·

Pedagogia ·

Português

Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora

Fazer Pergunta

Texto de pré-visualização

11 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 Letramento os desafios do ensino Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 12 13 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 Apropriação da linguagem escrita e ensino Cláudia Maria Mendes Gontijo 1 Resumo Este trabalho discute os resultados de uma pesquisa de caráter longitudinal que teve dois anos de duração cujo objetivo foi investigar como crianças com idades entre 5 e 6 anos matriculadas em uma instituição de Educação Infantil se apropriam da linguagem escrita Utiliza o método instrumental ou históricogenético elaborado por Vygotski 1997 e seus colaboradores para estudar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores Os resultados da pesquisa indicaram que a as crianças compreendem a função mnemônica ou de registro antes de terem o domínio do caráter alfabético da escrita b os modos como as professoras trabalham a linguagem escrita afetam influenciam os processos de apropriação da escrita c existem percursos de desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças que não são únicos e lineares mas que dependem das aprendizagens Palavraschave Alfabetização Escrita Crianças Abstract The work discusses the results of a longitudinal research which lasted for two years aiming at investigating how children aged between five and six years old studying at a children education institution appropriate themselves with the written language It uses the instrumental or the historicalgenetic method elaborated by Vygotski 1997 and collaborators in order to study the development of superior psychological functions The results indicate a children acknowledge the mnemonic function or the register one before realizing the alphabetical character of writing b the way written language is worked by teachers have an effect influence the processes of written appropriation c there are development ways of the written language in children that are not considered unique and linear but are dependable of learning Keywords Literacy Written language Children Doutora em Educação pela Unicamp Docente na Universidade Federal do Espírito Santo UFES Email clammgterracombr Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 14 Introdução Compreendemos a alfabetização como uma prática sociocultural que se desenvolve em sociedades que fazem uso da escrita1 O que caracteriza a alfabetização como uma prática sociocultural é o fato de as crianças não inventarem nesse processo o sistema de escrita o lápis o caderno etc e tampouco os modos de sua utilização elas se apropriam do resultado do desenvolvimento social e dessa forma garantem a continuidade da história e portanto a constituição de novos instrumentos novas práticas de leitura e de escrita pelo processo de diversificação e de recriação dos já existentes ao mesmo tempo que por esse processo se afirmam como sujeitos Nesse sentido a alfabetização é também um processo formativo que se constitui de diferentes formas com diferentes linguagens tecida em diferentes realidades com diferentes finalidades mas que deve em todas as circunstâncias buscar o desenvolvimento da consciência crítica de diferentes cidadãoscrianças que sobrevivem das adversidades da sociedade atual Essa visão contraria no entanto ideias e teorias presentes no discurso e na prática educativa brasileiros nos últimos 30 anos que pressupõem processos únicos e lineares para o desenvolvimento infantil e também os modos como as crianças aprendem a ler e a escrever Dessa forma neste trabalho em primeiro lugar discutiremos como nas últimas três décadas tem sido compreendida a evolução da escrita na criança e as condições que propiciaram a adesão de pesquisadores e profissionais da educação a essa forma de entender a alfabetização Em segundo lugar avaliaremos os resultados da pesquisa que teve por objetivo investigar os processos de apropriação da linguagem escrita por crianças de uma instituição educativa infantil no município de Vitória ES Brasil Essas situações de produção de escrita reforçam a ideia de que as práticas de alfabetização influenciam a maneira ou os modos como as crianças se apropriam da linguagem escrita e por isso destacam a impossibilidade de pensar em processos únicos para o desenvolvimento da escrita infantil 1 Ao longo da História e portanto do processo de institucionalização do ensino as escolas se tornaram o lócus privilegiado de desenvolvimento da alfabetização Isso não implica que ela possa ser desenvolvida em diferentes lugaresinstituições Porém tendo em vista o nosso interesse pelas práticas escolares focaremos a alfabetização como uma prática sociocultural que nas sociedades que fazem uso da linguagem escrita se desenvolve de forma privilegiada nas escolas 15 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 A alfabetização na perspectiva construtivista2 Antes de apresentar o modo como tem sido compreendida a alfabetização de crianças na perspectiva dos construtivistas é preciso retomar alguns pontos que nos ajudam a entender as condições que propiciaram a adesão dos profissionais e dos pesquisadores da educação às novas formas de ver e pensar esse processo Nas décadas de 70 e 80 1900 a reprovação na primeira série do Ensino Fundamental chegou no Brasil a índices que foram considerados alarmantes em torno de 50 das crianças se evadiam e ou eram reprovadas no fim dessa série Esse fracasso era justificado de diferentes maneiras as crianças eram desinteressadas malnutridas pobres o ambiente em que viviam também era considerado pobre de estímulos etc Essas explicações foram criticadas durante a década de 80 pois colocavam a responsabilidade do fracasso escolar nas crianças nas suas famílias e no ambiente sociocultural em que viviam Como resposta ao reiterado fracasso escolar na alfabetização na década de 80 começam a ser efetivadas mudanças que poderiam contribuir para a solução desse problema Conforme aponta Soares 2004 essas mudanças foram de duas naturezas pedagógica e conceitual Dentre as mudanças de natureza pedagógica podemos citar a implantação do sistema de ciclos em muitos municípios brasileiros a progressão continuada integrada ao sistema de ciclos que não previa a reprovação nos primeiros anos do Ensino Fundamental Concomitantemente às mudanças de natureza pedagógica colocadas em vigor em muitos municípios brasileiros desenvolveuse uma mudança de natureza conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita que se difundiu rapidamente no meio educacional Assim a partir da década de 80 com a divulgação do estudo de Ferreiro e Teberosky 19893 sobre a psicogênese da língua escrita assistimos à 2 Certamente a visão construtivista conviveu com outras formas de pensar Acentuaremos essa visão porque ela se tornou hegemônica nos documentos oficiais Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e Referencial Curricular para a Educação Infantil 3 A perspectiva construtivista de alfabetização originariamente elaborada por Ferreiro e Teberosky 1989 foi interpretada por vários pesquisadores e educadores que enfatizaram diferentes aspectos das teorizações dessas autoras e que também modificaram várias de suas proposições Apesar de sabermos dos muitos construtivismos discutiremos os estudos dessas autoras pois a ideia de um processo evolutivo único da escrita na criança é o ponto central dos estudos das autoras Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 16 inauguração de uma nova forma de conceber a aprendizagem da leitura e da escrita e o crescimento da crença de que essa visão ajudaria a solucionar os problemas educacionais ligados à alfabetização na América Latina Essa perspectiva ou finalidade de que a teoria de Ferreiro e Teberosky 1989 contribuiria para a solução dos problemas de aprendizagem foi registrada pelas autoras na introdução da obra traduzida no Brasil com o título Psicogênese da língua escrita Para concluir esta introdução assinalaremos em curta síntese que nosso objetivo será mostrar nos fatos a pertinência da teoria psicogenética de Piaget e das conceitualizações da psicolingüística contemporânea para compreender a natureza dos processos de aquisição de conhecimento sobre a língua escrita situandonos acima das disputas sobre os métodos de ensino porém tendo como fim último o de contribuir na solução dos problemas de aprendizagem da lectoescrita na América Latina e o de evitar que o sistema escolar continue produzindo futuros analfabetos FERREIRO TEBEROSKY 1989 p 32 Talvez no Brasil as finalidades apontadas pelas autoras para as suas teorizações tenham sido levadas demasiadamente a sério pois após mais de trinta anos de divulgação e de disseminação da teoria conhecida entre nós com a denominação construtivismo a questão do fracasso escolar na alfabetização permanece sem solução Durante todo esse tempo centramos os nossos olhares na criança e na sua relação com a escrita Entretanto essa nova postura contribuiu de certa forma para deixarmos de considerar por exemplo a necessidade de lutar contra as desigualdades sociais como uma das principais causas do fracasso escolar de crianças pobres Podemos então dizer que dentre muitas outras uma das condições que proporcionou a adesão de pesquisadores e profissionais da educação ao ideário construtivista na alfabetização está relacionada com os problemas enfrentados com relação ao fracasso escolar e à promessa de solução de um dos mais graves problemas educacionais brasileiros Assim mudar o foco das pesquisas e das práticas isto é dos métodos para a relação da criança com a escrita pareceu o caminho adequado para resolução de problemas teóricos e metodológicos Infelizmente como mencionamos as finalidades escritas pelas autoras não se concretizaram e atualmente tornase necessário submeter práticas e teorias à crítica para podermos buscar alternativas viáveis para o ensino e a pesquisa no campo da alfabetização Desse modo as nossas 17 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 críticas incidirão exatamente no fato de a teoria hegemônica de alfabetização pressupor o desenvolvimento da escrita na criança como um processo único e linear Essa forma de conceber o desenvolvimento contradiz inclusive o princípio escolanovista que perpassa a teoria de que a criança é ativa capaz de construir conhecimentos Sabemos que segundo a abordagem construtivista a evolução da escrita se faz por etapas ou mais especificamente em três níveis no primeiro as crianças descobrem as diferenças entre as formas icônicas e não icônicas de representação Essa é uma construção fundamental e pode ser observada quando as crianças produzem traços lineares e arbitrários A utilização de traços lineares por sua vez leva à descoberta essencial de que a escrita é um objeto substituto ou seja um objeto cuja função é representar outros objetos Feitas essas descobertas iniciais as crianças constroem hipóteses sobre as características que a escrita deve possuir para ser legível para servir para ser lida Essas hipóteses são construídas considerando princípios qualitativos e quantitativos No segundo nível de evolução da escrita a criança procura escrever considerando as hipóteses elaboradas A hipótese silábica marca a entrada no terceiro nível de evolução da escrita pois há tentativas de pensar as partes constitutivas de uma palavra e relacionálas com partes da escrita as letras Nesse caso cada letra corresponde a uma sílaba Em seguida elas passam a corresponder as letras conhecidas a fonemas e sílabas e finalmente somente aos fonemas Portanto como podemos perceber o processo de desenvolvimento da escrita é pensado de forma linear baseado em um constante aperfeiçoamento sem consideração ao contexto sociocultural e às práticas de ensino e de aprendizagem Independentemente do contexto e das práticas há um percurso de desenvolvimento da escrita nas crianças que é conhecido previamente Como consequência se as crianças traçam os mesmos percursos cabe aos professores conformar práticas de avaliação que permitam verificar os níveis alcançados pela escrita infantil Assim os testes de prontidão de memorização de leitura no fim do primeiro ano escolar foram substituídos por testes que visam a constatar a fase em que a criança se encontrava alfabética silábicoalfabética silábica e présilábica Essas fases são definidas a priori e não consideram os modos como as crianças se apropriam da escrita Elas não levam em conta ainda conforme assinala Vygotski 2001 que a escrita é linguagem e não apenas um sistema de símbolos que serve para representar as unidades da fala Como dito essa visão Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 18 contraria a ideia de alfabetização como prática sociocultural Na realidade sob o pretenso caráter inovador apresenta as bases para que as crianças continuem a ser rotuladas avaliadas segundo parâmetros que desconsideram as diferentes formas de ensinar e aprender nas escolas Os processos de apropriação da linguagem escrita Desde 1996 temos realizado estudos sistemáticos sobre os modos de apropriação da linguagem escrita pelas crianças nas séries iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil e sobre as práticas de leitura e de escrita que são desenvolvidas em classes de alfabetização GONTIJO 2002 2003 CAROSELLI 2006 COCO 2006 PIFFER 2006 Esses estudos foram realizados a partir de diferentes tipos de pesquisa mas todos foram orientados pela perspectiva bakhtiniana de linguagem e pelos estudos da perspectiva históricocultural na Psicologia Considerando as situações de produção de escrita que serão analisadas é importante destacar que o método instrumental ou histórico genético elaborado para estudar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores foi fundamental na construção do percurso investigativo que durou dois anos e envolveu crianças de 5 e 6 anos de idade Esse método é assim denominado porque possibilita a análise do desenvolvimento infantil do ponto de vista histórico ou seja desde que ele surge as suas transformações mudanças etc Sendo assim permite estudar o processo de desenvolvimento natural e da educação como um processo único e considera que seu objetivo é descobrir como se reestruturam todas as funções naturais de uma determinada criança em um determinado nível de educação VYGOTSKI 1997 p 694 O método instrumental procura oferecer uma interpretação de como a criança realiza em seu processo educacional o que a humanidade realizou no transcurso da longa história do trabalho ou seja põe em ação as forças naturais que formam sua corporeidade para assimilar desse modo de forma útil para sua própria vida os materiais que a natureza lhe brinda VYGOTSKI 1997 p 69 4 O texto de Vygotski 1997 intitulado El método instrumental en psicología foi escrito de acordo com o que consta no Tomo III das Obras escogidas em 1930 e publicado em 1960 19 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 Segundo Vygotski 1997 o método históricogenético pode utilizar procedimentos técnicos de investigação como a observação e a experimentação Durante os nossos trabalhos utilizamos essas duas técnicas de investigação Desse modo realizamos observações em salas de aula para verificar como era desenvolvido o trabalho com a linguagem escrita e em quatro momentos do ano escolar solicitamos às crianças que participaram do estudo que produzissem textos sobre temas que estavam sendo trabalhados pelas professoras na sala de aula ou que fossem de interesse das crianças No primeiro momento do trabalho as crianças eram incentivadas a produzir os textos oralmente e a pesquisadora os anotava Após a produção elas registravam os textos que haviam sido escritos pela pesquisadora Nesse momento era pedido que escrevessem com atenção pois deveriam usar a escrita para lembrar os conteúdos dos textos As crianças tinham idades entre 5 e 6 anos No primeiro ano da pesquisa estavam matriculadas em classes denominadas Jardim II classes de 5 anos de idade e no segundo ano em classes denominadas PréEscola classes de 6 anos de idade Entendemos a escrita como uma forma de linguagem fundamental na vida dos indivíduos e da sociedade Ao se apropriar da escrita os indivíduos se afirmam como sujeitos transformam e potencializam as suas capacidades naturais além de passar a refletir sobre a linguagem que utilizam no cotidiano e ampliar as possibilidades de se relacionar com as outras pessoas Em primeiro lugar analisaremos como uma criança ao escrever um texto sobre o seu animal de estimação demonstra compreender que a escrita é linguagem Essa criança de 5 anos de idade integrava uma turma de Jardim II As crianças da classe decidiram juntamente com a professora e a pesquisadora escrever sobre os animais de estimação após uma delas na roda de conversa contar sobre a perda do seu animal o que motivou muitas conversas em diferentes lugares sala refeitório pátio entre as crianças É importante apontar com relação ao trabalho de leitura que na sala de aula a professoraregente proporcionava a leitura de textos a qual culminava na realização de jograis teatros brincadeiras Em algumas situações um mesmo texto era lido várias vezes a pedido das crianças e também elas próprias liam para os colegas incentivadas pela professora Entretanto em uma de nossas conversas a regente disse não acreditar na possibilidade de as crianças escreverem textos pois essa era uma tarefa muito difícil Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 20 Texto de M agosto de 2002 Após receber a informação de que deveria escrever o texto M 5 iniciou a escrita do título Foi possível registrar o conteúdo do texto porque a criança o falava em voz alta durante o registro Ela começou a escrever no fim da folha ou seja de baixo para cima mas da esquerda para a direita Dessa forma não dominava todas as normas de organização da página escrita Observe o que ocorreu no momento do registro 6 C Preciosa Preciosa eu errei de novo Preciosa já brigou com a ga ta brigou com a ga ta brigou cu a ga ta brigou com a brigou da Tiana esse texto se refere a letras colocadas no primeiro segmento no fim da página Eu eu fui e errei de novo apaga e enquanto o faz fala o texto Brigou brigou eu eu eu fui eu fui no quin tal e escreve até a sexta letra do primeiro segmento para de escrever e fala o restante da sentença eles pararam de brigar gar brigar eu fui no quintal lê e passa o dedo sobre o segmento de letras que foi escrito brigar escreve novamente eu fui no quintal e 5 Conforme o protocolo firmado com a escola e as famílias usamos apenas as letras iniciais dos nomes das crianças 6 Nas transcrições das conversas com as crianças usamos a letra C para identificar as falas das crianças e a letra P para identificar as falas da pesquisadora 21 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 eles pararam de brigar passa o dedo sobre o segundo segmento A Pre ci o sa vai para dentro de ca vai vai vai pa ra de ca registra a letra A vai para dentro de casa a da dona Tiana vai pa ra ca sa dela ele para de brigar P O que você escreveu C Preciosa briga briga dentro do meu quintal aí eu vou no quintal e eles param de brigar e a minha gata vai pra dentro e a gata da dona Tiana vai pra casa aí e a minha vai pra casa aponta debaixo para cima e da esquerda para a direita O menino M usou sete letras para escrever o texto repetiu letras numa mesma sequência e o traçado delas é bastante irregular Ele não esperou que ditássemos o texto produzido oralmente Como sabia seu conteúdo se incumbiu de dizêlo enquanto escrevia Como pode ser visto na transcrição acima a criança escrevia o texto e ao mesmo tempo o pronunciava vagarosamente Às vezes repetiu palavras e sílabas Quando perguntamos o que havia escrito rememorou o texto apontando os escritos globalmente ou seja sem indicar as letras Assim mesmo que não domine as formas da maioria das letras e não tenha criado mecanismos para lembrar o texto demonstrou saber que a escrita é linguagem pois relatou experiências com a sua gata Preciosa No momento em que rememorou o texto verificamos que não repetiu palavras e sílabas como notado quando escrevia o texto Pensamos que essas repetições visavam a garantir uma simultaneidade entre o tempo de produção oral do texto e o tempo necessário para escrever Nessa circunstância a entonação e as repetições são próprias de quem dita o que deve ser escrito e nesse caso é ele quem dita e portanto determina o conteúdo a ser escrito Ele não para de pronunciar o texto em nenhum momento mesmo quando apaga uma letra considerada errada A análise do trabalho dessa criança conduz à seguinte ideia ao iniciar o processo de aprendizagem a escrita é simbólica pois representa graficamente o texto produzido oralmente e portanto a linguagem Nesse sentido a criança compreendeu que pode traduzir em signos arbitrários o seu texto antes mesmo de perceber que as letras representam convencionalmente suas unidades palavras sílabas ou fonemas e de entender que a escrita serve para fins psicológicos recurso para lembrar o texto anotado Nesse sentido parafraseando Smolka 1989 a alfabetização desde o seu início é um processo de constituição de sentidos Muitas vezes o que impede que essa compreensão se Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 22 desenvolva são as circunstâncias e o modo como o ensino e a aprendizagem da escrita são conduzidos na sala de aula Se centrarmos então a análise no processo de construção de sentidos é possível perceber conforme assinala Smolka 1989 p 84 indicadores de uma intensa atividade mental cognitiva discursiva que revelam uma dialogia Quando foi incentivada a escrever a criança passou a atuar ao mesmo tempo como escriba narrador e integrante da experiência relatada no texto Assim ela sabia que por meio da escrita podem ser narradas suas experiências mas sem ter ainda consciência de que a escrita é um simbolismo de segunda ordem ou seja representa também unidades da linguagem ou do texto que escrevia É interessante trazer ainda o trabalho de escrita de outra criança de 6 anos de idade pertencente à classe PréEscola Nessa classe a professora procurava sistematicamente incentivar a escrita de palavras e de frases curtas Por meio dessas atividades ela acreditava poder possibilitar a emergência da escrita alfabética e avaliar constantemente o desenvolvimento da escrita nas crianças seguindo os níveis propostos por Ferreiro e Teberosky 1989 É importante explicar que no segundo ano de pesquisa a instituiçãocampo passou a funcionar em um novo prédio As crianças estavam eufóricas com a nova estrutura e por isso pedimos que escrevessem sobre a nova escola Vejamos o texto de W A nova escola Eu gosto do pátio Da sala Dos carrinhos E da atividade dos joguinhos Eu não gosto de brigar com os coleguinhas Eu gosto de brincar com os coleguinhas De escorregar de balançar De ir para a sala de vídeo e assistir vídeo Texto de W abril de 2003 23 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 Como pode ser visto a escrita de W não é legível A criança enumerou no seu texto as coisas de que gosta na escola Também disse que não gosta de brigar mas de brincar porque era considerada uma criança que brigava bastante com os colegas Aproveitou para dizer que não era assim Ao escrever o texto utilizou um procedimento para relacionar letras e sílabas que chamou a nossa atenção Ao escrever o texto produzido oralmente apesar de conhecer letras que representavam fonemas e escrever palavras ele estava preocupado em relacionar as sílabas pronunciadas com duas letras Por isso deixava de prestar atenção no texto para escrever sempre duas letras para cada sílaba pronunciada Como o procedimento adotado por essa e por outras crianças nos pareceu aprendido observamos algumas situações em sala de aula e verificamos que a professora orientava as crianças a agir dessa maneira no momento em que escreviam palavras com sílabas constituídas por consoantevogal para perceberem a necessidade de grafar duas letras ao invés de uma para as sílabas constituídas dessa forma A intervenção da professora objetivava portanto levar as crianças que registravam apenas uma letra para as sílabas a perceberem a necessidade de colocar mais uma letra Em situações controladas de ensino as orientações da professora poderiam ser satisfatórias Contudo quando as crianças escreviam textos sem controle de palavras que deviam ser anotadas esse procedimento gerava dois problemas fazia com que perdessem de vista as relações entre sons e letras aprendidas e também os significados do texto Essa situação de produção de escrita evidencia as influências do ensino nas aprendizagens infantis A professora incentiva o registro de duas letras para as sílabas com a finalidade de levar a criança a compreender que o registro de uma letra hipótese silábica não é suficiente para representar as sílabas Podemos considerar que esses são equívocos decorrentes das teorizações dos construtivistas Mesmo se for assim eles evidenciam que as práticas inferidas a partir dessa perspectiva continuam a privilegiar tarefas que têm por finalidade o aprendizado das relaçõesassociações entre sons e letras e viceversa havendo portanto apenas um elemento que as diferencia das abordagens mecanicistas ou comportamentalistas o fato de as crianças construírem hipóteses sobre essas relações Obviamente esse elemento diferenciador é importante entretanto não é suficiente para pensar em práticas de alfabetização que articulem consistentemente o trabalho de produção de textos de leitura e de conhecimentos sobre o Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 24 A criança começou a sua história com a expressão Era uma vez É assim que são iniciadas muitas das narrativas que ela estava habituada a ouvir na sala de aula Verificamos que seguiu a sequência dos quadrinhos observados na história mas não conseguiu identificar o processo de transformação ocasionado pela mágica A forma como a criança registrou as frases do texto demonstra o tipo de análise que ela efetuava da linguagem oral e o tipo de relação elaborada entre o escrito e o oral sistema de escrita incluindo nesses conhecimentos a compreensão das relações entre sonsletras e letrassons Tomaremos como exemplo ainda o texto de JA Ela produziu um texto sobre a história intitulada O telefone Esse texto teve origem nas histórias de Eva Furnari no livro O amigo da bruxinha Naquele momento o uso de histórias contadas com imagens se tornou pertinente pois desse modo as crianças teriam sobre o que escrever Porém chamou a atenção o fato de algumas crianças não perceberem que sempre havia uma mágica que produzia a transformação de um personagem envolvido na história Vejamos o texto da criança JA O telefone Era uma vez uma bruxinha dormindo O gatinho ficou fazendo cosquinhas nela Depois ele fez uma mágica A bruxinha tinha feito hambúrguer para eles comerem e refri para eles beberem Quando a bruxinha dormiu o gato ficou bebendo o refri e comendo do hambúrguer Texto de JA setembro de 2002 25 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 P Era uma vez a bruxinha dormindo C É a letra E escreve a letra E e rum ma e rum letra U escreve a letra U e rum ma a letra A escreve a letra A P Era uma vez a bruxinha dormindo C Era uma vez a bruxinha du du ai era uma vez a bruxinha dormindo dormindo é a letra U vou fazer assim circula as letras eu não gosto que fica assim porque eu acho que fica muito pertinho Aí eu tenho que fazer assim dormino dormino parece a letra hino a letra E P Escreve as letras Escreve do jeito que você sabe C Ficou muito perto circula novamente as letras ficou pertinho mesmo dormino a letra O escreve a letra O P Escreveu a palavra dormindo C Já tem duas letrinhas dorminno conta nos dedos a quantidade de letras é três só falta uma P Qual letra está faltando C A letra E escreve a letra E A criança pronunciou as unidades silábicas que compunham as palavras da sentença Dessa forma tinha consciência dessas unidades e representou os fonemas que as compunham É importante notar ainda que apesar de a criança pronunciar todas as palavras da primeira sentença na escrita focalizou apenas a expressão era uma e a palavra dormindo O modo como pronunciou a palavra dormindo foi evidenciado na transcrição para destacar a sua capacidade de detectar uma outra palavra que rimava com essa Ela diz que dormino parece com a letra hino Outro dado importante a ser destacado diz respeito ao fato de a criança pronunciar as palavras em ritmo silábico e contar nos dedos quantas letras eram necessárias para escrever a palavra A cada sílaba pronunciada ela considerava que deveria corresponder uma letra Dessa forma o número de letras usado para representar as sílabas era sempre um Contudo não era qualquer letra A criança JA procurava encontrar uma letra que representasse convencionalmente um dos fonemas da sílaba Não havia portanto tentativa de escrever letras aleatoriamente para cada sílaba Esse procedimento adotado por ela e por outras crianças é uma resposta ao frequente incentivo da professora Pense quantas você precisa para escrever a palavra Além de pensar sobre quantas é preciso pensar sobre quais letras pois a resposta a quantas letras é na Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 26 maioria das vezes insatisfatória Na realidade era isso que JA começava a fazer a pensar sobre quais letras e para responder a essa pergunta precisava compreender como se efetuam as relações entre sons e letras Disse no fim do registro que a escrita auxiliaria a lembrança do texto Entretanto o rememorou sem o apoio da escrita Ferreiro 1990 compreende que o terceiro nível de evolução da escrita é marcado pelas tentativas sistemáticas de relacionar uma letra com uma sílaba Essa hipótese denominada silábica tem segundo a autora importância fundamental para o desenvolvimento da escrita Ela refuta a ideia de que a capacidade de isolar sílabas decorre do desenvolvimento da linguagem oral Por outro lado descarta a hipótese considerada contrária de que a capacidade de isolar unidades silábicas seria decorrente da aprendizagem da escrita Nesse sentido segundo a autora na busca de uma resposta satisfatória para a coordenação entre as partes e as totalidades a criança passa a considerar as partes da totalidade pronunciada sílabas e as partes da totalidade escrita letras e a elaborar um novo tipo de relação a correspondência termo a termo que se efetua entre sílaba e letra Acreditamos que é importante refletir um pouco mais sobre como as crianças elaboraram as relações entre o oral e o escrito Com base no dado analisado essas relações não são entre letras e sílabas Por exemplo quando a criança escreve apenas uma letra convencional para um fonema porque desconhece outras letras correspondentes aos demais fonemas de uma sílaba ela não está elaborando a relação letrasílaba ela está registrando letras conhecidas para representar fonemas pertencentes às sílabas que pronuncia Entretanto para conhecer as relações que são efetuadas pelas crianças é necessário analisar e observar detidamente o momento em que estão produzindo textos ou escrevendo sentenças que compõem textos por elas elaborados pois o incentivo à interpretação de palavras em seguida ao seu registro e com a recomendação de que devem apontar o escrito pode conduzir a respostas que privilegiam a relação letrasílaba Em seguida será analisado ainda o trabalho de produção de texto desenvolvido por W 27 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 Animal de estimação A criança escreveu que possuía quatro animais de estimação Explicou por que brincava com o cachorro dentro de casa Quando solicitamos que escrevesse animal de estimação ficou sem saber como começar Então insistimos que escrevesse o título Animal de estimação e ele desenhou um dos seus animais o cachorro Ao concluir o desenho perguntamos se desenhou ou escreveu W respondeu que havia desenhado Disse a ele que gostaria que escrevesse Isso foi suficiente para que começasse a escrever com letras É interessante observar quais segmentos correspondem às sentenças Animal de estimação ALIMAO Eu tenho um coelho EULULU um macaco MA e um cachorro CALO Eu brinco dentro de casa ELM porque tenho medo do carro atropelar meu cachorro TLU Eu tenho um pato BA Ele fica na água ELI Nasceu um pato PATO Eu tenho um coelho um macaco e um cachorro Eu brinco dentro de casa porque tenho medo do carro atropelar meu cachorro Eu tenho um pato Ele fica na água Nasceu um pato Texto de W setembro de 2002 Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 28 Ele registrou as palavras alimao e pato e as sílabas ca e ma das palavras que deveriam ser escritas Contudo iniciou a atividade desenhando o cachorro o seu animal de estimação É interessante observar que começou a registrar palavras e sílabas que dominava e também as identificou nas frases e palavras Dessa forma há pelo menos três aspectos importantes a serem examinados na escrita da criança o uso de desenho a capacidade de isolar unidades da sentença e o registro de grafias convencionais para essas unidades Quanto ao uso do desenho é possível supor de acordo com a resposta da criança à pergunta se havia desenhado ou escrito que sabia distinguir desenho e escrita Se for assim o que a levou a desenhar e não a escrever Primeiramente a necessidade de criar formas gráficas que possibilitassem o uso da escrita para lembrar o texto ou seja que permitissem usar a escrita como recurso mnemônico Certamente a criança sabia que a sua escrita composta com letras não poderia ser lida e por isso optou pelo desenho com função de escrita Desse modo podemos observar que ela compreendia essa função da escrita e procurava criar um tipo de escrita que permite a recordação do texto Ainda pode ser observado que o menino W escreveu a palavra animal de forma muito próxima da escrita convencional ou de uma escrita foneticamente plausível tendo em vista que na pronúncia dessa palavra a criança produzia o som l ao invés do som n Porém não escreveu a palavra estimação Talvez W não tenha escrito essa palavra porque considerou que o desenho completaria a escrita da palavra animal Se for obervada a proximidade da palavra escrita com o desenho essa hipótese é fortalecida e explica o não registro da palavra estimação Por outro lado é visível a capacidade de isolar unidades das sentenças e registrar grafias convencionais para essas unidades Percebe se que a criança registrou unidades das palavras que compunham as sentenças que sabia escrever convencionalmente e deixou de registrar outras que não conhecia O registro de unidades convencionais ocorreu em várias situações na primeira sentença a palavra eu foi grafada corretamente EU a última sílaba da palavra coelho foi escrita com o segmento LU as primeiras sílabas das palavras macaco e cachorro foram escritas respectivamente com as letras MA e CA a palavra ele foi escrita com ELI e finalmente da sentença nasceu um pato foi registrada a palavra PATO Assim o modo como elaborou a sua escrita mostra que efetuou uma análise das unidades fonológicas que compõem as palavras que deveriam ser escritas e em algumas situações registrou 29 Conjectura Cláudia Maria Mendes Contijo v 14 n 2 maioago 2009 correspondentes gráficos convencionais para essas unidades palavras sílabas e fonemas Logo escreveu o que sabia ou seja efetuou a análise dos enunciados orais e escreveu letras que conhecia para essas unidades No fim perguntamos se a escrita poderia ajudálo a lembrar o texto Ele disse que poderia observou a escrita e disse Cachorro eu tenho medo do carro atropelar e tem um pato O cachorro havia sido desenhado e a palavra pato foi escrita corretamente por isso ao efetuar a leitura ele indicou com o dedo o desenho e a palavra pato A criança buscou representar com letras sílabas e palavras conhecidas as unidades das sentenças e ao mesmo tempo esses registros e o desenho conferiram à escrita um caráter instrumental pois remeteu a criança a significados que motivaram o registro do texto Desse modo compreende que a escrita é usada para fins mnemônicos mesmo antes de ter o domínio do caráter alfabético da escrita Considerações finais As análises desenvolvidas sugerem que o processo de desenvolvimento da escrita é complexo dinâmico e influenciado pela prática educativa de alfabetização Esse dado é fundamental pois evidencia a necessidade de evitar o pressuposto de condutas padronizadas e com etapas de desenvolvimento previsíveis O último exemplo analisado demonstra que as crianças são capazes de compreender uma das importantes funções da escrita de registro ou mnemônica mesmo antes de saber escrever convencionalmente Nesse sentido não é preciso esperar que elas dominem o código escrito para lhes ensinar as diversas funções que tornam a escrita relevante para a vida Para finalizar é importante destacar que consideramos a necessidade de investimento na alfabetização compreendida como uma prática sociocultural em que se desenvolve a formação da consciência crítica das capacidades de produção de textos orais e escritos de leitura e de conhecimento sobre o sistema de escrita do português incluindo a compreensão das relações entre sonsletras e letrassons Conjectura Caxias do Sul v 14 n 2 p 1330 maioago 2009 30 Referências CAROSELLI B O trabalho com a escrita em uma classe de alfabetização 2006 147 f Dissertação Mestrado em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória 2006 COCO D Práticas de leitura na alfabetização 2006 362 f Dissertação Mestrado em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória 2006 FERREIRO E TEBEROSKY A Psicogênese da língua escrita Porto Alegre Artes Médicas 1989 A escrita antes das letras In SINCLAIR H Org A produção de notações na criança linguagem número ritmo e melodias São Paulo Cortez 1990 p 1970 FURNARI E O amigo da bruxinha 5 ed São Paulo Moderna 1993 GONTIJO C M M O processo de alfabetização novas contribuições São Paulo M Fontes 2002 Alfabetização a criança e a linguagem escrita São Paulo Autores Associados 2003 PIFFER M G 2006 O trabalho com a linguagem escrita na Educação Infantil 2006 375 f Dissertação Mestrado em Educação Universidade Federal do Espírito Santo Vitória 2006 SMOLKA A B A criança na fase inicial da escrita a alfabetização como processo discursivo São Paulo Cortez 1989 SOARES M B Letramento e alfabetização as muitas facetas Revista Brasileira de Educação 2004 VYGOTSKI L S Comportamento do macaco antropóide In VYGOTSKI L S LURIA A R Estudos sobre a história do comportamento símios homem primitivo e criança Porto Alegre Artes Médicas 1996 p 5592 Obras escogidas 2 ed Madrid Visor 1997 t 1 Obras escogidas 2 ed Madrid Visor 2001 t 2