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Direito Processual Penal

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Tribunal do júri pronúncia e falácia do in dubio pro societate Carlos Alberto Garcete de Almeida 1 Introito Há décadas o princípio in dubio pro societate tem sido invocado pela doutrina e jurisprudência de tal arte a fundamentar a decisão de pronúncia no sentido de que na dúvida o juiz deve determinar que o acusado seja levado a julgamento pelo tribunal do júri em casos de crimes dolosos contra a vida Sucede que à luz de um processo penal constitucional não há mais espaço jurídico contemporâneo para sustentálo como um princípio haja vista que não guarda a menor compatibilidade com as garantias constitucionais inscritas no art 5º da Constituição da República Devese ter em mente que o estudo epistemológico de sistemas jurídicos reclama exame crítico da coerência lógica conforme preconizado por Lourival Vilanova1 Afinal de contas o jurista não pode laborar com incoerências sistêmicas Nesse sentido há décadas a invocação insciente do in dubio pro societate tornouse praxe automatizada inclusive da própria jurisprudência pátria As decisões judiciais em todas as instâncias destacam tal expressão ao aludirem à decisão interlocutória mista de pronúncia como que se tratasse de uma operação lógica isto é em caso de dúvida sobre autoria ou sobre eventuais excludentes de ilicitude pronunciase Dizse que na dúvida decidese em favor da sociedade Mas será mesmo que existe aquiescência da sociedade contemporânea no âmbito de um Estado Democrático de Direito para que na dúvida alguém seja submetido a julgamento popular 2 O rito especial do tribunal do júri e o in dubio pro societate O art 394 e seus parágrafos do Código de Processo Penal preceitua que o procedimento será comum ou especial O primeiro será ordinário sumário ou sumaríssimo O segundo especial conterá rito particular cuja forma pode estar no Código de Processo Penal ou em lei especial Os processos relativos ao tribunal do júri seguem procedimento especial conforme art 406 e seguintes do Código de Processo Penal O rito do tribunal do júri segue forma pela qual vencida a fase de instrução criminal o juiz pode proferir quatro espécies de decisão a saber a pronúncia b impronúncia c desclassificação e d absolvição sumária Referidas decisões em linhas gerais buscam respectivamente i determinar que o acusado seja levado a julgamento pelo tribunal do júri art 413 ii declarar a impossibilidade de ser julgado pelo tribunal do júri por falta de provas da materialidade ou ausência de indícios suficientes de autoria ou participação art 414 iii absolvê lo sumariamente art 415 ou iv determinar a remessa dos autos ao juízo competente art 419 Vêse que o juiz pronunciará o acusado se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação art 413 Cuidase de decisão de natureza interlocutória mista pela qual o juiz se pronuncia pela viabilidade da acusação em fase posterior em perspectiva por se convencer da existência do crime e de indícios suficientes da autoria ou participação imputada ao acusado De acordo com Aramis Nassif2 a pronúncia é decisão de admissibilidade da pretensão acusatória tal como feito quando do recebimento da denúncia mas e não é demasiado dizer tratase de verdadeiro rerecebimento da denúncia agora qualificada pela instrução judicializada É nessa espécie de decisão interlocutória que a doutrina e jurisprudência de maneira indiscriminada invocam amiúde o denominado princípio in dubio pro societate Nesse compasso sobreleva ponderar que a Constituição de 1988 no capítulo reservado aos direitos e garantias fundamentais contempla tão somente o princípio in dubio pro reo extraído das garantias de que aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes art 5º inciso LV e de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória O art 5º inciso XXXVIII da Constituição da República por sua vez apenas reconhece a instituição do júri com a organização que lhe der a lei assegurados a a plenitude de defesa b o sigilo das votações c a soberania dos veredictos d a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida Concluise portanto que inexiste no texto constitucional qualquer referência ao famigerado princípio in dubio pro societate De acordo com Aury Lopes Jr3 Importante destacar que a presunção de inocência e o in dubio pro reo não podem ser afastados no rito do Tribunal do Júri Ou seja além de não existir a mínima base constitucional para o in dubio pro sociatate quando da decisão de pronúncia é ele incompatível com a estrutura das cargas probatórias definida pela presunção de inocência Por corolário já passou do momento histórico de refletirmos mais acerca da subsistência desse pseudoprincípio o qual a nosso sentir não passa de uma quimera 3 A falácia do pseudoprincípio in dubio pro societate como fundamento para justificar a pronúncia do acusado Teoria Geral da prova no processo penal Ao discorrer sobre in dubio pro societate devese ter em reflexão a Teoria Geral da Prova O processo penal é instrumento de reconstrução do fato histórico É por meio de técnicas de recognição que o juiz firma seu convencimento seu sentimento acerca do caso posto à apreciação para bem decidir acerca do rumo do processo assim considerado como situação jurídica Goldschmidt Essa atividade é bem explicitada por Enrico Ferri4 ao descrever à ação do juiz para garantia dos direitos individuais e sociais em cada julgamento penal que é colheita discussão e decisão de provas é necessário estabelecer 1º se o fato foi realmente cometido prova genérica 2º se o fato cometido constitui crime prova jurídica 3º se o crime foi cometido pelo acusado prova específica 4º em que condições pessoais e de ambiente foi cometido o crime prova psicológica e portanto com as leis penais vigentes se por ele é ou não moralmente responsável 5º qual o grau de sanção repressiva posta pela lei que deve ser estabelecido contra o réu conclusão judicial Nesse passo a atual gestão de provas põese como a espinha dorsal do processo penal a partir de dois princípios fundantes 1 princípio dispositivo adotado no sistema acusatório pelo qual a gestão da prova está a cargo das partes juizespectador 2 princípio inquisitivo adotado no sistema inquisitório pelo qual a gestão da prova está a cargo do julgador juizator inquisidor Nesse tanto o Código de Processo Penal vigente adota o princípio dispositivo ao prescrever que o ônus da prova compete a quem alegar art 156 Dessarte é na fase de instrução criminal que as partes hão de produzir todas as provas necessárias a comprovar suas alegações notadamente o órgão acusador porque propõe a imputação No procedimento do tribunal do júri finda a instrução a pronúncia deve ocorrer apenas quando há possibilidades concretas de virtual condenação pelo tribunal do júri e não mera presunção que somente protrai o julgamento para o plenário quando desde logo o Estadojuiz poderia ter declarado a inviabilidade da pretensão acusatória O juiz criminal contemporâneo deve ser o fiel escudeiro das garantias fundamentais No dizer de Marcelo Semer5 o magistrado é o epicentro dessas garantias Essa teorização em nada vai de encontro à competência constitucional do tribunal do júri que somente reconhece sua instituição e não que inexista filtro processual até chegar ao seu julgamento O plano teorético desta digressão está na teoria geral da prova no processo penal ou seja na gestão de provas à luz do princípio dispositivo Em outras palavras os indícios suficientes de autoria devem ser entendidos como elementos robustos e capazes de autorizar a sustentação de acusação no plenário do tribunal do júri a evitar como ocorre em muitos casos que o órgão acusador se posicione pela pronúncia do acusado primeiro estágio para no plenário dirigirse ao conselho de sentença e asseverar segundo estágio que não há provas concretas para sustentar a acusação Para isso oportuno destacar a moderna Teoria Constitucionalista do Processo que em linhas gerais preconiza a estreita vinculação entre processo e Constituição a focarse no estudo sistemático de conceitos e instituições processuais ínsitas na Constituição da República e a bem observar notadamente a hierarquia das fontes A propósito deste descabido princípio in dubio pro societate Aury Lopes Jr6 faz uma análise precisa de seu dessentido atual Noutra dimensão bastante problemático é o famigerado in dubio pro societate Segundo a doutrina tradicional neste momento decisório deve o juiz guiarse pelo interesse da sociedade em ver o réu submetido ao Tribunal do Júri de modo que havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal deve ele ser pronunciado Questionamos inicialmente qual é a base constitucional do in dubio pro societate Nenhuma Não existe Por maior que seja o esforço discursivo em torno da soberania do júri tal princípio não consegue dar conta dessa missão Não há como aceitar tal expansão da soberania a ponto de negar a presunção constitucional de inocência A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri Nada tem a ver com a carga probatória Tal entendimento também é preconizado com rigor por Paulo Rangel7 Na pronúncia segundo doutrina tradicional a qual não mais seguimos impera o princípio in dubio pro societate ou seja na dúvida diante do material probatório que lhe é apresentado deve o juiz decidir sempre a favor da sociedade pronunciando o réu o mandando a júri Entendemos que se há dúvida é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia sob o aspecto da autoria e materialidade não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado Perfilado ao descabimento atual do in dubio pro societate Guilherme de Souza Nucci8 É preciso cessar de uma vez por todas ao menos em nome do Estado Democrático de Direito a atuação jurisdicional frágil e insensível que prefere pronunciar o acusado sem provas firmes e livres de risco Alguns magistrados valendose do criativo brocardo in dubio pro societate na dúvida decidese em favor da sociedade remetem à apreciação do Tribunal do Júri as mais infundadas causas Doutro tanto porque o in dubio pro societate é tratado como princípio é mister que relembremos a verdadeira conceituação de princípio em Humberto Ávila9 Os princípios são normas imediatamente finalísticas primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção Depreendese pois que o inexplicável in dubio pro societate nada tem a ver com princípio porquanto não se trata de nenhuma norma imediatamente finalística Percebese que pronunciar o acusado na dúvida porque isso seria um princípio em favor da sociedade é algo incompreensível no atual estádio de evolução do Direito Processual Penal à luz da visão constitucional 4 O julgamento de Veneza Importa notar que a questão da dúvida como fundamento standard para que o acusado seja levado a um julgamento pelo tribunal popular é algo que urge ser repensado O processo penal já se disse alhures é por si só uma pena ao acusado haja vista que suas sequelas são irreversíveis mesmo em caso de absolvição A fortiori submeter alguém a julgamento público é algo ainda mais grave por flagrante violação ao devido processo penal sob pena de transformarse tal julgamento em um espetáculo pelo qual se expõe alguém absurdamente ao constrangimento popular Em outras palavras é transformar o acusado na figura de Maria Nicolaevna Tarnovskij tão bem retratada pelo célebre jurista italiano Carnelutti10 Quase cinquenta anos faz discutindose em Veneza um processo por homicídio sobre o qual convergia a mórbida curiosidade de todos na sessão do Tribunal do Júri incrivelmente lotado quando se levantou para ser interrogada emergindo das grades em sua estupenda figura Maria Nicolaevna Tarnovskij qualquer centena de senhores que apinhavam os locais reservados num salto puseramse em pé e assentaram sobre ela monóculos e binóculos Angelo Fuzinato presidente insigne exclamou com contida indignação Amanhã este espetáculo incível não se repetirá mais Era o mesmo presidente o qual não tolerava que um advogado se comportasse no falar no gesticular no vestir de modo não conforme a dignidade de seu ofício e de outra parte quando percebesse decidindo uma causa civil ter cometido um erro não tinha paz até que não lhe fosse dado corrigirse publicamente Eis um magistrado que tinha entendido que valor tem o processo penal para a civilidade de um povo Os advogados de Veneza para exaltarem o seu exemplo de firmeza de dignidade de abnegação ornaram com seu busto no grande átrio superior da Corte de Apelação e eu nesta ocasião quero lembrar a sua figura para colocar sob sua proteção aquilo que estou dizendo em torno desta mais alta experiência de civilização que deveria ser o processo penal Infelizmente hodiernamente ainda se testemunham inúmeros espetáculos incíveis traduzidos em desnecessárias sessões de tribunal do júri que só se destinam a expor indevidamente o acusado ao constrangimento popular sem provas razoáveis como na história de Maria Nicolaevna Tamovskij Ipso facto é mister que se espelhe na lembrança do julgamento de Veneza na autoridade de Angelo Fuzinato e que se proclame Amanhã este espetáculo incível não se repetirá mais É essa a perspicácia esperada da decisão de pronúncia o sistema de provas do processo penal contemporâneo não se afeiçoa mais com um standard probatório tão reducionista de tal arte a admitir que singelos indícios mínimos de provas habilitem trespassar à próxima fase judicium causae pois as provas trazidas aos autos pelo órgão acusador até este momento devem apontar ao menos alta carga indiciária de autoria e também assim de eventuais qualificadoras contidas na denúncia Por corolário que o pseudoprincípio in dubio pro societate seja inumado de uma vez por todas pela doutrina e jurisprudência brasileira Notas 1 Vilanova Lourival As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo 4 ed São Paulo Noeses 2010 2 Nassif Aramis O novo júri brasileiro Porto Alegre Livraria do Advogado 2008 p 56 3 Lopes Jr Aury Direito processual penal e sua conformidade constitucional 8 ed Rio de Janeiro Lumen 2011 p 528 4 Ferri Enrico Princípios de direito criminal 3 ed Russel Campinas 2011 p 313 5 Semer Marcelo Princípios penais no Estado Democrático 1 ed Estúdio Editores São Paulo 2014 p 105 6 Lopes Jr Aury Direito processual penal 9 ed São Paulo Saraiva 2012 p 1003 7 Rangel Paulo Tribunal do júri 4 ed São Paulo Atlas 2012 p 152 8 Nucci Guilherme de Souza Tribunal do júri 5 ed Rio de Janeiro Forense 2014 p 87 9 Ávila Humberto Teoria dos princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos 11 ed São Paulo Malheiros 2010 p 79 10 Carnelutti Francesco As misérias do processo penal 2 ed Campinas Bookseller 2001 p 22 Carlos Alberto Garcete de Almeida Doutor em Direito Processual Penal pela PUCSP e mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUCRJ Professor de Direito da Escola Superior da Magistratura do MS Juiz de Direito