·
Letras ·
Literatura
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
132
Senhora - José de Alencar
Literatura
UNILAB
154
Lira dos Vinte Anos - Álvares de Azevedo
Literatura
UNILAB
23
Análise das Figuras na Poesia de Gonçalves Dias e Outros Poetas
Literatura
UNILAB
25
Análise Crítica da Obra de Álvares de Azevedo
Literatura
UNILAB
16
Carta de José Alencar a Machado de Assis sobre Castro Alves
Literatura
UNILAB
8
Antologia de Poesias Americanas
Literatura
UNILAB
13
Modernismo em Portugal: O Caso Fernando Pessoa
Literatura
UNILAB
13
Ideias Fora do Lugar: A Escravidão e a Economia Política no Brasil
Literatura
UNILAB
79
Primeiras Trovas Burlescas de Getulino
Literatura
UNILAB
21
O Indianismo na Prosa Romântica
Literatura
UNILAB
Texto de pré-visualização
Antologia Seleção de excertos ref alguns heterônimos de Fernando Pessoa 1 Poema de Álvaro de Campos 5 OPIÁRIO Ao senhor Mário de SáCarneiro É antes do ópio que a minhalma é doente Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente Esta vida de bordo háde matarme São dias só de febre na cabeça E por mais que procure até que adoeça Já não encontro a mola pra adaptarme Em paradoxo e incompetência astral Eu vivo a vincos douro a minha vida Onda onde o pundonor é uma descida E os próprios gozos gânglios do meu mal É por um mecanismo de desastres Uma engrenagem com volantes falsos Que passo entre visões de cadafalsos Num jardim onde há flores no ar sem hastes Vou cambaleando através do lavor Duma vidainterior de renda e laca Tenho a impressão de ter em casa a faca Com que foi degolado o Precursor Ando expiando um crime numa mala Que um avô meu cometeu por requinte Tenho os nervos na forca vinte a vinte E caí no ópio como numa vala Ao toque adormecido da morfina Percome em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes Erguese a lua como a minha Sina Eu que fui sempre um mau estudante agora Não faço mais que ver o navio ir 1 Os excertos ref sempre as edições brasileiras da Companhia das Letras Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida ânfora na aurora Perdi os dias que já aproveitara Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara E fui criança como toda a gente Nasci numa província portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei inglês perfeitamente Gostava de ter poemas e novelas Publicados por Plon e no Mercure Mas é impossível que esta vida dure Se nesta viagem nem houve procelas A vida a bordo é uma coisa triste Embora a gente se divirta às vezes Falo com alemães suecos e ingleses E a minha mágoa de viver persiste Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a Índia e a China A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver Por isso eu tomo ópio É um remédio Sou um convalescente do Momento Moro no résdochão do pensamento E ver passar a Vida fazme tédio Fumo Canso Ah uma terra aonde enfim Muito a leste não fosse o oeste já Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim Sou desgraçado por meu morgadio Os ciganos roubaram minha Sorte Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte Um lugar que me abrigue do meu frio Eu fingi que estudei engenharia Vivi na Escócia Visitei a Irlanda Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmola às portas da Alegria Não chegues a PortSaid navio de ferro Volta à direita nem eu sei para onde Passo os dias no smokingroom com o conde Um escroc francês conde de fim de enterro Volto à Europa descontente e em sortes De vir a ser um poeta sonambólico Eu sou monárquico mas não católico E gostava de ser as coisas fortes Gostava de ter crenças e dinheiro Ser vária gente insípida que vi Hoje afinal não sou senão aqui Num navio qualquer um passageiro Não tenho personalidade alguma É mais notado que eu esse criado De bordo que tem um belo modo alçado De laird escocês há dias em jejum Não posso estar em parte alguma A minha Pátria é onde não estou Sou doente e fraco O comissário de bordo é velhaco Viume coa sueca e o resto ele adivinha Um dia faço escândalo cá a bordo Só para dar que falar de mim aos mais Não posso com a vida e acho fatais As iras com que às vezes me debordo Levo o dia a fumar a beber coisas Drogas americanas que entontecem E eu já tão bêbado sem nada Dessem Melhor cérebro aos meus nervos como rosas Escrevo estas linhas Parece impossível Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta O facto é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível Os ingleses são feitos pra existir Não há gente como esta pra estar feita Com a Tranquilidade A gente deita Um vintém e sai um deles a sorrir Pertenço a um género de portugueses Que depois de estar a Índia descoberta Ficaram sem trabalho A morte é certa Tenho pensado nisto muitas vezes Leve o diabo a vida e a gente têla Nem leio o livro à minha cabeceira Enojame o Oriente É um esteira Que a gente enrola e deixa de ser bela Caio no ópio por força Lá querer Que eu leve a limpo uma vida destas Não se pode exigir Almas honestas Com horas pra dormir e pra comer Que um raio as parta E isto afinal é inveja Porque estes nervos são a minha morte Não haver um navio que me transporte Para onde eu nada queira que o não veja Ora Eu cansavame do mesmo modo Quria outro ópio mais forte pra ir de ali Para sonhos que dessem cabo de mim E pregassem comigo nalgum lodo Febre Se isto que tenho não é febre Não sei como é que se tem febre e sente O facto essencial é que estou doente Está corrida amigos esta lebre Veio a noite Tocou já a primeira Corneta pra vestir para o jantar Vida social por cima Isso E marchar Até que a gente saia pla coleira Porque isto acaba mal e háde haver Olá sangue e um revólver lá prò fim Deste desassossego que há em mim E não há forma de se resolver E quem me olhar háde me achar banal A mim e à minha vida Ora um rapaz O meu próprio monóculo me faz Pertencer a um tipo universal Ah quanta alma haverá que ande metida Assim como eu na Linha e como eu mística Quantos sob a casaca característica Não terão como eu o horror à vida Se ao menos eu por fora fosse tão Interessante como sou por dentro Vou no Maelstrom cada vez mais prò centro Não fazer nada é a minha perdição Um inútil Mas é tão justo sêlo Pudesse a gente desprezar os outros E ainda que coos cotovelos rotos Ser herói doido amaldiçoado ou belo Tenho vontade de levar as mãos À boca e morder nelas fundo e a mal Era uma ocupação original E distraía os outros os tais sãos O absurdo como uma flor da tal Índia Que não vim encontrar na Índia nasce No meu cérebro farto de cansarse A minha vida mudea Deus ou findea Deixeme estar aqui nesta cadeira Até virem meterme no caixão Nasci pra mandarim de condição Mas faltamme o sossego o chá e a esteira Ah que bom que era ir daqui de caída Prà cova por um alçapão de estouro A vida sabeme a tabaco louro Nunca fiz mais do que fumar a vida E afinal o que quero é fé é calma E não ter essas sensações confusas Deus que acabe com isto Abra as eclusas E basta de comédias na minhalma 1914 Março No canal de Suez a bordo Poema de Ricardo Reis 1 Mestre são plácidas Todas as horas Que nós perdemos Se no perdêlas Qual numa jarra Nós pomos flores Não há tristezas Nem alegrias Na nossa vida Assim saibamos Sábios incautos Não a viver Mas decorrêla Tranquilos plácidos Tendo as crianças Por nossas mestras E os olhos cheios De Natureza À beirario À beiraestrada Conforme calha Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo O Tempo passa Não nos diz nada Envelhecemos Saibamos quasi Maliciosos Sentirnos ir Não vale a pena Fazer um gesto Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre Colhamos flores Molhemos leves As nossas mãos Nos rios calmos Para aprendermos Calma também Girassóis sempre Fitando o sol Da vida iremos Tranquilos tendo Nem o remorso De ter vivido 1261914 Poema de Alberto Caieiro O GUARDADOR DE REBANHOS I Eu nunca guardei rebanhos Mas é como se os guardasse Minha alma é como um pastor Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentarse a meu lado Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada Os meus pensamentos são contentes Só tenho pena de saber que eles são contentes Porque se o não soubesse Em vez de serem contentes e tristes Seriam alegres e contentes Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho E se desejo às vezes Por imaginar ser cordeirinho Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora Quando me sento a escrever versos Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos Escrevo versos num papel que está no meu pensamento Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende Saúdo todos os que me lerem Tirandolhes o chapéu largo Quando me vêem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro Saúdoos e desejolhes sol E chuva quando a chuva é precisa E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predilecta Onde se sentem lendo os meus versos E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural Por exemplo a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque cansados de brincar E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado Excerto do Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa 1 Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido sem saber porquê E então porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus Pertenço porém àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem nem veem só a multidão de que são senão também os grandes espaços que há ao lado Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles nem aceitei nunca a Humanidade Considerei que Deus sendo improvável poderia ser podendo pois dever ser adorado mas que a Humanidade sendo uma mera ideia biológica e não significando mais que a espécie animal humana não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal Este culto da Humanidade com seus ritos de Liberdade e Igualdade pareceu me sempre uma revivescência dos cultos antigos em que animais eram como deuses ou os deuses tinham cabeças de animais Assim não sabendo crer em Deus e não podendo crer numa soma de animais fiquei como outros da orla das gentes naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência A Decadência é a perda total da inconsciência porque a inconsciência é o fundamento da vida O coração se pudesse pensar pararia A quem como eu assim vivendo não sabe ter vida que resta senão como a meus poucos pares a renúncia por modo e a contemplação por destino Não sabendo o que é a vida religiosa nem podendo sabê lo porque se não tem fé com a razão não podendo ter fé na abstração do homem nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós ficava nos como motivo de ter alma a contemplação estética da vida E assim alheios à solenidade de todos os mundos indiferentes ao divino e desprezadores do humano entregamo nos futilmente à sensação sem propósito cultivada num epicurismo subtilizado como convém aos nossos nervos cerebrais 48 Retendo da ciência somente aquele seu preceito central de que tudo é sujeito a leis fatais contra as quais se não reage independentemente porque reagir é elas terem feito que reagíssemos e verificando como esse preceito se ajusta ao outro mais antigo da divina fatalidade das coisas abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas e curvamo nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida Não tomando nada a sério nem considerando que nos fosse dada por certa outra realidade que não as nossas sensações nelas nos abrigamos e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos E se nos empregamos assiduamente não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados é que a prosa ou o verso que escrevemos destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade é apenas como o falar alto de quem lê feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos Mas imperfeito é tudo nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar nos um sono mais calmo ainda E assim contempladores iguais das montanhas e das estátuas gozando os dias como os livros sonhando tudo sobretudo para o converter na nossa íntima substância faremos também descrições e análises que uma vez feitas passarão a ser coisas alheias que podemos gozar como se viessem na tarde Não é este o conceito dos pessimistas como aquele de Vigny1 para quem a vida é uma cadeia onde ele tecia palha para se distrair Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico e essa atitude é um exagero e um incómodo Não temos é certo um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos Produzimo la é certo para nos distrair porém não como o preso que tece a palha para se distrair do Destino senão da menina que borda almofadas para se distrair sem mais nada Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo Não sei onde ela me levará porque não sei nada Poderia considerar esta estalagem uma prisão porque estou compelido a aguardar nela poderia considerá la um lugar de sociáveis porque aqui me encontro com outros Não sou porém nem impaciente nem comum Deixo 49 ao que são os que se fecham no quarto deitados moles na cama onde esperam sem sono deixo ao que fazem os que conversam nas salas de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim Sento me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem e canto lento para mim só vagos cantos que componho enquanto espero Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá la e não interrogo mais nem procuro Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder relido um dia por outros entretê los também na passagem será bem Se não o lerem nem se entretiverem será bem também 1999 p479
Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora
Recomendado para você
132
Senhora - José de Alencar
Literatura
UNILAB
154
Lira dos Vinte Anos - Álvares de Azevedo
Literatura
UNILAB
23
Análise das Figuras na Poesia de Gonçalves Dias e Outros Poetas
Literatura
UNILAB
25
Análise Crítica da Obra de Álvares de Azevedo
Literatura
UNILAB
16
Carta de José Alencar a Machado de Assis sobre Castro Alves
Literatura
UNILAB
8
Antologia de Poesias Americanas
Literatura
UNILAB
13
Modernismo em Portugal: O Caso Fernando Pessoa
Literatura
UNILAB
13
Ideias Fora do Lugar: A Escravidão e a Economia Política no Brasil
Literatura
UNILAB
79
Primeiras Trovas Burlescas de Getulino
Literatura
UNILAB
21
O Indianismo na Prosa Romântica
Literatura
UNILAB
Texto de pré-visualização
Antologia Seleção de excertos ref alguns heterônimos de Fernando Pessoa 1 Poema de Álvaro de Campos 5 OPIÁRIO Ao senhor Mário de SáCarneiro É antes do ópio que a minhalma é doente Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente Esta vida de bordo háde matarme São dias só de febre na cabeça E por mais que procure até que adoeça Já não encontro a mola pra adaptarme Em paradoxo e incompetência astral Eu vivo a vincos douro a minha vida Onda onde o pundonor é uma descida E os próprios gozos gânglios do meu mal É por um mecanismo de desastres Uma engrenagem com volantes falsos Que passo entre visões de cadafalsos Num jardim onde há flores no ar sem hastes Vou cambaleando através do lavor Duma vidainterior de renda e laca Tenho a impressão de ter em casa a faca Com que foi degolado o Precursor Ando expiando um crime numa mala Que um avô meu cometeu por requinte Tenho os nervos na forca vinte a vinte E caí no ópio como numa vala Ao toque adormecido da morfina Percome em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes Erguese a lua como a minha Sina Eu que fui sempre um mau estudante agora Não faço mais que ver o navio ir 1 Os excertos ref sempre as edições brasileiras da Companhia das Letras Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida ânfora na aurora Perdi os dias que já aproveitara Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara E fui criança como toda a gente Nasci numa província portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei inglês perfeitamente Gostava de ter poemas e novelas Publicados por Plon e no Mercure Mas é impossível que esta vida dure Se nesta viagem nem houve procelas A vida a bordo é uma coisa triste Embora a gente se divirta às vezes Falo com alemães suecos e ingleses E a minha mágoa de viver persiste Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a Índia e a China A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver Por isso eu tomo ópio É um remédio Sou um convalescente do Momento Moro no résdochão do pensamento E ver passar a Vida fazme tédio Fumo Canso Ah uma terra aonde enfim Muito a leste não fosse o oeste já Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim Sou desgraçado por meu morgadio Os ciganos roubaram minha Sorte Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte Um lugar que me abrigue do meu frio Eu fingi que estudei engenharia Vivi na Escócia Visitei a Irlanda Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmola às portas da Alegria Não chegues a PortSaid navio de ferro Volta à direita nem eu sei para onde Passo os dias no smokingroom com o conde Um escroc francês conde de fim de enterro Volto à Europa descontente e em sortes De vir a ser um poeta sonambólico Eu sou monárquico mas não católico E gostava de ser as coisas fortes Gostava de ter crenças e dinheiro Ser vária gente insípida que vi Hoje afinal não sou senão aqui Num navio qualquer um passageiro Não tenho personalidade alguma É mais notado que eu esse criado De bordo que tem um belo modo alçado De laird escocês há dias em jejum Não posso estar em parte alguma A minha Pátria é onde não estou Sou doente e fraco O comissário de bordo é velhaco Viume coa sueca e o resto ele adivinha Um dia faço escândalo cá a bordo Só para dar que falar de mim aos mais Não posso com a vida e acho fatais As iras com que às vezes me debordo Levo o dia a fumar a beber coisas Drogas americanas que entontecem E eu já tão bêbado sem nada Dessem Melhor cérebro aos meus nervos como rosas Escrevo estas linhas Parece impossível Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta O facto é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível Os ingleses são feitos pra existir Não há gente como esta pra estar feita Com a Tranquilidade A gente deita Um vintém e sai um deles a sorrir Pertenço a um género de portugueses Que depois de estar a Índia descoberta Ficaram sem trabalho A morte é certa Tenho pensado nisto muitas vezes Leve o diabo a vida e a gente têla Nem leio o livro à minha cabeceira Enojame o Oriente É um esteira Que a gente enrola e deixa de ser bela Caio no ópio por força Lá querer Que eu leve a limpo uma vida destas Não se pode exigir Almas honestas Com horas pra dormir e pra comer Que um raio as parta E isto afinal é inveja Porque estes nervos são a minha morte Não haver um navio que me transporte Para onde eu nada queira que o não veja Ora Eu cansavame do mesmo modo Quria outro ópio mais forte pra ir de ali Para sonhos que dessem cabo de mim E pregassem comigo nalgum lodo Febre Se isto que tenho não é febre Não sei como é que se tem febre e sente O facto essencial é que estou doente Está corrida amigos esta lebre Veio a noite Tocou já a primeira Corneta pra vestir para o jantar Vida social por cima Isso E marchar Até que a gente saia pla coleira Porque isto acaba mal e háde haver Olá sangue e um revólver lá prò fim Deste desassossego que há em mim E não há forma de se resolver E quem me olhar háde me achar banal A mim e à minha vida Ora um rapaz O meu próprio monóculo me faz Pertencer a um tipo universal Ah quanta alma haverá que ande metida Assim como eu na Linha e como eu mística Quantos sob a casaca característica Não terão como eu o horror à vida Se ao menos eu por fora fosse tão Interessante como sou por dentro Vou no Maelstrom cada vez mais prò centro Não fazer nada é a minha perdição Um inútil Mas é tão justo sêlo Pudesse a gente desprezar os outros E ainda que coos cotovelos rotos Ser herói doido amaldiçoado ou belo Tenho vontade de levar as mãos À boca e morder nelas fundo e a mal Era uma ocupação original E distraía os outros os tais sãos O absurdo como uma flor da tal Índia Que não vim encontrar na Índia nasce No meu cérebro farto de cansarse A minha vida mudea Deus ou findea Deixeme estar aqui nesta cadeira Até virem meterme no caixão Nasci pra mandarim de condição Mas faltamme o sossego o chá e a esteira Ah que bom que era ir daqui de caída Prà cova por um alçapão de estouro A vida sabeme a tabaco louro Nunca fiz mais do que fumar a vida E afinal o que quero é fé é calma E não ter essas sensações confusas Deus que acabe com isto Abra as eclusas E basta de comédias na minhalma 1914 Março No canal de Suez a bordo Poema de Ricardo Reis 1 Mestre são plácidas Todas as horas Que nós perdemos Se no perdêlas Qual numa jarra Nós pomos flores Não há tristezas Nem alegrias Na nossa vida Assim saibamos Sábios incautos Não a viver Mas decorrêla Tranquilos plácidos Tendo as crianças Por nossas mestras E os olhos cheios De Natureza À beirario À beiraestrada Conforme calha Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo O Tempo passa Não nos diz nada Envelhecemos Saibamos quasi Maliciosos Sentirnos ir Não vale a pena Fazer um gesto Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre Colhamos flores Molhemos leves As nossas mãos Nos rios calmos Para aprendermos Calma também Girassóis sempre Fitando o sol Da vida iremos Tranquilos tendo Nem o remorso De ter vivido 1261914 Poema de Alberto Caieiro O GUARDADOR DE REBANHOS I Eu nunca guardei rebanhos Mas é como se os guardasse Minha alma é como um pastor Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentarse a meu lado Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada Os meus pensamentos são contentes Só tenho pena de saber que eles são contentes Porque se o não soubesse Em vez de serem contentes e tristes Seriam alegres e contentes Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho E se desejo às vezes Por imaginar ser cordeirinho Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora Quando me sento a escrever versos Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos Escrevo versos num papel que está no meu pensamento Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende Saúdo todos os que me lerem Tirandolhes o chapéu largo Quando me vêem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro Saúdoos e desejolhes sol E chuva quando a chuva é precisa E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predilecta Onde se sentem lendo os meus versos E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural Por exemplo a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque cansados de brincar E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado Excerto do Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa 1 Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido sem saber porquê E então porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus Pertenço porém àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem nem veem só a multidão de que são senão também os grandes espaços que há ao lado Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles nem aceitei nunca a Humanidade Considerei que Deus sendo improvável poderia ser podendo pois dever ser adorado mas que a Humanidade sendo uma mera ideia biológica e não significando mais que a espécie animal humana não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal Este culto da Humanidade com seus ritos de Liberdade e Igualdade pareceu me sempre uma revivescência dos cultos antigos em que animais eram como deuses ou os deuses tinham cabeças de animais Assim não sabendo crer em Deus e não podendo crer numa soma de animais fiquei como outros da orla das gentes naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência A Decadência é a perda total da inconsciência porque a inconsciência é o fundamento da vida O coração se pudesse pensar pararia A quem como eu assim vivendo não sabe ter vida que resta senão como a meus poucos pares a renúncia por modo e a contemplação por destino Não sabendo o que é a vida religiosa nem podendo sabê lo porque se não tem fé com a razão não podendo ter fé na abstração do homem nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós ficava nos como motivo de ter alma a contemplação estética da vida E assim alheios à solenidade de todos os mundos indiferentes ao divino e desprezadores do humano entregamo nos futilmente à sensação sem propósito cultivada num epicurismo subtilizado como convém aos nossos nervos cerebrais 48 Retendo da ciência somente aquele seu preceito central de que tudo é sujeito a leis fatais contra as quais se não reage independentemente porque reagir é elas terem feito que reagíssemos e verificando como esse preceito se ajusta ao outro mais antigo da divina fatalidade das coisas abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas e curvamo nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida Não tomando nada a sério nem considerando que nos fosse dada por certa outra realidade que não as nossas sensações nelas nos abrigamos e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos E se nos empregamos assiduamente não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados é que a prosa ou o verso que escrevemos destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade é apenas como o falar alto de quem lê feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos Mas imperfeito é tudo nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar nos um sono mais calmo ainda E assim contempladores iguais das montanhas e das estátuas gozando os dias como os livros sonhando tudo sobretudo para o converter na nossa íntima substância faremos também descrições e análises que uma vez feitas passarão a ser coisas alheias que podemos gozar como se viessem na tarde Não é este o conceito dos pessimistas como aquele de Vigny1 para quem a vida é uma cadeia onde ele tecia palha para se distrair Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico e essa atitude é um exagero e um incómodo Não temos é certo um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos Produzimo la é certo para nos distrair porém não como o preso que tece a palha para se distrair do Destino senão da menina que borda almofadas para se distrair sem mais nada Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo Não sei onde ela me levará porque não sei nada Poderia considerar esta estalagem uma prisão porque estou compelido a aguardar nela poderia considerá la um lugar de sociáveis porque aqui me encontro com outros Não sou porém nem impaciente nem comum Deixo 49 ao que são os que se fecham no quarto deitados moles na cama onde esperam sem sono deixo ao que fazem os que conversam nas salas de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim Sento me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem e canto lento para mim só vagos cantos que componho enquanto espero Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá la e não interrogo mais nem procuro Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder relido um dia por outros entretê los também na passagem será bem Se não o lerem nem se entretiverem será bem também 1999 p479