·
Direito ·
Direito Processual Penal
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
50
Sentença in dubio pro societate: Inversão de valores no Tribunal do Júri
Direito Processual Penal
PUC
76
Analise de Inquerito
Direito Processual Penal
PUC
4
Medidas Cautelares Processuais Penais: Teoria e Princípios
Direito Processual Penal
PUC
62
Habeas Corpus nº 598886 SC: Análise sobre Reconhecimento Fotográfico na Fase de Inquérito Policial
Direito Processual Penal
PUC
4
Queixa-Crime Difamação e Injúria - Modelo Pratica Simulada Advocacia Criminal
Direito Processual Penal
PUC
3
Análise da Relação entre o Podcast do Projeto Querino e o Acórdão do HC 598886 do STJ
Direito Processual Penal
PUC
62
Elaborar um Hc e uma Resposta a Acusação
Direito Processual Penal
PUC
4
Modelo de Recurso Criminal - Incêndio em Imóvel - Embriaguez Completa
Direito Processual Penal
PUC
1
Resumo Condenacao Aecio Pereira Atos 08 Janeiro STF e Artigos 359L 359M
Direito Processual Penal
PUC
3
Inquerito Policial-Natureza Juridica Funcao e Atos de Investigacao
Direito Processual Penal
PUC
Preview text
CE5ARE BECCARIA Tradução J CRETELLA JR e AGNES CRETELLA DOS DELITOS e DAS PENAS 2a edição revista U U UJ CC1 rI1ascido em 1738 e falecido em 1793 aos 55 anos CESARE BECCARIA conhecido como o Marquês de Beccaria é o famoso autor do livro Dos Delitos e das Penas escrito aos 26 anos de idade livro que revolucionou o Direito Penal e o Direito Processual Penal Natural de Milão cursou Direito na Universidade de Pavia Tendo tido um conflito com o pai que se opusera a seu casamento com Teresa de Blasco foi preso e atirado de repente ao cárcere por influência do genitor contrário à união dos jovens Pôde então observar e sentir na própria carne as agruras de uma prisão de masmorra do século XVIII assistindo de perto ao horror das torturas infligidas A educação recebida dos jesuítas na infância foi contrabalançada na juventude pela leitura de Maquiavel de Galileu dos enciclopedistas e dos iluministas franceses Voltaire que Beccaria visitou em Genebra Diderot DAlembert Montesquieu que conheceu em Paris modificaramlhe o modo de pensar e quando regressou à Itália só não foi retaliado pelos inimigos e pela Inquisição por causa da proteção que lhe deu o Conde Firmiani a quem prestara serviços quando este governou a Lombardia Resistindo a todos os ataques sobrevivendo a todas as perseguições o pequeno grande livro de Beccaria foi consagrado pelas gerações posteriores registrando na ciência do direito penal o teorema da proporcionalidade entre o delitoU cometido e a pena aplicada como uma das grandes conquistas do moderno direito criminal EDITaRAm REVISTA DOS TRIBUNAIS ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel 0800112433 httpwwwrtcombr RT TEXTOS FUNDAMENTAIS DOS DELITOS E DAS PENAS RT TEXTOS FUNDAMENTAIS Publicados nesta Coleção A luta pelo Direito Rudolf von Ihering Tradução de J Cretella Jr e Agnes Cretella 1 ed 2 tir São Paulo RT 1999 O Príncipe Maquiavel Tradução de J Cretella Jr e Agnes Cretella 2 ed 2 tir São Paulo RT 1999 Dados Internadonals de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Beccaria Cesare Bonesana Marchesi di 17381793 Dos delitos e das penas I Cesare Beccaria I tradução J Cretella Jr e Agnes Cretella I 2 ed rev 2 tiro São Paulo Editora Revista dos Tribunais 1999 RT textos fundamentais ISBN 8520314422 I Direito penal 2 Crime e criminosos 3 Penas Direito penal 4 Pena de morte 5 Tortura I Título 963563 CDU343 Índices para catálogo sistemático 1 Direito penal 343 CESARE BECCARIA DOS DELITOS E DAS PENAS Tradução J CRETELLA JR e AGNES CRETELLA 2a edição revista 2a tiragem EDITORAm REVISTA DOS TRIBUNAIS RT TEXTOS FUNDAMENTAIS DOS DELITOS E DAS PENAS CESARE BECCARIA Tradução JosÉ CRETELLA JR e AGNES CRETELLA Da edição Dei Delitti e delle Pene de Cesare Beccaria UTET Unione Tipografico Editrice Torinese Milão Roma Nápoles nuova ristampa 1911 em XLVII capítulos p 1797 2 edição revista 2 tiragem desta edição 1999 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA Diretor Responsável CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel 0800112433 Rua Tabatinguera 140 Térreo Loja 1 Caixa Postal 678 Te 011 31152433 Fax 011 31063772 CEP 01020901 São Paulo SP Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio ou processo especialmente por sistemas gráficos microfílmicos fotográ ficos reprográficos fonográficos videográficos Vedada a memorização eou a recupe ração total ou parcial bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados Essas proibições aplicamse também às características gráficas da obra e à sua editoração A violação dos direitos autorais é punível como crime art 184 e parágrafos do Código Penal com pena de prisão e multa busca e apreensão e indenizações diversas arts 101 a 110 da Lei 9610 de 19021998 Lei dos Direitos Autorais Impresso no Brasil 08 1999 ISBN 8520314422 ln rebus quibuscurnque difficilioribus non expectandum ut quis simul et serat et metat sed preparatione opus est ut per gradus maturescant BACON SO TREU WIE MOGLIG SO FREI WIE NOTIG 0 E d m to as as matérias e em especial nas mais difíceis não se deve esperar que alguém semeie e colha ao mesmo tempo pois é preciso um período de preparação para que as coisas amadureçam gradativamente 00 T ão fi leI quanto possível tão livre quanto necessário SUMÁRIO Sobre Beccaria 9 Nota dos Tradutores à L edição 13 DOS DELITOS E DAS PENAS A quem ler 17 Introdução 23 I Origem das penas 27 II Direito de punir 28 m Conseqüências 30 IV Interpretações das leis 32 V Obscuridade das leis 35 VI Proporção entre os delitos e as penas 37 VII Erros na medida das penas 40 vm Divisão dos delitos 42 IX Da honra 45 X Dos duelos 48 XI Da tranqüilidade pública 50 XII Finalidades da pena 52 xm Das testemunhas 53 XIV Indícios e formas de julgamento 56 XV Acusações secretas 59 XVI Da tortura 61 XVII Do fisco 67 XVIII Dos juramentos 69 XIX Rapidez da pena 71 8 DOS DELITOS E DA PENAS XX Violências 73 XXI Penas aplicadas aos nobres 74 XXII Furtos 76 xxrn Infâmia 78 XXIV Os ociosos 80 XXV Banimento e confisco 82 XXVI Do espírito de família 84 XXVII Brandura das penas 87 XXVill Da pena de morte 90 XXIX Da prisão 98 XXX Processos e prescrições 101 XXXI Delitos de prova difíciL 104 XXXII Suicídio 108 xxxm Contrabando 112 XXXIV Dos devedores 114 XXXV Asilos 117 XXXVI Da recompensa 118 XXXVII Tentativas cúmplices e impunidade 120 XXXVill Interrogatórios sugestivos e depoimentos 122 XXXIX De um gênero particular de delitos 124 XL Falsas idéias de utilidade 126 XLI Como prevenir os delitos 128 XLII Das ciências 130 XLill Dos magistrados 133 XLIV Prêmios 134 XLV Educação 135 XLVI Das graças 136 XLVII Conclusão 139 Respostas às Notas e Observações de um frade dominicano sobre o livro Dos Delitos e das Penas 141 I Acusações de impiedade 142 II Acusações de sedição 147 SOBRE BECCARIA Cesare Beccaria nasceu na cidade de Milão no ano de 1738 Tendo freqüentado em Paris o Colégio dos Jesuítas estudou então Literatura Filosofia e Matemática As leituras das Lettres Persanes de Montesquieu e De LEsprit de Helvetius muita influência exerceram em sua for mação Suas preocupações orientadas para o estudo da Filosofia levaramno a fundar a sociedade literária que se formou em Milão e que divulgou os princípios fundamentais da nova Filosofia francesa Para divulgar na Itália as novas idéias hauridas na França Beccaria fez parte daredação do jornal O Café publicado em 1764 Tendo conhecido as agruras do cárcere para onde foi enviado por injusta interferência paterna logo ao sair se insurgiu Beccaria contra as injustiças dos processos penais em voga discutindo com os amigos entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri os diversos problemas rela cionados com a prisão as torturas e a desproporção entre o delito e a pena Nasceu assim o livro Dei Delitti e delle Pene escrito aos 26 anos de idade Receoso de possíveis perseguições imprimiu a obra secretamente em Livorno e mesmo assim abrandando sua colocação crítica com expressões vagas e genéricas O livro Dos Delitos e das Penas é de certo modo a Filosofia francesa aplicada à legislação penal da época Contra a tradição clássica invoca a razão Tornase o arauto do protesto público contra os julgamentos secretos o juramento imposto ao acusado a tortura o confisco a pena infamante a delação a desigualdade diante da sanção e a atrocidade do suplício Ao sustentar que as mesmas penas devem ser aplicadas aos 10 DOS DELITOS E DA PENAS SOBRE BECCARIA 11 poderosos e aos mais humildes cidadãos desde que hajam cometido os mesmos crimes Beccaria proclamou com desassombro pela primeira vez o princípio da igualdade perante a lei Estabeleceu limites entre a justiça divina e a justiça humana entre o pecado e o crime Condenou o pseudodireito de vingança tomando por base o ius puniendi e a utilidade social Considerou sem sentido a pena de morte e verberou com veemência a desproporcionalidade entre a pena e o delito assim como a separação do Poder Judiciário do Poder Legislativo O sucesso da obra foi imediato principalmente entre os filósofos franceses O abade Morellet traduziu para o francês o livro Dos Delitos e das Penas Diderot anotouo Voltaire colocouo nas nuvens e comen touo DAlembert Buffon e Helvetius manifestaram desde logo admiração e entusiasmo pelo novo e audacioso autor Em 1766 tendo ido a Paris foi alvo das maiores demonstrações de apoio Regressando porém a Milão teve de suportar infamante cam panha por parte dos inimigos que se apegavam aos preconceitos para acusálo de heresia e de desobediência contra a Igreja e contra o Governo A denúncia não teve maiores conseqüências mas Beccaria daí por diante foi mais reservado com medo de que novas perseguições o levassem à prisão Em 1768 o Governo da Áustria sabendo que ele recusara as ofertas de Catarina II da Rússia que o convidara para lecionar em São Petersburgo criou especialmente para Beccaria a Cátedra de Economia Política Cesare Beccaria morreu em Milão em 1793 legando ao mundo o seu pequeno grande livro Dos Delitos e das Penas obra notável cujo remate apresentado no teorema final serve ainda hoje de assunto de meditação e análise por parte dos criminalistas O livro de Beccaria foi traduzido em todas as línguas cultas do mundo No Brasil há uma dezena de traduções como entre outras a de Aristides Lobo com prefácio de Evaristo de Morais publicada pela Atena Editora em São Paulo há cerca de meio século num total de XLII capítulos O texto que tomamos por base para esta tradução foi o da UTET Unione Tipografico Editrice Torinese Milão Roma Nápoles nuova ristampa 1911 em XLVII capítulos p 1797 O estilo de Beccaria é barroco prolixo com inúmeras metáforas e pensamento nem sempre preciso longe por exemplo do límpido e claro estilo de um Descartes no Discurso do Método NOTA DOS TRADUTORES À La EDIÇÃO Inestimável a contribuição de CESARE BECCARIA 1738I 793 para a elaboração da modema ciência do direito penal De família nobre estudou primeiro numa escola da Companhia de Jesus em Parma freqüentando mais tarde a Universidade de Pavia estudando Filosofia e Direito Aos 26 anos de idade publicou Dei Delitti e Delle Pene resultado da triste experiência que passou em prisão italiana onde denunciado pelo pai teve a vivência do arbitrário sistema carcerário então vigente o que lhe forneceu matériaprima e inspiração para a elaboração de sua obraprima Antes a desproporcionalidade entre o delito praticado e a pena aplicada levava a flagrantes injustiças mas o Marquês de Beccaria conforme se lê no último parágrafo de seu livro no famoso teorema conclusivo a pena não deve ser a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular devendo ser essencialmente pública rápida necessária a mínima dentre as possíveis nas circunstâncias ocorridas proporcional ao crime e ditada pela lei DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER1 A LGUNS remanescentes das Leis de antigo povo conquis tador2 compiladas por ordem do príncipe3 que reinou há doze séculos em Constantinopla combinados depois com ritos dos longobardos inseridos em confusos calhamaços de intérpretes particulares e obscuros formam a tradição de opiniões que no entanto em grande parte da Europa recebe o nome de leis4 Coisa tão prejudicial quanto comum é que I Este Prefácio sob o nome de Ao Leitor ou A quem ler apresentado em forma de Aviso não existia na primeira edição de 1764 tendo sido incluído porém nas edições posteriores quando Cesare Beccaria preocupado com as críticas veementes e injustas de Frei Angelo Fachinei e de outros da época não quis responder sem se defender antes das acusações de revolta contra o príncipe e contra a religião dirigidas ao livro recémpublicado 2 O antigo povo conquistador é o povo romano que estendeu seu domínio a grande parte do mundo antigo 3 O Príncipe ou melhor o Imperador que reinou em Constantinopla de 527 a 565 foi o grande Justiniano 482 a 565 casado com Teodora o responsável pela elaboração do Corpus Juris Civilis 4 Cesare Beccaria faz referências ao direito da época que não se encontrava disciplinado nos códigos mas que se baseava no Corpus Juris Civilis mandado organizar pelo Imperador Justiniano no edito de Rotário e nas leis dos longobardos cuja interpretação era mais difícil do que a doutrina Essa legislação era incompreensível mesmo para o jurista experiente da época 18 OOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 19 uma oplmao de CarpZOW5 ou um antigo uso assinalado por Claro ou uma tortura sugerida por Farinaccio 6 com irada complacência sejam leis obedecidas com segurança por aqueles que deveriam tremer qando decidem sobre a vida e o destino dos homens Essas leis resíduos de séculos os mais bárbaros são examinadas neste livro sob ângulo que interessa ao sistema penal e ousamos expor aqui suas desordens aos responsáveis pela felicidade pública em estilo que afastará a plebe não esclarecida e impaciente A ingênua busca da verdade a independência com respeito às opiniões vulgares com que este livro foi escrito são conseqüências do brando e esclarecido governo sob o qual vive o autor Os grandes monarcas benfeitores da humanidade que nos dirigem7 amam as verdades expostas pelo obscuro filósofo com um nãofanático vigor só despertado por quem afastado da razão apela para a força ou para o engenho E as desordens presentes por quem lhe examina bem as circunstâncias são a sátira e a censura dos tempos passados e não as deste século e de seus legisladores 5 Benedikt Carpzow OU em português Benedito Carpsóvio de Wittemberg 15951666 Julio Emilio Claro de Alexandria 1525 1575 e Próspero Farinaccio de Roma 15541618 dedicaram grande atenção às questões da tortura no campo do direito considerandoa entretanto como normal meio de obtenção da prova Foram autores de Tratados célebres na época especialmente no que diz respeito à prática criminal Beccaria não tinha conhecimento profundo do texto desses jurisconsultos nem a idéia de renovação que a doutrina do direito comum operara em todo o sistema jurídico da época e sobre cuja influência histórica o jurista italiano Manzoni foi intérprete muito mais criterioso quando na obra Storia della cnna infame observava surpreso que a pequena monografia Dos Delitos e das Penas que proporcionara não apenas a abolição da tortura mas também a reforma de toda a legislação criminal não tivesse sido ainda descoberta e considerada pela ciência do direito 6 Alguns tradutores por lapso escreveram Francisco ao invés de FarinacciQ 7 Quanto aos príncipes iluminados sobre os quais Beccaria faz referência cfr o final dos Cap xn e XIV e a monografia de Voltaire Éage historique de la raison Quem quiser honrarme com críticas comece pois por bem entender o fim a que esta obra se destina escopo que longe de diminuir a legítima autoridade serviria mais para engrandecê la caso a opinião tenha mais poder do que força sobre os homens e caso a suavidade e a humanidade a justifiquem aos olhos de todos As malintencionadas críticas publicadas contra este Livro8 baseiamse em confusas noções e me obrigam a inter romper por vezes o raciocínio com os leitores esclarecidos para encerrar de uma vez para sempre com qualquer possibilidade de erro de um tímido zelo ou com as calúnias da maldosa inveja Três são as fontes das quais derivam os princípios morais e políticos reguladores dos homens a Revelação9 a Lei Natural e as Convenções artificiais da sociedade Não há comparação entre a primeira e as outras duas quanto à finalidade principal mas nisto as três se assemelham por conduzirem à felicidade nesta vida mortal Considerar as relações da última não é excluir as relações entre as duas primeiras Na verdade assim como aquelas embora divinas e imutáveis foram por culpa dos homens alteradas de mil modos em suas mentes distorcidas pelas falsas religiões e pelas arbitrárias noções de vício e de virtude assim também me parece necessário examinar independente de qualquer outra consideração aquilo que nasce das puras e expressas convenções humanas ou supostas para a necessidade e utilidade comum idéia essa a que toda seita e todo sistema de moral deve necessariamente reportarse E será sempre louvável a iniciativa que obrigue mesmo os mais distantes e incrédulos em conformarse com os princípios que levam os homens a viver em sociedade Há pois três classes diversas de virtude e vício religiosa natural e política Estas três classes nunca devem estar em contradição entre si mas nem todas as conseqüências e os deveres resultantes de uma resultam das outras Nem tudo o que a Revelação exige é cobrado pela Lei 8 O autor alude ao virulento artigo publicado em 1764 por Frei Angelo Facchinei sob o título Notas e Observações sobre o livro Dos Delitos e das Penas por ordem do governo da República de Veneza Ver p 141 deste livro 9 Referese à Revelação divina 20 DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 21 Natural nem tudo o que esta requer é exigido pela pura Lei Social mas é importantíssimo separar o que resulta desta convenção ou seja dos pactos expressos ou tácitos entre os homens porque tal é o limite daquela força que pode legitimamente exercerse entre homens e homens sem ordem especial do Ser supremo Assim a idéia da virtude política pode pois sem desdouro ser deno minada de variável a da virtude natural seria sempre límpida e manifesta se a imbecilidade ou as paixões dos homens não a obscurecessem a da virtude religiosa é sempre una e constante porque revelada imediatamente por Deus e por ele conservada Seria pois erro o atribuir a quem fala de convenções sociais e de suas conseqüências princípios contrários à Lei Natural ou à Revelação porque não é delas que aqui se fala Seria erro também acreditar que aquele que falando de estado de guerra antes do estado de sociedade o tomasse no sentido hobbesiano1O ou seja o de nenhum dever e de nenhuma obrigação anterior ao invés de tomálo como fato nascido da corrupção da natureza e da falta de uma sanção expressa Seria erro imputar um delito ao escritor que considerasse as emanações do pacto social e de não colocálo antes do próprio pacto A Justiça divina e a Justiça natural são por essência imutáveis e constantes porque a relação entre dois objetos iguais 10 Hobbesiano é relativo ao filósofo inglês Thomas Hobbes 15881679 segundo o qual antes do contrato social os homens viviam conforme já observara o romano Plauto em contínua e mortífera luta entre si homo homini lupus fazendo portanto preceder o estado político isto é a vida em sociedade por um estado natural que considerava cada homem em luta contínua com os semelhantes negando assim o direito natural anterior às leis Hobbes prestigiado filósofo inglês concebeu assim o contrato social como a evolução da sociedade do estado da natureza do homo homini lupus o homem é um lobo para o homem para o estado político do homo homini deus o homem é deus para o homem Neste ponto Beccaria procura conciliar a hipótese do estado de guerra présocial com o princípio da Revelação divina e da lei natural Em certo aspecto nesta passagem é também visível a influência de Montesquieu nos dois primeiros capítulos do Espírito das Leis é sempre a mesma mas a Justiça humana ou seja política não sendo senão a relação entre a ação e o estado variável da sociedade pode variar à medida que se tome necessária ou útil à sociedade tal ação e só será bem discernida por quem analisar as relações complicadas e mutabilíssimas das combinações civis Tão logo esses princípios profundamente distintos se tomem confusos deixará de existir a esperança de bem raciocinar sobre as matérias püblicas Cabe aos teólogos estabelecer as fronteiras entre o justo e o injusto quanto à intrínseca malícia ou a bondade do ato Estabelecer as relações do justo e do injusto político ou seja do que é útil ou danoso para a sociedade cabe ao publicista Nenhum objeto poderá prejudicar o outro pois cada um vê quanto a virtude puramente política deva ceder à imutável virtude emanada de Deus Quem repito desejar honrarme com críticas não comece portanto supondo em mim a existência de princípios destruidores da virtude ou da religião pois tenho demonstrado não serem esses os meus princípios e ao invés de acharme incrédulo ou sedicioso procure ver em mim um mau lógico ou um político despreparado não trema a cada proposta que apoie os interesses da humanidade convençame da inutilidade ou do dano político que poderia resultar dos meus princípios mostreme a vantagem das práticas recebidas Dei público testemunho da minha religião e da submissão ao meu Soberano na resposta às Notas e Observaçõesli Responder a ulteriores escritos semelhantes àque les seria supérfluo mas quem quer que escreva com a decência que convém a homens honestos e com tais luzes que me dispense de provar os primeiros princípios seja qual for a natureza deles pois encontrará em mim não só o homem que procura responder como o pacífico amante da verdade 11 A resposta redigida por Pietro Verri com a colaboração do irmão foi publicada seis dias após o recebimento em Milão da crítica acerba parcial e injusta de Frei Fachinei escrita esta por determinação do prepotente e suscetível Conselho dos Dez de Veneza supostamente criticado pela obra de Beccaria conforme pensavam seus membros A réplica dos irmãos Verri recebeu o nome de Apologia INTRODUÇÃO R EORA geral os homens abandonam os mais relevantes regulamentos à prudência diária ou à discrição daque les cujo interesse é o de contestar as leis mais sábias que por natureza tomam universais as vantagens e resistem ao esforço que tendem a concentrarse em poucos separando de um lado o máximo de poder e de felicidade e de outro toda a fraqueza e a miséria Por isso só após haver passado entre si mil erros nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo dispõemse eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades as quais por sua própria simplici dade escapam às mentes vulgares não habituadas a analisar os objetos mas a receberlhes todas as impressões de uma só vez mais por tradição que por exame Olhemos a história e veremos que as leis que são ou deveriam ser pactos entre homens livres não passaram geralmen te de instrumentos das paixões de uns poucos ou nasceram de fortuita e passageira necessidade não já ditadas por frio analista da natureza humana capaz de concentrar num só ponto as ações de muitos homens e de considerálas de um só ponto de vista a máxima felicidade dividida pelo maior número 12 Felizes as 12 Beccaria foi o primeiro a formular este princípio nestes exatos termos Tanto nesta como em outras passagens deste livro Dos Delitos e das Penas cfr Cap II e XV as origens das leis têm como fundamento a fusão das teorias contratualistas de Locke e de Rousseau com as 24 DOS DELITOS E DAS PENAS INTRODUÇÃO 25 pouquíssimas nações que não esperaram que o lento movimento das combinações e vicissitudes humanas após haverem atingido o mal extremo conduzissem ao bem mas que aceleraram as passagens intermediárias com boas leis E merece a gratidão dos homens o filósofo que de seu humilde e obscuro gabinete teve a coragem de lançar à multidão as primeiras sementes por longo tempo infrutíferas das úteis verdades Conheceramse verdadeiras relações entre o soberano e seus súditos e entre as diversas nações Prosperou o comércio à luz das verdades filosóficas postas pela imprensa ao alcance de todos acendeuse entre as nações tácita guerra de atividades a mais humana e a mais digna entre homens razoáveis Estes são os frutos que devemos às luzes deste século Pouquíssimos porém examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais parte tão importante quão descurada da legislação em quase toda a Europa Pouquíssimos os que remontando aos princípios gerais elimina ram os erros acumulados durante séculos refreando ao menos cOm a força que só possuem as verdades conhecidas o demasiado livre curso do mal dirigido poder que deu até hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade Entretanto o gemido dos fracos vítimas da cruel ignorância e da rica indolência os bárbaros tormentos com pródiga e inútil severidade multiplicados por delitos não provados ou quiméricos a esqualidez e horrores da prisão aumentados pelo mais cruel algoz dos desgraçados a incerteza é que deveriam comover aquela espécie de magistrados que guiam as opiniões das mentes humanas O imortal Presidente Montesquieu l3 discorreu rapidamente sobre este tema 14 A indivisível verdade forçoume a seguir os teorias utilitaristas que Beccaria assimilou do pensador Helvétius 17151771 de quem foi grande admirador Beccaria cérebro essen cialmente receptivo toma seu o pensamento de Locke e de Rousseau 13 Montesquieu 16891755 foi eleito Presidente do Parlamento órgão jurisdicional do reino da França de Bordeaux jurista e pensador iluminista autor de inúmeras obras entre as quais a fundamental é o Esprit des lois 14 Beccaria declarou ao tradutor Morellet que sua conversão à filosofia ocorreu quando da leitura da obra Lettres persanes de Montesquieu traços luminosos desse grande homem mas os pensadores para os quais escrevo saberão distinguir os meus passos dos dele Afortunado serei eu se puder como ele obter os secretos agradecimentos dos obscuros e pacíficos adeptos da razão e se puder inspirar aquele doce frêmito com o qual as almas sensíveis respondem a quem luta pelos interesses da humanidade porém neste seu trabalho é bem visível a influência do Esprit des lois em inúmeros pontos I ORIGEM DAS PENAS L EIS Ão condições sob as quaiholllens independentes e isolados se uniram em sociedade cansados de viver em contínloclLQ glTl e degozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservála Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar o restante com segurança e tranqüilídade A soma de todas essas porções de liberdades sacrificaaas ao bem de cada um forma a soberania de uma nação eo Soberano é seu legítimo depositário e administrador Não bastava porém formar esse repositório Era mister defendêlo das usurpações privadas de cada homem em particular o qual sempre tenta não apenas retirar do escrínio a própria porção mas também usurpar à porção dos outros Faziamse necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o despótico espírito de cada homem de submergir as leis da sociedade no antigo caos Essas são as penas estabelecidas contra os infratores das leis Digo motivos sensíveis porque a experiência mostrou que a multidão não adota princípios estáveis de conduta nem se afasta do princípio universal de dissolução no universo físico e moral senão por motivos que imediatamente afetam os sentidos e que sobem à mente para contrabalançar as fortes impressões das paixões parciais que se opõem ao bem universal Nem a eloqüência nem as declamações nem mesmo as mais sublimes verdades bastaram para refrear por longo tempo as paixões despertadas pelos vivos impactos dos objetos presentes DIREITO DE PUNIR 29 II DIREITO DE PUNIR T CDA PENA que uão derive da absoluta uecessidade diz o grande Montesquieu é tirânica proposição esta que pode ser assim generalizada todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico Eis então sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares Tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano dá aos súditos Consultemos o coração humano e nele encontraremos os princípios fundamentais do verdadeiro direito do soberano de punir os delitos pois não se pode esperar nenhuma vantagem durável da política moral se ela não se fundamentar nos sentimentos indeléveis do homem Toda lei que se afaste deles encontrará sempre resistência contrária que acabará vencendo da mesma forma que uma força embora mínima aplicada porém continuamente vencerá qual quer movimento aplicado com violência a um corpo Homem algum entregou gratuitamente parte da própria liberdade visando ao bem público quimera esta que só existe nos romances Se isso fosse possível cada um de nós desejaria que os pactos que ligam os outros não nos ligassem Cada homem faz de si o centro de todas as combinações do globo A multiplicação do gênero humano pequena por si só mas muito superior aos meios que a estéril e abandonada natureza oferecia para satisfazer as necessidades que cada vez mais se entrecruzavam é que reuniu os primeiros selvagens As primeiras uniões formaram necessariamente outras para resistir àquelas e assim o estado de guerra transportouse do indivíduo para as nações Foi portanto a necessidade que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível apenas a suficiente para induzir os outros a defendêlo O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir O resto é abuso e não justiça é fato mas não direito 15 Observemos que a palavra direito não se opõe à palavra força mas a primeira é antes uma modificação da segunda isto é a modificação mais útil para a maioria Por justiça entendo o vínculo necessário para manter unidos os interesses particulares que do contrário se dissolve riam no antigo estado de insociabilidade Todas as penas que ultrapassarem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas pela própria natureza É necessário evitar associar à palavra Justiça a idéia de algo real como força física ou ser vivo Ela é mero modo de conceber dos homens o que influencia infinitamente a felicidade de cada um Também não me refiro àquele tipo de justiça que emana de Deus e que tem relações imediatas com as penas e recom pensas da vida futura 15 Observese que a palavra direito não contradiz a palavraforça Direito é a força submetida à lei para vantagem da maioria Entendo por Justiça os laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares Se esses laços se quebrassem não haveria sociedade É mister que se evite ligar a palavra justiça à idéia de força física ou de um ser existente Justiça é pura e simplesmente o ponto de vista a partir do qual os homens encaram as coisas morais para o bemestar de cada um Não pretendo falar aqui da justiça de Deus que é de outra natureza tendo relações imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura Nota de Beccaria CONSEQÜÊNCIAS 31 ln CONSEQÜÊNCIAS A PRIMEIRA conseqüência destes princípios é que só as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes e esta autoridade somente pode residir no legislador que representa toda a sociedade unida por um contrato social Nenhum magistrado que é parte da sociedade pode com justiça aplicar pena a outro membro dessa mesma sociedade pena essa superior ao limite fixado pelas leis que é a pena justa acrescida de outra pena Portanto o magistrado não pode sob qualquer pretexto de zelo ou de bem comum aumentar a pena estabelecida para um delinqüente cidadão A segunda conseqüência é que se cada membro em particular está ligado à sociedade essa sociedade está igualmente ligada a todos os seus membros por um contrato que por natureza obriga as duas partes Essa obrigação que desce do trono até a choupana e liga igualmente o mais poderoso ao mais desgraçado dos homens nada mais é do que o interesse de todos em observar pactos úteis à maioria A violação de um só pacto gera a autorização da anarquia O soberano que representa a própria sociedade só pode promulgar leis gerais que obriguem a todos os membros mas não pode julgar se um deles violou 0 Ver a nota 16 p 32 o contrato social pois então a nação se dividiria em duas partes uma representada pelo soberano que apontaia a violação do contrato outra pelo acusado que a negaria E pois necessário que um terceiro julgue a verdade do fato Daí a necessidade do magistrado cujas sentenças sejam inapeláveis e consistam tão só em afirmações ou negações de fatos particulares A terceira conseqüência é que mesmo provada que a atrocidade da pena não sendo imediatamente oposta ao bem comum e ao próprio fim de impedir os delitos fosse apenas inútil ela seria ainda assim contrária não só às virtudes benéficas efeito de uma razão esclarecida que prefere Q comando de homens felizes ao de um rebanho de escravos em meio aos quais circulasse perpetuamente uma tímida crueldade contrária também àjustiça e à natureza do próprio contrato social INTERPRETAÇÕES DAS LEIS 33 IV INTERPRETAÇÕES DAS LEIS Q UARTA conseqüência A utridade de interpre eis penais não pode ser atnbUIda nem mesmo aos JUIzes criminais pela simples razão de que eles não são legisladores Os juízes não receberam as leis de nossos antepassados como tradição de família nem como testamento que só deixasse aos pósteros a missão de obedecer mas recebemnas da sociedade vivente ou do soberano que a representa como legítimo depo sitário do atual resultado da vontade de todos Não nas recebem como obrigações de antigo juramento nulo por ligar vontades não existentes16 iníquo por reduzir os homens do estado de 16 Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão pois a natureza do contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes Esse liame de obrigações mútuas que desce do trono até a cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade tem como fim único o interesse público que consiste na observação das convenções úteis à maioria Violada uma dessas convenções abrese a porta à desordem A palavra obrigação é uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência Existem obrigações a cumprir no comércio e na sociedade Uma obrigação supõe um raciocínio moral convenções raciocinadas Não se pode porém emprestar à palavra obrigação uma sociedade ao estado de rebanho mas como efeito de um juramento tácito ou expresso que as vontades reunidas dos súditos vivos fizeram ao soberano como vínculos necessários para frear e reger o fermento intestino dos interesses particulares Esta é a física e real autoridade das leis Quem será então o legítimo intérprete da lei O soberano isto é o depositário das atuais vontades de todos ou o juiz cujo ofício é apenas o de examinar se determinado homem cometeu ou não ação contrária às leis Em cada crime o juiz deverá estruturar um silogismo perfeitQ ª maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme ou não à lei a conseqüência a liberdade ou a pena Quando o juiz for coagido ou quiser formular somente dois silogismos a porta à incerteza estará aberta Nada é mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei Este é um dique aberto à torrente das opiniões Esta verdade que parece paradoxal às mentes vulgares mais abaladas por pequenas desordens presentes do que pelas funestas mas remotas conseqüências que nascem de um falso princípio radicado numa nação pareceme demons trada Nossos conhecimentos e todas as nossas idéias têm uma recíproca conexão Quanto mais são complicados mais nume rosas são as estradas que a eles levam e deles partem Cada homem tem seu ponto de vista e o mesmo homem em épocas diferentes pensa de modo diferente O espírito da lei seria então o resultado da boa ou da má lógica de um juiz de uma fácil ou difícil digestão dependeria da violência de suas paixões da fraquea de quem sofre das relações do juiz com a vítima e de todas as mínimas forças que alteram as aparências de cada objeto no espírito indeciso do homem Assim vemos a sorte de um cidadão mudar várias vezes ao passar por diversos tribunais e vemos a vida dos miseráveis ser vítima de falsos raciocínios ou do atual fermento dos humores idéia física ou real É palavra abstrata que precisa ser explicada Ninguém pode obrigarvos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações Nota de Beccaria 34 DOS DELITOS E DAS PENAS de um juiz o qual tomou como legítima interpretação o vago resultado de toda uma série confusa de noções que lhe agitam a mente Vemos pois os mesmos delitos punidos diferentemente em épocas diferentes pelo mesmo tribunal por ter este consul tado não a voz imutável e constante da lei mas a errante instabilidade das interpretações A desordem que nasce da rigorosa observância da letra de uma lei penal não se compara com as desordens que nascem da interpretação Tal momentâneo inconveniente leva à correção fácil e necessária das palavras da lei causa da incerteza mas impede a fatal licença da razão da qual nascem as arbitrárias e venais controvérsias Quando um código fixo de leis que devem ser observadas ad litteram só deixa ao juiz a incumbência de examinar as ações dos cidadãos e de julgálas de acordo ou não com a lei escrita quando a norma do justo e do injusto que deve guiar tanto os atos do cidadão ignorante como os do filósofo não é questão controvertida mas de fato então os súditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos tanto mais cruéis quanto menor é a distância entre quem sofre e quem faz sofrer mais fatais do que as de um só porque o despotismo de muitos somente é corrigível pelo despotismo de um só e a crueldade de um déspota é proporcional não à força mas aos obstáculos Dessa forma adquirem os cidadãos a própria segu rança que é justa por ser o escopo pelo qual os homens vivem em sociedade e é útil porque os levam exatamente a calcular os inconvenientes de um crime É verdade ainda que adquirirão um espírito de independência mas que não irá abalar as leis nem será recalcitrante aos supremos magistrados resistindo porém aos que ousarem chamar com o sagrado nome de virtude a fraqueza de ceder às suas interessadas ou caprichosas opiniões Esses princípios desagradarão a todos os que se impuserem o direito de transmitir aos inferiores os golpes da tirania que receberam dos superiores Estarei preparado para tudo temer se o espírito da tirania for consonante com o espírito da leitura V OBSCURIDADE DAS LEIS S E A JNrnlPRETAÇÃO das leis é um mal claro que a obscundade que a mterpretação necessariamente acarre ta é também um mal e este mal será grandíssimo se as leis forem scitas em língua estranha ao pOVO17 que o ponha na dependencIa de uns poucos sem que possa julgar por si mesmo ual seria o êxito de sua liberdade ou de seus membros em hngua que tansformasse um livro solene e público em outro como que pnvado e de casa Que deveremos pensar dos homens quando refletimos ue este é o inveterado costume de boa part da culta e esclarecIda Europa Quanto maior for o número dos que entenderem e tiverem nas mãos o sagrado código das leis tanto menos freqüentes serão os delitos pois não há dúvida de que a ignorância e a incerteza das penas contribuem para a eloqüência das paixões Conseqüência destas últimas reflexões é que sem escrita a sociedade Amas teria forma fixa de governo onde a forç fosse consequencIa do todo e não das partes e onde as leis alteráveis apenas pelo consenso geral não se corrompam passando pela grande quantidade dos interesses privados A experiência e a razão demonstraramnos que a probabilidade e 17 Latim era a língua estranha ao povo usada pela elite pelos doutos sendo o sermo vulgaris a língua popular da plebe 36 DOS DELITOS E DAS PENAS a certeza das tradições humanas diminuem à medida que estas se distanciam da fonte Se não houver monumento estável do pacto social como resistirão as leis à força inevitável do tempo e das paixões Vemos assim quanto é útil a imprensa que faz do público e não apenas de alguns o depositário das leis sagradas e quanto sumiu o espírito tenebroso da cabala e da intriga que desaparece diante das luzes e das ciências aparentemente desprezadas por seus sequazes mas na verdade temidas por eles Esta é a razão pela qual vemos diminuída na Europa a atrocidade dos crimes que faziam gemer nossos antepassados os quais se tomavam alternadamente tiranos e escravos Quem conhece a história dos últimos dois ou três séculos e a nossa poderá ver como no seio do luxo e da apatia nasceram as mais doces virtudes a saber a filantropia a benevolência e a tolerância para com os erros humanos Verá quais foram os efeitos daquilo que sem razão denominamos de antiga simplicidade e boafé a huma nidade gemendo sob a implacável superstição a avareza a ambição de alguns tingindo com o sangue humano os escrínios de ouro e os tronos dos reis as ocultas traições e os massacres públicos todos os nobres tiranos da plebe Os ministros da verdade evangélica sujando de sangue as mãos que todos os dias tocavam o Deus da mansuetude não são obra deste século esclarecido que alguns denominam corrupto VI PROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS N Ão SOMENTE é interess de todos que não se cmetam delitos como tambem que estes sejam maIS raros proporcionalmente ao mal que causam à sociedade Portanto mais fortes devem ser os obstáculos que afastam os homens dos crimes quando são contrários ao bem público e na medida dos impulsos que os levam a delinqüir Deve haver pois proporção entre os delitos e as penas Impossível evitar todas as desordens no universal combate das paixões humanas Crescem elas na proporção geométrica da população e do entrelaçamento dos interesses particulares que não é possível dirigir geometricamente para a utilidade pública A exatidão matemática deve ser substituída na aritmética política pelo cálculo das probabilidades Se lançarmos um olhar para a história veremos crescerem as desordens com os limites dos impérios diminuindo o sentimento nacional na mesma proporção e assim a tendência para o crime cresce na razão do interesse que cada um tem nas próprias desordens Por esse motivo a necessidade de ampliar as penas vai sempre aumen tando Essa força semelhante à da gravidade que nos impele ao bemestar só se refreia na medida dos obstáculos que lhe são 38 DOS DELITOS E DAS PENAS PROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS 39 levantados Os efeitos desta força são a confusa série das ações humanas Se estas se chocam e se ferem umas com as outras as penas a que eu chamaria de obstáculos políticos impedem lhe o efeito nocivo sem destruir a força motriz que é a própria sensibilidade inseparável do homem E o legislador faz como hábil arquiteto cujo ofício é oporse às diretrizes ruinosas da gravidade e pedir a colaboração das que contribuem para a firmeza do edifício Dada a necessidade da reunião dos homens por causa dos pactos que necessariamente resultam da própria oposição dos interesses privados formase uma escala de desordens das quais o primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamente a sociedade e o último na mínima injustiça possível feita a seus membros privados Entre esses dois extremos encontram se todas as ações opostas ao bem comum chamadas delitos que vão decrescendo por graus insensíveis do mais grave ao mais leve Se a geometria fosse adaptável às infinitas e obscuras combinações das ações humanas deveria existir uma escala paralela de penas descendo da mais forte para a mais fraca mas bastará ao sábio legislador assinalar os pontos principais sem alterarlhes a ordem não cominando para os delitos de primeiro grau as penas do último Se existisse escala precisa e universal de penas e delitos teríamos medida provável e comum dos graus de tirania e de liberdade do fundo de humanidade ou de malícia das diversas nações Toda ação não compreendida entre os dois limites supramencionados não pode ser chamada de delito nem punida como tal senão por aqueles que têm interesse em assim chamá la A incerteza desses lirriites produziu nas nações moral que contradiz as leis leis mais atuais que se excluem reciprocamente e uma quantidade de leis que submetem o mais sábio a penas mais rigorosas Assim vagos e flutuantes ficaram os sentidos das palavras vício e virtude Nasceu assim a incerteza da própria existência o que produz a letargia e o sono fatal dos corpos políticos Quem ler sob o ângulo filosófico os códigos das nações e os respectivos anais observará quase sempre as palavras vício e virtude bom cidadão ou réu que se alteram com as revoluções dos séculos não em razão das mutações ocorridas nas circuns tâncias das nações e por isso sempre de acordo com o interesse geral mas em razão das paixões e dos erros que agitaram sucessivamente os diversos legisladoresVerá freqüentemente que as paixões de um dado século são a base da moral dos séculos seguintes As paixões desenfreadas filhas do fanatismo e do entusiasmo enfraquecidas e corroídas diria eu pelo tempo que reduz ao equilíbrio todos os fenômenos físicos e morais tomam se pouco a pouco a prudência do século e útil instrumento nas mãos dos fortes e perspicazes Desse modo nasceram as obscuras noções de honra e de virtude e isso ocorre porque mudam com as revoluções do tempo que antepõem os nomes às coisas mudam como o curso dos rios e como as montanhas que marcam freqüentemente os limites não só da geografia física como também da geografia moral Se o prazer e a dor são a força motriz dos seres sensíveis se entre os motivos que impelem os homens para ações mais sublimes foram colocados pelo invisível legislador o prêmio e o castigo a distribuição inexata destes produzirá a contradição tanto menos observada quanto mais comum de que as penas castigam os delitos a que deram origem Se pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior se disso resultar maior vantagem ERROS NA MEDIDA DAS PENAS 41 VII ERROS NA MEDIDA DAS PENAS A S PRECEDENTES reflexões dãome o direito de afirmar que a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação errando assim os que pensavam que a verdadeira medida do delito era a intenção de quem o comete Esta depende da impressão atual dos objetos e da precedente disposição do espírito Elas variam de homem para homem e em cada homem com a velocíssima sucessão das idéias das paixões e das circunstâncias Seria então necessário elaborar um Código especial para cada cidadão e uma nova lei para cada delito Às vezes os homens com a melhor das intenções causam o maior mal à sociedade Outras vezes com a maior má vontade causam o maior bem Outros medem o delito mais pela dignidade da pessoa ofendida do que por sua importância em relação ao bemestar geral Se esta fosse a verdadeira medida do delito uma irreverência para com o Ser dos seres deveria ser punida mais atrozmente do que o assassinato de um monarca porque a superioridade da natureza compensaria infinitamente a diferença da ofensa Finalmente alguns chegaram a pensar que a gravidade do pecado seria levada em consideração na medida do delito A falsidade dessa opinião saltará aos olhos do objetivo examinador das verdadeiras relações entre os homens e entre estes e Deus As primeiras são relações de igualdade Só a necessidade fez nascer do choque das paixões e das oposições dos interesses a idéia de utilidade comum base da justiça humana As segundas são relações de dependência de um Ser perfeito e criador que reservou para si apenas o direito de legislar e julgar ao mesmo tempo pois só ele pode fazêlo sem inconveniente Se Deus cominasse penas eternas para quem lhe desobedecesse a onipo tência qual seria o inseto que ousaria suprir a divina justiça querendo vingar o Ser que bastasse a si mesmo e que não pudesse receber dos objetos nenhuma impressão de prazer ou dor e que único entre os seres agisse sem reação A gravidade do pecado depende da insondável malícia do coração a qual não pode ser conhecida por seres finitos sem a Revelação Como poderia pois tal malícia fixarse em norma para a punição dos delitos Nesse caso poderiam os homens castigar quando Deus perdoa e perdoar quando Deus castiga Se os homens pudessem estar em oposição ao Onipotente ao ofendêlo poderiam também ao punir contradizêlo DIVISÃO DOS DELITOS 43 VIII DIVISÃO DOS DELITOS V IMOS que a verdadeira medida do delito é o dano à sociedade Esta é uma daquelas palpáveis verdades que embora não precisem de quadrantes nem de telescópios para serem reveladas pois estão ao alcance de toda inteligência medíocre todavia por maravilhosa combinação de circunstân cias são conhecidas com firme segurança somente por alguns poucos pensadores homens de todas as nações e de todos os séculos Mas as opiniões ostensivas e as paixões revestidas de autoridade e poder a maioria das vezes por meio de insensíveis impulsos outras poucas por impressões violentas sobre a tímida credulidade dos homens dissiparam as noções simples que formavam talvez a primeira filosofia das sociedades nascentes A luz deste século parece que reconduz a essas noções com maior firmeza no entanto que pode ser proporcionada por um exame geométrico por mil experiências funestas e pelos próprios obstáculos Nossa ordem de expor levarnosia a examinar e a distinguir os diversos tipos de delitos ou a maneira de punilos se a variável natureza desses delitos pela diversa circunstância ligada aos séculos e aos lugares não nos levasse a imenso e tedioso pormenor Bastarmeá indicar os princípios mais gerais e os erros mais danosos e comuns para desmentir tanto os que por um mal compreendido amor de liberdade gostariam de introduzir a anarquia quanto os que desejariam reduzir os homens a uma regularidade claustral Alguns delitos destroem imediatamente a sociedade ou quem a representa outros defendem a segurança do cidadão na vida privada nos bens na honra outros são ações contrárias àquilo que por lei cada um é obrigado a fazer ou não fazer em vista do bem geral Os primeiros isto é os delitos máximos porque mais danosos são os chamados de lesamajestade Só a tirania e a ignorância que confundem os vocábulos e as idéias mais claras podem dar esse nome e por conseguinte cominar pena máxima a delitos de naturezas diferentes de modo a fazer os homens como em outras mil ocasiões vítimas de um só vocábulo Cada delito embora privado ofende a sociedade mas nem todo delito procura a destruição imediata dessa mesma sociedade As ações morais assim como as físicas têm esfera limitada de atividade e como todos os movimentos da natureza são diversamente circunscritas ao tempo e ao espaço Só a interpretação cavilosa que é comumente a filosofia da escravi dão pode confundir aquilo que a verdade eterna com imutáveis relações distinguiu Seguemse os crimes contra a segurança de cada particular Sendo este o fim primeiro de toda legítima associação não é possível deixar de cominar à violação do direito de segurança adquirido pelo cidadão penas das mais severas fixadas pelas leis A opinião que cada cidadão deve ter de poder fazer tudo o que não é contrário à lei sem temer outro inconveniente além do que pode resultar da própria ação eis o dogma político em que os povos deveriam acreditar e que os supremos magistrados deveriam apregoar com a incorruptível proteção das leis dogma sagrado sem o qual não pode haver sociedade legítima certa recompensa pelo sacrifício por parte dos homens daquela ação universal sobre todas as coisas que é comum a cada ser sensível e limitada apenas pela própria força Eis o que toma as almas livres e vigorosas e as mentes esclarecidas que faz os homens virtuosos mas virtude que sabe resistir ao temor 44 DOS DELITOS E DAS PENAS e não da prudência submissa digna apenas de quem pode tolerar precária e incerta existência Atentados contra a segurança e a liberdade dos cidadãos constituem pois um dos maiores crimes e nessa classe incluemse não apenas os assassinatos e os furtos dos plebeus mas também os dos grandes e dos magistrados cuja influência age a maior distância e com maior vigor destruindo nos súditos as idéias de justiça e de dever substituindoas pela do direito do mais forte perigoso não só para quem o exerce como também para quem o suporta IX DA HONRA H Á MARCANrn contradição entre as leis civis zelosas guardiãs acima de tudo do corpo e dos bens de cada cidadão e as leis relativas ao que se chama de honra a qual coloca em primeiro plano a opinião A palavra honra é uma das que serviram de base para longos e brilhantes raciocínios sem que estivesse associada a nenhuma idéia fixa ou estável Mísera condição da mente humana a de que as idéias menos importantes e mais remotas sobre as revoluções dos corpos celestes sejam conhecidas melhor do que as próximas e impor tantíssimas noções morais sempre flutuantes e confusas à mercê do vendaval das paixões que as impelem e da ignorância dirigida que as recebe e as transmite O aparente paradoxo desaparecerá porém se se ponderar que assim como os objetos bem próximos da vista se confundem assim também a excessiva proximidade das idéias morais faz com que facilmente se misturem as múltiplas idéias simples que as compõem confundindo as linhas de separação necessárias ao espírito geométrico que quer medir os fenômenos da sensibilidade humana acabando por esvairse de toda a maravilha do indiferente pesquisador das coisas humanas que suspeitará que tanto aparato moral e tantos liames não sejam necessários para tomar os homens felizes e seguros Essa honra é pois uma daquelas idéias complexas que cons tituem um bloco não apenas de idéias simples mas também de 46 DOS DELITOS E DAS PENAS DA HONRA 47 idéias igualmente complexas que assomando reiteradamente à mente ora admitem ora excluem alguns dos diversos elementos que as compõem conservando apenas algumas idéias comuns assim como na álgebra várias quantidades complexas admitem um divisor comum Para achar o máximo divisor comum nas várias idéias que os homens fazem da honra é preciso lançar uma vista rápida de olhos sobre a formação das sociedades As primeiras leis e os primeiros magistrados nasceram da neces sidade de corrigir as desordens geradas pelo despotismo físico de cada homem finalidade esta instituidora da sociedade e esta finalidade primeira sempre foi mantida na realidade ou na aparência no início de todos os códigos mesmo quando danosos mas a aproximação dos homens e o progresso de seus conhe cimentos originaram infinita série de ações e necessidades impelindo uns contra outros sempre superiores à providência das leis e inferiores ao atual poder de cada um Foi nessa época que começou o despotismo da opinião único meio de obter de outrem aqueles bens e de afastar os males contra os quais as leis eram insuficientes É a opinião que atormentou o sábio e o vulgo que valorizou a aparência da virtude acima da própria virtude que converteu em missionário até o criminoso para que ali encon trasse seu interesse Portanto as aprovações dos homens se tomaram não só úteis mas necessárias para não descer abaixo do nível comum Portanto se o ambicioso conquista a virtude porque ela é útil se o vaidoso a mendiga como prova do próprio mérito vêse o homem honrado exigila como necessária Essa honra é a condição que muitíssimos homens consideram indis pensável à sua existência Nascida após a formação da sociedade ela não pôde ser colocada na vala comum Assim é um instantâneo retomo ao estado natural e uma subtração momen tânea da própria pessoa às leis que nesse caso não servem para defender suficientemente o cidadão Portanto quer na radical liberdade política quer na radical dependência desaparecem as idéias de honra ou se confundem perfeitamente com outras porque no primeiro caso o despotismo das leis toma inútil a busca da aprovação alheia no segundo caso porque o despotismo dos homens anulando a existência civil os reduz a uma precária e momentânea personalidade A honra é pois um dos princípios fundamentais daquelas monar quias que são um despotismo atenuado e nelas correspondem às revoluções nos estados despóticos momentânea volta ao estado da natureza e uma recordação do padrão da antiga igualdade DOS DUELOS 49 x DOS DUELOS DA NECBSSlDADB da aprovação dos outros nasceram os duelos privados originados da anarquia das leis Pre tendese que fossem desconhecidos na antigüidade talvez porque os antigos se reuniam sem armas e sem desconfiança nos templos nos teatros ou com os amigos Ou talvez porque o duelo fosse espetáculo ordinário e comum que os gladiadores escravos e aviltados ofereciam ao povo e que os homens livres recusando os combates privados afastavam a aparência e o nome de gladiadores Em vão os editos contra quem aceitasse o duelo procuraram extirpar tal costume cujo fundamento se encontra naquilo que alguns homens temem mais do que a própria morte pois sem a aprovação alheia o homem honrado se vê exposto a tornarse um ser meramente solitário estado insuportável para o homem sociável OU tornarse alvo de insultos e da infâmia que com a ação repetida acabam prevalecendo sobre o perigo da pena Por que motivo o populacho se bateria em duelo menos do que os grandes Não só por não possuir armas como também porque a necessidade da aprovação alheia é menos comum entre a plebe do que entre aqueles que estando em nível mais alto se entreolham com maior suspeita e com maior inveja Não é inútil repetir o que outros já escreveram a saber que o melhor método de prevenir o delito é punir o agressor ou seja quem deu motivo para o duelo declarando inocente aquele que sem culpa foi obrigado a defender o que as leis atuais não asseguram isto é a opinião e teve que mostrar aos concidadãos que teme somente as leis e não os homens DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA 51 XI DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA P OR FIM entre os delitos da terceira espécie est par ticularmente incluídos os que perturbam a tranqUilIdade pública e a o sossego do cidadão como algazarras e espalhafatos nas vias públicas destinadas ao comércio e à passagem dos cidadãos como os fanáticos discursos que inflamam as fáceis paixões da curiosa multidão as quais ganham força pela freqüência dos ouvintes mais pelo obscuro e misterioso entu siasmo do que pela clara e tranqüila razão que nunca mflUI sobre a grande massa humana A noite iluminada às expensas públicas os guardas distri buídos pelos diferentes bairros da cidade os simples e moras discursos da religião reservados ao silêncio e à sacra tranqüI lidade dos templos protegidos pela autoridade pública os aranzéis destinados a apoiar os interesses privados e públicos nas assembléias da nação nos parlamentos ou onde reside a majes tade do soberano são em conjunto meios eficazes para prevenir a perigosa intensidade das paixões populares Estas formam os principais ramos da vigilância do agistrado que o francess denominam polícia mas se esse magIstrado agIsse aplIcando leIS arbitrárias e não estabelecidas por um código que circulasse pelas mãos de todos os cidadãos estaria aberta uma porta à tirania que cerca todas as fronteiras da liberdade política Não encontro exceção alguma ao axioma geral de que todo cidadão deve saber se é réu ou inocente Se os censores e de um modo geral os magistrados arbitrários são necessários em qualquer governo isso decorre da fraqueza de sua constituição e não da natureza de governo bem organizado A incerteza da própria sorte sacrificou mais vítimas à obscura tirania do que a pública e solene crueldade Ela revolta os ânimos mais do que os avilta O verdadeiro tirano começa sempre por dominar a opinião que previne a coragem a qual só pode resplandecer ou sob a clara luz da verdade no fogo das paixões ou ainda na ignorância do perigo Quais serão entretanto as penas adequadas a esses delitos Será a morte uma pena realmente útil e necessária para a segurança e para a boa ordem da sociedade Serão a tortura e os suplícios justos e alcançarão eles o fim a que as leis se propõem Qual será a melhor maneira de prevenir os delitos Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos Que influência terão as penas sobre os costumes Estes proble mas merecem ser resolvidos com a precisão geométrica a que a nebulosidade dos sofismas a sedutora eloqüência e a tímida dúvida não podem resistir Se eu só tivesse tido o mérito de ter sido o primeiro a apresentar na Itália com algum realce maior aquilo que as outras nações ousaram escrever e começam a praticar julgarmeia feliz mas se apoiando os direitos dos homens e da invencível verdade eu tivesse contribuído para arrancar dos espasmos e das vascas da morte algumas vítimas infelizes da tirania e da ignorância não menos fatal as bênçãos e as lágrimas mesmo as de um só inocente nos transportes da alegria me consolariam do desprezo dos homens XII FINALIDADES DA PENA D A SIMPLES consideração das verdades até aqui expostas fica evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível nem desfazer o delito já cometido É concebível que um corpo político que bem longe de agir por paixões é o tranqüilo moderador das paixões particulares possa albergar essa inútil crueldade instrumento do furor e do fana tismo ou dos fracos tiranos Poderiam talvez os gritos de um infeliz trazer de volta do tempo que não retorna as ações já consumadas O fim da pena pois é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo É pois necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicálas de tal modo que conservadas as proporções causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens e a menos tormentosa no corpo do réu XIII DAS TESTEMUNHAS P aNTO considerável em toda boa legislação é o de determinar exatamente a credibilidade das testemunhas e das provas do crime Todo homem razoável isto é que tenha idéias conexas e cujas sensações sejam conformes às dos outros homens pode ser arrollldo como testemunha A verdadeira medida de sua credibilidade é tãosomente o interesse que tenha em dizer ou não a verdade razão por que é frívolo o argumento da fraqueza das mulheres pueril a aplicação dos efeitos da morte real à morte civil nos condenados e incoerente a nota de infâmia nos infames quando as testemunhas não tenham interesse algum em mentir A credibilidade pois deve diminuir na proporção do ódio ou da amizade ou das estreitas relações existentes entre a testemunha e o réu É necessária mais de uma testemunha porque enquanto uma afirma e a outra nega nada haverá de certo e prevalecerá o direito que cada um tem de ser considerado inocente A credibilidade de uma testemunha tornase tão sensivelmente menor quanto mais cresce a atrocidade do delito18 18 Entre os penalistas ao contrário a credibilidade que o testemunho merece aumenta em proporção da atrocidade do crime Apoiamse eles neste axioma de ferro ditado pela mais cruel imbecilidade ln atroeissimis leviores conjecturae sufficiunt et icet judiei jura trans gredi Traduzamos essa máxima hedionda para que a Europa conheça 54 DOS DELITOS E DAS PENAS DAS TESTEMUNHAS 55 ou a inverossimilhança das circunstâncias como por exemplo a magia e as ações gratuitamente cruéis É mais provável que vários homens mintam na primeira acusação porque é mais fácil combinarse em muitos a ilusão da ignorância ou o ódio perseguidor do que se exercer por um só um poder que Deus não deu ou suprimiu de toda criatura O mesmo acontece na segunda acusação pois o homem só é cruel na proporção do seu próprio interesse do ódio ou do temor que concebeu Não há propriamente no homem nenhum sentimento supérfluo pois este é sempre proporcional ao resultado das impressões exercidas sobre os sentidos Igualmente a credibilidade de uma testemunha pode ser às vezes diminuída quando ela seja membro de sociedade privada cujos costumes e normas não são bem conhecidos ou divirjam das normas públicas Tal homem une as próprias paixões às paixões alheias Finalmente quase nula é a credibilidade da testemunha quando se faz das palavras um delito pois o tom o gesto o que precede e o que segue às diversas idéias que os homens associam às mesmas palavras altera e modifica de tal modo seus dizeres que é quase impossível repetilas exatamente como foram ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o saber Nos delitos mais atrozes isto é menos prováveis as mais ligeiras circunstâncias bastam e o juiz pode colocarse acima das leis Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes o resultado do meio fonte inesgotável das inconseqüências e dos erros humanos Os legisladores ou antes os jurisconsultos cujas opiniões são consideradas após sua morte como espécie de oráculos e que como escritores vendidos ao interesse se tomaram árbitros soberanos da sorte dos homens os legisladores repito receosos de ver condenar inocentes sobrecarregaram a jurisprudência de forma lidades e exações inúteis cuja exata observação colocaria a desordem e a impunidade no trono da Justiça Outras vezes assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar acharam que deviam desprezar as formalidades que eles próprios estabeleceram Foi assim que dominados ora por um despotismo impertinente ora por temores pueris fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio Nota de Beccaria pronunciadas As ações violentas e fora o comum como AOS verdadeiros delitos deixam traços na quantldade das CIrcunstan cias e nos efeitos decorrentes mas as palavras só permanecem na memória quase sempre infiel e geralmente sedutora dos ouvintes É pois muito mais fácil a calúnia relativa às palavas do que a referente às ações de um homem porque quanto maIor for o número de circunstâncias apresentadas como prova tanto maiores serão os meios fornecidos ao réu para justificarse INDíCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO 57 XIV INDÍCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO H Á UM lEOREMA ge muito útil paracalcular a certeza de um fato Isto e a força dos mdIclOs de um crime Quando as pras o fato dependem de outra prova isto é quando os mdIclOs so se provam entre si quanto maiores forem as provas aduzidas menor será a probabilidade da existência do fato porqu os casos que enfraquecessem as provas precedentes enfraquecenam as subseqüentes Quando todas as provas do fato dpndm de uma só prova esse número não aumenta nem dImmUI a probabilidade do fato porque todo seu valor se reduz o valor da única prova de que dependem Quando as provas mdependem umas das outras ou seja quando os indícios se provam por si mesmos quanto maiores forem as provas aduzidas maIS aumentará a probabilidade do fato pois a falsidade de um das provas não influi sobre a outra Falo da probabilidade em atéria de delitos que para merecerem uma pena devem ser tIdos como certs O paradoxo entretanto esvairseá para quem conSIdere que ngorosamente a certeza moral não é senão uma prbabilidade mas probabilidade tal que é denominada certeza pOIS todo homem de bom senso nela consente necessariamente por um hábito nélscido da necessidade de agir e anterior a toda especulação A certeza que se exige para determinar que um homem é réu pois é a que caracteriza cada homem nas operações mais importantes de sua vida Podese dividir as provas de um crime em perfeitas e imperfeitas Denomino perfeitas as provas que excluem a possibilidade de alguém não ser culpado e chamo imperfeitas as que não a excluem Das primeiras basta uma só prova para a condenação Das outras bastam tantas quantas sejam necessárias para constituir a prova perfeita ou seja que se com cada uma destas em particular é possível que alguém não seja réu diante de sua soma no mesmo caso é impossível que não o seja Notese que as provas imperfeitas pelas quais o réu pode justificarse e não o faça suficientemente se tomem perfeitas mas esta certeza moral de provas é mais fácil de ser sentida do que exatamente definida Por isso julgo ótima a lei que indica assessores para o juiz principal por sorteio e não por escolha pois neste caso é mais segura a ignorância que julga pelo sentimento do que a ciência que julga pela opinião Onde as leis são claras e precisas o ofício do juiz não é senão o de averiguar o fato Se na busca das provas do delito se exigir habilidade e destreza se na apresentação do resultado forem necessárias clareza e precisão para julgar essa conclusão nada mais se exigirá do que mero e comum bom senso menos enganoso do que o saber de um juiz habituado a pretender encontrar réus e que reduz tudo a mero sistema teórico extraído de seus estudos Feliz a nação cujas leis não são ciência É muito útil a lei que faz cada homem ser julgado por seus iguais pois quando se trata da liberdade e do destino do cidadão devem silenciar os sentimentos inspirados pela desigualdade A superioridade com que o homem de sorte olha para o infeliz o pouco caso com que o inferior olha para o superior não podem influir nesse juízo Quando porém o delito constituir ofensa a terceiro então os juízes deverão ser a metade pares do réu e a outra metade pares do ofendido Estando assim equilibrado todo interesse particular que modifica também involuntariamente as aparências dos objetos só prevalecem as leis e a verdade É então conforme à justiça que o réu possa excluir até certo ponto os que lhe são suspeitos e se isso lhe for concedido sem problema por algum 58 DOS DELITOS E DAS PENAS tepo pecerá que o réu se condenará a si próprio Públicos sejam os Julamentos e públicas sejam as provas do crime para que a opImao que é talvez o único cimento da sociedade imponha freio à força e às paixões para que o povo diga nã somos escravos e somos defendidos sentimento que inspira coragem e qe euivale a um tributo ao soberano que conhece seus verdaders mteresses Não acenarei a outros pormenores e cautelas eXIgIdos por instituições semelhantes Nada teria dito se tivesse sido necessário dizer tudo xv ACUSAÇÕES SECRETAS E M MUITAS nações pela fraqueza da organização acusações secretas mas consagradas e necessárias provocam de sordens costume esse que toma os homens falsos e dissimulados Quem achar que outrem é delator nele terá um inimigo Os homens costumam então mascarar os sentimentos e tendo o hábito de ocultálos dos outros acabam finalmente por ocultá los de si mesmos Infelizes os homens que chegaram a tal extremo Sem princípios claros e estáveis que os orientem vagam aqui e ali desgarrados e flutuantes no vasto oceano das opiniões sempre preocupados em salvarse dos monstros que os ameaçam passando o momento presente amargurados sempre pela incerteza do futuro Privados dos prazeres duradouros da tranqüilidade e da segurança só alguns deles espalhados aqui e ali ao longo de sua melancólica existência devorados pela pressa e pela desordem consolamnos de haver vivido É desses homens que faremos os corajosos soldados defensores da pátria ou do trono Encontraremos entre eles incorruptos magistrados que com livre e patriótica eloqüência sustentem e desenvolvam os verdadeiros interesses do soberano que levam ao trono com os tributos o amor e as bênçãos de homens de todos os níveis e do trono trazendo de volta aos palácios e às cabanas a paz a segurança e a industriosa esperança de melhorar a sorte útil fermento e vida dos Estados 60 DOS DELITOS E DAS PENAS Que poderá defenderse da calúnia quando esta se protege com o mIs forte escudo da tirania o segredo Que espécie de govo e esse em que o regente pretende ver em cada súdito m mImIgo e para assegurar o sossego público é obrigado a tIrar o sossego de cada um Que motivos justificariam as acusações e as penas secretas A salvação pública a segurança e a manutenção da forma d governo Que eranh organização é essa onde quem detém a fora e a pImao amda mais eficaz que a força teme cada Idada A mcolumidade do acusador As leis assim são msufictente pa eendêIo E haverá súditos mais fortes que o soberano A mfamIa do delator Autorizase pois a calúnia secrea e pnese a calúnia pública A natureza do delito Se as çoes mdIferentes ainda que úteis ao público forem chamadas delItos as acusações e os julgamentos nunca serão suficiente mente secretos Pode haver delitos isto é ofensas públicas mas a esmo tempo pode não ser do interesse de todos tomar publIco o exmplo isto é o julgamento Respeito todos os gvernos e nao falo de nenhum em particular A natureza das cIrcunstâncias é tal às vezes que se pode julgar como a pior das ruínas erradicar um mal que na verdade é inerente ao sItema de uma nação mas se eu tivesse que publicar novas leIs em algum recanto abandonado do universo antes de autorizar ese costume minha mão tremeria e eu veria toda a posteridade dIante dos meus olhos Já o disse o senhor de Montesquieu que as acusações pubhas sao mIs cofoes à república onde o bem público devena contItUIr a pnmeIra paixão dos cidadãos antes mesmo da monarqUIa onde esse sentimento é fraquíssimo pela própria natuez do governo e onde é ótimo o procedimento de nomear cmIssanos que em nome de todos acusem os infratores das leIs Enretanto todo governo não só republicano como monarqUIco deve aplicar ao caluniador a pena que tocaria ao acusado XVI DA TORTURA C RUELDADE consagrada pelo uso na maioria das nações é a tortura do réu durante a instrução do processo ou para forçálo a confessar o delito ou por haver caído em contradição ou para descobrir os cúmplices ou por qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia ou finalmen te por outros delitos de que poderia ser réu mas dos quais não é acusado Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada Qual é pois o direito senão o da força que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão enquanto existe dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência Não é novo este dilema ou o delito é certo ou incerto Se é certo não lhe convém outra pena se não a estabelecida pelas leis e inúteis são os tormentos pois é inútil a confissão do réu Se é incerto não se deveria atormentar o inocente pois é inocente segundo a lei o homem cujos delitos não são provados E acrescento mais é querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado que a dor se tome o cadinho da verdade como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz Este é o meio seguro de absolver os robustos criminosos e de condenar os 62 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 63 fracos inocentes Eis os fatais inconvenientes desse pretenso critério da verdade mas critério digno de um canibal que os romanos bárbaros por mais de um título reservaram apenas aos escravos vítimas de tão feroz quanto muito louvada virtude Qual a finalidade política da pena O medo dos outros homens Que juízo deveremos fazer então das carnificinas secretas e privadas que o uso tirânico outorga tanto ao culpado quanto ao Inocente E importante que nenhum crime comprovado permaneça impune mas é inútil investigar a autoria do crime sepulto nas trevas Mal já consumado e para o qual não há remédio só pode ser punido pela sociedade política para influir ns outros com a ilusão da impunidade Se é verdade que o numero dos homens que por medo ou virtude respeitam as leis é superior ao número dos que a infringem o risco de atormentar um inocente deve ser tanto mais bem avaliado quanto maior é a probabilidade de que um homem em condições iguais as tenha mais respeitado que desprezado utro motivo ridículo da tortura é o da purgação da infâmia ISto e que um homem julgado infame pelas leis deva confirmar seu depoimento com a tritura de seus ossos Esse abuso não deveria ser tolerado no século XVIII Acreditase que a dor que é sensação purgue a infâmia que é mera relação moral Será a dor realmente um cadinho Será a infâmia um corpo misto impuro Não é difícil remontar às origens dessas leis ridículas PAois os próprios absurdos adotados por uma nação inteira sempre tem alguma relação com outras idéias comuns e respeitadas pela própria nação Parece esse uso derivar das idéias religiosas e espirituais que tanta influência exeiéêm sobre os pensamentos dos homens sobre as nações e sobre os séculos Dogma infalível asseguranos que as nódoas contraídas pela fraqueza humana e que não merecem a ira eterna do Ser Supremo serão purgadas por um incompreensível fogo Se a infâmia é nódoa civil e se a dor e o fogo apagam as nódoas espirituais e incorpóreas por que os espasmos da tortura não apagariam a mácula civil da infâmia Creio que a confissão do réu que alguns tribunais exigem como algo essencial à condenação tenha origem seme lhante pois no misterioso tribunal da penitência a confissão do pecado é parte essencial do sacramento Eis de que forma os homens abusam das luzes mais seguras da Revelação e como estes são os únicos que subsistem em tempos de ignorância a eles recorre a dócil humanidade em todas as ocasiões servindo se das aplicações as mais absurdas e remotas A infâmia entretanto é sentimento que não está sujeito nem às leis nem à razão mas à opinião comum A própria tortura ocasiona real infâmia em suas vítimas Assim sendo com esse método se substituirá a infâmia pela infâmia O terceiro motivo é a tortura aplicada aos supostos réus quando caem em contradição durante o interrogatório como se o temor da pena a incerteza do julgamento o aparato e a majestade do juiz a ignorância comum a quase todos criminosos e inocentes não fizessem provavelmente cair em contradição tanto o inocente temeroso como o culpado que procura acobertar se como se as contradições comuns aos homens quando estão tranqüilos não se multiplicassem na perturbação do espírito todo absorvido na preocupação de salvarse do perigo iminente Esse infame cadinho da verdade é monumento da legislação antiga e selvagem que ainda hoje subsiste quando as provas do fogo e da água fervente e o incerto destino das armas eram chamados juízos de Deus ou ordálios como se elos da eterna corrente que está no âmago da Causa Primeira devessem a todo instante ser desordenados e desconectados ao sabor da frívola determinação humana A única diferença entre tortura e provas do fogo e da água fervente é que o êxito da primeira depende em parte da vontade do réu e o das últimas de fato meramente físico e extrínseco Todavia essa diferença é só aparente não real Tão pouca é a liberdade de dizer a verdade entre os espasmos e as dilacerações quanto o era então impedir sem fraude os efeitos do fogo e da água fervente Todo ato da nossa vontade é sempre proporcional à força da impressão sensível de onde se origina E a sensibilidade do homem é limitada Assim a impressão da dor pode crescer a tal ponto que ocupando a sensibilidade inteira do torturado não lhe deixa outra liberdade senão a de escolher o caminho mais curto momentaneamente para se subtrair à pena Então a resposta do réu é tão necessária 64 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 65 quanto o seriam as impressões do fogo e da água O inocente sensível declararseá culpado quando achar que assim fará cessar o tormento A diferença entre eles é anulada pelo próprio meio que se pretende utilizar para encontrálo É supérfluo para melhor esclarecer citar inúmeros exemplos de inocentes que confessaram a culpa diante dos espasmos da tortura Não há nação nem época que não os enumere mas nem os homens mudam nem tiram proveito disso Não há homem qlle tenha levado idéias além das necessidades da vida e que às veus não corra para a natureza que o atrai com vozes secretas e confusas mas o hábito esse tirano da mente o repele e o assusta O resultado pois da tortura é questão de temperamento e de cálculo que varia em cada homem de acordo com sua robustez e sua sensibilidade de tal forma que com esse método um matemático resolveria esse problema mais facilmente do que o faria um juiz já que a força dos músculos e a sensibilidade das fibras de um inocente medirão o grau de dor que o fará confesséU a culpa de um delito O interrogatório do réu é feito para conhecer a verdade mas se esta verdade dificilmente se revela pela atitude pelo gesto pela fisionomia de um homem mmqüilo muito menOS apareceria no homem no qual as convulsões da dor alteram todos os sinais através dos quais a maioria dos homens deixa algumas vezes contra a vontade transparecer a verdade Toda ação violenta confunde e suprime as mínimas diferenças dos objetos por meio dos quais se distingue o verdadeiro do falso Essas verdades já eram conhecidas pelos legisladores ro manos entre os quais não era tolerado nenhum tipo de tortura a não ser para os escravos aos quais era negada toda perso nalidade A tortura foi adotada pela Inglaterra nação onde a glória das letras a superioridade do comércio e das riquezas e portanto do poderio e os exemplos de virtude e de coragem não nos deixam duvidar da bondade das leis A tortura desapareceu da Suécia abolida por um dos monarcas mais sábios da Europa 19 19 Frederico II o Grande 17121786 foi rei da Prússia de 1740 a 1786 o qual tendo levado a ftlosofia ao trono e sendo legislador amigo dos súditos os tomou iguais e livres na dependência das leis única igualdade e única liberdade que possam homens razoáveis exigir das coisas A tortura não é julgada necessária pelas leis dos exércitos formados na maior parte pela ralé das nações que por isso pareceriam dela precisar mais do que qualquer outra classe Estranha coisa para aquele que não considere quão grande é a tirania do uso que as pacíficas leis devem aprender dos corações endurecidos pelas carnificinas e pelo sangue o mais humano método de julgar Essa verdade é certo sentida por fim embora confusamen te por aqueles mesmos que dela se afastam Não tem validade a confissão feita sob tortura se não for confirmada por julga mento após a cessação do suplício mas se o réu não confirma o delito é de novo torturado Alguns doutores e algumas nações não permitem essa infame petição de princípio senão por três vezes Outras nações e outros estudiosos entregamna ao arbítrio do juiz de modo que de dois homens igualmente inocentes ou igualmente réus o forte e o corajoso será absolvido o fraco e o tímido será condenado em virtude deste exato raciocínio Eu juiz deveria julgarvos culpados de tal delito tu que és forte soubeste resistir à dor e por isso te absolvo tu que és fraco cedeste a ela e por isso te condeno Sinto que a confissão arrancada entre suplícios não teria força nenhuma mas nova mente sereis torturado se não confirmardes a vossa confissão Estranha conseqüência que necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente é posto em pior condição que o culpado Realmente se ambos são submetidos ao suplício o primeiro tem tudo contra si uma vez que ou confessa o delito e é condenado ou é declarado inocente mas sofreu pena indevida ao passo que um caso é favorável ao culpado quando resistindo à tortura com firmeza deverá ser absolvido como inocente trocando a pena maior pela menor O inocente portanto só tem a perder e o culpado só a ganhar A lei que ordena a tortura é a lei que diz Homens suportai a dor e se a natureza criou em vós inextinguível amor próprio 66 DOS DELITOS E DAS PENAS se ela vos deu o direito inalienável de vos defenderdes desperto em vós o sentimento contrário o heróico ódio de vós mesmos e ordeno que sejais vossos próprios acusadores e que digais a verdade embora vos estraçalhem os músculos e vos quebrem os ossos A tortura aplicase para descobrir se o réu cometeu outros delitos além daqueles de que é acusado o que equivale ao seguinte raciocínio Tu és culpado deste delito é pois possível que o sejas de cem outros delitos esta dúvida me oprime e quero certificarme com meu próprio critério da verdade as leis torturamte porque és culpado porque podes ser culpado porque quero que sejas culpado Finalmente a tortura é aplicada ao acusado para que se descubram os cúmplices do seu crime mas se foi demonstrado que ela não é meio adequado para descobrir a verdade como poderá servir para revelar os cúmplices sendo esta uma das verdades a serem descobertas Como se o homem que se acusasse a si mesmo não iria acusar os outros mais facilmente Será certo torturar um homem pelo crime alheio Não serão descobertos os cúmplices interrogando as testemunhas e o réu por meio das provas e pelo corpo de delito em suma por aqueles mesmos meios utilizados para comprovar o delito do acusado Os cúmplices geralmente fogem imediatamente após a prisão do companheiro A incerteza de seu destino os condena por si ao exílio e livra a nação do perigo de novos crimes enquanto a pena do réu que está preso alcança seu fim único ou seja afastar pelo terror outros homens de delito semelhante XVII DO FISCO H OUVE época em que quase todas as penas eram pecuniárias Os delitos dos homens eram o patrimônio do príncipe Os atentados contra a segurança pública eram objeto de luxo Quem devia defendêla tinha interesse em vêla lesada O objeto da pena era pois o litígio entre o fisco o cobrador dessas penas e o réu Tratavase de negócio civil contencioso mais privado do que público que dava ao fisco direitos outros dos conferidos pela defesa pública e ao réu outras culpas além daquelas em que havia incorrido pela necessidade do exemplo O juiz era então advogado do fisco mais do que imparcial investigador da verdade agente do erário fiscal mais que protetor e ministro das leis Como porém nesse sistema confessarse culpado era confessarse devedor do fisco finalidade dos procedimentos criminosos de então assim a confissão do delito confissão elaborada de tal modo a favorecer e a não prejudicar os motivos fiscais tomouse e ainda é perdurando os efeitos muitíssimo tempo após as causas o centro em tomo do qual giram todos os mecanismos criminais Sem ela um réu condenado por provas irrefutáveis sofrerá pena menor que a prevista sem ela não sofrerá a tortura por delitos da mesma espécie que possa ter cometido Com ela o juiz apoderarseá do corpo do réu e o torturará com as metódicas formalidades de praxe para extrair lhe como de um terreno adquirido todo o proveito possível 68 DOS DELITOS E DAS PENAS Provada a existência do delito a confissão constitui prova convincente e para tomar menos suspeita essa prova arrancada com os tormentos e o desespero da dor determinase ao mesmo tempo que uma confissão extrajudicial tranqüila indiferente sem os prepotentes temores de um tormentoso julgamento não basta para a condenação Excluemse as investigações e as provas que esclarecem o fato mas enfraquecem as razões do fisco Não é em favor da desgraça nem da fraqueza que se poupam às vezes os tormentos aos réus mas em consideração das vantagens que poderia perder o fisco esse ente hoje imaginário e inconcebível O juiz tomase inimigo do réu desse homem acorrentado minado pela miséria e pela desolação diante do mais negro porvir não busca a verdade do fato mas busca no prisioneiro o delito preparalhe armadilhas considerandose perdedor se não consegue apanhálo e crê estar falhando naquela infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas Os indícios para a prisão estão em poder do juiz para que alguém prove ser inocente deve ser antes declarado culpado chamase a isso processo ofensivo e são esses por quase toda parte da esclarecida Europa do século dezoito os procedimentos criminais O ver dadeiro processo o informativo isto é a investigação objetiva do fato aquele que a razão ordena que as leis militares adotam usado até pelo próprio despotismo luxuriante20 nos processos tranqüilos e indiferentes pouquíssimo utilizado nos tribunais europeus Que complicado labirinto de estranhos absurdos incríveis sem dúvida para uma mais feliz posteridade Somente os filósofos desse tempo futuro lerão na natureza do homem a possível verificação de um tal sistema 20 No texto está asiático XVIII DOS JURAMENTOS C ONTRADIÇÃO entre as leis e os sentimentos naturais do homem nasce dos juramentos que se exigem do réu para que seja um verdadeiro homem quando tem o máximo interesse em ser falso Como se o homem pudesse jurar since ramente quando contribui para a própria destruição Como se a religião não calasse na maioria dos homens quando fala o interesse A experiência de todos os séculos demonstrou que eíes abusaram acima de tudo deste precioso dom do céu E por que razão deveriam os criminosos respeitálo se os homens conside rados como os mais sábios freqüentemente o violaram Muito fracos por serem remotos aos sentidos são em sua maioria os motivos que a religião contrapõe ao tumulto do medo e ao amor à vida As questões do céu são regidas por leis totalmente diversas das que regem os negócios humanos E por que razão comprometer umas com as outras Por que motivo colocar o homem na terrível contradição de falhar em relação a Deus ou de concorrer para a própria ruína A lei que obriga a tal juramento ordena que o homem seja mau cristão ou mártir O juramento tomase pouco a pouco mera formalidade destruindo assim a força dos sentimentos religiosos único penhor da honestidade da maior parte dos homens Quanto são inúteis os juramentos a experiência já o demonstrou e qualquer juiz poderá ser testemunha que juramento algum jamais fez o réu dizer a 70 DOS DELITOS E DAS PENAS verdade A própria razão demonstra isso quando declara inúteis e conseqüentemente danosas todas as leis que se opõem aos naturais sentimentos do homem Acontece a essas leis o mesmo que acontece com as barreiras erguidas diretamente no curso de um rio as quais ou são imediatamente rompidas e arrastadas ou um turbilhão por elas mesmas criadas as corrói e as mina insensivelmente XIX RAPIDEZ DA PENA Q UANTO mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido tanto mais será ela justa e tanto mais útil Digo mais justa porque poupa ao réu os tormentos cruéis e inúteis da incerteza que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria fraqueza mais justa porque a privação da liberdade sendo uma pena só ela poderá preceder a sentença quandQ a necessidade o exigirIO cárcere é assim a simples guarda de um cidadão até que ele seja considerado culpado e sendo essa guarda essencialmente penosa deverá durar o menor tempo possível e ser a menos dura que se possa Esse menor tempo deve ser medido pela necessária duração do processo e pelo direito de anterioridade do réu ao julgamento O tempo de recolhimento ao cárcere só pode ser o estritamente indispensável quer para impedir a fuga quer para que não sejam escondidas as provas do delito O próprio processo deve ser concluído no mais breve espaço de tempo possível Que contraste mais cruel existe do que a inércia de um juiz diante das angústias de um réu O conforto e os prazeres do magistrado insensível de um lado e de outro lado as lágrimas a desolação do preso Em geral o peso da pena e a conseqüência do delito devem ser mais eficazes para os outros e menos pesados para quem os sofre pois não se pode chamar legítima sociedade àquela em 72 DOS DELITOS E DAS PENAS que não vigore o princípio infalível segundo o qual os homens são voluntariamente sujeitos aos menores males possíveis Disse que a prontidão da pena é mais útil porque quanto mais curta é a distância do tempo que se passa entre o delito e a pena tanto mais forte e mais durável é no espírito humano a associação dessas duas idéias delito e pena de tal modo que insensivelmente se considera uma como causa e a outra como conseqüência necessária e fatal Está provado que a união das idéias é o cimento que sustenta toda a fábrica do intelecto humano sem a qual o prazer e a dor seriam sentimentos isolados e sem efeito algum Quanto mais os homens se afastam das idéias gerais e dos princípios universais isto é quanto mais eles são vulgares tanto mais agem em função das associações imediatas e mais próximas descuidandose das mais remotas e complica das Estas servem apenas aos homens muito apaixonados pelo objeto que os atrai pois a luz da atenção ilumina um só objeto deixando os outros na escuridão Servem também para as mentes mais elevadas que adquiriram o hábito de examinar rapidamente muitos objetos de uma só vez e têm a habilidade de contrapor uns aos outros muitos sentimentos parciais de tal modo que o resultado que é a ação é menos perigoso e incerto Da mais alta importância pois é a proximidade entre o delito e a pena se se quiser que nas rudes e incultas mentes o sedutor quadro de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da idéia associada à pena A longa demora só produz o efeito de dissociar cada vez mais essas duas idéias e também de causar uma impressão de que o castigo de um delito seja menos a de um castigo que a de um espetáculo e isso só acontecerá após ter se enfraquecido nos espectadores o horror de um certo delito em particular que serviria para reforçar o sentimento da pena Outro princípio serve admiravelmente para restringir sempre mais a importante conexão entre a infração e a pena a saber que esta seja o mais possível adequada à natureza do delito Tal analogia facilita admiravelmente o contraste que deve haver entre o impulso para o delito e a repercussão da pena de tal modo que esta afaste e conduza o ânimo a um fim oposto àquele para o qual procura encaminhálo a sedutora idéia da infração da lei XX VIOLÊNCIAS A LGUNS delitos são tenados contra pesoa outros contra os bens Os pnmeuos devem mfahvelmente ser pu nidos com penas corporais Nem o poderoso nem o rico deverão pôr a prêmio os atentados contra o fraco o obre Ie outra forma as riquezas que sob a tutela das leIS sao o prermo da habilidade tornarseiam o alimento da tirania Não averá liberdade sempre que as leis permitirem que em ceras clrcus tâncias o homem deixe de ser pessoa e se tome COlsa VereIs então poderoso concentrar toda sua habilidade ar etrair da multiplicidade das combinações civis as que a leI dlspoe a seu favor Tal descoberta é o segredo mágico que transforma os cidadãos em bestas de carga que nas mãos do forte é a corrente que inibe as ações dos incautos e dos fraos Por ese motivo em alguns governos que têm toda a aparencla de hberdade a tirania escondese ou infiltrase despercebida em algum ângulo descuidado pelo legislador ali tomando fora e crescnd Os homens erguem na maioria dos casos barreIras as maiS sohdas à tirania declarada mas não enxergam o inseto imperceptível que os devora e abrem ao rio inundador caminho tanto mais seguro quanto mais oculto PENAS APLICADAS AOS NOBRES 75 XXI PENAS APLICADAS AOS NOBRES QUAIS serão então as pelll1S aplicáveis aos delitos dos nobres cujos privilégios formam grande parte das leis das nações Não examinarei aqui se tal distinção hereditária entre nobres e plebeus é útil ao governo ou necessária à monarquia Se é verdade que forme poder intermediário que limite os excessos dos dois extremos ou se antes ela forma uma classe escrava de si mesma e de outrem que como aquelas fecundas e amenas ilhotas que se destacam nos arenosos e vastos desertos da Arábia limitaria toda circulação de crédito e de esperança a um círculo estreitíssimo E mesmo admitindose que a desigualdade fosse inevitável ou útil às sociedades também é certo que ela deve consistir mais nas castas do que nos indivíduos deve fecharse antes numa única parte do que circular por todo o corpo político e antes perpetuarse do que nascer e destruirse incessantemente Restringirmeei às únicas penas aplicáveis a esta classe aftrmando que elas devem ser as mesmas para o primeiro e para o último dos cidadãos Toda distinção nas honrarias ou nas riquezas para ser legítima supõe uma anterior igualdade fundada nas leis que consideram todos os súditos igualmente dependentes delas Devemos admitir que os homens que renunciaram ao despotismo natural tenham dito que o mais engenhoso tenha maiores honras e que sua fama resplandeça em seus sucessores e quem é mais feliz ou mais honrado tenha maiores aspirações mas não tema menos que os outros violar os acordos com os quais se elevou acima dos outros É verdade que tais decretos não emanaram de assembléias do gênero humano mas existem nas relações imutáveis das coisas e sem destruir aquelas vantagens que se supõem produ zidas pela nobreza impedindolhes os inconvenientes tomando as leis poderosas e fechando toda estrada à impunidade A quem disser que a pena aplicada ao nobre e ao plebeu não é realmente a mesma em virtude da diversidade da educação e da infâmia que se esparge sobre uma ilustre farmlia responderei que a sensibilidade do réu não é a medida das penas mais sim o dano público tanto maior quanto é produzido pelo mais faoreido e que a igualdade das penas só pode ser extnnseca dlfenndo realmente de pessoa a pessoa em cada indivíduo e a infâmia de uma família inocente pode ser apagada pelo soberano com demonstrações públicas de benevolência E quem não sabe que sensíveis formalidades servem de razão ao povo crédulo e admirador FURTOS 77 XXII FURTOS F URros destituídos de violência deveriam ser punidos com pena pecuniária Quem procura enriquecer à custa alheia deve ser privado dos próprios bens mas como habitual mente esse é o delito da miséria e do desespero o delito daquela parte infeliz de homens a quem o direito de propriedade direito terrível e talvez desnecessário não deixou senão uma existência de privações mas como as penas pecuniárias aumentam o número dos réus mais do que o número dos delitos pois que ao tirar o pão dos criminosos acabam tirandoo dos inocentes a pena mais oportuna será então a única forma de escravidão que se pode chamar justa ou seja a escravidão temporária dos trabalhos e da pessoa a serviço da sociedade comum para ressarcila com a própria e total dependência do injusto despotismo exercido sobre o pacto social Se porém o delito for seguido de violência a pena deve ser igualmente um misto de pena corporal e servil Outros escritores demonstraram antes de mim a evidente desordem que nasce da não distinção das penas dos furtos violentos das dos furtos dolosos fazendo absurda equação entre uma alta soma em dinheiro e a vida de um homem mas nunca é supérfluo repetir aquilo que quase nunca foi posto em prática As máquinas políticas conservam mais do que quaisquer outras o ritmo que lhes foi impresso e são mais lentas em adquirir outro Esses delitos são de diferente natuea sendo incontestável mesmo em política o axioma da matematlca pelo qual entre quantidades heterogêneas existe o infinito que as separa INFÂMIA 79 XXIll INFÂMIA I NJÚRIAS pessoais e contrárias à hoora isto é à certa porção de aprovação que o cidadão tem o direito de exigir dos outros devem ser punidas com a infâmia Infâmia é o sinal da pública desaprovação que priva o réu do aplauso coletivo da confiança da pátria e daquela quase fraternidade que a sociedade inspira Ela não está ao arbítrio da lei É preciso pois que a infâmia da lei seja a mesma que nasce das relações entre as coisas a mesma da moral universal ou da moral particular dependente dos sistemas particulares legisladores das opiniões vulgares e da nação que a inspira Se elas diferem umas das outras ou a lei perde a veneração pública ou as idéias da moral e da probidade se esvaem em que pesem os protestos que não resistem aos exemplos Quem declara infames as ações por si só indiferentes diminui a infâmia das ações que são verdadei ramente tais As penas de infâmia não devem ser nem muito freqüentes nem incidir sobre grande número de pessoas simul taneamente No primeiro caso os efeitos reais e por demais freqüentes das coisas de opinião enfraquecem a força da própria opinião no segundo caso porque a infâmia de muitos acaba reduzindose à infâmia de nenhum As penas corporais e aflitivas não devem ser aplicadas aos delitos que fundados no orgulho retiram da própria dor glória e alimento A tais delitos convém o ridículo e a infâmia penas que freiam o orgulho dos fanáticos com o orgulho dos espec tadores e de cuja tenacidade a própria verdade só se liberta com lentos e obstinados esforços Assim opondo forças a forças e opiniões a opiniões o sábio legislador anula a admiração e a surpresa despertadas no povo por um falso princípio cuja absurda origem por suas bem deduzidas conseqüências costuma ser escondida do povo Eis o modo de não confundir as relações e a natureza invariável das coisas a qual não sendo limitada no tempo e operando incessantemente confunde e destrói todos os limitados regulamentos que dela se afastam Não apenas as artes do gosto e do prazer têm por princípio universal a imitação fiel da natureza mas a própria política ao menos a verdadeira e a durável está sujeita a essa máxima geral pois ela nada mais é do que a arte de melhor dirigir e de tomar cooperadores os sentimentos imutáveis dos homens OS OCIOSOS 81 XXIV OS OCIOSOS QUEM PERTURBA a tranqüilidade pública quem não obedece às leis isto é às condições pelas quais os homens se toleram e se defendem reciprocamente deve ser excluído da sociedade ou seja deve ser banido Esta é a razão pela qual os sábios governos não admitem no seio do trabalho e das atividades esse tipo de ócio político que austeros denun ciantes confundiram com o ócio das riquezas acumuladas pela atividade ócio necessário e útil à medida que a sociedade se expande e a administração se retrai Denomino de ócio político aquele que não contribui para a sociedade nem com o trabalho nem com a riqueza e ganha sem jamais perder ócio venerado pelo povo com estúpida admiração e é considerado pelo sábio com desdenhosa compaixão de suas vítimas Ocioso é aquele que sem o estímulo da vida ativa que é a necessidade de conservar ou de aumentar os confortos da vida transfere às paixões de opinião que não são as menos fortes toda sua energia Não é politicamente ocioso quem goza dos frutos dos vícios ou das virtudes dos antepassados e que em troca de prazeres atuais garante pão e existência à pobreza trabalhadora a qual trava em época de paz tácita guerra velada da atividade com a opulência em vez de incerta e sanguinolenta guerra com a força Não a austera e limitada virtude de alguns censores mas só as leis devem definir qual será o ócio que deve ser punido Parece que o banimento deveria ser aplicado àqueles que acusados de atroz delito tenham com grande probabilidade mas não certeza de ser julgados culpados Para isso porém seria necessário um estatuto o menos arbitrário e o mais precioso possível o qual condenasse ao banimento quem tivesse colocado a nação diante da fatal alternativa de temêlo ou de ofendêlo deixandolhe entretanto o sagrado direito de provarlhe a inocência Maiores deveriam ser os motivos contra o nacional do que contra o estrangeiro contra o acusado pela primeira vez do que contra quem o foi mais vezes BANIMENTO E CONFISCO 83 xxv BANIMENTO E CONFISCO DEVERÁ porém aquele qoe é banido e excluído para sempre da sociedade da qual era membro ser privado dos bens Esta questão é suscetível de diversos aspectos A perda dos bens é pena maior que a do banimento Deve pois haver casos em que proporcionalmente ao delito haja a perda de todos ou de parte dos bens e outros casos em que não A perda total ocorrerá quando o banimento previsto em lei determinar o rompimento de todos os laços entre a sociedade e o cidadão delinqüente Morre então o cidadão e permanece o homem o que com respeito ao corpo político deverá produzir o mesmo efeito do que a morte natural Dirseia pois que os bens confiscados ao réu deveriam reverter de preferência para os legítimos sucessores mais do que para o príncipe pois a morte e o banimento são o mesmo relativamente ao corpo político Não é esse porém o pormenor que me leva a censurar o confisco dos bens Se alguns já sustentaram que Q confisco era o freio às vinganças e às prepotências privadas não perceberam que embora as penas produzam um bem nem sempre são justas pois para serem justas precisariam ser necessárias e uma injustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que preten desse fechar todas as portas à vigilante tirania a qual seduz com um bem do momento e com a felicidade de alguns notáveis desprezando o extermínio futuro e as lágrimas de muita gente obscura O confisco coloca a prêmio a cabeça dos fracos e faz recair sobre o inocente a pena do culpado deixandoo na desesperada necessidade de cometer delitos Que espetáculo mais triste do que o da família arrastada à infâmia e à miséria pelos crimes do chefe cujos atas por causa da submissão imposta pelas leis ela não poderia impedir mesmo que dispusesse dos meios de fazêlo DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA 85 XXVI DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA E STAS funestas e autorizadas injustiças foram aprovadas mesmo pelos homens mais esclarecidos e praticadas pelas repúblicas mais livres por terem considerado a sociedade mais como união de famílias do que como união de homens Imaginemos cem mil pessoas isto é vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma incluindo o chefe que a representa Se a associação for de famílias haverá vinte mil pessoas livres e oitenta mil escravos Se a associação for de pessoas haverá cem mil cidadãos e nenhum escravo No primeiro caso haverá uma república e vinte mil pequenas monarquias que a compõem e no segundo caso o espírito republicano não soprará apenas nas praças ou nas assembléias das nações mas também entre as paredes domésticas onde reside grande parte da felicidade ou da miséria dos homens No primeiro caso como as leis e costumes são o efeito dos sentimentos habituais dos membros da república ou seja dos chefes de família o espírito monárquico introduzírseá paulatinamente na própria república e seus efeitos só serão evitados pelos interesses opostos de cada um mas não pelo sopro do sentimento de liberdade e igualdade O espírito de família é um espírito de detalhes circunscrito a pequenos fatos O espírito regulador das repúblicas senhor dos princípios gerais vê os erros e os condensa nas classes principais e importantes para o bem da maior parte Na república de famílias OS filhos permanecem sob o pátrio poder do chefe enquanto este vive e são obrigados a esperarlhe a morte para ter existência que dependa somente das leis Acostumados a submeterse e a temer na idade mais verde e vigorosa quando os sentimentos são menos modificados por aquele temor de esperança deno minado moderação como resistirão eles aos obstáculos que o vício sempre opõe à virtude na lânguida e cadente idade na qual também a desesperança de verlhes os frutos se opõe a vigorosas mudanças Quando a república é de homens a família não é subor dinação de comando mas de contrato e os filhos quando a idade os liberta da dependência natural que é a da fraqueza e da necessidade de educação e de proteção se tomam livres membros da cidade sujeitandose ao chefe da farmlia na medida em que participam das mesmas vantagens como os homens livres na grande sociedade No primeiro caso os filhos ou seja a parte maior e a mais útil da nação são entregues à discrição dos pais No segundo caso não subsiste nenhum outro laço obrigatório a não ser o sagrado e inviolável dever de prestar reciprocamente a assistência recíproca e da gratidão pelos benefícios recebidos o que não é tão destruído pela malícia do coração quanto pela mal compreendida sujeição imposta pelas leis Essas contradições entre as leis de família e as leis fundamentais da república são fecunda fonte de outras contra dições entre a moral privada e a moral pública e por isso geram perpétuo conflito no coração dos homens A primeira inspira sujeição e temor a segunda coragem e liberdade A primeira ensina a limitar a benevolência a pequeno número de pessoas que não foram escolhidas a segunda a estendêla a toda classe de homens mas esta ordena o contínuo sacrifício de si a um ídolo vão chamado bem de família que muitas vezes não é bem de nenhum dos que a compõem Esta ensina a servir o próprio interesse sem lesar as leis ou estimula a imolarse pela pátria com o prêmio do fanatismo que precede a ação Tais contrastes levam os homens a desdenhar o caminho da virtude considerandoo emaranhado e confuso porque nasce da obscu 86 DOS DELITOS E DAS PENAS ridade dos objetos tanto físicos quanto morais Quantas vezes o homem voltandose para ações passadas não se terá surpre endido com a própria desonestidade À medida que a sociedade cresce cada um dos seus membros se torna parte menor do todo e o sentimento republicano diminui na mesma proporção se as leis não tratarem de reforçálo As sociedades como o corpo humano têm limites circunscritos e crescendo elas para além desses limites a economia perturbase necessariamente Parece que a massa de um Estado deve estar na razão inversa da sensibilidade de quem o compõe pois do contrário crescendo uma e outra as boas leis ao prevenirem os delitos encontrariam um obstáculo no próprio bem que produziram Urna república muito vasta somente se salva do despotismo subdividindose e unindose em diversas repúblicas federativas Mas como fazê lo Com um ditador despótico que tenha a coragem de um Sila 21 e tanto gênio para edificar quanto Sila teve para destruir Se tal homem for ambicioso a glória de todos os séculos o esperará se for filósofo as bênçãos de seus cidadãos o consolarão da perda de autoridade a menos que ele se torne indiferente a essa ingratidão À medida que os sentimentos que nos unem à nação se enfraquecem adquirem força os sentimentos para com os objetos circunstantes Por isso é sob o despotismo mais forte que as amizades são mais duráveis e as virtudes de famílias sempre medíocres se tornam mais comuns senão as únicas Disto pode cada um ver quão limitadas são as vistas da maior parte dos legisladores I Ditador romano nascido em 136 ac Companheiro e depois êmulo de Mário cônsul em 88 vencedor de Mitridates chefe do partido aristocrático e depois tirano de Roma e de toda Itália Exilou os adversários reformou a Constituição Romana favoreceu o Senado e adquiriu enorme influência Renuncia inesperadamente morrendo no ano seguinte 80 aC XXVII BRANDURA DAS PENAS o CURSO porém das minhas idéias desvioume do tema que devo agora apressar a esclarecer Um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas mas sua infalibilidade e como conseqüência a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável que para ser uma virtude útil deve ser acompanhada de uma legislação branda A certeza de um castigo mesmo moderado sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo unido à esperança da impunidade pois os males mesmo os menores quando certos sempre surpreendem os espíritos humanos en quanto a esperança dom celestial que freqüentemente tudo supre em nós afasta a idéia de males piores principalmente quando a itnpunidade outorgada muitas vezes pela avareza e pela fraqueza fortalecelhe a força A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitála com audácia tanto maior quanto maior é o mal e leva a cometer mais delitos para escapar à pena de um só Os países e as épocas em que os suplícios mais atrozes foram sempre os das ações mais sanguinárias e desumanas pois o mesmo espírito de crueldade que guiava a mão do legislador regia a do parricida e a do sicário Do trono ditava leis férreas a ânimos torturados de escravos que obedeciam Na íntima escuridão estimulava a imolação para criar outros novos 88 DOS DELITOS E DAS PENAS BRANDURA DAS PENAS 89 À medida que as torturas se tomam mais cruéis o espírito humano que como os fluidos se nivela sempre com os objetos circunstantes endurecem e a força sempre viva das paixões faz com que após cem anos de cruéis suplícios a roda cause tanto temor quanto antes a prisão causava Para que a pena produza efeito basta que o mal que ela inflige exceda o bem que nasce do delito e nesse excesso de mal deve ser calculada a infalibilidade da pena e a perda do bem que o crime deveria produzir O resto é supérfluo e portanto tirânico Os homens regulamse pela repetida ação dos males que conhecem e não pela dos que ignoram Consideremos duas nações numa das quais na escala das penas proporcional à escala dos delitos a pena maior seja a escravidão perpétua e na outra a roda Sustento que a primeira terá tanto temor de sua maior quanto a segunda e se houvesse razão para transferirse para a primeira as penas maiores da segunda a mesma razão serviria para aumentar as penas desta última passando insensivelmente da roda para os tormentos mais lentos e requintados até os últimos refinamentos da ciência mais conhecida dos tiranos Duas outras danosas conseqüências derivam da crueldade das penas contrárias ao próprio fim de prevenir os delitos A primeira é que não é tão fácil preservar a proporção essencial entre delito e pena porque embora uma engenhosa crueldade tenha contribuído para fazer variar grandemente suas espécies a pena não pode ainda assim ultrapassar a última força a que estão limitadas a organização e a sensibilidade humana Alcan çado esse extremo não se encontrariam penas maiores corres pondentes aos delitos mais danosos e atrozes o que seria oportuno para prevenilos Outra conseqüência é que a própria impunidade nasce da atrocidade dos suplícios Os homens estão circunscritos a certos limites tanto no que se refere ao bem quanto no que se refere ao mal e um espetáculo muito atroz para a humanidade só pode constituir um ódio passageiro nunca porém sistema constante como devem ser as leis pois se estas realmente fossem cruéis ou seriam alteradas ou então fatalmen te dariam nascimento à impunidade Quem ao ler a história não se horripila diante dos bárbaros e inúteis tormentos friamente criados e executados por homens que se diziam sábios Quem não estremecerá até em sua célula mais sensível ao ver milhares de infelizes que a miséria provocada ou tolerada por leis que sempre favoreceram a minoria e prejudicaram a maioria forçou a desesperado regresso ao primitivo estado da natureza ou acusados de delitos impossíveis criados pela tímida ignorância ou réus julgados culpados apenas pela fidelidade aos próprios princípios esses infelizes acabam mutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades oriun das de homens dotados dos mesmos sentimentos e por conse guinte das mesmas paixões em alegre espetáculo para a fanática multidão DA PENA DE MORTE 91 xxvm DA PENA DE MORTE A INúTIL quantidade de suplícios que nunca tomou os homens melhores levoume a indagar se a morte é verdadeiramente útil e justa em governo bem organizado Qual poderá ser o direito que o homem tem de matar seu semelhante Certamente não é o mesmo direito do qual resultam a soberania e as leis Estas nada mais são do que a soma de pequeninas porções da liberdade particular de cada um representando a vontade geral soma das vontades individuais Que homem porém outorgará a outro homem o arbítrio de matálo Como poderá haver no menor sacrifício da liberdade de cada um o sacrifício do bem maior de todos os bens que é a vida Se assim fosse como se harmonizaria tal princípio com o de que o homem não tem o direito de matarse Não deveria porventura ter ele esse mesmo direito se resolveu outorgálo a outrem ou a toda a sociedade A pena de morte não é portanto um direito já que demonstrei que isso não ocorre mas é a guerra da nação contra o cidadão que ela julga útil ou necessário matar Se no entanto eu demonstrar que a morte não é útil nem necessária terei vencido a causa da humanidade A morte de um cidadão não pode crerse necessária a não ser por dois motivos o primeiro quando também privado da liberdade ele tenha ainda relações e poder tais que possam afetar a segurança da nação o segundo quando sua existência possa produzir perigosa rvolção para a forma de governo estabelecida A morte do cldadao tomase assim necessária quando a nação recupera ou perde a liberdade ou em época de anarquia quando as próprias desordens tomam o lugar das leis mas sob o reinado tranqüilo das leis sob forma de governo que reúna os votos da nação bem amparada externa e internamente pela força e pela opinião talvez mais eficaz que a própria força onde o comando só é exercido pelo próprio soberano e onde as riquezas compram prazeres e não autoridade não vejo nenhuma necessidade de destruir o cidadão a não ser que tal morte fosse o único e verdadeiro meio capaz de iedir que outros cometessem crimes razão suficiente que tornana Justa e necessária a pena de morte Ainda que a experiência de todos os séculos em que o último dos castigos tivesse refreado os homens decididos a ofender a sociedade ainda que o exemplo dos cidadãos romanos e vinte anos de reinado da imperatriz Isabel de MOSCOU22 ao longo dos quais ela deu aos ancestrais dos povos istre exemplo que equivale a pelo menos muitas conqUIstas adqumdas com o sangue dos filhos da pátria não convencessem os homens para quem a linguagem da razão é sempre suspeita porém é eficaz a da autoridade bastaria consultar a natureza do homem para perceber a verdade da minha assertiva Não é o grau intenso da pena que produz maior impressão sobre o espírito humano mas sim sua extensão pois a sensi bilidade humana é mais facilmente e mais constantemente afetada por impressões mínimas porém renovadas do que por abalo intenso mas efêmero A força do hábito é universal em cada A ser sensível e assim como o homem fala anda e prove as próprias necessidades por seu intermédio assim também as idéias morais só se imprimem na mente por impressões duráveis e repetidas Não é o terrível mas passageiro espetáculo da morte de um criminoso mas sim o longo e sofrido exemplo de um 22 Isabel Petrovna 17091762 Isabel de Moscou ou da Rússia filha de Pedro o Grande e de Catarina Primeira 16841727 que subiu ao trono em 1741 92 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 93 homem privado da liberdade e que convertido em animal recopnsa cm a fadiga a sociedade que ofendeu é que CnStItUl o freIo mais forte contra os delitos A repetição para SI mesmo eficaz por seu insistente refrão eu mesmo serei reduzido a longa e mísera condição se cometer semelhantes delitos é Amuito mais forte do que a idéia da morte que os homens veem numa obscura distância A pena de morte causa tal impressão que embora forte não suprime o rápido esquecimento que é pertinente ao homem mesmo nas coisas essenciais acelerados pelas paixões Regra gerl as paixões violentas surpreendem os homens mas não por mUlto tempo e embora sejam elas aptas a fazer as revoluções que de homens comuns fazem persas ou lacedemônios e livre e tranqüilo governo as impressões devem ser mais frqüentes do que fortes A pena de rte tornase espetáculo para a maioria e objeto mIsto de compa1xao e desdem para poucos Ambos os sentimen tos ocupam mais o espírito dos espectadores do que o salutar terror que a lei pretende inspirar mas nas penas moderadas e conínas o sentimento predominante é o último porque único O hm1te e o legislador deveria fixar para o rigor das penas parece reSIdIr no sentimento de compaixão quando este começa a prevalecer sobre qualquer outro no ânimo dos espectadores d um castigo reservado mais para eles do que para o próprio reu Para ue a pena seja justa só deve ter os indispensáveis gras de mtenS1dade suficientes para afastar os homens dos dehtos ora não há ninguém que refletindo a respeito possa escolher total e perpétua perda da liberdade por mais vantajoso que o dehto possa ser Assim a intensidade da pena de escravidão prpétu substiindo pena de morte contém o suficiente para d1ssuad1r o espmto maiS determmado Acrescento mais muitís SImos homens encaram a morte com o semblante tranqüilo e firme alguns por fanatismo outros por aquela vaidade que quase epre acompanha o homem depois da morte Outros ainda na ultima e desesperada tentativa de não viver ou de sair da miséria mas nem o fanatismo nem a vaidade subsistem entre cepos cadeias sob o bastão ou sob o jugo Atrás de gaiolas de ferro o deseperado não põe fim a seus males mas apenas os começa Nosso espírito resiste mais à violência e às dores extremas mas passageiras do que ao tempo e ao incessante tédio porque concentrado em si mesmo por um instante o espírito pode repelir as primeiras mas sua vigorosa elasticidade não basta para resistir à longa e repetida ação dos últimos Com a pena de morte cada exemplo dado ao país supõe um delito Na pena de escravidão perpétua um único delito oferece muitíssimos e duráveis exemplos e se é importante que os homens vejam sempre o poder da leis a pena de morte não deve ser muito distante entre si Por isso elas supõem a freqüência dos delitos Portanto para que este suplício seja útil é preciso que não produza nos homens a impressão que deveria causar isto é que seja útil e inútil ao mesmo tempo Se alguém disser que a escravidão perpétua é tão dolorosa quanto a pena de morte e portanto igualmente cruel responderei que somados todos os momentos infelizes da escravidão ela talvez o será mais mas esses momentos são espalhados pela vida toda enquanto a morte concentra toda a força num só momento E é esta a vantagem da pena de escravidão que intimida mais quem a vê do que quem a sofre porque o primeiro analisa a soma de todos os momentos infelizes enquanto o segundo se abstrai da infelici dade futura pela infelicidade presente Todos os males aumentam na mente e quem sofre acha recurso e consolo desconhecidos jamais imaginados pelos espectadores que substituem a própria sensibilidade pelo espírito acostumado do infeliz O ladrão ou o assassino cujo único contrapeso para não violar as leis seja a forca ou a roda raciocina mais ou menos do seguinte modo sei que desenvolver os sentimentos do próprio espírito é arte que se aprende com a educação mas se o ladrão não souber expressar com propriedade seus princípios nem por isso deixarão eles de atuar Que leis são essas que devo respeitar e que põem tão grande distância entre minha pessoa e a do rico Ele me nega o centavo que lhe peço e se desculpa mandandome trabalhar fazendo o que ele mesmo não sabe fazer Quem fez essas leis Homens ricos e poderosos que nunca 94 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 95 se propuseram a visitar os míseros casebres do pobre que nunca precisaram repartir o pão amanhecido entre os gritos inocentes dos filhos famintos e as lágrimas da mulher Quebremos estes laços fatais à maioria e úteis a uns poucos tiranos preguiçosos Ataquemos a injustiça na fonte Voltarei ao meu estado de independência natural viverei livre e feliz por algum tempo com os frutos da minha coragem e do meu trabalho Talvez chegue o dia da dor e do arrependimento mas esse tempo será breve e terei um dia de privação ao invés de muitos anos de liberdade e de prazeres Rei de pequeno número corrigirei os erros do destino e verei os tiranos empalidecerem e tremerem diante daqueles que os preteriram com fausto ultrajante e que eles colocaram abaixo de seus cavalos e cães A religião nesse caso sobe à cabeça do criminoso que abusa de tudo e apresentando lhe fácil arrependimento e quase certa felicidade etema minimizará sensivelmente o horror dessa última tragédia Aquele porém que vê diante dos olhos longos anos ou mesmo o curso de toda uma vida que passaria na escravidão e na dor exposto ao olhar dos concidadãos com quem convivia livre e socialmente escravo das mesmas leis que o protegiam fará inútil comparação de tudo com a incerteza do êxito de seus crimes cujos frutos gozará por breve tempo O exemplo contínuo dos que ele contempla atualmente vítimas da própria imprevidência causalhe impressão muito mais forte do que o espetáculo do suplício que o embrutece mais do que o corrige A pena de morte também não é útil pelo exemplo de crueldade que oferece ao homem Se as paixões ou as neces sidades da guerra o ensinaram a derramar o sangue humano as leis moderadoras da conduta do homem não deveriam aumentar jamais o feroz exemplo tanto mais funesto quanto mais a morte jurídica é ministrada com estudo e com formalidade Parece absurdo que as leis expressão da vontade pública que repelem e punem o homicídio o cometam elas mesmas e que para dissuadir os cidadãos do assassinato ordenem o homícidio público Quais são as verdadeiras e mais úteis leis São todos os pactos e todas as condições que os homens desejariam propor e observar enquanto a voz sempre presente do interesse privado se cala ou se funde com a do interesse público Quais são as opiniões de cada um sobre a pena de morte Elas manifesam se nos atos de indignação e de desprezo de cada um ao aVIstar o carrasco que é no entanto mero e inocente executor da vontade pública bom cidadão que contribui para o bem coletlvo instrumento necessário à segurança pública interna coo S valorosos soldados o são para a segurança externa Qual e pOiS a origem dessa contradição E por que sse sentimento a despeito da razão é indelével nos homens E qu no fundo de seus corações onde mais se preserva a forma onmal a vela natureza os homens sempre acreditaram que sua VIda nao podIa estar e poder de ninguém a não ser da necessidade que rege o universo com mão de ferro Que devem pensar os homens ao ver os sáios magistras e os graves sacerdotes da justiça que com mdlferente tranqm lidade e aparato vagaroso conduzem o réu à morte Enquanto o miserável se debate em sua derradeira angústia à espera do golpe de misericórdia continua o juiz com insnível friza e quem sabe com secreta complacência pela propna auondd a degustar o conforto e os prazeres da vida Essas leiS dlrao os homens nada mais são do que pretextos da força e as formalidades cruéis e meditadas da justiça no passam de linguagem convencional para imolarnos con malr serança como vítimas imoladas em sacrifício ao laolo msaczavel do despotismo Vemos praticar sem repugnância e sem furor o homlclalO que nos é apontado como um crimeterrível Aprovetemo este exemplo Nas descrições que nos fazzam da morte nos a vzams violenta como uma cena terrível Vemola agora como questao de um momento E menos ainda ela será para aquele que não lhe estando à espera se vê poupado de tudo o que ela tem de doloroso Tais são os funestos paralogismos que se não com clareza confusamente pelo menos tornam os homens propensos aos deiitos nos quais como vimos o abuso da religião pode mais do que a própria religião Se me refutarem invocando os exemplos de quase todos os séculos e de quase todas as nações que aplicaram a pena 96 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 97 de morte a certos crimes responderei que esse exemplo se anula diante da verdade contra a qual não corre a prescrição que a história da humanidade nos dá a idéia de imenso oceano de erros do qual emergem a grandes intervalos algumas poucas verdades confusas Sacrifícios humanos eram cpmuns em quase todas as nações mas quem ousará desculpálos O fato de que algumas sociedades tenham abolido por pouco tempo a pena de morte mais me favorece do que me desabona porque o destino das grandes verdades é o de não durar mais do que um relâmpago em comparação com a longa e tenebrosa noite que envolve os homens Ainda não chegou a época afortunada em que a verdade como o erro até agora pertencerá à maioria Dessa lei universal só se subtraíram até agora as grandes verdades que a Sabedoria infinita quis separar das outras por meio da Revelação A palavra do filósofo é muito débil contra os tumultos e os gritos dos que são guiados pelos cegos costumes mas os poucos sábios que estão espalhados pela face da terra acompa nharão a minha voz no fundo de seus corações e se a verdade pudesse alcançar o trono entre os infinitos entraves que a afastam do monarca malgrado seu saiba ele que ela trouxe consigo os votos secretos de todos os homens Saiba ele que se calará na sua presença a fama sangrenta dos conquistadores e que a justa posteridade lhe reservará o primeiro lugar entre os pacíficos troféus dos Titos23 dos Antoninos 24 e dos Trajanos25 23 Tito filho de Vespasiano imperador romano de 76 a 81 cognominado as delícias do gênero humano por causa dos grandes benefícios feitos ao povo Perdi meu dia Diem perdidi tinha o hábito de dizer quando passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma boa ação 24 Antonino o Piedoso ou o Pio foi um dos sete imperadores romanos Nerva Trajano Adriano Antonino Marco Aurélio Vero e Cômodo que reinaram de 96 a 192 caracterizandose seu governo de 138 a 161 por notável espírito de modemção e de justiça 25 Tmjano um dos imperadores Antoninos grande organizador que reinou de 98 a 117 pc f Feliz a humanidade se pela primeira vez lhe forem ditadas leis agora que repostos nos tronos da Europa monarcas ben feitores cujo aumento de autoridade das pacíficas virtudes das ciências e das artes pais de seus povos cidadãos coroados cujo aumento de autoridade forma a felicidade dos súditos porque corta o intermediário despotismo mais cruel porque menos seguro do qual vinham sufocados os votos sempre sinceros do povo e sempre gratos quando podem unirse ao trono Digo que se esses monarcas deixam subsistir as leis antigas isto nasce da infinita dificuldade de expurgar dos erros a veneranda ferrugem de muitos séculos e isto é motivo para os cidadãos esclarecidos desejarem com maior entusiasmo o contínuo crescimento de sua autoridade DA PRISÃO 99 XXIX DA PRISÃO E RRO NÃO menos comum pnrque contrário ao fim social que é a opinião da própria segurança é deixar ao magistrado executor das leis o alvedrio de prender o cidadão de tirar a liberdade do inimigo sob frívolos pretextos e de deixar o amigo impune mesmo havendo os mais fortes indícios de culpabilidade Prisão é pena que por necessidade deve diver samente de todas as outras ser precedida da declaração do delito mas este caráter distintivo não lhe tira o outro traço essencial a saber que somente a lei determine os casos em que o homem merece a pena Assim a lei apontará os indícios do delito que exige a guarda do réu sujeitandoo a um interrogatório e a uma pena O clamor público a fuga a confissão extrajudicial o depoimento do companheiro do delito as ameaças e a constante inimizade com o ofendido o corpo de delito e indícios seme lhantes são provas suficientes para prender o cidadão mas tais provas devem ser enumeradas pela lei e não pelo juiz cujos decretos são sempre opostos à liberdade política quando não sejam proposições particulares de uma máxima geral existente no código público À medida que as penas forem moderadas que a desolação e a fome forem eliminadas das prisões que enfim a compaixão e a humanidade adentrarem as portas de ferro e prevalecerem sobre os inexoráveis e endurecidos ministros da justiça as leis poderão contentarse com indícios sempre mais fracos para a prisão O homem acusado de delito encarcerado e depois absolvido não deveria trazer consigo nenhuma nota de infâmia Quantos romanos acusados de delitos gravíssimos e depois considerados inocentesforam reverenciados pelo povo e honrados com magistraturas Por que razão pois é tão diferente em nossos dias a absolvição de um inocente É porque no sistema penal de hoje segundo a opinião dos homens prevalece a idéia da força e da prepotência sobre a da justiça porque se atiram indistintamente no mesmo cárcere não só os acusados como os condenados porque a prisão é mais lugar de suplício do que de custódia do réu e porque a força interna tutora das leis é separada da força externa defensora do trono e da nação quando deveriam estar unidas Assim a primeira por causa do apoio comum das leis seria combinada com a faculdade de julgar sem depender de sua autoridade imediata e a glória que acompanha a pompa e o fausto de um corpo militar tolheria a infâmia a qual como todos os sentimentos populares está mais ligada ao modo do que à coisa o que está provado por serem as prisões militares na opinião comum não tão infamantes como as forenses Perduram ainda no povo nos costumes e nas leis sempre atrasadas em mais de um século de bondade em relação às luzes atuais de uma nação as bárbaras impressões e as ferozes idéias dos nossos pais setentrionais caçadores Sustentaram alguns que onde quer que se cometa o crime isto é a ação contrária às leis possa ele ser punido como se o caráter do súdito fosse indelével sinônimo ou pior ainda do de escravo Como se alguém pudesse ser súdito de um lugar e habitar em outro e suas ações pudessem sem contradição subordinarse a dois soberanos e a dois códigos muitas vezes contraditórios Alguns crêem igualmente que uma ação cruel praticada por exemplo em Constantinopla possa ser punida em Paris pela abstrata razão de que quem ofende a humanidade merece ter toda a humanidade como inimiga bem como a execração pública como se os juízes vingadores o fossem da sensibilidade dos homens mais do que dos pactos que os ligam entre si O lugar da pena é o lugar do delito porque aí somente 100 DOS DELITOS E DAS PENAS e não em outro lugar os homens são obrigados a ofender um particular para prevenir a ofensa pública O criminoso que não tenha infringido os pactos de uma sociedade da qual não era membro pode ser temido e por isso exilado e excluído pela força superior da sociedade mas não punido com as formalidades das leis asseguradoras dos pactos desse país nem por causa da malícia intrínseca de suas ações Costumam os réus de delitos mais leves ser punidos ou com a escuridão de uma prisão ou ser enviados como exemplo a uma longínqua e portanto quase inútil escravidão a nações que não ofenderam Se os homens num momento não se decidem a cometer os mais graves delitos a pena pública para uma grande infração será considerada pela maioria como estranha e impos sível de ocorrer mas a pena pública de delitos mais leves dos quais o espírito está mais próximo causará sobre ele impressão que desviandolhe a atenção destes últimos o afastará ainda mais dos delitos mais graves Não devem as penas ser somente proporcionais entre si e aos delitos em intensidade apenas mas também no modo de aplicação Alguns eximem de pena o pequeno delito quando o ofendido o perdoa ato este conforme à benevolência à humanidade mas contrário ao bem público como se o particular pudesse dando o perdão liminar a necessidade do castigo da mesma forma que pode renunciar ao ressarcimento da ofensa O direito de mandar punir não é de um só mas de todos os cidadãos ou do soberano Ele pode renunciar somente à sua porção de direito mas não anular a dos outros xxx PROCESSOS E PRESCRIÇÕES C ONHECIDAS as provas e calculada a certeza do crime necessário é conceder ao réu tempo e meios conve nientes para justificarse mas tempo bastante breve que não prejudique a rapidez da pena que como vimos é um dos principais freios dos delitos Um mal entendido amor pela humanidade parece contrário a essa brevidade de tempo mas qualquer dúvida desaparecerá se se refletir que os perigos para os inocentes crescem com os defeitos da legislação As leis porém devem fixar um certo prazo de tempo tanto para a defesa do réu como para as provas dos delitos e o juiz se tornaria legislador se acaso decidisse sobre o tempo necessário para a prova do delito Do mesmo modo os crimes cruéis que permanecem longo tempo na lembrança dos homens assim que provados não merecem prescrição alguma em favor do réu que se livra pela fuga Nos delitos menores e obscuros entretanto a prescrição deve pôr fim à incerteza do cidadão quanto à sua sorte pois a obscuridade envolvendo por muito tempo os delitos anula o exemplo da impunidade deixando entretanto ao réu a possibilidade de redimirse Bastame aqui indicar esses princípios pois só se pode fixar limite preciso para cada legislador dadas as circunstâncias de uma dada sociedade Acrescentarei somente que provada a utilidade das penas moderadas duma nação as leis que proporcionalmente à gra 102 DOS DELITOS E DAS PENAS PROCESSOS E PRESCRIÇÕES 103 vidade dos delitos reduzem ou acrescem seu tempo da prescri ção ou o prazo das provas contando o encarceramento ou o exílio voluntário como integrante da pena chegarão facilmente a estabelecer a classificação de poucas penas suaves para grande número de delitos Tais prazos porém não aumentarão na mesma proporção da atrocidade dos delitos uma vez que a probabilidade dos crimes está na razão inversa de sua crueldade Será preciso pois reduzir o tempo de instrução e aumentar o da prescrição o que parece contradizer minha afirmação anterior isto é que penas iguais possam ser aplicadas a delitos desiguais contando como pena o tempo de prisão ou de prescrição anteriores à sentença Para explicar ao leitor minha idéia distingo duas espécies de delitos a primeira é a dos delitos atrozes que começam pelo homicídio e que compreendem todos os ulteriores atos crimi nosos a segunda é a dos delitos menores distinção esta que tem fundamento na natureza humana A segurança da própria vida é um direito natural a segurança dos bens é um direito social O número de motivos que impelem os homens além do natural sentimento de piedade é muito inferior ao número de motivos que pela natural ambição de serem felizes os induzem a violar o direito que não encontram em seus corações mas sim nas convenções sociais A maior diferença de probabilidades entre essas duas espécies de delitos exige que se regulem por princípios diferentes Nos delitos mais graves por serem mais raros deve reduzirse o tempo de instrução por causa da maior probabilidade de inocência do réu devendo aumentar o prazo da prescrição pois da sentença definitiva da inocência ou da culpabilidade de um homem depende o fim de sua ilusão de impunidade cujos danos aumentam conforme a gravidade do delito Nos delitos menores porém sendo menos provável a inocência do réu deverá somarse o tempo da instrução e sendo menores os danos da impunidade será menor o prazo da prescrição Essa distinção dos delitos em duas espécies não seria admissível se o risco da impunidade diminuísse na proporção da probabilidade do delito Observese que o acusado do qual não se provou nem a inocência nem a culpabilidade embora absolvido por falta de provas poderá sujeitarse pelo mesmo delito a nova prisão e a novos interrogatórios se surgirem novos indícios previstos em lei enquanto não tenha decorrido o prazo de prescrição fixado para o crime Esse pelo menos é o critério que creio oportuno para defender não somente a segurança como também a liberdade dos súditos pois muito facilmente se pode favorecer uma com o prejuízo da outra já que estes dois bens que formam o inalienável e igual patrimônio de cada cidadão não sejam protegidos e custodiados o primeiro pelo aberto ou mascarado despotismo o outro pela turbulenta anarquia popular DELITOS DE PROVA DIFíCIL 105 XXXI DELITOS DE PROVA DIFÍCIL E M RAZÃo destes princípios parecerá estranho a quem não percebe que a razão quase nunca é a legisladora das nações que os delitos mais cruéis ou os mais obscuros e quiméricos isto é aqueles cuja improbabilidade for maior sejam provados pelas conjecturas e pelas provas mais frágeis e equívocas Como se o interesse das leis e dos juízes não fosse o de buscar a verdade mas o de provar o delito Como se condenar o inocente não fosse perigo tanto maior quanto maior a probabilidade da inocência relativamente à do crime Falta na maioria dos homens o vigor necessário tantQ para os grandes delitos como para as grandes virtudes razão pela qual me parece que ambas andam sempre juntas nas nações que se apóiam na atividade do governo e das paixões que conspiram contra o bem comum do que no povo ou na constante excelência das leis Nessas nações as paixões enfraquecidas parecem mais inclinadas a manter do que a melhorar a forma de governo Disto se infere conseqüência importante a de que nem sempre numa nação a ocorrência de grandes delitos prova o seu declínio Há alguns delitos que são ao mesmo tempo freqüentes na sociedade e difíceis de serem provados e neles a dificuldade da prova vale como a probabilidade da inocência e sendo o dano da impunidade tanto menos apreciável quanto mais a freqüência desses delitos depende de princípios diversos do perigo da impunidade a duração da instrução e o tempo da prescrição devem ser reduzidos igualmente E todavia o adultério e a libidinagem grega 26 delitos de difícil prova são aqueles que segundo os princípios admitidos acolhem as presunções tirâni cas as quaseprovas as semiprovas como se se pudesse ser semiinocente ou semiculpado isto é semiabsolvível ou semi punível onde a tortura exerce cruel império sobre a pessoa do acusado sobre as testemunhas e até mesmo sobre toda a família de um infeliz como ensinam com iníqua frieza alguns doutores que indicam aos juízes a norma e a lei Adultério é crime que considerado politicamente encontra força e direção em duas razões as leis variáveis dos homens e a fortíssima atração 27 que impele um sexo para o outro esta é semelhante em muitos casos à gravitação motriz do universo porque da mesma maneira diminui com a distância e se uma modifica todos os movimentos dos corpos a outra age sobre quase todos os movimentos do espírito enquanto dura o seu período diferindo no fato de que a força de gravidade se equilibra com os obstáculos que encontra mas a atração entre os sexos geralmente adquire força e vigor com o crescimento dos próprios obstáculos Se eu tivesse que dissertar a nações ainda privadas da luz da religião diria que há ainda considerável diferença entre este delito e os outros porque este deriva do abuso de uma necessidade constante e universal a toda a humanidade neces sidade anterior e aliás fundadora da própria sociedade onde ps outros delitos destruidores dessa sociedade têm origem determi nada mais em paixões momentâneas do que em necessidade natural Para quem conhece a história e o homem tal neces 26 Referese à sodomia 27 Esta atração se parece sob vários aspectos com a gravitação universal A força dessas causas diminui com a distância Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma enquanto durar a atividade Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se equilibra com os obstáculos que encontra ao passo que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor Nota de Beccaria 106 DOS DELITOS E DAS PENAS DELITOS DE PROVA DIFíCIL 107 sidade em dado clima parece ser igual a uma quantidade constante Se isso fosse verdade seriam inúteis e aliás perni ciosas as leis e os costumes que procurassem diminuir a soma total pois seu efeito seria o de aumentar parte das necessidades próprias e alheias Sábias seriam ao contrário as leis que por assim dizer seguindo a inclinação natural do plano dividissem e distribuíssem a soma total em iguais e pequenas porções capazes de impedir uniformemente por toda parte as secas e as inundações A fidelidade conjugal é sempre proporcional ao número e à liberdade dos casamentos Onde estes obedecem a preconceitos hereditários onde o poder do lar os combina e separa a galanteria rompe secretamente esses laços em prejuízo da moral vulgar que tem por função protestar contra os efeitos perdoando as causas Mas não há necessidade de tais reflexões para quem vivendo na verdadeira religião tem motivos mais nobres para corrigir a força dos efeitos naturais Cometer tal delito é ação tão instantânea e misteriosa tão coberta por aquele mesmo véu estendido pelas leis véu necessário mas frágil que aumenta o valor da coisa em vez de reduzilo as ocasiões são tão fáceis as conseqüências tão equívocas que está mais nas mãos do legislador prevenilo do que corrigilo Regra geral em cada delito que porventura deva geralmente ficar impune a pena tomase um incentivo É próprio de nossa imaginação que as dificuldades se não são intranspôníveis ou demasiado grandes relativamente à preguiça da alma de cada homem excitam mais vivamente a mente e engrandecem o objeto pois elas são quase outras tantas barreiras impedindo o espírito errante e volúvel de abandonar tal objeto e constrangendoo a considerálo sob todos os aspectos fazemno mais fortemente se apegar ao lado agradável ao qual mais naturalmente o nosso ânimo se atira do que ao lado doloroso e funesto do qual foge e se afasta A antiga Vênus28 tão severamente punida pelas leis e tão facilmente submetida aos tormentos vencedores da inocência 1 fundamentase menos nas necessidades do homem isolado e livre 28 Em outro texto está ática Vênus homossexualismo do que nas paixões do homem sociável e escravo Ela retira a força não tanto da saciedade dos prazeres do que da educação que começa por tomar os homens inúteis a si mesmos para torná los úteis aos outros naqueles casos onde se condensa uma juventude ardente e onde havendo diques intransponíveis para qualquer outro tipo de relacionamento todo o vigor da natureza que se desenvolve é inutilmente consumido pela humanidade e a velhice é antecipada O infanticídi029 é igualmente efeito de inevitável contra dição em que é colocada a mulher que por fraqueza ou por violência tenha cedido Quem se encontra entre a infâmia e a morte do ser a quem essa infâmia não afeta como não preferirá tal morte à miséria infalível a que ela e o rebento infeliz ficariam expostos Melhor maneira de prevenir tal delito seria a de proteger com leis eficazes a fraqueza contra a tirania que exagera os vícios que não podem ser cobertos com o manto da virtude Não pretendo minimizar a justa aversão que estes crimes causam mas indicandolhes as fontes creiome no direito de poder extrair daí uma conseqüência geral a saber que não se possa denominar precisamente de justa o que quer dize necessária a pena de um crime até que a lei em certas circunstâncias de uma nação não tenha aplicado os melhores meios para prevenilo 29 Aborto SUIcíDIO 109 XXXII SUICÍDIO S UIcímo é crime que parece não poder admitir pena propriamente dita pois ela só poderia incidir sobre inocentes ou sobre o corpo frio e insensível Se neste último caso a pena não há de impressionar os vivos mais do que o chicotear uma estátua no primeiro caso ela é injusta e tirânica porque a liberdade política dos homens supõe necessariamente que as penas sejam estritamente pessoais Os homens amam demasiado a vida e tudo o que os cerca confirma tal sentimento A sedutora imagem do prazer e a esperança dulcíssimo engano dos mortais em nome da qual bebem eles a grande sorvos o mal misturado com algumas gotas de contentamento deleitaos muito para temer que a necessária impunidade do suicídio tenha alguma influência sobre os homens Quem teme a dor obedece às leis mas todas as fontes dessa dor se extinguem no corpo pela morte Qual será então o motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida Aquele que se mata comete um mal menor à sociedade do que aquele que lhe atravessa para sempre as fronteiras pois o primeiro deixa para trás todos os bens mas o segundo se transfere com boa parte dos haveres Assim se a força da sociedade consiste no número dos cidadãos aquele que renuncia à nação para entregarse a uma nação vizinha causa dano duas vezes maior do que aquele que simplesmente renuncia à sociedade pela morte A questão reduzse pois a saber se é útil ou nocivo à nação deixar a cada um de seus membros liberdade total para abandonála Não deverá ser promulgada nenhuma lei que não seja fortalecida 30 ou que a natureza das circunstâncias tome insubsis tente e assim como a opinião dirige os ânimos obedecendo às impressões lentas e indiretas do legislador e resiste às impressões diretas e violentas assim também as leis inúteis desprezadas pelos homens comunicam seu aviltamento às leis mais salutares que são resguardadas mais como óbice a ser superado do que como depósito do bem comum Ora se como foi dito nossos sentimentos são limitados quanto maior for a veneração dos homens por objetos estranhos às leis menor será a que sobrará para as próprias leis Desse princípio o sábio provedor da felicidade pública pode extrair algumas úteis conseqüências que para serem expostas muito me afastariam do meu assunto que é o de provar a inutilidade de fazer do Estado uma prisão Lei nesse sentido seria inútil pois a não ser que rochedos inacessíveis ou mar encapelado separem os países uns dos outros como fechar todos os pontos de suas fronteiras Como vigiar os vigilantes Quem tudo carrega consigo não pode ser punido após o fato Desde que foi cometido o delito não pode ser punido e punilo por antecipação seria punir a vontade dos homens e não as ações Seria comandar a intenção a parte mais livre do homem em relação ao império das leis humanas Punir o ausente pelos bens que deixou além de facilitar o inevitável conluio que não pode ser impedido sem tiranizar os contratos paralisaria todo comércio de nação a nação Punir o réu após sua volta impedindo que ele reparasse o mal causado à sociedade perpetuaria as ausências A própria proibição de sair de um país aumenta nos nacionais o desejo de fazêlo e é uma advertência aos estrangeiros que ingressem Que deveremos pensar do governo que não possui outro meio a não ser o temor para conservar os homens naturalmente vinculados ao solo pátrio pelas primeiras impressões da infância 30 Legge armada ou fortalecida é a lei que comina pena 110 DOS DELITOS E DAS PENAS SUIcíDIO 111 A mais segura maneira de ligar os cidadãos à pátria é aumentar o bemestar relativo de cada um Assim como todo esforço deve ser feito para equilibrar a balança comercial a nosso favor também é interesse supremo do soberano e da nação que o total de felicidade comparado com o das outras nações seja maior do que o de qualquer outra Os prazeres do luxo 31 não são os principais elementos desta felicidade embora impedindo que a riqueza se acumulasse nas mãos de um só sejam um remédio necessário à desigualdade que cresce com o progresso de uma nação Quando as fronteiras de um país aumentam em proporção maior do que a sua população o luxo favorece o despotismo já que quanto menor for o número de homens tanto menor será a produção e quanto menor for a produção tanto maior será a dependência da pobreza em relação ao fausto e mais difícil e menos temida a reunião dos oprimidos contra os opressores pois as bajulações os cargos as distinções e a submissão que tornam mais flagrante a distância entre o forte e o fraco se obtêm mais facilmente de poucos do que de muitos sendo os homens tanto mais independentes quando menos vigiados e menos vigiados quando maior é seu número Se a população de um país aumenta em proporção maior do que suas fronteiras o luxo contrapõese ao despotismo pois estimula o trabalho e a atividade dos homens e a necessidade oferece prazeres e conforto em demasia ao rico para que os da ostentação que aumentam o sentimento de dependência ocupem o lugar melhor Podese pois observar que nos Estados vastos mas fracos e despovoados a menos que outras razões não se ergam como obstáculo o luxo de ostentação prevalece sobre o de conforto mas nos Estados mais povoados do que vastos porém o luxo do conforto sempre reduz o da ostentação O comércio e a circulação dos prazeres do luxo 32 apresentam o seguinte inconveniente qual 31 e 32 O comércio a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes Tais prazeres são preparados por muitos agentes mas partem de um pequeno número de mãos e irradiam a um pequeno número de homens A maioria s6 raramente pode privá los em pequena proporção Eis porque o homem se lamenta da miséria mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação nada tendo de real Nota de Beccaria seja o que tudo que se faça por intermédio de muitos começa no entanto com poucos e termina com poucos e pouquíssimos são os que tiram proveito o que não impede o sentimento da miséria ocasionado mais pela comparação do que pela realidade A segurança e a liberdade limitadas unicamente pelas leis são porém o que forma a base principal desta felicidade com a qual os prazeres do luxo favorecem a população e sem elas se tomam instrumento da tirania Assim como os animais mais generosos e os pássaros mais livres se refugiam na solidão ou nos bosques inacessíveis abandonando os férteis e ridentes campos ao homem insidioso também os homens fogem dos próprios prazeres quando a tirania é que os oferece Está pois demonstrado que se a lei que prende os súditos a seu país é inútil e injusta também o será a lei que condena o suicídio Por isso embora seja culpa que Deus pune o único que pode punir após a morte não é delito diante dos homens pois a pena em vez de incidir sobre o réu incide sobre sua família Se alguém me contestasse que tal pena pudesse no entanto impedir um determinado homem a suicidarse eu responderia que quem renuncia tranqüilamente ao bem da vida que odeia a existência aqui no mundo a ponto de trocála por uma infeliz eternidade não se comoverá decerto pela menos eficaz e mais distante consideração dos filhos ou dos pais CO NTRABANDO 113 XXXIII CONTRABANDO C ONTRABANOO é um verdadeiro delito que prejudica o soberano e a nação mas cuja pena não deve ser infamante porque cometido não produz infâmia na opinião pública Quem pune com penas infamantes crimes que não são reputados como tais pelos homens abranda o sentimento de infâmia para os que o são Quem pretenda a aplicação da própria pena de morte por exemplo para quem mata o faisão e para quem comete homicídio ou falsifica escrito relevante não fará diferença alguma entre estes delitos destruindo assim os sentimentos morais obra de muitos séculos e de muito sangue lentíssimos e difíceis de impressionar o espírito humano e para cujo nascimento se julgou necessária a ajuda dos mais sublimes motivos e de todo um aparato de graves formalidades Este crime nasce da própria lei pois aumentando o imposto alfandegário aumenta sempre a vantagem e portanto a tentação de praticar o contrabando e a facilidade de cometêlo aumenta com a extensão da fronteira a ser fiscalizada e com a diminuição do volume da própria mercadoria A pena de perder não somente os bens contrabandeados como as coisas que os acompanham é justíssima mas será tanto mais eficaz quanto menor for o imposto porque os homens só se arriscam na proporção direta da vantagem que lhes propiciaria o feliz êxito do empreendi mento Entretanto como é que este delito jamais gera infâmia para o autor sendo furto feito ao príncipe e por conseguinte à própria nação Respondo que os danos que os homens acreditam não lhes devam ser feitos não lhes interessam o suficiente para produzir a indignação pública contra os ofensores Tal é o contrabando Os homens sobre os quais as conseqüências remotas causam fraquíssimas impressões não enxergam o dano que lhes pode causar o contrabando Assim muitas vezes usufruemlhe as vantagens presentes apresentadas por ele não percebendo o prejuízo causado ao príncipe Assim não se interessam tanto em ficar privados de aprovação de quem pratica o contrabando quanto em punir aquele que comete o furto privado falsifica documento e produz outros males que os possam atingir Princípio evidente de que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece Deverseia porém deixar sem castigo tal delito contra quem nada tem a perder Não Há contrabandos que interessam de tal forma à natureza do imposto parte essencial e difícil da boa legislação que esse delito merece severíssima pena até prisão e escravidão mas prisão e escravidão adequadas à natureza do delito Por exemplo a prisão do contrabandista de cigarro não deve ser a mesma que a do assassino ou a do ladrão e os trabalhos do contrabandista ficam limitados ao trabalho e ao serviço do próprio Fisco que ele quis fraudar sendo os mais adequados à natureza da pena DOS DEVEDORES 115 XXXIV DOS DEVEDORES A BOAFÉ nos contratos e a segurança do comércio levam o legislador a assegurar aos credores as pessoas dos devedores falidos mas julgo importante distinguir o falido doloso do falido inocente O primeiro deveria ser punido com a mesma pena corninada aos falsários de moedas pois falsificar peça de metal cunhado penhor das obrigações do cidadão não é crime aior do que o de falsificar as pr6prias obrigações mas o falido lOocente aquele que ap6srigoroso exame prova diante do juiz que a malícia ou a desgraça alheia ou vicissitudes inevitáveis da humana prudência o despojaram dos bens deverá ser atirado à prisão e privado do único e triste bem que lhe resta a nua e crua liberdade Por que deverá ele experimentar as angústias dos culpados e com o desespero de sua probidade oprimida arrependerse quem sabe da tranqüila inocência em que vivia sob a tutela das leis que não estava em seu poder poupar do dano Leis ditadas pela avidez dos poderosos e suportadas pelos fracos graças à esperança que sempre reluz no ânimo humano fazendonos acreditar que as vicissitudes adversas são para os outros e as vantajosas para n6s Abandonados a seus sentimentos os mais 6bvios os homens amam as leis cruéis embora sujeito a elas Seria do interesse de cada um que elas fossem moderadas porque maior é o temor de ser ofendido do que a vontade de ofender Retomando ao inocente falido digo que se a obrigação dele há de ser inextinguível até o total pagamento se não lhe for concedido subtrairse a ela sem o consentimento das partes interessadas e de transferir para outra jurisdição sua atividade a qual por lei deveria ser empregada para tomar a colocálo em condições de pagar dívidas Qual será então o pretexto legítimo como a segurança do comércio ou a sagrada proprie dade dos bens que justifique a inútil privação da liberdade exceto no caso raríssimo aliás em que supondose um exame rigoroso os males da escravidão ocasionassem a revelação dos segredos de um suposto falido inocente Considero máxima legislativa aquela em que o valor dos inconvenientes políticos varia na razão direta do dano público e na razão inversa da improbabilidade de verificarse Poderseia distinguir o dolo da culpa grave a grave da leve e esta da perfeita inocência cominando à primeira as sanções previstas para o crime de falsificação à segunda penas menores com privação da liber dade reservando à última a livre escolha dos meios para recuperarse negando à terceira a liberdade de fazêlo e outorgando aos credores a mesma liberdade A distinção entre pena grave e pena leve entretanto deve ser estabelecida pela cega e imparcial lei e não pela arbitrária e perigosa prudência dos juízes A fixação dos limites é assim tão necessária na política como na matemática tanto na medida do bem comum como na medida das grandezas Com que facilidade o previdente legislador poderia impedir grande parte das falências fraudulentas e remediar as desgraças do inocente laboriosop3 O público e manifesto registro de todos os contratos a liberdade de todos os cidadãos de consultar documentos bem ordenados um banco público formado por 33 Nas primeiras edições desta obra eu mesmo cometi este erro Ousei dizer que o falido de boafé deveria ser conservado como penhor da dívida contraída reduzido ao estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores Envergonhome de ter escrito essas coisas cruéis Acusaramme de impiedade e de sedição sem que eu fosse sedicioso nem ímpio Ataquei os direitos da humanidade e ninguém se levantou contra mim Nota de Beccaria 116 DOS DELITOS E DAS PENAS impostos sabiamente incidentes sobre o comércio feliz e desti nado a socorrer com somas convenientes o infeliz e inocente comerciante não teriam nenhum real inconveniente e poderiam trazer inúmeras vantagens mas as fáceis simples e grandes leis somente aguardam o aceno do legislador para disseminar no seio da nação o vigor e a robusteza leis essas que o recompensariam de geração em geração com hinos imortais de reconhecimento são as menos conhecidas ou as menos desejadas O espírito inquieto e mesquinho a tímida prudência do momento presente a circunspecta rigidez diante das notícias apoderamse dos sentimentos de quem concatena a grande quantidade de ações dos pequenos mortais xxxv ASILOS R ESTAMME ainda dnas questões para exame uma a de saber se os asilos são justos a outra se o pacto da permuta recíproca de réus entre nações é útil ou não Dentro dos limites de um país não deve haver lugar nenhum infenso às leis A força da lei deve seguir o cidadão como a sombra segue o corpo A impunidade e o asilo diferem só em grau e como a impressão da pena consiste mais na segurança de encontrála do que em sua força os asilos mais convidam o homem ao delito do que as penas dele o afastam Multiplicar asilos é criar outras tantas pequenas soberanias porque onde as leis não vigoram novas leis opostas às comuns podem formarse e portanto com espírito contrário ao do corpo inteiro da sociedade A história demonstra que dos asilos grandes revoluções saíram nos Estados e nas opiniões dos homens mas a utilidade ou não da permuta recíproca dos réus entre nações é questão que eu não ousaria resolver enquanto leis mais adequadas às necessidades da humanidade penas mais suaves e a extinção da dependência do arbítrio e da opinião não garantirem a segurança da inocência oprimida e da virtude detestada enquanto a tirania não for totalmente limitada às vastas planícies da Ásia pela razão universal que une cada vez mais os interesses do trono aos dos súditos e não obstante a convicção de não achar um só palmo de terra que perdoe os verdadeiros delitos pudessem ser meio eficacíssimo para prevenilos DA RECOMPENSA 119 XXXVI DA RECOMPENSA A OUIRA questão referese à utilidade ou não de pôr a prêmio a cabeça de um homem notoriamente réu armando o braço de cada cidadão e fazendo dele um carrasco Ou o réu está além das fronteiras ou dentro delas No primeiro caso o soberano estimula os cidadãos a cometerem delitos e os expõe ao castigo praticando assim injustiça e usurpação de soberania em território alheio autorizando assim outras nações a agirem do mesmo modo No segundo ele exibe a própria fraqueza Quem tem força para defenderse não procura comprá la Além disso semelhante edito subverte todas as idéias de moral e de virtude que ao menor sopro de vento se desvanecem no espírito humano As leis ora convidam à traição ora a castigam Por um lado com uma mão o legislador estreita os laços de fanulia de parentesco de amizade e por outro com a outra premia quem quebra esses laços sempre contradizendo a si mesmo ora convidando os ânimos desconfiados dos homens à confiança ora espalhando a desconfiança em todos os corações Ao invés de prevenir o delito dá origem a outros cem São estes os expedientes das nações fracas cujas leis não passam de restaurações momentâneas de edifício em ruínas que se está desmoronando À medida que crescem as luzes de uma nação a boa fé e a confiança recíprocas tomamse necessárias e cada vez mais tendem elas a confundirse com a verdadeira política Os artifícios as cabalas as estradas obscuras e indiretas são no mais das vezes previsíveis e a sensibilidade de todos reduz a sensibilidade de cada um em particular Os próprios séculos de ignorância nos quais a moral pública obrigava os homens a obedecerem à moral privada servem de instrução e de experiência aos séculos esclarecidos mas as leis que premiam a traição e que suscitam uma guerra clandestina espalhando a desconfiança recíproca entre os cidadãos se opõem a esta tão necessária união da moral e da política a qual os homens deveriam a felicidade às nações a paz e ao universo um mais longo período de tranqüilidade e de repouso dos males pelos quais antes passaram TENTATIVAS CÚMPLICES E IMPUNIDADE 121 XXXVII TENTATIVAS CÚMPLICES E IMPUNIDADE N Áo É PORQUE as leis não castiguem a intenção qne o crime deixe de merecer pena delito que comece com ação que revele o ânimo de cometêlo ainda que a pena seja menor do que a aplicável à própria prática do delito A importância de prevenir a tentativa autoriza a pena mas assim como pode haver intervalo entre tentativa e execução reservar pena maior ao delito consumado pode ocasionar o arrependimento Digase o mesmo quando houver vários cúmplices do delito e não todos eles executores imediatos mas por diferentes motivos Quando vários homens se unem num risco quanto maior for esse risco tanto mais eles procuram tornálo igual para todos Será pois mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito correndo maior risco do que os outros cúmplices A única exceção seria a da hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor caso em que tendo ele então recompensa pelo risco maior a pena deveria ser igual Tais reflexões parecerão demasiadamente metafísicas a quem não meditar quão útil seria que as leis propiciassem menos razões de acordo possível entre os cúmplices de um delito Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de grave delito que delatasse os companheiros Tal expediente tem incovenienes e vantagens Os inconvenientes são que a nação estana autorIzando a delação detestável mesmo entre criminosos porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vilania porque o primeiro não é freqüente já que só espera uma força benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bem público enquanto que a segunda é mais comum e contagiosa e sempre se concentra mais em si mesma Além disso o tribunal mostra a própria incerteza a fraqueza da lei que implora ajuda de quem a infringe As vantagens consistem na prevenção dos delitos relevantes que por terem efeitos evidentes e autores ocultos atemorizam o povo Além disso contribui para mostrar que quem não tem fé nas leis isto é no poder público é provável que também não confie no particular Pareceme que lei geral que prometesse impunidade ao cúmplice delator de qualquer delito seria preferível a uma declaração especial em caso particular porque assim preveniria as uniões pelo temor recí proco que cada cúmplice teria de exporse e o tribunal não tornaria audaciosos os criminosos chamados a prestar socorro num caso particular Tal lei portanto deveria unir a impunidade ao banimento do delator Atormentome em vão para destruir o remorso que sinto autorizando as leis sacrossantas monumento da confiança pública base da moral humana à traição e à dissimulação Além disso que exemplo haveria para a nação se negasse a impunidade prometida e por meio de doutas cavilações arrastasse ao suplício a despeito da fé pública quem aceitou o covite das leis Não são raros tais exemplos nas nações e por ISSO não são poucos os que só concebem a nação como máquina complicada cujo mecanismo é movido pelo mais hábil e poderoso à vontade Frios e insensíveis a tudo que forma a delícia das almas ternas e sublimes eles excitam com imper turbável sagacidade os sentimentos mais caros e as paixões mais violentas tão logo percebam que elas lhes são úteis aos desígnios tocando os ânimos assim como os músicos tocam os instrumen tos XXXVIII INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS N OSSAS leis proscrevem no processo os interrogatórios denominados sugestivos isto é aqueles que segundo os doutos indagam sobre a espécie e não como deveriam sobre o gênero nas circunstâncias de um delito a saber os interro gatórios que tendo imediata conexão com o delito sugerem aO réu imediata resposta Os interrogatórios segundo os penalistas devem por assim dizer envolver o fato como uma espiral sem jamais alcançálo por via direta Os motivos deste método so ou não sugerir ao réu réplica que o ponha a salvo da acusaçao ou talvez porque parece contrário à própria natureza que o réu se acuse imediatamente por si só Seja qualquer destes dOIS motivos frisante é a contradição das leis que junto com essa prática autorizam a tortura E com efeit ue interrogat6rio pode ser mais sugestivo do que a dor O pnelfo mtlvoocorre na tortura pois a dor sugerirá ao forte obstmado sl1êncIo para a troca da pena maior pela menor e ao fraco sugerirá a confissão para livrarse do tormento presente mais eficaz nesse momento do que a futura dor O segundo motivo é evidentemente o mesmo pois se o interrogatório especial leva contr Ô direito naral o réu à confissão as dores o conseguirão maiS facl1mente ainda mas os homens se conduzem mais pela diferença dos nomes do INTERROGATORIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS 123 que pela das coisas Entre outros abusos da gramática cuja influência nas questões humanas sempre foi grande merece realce o que torna nulo e ineficaz o depoimento do réu já condenado Ele está morto civilmente afirmam com gravidade os jurisconsultos peripatéticos e morto é incapaz de ação Sacrificouse grande número de vítimas para dar fundamento a essa vã metáfora e freqüentemente com a maior seriedade se discutiu se a verdade deveria ceder lugar ou não ao formalismo legal Desde que o depoimento do réu condenado não chegue ao ponto de perturbar o curso da justiça por que não reservar aos interesses da verdade e à extrema miséria do réu mesmo após a condenação espaço suficiente de modo que acrescendo ele elementos novos que alterem a natureza do fato permita reivindicar a si mesmo ou a outrem um novo julgamento As formalidades e o cerimonial são necessários para a administração da justiça ou porque nada deixam ao arbítrio de quem a administra ou porque sugerem ao povo julgamento não tumul tuado e parcial mas estável e regular quer enfim porque as sensações mais do que os raciocínios produzem impressões eficazes sobre os homens imitadores e escravos do hábito Tais formalidades porém nunca podem sem perigo fatal ser fixadas pela lei de modo a prejudicar a verdade a qual por ser ou demasiado simples ou demasiado complexa necessita de alguma pompa externa que a concilie com o povo ignorante Finalmente aquele que durante o interrogatório insistir em não responder às perguntas feitas merece pena fixada pelas leis pena das mais graves entre as cominadas para que os homens não faltem à necessidade do exemplo que devem ao público A pena é desnecessária quando é fora de dúvida que tal acusado tenha cometido tal delito o que torna o interrogatório inútil da mesma forma que é inútil a confissão do delito quando outras provas justificam a condenação Este último caso é o mais freqüente porque a experiência demonstra que na maior parte dos pro cessos os réus negam a culpa XXXIX DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS Q UEM LER este escrito perceberá que deixei de mencionar um tipo de delito que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras onde corpos humanos vivos serviam de pasto às chamas Era um alegre espetáculo e uma grata harmonia para a cega multidão ouvir os confusos gemidos dos miseráveis que saíam dos vórtices negros da fumaça fumaça de membros humanos entre o ranger dos ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes mas homens racionais verão que o lugar o século e a matéria não me permitem analisar a natureza de tal delito Seria tarefa muito longa e estranha a meu propósito provar a necessidade da perfeita uniformidade de pensamento no Estado contra o exemplo de muitas nações Provar como opiniões que distam entre si apenas por algumas diferenças muito sutis e obscuras muito acima da capacidade humana possam talvez ainda tumultuar o bem público a menos que uma só seja autorizada e as outras excluídas e provar ainda que a natureza das opiniões é formada de tal modo que enquanto algumas se fortalecem no contraste e se opondo se esclarecem subindo à tona as verdadeiras as falsas submergem no esquecimento enquanto outras inseguras DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS 125 por sua nua constância devem revestirse de autoridade e de força Seria demasiado longo provar que por mais odioso que pareça o império da força sobre as mentes humanas cujas únicas conquistas são a dissimulação logo o aviltamento e por contrário que ele possa aparentemente ser ao espírito de mansidão e fraternidade ordenado pela razão e pela autoridade que mais veneramos ele é entretanto necessário e indispensável Tudo isto deve acreditarse ter sido bem provado e de acordo com os verdadeiros interesses dos homens se existe quem o exerça com reconhecida autoridade Eu só falo dos crimes que brotam da natureza humana e do pacto social e não dos pecados cujas penas ainda que temporais devem regularse por princípios diversos daqueles de uma limitada filosofia FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE f27 XL FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE F ONTE de erros e de injustiças são as falsas idéias de utilidade elaboradas pelos legisladores Falsa idéia de utilidade é a que antepõe os inconvenientes particulares ao inconveniente geral ou seja a que reprime os sentimentos ao invés de estimulálos e diz à lógica sirva Falsa idéia de utilidade é a que sacrifica mil vantagens reais a um inconveniente imaginário ou de poucas conseqüências É a que tiraria o fogo dos homens porque queima e a água porque afoga que só repara os males com a destruição As leis que proíbem portar armas são leis dessa natureza Tais leis só desarmam os que não têm vocação nem determinação para os crimes enquanto aqueles que têm a coragem de violar as leis mais sagradas da humanidade e os dispositivos mais importantes do Código respeitarão as leis menores e puramente arbitrárias tão fácil e impunemente passíveis de transgressão e cuja exata execução suprime a liberdade pessoal tão cara ao homem quanto ao legislador esclarecido e submete os inocentes a todos os vexames destinados aos réus Tais vexames colocam os agredidos em posição de inferioridade privilegiando os agressores ao invés de diminuir o número de homicídios aumentamno por ser mais confiável assaltar os desarmados do que os armados Assim se chamam as leis não preventivas dos delitos mas temerosas deles nascidas da tumultuada impressão de alguns fatos particulares e não da meditação racional dos inconvenientes e das vantagens de um decreto universal Falsa idéia de utilidade é a que pretendesse dar a uma multidão de seres sensíveis a simetria e a ordem que a matéria bruta e inanimada tolera descuidando dos motivos presentes os únicos a agir sobre a multidão com força e perseverança para fortalecer os motivos distantes que causam impressão ao mesmo tempo fraca e fugaz se uma força de imaginação incomum na humanidade não suprir a distância do objeto com o seu engrandecimento Finalmente falsa idéia de utilidade é a que sacrificando a coisa ao nome separa o bem público de todo bem particular Há diferença entre estado de sociedade e estado de natureza a saber homem selvagem só prejudica a outrem o suficiente para beneficiarse a si próprio enquanto o homem sociável é às vezes levado pelas más leis a prejudicar terceiros sem benefício para si próprio O déspota lança temor e desalento no coração dos escravos mas esses sentimentos rebatidos se voltam mais fortemente contra seu coração para atormentálo Quanto mais o temor é solitário e interno menos perigoso é para quem dele faz o instrumento de felicidade mas quanto mais se tomar público e atacar uma multidão maior de homens mais fácil será ver o imprudente o desesperado ou o destemido avisado forçar os homens a servir lhes os fins despertando neles sentimentos tanto mais gratos e sedutores quanto maior for o número de pessoas sobre as quais incide o risco da iniciativa Então o valor que os infelizes atribuem à própria existência diminui na proporção da miséria que sofrem Esta é a razão pela qual as ofensas vão fazer nascer novas ofensas pois o ódio é sentimento mais durável do que o amor na medida em que o primeiro extrai a força da continuidade dos atos que enfraquecem o segundo COMO PREVENIR OS DELITOS 129 XLI COMO PREVENIR OS DELITOS M ELnOR prevenir os crimes que punHns Esta é a finalIdade precípua de toda boa legislação arte de conduzir os homens ao máximo de felicidade ou ao mínimo de infelicidade possível para aludir a todos os cálculos dos bens e dos males da vida entretanto os meios empregados até agora têm sido em sua maioria falsos e contrários ao fim proposto Não é possível reduzir a desordenada atividade dos homens a uma ordem geométrica sem irregularidade e sem confusão Assim como as constantes e simplicíssimas leis da natureza não impedem que os planetas se perturbem em seus movimentos assim também nas atrações infinitas e muito contrárias do praze e da dor as leis humanas não podem impedir as perturbações e a desordem Todavia essa é a quimera dos homens limitados quando têm na mão o comando Proibir grande quantidade de ações diferentes não é prevenir delitos que delas possam nascer mas criar novos é definir ao belprazer a virtude e o vício conceituados como eternos e imutáveis A que nos reduziríamos se nos fosse proibido tudo o que nos pode induzir ao delito Seria preciso privar o homem do uso dos sentidos Para cada motivo que induz os homens a cometer o verdadeiro delito há mil outros que os impelem a cometer ações indiferentes que as más leis chamam delitos E se a probabilidade dos delitos é proporcional ao número das razões ampliar a esfera dos delitos é aumentar a probabilidade de que sejam cometidos A maioria das leis não passa de privilégios isto é tributo de todos para as mãos de alguns poucos Quereis prevenir os delitos Fazei com que as leis sejam claras simples e que toda a força da nação se condense em defendêlas e nenhuma parte da nação seja empregada em destruílas Fazei com que as leis favoreçam menos as classes dos homens do que os próprios homens Fazei com que os homens as temam e temam apenas a elas O temor das leis é sadio mas fatal e fecundo em delitos é o temor de homem para homem Os homens escravos são mais voluptuosos mais libertinos e mais cruéis do que os homens livres Estes meditam sobre as ciências e sobre os interesses da nação vêem os grandes objetos e os imitam mas aqueles satisfeitos com o dia presente procuram no tumulto da libertinagem uma distração para o aniquilamento em que se encontram Afeitos à incerteza em tudo o êxito dos seus crimes tornaseIhes problemático favorecendo a paixão que os determina Se a incerteza das leis incide sobre uma nação indolente pelo clima mantém e aumenta a indolência e a estupidez Se incide sobre uma nação voluptuosa mas ativa ela desperdiça a atividade dessas leis em número infinito de pequenas cabalas e intrigas que semeiam a desconfiança nos corações e fazem da traição e da dissimulação o alicerce da prudência Se a incerteza das leis incide sobre uma nação corajosa e forte a incerteza é suprimida gerando antes muitas oscilações da liberdade para a escravidão e da escravidão para a liberdade DAS CIÊNCIAS 131 XLII DAS CIÊNCIAS QUEREIS prevenir os delitos Fazei com qne as luzes acompanhem a liberdade Os males que nascem do conhecimento estão na razão inversa de sua difusão e os bens na razão direta O audacioso impostor que é sempre um home invulgar é adorado pela plebe ignara e vaiado pelo homem esclarecido Os conhecimentos facilitando as comparações entre os objetos e multiplicando os pontos de vista contrapõem muitos sentimentos que se modificam entre si tanto mais facilmente quanto mais previsíveis são nos outros as mesmas vistas e as mesmas resistências Em face das luzes esparsas com profusão sobre a nação calase a caluniosa ignorância e treme a auto ridade desarmada de razões permanecendo imutável a vigorosa força das leis pois não há homem esclarecido que não goste dos pactos públicos claros e úteis da segurança comum ao comparar a parcela da inútil liberdade que sacrificou com a soma de todas as liberdades sacrificadas pelos outros homens os quais sem leis poderiam tornarse conspiradores contra ele Todo aquele que dotado de alma sensível lançando um olhar sobre um Código de leis bem feito e achando que nada perdeu a não ser a nefasta liberdade de prejudicar a outrem será levado a bem dizer o trono e quem o ocupa Não é verdade que as ciências tenham sido sempre preju diciais à humanidade e quando o foram tratavase de mal inevitável para os homens A multiplicação do gênero humano na face da terra inventou a guerra as artes mais rústicas as primeiras leis que eram pactos passageiros gerados pela neces sidade e que com ela pereciam Foi essa a primeira filosofia dos homens com poucos elementos corretos pois somente a indo lência e a escassa sagacidade os preservavam do erro mas as necessidades cada vez mais se multiplicavam com a multipli cação dos homens Faziamse pois necessárias impressões mais fortes e mais duradouras para dissuadilos de reiterado retorno ao primeiro estágio de insociabilidade que se tornava cada vez mais prejudicial Foram assim um grande bem para a huma nidade aqueles primeiros erros que povoaram a terra de falsas divindades refirome ao grande bem político e que imaginaram um universo invisível governador do nosso Foram benfeitores dos homens aqueles que ousaram surpreendêla arrastando até os altares a dócil ignorância Apresentandolhes objetos que lhes ultrapassavam os sentidos que lhes escapavam das mãos à medida que pensavam alcançálos que não podiam desprezar por não conhecêlos reuniram e concentraram as divididas paixões em um único objeto que os impressionava fortemente Foram essas as primeiras vicissitudes de todas as nações formadas de povos selvagens Foi essa a época de formação das grandes sociedades e foi esse o vínculo necessário e talvez o único Não falo do povo eleito de Deus para o qual os milagres extraor dinários e as graças mais conhecidas marcaram época na política humana Mas assim como é próprio do erro subdividirse ao infinito assim também as ciências nascidas de tal erro fizeram dos homens fanática multidão de cegos entrechocandose desordenadamente em labirinto fechado a ponto de alguns espíritos sensíveis e filosóficos ordenarem até mesmo o antigo estado de selvageria Eis a primeira época em que os conhe cimentos ou melhor as opiniões são prejudiciais A segunda consiste na difícil e terrível passagem do erro à verdade da obscuridade desconhecida à luz O choque imenso dos erros úteis aos poucos poderosos contra as verdades úteis 132 DOS DELITOS E DAS PENAS aos muito fracos a aproximação e o fermento das paixões que suscitam naquela ocasião causam males infinitos à mísera humanidade Quem refletir sobre a história em que certos intervalos de tempo se assemelham a períodos principais en contrará mais vezes uma geração inteira sacrificada à felicidade das que a sucederam na enlutada mas necessária passagem das trevas da ignorância à luz da filosofia da tirania à liberdade conseqüências disso Acalmados porém os ânimos e extinto o incêndio que purgou a nação dos males que a oprimiam a verdade cujos progressos são primeiro lentos depois acelera dos compartilha o trono dos monarcas e tem culto e altar nos parlamentos das repúblicas quem poderá garantir que a luz que ilumina a multidão seja mais danosa do que as trevas e que as relações simples e verdadeiras entre as coisas bem conhecidas pelos homens lhe sejam prejudiciais Se a cega ignorância é menos fatal que o medíocre e confuso saber já que este acrescenta aos males da primeira os erros inevitáveis de quem tem visão restrita ao que está junto das fronteiras da verdade o homem esclarecido é o dom mais precioso que o soberano pode ofertar à nação e a si mesmo tomandoo depositário e guardião das santas leis Acostumado à visão da verdade e não a temêla privado da maioria das necessidades da opinião que nunca suficientemente satisfeitas põem à prova o valor da maioria dos homens afeitos a contemplar a humanidade das maiores alturas diante dele a nação tomase uma família de irmãos e a distância entre os poderosos e o povo parecelhe tanto menor quanto maior é a massa humana que está diante de seus olhos Os filósofos cultivam necessidades e interesses desconhecidos da plebe ignara principalmente o de não desmentir à luz pública os princípios apregoados na obscuridade e adquirem o hábito de amar a verdade por si mesma A seleção de tais homens constitui a felicidade de uma nação Será no entanto felicidade efêmera se as boas leis não lhes aumentarem de tal modo o número que diminuam a probabilidade sempre grande de uma má seleção XLIII DOS MAGISTRADOS O UTRO meio de prevenir os delitos é o de interesar 0 Colegiado executor das leis mais pela obervancla delas do que pela corrupção Quanto maior or o numro de membros que o compõem menos perigosa sera a usurpaçao das leis porque a venalidade é mais difíil entre membros que se observam entre si e que estão menos Interessados em aumetar a própria autoridade quanto menor for a porçã que cabena a cada um principalmente se comparada com o pengo do empeen dimento Se o soberano com aparato e pompa C a austendade dos editos com a proibição das querelas justas e Injustas de uem se crê oprimido acostumar os súditos a temere aIS s magistrados do que as leis estes últimos se aprveltarao aIS desse temor do que a segurança própria e púbhca lucrara XLIV PRÊMIOS o UTRO modo d prevnir dlitos é o do recomponsar a lrtude A esse respeIto veJo que há silêncio universal na leglslaçao de todas as nações contemporaneas Se os prêmios propostos pelas academias aos descobridores das mais úteis erdades multiplicaram não só os conhecimentos como os bons hvros por qual razão os prêmios propostos pela mão benévola do soberano não multiplicariam também as ações virtuosas A moeda da honra é sempre inesgotável e frutífera nas mãos do sábio distribuidor XLV EDUCAÇÃO F iIIAiMENTE o mais sgoro mas o mais diffcil moio d prevenir o delito é o de aperfeiçoar a educação objeto muito amplo e que ultrapassa os limites a que me impus objeto que ouso também dizer estar muito intrinsecamente ligado à natureza do governo para que não seja sempre campo estéril só cultivado aqui e ali por alguns poucos estudiosos até nos mais remotos séculos da felicidade pública Um grâhde homem que iluminou a humanidade que ô perlíeguia mostrou em pormenores quais as principais miÍXimas da educação realmente úteis aos homens34 a saber preterir Utha estéril multidão de objetos em favor de uma escolha e precisâo deles substituir àS c6pias pelos originais nos fenômenos tânto motâis como físicos que o acaso e o talento apresentam aos hOvos espíritos dos jovens e impelir esses jovens à virtude pela fácil estrada do sentimento afastandoos do mal pela via infalível da necessidade e do inconveniente e não pela via incerta do comando que s6 consegue simulada e momentânea obediência 34 Referência à famosa obra Emlio ou Da educaçéIo 1762 romance filos6fico em que JeanJacques Rousseau expõe seu sistema educa cional baseado no prinCíIio de que o homem é por natureza bom sendo má a educação dadà pela sociedade pois seria melhor propidl1r edUcação negativa como a melhor ou antes como a t1nica a sef transmitida A despeito de certos pl1ràdoxos O livro de Rousseau teve influência decisiva sobre o siStema educacional da época DAS GRAÇAS 137 XLVI DAS GRAÇAS A MIIDIDA que as peuas se tomam mais brandas a clemência e o perdão tomamse menos necessários Feliz a nação onde eles pudessem ser erradicados por nefastos A clemência virtude que às vezes foi para o soberano o suplemento de todos os deveres do trono deveria ser suprimida de uma legislação perfeita em que as penas fossem brandas e o método de julgamento regular e rápido Esta verdade poderá parecer crua para quem vive na desordem do sistema penal onde o perdão e a graça são necessários na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações A graça é a mais bela prerrogativa do trono e o mais desejável atributo da soberania sendo esta tácita reprovação que os benefícios geradores da felicidade pública dão a um Código que com todas as imperfeições tem a seu favor o prejulgamento dos séculos volumoso e imponente aparato de infinitos comentadores solene pompa das eternas formalidades e adesão dos mais insinuantes e menos temidos semidoutos Se se considerar porém que clemência é virtude do legislador e não do executor das leis que resplandecem no Código e não nos julgamentos particulares e que mostram aos homens que os delitos podem ser perdoados e que a pena não é sua inevitável conseqüência mas a de criar a ilusão da impunidade e a de fazer crer que as condenações não são perdoadas embora pudessem sêlo sejam antes abusos da força do que emanações da justiça Que dizer então do príncipe que outorga a graça ou seja a segurança pública a um particular e que com um ato privado de benevolência não esclarecida edita decreto público de impunidade Que as leis sejam pois inexoráveis e inexoráveis sejam também seus executores nos casos particulares mas que o legislador seja brando indulgente humano Sábio arquiteto faça surgir seu edifício na base do amor próprio e que o interesse geral seja o resultado dos interesses de cada um não sendo ele constrangido com leis parciais e remédios estapafúrdios a separar sempre o bem público do bem particular e para alçar o simulacro da salvação pública sobre o temor e sobre a desconfiança Profundo e sensível filósofo permita que os homens seus irmãos gozem em paz a pequena porção de felicidade que o imenso sistema concebido pela Causa Primeira daquele que é lhes permita desfrutar neste ângulo do universo XLVII CONCLUSÃO C ONCLUO com uma reflexllo que o grau das ponas deva ser relativo ao estado da pr6pria nação Mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os ânimos endurecidos de um povo recémsaído do estado selvagem É necessário o nua para abater o feroz leão que com o tiro do fuzil apenas se agita À medida porém que os espíritos se abrandam no estado de sociedade cresce a sensibilidade e crescendo esta deverá diminuir a intensidade da pena se se desejar manter constante a relação entre o objeto e a sensação De tudo quanto se viu até aora poderá extrairse um teorema geral muito útil mas pouco de acordo com o uso legislador por excelência das nações ou seja para que a pona não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular deverá ser essencialmente pública rápida necessária a mínima dentre as passIveis nas dadas circunstâncias ocorridas proporcional ao delito e ditada pela lei RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS E STAS Notas e Observações são mera coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e das Penas classificado como fanático impostor escritor falso e perigoso satírico descontrolado sedutor do público É acusado de destilar o mais acre fel de reunir contradições odiosas com os traços pérfidos e escondidos da dissimulação de ser obscuro por maldade O crítico pode ficar seguro de que não responderei às injúrias pessoais Ele apresenta meu livro como obra horrível virulenta e de licenciosidade deletéria infame ímpia Nele encontra blasfêrnias impudentes ironias insolentes anedotas indecentes sutilezas perigosas pilhérias escandalosas e calúnias grosseiras A religião e o respeito que se deve aos soberanos são o pretexto para as duas mais pesadas acusações que se encontram nessas Notas e Observações Estas serão as únicas às quais me coniiderarei obrigado a responder Comecemos pela primeira 142 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 143 I ACUSAÇÕES DE IMPIEDADE 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas desconhece a justiça que se origina no legislador eterno que tudo vê e prevê Aqui está mais ou menos o silogismo do autor nas Notas O autor do livro Dos Delitos e das Penas não concorda que a interpretação da lei esteja na dependência da vontade e do capricho do magistrado Quem não deseja confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos do magistrado não acredita na justiça que vem de Deus O autor não admite portanto justiça puramente divina 2 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas As Santas Escrituras somente contêm imposturas Em toda a obra Dos Delitos e da Penas tratase da Escritura Sagrada uma só vez é quando a propósito de erros religiosos no capítulo XLI afirmei que não falava desse povo eleito de Deus em que os milagres mais evidentes e as graças mais notáveis substituíram a política humana 3 Toda gente sensata achou no livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo um mau homem e um mau filósofo Não me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo Aqueles que me conhecem atestam que não sou um homem mau Serei pois inimigo do cristianismo quando insisto na manutenção da tranqüilidade dos templos sob proteção gover namental e quando afirmo ao falar da sorte das grandes verdades que a Revelação é a única que manteve sua pureza em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se ela fosse simples princípio político O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama a religião de um dom sagrado do céu Poderseia provar que ele trata como simples princípio político o que lhe parece dom sacrossanto do céu 5 O autor é inimigo declarado do Ser supremo Peço no fundo de meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem 6 Se o cristianismo provocou algumas desventuras e alguns morticínios exageraos e silencia a respeito dos benefícios e das vantagens que a luz do Evangelho disseminou por toda a humanidade Em meu livro não se achará nenhum lugar onde se apontem males provocados pelo Evangelho Não citei um só fato sequer que se relacione com isso 7 O autor lança blasfêmia contra os mImstros da religião quando afirma que suas mãos se sujaram no sangue humano Todos aqueles que escreveram a História desde Carlos Magno até Otão o Grande e ainda depois desse príncipe proferiram idêntica blasfêmia Desconhecerseá que por três séculos os abades e os bispos nenhum escrúpulo manifestaram em caminhar para a guerra E não será o caso de afirmar sem blasfêmia que os padres que se achavam no meio das batalhas e que tOJIlaram parte na carnificina sujavam as mãos de sangue humano SO Os prelados da Igreja Católica tão recomendáveis por sua suavidade e humanidade figuram no livro Dos Delitos 144 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 145 e das Penas como autores de suplícios tão bárbaros quanto inúteis Não sou culpado por ter de repetir mais de uma vez a mesma coisa Não poderá ser citada em toda minha obra uma só frase que afirme que os padres inventaram os suplícios 9 0 A heresia não pode ser chamada de crise de lesa majestade divina conforme o autor do livro Dos Delitos e das Penas Não existe em todo meu livro um só termo que dê margem a tal imputação Propusme tãosomente tratar Dos Delitos e das Penas e não dos pecados Afirmei a propósito do crime de lesamajestade que apenas a ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéias mais claras podem nomear assim e castigar como tais com a morte crimes de naturezas diferentes O crítico talvez não saiba como se abusa da expressão lesamajestade nas épocas de despotismo e ignorância empregandoa para designar crimes de gênero totalmente diverso pois não levavam imediatamente à destruição da sociedade Consulte a lei dos imperadores Graciano Valentiniano e Teodósio Observe como eram tidos como criminosos de lesamajestade os que ousavam duvidar da bon dade de escolha do Imperador na ocasião em que ele oferecia algum emprego Uma outra lei de Valentiniano de Teodósio e de Arcádio lhe ensinará que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesamajestade Era necessário um decreto do Senado para libertar da acusação de lesamajestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores ainda que velhas e mutiladas Apenas depois do edito dos imperadores Severo e Antonino é que se deixou de ajuizar ação de lesamajestade contra aqueles que vendiam as estátuas dos imperadores Esses príncipes fizeram publicar um decreto que proibia a perseguição por esse delito àqueles que porventura tivessem atirado uma pedra contra a estátua de um imperador Domiciano condenou à morte uma senhora de Roma porque se despira diante de uma escultura Tibério mandou matar como criminoso de lesa majestade o cidadão que vendera a casa onde estava a estátua do imperador Em séculos menos afastados do nosso verá Henrique VIII abusar de tal maneira das leis que fez morrer mediante infame suplício o Duque de Norfolk a pretexto de lesamajestade e porque ele misturara as armas da Inglaterra com as de suà família Esse soberano até mesmo declarou réu do mesmo crime quem se atrevesse a prever a morte do príncipe Por isso quando ficou gravemente enfermo pela última vez os médicos recusa ramse a prevenilo do perigo real em que se encontrava 10 0 De acordo com o autor Dos Delitos e das Penas os hereges excomungados pela Igreja e exilados pelos príncipes são vítimas de uma palavra Todas essas interpretações são forçadas Limiteime a discorrer sobre o crime de lesamajestade humana Ora a palavra lesamajestadeserviu freqüentemente de pretexto à tirania especialmente ao tempo dos imperadores romanos Qualquer ação que tivesse a desventura de desagradálos configuraria delito de lesamajestade Suetônio afirma que o delito de lesamajestade era o crime dos que não tinham cometido nenhum delito Se eu afirmei que a ignorância e o despotismo deram esse nome a crimes de natureza diversa e fizeram os homens vítimas de uma palavra não fiz mais do que falar de acordo com a História 11 0 Não será terrível blasfêmia assegurar como faz o autor do livro Dos Delitos e das Penas que a eloqüência a declamação e as mais excelsas verdades são freio muito fraco para deter por muito tempo as paixões humanas Não julgo que a acusação de blasfêmia possa recair sobre o que afirmei da eloquência e da declamação O acusador 146 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 147 desejou certamente referirse à insuficiência que atribuo às mais sublimes virtudes Indago se considera que na Itália se conhecem essas sublimes verdades isto é as da fé Indubita velmente respondermeá que sim Contudo tais verdades ser viram de freio às paixões dos homens na Itália Todos os oradores sacros os magistrados os homens em uma só palavra garantirmeão o contrário É um fato portanto que as excelsas verdades são para as paixões ds homens um freio que não as refreia ou que logo se parte E enquanto houver em país católico juízes criminosos prisões e penas estará demonstrada a insuficiência das verdades excelsas 12 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacnlegas contra a Inquisição No meu livro não menciono nem direta nem indiretamente a Inquisição Indago contudo ao meu acusador se lhe parece bem de acordo com o espírito da Igreja a condenação de homens ao suplício nas fogueiras Não é do próprio seio de Romasob os olhos do vigário de Cristo na capital da religião católica que se cumprem nos dias atuais para com os protestantes de qualquer país todos os deveres de humanidade e de hospitali dade Os últimos papas e especialmente o atual receberam e recebem com grande bondade os ingleses os holandeses e os russos Tais povos de seitas e religiões diversas desfrutam em Roma de toda liberdade e ninguém está mais seguro do que eles de gozar ali da proteção das leis e do governo 13 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa debaixo de cores odiosas as ordens religiosas e especialmente os frades Muito difícil seria apontar um só lugar de meu livro que mencionasse ordens religiosas ou frades a não ser que se interprete de modo arbitrário o capítulo em que discorro sobre a ociosidade 14 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores sem fé para os quais os eclesiásticos são charlatães os monarcas tiranos os santos fanáticos a religião impostura e que nem sequer rspeitam a majestade do Criador contra a qual vomitam blasfêmias hediondas Passemos às acusações de sedição II ACUSAÇÕES DE SEDIÇÃO 10 O autor do livro Dos Delitos e das Penas julga déspotas cruéis todos os príncipes e todos os soberanos do século Apenas uma vez falei em meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa E aqui está pela primeira vez o que afirmo Venturoso o gênero humano se recebesse leis Hoje que vemos erguidos os tronos da Europa etc Ver o fim do cap XVI 2 0 Não podem deixar de surpreender a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta com fúria contra os monarcas e eclesiásticos A confiança e a liberdade não representam um mal Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter qui autem depravat vias suas manifestus erit Se aplaudi certo espírito de independência dos súditos foi na proporção em que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros juízes Quero até que os homens não precisando recear a escravidão porém desfrutando a liberdade sob a proteção das leis se tomem soldados intrépidos defensores da pátria e do trono cidadãos cheios de virtude e juízes incorruptíveis que levem para junto do trono os tributos e o amor de todas as ordens do país e que disseminemnas 148 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 149 choupanas a segurança de um destino sempre mais doce Não estamos mais nos tempos de Calígula de Nero ou de Heliogábalo E o crítico pouquíssima justiça faz aos princípios reinantes crendo que meus preceitos possam ofendêlo 3 O autor do livro Dos Delitos e das Penas assegura que o interesse do particular supera o de toda a sociedade e em geral o dos que a representam Se tal absurdo estivesse no livro Dos Delitos e das Penas não acredito que meu adversário escrevesse um livro de 19i páginas para refutálo 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas não confere aos monarcas o direito de castigar com a morte Como aqui não se trata nem de religião nem de governo porém apenas da exatidão de um raciocínio meu acusador tem intira liberdade de julgar o que desejar Resumo meu silogismo aSSIm Não se deve impor a pena de morte se esta não for realmente útil e necessária ora a pena de morte não é realmente útil nem necessária Logo não se deve impor a pena de morte Este não é o lugar para uma explanação sobre os direitos dos moarcas O crítico certamente não desejará sustentar que se deva Impor a pena de morte ainda que ela não seja realmente úil nem necessária Proposta tão cruel e escandalosa não pode Ir da boca de um cristão Se a segunda parte do silogismo não e correta tratarseá de crime de lesalógica e jamais de lesa majestade sendo escusados os meus pretensos erros Parecem me eles com aqueles em que caíram tantos cristãos zelosos da primeira Igreja 34 parecemse com aqueles em que caíram os frades da época de Teodósio o Grande ao fim do século IV Em seus Anais da Itália afirma Muratori que no ano 389 Teodósio publicou uma lei pela qual determinava aos frades que ficassem nos conventos pois levavam a caridade pelo próximo até ao ponto de subtrair os criminosos das mãos da justiça não desejando que se matasse ninguém A minha caridade não vai tão longe e aceitarei de boa vontade que a daquele tempo se regesse por falsos preceitos Toda ação violenta contra a autoridade pública é criminosa Ainda tenho duas palavras a dizer Existirá no mundo lei que proíba afirmar ou prescrever que o Estado pode existir e manter a paz interna sem utilizar a pena de morte contra o culpado Diodoro conta no Livro I Capítulo LXV que Sabacão rei do Egito se tomou modelo de clemência por comutar penas capitais em escravidão e por dar emprego feliz à sua autoridade condenando os culpados a trabalhos públicos Estrabão no Livro XI informanos que havia junto ao Cáucaso algumas nações que desconheciam a pena de morte ainda quando o crime merecesse os maiores tormentos nernini mortem irrogare quamvis pessima merito Tal verdade está referida na História Romana da época da Lei Pórcia que proibia tirar a vida de cidadão romano se a sentença de morte não estivesse confirmada por todo o povo Tito Lívio fala dessa Lei no Livro X Capítulo IX de sua obra Por fim o exemplo próximo de um reinado de vinte anos no maior império do mundo a Rússia demonstra ainda esta verdade A Imperatriz Isabel ver nota do tradutor a de número 22 morta há alguns anos 1762 jurou quando ascendeu ao trono dos czares que não condenaria à morte nenhum culpado durante o seu reinado Essa augusta princesa cumpriu esse feliz compromisso que assumira sem interromper o curso da justiça penal e sem prejudicar a tranqüilidade pública Se tais fatos são incontestáveis será então correto dizer que o Estado pode subsistir e ser venturoso sem castigar com a morte qualquer criminoso Diagramação elrânica EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS Rllll TllbllfingllÇlra 140 T6rreQ Loja 01 Te 0II 31152433 FliX 0II 31063772 CEP 01020901 São Pllulo SP Brasil Impresso nas pficmas da EDITORA PARMA LIDA Telefone 011 64127822 Av Antonio 8ardella 280 Guarulhos São Paulo Brasil Com filmes fornecidos pelo editor
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
50
Sentença in dubio pro societate: Inversão de valores no Tribunal do Júri
Direito Processual Penal
PUC
76
Analise de Inquerito
Direito Processual Penal
PUC
4
Medidas Cautelares Processuais Penais: Teoria e Princípios
Direito Processual Penal
PUC
62
Habeas Corpus nº 598886 SC: Análise sobre Reconhecimento Fotográfico na Fase de Inquérito Policial
Direito Processual Penal
PUC
4
Queixa-Crime Difamação e Injúria - Modelo Pratica Simulada Advocacia Criminal
Direito Processual Penal
PUC
3
Análise da Relação entre o Podcast do Projeto Querino e o Acórdão do HC 598886 do STJ
Direito Processual Penal
PUC
62
Elaborar um Hc e uma Resposta a Acusação
Direito Processual Penal
PUC
4
Modelo de Recurso Criminal - Incêndio em Imóvel - Embriaguez Completa
Direito Processual Penal
PUC
1
Resumo Condenacao Aecio Pereira Atos 08 Janeiro STF e Artigos 359L 359M
Direito Processual Penal
PUC
3
Inquerito Policial-Natureza Juridica Funcao e Atos de Investigacao
Direito Processual Penal
PUC
Preview text
CE5ARE BECCARIA Tradução J CRETELLA JR e AGNES CRETELLA DOS DELITOS e DAS PENAS 2a edição revista U U UJ CC1 rI1ascido em 1738 e falecido em 1793 aos 55 anos CESARE BECCARIA conhecido como o Marquês de Beccaria é o famoso autor do livro Dos Delitos e das Penas escrito aos 26 anos de idade livro que revolucionou o Direito Penal e o Direito Processual Penal Natural de Milão cursou Direito na Universidade de Pavia Tendo tido um conflito com o pai que se opusera a seu casamento com Teresa de Blasco foi preso e atirado de repente ao cárcere por influência do genitor contrário à união dos jovens Pôde então observar e sentir na própria carne as agruras de uma prisão de masmorra do século XVIII assistindo de perto ao horror das torturas infligidas A educação recebida dos jesuítas na infância foi contrabalançada na juventude pela leitura de Maquiavel de Galileu dos enciclopedistas e dos iluministas franceses Voltaire que Beccaria visitou em Genebra Diderot DAlembert Montesquieu que conheceu em Paris modificaramlhe o modo de pensar e quando regressou à Itália só não foi retaliado pelos inimigos e pela Inquisição por causa da proteção que lhe deu o Conde Firmiani a quem prestara serviços quando este governou a Lombardia Resistindo a todos os ataques sobrevivendo a todas as perseguições o pequeno grande livro de Beccaria foi consagrado pelas gerações posteriores registrando na ciência do direito penal o teorema da proporcionalidade entre o delitoU cometido e a pena aplicada como uma das grandes conquistas do moderno direito criminal EDITaRAm REVISTA DOS TRIBUNAIS ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel 0800112433 httpwwwrtcombr RT TEXTOS FUNDAMENTAIS DOS DELITOS E DAS PENAS RT TEXTOS FUNDAMENTAIS Publicados nesta Coleção A luta pelo Direito Rudolf von Ihering Tradução de J Cretella Jr e Agnes Cretella 1 ed 2 tir São Paulo RT 1999 O Príncipe Maquiavel Tradução de J Cretella Jr e Agnes Cretella 2 ed 2 tir São Paulo RT 1999 Dados Internadonals de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Beccaria Cesare Bonesana Marchesi di 17381793 Dos delitos e das penas I Cesare Beccaria I tradução J Cretella Jr e Agnes Cretella I 2 ed rev 2 tiro São Paulo Editora Revista dos Tribunais 1999 RT textos fundamentais ISBN 8520314422 I Direito penal 2 Crime e criminosos 3 Penas Direito penal 4 Pena de morte 5 Tortura I Título 963563 CDU343 Índices para catálogo sistemático 1 Direito penal 343 CESARE BECCARIA DOS DELITOS E DAS PENAS Tradução J CRETELLA JR e AGNES CRETELLA 2a edição revista 2a tiragem EDITORAm REVISTA DOS TRIBUNAIS RT TEXTOS FUNDAMENTAIS DOS DELITOS E DAS PENAS CESARE BECCARIA Tradução JosÉ CRETELLA JR e AGNES CRETELLA Da edição Dei Delitti e delle Pene de Cesare Beccaria UTET Unione Tipografico Editrice Torinese Milão Roma Nápoles nuova ristampa 1911 em XLVII capítulos p 1797 2 edição revista 2 tiragem desta edição 1999 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA Diretor Responsável CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel 0800112433 Rua Tabatinguera 140 Térreo Loja 1 Caixa Postal 678 Te 011 31152433 Fax 011 31063772 CEP 01020901 São Paulo SP Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio ou processo especialmente por sistemas gráficos microfílmicos fotográ ficos reprográficos fonográficos videográficos Vedada a memorização eou a recupe ração total ou parcial bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados Essas proibições aplicamse também às características gráficas da obra e à sua editoração A violação dos direitos autorais é punível como crime art 184 e parágrafos do Código Penal com pena de prisão e multa busca e apreensão e indenizações diversas arts 101 a 110 da Lei 9610 de 19021998 Lei dos Direitos Autorais Impresso no Brasil 08 1999 ISBN 8520314422 ln rebus quibuscurnque difficilioribus non expectandum ut quis simul et serat et metat sed preparatione opus est ut per gradus maturescant BACON SO TREU WIE MOGLIG SO FREI WIE NOTIG 0 E d m to as as matérias e em especial nas mais difíceis não se deve esperar que alguém semeie e colha ao mesmo tempo pois é preciso um período de preparação para que as coisas amadureçam gradativamente 00 T ão fi leI quanto possível tão livre quanto necessário SUMÁRIO Sobre Beccaria 9 Nota dos Tradutores à L edição 13 DOS DELITOS E DAS PENAS A quem ler 17 Introdução 23 I Origem das penas 27 II Direito de punir 28 m Conseqüências 30 IV Interpretações das leis 32 V Obscuridade das leis 35 VI Proporção entre os delitos e as penas 37 VII Erros na medida das penas 40 vm Divisão dos delitos 42 IX Da honra 45 X Dos duelos 48 XI Da tranqüilidade pública 50 XII Finalidades da pena 52 xm Das testemunhas 53 XIV Indícios e formas de julgamento 56 XV Acusações secretas 59 XVI Da tortura 61 XVII Do fisco 67 XVIII Dos juramentos 69 XIX Rapidez da pena 71 8 DOS DELITOS E DA PENAS XX Violências 73 XXI Penas aplicadas aos nobres 74 XXII Furtos 76 xxrn Infâmia 78 XXIV Os ociosos 80 XXV Banimento e confisco 82 XXVI Do espírito de família 84 XXVII Brandura das penas 87 XXVill Da pena de morte 90 XXIX Da prisão 98 XXX Processos e prescrições 101 XXXI Delitos de prova difíciL 104 XXXII Suicídio 108 xxxm Contrabando 112 XXXIV Dos devedores 114 XXXV Asilos 117 XXXVI Da recompensa 118 XXXVII Tentativas cúmplices e impunidade 120 XXXVill Interrogatórios sugestivos e depoimentos 122 XXXIX De um gênero particular de delitos 124 XL Falsas idéias de utilidade 126 XLI Como prevenir os delitos 128 XLII Das ciências 130 XLill Dos magistrados 133 XLIV Prêmios 134 XLV Educação 135 XLVI Das graças 136 XLVII Conclusão 139 Respostas às Notas e Observações de um frade dominicano sobre o livro Dos Delitos e das Penas 141 I Acusações de impiedade 142 II Acusações de sedição 147 SOBRE BECCARIA Cesare Beccaria nasceu na cidade de Milão no ano de 1738 Tendo freqüentado em Paris o Colégio dos Jesuítas estudou então Literatura Filosofia e Matemática As leituras das Lettres Persanes de Montesquieu e De LEsprit de Helvetius muita influência exerceram em sua for mação Suas preocupações orientadas para o estudo da Filosofia levaramno a fundar a sociedade literária que se formou em Milão e que divulgou os princípios fundamentais da nova Filosofia francesa Para divulgar na Itália as novas idéias hauridas na França Beccaria fez parte daredação do jornal O Café publicado em 1764 Tendo conhecido as agruras do cárcere para onde foi enviado por injusta interferência paterna logo ao sair se insurgiu Beccaria contra as injustiças dos processos penais em voga discutindo com os amigos entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri os diversos problemas rela cionados com a prisão as torturas e a desproporção entre o delito e a pena Nasceu assim o livro Dei Delitti e delle Pene escrito aos 26 anos de idade Receoso de possíveis perseguições imprimiu a obra secretamente em Livorno e mesmo assim abrandando sua colocação crítica com expressões vagas e genéricas O livro Dos Delitos e das Penas é de certo modo a Filosofia francesa aplicada à legislação penal da época Contra a tradição clássica invoca a razão Tornase o arauto do protesto público contra os julgamentos secretos o juramento imposto ao acusado a tortura o confisco a pena infamante a delação a desigualdade diante da sanção e a atrocidade do suplício Ao sustentar que as mesmas penas devem ser aplicadas aos 10 DOS DELITOS E DA PENAS SOBRE BECCARIA 11 poderosos e aos mais humildes cidadãos desde que hajam cometido os mesmos crimes Beccaria proclamou com desassombro pela primeira vez o princípio da igualdade perante a lei Estabeleceu limites entre a justiça divina e a justiça humana entre o pecado e o crime Condenou o pseudodireito de vingança tomando por base o ius puniendi e a utilidade social Considerou sem sentido a pena de morte e verberou com veemência a desproporcionalidade entre a pena e o delito assim como a separação do Poder Judiciário do Poder Legislativo O sucesso da obra foi imediato principalmente entre os filósofos franceses O abade Morellet traduziu para o francês o livro Dos Delitos e das Penas Diderot anotouo Voltaire colocouo nas nuvens e comen touo DAlembert Buffon e Helvetius manifestaram desde logo admiração e entusiasmo pelo novo e audacioso autor Em 1766 tendo ido a Paris foi alvo das maiores demonstrações de apoio Regressando porém a Milão teve de suportar infamante cam panha por parte dos inimigos que se apegavam aos preconceitos para acusálo de heresia e de desobediência contra a Igreja e contra o Governo A denúncia não teve maiores conseqüências mas Beccaria daí por diante foi mais reservado com medo de que novas perseguições o levassem à prisão Em 1768 o Governo da Áustria sabendo que ele recusara as ofertas de Catarina II da Rússia que o convidara para lecionar em São Petersburgo criou especialmente para Beccaria a Cátedra de Economia Política Cesare Beccaria morreu em Milão em 1793 legando ao mundo o seu pequeno grande livro Dos Delitos e das Penas obra notável cujo remate apresentado no teorema final serve ainda hoje de assunto de meditação e análise por parte dos criminalistas O livro de Beccaria foi traduzido em todas as línguas cultas do mundo No Brasil há uma dezena de traduções como entre outras a de Aristides Lobo com prefácio de Evaristo de Morais publicada pela Atena Editora em São Paulo há cerca de meio século num total de XLII capítulos O texto que tomamos por base para esta tradução foi o da UTET Unione Tipografico Editrice Torinese Milão Roma Nápoles nuova ristampa 1911 em XLVII capítulos p 1797 O estilo de Beccaria é barroco prolixo com inúmeras metáforas e pensamento nem sempre preciso longe por exemplo do límpido e claro estilo de um Descartes no Discurso do Método NOTA DOS TRADUTORES À La EDIÇÃO Inestimável a contribuição de CESARE BECCARIA 1738I 793 para a elaboração da modema ciência do direito penal De família nobre estudou primeiro numa escola da Companhia de Jesus em Parma freqüentando mais tarde a Universidade de Pavia estudando Filosofia e Direito Aos 26 anos de idade publicou Dei Delitti e Delle Pene resultado da triste experiência que passou em prisão italiana onde denunciado pelo pai teve a vivência do arbitrário sistema carcerário então vigente o que lhe forneceu matériaprima e inspiração para a elaboração de sua obraprima Antes a desproporcionalidade entre o delito praticado e a pena aplicada levava a flagrantes injustiças mas o Marquês de Beccaria conforme se lê no último parágrafo de seu livro no famoso teorema conclusivo a pena não deve ser a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular devendo ser essencialmente pública rápida necessária a mínima dentre as possíveis nas circunstâncias ocorridas proporcional ao crime e ditada pela lei DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER1 A LGUNS remanescentes das Leis de antigo povo conquis tador2 compiladas por ordem do príncipe3 que reinou há doze séculos em Constantinopla combinados depois com ritos dos longobardos inseridos em confusos calhamaços de intérpretes particulares e obscuros formam a tradição de opiniões que no entanto em grande parte da Europa recebe o nome de leis4 Coisa tão prejudicial quanto comum é que I Este Prefácio sob o nome de Ao Leitor ou A quem ler apresentado em forma de Aviso não existia na primeira edição de 1764 tendo sido incluído porém nas edições posteriores quando Cesare Beccaria preocupado com as críticas veementes e injustas de Frei Angelo Fachinei e de outros da época não quis responder sem se defender antes das acusações de revolta contra o príncipe e contra a religião dirigidas ao livro recémpublicado 2 O antigo povo conquistador é o povo romano que estendeu seu domínio a grande parte do mundo antigo 3 O Príncipe ou melhor o Imperador que reinou em Constantinopla de 527 a 565 foi o grande Justiniano 482 a 565 casado com Teodora o responsável pela elaboração do Corpus Juris Civilis 4 Cesare Beccaria faz referências ao direito da época que não se encontrava disciplinado nos códigos mas que se baseava no Corpus Juris Civilis mandado organizar pelo Imperador Justiniano no edito de Rotário e nas leis dos longobardos cuja interpretação era mais difícil do que a doutrina Essa legislação era incompreensível mesmo para o jurista experiente da época 18 OOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 19 uma oplmao de CarpZOW5 ou um antigo uso assinalado por Claro ou uma tortura sugerida por Farinaccio 6 com irada complacência sejam leis obedecidas com segurança por aqueles que deveriam tremer qando decidem sobre a vida e o destino dos homens Essas leis resíduos de séculos os mais bárbaros são examinadas neste livro sob ângulo que interessa ao sistema penal e ousamos expor aqui suas desordens aos responsáveis pela felicidade pública em estilo que afastará a plebe não esclarecida e impaciente A ingênua busca da verdade a independência com respeito às opiniões vulgares com que este livro foi escrito são conseqüências do brando e esclarecido governo sob o qual vive o autor Os grandes monarcas benfeitores da humanidade que nos dirigem7 amam as verdades expostas pelo obscuro filósofo com um nãofanático vigor só despertado por quem afastado da razão apela para a força ou para o engenho E as desordens presentes por quem lhe examina bem as circunstâncias são a sátira e a censura dos tempos passados e não as deste século e de seus legisladores 5 Benedikt Carpzow OU em português Benedito Carpsóvio de Wittemberg 15951666 Julio Emilio Claro de Alexandria 1525 1575 e Próspero Farinaccio de Roma 15541618 dedicaram grande atenção às questões da tortura no campo do direito considerandoa entretanto como normal meio de obtenção da prova Foram autores de Tratados célebres na época especialmente no que diz respeito à prática criminal Beccaria não tinha conhecimento profundo do texto desses jurisconsultos nem a idéia de renovação que a doutrina do direito comum operara em todo o sistema jurídico da época e sobre cuja influência histórica o jurista italiano Manzoni foi intérprete muito mais criterioso quando na obra Storia della cnna infame observava surpreso que a pequena monografia Dos Delitos e das Penas que proporcionara não apenas a abolição da tortura mas também a reforma de toda a legislação criminal não tivesse sido ainda descoberta e considerada pela ciência do direito 6 Alguns tradutores por lapso escreveram Francisco ao invés de FarinacciQ 7 Quanto aos príncipes iluminados sobre os quais Beccaria faz referência cfr o final dos Cap xn e XIV e a monografia de Voltaire Éage historique de la raison Quem quiser honrarme com críticas comece pois por bem entender o fim a que esta obra se destina escopo que longe de diminuir a legítima autoridade serviria mais para engrandecê la caso a opinião tenha mais poder do que força sobre os homens e caso a suavidade e a humanidade a justifiquem aos olhos de todos As malintencionadas críticas publicadas contra este Livro8 baseiamse em confusas noções e me obrigam a inter romper por vezes o raciocínio com os leitores esclarecidos para encerrar de uma vez para sempre com qualquer possibilidade de erro de um tímido zelo ou com as calúnias da maldosa inveja Três são as fontes das quais derivam os princípios morais e políticos reguladores dos homens a Revelação9 a Lei Natural e as Convenções artificiais da sociedade Não há comparação entre a primeira e as outras duas quanto à finalidade principal mas nisto as três se assemelham por conduzirem à felicidade nesta vida mortal Considerar as relações da última não é excluir as relações entre as duas primeiras Na verdade assim como aquelas embora divinas e imutáveis foram por culpa dos homens alteradas de mil modos em suas mentes distorcidas pelas falsas religiões e pelas arbitrárias noções de vício e de virtude assim também me parece necessário examinar independente de qualquer outra consideração aquilo que nasce das puras e expressas convenções humanas ou supostas para a necessidade e utilidade comum idéia essa a que toda seita e todo sistema de moral deve necessariamente reportarse E será sempre louvável a iniciativa que obrigue mesmo os mais distantes e incrédulos em conformarse com os princípios que levam os homens a viver em sociedade Há pois três classes diversas de virtude e vício religiosa natural e política Estas três classes nunca devem estar em contradição entre si mas nem todas as conseqüências e os deveres resultantes de uma resultam das outras Nem tudo o que a Revelação exige é cobrado pela Lei 8 O autor alude ao virulento artigo publicado em 1764 por Frei Angelo Facchinei sob o título Notas e Observações sobre o livro Dos Delitos e das Penas por ordem do governo da República de Veneza Ver p 141 deste livro 9 Referese à Revelação divina 20 DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 21 Natural nem tudo o que esta requer é exigido pela pura Lei Social mas é importantíssimo separar o que resulta desta convenção ou seja dos pactos expressos ou tácitos entre os homens porque tal é o limite daquela força que pode legitimamente exercerse entre homens e homens sem ordem especial do Ser supremo Assim a idéia da virtude política pode pois sem desdouro ser deno minada de variável a da virtude natural seria sempre límpida e manifesta se a imbecilidade ou as paixões dos homens não a obscurecessem a da virtude religiosa é sempre una e constante porque revelada imediatamente por Deus e por ele conservada Seria pois erro o atribuir a quem fala de convenções sociais e de suas conseqüências princípios contrários à Lei Natural ou à Revelação porque não é delas que aqui se fala Seria erro também acreditar que aquele que falando de estado de guerra antes do estado de sociedade o tomasse no sentido hobbesiano1O ou seja o de nenhum dever e de nenhuma obrigação anterior ao invés de tomálo como fato nascido da corrupção da natureza e da falta de uma sanção expressa Seria erro imputar um delito ao escritor que considerasse as emanações do pacto social e de não colocálo antes do próprio pacto A Justiça divina e a Justiça natural são por essência imutáveis e constantes porque a relação entre dois objetos iguais 10 Hobbesiano é relativo ao filósofo inglês Thomas Hobbes 15881679 segundo o qual antes do contrato social os homens viviam conforme já observara o romano Plauto em contínua e mortífera luta entre si homo homini lupus fazendo portanto preceder o estado político isto é a vida em sociedade por um estado natural que considerava cada homem em luta contínua com os semelhantes negando assim o direito natural anterior às leis Hobbes prestigiado filósofo inglês concebeu assim o contrato social como a evolução da sociedade do estado da natureza do homo homini lupus o homem é um lobo para o homem para o estado político do homo homini deus o homem é deus para o homem Neste ponto Beccaria procura conciliar a hipótese do estado de guerra présocial com o princípio da Revelação divina e da lei natural Em certo aspecto nesta passagem é também visível a influência de Montesquieu nos dois primeiros capítulos do Espírito das Leis é sempre a mesma mas a Justiça humana ou seja política não sendo senão a relação entre a ação e o estado variável da sociedade pode variar à medida que se tome necessária ou útil à sociedade tal ação e só será bem discernida por quem analisar as relações complicadas e mutabilíssimas das combinações civis Tão logo esses princípios profundamente distintos se tomem confusos deixará de existir a esperança de bem raciocinar sobre as matérias püblicas Cabe aos teólogos estabelecer as fronteiras entre o justo e o injusto quanto à intrínseca malícia ou a bondade do ato Estabelecer as relações do justo e do injusto político ou seja do que é útil ou danoso para a sociedade cabe ao publicista Nenhum objeto poderá prejudicar o outro pois cada um vê quanto a virtude puramente política deva ceder à imutável virtude emanada de Deus Quem repito desejar honrarme com críticas não comece portanto supondo em mim a existência de princípios destruidores da virtude ou da religião pois tenho demonstrado não serem esses os meus princípios e ao invés de acharme incrédulo ou sedicioso procure ver em mim um mau lógico ou um político despreparado não trema a cada proposta que apoie os interesses da humanidade convençame da inutilidade ou do dano político que poderia resultar dos meus princípios mostreme a vantagem das práticas recebidas Dei público testemunho da minha religião e da submissão ao meu Soberano na resposta às Notas e Observaçõesli Responder a ulteriores escritos semelhantes àque les seria supérfluo mas quem quer que escreva com a decência que convém a homens honestos e com tais luzes que me dispense de provar os primeiros princípios seja qual for a natureza deles pois encontrará em mim não só o homem que procura responder como o pacífico amante da verdade 11 A resposta redigida por Pietro Verri com a colaboração do irmão foi publicada seis dias após o recebimento em Milão da crítica acerba parcial e injusta de Frei Fachinei escrita esta por determinação do prepotente e suscetível Conselho dos Dez de Veneza supostamente criticado pela obra de Beccaria conforme pensavam seus membros A réplica dos irmãos Verri recebeu o nome de Apologia INTRODUÇÃO R EORA geral os homens abandonam os mais relevantes regulamentos à prudência diária ou à discrição daque les cujo interesse é o de contestar as leis mais sábias que por natureza tomam universais as vantagens e resistem ao esforço que tendem a concentrarse em poucos separando de um lado o máximo de poder e de felicidade e de outro toda a fraqueza e a miséria Por isso só após haver passado entre si mil erros nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo dispõemse eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades as quais por sua própria simplici dade escapam às mentes vulgares não habituadas a analisar os objetos mas a receberlhes todas as impressões de uma só vez mais por tradição que por exame Olhemos a história e veremos que as leis que são ou deveriam ser pactos entre homens livres não passaram geralmen te de instrumentos das paixões de uns poucos ou nasceram de fortuita e passageira necessidade não já ditadas por frio analista da natureza humana capaz de concentrar num só ponto as ações de muitos homens e de considerálas de um só ponto de vista a máxima felicidade dividida pelo maior número 12 Felizes as 12 Beccaria foi o primeiro a formular este princípio nestes exatos termos Tanto nesta como em outras passagens deste livro Dos Delitos e das Penas cfr Cap II e XV as origens das leis têm como fundamento a fusão das teorias contratualistas de Locke e de Rousseau com as 24 DOS DELITOS E DAS PENAS INTRODUÇÃO 25 pouquíssimas nações que não esperaram que o lento movimento das combinações e vicissitudes humanas após haverem atingido o mal extremo conduzissem ao bem mas que aceleraram as passagens intermediárias com boas leis E merece a gratidão dos homens o filósofo que de seu humilde e obscuro gabinete teve a coragem de lançar à multidão as primeiras sementes por longo tempo infrutíferas das úteis verdades Conheceramse verdadeiras relações entre o soberano e seus súditos e entre as diversas nações Prosperou o comércio à luz das verdades filosóficas postas pela imprensa ao alcance de todos acendeuse entre as nações tácita guerra de atividades a mais humana e a mais digna entre homens razoáveis Estes são os frutos que devemos às luzes deste século Pouquíssimos porém examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais parte tão importante quão descurada da legislação em quase toda a Europa Pouquíssimos os que remontando aos princípios gerais elimina ram os erros acumulados durante séculos refreando ao menos cOm a força que só possuem as verdades conhecidas o demasiado livre curso do mal dirigido poder que deu até hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade Entretanto o gemido dos fracos vítimas da cruel ignorância e da rica indolência os bárbaros tormentos com pródiga e inútil severidade multiplicados por delitos não provados ou quiméricos a esqualidez e horrores da prisão aumentados pelo mais cruel algoz dos desgraçados a incerteza é que deveriam comover aquela espécie de magistrados que guiam as opiniões das mentes humanas O imortal Presidente Montesquieu l3 discorreu rapidamente sobre este tema 14 A indivisível verdade forçoume a seguir os teorias utilitaristas que Beccaria assimilou do pensador Helvétius 17151771 de quem foi grande admirador Beccaria cérebro essen cialmente receptivo toma seu o pensamento de Locke e de Rousseau 13 Montesquieu 16891755 foi eleito Presidente do Parlamento órgão jurisdicional do reino da França de Bordeaux jurista e pensador iluminista autor de inúmeras obras entre as quais a fundamental é o Esprit des lois 14 Beccaria declarou ao tradutor Morellet que sua conversão à filosofia ocorreu quando da leitura da obra Lettres persanes de Montesquieu traços luminosos desse grande homem mas os pensadores para os quais escrevo saberão distinguir os meus passos dos dele Afortunado serei eu se puder como ele obter os secretos agradecimentos dos obscuros e pacíficos adeptos da razão e se puder inspirar aquele doce frêmito com o qual as almas sensíveis respondem a quem luta pelos interesses da humanidade porém neste seu trabalho é bem visível a influência do Esprit des lois em inúmeros pontos I ORIGEM DAS PENAS L EIS Ão condições sob as quaiholllens independentes e isolados se uniram em sociedade cansados de viver em contínloclLQ glTl e degozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservála Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar o restante com segurança e tranqüilídade A soma de todas essas porções de liberdades sacrificaaas ao bem de cada um forma a soberania de uma nação eo Soberano é seu legítimo depositário e administrador Não bastava porém formar esse repositório Era mister defendêlo das usurpações privadas de cada homem em particular o qual sempre tenta não apenas retirar do escrínio a própria porção mas também usurpar à porção dos outros Faziamse necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o despótico espírito de cada homem de submergir as leis da sociedade no antigo caos Essas são as penas estabelecidas contra os infratores das leis Digo motivos sensíveis porque a experiência mostrou que a multidão não adota princípios estáveis de conduta nem se afasta do princípio universal de dissolução no universo físico e moral senão por motivos que imediatamente afetam os sentidos e que sobem à mente para contrabalançar as fortes impressões das paixões parciais que se opõem ao bem universal Nem a eloqüência nem as declamações nem mesmo as mais sublimes verdades bastaram para refrear por longo tempo as paixões despertadas pelos vivos impactos dos objetos presentes DIREITO DE PUNIR 29 II DIREITO DE PUNIR T CDA PENA que uão derive da absoluta uecessidade diz o grande Montesquieu é tirânica proposição esta que pode ser assim generalizada todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico Eis então sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares Tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano dá aos súditos Consultemos o coração humano e nele encontraremos os princípios fundamentais do verdadeiro direito do soberano de punir os delitos pois não se pode esperar nenhuma vantagem durável da política moral se ela não se fundamentar nos sentimentos indeléveis do homem Toda lei que se afaste deles encontrará sempre resistência contrária que acabará vencendo da mesma forma que uma força embora mínima aplicada porém continuamente vencerá qual quer movimento aplicado com violência a um corpo Homem algum entregou gratuitamente parte da própria liberdade visando ao bem público quimera esta que só existe nos romances Se isso fosse possível cada um de nós desejaria que os pactos que ligam os outros não nos ligassem Cada homem faz de si o centro de todas as combinações do globo A multiplicação do gênero humano pequena por si só mas muito superior aos meios que a estéril e abandonada natureza oferecia para satisfazer as necessidades que cada vez mais se entrecruzavam é que reuniu os primeiros selvagens As primeiras uniões formaram necessariamente outras para resistir àquelas e assim o estado de guerra transportouse do indivíduo para as nações Foi portanto a necessidade que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível apenas a suficiente para induzir os outros a defendêlo O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir O resto é abuso e não justiça é fato mas não direito 15 Observemos que a palavra direito não se opõe à palavra força mas a primeira é antes uma modificação da segunda isto é a modificação mais útil para a maioria Por justiça entendo o vínculo necessário para manter unidos os interesses particulares que do contrário se dissolve riam no antigo estado de insociabilidade Todas as penas que ultrapassarem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas pela própria natureza É necessário evitar associar à palavra Justiça a idéia de algo real como força física ou ser vivo Ela é mero modo de conceber dos homens o que influencia infinitamente a felicidade de cada um Também não me refiro àquele tipo de justiça que emana de Deus e que tem relações imediatas com as penas e recom pensas da vida futura 15 Observese que a palavra direito não contradiz a palavraforça Direito é a força submetida à lei para vantagem da maioria Entendo por Justiça os laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares Se esses laços se quebrassem não haveria sociedade É mister que se evite ligar a palavra justiça à idéia de força física ou de um ser existente Justiça é pura e simplesmente o ponto de vista a partir do qual os homens encaram as coisas morais para o bemestar de cada um Não pretendo falar aqui da justiça de Deus que é de outra natureza tendo relações imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura Nota de Beccaria CONSEQÜÊNCIAS 31 ln CONSEQÜÊNCIAS A PRIMEIRA conseqüência destes princípios é que só as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes e esta autoridade somente pode residir no legislador que representa toda a sociedade unida por um contrato social Nenhum magistrado que é parte da sociedade pode com justiça aplicar pena a outro membro dessa mesma sociedade pena essa superior ao limite fixado pelas leis que é a pena justa acrescida de outra pena Portanto o magistrado não pode sob qualquer pretexto de zelo ou de bem comum aumentar a pena estabelecida para um delinqüente cidadão A segunda conseqüência é que se cada membro em particular está ligado à sociedade essa sociedade está igualmente ligada a todos os seus membros por um contrato que por natureza obriga as duas partes Essa obrigação que desce do trono até a choupana e liga igualmente o mais poderoso ao mais desgraçado dos homens nada mais é do que o interesse de todos em observar pactos úteis à maioria A violação de um só pacto gera a autorização da anarquia O soberano que representa a própria sociedade só pode promulgar leis gerais que obriguem a todos os membros mas não pode julgar se um deles violou 0 Ver a nota 16 p 32 o contrato social pois então a nação se dividiria em duas partes uma representada pelo soberano que apontaia a violação do contrato outra pelo acusado que a negaria E pois necessário que um terceiro julgue a verdade do fato Daí a necessidade do magistrado cujas sentenças sejam inapeláveis e consistam tão só em afirmações ou negações de fatos particulares A terceira conseqüência é que mesmo provada que a atrocidade da pena não sendo imediatamente oposta ao bem comum e ao próprio fim de impedir os delitos fosse apenas inútil ela seria ainda assim contrária não só às virtudes benéficas efeito de uma razão esclarecida que prefere Q comando de homens felizes ao de um rebanho de escravos em meio aos quais circulasse perpetuamente uma tímida crueldade contrária também àjustiça e à natureza do próprio contrato social INTERPRETAÇÕES DAS LEIS 33 IV INTERPRETAÇÕES DAS LEIS Q UARTA conseqüência A utridade de interpre eis penais não pode ser atnbUIda nem mesmo aos JUIzes criminais pela simples razão de que eles não são legisladores Os juízes não receberam as leis de nossos antepassados como tradição de família nem como testamento que só deixasse aos pósteros a missão de obedecer mas recebemnas da sociedade vivente ou do soberano que a representa como legítimo depo sitário do atual resultado da vontade de todos Não nas recebem como obrigações de antigo juramento nulo por ligar vontades não existentes16 iníquo por reduzir os homens do estado de 16 Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão pois a natureza do contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes Esse liame de obrigações mútuas que desce do trono até a cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade tem como fim único o interesse público que consiste na observação das convenções úteis à maioria Violada uma dessas convenções abrese a porta à desordem A palavra obrigação é uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência Existem obrigações a cumprir no comércio e na sociedade Uma obrigação supõe um raciocínio moral convenções raciocinadas Não se pode porém emprestar à palavra obrigação uma sociedade ao estado de rebanho mas como efeito de um juramento tácito ou expresso que as vontades reunidas dos súditos vivos fizeram ao soberano como vínculos necessários para frear e reger o fermento intestino dos interesses particulares Esta é a física e real autoridade das leis Quem será então o legítimo intérprete da lei O soberano isto é o depositário das atuais vontades de todos ou o juiz cujo ofício é apenas o de examinar se determinado homem cometeu ou não ação contrária às leis Em cada crime o juiz deverá estruturar um silogismo perfeitQ ª maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme ou não à lei a conseqüência a liberdade ou a pena Quando o juiz for coagido ou quiser formular somente dois silogismos a porta à incerteza estará aberta Nada é mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei Este é um dique aberto à torrente das opiniões Esta verdade que parece paradoxal às mentes vulgares mais abaladas por pequenas desordens presentes do que pelas funestas mas remotas conseqüências que nascem de um falso princípio radicado numa nação pareceme demons trada Nossos conhecimentos e todas as nossas idéias têm uma recíproca conexão Quanto mais são complicados mais nume rosas são as estradas que a eles levam e deles partem Cada homem tem seu ponto de vista e o mesmo homem em épocas diferentes pensa de modo diferente O espírito da lei seria então o resultado da boa ou da má lógica de um juiz de uma fácil ou difícil digestão dependeria da violência de suas paixões da fraquea de quem sofre das relações do juiz com a vítima e de todas as mínimas forças que alteram as aparências de cada objeto no espírito indeciso do homem Assim vemos a sorte de um cidadão mudar várias vezes ao passar por diversos tribunais e vemos a vida dos miseráveis ser vítima de falsos raciocínios ou do atual fermento dos humores idéia física ou real É palavra abstrata que precisa ser explicada Ninguém pode obrigarvos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações Nota de Beccaria 34 DOS DELITOS E DAS PENAS de um juiz o qual tomou como legítima interpretação o vago resultado de toda uma série confusa de noções que lhe agitam a mente Vemos pois os mesmos delitos punidos diferentemente em épocas diferentes pelo mesmo tribunal por ter este consul tado não a voz imutável e constante da lei mas a errante instabilidade das interpretações A desordem que nasce da rigorosa observância da letra de uma lei penal não se compara com as desordens que nascem da interpretação Tal momentâneo inconveniente leva à correção fácil e necessária das palavras da lei causa da incerteza mas impede a fatal licença da razão da qual nascem as arbitrárias e venais controvérsias Quando um código fixo de leis que devem ser observadas ad litteram só deixa ao juiz a incumbência de examinar as ações dos cidadãos e de julgálas de acordo ou não com a lei escrita quando a norma do justo e do injusto que deve guiar tanto os atos do cidadão ignorante como os do filósofo não é questão controvertida mas de fato então os súditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos tanto mais cruéis quanto menor é a distância entre quem sofre e quem faz sofrer mais fatais do que as de um só porque o despotismo de muitos somente é corrigível pelo despotismo de um só e a crueldade de um déspota é proporcional não à força mas aos obstáculos Dessa forma adquirem os cidadãos a própria segu rança que é justa por ser o escopo pelo qual os homens vivem em sociedade e é útil porque os levam exatamente a calcular os inconvenientes de um crime É verdade ainda que adquirirão um espírito de independência mas que não irá abalar as leis nem será recalcitrante aos supremos magistrados resistindo porém aos que ousarem chamar com o sagrado nome de virtude a fraqueza de ceder às suas interessadas ou caprichosas opiniões Esses princípios desagradarão a todos os que se impuserem o direito de transmitir aos inferiores os golpes da tirania que receberam dos superiores Estarei preparado para tudo temer se o espírito da tirania for consonante com o espírito da leitura V OBSCURIDADE DAS LEIS S E A JNrnlPRETAÇÃO das leis é um mal claro que a obscundade que a mterpretação necessariamente acarre ta é também um mal e este mal será grandíssimo se as leis forem scitas em língua estranha ao pOVO17 que o ponha na dependencIa de uns poucos sem que possa julgar por si mesmo ual seria o êxito de sua liberdade ou de seus membros em hngua que tansformasse um livro solene e público em outro como que pnvado e de casa Que deveremos pensar dos homens quando refletimos ue este é o inveterado costume de boa part da culta e esclarecIda Europa Quanto maior for o número dos que entenderem e tiverem nas mãos o sagrado código das leis tanto menos freqüentes serão os delitos pois não há dúvida de que a ignorância e a incerteza das penas contribuem para a eloqüência das paixões Conseqüência destas últimas reflexões é que sem escrita a sociedade Amas teria forma fixa de governo onde a forç fosse consequencIa do todo e não das partes e onde as leis alteráveis apenas pelo consenso geral não se corrompam passando pela grande quantidade dos interesses privados A experiência e a razão demonstraramnos que a probabilidade e 17 Latim era a língua estranha ao povo usada pela elite pelos doutos sendo o sermo vulgaris a língua popular da plebe 36 DOS DELITOS E DAS PENAS a certeza das tradições humanas diminuem à medida que estas se distanciam da fonte Se não houver monumento estável do pacto social como resistirão as leis à força inevitável do tempo e das paixões Vemos assim quanto é útil a imprensa que faz do público e não apenas de alguns o depositário das leis sagradas e quanto sumiu o espírito tenebroso da cabala e da intriga que desaparece diante das luzes e das ciências aparentemente desprezadas por seus sequazes mas na verdade temidas por eles Esta é a razão pela qual vemos diminuída na Europa a atrocidade dos crimes que faziam gemer nossos antepassados os quais se tomavam alternadamente tiranos e escravos Quem conhece a história dos últimos dois ou três séculos e a nossa poderá ver como no seio do luxo e da apatia nasceram as mais doces virtudes a saber a filantropia a benevolência e a tolerância para com os erros humanos Verá quais foram os efeitos daquilo que sem razão denominamos de antiga simplicidade e boafé a huma nidade gemendo sob a implacável superstição a avareza a ambição de alguns tingindo com o sangue humano os escrínios de ouro e os tronos dos reis as ocultas traições e os massacres públicos todos os nobres tiranos da plebe Os ministros da verdade evangélica sujando de sangue as mãos que todos os dias tocavam o Deus da mansuetude não são obra deste século esclarecido que alguns denominam corrupto VI PROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS N Ão SOMENTE é interess de todos que não se cmetam delitos como tambem que estes sejam maIS raros proporcionalmente ao mal que causam à sociedade Portanto mais fortes devem ser os obstáculos que afastam os homens dos crimes quando são contrários ao bem público e na medida dos impulsos que os levam a delinqüir Deve haver pois proporção entre os delitos e as penas Impossível evitar todas as desordens no universal combate das paixões humanas Crescem elas na proporção geométrica da população e do entrelaçamento dos interesses particulares que não é possível dirigir geometricamente para a utilidade pública A exatidão matemática deve ser substituída na aritmética política pelo cálculo das probabilidades Se lançarmos um olhar para a história veremos crescerem as desordens com os limites dos impérios diminuindo o sentimento nacional na mesma proporção e assim a tendência para o crime cresce na razão do interesse que cada um tem nas próprias desordens Por esse motivo a necessidade de ampliar as penas vai sempre aumen tando Essa força semelhante à da gravidade que nos impele ao bemestar só se refreia na medida dos obstáculos que lhe são 38 DOS DELITOS E DAS PENAS PROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS 39 levantados Os efeitos desta força são a confusa série das ações humanas Se estas se chocam e se ferem umas com as outras as penas a que eu chamaria de obstáculos políticos impedem lhe o efeito nocivo sem destruir a força motriz que é a própria sensibilidade inseparável do homem E o legislador faz como hábil arquiteto cujo ofício é oporse às diretrizes ruinosas da gravidade e pedir a colaboração das que contribuem para a firmeza do edifício Dada a necessidade da reunião dos homens por causa dos pactos que necessariamente resultam da própria oposição dos interesses privados formase uma escala de desordens das quais o primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamente a sociedade e o último na mínima injustiça possível feita a seus membros privados Entre esses dois extremos encontram se todas as ações opostas ao bem comum chamadas delitos que vão decrescendo por graus insensíveis do mais grave ao mais leve Se a geometria fosse adaptável às infinitas e obscuras combinações das ações humanas deveria existir uma escala paralela de penas descendo da mais forte para a mais fraca mas bastará ao sábio legislador assinalar os pontos principais sem alterarlhes a ordem não cominando para os delitos de primeiro grau as penas do último Se existisse escala precisa e universal de penas e delitos teríamos medida provável e comum dos graus de tirania e de liberdade do fundo de humanidade ou de malícia das diversas nações Toda ação não compreendida entre os dois limites supramencionados não pode ser chamada de delito nem punida como tal senão por aqueles que têm interesse em assim chamá la A incerteza desses lirriites produziu nas nações moral que contradiz as leis leis mais atuais que se excluem reciprocamente e uma quantidade de leis que submetem o mais sábio a penas mais rigorosas Assim vagos e flutuantes ficaram os sentidos das palavras vício e virtude Nasceu assim a incerteza da própria existência o que produz a letargia e o sono fatal dos corpos políticos Quem ler sob o ângulo filosófico os códigos das nações e os respectivos anais observará quase sempre as palavras vício e virtude bom cidadão ou réu que se alteram com as revoluções dos séculos não em razão das mutações ocorridas nas circuns tâncias das nações e por isso sempre de acordo com o interesse geral mas em razão das paixões e dos erros que agitaram sucessivamente os diversos legisladoresVerá freqüentemente que as paixões de um dado século são a base da moral dos séculos seguintes As paixões desenfreadas filhas do fanatismo e do entusiasmo enfraquecidas e corroídas diria eu pelo tempo que reduz ao equilíbrio todos os fenômenos físicos e morais tomam se pouco a pouco a prudência do século e útil instrumento nas mãos dos fortes e perspicazes Desse modo nasceram as obscuras noções de honra e de virtude e isso ocorre porque mudam com as revoluções do tempo que antepõem os nomes às coisas mudam como o curso dos rios e como as montanhas que marcam freqüentemente os limites não só da geografia física como também da geografia moral Se o prazer e a dor são a força motriz dos seres sensíveis se entre os motivos que impelem os homens para ações mais sublimes foram colocados pelo invisível legislador o prêmio e o castigo a distribuição inexata destes produzirá a contradição tanto menos observada quanto mais comum de que as penas castigam os delitos a que deram origem Se pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior se disso resultar maior vantagem ERROS NA MEDIDA DAS PENAS 41 VII ERROS NA MEDIDA DAS PENAS A S PRECEDENTES reflexões dãome o direito de afirmar que a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação errando assim os que pensavam que a verdadeira medida do delito era a intenção de quem o comete Esta depende da impressão atual dos objetos e da precedente disposição do espírito Elas variam de homem para homem e em cada homem com a velocíssima sucessão das idéias das paixões e das circunstâncias Seria então necessário elaborar um Código especial para cada cidadão e uma nova lei para cada delito Às vezes os homens com a melhor das intenções causam o maior mal à sociedade Outras vezes com a maior má vontade causam o maior bem Outros medem o delito mais pela dignidade da pessoa ofendida do que por sua importância em relação ao bemestar geral Se esta fosse a verdadeira medida do delito uma irreverência para com o Ser dos seres deveria ser punida mais atrozmente do que o assassinato de um monarca porque a superioridade da natureza compensaria infinitamente a diferença da ofensa Finalmente alguns chegaram a pensar que a gravidade do pecado seria levada em consideração na medida do delito A falsidade dessa opinião saltará aos olhos do objetivo examinador das verdadeiras relações entre os homens e entre estes e Deus As primeiras são relações de igualdade Só a necessidade fez nascer do choque das paixões e das oposições dos interesses a idéia de utilidade comum base da justiça humana As segundas são relações de dependência de um Ser perfeito e criador que reservou para si apenas o direito de legislar e julgar ao mesmo tempo pois só ele pode fazêlo sem inconveniente Se Deus cominasse penas eternas para quem lhe desobedecesse a onipo tência qual seria o inseto que ousaria suprir a divina justiça querendo vingar o Ser que bastasse a si mesmo e que não pudesse receber dos objetos nenhuma impressão de prazer ou dor e que único entre os seres agisse sem reação A gravidade do pecado depende da insondável malícia do coração a qual não pode ser conhecida por seres finitos sem a Revelação Como poderia pois tal malícia fixarse em norma para a punição dos delitos Nesse caso poderiam os homens castigar quando Deus perdoa e perdoar quando Deus castiga Se os homens pudessem estar em oposição ao Onipotente ao ofendêlo poderiam também ao punir contradizêlo DIVISÃO DOS DELITOS 43 VIII DIVISÃO DOS DELITOS V IMOS que a verdadeira medida do delito é o dano à sociedade Esta é uma daquelas palpáveis verdades que embora não precisem de quadrantes nem de telescópios para serem reveladas pois estão ao alcance de toda inteligência medíocre todavia por maravilhosa combinação de circunstân cias são conhecidas com firme segurança somente por alguns poucos pensadores homens de todas as nações e de todos os séculos Mas as opiniões ostensivas e as paixões revestidas de autoridade e poder a maioria das vezes por meio de insensíveis impulsos outras poucas por impressões violentas sobre a tímida credulidade dos homens dissiparam as noções simples que formavam talvez a primeira filosofia das sociedades nascentes A luz deste século parece que reconduz a essas noções com maior firmeza no entanto que pode ser proporcionada por um exame geométrico por mil experiências funestas e pelos próprios obstáculos Nossa ordem de expor levarnosia a examinar e a distinguir os diversos tipos de delitos ou a maneira de punilos se a variável natureza desses delitos pela diversa circunstância ligada aos séculos e aos lugares não nos levasse a imenso e tedioso pormenor Bastarmeá indicar os princípios mais gerais e os erros mais danosos e comuns para desmentir tanto os que por um mal compreendido amor de liberdade gostariam de introduzir a anarquia quanto os que desejariam reduzir os homens a uma regularidade claustral Alguns delitos destroem imediatamente a sociedade ou quem a representa outros defendem a segurança do cidadão na vida privada nos bens na honra outros são ações contrárias àquilo que por lei cada um é obrigado a fazer ou não fazer em vista do bem geral Os primeiros isto é os delitos máximos porque mais danosos são os chamados de lesamajestade Só a tirania e a ignorância que confundem os vocábulos e as idéias mais claras podem dar esse nome e por conseguinte cominar pena máxima a delitos de naturezas diferentes de modo a fazer os homens como em outras mil ocasiões vítimas de um só vocábulo Cada delito embora privado ofende a sociedade mas nem todo delito procura a destruição imediata dessa mesma sociedade As ações morais assim como as físicas têm esfera limitada de atividade e como todos os movimentos da natureza são diversamente circunscritas ao tempo e ao espaço Só a interpretação cavilosa que é comumente a filosofia da escravi dão pode confundir aquilo que a verdade eterna com imutáveis relações distinguiu Seguemse os crimes contra a segurança de cada particular Sendo este o fim primeiro de toda legítima associação não é possível deixar de cominar à violação do direito de segurança adquirido pelo cidadão penas das mais severas fixadas pelas leis A opinião que cada cidadão deve ter de poder fazer tudo o que não é contrário à lei sem temer outro inconveniente além do que pode resultar da própria ação eis o dogma político em que os povos deveriam acreditar e que os supremos magistrados deveriam apregoar com a incorruptível proteção das leis dogma sagrado sem o qual não pode haver sociedade legítima certa recompensa pelo sacrifício por parte dos homens daquela ação universal sobre todas as coisas que é comum a cada ser sensível e limitada apenas pela própria força Eis o que toma as almas livres e vigorosas e as mentes esclarecidas que faz os homens virtuosos mas virtude que sabe resistir ao temor 44 DOS DELITOS E DAS PENAS e não da prudência submissa digna apenas de quem pode tolerar precária e incerta existência Atentados contra a segurança e a liberdade dos cidadãos constituem pois um dos maiores crimes e nessa classe incluemse não apenas os assassinatos e os furtos dos plebeus mas também os dos grandes e dos magistrados cuja influência age a maior distância e com maior vigor destruindo nos súditos as idéias de justiça e de dever substituindoas pela do direito do mais forte perigoso não só para quem o exerce como também para quem o suporta IX DA HONRA H Á MARCANrn contradição entre as leis civis zelosas guardiãs acima de tudo do corpo e dos bens de cada cidadão e as leis relativas ao que se chama de honra a qual coloca em primeiro plano a opinião A palavra honra é uma das que serviram de base para longos e brilhantes raciocínios sem que estivesse associada a nenhuma idéia fixa ou estável Mísera condição da mente humana a de que as idéias menos importantes e mais remotas sobre as revoluções dos corpos celestes sejam conhecidas melhor do que as próximas e impor tantíssimas noções morais sempre flutuantes e confusas à mercê do vendaval das paixões que as impelem e da ignorância dirigida que as recebe e as transmite O aparente paradoxo desaparecerá porém se se ponderar que assim como os objetos bem próximos da vista se confundem assim também a excessiva proximidade das idéias morais faz com que facilmente se misturem as múltiplas idéias simples que as compõem confundindo as linhas de separação necessárias ao espírito geométrico que quer medir os fenômenos da sensibilidade humana acabando por esvairse de toda a maravilha do indiferente pesquisador das coisas humanas que suspeitará que tanto aparato moral e tantos liames não sejam necessários para tomar os homens felizes e seguros Essa honra é pois uma daquelas idéias complexas que cons tituem um bloco não apenas de idéias simples mas também de 46 DOS DELITOS E DAS PENAS DA HONRA 47 idéias igualmente complexas que assomando reiteradamente à mente ora admitem ora excluem alguns dos diversos elementos que as compõem conservando apenas algumas idéias comuns assim como na álgebra várias quantidades complexas admitem um divisor comum Para achar o máximo divisor comum nas várias idéias que os homens fazem da honra é preciso lançar uma vista rápida de olhos sobre a formação das sociedades As primeiras leis e os primeiros magistrados nasceram da neces sidade de corrigir as desordens geradas pelo despotismo físico de cada homem finalidade esta instituidora da sociedade e esta finalidade primeira sempre foi mantida na realidade ou na aparência no início de todos os códigos mesmo quando danosos mas a aproximação dos homens e o progresso de seus conhe cimentos originaram infinita série de ações e necessidades impelindo uns contra outros sempre superiores à providência das leis e inferiores ao atual poder de cada um Foi nessa época que começou o despotismo da opinião único meio de obter de outrem aqueles bens e de afastar os males contra os quais as leis eram insuficientes É a opinião que atormentou o sábio e o vulgo que valorizou a aparência da virtude acima da própria virtude que converteu em missionário até o criminoso para que ali encon trasse seu interesse Portanto as aprovações dos homens se tomaram não só úteis mas necessárias para não descer abaixo do nível comum Portanto se o ambicioso conquista a virtude porque ela é útil se o vaidoso a mendiga como prova do próprio mérito vêse o homem honrado exigila como necessária Essa honra é a condição que muitíssimos homens consideram indis pensável à sua existência Nascida após a formação da sociedade ela não pôde ser colocada na vala comum Assim é um instantâneo retomo ao estado natural e uma subtração momen tânea da própria pessoa às leis que nesse caso não servem para defender suficientemente o cidadão Portanto quer na radical liberdade política quer na radical dependência desaparecem as idéias de honra ou se confundem perfeitamente com outras porque no primeiro caso o despotismo das leis toma inútil a busca da aprovação alheia no segundo caso porque o despotismo dos homens anulando a existência civil os reduz a uma precária e momentânea personalidade A honra é pois um dos princípios fundamentais daquelas monar quias que são um despotismo atenuado e nelas correspondem às revoluções nos estados despóticos momentânea volta ao estado da natureza e uma recordação do padrão da antiga igualdade DOS DUELOS 49 x DOS DUELOS DA NECBSSlDADB da aprovação dos outros nasceram os duelos privados originados da anarquia das leis Pre tendese que fossem desconhecidos na antigüidade talvez porque os antigos se reuniam sem armas e sem desconfiança nos templos nos teatros ou com os amigos Ou talvez porque o duelo fosse espetáculo ordinário e comum que os gladiadores escravos e aviltados ofereciam ao povo e que os homens livres recusando os combates privados afastavam a aparência e o nome de gladiadores Em vão os editos contra quem aceitasse o duelo procuraram extirpar tal costume cujo fundamento se encontra naquilo que alguns homens temem mais do que a própria morte pois sem a aprovação alheia o homem honrado se vê exposto a tornarse um ser meramente solitário estado insuportável para o homem sociável OU tornarse alvo de insultos e da infâmia que com a ação repetida acabam prevalecendo sobre o perigo da pena Por que motivo o populacho se bateria em duelo menos do que os grandes Não só por não possuir armas como também porque a necessidade da aprovação alheia é menos comum entre a plebe do que entre aqueles que estando em nível mais alto se entreolham com maior suspeita e com maior inveja Não é inútil repetir o que outros já escreveram a saber que o melhor método de prevenir o delito é punir o agressor ou seja quem deu motivo para o duelo declarando inocente aquele que sem culpa foi obrigado a defender o que as leis atuais não asseguram isto é a opinião e teve que mostrar aos concidadãos que teme somente as leis e não os homens DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA 51 XI DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA P OR FIM entre os delitos da terceira espécie est par ticularmente incluídos os que perturbam a tranqUilIdade pública e a o sossego do cidadão como algazarras e espalhafatos nas vias públicas destinadas ao comércio e à passagem dos cidadãos como os fanáticos discursos que inflamam as fáceis paixões da curiosa multidão as quais ganham força pela freqüência dos ouvintes mais pelo obscuro e misterioso entu siasmo do que pela clara e tranqüila razão que nunca mflUI sobre a grande massa humana A noite iluminada às expensas públicas os guardas distri buídos pelos diferentes bairros da cidade os simples e moras discursos da religião reservados ao silêncio e à sacra tranqüI lidade dos templos protegidos pela autoridade pública os aranzéis destinados a apoiar os interesses privados e públicos nas assembléias da nação nos parlamentos ou onde reside a majes tade do soberano são em conjunto meios eficazes para prevenir a perigosa intensidade das paixões populares Estas formam os principais ramos da vigilância do agistrado que o francess denominam polícia mas se esse magIstrado agIsse aplIcando leIS arbitrárias e não estabelecidas por um código que circulasse pelas mãos de todos os cidadãos estaria aberta uma porta à tirania que cerca todas as fronteiras da liberdade política Não encontro exceção alguma ao axioma geral de que todo cidadão deve saber se é réu ou inocente Se os censores e de um modo geral os magistrados arbitrários são necessários em qualquer governo isso decorre da fraqueza de sua constituição e não da natureza de governo bem organizado A incerteza da própria sorte sacrificou mais vítimas à obscura tirania do que a pública e solene crueldade Ela revolta os ânimos mais do que os avilta O verdadeiro tirano começa sempre por dominar a opinião que previne a coragem a qual só pode resplandecer ou sob a clara luz da verdade no fogo das paixões ou ainda na ignorância do perigo Quais serão entretanto as penas adequadas a esses delitos Será a morte uma pena realmente útil e necessária para a segurança e para a boa ordem da sociedade Serão a tortura e os suplícios justos e alcançarão eles o fim a que as leis se propõem Qual será a melhor maneira de prevenir os delitos Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos Que influência terão as penas sobre os costumes Estes proble mas merecem ser resolvidos com a precisão geométrica a que a nebulosidade dos sofismas a sedutora eloqüência e a tímida dúvida não podem resistir Se eu só tivesse tido o mérito de ter sido o primeiro a apresentar na Itália com algum realce maior aquilo que as outras nações ousaram escrever e começam a praticar julgarmeia feliz mas se apoiando os direitos dos homens e da invencível verdade eu tivesse contribuído para arrancar dos espasmos e das vascas da morte algumas vítimas infelizes da tirania e da ignorância não menos fatal as bênçãos e as lágrimas mesmo as de um só inocente nos transportes da alegria me consolariam do desprezo dos homens XII FINALIDADES DA PENA D A SIMPLES consideração das verdades até aqui expostas fica evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível nem desfazer o delito já cometido É concebível que um corpo político que bem longe de agir por paixões é o tranqüilo moderador das paixões particulares possa albergar essa inútil crueldade instrumento do furor e do fana tismo ou dos fracos tiranos Poderiam talvez os gritos de um infeliz trazer de volta do tempo que não retorna as ações já consumadas O fim da pena pois é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo É pois necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicálas de tal modo que conservadas as proporções causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens e a menos tormentosa no corpo do réu XIII DAS TESTEMUNHAS P aNTO considerável em toda boa legislação é o de determinar exatamente a credibilidade das testemunhas e das provas do crime Todo homem razoável isto é que tenha idéias conexas e cujas sensações sejam conformes às dos outros homens pode ser arrollldo como testemunha A verdadeira medida de sua credibilidade é tãosomente o interesse que tenha em dizer ou não a verdade razão por que é frívolo o argumento da fraqueza das mulheres pueril a aplicação dos efeitos da morte real à morte civil nos condenados e incoerente a nota de infâmia nos infames quando as testemunhas não tenham interesse algum em mentir A credibilidade pois deve diminuir na proporção do ódio ou da amizade ou das estreitas relações existentes entre a testemunha e o réu É necessária mais de uma testemunha porque enquanto uma afirma e a outra nega nada haverá de certo e prevalecerá o direito que cada um tem de ser considerado inocente A credibilidade de uma testemunha tornase tão sensivelmente menor quanto mais cresce a atrocidade do delito18 18 Entre os penalistas ao contrário a credibilidade que o testemunho merece aumenta em proporção da atrocidade do crime Apoiamse eles neste axioma de ferro ditado pela mais cruel imbecilidade ln atroeissimis leviores conjecturae sufficiunt et icet judiei jura trans gredi Traduzamos essa máxima hedionda para que a Europa conheça 54 DOS DELITOS E DAS PENAS DAS TESTEMUNHAS 55 ou a inverossimilhança das circunstâncias como por exemplo a magia e as ações gratuitamente cruéis É mais provável que vários homens mintam na primeira acusação porque é mais fácil combinarse em muitos a ilusão da ignorância ou o ódio perseguidor do que se exercer por um só um poder que Deus não deu ou suprimiu de toda criatura O mesmo acontece na segunda acusação pois o homem só é cruel na proporção do seu próprio interesse do ódio ou do temor que concebeu Não há propriamente no homem nenhum sentimento supérfluo pois este é sempre proporcional ao resultado das impressões exercidas sobre os sentidos Igualmente a credibilidade de uma testemunha pode ser às vezes diminuída quando ela seja membro de sociedade privada cujos costumes e normas não são bem conhecidos ou divirjam das normas públicas Tal homem une as próprias paixões às paixões alheias Finalmente quase nula é a credibilidade da testemunha quando se faz das palavras um delito pois o tom o gesto o que precede e o que segue às diversas idéias que os homens associam às mesmas palavras altera e modifica de tal modo seus dizeres que é quase impossível repetilas exatamente como foram ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o saber Nos delitos mais atrozes isto é menos prováveis as mais ligeiras circunstâncias bastam e o juiz pode colocarse acima das leis Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes o resultado do meio fonte inesgotável das inconseqüências e dos erros humanos Os legisladores ou antes os jurisconsultos cujas opiniões são consideradas após sua morte como espécie de oráculos e que como escritores vendidos ao interesse se tomaram árbitros soberanos da sorte dos homens os legisladores repito receosos de ver condenar inocentes sobrecarregaram a jurisprudência de forma lidades e exações inúteis cuja exata observação colocaria a desordem e a impunidade no trono da Justiça Outras vezes assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar acharam que deviam desprezar as formalidades que eles próprios estabeleceram Foi assim que dominados ora por um despotismo impertinente ora por temores pueris fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio Nota de Beccaria pronunciadas As ações violentas e fora o comum como AOS verdadeiros delitos deixam traços na quantldade das CIrcunstan cias e nos efeitos decorrentes mas as palavras só permanecem na memória quase sempre infiel e geralmente sedutora dos ouvintes É pois muito mais fácil a calúnia relativa às palavas do que a referente às ações de um homem porque quanto maIor for o número de circunstâncias apresentadas como prova tanto maiores serão os meios fornecidos ao réu para justificarse INDíCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO 57 XIV INDÍCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO H Á UM lEOREMA ge muito útil paracalcular a certeza de um fato Isto e a força dos mdIclOs de um crime Quando as pras o fato dependem de outra prova isto é quando os mdIclOs so se provam entre si quanto maiores forem as provas aduzidas menor será a probabilidade da existência do fato porqu os casos que enfraquecessem as provas precedentes enfraquecenam as subseqüentes Quando todas as provas do fato dpndm de uma só prova esse número não aumenta nem dImmUI a probabilidade do fato porque todo seu valor se reduz o valor da única prova de que dependem Quando as provas mdependem umas das outras ou seja quando os indícios se provam por si mesmos quanto maiores forem as provas aduzidas maIS aumentará a probabilidade do fato pois a falsidade de um das provas não influi sobre a outra Falo da probabilidade em atéria de delitos que para merecerem uma pena devem ser tIdos como certs O paradoxo entretanto esvairseá para quem conSIdere que ngorosamente a certeza moral não é senão uma prbabilidade mas probabilidade tal que é denominada certeza pOIS todo homem de bom senso nela consente necessariamente por um hábito nélscido da necessidade de agir e anterior a toda especulação A certeza que se exige para determinar que um homem é réu pois é a que caracteriza cada homem nas operações mais importantes de sua vida Podese dividir as provas de um crime em perfeitas e imperfeitas Denomino perfeitas as provas que excluem a possibilidade de alguém não ser culpado e chamo imperfeitas as que não a excluem Das primeiras basta uma só prova para a condenação Das outras bastam tantas quantas sejam necessárias para constituir a prova perfeita ou seja que se com cada uma destas em particular é possível que alguém não seja réu diante de sua soma no mesmo caso é impossível que não o seja Notese que as provas imperfeitas pelas quais o réu pode justificarse e não o faça suficientemente se tomem perfeitas mas esta certeza moral de provas é mais fácil de ser sentida do que exatamente definida Por isso julgo ótima a lei que indica assessores para o juiz principal por sorteio e não por escolha pois neste caso é mais segura a ignorância que julga pelo sentimento do que a ciência que julga pela opinião Onde as leis são claras e precisas o ofício do juiz não é senão o de averiguar o fato Se na busca das provas do delito se exigir habilidade e destreza se na apresentação do resultado forem necessárias clareza e precisão para julgar essa conclusão nada mais se exigirá do que mero e comum bom senso menos enganoso do que o saber de um juiz habituado a pretender encontrar réus e que reduz tudo a mero sistema teórico extraído de seus estudos Feliz a nação cujas leis não são ciência É muito útil a lei que faz cada homem ser julgado por seus iguais pois quando se trata da liberdade e do destino do cidadão devem silenciar os sentimentos inspirados pela desigualdade A superioridade com que o homem de sorte olha para o infeliz o pouco caso com que o inferior olha para o superior não podem influir nesse juízo Quando porém o delito constituir ofensa a terceiro então os juízes deverão ser a metade pares do réu e a outra metade pares do ofendido Estando assim equilibrado todo interesse particular que modifica também involuntariamente as aparências dos objetos só prevalecem as leis e a verdade É então conforme à justiça que o réu possa excluir até certo ponto os que lhe são suspeitos e se isso lhe for concedido sem problema por algum 58 DOS DELITOS E DAS PENAS tepo pecerá que o réu se condenará a si próprio Públicos sejam os Julamentos e públicas sejam as provas do crime para que a opImao que é talvez o único cimento da sociedade imponha freio à força e às paixões para que o povo diga nã somos escravos e somos defendidos sentimento que inspira coragem e qe euivale a um tributo ao soberano que conhece seus verdaders mteresses Não acenarei a outros pormenores e cautelas eXIgIdos por instituições semelhantes Nada teria dito se tivesse sido necessário dizer tudo xv ACUSAÇÕES SECRETAS E M MUITAS nações pela fraqueza da organização acusações secretas mas consagradas e necessárias provocam de sordens costume esse que toma os homens falsos e dissimulados Quem achar que outrem é delator nele terá um inimigo Os homens costumam então mascarar os sentimentos e tendo o hábito de ocultálos dos outros acabam finalmente por ocultá los de si mesmos Infelizes os homens que chegaram a tal extremo Sem princípios claros e estáveis que os orientem vagam aqui e ali desgarrados e flutuantes no vasto oceano das opiniões sempre preocupados em salvarse dos monstros que os ameaçam passando o momento presente amargurados sempre pela incerteza do futuro Privados dos prazeres duradouros da tranqüilidade e da segurança só alguns deles espalhados aqui e ali ao longo de sua melancólica existência devorados pela pressa e pela desordem consolamnos de haver vivido É desses homens que faremos os corajosos soldados defensores da pátria ou do trono Encontraremos entre eles incorruptos magistrados que com livre e patriótica eloqüência sustentem e desenvolvam os verdadeiros interesses do soberano que levam ao trono com os tributos o amor e as bênçãos de homens de todos os níveis e do trono trazendo de volta aos palácios e às cabanas a paz a segurança e a industriosa esperança de melhorar a sorte útil fermento e vida dos Estados 60 DOS DELITOS E DAS PENAS Que poderá defenderse da calúnia quando esta se protege com o mIs forte escudo da tirania o segredo Que espécie de govo e esse em que o regente pretende ver em cada súdito m mImIgo e para assegurar o sossego público é obrigado a tIrar o sossego de cada um Que motivos justificariam as acusações e as penas secretas A salvação pública a segurança e a manutenção da forma d governo Que eranh organização é essa onde quem detém a fora e a pImao amda mais eficaz que a força teme cada Idada A mcolumidade do acusador As leis assim são msufictente pa eendêIo E haverá súditos mais fortes que o soberano A mfamIa do delator Autorizase pois a calúnia secrea e pnese a calúnia pública A natureza do delito Se as çoes mdIferentes ainda que úteis ao público forem chamadas delItos as acusações e os julgamentos nunca serão suficiente mente secretos Pode haver delitos isto é ofensas públicas mas a esmo tempo pode não ser do interesse de todos tomar publIco o exmplo isto é o julgamento Respeito todos os gvernos e nao falo de nenhum em particular A natureza das cIrcunstâncias é tal às vezes que se pode julgar como a pior das ruínas erradicar um mal que na verdade é inerente ao sItema de uma nação mas se eu tivesse que publicar novas leIs em algum recanto abandonado do universo antes de autorizar ese costume minha mão tremeria e eu veria toda a posteridade dIante dos meus olhos Já o disse o senhor de Montesquieu que as acusações pubhas sao mIs cofoes à república onde o bem público devena contItUIr a pnmeIra paixão dos cidadãos antes mesmo da monarqUIa onde esse sentimento é fraquíssimo pela própria natuez do governo e onde é ótimo o procedimento de nomear cmIssanos que em nome de todos acusem os infratores das leIs Enretanto todo governo não só republicano como monarqUIco deve aplicar ao caluniador a pena que tocaria ao acusado XVI DA TORTURA C RUELDADE consagrada pelo uso na maioria das nações é a tortura do réu durante a instrução do processo ou para forçálo a confessar o delito ou por haver caído em contradição ou para descobrir os cúmplices ou por qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia ou finalmen te por outros delitos de que poderia ser réu mas dos quais não é acusado Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada Qual é pois o direito senão o da força que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão enquanto existe dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência Não é novo este dilema ou o delito é certo ou incerto Se é certo não lhe convém outra pena se não a estabelecida pelas leis e inúteis são os tormentos pois é inútil a confissão do réu Se é incerto não se deveria atormentar o inocente pois é inocente segundo a lei o homem cujos delitos não são provados E acrescento mais é querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado que a dor se tome o cadinho da verdade como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz Este é o meio seguro de absolver os robustos criminosos e de condenar os 62 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 63 fracos inocentes Eis os fatais inconvenientes desse pretenso critério da verdade mas critério digno de um canibal que os romanos bárbaros por mais de um título reservaram apenas aos escravos vítimas de tão feroz quanto muito louvada virtude Qual a finalidade política da pena O medo dos outros homens Que juízo deveremos fazer então das carnificinas secretas e privadas que o uso tirânico outorga tanto ao culpado quanto ao Inocente E importante que nenhum crime comprovado permaneça impune mas é inútil investigar a autoria do crime sepulto nas trevas Mal já consumado e para o qual não há remédio só pode ser punido pela sociedade política para influir ns outros com a ilusão da impunidade Se é verdade que o numero dos homens que por medo ou virtude respeitam as leis é superior ao número dos que a infringem o risco de atormentar um inocente deve ser tanto mais bem avaliado quanto maior é a probabilidade de que um homem em condições iguais as tenha mais respeitado que desprezado utro motivo ridículo da tortura é o da purgação da infâmia ISto e que um homem julgado infame pelas leis deva confirmar seu depoimento com a tritura de seus ossos Esse abuso não deveria ser tolerado no século XVIII Acreditase que a dor que é sensação purgue a infâmia que é mera relação moral Será a dor realmente um cadinho Será a infâmia um corpo misto impuro Não é difícil remontar às origens dessas leis ridículas PAois os próprios absurdos adotados por uma nação inteira sempre tem alguma relação com outras idéias comuns e respeitadas pela própria nação Parece esse uso derivar das idéias religiosas e espirituais que tanta influência exeiéêm sobre os pensamentos dos homens sobre as nações e sobre os séculos Dogma infalível asseguranos que as nódoas contraídas pela fraqueza humana e que não merecem a ira eterna do Ser Supremo serão purgadas por um incompreensível fogo Se a infâmia é nódoa civil e se a dor e o fogo apagam as nódoas espirituais e incorpóreas por que os espasmos da tortura não apagariam a mácula civil da infâmia Creio que a confissão do réu que alguns tribunais exigem como algo essencial à condenação tenha origem seme lhante pois no misterioso tribunal da penitência a confissão do pecado é parte essencial do sacramento Eis de que forma os homens abusam das luzes mais seguras da Revelação e como estes são os únicos que subsistem em tempos de ignorância a eles recorre a dócil humanidade em todas as ocasiões servindo se das aplicações as mais absurdas e remotas A infâmia entretanto é sentimento que não está sujeito nem às leis nem à razão mas à opinião comum A própria tortura ocasiona real infâmia em suas vítimas Assim sendo com esse método se substituirá a infâmia pela infâmia O terceiro motivo é a tortura aplicada aos supostos réus quando caem em contradição durante o interrogatório como se o temor da pena a incerteza do julgamento o aparato e a majestade do juiz a ignorância comum a quase todos criminosos e inocentes não fizessem provavelmente cair em contradição tanto o inocente temeroso como o culpado que procura acobertar se como se as contradições comuns aos homens quando estão tranqüilos não se multiplicassem na perturbação do espírito todo absorvido na preocupação de salvarse do perigo iminente Esse infame cadinho da verdade é monumento da legislação antiga e selvagem que ainda hoje subsiste quando as provas do fogo e da água fervente e o incerto destino das armas eram chamados juízos de Deus ou ordálios como se elos da eterna corrente que está no âmago da Causa Primeira devessem a todo instante ser desordenados e desconectados ao sabor da frívola determinação humana A única diferença entre tortura e provas do fogo e da água fervente é que o êxito da primeira depende em parte da vontade do réu e o das últimas de fato meramente físico e extrínseco Todavia essa diferença é só aparente não real Tão pouca é a liberdade de dizer a verdade entre os espasmos e as dilacerações quanto o era então impedir sem fraude os efeitos do fogo e da água fervente Todo ato da nossa vontade é sempre proporcional à força da impressão sensível de onde se origina E a sensibilidade do homem é limitada Assim a impressão da dor pode crescer a tal ponto que ocupando a sensibilidade inteira do torturado não lhe deixa outra liberdade senão a de escolher o caminho mais curto momentaneamente para se subtrair à pena Então a resposta do réu é tão necessária 64 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 65 quanto o seriam as impressões do fogo e da água O inocente sensível declararseá culpado quando achar que assim fará cessar o tormento A diferença entre eles é anulada pelo próprio meio que se pretende utilizar para encontrálo É supérfluo para melhor esclarecer citar inúmeros exemplos de inocentes que confessaram a culpa diante dos espasmos da tortura Não há nação nem época que não os enumere mas nem os homens mudam nem tiram proveito disso Não há homem qlle tenha levado idéias além das necessidades da vida e que às veus não corra para a natureza que o atrai com vozes secretas e confusas mas o hábito esse tirano da mente o repele e o assusta O resultado pois da tortura é questão de temperamento e de cálculo que varia em cada homem de acordo com sua robustez e sua sensibilidade de tal forma que com esse método um matemático resolveria esse problema mais facilmente do que o faria um juiz já que a força dos músculos e a sensibilidade das fibras de um inocente medirão o grau de dor que o fará confesséU a culpa de um delito O interrogatório do réu é feito para conhecer a verdade mas se esta verdade dificilmente se revela pela atitude pelo gesto pela fisionomia de um homem mmqüilo muito menOS apareceria no homem no qual as convulsões da dor alteram todos os sinais através dos quais a maioria dos homens deixa algumas vezes contra a vontade transparecer a verdade Toda ação violenta confunde e suprime as mínimas diferenças dos objetos por meio dos quais se distingue o verdadeiro do falso Essas verdades já eram conhecidas pelos legisladores ro manos entre os quais não era tolerado nenhum tipo de tortura a não ser para os escravos aos quais era negada toda perso nalidade A tortura foi adotada pela Inglaterra nação onde a glória das letras a superioridade do comércio e das riquezas e portanto do poderio e os exemplos de virtude e de coragem não nos deixam duvidar da bondade das leis A tortura desapareceu da Suécia abolida por um dos monarcas mais sábios da Europa 19 19 Frederico II o Grande 17121786 foi rei da Prússia de 1740 a 1786 o qual tendo levado a ftlosofia ao trono e sendo legislador amigo dos súditos os tomou iguais e livres na dependência das leis única igualdade e única liberdade que possam homens razoáveis exigir das coisas A tortura não é julgada necessária pelas leis dos exércitos formados na maior parte pela ralé das nações que por isso pareceriam dela precisar mais do que qualquer outra classe Estranha coisa para aquele que não considere quão grande é a tirania do uso que as pacíficas leis devem aprender dos corações endurecidos pelas carnificinas e pelo sangue o mais humano método de julgar Essa verdade é certo sentida por fim embora confusamen te por aqueles mesmos que dela se afastam Não tem validade a confissão feita sob tortura se não for confirmada por julga mento após a cessação do suplício mas se o réu não confirma o delito é de novo torturado Alguns doutores e algumas nações não permitem essa infame petição de princípio senão por três vezes Outras nações e outros estudiosos entregamna ao arbítrio do juiz de modo que de dois homens igualmente inocentes ou igualmente réus o forte e o corajoso será absolvido o fraco e o tímido será condenado em virtude deste exato raciocínio Eu juiz deveria julgarvos culpados de tal delito tu que és forte soubeste resistir à dor e por isso te absolvo tu que és fraco cedeste a ela e por isso te condeno Sinto que a confissão arrancada entre suplícios não teria força nenhuma mas nova mente sereis torturado se não confirmardes a vossa confissão Estranha conseqüência que necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente é posto em pior condição que o culpado Realmente se ambos são submetidos ao suplício o primeiro tem tudo contra si uma vez que ou confessa o delito e é condenado ou é declarado inocente mas sofreu pena indevida ao passo que um caso é favorável ao culpado quando resistindo à tortura com firmeza deverá ser absolvido como inocente trocando a pena maior pela menor O inocente portanto só tem a perder e o culpado só a ganhar A lei que ordena a tortura é a lei que diz Homens suportai a dor e se a natureza criou em vós inextinguível amor próprio 66 DOS DELITOS E DAS PENAS se ela vos deu o direito inalienável de vos defenderdes desperto em vós o sentimento contrário o heróico ódio de vós mesmos e ordeno que sejais vossos próprios acusadores e que digais a verdade embora vos estraçalhem os músculos e vos quebrem os ossos A tortura aplicase para descobrir se o réu cometeu outros delitos além daqueles de que é acusado o que equivale ao seguinte raciocínio Tu és culpado deste delito é pois possível que o sejas de cem outros delitos esta dúvida me oprime e quero certificarme com meu próprio critério da verdade as leis torturamte porque és culpado porque podes ser culpado porque quero que sejas culpado Finalmente a tortura é aplicada ao acusado para que se descubram os cúmplices do seu crime mas se foi demonstrado que ela não é meio adequado para descobrir a verdade como poderá servir para revelar os cúmplices sendo esta uma das verdades a serem descobertas Como se o homem que se acusasse a si mesmo não iria acusar os outros mais facilmente Será certo torturar um homem pelo crime alheio Não serão descobertos os cúmplices interrogando as testemunhas e o réu por meio das provas e pelo corpo de delito em suma por aqueles mesmos meios utilizados para comprovar o delito do acusado Os cúmplices geralmente fogem imediatamente após a prisão do companheiro A incerteza de seu destino os condena por si ao exílio e livra a nação do perigo de novos crimes enquanto a pena do réu que está preso alcança seu fim único ou seja afastar pelo terror outros homens de delito semelhante XVII DO FISCO H OUVE época em que quase todas as penas eram pecuniárias Os delitos dos homens eram o patrimônio do príncipe Os atentados contra a segurança pública eram objeto de luxo Quem devia defendêla tinha interesse em vêla lesada O objeto da pena era pois o litígio entre o fisco o cobrador dessas penas e o réu Tratavase de negócio civil contencioso mais privado do que público que dava ao fisco direitos outros dos conferidos pela defesa pública e ao réu outras culpas além daquelas em que havia incorrido pela necessidade do exemplo O juiz era então advogado do fisco mais do que imparcial investigador da verdade agente do erário fiscal mais que protetor e ministro das leis Como porém nesse sistema confessarse culpado era confessarse devedor do fisco finalidade dos procedimentos criminosos de então assim a confissão do delito confissão elaborada de tal modo a favorecer e a não prejudicar os motivos fiscais tomouse e ainda é perdurando os efeitos muitíssimo tempo após as causas o centro em tomo do qual giram todos os mecanismos criminais Sem ela um réu condenado por provas irrefutáveis sofrerá pena menor que a prevista sem ela não sofrerá a tortura por delitos da mesma espécie que possa ter cometido Com ela o juiz apoderarseá do corpo do réu e o torturará com as metódicas formalidades de praxe para extrair lhe como de um terreno adquirido todo o proveito possível 68 DOS DELITOS E DAS PENAS Provada a existência do delito a confissão constitui prova convincente e para tomar menos suspeita essa prova arrancada com os tormentos e o desespero da dor determinase ao mesmo tempo que uma confissão extrajudicial tranqüila indiferente sem os prepotentes temores de um tormentoso julgamento não basta para a condenação Excluemse as investigações e as provas que esclarecem o fato mas enfraquecem as razões do fisco Não é em favor da desgraça nem da fraqueza que se poupam às vezes os tormentos aos réus mas em consideração das vantagens que poderia perder o fisco esse ente hoje imaginário e inconcebível O juiz tomase inimigo do réu desse homem acorrentado minado pela miséria e pela desolação diante do mais negro porvir não busca a verdade do fato mas busca no prisioneiro o delito preparalhe armadilhas considerandose perdedor se não consegue apanhálo e crê estar falhando naquela infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas Os indícios para a prisão estão em poder do juiz para que alguém prove ser inocente deve ser antes declarado culpado chamase a isso processo ofensivo e são esses por quase toda parte da esclarecida Europa do século dezoito os procedimentos criminais O ver dadeiro processo o informativo isto é a investigação objetiva do fato aquele que a razão ordena que as leis militares adotam usado até pelo próprio despotismo luxuriante20 nos processos tranqüilos e indiferentes pouquíssimo utilizado nos tribunais europeus Que complicado labirinto de estranhos absurdos incríveis sem dúvida para uma mais feliz posteridade Somente os filósofos desse tempo futuro lerão na natureza do homem a possível verificação de um tal sistema 20 No texto está asiático XVIII DOS JURAMENTOS C ONTRADIÇÃO entre as leis e os sentimentos naturais do homem nasce dos juramentos que se exigem do réu para que seja um verdadeiro homem quando tem o máximo interesse em ser falso Como se o homem pudesse jurar since ramente quando contribui para a própria destruição Como se a religião não calasse na maioria dos homens quando fala o interesse A experiência de todos os séculos demonstrou que eíes abusaram acima de tudo deste precioso dom do céu E por que razão deveriam os criminosos respeitálo se os homens conside rados como os mais sábios freqüentemente o violaram Muito fracos por serem remotos aos sentidos são em sua maioria os motivos que a religião contrapõe ao tumulto do medo e ao amor à vida As questões do céu são regidas por leis totalmente diversas das que regem os negócios humanos E por que razão comprometer umas com as outras Por que motivo colocar o homem na terrível contradição de falhar em relação a Deus ou de concorrer para a própria ruína A lei que obriga a tal juramento ordena que o homem seja mau cristão ou mártir O juramento tomase pouco a pouco mera formalidade destruindo assim a força dos sentimentos religiosos único penhor da honestidade da maior parte dos homens Quanto são inúteis os juramentos a experiência já o demonstrou e qualquer juiz poderá ser testemunha que juramento algum jamais fez o réu dizer a 70 DOS DELITOS E DAS PENAS verdade A própria razão demonstra isso quando declara inúteis e conseqüentemente danosas todas as leis que se opõem aos naturais sentimentos do homem Acontece a essas leis o mesmo que acontece com as barreiras erguidas diretamente no curso de um rio as quais ou são imediatamente rompidas e arrastadas ou um turbilhão por elas mesmas criadas as corrói e as mina insensivelmente XIX RAPIDEZ DA PENA Q UANTO mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido tanto mais será ela justa e tanto mais útil Digo mais justa porque poupa ao réu os tormentos cruéis e inúteis da incerteza que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria fraqueza mais justa porque a privação da liberdade sendo uma pena só ela poderá preceder a sentença quandQ a necessidade o exigirIO cárcere é assim a simples guarda de um cidadão até que ele seja considerado culpado e sendo essa guarda essencialmente penosa deverá durar o menor tempo possível e ser a menos dura que se possa Esse menor tempo deve ser medido pela necessária duração do processo e pelo direito de anterioridade do réu ao julgamento O tempo de recolhimento ao cárcere só pode ser o estritamente indispensável quer para impedir a fuga quer para que não sejam escondidas as provas do delito O próprio processo deve ser concluído no mais breve espaço de tempo possível Que contraste mais cruel existe do que a inércia de um juiz diante das angústias de um réu O conforto e os prazeres do magistrado insensível de um lado e de outro lado as lágrimas a desolação do preso Em geral o peso da pena e a conseqüência do delito devem ser mais eficazes para os outros e menos pesados para quem os sofre pois não se pode chamar legítima sociedade àquela em 72 DOS DELITOS E DAS PENAS que não vigore o princípio infalível segundo o qual os homens são voluntariamente sujeitos aos menores males possíveis Disse que a prontidão da pena é mais útil porque quanto mais curta é a distância do tempo que se passa entre o delito e a pena tanto mais forte e mais durável é no espírito humano a associação dessas duas idéias delito e pena de tal modo que insensivelmente se considera uma como causa e a outra como conseqüência necessária e fatal Está provado que a união das idéias é o cimento que sustenta toda a fábrica do intelecto humano sem a qual o prazer e a dor seriam sentimentos isolados e sem efeito algum Quanto mais os homens se afastam das idéias gerais e dos princípios universais isto é quanto mais eles são vulgares tanto mais agem em função das associações imediatas e mais próximas descuidandose das mais remotas e complica das Estas servem apenas aos homens muito apaixonados pelo objeto que os atrai pois a luz da atenção ilumina um só objeto deixando os outros na escuridão Servem também para as mentes mais elevadas que adquiriram o hábito de examinar rapidamente muitos objetos de uma só vez e têm a habilidade de contrapor uns aos outros muitos sentimentos parciais de tal modo que o resultado que é a ação é menos perigoso e incerto Da mais alta importância pois é a proximidade entre o delito e a pena se se quiser que nas rudes e incultas mentes o sedutor quadro de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da idéia associada à pena A longa demora só produz o efeito de dissociar cada vez mais essas duas idéias e também de causar uma impressão de que o castigo de um delito seja menos a de um castigo que a de um espetáculo e isso só acontecerá após ter se enfraquecido nos espectadores o horror de um certo delito em particular que serviria para reforçar o sentimento da pena Outro princípio serve admiravelmente para restringir sempre mais a importante conexão entre a infração e a pena a saber que esta seja o mais possível adequada à natureza do delito Tal analogia facilita admiravelmente o contraste que deve haver entre o impulso para o delito e a repercussão da pena de tal modo que esta afaste e conduza o ânimo a um fim oposto àquele para o qual procura encaminhálo a sedutora idéia da infração da lei XX VIOLÊNCIAS A LGUNS delitos são tenados contra pesoa outros contra os bens Os pnmeuos devem mfahvelmente ser pu nidos com penas corporais Nem o poderoso nem o rico deverão pôr a prêmio os atentados contra o fraco o obre Ie outra forma as riquezas que sob a tutela das leIS sao o prermo da habilidade tornarseiam o alimento da tirania Não averá liberdade sempre que as leis permitirem que em ceras clrcus tâncias o homem deixe de ser pessoa e se tome COlsa VereIs então poderoso concentrar toda sua habilidade ar etrair da multiplicidade das combinações civis as que a leI dlspoe a seu favor Tal descoberta é o segredo mágico que transforma os cidadãos em bestas de carga que nas mãos do forte é a corrente que inibe as ações dos incautos e dos fraos Por ese motivo em alguns governos que têm toda a aparencla de hberdade a tirania escondese ou infiltrase despercebida em algum ângulo descuidado pelo legislador ali tomando fora e crescnd Os homens erguem na maioria dos casos barreIras as maiS sohdas à tirania declarada mas não enxergam o inseto imperceptível que os devora e abrem ao rio inundador caminho tanto mais seguro quanto mais oculto PENAS APLICADAS AOS NOBRES 75 XXI PENAS APLICADAS AOS NOBRES QUAIS serão então as pelll1S aplicáveis aos delitos dos nobres cujos privilégios formam grande parte das leis das nações Não examinarei aqui se tal distinção hereditária entre nobres e plebeus é útil ao governo ou necessária à monarquia Se é verdade que forme poder intermediário que limite os excessos dos dois extremos ou se antes ela forma uma classe escrava de si mesma e de outrem que como aquelas fecundas e amenas ilhotas que se destacam nos arenosos e vastos desertos da Arábia limitaria toda circulação de crédito e de esperança a um círculo estreitíssimo E mesmo admitindose que a desigualdade fosse inevitável ou útil às sociedades também é certo que ela deve consistir mais nas castas do que nos indivíduos deve fecharse antes numa única parte do que circular por todo o corpo político e antes perpetuarse do que nascer e destruirse incessantemente Restringirmeei às únicas penas aplicáveis a esta classe aftrmando que elas devem ser as mesmas para o primeiro e para o último dos cidadãos Toda distinção nas honrarias ou nas riquezas para ser legítima supõe uma anterior igualdade fundada nas leis que consideram todos os súditos igualmente dependentes delas Devemos admitir que os homens que renunciaram ao despotismo natural tenham dito que o mais engenhoso tenha maiores honras e que sua fama resplandeça em seus sucessores e quem é mais feliz ou mais honrado tenha maiores aspirações mas não tema menos que os outros violar os acordos com os quais se elevou acima dos outros É verdade que tais decretos não emanaram de assembléias do gênero humano mas existem nas relações imutáveis das coisas e sem destruir aquelas vantagens que se supõem produ zidas pela nobreza impedindolhes os inconvenientes tomando as leis poderosas e fechando toda estrada à impunidade A quem disser que a pena aplicada ao nobre e ao plebeu não é realmente a mesma em virtude da diversidade da educação e da infâmia que se esparge sobre uma ilustre farmlia responderei que a sensibilidade do réu não é a medida das penas mais sim o dano público tanto maior quanto é produzido pelo mais faoreido e que a igualdade das penas só pode ser extnnseca dlfenndo realmente de pessoa a pessoa em cada indivíduo e a infâmia de uma família inocente pode ser apagada pelo soberano com demonstrações públicas de benevolência E quem não sabe que sensíveis formalidades servem de razão ao povo crédulo e admirador FURTOS 77 XXII FURTOS F URros destituídos de violência deveriam ser punidos com pena pecuniária Quem procura enriquecer à custa alheia deve ser privado dos próprios bens mas como habitual mente esse é o delito da miséria e do desespero o delito daquela parte infeliz de homens a quem o direito de propriedade direito terrível e talvez desnecessário não deixou senão uma existência de privações mas como as penas pecuniárias aumentam o número dos réus mais do que o número dos delitos pois que ao tirar o pão dos criminosos acabam tirandoo dos inocentes a pena mais oportuna será então a única forma de escravidão que se pode chamar justa ou seja a escravidão temporária dos trabalhos e da pessoa a serviço da sociedade comum para ressarcila com a própria e total dependência do injusto despotismo exercido sobre o pacto social Se porém o delito for seguido de violência a pena deve ser igualmente um misto de pena corporal e servil Outros escritores demonstraram antes de mim a evidente desordem que nasce da não distinção das penas dos furtos violentos das dos furtos dolosos fazendo absurda equação entre uma alta soma em dinheiro e a vida de um homem mas nunca é supérfluo repetir aquilo que quase nunca foi posto em prática As máquinas políticas conservam mais do que quaisquer outras o ritmo que lhes foi impresso e são mais lentas em adquirir outro Esses delitos são de diferente natuea sendo incontestável mesmo em política o axioma da matematlca pelo qual entre quantidades heterogêneas existe o infinito que as separa INFÂMIA 79 XXIll INFÂMIA I NJÚRIAS pessoais e contrárias à hoora isto é à certa porção de aprovação que o cidadão tem o direito de exigir dos outros devem ser punidas com a infâmia Infâmia é o sinal da pública desaprovação que priva o réu do aplauso coletivo da confiança da pátria e daquela quase fraternidade que a sociedade inspira Ela não está ao arbítrio da lei É preciso pois que a infâmia da lei seja a mesma que nasce das relações entre as coisas a mesma da moral universal ou da moral particular dependente dos sistemas particulares legisladores das opiniões vulgares e da nação que a inspira Se elas diferem umas das outras ou a lei perde a veneração pública ou as idéias da moral e da probidade se esvaem em que pesem os protestos que não resistem aos exemplos Quem declara infames as ações por si só indiferentes diminui a infâmia das ações que são verdadei ramente tais As penas de infâmia não devem ser nem muito freqüentes nem incidir sobre grande número de pessoas simul taneamente No primeiro caso os efeitos reais e por demais freqüentes das coisas de opinião enfraquecem a força da própria opinião no segundo caso porque a infâmia de muitos acaba reduzindose à infâmia de nenhum As penas corporais e aflitivas não devem ser aplicadas aos delitos que fundados no orgulho retiram da própria dor glória e alimento A tais delitos convém o ridículo e a infâmia penas que freiam o orgulho dos fanáticos com o orgulho dos espec tadores e de cuja tenacidade a própria verdade só se liberta com lentos e obstinados esforços Assim opondo forças a forças e opiniões a opiniões o sábio legislador anula a admiração e a surpresa despertadas no povo por um falso princípio cuja absurda origem por suas bem deduzidas conseqüências costuma ser escondida do povo Eis o modo de não confundir as relações e a natureza invariável das coisas a qual não sendo limitada no tempo e operando incessantemente confunde e destrói todos os limitados regulamentos que dela se afastam Não apenas as artes do gosto e do prazer têm por princípio universal a imitação fiel da natureza mas a própria política ao menos a verdadeira e a durável está sujeita a essa máxima geral pois ela nada mais é do que a arte de melhor dirigir e de tomar cooperadores os sentimentos imutáveis dos homens OS OCIOSOS 81 XXIV OS OCIOSOS QUEM PERTURBA a tranqüilidade pública quem não obedece às leis isto é às condições pelas quais os homens se toleram e se defendem reciprocamente deve ser excluído da sociedade ou seja deve ser banido Esta é a razão pela qual os sábios governos não admitem no seio do trabalho e das atividades esse tipo de ócio político que austeros denun ciantes confundiram com o ócio das riquezas acumuladas pela atividade ócio necessário e útil à medida que a sociedade se expande e a administração se retrai Denomino de ócio político aquele que não contribui para a sociedade nem com o trabalho nem com a riqueza e ganha sem jamais perder ócio venerado pelo povo com estúpida admiração e é considerado pelo sábio com desdenhosa compaixão de suas vítimas Ocioso é aquele que sem o estímulo da vida ativa que é a necessidade de conservar ou de aumentar os confortos da vida transfere às paixões de opinião que não são as menos fortes toda sua energia Não é politicamente ocioso quem goza dos frutos dos vícios ou das virtudes dos antepassados e que em troca de prazeres atuais garante pão e existência à pobreza trabalhadora a qual trava em época de paz tácita guerra velada da atividade com a opulência em vez de incerta e sanguinolenta guerra com a força Não a austera e limitada virtude de alguns censores mas só as leis devem definir qual será o ócio que deve ser punido Parece que o banimento deveria ser aplicado àqueles que acusados de atroz delito tenham com grande probabilidade mas não certeza de ser julgados culpados Para isso porém seria necessário um estatuto o menos arbitrário e o mais precioso possível o qual condenasse ao banimento quem tivesse colocado a nação diante da fatal alternativa de temêlo ou de ofendêlo deixandolhe entretanto o sagrado direito de provarlhe a inocência Maiores deveriam ser os motivos contra o nacional do que contra o estrangeiro contra o acusado pela primeira vez do que contra quem o foi mais vezes BANIMENTO E CONFISCO 83 xxv BANIMENTO E CONFISCO DEVERÁ porém aquele qoe é banido e excluído para sempre da sociedade da qual era membro ser privado dos bens Esta questão é suscetível de diversos aspectos A perda dos bens é pena maior que a do banimento Deve pois haver casos em que proporcionalmente ao delito haja a perda de todos ou de parte dos bens e outros casos em que não A perda total ocorrerá quando o banimento previsto em lei determinar o rompimento de todos os laços entre a sociedade e o cidadão delinqüente Morre então o cidadão e permanece o homem o que com respeito ao corpo político deverá produzir o mesmo efeito do que a morte natural Dirseia pois que os bens confiscados ao réu deveriam reverter de preferência para os legítimos sucessores mais do que para o príncipe pois a morte e o banimento são o mesmo relativamente ao corpo político Não é esse porém o pormenor que me leva a censurar o confisco dos bens Se alguns já sustentaram que Q confisco era o freio às vinganças e às prepotências privadas não perceberam que embora as penas produzam um bem nem sempre são justas pois para serem justas precisariam ser necessárias e uma injustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que preten desse fechar todas as portas à vigilante tirania a qual seduz com um bem do momento e com a felicidade de alguns notáveis desprezando o extermínio futuro e as lágrimas de muita gente obscura O confisco coloca a prêmio a cabeça dos fracos e faz recair sobre o inocente a pena do culpado deixandoo na desesperada necessidade de cometer delitos Que espetáculo mais triste do que o da família arrastada à infâmia e à miséria pelos crimes do chefe cujos atas por causa da submissão imposta pelas leis ela não poderia impedir mesmo que dispusesse dos meios de fazêlo DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA 85 XXVI DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA E STAS funestas e autorizadas injustiças foram aprovadas mesmo pelos homens mais esclarecidos e praticadas pelas repúblicas mais livres por terem considerado a sociedade mais como união de famílias do que como união de homens Imaginemos cem mil pessoas isto é vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma incluindo o chefe que a representa Se a associação for de famílias haverá vinte mil pessoas livres e oitenta mil escravos Se a associação for de pessoas haverá cem mil cidadãos e nenhum escravo No primeiro caso haverá uma república e vinte mil pequenas monarquias que a compõem e no segundo caso o espírito republicano não soprará apenas nas praças ou nas assembléias das nações mas também entre as paredes domésticas onde reside grande parte da felicidade ou da miséria dos homens No primeiro caso como as leis e costumes são o efeito dos sentimentos habituais dos membros da república ou seja dos chefes de família o espírito monárquico introduzírseá paulatinamente na própria república e seus efeitos só serão evitados pelos interesses opostos de cada um mas não pelo sopro do sentimento de liberdade e igualdade O espírito de família é um espírito de detalhes circunscrito a pequenos fatos O espírito regulador das repúblicas senhor dos princípios gerais vê os erros e os condensa nas classes principais e importantes para o bem da maior parte Na república de famílias OS filhos permanecem sob o pátrio poder do chefe enquanto este vive e são obrigados a esperarlhe a morte para ter existência que dependa somente das leis Acostumados a submeterse e a temer na idade mais verde e vigorosa quando os sentimentos são menos modificados por aquele temor de esperança deno minado moderação como resistirão eles aos obstáculos que o vício sempre opõe à virtude na lânguida e cadente idade na qual também a desesperança de verlhes os frutos se opõe a vigorosas mudanças Quando a república é de homens a família não é subor dinação de comando mas de contrato e os filhos quando a idade os liberta da dependência natural que é a da fraqueza e da necessidade de educação e de proteção se tomam livres membros da cidade sujeitandose ao chefe da farmlia na medida em que participam das mesmas vantagens como os homens livres na grande sociedade No primeiro caso os filhos ou seja a parte maior e a mais útil da nação são entregues à discrição dos pais No segundo caso não subsiste nenhum outro laço obrigatório a não ser o sagrado e inviolável dever de prestar reciprocamente a assistência recíproca e da gratidão pelos benefícios recebidos o que não é tão destruído pela malícia do coração quanto pela mal compreendida sujeição imposta pelas leis Essas contradições entre as leis de família e as leis fundamentais da república são fecunda fonte de outras contra dições entre a moral privada e a moral pública e por isso geram perpétuo conflito no coração dos homens A primeira inspira sujeição e temor a segunda coragem e liberdade A primeira ensina a limitar a benevolência a pequeno número de pessoas que não foram escolhidas a segunda a estendêla a toda classe de homens mas esta ordena o contínuo sacrifício de si a um ídolo vão chamado bem de família que muitas vezes não é bem de nenhum dos que a compõem Esta ensina a servir o próprio interesse sem lesar as leis ou estimula a imolarse pela pátria com o prêmio do fanatismo que precede a ação Tais contrastes levam os homens a desdenhar o caminho da virtude considerandoo emaranhado e confuso porque nasce da obscu 86 DOS DELITOS E DAS PENAS ridade dos objetos tanto físicos quanto morais Quantas vezes o homem voltandose para ações passadas não se terá surpre endido com a própria desonestidade À medida que a sociedade cresce cada um dos seus membros se torna parte menor do todo e o sentimento republicano diminui na mesma proporção se as leis não tratarem de reforçálo As sociedades como o corpo humano têm limites circunscritos e crescendo elas para além desses limites a economia perturbase necessariamente Parece que a massa de um Estado deve estar na razão inversa da sensibilidade de quem o compõe pois do contrário crescendo uma e outra as boas leis ao prevenirem os delitos encontrariam um obstáculo no próprio bem que produziram Urna república muito vasta somente se salva do despotismo subdividindose e unindose em diversas repúblicas federativas Mas como fazê lo Com um ditador despótico que tenha a coragem de um Sila 21 e tanto gênio para edificar quanto Sila teve para destruir Se tal homem for ambicioso a glória de todos os séculos o esperará se for filósofo as bênçãos de seus cidadãos o consolarão da perda de autoridade a menos que ele se torne indiferente a essa ingratidão À medida que os sentimentos que nos unem à nação se enfraquecem adquirem força os sentimentos para com os objetos circunstantes Por isso é sob o despotismo mais forte que as amizades são mais duráveis e as virtudes de famílias sempre medíocres se tornam mais comuns senão as únicas Disto pode cada um ver quão limitadas são as vistas da maior parte dos legisladores I Ditador romano nascido em 136 ac Companheiro e depois êmulo de Mário cônsul em 88 vencedor de Mitridates chefe do partido aristocrático e depois tirano de Roma e de toda Itália Exilou os adversários reformou a Constituição Romana favoreceu o Senado e adquiriu enorme influência Renuncia inesperadamente morrendo no ano seguinte 80 aC XXVII BRANDURA DAS PENAS o CURSO porém das minhas idéias desvioume do tema que devo agora apressar a esclarecer Um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas mas sua infalibilidade e como conseqüência a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável que para ser uma virtude útil deve ser acompanhada de uma legislação branda A certeza de um castigo mesmo moderado sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo unido à esperança da impunidade pois os males mesmo os menores quando certos sempre surpreendem os espíritos humanos en quanto a esperança dom celestial que freqüentemente tudo supre em nós afasta a idéia de males piores principalmente quando a itnpunidade outorgada muitas vezes pela avareza e pela fraqueza fortalecelhe a força A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitála com audácia tanto maior quanto maior é o mal e leva a cometer mais delitos para escapar à pena de um só Os países e as épocas em que os suplícios mais atrozes foram sempre os das ações mais sanguinárias e desumanas pois o mesmo espírito de crueldade que guiava a mão do legislador regia a do parricida e a do sicário Do trono ditava leis férreas a ânimos torturados de escravos que obedeciam Na íntima escuridão estimulava a imolação para criar outros novos 88 DOS DELITOS E DAS PENAS BRANDURA DAS PENAS 89 À medida que as torturas se tomam mais cruéis o espírito humano que como os fluidos se nivela sempre com os objetos circunstantes endurecem e a força sempre viva das paixões faz com que após cem anos de cruéis suplícios a roda cause tanto temor quanto antes a prisão causava Para que a pena produza efeito basta que o mal que ela inflige exceda o bem que nasce do delito e nesse excesso de mal deve ser calculada a infalibilidade da pena e a perda do bem que o crime deveria produzir O resto é supérfluo e portanto tirânico Os homens regulamse pela repetida ação dos males que conhecem e não pela dos que ignoram Consideremos duas nações numa das quais na escala das penas proporcional à escala dos delitos a pena maior seja a escravidão perpétua e na outra a roda Sustento que a primeira terá tanto temor de sua maior quanto a segunda e se houvesse razão para transferirse para a primeira as penas maiores da segunda a mesma razão serviria para aumentar as penas desta última passando insensivelmente da roda para os tormentos mais lentos e requintados até os últimos refinamentos da ciência mais conhecida dos tiranos Duas outras danosas conseqüências derivam da crueldade das penas contrárias ao próprio fim de prevenir os delitos A primeira é que não é tão fácil preservar a proporção essencial entre delito e pena porque embora uma engenhosa crueldade tenha contribuído para fazer variar grandemente suas espécies a pena não pode ainda assim ultrapassar a última força a que estão limitadas a organização e a sensibilidade humana Alcan çado esse extremo não se encontrariam penas maiores corres pondentes aos delitos mais danosos e atrozes o que seria oportuno para prevenilos Outra conseqüência é que a própria impunidade nasce da atrocidade dos suplícios Os homens estão circunscritos a certos limites tanto no que se refere ao bem quanto no que se refere ao mal e um espetáculo muito atroz para a humanidade só pode constituir um ódio passageiro nunca porém sistema constante como devem ser as leis pois se estas realmente fossem cruéis ou seriam alteradas ou então fatalmen te dariam nascimento à impunidade Quem ao ler a história não se horripila diante dos bárbaros e inúteis tormentos friamente criados e executados por homens que se diziam sábios Quem não estremecerá até em sua célula mais sensível ao ver milhares de infelizes que a miséria provocada ou tolerada por leis que sempre favoreceram a minoria e prejudicaram a maioria forçou a desesperado regresso ao primitivo estado da natureza ou acusados de delitos impossíveis criados pela tímida ignorância ou réus julgados culpados apenas pela fidelidade aos próprios princípios esses infelizes acabam mutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades oriun das de homens dotados dos mesmos sentimentos e por conse guinte das mesmas paixões em alegre espetáculo para a fanática multidão DA PENA DE MORTE 91 xxvm DA PENA DE MORTE A INúTIL quantidade de suplícios que nunca tomou os homens melhores levoume a indagar se a morte é verdadeiramente útil e justa em governo bem organizado Qual poderá ser o direito que o homem tem de matar seu semelhante Certamente não é o mesmo direito do qual resultam a soberania e as leis Estas nada mais são do que a soma de pequeninas porções da liberdade particular de cada um representando a vontade geral soma das vontades individuais Que homem porém outorgará a outro homem o arbítrio de matálo Como poderá haver no menor sacrifício da liberdade de cada um o sacrifício do bem maior de todos os bens que é a vida Se assim fosse como se harmonizaria tal princípio com o de que o homem não tem o direito de matarse Não deveria porventura ter ele esse mesmo direito se resolveu outorgálo a outrem ou a toda a sociedade A pena de morte não é portanto um direito já que demonstrei que isso não ocorre mas é a guerra da nação contra o cidadão que ela julga útil ou necessário matar Se no entanto eu demonstrar que a morte não é útil nem necessária terei vencido a causa da humanidade A morte de um cidadão não pode crerse necessária a não ser por dois motivos o primeiro quando também privado da liberdade ele tenha ainda relações e poder tais que possam afetar a segurança da nação o segundo quando sua existência possa produzir perigosa rvolção para a forma de governo estabelecida A morte do cldadao tomase assim necessária quando a nação recupera ou perde a liberdade ou em época de anarquia quando as próprias desordens tomam o lugar das leis mas sob o reinado tranqüilo das leis sob forma de governo que reúna os votos da nação bem amparada externa e internamente pela força e pela opinião talvez mais eficaz que a própria força onde o comando só é exercido pelo próprio soberano e onde as riquezas compram prazeres e não autoridade não vejo nenhuma necessidade de destruir o cidadão a não ser que tal morte fosse o único e verdadeiro meio capaz de iedir que outros cometessem crimes razão suficiente que tornana Justa e necessária a pena de morte Ainda que a experiência de todos os séculos em que o último dos castigos tivesse refreado os homens decididos a ofender a sociedade ainda que o exemplo dos cidadãos romanos e vinte anos de reinado da imperatriz Isabel de MOSCOU22 ao longo dos quais ela deu aos ancestrais dos povos istre exemplo que equivale a pelo menos muitas conqUIstas adqumdas com o sangue dos filhos da pátria não convencessem os homens para quem a linguagem da razão é sempre suspeita porém é eficaz a da autoridade bastaria consultar a natureza do homem para perceber a verdade da minha assertiva Não é o grau intenso da pena que produz maior impressão sobre o espírito humano mas sim sua extensão pois a sensi bilidade humana é mais facilmente e mais constantemente afetada por impressões mínimas porém renovadas do que por abalo intenso mas efêmero A força do hábito é universal em cada A ser sensível e assim como o homem fala anda e prove as próprias necessidades por seu intermédio assim também as idéias morais só se imprimem na mente por impressões duráveis e repetidas Não é o terrível mas passageiro espetáculo da morte de um criminoso mas sim o longo e sofrido exemplo de um 22 Isabel Petrovna 17091762 Isabel de Moscou ou da Rússia filha de Pedro o Grande e de Catarina Primeira 16841727 que subiu ao trono em 1741 92 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 93 homem privado da liberdade e que convertido em animal recopnsa cm a fadiga a sociedade que ofendeu é que CnStItUl o freIo mais forte contra os delitos A repetição para SI mesmo eficaz por seu insistente refrão eu mesmo serei reduzido a longa e mísera condição se cometer semelhantes delitos é Amuito mais forte do que a idéia da morte que os homens veem numa obscura distância A pena de morte causa tal impressão que embora forte não suprime o rápido esquecimento que é pertinente ao homem mesmo nas coisas essenciais acelerados pelas paixões Regra gerl as paixões violentas surpreendem os homens mas não por mUlto tempo e embora sejam elas aptas a fazer as revoluções que de homens comuns fazem persas ou lacedemônios e livre e tranqüilo governo as impressões devem ser mais frqüentes do que fortes A pena de rte tornase espetáculo para a maioria e objeto mIsto de compa1xao e desdem para poucos Ambos os sentimen tos ocupam mais o espírito dos espectadores do que o salutar terror que a lei pretende inspirar mas nas penas moderadas e conínas o sentimento predominante é o último porque único O hm1te e o legislador deveria fixar para o rigor das penas parece reSIdIr no sentimento de compaixão quando este começa a prevalecer sobre qualquer outro no ânimo dos espectadores d um castigo reservado mais para eles do que para o próprio reu Para ue a pena seja justa só deve ter os indispensáveis gras de mtenS1dade suficientes para afastar os homens dos dehtos ora não há ninguém que refletindo a respeito possa escolher total e perpétua perda da liberdade por mais vantajoso que o dehto possa ser Assim a intensidade da pena de escravidão prpétu substiindo pena de morte contém o suficiente para d1ssuad1r o espmto maiS determmado Acrescento mais muitís SImos homens encaram a morte com o semblante tranqüilo e firme alguns por fanatismo outros por aquela vaidade que quase epre acompanha o homem depois da morte Outros ainda na ultima e desesperada tentativa de não viver ou de sair da miséria mas nem o fanatismo nem a vaidade subsistem entre cepos cadeias sob o bastão ou sob o jugo Atrás de gaiolas de ferro o deseperado não põe fim a seus males mas apenas os começa Nosso espírito resiste mais à violência e às dores extremas mas passageiras do que ao tempo e ao incessante tédio porque concentrado em si mesmo por um instante o espírito pode repelir as primeiras mas sua vigorosa elasticidade não basta para resistir à longa e repetida ação dos últimos Com a pena de morte cada exemplo dado ao país supõe um delito Na pena de escravidão perpétua um único delito oferece muitíssimos e duráveis exemplos e se é importante que os homens vejam sempre o poder da leis a pena de morte não deve ser muito distante entre si Por isso elas supõem a freqüência dos delitos Portanto para que este suplício seja útil é preciso que não produza nos homens a impressão que deveria causar isto é que seja útil e inútil ao mesmo tempo Se alguém disser que a escravidão perpétua é tão dolorosa quanto a pena de morte e portanto igualmente cruel responderei que somados todos os momentos infelizes da escravidão ela talvez o será mais mas esses momentos são espalhados pela vida toda enquanto a morte concentra toda a força num só momento E é esta a vantagem da pena de escravidão que intimida mais quem a vê do que quem a sofre porque o primeiro analisa a soma de todos os momentos infelizes enquanto o segundo se abstrai da infelici dade futura pela infelicidade presente Todos os males aumentam na mente e quem sofre acha recurso e consolo desconhecidos jamais imaginados pelos espectadores que substituem a própria sensibilidade pelo espírito acostumado do infeliz O ladrão ou o assassino cujo único contrapeso para não violar as leis seja a forca ou a roda raciocina mais ou menos do seguinte modo sei que desenvolver os sentimentos do próprio espírito é arte que se aprende com a educação mas se o ladrão não souber expressar com propriedade seus princípios nem por isso deixarão eles de atuar Que leis são essas que devo respeitar e que põem tão grande distância entre minha pessoa e a do rico Ele me nega o centavo que lhe peço e se desculpa mandandome trabalhar fazendo o que ele mesmo não sabe fazer Quem fez essas leis Homens ricos e poderosos que nunca 94 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 95 se propuseram a visitar os míseros casebres do pobre que nunca precisaram repartir o pão amanhecido entre os gritos inocentes dos filhos famintos e as lágrimas da mulher Quebremos estes laços fatais à maioria e úteis a uns poucos tiranos preguiçosos Ataquemos a injustiça na fonte Voltarei ao meu estado de independência natural viverei livre e feliz por algum tempo com os frutos da minha coragem e do meu trabalho Talvez chegue o dia da dor e do arrependimento mas esse tempo será breve e terei um dia de privação ao invés de muitos anos de liberdade e de prazeres Rei de pequeno número corrigirei os erros do destino e verei os tiranos empalidecerem e tremerem diante daqueles que os preteriram com fausto ultrajante e que eles colocaram abaixo de seus cavalos e cães A religião nesse caso sobe à cabeça do criminoso que abusa de tudo e apresentando lhe fácil arrependimento e quase certa felicidade etema minimizará sensivelmente o horror dessa última tragédia Aquele porém que vê diante dos olhos longos anos ou mesmo o curso de toda uma vida que passaria na escravidão e na dor exposto ao olhar dos concidadãos com quem convivia livre e socialmente escravo das mesmas leis que o protegiam fará inútil comparação de tudo com a incerteza do êxito de seus crimes cujos frutos gozará por breve tempo O exemplo contínuo dos que ele contempla atualmente vítimas da própria imprevidência causalhe impressão muito mais forte do que o espetáculo do suplício que o embrutece mais do que o corrige A pena de morte também não é útil pelo exemplo de crueldade que oferece ao homem Se as paixões ou as neces sidades da guerra o ensinaram a derramar o sangue humano as leis moderadoras da conduta do homem não deveriam aumentar jamais o feroz exemplo tanto mais funesto quanto mais a morte jurídica é ministrada com estudo e com formalidade Parece absurdo que as leis expressão da vontade pública que repelem e punem o homicídio o cometam elas mesmas e que para dissuadir os cidadãos do assassinato ordenem o homícidio público Quais são as verdadeiras e mais úteis leis São todos os pactos e todas as condições que os homens desejariam propor e observar enquanto a voz sempre presente do interesse privado se cala ou se funde com a do interesse público Quais são as opiniões de cada um sobre a pena de morte Elas manifesam se nos atos de indignação e de desprezo de cada um ao aVIstar o carrasco que é no entanto mero e inocente executor da vontade pública bom cidadão que contribui para o bem coletlvo instrumento necessário à segurança pública interna coo S valorosos soldados o são para a segurança externa Qual e pOiS a origem dessa contradição E por que sse sentimento a despeito da razão é indelével nos homens E qu no fundo de seus corações onde mais se preserva a forma onmal a vela natureza os homens sempre acreditaram que sua VIda nao podIa estar e poder de ninguém a não ser da necessidade que rege o universo com mão de ferro Que devem pensar os homens ao ver os sáios magistras e os graves sacerdotes da justiça que com mdlferente tranqm lidade e aparato vagaroso conduzem o réu à morte Enquanto o miserável se debate em sua derradeira angústia à espera do golpe de misericórdia continua o juiz com insnível friza e quem sabe com secreta complacência pela propna auondd a degustar o conforto e os prazeres da vida Essas leiS dlrao os homens nada mais são do que pretextos da força e as formalidades cruéis e meditadas da justiça no passam de linguagem convencional para imolarnos con malr serança como vítimas imoladas em sacrifício ao laolo msaczavel do despotismo Vemos praticar sem repugnância e sem furor o homlclalO que nos é apontado como um crimeterrível Aprovetemo este exemplo Nas descrições que nos fazzam da morte nos a vzams violenta como uma cena terrível Vemola agora como questao de um momento E menos ainda ela será para aquele que não lhe estando à espera se vê poupado de tudo o que ela tem de doloroso Tais são os funestos paralogismos que se não com clareza confusamente pelo menos tornam os homens propensos aos deiitos nos quais como vimos o abuso da religião pode mais do que a própria religião Se me refutarem invocando os exemplos de quase todos os séculos e de quase todas as nações que aplicaram a pena 96 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 97 de morte a certos crimes responderei que esse exemplo se anula diante da verdade contra a qual não corre a prescrição que a história da humanidade nos dá a idéia de imenso oceano de erros do qual emergem a grandes intervalos algumas poucas verdades confusas Sacrifícios humanos eram cpmuns em quase todas as nações mas quem ousará desculpálos O fato de que algumas sociedades tenham abolido por pouco tempo a pena de morte mais me favorece do que me desabona porque o destino das grandes verdades é o de não durar mais do que um relâmpago em comparação com a longa e tenebrosa noite que envolve os homens Ainda não chegou a época afortunada em que a verdade como o erro até agora pertencerá à maioria Dessa lei universal só se subtraíram até agora as grandes verdades que a Sabedoria infinita quis separar das outras por meio da Revelação A palavra do filósofo é muito débil contra os tumultos e os gritos dos que são guiados pelos cegos costumes mas os poucos sábios que estão espalhados pela face da terra acompa nharão a minha voz no fundo de seus corações e se a verdade pudesse alcançar o trono entre os infinitos entraves que a afastam do monarca malgrado seu saiba ele que ela trouxe consigo os votos secretos de todos os homens Saiba ele que se calará na sua presença a fama sangrenta dos conquistadores e que a justa posteridade lhe reservará o primeiro lugar entre os pacíficos troféus dos Titos23 dos Antoninos 24 e dos Trajanos25 23 Tito filho de Vespasiano imperador romano de 76 a 81 cognominado as delícias do gênero humano por causa dos grandes benefícios feitos ao povo Perdi meu dia Diem perdidi tinha o hábito de dizer quando passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma boa ação 24 Antonino o Piedoso ou o Pio foi um dos sete imperadores romanos Nerva Trajano Adriano Antonino Marco Aurélio Vero e Cômodo que reinaram de 96 a 192 caracterizandose seu governo de 138 a 161 por notável espírito de modemção e de justiça 25 Tmjano um dos imperadores Antoninos grande organizador que reinou de 98 a 117 pc f Feliz a humanidade se pela primeira vez lhe forem ditadas leis agora que repostos nos tronos da Europa monarcas ben feitores cujo aumento de autoridade das pacíficas virtudes das ciências e das artes pais de seus povos cidadãos coroados cujo aumento de autoridade forma a felicidade dos súditos porque corta o intermediário despotismo mais cruel porque menos seguro do qual vinham sufocados os votos sempre sinceros do povo e sempre gratos quando podem unirse ao trono Digo que se esses monarcas deixam subsistir as leis antigas isto nasce da infinita dificuldade de expurgar dos erros a veneranda ferrugem de muitos séculos e isto é motivo para os cidadãos esclarecidos desejarem com maior entusiasmo o contínuo crescimento de sua autoridade DA PRISÃO 99 XXIX DA PRISÃO E RRO NÃO menos comum pnrque contrário ao fim social que é a opinião da própria segurança é deixar ao magistrado executor das leis o alvedrio de prender o cidadão de tirar a liberdade do inimigo sob frívolos pretextos e de deixar o amigo impune mesmo havendo os mais fortes indícios de culpabilidade Prisão é pena que por necessidade deve diver samente de todas as outras ser precedida da declaração do delito mas este caráter distintivo não lhe tira o outro traço essencial a saber que somente a lei determine os casos em que o homem merece a pena Assim a lei apontará os indícios do delito que exige a guarda do réu sujeitandoo a um interrogatório e a uma pena O clamor público a fuga a confissão extrajudicial o depoimento do companheiro do delito as ameaças e a constante inimizade com o ofendido o corpo de delito e indícios seme lhantes são provas suficientes para prender o cidadão mas tais provas devem ser enumeradas pela lei e não pelo juiz cujos decretos são sempre opostos à liberdade política quando não sejam proposições particulares de uma máxima geral existente no código público À medida que as penas forem moderadas que a desolação e a fome forem eliminadas das prisões que enfim a compaixão e a humanidade adentrarem as portas de ferro e prevalecerem sobre os inexoráveis e endurecidos ministros da justiça as leis poderão contentarse com indícios sempre mais fracos para a prisão O homem acusado de delito encarcerado e depois absolvido não deveria trazer consigo nenhuma nota de infâmia Quantos romanos acusados de delitos gravíssimos e depois considerados inocentesforam reverenciados pelo povo e honrados com magistraturas Por que razão pois é tão diferente em nossos dias a absolvição de um inocente É porque no sistema penal de hoje segundo a opinião dos homens prevalece a idéia da força e da prepotência sobre a da justiça porque se atiram indistintamente no mesmo cárcere não só os acusados como os condenados porque a prisão é mais lugar de suplício do que de custódia do réu e porque a força interna tutora das leis é separada da força externa defensora do trono e da nação quando deveriam estar unidas Assim a primeira por causa do apoio comum das leis seria combinada com a faculdade de julgar sem depender de sua autoridade imediata e a glória que acompanha a pompa e o fausto de um corpo militar tolheria a infâmia a qual como todos os sentimentos populares está mais ligada ao modo do que à coisa o que está provado por serem as prisões militares na opinião comum não tão infamantes como as forenses Perduram ainda no povo nos costumes e nas leis sempre atrasadas em mais de um século de bondade em relação às luzes atuais de uma nação as bárbaras impressões e as ferozes idéias dos nossos pais setentrionais caçadores Sustentaram alguns que onde quer que se cometa o crime isto é a ação contrária às leis possa ele ser punido como se o caráter do súdito fosse indelével sinônimo ou pior ainda do de escravo Como se alguém pudesse ser súdito de um lugar e habitar em outro e suas ações pudessem sem contradição subordinarse a dois soberanos e a dois códigos muitas vezes contraditórios Alguns crêem igualmente que uma ação cruel praticada por exemplo em Constantinopla possa ser punida em Paris pela abstrata razão de que quem ofende a humanidade merece ter toda a humanidade como inimiga bem como a execração pública como se os juízes vingadores o fossem da sensibilidade dos homens mais do que dos pactos que os ligam entre si O lugar da pena é o lugar do delito porque aí somente 100 DOS DELITOS E DAS PENAS e não em outro lugar os homens são obrigados a ofender um particular para prevenir a ofensa pública O criminoso que não tenha infringido os pactos de uma sociedade da qual não era membro pode ser temido e por isso exilado e excluído pela força superior da sociedade mas não punido com as formalidades das leis asseguradoras dos pactos desse país nem por causa da malícia intrínseca de suas ações Costumam os réus de delitos mais leves ser punidos ou com a escuridão de uma prisão ou ser enviados como exemplo a uma longínqua e portanto quase inútil escravidão a nações que não ofenderam Se os homens num momento não se decidem a cometer os mais graves delitos a pena pública para uma grande infração será considerada pela maioria como estranha e impos sível de ocorrer mas a pena pública de delitos mais leves dos quais o espírito está mais próximo causará sobre ele impressão que desviandolhe a atenção destes últimos o afastará ainda mais dos delitos mais graves Não devem as penas ser somente proporcionais entre si e aos delitos em intensidade apenas mas também no modo de aplicação Alguns eximem de pena o pequeno delito quando o ofendido o perdoa ato este conforme à benevolência à humanidade mas contrário ao bem público como se o particular pudesse dando o perdão liminar a necessidade do castigo da mesma forma que pode renunciar ao ressarcimento da ofensa O direito de mandar punir não é de um só mas de todos os cidadãos ou do soberano Ele pode renunciar somente à sua porção de direito mas não anular a dos outros xxx PROCESSOS E PRESCRIÇÕES C ONHECIDAS as provas e calculada a certeza do crime necessário é conceder ao réu tempo e meios conve nientes para justificarse mas tempo bastante breve que não prejudique a rapidez da pena que como vimos é um dos principais freios dos delitos Um mal entendido amor pela humanidade parece contrário a essa brevidade de tempo mas qualquer dúvida desaparecerá se se refletir que os perigos para os inocentes crescem com os defeitos da legislação As leis porém devem fixar um certo prazo de tempo tanto para a defesa do réu como para as provas dos delitos e o juiz se tornaria legislador se acaso decidisse sobre o tempo necessário para a prova do delito Do mesmo modo os crimes cruéis que permanecem longo tempo na lembrança dos homens assim que provados não merecem prescrição alguma em favor do réu que se livra pela fuga Nos delitos menores e obscuros entretanto a prescrição deve pôr fim à incerteza do cidadão quanto à sua sorte pois a obscuridade envolvendo por muito tempo os delitos anula o exemplo da impunidade deixando entretanto ao réu a possibilidade de redimirse Bastame aqui indicar esses princípios pois só se pode fixar limite preciso para cada legislador dadas as circunstâncias de uma dada sociedade Acrescentarei somente que provada a utilidade das penas moderadas duma nação as leis que proporcionalmente à gra 102 DOS DELITOS E DAS PENAS PROCESSOS E PRESCRIÇÕES 103 vidade dos delitos reduzem ou acrescem seu tempo da prescri ção ou o prazo das provas contando o encarceramento ou o exílio voluntário como integrante da pena chegarão facilmente a estabelecer a classificação de poucas penas suaves para grande número de delitos Tais prazos porém não aumentarão na mesma proporção da atrocidade dos delitos uma vez que a probabilidade dos crimes está na razão inversa de sua crueldade Será preciso pois reduzir o tempo de instrução e aumentar o da prescrição o que parece contradizer minha afirmação anterior isto é que penas iguais possam ser aplicadas a delitos desiguais contando como pena o tempo de prisão ou de prescrição anteriores à sentença Para explicar ao leitor minha idéia distingo duas espécies de delitos a primeira é a dos delitos atrozes que começam pelo homicídio e que compreendem todos os ulteriores atos crimi nosos a segunda é a dos delitos menores distinção esta que tem fundamento na natureza humana A segurança da própria vida é um direito natural a segurança dos bens é um direito social O número de motivos que impelem os homens além do natural sentimento de piedade é muito inferior ao número de motivos que pela natural ambição de serem felizes os induzem a violar o direito que não encontram em seus corações mas sim nas convenções sociais A maior diferença de probabilidades entre essas duas espécies de delitos exige que se regulem por princípios diferentes Nos delitos mais graves por serem mais raros deve reduzirse o tempo de instrução por causa da maior probabilidade de inocência do réu devendo aumentar o prazo da prescrição pois da sentença definitiva da inocência ou da culpabilidade de um homem depende o fim de sua ilusão de impunidade cujos danos aumentam conforme a gravidade do delito Nos delitos menores porém sendo menos provável a inocência do réu deverá somarse o tempo da instrução e sendo menores os danos da impunidade será menor o prazo da prescrição Essa distinção dos delitos em duas espécies não seria admissível se o risco da impunidade diminuísse na proporção da probabilidade do delito Observese que o acusado do qual não se provou nem a inocência nem a culpabilidade embora absolvido por falta de provas poderá sujeitarse pelo mesmo delito a nova prisão e a novos interrogatórios se surgirem novos indícios previstos em lei enquanto não tenha decorrido o prazo de prescrição fixado para o crime Esse pelo menos é o critério que creio oportuno para defender não somente a segurança como também a liberdade dos súditos pois muito facilmente se pode favorecer uma com o prejuízo da outra já que estes dois bens que formam o inalienável e igual patrimônio de cada cidadão não sejam protegidos e custodiados o primeiro pelo aberto ou mascarado despotismo o outro pela turbulenta anarquia popular DELITOS DE PROVA DIFíCIL 105 XXXI DELITOS DE PROVA DIFÍCIL E M RAZÃo destes princípios parecerá estranho a quem não percebe que a razão quase nunca é a legisladora das nações que os delitos mais cruéis ou os mais obscuros e quiméricos isto é aqueles cuja improbabilidade for maior sejam provados pelas conjecturas e pelas provas mais frágeis e equívocas Como se o interesse das leis e dos juízes não fosse o de buscar a verdade mas o de provar o delito Como se condenar o inocente não fosse perigo tanto maior quanto maior a probabilidade da inocência relativamente à do crime Falta na maioria dos homens o vigor necessário tantQ para os grandes delitos como para as grandes virtudes razão pela qual me parece que ambas andam sempre juntas nas nações que se apóiam na atividade do governo e das paixões que conspiram contra o bem comum do que no povo ou na constante excelência das leis Nessas nações as paixões enfraquecidas parecem mais inclinadas a manter do que a melhorar a forma de governo Disto se infere conseqüência importante a de que nem sempre numa nação a ocorrência de grandes delitos prova o seu declínio Há alguns delitos que são ao mesmo tempo freqüentes na sociedade e difíceis de serem provados e neles a dificuldade da prova vale como a probabilidade da inocência e sendo o dano da impunidade tanto menos apreciável quanto mais a freqüência desses delitos depende de princípios diversos do perigo da impunidade a duração da instrução e o tempo da prescrição devem ser reduzidos igualmente E todavia o adultério e a libidinagem grega 26 delitos de difícil prova são aqueles que segundo os princípios admitidos acolhem as presunções tirâni cas as quaseprovas as semiprovas como se se pudesse ser semiinocente ou semiculpado isto é semiabsolvível ou semi punível onde a tortura exerce cruel império sobre a pessoa do acusado sobre as testemunhas e até mesmo sobre toda a família de um infeliz como ensinam com iníqua frieza alguns doutores que indicam aos juízes a norma e a lei Adultério é crime que considerado politicamente encontra força e direção em duas razões as leis variáveis dos homens e a fortíssima atração 27 que impele um sexo para o outro esta é semelhante em muitos casos à gravitação motriz do universo porque da mesma maneira diminui com a distância e se uma modifica todos os movimentos dos corpos a outra age sobre quase todos os movimentos do espírito enquanto dura o seu período diferindo no fato de que a força de gravidade se equilibra com os obstáculos que encontra mas a atração entre os sexos geralmente adquire força e vigor com o crescimento dos próprios obstáculos Se eu tivesse que dissertar a nações ainda privadas da luz da religião diria que há ainda considerável diferença entre este delito e os outros porque este deriva do abuso de uma necessidade constante e universal a toda a humanidade neces sidade anterior e aliás fundadora da própria sociedade onde ps outros delitos destruidores dessa sociedade têm origem determi nada mais em paixões momentâneas do que em necessidade natural Para quem conhece a história e o homem tal neces 26 Referese à sodomia 27 Esta atração se parece sob vários aspectos com a gravitação universal A força dessas causas diminui com a distância Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma enquanto durar a atividade Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se equilibra com os obstáculos que encontra ao passo que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor Nota de Beccaria 106 DOS DELITOS E DAS PENAS DELITOS DE PROVA DIFíCIL 107 sidade em dado clima parece ser igual a uma quantidade constante Se isso fosse verdade seriam inúteis e aliás perni ciosas as leis e os costumes que procurassem diminuir a soma total pois seu efeito seria o de aumentar parte das necessidades próprias e alheias Sábias seriam ao contrário as leis que por assim dizer seguindo a inclinação natural do plano dividissem e distribuíssem a soma total em iguais e pequenas porções capazes de impedir uniformemente por toda parte as secas e as inundações A fidelidade conjugal é sempre proporcional ao número e à liberdade dos casamentos Onde estes obedecem a preconceitos hereditários onde o poder do lar os combina e separa a galanteria rompe secretamente esses laços em prejuízo da moral vulgar que tem por função protestar contra os efeitos perdoando as causas Mas não há necessidade de tais reflexões para quem vivendo na verdadeira religião tem motivos mais nobres para corrigir a força dos efeitos naturais Cometer tal delito é ação tão instantânea e misteriosa tão coberta por aquele mesmo véu estendido pelas leis véu necessário mas frágil que aumenta o valor da coisa em vez de reduzilo as ocasiões são tão fáceis as conseqüências tão equívocas que está mais nas mãos do legislador prevenilo do que corrigilo Regra geral em cada delito que porventura deva geralmente ficar impune a pena tomase um incentivo É próprio de nossa imaginação que as dificuldades se não são intranspôníveis ou demasiado grandes relativamente à preguiça da alma de cada homem excitam mais vivamente a mente e engrandecem o objeto pois elas são quase outras tantas barreiras impedindo o espírito errante e volúvel de abandonar tal objeto e constrangendoo a considerálo sob todos os aspectos fazemno mais fortemente se apegar ao lado agradável ao qual mais naturalmente o nosso ânimo se atira do que ao lado doloroso e funesto do qual foge e se afasta A antiga Vênus28 tão severamente punida pelas leis e tão facilmente submetida aos tormentos vencedores da inocência 1 fundamentase menos nas necessidades do homem isolado e livre 28 Em outro texto está ática Vênus homossexualismo do que nas paixões do homem sociável e escravo Ela retira a força não tanto da saciedade dos prazeres do que da educação que começa por tomar os homens inúteis a si mesmos para torná los úteis aos outros naqueles casos onde se condensa uma juventude ardente e onde havendo diques intransponíveis para qualquer outro tipo de relacionamento todo o vigor da natureza que se desenvolve é inutilmente consumido pela humanidade e a velhice é antecipada O infanticídi029 é igualmente efeito de inevitável contra dição em que é colocada a mulher que por fraqueza ou por violência tenha cedido Quem se encontra entre a infâmia e a morte do ser a quem essa infâmia não afeta como não preferirá tal morte à miséria infalível a que ela e o rebento infeliz ficariam expostos Melhor maneira de prevenir tal delito seria a de proteger com leis eficazes a fraqueza contra a tirania que exagera os vícios que não podem ser cobertos com o manto da virtude Não pretendo minimizar a justa aversão que estes crimes causam mas indicandolhes as fontes creiome no direito de poder extrair daí uma conseqüência geral a saber que não se possa denominar precisamente de justa o que quer dize necessária a pena de um crime até que a lei em certas circunstâncias de uma nação não tenha aplicado os melhores meios para prevenilo 29 Aborto SUIcíDIO 109 XXXII SUICÍDIO S UIcímo é crime que parece não poder admitir pena propriamente dita pois ela só poderia incidir sobre inocentes ou sobre o corpo frio e insensível Se neste último caso a pena não há de impressionar os vivos mais do que o chicotear uma estátua no primeiro caso ela é injusta e tirânica porque a liberdade política dos homens supõe necessariamente que as penas sejam estritamente pessoais Os homens amam demasiado a vida e tudo o que os cerca confirma tal sentimento A sedutora imagem do prazer e a esperança dulcíssimo engano dos mortais em nome da qual bebem eles a grande sorvos o mal misturado com algumas gotas de contentamento deleitaos muito para temer que a necessária impunidade do suicídio tenha alguma influência sobre os homens Quem teme a dor obedece às leis mas todas as fontes dessa dor se extinguem no corpo pela morte Qual será então o motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida Aquele que se mata comete um mal menor à sociedade do que aquele que lhe atravessa para sempre as fronteiras pois o primeiro deixa para trás todos os bens mas o segundo se transfere com boa parte dos haveres Assim se a força da sociedade consiste no número dos cidadãos aquele que renuncia à nação para entregarse a uma nação vizinha causa dano duas vezes maior do que aquele que simplesmente renuncia à sociedade pela morte A questão reduzse pois a saber se é útil ou nocivo à nação deixar a cada um de seus membros liberdade total para abandonála Não deverá ser promulgada nenhuma lei que não seja fortalecida 30 ou que a natureza das circunstâncias tome insubsis tente e assim como a opinião dirige os ânimos obedecendo às impressões lentas e indiretas do legislador e resiste às impressões diretas e violentas assim também as leis inúteis desprezadas pelos homens comunicam seu aviltamento às leis mais salutares que são resguardadas mais como óbice a ser superado do que como depósito do bem comum Ora se como foi dito nossos sentimentos são limitados quanto maior for a veneração dos homens por objetos estranhos às leis menor será a que sobrará para as próprias leis Desse princípio o sábio provedor da felicidade pública pode extrair algumas úteis conseqüências que para serem expostas muito me afastariam do meu assunto que é o de provar a inutilidade de fazer do Estado uma prisão Lei nesse sentido seria inútil pois a não ser que rochedos inacessíveis ou mar encapelado separem os países uns dos outros como fechar todos os pontos de suas fronteiras Como vigiar os vigilantes Quem tudo carrega consigo não pode ser punido após o fato Desde que foi cometido o delito não pode ser punido e punilo por antecipação seria punir a vontade dos homens e não as ações Seria comandar a intenção a parte mais livre do homem em relação ao império das leis humanas Punir o ausente pelos bens que deixou além de facilitar o inevitável conluio que não pode ser impedido sem tiranizar os contratos paralisaria todo comércio de nação a nação Punir o réu após sua volta impedindo que ele reparasse o mal causado à sociedade perpetuaria as ausências A própria proibição de sair de um país aumenta nos nacionais o desejo de fazêlo e é uma advertência aos estrangeiros que ingressem Que deveremos pensar do governo que não possui outro meio a não ser o temor para conservar os homens naturalmente vinculados ao solo pátrio pelas primeiras impressões da infância 30 Legge armada ou fortalecida é a lei que comina pena 110 DOS DELITOS E DAS PENAS SUIcíDIO 111 A mais segura maneira de ligar os cidadãos à pátria é aumentar o bemestar relativo de cada um Assim como todo esforço deve ser feito para equilibrar a balança comercial a nosso favor também é interesse supremo do soberano e da nação que o total de felicidade comparado com o das outras nações seja maior do que o de qualquer outra Os prazeres do luxo 31 não são os principais elementos desta felicidade embora impedindo que a riqueza se acumulasse nas mãos de um só sejam um remédio necessário à desigualdade que cresce com o progresso de uma nação Quando as fronteiras de um país aumentam em proporção maior do que a sua população o luxo favorece o despotismo já que quanto menor for o número de homens tanto menor será a produção e quanto menor for a produção tanto maior será a dependência da pobreza em relação ao fausto e mais difícil e menos temida a reunião dos oprimidos contra os opressores pois as bajulações os cargos as distinções e a submissão que tornam mais flagrante a distância entre o forte e o fraco se obtêm mais facilmente de poucos do que de muitos sendo os homens tanto mais independentes quando menos vigiados e menos vigiados quando maior é seu número Se a população de um país aumenta em proporção maior do que suas fronteiras o luxo contrapõese ao despotismo pois estimula o trabalho e a atividade dos homens e a necessidade oferece prazeres e conforto em demasia ao rico para que os da ostentação que aumentam o sentimento de dependência ocupem o lugar melhor Podese pois observar que nos Estados vastos mas fracos e despovoados a menos que outras razões não se ergam como obstáculo o luxo de ostentação prevalece sobre o de conforto mas nos Estados mais povoados do que vastos porém o luxo do conforto sempre reduz o da ostentação O comércio e a circulação dos prazeres do luxo 32 apresentam o seguinte inconveniente qual 31 e 32 O comércio a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes Tais prazeres são preparados por muitos agentes mas partem de um pequeno número de mãos e irradiam a um pequeno número de homens A maioria s6 raramente pode privá los em pequena proporção Eis porque o homem se lamenta da miséria mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação nada tendo de real Nota de Beccaria seja o que tudo que se faça por intermédio de muitos começa no entanto com poucos e termina com poucos e pouquíssimos são os que tiram proveito o que não impede o sentimento da miséria ocasionado mais pela comparação do que pela realidade A segurança e a liberdade limitadas unicamente pelas leis são porém o que forma a base principal desta felicidade com a qual os prazeres do luxo favorecem a população e sem elas se tomam instrumento da tirania Assim como os animais mais generosos e os pássaros mais livres se refugiam na solidão ou nos bosques inacessíveis abandonando os férteis e ridentes campos ao homem insidioso também os homens fogem dos próprios prazeres quando a tirania é que os oferece Está pois demonstrado que se a lei que prende os súditos a seu país é inútil e injusta também o será a lei que condena o suicídio Por isso embora seja culpa que Deus pune o único que pode punir após a morte não é delito diante dos homens pois a pena em vez de incidir sobre o réu incide sobre sua família Se alguém me contestasse que tal pena pudesse no entanto impedir um determinado homem a suicidarse eu responderia que quem renuncia tranqüilamente ao bem da vida que odeia a existência aqui no mundo a ponto de trocála por uma infeliz eternidade não se comoverá decerto pela menos eficaz e mais distante consideração dos filhos ou dos pais CO NTRABANDO 113 XXXIII CONTRABANDO C ONTRABANOO é um verdadeiro delito que prejudica o soberano e a nação mas cuja pena não deve ser infamante porque cometido não produz infâmia na opinião pública Quem pune com penas infamantes crimes que não são reputados como tais pelos homens abranda o sentimento de infâmia para os que o são Quem pretenda a aplicação da própria pena de morte por exemplo para quem mata o faisão e para quem comete homicídio ou falsifica escrito relevante não fará diferença alguma entre estes delitos destruindo assim os sentimentos morais obra de muitos séculos e de muito sangue lentíssimos e difíceis de impressionar o espírito humano e para cujo nascimento se julgou necessária a ajuda dos mais sublimes motivos e de todo um aparato de graves formalidades Este crime nasce da própria lei pois aumentando o imposto alfandegário aumenta sempre a vantagem e portanto a tentação de praticar o contrabando e a facilidade de cometêlo aumenta com a extensão da fronteira a ser fiscalizada e com a diminuição do volume da própria mercadoria A pena de perder não somente os bens contrabandeados como as coisas que os acompanham é justíssima mas será tanto mais eficaz quanto menor for o imposto porque os homens só se arriscam na proporção direta da vantagem que lhes propiciaria o feliz êxito do empreendi mento Entretanto como é que este delito jamais gera infâmia para o autor sendo furto feito ao príncipe e por conseguinte à própria nação Respondo que os danos que os homens acreditam não lhes devam ser feitos não lhes interessam o suficiente para produzir a indignação pública contra os ofensores Tal é o contrabando Os homens sobre os quais as conseqüências remotas causam fraquíssimas impressões não enxergam o dano que lhes pode causar o contrabando Assim muitas vezes usufruemlhe as vantagens presentes apresentadas por ele não percebendo o prejuízo causado ao príncipe Assim não se interessam tanto em ficar privados de aprovação de quem pratica o contrabando quanto em punir aquele que comete o furto privado falsifica documento e produz outros males que os possam atingir Princípio evidente de que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece Deverseia porém deixar sem castigo tal delito contra quem nada tem a perder Não Há contrabandos que interessam de tal forma à natureza do imposto parte essencial e difícil da boa legislação que esse delito merece severíssima pena até prisão e escravidão mas prisão e escravidão adequadas à natureza do delito Por exemplo a prisão do contrabandista de cigarro não deve ser a mesma que a do assassino ou a do ladrão e os trabalhos do contrabandista ficam limitados ao trabalho e ao serviço do próprio Fisco que ele quis fraudar sendo os mais adequados à natureza da pena DOS DEVEDORES 115 XXXIV DOS DEVEDORES A BOAFÉ nos contratos e a segurança do comércio levam o legislador a assegurar aos credores as pessoas dos devedores falidos mas julgo importante distinguir o falido doloso do falido inocente O primeiro deveria ser punido com a mesma pena corninada aos falsários de moedas pois falsificar peça de metal cunhado penhor das obrigações do cidadão não é crime aior do que o de falsificar as pr6prias obrigações mas o falido lOocente aquele que ap6srigoroso exame prova diante do juiz que a malícia ou a desgraça alheia ou vicissitudes inevitáveis da humana prudência o despojaram dos bens deverá ser atirado à prisão e privado do único e triste bem que lhe resta a nua e crua liberdade Por que deverá ele experimentar as angústias dos culpados e com o desespero de sua probidade oprimida arrependerse quem sabe da tranqüila inocência em que vivia sob a tutela das leis que não estava em seu poder poupar do dano Leis ditadas pela avidez dos poderosos e suportadas pelos fracos graças à esperança que sempre reluz no ânimo humano fazendonos acreditar que as vicissitudes adversas são para os outros e as vantajosas para n6s Abandonados a seus sentimentos os mais 6bvios os homens amam as leis cruéis embora sujeito a elas Seria do interesse de cada um que elas fossem moderadas porque maior é o temor de ser ofendido do que a vontade de ofender Retomando ao inocente falido digo que se a obrigação dele há de ser inextinguível até o total pagamento se não lhe for concedido subtrairse a ela sem o consentimento das partes interessadas e de transferir para outra jurisdição sua atividade a qual por lei deveria ser empregada para tomar a colocálo em condições de pagar dívidas Qual será então o pretexto legítimo como a segurança do comércio ou a sagrada proprie dade dos bens que justifique a inútil privação da liberdade exceto no caso raríssimo aliás em que supondose um exame rigoroso os males da escravidão ocasionassem a revelação dos segredos de um suposto falido inocente Considero máxima legislativa aquela em que o valor dos inconvenientes políticos varia na razão direta do dano público e na razão inversa da improbabilidade de verificarse Poderseia distinguir o dolo da culpa grave a grave da leve e esta da perfeita inocência cominando à primeira as sanções previstas para o crime de falsificação à segunda penas menores com privação da liber dade reservando à última a livre escolha dos meios para recuperarse negando à terceira a liberdade de fazêlo e outorgando aos credores a mesma liberdade A distinção entre pena grave e pena leve entretanto deve ser estabelecida pela cega e imparcial lei e não pela arbitrária e perigosa prudência dos juízes A fixação dos limites é assim tão necessária na política como na matemática tanto na medida do bem comum como na medida das grandezas Com que facilidade o previdente legislador poderia impedir grande parte das falências fraudulentas e remediar as desgraças do inocente laboriosop3 O público e manifesto registro de todos os contratos a liberdade de todos os cidadãos de consultar documentos bem ordenados um banco público formado por 33 Nas primeiras edições desta obra eu mesmo cometi este erro Ousei dizer que o falido de boafé deveria ser conservado como penhor da dívida contraída reduzido ao estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores Envergonhome de ter escrito essas coisas cruéis Acusaramme de impiedade e de sedição sem que eu fosse sedicioso nem ímpio Ataquei os direitos da humanidade e ninguém se levantou contra mim Nota de Beccaria 116 DOS DELITOS E DAS PENAS impostos sabiamente incidentes sobre o comércio feliz e desti nado a socorrer com somas convenientes o infeliz e inocente comerciante não teriam nenhum real inconveniente e poderiam trazer inúmeras vantagens mas as fáceis simples e grandes leis somente aguardam o aceno do legislador para disseminar no seio da nação o vigor e a robusteza leis essas que o recompensariam de geração em geração com hinos imortais de reconhecimento são as menos conhecidas ou as menos desejadas O espírito inquieto e mesquinho a tímida prudência do momento presente a circunspecta rigidez diante das notícias apoderamse dos sentimentos de quem concatena a grande quantidade de ações dos pequenos mortais xxxv ASILOS R ESTAMME ainda dnas questões para exame uma a de saber se os asilos são justos a outra se o pacto da permuta recíproca de réus entre nações é útil ou não Dentro dos limites de um país não deve haver lugar nenhum infenso às leis A força da lei deve seguir o cidadão como a sombra segue o corpo A impunidade e o asilo diferem só em grau e como a impressão da pena consiste mais na segurança de encontrála do que em sua força os asilos mais convidam o homem ao delito do que as penas dele o afastam Multiplicar asilos é criar outras tantas pequenas soberanias porque onde as leis não vigoram novas leis opostas às comuns podem formarse e portanto com espírito contrário ao do corpo inteiro da sociedade A história demonstra que dos asilos grandes revoluções saíram nos Estados e nas opiniões dos homens mas a utilidade ou não da permuta recíproca dos réus entre nações é questão que eu não ousaria resolver enquanto leis mais adequadas às necessidades da humanidade penas mais suaves e a extinção da dependência do arbítrio e da opinião não garantirem a segurança da inocência oprimida e da virtude detestada enquanto a tirania não for totalmente limitada às vastas planícies da Ásia pela razão universal que une cada vez mais os interesses do trono aos dos súditos e não obstante a convicção de não achar um só palmo de terra que perdoe os verdadeiros delitos pudessem ser meio eficacíssimo para prevenilos DA RECOMPENSA 119 XXXVI DA RECOMPENSA A OUIRA questão referese à utilidade ou não de pôr a prêmio a cabeça de um homem notoriamente réu armando o braço de cada cidadão e fazendo dele um carrasco Ou o réu está além das fronteiras ou dentro delas No primeiro caso o soberano estimula os cidadãos a cometerem delitos e os expõe ao castigo praticando assim injustiça e usurpação de soberania em território alheio autorizando assim outras nações a agirem do mesmo modo No segundo ele exibe a própria fraqueza Quem tem força para defenderse não procura comprá la Além disso semelhante edito subverte todas as idéias de moral e de virtude que ao menor sopro de vento se desvanecem no espírito humano As leis ora convidam à traição ora a castigam Por um lado com uma mão o legislador estreita os laços de fanulia de parentesco de amizade e por outro com a outra premia quem quebra esses laços sempre contradizendo a si mesmo ora convidando os ânimos desconfiados dos homens à confiança ora espalhando a desconfiança em todos os corações Ao invés de prevenir o delito dá origem a outros cem São estes os expedientes das nações fracas cujas leis não passam de restaurações momentâneas de edifício em ruínas que se está desmoronando À medida que crescem as luzes de uma nação a boa fé e a confiança recíprocas tomamse necessárias e cada vez mais tendem elas a confundirse com a verdadeira política Os artifícios as cabalas as estradas obscuras e indiretas são no mais das vezes previsíveis e a sensibilidade de todos reduz a sensibilidade de cada um em particular Os próprios séculos de ignorância nos quais a moral pública obrigava os homens a obedecerem à moral privada servem de instrução e de experiência aos séculos esclarecidos mas as leis que premiam a traição e que suscitam uma guerra clandestina espalhando a desconfiança recíproca entre os cidadãos se opõem a esta tão necessária união da moral e da política a qual os homens deveriam a felicidade às nações a paz e ao universo um mais longo período de tranqüilidade e de repouso dos males pelos quais antes passaram TENTATIVAS CÚMPLICES E IMPUNIDADE 121 XXXVII TENTATIVAS CÚMPLICES E IMPUNIDADE N Áo É PORQUE as leis não castiguem a intenção qne o crime deixe de merecer pena delito que comece com ação que revele o ânimo de cometêlo ainda que a pena seja menor do que a aplicável à própria prática do delito A importância de prevenir a tentativa autoriza a pena mas assim como pode haver intervalo entre tentativa e execução reservar pena maior ao delito consumado pode ocasionar o arrependimento Digase o mesmo quando houver vários cúmplices do delito e não todos eles executores imediatos mas por diferentes motivos Quando vários homens se unem num risco quanto maior for esse risco tanto mais eles procuram tornálo igual para todos Será pois mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito correndo maior risco do que os outros cúmplices A única exceção seria a da hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor caso em que tendo ele então recompensa pelo risco maior a pena deveria ser igual Tais reflexões parecerão demasiadamente metafísicas a quem não meditar quão útil seria que as leis propiciassem menos razões de acordo possível entre os cúmplices de um delito Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de grave delito que delatasse os companheiros Tal expediente tem incovenienes e vantagens Os inconvenientes são que a nação estana autorIzando a delação detestável mesmo entre criminosos porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vilania porque o primeiro não é freqüente já que só espera uma força benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bem público enquanto que a segunda é mais comum e contagiosa e sempre se concentra mais em si mesma Além disso o tribunal mostra a própria incerteza a fraqueza da lei que implora ajuda de quem a infringe As vantagens consistem na prevenção dos delitos relevantes que por terem efeitos evidentes e autores ocultos atemorizam o povo Além disso contribui para mostrar que quem não tem fé nas leis isto é no poder público é provável que também não confie no particular Pareceme que lei geral que prometesse impunidade ao cúmplice delator de qualquer delito seria preferível a uma declaração especial em caso particular porque assim preveniria as uniões pelo temor recí proco que cada cúmplice teria de exporse e o tribunal não tornaria audaciosos os criminosos chamados a prestar socorro num caso particular Tal lei portanto deveria unir a impunidade ao banimento do delator Atormentome em vão para destruir o remorso que sinto autorizando as leis sacrossantas monumento da confiança pública base da moral humana à traição e à dissimulação Além disso que exemplo haveria para a nação se negasse a impunidade prometida e por meio de doutas cavilações arrastasse ao suplício a despeito da fé pública quem aceitou o covite das leis Não são raros tais exemplos nas nações e por ISSO não são poucos os que só concebem a nação como máquina complicada cujo mecanismo é movido pelo mais hábil e poderoso à vontade Frios e insensíveis a tudo que forma a delícia das almas ternas e sublimes eles excitam com imper turbável sagacidade os sentimentos mais caros e as paixões mais violentas tão logo percebam que elas lhes são úteis aos desígnios tocando os ânimos assim como os músicos tocam os instrumen tos XXXVIII INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS N OSSAS leis proscrevem no processo os interrogatórios denominados sugestivos isto é aqueles que segundo os doutos indagam sobre a espécie e não como deveriam sobre o gênero nas circunstâncias de um delito a saber os interro gatórios que tendo imediata conexão com o delito sugerem aO réu imediata resposta Os interrogatórios segundo os penalistas devem por assim dizer envolver o fato como uma espiral sem jamais alcançálo por via direta Os motivos deste método so ou não sugerir ao réu réplica que o ponha a salvo da acusaçao ou talvez porque parece contrário à própria natureza que o réu se acuse imediatamente por si só Seja qualquer destes dOIS motivos frisante é a contradição das leis que junto com essa prática autorizam a tortura E com efeit ue interrogat6rio pode ser mais sugestivo do que a dor O pnelfo mtlvoocorre na tortura pois a dor sugerirá ao forte obstmado sl1êncIo para a troca da pena maior pela menor e ao fraco sugerirá a confissão para livrarse do tormento presente mais eficaz nesse momento do que a futura dor O segundo motivo é evidentemente o mesmo pois se o interrogatório especial leva contr Ô direito naral o réu à confissão as dores o conseguirão maiS facl1mente ainda mas os homens se conduzem mais pela diferença dos nomes do INTERROGATORIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS 123 que pela das coisas Entre outros abusos da gramática cuja influência nas questões humanas sempre foi grande merece realce o que torna nulo e ineficaz o depoimento do réu já condenado Ele está morto civilmente afirmam com gravidade os jurisconsultos peripatéticos e morto é incapaz de ação Sacrificouse grande número de vítimas para dar fundamento a essa vã metáfora e freqüentemente com a maior seriedade se discutiu se a verdade deveria ceder lugar ou não ao formalismo legal Desde que o depoimento do réu condenado não chegue ao ponto de perturbar o curso da justiça por que não reservar aos interesses da verdade e à extrema miséria do réu mesmo após a condenação espaço suficiente de modo que acrescendo ele elementos novos que alterem a natureza do fato permita reivindicar a si mesmo ou a outrem um novo julgamento As formalidades e o cerimonial são necessários para a administração da justiça ou porque nada deixam ao arbítrio de quem a administra ou porque sugerem ao povo julgamento não tumul tuado e parcial mas estável e regular quer enfim porque as sensações mais do que os raciocínios produzem impressões eficazes sobre os homens imitadores e escravos do hábito Tais formalidades porém nunca podem sem perigo fatal ser fixadas pela lei de modo a prejudicar a verdade a qual por ser ou demasiado simples ou demasiado complexa necessita de alguma pompa externa que a concilie com o povo ignorante Finalmente aquele que durante o interrogatório insistir em não responder às perguntas feitas merece pena fixada pelas leis pena das mais graves entre as cominadas para que os homens não faltem à necessidade do exemplo que devem ao público A pena é desnecessária quando é fora de dúvida que tal acusado tenha cometido tal delito o que torna o interrogatório inútil da mesma forma que é inútil a confissão do delito quando outras provas justificam a condenação Este último caso é o mais freqüente porque a experiência demonstra que na maior parte dos pro cessos os réus negam a culpa XXXIX DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS Q UEM LER este escrito perceberá que deixei de mencionar um tipo de delito que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras onde corpos humanos vivos serviam de pasto às chamas Era um alegre espetáculo e uma grata harmonia para a cega multidão ouvir os confusos gemidos dos miseráveis que saíam dos vórtices negros da fumaça fumaça de membros humanos entre o ranger dos ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes mas homens racionais verão que o lugar o século e a matéria não me permitem analisar a natureza de tal delito Seria tarefa muito longa e estranha a meu propósito provar a necessidade da perfeita uniformidade de pensamento no Estado contra o exemplo de muitas nações Provar como opiniões que distam entre si apenas por algumas diferenças muito sutis e obscuras muito acima da capacidade humana possam talvez ainda tumultuar o bem público a menos que uma só seja autorizada e as outras excluídas e provar ainda que a natureza das opiniões é formada de tal modo que enquanto algumas se fortalecem no contraste e se opondo se esclarecem subindo à tona as verdadeiras as falsas submergem no esquecimento enquanto outras inseguras DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS 125 por sua nua constância devem revestirse de autoridade e de força Seria demasiado longo provar que por mais odioso que pareça o império da força sobre as mentes humanas cujas únicas conquistas são a dissimulação logo o aviltamento e por contrário que ele possa aparentemente ser ao espírito de mansidão e fraternidade ordenado pela razão e pela autoridade que mais veneramos ele é entretanto necessário e indispensável Tudo isto deve acreditarse ter sido bem provado e de acordo com os verdadeiros interesses dos homens se existe quem o exerça com reconhecida autoridade Eu só falo dos crimes que brotam da natureza humana e do pacto social e não dos pecados cujas penas ainda que temporais devem regularse por princípios diversos daqueles de uma limitada filosofia FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE f27 XL FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE F ONTE de erros e de injustiças são as falsas idéias de utilidade elaboradas pelos legisladores Falsa idéia de utilidade é a que antepõe os inconvenientes particulares ao inconveniente geral ou seja a que reprime os sentimentos ao invés de estimulálos e diz à lógica sirva Falsa idéia de utilidade é a que sacrifica mil vantagens reais a um inconveniente imaginário ou de poucas conseqüências É a que tiraria o fogo dos homens porque queima e a água porque afoga que só repara os males com a destruição As leis que proíbem portar armas são leis dessa natureza Tais leis só desarmam os que não têm vocação nem determinação para os crimes enquanto aqueles que têm a coragem de violar as leis mais sagradas da humanidade e os dispositivos mais importantes do Código respeitarão as leis menores e puramente arbitrárias tão fácil e impunemente passíveis de transgressão e cuja exata execução suprime a liberdade pessoal tão cara ao homem quanto ao legislador esclarecido e submete os inocentes a todos os vexames destinados aos réus Tais vexames colocam os agredidos em posição de inferioridade privilegiando os agressores ao invés de diminuir o número de homicídios aumentamno por ser mais confiável assaltar os desarmados do que os armados Assim se chamam as leis não preventivas dos delitos mas temerosas deles nascidas da tumultuada impressão de alguns fatos particulares e não da meditação racional dos inconvenientes e das vantagens de um decreto universal Falsa idéia de utilidade é a que pretendesse dar a uma multidão de seres sensíveis a simetria e a ordem que a matéria bruta e inanimada tolera descuidando dos motivos presentes os únicos a agir sobre a multidão com força e perseverança para fortalecer os motivos distantes que causam impressão ao mesmo tempo fraca e fugaz se uma força de imaginação incomum na humanidade não suprir a distância do objeto com o seu engrandecimento Finalmente falsa idéia de utilidade é a que sacrificando a coisa ao nome separa o bem público de todo bem particular Há diferença entre estado de sociedade e estado de natureza a saber homem selvagem só prejudica a outrem o suficiente para beneficiarse a si próprio enquanto o homem sociável é às vezes levado pelas más leis a prejudicar terceiros sem benefício para si próprio O déspota lança temor e desalento no coração dos escravos mas esses sentimentos rebatidos se voltam mais fortemente contra seu coração para atormentálo Quanto mais o temor é solitário e interno menos perigoso é para quem dele faz o instrumento de felicidade mas quanto mais se tomar público e atacar uma multidão maior de homens mais fácil será ver o imprudente o desesperado ou o destemido avisado forçar os homens a servir lhes os fins despertando neles sentimentos tanto mais gratos e sedutores quanto maior for o número de pessoas sobre as quais incide o risco da iniciativa Então o valor que os infelizes atribuem à própria existência diminui na proporção da miséria que sofrem Esta é a razão pela qual as ofensas vão fazer nascer novas ofensas pois o ódio é sentimento mais durável do que o amor na medida em que o primeiro extrai a força da continuidade dos atos que enfraquecem o segundo COMO PREVENIR OS DELITOS 129 XLI COMO PREVENIR OS DELITOS M ELnOR prevenir os crimes que punHns Esta é a finalIdade precípua de toda boa legislação arte de conduzir os homens ao máximo de felicidade ou ao mínimo de infelicidade possível para aludir a todos os cálculos dos bens e dos males da vida entretanto os meios empregados até agora têm sido em sua maioria falsos e contrários ao fim proposto Não é possível reduzir a desordenada atividade dos homens a uma ordem geométrica sem irregularidade e sem confusão Assim como as constantes e simplicíssimas leis da natureza não impedem que os planetas se perturbem em seus movimentos assim também nas atrações infinitas e muito contrárias do praze e da dor as leis humanas não podem impedir as perturbações e a desordem Todavia essa é a quimera dos homens limitados quando têm na mão o comando Proibir grande quantidade de ações diferentes não é prevenir delitos que delas possam nascer mas criar novos é definir ao belprazer a virtude e o vício conceituados como eternos e imutáveis A que nos reduziríamos se nos fosse proibido tudo o que nos pode induzir ao delito Seria preciso privar o homem do uso dos sentidos Para cada motivo que induz os homens a cometer o verdadeiro delito há mil outros que os impelem a cometer ações indiferentes que as más leis chamam delitos E se a probabilidade dos delitos é proporcional ao número das razões ampliar a esfera dos delitos é aumentar a probabilidade de que sejam cometidos A maioria das leis não passa de privilégios isto é tributo de todos para as mãos de alguns poucos Quereis prevenir os delitos Fazei com que as leis sejam claras simples e que toda a força da nação se condense em defendêlas e nenhuma parte da nação seja empregada em destruílas Fazei com que as leis favoreçam menos as classes dos homens do que os próprios homens Fazei com que os homens as temam e temam apenas a elas O temor das leis é sadio mas fatal e fecundo em delitos é o temor de homem para homem Os homens escravos são mais voluptuosos mais libertinos e mais cruéis do que os homens livres Estes meditam sobre as ciências e sobre os interesses da nação vêem os grandes objetos e os imitam mas aqueles satisfeitos com o dia presente procuram no tumulto da libertinagem uma distração para o aniquilamento em que se encontram Afeitos à incerteza em tudo o êxito dos seus crimes tornaseIhes problemático favorecendo a paixão que os determina Se a incerteza das leis incide sobre uma nação indolente pelo clima mantém e aumenta a indolência e a estupidez Se incide sobre uma nação voluptuosa mas ativa ela desperdiça a atividade dessas leis em número infinito de pequenas cabalas e intrigas que semeiam a desconfiança nos corações e fazem da traição e da dissimulação o alicerce da prudência Se a incerteza das leis incide sobre uma nação corajosa e forte a incerteza é suprimida gerando antes muitas oscilações da liberdade para a escravidão e da escravidão para a liberdade DAS CIÊNCIAS 131 XLII DAS CIÊNCIAS QUEREIS prevenir os delitos Fazei com qne as luzes acompanhem a liberdade Os males que nascem do conhecimento estão na razão inversa de sua difusão e os bens na razão direta O audacioso impostor que é sempre um home invulgar é adorado pela plebe ignara e vaiado pelo homem esclarecido Os conhecimentos facilitando as comparações entre os objetos e multiplicando os pontos de vista contrapõem muitos sentimentos que se modificam entre si tanto mais facilmente quanto mais previsíveis são nos outros as mesmas vistas e as mesmas resistências Em face das luzes esparsas com profusão sobre a nação calase a caluniosa ignorância e treme a auto ridade desarmada de razões permanecendo imutável a vigorosa força das leis pois não há homem esclarecido que não goste dos pactos públicos claros e úteis da segurança comum ao comparar a parcela da inútil liberdade que sacrificou com a soma de todas as liberdades sacrificadas pelos outros homens os quais sem leis poderiam tornarse conspiradores contra ele Todo aquele que dotado de alma sensível lançando um olhar sobre um Código de leis bem feito e achando que nada perdeu a não ser a nefasta liberdade de prejudicar a outrem será levado a bem dizer o trono e quem o ocupa Não é verdade que as ciências tenham sido sempre preju diciais à humanidade e quando o foram tratavase de mal inevitável para os homens A multiplicação do gênero humano na face da terra inventou a guerra as artes mais rústicas as primeiras leis que eram pactos passageiros gerados pela neces sidade e que com ela pereciam Foi essa a primeira filosofia dos homens com poucos elementos corretos pois somente a indo lência e a escassa sagacidade os preservavam do erro mas as necessidades cada vez mais se multiplicavam com a multipli cação dos homens Faziamse pois necessárias impressões mais fortes e mais duradouras para dissuadilos de reiterado retorno ao primeiro estágio de insociabilidade que se tornava cada vez mais prejudicial Foram assim um grande bem para a huma nidade aqueles primeiros erros que povoaram a terra de falsas divindades refirome ao grande bem político e que imaginaram um universo invisível governador do nosso Foram benfeitores dos homens aqueles que ousaram surpreendêla arrastando até os altares a dócil ignorância Apresentandolhes objetos que lhes ultrapassavam os sentidos que lhes escapavam das mãos à medida que pensavam alcançálos que não podiam desprezar por não conhecêlos reuniram e concentraram as divididas paixões em um único objeto que os impressionava fortemente Foram essas as primeiras vicissitudes de todas as nações formadas de povos selvagens Foi essa a época de formação das grandes sociedades e foi esse o vínculo necessário e talvez o único Não falo do povo eleito de Deus para o qual os milagres extraor dinários e as graças mais conhecidas marcaram época na política humana Mas assim como é próprio do erro subdividirse ao infinito assim também as ciências nascidas de tal erro fizeram dos homens fanática multidão de cegos entrechocandose desordenadamente em labirinto fechado a ponto de alguns espíritos sensíveis e filosóficos ordenarem até mesmo o antigo estado de selvageria Eis a primeira época em que os conhe cimentos ou melhor as opiniões são prejudiciais A segunda consiste na difícil e terrível passagem do erro à verdade da obscuridade desconhecida à luz O choque imenso dos erros úteis aos poucos poderosos contra as verdades úteis 132 DOS DELITOS E DAS PENAS aos muito fracos a aproximação e o fermento das paixões que suscitam naquela ocasião causam males infinitos à mísera humanidade Quem refletir sobre a história em que certos intervalos de tempo se assemelham a períodos principais en contrará mais vezes uma geração inteira sacrificada à felicidade das que a sucederam na enlutada mas necessária passagem das trevas da ignorância à luz da filosofia da tirania à liberdade conseqüências disso Acalmados porém os ânimos e extinto o incêndio que purgou a nação dos males que a oprimiam a verdade cujos progressos são primeiro lentos depois acelera dos compartilha o trono dos monarcas e tem culto e altar nos parlamentos das repúblicas quem poderá garantir que a luz que ilumina a multidão seja mais danosa do que as trevas e que as relações simples e verdadeiras entre as coisas bem conhecidas pelos homens lhe sejam prejudiciais Se a cega ignorância é menos fatal que o medíocre e confuso saber já que este acrescenta aos males da primeira os erros inevitáveis de quem tem visão restrita ao que está junto das fronteiras da verdade o homem esclarecido é o dom mais precioso que o soberano pode ofertar à nação e a si mesmo tomandoo depositário e guardião das santas leis Acostumado à visão da verdade e não a temêla privado da maioria das necessidades da opinião que nunca suficientemente satisfeitas põem à prova o valor da maioria dos homens afeitos a contemplar a humanidade das maiores alturas diante dele a nação tomase uma família de irmãos e a distância entre os poderosos e o povo parecelhe tanto menor quanto maior é a massa humana que está diante de seus olhos Os filósofos cultivam necessidades e interesses desconhecidos da plebe ignara principalmente o de não desmentir à luz pública os princípios apregoados na obscuridade e adquirem o hábito de amar a verdade por si mesma A seleção de tais homens constitui a felicidade de uma nação Será no entanto felicidade efêmera se as boas leis não lhes aumentarem de tal modo o número que diminuam a probabilidade sempre grande de uma má seleção XLIII DOS MAGISTRADOS O UTRO meio de prevenir os delitos é o de interesar 0 Colegiado executor das leis mais pela obervancla delas do que pela corrupção Quanto maior or o numro de membros que o compõem menos perigosa sera a usurpaçao das leis porque a venalidade é mais difíil entre membros que se observam entre si e que estão menos Interessados em aumetar a própria autoridade quanto menor for a porçã que cabena a cada um principalmente se comparada com o pengo do empeen dimento Se o soberano com aparato e pompa C a austendade dos editos com a proibição das querelas justas e Injustas de uem se crê oprimido acostumar os súditos a temere aIS s magistrados do que as leis estes últimos se aprveltarao aIS desse temor do que a segurança própria e púbhca lucrara XLIV PRÊMIOS o UTRO modo d prevnir dlitos é o do recomponsar a lrtude A esse respeIto veJo que há silêncio universal na leglslaçao de todas as nações contemporaneas Se os prêmios propostos pelas academias aos descobridores das mais úteis erdades multiplicaram não só os conhecimentos como os bons hvros por qual razão os prêmios propostos pela mão benévola do soberano não multiplicariam também as ações virtuosas A moeda da honra é sempre inesgotável e frutífera nas mãos do sábio distribuidor XLV EDUCAÇÃO F iIIAiMENTE o mais sgoro mas o mais diffcil moio d prevenir o delito é o de aperfeiçoar a educação objeto muito amplo e que ultrapassa os limites a que me impus objeto que ouso também dizer estar muito intrinsecamente ligado à natureza do governo para que não seja sempre campo estéril só cultivado aqui e ali por alguns poucos estudiosos até nos mais remotos séculos da felicidade pública Um grâhde homem que iluminou a humanidade que ô perlíeguia mostrou em pormenores quais as principais miÍXimas da educação realmente úteis aos homens34 a saber preterir Utha estéril multidão de objetos em favor de uma escolha e precisâo deles substituir àS c6pias pelos originais nos fenômenos tânto motâis como físicos que o acaso e o talento apresentam aos hOvos espíritos dos jovens e impelir esses jovens à virtude pela fácil estrada do sentimento afastandoos do mal pela via infalível da necessidade e do inconveniente e não pela via incerta do comando que s6 consegue simulada e momentânea obediência 34 Referência à famosa obra Emlio ou Da educaçéIo 1762 romance filos6fico em que JeanJacques Rousseau expõe seu sistema educa cional baseado no prinCíIio de que o homem é por natureza bom sendo má a educação dadà pela sociedade pois seria melhor propidl1r edUcação negativa como a melhor ou antes como a t1nica a sef transmitida A despeito de certos pl1ràdoxos O livro de Rousseau teve influência decisiva sobre o siStema educacional da época DAS GRAÇAS 137 XLVI DAS GRAÇAS A MIIDIDA que as peuas se tomam mais brandas a clemência e o perdão tomamse menos necessários Feliz a nação onde eles pudessem ser erradicados por nefastos A clemência virtude que às vezes foi para o soberano o suplemento de todos os deveres do trono deveria ser suprimida de uma legislação perfeita em que as penas fossem brandas e o método de julgamento regular e rápido Esta verdade poderá parecer crua para quem vive na desordem do sistema penal onde o perdão e a graça são necessários na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações A graça é a mais bela prerrogativa do trono e o mais desejável atributo da soberania sendo esta tácita reprovação que os benefícios geradores da felicidade pública dão a um Código que com todas as imperfeições tem a seu favor o prejulgamento dos séculos volumoso e imponente aparato de infinitos comentadores solene pompa das eternas formalidades e adesão dos mais insinuantes e menos temidos semidoutos Se se considerar porém que clemência é virtude do legislador e não do executor das leis que resplandecem no Código e não nos julgamentos particulares e que mostram aos homens que os delitos podem ser perdoados e que a pena não é sua inevitável conseqüência mas a de criar a ilusão da impunidade e a de fazer crer que as condenações não são perdoadas embora pudessem sêlo sejam antes abusos da força do que emanações da justiça Que dizer então do príncipe que outorga a graça ou seja a segurança pública a um particular e que com um ato privado de benevolência não esclarecida edita decreto público de impunidade Que as leis sejam pois inexoráveis e inexoráveis sejam também seus executores nos casos particulares mas que o legislador seja brando indulgente humano Sábio arquiteto faça surgir seu edifício na base do amor próprio e que o interesse geral seja o resultado dos interesses de cada um não sendo ele constrangido com leis parciais e remédios estapafúrdios a separar sempre o bem público do bem particular e para alçar o simulacro da salvação pública sobre o temor e sobre a desconfiança Profundo e sensível filósofo permita que os homens seus irmãos gozem em paz a pequena porção de felicidade que o imenso sistema concebido pela Causa Primeira daquele que é lhes permita desfrutar neste ângulo do universo XLVII CONCLUSÃO C ONCLUO com uma reflexllo que o grau das ponas deva ser relativo ao estado da pr6pria nação Mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os ânimos endurecidos de um povo recémsaído do estado selvagem É necessário o nua para abater o feroz leão que com o tiro do fuzil apenas se agita À medida porém que os espíritos se abrandam no estado de sociedade cresce a sensibilidade e crescendo esta deverá diminuir a intensidade da pena se se desejar manter constante a relação entre o objeto e a sensação De tudo quanto se viu até aora poderá extrairse um teorema geral muito útil mas pouco de acordo com o uso legislador por excelência das nações ou seja para que a pona não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular deverá ser essencialmente pública rápida necessária a mínima dentre as passIveis nas dadas circunstâncias ocorridas proporcional ao delito e ditada pela lei RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS E STAS Notas e Observações são mera coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e das Penas classificado como fanático impostor escritor falso e perigoso satírico descontrolado sedutor do público É acusado de destilar o mais acre fel de reunir contradições odiosas com os traços pérfidos e escondidos da dissimulação de ser obscuro por maldade O crítico pode ficar seguro de que não responderei às injúrias pessoais Ele apresenta meu livro como obra horrível virulenta e de licenciosidade deletéria infame ímpia Nele encontra blasfêrnias impudentes ironias insolentes anedotas indecentes sutilezas perigosas pilhérias escandalosas e calúnias grosseiras A religião e o respeito que se deve aos soberanos são o pretexto para as duas mais pesadas acusações que se encontram nessas Notas e Observações Estas serão as únicas às quais me coniiderarei obrigado a responder Comecemos pela primeira 142 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 143 I ACUSAÇÕES DE IMPIEDADE 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas desconhece a justiça que se origina no legislador eterno que tudo vê e prevê Aqui está mais ou menos o silogismo do autor nas Notas O autor do livro Dos Delitos e das Penas não concorda que a interpretação da lei esteja na dependência da vontade e do capricho do magistrado Quem não deseja confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos do magistrado não acredita na justiça que vem de Deus O autor não admite portanto justiça puramente divina 2 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas As Santas Escrituras somente contêm imposturas Em toda a obra Dos Delitos e da Penas tratase da Escritura Sagrada uma só vez é quando a propósito de erros religiosos no capítulo XLI afirmei que não falava desse povo eleito de Deus em que os milagres mais evidentes e as graças mais notáveis substituíram a política humana 3 Toda gente sensata achou no livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo um mau homem e um mau filósofo Não me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo Aqueles que me conhecem atestam que não sou um homem mau Serei pois inimigo do cristianismo quando insisto na manutenção da tranqüilidade dos templos sob proteção gover namental e quando afirmo ao falar da sorte das grandes verdades que a Revelação é a única que manteve sua pureza em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se ela fosse simples princípio político O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama a religião de um dom sagrado do céu Poderseia provar que ele trata como simples princípio político o que lhe parece dom sacrossanto do céu 5 O autor é inimigo declarado do Ser supremo Peço no fundo de meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem 6 Se o cristianismo provocou algumas desventuras e alguns morticínios exageraos e silencia a respeito dos benefícios e das vantagens que a luz do Evangelho disseminou por toda a humanidade Em meu livro não se achará nenhum lugar onde se apontem males provocados pelo Evangelho Não citei um só fato sequer que se relacione com isso 7 O autor lança blasfêmia contra os mImstros da religião quando afirma que suas mãos se sujaram no sangue humano Todos aqueles que escreveram a História desde Carlos Magno até Otão o Grande e ainda depois desse príncipe proferiram idêntica blasfêmia Desconhecerseá que por três séculos os abades e os bispos nenhum escrúpulo manifestaram em caminhar para a guerra E não será o caso de afirmar sem blasfêmia que os padres que se achavam no meio das batalhas e que tOJIlaram parte na carnificina sujavam as mãos de sangue humano SO Os prelados da Igreja Católica tão recomendáveis por sua suavidade e humanidade figuram no livro Dos Delitos 144 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 145 e das Penas como autores de suplícios tão bárbaros quanto inúteis Não sou culpado por ter de repetir mais de uma vez a mesma coisa Não poderá ser citada em toda minha obra uma só frase que afirme que os padres inventaram os suplícios 9 0 A heresia não pode ser chamada de crise de lesa majestade divina conforme o autor do livro Dos Delitos e das Penas Não existe em todo meu livro um só termo que dê margem a tal imputação Propusme tãosomente tratar Dos Delitos e das Penas e não dos pecados Afirmei a propósito do crime de lesamajestade que apenas a ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéias mais claras podem nomear assim e castigar como tais com a morte crimes de naturezas diferentes O crítico talvez não saiba como se abusa da expressão lesamajestade nas épocas de despotismo e ignorância empregandoa para designar crimes de gênero totalmente diverso pois não levavam imediatamente à destruição da sociedade Consulte a lei dos imperadores Graciano Valentiniano e Teodósio Observe como eram tidos como criminosos de lesamajestade os que ousavam duvidar da bon dade de escolha do Imperador na ocasião em que ele oferecia algum emprego Uma outra lei de Valentiniano de Teodósio e de Arcádio lhe ensinará que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesamajestade Era necessário um decreto do Senado para libertar da acusação de lesamajestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores ainda que velhas e mutiladas Apenas depois do edito dos imperadores Severo e Antonino é que se deixou de ajuizar ação de lesamajestade contra aqueles que vendiam as estátuas dos imperadores Esses príncipes fizeram publicar um decreto que proibia a perseguição por esse delito àqueles que porventura tivessem atirado uma pedra contra a estátua de um imperador Domiciano condenou à morte uma senhora de Roma porque se despira diante de uma escultura Tibério mandou matar como criminoso de lesa majestade o cidadão que vendera a casa onde estava a estátua do imperador Em séculos menos afastados do nosso verá Henrique VIII abusar de tal maneira das leis que fez morrer mediante infame suplício o Duque de Norfolk a pretexto de lesamajestade e porque ele misturara as armas da Inglaterra com as de suà família Esse soberano até mesmo declarou réu do mesmo crime quem se atrevesse a prever a morte do príncipe Por isso quando ficou gravemente enfermo pela última vez os médicos recusa ramse a prevenilo do perigo real em que se encontrava 10 0 De acordo com o autor Dos Delitos e das Penas os hereges excomungados pela Igreja e exilados pelos príncipes são vítimas de uma palavra Todas essas interpretações são forçadas Limiteime a discorrer sobre o crime de lesamajestade humana Ora a palavra lesamajestadeserviu freqüentemente de pretexto à tirania especialmente ao tempo dos imperadores romanos Qualquer ação que tivesse a desventura de desagradálos configuraria delito de lesamajestade Suetônio afirma que o delito de lesamajestade era o crime dos que não tinham cometido nenhum delito Se eu afirmei que a ignorância e o despotismo deram esse nome a crimes de natureza diversa e fizeram os homens vítimas de uma palavra não fiz mais do que falar de acordo com a História 11 0 Não será terrível blasfêmia assegurar como faz o autor do livro Dos Delitos e das Penas que a eloqüência a declamação e as mais excelsas verdades são freio muito fraco para deter por muito tempo as paixões humanas Não julgo que a acusação de blasfêmia possa recair sobre o que afirmei da eloquência e da declamação O acusador 146 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 147 desejou certamente referirse à insuficiência que atribuo às mais sublimes virtudes Indago se considera que na Itália se conhecem essas sublimes verdades isto é as da fé Indubita velmente respondermeá que sim Contudo tais verdades ser viram de freio às paixões dos homens na Itália Todos os oradores sacros os magistrados os homens em uma só palavra garantirmeão o contrário É um fato portanto que as excelsas verdades são para as paixões ds homens um freio que não as refreia ou que logo se parte E enquanto houver em país católico juízes criminosos prisões e penas estará demonstrada a insuficiência das verdades excelsas 12 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacnlegas contra a Inquisição No meu livro não menciono nem direta nem indiretamente a Inquisição Indago contudo ao meu acusador se lhe parece bem de acordo com o espírito da Igreja a condenação de homens ao suplício nas fogueiras Não é do próprio seio de Romasob os olhos do vigário de Cristo na capital da religião católica que se cumprem nos dias atuais para com os protestantes de qualquer país todos os deveres de humanidade e de hospitali dade Os últimos papas e especialmente o atual receberam e recebem com grande bondade os ingleses os holandeses e os russos Tais povos de seitas e religiões diversas desfrutam em Roma de toda liberdade e ninguém está mais seguro do que eles de gozar ali da proteção das leis e do governo 13 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa debaixo de cores odiosas as ordens religiosas e especialmente os frades Muito difícil seria apontar um só lugar de meu livro que mencionasse ordens religiosas ou frades a não ser que se interprete de modo arbitrário o capítulo em que discorro sobre a ociosidade 14 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores sem fé para os quais os eclesiásticos são charlatães os monarcas tiranos os santos fanáticos a religião impostura e que nem sequer rspeitam a majestade do Criador contra a qual vomitam blasfêmias hediondas Passemos às acusações de sedição II ACUSAÇÕES DE SEDIÇÃO 10 O autor do livro Dos Delitos e das Penas julga déspotas cruéis todos os príncipes e todos os soberanos do século Apenas uma vez falei em meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa E aqui está pela primeira vez o que afirmo Venturoso o gênero humano se recebesse leis Hoje que vemos erguidos os tronos da Europa etc Ver o fim do cap XVI 2 0 Não podem deixar de surpreender a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta com fúria contra os monarcas e eclesiásticos A confiança e a liberdade não representam um mal Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter qui autem depravat vias suas manifestus erit Se aplaudi certo espírito de independência dos súditos foi na proporção em que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros juízes Quero até que os homens não precisando recear a escravidão porém desfrutando a liberdade sob a proteção das leis se tomem soldados intrépidos defensores da pátria e do trono cidadãos cheios de virtude e juízes incorruptíveis que levem para junto do trono os tributos e o amor de todas as ordens do país e que disseminemnas 148 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 149 choupanas a segurança de um destino sempre mais doce Não estamos mais nos tempos de Calígula de Nero ou de Heliogábalo E o crítico pouquíssima justiça faz aos princípios reinantes crendo que meus preceitos possam ofendêlo 3 O autor do livro Dos Delitos e das Penas assegura que o interesse do particular supera o de toda a sociedade e em geral o dos que a representam Se tal absurdo estivesse no livro Dos Delitos e das Penas não acredito que meu adversário escrevesse um livro de 19i páginas para refutálo 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas não confere aos monarcas o direito de castigar com a morte Como aqui não se trata nem de religião nem de governo porém apenas da exatidão de um raciocínio meu acusador tem intira liberdade de julgar o que desejar Resumo meu silogismo aSSIm Não se deve impor a pena de morte se esta não for realmente útil e necessária ora a pena de morte não é realmente útil nem necessária Logo não se deve impor a pena de morte Este não é o lugar para uma explanação sobre os direitos dos moarcas O crítico certamente não desejará sustentar que se deva Impor a pena de morte ainda que ela não seja realmente úil nem necessária Proposta tão cruel e escandalosa não pode Ir da boca de um cristão Se a segunda parte do silogismo não e correta tratarseá de crime de lesalógica e jamais de lesa majestade sendo escusados os meus pretensos erros Parecem me eles com aqueles em que caíram tantos cristãos zelosos da primeira Igreja 34 parecemse com aqueles em que caíram os frades da época de Teodósio o Grande ao fim do século IV Em seus Anais da Itália afirma Muratori que no ano 389 Teodósio publicou uma lei pela qual determinava aos frades que ficassem nos conventos pois levavam a caridade pelo próximo até ao ponto de subtrair os criminosos das mãos da justiça não desejando que se matasse ninguém A minha caridade não vai tão longe e aceitarei de boa vontade que a daquele tempo se regesse por falsos preceitos Toda ação violenta contra a autoridade pública é criminosa Ainda tenho duas palavras a dizer Existirá no mundo lei que proíba afirmar ou prescrever que o Estado pode existir e manter a paz interna sem utilizar a pena de morte contra o culpado Diodoro conta no Livro I Capítulo LXV que Sabacão rei do Egito se tomou modelo de clemência por comutar penas capitais em escravidão e por dar emprego feliz à sua autoridade condenando os culpados a trabalhos públicos Estrabão no Livro XI informanos que havia junto ao Cáucaso algumas nações que desconheciam a pena de morte ainda quando o crime merecesse os maiores tormentos nernini mortem irrogare quamvis pessima merito Tal verdade está referida na História Romana da época da Lei Pórcia que proibia tirar a vida de cidadão romano se a sentença de morte não estivesse confirmada por todo o povo Tito Lívio fala dessa Lei no Livro X Capítulo IX de sua obra Por fim o exemplo próximo de um reinado de vinte anos no maior império do mundo a Rússia demonstra ainda esta verdade A Imperatriz Isabel ver nota do tradutor a de número 22 morta há alguns anos 1762 jurou quando ascendeu ao trono dos czares que não condenaria à morte nenhum culpado durante o seu reinado Essa augusta princesa cumpriu esse feliz compromisso que assumira sem interromper o curso da justiça penal e sem prejudicar a tranqüilidade pública Se tais fatos são incontestáveis será então correto dizer que o Estado pode subsistir e ser venturoso sem castigar com a morte qualquer criminoso Diagramação elrânica EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS Rllll TllbllfingllÇlra 140 T6rreQ Loja 01 Te 0II 31152433 FliX 0II 31063772 CEP 01020901 São Pllulo SP Brasil Impresso nas pficmas da EDITORA PARMA LIDA Telefone 011 64127822 Av Antonio 8ardella 280 Guarulhos São Paulo Brasil Com filmes fornecidos pelo editor