mas é certo que o amor é a forma mais comum dos sentimentos cuja presença assegura o começo de uma psicoterapia Ou seja é muito frequente que umuma paciente se apaixone por seu terapeuta A psicanálise deu a essa paixão um nome específico amor de transferência O termo sugere que o afeto por mais que seja genuíno sincero e às vezes brutal teria sido transferido transplantado Ele se endereçaria ao terapeuta por procuração enquanto seu verdadeiro alvo estaria alhures na vida ou na lembrança do paciente Você já deve ter ouvido mil vezes o amor de transferência grande ou pequeno é a mola da cura Primeiro ele possibilita que a cura continue apesar dos trancos e dos barrancos Segundo ele permite ao paciente viver ou reviver na relação com o terapeuta a gama de afetos e paixões que são ou foram também dominantes em sua vida essa nova vivência aliás é a ocasião de modificar os rumos e o desfecho dos padrões afetivos que geralmente assolam uma vida repetindose até o enjôo Terceiro ele pode às vezes ser o argumento de uma chantagem benéfica o paciente pode largar seu sofrimento por amor ao terapeuta para lhe oferecer um sucesso para ganhar seu sorriso para fazêlo feliz Esse terceiro caso apresenta alguns inconvenientes óbvios o paciente que melhorar por amor a seu terapeuta nunc a se afastará dele pois parar de amar seria para ele largara razão pela qual se curou ou seja voltar a sofrer como antes ou mais ainda Você deve também ter ouvido mil vezes que umuma terapeuta não pode e não deve aproveitarse do amor do paciente ou da paciente Você pode ter carinho e simpatia por seusua paciente mas transformar a relação terapêutica em relação amorosa e sexual é mais do que desaconselhado Por quê Nota para simplificar no que segue falarei do terapeuta no masculino e da paciente no feminino Mas o mesmo vale sej a qual for o sexo do terapeuta e sej a qual for o sexo do paciente incluindo os casos em que esse sexo é o mesmo Um argumento que é usado tradicionalmente para justificar essa interdição é o seguinte o afeto que uma paciente pode sentir por seu terapeuta é fruto de uma espécie de quiproquó O terapeuta não é quem a paciente imagina A situação leva a paciente a supor que seu terapeuta detenha o segredo ou algum segredo de sua vida e que graças a esse saber ele poderá entendêla transformála e fazêl a feliz Ou seja a paciente idealiza o terapeuta e quem idealiza acaba se apaixonando Conclusão o apaixonamento da paciente é um equívoco E não é bom construir uma relação amorosa e sexual sobre um equívoco Se paciente e terapeuta se juntarem a coisa mais cedo ou mais tarde produzirá no mínimo uma decepção e frequentemente uma catástrofe emocional pois a decepção virá de um lugar que pode ter sido idealizado além da conta Esse argumento na verdade vale pouco Explico por quê a paixão de transferência é de fato igual a qualquer outra paixão Em outras palavras os amores da vida são fundados num qüiproquó tanto quanto os amores terapêuticos Quando nos apaixonamos por alguém a coisa funciona assim nós lhe atribuímos qualidades dons e aptidões que ele ou ela eventualmente não têm em suma idealizamos nosso objeto de amor E não é por generosidade é porque queremos e esperamos ser amados por alguém cujo amor por nós valeria como lisonja Ou seja idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amávei s aos olhos de nossos próprios ideais Então se o amor de transferência não é muito diferente de qualquer amor será que está liberado Pois é não está liberado há outros argumentos contra e são de peso eles não se situam do lado do paciente cujo amor é bem parecido com um amor verdadeiro estão do lado do terapeuta Por que um terapeuta toparia a proposta amorosa de uma paciente Por que ele se declararia disponível e proporia um amor quase irrecusável a uma paciente já seduzida pela situação terapêutica Há três possibilidades 1 A primeira é perfeitamente explicada no autodefé do expresidente Clinton quando em suas memórias recentemente publicadas ele narra e tenta entender seu famoso envolvimento com uma estagiári a da Cas a Branca Moni c a Lewinski Com notável honestidade e capacidade analítica Clinton não justifica seus atos pelo transporte da paixão mas declara que el e se deixou seduzi r ou tanto faz que ele seduziu Lewinski simplesmente porque podia Ele acrescenta admiravelmente que de todas as razões possíveis essa é a pior a mais condenável Transar porque pode não significa só transar porque é fácil porque o outro é acessível Significa transar pelo prazer de poder É como se a gente gostasse de bater em enfermo porque isso dá a sensação de ser forte O consultório do terapeuta tomado por essa fantasia se transforma num templo ou num quarto de motel em que as pacientes são chamadas a participar de ritos que celebram a potência do senhor Esse abuso dos corpos produz estragos dolorosos porque ele se vale de uma oferta generosa de amor Posto que você me ama ajoelhese É uma situação próxima à do abuso de uma criança quando os adultos que ela ama e em quem confia se revelam sedentos de demonstrar sua autoridade pelas vias de fato na cama ou a tapas Invariavelmente o terapeuta deslumbrado pela descoberta de que ele pode agir do mesmo modo com as pacientes com quem el e transa e com aquelas com quem el e não transa A fantas i a de abuso invade todo seu trabalho terapêutico ou seja el e não analisa nem aconselha ele dirige e manda pois ele goza de e com seu poder 2 Mas há terapeutas você me dirá que se apaixonam mesmo por uma paciente e até casam Concordo Aliás essa é a segunda possibilidade O curioso é que em regra os analistas que se apaixonam pelas pacientes que os amam são recidivistas Eles se casam com várias pacientes uma atrás da outra Um psicanalista famoso de tanto casar com pacientes ganhou o apelido Divã o Terrível Conheço as desculpas a gente trabalha duro e não tem tempo para sair na noite onde a gente encontraria uma companheira Afinal não é banal que as pessoas encontrem suas metades no ambiente de trabalho Além disso o terapeuta se apaixona por alguém que ele conhece ou imagina conhecer muito bem essa não é uma garanti a da qualidade de seus sentimentos Pode ser Mas resta uma dúvida que se torna quase certeza à vista da repetição Esses psicoterapeutas ou psicanalistas que se juntam com verdadeiras séries de pacientes devem ser tão cativos da situação terapêutica quanto suas pacientes Explico A paciente se apaixona porque tudo a leva a idealizar seu terapeuta O terapeuta deveria saber que é útil que seja assim mas também deveria saber que de fato sua modesta pessoa não é o remédio milagroso e definitivo que curará os males de sua paciente Ora é provavelmente disto que ele se esquece O terapeuta seduzido pela idealização de sua pessoa como o corvo da fábula acredita no que diz o amor de sua paciente ou seja acredita ser a panacei a que tornará sua paciente feliz para sempre Generoso Ingênuo Nada disso apenas vítima por exemplo de uma obstinada esperança de voltar a ser o nené que por um mítico instante no passado teria feito sua mãe absurdamente feliz A série continua porque a decepção é garantida O terapeuta como homem e companheiro não é uma panaceia ninguém é A paciente com quem ele se casou uma vez feita essa descoberta trivial manifestará sua insatisfação e com isso fará a infelicidade do nené caprichoso com quem casou Pronto acaba o casamento Entretanto como disse a esperança do terapeuta é obstinada não é fácil desistir do projeto de ser aquela coisa que traz ao outro uma satisfação absoluta Por que não tentar outra vez Os terapeutas recebem regularmente em seus consultórios os cacos desses doi s tipos de desastres o das abusadas e o das casadas e abandonadas por não se terem mostrado perfeitamente satisfeitas São cacos difícei s de serem recolados A decepção amoros a da paciente é violenta afinal ela foi enganada por um objeto de amor ao qual atribuía poderes e saberes quase mágicos O pior desserviço desses desastres é que de fato eles impedem que as vítimas encontrem a ajuda da qual precisam Frequentemente ao tentar uma nov a terapia elas não param de esperar que se engate uma nova relação erótica pois lhes foi ensinado por assim dizer que a cura virá de um amor correspondido com seu terapeuta Outra eventualidade é que elas nunc a mais consigam estabelecer a confianç a necessári a para que um novo tratamento se torne possível 3 Existe uma terceira possibilidade para os amores terapêuticos É possível que se apaixone porsua paciente um terapeuta que não queira apenas gozar de seu poder e que não seja aflito pela síndrome de fazer a mamma feliz E é possível que uma paciente se apaixone por seu terapeuta sem acreditar que ele seja o remédio a todos os seus males Afinal não é impensável que dois sujeitos que tenham algumas boas razões de gostarem um do outro se encontrem num consultório Todos sabemos que um verdadeiro encontro é muito raro e é compreensível que um terapeuta não faça prova da abnegação profissional necessária para deixar passar a ocasião Mas convenhamos se esse tipo de encontro é tão raro é difícil acreditar que possa repetirse em série Como diz o provérbio errar é humano perseverar é diabólico Ou seja pode acontecer uma vez numa vida A parti r de duas a série é suficiente para provar que o terapeuta está precisando de terapia Abç BILHETE 1 Caro amigo recebi sua notinha um pouco irônica Sua observação é correta Embora eu tenha especificado que os amores terapêuticos acontecem tanto com terapeutas homens como com terapeutas mulheres é verdade que em minha carta para simplificar foi o que eu disse usei o masculino para o terapeuta e o feminino para a paciente Não foi por acaso você tem razão Provavelmente esses desastres acontecem mai s entre terapeutas homens e pacientes mulheres do que entre terapeutas mulheres e pacientes homens Mas não é como você sugere porque os homens são sempre mais assanhados A razão é outra muitos homens diferentemente das mulheres acreditam terem sido ao nascer a única e inigualável razão da satisfação de suas mães É isso que explica que os terapeutas sejam mais propensos a se oferecer a suas pacientes como panaceias amorosas BILHETE 2 Agora você quer que eu lhe diga caso se apaixone por uma paciente como você saberá se a coisa se enquadra no caso dois ou no caso três Ou seja como saberá se está se rendendo à raridade de um encontro amoroso excepcional ou se é apenas o começo de uma séri e que demonstraria que na verdade você se enganou um pouco de profissão Poi s é salvo esperar para ver se a coisa se repete o único que poderi a dizer seria seu analista É por isso aliás que é sempre bom que um terapeuta de vez em quando volte a ser paciente Enfim na dúvida abstenhase 5 FORMAÇÃO A Minha jovem amiga Você tem razão falei em minha primeira carta dos traços de caráter que gostari a de encontrar num terapeuta mas não disse nada dos caminhos pelos quais ele deveria formarse Por exemplo voc ê me pergunta que faculdade voc ê recomendaria cursar Medicina e psiquiatria ou psicologia clínica Na verdade tanto faz porque nem o psiquiatra nem o psicólogo clínico se formam para serem psicoterapeutas Se voc ê quer ser psicoterapeuta o essencial de sua formação acontecerá depois da faculdade ou quem sabe durante seus estudos De qualquer forma se dará fora da academia E há por isso uma razão intransponível uma peça chave da formação de um psicoterapeuta é o tratamento ao qual ele mesmo se submete E essa cura não pode ser uma demonstração pedagógica abstrata não pode ser limitada a um fazer de conta durante o qual se transmitiria uma técnica Ao contrário esperase que nesta experiência o futuro terapeuta se depare com a complexidade de suas motivações sintomas e fantasias conscientes e inconscientes Pois para o terapeuta não há melhor introdução à variedade do sofrimento humano do que a descoberta de que em algum canto de seus pensamentos el e pode encontrar palavras lembranças razões visões e pensamentos parecidos com aqueles que afetam agitam ou mesmo enlouquecem seus pacientes É óbvio que essa experiência por si só não forma um terapeuta Desde o fim do século XIX vem se constituindo uma imensa biblioteca de depoimentos pesquisas e construções teóricas sobre o sofrimento psíquico as motivações humanas e os caminhos terapêuticos possíveis Esperase que um terapeuta conheça o essencial da tortuosa história dessas ideias não por gosto erudito mas porque essa história apresenta as respostas que nós humanos e modernos construímos para entender quem somos Ela é em suma uma vasta patologi a das racionalizações que somos capazes de inventar para explicar nosso malestar Esperase também que nesse emaranhado o terapeuta escolha um fio e o percorra detalhadamente lendo e estudando Muito bem você dirá entendo facilmente que a própria análise ou terapia de quem está se formando não possa fazer parte de um curs o universitário Como seri a avaliada com que notas E quem garantiria a absoluta confidencialidade das coisas ditas Qual seria a qualidade da relação terapêutica se ela for ao mesmo tempo uma espécie de exame Mas e o estudo dos textos por que não seria responsabilidade de um curso universitário D e fato existem hoj e mestrados em psicologia clínica e em psicanálise nos quai s esse estudo é proposto e acontece No entanto a diversidade das orientações psicoterápicas pediria uma multiplicação de pós graduações s ó em psicanálise seriam necessários cinc o ou seis cursos diferentes Além disso de qualquer forma o estudo universitári o não é exatamente equivalente ao estudo proporcionado pelos institutos de formação A compreensão dos textos não é a mesma Há uma diferença relevante entre ler como estudante que deve dar conta do que aprendeu e ler como terapeuta em formação que interpreta os textos a partir da experiência singular de sua própria terapia ou análise Por essas razões no mundo inteiro a formação do psicoterapeuta é proposta por instituições privadas que inventam cada uma de seu jeito formas de ensino e de aprovação e reprovação compatíveis com este estranho currículo no centro do qual está a coragem do candidato que se questiona radicalmente em sua terapia ou análise Anos atrás o governo italiano foi pressionado pela classe médica a regulamentar a profissão de psicoterapeuta A ideia dos médicos e psiquiatras que pediam essa legislação era definir oficialmente a psicoterapia como ato médico podendo ser praticado legitimamente só por doutores em medicina Com isso os psicólogos e demai s terapeutas nãomédicos estariam sob tutela ou seja pagariam para os médicos supervisões obrigatórias O governo achou a proposta boa examinou a questão e chegou à seguinte conclusão nem médicos psiquiatras nem psicólogos recebem uma formação acadêmica que possa ser considerada suficiente para exercer a psicoterapia sem constituir perigo para a saúde mental do cidadão A dita formação é administrada por instituições privadas de várias orientações Portanto foi constituído um conselho das instituições estabelecidas e reconhecidas e esse conselho decide quem é habilitado ao exercício da psicoterapia O governo italiano agiu de maneira certa Contudo minha preferência é para a situação que vige hoje no Brasil e na maiori a dos países em que a práti c a da psicoterapi a não é regulamentada Claro para quem procura um psicoterapeuta seria simpático que um carimbo oficial garantisse que o terapeuta foi formado por uma instituição reconhecida O problema é que isso implicaria que cada terapeuta se formasse inteiramente numa única instituição da qual seria membro carimbado Sumiriam na ilegalidade portanto os numerosos terapeutas e analistas digamos assim independentes sem carteirinha de um partido só Formações unívocas ligadas à doutrina de uma instituição só ganhariam em rigor mas perderiam em complexidade em liberdade A perda a meu ver seria maior do que o ganho Alguém me lembrará que vários institutos e formação psicanalítica não são doutrinários ao contrário eles cultivam a pluralidade Concordo e são os institutos que prefiro Mas a liberdade da qual fal o vai além disso Por exemplo acho que um pouc o de formação em terapi a cognitiva ou sistêmica seri a úti l para um psicoterapeuta motivacional A grande maioria de meus colegas psicanalistas achará que essa afirmação é um disparate Alguns se eu foss e membro de sua instituição levariam o cas o ao comitê central para que tomasse providências Parênteses não é disparate nenhum de fato como aquel a personagem de Molière que falava em prosa e não sabia até um psicanalista purista age como terapeuta cognitivo várias vezes por dia só que não sabe Mas voltemos ao essencial desta carta Imagino que nesta altura voc ê observe se a formação acontece depoi s da faculdade em instituições privadas por que deveríamos escolher ou privilegiar a formação acadêmica em psiquiatria ou psicologia Se eu quiser me tornar psicoterapeuta e estiver ainda na hora do vestibular por que não escolheria qualquer faculdade que quem sabe me interesse mais Sei lá filosofia direito história ou matemática De fato quase todas as instituições privadas que formam psicoterapeutas aceitam candidatos que não são nem psicólogos nem psiquiatras Mas meu conselho é o seguinte se você decidir se tornar psicoterapeuta já no meio de sua vida e sua formação acadêmic a for diferente de psiquiatria e psicologia não volte ao vestibular e aos bancos da universidade simplesmente comece sua formação na instituição de sua escolha Não ser psiquiatra nem psicólogo não constitui um impedimento decisivo Mas se você estiver decidindo se tornar psicoterapeuta na hora de escolher sua faculdade escolha sem hesitar ou psicologia ou medicina e psiquiatria Pois seria errado pensar que na formação de um psicoterapeuta os currículos acadêmicos de psiquiatria e psicologia não adiantariam nada Certo só uma parte pequena do que você aprende na faculdade lhe será de alguma ajuda no seu trabalho futuro Certo sua formação efetiva começará provavelmente depois da faculdade Mas mesmo assim há algumas boas razões para não desprezar os estudos de psicologia ou de psiquiatria As que são invocadas mais frequentemente são também as menos importantes Concernem a experiências e saberes que poderão fazer falta na sua formação de psicoterapeuta mas que ambos experiências e saberes poderão ser encontrados de outro jeito Por exemplo é indispensável que um psicoterapeuta tenha instrumentos diagnósticos para não confundir se possível uma amnésia histérica com o começo de uma arteriosclerose ou de um Alzheimer e para se lembrar que uma depressão pode ser o efeito de uma insuficiência de hormôni o da tireóide Na suspeita é bom encaminhar o paciente para um checkup neurológico vascular e endocrinológico É também indispensável que um psicoterapeuta tenha um conhecimento dos princípios ativos dos remédios psicotrópicos mais comuns pois embora ele não prescreva lidará em muitas ocasiões com pacientes que precisam de medicação ou já estão sendo medicados É importante poder colaborar com o psiquiatra que prescreverá assim como é importante distinguir o efeito medicamentoso das mudanças que nada têm a ver com esse efeito É úti l que um psicoterapeuta conheça os princípios diagnósticos do Manual Estatístico Diagnóstico adotado pela Organização Mundial da Saúde Num mundo em que se viaja muito não é raro que a gente receba pacientes que carregam consigo diagnósticos dos quais é bom entender como foram estabelecidos e o que eles significam E não é raro que a gente deva encaminhar um paciente para um psiquiatra desconhecido num país onde não há terapeutas da mesma orientação que a nossa Você não acha Pois é se um dia um paciente seu apresentar um surto agitado num hotel de Cingapura tente explicar por telefone a um residente em psiquiatria local que seu paciente não é psicótico Logo constatará que o DSM pode ser de grande ajuda Também é necessário a meu ver que um psicoterapeuta passe por uma experiência efetiva e consistente com pacientes psicóticos e se possível com toxicômanos Os estágios clínicos universitários respondem a essa necessidade Agora esses saberes e essas experiências podem ser adquiridos sem passar pelas faculdades de psicologia ou de medicina e psiquiatria Meu caso é uma boa ilustração Minha graduação em Genebra foi entre filosofia e epistemologia teoria do conhecimento Isso me tornou psicólogo o suficiente para poder mai s tarde completar um doutorado em psicopatologia clínica Mas de fato em minha graduação em Genebra quando Piaget ainda ensinava só me interessei em entender como se constituem no desenvolvimento humano as operações mentai s graças às quais conseguimos pensar O que aprendi seri a de grande ajuda se hoje eu fosse psicólogo escolar saberi a diagnosticar anomalias e atrasos cognitivos Mas na faculdade meu treinamento clínic o foi nulo Ou seja quando decidi me consagrar à clínica não tinha passado por nenhum estágio não conhecia o DSM nem os princípios ativos dos remédios psicotrópicos etc Em suma não preenchia nenhum dos requisitos que mencionei antes e que constituem o pano de fundo garantido pelo ensino de psiquiatria ou de psicologia clínica O que eu fiz Organizei um grupo com alguns amigos e pedimos a um psiquiatra de boa formação em biopsiquiatria que ele nos desse aula durante um ano Inicialmente esnobei o DSM pois essa era a moda em Paris mas recuperei o tempo perdido mais tarde e voltei ao DSM ainda muito recentemente quando praticando nos Estados Unidos tive de preencher sistematicamente formulários diagnósticos para o seguro saúde de meus pacientes Muito cedo em minha formação tive a sorte de ser admitido para frequentar as apresentações de pacientes psicóticos que Jacques Lacan oferecia semanalmente no hospital Sainte Anne E inventei minha própri a residência me apressei a conseguir trabalho no Instituto Médico Educativo que mencionei em minha primeira carta Lá aprendi por exemplo que autismo e psicos e não são bem a mesma coisa e também que abuso abandono e desamparo social sobretudo para uma criança ou um adolescente podem se confundir com a deterioração e o sofrimento psíquicos mais profundos Em suma batalhei um pouco mas não foi impossível compensar uma formação acadêmica nãoclínica Ora há uma outra razão que torna o currículo de psicologia clínica ou de psiquiatria interessante para um psicoterapeuta É esta razão que me parece hoje a mais importante quem não passa pelo ensino clínico universitário em geral formase só e exclusivamente na orientação específica da instituição que escolheu Por exemplo minha formação foi na École Freudienne de Paris a escola fundada e dirigida por Jacques Lacan Por graça divina e vontade de Lacan sem dúvida era considerado crucial ler a obra de Freud até cansar Salvo as devidas exceções e as curiosidades pessoais de alguns o clima geral sugeria que para a psicanálise anglosaxã por exemplo era suficiente conhecer chavões críticos e palavras de ordem irônicas Depois da morte de Lacan a coisa piorou Cada vez mais lacaniano só lê Lacan Você pergunta qual é o problema À primeira vista poderíamos pensar que é melhor assim afinal o terapeuta aprende mais da orientação que sustentará sua prática ou seja aprende mais do que importa não é Pode ser Acontece que de fato medindo cuidadosamente as palavras uma formação policiada para ficar circunscrita a uma prática só e ao ensino que lhe corresponde está levando gerações de terapeutas e analistas a valorizar não o compromisso com os pacientes mas a reprodução e a preservação da doutrina na qual se formaram A orientação terapêutica na qual você se formou ou está se formando minha jovem amiga não é uma ideologia nem uma fé na qual seria preciso que voc ê acreditasse nem uma espécie de dívida que você contraiu com seus mestres e que a forçaria a se fazer seu repetidor e arauto fiel Nisso uma formação acadêmica de psicólogo ou psiquiatra pode ser de grande auxílio Apesar da multiplicação de departamentos vigiados por obediências teóricas a variedade do ensino universitário ajuda a levar a sério a frase famosa de Aristóteles apenas modificada Platão é meu amigo mas meus pacientes são mais amigos ainda Abç 6 CURAR OU NÃO CURAR Cara amiga Você vai ter dificuldade em acreditar mas é assim um bom número de meus colegas psicanalistas achará estranho que nestas cartas eu fal e de psicoterapia e de psicanálise como se fossem parentes próximos Aliás eles julgarão curioso que um psicanalista escreva Cartas a um jovem terapeuta Em princípio eles certamente reconhecem que a psicanálise é a matriz mais importante de qualquer terapia que opere com as motivações conscientes e inconscientes de quem sofre Mas não aceitam de jeito nenhum que a psicanálise seja uma psicoterapia recusam a ideia de que o psicanalista se proponha a curar de uma maneira ou de outra o sofrimento de seus pacientes N a origem dessa recusa que é à primeira vista um pouco surpreendente há algumas reservas bem justificadas quanto aos efeitos da vontade e da pressa de curar Essas reservas são úteis para o psicoterapeuta Freud por exemplo recomendava que os psicanalistas não tivessem pressa de curar Por quê Em muitos casos o paciente nos consulta por um problema bem definido um medo específico uma ejaculação precoce um pensamento obsessivo ou mesmo uma encruzilhada da vida em que lhe é difícil tomar uma decisão Às vezes aliás ele já pensou bastante no assunto e nos dá sua própria explicação para o que lhe acontece Se o terapeuta estiver com pressa de agir acreditará que a queixa apresentada com a explicação que a acompanha diz mesmo o essencial do que atormenta o paciente E tentará imediatamente combater o sintoma ou ajudar na solução do dilema Neste caso quase sempre o sintoma e o dilema apenas se deslocarão migrarão alhures pois o sofrimento psíquico é como a massinha de modelar de nossa infância você não a quer num determinado quartinho da casa de boneca empurra com força consegue deslocála mas ela não sumiu apenas se insinuou pelas frestas e reaparece no quarto ao lado Um exemplo Nos últimos anos atendi pacientes brasileiros que viviam em Nova York Muitos vinham me ver com um problema só queriam decidi r se voltariam para cas a ou ficariam nos Estados Unidos Chegavam com verdadeiras listas de argumentos contrapostos que acabavam num empate que os imobilizava Também estavam com pressa renovo o visto ou não renovo E o contrato de aluguel que acaba daqui a seis meses Era grande a tentação de tomálos ao pé da letra e ajudálos a decidir pesando de novo os argumentos acrescentando outros que quem sabe eles não tivessem contemplado e sobretudo jogando na balança o peso de um conselho que justo ou errado teria a vantagem de tirálos de uma hesitação excruciante Claro escutava com calma a exposição dos dilemas e de suas razões mas me guardava da pressa À força de perguntas encorajavaos a voltar no tempo Não era fácil pois a reação imediata era de impaciência Tudo bem vou falar daquela viagem ao Canadá quando era criança tudo isso é bem bonito e interessante mas eu devo decidir agora você entende Ora quase sem exceções o dilema do momento por mais imperativo e efetivo que fosse era o herdeiro de conflitos mais antigos que quase sempre tinham sido ilusoriamente resolvidos pela própria saída do Brasil Era a necessidade de realizar um desejo fracassado dos pais impressionante quantas crianças nascidas ou concebidas durante o doutorado do pai ou da mãe nos Estados Unidos se perguntam um dia por que diabo acabaram emigrando Era a necessidade de repetir o gesto mítico do ancestral que foi embora de algum país europeu para o Brasil maneira de reivindicar para si a suprema autoridade simbólica da família mas a que preço Eram as mil faces do eterno conflito de qualquer adolescente tardio dividido entre o desejo paterno de que ele dê prova de sua autonomia e o desejo também paterno de que ele fique perto de casa no abraç o quente dos seus Havi a filhas que precisavam demonstrar coragem e autonomias muito machas para competir com os irmãos caçulas que sonhavam em ser o filho pródigo da parábola filhos mais velhos que só se sentiriam legítimos se conquistassem sua primogenitura na marra Havia sujeitos só capazes de amar e ser amados à distância E por aí vai O fato é que a pressa de curar e decidir teria sido péssima conselheira Meus pacientes de volta ao Brasil ou estabelecidos de vez em Nova York tanto faz teriam certamente encarado algum dia uma nova forma do mesmo dilema não resolvido tão angustiante quanto O preceito de não se apressar é quase equivalente à recomendação médica segundo a qual nem sempre é bom suprimir os sintomas antes que a doença se declare Não há nada nessa desconfiança da pressa que sej a um privilégio da psicanálise e ainda menos que livre a psicanálise da tarefa de curar claro sem que a pressa atropele a cura Um outro argumento para desconfiar da ideia de que a psicanálise seria uma forma de terapia é o seguinte as definições tradicionais do que é curar dizem que curar significa restabelecer a normalidade funcional ou então levar o sujeito de volta a seu estado anterior à doença Nesta altura voc ê já sabe que a psicanálise e a mesma coi s a val e para qualquer psicoterapia não tem nem quer ter uma noção preestabelecida de normalidade Ou melhor nosso ideal de normalidade é o estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades ou seja o estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível nos limites impostos por sua história e sua constituição Se a normalidade for definida assim ela pode perfeitamente ser o alvo de nossas curas Quanto à ideia de que curar seria levar de volta um sujeito ao estado anterior à doença é óbvio que uma psicoterapia não funciona nunca como a extirpação cirúrgica de um cisto ou como a exterminação de uma bactéria atos que devolveriam o corpo a seu estado anterior Uma psicoterapia é uma experiência que transforma podese sair dela sem o sofrimento do qual a gente se queixava inicialmente mas ao custo de uma mudança Na saída não somos os mesmos sem dor somos outros diferentes Em suma os argumentos apresentados até aqui nos encorajam a redefinir o que é a cura que pode ser esperada de uma psicoterapia e sugerem que justamente para curar direito o psicoterapeuta não deve se apressar Nada nesses argumentos explicari a um divórcio necessário entre psicanálise e psicoterapia De onde vem então o estranhamento de meus colegas Por que a psicanálise não seria uma terapia Por que a ideia de curar o sofrimento psíquico se tornou objeto do escárnio de muitos psicanalistas Há primeiro uma razão histórica A coisa começou no fim dos anos 60 época triunfante da contracultura americana e do espírito do maio francês em que a crítica e a revolta eram o único sinal verdadeiramente aceitável de saúde mental Naqueles anos nasceu o movimento antipsiquiátrico Era o projeto de esvaziar os asilos onde apodreciam legiões de pacientes de quem se esperava apenas que se tornassem crônicos e permanecessem presos para não atrapalhar a vida dos outros Era também a ideia de que os loucos uma vez liberados poderiam se tornar uma força revolucionária que transformaria a vida de todos Melhor ao se tornarem revolucionários eles de uma certa forma estariam curados o engajamento político seria sua terapia final Em 69 se me lembro direito eu estava na plateia e um pouco na organização pois servia de tradutor do primeiro congresso Psicanálise e Política em Milão Perdido entre as estrelas Deleuze Guattari Giovanni Jervi s da equipe de Basaglia etc um honesto psicanalista milanês Enzo Morpurgo apresentou o caso de uma paciente Não me lembro dos detalhes do caso mas lembro da discussão o público quase linchou o conferencista porque o tratamento que el e apresentava havia melhorado a condição de sua paciente A palavra adaptação voava no ar como o último xingamento Curar significava permitir que um paciente estivesse melhor portanto que ele perdesse seu potencial de revolta ficasse mais resignado e complacente com a realidade política e social do momento Quem curava traía a causa do proletariado e da revolução Quem curava levava seu paciente a esquecerse de que ninguém deve salvarse sozinho O pobre analista milanês enfim para protegerse dos tomates verbais que choviam no palco acrescentou um epílogo verdadeiro ou improvisado nunca saberemos à exposição do caso Declarou Mas aconteceu algo que devemos considerar Quando a paciente veio me ver ela era membro do Partido Comunista Italiano que era na época considerado desprezivelmente rosaclaro reformista e traidor Quando a análise terminou continuou o analista el a deixou o partido e entrou no Manifesto O Manifesto era uma dissidência crítica e revolucionária do partido só para entender é como se um psicoterapeuta dissesse no Brasil de hoje que seu paciente saiu do PT e foi fundar um partido com Babá e Luciana Genro Hoje esse episódi o parece cômico e estranhamente distante As coisas mudaram provavelmente para melhor não acredito que haja um psicanalista ou um psicoterapeuta que mesmo coagido por uma plateia enfurecida alegaria a mudança de partido de uma paciente como prova da excelência dos resultados de sua prática Mas algo daquela época permaneceu no mínimo até os anos 90 O quê A ideia de que a pretensão de curarse de ser um pouco mai s feliz seria só uma idiotice vendida pela propaganda de iogurte carros e cartão de crédito um sonho de consumo feito para nos distrair do que importa Nisso a rebeldia nascida nos anos 60 reata com a tradição romântica do século XIX glorificando a inquietude a angústia e mesmo o sofrimento psíquico como provas de vitalidade subjetiva Nota à margem É um estranho paradoxo é bem possível que o sonho de felicidade seja a cenoura atrás da qual nossa cultura individualista e liberal força todos a correr mas é certo também que o sonho só é uma cenoura eficaz à condição que seja entretida uma insatisfação permanente com nosso destino Ou seja é preciso não ser feliz para correr atrás da felicidade e de seus substitutos O culto da inquietude inconformada e angustiada é tão essencial ao funcionamento de uma sociedade liberal quanto o sonho de felicidade Mas enfim esses eram e ainda são os tempos Para entender as origens da resistência à ideia de uma cura psíquica é bom levar em conta ainda outros fatores Por exemplo os intelectuais europeus sobretudo italianos e franceses dos anos 70 descobriram os sociólogos e psicossociólogos da escol a de Frankfurt Na verdade enquanto os italianos liam poi s quas e tudo era traduzido do alemão para o italiano os franceses confiavam na segundamão pois as traduções francesas chegaram bem mais tarde com isso dessa nãoleitura sobraram aos franceses os chavões o maior deles sendo a convicção férrea e abstrata de que uma das raízes do mal é a cultura de massa Qualquer coisa que agradasse ao grande número devia ser reprovável portanto se o grande número quando está mal quer ser curado é porque o grande número está sendo enganado pela cultura de massa Com isso as vanguardas da époc a viviam um paradoxo extremo queriam ser populares e sonhavam com a alianç a de estudantes e proletários mas praticavam propositalmente um elitismo exacerbado que lhes parecia a única reação contra a burrice da cultura de massa ou seja contra tudo o que pensavam as próprias massas com as quais as vanguardas queriam aliarse Talvez esse quadro ajude a entender por que a psicanálise francesa dos anos 60 e 70 na qual me formei e que teve uma grande influência direta e indireta no Brasil dos anos 80 desconfiava da ideia de que a psicanálise fosse uma terapia e por que ela produziu um corpo teórico de acesso dificílimo quase críptico e curiosamente afastado do diaadi a da clínica A psicanálise frances a daqueles anos era em suma permitame a ironia perfeitamente adaptada à sua época cultivando o exoterismo de sua doutrina e preferindo apresentarse como uma experiência mais iniciática do que terapêutica mais para os adeptos do que para os pacientes N o mei o desse clima produzias e um outro fenômeno A partir dos anos 60 crescia o número de jovens que tinham acesso ao ensino universitário efeito de desenvolvimento do bemestar e mais tarde também de governos satisfeitos com a ideia de atrasar por quatro ou cinco anos a chegada ao mercado de trabalho de jovens que seriam sem isso desempregados no fim do secundário Obviamente a geração rebelde era seduzida pelas ciências humanas as faculdades de sociologia e psicologia estavam abarrotadas Ora nos anos 70 e 80 os psicanalistas americanos por exemplo queixavams e de uma diminuição do número de pacientes e de candidatos e explicavam a penúria pelo fato de que talvez a psicanálise clássica fosse uma cura longa e trabalhosa demais No entanto na Europa de fato sobretudo na França e na Itália assistiase a uma difusão sem precedentes da prática psicanalítica e a uma acelerada reprodução de analistas Claro nos cafés de Paris comentavase que a psicanálise americana se ferrava por seu próprio empirismo adaptador ou seja por não entender que na verdade o povo não quer adaptação o povo quer revolução e complicação Talvez seja melhor não acreditar nos cafés de Paris e considerar que o sucesso de mercado da psicanálise francesa daquela época e especificamente do ensino de jacques Lacan foi o fruto de uma extraordinária adequação ao momento Uma geração revoltada apaixonada pelas ciências humanas e ameaçada de desemprego estav a entregue a furores abstratos a psicanálise francesa respondeu perfeitamente ao malestar dessa geração Na próxima carta tentarei lhe mostrar como isso se deu e com quais consequências que em parte ainda duram Desta vez bastame ter exposto o clima que predispunha a psicanálise francesa dos anos 70 a considerar a ideia de curar como anátema Aliás desde aquela época há meios psicanalíticos em que a palavra paciente é malvista Paciente é o chato que se queixa e quer ser curado enquanto quem faz análise é analisando ou analisante não paciente pois ele deve esperar análise e não cura Você deve ter notado que penso diferente A psicanálise me interessa por sua capacidade de transformar as vidas e atenuar a dor Se tenho uma reserv a diante da palavra paciente é porque espero que todos sejamos impacientes com o sofrimento desnecessário que eventualmente estraga nossos dias 7 O QUE FAZER PARA TER MAIS PACIENTES Meu caro amigo Respondo a uma preocupação que voc ê manifestou depoi s de minha terceira carta Você escreveu Receber um primeiro paciente é fácil fazer que o consultório da gente cresça e se torne viável é uma outra história não é Por sorte para responder terei de completar a históri a que comecei na última carta Em 1974 acredito um pouco antes que começasse a atender fui visitar Christian Simatos que era o secretári o da École Freudienne de Pari s secretário neste caso não designa um emprego administrativo mas um cargo essencial no funcionamento da instituição ocupado por um psicanalista Tratavase de formalizar minha candidatura ao estatuto de membro da Écolee de anunciar que eu me aprestava a receber pacientes Fiz meu pedido e apresentei meu currículo com nome do analista tempo de análise grupos de estudos dos quai s eu participava etc que seria examinado na próxima reunião da direção Depois disso conversamos um bom momento No decorrer desse papo amigável perguntei a Simatos o que ele achava que eu deveria fazer para que alguém me encaminhasse pacientes de maneira que pudesse começar minha atividade Sabi a que a Écol e não tinha uma política de encaminhamento para os jovens analistas só nos últimos anos foi instituído um comitê responsável para receber os pedidos de análise e terapia que chegavam diretamente à instituição es s e pequeno comitê encaminhava os pedidos a membros da instituição mas segundo os critérios escolhidos pelos analistas que compunham o comitê não segundo uma política formal Pensava também que talvez essa ausência de política de encaminhamento foss e proposital uma espécie de seleção social uma última prova depois da formação afinal ser psicanalista é um ofício liberal e uma certa capacidade social de inspirar confiança e receber demandas poderia ser considerada como um requisito de qualquer profissão liberal Essa ideia embora nada explícita ressurgia na vida da instituição na hora de os membros serem designados com o título de analista membro Não havia candidatura para isso o que contava de fato era ter durado ao menos dez anos na prática clínica dar o sem fazer estragos Enfim coloquei a pergunta e Simatos me respondeu Faitesvous connattre façase conhecer Era uma resposta de bom senso sobretudo se você começa a trabalhar numa cidade que não é sua de origem na qual talvez você tivesse uma rede de amigos colegas desde o primário parentes etc é preciso no mínimo que as pessoas saibam que você existe Entretanto no contexto daqueles anos a resposta assumia um sentido um pouco diferente Lembrase da última carta Pois é na época contribuir ao exercício e à doutrina da psicanálise parecia mais importante do que curar pacientes Isso fazia com que para cada um a relação com os colegas da École com os outros analistas fosse mais relevante do que a relação com a cidade e em geral com o resto da sociedade Consequência disso todo o mundo parecia convencido de que assim como as batatas vêm da terra os pacientes só vêm de outros analistas e terapeutas mais abastados Portanto fazerse conhecer não significava ganhar a confiança de quem está na primeira linha de embate com o sofrimento cotidiano o padre da igreja o quiroprático o médico de família ou mesmo os vizinhos do prédio significava impor respeito aos colegas da instituição Na mesma linha mostrar que a gente era digno de confiança não significava dar provas práticas da capacidade de ajudar pacientes significava dar prova de uma excelência teórica que impressionaria os colegas Quem seguisse o conselho que eu acabava de receber e quisesse s e fazer conhecer não pensava por exemplo em conseguir trabalho num dispensário público de saúde mental onde se mostraria capaz de lidar com a demanda de quem sofre e pede ajuda sem salamaleques ou seja sem a reverência garantida de quem já saberi a que a psicanálise era uma aventura especial reservada aos entendidos Naquela época quem se dispusesse a seguir o conselho de Simatos ao contrário pensava em outras coisas Pensava em dar prova de extraordinários brilho inteligência e saber num seminário fechado entre analistas consequência paradoxal disso nos seminários falavase pouco pois o risco de perder pontos parecia maior do que a chance de ganhálos Pensava em conseguir apresentar uma comunicação num congresso ou numa jornada de trabalho da École mesmo que fosse às 8 da manhã na sala D Pensava em publicar a dita comunicação ou então em publicar um artigo em alguma revista Ou sonho supremo pensava em escrever um dia um livro para a Éditions du Seuil Mas cuidado em sua maioria essas intervenções e comunicações esses artigos e livros não nasceriam propriamente como contribuições a uma disciplina e sim como esforços para conquistar um espaço mais ensolarado na hierarquia imaginária ou real da instituição Eram como a roupa da semana da moda de São Paulo ou do Rio fashion para dar lustre à marca vestimenta só para a passarela não para usar De fato na históri a de poucas disciplinas houve uma proliferação de produção digamos teórica tão intensa como na psicanálise francesa desde 1970 Multiplicavamse as revistas e as séries editoriais Depois da dissolução da École Freudienne quando Lacan estava se apagando a comunidade fragmentouse não tanto por diferenças na interpretação da obra ou no entendimento da psicanálise Ela se fragmentou como se fragmentaria um exército em que todos achassem vital ser generais Cem grupos permitem a existência de cem chefes de escola por pequena que cada uma seja com cem escolas há mi l membros de diretorias 2 mil analistas encarregados de ensino e sobretudo cada grupo convocando deus e todo o mundo para seus congressos centenas de ocasiões de subir num pódio Na vida das instituições desta época vamos fazer de conta que não seja mais o caso não havia temas que se impusessem como questões comuns e motivassem números especiais de revistas ou encontros Havia isso sim a necessidade institucional de garantir espaço a todos os membros que se sentiam compelidos a tomar a palavra ou a caneta para s e fazer conhecer A produção psicanalítica deste período com as exceções que são sempre devidas claro é fundamentalmente uma vasta e desordenada máquina de propaganda E à diferenç a do que acontecia nos começos da psicanálise quando se tratava de estabelecer a legitimidade da disciplina o objeto da propaganda deste período não era a psicanálise eram as instituições as marcas e as pessoas os modelos Consequência e prova disso essa produção surpreendentemente exuberante não tinha nenhum efeito acumulativo Alguém podia escrever e publicar hoj e uma interpretação sofisticadíssima de um sintoma extremamente raro sei lá síndrome de Tourette com tique do olho esquerdo e palavrões em chinês Pois bem amanhã outra pessoa escreveria e publicaria outra interpretação sofisticadíssima da mesma síndrome só que absolutamente oposta à anterior Nem por isso haveri a debate ou acumulação de um saber Citações do trabalho anterior nem pensar As ideias se sucediam como num desfile de achados sem conexão Por que um debate posto que o propósito dos autores não era interpretar a dita síndrome ainda menos curála Deus nos livre disso mas assinar uma interpretação suficientemente sofisticada para impressionar os colegas Havia uma outra razão para que não acontecesse debate nem acumulação de saber Não era raro que continuando o mesmo exemplo nenhum dos autores das interpretações opostas tivesse sequer visto um paciente com síndrome de Tourette É certo que o racionalismo tradicional da cultura francesa alimenta a ilusão de que a verdade surgiria à la Descartes ou seja não do exame dos fatos mas por pureza lógica de deduções abstratas Mas é mais certo ainda que o imperativo de ganhar visibilidade empurrava especificamente os psicanalistas menos experientes a escrever comunicar e ensinar Tenho uma certa birra daquela época pois me parece que vi alguns dos melhores cérebros de minha geração não agonizantes na sarjeta como escreveu um grande poeta da contracultura Allen Ginsberg mas perdidos em elucubrações sem diálogo e sem relação com a gravidade e a seriedade de suas práticas Quem lia essa mass a de livros e artigos Quem escutava o murmúri o incessante de seminários e comunicações De certa forma ninguém Em regra lias e para adquirir o código comum e colocar em dia o ranking dos analistas Além disso liase só para cima numa espécie de pirâmide As sumidades eram perfeitos autodidatas só liam o que eles mesmos escreviam os que estavam embaixo deles só liam as sumidades e por aí vai descendo até a massa dos jovens que eram o embasamento e a sustentação entre outros financeira da pirâmide pois a necessidade de fazerse conhecer os levava a pagar seu ingresso em todos os congressos comprar todos os livros e todas as revistas De qualquer forma não é de estranhar que as contribuições não fossem levadas a sério pois de fato em sua maioria não eram escritas para divulgar ideias Você poderia me perguntar mas falando em finanças como uma tal quantidade e diversidade de editoras deficitárias de congressos dispendiosos de locai s alugados por instituições que pagavam funcionários imprimiam programas etc como tudo isso podia ser sustentado só pela presença e pela leitura assídua e fiel dos jovens médicos e psicólogos que queriam se tornar analistas Afinal o número não devia ser imenso não é Poi s é a solução vei o do própri o ensino de Lacan Certamente não foi uma sacação maquiavélica Uma ideia de Lacan nos anos 60 criou as condições para que a pirâmide se constituísse e também para que a psicanálise francesa durante ao menos duas décadas não conhecesse dificuldade de clientela e sobretudo de pedidos de formação Aconteceu assim Lacan se perguntava o que seria o fim de uma análise ou seja como definir uma análise propriamente terminada Sua resposta foi a seguinte o fi m de uma análise diferentemente de uma interrupção não é o esgotamento dos assuntos o sumi ç o dos sintomas o fim das queixas ou coisa que o valha O fim de uma análise propriamente dito seria uma experiência radical produzida pelo próprio processo analítico Pouco importa aqui examinar como Lacan entendia essa experiência e o processo que a ela levaria Mas descrita em termos psicológicos e muito simples que ele teria detestado seria a experiência de que não somos grande coisa e em particular não somos a única coisa que falta para que o mundo seja perfeito e para que a nossa mãe seja feliz Isso parece e é uma coisa fácil de saber e mesmo de admitir mas uma experiência efetiva dessa superfluidade de nos s a existência é uma outra história Nes s e momento final o sujeito vivenciaria logicamente uma espécie de desamparo depressivo mas também uma extrema liberação Por que liberação Pois é o que mais nos faz sofrer talvez seja justamente a relevância excessiva que atribuímos à nossa presença no mundo pois essa relevância é a pedra de fundação de todas nossas obstinadas repetições é graças a ela que insistimos em ser sempre iguais a nós mesmos sendo que no caso essa expressão não tem um sentido positivo Há boas razões para se pensar que uma vez essa experiência feita a gente possa passar a viajar pela vida carregando malas um pouco mais leves Ou seja seríamos capazes de largar os sintomas que nos devastam e que obviamente adoramos a tal ponto que não conseguimos desistir deles Em suma essa experiência conclusiva teria um valor terapêutico A questão do fim de análise é de grande interesse clínico Eu mesmo escrevi meu primeiro livro de psicanálise no começo dos anos 80 para tentar entender se e como essa experiência tinha acontecido para alguns de meus pacientes Até aqui tudo bem O problema é que à sua descrição do fim de análise Lacan acrescentou uma observação que teve consequências propriamente sociai s El e notou que essa experiênc i a produzia nos sujeitos que a atravessavam uma qualidade analítica uma disposição digamos assim a exercer a função de psicanalista Com os poucos elementos de descrição psicológica da experiência que acabo de esboçar já dá para entender o porquê Para lidar corretamente com o sofrimento dos outros não é necessário ser normais nem é preciso estarmos curados de nossas neuroses mas seri a bemvindo que a gente não se tomasse pelo ouro do mundo Você deve lembrar por exemplo que já mais de uma vez em nossa correspondência lhe apontei alguns problemas da prática de quem acredita que sua presença deveria bastar para fazer cada paciente feliz Em geral esse terapeuta cas a com uma série de pacientes ou mantém todos numa eterna dependência ou terceira possibilidade1 faz os dois Ora a observação de Lacan levou todo mundo às conclusões seguintes 1 só seria analista mesmo quem passasse pela experiência do fim de análise 2 passar pelo fim de análise seria o suprassumo do que é preciso para tornarse psicanalista As consequências são previsíveis Para a psicanálise na França e em boa parte do mundo elas foram devastadoras embora paradoxalmente positivas para o mercado da psicanálise Aconteceu o seguinte Os que estavam se formando entenderam que deveriam necessariamente ir até o fim de suas análises Mas a dita experiência não é um evento pontual que seja reconhecível porque de repente se acenderi a uma luz verde Tanto o paciente quanto seu analista poderão eventualmente entender o posteriori que uma experiênc i a daquele tipo aconteceu mas nenhum dos dois poderá certificála na hora em que ela se der se é que se trata de uma hora e não como é bem mais provável de um processo tortuoso Por consequência as análises de quem estava se formando tornaramse infinitas eternamente suspensas à questão insolúvel será que cheguei lá ou ainda não O cúmulo é que desta forma uma experiência que devia implicar um certo desprendimento era procurada como se fosse o ponto G do gozo Ou seja a observação de Lacan mal interpretada fazia com que no momento de largar suas malas mais pesadas os pacientes em formação as trocassem por um enorme baú Em outras palavras ainda Lacan descreve uma possível experiência de saudável embora doloroso abal o das fundações do narcisismo essa experiênc i a foi entendida como a porta de acesso ao prestígio da profissão desejada O momento em que eu realizasse a experiência de que não sou nada seria o momento em que finalmente conseguiria ser alguma coisa ou mesmo alguém Acredito que a experiência que Lacan tentou descrever existisse mesmo Agora é de se perguntar se ela não se tornou impossível a partir do momento em que passou a prometer como prêmio justamente uma identificação uma certeza narcisista cheguei enfim sou analista Naqueles anos teria sido possível escrever uma espécie de etiqueta para quem quisesse mostrar ao mundo que havia atravessado a experiência do fim de análise e portanto era analista Era bom claro mostrarse sempre deprimido evitar com desdém qualquer conversa fútil e qual não é tomar a palavra só transmitindo a impressão de que a gente está se forçando a falar pois na verdade como todos podem ver não é tomar a palavra parece agora uma jactância e por aí vai Uma série de caretas e posturas quase cômicas Já é meio estranho escutar alguém esbofandose a contragosto para anunciar que sabe que ele é só um objeto inútil e descartável Agora quando esse alguém está esbofandose num palco diante de 800 pessoas que pagaram algo como R50 para escutálo esbofar está na hora de rir Seja como for do ponto de vista do mercado da psicanálise essa transformação de uma hipotética experiência num carimbo de autorização e reciprocamente do carimbo numa hipotética e enigmática experiência foi ótima pois manteve durante anos deitados no divã pacientes em formação que sem isso já estariam correndo pelas ruas Mas há mais A ideia de que qualquer análise terminada seria o essencial de uma formação termine a análise e tornarseá analista uma vez vulgarizada transformou todos os pacientes ou quase todos em candidatos potenciais Com os efeitos seguintes 1 a grande massa dos pacientes veio engrossar a base da pirâmide que mencionei antes frequentando congressos seminários e colóquios comprando revistas e livros pagando as mensalidades das instituições etc 2 começar uma anális e tornous e mai s tentador mesmo que não acredite que essa coisa possa melhorar minha vida curando meus sintomas será que não a melhorarei achando enfim uma profissão lembrese das massas de estudantes de humanas prometidos ao desemprego 3 a psicanálise se afastou ainda mais do projeto terapêutico a ideia de que curar fosse acessório senão supérfluo além de ser um trejeito ideológico da contracultura tornous e um fato estabelecido pel a própri a finalidade da análise A experiência do fim de análise era para isso que a análise servia Que ao longo do caminho a gente pudesse curar uma gastrite uma obsessão ou uma incapacidade de amar isso era coisa para a espécie inferior dos psicoterapeutas Na verdade seria possível dizer que a psicanálise não se afastou de um projeto terapêutico apenas passou a propor a todos como cura a chance de tornars e psicanalista Com isso aliás curou suas próprias finanças e qualquer crise de clientela Ironia da história Lacan avançara seu entendimento do fim da análise também para polemizar com a ideia de que o fim de uma análise seria uma identificação com o analista que é de fato uma ideia suspeita você estará bem quando ficar parecido comigo Ora tudo na mesma com o fim da análise como passaporte para transitar do divã para a poltrona O prognóstico dessa história não é bom Uma prática e uma disciplina têm seus dias contados s e perdem o rumo de sua utilidade social para se preocuparem apenas com sua própria reprodução A base da pirâmide passado o entusiasmo inicial só pode descobrir que não lhe foi dada formação alguma apenas lhe foram transmitidos os tiques os anseios e a ilusão de uma militância esperançosa A promessa do bem estar foi substituída pela promessa de entrar no clube de ganhar status e trabalho E dessa promessa só se realizou se é que se realizou a primeira parte Quem acreditou na promessa ganhou os encargos do clube o dever de pagar a mensalidade sem qualquer benefício Entretanto a longo prazo a massa de cidadãos que não são seduzidos por essa promessa acabará se perguntando por que diabo levaria as queixas de sua vida a quem parece se importar sobretudo em produzi r adeptos Para isso bastam as igrejas evangélicas não é Enfim essa história contém lições que podem ser valiosas para você especificamente na hora em que se pergunta como estabelecer sua clínica Seu primeiro compromisso não é com a psicanálise ou a psicoterapia nem com Freud Melanie Klein Lacan ou qualquer outro chefe de escola nem com a instituição na qual você se formou Seu primeiro compromisso é com as pessoas que confiam em você e trazem para seu consultóri o uma queixa que pede para ser escutada e por que não resolvida Ou mais geralmente seu primeiro compromisso é com a comunidade na qual você presta serviços E o compromisso é de prestar o melhor serviço possível Talvez uma comparação resuma melhor O destino da União Soviética teria sido diferente se os bolcheviques se lembrassem que seu compromisso não era com o partido nem com Lenin nem com a teoria marxista mas com o povo russo Ajudou Conteilhe essa história para chegar à resposta que eu lhe daria hoje se você me perguntasse o que na época eu perguntei a Simatos O que fazer para que mais pacientes cheguem até meu consultório Diria Para estabelecer sua clínica vale esta máxima se seu compromisso for com os pacientes não se preocupe eles vão acabar sabendo Abç BILHETE Você observa que às vezes lendo textos psicanalíticos dos anos 70 e 80 hoje a coisa tende a melhorar não é simples fazer a diferença entre uma contribuição valiosa e um exercício de autopromoção o esti l o pode ser o mesmo inutilmente torto propositalmente incompreensível Como não confundir Não sei A verdade é que a obscuridade desses textos me afasta por razões propriamente clínicas Os textos psicanalíticos obscuros são geralmente concebidos para produzir e alimentar amores de transferência Funciona assim se você não entende bulhufas é que meu texto diz coisas que você não quer saber deve tratar de coisas que têm tudo a ver com você Portanto quanto menos voc ê entende tanto mais voc ê pode e deve me idealizar e me amar como detentor de uma verdade sua que você desconhece e que eu conheço Numa terapi a ou numa análise esperas e que um dia a idealização do terapeuta acabe Esperase também que o terapeuta queira que isso aconteça N o cas o dos textos obscuros parece que seus autores preferem manter os leitores e admiradores boquiabertos para sempre Pois escrevem não para transmitir o que sabem a revelação liquidaria a idealização cega mas para serem idealizados Só uma consolação sempre chega um dia em que o truque para de funcionar e parece evidente que quando você não entende é porque o autor não tem grande coisa para dizer ou mesmo que tenha algo para dizer prefere preservar sua aura de mistério a transmitir o que sabe Em ambos os casos provavelmente não vale a pena se esforçar Sou um leitor obstinado Os textos com os quai s mai s penei foram a Fenomenologi a do espírito de Hegel e os Escritos de Lacan um ano para cada um a tempo pleno Eles me servem de referência quando o esforço de leitura se aproxima do que eles exigiram de mim é bom que o texto prometa um conteúdo de riqueza equivalente o que é raro Se não for o caso passo adiante Fora isso há momentos em que um sólido senso de humor pode ser salutar para evitar as armadilhas transferenciais da obscuridade No ano passado em Boston Estados Unidos fui escutar com um amigo e colega americano um professor universitário inglês que proferi a uma conferência supostamente de teoria psicanalítica de inspiração francesa No fim de uma incompreensível sucessão de afirmações sem referência empírica destacando as palavras para marcar a extrema dramaticidade da questão conclusiva de sua exposição o palestrante perguntou Será que a pulsão se curva E deixou o silêncio compenetrar o momento solene Meu amigo americano observou discretamente É uma questão muito interessante mas ultimamente o que tem me ocupado mesmo é outra questão quantos anjos voc ê acha que cabem na cabeça de um alfinete Sério comentei Depende anjos em pé ou sentados Fomos tomados por um acesso de riso incontrolável O curioso é que o auditório embora ninguém tivesse ouvido nossa troc a bemhumorada foi contagiado e aliviado por nossa hilaridade O conferencista ainda deve estar se perguntando o que há com estes americanos que em vez de aplaudir caem na gargalhada E provavelmente está contando para seus amigos que ele verificou pessoalmente o que todos já sabem os americanos são refratários à psicanálise 8 QUESTÕES PRÁTICAS Minha jovem colega Vou tentar responder numa só carta aos vários bilhetes que voc ê me mandou na semana passada São questões que quas e sempre embora sejam objetos de reflexões teóricas complexas às vezes inutilmente complexas merecem ser resolvidas com uma dose certa de bom senso REGRAS Você me pergunta se no começo de uma cura é bom dar alguma indicação ao paciente ou mesmo explicitar algumas regras Sei que você está pensando por exemplo no que se chama em psicanálise a regra da associação livre Algo assim Aqui voc ê deve poder falar livremente de tudo o que lhe ocorrer mesmo e sobretudo se a coisa lhe parecer fútil sem medo de falar besteiras e exercendo o mínimo de censura possível pode falar de sonhos fantasias pensamentos estranhos lembranças aparentemente sem importância etc tudo o que passar pela sua cabeça nos interessa É importante que a regra se for dita não seja recitada como uma reza que a gente conheceria de cor e repetiri a sempre do mesmo jeito melhor improvisar de cada vez como acabo de fazer O pressuposto que justifica essa regra é o seguinte no que a gente fala opera uma lógica interna que nós não percebemos Quanto menor nos s a intervenção na escolha e na organização do que falamos tanto mais essa lógica interna poderá nos levar a dizer coisas inesperadas por nós mesmos a descobrir algo que estava em nossos pensamentos sem que soubéssemos Alguns analistas e terapeutas enunciam essa regra no começo de cada cura e a repetem regularmente para que o paciente não se perca por exemplo em meandros de explicações e elaborações preparadas de antemão Outros analistas e terapeutas notam com razão que a dita lógica se impõe de qualquer forma na fala de nós todos mesmo quando fazemos o possível para controlar nossas palavras Aliás geralmente é logo quando tentamos policiar cuidadosamente nos s o discurso que podemos cometer um lapso revelador Além disso a experiênc i a mostra o seguinte quase sempre mesmo o paciente mais prevenido que anotou seus tópicos por medo de perder seu tempo ou de não ter nada para dizer acaba sendo levado no decorrer da sessão a falar de coisas que ele não previu Um detalhe se um paciente chegar de papel na mão decidido a ler o que preparou e se isso deixar você incomodado voc ê poderá pedi r para el e guardar o papel e falar espontaneamente pois certamente ele deve se lembrar dos temas que previu tratar Agora lembrese do seguinte de qualquer forma as palavras sempre levarão seu paciente por terras imprevistas Então formular ou não a regra fundamental Não perca muito tempo debruçandose sobre essa questão Decida voc ê também livremente ou seja explicite a regra quando lhe parecer importante ajudar o paciente a ultrapassar seu pudor sua vontade de se mostrar inteligente ou sua necessidade de construir explicações racionais Mas cuide disto enunciar a regra deve servir para autorizar o paciente a falar não para obrigálo a falar do que você quer ouvir É possível se esconder de si mesmo por trás de racionalizações e assuntos preparados Mas é possível também se esconder por trás de associações quase poéticas que pulam de palavra em palavra Agora há duas outras regras que o próprio Freud considerava com simpatia e que um pouco esquecidas talvez mereçam sua atenção A primeira quase ninguém mais usa Ela pede ao paciente que durante sua análise ou terapia evite tomar decisões cruciais e irreversíveis na condução de sua vida Não é só porque as melhores decisões seriam tomadas no fi m quer dizer quando presumivelmente as motivações e os conflitos estariam em cima da mesa É também porque o tratamento agita fortes emoções e talvez não seja uma boa ideia tomar grandes decisões sob esse impacto A regra é sábia mas encontra dois problemas 1 hoje as curas tendem a durar muito tempo e pedir que alguém suspenda por assim dizer sua vida durante anos parece impossível e injusto seri a pedi r muita paciência ao paciente 2 é frequente que alguém recorra a um analista ou terapeuta para conseguir tomar uma decisão difícil mudar de emprego separarse casarse adotar uma criança emigrar e por aí vai Esse tipo de paciente nos consulta porque se sente paralisado pela incerteza faç o ou não faço Não seria curioso pedirlhe que se engaje a não decidir nada ou seja a persisti r na hesitação da qual se queixa A segunda regra é também um pouco esquecida mas a meu ver injustamente Ela pede que o paciente se comprometa a não falar de sua terapia com os seus próximos familiares e amigos Há ao menos duas razões que justifica o us o dessa regra 1 Muitos amigos ou parentes pode hostilizar a cura de um paciente porque receiam com razão aliás que o tratamento modifique a relação que o paciente mantém com eles Como cada relação é um encaixe em que convivem mai s ou menos harmonios a mente as neuroses de todos os interessados é claro que mexer num dos elos significa atrapalhar a vida de todos Ora já não é fácil para o paciente encontrar coragem de mexer em sua própria vida parece melhor evitar a tarefa suplementar de lidar com as resistências de seus próximos 2 A outra razão para fazer valer a regra do silêncio concerne mai s especificamente aos casais Acontece que os membros de um casal recorrem separadamente a analistas ou terapeutas distintos Às vezes o casal está em crise ambos desejam ou declaram desejar que a relação continue e cada um espera justamente que o outro mude um pouco graças à terapia É banal nesses casos que as curas se tornem o objeto favorito da conversa familiar O que disse hoje o seu psi E o que disse a sua Pois é quas e sempre olhe só que coincidência o que disse o terapeuta de um membro do casal vale como uma acusação feita ao outro e viceversa A paz projetada se transforma numa guerra familiar combatida por terapeutas interpostos com as interpretações e intervenções dos terapeutas servindo como armas O meu disse que você ainda não entendeu que a sua família é esta não a casa de sua mãe Ah é Engraçado porque a minha disse que você passa o tempo todo me criticando para preservar a imagem de seu pai E por aí vai Pena pois se ambos ficassem calados as palavras dos terapeutas poderiam mesmo surtir o efeito que ambos declaram desejar SETTING Você me escreve que nunca sabe direito por que quando e como propor a um paciente que deite no divã e por que quando e como deixar ou pedi r que ele continue sentado na sua frente Sobre essa questão há uma vasta bibliografia Não vou resumi r argumentos teóricos que você já conhece ou que pode facilmente ler e meditar Uma coisa é certa há análises de formação de psicanalistas famosos e reconhecidos que se deram inteiramente no face a face Ninguém sabe por quê nem os analistas que se formaram sentados e talvez nem os analistas que os analisaram sentados A coisa aparentemente não foi decidida por alguma razão clínica argumentada Eu me formei deitado mas em compensação meu analista preferi a me falar no fim da sessão no face a face quando eu acabava de me levantar Então talvez tenha me formado em pé Minha sugestão é a seguinte claro leia e cogite sobre essa questão mas leve em conta que como disse o próprio Freud talvez a decisão possa depender simplesmente de uma questão de conforto seu e de seu paciente Para começar há pacientes que não aguentam a ideia de falar sem ver a cara de quem escuta e há pacientes que ao contrário não aguentam encontrar o olhar de seu terapeuta Por mais que essas intolerâncias possam lhe parecer sintomáticas forçar a barra não tem sentido A imposição de um setting não vai curar ninguém e seu propósito não é colocar condições que dificultem a relação terapêutica mas permitir que o paciente se engaje na cura Além disso leve em conta suas próprias exigências Durante muitos anos em São Paulo eu atendi meus pacientes de maneira concentrada pois permanecia na cidade pouco mais de uma semana por mês Aos poucos fui deixando que muitas análises acontecessem face a face Quando me dei conta e me perguntei por que eu não estava mais convidando meus pacientes em análise a se deitar no divã descobri o seguinte no fundo gostava de têlos na minha frente porque queri a guardar uma lembrança visual de seus rostos durante os tempos de separação E supunha claro que o mesmo valesse para eles Alguns colegas poderiam me dizer que essa ideia é cretina pois o que importa numa análise não são as caras e as caretas mas as palavras Concordo sem discutir mas repito não tenho nem procuro argumentos teóricos apenas sentia a exigência de me lembrar bem das caras de quem contava comigo E não estou convencido de que essa exigência me servisse para ocultar ou esquecer as palavras Na contramão dessa exigência situase o cansaço produzido por uma série de sessões face a face Nem todos os analistas ou terapeutas aguentam passar o dia expostos a uma sucessão de olhares escrutadores que inevitavelmente tentam ler ou adivinhar na cara do terapeuta um sinal de aprovação e simpatia ou então de rechaço e ironia Enfim nesta matéria quatro conselhos 1 Aja de maneira que sua escolha não seja forçada Nenhum paciente gostaria de perceber que seu terapeuta no consultório obedece a formas estabelecidas sem construir e propor seu próprio espaço 2 Lembrese de que em última instância o setting não é condição nem garanti a de nada Uma análise ou uma terapia acontecem pelas palavras trocadas e pelas relações que elas organizam não pelas disposições dos traseiros dos interessados Durante a ditadura militar na Argentina mais de um analista se dispunha a encontrar seus pacientes na clandestinidade no carro dirigindo pegandoos de carona 3 Lembrese também de que nem o paciente nem o terapeuta estão presos no divã ou na poltrona por parafuso algum Um paciente deitado há tempo pode decidir um dia que há algo que ele quer dizer olho no olho 4 Pode acontecer que manter e impor o setting prescrito por sua formação se torne um dia para você uma espécie de condição do tipo se esta paciente não deitar no divã não haverá análise possível Essa rigidez surge em geral com um ou outro paciente específico Bom se isso acontecer considere a possibilidade de que voc ê esteja transformando sua poltrona numa fortificação militar e então perguntese por quê ENTREVISTAS PRELIMINARES Você quer saber quais são as perguntas que coloco e me coloco durante os primeiros encontros com um paciente Isso é claro além das que ajudam o paciente a contar sua história e suas dores e nos ajudam a construir um primeiro esboço do problema De fato há sim duas perguntas que sempre surgem 1 A primeira coloco para mim mesmo na hora de concluir no fim das primeiras entrevistas Perguntome se neste caso eu poderia ser de algum auxílio Não há quadros patológicos que eu recuse apriori e há poucos casos em que encontro o limite do que aguento escutar deste tipo de limite já lhe falei em minha primeira carta lembra A pergunta que acabo de mencionar introduz um outro critério Digamos assim prefiro me engajar com pacientes com quem me parece possível estabelecer uma aliança Não quero me engajar na cura de um paciente que não possa acolher no dia de sua sessão com um pouco de entusiasmo A ideia de uma aliança do terapeuta com o paciente foi muito criticada Entendese por quê numa aliança nada prova que não sejamos aliados justamente dos sintomas do paciente Concordo mas é possível imaginar uma aliança diferente é possível ser o aliado do desejo do paciente contra as razões pelas quais ele se impede de desejar Enfim o que importa aqui é de onde me vem a sensação de uma aliança possível Sei por certo que ela não depende de alguma similitude de história sintoma ou fantasia Nunca me incomoda por exemplo que as fantasias sexuai s de um paciente sejam muito distantes das minhas ou mesmo que elas me pareçam um pouco repulsivas Nos anos 80 fui por exemplo o último recurso de um paciente coprófago que comia seus excrementos quase a cada dia e que não conseguia encontrar um terapeuta em que a repugnância não falasse alto demais No fundo acho que a sensação de uma aliança possível me vem do mesmo tipo de consonâncias nem sempre ponderáveis que decidem por exemplo que ao encontrar alguém pela primeira vez sabemos se poderia ou não ser nosso amigo É provavelmente uma questão de pequenos traços que parecem sem importância Um exemplo de pequeno traço A voz Há vozes que gosto e outras que me incomodam Não sei bem por quê Imagino que nossa relação com a modulação da voz seja o resto de algo muito antigo o ouvido é um sentido que se desenvolve plenamente já no ventre materno Talvez cada um de nós guarde uma estranha mixagem de músicas e ruídos intrauterinos cânticos de ninar conversas familiares etc que ficam para sempre ligados a uma certa sensação de bemestar E talvez exista em nós uma outra mixagem que seria a coluna sonora do desamparo e da cólica O fato é que um terapeuta ou analista não é indiferente às vozes dos pacientes é bom renderse a essa evidência Não vejo por que deixaria que um paciente tivesse de lutar em sua terapia contra meu desagrado auditivo Claro o problema invers o também existe há vozes que encantam e não é bemvindo escutar um paciente como se escuta uma música Outro caso ainda são as vozes que adormecem O sono do terapeuta é geralmente interpretado como uma vontade de não escutar uma defesa Mas Roland Barthes que obviamente falava bastante em público me fez um dia esta confidência nas suas palestras nada lhe dava uma satisfação maior ele me disse do que constatar que alguém na platéia dormia profundamente El e não achava nem um instante que o sono de seu ouvinte fosse prova de desprezo Ao contrário pensava o seguinte quem prestava atenção recompensava os frutos de sua inteligência mas quem dormia demonstrava uma aceitação e uma simpatia mai s profunda quem dormia não gostava tanto da abstração de suas ideias quanto da concretude física de sua voz Em suma Barthes se sentia lisonjeado quando conseguia adormecer um de seus ouvintes Talvez o sono do terapeuta seja também às vezes o fruto da sedução exercida pela voz do paciente Bom seja como for melhor não dormir 2 A outra pergunta que coloc o nas entrevistas preliminares é para o paciente É uma pergunta que comecei a fazer só recentemente quero saber o que o paciente espera da terapia que começa É óbvio que não confundo o que ele declara esperar com o que ele quer mesmo A pergunta não é feita na ilusão de que o paciente diri a assim de repente e às claras seu desejo recôndito Ao contrário a resposta em geral manifesta sobretudo por quais caminhos o paciente está bem decidido a obstaculizar seu desejo Por exemplo espero que voc ê me ajude a me separar deste homem pode significar amo este homem e não há catástrofe pior na minha vida do que a separação que me espreita mas disso não quero nem ouvir falar viu Em suma nada prova que o terapeuta deva adotar a esperança declarada do paciente como se fosse o alvo de seu trabalho Então por que a pergunta Nos últimos anos praticando nos Estados Unidos lidei com a necessidade de preencher regularmente balanços e prognósticos dos tratamentos para as companhias de seguro de meus pacientes Essa chatice burocrática teve um efeito interessante fui levado a me perguntar a cada três ou quatro meses O que mudou Qual foi o caminho percorrido Onde estamos agora É diferente de onde estávamos no começo Pois bem descobri que uma maneira de medir o andamento de uma cura consiste em repetir regularmente aquela pergunta inicial Pois é frequente que a resposta do paciente mude que ele passe a esperar de sua terapia algo diferente do que ele esperava no começo Quer seja sejamos otimistas porque se aproximou do que ele deseja mesmo e consegue pedilo a si mesmo ao terapeuta e à vida quer sej a porque achou novos caminhos talvez menos penosos de organizar sua fuga do que ele quer De qualquer forma a mudança da resposta me orienta A DURAÇÃO DA SESSÃO Você me pergunta qual é a duração de uma sessão Mal posso lhe dizer quanto dura mais ou menos uma sessão comigo Numa época pareciame que a duração das sessões fosse uma questão crucial da qual dependiam o alcance e o sentido da cura De fato a maneira de medir o tempo da sessão revela modelos terapêuticos diferentes A sessão com tempo fixo 45 ou 50 minutos batidos por algum relógio supõe um modelo radiológico um pouco como se a cura dependesse do número de horas de exposição do paciente ao terapeuta A sessão com tempo variável supõe um modelo mais próximo da prática médica ou cirúrgica Se voc ê está deitado numa cama de operação enquanto lhe retiram o apêndice inflamado você quer que a coisa leve o tempo necessário e se por sorte a intervenção for rápida você não despertará da anestesia para protestar acusando o cirurgião de não dedicar mais tempo à sua barriga Na verdade hoje acho que a psicoterapia e a análise talvez sejam mai s próximas de um terceiro modelo o de muitas terapias do corpo A cada vez a postura é corrigida a coluna estalada os músculos relaxados mas um resultado que não seja apenas um alívio temporário pede uma série indefinida de repetições Do ponto de vista do tempo é um modelo intermediário a cada vez leva um tempo variável que depende dos músculos e ossos interessados de quanto o paciente aguenta naquele dia etc Mas não estou mais disposto a fazer desta questão o cavalo de uma batalha teórica Conheço pessoas que parecem terse beneficiado bastante de uma terapia e outras para quem a experiência aparentemente foi sem consequência a duração das sessões não parece ter sido um fator decisivo no sucesso ou insucesso das curas Minha formação foi como já lhe disse na École Freudienne de Paris a escola de Lacan as sessões variáveis e breves eram um dogma ao qual aliás nem todo o mundo obedecia a começar pelo meu analista Durante anos trabalhei com sessões breves das quais apreciava a tensão e o sentimento de urgência que matavam a preguiça da escuta e excluíam rapidamente o papo furado Nos Estados Unidos pratiquei sessões de aproximadamente 50 minutos conformandome ao padrão exigido pelos seguros americanos e descobri por exemplo que o próprio andamento da sessão suas pausas recuos e avanços é matéria de interpretação Hoje minha fórmul a preferida é um tempo variável mas não breve Talvez por temperamento ou pela idade que avança esteja apenas escolhendo uma atitude intermediária e conciliatória Mai s provavelmente encontrei um ritmo que convém à minha atenção e à minha maneira de escutar e intervir Gosto de ter o tempo para que uma lembrança seja evocada e explorada e para que um sonho seja analisado Mas me reservo a possibilidade de interromper a sessão quando um pequeno ou grande achado poderia ser anulado pela necessidade de encher linguiça para preencher o horário Tenho um hábito que alguns pacientes estranham não costumo atribuir horários definitivos prefiro marcar a cada vez ou quase É um incômodo certo mas gosto de ser surpreendido pela pessoa que encontro na sala de espera Evito em suma a rotina que transforma Fulano no paciente das 9 e Sicrana na paciente das 10 Outro detalhe acontece que me atrase não só porque às vezes uma sessão pode durar muito mais do que o previsto mas sobretudo porque como anuncio a meus pacientes tento ser disponível numa urgência Se um paciente por alguma razão quer me falar de repente naquele mesmo dia invento um horário Todos esses jeitos não constituem um modelo e de fato não têm não quero que tenham uma justificativa teórica Minha intenção ao expôlos não é sugeri r que voc ê os adote Ao contrário quero sobretudo encorajála a inventar uma maneira de atender que seja a sua PAGAMENTO Pois é quem paga Como Durante minha formação e quando era jovem analista em Paris vigia a ideia de que uma terapia e mais ainda uma análise deveriam ser pagas pelo bolso do próprio paciente Ouso de qualquer forma de seguro parecia uma heresia fadada ao fracasso o acesso ao desejo da gente diziase sem hesitar não é um direito social é preciso conquistálo com sacrifício Inventavamse aliás artifícios extraordinários para que também a prática com crianças e adolescentes respeitasse o dogma Claro os pais pagavam mas a criança devia trazer a cada vez um desenho o adolescente levava o cheque de 140 francos e acrescentava 10 da sua mesada e por aí vai Pairavam sobre nós ameaças apavorantes se seu paciente não tirar o dinheiro do bolso ele pagará com sua carne No mínimo o paciente que recorresse ao seguro saúde se amputaria um dedo a cada noite na hora de cortar o pão e a culpa seria nossa Quem trabalhava em ambulatóri o ou em outras instituições públicas era considerado com suspeita não eram verdadeiros terapeutas e ainda menos analistas pois por mais que eles se comportassem direitinho seus pacientes não pagavam Ainda hoje há quem esnobe convênios sob o mesmo pretexto Ora quem trabalhou no serviço público sabe que nada disso é verdadeiro As resistências de um paciente a seu própri o tratamento não são vencidas pel o esforç o de pagar Aliás há pacientes para quem pagar é uma boa desculpa estou fazendo tudo o que preciso para melhorar prova disso estou pagando Além disso para um adolescente por exemplo ver a mãe ou o pai preenchendo um cheque pode ser um pagamento bem mai s pesado do que dedicar à terapi a uma parte de sua mesada para outro sujeito o esforço de vir de longe é um sacrifício bem maior do que pagar o valor da sessão O engraçado é que na França quando a situação econômica apertava um pouco os medalhões que nos ensinavam que o paciente devia imperativamente pagar de seu bolso sem isso ele nos ofereceria pedaços de sua carne passavam a preencher e assinar alegremente os formulários do segurosaúde de seus pacientes Mais uma questão é frequente que o orçamento do paciente determine o número de sessões que ele poderá ter por semana Pode pagar três Não pode Então duas Não me conformo com esse cálculo A frequência das sessões deveria depender das necessidades da cura que aliás podem variar Há momentos quer sej a produtivos e acelerados quer sej a de uma viscosidade quase parada em que posso querer encontrar meu paciente a cada dia há outros momentos em que a cura parece precisar de um tempo de suspensão ou de digestão Às vezes sonho com um sistema em que o paciente pagari a uma mensalidade fixa e o número de sessões do mês seria variável segundo o que pedem a cura e seu momento Mas é uma utopia claro SUPERVISOR Quanto à escolha de um supervisor só duas indicações 1 Sua supervisão não deveria custar mais do que você ganha atendendo o paciente cujo caso você decidiu supervisionar 2 Como reconhecer um bom supervisor É simples A supervisão não é uma aula de clínica ou de arte diagnóstica Também não é a ocasião para o supervisor mostrar como e por que ele teria agido diferente de você A função da supervisão de um jovem terapeuta ou analista salvo situações catastróficas deve ser autorizar o terapeuta inspirarlhe a confiança em seus próprios atos sem a qual nenhuma cura vai ser possível Aliás falando em confiança eu queri a que voc ê deduzisse desta pequena séri e de notas práticas só uma regra confiou a ponto de autorizarse a atender continue Abç 09 CONFLITOS INÚTEIS Meu jovem colega Entendo sua preocupação com fármacos e neurociências Ao saber que você é psicoterapeuta ou psicanalista além disso jovem quase sempre haverá alguém que com uma espécie de comiseração perguntará se voc ê não recei a ters e engajado numa profissão sem futuro Afinal acrescentarão com os progressos da farmacologia e das neurociências quem vai precisar do transtorno de uma terapia quando poderia regrar a questão com uma pílul a ou duas ou quem sabe no futuro com uma pequena intervenção neurocirúrgica laser claro ninguém gosta de bisturi na cabeça Já lhe disse que em regra essas observações a mistosas manifestam sobretudo o temor imotivado que é produzido por sua presença São jeitos de seus comensais se protegerem de um saber que eles mesmos lhe atribuem Só vale a pena acrescentar o seguinte em regra a disputa entre psicoterapia ou psicanálise de um lado e biopsiquiatri a ou neurociências do outro é uma fals a disputa Na minha experiência quem alimenta es s a oposição não conhec e quas e nada de psicoterapi a ou psicanálise e sabe ainda menos de farmacologia e de neurociência Quem conhece os assuntos e pratica ou pesquisa numa das ditas disciplinas sabe que não há disputa alguma nem de fato nem de princípio Se uma espécie de controvérsia ressurge regularmente isso se deve a duas razões para a mídia o tema é bom para um especial do domingo para alguns interessados as companhias farmacêuticas e alguns profissionais das três áreas talvez funcione a ideia de que é preciso defender sua fatia de mercado Deveria parar por aqui mas enfim vou lhe dizer muito brevemente o que respondo quando não tenho como mudar de mesa Primeiro a pretensa oposição entre psicoterapia e fármacos Sou materialista Não acredito na existência de humores que não sejam alterações químicas do meu cérebro Se alguém me xinga se morre um amigo se por acaso me lembro de um evento feliz de minha infância as emoções que me invadirão boas ou ruins podem sempre e legitimamente ser descritas como fenômenos químicos que acontecem no meu cérebro Aliás são fenômenos químicos Hoje somos capazes de descrever quimicamente algumas emoções de uma maneira ainda incipiente mas já relativamente fina É ótimo porque isso abre a possibilidade de agir sobre essas emoções Fico triste porque meu amigo morreu quem sabe no futuro exista um inibidor da captação da serotonina de ação imediata e poderei engolir a sec o uma pílul a que numa mei a hora permitirá que eu volte sorrir É óbvio que não terei agido sobre a causa de minha tristeza meu amigo continua morto mas graças à descrição químic a de minha emoção terei conseguido modificar meu humor A mesma coisa aconteceria caso recorresse a um fármaco para aliviar os efeitos maníacos de minha lembrança de infância feliz A farmacopéi a pode agir sobre a caus a de meu humor e não apenas sobre meu humor quando meu humor não é só um estado químico este é sempre o caso mas é também de origem química Por exemplo uma depressão produzida por uma insuficiência da tireoide é um humor de origem química que é portanto propriamente curado em sua caus a por um suplemento hormonal correto Esses casos são relativamente raros Mesmo as depressões ditas endógenas ou seja que não parecem ser causadas por fatos externos à vida do paciente são em geral efeito de processos complexos de pensamentos e representações O que de novo não significa que não sejam descritas adequadamente em termos químicos Ora é óbvio para qualquer psicoterapeuta que em muitas situações é aconselhável tentar modificar o humor do paciente quimicamente Por exemplo um paciente deprimido a ponto de não sair da cama e não abrir a boca também não terá a mínima motivação necessária para operar algumas mudanças em sua vida com ou sem a ajuda de um terapeuta Uma correção química do nível de serotonina poderá com um pouco de sorte permitir que ele encontre as forças para se mexer Mas ninguém com a exceção talvez dos acionistas das companhias farmacêuticas sonha com um mundo em que as causas de nossos afetos seriam sistematicamente negligenciadas e nossos humores pacificados com uma contínua intervenção química capaz de impor ao cérebro um equilíbrio ideal Todos sabemos que por mais que eu tome a pílula mágica na hora da morte de meu amigo algum dia terei de enfrentar a dor de um luto A não ser que decida viver para o resto de minha vida sob anestesia Vamos às neurociências Aqui a ideia de um conflito é mais engraçada ainda Parece que os próprios psicoterapeutas e psicanalistas adoram encontrar nas descrições neurocientíficas alguma confirmação de suas hipóteses Estaríamos todos esperando que alguém nos aponte onde está o supereu onde está o inconsciente Cadê minha mãe cadê meu pai Ou então torcendo para que as descrições da atividade neuronal nos digam enfim o que é uma lembrança o que é uma associação como se impõe um pensamento obsessivo como somos invadidos por uma fantasia sexual etc É bem possível que um dia as neurociências correspondam a nossas expectativas O que será de grandíssima ajuda na clínica de lesões cerebrais e disfunções de todo tipo etc No entanto os efeitos dessas descobertas sobre a prática da psicoterapia ou da psicanálise serão mínimos se não nulos Porquê Porque a descrição neurocientífica de nossa atividade cerebral não altera nem um pouco as condições de nossa experiência Um exemplo vai logo explicar Imagino que voc ê não acredite na existência de uma alma fora do corpo e diferente dele Você também sabe que o corpo humano com cérebro e tudo é um complexo de células e moléculas sem contar os íons Em particular você sabe que somos compostos de 70 a 75 de água Agora será que em algum momento você se enxerga mesmo como 40 litros de água e uma espiral de DNA Claro que não Sua experiência da vida não é modificada por esse saber do qual você está justamente convencido Uma coisa é a descrição científica de nós mesmos outra coisa é nossa experiência Se um dia alguém descobrir o eletrodo certo e o lugar correto onde aplicálo claro para que eu pare de pensar num acidente cuja lembrança não me deixa dormir imaginemos que eu peça para ser livrado dessa lembrança Ora na hora da intervenção mesmo que eu seja neurocientista minha experiência do que estará sendo feito comigo será a experiência de uma mudança imposta à minha subjetividade não a meus neurônios A descrição neuronal da subjetividade não altera nossa vivência subjetiva Procurar uma correspondência entre a sensação de que o olhar de Deus paira sobre mim e uma repetida agitação neuronal em alguma área do meu cérebro é fútil Cada descrição introduz a possibilidade de clínicas diferentes sobre objetos diferentes A conversa entre essas descrições e essas clínicas é de grande interesse mas é tudo salvo um conflito Abç 10 INFÂNCIA E ATUALIDADE CAUSAS INTERNAS E CAUSAS EXTERNAS Cara amiga Pelo que você me conta seus primeiros pacientes falam sobretudo do que lhes acontece hoje Queixamse das dores do dia e eventualmente da sensação de uma certa falta de futuro É você com suas perguntas que tenta evocar o passado especialmente a infância Aliás de vez em quando leva uma bronca como daquele paciente que lhe disse Olhe eu não estou aqui para falar de meus pais de meus irmãos e de meus primeiros anos no interior meu problema é agora Claro voc ê não se deixa abalar e segue perguntando Afinal passou anos de formação aprendendo que para que a cura aconteça é preciso tocar na raiz das dores de seus pacientes e que essa raiz de uma maneira ou de outra está na infância Mesmo assim você se pergunta deveríamos sempre procurar na infância e só na infância as razões do sofrimento psíquico mesmo que nosso paciente afirme o contrário É certo insistir na evocação do passado diante de uma catástrofe atual Às vezes voc ê observa sintome um pouco idiota Perdi o emprego e estou desesperado anuncia o paciente e eu faço o quê Perguntolhe se lembra de quando o filho dos vizinhos roubou o seu carrinho de madeira O que você acha N a verdade não faço uma grande diferenç a entre acontecimentos da infância e acontecimentos da vida adulta também não sei muito bem quando começa a vida adulta Explico melhor não estou nada certo de que os acontecimentos da infância sejam de uma naturez a diferente do que nos acontec e hoje Tampouco sei se é verdade que pela receptividade de nossos primeiros anos eles nos marcam com um ferro mai s quente que deixaria vestígios para a vida inteira Mas uma coisa sei qualquer evento nos marca e nos transforma só na repetição ou melhor dito num segundo momento em que ele é evocado retomado revivido Por exemplo fictício e obviamente simplificado se eu fui abandonado na porta da igreja quando nené esse evento por si só não tem uma implicação necessária em minha vida mas ele se torna decisivo no dia em que aos quinze anos minha namorada some de uma festa para onde fomos juntos de mãos dadas É esse segundo evento que dá destaque consciente ou inconsciente ao primeiro É a parti r desse segundo evento que eventualmente começarei a viver uma angústia desamparada cada vez que estiver sozinho ou também possível a não tolerar a presença de ninguém ao meu lado pois sei que todos são traidores que abandonam O funcionamento do trauma propriamente dito é o melhor exemplo Você sabe que a categoria de transtornos de estresse póstraumático foi proposta por psiquiatras americanos que trabalhavam com veteranos da guerra do Vietnã Eles constataram duas coisas 1 a guerra do Vietnã produziu uma percentagem de veteranos traumatizados muito maior do que qualquer outra guerra americana Segunda Guerra Mundial Guerra da Coréia 2 os sintomas de estresse póstraumáticos não apareciam logo após as situações extremas de batalha eles apareciam quase sempre quando o veterano terminava seu tempo de serviço voltava ao país e deixava o exército Concluíram assim o caráter traumáti c o de um acontecimento não depende de alguma qualidade específica da experiência vivida mas é um efeito de como mai s tarde essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido para o sujeito Os veteranos da Guerra da Coréia e ainda mai s os da Segunda Guerra viveram situações tão horríveis quanto os combatentes do Vietnã mas ao voltar para casa eles encontraram multidões agitando bandeirinhas de boasvindas Os veteranos do Vietnã voltaram para um país indignado e envergonhado com uma guerra que parecia não ter sentido para ninguém U m trauma é isso um evento mai s ou menos difícil que num segundo momento não consegue ser integrado na história do sujeito Outro exemplo Será que um tapa na cara de uma criança constitui um trauma ou não Não é possível responder ainda é preciso saber se mais tarde o sujeito esbofeteado encontrará ou não argumentos para dar algum sentido ao dito tapa Os sentidos que podem ser encontrados aposteriori são muitos o nosso sujeito num segundo momento poderá entender o tapa como a expressão de uma autêntica vontade pedagógica de pais amorosos ou como a manifestação de uma irritação que não tinha nada a ver com ele ou do desespero de quem não consegue ser pai ou mãe O tapa será propriamente um trauma caso o sujeito num segundo momento não encontre sentido algum para a violência que o golpeou Mas não é a definição do trauma que nos importa Com esses exemplos queria apenas lhe mostrar que os fatos de nossas vidas agem em nós pel a históri a em que se integram ou melhor pela história em que conseguimos ou não integrálos Não que a vida seja um continuum Ao contrário não é reconstituir melhor dito inventar um sentido que ligue o presente ao passado é uma obra incessante que nos oferec e um conforto necessário nos dá a sensação de que atos e fatos se inserem numa história num conjunto que somos nós Aliás reinterpretar o passado descobri r ou inventar novos sentidos para o que aconteceu é quase sempre uma maneira de mudar nosso presente Pois no fim dessa empreitada sendo o resultado de uma narração diferente somos mesmo diferentes Qualquer cura tem duas faces uma digamos assim demolidora que desfaz as certezas cristalizadas da história que nos acua em sintomas que à vista de nosso passado parecem inelutáveis e outra construtiva que nos permite reinventar ou modificar um pouco a história da qual seríamos o fruto Talvez tenha conseguido explicar um pouco por que a infância se torna importante no nosso trabalho Não é porque os eventos da infância seriam mais marcantes do que os de hoje mas porque os eventos de hoje tomam relevância e sentido a parti r dos de nosso passado e portanto de nossa infância Agora cuidado um dos traços evidentes de nossos tempos é que o sentido do presente é procurado muito mais no futuro do que no passado Era inevitável a modernidade define o sujeito não por sua herança mas por suas potencialidades À primeira vista é uma libertação o passado não nos define mais com a mesma veemência os anseios de mudança podem salvar meu dia De fato a libertação é apenas aparente o futuro projeta sobre o presente uma sombra tão escura quanto a que antigamente era projetada pelo passado Parece que saímos de uma cultura em que o passado nos impedia de inventar o presente para entrar numa cultura em que o futuro nos impede de saborear o que estamos vivendo É frequente por exemplo que alguém recuse um namoro porque não sei no que vai dar O prazer que uma relação proporciona é preterido porque duvidamos de seu futuro Mai s um exemplo que conheço bem por têlo encontrado em muitos pacientes e por ter passado perto de vivêlo Durante quase dez anos vivi entre Nova York e São Paulo O grande prazer de viver em duas metrópoles entre as mais interessantes do mundo podia ser facilmente estragado pela incumbência da escolha futura do lugar onde fincaria pé na hora em que parasse de viajar Enfim para entender como e quanto o futuro pode parasitar o presente pergunte aos adolescentes Em geral eles não aguentam mais ser considerados sempre como promessas de um futuro e vivem na impressão de que os adultos que mai s os amam desconsideram o presente de suas vidas Duas razões então para que façamos o esforç o de evocar o passado em cada cura para reinventar o sentido de uma história e para amenizar o pes o do futuro devolvendo assim quem sabe seu justo lugar ao presente de nossas vidas Você se queixa também de que alguns de seus pacientes parecem considerar que todos os seus males são por assim dizer resultados de causas externas perderam o emprego e não encontram um que os satisfaça foram abandonados por suas esposas e esposos carregam uma doença que os ameaça e os assola Enfim eles lhe propõem o catálogo de todos os vasos de flores que um ser humano pode receber na cabeça ao sair de casa Claro você me escreve deve ser possível ajudálos a aguentar melhor os golpes do destino e mesmo a reagir com mais eficácia mas no fundo ao escutálos parec e que sofrem só da adversidade do mundo Às vezes você acha que sua intervenção seria mais eficaz se você se transformasse em casamenteira agência de emprego ou orientadora profissional Chega a suspeitar que suas perguntas sejam desonestas como se elas supusessem sempre a responsabilidade de seu paciente e como se essa suposição tivesse como finalidade a de convencer seu paciente da utilidade de recorrer aos seus serviços Essa distinção entre eventos externos e eventos internos culpa da gente e culpa dos outros alimenta um conflito infindável entre sociólogos e psicoterapeutas ou às vezes entre psicólogos sociais e psicólogos clínicos No ringue parece que se enfrentam dois lutadores de um lado os que acham que a personalidade e os sintomas são frutos da cultura do emaranhado das relações e dos acidentes da vida do outro os que acham que personalidade e sintomas são frutos da dinâmica interna de impulsões desejos e censuras que se originariam no fundo singular da alma É um enfrentamento idiota mais um na lista dos conflitos inúteis Primeiro Fernando Pessoa em muitas ocasiões os poetas são mais sábios do que os psicanalistas já sabia que o mundo exterior é uma realidade interior Segundo como disse uma vez Lacan o inconsciente não é nem individual nem coletivo ele é o coletivo mesmo Em outras palavras nosso lugar único e singular é como o assento que nos é reservado numa sal a de teatro ele é o nosso está escrito no ingresso mas ele é o lugar imposto pela distribuição dos outros na mesma sala às vezes há lugares sobrando e no meio do espetáculo dá para mudar e se aproximar do palco mas será um pouc o de penetra nosso lugar designado é o que recebemos na compra do bilhete Será que faz sentido perguntarse se é um lugar individual o coletivo posto que é o nosso mas é decidido pela distribuição na sala dos que assistem ao espetáculo junto com a gente Acrescente a isso a constatação de que uma vez sentados o que comandará nossas emoções e nossa participação na peça será sim nossa singularidade mas uma singularidade feita de valores obrigações censuras repressões e desejos que são os mesmos que agitam os outros espectadores os quais aplaudem riem choram ou vaiam conosco Também considere esse é um conselho clínico que existe uma ampl a gama de transformações da personalidade que são propriamente ditadas pela situação coletiva na qual um sujeito se encontra Por exemplo a mudanç a de cultura que acontec e numa migração acarreta verdadeiras mudanças subjetivas Menos benigno e muito frequente é o caso dos sujeitos que sucumbem ao fascínio do grupo É bem conhecido o exempl o de homens comuns de todos os horizontes da vida que se transformaram em torturadores ou assassinos de massa nas burocracias totalitárias sem que nada na singularidade de suas histórias sintomas ou fantasias os predispusesse a essas tarefas Desistiram de seus valores de seus desejos de suas repressões singulares e ganharam em troca o conforto de uma vida regrada por uma só exigência a de ser um membro funcional do grupo um bom funcionário A gangue de adolescentes produz resultados parecidos transformando facilmente cordeiros em assassinos Nela cada um suspende radicalmente sua existência à a provação dos outros São casos aparentemente extremos pelas consequências que acarretam Mas não esqueça que somos todos membros de algum grupo burocrático assim como somos todos suficientemente narcisistas para deixar ao olhar dos outros o cuidado de decidir quem somos Enfim psicólogo social e psicoterapeuta não têm mesmo por que brigar O psicólogo social pode não ser psicoterapeuta o psicoterapeuta não pode não ser de alguma forma psicólogo social Pois se ele entender e abordar seu paciente como se fosse um Robinson Crusoé vivendo desde sempre na ilha deserta e sem nunc a encontrar Sexta Feira o terapeuta se parecerá com um físico de antes da física moderna Sabe aqueles que achavam que os corpos caem por uma propriedade interna porque são obstinadamente pesados Parece que desde então descobriuse que os corpos caem porque há muitos corpos de tamanhos diferentes e eles se atraem Abç 11 QUE MAIS Você me pergunta Que mais você gostaria de me dizer antes que a gente se separe Meu jovem amigo Claro há mais mil coisas das quais gostaria de lhe falar um pouco De qualquer forma como lembrava Freud a gente nunca consegue transmitir o que sabe de melhor Você me escreveu uma vez acho que foi depois de minha carta sobre a formação Entendo que identificarse ao analista não possa nem deva ser o que o paciente espera de uma cura mas me parece difícil imaginar que ao longo do tratamento não haja um pouco ou mesmo muito disso Afinal você repetiu várias vezes que os pacientes nos idealizam e é bom que seja assim é bom que eles suponham que sabemos mais do que sabemos de fato Isso ajuda a cura a funcionar Mas pergunto se nos idealizam como eles não estariam a fi m de se identificar conosco Pois é disse que identificarse com o terapeuta não pode ser o que se espera de uma terapia Acrescentei que entender o fim da análise como o momento de tornar se analista é mais uma maneira de propor a identificação ao terapeuta como solução Há nisso uma certa covardia terapêutica não sei o que fazer com seus problemas mas igualmente continue vindo aqui pois em troca você se tornará analista como eu O que voc ê diria a um médico que não conseguisse curar sua pneumonia mas em compensação lhe trouxesse a ficha de inscrição do vestibular de medicina Haja paciência Isso dito no decorrer da cura há muitos momentos em que é inevitável que o paciente nos considere e nos use como modelos Houve uma époc a em que recémchegado ao Brasil eu era considerado um psicanalista muito estrangeiro Esse trademark made in France fazi a parte de meus atributos mais facilmente idealizáveis É curioso o número de meus pacientes que decidiram um dia fazer um doutorado ou um pósdoutorado no exterior Concordo são efeitos de identificação ao analista Enfim voc ê acrescenta Se é assim será que o terapeuta não deveria de alguma forma levar em conta esses percalços da cura e assumir a responsabilidade que vai junto Se entendo direito você se pergunta se não deveríamos considerar que bem ou mal a um momento ou outro serviremos de exemplo para nossos pacientes e portanto aceitar a responsabilidade de quem pode servir de exemplo para muitos Não discordo do princípio Só não sei se concordamos sobre qual é o exemplo que importa Pois é claro que por este caminho seria fácil chegar à ideia de que o terapeuta deve mostrar ao mundo e a seus pacientes uma face feita de normalidade tranquila de bemestar equilibrado Em suma o casaco que a gente veste no consultório deveria ser uma fachada que pudesse ter para os pacientes uma virtude terapêutica Afinal contemplando a segurança aparente com a qual atravessamos a vida e escolhendoa como modelo quem sabe os pacientes consigam apaziguar algumas de suas dores É isso Poi s é não tenho nada contra um pouc o de identificação Como lhe disse concordo em pensar que seja um mal inevitável E concordo também que a identificação dos pacientes conosco nos impõe uma responsabilidade Só que entendo essa responsabilidade de outro jeito A longo prazo identificarse com uma máscara é desesperador Pedir ao terapeuta que ele se fantasie para propor a seus pacientes um modelo legal significa condenar os pacientes à tristeza de uma eterna quartafeira de cinzas Portanto se voc ê sente uma responsabilidade diante da tendência de seus pacientes a se identificarem com você essa responsabilidade deveria lhe sugerir o seguinte sej a você mesmo Ou seja não aja para apresentar a seu paciente e ao mundo uma imagem que seria agradável ou mesmo presumivelmente boa para quem a ela se identificasse mas aja quanto mais perto possível de seu desejo Você não deve se vestir conter seus gestos modular sua aparência ou inibir sua vida pública de forma a compor a vinheta de uma normalidade desejável Deveria ao contrário comportarse pública e privadamente como seu desejo manda Você me pergunta por quê Aqui vai Concordei com você em alguma medida inevitavelmente o paciente se identifica com o terapeuta Concordo também com a ideia de que isso implica uma responsabilidade do analista Ora sua responsabilidade é de viver quanto mais próximo possível de seu desejo de forma que se o paciente procurar um exemplo em você será o exemplo de quem ousa se permitir o que deseja Uma anedota Nos últimos tempos de minha análise em Paris quando já era jovem analista fui convidado a um baile de máscaras O convite dizia que a fantasia era obrigatória Claro assim como vários jovens colegas aceitei o convite com prazer cogitei uma fantasia mas na hora do vamos ver cheguei na festa com meu terno de flanela Óbvio ninguém me barrou na porta No entanto mais tarde enquanto eu conversava numa roda composta de convidados sem fantasia a donadecasa se aproximou e perguntou irônica E vocês então cadê suas fantasias Com boa presenç a de espírito um amigo respondeu Mas estamos todos fantasiados fantasiados de psicanalista lacaniano A piada produziu a hilaridade geral porque dizia a exata verdade todos naquela roda tínhamos preferido não nos fantasiar porque queríamos convencer o mundo sem contar os eventuais pacientes que poderiam estar na festa de que éramos psicanalistas Resultado estávamos mesmo fantasiados de psicanalista Se tivéssemos escolhido uma máscara de Arlequim ou Pierrô pelo prazer da festa estaríamos menos fantasiados e com isso talvez seríamos mais psicanalistas Mas a história não acaba aqui No meio da festa eis que alguém me assinal a que meu analista tinha chegado E de fato Serge Leclaire estava lá numa suntuosa fantasia de dama do século XVIII talvez a própria marquesa de Merteull das Ligações Perigosas com tudo o que tinha direito amplo vestido rendado leque na mão pancakee pó quase branco alta peruca sinal falso e generoso decote depilado claro Pois bem não era a hora de minha sessão mas ganhei de graça uma das melhores interpretações de minha análise Há uma outra pergunta sua que ficou até agora sem resposta Você me escreveu o seguinte Entendi que você não defende normalidade alguma você não quer definir uma maneira de ser que lhe pareceria mais certa do que as outras Mas será que não há algo que de alguma forma mesmo sem querer você promove em seus pacientes Pensando bem não sou tão neutro quanto disse É verdade que nada me parece patológico a menos que seja direta ou indiretamente o objeto da queixa do paciente Mas você tem razão há uma coisa que prezo e outra que de uma certa forma antagonizo e tento contrariar mesmo que não seja objeto de queixa Prezo a qualidade da experiência vivida Mas a qualidade não é uma questão de agrado ou desagrado a qualidade da experiência é função da intensidade com a qual nos permitimos viver O destino digamos assim nos serve pratos variados alguns dolorosos outros jocosos e festivos O importante para mim não é que os dolorosos sejam evitados o importante é que todos sejam saborosos ou seja que topemos saboreálos É muito raro por exemplo que entenda o trabalho psicoterápico como uma forma de consolação que tentaria atenuar o impacto de uma lembrança ou de um evento penosos Das várias formas possíveis de infelicidade a que me parece mais aflitiva não é necessariamente a que mais dói Muito mais trágico me parece o destino de quem atravessa a vida sem se molhar como se os efeitos felizes ou nefastos escorressem sobre a pele como água sobre as plumas de um pato Com seus altos e baixos imagine nossa vida como uma breve passagem por um circuito de montanhas russas Quem atravessasse a experiência anestesiado sem gritos pavor e risos teria jogado fora o dinheiro do bilhete Tenho a ambição ao contrário de ajudar meus pacientes a viver de tal forma que chegando o fim eles possam dizerse que a corrida foi boa Vamos ao que antagonizo mesmo que não seja objeto de queixa do paciente Antagonizo em geral os artifícios pelos quai s desistimos de ser sujeitos ou seja as estratégias que encontramos para evitar aquelas dificuldades de viver que fazem parte do lote standard de nossa cultura Sobretudo as estratégias coletivas desconfi o das instituições políticas religiosas burocráticas que oferecem a seus adeptos uma chanc e de esquivars e das expressões básicas da subjetividade moderna desde a incerteza moral o que é justo o que é errado até a questão sempre aberta sobre o nosso desejo qual é o meu querer Por que antagonizar essas formas de descanso da subjetividade Fechando o circulo porque elas diminuem a intensidade da experiência tornam a corrida sem graça Enfim você me pergunta qual seria minha última recomendação Aqui vai seja humilde Não quanto aos efeitos e resultados que voc ê espera de seu trabalho Mas sej a humilde na aceitação das condições impostas por seus pacientes Haverá os que não conseguem nem sentar nem deitar mas só podem falar caminhando Haverá os que devem ficar silenciosos durante semanas para se convencerem de que não é proibido calarse Haverá os que só querem vir de vez em quando porque não toleram uma obrigação em suas vidas Haverá os que somem durante semanas a cada vez que você viaja porque não podem se impedir de punir quem os abandonou Haverá os que querem vir cada dia só para sentir o cheiro de uma presença amiga Haverá os que não falam mas perguntam o que você acha porque precisam ouvir sua voz e pouco importa o que você dirá Haverá os que se irritam porque você não os abraça e os que não aguentam ser tocados Eles querem mudar e você também junto com eles pode querer que eles mudem Mas uma mudança não é coisa que possa ser imposta Ela não virá da imposição do rigor abstrato da técnica que você aprendeu do setting no qual você se formou ou da teoria com a qual você escolheu justificar suas palavras e seus atos terapêuticos Ao contrário para que uma mudanç a aconteça um dia é preciso que uma relação comece e uma relação só pode começar nas condições que são irrenunciáveis por seu paciente Em suma avance desarmado Um abraço desta vez com todas as letras