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Filosofia ·

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Esta coleção agrupa obras que deixaram marcas indeléveis na civilização Tomamos aqui a palavra clássicos no sentido mais geral não apenas as obras gregas e latinas mas as obras fundadoras da cultura obras que por sua originalidade e pelos valores que ajudaram a criar na sua trajetória histórica conservam sua atualidade Coleção Clássicos Filosofia Discurso de metafísica e outros textos G W Leibniz Apresentação e notas de Tessa Moura Lacerda Martins Fontes ISBN 8533619782 Discurso de metafísica e outros textos G W Leibniz Apresentação e notas de Tessa Moura Lacerda Martins Fontes DISCURSO DE METAFÍSICA E OUTROS TEXTOS G W Leibniz Martins Fontes São Paulo 2004 Índice Apresentação VII CronologiaXXIII Discurso de metafísica 1 Os princípios da filosofia ou A monadologia 129 Princípios da natureza e da graça fundados na razão 151 Títulos dos originais DISCOURS DE MÉTAPHYSIQUE LA MONADOLOGIE PRINCIPES DE LA NATURE ET DE LA GRACE FONDÉS SUR LA RAISON Copyright 2004 Livraria Martins Fontes Editora Ltda São Paulo para a presente edição Esta obra foi incluída na coleção Clássicos por sugestão de Homero Santiago I edição abril de 2004 Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisões gráficas Mauro de Barros Alessandra Miranda de Sá Dinarte Zorzanelli da Silva Produção gráfica Geraldo Alves PaginaçáoFotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Leibniz Gottfried Wilhelm 16461716 Discurso de metafísica e outros textos G W Leibniz apresen tação Tessa Moura Lacerda tradução Marilena Chaui e Alexandre da Cruz Bonilha São Paulo Martins Fontes 2004 Coleção clássicos Título original Discours de métaphysique la monadologie prín cipes de la nature et de la grâce fondés sur la raison Bibliografia ISBN 8533619782 1 Leibniz Metafísica 2 Leibniz Gottfried Wilhelm 1646 1716 I Lacerda Tessa Moura II Título ID Série 042362 CDD1497 indices para catálogo sistemático 1 Leibnizianismo Filosofia 1497 Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda Rua Conselheiro Ramalho 330340 01325000 São Paulo SP Brasil Tel 11 32413677 Fax 11 31056867 email infomartinsfontescombr httpwwwmartinsfontescombr Apresentação Em fevereiro de 1686 Leibniz escreveu uma carta ao Landgrave Ernest de HesseRheinfels em que fez pela pri meira vez referência ao texto que posteriormente ficaria conhecido como Discurso de metafisica Segundo o filósofo estando em um lugar no qual durante alguns dias não tinha nada a fazer fez um pequeno discurso de metafísica Uma leitura prematura dessas palavras aliada ao fato de este texto não ter sido publicado em vida pelo filósofo poderia levar à falsa suposição de que Leibniz não atribuía muita im portância a esse pequeno discurso escrito talvez por falta do que fazer Na verdade Leibniz então bibliotecário em Hanover e conselheiro de justiça se referia provavelmente ao pouco tempo que lhe restava devido às tarefas exigidas por suas funções oficiais Além disso embora não se possa dizer se ao escrever o discurso Leibniz tinha a intenção de atingir um grande público o filósofo submeteu o texto ou pelo menos o sumário dele ao crivo de Arnauld então um teólogo conhecido e representante ilustre do pensamento na França aliás a referida carta é justamente um pedido ao Landgrave para que sirva de intermediário entre o autor e Arnauld Ademais nos anos imediatamente anteriores à reda ção do Discurso de metafisica Leibniz publicou seu Nova methoduspro maximis et minimis outubro de 1684 um ar tigo dedicado à exposição do cálculo infinitesimal e as Me t ditationes de cognitione veritate et ideis novembro de 1684 em que se posicionava no debate que opunha Arnauld e Malebranche sobre a natureza das idéias No mesmo ano em que iniciou a troca de cartas com Arnauld Leibniz pu blicou ainda um texto que deu origem a uma polêmica com os cartesianos Brevis demonstratio erroris memorabilis Car tesii Assim o período da redação do Discurso de metafísica foi também um momento em que Leibniz então com cerca de 40 anos queria dar a conhecer suas idéias queria cons truir um lugar para si mesmo nos debates que pcupavam os pensadores da época O que talvez justifique o tom par ticularmente polêmico do Discurso e as inúmeras referências não apenas a Descartes mas também a Espinosa Male branche e à tradição escolástica O Discurso de metafisica é parte dessa tomada de posição Mas qual é a importância deste texto um dos mais cé lebres do autor e aclamado por tantos comentadores como a primeira formulação do sistema filosófico de Leibniz no interior da vasta obra leibniziana Quando redigiu o Dis curso de metafisica provavelmente entre o fim de 1685 e o início de 1686 Leibniz já se aventurara nos terrenos da ju risprudência física metafísica lógica matemática teologia já esboçara projetos políticos e religiosos mantinha uma correspondência com diferentes personalidades da época publicara resultados parciais de suas pesquisas muitos re tomados no corpo do Discurso O que faz do Discurso de metafísica um texto singular entre todos os outros De certa forma é o próprio Leibniz quem no 32 do Discurso res ponde a essa questão o Discurso trabalha o grande prin cípio da perfeição das operações de Deus e o da noção da substância que encerra todos os seus acontecimentos com todas as suas circunstâncias Em outras palavras ao abor dar a ação do Criador e a noção de substância individual este texto define princípios gerais da metafísica leibniziana apresentando pela primeira vez em conjunto temas essen ciais que inspirarão as grandes obras posteriores e que se VIII encontravam até então dispersos em diferentes textos Cer tamente seria um equívoco querer definir o Discurso de me tafísica como a primeira exposição em sentido cronológico do sistema leibniziano Aliás a noção de sistema em uma obra que como afirma M Fichant está em perpétuo movi mento interior um devir que não se completa em nenhuma fórmula acabada tal como mostram as variantes genéticas dos textos de Leibniz publicados na edição da Academia de Berlim e de Gõttingen é uma noção problemática por mais que haja um consenso entre muitos dos estudiosos em con siderar textos da velhice do filósofo tais como a Monado logia e os Princípios da natureza e da graça como exposi ções sistemáticas Para comentadores da filosofia de Leibniz como B Russell L Couturat E Cassirer J Baruzi Y Bela val entre outros esse filósofo é um filósofo de sistema e embora não tenha exposto esse sistema em uma obra úni ca seria possível reconstituílo a partir dos vários textos e de temas centrais a lógica a noção de substância etc es colhidos como origem para essa reconstrução Essa multi plicidade de origens a partir das quais se pensa o sistema leibniziano não é segundo M Serres z um problema se forem pensadas como perspectivas complementares e não exclu dentes o interesse dessa interpretação está em ver que o sistema leibniziano comportaria diferentes interpretações ou pontos de vista tal como é o mundo para o próprio Leib niz Comentadores mais recentes como L Bouquiaux 3 no entanto são descrentes em relação à possibilidade de re 1A edição da Academia iniciada em 1900 pelas academias da Prússia e da França cuja colaboração foi interrompida pela guerra em 1914 publicou os primeiros volumes sob a direçào alemã em 1923 mesmo com as dificuldades impostas pela história alemã até a reunificação já conta hoje com mais de 40 vo lumes Cf Fichant M inMagazineLittéraire n 416 janeiro de 2003 p 25 2 Cf Serres M Le Système de Leibniz et ses modeles mathématiques Pa ris PUF 1982 1968 3 Cf Bouquiaux L Preface in Leibniz Discours de Métaphysique suivi de Monadologie Paris Gallimard 1995 Ix construir um sistema leibniziano e pensar os vários textos de Leibniz como capítulos de uma mesma obra de fato seria desconsiderar as idas e vindas do próprio filósofo e a maneira que tem em diferentes momentos de sua obra de encarar os mesmos problemas ou de defrontarse com pro blemas novos a cada nova circunstância O Discurso de metafísica seria para os partidários da idéia de sistema um texto privilegiado já que anunciaria pela primeira vez um conjunto de temas que se fecharia de finitivamente como sistema com a Monadologia e os Princí pios da natureza e da graça ambos de 1714 É claro por tanto que nessa perspectiva os temas desses dois últimos textos não seriam propriamente novidade não seria o fato de resumirem as principais teses leibnizianas que os tornaria expressão de um sistema filosófico seria antes a forma de apresentar motivos filosóficos que apareceram em conjun to trinta anos antes no Discurso de metafísica que significa ria uma visão sistemática A Monadologia e os Princípios da natureza e da graça estariam estruturados à maneira de um sistema O que significa isso Quase três décadas separam a redação do Discurso de metafísica e a da Monadologia e dos Princípios da nature za e da graça Mas estes textos não estão separados apenas pelo tempo além de pequenas diferenças enumeráveis a estrutura deles é essencialmente diferente A primeira dife rença notável é o abandono nos textos de 1714 do tom irô nico e polêmico que definia o Discurso de metafísica Expli case os Princípios da natureza e da graça foram escritos para o príncipe Eugênio de Sabóia admirador de Leibniz que então já gozava de certa notoriedade Por muito tempo acre ditouse que o texto destinado ao príncipe seria a Monado logia talvez venha daí a celebridade sugere A Robinet em sua edição Sabese hoje que a Monadologia foi escrita para 4 Cf Robinet A Principes de la nature et de la grâce fendes en raison Principes de laphilosophie ou Monadologie publiées intégralement d áprhs es x um também admirador de Leibniz ligado ao duque de Or leans Rémond que queria encaminhar o texto ao poeta Fra guier para que este o transformasse num poema Mais do que um posicionamento nos debates de sua época mesmo com referências a Descartes e a Bayle por exemplo estes tex tos mostram um Leibniz preocupado em expor temas essen ciais de sua filosofia e de uma maneira absolutamente pes soal e não em polemizar com seus contemporâneos Essa maneira absolutamente pessoal de expor temas essenciais de sua filosofia representaria uma ruptura em re lação à estrutura que caracterizava a exposição do Discurso de metafísica Este apresenta um ritmo binário de descen são de Deus às criaturas e ascensão do mundo a Deus ex primindo uma espécie de fluxo e refluxo ontológicos o que como mostra Le Roy lembra por um lado o plano de apresentação do Tratado da natureza e da graça de Male branche e por outro a ordem de exposição das Sumas me dievais e de Sistemas neoplatônicos Leibniz apresenta seu pensamento no Discurso seguindo este método clássico parte da idéia de Deus para o estudo das criaturas definin do o mundo físico e em seguida examina as substâncias in dividuais para mostrar por fim a união dos espíritos com Deus na Cidade de Deus O texto dividese assim em cinco grandes momentos ar gumentativos num primeiro momento 17 sem se de ter nas provas da existência de Deus Leibniz aborda a su prema perfeição divina como fundamento da excelência de sua obra 1 A conseqüência dessa perfeição é que contra aqueles que recusam a bondade intrínseca das coisas cria das 2 ou que acreditam que Deus poderia ter feito me lhor 3 o mundo é intrinsecamente bom e por isso o amor manuscrits de Hanovre Vienne et Paris et presentés d après des lettres inédites Paris PUF 1954 5 Cf Le Roy Introduction texte et commentaire in Leibniz Discours de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld Paris Vrin 1966 XI do homem por seu Criador não deve ser passivo ou quie tista o homem deve contribuir para o bem geral 4 A per feição divina explica ainda o ato de criação que gera uma riqueza de efeitos através de meios simples 5 donde o mundo ser obra de uma única vontade geral e eficaz que se exprime na ordem criada 67 No segundo momento do texto 816 Leibniz passa a falar das substâncias in dividuais criadas definindo sua natureza em analogia com o sujeito lógico como sujeito metafísico que contém desde sempre todos os seus atributos a substância é um mundo completo 89 Eis por que se pode retomar a noção es colástica de forma substancial embora sem aplicála na ex plicação particular dos fenômenos para explicar a nature za da substância e os corpos 1012 Essa teoria da subs tância individual esclarece a questão da liberdade humana a inerência do predicado ao sujeito não se dá por uma cone xão necessária mas contingente 13 Por fim 1415 Leibniz explica a relação entre essas substâncias individuais cujas naturezas envolvem todos os seus acontecimentos se cada uma é um mundo à parte uma perspectiva singular do mesmo conjunto de fenômenos elas não agem umas sobre as outras seus fenômenos se entrecorrespondem e todas ex primem a totalidade do mundo criado incluindo o concurso extraordinário de Deus compreendido na ordem universal 16 Num terceiro momento argumentativo 1722 Leib niz passa ao estudo do universo físico mostrando primeiro como a noção de força e não a de quantidade de movimen to como supunha Descartes exprime a natureza dos fenô menos físicos 1718 e segundo como a noção de fina lidade que reconduz a física a seu fundamento metafísico fornece a explicação do universo físico 1922 Tendo completado o momento de descensão do Discurso de me tafisica com o exame do universo físico Leibniz volta na quarta parte do texto 2331 a tratar das substâncias ima teriais a fim de pensar o retorno a Deus que os espíritos po XII dem fazer pela via do entendimento 2329 o filósofo examina a natureza 2325 e a origem 2629 das idéias e pela via da vontade 3031 Leibniz distingue incli nação e vontade a espontaneidade livre que tende para o bem 30 e apresenta sua doutrina da graça 31 Leibniz encerra a ascensão do Discurso na quinta parte argumenta tiva do texto 3237 mostrando como se dá a união dos es píritos com seu Criador na Cidade de Deus Na Monadologia e nos Princípios da natureza e da gra ça a ordem binária que caracterizava o Discurso dá lugar a uma construção progressiva que parte do simples a môna da examinando a hierarquia dos seres para o complexo e terminando pela consideração de Deus como ser absoluta mente perfeito e da união entre o Criador e os espíritos na Cidade de Deus que representa a harmonia entre o mundo físico e moral ou o equilíbrio harmônico de um mundo hie rarquizado A argumentação desses textos pode ser dividida em três grandes momentos no primeiro deles Monadologia 136 Princípios 16 Leibniz apresenta as mônadas ou substâncias simples considerando primeiro sua natureza de um ponto de vista externo a mônada é simples sem ex tensão sem figura indivisível não pode começar nem pere cer naturalmente não pode ser modificada por outra subs tância Monadologia 17 Princípios 12 e de um ponto de vista interno a mônada é dotada de percepção que exprime a multiplicidade do mundo na unidade da subs tância e apetição a tendência de passar de uma percepção a outras mais distintas Monadologia 817 Princípios 2 e considerando segundo os graus de perfeição das môna das Monadologia 1836 Princípios 36 Nos seres compostos há uma mônada central que é seu princípio de unidade cercada por uma infinidade de outras mônadas que constituem seu corpo orgânico Princípios 3 A mô nada nua ou enteléquia possui uma percepção e uma ape tição em sentido geral Monadologia 1824 A mônada XIII dotada de memória ou alma como no caso dos animais é capaz de consecuções empíricas que imitam a razão Mona dologia 2528 Princípios 45 E finalmente a mônada dotada de razão que conhece as verdades necessárias e eter nas e é capaz de reflexão isto é apercepção ou consciência é chamada de espírito Monadologia 2930 Princípios 5 A partir da apresentação dos princípios que fundam o ra ciocínio dos espíritos o princípio da contradição e o da razão suficiente Monadologia 3136 Leibniz passa ao segun do grande momento da argumentação cujo tema é Deus Mo nadologia 3748 Princípios 79 Trata então da exis tência de Deus Monadologia 3742 Princípios 78 e de sua natureza Monadologia 4348 Princípios 9 Por fim no terceiro grande momento de sua argumentação Monadologia 4990 Princípios 1018 Leibniz de duz da perfeição divina a perfeição do mundo Princípios 1013 apresentando a harmonia universal Monadolo gia 4960 Princípios 13 e a hierarquia dos seres cria dos Monadologia 6190 que retomam os 3 e 6 dos Princípios para mostrar como a natureza conduz à graça e os espíritos os mais elevados dos seres entram em socieda de com o Criador na Cidade de Deus Para Boutroux6 é possível dizer que o percurso argu mentativo da Monadologia é inicialmente ascendente ou re gressivo indo das criaturas para Deus e depois descenden te ou progressivo de Deus às criaturas Ora nesse sentido aparentemente Leibniz não teria abandonado um ritmo bi nário de apresentação teria apenas invertido a ordem de apre sentação do Discurso de metafísica Apenas aparentemente porque a explicação do mundo no momento descendente da Monadologia e os Princípios da natureza e da graça re produzem a mesma ordem é também como aponta Bou 6 Cf Boutroux E Eclaircissements in Leibniz La Monadologie Paris Librairie Delagrave 1925 xtv troux uma explicação progressiva ou seja o mundo é con cebido a partir de sua causa Deus é a ação de ser essencial mente perfeito que explica a harmonia que define o mundo criado Como afirma Leibniz nos Princípios 7 ao passar por um movimento regressivo que vai das coisas a sua causa das criaturas a Deus não é mais possível falar como sim ples físicos devemos elevarmonos à metafísica nos valendo do grande princípio pouco empregado habitual mente que sustenta que nada se faz sem razão suficiente isto é que nada ocorre sem que seja possível dar uma razão que baste para determinar por que é assim e não de outro modo Terminologias à parte seja o caminho ascen dente das mônadas a Deus com a consideração da hierar quia do seres um movimento progressivo do simples para o complexo seja esse caminho um movimento regressivo das criaturas a sua causa o fato é que nesse movimento de ex pressão de sua filosofia Leibniz apresenta a questão funda mental de sua metafísica por que o ser e não o nada O princípio de razão suficiente que exprime o axioma nada é sem razão e dá inteligibilidade à pergunta pelo Ser nada é sem razão parece definir mais que a passagem nos Princípios da natureza e da graça de um registro físi co para um registro metafísico esse princípio não caracte riza apenas o percurso argumentativo da filosofia de Leibniz nesse texto mas a própria concepção do que seja a filoso fia para Leibniz Dado o princípio de razão suficiente a primeira pergun ta que temos o direito de formular será por que há algo e não antes o nada Princípios da natureza e da graça 7 Por que o mundo existe Podemos explicar as coisas do mundo a partir de seus estados anteriores um movimento por um movimento anterior um homem por outro anterior através xv de um trânsito de um ente contingente a outro ente contin gente e assim sucessivamente Cada vez que procuramos dar a razão de algo existente no mundo porque não encontra mos na própria coisa essa razão somos levados a uma exis tência anterior no tempo que necessita ainda uma análise semelhante Mas por mais que avancemos na pesquisa das causas segundas não encontramos nesse progresso infini to a razão da existência de um mundo simplesmente nem deste mundo A razão da existência do mundo que vemos e experimentamos deve estar fora dessa série de eventos con tingentes que o compõem não como última causa da série condicional mas como causa transcendente necessária e uni versal Monadologia 3638 Considerando que a razão de um existente só pode provir de um outro existente devese admitir a existência de um ser necessário e eterno Deus Para Leibniz há uma analogia entre o entendimento di vino que ilumina e o entendimento humano iluminado pelas mesmas leis da razão e essa analogia garante o movi mento metafísico de superação da experiência A reflexão metafísica não prolonga a experiência ela implica uma pas sagem ao limite e procura atingir o fundamento mesmo de qualquer empirismo Embora a experiência seja fundamental não apenas para a constituição da ciência mas principal mente para provocar o desenvolvimento de nossas rique zas implícitas cf Discurso de metafisica 27 deve ser en tendida como um procedimento provisório Graças a ela so mos capazes de entender como as coisas do mundo estão dispostas mas não por que são postas A pergunta que con duz a pesquisa filosófica não consegue encontrar eco no do mínio experimental por quê O pensamento filosófico procura explicações a priori são as causas reais dos efeitos que a ciência estuda e as razões dos fatos que constituem seu objeto por excelência Leibniz retoma a definição aris totélica da filosofia a ciência dos princípios primeiros das coisas fazendo da busca de origens e de causas insensí veis sua idéia mestra xvl A melhor maneira de conhecer é pelas causas e razões A causa é um princípio de explicação da ordem do mutável ou uma razão real a razão da ordem do imutável já que é causa não apenas dos nossos julgamentos mas da pró pria verdade Desse modo a causa nas coisas corresponde à razão ou causa final nas verdades Dar a razão de algu ma coisa significa introduzir finalidade e logo inteligência por isso o verdadeiro conhecimento de Deus causa primei ra e razão última de tudo é a sabedoria mais elevada A filo sofia consiste precisamente no pensamento da razão suficien te do mundo que é Deus em Filosofia tratase de dar razão fazendo conhecer de que maneira as coisas são executadas pela sabedoria divina Système nouveau de la nature 13 Não se trata de desprezar uma explicação física do mun do A ciência constitui uma ordem diferente da ordem filosó fica e é complementar a ela não contraditória A extrava gância seria embaralhar esses dois planos distintos o que não se confunde com a preocupação de um Leibniz conci liador na busca de acordo entre a linguagem metafisica e a linguagem prática Mesmo nas questões em que se percebem problemas cuja solução exigiria um longo debate que colo casse em pauta princípios gerais é possível proceder a uma explicação particular que seja válida de outra forma se des conheceria as exigências da análise científica A linguagem metafisica possui o privilégio do rigor mas a natureza deve poder se explicar sem que se considere a existência de Deus assim Leibniz preserva todos os direitos do método expe rimental e de uma linguagem mais próxima do senso comum de modo que se conceda autonomia à ciência Essa expli cação no entanto permanece subordinada em seu funda mento não no detalhe a afirmações metafísicas que a ultra passam os princípios das ciências particulares já reconhe cia Aristóteles dependem de uma ciência superior que lhes dá razão e esta ciência superior deve ter o ser e conseqüen temente Deus origem do ser por objeto Essais de Théo XVII dicée II 184 Pois como dizia Platão uma coisa é a cau sa verdadeira e outra o que não passa de condições para a causa poder ser causa Discurso de metafisica 20 E desarrazoado admitir uma inteligência ordenadora das coi sas e em seguida recorrer unicamente às propriedades da matéria para explicar os fenômenos Anaxágoras e todos que seguiram uma forma diferente de entender as coisas deixa ram de perceber que no estudo concreto dos fenômenos é preciso distinguir a causa final e as condições sem as quais essa causa não pode ser eficaz A explicação metafísica fun da e justifica a explicação física do mundo mas se diferen cia profundamente dela A tarefa do filósofo que não queira falar como simples físico consiste em definir em todos os domínios a ação de uma causa final a que se subordinam as causas eficientes secundárias mostrando a insuficiência da consideração da causalidade física Eis por que a primeira pergunta que tem o direito de formular é por que há algo e não antes o nada Princípios da natureza e da graça 7 A reflexão filosófica exige em última instância que alcan cemos em toda sua originalidade o ato original que faz sur gir a ordem do mundo a partir do nada O desejo do meta físico é remontar aos primeiros possíveis atributos de Deus e embora Leibniz numa atitude de reserva diante de sua pró pria definição de bem filosofar admita a impossibilidade des sa tarefa infinita para uma criatura submetida às condições de tempo e espaço não concorda que o homem não possa obter um conhecimento de Deus e explicar racionalmente certos mistérios Não podemos compreender Deus não entendemos tudo o que sua noção encerra mas somos capazes de explicálo Não podemos sondar a profundidade de Deus a respeito dos fatos particulares mas estamos em condição de precisar o princípio universal de sua atividade Não podemos enxer gar a conexão universal dos eventos nos basta entretanto uma demonstração a priori de que este é o melhor dos mun XVIII dos possíveis Assim embora um conhecimento perfeito das coisas que nos cercam esteja acima das nossas possibilida des as nossas faculdades são suficientes para nos levar ao conhecimento do Criador e por conseguinte a uma visão mais clara das coisas nos aproximando do olhar penetrante de Deus Para Leibniz é na metafísica que essa proximidade a Deus ou em outras palavras a espiritualidade do homem se manifesta de modo mais vigoroso fazendo com que a di ferença de natureza entre Criador e criatura se desvaneça e apareça como simples diferença de grau Ora se considerarmos que a pergunta que conduz a investigação de Leibniz e determina inclusive sua perspec tiva a respeito da filosofia é a pergunta pela razão do ser então é inegável que há uma unidade especulativa na obra leibniziana Resta saber se essa unidade especulativa é ori gem de um sistema e se os textos do filósofo podem então ser vistos como capítulos de uma mesma obra ou versões de um sistema acabado Se há sistema então o Discurso de metafísica poderia ser o texto inaugural de uma nova fase no pensamento de Leibniz encerrando o momento de formação e dando iní cio às tentativas de formulação do sistema leibniziano que a partir de então permaneceria sempre o mesmo buscan do a forma mais acabada de expressão forma essa que o fi lósofo construiria na Monadologia e nos Princípios da natu reza e da graça Todavia a pergunta pelo ser é uma questão bastante ampla para englobar não apenas os três textos aqui apre sentados mas muitos outros que poderiam todos ser vistos como perspectivas parciais dessa mesma busca pela razão do ser Além disso as diferenças entre os três textos não devem ser ignoradas se elas podem em parte ser explicadas pelas XIX datas de redação a distância temporal não é jamais uma ra zão suficiente delas Vale notar por exemplo que as refe rências às Escrituras e aos Santos Padres presentes em todo o Discurso de metafisica são escassas nos outros dois tex tos talvez porque a perspectiva predominante naquele seja a perspectiva teológica daí a razão do Discurso se concen trar ao falar das substâncias criadas nas almas racionais e em sua relação com Deus enquanto a Monadologia e os Prin cípios apresentam toda a hierarquia dos seres das mônadas nuas ou enteléquias aos espíritos trazendo contribuições da biologia da época que não aparecem no texto de 1686 Para concluir podemos dizer que os três textos aqui reu nidos são fundamentais para a compreensão da filosofia de Leibniz são textos de síntese e estão inseridos em uma uni dade de pensamento como textos que procuram responder a questão essencial da metafísica leibniziana Mas tomálos como textos de sistema pode levar a desconsiderar as dife renças que eles guardam entre si e as particularidades do pensamento de Leibniz em cada um daqueles momentos cor rese o risco de interpretar o Discurso de metafísica como um mero esboço da Monadologia ou os Princípios da nature za e da graça como a conclusão lógica do Discurso O con texto em que os textos de 1714 foram redigidos é fundamen talmente outro em relação ao ambiente em que Leibniz vivia em 1686 Talvez possamos dizer que sim os temas essen ciais da metafísica leibniziana estavam postos desde o Dis curso de metafísica ou antes as opções filosóficas essen ciais já estavam feitas em 1686 Mas como temas essenciais que seriam estudados pensados depurados por trinta anos 7 Seria interessante estudar também as diferenças que a Monadologia e os Princípios da natureza e da graça guardam entre si o que não fizemos aqui já que nos interessava salientar as diferenças desses textos em relação ao Dis curso de metafsica embora as grandes linhas argumentativas desses textos se jam muito próximas há pequenas diferenças no interior dessa ordem geral como talvez tenha aparecido na descrição das partes componentes desses textos xx Não se pode dizer que apenas a forma de apresentação des ses temas essenciais tenha mudado mesmo que se veja nessa mudança de expressão a constituição de um sistema Não se pode afirmar sem ressalvas que a noção completa de substância seja equivalente à mônada simples Se o Discurso de metafísica a Monadologia e os Princípios da natureza e da graça são textos de síntese das grandes teses metafísi cas de Leibniz e nesse sentido textos privilegiados para quem quer se introduzir no pensamento deste autor é pre ciso tomar o cuidado de ler as diferenças que eles guardam entre si como diferenças para não enrijecer um pensamen to vivo TESSA MouRA LACERDA XXI I Cronologia 1646 Nascimento de Leibniz em Leipzig Alemanha em de julho 1648 Tratados de Vestfália que favoreciam a Franca pondo fim à Guerra dos Trinta Anos 16521661 Leibniz estuda na NicolaISchule e lê livros varia dos da biblioteca deixada por seu pai que havia sido jurisconsulto e professor de moral na Universidade de Leipzig morto este ano 1661 Ingressa na Universidade de Leipzig onde recebe ensinamentos aristotélicotomistas segue o curso de Jakob Thomasius historiador da Filosofia e pai de Christian Thomasius 1663 Apresenta tese de conclusão de curso Disputatio me taphysica deprincipio individui que é publicada No verão segue o curso de Erhard Weigel matemático ju rista e metafísico na Universidade de Iena No outono retorna a Leipzig e se dedica à jurisprudência 1664 Morre a mãe de Leibniz Estudos jurídicos com seu tio o jurista Johann Strauch Tornase mestre em Filosofia com o texto Specimen quaestionum philosophicarum exjure collectarum 1665 Disputatio juridica de conditionibus 1666 Publicação do texto De arte combinatoria Recebe o título de Doutor em Direito em Altdorf nas cercanias XXIII de Nuremberg com a tese De casibus perplexis in jure e ao mesmo tempo o convidam para ser professor nessa universidade mas ele não aceita Filiase a uma sociedade secreta de interessados em alquimia da qual será secretário por dois anos 1667 Reencontra o Barão J C von Boineburg protestante convertido ao catolicismo exministro chefe do Elei tor de Mainz J P von Schõnborn Leibniz dedica a Boineburg seu texto Nova Methodus discedae docen daeque jurisprudentiae Por intermédio de Boineburg consegue a nomeação como assistente legal do con selheiro legal do Eleitor 1668 Publicação por intermédio do Barão de Boineburg da Confessio naturae contra atheistas Pressionado pela aliança entre a Holanda a Inglaterra e a Suécia Luís XIV assina a paz de AixdeChapelle Leibniz escreve Consilium Aegyptiacum um projeto de conquista do Egito para a França para tirar Luís XIV da Europa e di minuir a pressão francesa na fronteira sudoeste do império alemão muito parecido com o que Napoleão executou um século e meio depois Projeto de Demons trationes Catholicae para a reunião das Igrejas católi ca e protestante Escreve Specimen demonstrationum politicarum pro eligendo rege Polonorum 16681669 Projeto para uma revista Semestria Litteraria equi valente ao Journal des Savants Escreve Réflexions sur létablissement en Allemagne dune Académie ou So ciete des sciences e Defensio Trinitatis per nova re perta logica 1670 Leibniz é promovido ao cargo de assessor da Corte de Apelações do eleitorado de Mainz Escreve Securi tas publica interna et externa um projeto de aliança dos estados do Império Dissertatio de stilo philoso phico Nizolii Von der Allmacht Escreve duas cartas a Hobbes Inventa a máquina de calcular aritmética que XXIV extraía raízes submarinos bombas de ar que permi tiriam navegar contra o vento etc 1671 Publicação de Hypothesis physica nova composta da Theoria motus abstracti dedicada à Academia Fran cesa de Ciências e da Theoria motus concreti dedica da a Royal Society de Londres 1672 Em março o Eleitor de Mainz envia Leibniz a Paris em missão diplomática Leibniz se encontra com Arnauld e Malebranche é iniciado nas matemáticas por Huygens e tem a ocasião de consultar os manuscritos matemá ticos de Pascal Em maio Luís XIV declara guerra a Ho landa Em dezembro o Barão de Boineburg morre 1673 Entre janeiro e março vai a Londres onde encontra Oldenburg e Boyle e é eleito membro da Royal So ciety Em fevereiro morre o Príncipe Eleitor de Mainz J Philipp Escreve Confessio Philosophi que entrega a Arnauld Apresenta sua máquina de calcular à Acade mia de Ciências 16751676 Encontra Malebranche Cordemoy Foucher Tschirnaus Van den Ende Clerselier que lhe confia manuscritos de Descartes Gallois diretor do Journal des Savants Christian Huygens entre outros Traba lha no cálculo infinitesimal 1676 Aceita o posto de Bibliotecário e Conselheiro na Corte de Hanôver oferecido pelo Duque Johann Friedrich von BrunswickLuneburg católico e deixa então Pa ris passando por Londres onde encontra Collins e Newton por Haia onde conhece Espinosa e por Amsterdã conhece o microscopista Leeuwenhoek Es creve Quod Ens perfectissimum existit traduz para o latim o Fédon e o Teeteto de Platão escreve Pacidius Philalethi Em dezembro chega a Hanôver 1677 Leibniz escreve Caesarini Furstenerii Tractatus e En tretien de Philaréte et Eugene Morte de Espinosa xxv 1678 Leibniz é nomeado Conselheiro Áulico Hofrat em Hanôver Mantém correspondência com Bossuet et Spi nola sobre a reunião das Igrejas Escreve Quid sit idea e notas sobre a Ética Ide Espinosa 1679 Paz de Nimegue Leibniz escreve Dialogue entre un habile politique et un ecclésiastique dune pieté recon nue e trabalhos sobre a aritmética binária De pro gressioone dyadica Morte de Hobbes 1680 Morte do Duque Johann Friedrich seu irmão Ernst August o substitui Até 1684 viaja bastante a Harz en carregado de fazer invenções práticas que auxiliem a exploração das minas 1682 Escreve Unicum Optcae Catoptricae et Dioptricae Principium Contribui para a fundação da publicação Acta Eruditorum de Leipzig 1683 Europa em guerra Viena é libertada dos turcos em 12 de setembro 1684 Trégua de Ratisbonne em 15 de agosto Leibniz escre ve Consultation touchant la guerre ou laccomode ment avec la France e Mars Christianissimus Publica Nova methodus pro maximis et minimis em que ex põe o cálculo infinitesimal e Meditationes de cogni tione veritate et ideis 1685 Revogação do Édito de Nantes Leibniz escreve Remar ques sur un livre intitulé Nouveaux intérets des Prin ces de lEurope É nomeado historiógrafo da Casa de Brunswick 1686 Publicação de Brevis demonstratio erroris memorabi lis Cartesii no qual opõe sua teoria física à de Descar tes Termina de redigir o Discurso de metafísica e en via o sumário para Arnauld Escreve ainda Systema theologicum e Generales Inquisitiones de analysi no tionum et veritatum Os países protestantes revidam a revogação do Edito de Nantes com a formação da Liga Xxv1 de Augsburgo que incluía a Áustria a Suécia e a maio ria dos principados alemães 1687 Leibniz viaja para a Itália passando por cidades alemãs e pela Áustria em busca de documentos sobre a his tória da Casa de Brunswick e sua ligação com a Casa Italiana do Leste Em Frankfurt encontra Job Ludolf orientalista e Conselheiro do Imperador Escreve Ré plique à lAbbe Catelan sobre a conservação do movi mento e Lettre sur un Principe general em que ex plica as leis da natureza 1688 Chega a Viena em maio onde ficará até fevereiro de 1689 Retoma o contato com Spinola agora bispo de Neustadt 1689 Em outubro encontra os matemáticos Nazari e Auzout e Padre Grimaldi Redação de Phoranus e da Dyna mica de potentia Recusa a direção da biblioteca do Vaticano 16891690 Viaja a Nápoles Florença Bolonha Modena Fer rara mantém contato com pensadores Entre feverei ro e março fica em Veneza Escreve De linea isochrona e De causa gravitatis et defensio sententiae suae con tra Cartesianos 1690 Retorna a Hanôver depois de um ano e meio de via gens em que entre outras coisas estudou geologia o pensamento chinês demonstrou a priori a conservação de força viva etc 1691 É nomeado Bibliotecário de Wolfenbüttel pelo Duque Anton Ulrich Leibniz retoma a correspondência com Bossuet sobre a reunião das Igrejas Escreve Consul tatio sur les Affaires générales à la fin de la campag ne de 1691 De legibus naturae et vera aestimatione virium motricium contra Cartesianos e Protogaea Ini cia correspondência com jesuítas da China 1692 Leibniz contribui para tornar Ernst August eleitor de Hanôver desde de 1685 procurou conseguir um nono XXVII eleitorado que ficasse nas mãos dos protestantes Inicia a amizade com a eleitora Sophie irmã da prince sa Elisabeth Édito de tolerância de Kanghi imperador da China em favor da religiosa cristã Leibniz redige Animadversiones in partem generalem principium cartesianorum 1693 Redação de Codex juris gentium diplomaticus cujo prefácio é uma análise das noções de justiça e de di reito de Régle générale de la composition des mou vements 1694 Redação de De primae philosophiae emendatione et notione substanciae Leibniz rompe com Bossuet 1695 Escreve Système nouveau de la nature et de la com munication des substances cuja publicação no Jour nal des Savants é seguida de vários Esclarecimentos 1696 Escreve Projet de leducation dun Prince 1697 Publicação de De rerum originatione radicali Escre ve Tentamen Anagogicum 1698 Publicação do De ipsa natura sive vi insita actioni busque creaturarum Morte de Ernst August que é sucedido por seu irmão Georg Ludwig Retomada das discussões irênicas entre as Igrejas protestantes e da correspondência com Bossuet Inicia correspondência com De Voider Inicia amizade com a eleitora Sophie Charlotte irmã de Georg Ludwig Leibniz circula em Berlim e em Hanôver 16981699 Querelas sobre a invenção do cálculo infinitesimal 1699 É nomeado membro da Academia de Ciências de Paris 1700 Fundação da Sociedade de Ciências de Berlim de acor do com um projeto de Leibniz Leibniz funda o Mo natlicherAuszug dirigido por seu secretário Eckart Publicação da tradução francesa de Coste do Ensaio de Locke 1701 Léibniz inicia a publicação dos documentos que ha via recolhido sobre a história da Casa de Brunswick XXVIII e a história da Alemanha Rompe definitivamente com Bossuet 1702 Guerra contra a França e a Espanha aliança do Impé rio RomanoGermânico da Inglaterra e da Holanda Leibniz escreve Considérations sur la doctrine dun esprit universel unique 1703 Início da redação dos Nouveaux Essais sur lEntende ment Humain publicado apenas em 1765 em que critica o Essay concerning human understanding de Locke 1704 Morte de Locke 1705 Leibniz escreve Discours de la conformité de la foi avec la raison que será a introdução da Teodicéia Pu blica Considérations sur les principes de vie et sur les naturesplastiques Exame da natureza dos caracteres chineses Morte de Sophie Charlotte rainha da Prússia 1706 Início da correspondência com o jesuíta Des Bosses 1709 Escreve Causa Dei asserta per justitian ejus 1710 Publicação dos Essais de Theodicée sem o nome do autor 1711 Encontro com o Czar Pedro o Grande que o nomeia Conselheiro Privado Leibniz deveria codificar e moder nizar a legislação Inicia projeto de uma Academia de Ciências em São Petersburgo 17121714 Leibniz fica em Viena onde o imperador o no meia seu Conselheiro Particular 1714 Conhece o príncipe Eugênio de Sabóia para quem dedica os Princípios da natureza e da graça Escreve a Monadologia Morte de Anton Ulrich e da eleitora Sophie Em 12 de agosto Georg Ludwig tornase Geor ge I na Inglaterra e se recusa a realizar o pedido de Leibniz que queria seguir com ele para a Inglater ra Leibniz se instala então novamente em Hanôver 1715 Correspondência com Clarke XXIX 1716 Lettre à M de Rémond sur la théologie naturelle des Chinois Leibniz envelhece no isolamento e é vítima de uma crise de gota Em 14 de novembro morre em Hanôver e é enterrado miseravelmente C DISCURSO DE METAFÍSICA Tradução MARILENA CHAUI Revisão e notas TESSA MOURA LACERDA I Da perfeição divina e de que Deusfaz tudo da maneira mais desejável souhaitable A noção mais aceita e mais significativa que possuímos de Deus exprimese muito bem nestes termos Deus é um ser absolutamente perfeio2 Não se tem considerado po rém devidamente suas conseqüências e para aprofundá las mais convém notar que há na natureza várias perfei ções muito diferentes possuindoas Deus todas reunidas e que cada uma lhe pertence no grau supremo E preciso também conhecer o que é a perfeição Eis uma marca bem segura dela a saber formas ou naturezas insuscetíveis do último grau não são perfeições como por exemplo a na tureza do número ou da figura pois o número maior de to dos ou melhor o número dos números bem como a maior de todas as figuras implicam contradição mas a máxima ciência e a onipotência não encerram qualquer impossibili dade Por conseguinte o poder e a ciência são perfeições 3 e enquanto pertencem a Deus não têm limites Donde se segue que Deus possuindo suprema e infinita sabedoria age da maneira mais perfeita não só em sentido metafísico mas também moralmente falando podendo relativamente a nós dizerse que quanto mais estivermos esclarecidos e informados sobre as obras de Deus tanto mais dispostos estaremos a achálas excelentes e inteiramente satisfatórias em tudo o que possamos desejar souhaiter 3 II Contra os que sustentam que não há bondade nas obras de Deus ou então que as regras da bondade e da beleza são arbitrárias Assim afastome muito da opinião dos que sustentam que não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das coisas ou nas idéias que Deus tem delas e que as obras divinas são boas apenas pela razão formal que Deus as fez Se assim fosse Deus que bem sabe ser o seu autor não precisaria contemplálas depois e achálas boas como testemunha a Sagrada Escritura 4 que parece ter re corrido a esta antropologia apenas para nos mostrar que se conhece sua excelência olhandoas nelas mesmas mesmo quando não se faça reflexão alguma sobre essa pura deno minação extrínseca que as refere à sua causa Isto é tanto mais verdadeiro quanto é pela consideração das obras que se pode descobrir o operário Portanto é preciso que estas obras tragam em si o caráter de Deus Confesso que a opi nião contrária me parece extremamente perigosa e bastan te semelhante à dos últimos inovadores5 cuja opinião é a beleza do universo e a bondade atribuída por nós às obras de Deus não passarem de quimeras dos homens que conce bem Deus à sua maneira Também me parece que afirman do que as coisas são boas tãosó por vontade divina e não por regra de bondade destróise sem pensar todo o amor de Deus e toda a sua glória Pois para que louválo pelo que fez se seria igualmente louvável se fizesse precisamen te o contrário Onde pois sua justiça e sabedoria se afinal 4 apenas restasse determinado poder despótico se a vontade substituísse a razão e se conforme a definição dos tiranos o que agrada ao mais forte fosse por isso mesmo justo Ademais parece que toda vontade supõe alguma razão de querer razão esta naturalmente anterior à vontade Eis por que me parece inteiramente estranha a expressão de alguns outros filósofos que consideram simples efeitos da vonta de de Deus as verdades eternas da metafísica e da geome tria e por conseguinte também as regras da bondade da jus tiça e da perfeição A mim pelo contrário me parece tão somente conseqüências de seu entendimento o qual segu ramente em nada depende da sua vontade assim como a sua essência também dela não depende 5 III Contra os que crêem que Deus poderia fazer melhor De forma alguma poderei também aprovar a opinião de alguns modernos que ousadamente sustentam que aqui lo que Deus faz não possui toda perfeição possível e que Deus poderia ter agido muito melhor Pois pareceme que as conseqüências dessa opinião são inteiramente contrárias à glória de Deus Uti minus malum habet rationem boni ita minus bonum habet rationem malef 9 É agir imperfeita mente agir com menos perfeição do que se teria podido É desdizer a obra de um arquiteto mostrar que poderia fazê la melhor Atacase ainda a Sagrada Escritura que nos ga rante a bondade das obras de Deus Porque se isto fosse su ficiente descendo as imperfeições ao infinito de qualquer modo que Deus tivesse feito sua obra esta teria sido sem pre boa comparada às menos perfeitas Porém uma coisa não é louvável quando o é apenas dessa maneira Creio também haver uma infinidade de passagens da Sagrada Escritura e dos Santos Padres favoráveis a minha opinião mas não muitas à desses modernos que no meu enten der é desconhecida de toda a antiguidade e baseada ape nas no diminuto conhecimento que temos da harmonia ge ral do universo e das razões ocultas na conduta de Deus fa zendonos temerariamente julgar que muitíssimas coisas po deriam ser melhoradas Ademais esses modernos insistem em algumas sutilezas pouco sólidas pois imaginam nada 6 existir tão perfeito que não possa haver algo mais perfeito o que é um erro Acreditam também salvaguardar assim a liberdade de Deus como se não constituísse a suprema liberdade agir com perfeição segundo a razão soberana Pois acreditar que Deus age em algo sem haver nenhuma razão da sua vontade além de parecer de todo impossível é opinião pouco conforme a sua glória Suponhamos por exemplo que Deus escolha entre A e B e tome A sem razão alguma de o preferir a B digo ser esta ação de Deus pelo menos indigna de louvor porque todo louvor deve basear se em alguma razão não existente aqui ex hipothesi Susten to pelo contrário não fazer Deus coisa alguma pela qual não mereça ser glorificado 7 IV O amor de Deus exige completa satisfaçáo e aquiescência no tocante ao que ele faz sem que por isso seja preciso ser quietista O conhecimento geral desta grande verdade que Deus age sempre da maneira mais perfeita e mais desejável pos sível no meu entender é o fundamento do amor que deve mos a Deus sobre todas as coisas pois aquele que ama busca a sua satisfação na felicidade ou perfeição do objeto amado e das suas ações Idem velle et idem nolle vera ami citia est Z Penso ser difícil bemamar a Deus quando não se está disposto a querer o que ele quer mesmo quando fos se possível modificálo Com efeito os que não estão satis feitos com o que ele faz me parecem semelhantes àqueles súditos descontentes cuja intenção não difere muito da dos rebeldes 13 Sustento portanto que segundo estes princí pios para agir em conformidade com o amor de Deus não basta ter paciência à força mas é preciso estar verdadeira mente satisfeito com tudo quanto nos sucedeu segundo sua vontade Entendo esta aquiescência relativamente ao passado porque quanto ao futuro não é preciso ser quie tista nem esperar ridiculamente de braços cruzados o que Deus fará segundo aquele sofisma denominado pelos antigos lógon áergon 4 a razão preguiçosa mas é mister agir segundo a vontade presuntiva de Deus tanto quanto podemos julgála esforçandonos com todo o nosso poder por contribuir para o bem geral e particularmente para o aprimoramento e perfeição do que nos toca ou nos está 8 próximo e por assim dizer ao alcance Porque mesmo quando o acontecimento porventura mostrasse não querer Deus presentemente que a nossa boa vontade tenha o seu efeito daqui não se conclui não haver Deus querido que nós fizéssemos o que fizemos Pelo contrário como é o me lhor de todos os senhores nada mais exige além da reta in tenção e a ele pertence conhecer a hora e o lugar próprios para fazer triunfar os bons desígnios 9 V Em que consistem as regras de perfeição da conduta divina e como a simplicidade das vias equilibrase com a riqueza de efeitos É suficiente portanto ter em Deus esta confiança ele tudo faz para o melhor e nada poderá prejudicar a quem o ama Conhecer porém em particular as razões que pude ram movêlo a escolher esta ordem do universo permitir os pecados e dispensar as suas graças salutares de uma de terminada maneira eis o que ultrapassa as forças de um es pírito finito mormente se ele não tiver alcançado ainda o gozo da visão de Deus Entretanto podemse fazer algu mas considerações gerais a respeito da conduta da Providên cia no governo das coisas Podese dizer que aquele que age perfeitamente é semelhante a um excelente geômetra que sabe encontrar as melhores construções de um proble ma a um bom arquiteto que arranja o lugar e o alicerce destinados ao edifício da maneira mais vantajosa nada dei xando destoante ou destituído de toda a beleza de que é suscetível a um bom pai de família que emprega os seus bens de forma a nada ter inculto nem estéril a um maqui nista habilidoso que atinge seu fim pelo caminho menos embaraçoso que se podia escolher a um sábio autor que encerra o máximo de realidade no mínimo possível de vo lumes 16 Ora os mais perfeitos de todos os seres e os que ocupam menos volume isto é os que menos se estorvam são os espíritos cujas perfeições são as virtudes Eis por que não se deve duvidar de que o principal fim de Deus 10 seja a felicidade dos espíritos e de que Deus o exercite na medida em que a harmonia geral o permita Sobre este pon to diremos algo mais em breve No que se refere à simpli cidade das vias de Deus esta se realiza propriamente em relação aos meios como pelo contrário a variedade rique za ou abundância se realizam relativamente aos fins ou efei tos E ambas as coisas devem equilibrarse como os gas tos destinados a uma construção com o tamanho e a bele za nela requeridos Verdade é nada custar a Deus bem me nos ainda do que a um filósofo que levanta hipóteses para a fábrica do seu mundo imaginário pois para Deus é sufi ciente decretar para fazer surgir um mundo real Em maté ria de sabedoria porém os decretos ou hipóteses represen tam os gastos à medida que são mais independentes uns dos outros porque manda a razão evitar a multiplicidade nas hipóteses ou princípios quase como em astronomia onde o sistema mais simples é sempre preferido 11 VI Deus nada faz fora da ordem e nem mesmo é possível forjar acontecimentos que não sejam regulares As vontades ou ações de Deus dividemse comumen te em ordinárias e extraordinárias Mas é bom considerar se que Deus nada faz fora da ordem Assim aquilo que é tido por extraordinário o é apenas relativamente a alguma ordem particular estabelecida entre as criaturas pois quan to à ordem universal tudo está em conformidade com ela É tão verdadeiro isto que não só nada acontece no mundo que seja absolutamente irregular mas nem sequer tal se po deria forjar Suponhamos por exemplo que alguém lance ao acaso muitos pontos sobre o papel como os que exer cem a arte ridícula da geomancia Digo que é possível en contrar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo uma certa regra de maneira a passar esta linha por todos estes pontos e na mesma ordem em que a mão os marcara E se alguém traçar de uma só vez uma linha ora reta ora circular ora de qualquer outra natureza é possível encontrar a noção regra ou equação comum a todos os pontos desta linha mercê da qual essas mesmas mudanças devem acontecer Não existe por exemplo rosto algum cujo contorno não faça parte de uma linha geomé trica e não possa desenharse de um só traço por certo mo vimento regulado Mas quando uma regra é muito comple xa temse por irregular o que lhe está conforme Assim podese dizer que de qualquer maneira que Deus criasse o 12 mundo este teria sido sempre regular e dentro de certa or dem geral Deus escolheu porém o mais perfeito quer dizer ao mesmo tempo o mais simples em hipóteses e o mais rico em fenômenos tal como seria o caso de uma linha geométri ca de construção fácil e de propriedades e efeitos espantosos e de grande extensão Recorro a estas comparações para es boçar alguma imperfeita semelhança com a sabedoria divi na e dizer algo a fim de poder pelo menos elevar o nosso espírito a conceber de algum modo o que não se saberia bem exprimir Mas de maneira alguma pretendo explicar assim o grande mistério de que depende todo o universo 13 VII Que os milagres silo conformes à ordem gera4 embora contrários às máximas subalternas e do que Deus quer ou permite por vontade geral ou particular Ora visto nada se poder fazer fora da ordem podese dizer que os milagres 20 também estão na ordem como as operações naturais assim denominadas porque estão em conformidade com certas máximas subalternas a que cha mamos natureza das coisas pois se pode dizer que esta na tureza é apenas um costume de Deus do qual pode dis pensarse por causa de uma razão mais forte do que a que o moveu a servirse destas máximas Quanto às vontades gerais ou particulares 21 conforme as encaremos podese di zer que Deus tudo faz segundo a sua vontade mais geral conforme à mais perfeita ordem que escolheu mas pode se também dizer que tem vontades particulares exceções dessas máximas subalternas sobreditas porque a mais ge ral das leis de Deus reguladora de toda a série do univer so não tem exceção Podese dizer ainda também que Deus quer tudo o que é objeto de sua vontade particular mas quanto aos objetos de sua vontade geral tais como as ações das outras criaturas particularmente das racionais com as quais Deus quer concorrer 22 é preciso distinguir se a ação é boa em si podese dizer que Deus a quer e orde na algumas vezes mesmo que não aconteça porém se é má em si e só por acidente se torna boa porque a série das coisas e especialmente o castigo e a reparação corrigem sua malignidade e recompensam seu mal com juros de sorte a 14 existir finalmente muito mais perfeição em toda a série do que se todo o mal não tivesse sucedido devese dizer que Deus a permite e não que ele a quer embora concorra para ela por causa das leis naturais que estabeleceu e porque sabe tirar daí um bem maior 15 VIII Explicase em que consiste a noçí o de uma substância individual a fim de se distinguirem as ações de Deus e as das criaturas É muito difícil distinguir as ações de Deus das ações das criaturas pois há quem creia que Deus faz tudo en quanto outros imaginam que conserva apenas a força que deu às criaturas A seqüência mostrará como se podem di zer ambas as coisas Ora visto as ações e paixões pertence rem propriamente às substâncias individuais actiones sunt suppositorum tornase necessário explicar o que é tal substância É correto quando se atribui grande número de predicados a um mesmo sujeito e este não é atribuído a ne nhum outro chamálo substância individual Isto porém não é suficiente e tal explicação é apenas nominal 24 É pre ciso considerar portanto o que é ser atribuído verdadeira mente a um certo sujeito Ora consta que toda predicação verdadeira tem algum fundamento na natureza das coisas e quando uma proposição não é idêntica isto é quando o predicado não está compreendido expressamente no sujei to é preciso que esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filósofos inesse dizendo estar o predicado no sujeito É preciso pois o termo do sujeito conter sem pre o do predicado de tal forma que quem entender per feitamente a noção do sujeito julgue também que o predi cado lhe pertence Isto posto podemos dizer que a nature za de uma substância individual ou de um ser completo consiste em ter uma noção tão perfeita que seja suficiente 16 para compreender e fazer deduzir de si todos os predica dos do sujeito a que se atribui esta noção 25 ao passo que o acidente é um ser cuja noção não contém tudo quanto se pode atribuir ao sujeito a que se atribui esta noção Assim abstraindo do sujeito a qualidade de rei pertencente a Ale xandre Magno não é suficientemente determinada para um indivíduo nem contém as outras qualidades do mesmo su jeito nem tudo quanto compreende a noção deste príncipe ao passo que Deus vendo a noção individual ou a ecceidade de Alexandre nela vê ao mesmo tempo o fundamento e a ra zão de todos os predicados que verdadeiramente dele se po dem afirmar como por exemplo que vencerá Dario e Poro e até mesmo conhece nela a priori e não por experiência se morreu de morte natural ou envenenado o que nós só podemos saber pela história Igualmente quando se consi dera convenientemente a conexão das coisas podese afir mar que há desde toda a eternidade na alma de Alexandre vestígios de tudo quanto lhe sucedeu marcas de tudo o que lhe sucederá e ainda rastos de tudo quanto se passa no universo embora só a Deus caiba reconhecêlos todos 17 IX Cada substância singular exprime todo o universo à sua maneira e em sua noção estão compreendidos todos os seus acontecimentos com todas as circunstâncias e toda a série das coisas exteriores Seguemse daqui vários paradoxos consideráveis en tre outros por exemplo não ser verdade duas substâncias assemelharemse completamente e diferirem apenas solo numero e o que Santo Tomás afirma neste ponto dos an jos ou inteligências quod ibi omne individuum sit specie infima26 é verdade de todas as substâncias desde que se tome a diferença específica como a tomam os geômetras relativamente às suas figuras item que uma substância só poderá começar por criação e só por aniquilamento pere cer não se dividir uma substância em duas nem de duas se formar uma e assim naturalmente o número de subs tâncias não aumenta nem diminui embora freqüentemente elas se transformem Ademais toda substância é como um mundo completo e como um espelho de Deus ou melhor de todo o universo expresso 2 por cada uma à sua manei ra quase como uma mesma cidade é representada diversa mente conforme as diferentes situações daquele que a olha Assim de certo modo o universo é multiplicado tantas ve zes quantas substâncias houver e a glória de Deus igual mente multiplicada por todas essas representações de sua obra completamente diferentes Podese até dizer que toda substância traz de certa maneira o caráter da sabedoria in finita e da onipotência de Deus e imitao quanto pode Pois exprime embora confusamente tudo o que acontece no 18 universo passado presente ou futuro o que tem certa se melhança com uma percepção ou conhecimento infinito e como todas as outras substâncias por sua vez exprimem esta e a ela se acomodam podese dizer que ela estende seu po der a todas as outras à imitação da onipotência do Criador 19 X Que bá algo sólido na opinião das formas substanciais mas que estas formas não alteram em nada os fenômenos e não devem de modo algum ser empregadas para a explicação dos efeitos particulares Parece que tanto os antigos como muitas pessoas há beis e acostumadas a meditações profundas que há sécu los ensinaram teologia e filosofia algumas sendo recomen dáveis pela sua santidade tiveram algum conhecimento do que acabamos de dizer Eis por que introduziram e manti veram as formas substanciais 2S tão desacreditadas atual mente Porém não se afastam tanto da verdade nem são tão ridículos como imagina o comum de nossos novos filóso fos Concordo que a consideração destas formas no porme nor da física é inútil e que não se deve empregálas na ex plicação dos fenômenos em particular Eis onde falharam os nossos escolásticos e a exemplo seu os médicos do pas sado pensando dar a razão das propriedades dos corpos recorrendo às formas e qualidades em vez de examinarem o modo de operação como quem se contentasse em dizer que um relógio tem a qualidade horodítica proveniente de sua forma sem considerar em que consiste tudo isto O que com efeito pode bastar ao comprador desde o mo mento em que abandone esse cuidado a outrem Mas esta falha e mau uso das formas não devem nos levar a rejeitar uma coisa cujo conhecimento é tão necessário em metafísi ca que sem ele creio que não se poderia conhecer bem os primeiros princípios nem elevar suficientemente o espírito ao conhecimento das naturezas incorpóreas e das maravi 20 lhas de Deus No entanto assim como um geômetra não tem necessidade de embaraçar o espírito no famoso labirinto da composição do contínuo e nenhum filósofo moral e ainda menos um jurisconsulto ou político precisa entrar a fundo nas grandes dificuldades existentes na conciliação do livre arbítrio com a providência de Deus visto poder o geôme tra terminar todas as suas demonstrações e o político todas as suas deliberações sem nenhum deles entrar nestas dis cussões que contudo são necessárias e importantes na fi losofia e teologia do mesmo modo pode um físico explicar as experiências servindose quer das experiências mais simples já realizadas quer das demonstrações geométricas e mecânicas sem necessidade do recurso a considerações gerais que pertencem a uma outra esfera e se recorre para esse fim ao concurso de Deus ou então de alguma alma arquêou outra coisa desta natureza é tão extravagante como quem numa importante deliberação prática quisesse entrar em grandes raciocínios sobre a natureza do destino e da nossa liberdade Com efeito os homens cometem com fre qüência esta falta inconsideradamente quando embaraçam o espírito na consideração da fatalidade e mesmo por ve zes afastamse por este motivo de alguma boa resolução ou de algum cuidado necessário 30 21 XI Que não são completamente de desprezar as meditações dos teólogos e filósofos chamados escolásticos Sei afirmar um grande paradoxo ao pretender reabilitar de certo modo a antiga filosofia e recordar postliminio 1 as quase banidas formas substanciais Porém talvez não me condenem levianamente quando souberem que meditei demoradamente sobre a filosofia moderna dediquei muito tempo às experiências da física e demonstrações da geome tria e bastante tempo estive persuadido da vacuidade destes entes retomados afinal quase à força e bem contra minha vontade depois de eu próprio ter procedido a investigações que me levaram a reconhecer não fazerem os nossos moder nos justiça devida a Santo Tomás e a outros grandes homens daquele tempo e haver nas opiniões dos filósofos e teólo gos escolásticos bem maior solidez do que se imagina des de que delas nos utilizemos com propriedade e no lugar de vido 32 Estou mesmo persuadido de que um espírito exato e meditativo encontraria nelas um tesouro de imensas verdades muito importantes e absolutamente demonstrativas desde que se desse ao trabalho de esclarecer e assimilar os pen samentos deles à maneira do geômetras analíticos 22 XII Que as noções que consistem na extensão contém algo de imaginário e não poderiam constituir a substância dos corpos Porém para retomar o fio das nossas considerações creio que quem meditar sobre a natureza da substância acima explicada verificará não consistir apenas na exten são isto é na grandeza figura e movimento toda a nature za do corpo mas ser preciso necessariamente reconhecer nela algo relacionado com as almas e que vulgarmente se denomina forma substancial muito embora esta não modi fique em nada os fenômenos tanto como a alma dos irra cionais se a possuem 33 Podese até mesmo demonstrar que a noção da grandeza da figura e do movimento não possui a distinção que se imagina e que contém algo ima ginário e relativo às nossas percepções como o são ainda embora bastante mais a cor o calor e outras qualidades semelhantes cuja existência verdadeira na natureza das coi sas fora de nós se pode pôr em dúvida Por isso tais espé cies de qualidades não podem constituir qualquer substân cia E se não há nenhum outro princípio de identidade no corpo além do que acabamos de dizer nunca um corpo subsistirá mais do que um momento No entanto 34 as almas e as formas substanciais dos outros corpos são bem dife rentes das almas inteligentes únicas que conhecem as suas ações e não só nunca perecem naturalmente mas também conservam sempre o fundamento do conhecimento do que são Eis o que as torna únicas suscetíveis de castigo e de re 23 compensa e cidadãs da república do universo de que Deus é monarca Também se deduz daqui o dever de todas as res tantes criaturas as servirem A este propósito voltaremos a falar mais amplamente 24 XIII Como a noção individual de cada pessoa encerra de uma vez por todas quanto lhe acontecerá nela se vêem as provas a priori da verdade de cada acontecimento ou a razão de ter ocorrido um de preferência a outro Estas verdades porém embora asseguradas não deixam de ser contingentes pois fundamentamse no livrearbítrio de Deus ou das criaturas cuja escolha tem sempre suas razões inclinando sem necessitar Entretanto antes de prosseguirmos é preciso resolver uma grande dificuldade que pode surgir dos fundamentos acima apresentados 3 Dissemos que a noção de uma subs tância individual contém de uma vez por todas tudo quan to lhe pode acontecer e que considerando esta noção nela se pode ver tudo o que é verdadeiramente possível enun ciar dela como na natureza do círculo podemos ver todas as propriedades que se podem deduzir dela Parece porém com isto destruirse a diferença entre as verdades contin gentes e necessárias não haver lugar para a liberdade hu mana e reinar sobre todas as nossas ações bem como so bre todos os restantes acontecimentos do mundo uma fa talidade absoluta Contestarei isto afirmando ser preciso distinguir o que é certo e o que é necessário Toda a gente concorda estarem assegurados os futuros contingentes vis to Deus os prever mas não se reconhece por isto que eles sejam necessários 36 Mas dirseá se qualquer conclusão se pode deduzir infalivelmente de uma definição ou noção ela 25 será necessária Ora sustentamos estar já virtualmente com preendido em sua natureza ou noção como as proprieda des na definição do círculo tudo o que deve acontecer a qualquer pessoa Assim a dificuldade ainda subsiste Para resolvêla solidamente digo que há duas espécies de cone xão ou consecução é absolutamente necessária aquela cujo contrário implique contradição esta dedução dáse nas ver dades eternas como as da geometria a outra é só neces sária ex hypothesi e por assim dizer por acidente mas é contingente em si mesma quando o contrário não impli que contradição E esta conexão fundase não sobre as idéias absolutamente puras e sobre o simples entendimen to de Deus mas sobre os seus decretos livres e sobre a sé rie do universo 37 Exemplifiquemos 38 Visto que Júlio César haverá de tornarse ditador perpétuo e senhor da Repúbli ca e suprimirá a liberdade dos romanos esta ação está compreendida em sua noção porquanto supomos ser da na tureza da noção perfeita de um sujeito compreender tudo acerca dele a fim de o predicado aí estar contido utpossit inesse subjecto Poderia dizerse não ser devido a esta no ção ou idéia que César praticará tal ação pois ela só lhe convém porque Deus sabe tudo Insistirseá porém na correspondência de sua natureza ou forma a esta noção e desde que Deus lhe impôs essa personagem élhe dora vante necessário satisfazêla Aqui poderia responder recor rendo aos futuros contingentes pois estes não possuem ainda nada de real a não ser no entendimento e vontade de Deus e visto que Deus lhe deu de antemão esta forma é preciso que correspondam a ela de toda maneira Mas prefiro resolver dificuldades a escapar delas pelo exemplo de outras dificuldades semelhantes e o que vou dizer servi rá para esclarecer tanto uma quanto outra É agora portan to que é preciso aplicar a distinção das conexões Digo que é seguro mas não necessário o que sucede em conformida de a estas antecipações e que se alguém fizesse o contrá 26 rio não faria coisa em si mesma impossível embora seja impossível ex hypothesi que tal aconteça Porque se al gum homem fosse capaz de levar a cabo toda a demonstra ção em virtude da qual provaria esta conexão do sujeito César e do predicado a sua empresa bemsucedida mos traria efetivamente ter a ditadura futura de César seu fun damento em sua noção ou natureza e por ela mostrarseia a razão pela qual preferiu atravessar o Rubicão a deterse nele e por que ganhou em vez de perder a batalha de Far sália e ser razoável 39 e por conseqüência seguro tal acon tecer mas não que é necessário em si nem que seu contrá rio implica contradição Quase como é razoável e seguro que Deus fará sempre o melhor embora o que é menos perfeito não implique contradição Verseia não ser tão ab soluta como a dos números ou da geometria a demonstra ção deste predicado de César mas que supõe a série de coisas livremente escolhidas por Deus e que está fundada sobre o primeiro decreto livre divino que estabelece fazer sempre o mais perfeito e sobre o decreto feito por Deus depois do primeiro a propósito da natureza humana ou seja que o homem fará sempre embora livremente o que lhe parece melhor Ora toda verdade fundada nesses tipos de decreto é contingente apesar de certa porque esses de cretos não mudam a possibilidade das coisas e como já disse ainda que Deus seguramente escolhesse sempre o melhor tal não impede o que é menos perfeito de ser e continuar possível em si embora não aconteça porque não é sua impossibilidade mas sim sua imperfeição que o faz rejeitar Ora nada cujo oposto é possível é necessário Fi carseá portanto apto a resolver aqueles tipos de dificul dade por maiores que pareçam e efetivamente não são menos prementes na opinião dos que trataram alguma vez esta matéria desde que se considere convenientemente que todas as proposições contingentes têm razões para ser antes assim do que de outra maneira ou então o que é o 27 mesmo possuem provas a priori da sua verdade tornan doas certas e revelando que a conexão do sujeito e do pre dicado destas proposições tem seu fundamento na natureza de um e de outro Não possuem porém demonstrações de necessidade visto tais razões se fundarem apenas no princí pio da contingência ou da existência das coisas quer dizer sobre o que é ou parece ser o melhor entre diversas coisas igualmente possíveis Por seu lado as verdades necessárias se fundam no princípio de contradição e na possibilidade ou impossibilidade das próprias essências sem ter em con ta a livre vontade de Deus ou das criaturas 28 XIV Deus produz diversas substãncias conforme as diferentes perspectivas que tem do universo e por sua intervenção a natureza própria de cada substãncia implica que o que acontece a uma corresponda ao que acontece a todas as outras sem que ajam imediatamente umas sobre as outras Conhecido de certo modo em que consiste a nature za das substâncias temos de explicar a dependência que têm umas das outras e as suas ações e paixões Ora em pri meiro lugar é bem manifesto que as substâncias criadas dependem de Deus que as conserva e até continuamente as produz por uma espécie de emanação 40 como produzi mos os nossos pensamentos Pois Deus virando por assim dizer de todos os lados e maneiras o sistema geral dos fe nômenos que considera bom produzir para manifestar a sua glória e observando todos os aspectos do mundo de todas as formas possíveis porque não existe nenhuma re lação que escape à sua onisciência faz com que o resulta do de cada visão do universo enquanto contemplado de um certo lugar seja uma substância expressando o univer so conforme a essa perspectiva desde que Deus ache con veniente realizar o seu pensamento e produzir esta subs tância 4 E como a visão de Deus é sempre verdadeira as nossas percepções igualmente o são mas nossos juízos que são apenas nossos nos enganam Ora já dissemos mais acima e seguese do que acabamos de dizer que cada subs tância é como um mundo à parte independente de qual quer outra coisa excetuando Deus Assim todos os nossos 29 fenômenos quer dizer tudo quanto alguma vez pode acon tecernos são apenas conseqüências de nosso ser E como esses fenômenos conservam uma certa ordem conforme à nossa natureza ou por assim dizer ao mundo existente em nós o que nos permite para regular nossa conduta a pos sibilidade de efetuar observações úteis justificadas pelo acontecimento de fenômenos futuros e assim podermos muitas vezes sem engano julgar o futuro pelo passado isto seria suficiente para se afirmar que esses fenômenos são verdadeiros sem nos afligirmos a investigar se existem fora de nós e se outros os apercebem também No entanto é bem verdade que as percepções ou expressões de todas as substâncias se entrecorrespondem de tal sorte que qual quer um seguindo atentamente certas razões ou leis que observou se encontra com outro que fez o mesmo como quando várias pessoas tendo combinado encontrarse reu nidas em algum lugar e em um dia prefixado podem efeti vamente fazêlo se o desejarem Ora se bem que todos ex primam os mesmos fenômenos nem por isso as suas ex pressões se identificam é suficiente que sejam proporcio nais 42 Do mesmo modo vários espectadores crêem ver a mesma coisa e efetivamente se entendem entre si embora cada um veja e fale na medida da sua perspectiva Somen te Deus de quem todos os indivíduos emanam continua mente e que vê o universo não só como eles vêem mas também de modo inteiramente diverso de todos eles pode ser causa desta correspondência dos seus fenômenos e tor nar geral para todos o que é particular a cada um De outra forma não haveria possibilidade de ligação De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poderseá dizer que nunca uma substância particular atua sobre uma outra substância particular e tampouco padece 43 se os even tos de cada uma são considerados apenas como conseqüên cia de sua simples idéia ou noção completa pois esta idéia contém já todos os predicados ou acontecimentos e expri 30 me todo o universo Com efeito nada pode acontecernos além de pensamentos e percepções e todos os nossos futu ros pensamentos e percepções não passam de conseqüên cias embora contingentes dos nossos pensamentos e per cepções anteriores de tal modo que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora me acon tece ou aparece nessa percepção poderia ver tudo quanto me acontecerá e aparecerá sempre o que não falharia e aconteceria da mesma maneira embora tudo quanto exis tisse fora de mim fosse destruído desde que restassem Deus e eu 44 Visto porém atribuirmos a outras coisas como às cau sas agentes sobre nós aquilo de que nos apercebemos de uma certa maneira é preciso considerar o fundamento deste juízo e o que há de verdadeiro nele 4 31 XV A ação de uma substãncia finita sobre outra consiste apenas no acréscimo do grau de sua expressão junto à diminuição do da outra na medida em que Deus as obriga a se acomodarem entre si A fim de conciliar a linguagem metafísica com a práti ca mas sem entrar em longa discussão basta notar por ora que nos atribuímos de preferência e com razão os fenôme nos que exprimimos mais perfeitamente e atribuímos às outras substâncias o que cada uma exprime melhor Assim uma substância de extensão infinita enquanto exprime tudo tornase limitada pela maneira da sua expressão mais ou menos perfeita É assim portanto que se pode conce ber que as substâncias se estorvem mutuamente ou se limi tem e por conseguinte neste sentido podese afirmar que elas agem umas sobre as outras sendo por assim dizer obri gadas a acomodarse entre si pois pode suceder que uma mudança aumente a expressão de uma diminuindo a de ou tra 46 Ora a virtude de uma substância particular é exprimir bem a glória de Deus e é por isso que ela é menos limita da E cada coisa quando exerce sua virtude ou potência quer dizer quando age muda para melhor e se estende en quanto age Assim pois quando se dá uma mudança afe tando várias substâncias como efetivamente qualquer mu dança toca a todas creio poder dizerse que devido a isso aquela substância que passa imediatamente a um mais alto grau de perfeição ou a uma expressão mais perfeita exerce sua potência e age e a que passa a um menor grau revela sua fraqueza e padece 47 Também sustento que toda ação 32 de uma substância que tem perfeição implica algum prazer e toda paixão alguma dor e viceversa Pode muito bem acon tecer no entanto uma vantagem presente ser desfeita em se guida por um mal muito maior Donde se conclui a possi bilidade de pecar agindo ou exercendo sua potência e en contrando prazer nela 48 33 XVI O concurso extraordinário de Deus está compreendido no que a nossa essência exprime pois esta expressão se estende a tudo mas ultrapassa as forças da nossa natureza ou da nossa expressão distinta que é finita e segue certas máximas subalternas Presentemente só resta explicar a possibilidade de Deus exercer algumas vezes influência sobre os homens ou sobre as outras substâncias por um concurso extraordinário e miraculoso pois segundo parece nada pode suceder lhes de extraordinário ou de sobrenatural já que todos os seus acontecimentos são apenas conseqüências da sua na tureza Mas é preciso recordar o que dissemos antes relati vamente aos milagres do universo sempre conformes à lei universal da ordem geral embora acima das máximas su balternas E desde que toda pessoa ou substância é como um pequeno mundo exprimindo o grande podese dizer igualmente que essa ação extraordinária de Deus sobre essa substância não deixa de ser miraculosa muito embora compreendida na ordem geral do universo enquanto ex pressado pela essência ou noção individual dessa substân cia 49 Por isto se compreendemos na nossa natureza tudo que ela expressa nada é nela sobrenatural pois se estende a tudo já que um efeito exprime sempre a sua causa SÔ e Deus é a verdadeira causa da substância Porém como o que a nossa natureza expressa com maior perfeição lhe perten ce de maneira particular pois nisto consiste a sua potência e esta é limitada como acabo de explicar há muitas coisas ultrapassando as forças da nossa natureza e ainda a de to das as naturezas limitadas Por conseguinte no intuito de 34 falar mais claramente digo que os milagres e concursos ex traordinários de Deus possuem de característico o não po derem ser previstos pelo raciocínio de algum espírito cria do por mais esclarecido que seja porque a distinta com preensão da ordem geral ultrapassa a todos ao passo que tudo o que chamamos de natural depende das máximas menos gerais que as criaturas podem compreender Para as palavras serem tão irrepreensíveis como o sentido seria bom unir certas maneiras de falar a certos pensamentos e poderia denominarse nossa essência ou idéia o que com preende tudo quanto exprimimos e como exprime a nos sa união com o próprio Deus não tem limites e nada a ul trapassa Porém o que em nós é limitado poderá chamar se a nossa natureza ou potência e a esse respeito tudo o que ultrapassa as naturezas de todas as substâncias criadas é sobrenatural 35 XVII Exemplo de uma máxima subalterna ou lei da natureza Contra os cartesianos e vários outros demonstrase que Deus conserva sempre a mesma forca mas não a mesma quantidade de movimento Já várias vezes mencionei as máximas subalternas ou leis da natureza e parece conveniente dar um exemplo de las 5 Vulgarmente os nossos filósofos modernos se servem desta famosa regra da conservação por Deus da mesma quantidade de movimento no mundo 52 Com efeito ela pa rece bem plausível e no passado 53 eu a tinha por indubi tável Porém reconheci depois onde estava o erro É que Descartes assim como outros hábeis matemáticos acredita ram que a quantidade de movimento quer dizer a veloci dade multiplicada pela grandeza do móvel convém inteira mente à força motriz ou para falar geometricamente que as forças estão na razão composta das velocidades e dos corpos 54 Ora é muito razoável a mesma força conservarse sempre no universo 55 Igualmente se observa com nitidez quando se presta atenção nos fenômenos a inexistência do movimento mecânico perpétuo porque então a força de uma máquina que sempre diminui um pouco devido à fric ção e logo termina se renovaria e por conseqüência aumen taria de per si sem qualquer novo impulso externo Notase também não haver diminuição na força de um corpo a não ser na medida em que ele a transmite a corpos contíguos ou às suas próprias partes se possuem movimento indepen dente Acreditaram assim que podia também dizerse da quantidade de movimento o que pode ser dito da força No 36 entanto para mostrar a diferença suponho que um corpo caindo de uma certa altura adquire a força de subir até ela de novo 56 se o leva assim a sua direção a menos que se en contrem alguns obstáculos Por exemplo um pêndulo subi ria perfeitamente à altura de onde desceu se a resistência do ar e alguns outros obstáculos pequenos não lhe tivessem di minuído um pouco a força adquirida Suponho também ser necessária tanta força para elevar um corpo A de uma libra à altura CD de quatro toesas quanta para elevar um corpo B de quatro libras à altura EF de uma toesa Tudo isto é admitido pelos nossos filósofos modernos É pois manifesto que tendo o corpo A caído da altura CD adqui riu tanta força precisamente como o corpo B caído da al tura EF pois tendo chegado a F o corpo B e tendo ali for ça para subir novamente até E pela primeira suposição tem por conseguinte a força de levar um corpo de quatro libras isto é o seu próprio corpo à altura EF de uma toesa e da mesma forma tendo chegado a D o corpo A e ten do ali força para voltar a subir a C tem a força de elevar um corpo de uma libra isto é o seu próprio corpo à altura CD de quatro toesas Logo pela segunda suposição a força destes dois corpos é igual Vejamos agora se a quantidade de movimento é também a mesma de ambos os lados Mas aqui precisamente ficarseá surpreso por encontrar gran díssima diferença pois já foi demonstrado por Galileu 57 ser a velocidade adquirida pela queda CD o dobro da veloci dade obtida pela queda EF embora a altura seja quádrupla Multiplicando pois o corpo A que é como 1 pela sua ve locidade que é como 2 o produto ou a quantidade de mo vimento será como 2 e por outro lado multiplicando o corpo B que é como 4 pela sua velocidade que é como 1 será como 4 o produto ou a quantidade de movimento Logo a quantidade de movimento do corpo A no ponto D é a metade da quantidade de movimento do corpo B no ponto F e no entanto são iguais as suas forças Há portan 37 to grande diferença entre a quantidade de movimento e a força como se queria demonstrar Por aqui se vê como a força deve ser avaliada pela quantidade do efeito que pode produzir por exemplo pela altura a que se pode levantar um corpo pesado de certo tamanho e espécie o que é mui to diferente da velocidade que se lhe pode imprimir E para lhe dar o dobro da velocidade é necessário mais do dobro da força Nada mais simples do que esta prova e se Des cartes errou neste ponto foi por demasiada confiança em seus pensamentos mesmo quando não estavam suficiente mente amadurecidos Espantame porém seus sectários não se haverem depois apercebido deste erro e receio que eles comecem pouco a pouco a imitar alguns peripatéticos de que escarnecem e como estes se acostumem a consultar os livros do mestre de preferência à razão e à natureza 38 XVIII A distinção da força e da quantidade de movimento é importante entre outras razões para julgar a necessidade do recurso a considerações metafisicas independentes da extensão a fim de explicar os fenômenos dos corpos Esta consideração da força distinguida da quantidade de movimento é de grande importância não só na física e na mecânica para encontrar as verdadeiras leis da natureza e regras do movimento e até para corrigir vários erros de prática que se intrometeram nos escritos de alguns hábeis matemáticos como ainda em metafísica para melhor com preensão dos princípios pois o movimento se não se lhe considera o que compreende precisamente e formalmente ou seja uma mudança de lugar não é coisa inteiramente real e quando vários corpos mudam de situação entre si é impossível determinar pela simples consideração destas mudanças a qual dentre eles se deve atribuir o movimento ou o repouso como me seria possível mostrar geometrica mente se me quisesse deter agora neste assunto É porém algo mais real a força ou causa próxima destas mudanças e existe bastante fundamento para atribuíla a um corpo de preferência a outros Assim só por este meio se pode co nhecer a qual o movimento pertence de preferência Ora esta força é algo diferente da grandeza da figura e do mo vimento e por aí podese julgar não consistir apenas na ex tensão e suas modificações tudo o que se concebe no cor po como se persuadem os nossos modernos Assim fomos obrigados a restaurar alguns entes ou formas por eles bani dos E parece cada vez mais embora possam explicarse 39 matemática ou mecanicamente todos os fenômenos parti culares da natureza por quem os entenda que pelo me nos os princípios gerais da natureza corpórea e da própria mecânica são muito mais metafísicos do que geométricos e pertencem sobretudo a algumas formas ou naturezas indi visíveis como causas das aparências mais do que à massa corpórea ou extensa60 Esta reflexão é capaz de reconciliar a filosofia mecânica dos modernos com a circunspecção de algumas pessoas inteligentes e bem intencionadas que com algum fundamento se sentem receosas pelo afastamento exagerado dos entes imateriais em prejuízo da piedade 40 XIX Utilidade das causas finais na física Como não gosto de julgar ninguém com má intenção não acuso os nossos novos filósofos que pretendem banir da física as causas finais Sou todavia obrigado a reconhe cer que me parecem perigosas as conseqüências desta opi nião principalmente quando as associo àquela refutada no início deste discurso e que parece pretender suprimilas em absoluto como se Deus não se propusesse fim nem bem algum ao agir ou como se o bem não fosse o objeto da sua vontade 62 Pelo contrário tenho para mim que nelas é que deve procurarse o princípio de todas as existências e leis da natureza porque Deus se propõe sempre o melhor e o mais perfeito Posso bem admitir ó3 que estamos sujeitos a nos excedermos quando pretendemos determinar os fins ou resoluções de Deus mas tal apenas acontece quando pretendemos limitálos a algum desígnio particular acredi tando que ele só teve em vista uma única coisa ao passo que Deus tem em vista tudo ao mesmo tempo Assim acon tece quando cremos não ter Deus feito o mundo senão para nós Grande abuso é este embora seja muito verdadeiro tê lo feito inteiramente para nós e nada haver no universo que não nos diga respeito e não se acomode ainda às con siderações que tem Deus a nosso propósito segundo os prin cípios postos mais acima Assim quando vemos algum bom efeito ou perfeição proveniente ou decorrente das obras de 41 Deus podemos afirmar com segurança que Deus desse modo se propôs a fazêlo pois Deus nada faz por acaso nem se assemelha a nós a quem por vezes escapa fazer o bem É por isso que muito longe de se poder errar neste assunto como sucede aos políticos exagerados que imagi nam excessivo refinamento nos desígnios dos príncipes ou aos comentadores que procuram demasiada erudição no seu autor nunca se poderia atribuir demasiadas reflexões a esta sabedoria infinita e não há matéria alguma onde me nos se possa temer o erro enquanto apenas se afirme e desde que aqui se fuja das proposições negativas que limi tam os desígnios de Deus Todos os que vêem a admirável estrutura dos animais são obrigados a reconhecer a sabe doria do autor das coisas 65 Aconselho aos que têm algum sentimento de piedade e mesmo de verdadeira filosofia a afastaremse das frases de alguns espíritos demasiadamen te pretensiosos que dizem que vemos porque temos olhos e não dizem que os olhos foram feitos para ver É difícil poderse reconhecer um autor inteligente da natureza quan do se está seriamente baseado nestas opiniões que tudo atribuem à necessidade da matéria ou a um certo acaso se bem que ambas devam parecer ridículas aos que com preendem o acima explicado visto que o efeito deve cor responder à sua causa 66 e até se conhece melhor pelo co nhecimento da causa e é desarrazoado introduzir uma in teligência soberana ordenadora das coisas para logo em seguida em vez de recorrer à sua sabedoria servirse ex clusivamente das propriedades da matéria para explicar os fenômenos Tal como se um historiador querendo explicar uma conquista realizada por um grande príncipe ao tomar qualquer praça de importância em vez de nos mostrar como a previdência do conquistador lhe fez escolher o tempo e meios convenientes e como seu poder removeu todos os obstáculos quisesse dizer que assim acontecera porque os corpúsculos da pólvora tendose libertado em contato com 42 uma faísca haviam escapado com velocidade bastante para atirar um corpo duro e pesado contra as muralhas da pra ça enquanto as ramificações dos corpúsculos componentes do cobre do canhão estavam muito bem entrelaçadas de modo a não se separarem por efeito dessa velocidade 43 XX Notável passagem de Sócrates no Fédon de Platão contra os filósofos demasiado materiais Isto fazme lembrar uma bela passagem de Sócrates no Fédon 67 de Platão maravilhosamente de acordo com os meus sentimentos a este respeito e que parece feita de pro pósito contra os nossos filósofos demasiado materiais Tam bém essa relação levoume a traduzila conquanto seja um pouco longa Talvez esta amostra possa dar azo a alguém de partilhar conosco muitos outros pensamentos belos e sólidos existentes nos escritos deste autor famoso Um dia ouvi diz ele alguém ler um livro de Anáxa goras em que havia estas palavras um ser inteligente era causa de todas as coisas e as tinha disposto e aprimorado Isto maravilhoume em extremo porque eu acreditava ser tudo da forma mais perfeita possível se o mundo fosse efeito de uma inteligência Por isso acreditava que quem pre tendesse explicar a razão da formação perecimento ou sub sistência das coisas deveria procurar conhecer o que convi ria à perfeição de cada coisa Assim o homem tãosomente teria de considerar em si ou em qualquer outra coisa o me lhor e o mais perfeito pois quem conhecesse o mais perfeito por ele julgaria facilmente do imperfeito visto existir ape nas uma ciência tanto para um como para outro Considerando tudo isto regozijavame de ter encon trado um mestre que poderia ensinar as razões das coisas 44 como por exemplo se a Terra era antes redonda do que pla na e por que fora melhor ser assim do que de outro modo Além disso esperava que dizendome se a Terra se encon tra ou não no centro do universo me explicaria a conve niência de assim acontecer E o mesmo me diria do Sol da Lua das estrelas e dos seus movimentos E por fim depois de ter mostrado o conveniente a cada coisa em particular me mostraria o melhor em geral Cheio desta esperança tomei e percorri com sofregui dão os livros de Anaxágoras Acheime porém bem longe do que esperava pois espantoume observar que não se utilizava desta inteligência governadora a que dera prima zia Não mais falava do aprimoramento nem da perfeição das coisas e introduzia certas matérias etéreas pouco veros símeis Procedia neste ponto como quem havendo dito que Sócrates faz as coisas com inteligência logo em seguida viesse explicar em particular as causas das suas ações di zendo estar aqui sentado por ter um corpo composto de ossos carne e nervos serem sólidos os ossos mas com in tervalos ou articulações poderem os nervos encolherse e distenderse e por isso o corpo ser flexível e finalmente ser essa a razão de eu estar sentado Ou se tentando dar a razão do presente discurso recorresse ao ar aos órgãos da voz e do ouvido e coisas parecidas esquecendo entretan to as causas verdadeiras a saber que os atenienses acredi taram ser melhor a minha condenação à minha absolvição e a mim me pareceu melhor permanecer aqui sentado do que fugir Pois por quem sou sem esta razão estariam há muito estes ossos e nervos nas terras dos Beócios e Megá rios se me não tivesse parecido mais justo e honesto su portar o castigo que a pátria me quer impor do que viver vagabundo e exilado Por isso não é razoável chamar cau sas a estes ossos nervos e seus movimentos Em verdade teria razão quem dissesse eu não poder fazer isto tudo sem ossos e sem nervos mas uma coisa é a 45 causa verdadeira e outra o que não passa de condições para a causa poder ser causa Os que dizem por exemplo que somente o movi mento de rotação dos corpos sustenta a Terra ali onde ela se encontra esquecem ter a potência divina disposto tudo da mais bela maneira e não compreendem ser o bem e o belo que unem formam e mantêm o mundo Até aqui Sócrates porque o que se segue em Platão acerca das idéias ou das formas não é menos excelente mas um pouco mais difícil 46 XXI Se as regras mecânicas dependessem unicamente da geometria sem a metafísica os fenômenos seriam outros Ora visto que sempre se reconheceu a sabedoria de Deus no pormenor da estrutura mecânica de alguns corpos particulares deve necessariamente terse também revelado na economia geral do mundo e na constituição das leis da natureza Tanto é verdade que nas leis do movimento em geral se notam os desígnios dessa sabedoria Pois se no cor po nada houvesse além de massa extensa e no movimen to senão mudança de lugar e se tudo devesse e pudesse deduzirse exclusivamente destas definições por necessida de geométrica eu concluiria como já demonstrei algures 68 que o corpo menor daria ao maior que encontrasse e que estivesse em repouso a mesma velocidade que tem sem qualquer perda da sua própria Teriam de admitirse ainda muitas outras regras como estas absolutamente contrárias à formação de um sistema Porém o decreto da sabedoria divina de conservar sempre a mesma força e a mesma dire ção no total proveu a isto Acho mesmo que vários efeitos da natureza podem demonstrarse de dupla forma a saber pela consideração da causa eficiente e ainda independen temente desta pela consideração da causa final recorren do por exemplo ao decreto de Deus produzir sempre o efeito pelas vias mais simples e determinadas como mos trei em outro lugar quando expus a razão das regras da ca tóptrica e da dióptrica 69 Acerca deste assunto voltarei em breve a falar 47 XXII Conciliação das duas vias pelas causas finais e pelas causas eficientes a fim de satisfazer tanto os que explicam a natureza mecanicamente como os que recorrem às naturezas incorpóreas Convém fazer esta observação a fim de conciliar os que esperam explicar mecanicamente a formação da pri meira textura de um animal e toda a máquina das suas par tes com os que encontram a razão desta mesma estrutura pelas causas finais Ambas as explicações são boas ambas podem ser úteis não só para se admirar a habilidade do grande operário mas ainda para descobrir algo útil na físi ca e na medicina E os autores que seguem estas vias dife rentes não deveriam hostilizarse Reparo no entanto os que se afadigam em explicar a beleza da divina estrutura das substâncias organizadas caçoarem dos que imaginam poder um movimento aparentemente fortuito de certos flui dos provocar tão bela variedade de membros e acoimam estes últimos de profanos e temerários E estes por sua vez cognominam os primeiros de ingênuos e supersticiosos se melhantes àqueles antigos que consideravam ímpios os fí sicos quando defendiam não ser Júpiter quem trovoa mas sim alguma matéria existente nas nuvens O melhor seria reunir ambas as explicações pois se é permitido recorrer a uma comparação grosseira reconheço e exalto a habilida de de um operário não só mostrando os fins a que visou ao fazer as peças da sua máquina mas ainda explicando os instrumentos de que se serviu para fazer cada peça princi palmente se esses instrumentos são simples e engenhosa 48 mente inventados E Deus é um artesão bastante hábil para produzir uma máquina mil vezes mais engenhosa do que a do nosso corpo não utilizando senão alguns fluidos bas tante simples expressamente formados de maneira a só ne cessitarem das leis ordinárias da natureza para os misturar como requer a produção de um efeito tão admirável É tam bém verdade no entanto que isto não aconteceria se não fosse Deus o autor da natureza No entanto creio que a via das causas eficientes sendo com efeito a mais profunda e de certa maneira mais imediata e a priori é em contrapar tida bastante difícil quando se desce até o pormenor e creio que os nossos filósofos freqüentemente ainda estão muito longe disso A via das causas finais é porém mais fá cil e não deixa de servir freqüentemente para a descober ta de verdades importantes e úteis que teriam de ser de moradamente procuradas por aquele outro caminho mais físico do qual a anatomia pode dar exemplos considerá veis Assim creio que Snellius 70 o primeiro inventor das re gras da refração demoraria muito mais a encontrálas se primeiramente quisesse conhecer a formação da luz mas seguiu aparentemente o método usado pelos antigos para a catóptrica que vai efetivamente pelas causas finais Pois procurando o caminho mais simples para conduzir um raio de luz de um ponto dado para um outro dado pela refle xão de um plano determinado supondo ser este o desíg nio da natureza acharam a igualdade dos ângulos de inci dência e de reflexão como pode verse num pequeno tra tado de Heliodoro de Larissa e em outros vários Foi que Snellius como creio e depois Fermat embora tudo igno rando do primeiro aplicaram mais engenhosamente à re fração Pois desde que os raios observem nos mesmos meios a mesma proporção dos senos que é também a das resis tências dos meios vêse que é a via mais simples ou pelo menos a mais determinada para passar de um ponto dado num meio a um ponto dado em outro E falta muito para 49 que a demonstração deste mesmo teorema que Descartes pretendeu fazer pela via das causas eficientes seja tão boa Podese ao mesmo tempo desconfiar que nada alcançaria por ela se na Holanda não tivesse aprendido alguma coisa da descoberta de Snellius 50 XXIII A fim de voltar às substâncias imateriais explicase como Deus age sobre o entendimento dos espíritos e se se tem sempre a idéia do que se pensa Considerei oportuno insistir um pouco nestas conside rações das causas finais das naturezas incorpóreas e de uma causa inteligente com relação aos corpos a fim de mostrar a sua utilidade mesmo na física e nas matemáticas e con seguir por um lado expurgar a filosofia mecânica da pro fanidade que se lhe imputa e por outro elevar o espírito dos nossos filósofos de considerações simplesmente mate riais a mais nobres meditações Será agora conveniente vol tar dos corpos às naturezas imateriais e particularmente aos espíritos e dizer algo da maneira usada por Deus para escla recêlos e agir sobre eles no que também há indubitavel mente certas leis da natureza de que poderei noutro lugar falar com maior desenvolvimento Por ora bastará abordar alguma coisa acerca das idéias e se vemos todas as coisas em Deus e como Deus é nossa luz 74 Ora será oportuno no tar que o mau uso das idéias ocasiona numerosos erros pois quando se raciocina sobre alguma coisa imaginase ter uma idéia desta coisa e é o fundamento sobre o qual alguns filósofos antigos e modernos edificaram determina da demonstração de Deus bastante imperfeita É necessá rio dizem ter eu uma idéia de Deus ou de um ser perfei to pois nele penso e não se poderia pensar sem idéia Ora a idéia deste ser contém todas as perfeições e a existência é uma delas Por conseguinte Deus existe Porém como 51 pensamos freqüentemente em quimeras impossíveis por exemplo no último grau da velocidade no maior de todos os números no encontro da concóide com a sua base ou regra este raciocínio não é suficiente 76 É pois neste sen tido que se pode dizer haver idéias verdadeiras e falsas conforme a coisa seja possível ou não E só então poderá alguém gabarse de ter uma idéia da coisa desde que este ja seguro de sua possibilidade Portanto o sobredito argu mento prova pelo menos que Deus existe necessariamen te se for possível O que é com efeito um excelente privi légio da natureza divina o de não requerer senão a sua possibilidade ou essência para existir atualmente E é pre cisamente o que se denomina Ens a se 52 XXIV O que é conhecimento claro ou obscuro distinto ou confuso adequado e intuitivo ou supositivo definição nominal real causal essencial É preciso dizer algo acerca da variedade dos conheci mentos a fim de melhor compreender a natureza das idéias Quando posso reconhecer uma coisa entre outras sem poder dizer em que consistem suas diferenças ou pro priedades o conhecimento é confuso Assim conhecemos algumas vezes claramente sem de modo algum duvidar se um poema ou quadro estão bem ou mal feitos porque há um não sei quê que nos satisfaz ou nos choca79 Sendome porém possível explicar as marcas que tenho o conheci mento chamase distinto Tal é o conhecimento do contras teador que distingue o verdadeiro do falso ouro por intermé dio de certas provas ou marcas definidoras do ouro Porém o conhecimento distinto tem graus porque ordinariamente as noções que entram na definição elas mesmas precisa riam de definição e são conhecidas apenas confusamente 80 Mas quando tudo o que entra numa definição ou conheci mento distinto é distintamente conhecido até as noções pri mitivas denomino este conhecimento adequado Quando o meu espírito compreende ao mesmo tempo e distintamen te todos os elementos primitivos de uma noção tem dela um conhecimento intuitivo sempre mui raro pois a maior parte dos conhecimentos humanos são somente confusos ou en tão supositivos 81 Convém ainda distinguir as definições no minais e reais Chamo definição nominal quando se pode 53 duvidar da possibilidade da noção definida como por exem plo se digo que um parafuso sem fim é uma linha sólida cujas partes são congruentes ou podem incidir uma sobre a outra Todavia quem desconhecer um parafuso sem fim pode duvidar da possibilidade de tal linha embora efetiva mente essa seja uma propriedade recíproca S2 do parafuso sem fim pois as outras linhas cujas partes são congruentes apenas a circunferência do círculo e a linha reta são pla nas quer dizer podem traçarse in plano Isto mostra poder toda propriedade recíproca servir para uma definição nomi nal mas quando a propriedade revela a possibilidade da coisa dá origem à definição real E enquanto se tem ape nas uma definição nominal não se poderá estar seguro das conseqüências dela obtidas porque se escondesse alguma contradição ou impossibilidade dela se poderiam tirar con clusões opostas Eis por que as verdades em nada depen dem dos nomes nem são arbitrárias como julgaram alguns filósofos modernos 83 Finalmente ainda existe muita dife rença entre as espécies das definições reais pois quando a possibilidade é provada apenas por experiência como na definição do mercúrio do qual se conhece a possibilidade por se saber que um tal corpo fluido extremamente pesa do e no entanto assaz volátil é encontrado efetivamente a definição é somente real e nada mais Quando porém a prova da possibilidade se faz a priori a definição é ainda real e causal como quando contém a gênese possível da coisa E se esgota a análise levandoa até as noções pri mitivas sem pressupostos carecidos de prova a priori da sua possibilidade a definição é perfeita ou essencial 54 XXV Em que caso nosso conhecimento se une à contemplação da idéia Ora é manifesto não possuirmos qualquer idéia de uma noção quando esta é impossível 84 E quando o conhe cimento é somente supositivo ao termos a idéia não a con templamos pois tal noção se conhece apenas da mesma maneira que as noções ocultamente impossíveis e se ela é possível não é por esta maneira de conhecer que pode ser apreendida Por exemplo quando penso em mil ou num quiliógono procedo freqüentemente sem contemplar a idéia dele como quando digo que mil é dez vezes cem não me preocupando em pensar o que é 10 e 100 porque suponho sabêlo e não creio precisar no momento parar para conce bêlo Assim poderá muito bem acontecer como acontece com efeito muitas vezes enganarme acerca de uma noção que suponho ou creio compreender se bem que na verda de ela seja impossível ou pelo menos incompatível com aquelas às quais a junto E quer eu me engane ou não esta maneira supositiva de conceber permanece a mesma 85 Só quando o nosso conhecimento é claro nas noções con fusas ou intuitivo nas distintas é que nele vemos a idéia inteira 86 55 XXVI Temos todas as idéias em nós Acerca da reminiscência de Platão Para conceber bem o que é uma idéia é preciso afastar um equívoco pois muitos a tomam pela forma ou diferen ça de nossos pensamentos e deste modo só temos a idéia no espírito enquanto a pensamos e temos outras idéias da mesma coisa embora semelhantes à primeira cada vez que a pensamos Parece porém ser tomada por outros como um objeto imediato do pensamento ou como alguma for ma permanente que persiste mesmo quando a não con templamos Com efeito a nossa alma tem sempre nela a qualidade de se representar qualquer natureza ou forma seja qual for quando surge a ocasião de pensar nela 87 E desde que expresse qualquer natureza forma ou essência acredito ser esta qualidade da nossa alma propriamente a idéia da coisa existente em nós e sempre em nós quer nela pensemos ou não Porque a nossa alma exprime Deus o universo e todas as essências assim como todas as existên cias 88 Isto concorda com os meus princípios porque natu ralmente nada penetra no nosso espírito vindo do exterior e é mau hábito pensarmos como se a nossa alma recebes se algumas espécies mensageiras e tivesse portas e janelas Temos todas estas formas no espírito e as temos desde sem pre porque o espírito exprime sempre todos os seus pen samentos futuros e já pensa confusamente em tudo o que um dia pensará com distinção E nada nos poderia ser en 56 sinado cuja idéia não tenhamos já no espírito pois essa idéia é como a matéria de que se forma esse pensamento R9 Eis o que Platão considerou excelentemente ao introduzir a sua teoria da reminiscência que tem muita solidez quando de vidamente compreendida e expurgada do erro da preexis tência e quando não se imagine que a alma já devia ter sa bido e pensado outrora com distinção o que apreende e pensa agora Platão confirmou ainda a sua opinião por meio de uma bela experiência apresentando um rapazinho que insensivelmente levou até as mais difíceis verdades da geo metria relativas aos incomensuráveis sem nada lhe ter en sinado e apenas fazendo perguntas por ordem e a propósi to O que mostra que a nossa alma sabe virtualmente todas estas coisas e apenas requer animadversiones para conhe cer as verdades e por conseqüência possui pelo menos as idéias de que dependem estas verdades Pode até dizer se que já possui estas verdades quando tomadas como as relações entre as idéias9 57 XXVII De que modo pode compararse a nossa alma a tabuinhas vazias e como as nossas noções provem dos sentidos Aristóteles preferiu comparar a nossa alma a pequenas tábuas ainda vazias onde há lugar para escrever e susten tou nada existir no nosso entendimento que não venha por meio dos sentidos Tem esta afirmação a vantagem de ser mais conforme às noções populares como é de uso de Aristóteles ao passo que Platão vai mais fundo 91 Entretan to estas espécies de doxologias ou praticologias podem passar ao uso ordinário tal como vemos que os que se guem Copérnico não deixam de dizer que o sol se levanta e se põe Muitas vezes me parece até possível darlhes um sentido segundo o qual nada têm de falso e assim como já indiquei de que modo se pode verdadeiramente dizer agirem umas sobre as outras as substâncias particulares nes ta mesma acepção pode também dizerse que recebemos de fora conhecimentos através dos sentidos por algumas coisas externas conterem ou exprimirem mais particularmen te as razões que determinam a nossa alma a certos pensa mentos 92 Todavia quando se trata da exatidão das verda des metafísicas importa reconhecer a extensão e indepen dência da nossa alma que alcança infinitamente mais lon ge do que supõe o vulgo 93 se bem que no uso ordinário da vida só lhe seja atribuído aquilo de que se apercebe com maior evidência e nos pertence de maneira particular por que de nada serve ir mais longe A fim de evitar equívocos 58 cumpria no entanto escolher termos próprios a um e outro sentido Assim podem denominarse idéias essas expressões concebidas ou não que estão na nossa alma mas aquelas que se concebem ou formam podem denominarse noções conceptus Seja porém como for é sempre falso dizer pro virem dos sentidos chamados externos todas as nossas no ções pois as que tenho de mim e dos meus pensamen tos e por conseguinte as do ser da substância da ação da identidade e de muitas outras provêm de uma experiência interna 94 59 XXVIII Deus é o único objeto imediato das nossas percepções existente fora de nós e só ele é a nossa luz Ora no sentido rigoroso da verdade metafísica não há causa alguma externa agindo em nós a não ser Deus e so mente ele se comunica imediatamente a nós em virtude da nossa contínua dependência 9 Donde se conclui que não há nenhum outro objeto externo afetando nossa alma e excitando imediatamente a nossa percepção Temos assim em nossa alma as idéias de todas as coisas apenas devido à contínua ação de Deus sobre nós quer dizer pela razão de todo efeito exprimir sua causa e por isso a essência da nos sa alma é uma certa expressão imitação ou imagem da es sência pensamento e vontade divina e de todas as idéias aí compreendidas Pode por conseguinte dizerse que Deus é nosso único objeto imediato fora de nós e é por seu in termédio que vemos todas as coisas Por exemplo quando vemos o sol e os astros foi Deus quem nos deu e conserva as idéias e pelo seu concurso ordinário nos determina a pensar nelas efetivamente ao mesmo tempo que os nossos sentidos estão dispostos de uma certa maneira segundo as leis por ele estabelecidas Deus é o sol e a luz das almas lumen illu minans omnem hominem venientem in hunc mundum 96 e esta convicção não data de hoje 97 Depois da Sagrada Escritu ra e dos Santos Padres que sempre estiveram mais por Platão do que por Aristóteles recordome de ter notado outrora que no tempo dos escolásticos muitos acreditaram ser Deus 60 a luz da alma e segundo seu modo de dizer intellectus agens animae rationalis 98 Os averroistas adulteraramlhe o senti do mas outros entre os quais penso encontrarse Guilher me de SantoAmor e diversos teólogos místicos interpreta ramna de maneira digna de Deus e capaz de elevar a alma até o conhecimento do seu bem 61 XXIX No entanto pensamos imediatamente pelas nossas próprias idéias e não pelas de Deus No entanto não sou da opinião de alguns hábeis filó sofos que parecem sustentar que as nossas próprias idéias estão em Deus e não em nós Em minha opinião isto se deve ao fato de não terem considerado ainda devidamente nem o que acerca das substâncias acabamos de considerar aqui nem toda a extensão e independência da nossa alma que a faz conter tudo quanto lhe acontece e exprimir Deus e com ele todos os seres possíveis e atuais como um efei to exprime a sua causa Além disso é inconcebível que eu pense com as idéias de outrem É forçoso também que a alma seja efetivamente afetada de uma certa maneira quan do pensa em alguma coisa e nela tenha de haver de ante mão não só a potência passiva de poder ser assim afetada a qual se encontra já completamente determinada mas ain da uma potência ativa em virtude da qual tenham havido sempre na sua natureza marcas da produção futura deste pensamento e disposições para produzilo em tempo opor tuno Tudo isto já implica a idéia compreendida neste pensamento 62 XXX Como Deus inclina nossa alma sem a necessitar Ninguém tem o direito de queixarse e não se deve perguntar por que Judas peca mas sim por que Judas o pecador é admitido à existência de preferência a algumas pessoas possíveis Da imperfeição original antes do pecado e dos graus da graça No que concerne à ação de Deus sobre a vontade hu mana há numerosas considerações bastante difíceis que seria longo seguir aqui Todavia eis por alto o que se pode dizer Deus concorrendo ordinariamente para as nos sas ações apenas segue as leis que estabeleceu isto é conserva e produz continuamente o nosso ser de forma que nossos pensamentos nos chegam espontânea ou livre mente segundo a ordem implícita na noção da nossa subs tância individual na qual se podiam prever desde toda a eternidade Ademais em virtude do decreto por ele estabe lecido da vontade tender sempre para o bem aparente ex primindo ou imitando a vontade de Deus sob certos aspec tos particulares relativamente aos quais esse bem aparente tem sempre algo de verdadeiro determina a nossa para a escolha do que parece melhor sem contudo a necessitar Porque falando de modo absoluto a vontade está na indi ferença desde que se oponha à necessidade e tem o po der de proceder diversamente ou ainda de suspender de todo a sua ação pois ambos os partidos são e continuam possíveis 10 Depende portanto da alma precaverse contra as surpresas das aparências por uma firme vontade de re fletir e de nunca agir nem julgar em certas ocasiões senão 63 depois de ter deliberado bem maduramente É no entanto verdadeiro e mesmo certo desde toda a eternidade que nenhuma alma se há de servir deste poder em determinada circunstância Mas quem é culpado disso E pode acaso ela queixarse senão de si mesma Pois todas essas queixas de pois do acontecimento são tão injustas quanto o teriam sido antes dele Ora essa alma um pouco antes de pecar de boa vontade se queixaria de Deus como determinandoa ao pecado Nestas matérias sendo imprevisíveis as determi nações de Deus como pode ela saber estar determinada ao pecado senão depois de efetivamente pecar Apenas se trata de não querer e Deus não poderia propor condição mais fácil e justa Assim todos os juizes sem cuidarem de saber as razões que dispuseram um homem a ter uma von tade má só se preocupam em considerar quanto é má essa vontade Mas estará talvez desde toda a eternidade assegu rado que pecarei Respondei vós mesmos talvez não e sem sonhar com o que não podereis conhecer e nenhuma luz vos pode dar agi segundo o vosso dever que conhe ceis 103 Mas dirá um outro donde se segue que este ho mem cometerá seguramente este pecado A resposta é fá cil de outra maneira não seria este homem 104 Pois Deus vê desde sempre que existirá um certo Judas cuja noção ou idéia que dele tem contém esta livre ação futura Resta portanto tãosó a questão de saber por que existe atual mente um tal Judas o traidor que só é possível na idéia de Deus Mas para esta questão não há neste mundo resposta a esperar a menos que em geral deva dizerse que visto Deus ter achado bom que ele existisse não obstante o pe cado previsto é forçoso este mal recompensarse com ju ros no universo dele tirando Deus um bem maior e em suma essa série de coisas em que se compreende a exis tência desse pecador mostrarse a mais perfeita entre todas as outras maneiras possíveis 105 Mas enquanto somos viajan tes deste mundo é impossível explicar sempre em tudo a 64 admirável economia desta escolha É bastante sabêlo sem o compreender É aqui o momento de reconhecer altitudi nem divitiarum 106 a profundidade e o abismo da sabedoria divina sem buscar um esmiuçamento que envolve consi derações infinitas Entretanto vêse claramente não ser Deus a causa do mal pois não só o pecado original se apoderou da alma depois da perda da inocência dos homens mas ainda anteriormente havia uma limitação ou imperfeição conatural a todas as criaturas tornandoas pecáveis ou sus cetíveis de pecar 107 Desaparece assim a dificuldade tanto do ponto de vista dos supralapsários 70F3 como dos outros Eis no meu entender ao que se deve reduzir a opinião de Santo Agostinho e de outros autores segundo a qual a raiz do mal está no nada r 9 quer dizer na privação ou limitação das criaturas que Deus remedeia graciosamente pelo grau de perfeição que lhe apraz dar a elas Essa graça de Deus seja ordinária ou extraordinária tem seus graus e medidas é sempre eficaz em si mesma para produzir um certo efei to proporcionado e ademais é sempre suficiente não só para nos preservar do pecado mas até para produzir a sal vação supondo nela a cooperação do homem na medida em que compete No entanto nem sempre ela é suficiente para se sobrepor às inclinações do homem pois de outra forma não requereria mais nada e isto está reservado somen te à graça absolutamente eficaz sempre vitoriosa quer por si quer devido à congruência das circunstâncias 110 65 XXXI Dos motivos da eleição da fé prevista da ciência média do decreto absoluto e de que tudo se reduz à razão que fez Deus chamar à existência tal pessoa possíve4 cuja noção contém uma certa série de graças e de ações livres o que de uma vez por todas acaba com as dificuldades Enfim são as graças de Deus graças absolutamente puras sobre as quais as criaturas nada têm a pretender No entanto como para explicar a escolha feita por Deus ao dispensar estas graças não é suficiente recorrer à previsão absoluta ou condicional 11 das ações futuras dos homens é também forçoso não se imaginar decretos absolutos que não possuam algum motivo razoável 112 No que concerne à fé ou às boas obras previstas é certíssimo Deus só ter elei to aqueles em que previa a fé e a caridade quos sefide do naturum praescivit 13 mas recomeça de novo a mesma questão de se saber por que Deus dará a uns de preferên cia a outros a graça da fé ou das boas obras E quanto a esta ciência de Deus a previsão 14 não da fé e das boas ações mas de sua matéria e predisposição ou daquilo com que o homem para elas contribuiria por sua parte já que é certo haver diversidade do lado dos homens exatamente onde a há do lado da graça e que com efeito é forçoso o homem para isso agir também depois embora precise ser incitado ao bem e convertido para muitos parece poder dizerse que Deus tendo visto o que o homem faria sem a graça ou assistência extraordinária ou pelo menos o que fará por sua parte abstraindo a graça poderia resolverse a 66 conceber a graça àqueles cujas disposições naturais fossem as melhores ou pelo menos as menos imperfeitas ou me nos más Mas quando assim fosse poderseia dizer que es tas disposições naturais enquanto boas são ainda o efeito de uma graça embora ordinária tendo Deus beneficiado uns mais do que outros e sabendo Deus muito bem que estas vantagens naturais dadas por ele servirão de motivo à graça ou assistência extraordinária não é afinal verdadei ro segundo esta doutrina tudo reduzirse inteiramente A sua misericórdia Portanto visto ignorarmos quanto ou como Deus considera as disposições naturais na dispensa da gra ça creio mais exato e seguro dizer segundo os nossos prin cípios e como já notei ser forçoso haver entre os entes pos síveis a pessoa de Pedro ou de João cuja noção ou idéia contém toda esta série de graças ordinárias e extraordiná rias e todo o resto destes acontecimentos com suas circuns tâncias e que entre uma infinidade de outras pessoas igual mente possíveis agradou a Deus escolhêla para existir atualmente Dito isto parece nada mais haver a perguntar e desvaneceremse todas as dificuldades pois relativamente a esta única e grande questão de saber por que agradou a Deus escolhêla entre tantas outras pessoas possíveis é pre ciso ser muito pouco razoável para se não contentar com as razões gerais que demos cujo pormenor nos ultrapassa Assim em vez de recorrer a um decreto absoluto que não tendo razão é irrazoável ou a razões que nunca conse guem resolver a dificuldade e carecem de outras razões o melhor será dizer de acordo com São Paulo que para isso há certas e grandes razões de sabedoria ou de congruência desconhecidas dos mortais mas fundadas na ordem geral cujo fim é a maior perfeição do universo e observadas por Deus15 Aqui vêm dar os motivos da glória de Deus e da ma nifestação da sua justiça assim como da sua misericórdia e em geral das suas perfeições e finalmente essa imensa pro fundidade de riquezas de que o próprio São Paulo tinha a alma extasiada 67 XXXII Utilidade destes princípios em matéria de piedade e religião Ademais parece que os pensamentos por nós ora ex plicados e em particular o grande princípio da perfeição das operações de Deus e o da noção da substância que en cerra todos os seus acontecimentos com todas as suas cir cunstâncias bem longe de prejudicar servem para confir mar a religião para dissipar enormes dificuldades inflamar as almas de um amor divino e elevar os espíritos ao conhe cimento das substâncias incorpóreas bem mais do que as hipóteses vistas até aqui 6 Pois clarissimamente se vê de penderem de Deus todas as outras substâncias como os pensamentos emanam da nossa ser Deus tudo em todos e intimamente unido a todas as criaturas embora na medida das suas perfeições ser ele a determinálas externamente pela sua influência e se agir é determinar imediatamen te pode neste sentido dizerse em linguagem metafísica que só Deus opera sobre mim e só ele pode fazerme bem ou mal em nada contribuindo as outras substâncias a não ser na razão destas determinações porque Deus consideran doas a todas reparte suas bondades e obrigaas a acomo daremse entre si Igualmente só Deus estabelece a ligação e a comunicação das substâncias e por seu intermédio os fenômenos de umas se encontram e harmonizam com os de outras havendo por conseqüência realidade nas nos sas percepções Mas na prática atribuise a ação às razões 68 particulares no sentido por mim explicado acima por ser desnecessário mencionar constantemente a causa universal nos casos particulares Vêse também que toda substância tem perfeita espontaneidade tornada liberdade nas subs tâncias inteligentes tudo o que lhe sucede é conseqüência da sua idéia ou do seu ser e nada a não ser Deus a deter mina E por isso uma pessoa de elevado espírito e de res peitadíssima santidade costumava dizer que a alma deve freqüentemente pensar como se mais nada a não ser ela e Deus houvesse no mundo Ora nada torna mais com preensível a imortalidade9 do que essa independência e essa extensão da alma que a defende completamente de todas as coisas exteriores pois ela sozinha constitui todo o seu mundo e com Deus se basta e é tão impossível pere cer sem aniquilamento quão impossível o mundo de que é expressão viva e perene destruirse a si mesmo Também não é possível que façam algo sobre nossa alma as mudan ças dessa massa extensa chamada nosso corpo nem a dis sipação deste destrua o que é indivisível 69 XXXIII Explicação da união da alma e do corpo tida por inexplicável ou miraculosa e da origem das percepções confusas Compreendese também o inopinado esclarecimento deste grande mistério da união da alma e do corpo 120 isto é como acontece que as paixões e as ações de um deles se acompanhem das ações e paixões do outro ou melhor dos fenômenos convenientes do outro porquanto não há meio de se conceber que um tenha influência sobre o outro nem é razoável recorrer simplesmente à operação extraor dinária da causa universal em coisa ordinária e particular Eis no entanto a verdadeira razão 121 dissemos que tudo quanto acontece à alma e a cada substância é conseqüên cia de sua noção logo a própria idéia ou essência da alma implica também que todas as suas aparências ou percep ções devam nascerlhe sponte da sua própria natureza e precisamente de sorte a responderem por si mesmas ao que se passa em todo o universo mais particular e mais perfei tamente porém ao que se passa no corpo que lhe está afe to pois é de algum modo e por certo tempo segundo a relação dos outros corpos com o seu que a alma exprime o estado do universo Isto mostra ainda como o nosso cor po nos pertence sem estar contudo preso à nossa essên cia 122 E as pessoas que sabem meditar por poderem ver em que consiste a conexão da alma e do corpo que pare ce inexplicável por qualquer outra via creio que julgarão vantajosamente os nossos princípios Vêse também que as 70 percepções dos nossos sentidos mesmo quando sejam cla ras devem conter necessariamente algum sentimento con fuso pois simpatizando todos os corpos do universo o nosso recebe a impressão de todos os outros e embora os nossos sentidos se refiram a tudo é impossível nossa alma a tudo poder atender em particular Por isso são os nossos sentimentos confusos o resultado de uma variedade comple tamente infinita de percepções E é quase como o murmú rio confuso ouvido por quem se aproxima da beira do mar e proveniente da reunião das repercussões de vagas inume ráveis 1 Ora se de diversas percepções que não concor dam para fazerem uma nenhuma há que exceda as outras e se provocam mais ou menos impressões igualmente for tes ou igualmente capazes de determinar a atenção da alma esta só pode aperceberse delas confusamente 71 XXXIV Da diferença entre espíritos e demais substâncias almas ou formas substanciais e de que a imortalidade requerida implica recordação Supondo 124 que os corpos constituindo unum per se 725 como o homem são substâncias e têm formas substanciais e que os irracionais têm almas ése obrigado a reconhecer que essas almas e essas formas substanciais não poderiam perecer inteiramente assim como os átomos ou elementos últimos da matéria na opinião de outros filósofos pois substância alguma perece embora possa transformarse noutra qualquer Exprimem também todo o universo se bem que mais imperfeitamente do que os espíritos Mas a principal diferença é que desconhecem o que são ou fa zem e por conseqüência são incapazes de reflexão e não poderiam descobrir verdades necessárias e universais 126 Tam bém por falta de reflexão sobre si mesmas não têm quali dade moral donde se segue que atravessando mil transfor mações pouco mais ou menos como vemos uma lagarta transformarse em borboleta relativamente à moral e à prática é como se se dissesse que perecem e o mesmo se pode dizer fisicamente como dizemos que os corpos pere cem por sua corrupção Mas a alma inteligente conhecedo ra do que é e podendo dizer este eu moi que diz muito não só permanece e metafisicamente subsiste bem mais que as outras como ainda permanece moralmente a mes ma e constitui a mesma personagem 127 Pois é a recordação ou o conhecimento deste eu moi que a torna suscetível 72 de castigo ou de recompensa Também a imortalidade exi gida na moral e na religião não consiste exclusivamente nesta subsistência perpétua que convém a todas as subs tâncias pois nada teria de desejável sem a recordação do passado 128 Suponhamos que algum particular deva tornar se rei da China de um momento para o outro mas com a condição de esquecer o que foi como se acabasse de nas cer inteiramente de novo Na prática ou quanto aos efeitos de que é possível aperceberse isto não seria o mesmo que se devesse ser aniquilado e que em seu lugar fosse criado no mesmo momento um rei da China Este particular não tem qualquer razão para desejar isto 73 XKXV Excelência dos espíritos e que Deus os considera de preferência às outras criaturas Os espíritos exprimem Deus melhor do que o mundo mas as outras substâncias exprimem melhor o mundo do que Deus Porém para fazer julgar por razões naturais que Deus conservará sempre não só a nossa substância mas tam bém a nossa pessoa isto é a lembrança e o conhecimento do que somos embora o conhecimento distinto algumas vezes se interrompa no sono e nos desmaios é preciso aliarse a moral à metafísica Isto significa que não é sufi ciente a consideração de Deus como princípio e causa de todas as substâncias e de todos os seres mas também é ne cessário ainda considerálo como chefe de todas as pessoas ou substâncias inteligentes e como monarca absoluto da mais perfeita cidade ou república tal como a do universo composto do conjunto de todos os espíritos sendo o pró prio Deus tanto o mais acabado de todos os espíritos quan to é o maior de todos os seres Pois sem dúvida são os es píritos os mais perfeitos e que melhor exprimem a divinda de E consistindo toda a natureza fim virtude e função das substâncias apenas em exprimir Deus e o universo como foi já devidamente explicado não cabe duvidar de que as substâncias que o exprimem com o conhecimento daquilo que fazem e que são capazes de conhecer grandes verda des acerca de Deus e do universo o exprimam incompara velmente melhor do que essas naturezas que são ou brutas e incapazes de conhecer verdades ou completamente des tituídas de sentimento e de conhecimento A diferença en 74 tre as substâncias inteligentes e as que não o são é tão gran de como a que há entre o espelho e aquele que vê 130 E como o próprio Deus é o maior e mais sábio dos espíritos fácil é julgar que lhe devem estar infinitamente mais próxi mos os seres com os quais pode por assim dizer entrar em conversação e mesmo em sociedade comunicandolhes os seus sentimentos e vontades de maneira particular e de tal sorte que possam conhecer e amar o seu benfeitor do que as restantes coisas que apenas podem tomarse por instru mentos dos espíritos assim como vemos todas as pessoas sábias darem infinitamente mais importância a um homem que a qualquer outra coisa por mais preciosa que seja e parece ser a maior satisfação que pode ter uma alma aliás contente verse amada pelas outras embora pelo que se refere a Deus haja esta diferença a sua glória e o nosso culto nada podem acrescentar à sua satisfação pois sendo o conhecimento das criaturas tãosó uma conseqüência da sua soberana e perfeita felicidade está bem longe de con tribuir para ela ou de ser em parte a sua causa No entanto o que é bom e razoável nos espíritos finitos achase emi nentemente nele e como louvaríamos um rei que antes preferisse conservar a vida de um homem do que a do mais precioso e raro dos seus animais 131 não devemos nun ca duvidar de que não seja da mesma opinião o mais escla recido e justo dos monarcas 132 75 XXXVI Deus é o monarca da mais perfeita república composta de todos os espíritos e a felicidade desta cidade de Deus é o seu principal desígnio 133 Com efeito os espíritos são as substâncias mais susce tíveis de aperfeiçoamento e suas perfeições caracterizamse por se estorvarem reciprocamente o mínimo 134 ou sobretu do por se ajudarem mutuamente pois só os mais virtuosos poderão ser os mais perfeitos amigos 135 Donde claramente se conclui que Deus procurando sempre a máxima perfei ção em geral terá o maior desvelo com os espíritos e lhes dará não só em geral mas até a cada um em particular o máximo de perfeição permitido pela harmonia universal Podese até dizer que Deus enquanto espírito é a origem das existências de outro modo se carecesse de vontade para escolher o melhor não haveria razão alguma para um pos sível existir de preferência a outros Assim a qualidade de Deus de ser ele próprio espírito supera todas as outras con siderações que pode ter quanto às criaturas 136 Apenas os espíritos são feitos à sua imagem 137 e quase da sua raça ou como filhos da casa 138 pois só eles podem servir livremen te e agir com conhecimento à imitação da natureza divina um único espírito vale um mundo inteiro pois não só o ex prime mas também o conhece e aí se governa à maneira de Deus de tal forma que embora toda substância expri ma o universo parece no entanto que as outras substâncias exprimem melhor o mundo que Deus mas os espíritos ex primem melhor Deus do que o mundo E esta natureza tão 76 nobre dos espíritos que os aproxima da divindade tanto quanto podem simples criaturas faz com que Deus tire de les infinitamente mais glória que do resto dos seres ou me lhor que os outros seres apenas dêem aos espíritos a maté ria para glorificálo 139 Eis por que esta qualidade moral de Deus que o torna o senhor ou monarca dos espíritos lhe diz respeito por assim dizer pessoalmente de maneira mui to singular É nisto que se humaniza que se presta a antro pologias e entra em sociedade conosco como um príncipe com seus súditos e sendolhe tão querida esta considera ção tornase a sua lei suprema o feliz e florescente estado do seu império que consiste na maior felicidade possível aos habitantes Porque a felicidade está para as pessoas como a perfeição para os seres E se o primeiro princípio da existência do mundo físico é o decreto de lhe dar a má xima perfeição possível o primeiro desígnio do mundo moral ou da cidade de Deus a mais nobre parte do uni verso deve ser espalhar quanta felicidade for possível 140 Não se deve duvidar portanto de Deus ter ordenado tudo de molde a não só os espíritos poderem viver perenemen te o que é infalível mas ainda conservarem sempre a sua qualidade moral a fim de que a sua cidade não perca pes soa alguma como o mundo não perde qualquer substân cia E por conseguinte saberão sempre o que são de outro modo não seriam suscetíveis nem de recompensa nem de castigo o que é todavia da essência de uma república mor mente da mais perfeita onde coisa alguma poderia ter sido negligenciada Finalmente sendo Deus ao mesmo tempo o mais justo e clemente dos monarcas e nada mais pedindo além da boa vontade desde que sincera e séria os seus sú ditos não poderiam desejar melhor condição e para os tor nar perfeitamente felizes somente quer ser amado 77 XXXVII Jesus Cristo descobriu para os homens os mistérios e as leis admiráveis do reino dos céus e a grandeza da suprema felicidade que Deus reserva a quem o ama Os filósofos antigos conheceram muito pouco estas ver dades Só Jesus as exprimiu divinamente bem e de maneira tão clara e familiar que os mais grosseiros espíritos as com preenderam Por isso o seu Evangelho mudou inteiramen te a face das coisas humanas deunos a conhecer o reino dos céus ou esta república perfeita dos espíritos merece dora do título de cidade de Deus cujas leis admiráveis des cobriu para nós Só ele mostrou quanto Deus nos ama 142 e com que cuidado tratou de tudo o que nos toca que cui dando dos passarinhos não negligenciará as criaturas ra cionais para ele infinitamente mais queridas i43 que estão contados todos os cabelos da nossa cabeça 144 que céu e terra perecerão antes que se mude a palavra de Deus 145 e o que pertence à economia da nossa salvação que Deus tem maior cuidado com a mais ínfima das almas inteligentes do que com toda a máquina do mundo que não devemos re cear quem possa destruir os corpos mas não pode prejudi car as almas i46 porque só Deus as pode fazer felizes ou des graçadas e que as dos justos estão em sua mão defendidas de todas as revoluções do universo nada podendo agir so bre elas senão Deus que nenhuma das nossas ações é es quecida e tudo é levado em conta até as palavras ociosas ou uma colherada de água bem empregada 147 enfim que 78 tudo deve redundar no maior bem dos bons que os justos serão como sóis 14 e nunca os nossos sentidos nem o nosso espírito gozaram algo parecido com a felicidade que Deus prepara a quem o ama i49 79 Notas 1 Até a edição de Henri Lestienne 1907 as edições do Dis curso seguiam o texto da cópia corrigida por Leibniz e publicada pela primeira vez em 1846 por Grotefend Lestienne segue a cópia completa comparandoa com o manuscrito A presente tradução foi feita a partir da edição revista por Lestienne Paris Vrin 1952 O manuscrito e a cópia corrigida por Leibniz não apresentam este título mas ele foi adotado desde a primeira edição reprodu zindo a expressão usada pelo filósofo para se referir ao texto em uma carta ao Landgrave Ernst de HesseRheinfelds de 111 de fe vereiro de 1686 Recentemente estando em um lugar no qual durante alguns dias não tinha nada a fazer fiz um pequeno dis curso de metafísica sobre o qual ficaria bastante feliz de saber a opinião do senhor Arnauld ed Le Roy Paris Vrin 1966 p 79 Os títulos dos artigos por sua vez correspondem ao sumário en viado a Arnauld em fevereiro de 1686 e presentes no manuscrito Sabemos então de acordo com essas informações que o Discurso foi escrito no fim de 1685 ou janeiro de 1686 Burgelin Commentaire du Discours de Métaphysique de Leibniz Paris PUF 1959 nota que durante os anos de 168485 Leibniz esclare ce sua filosofia em vários textos que publica nos Acta Eruditorum de Leipzig Nova methodus em outubro de 1684 Meditatione de cognitione em novembro entre outros 1685 é por sua vez um ano dedicado à leitura de Malebranche sobretudo o Traité de la Nature et de la Grace e das controvérsias entre Arnauld e Male branche Essa leitura seria segundo uma hipótese de Robinet fundamental para a composição do Discurso de metafisica cujo 80 percurso argumentativo reproduziria o do Tratado de Malebran che cf Robinet Malebranche et Leibniz Paris Vrin 1955 2 Leibniz inicia o Discurso se referindo à noção mais acei ta que possuímos de Deus sem se preocupar em provar a exis tência divina Posteriormente no 23 evocará a clássica prova ontológica de Santo Anselmo retomada por Descartes para mos trar a necessidade de análise de todas as noções inclusive da idéia de Deus a fim de evitar as noções contraditórias como a de número dos números ou a de maior de todas as figuras Aqui Leibniz não procede a essa análise recorre à tradição para definir Deus como um ser absolutamente perfeito Ora dessa maneira o filósofo não atentaria contra o rigor metafísico Certamente es crevendo para Arnauld e o Landgrave Leibniz não via necessida de de explicitar a prova da existência de Deus além disso se pen sarmos que se trata de uma definição apoiada na teologia natural e não na revelação podemos entender o porquê da ausência da prova Leibniz acreditava que a existência de Deus é uma ver dade que pode ser demonstrada racional e universalmente e por tanto é uma idéia inata em que todos os homens podem pensar embora nem sempre o façam Além de ser a mais aceita essa noção de Deus é a mais sig nificativa embora logo em seguida Leibniz dê da perfeição ape nas uma marca negativa não é perfeição o que não é suscetível do último grau o filósofo define Deus por sua absoluta perfeição e portanto positivamente Essa definição é próxima daquela que Malebranche dera em seu Tratado da natureza e da graça Disc I 113 e aparece tam bém na Monadologia 4041 e nos Princípios da natureza e da graça 9 3 Entre as perfeições de Deus Leibniz menciona apenas a ciência e a potência como aliás Malebranche no Tratado da natureza e da graça Disc I 12 Posteriormente e de modo mais sistemático distinguirá na Teodicéia 7 três perfeições a sabedoria do entendimento relacionada à verdade a potên cia que se dirige ao ser e a bondade da vontade dirigida ao bem e na Causa Dei 328 Leibniz distingue entre a gran deza composta pela onipotência e pela onisciência e a bonda de da vontade 81 4 Leibniz apresenta duas razões contra a opinião de que as coisas criadas não são intrinsecamente boas A primeira razão consiste em mostrar que essa opinião é contrária à Sagrada Escri tura Gênesis I 1031 Tratase como ele diz de uma antropo logia não se deve pois concluir a partir dessa alusão que o conhecimento divino é experimental Leibniz sempre se preocu pou em preservar o conhecimento de Deus de qualquer espécie de empirismo o conhecimento divino é sempre um conhecimen to a priori daí que a ciência divina da visão que se refere às coi sas criadas não seja diferente da ciência da simples inteligência do mundo considerado como possível senão pelo fato de con ter o conhecimento reflexivo do decreto de criação Cf Causa Dei 16 Poderseia perguntar sobre a legitimidade de apoiar a filo sofia na revelação o Discurso que abre a Teodicéia é inteira mente dedicado à questão da conformidade entre a fé ou a reve lação e a razão a revelação prolonga a razão de modo que não há nenhuma verdade que seja contra a razão embora possa ha ver verdades acima ou além da razão Mas além disso se Leibniz escreveu o Discurso de metafísica pensando em um leitor como o teólogo Arnauld a referência à Sagrada Escritura era um argumen to forte para justificar sua opinião e como já dissemos não era o único O segundo argumento apresentado por Leibniz mostra que a negação da bondade intrínseca do mundo é contrária à razão as obras trazem a marca do operário 5 Leibniz havia inicialmente escrito bastante semelhante à opinião dos espinosistas alude portanto à tese espinosana se gundo a qual não há criação mas a natureza é o efeito necessá rio do poder e da essência de Deus logo a beleza e a bondade não estão no mundo mas na maneira como os homens que for jam Deus A sua imagem vêem esse mundo Cf Espinosa Ética I proposições 3233 e Apêndice 6 Leibniz introduz aqui duas noções novas para fundamen tar a crítica que fez a Espinosa e a que fará logo em seguida a Descartes o amor de Deus que explicará no artigo 5 e a glória Na Teodicéia 109 Leibniz apresenta dois sentidos para a glória divina a satisfação no conhecimento das próprias perfeições e o conhecimento que os outros têm dessas perfeições Em ambos os 82 sentidos a glória pressupõe a harmonia e o equilíbrio entre os atri butos divinos Deus é louvável porque sabiamente articula seu entendimento que pensa os mundos possíveis sua bondade que escolhe dentre os mundos possíveis o melhor e sua potência que põe o melhor dos mundos na existência Assim o mundo não é o efeito necessário de Deus é escolhido por sua bondade mas por outro lado a vontade não age independente das razões con cebidas pelo entendimento Eis por que para Leibniz a opinião de Descartes que concebe a vontade absolutamente indepen dente de regras da razão é tão perigosa quanto a de Espinosa para quem a vontade não tem lugar Eis por que também dedica rá uma obra inteira a Teodicéia à refutação das falsas razões dos homens que concebem o Criador como um déspota privilegian do a grandeza divina em detrimento de sua bondade ou daque les que o concebem através de antropomorfismos tendendo a balança para o lado da bondade da vontade sem consideração da grandeza Vale notar ainda que não tendo introduzido a bondade da vontade entre as perfeições divinas no artigo 1 Leibniz precisa apresentála aqui para refutar Espinosa e Descartes 7Leibniz havia escrito antes a expressão do senhor Descar tes tratase da teoria da livre criação das verdades eternas cf Descartes Cartas a Mersenne 15 de abril 6 de maio e 27 de maio de 1630 Respostas às quintas objeções Respostas às sextas obje ções Carta a P Mesland 2 de maio de 1644 Carta a Arnauld 29 de julho de 1648 Sobre a crítica de Leibniz Monadologia 46 Para Leibniz Deus cria as existências não as essências embora estas últimas tenham sua realidade no entendimento divino As sim as verdades eternas não dizem respeito à vontade divina e não podem ser alteradas arbitrariamente É por isso que ao agir Deus segue as regras de seu entendimento toda vontade supõe alguma razão de querer razão esta naturalmente anterior à vonta de Leibniz destaca assim a impossibilidade de uma vontade pura que poderia transformarse em seu contrário Ora mas isso não significaria limitar a grandeza divina ou a sua liberdade Contra essas acusações Leibniz insiste por um lado na dependência recíproca dos atributos de Deus Teodicéia 78 116 e 177 e por outro na idéia de que o mundo é criado 83 através de um ato único de vontade e não por infinitas vontades independentes Correspondência entre Leibniz e Arnauld carta de 13 de maio de 1686 O mundo criado de acordo com a sabedoria divina é o me lhor dos mundos e intrinsecamente bom não pela razão formal de ter sido criado por Deus mas porque sua natureza corresponde a uma ordem universal de perfeição que Deus realiza em sua ação 8 Leibniz havia escrito escolásticos modernos e se referia àqueles que como Afonso rei da Castilha cf Teodicéia 193 viam o mal como um fato incontestável no mundo e por isso acreditavam que o mundo em si mesmo não era tão perfeito quan to poderia ser Leibniz aludia certamente a Malebranche Trata do da natureza e da graça Disc I 14 9 Assim como um mal menor tem uma proporção de bem assim também um bem menor tem uma proporção de mal Leib niz repete os argumentos apresentados no 2 10Leibniz havia escrito novos escolásticos o fim da frase foi acrescido à redação primitiva 11 0 erro consiste em 1 considerar cada coisa isoladamen te e não o mundo como um todo isto é a harmonia geral do universo e afirmar a partir de nossa limitada experiência que este não é o melhor dos mundos Cf Teodicéia 9 e 193240 2 Não conceber um grau supremo de perfeição confundindo o maximum com o optimum que convém à perfeição o que con tradiria a definição de perfeição dada no 1 enquanto as imper feições descem ao infinito a perfeição possui um grau supremo Cf Teodicéia 8 3 Imaginar que se Deus cria somente o me lhor então não pode ser livre O princípio de razão é universal se aplica também à ação de Deus assim criar um mundo que não é o melhor seria agir sem razão uma tal liberdade não pode ser uma liberdade verdadeira Assim embora Deus não seja necessi tado não é contraditória a criação de um outro mundo é deter minado a criar o melhor seria um absurdo moral a criação de um mundo menos perfeito o fim e a razão de sua vontade é o me lhor Todos os possíveis têm direito de existir na medida de suas perfeições Monadologia 54 mas nem todos são possíveis em conjunto eis por que Deus precisa escolher e escolhe segundo razões o melhor 84 12Querer o mesmo e não querer o mesmo eis a verdadei ra amizade Essa frase trazida de Cícero De Amicitia foi acres cida posteriormente à redação primitiva 13 0 texto Confessio philosophi 1673 estabelece um para lelo entre a república universal dos espíritos e as repúblicas hu manas A imagem política que caracteriza Deus como o monarca de uma república universal cujo fim é a felicidade dos espíritos é utilizada em muitos textos de Leibniz para introduzir o aspecto moral da criação cf nota 133 Cf Discurso de metafísica 36 Monadologia 8490 Princípios da natureza e da graça 15 14Cícero De fato IX 17 XII 27a XIII 30 A crítica ao so fisma da razão preguiçosa aparece também na Teodicéia Prefá cio e 5558 15Não podemos conhecer os desígnios particulares de Deus mas em nosso limite de criaturas finitas podemos presumir o que Deus quer e agir imitando o Criador buscando o melhor no caso dos homens será o aparentemente melhor já que temos uma perspectiva limitada do todo 16Todas essas imagens cinco exemplos tirados de obras humanas visam esclarecer a partir da noção de ser absolutamen te perfeito dada no 1 o princípio geral da conduta divina a sa ber a busca da obra mais rica pelos meios mais simples Em De rerum originatione radicali Leibniz denomina esse princípio de conduta divina matemática divina ou mecanismo metafísico do qual se segué a perfeição metafísica do mundo criado ou o má ximo de realidade possível perfeição esta que deve estar conju gada com sua perfeição moral derivada da bondade da escolha divina ou a máxima felicidade possível para os espíritos Leibniz descreve de maneira mais geral o princípio que leva à escolha do melhor na Teodicéia 89 na Monadologia 53 55 nos Princípios da natureza e da graça 912 17Todas as criaturas possuem um elemento de passividade fonte de sua limitação que se exprime pelo volume e um ele mento de atividade Nos espíritos a atividade é preponderante por isso são as criaturas mais perfeitas A atividade se exprime nas percepções claras mas como as percepções claras de umas substâncias correspondem às percepções confusas de outras to das se impedem mutuamente ou se estorvam O impedimento 85 mútuo é correlato à entreexpressão das substâncias a essência de cada uma é uma expressão do todo mas sua natureza é limitada nenhuma substância pode ter uma percepção clara da totalidade do universo 18Essa formulação levou muitos comentadores a pensarem a simplicidade das vias e a riqueza dos efeitos como um par em tensão na fábrica do melhor dos mundos possíveis Na Teodicéia fica claro porém que há uma interação e não uma oposição en tre a ordem ou a simplicidade das leis da natureza e a variedade dos efeitos Em outras palavras uma enorme variedade de fenô menos não implica um mundo cujas leis que compõem a ordem sejam complexas e menos perfeitas que leis mais simples Um mundo mais perfeitamente variado não é necessariamente um mundo imperfeitamente ordenado O princípio de simplicidade das vias e da riqueza de efeitos nos remete a Malebranche cf Tratado da natureza e da graça Disc I 1719 mas para Leibniz as vias também fazem parte do desígnio divino assim os meios são fins as regras que Deus se gue para a criação do mundo e que geram as leis desse mundo são desejadas não apenas pelo que fazem mas também pelo que são Teodicéia 208 19Existir é ser ordenado Todos os acontecimentos do mun do estão no interior da ordem universal criada pela ação de um Deus que não poderia agir sem seguir regras Assim o extraordiná rio é aquilo que ultrapassa a compreensão humana Podese di zer que há uma diferença de grau mas jamais uma diferença de natureza entre o que chamamos de ordinário e o que denomina mos extraordinário Leibniz estabelece uma espécie de hierarquia entre as leis do mundo a que correspondem ordens de perfeição num primeiro plano temos leis que guardam alguma universalidade mas que compõem a ordem mais grosseira do sensível Os animais estão restritos a essas leis e nós mesmos em três quartas partes de nos sas ações nos reduzimos a elas quando julgamos as coisas se guindo o princípio da memória que se fundamenta em impres sões deixadas por fatos de acordo com a intensidade ou freqüên cia das percepções anteriores e não em um conhecimento das causas dos fenômenos Acima dessas temos as chamadas leis su 86 balternas da natureza com uma universalidade mais abrangente que as primeiras porém ainda compreensíveis por nosso enten dimento finito Essas leis fundamentam a nossa ciência assegu randolhe certeza moral podemos prever os fenômenos futuros a partir dos fenômenos passados seja por causa de uma hipótese que tenha obtido êxito até o presente seja por uma relação habi tual observada entre certos fenômenos e assim regular a nossa conduta Finalmente temos as leis universalíssimas que com põem a ordem metafísica de todos os fenômenos são as leis es senciais da série de coisas que constitui o mundo nelas estão compreendidos inclusive os milagres e as ações livres que asse guram por meio de uma infinidade de relações causais a ocor rência de cada fato singular Cf Verdades necesarias y contin gentes in Escritos Filosoficos Ed Olaso Buenos Aires Char cas 1982 pp 32838 Edição original Couturat L Opuscules et fragments inédits de Leibniz Paris 1903 Hildesheim Olms 1961 pp 1624 20Desde 1680 com a publicação do Tratado da natureza e da graça de Malebranche o tema do milagre era objeto de uma polêmica entre Malebranche e Arnauld Para o primeiro cf Tra tado da natureza Disc I 18 as leis da natureza são constan tes e imutáveis valem para qualquer tempo ou lugar Arnauld opunha a ele então a possibilidade dos milagres Leibniz acen tua a posição de Malebranche afirmando que todos os aconteci mentos do mundo são conformes à ordem universal mas preten de ultrapassar as colocações de Malebranche por considerar seu sistema das causas ocasionais um milagre perpétuo Cf adiante Discurso de metafísica 16 e 29 Para Leibniz o milagre não é explicado nem por sua rarida de nem como expressão de nossa ignorância ou incapacidade de conhecer as leis universalíssimas do mundo O que diferencia um milagre e um evento natural é o fato daquele não encontrar sua razão suficiente nas leis da natureza é um evento que ultrapassa as forças de qualquer criatura sua razão suficiente é Deus 21A distinção entre vontades gerais e particulares é resolvi da pelo filósofo como as distinções apresentadas anteriormente não há uma oposição absoluta e as vontades divinas são sempre conformes à ordem Na Teodicéia Leibniz desenvolverá esse te 87 ma da vontade divina utilizandose de outra terminologia A von tade divina sofre uma dupla distinção dividese em vontade an tecedente e conseqüente e em vontade permissiva e produtiva E produtiva com respeito aos próprios atos e permissiva em relação aos atos alheios pode ser lícito não impedir o que é ilícito pro duzir se o objeto da permissão for o ato e não o produto da ação em questão A faculdade da vontade é antecedente quando é pré via ou inclinante e nesse caso é incompleta ou relativa visto que se dirige a algum bem em si de modo particular ou de acor do com o grau de bondade do objeto É conseqüente quando é plena e absoluta quando contempla a totalidade e não um bem particular e contém a determinação final sendo por isso decre tória isto é porque resulta de todas as vontades inclinantes sem pre produz seu efeito pleno Podemos dizer que Deus quer an tecedentemente o bem e conseqüentemente o melhor Teodicéia 23 já que a vontade antecedente é uma vontade isolada de um bem que seria eficaz per se se não houvesse uma razão mais for te que a impedisse e a vontade conseqüente é o resultado do con flito de todas as vontades antecedentes e é o equilíbrio do concur so de todas elas de modo que as vontades antecedentes têm al guma eficácia Mas no limite Deus não tem nenhuma vontade particular primitiva Ele não faz nada sem razão ele não tem ne nhuma vontade em relação a acontecimentos individuais que não seja uma conseqüência de uma verdade ou de uma vontade ge ral Teodicéia 206 Assim de acordo com seu primeiro decre to escolher o melhor mundo possível para a glória divina a vontade produz em um único decreto conseqüentemente por tanto após reflexão o conjunto optimum do universo Cf Cau sa Dei 1828 22Esta frase como o restante do artigo acrescentada poste riormente traz dois problemas de redação as ações das outras criaturas certamente um erro e com as quais Deus quer con correr Deus concorre para as ações das criaturas racionais no sentido ordinário através da conservação delas em sentido ex traordinário através da distribuição de graças mas Deus não po deria concorrer para as ações más apenas permitilas a causa das más ações é a liberdade da criatura não Deus 23Alusão a Malebranche para quem somente Deus é causa eficiente e as criaturas constituem apenas ocasiões para a mani 88 festação da causalidade divina La Recherche de la verité livro VI parte I cap III e a Descartes que afirma que Deus assegu ra a mesma quantidade de movimento força na leitura leibni ziana no mundo mas que cabe às criaturas modificar a direção desse movimento imprimindolhe uma determinação particular Principes II 3644 Para Leibniz ambas as teses podem ser admitidas mas para mostrar isso e distinguir as ações de Deus e as das criaturas é preciso antes explicar o que é uma substân cia individual A teoria leibniziana da substância individual é constituída a partir de reflexões trazidas da lógica a partir da análise de no ções e proposições a substância é pensada como o sujeito de uma série de predicados da matemática a idéia de uma soma fi nita de infinitos termos que se encadeiam segundo uma lei deter minada leva a pensar a substância como dotada de infinitos pre dicados da física a partir do estudo do movimento e da maté ria a substância é pensada como a unidade real de ser e de ação e finalmente da teologia a substância individual é uma alma e no caso dos seres racionais espírito que participa de um reino moral cujo monarca é Deus Essas perspectivas da teoria da substância individual são interdependentes umas das outras No Discurso de metafisica o filósofo privilegia o aspecto ló gico da teoria da substância individual mas antes de fornecer a definição propriamente lógica da substância ao apresentar a ques tão a partir do desacordo entre Malebranche e Descartes afirma que as ações e paixões pertencem propriamente às substâncias individuais O problema que pretende enfrentar com essa afirma ção diz respeito ao estatuto ontológico das criaturas com efeito a definição moderna de substância como um ser que existe em si e por si é concebido corre o risco de levar à afirmação de que Deus é a única substância É para evitar o espinosismo que Leib niz inicia o artigo dizendo que as ações e paixões pertencem pro priamente às substâncias individuais Não por acaso textos pos teriores como os Princípios da natureza e da graça em que Leib niz abandona o ritmo binário que caracteriza o Discurso de meta física de Deus às substâncias individuais e do mundo à união dos homens com Deus se iniciam com a afirmação de que a substância é um ser capaz de ação 89 Este artigo do Discurso de metafisica apresenta portanto as duas marcas fundamentais da definição de substância que leva riam posteriormente o filósofo ao conceito de mônada pensada na linha da ousia aristotélica como suporte de ações a substân cia é um ser capaz de ação como sujeito de predicados é a uni dade de uma multiplicidade cf Monadologia 14 0 estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na uni dade ou na substância simples não é outra coisa senão aquilo que se chama de Percepção 15 a Ação do princípio interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a outra pode ser chamada Apetição 24A definição de substância como sujeito último de predi cados Aristóteles Categorias V é correta mas porque não for nece a razão de possibilidade da noção é apenas nominal cf Dis curso de metafsica 24 Vale notar que como ao tratar de Deus 1 Leibniz parte aqui da noção mais aceita de substância in dividual 25Tendo passado à realidade efetiva toda predicação ver dadeira tem algum fundamento na natureza das coisas Leibniz pode estabelecer uma relação entre as leis lógicas e a estrutura do real e passar de uma definição nominal para uma definição real A inclusão do predicado no sujeito que define a verdade não é uma simples atribuição a natureza das coisas é essa identidade o sujeito é a razão de seus predicados 26 que nesse caso todo indivíduo é uma espécie ínfima Suma Teológica I 50 art 4 Esta frase sobre São Tomás foi acrescentada posteriormente à redação primitiva N da R Tratase do princípio dos indiscerníveis para o qual a dife rença numérica é inútil A diferença deve ser intrínseca se se quer alcançar o singular N da T Cf Carta a Arnauld 414 de julho de 1686 Monadologia 89 Princípios da natureza e da graça 2 N da R 27Sobre a teoria da expressão Carta a Arnauld 9 de outu bro de 1687 e Quid sit idea 28A concepção leibniziana de substância tal como foi defi nida nos artigos 8 e 9 reintroduz a noção escolástica de forma substancial Segundo a tradição aristotélicotomista os seres são compostos de matéria e forma a forma princípio ativo do com 90 posto substancial é uma natureza comum aos indivíduos de uma mesma espécie é a matéria que distingue os indivíduos de mes ma forma Para Leibniz diferentemente a forma substancial é em si mesma individual Com a noção de forma substancial Leib niz pode pensar a substância não apenas como unidade 8 mas também como unidade de ação Ao retomar as formas substanciais tão desacreditadas Leib niz sublinha seu respeito pela tradição pessoas hábeis reco mendáveis pela sua santidade e ao mesmo tempo marca a di ferença entre sua própria filosofia e a tradição não se afastam tanto da verdade Sobre o tema das formas substanciais Correspon dência entre Leibniz e Arnauld cartas de 414 de julho de 1686 28 de novembro8 de dezembro de 1686 30 de abril de 1687 9 de outubro de 1687 De primae philosophiae emendatione Sistema novo da natureza 211 entre outros 29Leibniz se filia aqui aos partidários do mecanicismo a Galileu e Descartes Leibniz não pode recusar a inteligibilidade da física cartesiana mas ao mesmo tempo considera que o fun damento dos fenômenos físicos deve ser remetido às formas à unidade substancial ativa Assim não dá autonomia à ciência seu fundamento é metafísico mas critica o abuso de escolásticos e médicos do passado tais como Avicena Paracelso Van Hel mont a quem se refere quando fala mais abaixo de arquê entre outros que atribuíam uma forma substancial distinta a cada fun ção corporal querendo explicar através delas os fenômenos em particular 30 Os dois exemplos utilizados por Leibniz se referem aos dois labirintos da razão humana o labirinto da composição do contínuo no plano matemático e o labirinto da liberdade e da ne cessidade no plano moral O primeiro a dificuldade de se conce ber a divisibilidade ao infinito de uma grandeza finita diz Leib niz interessa apenas aos filósofos o segundo a dificuldade de conciliar a liberdade humana com a presciência e a providência divinas a todo o gênero humano mas ambos se referem ao pro blema do infinito e são resolvidos através da idéia de infinito atual De qualquer modo os exemplos são evocados para mostrar que mesmo as questões cujo fundamento se encontra na metafísica podem ser resolvidas na prática ou através da experiência sem o 91 recurso a esse fundamento Daí a necessidade de dissociar os pla nos da prática e da ciência que lidam com fenômenos do plano metafísico embora este dê a razão daqueles 31Termo jurídico que indica o direito de um cidadão bani do de voltar a seu país 32A reabilitação das formas substanciais vimos não se dá sem o reconhecimento de que elas são conceitos metafísicos que não devem ser empregados na explicação dos fenômenos parti culares Além disso Leibniz modifica a doutrina tradicional a for ma substancial é uma essência individual e não algo comum aos indivíduos de uma mesma espécie e é uma força ativa e não uma potência 33 Para mostrar a necessidade de se manterem as formas substanciais Leibniz faz uma crítica à noção cartesiana de exten são insuficiente para explicar a natureza do corpo Certamente a extensão faz parte da natureza do corpo mas em primeiro lugar não pode constituir a essência do corpo Leibniz não desenvolve aqui mas considera que a extensão não explica a inércia nem o movimento dos corpos e não pode constituir a unidade que de fine a realidade dos seres Em segundo lugar a extensão não pode ser considerada uma substância já que não é uma noção distinta que possa ser conhecida através de seus elementos e graças ao quê se poderia atribuir uma independência a ela daí Leibniz des prezar a diferença que Descartes estabelecia entre qualidades tais como cor calor etc e a extensão Todas essas qualidades são para Leibniz qualidades sensíveis e portanto relacionadas ao mo mentâneo que caracteriza a percepção ao passo que a substância é da ordem do inteligível e deve garantir a unidade e a identida de através do tempo Eis por que para explicar a natureza dos cor pos é preciso reconhecer algo relacionado com as almas e que vulgarmente se denomina forma substancial Cf Sistema novo da natureza 3 34Todo o fim do artigo foi acrescentado posteriormente So bre a tema da hierarquia do seres Discurso de metafisica 3436 Correspondência entre Leibniz e Arnauld cartas de 30 de abril de 1687 de 9 de outubro de 1687 de 23 de março de 1690 Sistema novo da natureza 5 e 8 Monadologia 1830 e 8285 Princípios da natureza e da graça 45 e 1415 92 35 É precisamente o enunciado deste artigo 13 que gera a polêmica entre Arnauld e Leibniz encontro nestes pensa mentos tantas coisas que me assustam e que se não estou enga nado quase todos os homens acharão tão chocantes Darei como exemplo apenas o que é dito no artigo 13 Carta de Arnauld ao Landgrave 13 de março de 1686 36Retomando a definição de substância do 8 Leibniz enun cia o problema a que Arnauld se referiu na Correspondência aparentemente gerado por sua teoria da substância Resumidamen te tratase da exclusão das idéias de liberdade e contingência em favor do fatalismo A primeira e insuficiente resposta oferecida por Leibniz está na distinção entre o certo e o necessário ou en tre a presciência divina e a determinação dos acontecimentos A previsão dos futuros contingentes não os torna necessários Deus prevê desde toda a eternidade as existências possíveis como con tingentes Sobre o tema dos futuros contingentes e a reconstrução feita por Leibniz do problema clássico e sua resposta a ele Teodicéia 3453 37 Leibniz recoloca o problema já que a solução oferecida anteriormente era apenas provisória a previsão divina não torna necessários os futuros contingentes mas a causa dessa presciên cia é a noção completa de cada substância individual O fato de o sujeito conter todos os seus predicados parece indicar uma deter minação absolutamente necessária A resposta está na distinção entre uma conexão necessária e uma conexão necessária ex hipo thesi se qualquer sujeito contém todos os seus predicados isto é se toda proposição verdadeira é analítica essa relação entre o su jeito e o predicado é necessária quando uma afirmação contrária implica contradição mas será contingente se outros predicados forem igualmente possíveis Assim definido o círculo é necessá rio que seus raios sejam todos iguais é impossível que assim não seja sem destruir a noção mesma de círculo Eis por que essa é uma verdade eterna ou uma verdade de razão Mas não é neces sário que um fato contingente tenha lugar no mundo a determi nação dos futuros contingentes é condicional e envolve a hipóte se de uma série de causas que precisam existir para que o fato se efetive 93 A origem das conexões necessárias é o entendimento divino que concebe essências ou idéias absolutamente puras a ori gem das conexões contingentes é a vontade de Deus que põe existências livremente inspiradas pelo princípio do melhor Uma proposição necessária pode ser conhecida pela análise de uma possibilidade lógica enquanto uma proposição contingente é in demonstrável pois exigiria uma análise infinita já que pressupõe a totalidade do mundo criado e o conhecimento dos mundos possíveis não realizados pressupõe em última instância um co nhecimento pleno de Deus e do ato de criação 38 Leibniz ilustra através deste exemplo histórico a argu mentação que oferecera anteriormente o filósofo enuncia primei ramente o problema a noção de substância individual e a afirma ção de liberdade parecem incompatíveis dá uma resposta insu ficiente recorrendo aos futuros contingentes e mostrando que a presciência divina não torna a ação de César necessária recolo ca o problema prefiro resolver as dificuldades a escapar de las e responde aplicando ao caso de César a distinção das co nexões Mostra assim como a vida de César corresponde a uma conexão contingente ou necessária ex hypothesi que depende de um ato de vontade divina inspirado pela consideração do melhor e não por necessidade lógica e da vontade de César que como todos os homens age de acordo com o que lhe parece melhor 39Uma proposição contingente não pode ser demonstrada através da análise demonstrála seria mostrar a razão suficiente de ter ocorrido um fato em lugar de outro Por isso Leibniz pre fere usar mostrar a razão voir la raison quando se refere às verdades de fato Razoável aqui se opõe portanto a necessário Embora escreva a demonstração deste predicado de César para estabelecer a diferença entre as verdades da geometria em que a relação entre sujeito e predicado é absolutamente necessária e as verdades contingentes e assim matizar a comparação que fi zera no início do artigo entre uma noção individual e a natureza do circulo Leibniz recorre à demonstração de necessidade para se referir às verdades de razão e prova a priori para falar das verdades de fato 40 A criação por si só não implicaria a dependência cons tante das criaturas em relação a Deus mas uma vez que a cria 94 ção é contínua isto é Deus cria e conserva as criaturas no ser essa dependência é manifesta Daí Leibniz falar em emanação embora o termo tradicionalmente se oponha à criação na Mona dologia o filósofo fala em fulgurações contínuas O termo ema nação em sentido leibniziano visa indicar que a diferença entre criação e conservação é apenas extrínseca cf Teodicéia 385 e assim marcar a continuidade da ação de Deus 410 ato original da criação pode ser apresentado em forma matemática As figuras geométricas são engendradas em número infinito por deslocamentos insensíveis que seguem uma lei de continuidade Assim a secção de um cone por um plano que se desloque continuamente e de modo insensível por exemplo gera uma infinidade de círculos elipses e parábolas Do mesmo modo Deus observando o sistema geral dos fenômenos que decide criar a partir de todos os infinitos pontos de vista possíveis atra vés de transições insensíveis faz corresponder a cada uma des sas perspectivas uma substância individual Cada substância é pois uma visão divina sobre a totalidade do universo eis a um só tempo a semelhança da criatura perspectiva divina com Deus e logo o valor absoluto da percepção e sua limitação uma entre as infinitas perspectivas 42 Pelo princípio dos indiscerníveis não pode haver identi dade de percepções cada um vê e age à sua maneira embora todos vejam o mesmo mundo A diversidade de pontos de vista não impede todavia a comunicação em linguagem prática já que todas as substâncias exprimem todas as outras em linguagem metafísica A entrecorrespondência dos fenômenos ou a entreex pressão é pois a outra face do impedimento mútuo entre as subs tâncias cf Discurso 5 nota 17 há um acomodamento entre to das as substâncias ou uma harmonia universal donde a extensão de cada substância que percebe o infinito e sua limitação só co nhece a totalidade do mundo confusamente cf Princípios da na tureza e da graça 13 cada alma conhece o infinito conhece tudo mas confusamente Sobre a teoria leibniziana da expressão Carta a Arnauld 9 de outubro de 1687 e Quid sit idea 43Em sentido estrito ou em linguagem metafísica não há paixão entendida como ação de uma substância sofrida por ou tra O vocabulário que opõe paixão e ação corresponde ao nível 95 fenomenal ou à linguagem prática porque no plano substancial a paixão deve ser entendida como um grau menor de distinção da percepção ou como uma percepção confusa Ação e paixão são limites de uma variação nos graus de percepção assim como são limites a distinção e a confusão das percepções cf Discurso 2425 44 Cf Discurso de metajisica 32 45 0 manuscrito continha uma longa passagem em que Leibniz procurava conciliar a linguagem metafísica com a lingua gem prática a respeito das paixões O trecho foi suprimido certa mente porque o tema reaparece no artigo seguinte 46 Cf nota 42 As substâncias se limitam reciprocamente porque cada uma é um ponto de vista particular que pressupõe todos os outros para se definir assim podese dizer que uma per cepção clara para uma substância será mais ou menos obscura para todas as outras e viceversa Entre as percepções das subs tâncias há uma diferença de expressão Em linguagem prática uma ação ou percepção clara de uma substância corresponde a uma paixão de outra de modo que tudo é harmônico no mundo 47Cf nota 43 48 0 prazer que em si mesmo é signo de perfeição pode se revelar no correr do tempo e de acordo com a ordem geral que governa o mundo como um mal Cf Teodicéia 33 49Leibniz retoma a discussão sobre o milagre apresentada no 7 mas agora de um ponto de vista restrito o da teoria da substância individual Tratase pois de entender a relação entre o milagre e a lei de desenvolvimento que caracteriza uma subs tância individual e não entre o milagre e as leis gerais do univer so Mas como a substância individual exprime a ordem universal a solução não difere daquela do 7 como toda intervenção so brenatural de Deus está em conformidade com a ordem geral do universo essa ação extraordinária está compreendida na substân cia individual Ora então o risco é reduzir o sobrenatural ao na tural Embora o universo leibniziano seja criado segundo uma na cionalidade abrangente e nada aconteça fora da ordem universal o que indica uma inteligibilidade plena do mundo ainda que para o homem essa inteligibilidade não se dê de fato ela é pen sada de direito Leibniz não abre mão da distinção entre o natu 96 ral e o sobrenatural mesmo que essa distinção seja apenas uma diferença de grau Por isso distinguirá no fim do artigo a essên cia ou idéia e a natureza ou potência da substância individual 50A relação causaefeito é entendida aqui no interior da re lação de expressão Fisicamente devese dizer que há uma equi valência entre a causa plena e o efeito inteiro Assim porque a substância exprime Deus como o efeito exprime a causa exprime também os milagres ou atos livres divinos que estão acima das leis subalternas que o homem é capaz de compreender O mila gre não pode ser relacionado à substância individual como causa embora esteja compreendido na expressão individual de cada substância porque a potência da substância individual que se ex prime como força é limitada na ordem das máximas subalternas o milagre é um efeito que ultrapassa as forças de qualquer subs tância criada e dessa maneira derroga o princípio físico de equi valência entre causa e efeito 51 0 exemplo de máxima subalterna escolhido por Leibniz não é um exemplo qualquer mas aquele que o opõe ao cartesia nismo Este 17 reproduz em certa medida um texto publicado por Leibniz no Acta eroditorum em 1686 Brevis Demonstratio er roris memorabilis Cartesii Traduzido ainda em 1686 para o fran cês pelo abade Catelan e publicado em Nouvelles de la Républi ques des Lettres o texto foi objeto de uma pequena polêmica en volvendo também Malebranche Leibniz reproduz sua argumenta ção em uma carta a Arnauld de 14 de julho de 1686 Entre os estudos críticos sobre a noção de força em Leibniz Guéroult Dynamique et Métaphysique leibniziennes Paris Les Belles Lettres 1934 e Belaval Leibniz critique de Descartes cap 7 Paris Gallimard 1960 52Alusão a Descartes e à teoria que desenvolve na segun da parte dos Princípios essa famosa regra é o fundamento do mecanicismo cartesiano é a primeira lei da natureza cf Princí pios II 3637 53Embora Leibniz considerasse desde os seus trabalhos so bre o assunto como Theoria motus concreti e Theoria motus abs tracti ambos de 1671 que a extensão não podia dar conta da in dividualidade de cada corpo e de certas qualidades dos corpos como a impenetrabilidade e por isso não podia ser a essência do 97 corpo nem substância ele aceitava no conjunto os princípios ge rais do mecanicismo de Descartes e Gassendi O princípio de conservação do movimento era então plausível para o filósofo porque podia ser exprimido matematicamente de acordo com a nova ciência 54 Cf Descartes Princípios II 43 A razão composta é o produto da massa pela velocidade mv 55 Leibniz considera que Descartes identifica falsamente força e quantidade de movimento e assim opõe sua tese sobre a conservação da força à tese cartesiana A força é de uma nature za diferente da quantidade de movimento ela é uma noção me tafísica Leibniz não pode abdicar porém da aquisição da ciência moderna o mecanicismo garante a expressão matemática dos fe nômenos A força viva aquela que supõe o movimento pode ser exprimida matematicamente como o produto da massa do corpo pelo quadrado da velocidade mv2 de acordo com o efeito que ela pode produzir tal como fica claro no fim deste artigo Leibniz oferece aqui duas razões que justificam o princípio de conservação da força e não da quantidade de movimento no mundo Em primeiro lugar é razoável ou seja não é matemati camente necessário mas é conforme à necessidade moral da or dem do melhor Em segundo lugar quando se presta atenção nos fenômenos se constata pelos fatos e a posteriori o erro de Descartes porque a experiência mostra que não há movimento perpétuo tal como supunha o princípio cartesiano enquanto de sua parte a força é conservada quando um corpo a transmite a outros corpos contíguos ou a suas partes móveis Assim Leibniz entende que a força e não o movimento se conserva e por isso corresponde a algo de real 56Para demonstrar sua tese Leibniz utiliza dois axiomas co mumente admitidos O primeiro um corpo caindo de uma certa altura adquire a força para subir novamente se não houver impe dimentos externos foi explicitamente formulado por Christian Huygens em um texto Règles du mouvement dans la rencontre des corps publicado no Journal des savants em 18 de março de 1669 e no Horologium oscillatorium de 1673 0 segundo é ne cessária tanta força para elevar um corpo de 1 libra à altura de 4 toesas quanta para elevar um corpo de 4 libras à altura de 1 toe 98 sa foi formulado por Descartes em um pequeno tratado de me cânica que enviou como apêndice de uma carta a Constantin Huy gens em 5 de outubro de 1637 Explication des engins par laide desquels on peut avec une petite force lever un fardeau fort pesant 57Segundo o princípio de Galileu Discorsi e demonstrazio ni matematiche de 1638 a velocidade é igual à raiz quadrada da altura portanto para o corpo A cuja altura é 4 a velocidade é 2 para o corpo B cuja altura é 1 a velocidade é 1 58 Leibniz conclui não apenas afirmando a distinção entre força e quantidade de movimento mas atribuindo à força uma ex pressão matemática cf nota 55 A partir dessa demonstração Leibniz mostra também que além das propriedades mecânicas os corpos têm uma realidade metafísica a força Diferentemente da extensão que exprime ape nas um estado presente a força pode durar Eis os fundamentos para a formulação futura do conceito de mônada o mundo é constituído por unidades de força 59Leibniz define agora a natureza da noção de força intro duzida no 17 cuja importância abrange a física estabelecendo a verdadeira lei dos fenômenos que não pode ser o movimento a mecânica esclarecendo as verdadeiras leis do movimento sobre tudo a lei do choque contra Descartes e Malebranche e a meta física o fundamento do mecanicismo e das leis do movimento é a doutrina da substância e não a extensão Para caracterizar a for ça Leibniz afirma primeiramente que enquanto o movimento considerado formalmente como mudança de lugar cf Descartes Princípios II 2530 é apenas relativo isto é não pode ser atri buído a um corpo de preferência a outro a força possui um cará ter absoluto porque é o fundamento do movimento O movimen to é uma relação variável de distância e portanto extrínseca ao corpo que se move Mas enquanto mudança de lugar o movi mento indica uma mudança interna e portanto um princípio in terno de espontaneidade de modo que um corpo que se move não apenas muda de lugar mas tem uma tendência a se mover Cf tb Objeção de Moms a Descartes Cartas de Morus a Descar tes 5 de março de 1649 23 de julho de 1649 60Leibniz indica em segundo lugar que a natureza da for ça não pode ser definida pela extensão e suas modificações e que 99 a força corresponde pois a um princípio de ordem metafísica Se o movimento é em seu fundamento mudança e não simples des locamento isto é se a força é a causa próxima do movimento então é preciso pensar uma causa capaz de produzir o efeito mo vimento a noção de força se aproxima da noção de forma subs tancial mas não deve ser pensada como simples potência e sim como enteléquia que envolve a espontaneidade de uma tendên cia de sorte que a ação tem lugar se nada impedir cf Monado logia 10 e 18 61Assim Leibniz pretende conciliar a explicação mecânica do mundo isto é a ciência dos modernos com a metafísica dos antigos há dois planos harmônicos ou duas ordens ou seja to dos os fenômenos da natureza podem ser explicados matematica mente ou geometricamente pela ciência mas seu fundamento é metafísico o que satisfaz as pessoas inteligentes e bem intencio nadas tais como Arnauld para as quais a explicação puramente mecânica do mundo poderia significar explicar tudo pela matéria sem consideração da piedade 62Após recorrer à noção de força como fundamento dos fe nômenos Leibniz trata da finalidade como princípio de explica ção deles Introduz a necessidade do recurso às causas finais na explicação do mundo por oposição aos partidários do mecanicis mo cujas perigosas conseqüências se remetem a uma concepção da criação que ao negar a finalidade vê uma necessidade abso luta ou uma vontade arbitrária na origem do mundo e portanto como mostrara no 2 do Discurso nega a bondade e a glória de Deus Leibniz alude pois a Descartes para quem Deus não se gue nenhuma regra de bondade na criação do mundo e a Espi nosa para quem não há criação já que o mundo é o efeito ne cessário da causalidade divina Cf notas 4 5 e 6 63 Depois de justificar sua tese por uma razão a priori de ordem teológica Deus age sempre conforme o melhor e o mais perfeito então o mundo deve manifestar em sua ordem a finali dade da ação divina Leibniz responde a uma possível objeção a saber é impossível determinar os fins de Deus e portanto recor rer a eles na explicação dos fenômenos A objeção perde seu sentido se não se pretende explicar um fenômeno particular pelo recurso à finalidade nem se imagina que Deus se propôs fins 100 particulares Deus se propôs um único fim o melhor dos mundos possíveis e não age de acordo com vontades isoladas assim devese explicar pela finalidade a ordem geral do mundo e não os fenômenos particulares 64 Deus cria o mundo para sua glória e não para nós por isso cria um mundo harmônico isto é uma variedade de seres unidos em uma ordem um mundo composto apenas por espíri tos seria um mundo pobre Todavia em certo sentido podemos nos considerar como fins da criação já que o universo inteiro diz respeito a nós na medida em que o exprimimos isso decorre do 14 que afirma a entreexpressão das substâncias da teoria leib niziana da substância que a faz um centro de perspectiva do uni verso inteiro e principalmente do fato de os espíritos exprimi rem melhor Deus que as demais criaturas cf 15 e 36 65 A segunda razão que Leibniz oferece para justificar sua tese é uma razão a posteriori a admirável estrutura dos animais exemplifica a finalidade da sabedoria divina porque ilustra a har monia a conformidade das partes e do todo etc Por isso Leibniz se opõe em seguida aos partidários de um puro mecanicismo como Hobbes e Gassendi O absurdo de uma concepção estrita mente mecanicista se mostra para Leibniz nas suas conseqüên cias a pura necessidade da matéria ou o simples acaso que são inconciliáveis com a afirmação metafísica da existência de Deus 66 0 princípio físico da equivalência entre a causa plena e o efeito inteiro deve ser pois entendido universalmente Os dois exemplos o do olho e o da conquista de uma praça visam mos trar o absurdo de uma explicação estritamente mecânica A ciên cia deve interpretar os fenômenos mecanicamente mas não pode deixar de se referir à metafísica como seu fundamento e portan to à inteligência ordenadora divina Conhecer a causa ou dar a razão de algum fenômeno para Leibniz é introduzir finalidade e inteligência 67Leibniz cita esta passagem do Fédon 97b99c em vários escritos Resumo do Fédon de 1676 Carta sobre a utilidade de umprincípio geral na explicação das leis da natureza de 1687 Resposta ás reflexões de Régis 1697 Há duas seitas de naturalis tas A passagem aqui citada é tirada deste último texto Leibniz faz uma tradução livre e com lacunas 101 68Para reafirmar a importância da consideração das causas finais em física Leibniz desenvolve dois exemplos um sobre as leis do movimento e outro sobre fenômenos ópticos que se apóiam em textos já publicados No primeiro exemplo que se remete ao texto Theoria motus abstracti de 1671 e à polêmica dos anos de 1686 e 1687 em torno do texto Brevis demonstratio erroris memo rabilis Cartesii Leibniz critica a definição das leis do movimento com base exclusivamente nas noções geométricas de extensão e deslocamento tal como faz Descartes Princípios II 2353 Para Leibniz o mecanicismo cartesiano leva a supor que no cho que um corpo pode comunicar velocidade a outro sem perder a sua própria além disso leva à suposição de que nem sempre há um sistema equilibrado na natureza de maneira que o princípio da equivalência entre a causa plena e o efeito inteiro não seria sempre respeitado Assim se mostra imprescindível para explicar essas regras fundamentais da mecânica que são as leis do choque e a formação de um sistema equilibrado o recurso a um princí pio de ordem metafísica a saber o decreto da sabedoria divina de conservar sempre a mesma força e mesma direção no total A força é a capacidade de passar à ação e produzir um efeito futu ro a direção é a determinação do movimento cf Carta a Ar nauld 30 de abril de 1687 A conservação da força cf Discurso 17 e da direção mostram que Deus se preocupa com a totalida de das coisas e que estas correspondem portanto a um fim 69 Ensaio de Dinâmica sobre as leis do movimento Cor respondência com Clarke Para compreensão maior consultemse os Escritos matemáticos nas obras completas edição Carl Ger hardt N da T Leibniz considera que também na catóptrica e na dióptrica as leis da óptica podem ser deduzidas de um princí pio metafísico a saber o decreto de Deus produzir sempre o efeito pelas vias mais simples e determinadas do que falará no artigo seguinte 70 Leibniz justifica a preferência pela via das causas finais mais fácil com o exemplo das leis de óptica já citado no arti go anterior a lei da refração descoberta por Snellius Snellius 15911626 era professor de matemática na Univer sidade de Leyden e deixou um manuscrito encontrado após sua morte que continha o enunciado e a demonstração das leis da 102 refração Leibniz considera que Snellius aplicava ao estudo da re fração dióptrica o que os antigos usaram no estudo da reflexão catóptrica a saber o princípio da simplicidade segundo o qual a luz procura o caminho mais simples o que na catóptrica leva A igualdade dos ângulos de incidência e reflexão e na dióptrica à constância da relação entre os senos dos ângulos de incidência e refração se a luz muda de meio e encontra uma resistência maior ou menor a lei dos senos é a mais determinada ou a mais sim ples porque a proporção dos senos é a proporção da resistência dos meios Para Leibniz a descoberta de Snellius confirma a im portância da consideração das causas finais 71Heliodoro de Larissa era um matemático grego que apro ximadamente entre os séculos III e IV aC compôs um tratado de óptica depois em 1657 editado em Paris Opticorum Libri II 72 Fermat conhecia através de Mersenne a Dióptrica de Descartes antes de sua publicação em 1637 e escreveu uma críti ca da demonstração cartesiana a Mersenne que comunicou a Des cartes tendo se iniciado a partir de então uma troca de cartas Sobre o método de Fermat Leibniz Tentamen Anagogicum 73Cf Descartes Dióptrica Discurso II Leibniz questionou a demonstração de Descartes pela primeira vez em 1679 em uma carta a Malebranche Die philosophischen Schrifften he rausgegeben von V Gerhardt Berlim 18751890 Olms 1978 volume IV 302 74Alusão a Malebranche cf Discurso de metafísica 26 28 e 29 75Depois de retomar brevemente os temas tratados nos 17 22 justificando seu percurso argumentativo Leibniz volta dos corpos às naturezas imateriais e particularmente aos espíritos e acentua primeiramente 23 a necessidade de examinar a natu reza das idéias a fim de distinguir o bom e o mau uso que se faz delas para isso é preciso distinguir os raciocínios sobre alguma coisa e a idéia dessa coisa ou em outros termos é preciso distin guir o discurso e o pensamento a palavra e a idéia cf Medita ções sobre o conhecimento a verdade e as idéias in Escritos Fi losoficos Ed Olaso Buenos Aires Charcas 1982 pp 2718 Edi ção original Die philosophischen Schriften Gerhardt Berlin 187590 Hildesheim 19601 IV pp 4226 Podese falar so 103 bre coisas impossíveis podese imaginar que temos idéias claras quando falamos de contradições é preciso pois analisar sem pre a suposta idéia a fim de não deduzir falsidades a partir de ilu sões Antes de definir propriamente o que é a idéia o que só fará explicitamente no 26 Leibniz mostra a necessidade de não se fiar em uma evidência aparente e de se verificar a possibilidade da coisa que a pretensa idéia exprime E essa possibilidade é co nhecida pelo recurso formal à análise cf Carta a Arnauld 414 de julho de 1686 Assim contra um critério subjetivo de verda de que fundamenta a inteligibilidade em uma impressão subje tiva produzida pela idéia Leibniz recorre à estrutura objetiva da idéia para buscar a inteligibilidade perfeita a realidade da idéia será desse modo sua coerência lógica O que Leibniz critica aqui nas entrelinhas é o critério cartesiano de clareza e distinção em bora ele mesmo o tome como ponto de partida para classificar as idéias mas veremos em que sentido no 24 segundo o filósofo as coisas que são obscuras e confusas parecem claras e distintas para quem julga sem profundidade Daí ser um axioma inútil a menos que se acrescentem critérios do claro e do distinto que propomos Meditações sobre o conhecimento p 276 76 Leibniz não se atém ao conteúdo da prova mas a sua forma lógica a prova da existência de Deus é um exemplo da di ficuldade de se reconhecer uma idéia verdadeira e um exemplo de evidência não fundada em uma análise Tratase pois de uma demonstração incompleta é preciso antes demonstrar a possibili dade do ser perfeito ou de Deus Se Leibniz estivesse interessado no conteúdo da prova ontológica afirmaria que todas as perfei ções são qualidades simples logo compatíveis entre si logo a idéia de um ser com todas as perfeições e entre elas a existência é possível logo esse ser existe Mas aqui como no 1 em que par tiu dessa mesma definição de Deus mas como um postulado não como uma prova Leibniz não considera a prova nela mes ma está interessado em mostrar que a argumentação de Santo Anselmo Proslogion IIIV e Descartes Discurso do método IV Meditações V Princípios I 14 é válida mas é insuficiente por que freqüentemente pensamos em quimeras como o último grau de velocidade o maior de todos os números etc Eis o segundo exemplo de dificuldade de reconhecimento de uma idéia idéias 104 matemáticas admitidas pelo vulgo e aparentemente claras que en cerram uma contradição Os exemplos matemáticos são conside rados aqui no interior do exemplo da idéia de Deus para mostrar a necessidade da análise no reconhecimento de idéias falsas en quanto essa última a idéia de Deus mostra a necessidade do es tabelecimento rigoroso pela via da análise de uma idéia verda deira e a importância mesmo em metafísica da análise lógica 77A idéia como objeto do pensamento não é falsa ou ver dadeira em si Cf Novos ensaios Leibniz é verdade que atribuí a verdade também às idéias afirmando que as idéias são verdadei ras ou falsas mas nesse caso o penso de fato das proposições que afirmam a possibilidade do objeto da idéia E nesse mesmo sentido podese dizer ainda que um ser é verdadeiro isto é a pro posição que afirma sua existência atual ou pelo menos possível é verdadeira Novos ensaios V iv 11 Propriamente falando en tão a verdade ou falsidade está numa proposição num juízo so bre a possibilidade do objeto da idéia 78 O tema deste artigo que resume a exposição feita dois anos antes nas Meditações sobre o conhecimento a verdade e as idéias e retomada em 1704 nos Novos ensaios II xixxxxi de corre naturalmente do tema da análise apontado no 23 já que a classificação das idéias que Leibniz apresenta no 24 parece cor responder aos diferentes graus de uma análise que pretende en contrar os elementos primeiros do pensamento O tema da análi se lógica se opõe diretamente aos critérios de verdade de Descar tes Descartes Regras IXII Discurso do método II relaciona o conhecimento à evidência imediata das idéias claras e distintas quando estão presentes ao entendimento A clareza por oposi ção à obscuridade resultaria da presença imediata da idéia a dis tinção por oposição à confusão seria uma clareza que permitiria separar uma idéia das outras Mas tratase sempre para Leibniz de um critério baseado na impressão subjetiva produzida pela idéia Além disso Leibniz concebe uma variedade de conheci mentos que não se deixam resumir pelo critério de clareza e dis tinção A ele interessa considerar a estrutura objetiva da idéia nela mesma com certa independência em relação ao pensamento que a concebe ou a que se apresenta a idéia embora como veremos a classificação dos tipos de idéia inevitavelmente mantenha rela 105 ção com o entendimento humano mas não se tratará então de uma impressão produzida pela idéia mas da possibilidade de proceder ou não a uma análise lógica dos elementos que com põem cada idéia O critério de verdade deverá ser então uma demonstração sólida que a forma lógica garante toda idéia pode ser decomposta em elementos mais simples e estes em outros mais simples até se chegar a elementos indecomponíveis 79 Nas Meditações sobre o conhecimento a verdade e as idéias e nos Novos ensaios II xxixxixi Leibniz afirma que o co nhecimento de uma idéia é dito claro por oposição ao obscuro quando permite o reconhecimento da coisa que exprime e sua diferenciação em relação a coisas parecidas O conhecimento cla ro é confuso quando embora possamos reconhecer o que a idéia exprime não conhecemos um número suficiente de elementos constitutivos nem podemos enumerar separadamente essas no tas que distinguem uma coisa das demais Só podemos designar uma idéia clara e confusa por exemplos assim não é possível fun damentar nenhum conhecimento racional sobre a clareza à ex periência á imaginação e aos sentidos bastam essa mesma expe riência essa mesma imaginação e esses sentidos para que esteja mos certos de que experimentamos imaginamos e sentimos aqui a clareza basta para nos persuadir mas quando se trata da razão é preciso proceder à análise da idéia a fim de nos convencermos sobre a possibilidade do que ela exprime 80 0 conhecimento distinto possui graus é inadequado quando não conhecemos cada um dos elementos que compõem a idéia distintamente assim como no caso do ouro em que o contrasteador conhece confusamente algumas propriedades En tre o distinto e o confuso não há um abismo mas uma gradação que depende da análise da idéia há em última instância idéias mais ou menos confusas Leibniz afirma nos Novos ensaios III iv 16 que as idéias simples são simples apenas em aparência são acompanhadas de circunstâncias que têm ligação com elas ainda que essa ligação não seja entendida por nós e essas circuns tâncias oferecem alguma coisa explicável e suscetível de análise Ora então uma idéia verdadeiramente distinta que Leibniz desig na se apropriando do termo espinosano como idéia adequada em que seria possível conhecer distintamente cada um dos ele 106 mentos que a compõem é apenas um limite A idéia distinta e adequada é aquela em que conhecendo todas as suas marcas ou elementos constitutivos podemos definir por meio desses elemen tos mas se as idéias simples são simples apenas aparentemente seria preciso analisar cada um desses elementos e conhecêlos também distintamente e assim ao infinito De fato porque nossos pensamentos nascem da relação de todas as coisas entre si de acordo com a duração e a extensão Teodicéia 124 isto é nascem da entreexpressão de todas as coisas tudo que pensamos envolve o universo inteiro e se pen samos distintamente uma idéia não podemos pensar distinta mente a totalidade do universo que essa mesma idéia envolve ou de algum modo traz consigo Nosso ponto de vista para per ceber a totalidade do mundo é nosso corpo na minha filosofia não há criatura racional sem algum corpo orgânico e não há es pírito criado que seja inteiramente separado da matéria Teodi céia 124 e onde houver corpo e sentidos há confusão Pode mos dizer que nossos pensamentos nascem em nós uns dos ou tros mas pela relação que nosso corpo mantém com os outros corpos assim as idéias que pensamos pensamos de acordo com a duração e a extensão a série de nossos pensamentos cor responde à série de nossas sensações Assim temos idéias distin tas mas não podemos ter nenhum pensamento distinto que não tenha por companheira a confusão Dessa mesma perspectiva pensarmos em uma idéia realmente adequada seria no mínimo improvável cf Belaval Ètudes leibniziennes Paris Gallimard 1976 pp 11420 81 0 conhecimento simbólico ou supositivo é aquele em que os elementos constitutivos da idéia não podem ser apreendidos de uma só vez pelo pensamento e são por isso substituídos por símbolos que supomos resumem um conjunto de noções nos desobrigando de explicálas a esse tipo de pensamento Leibniz dará o nome de pensamentos cegos cf Meditações sobre o co nhecimento a verdade e as idéias 82Podese permutar o sujeito parafuso sem fim e o predi cado uma linha sólida cujas partes são congruentes já que as ou tras linhas cujas partes são congruentes a linha reta e a circunfe rência do círculo não são sólidas mas traçadas in plano 107 83A definição nominal não dá a possibilidade da coisa É por isso que contra Hobbes Leibniz afirma que as verdades não dependem dos nomes Para Hobbes a verdade está nas palavras e não nas coisas De copore III 7 e as primeiras verdades nas cem da vontade daqueles que primeiro impõem nomes às coisas e daqueles que aceitam esses nomes estabelecidos por outros De corpore III 8 a ciência consiste portanto nas palavras e o sen tido das palavras é fixado por definições nominais e é em última instância arbitrário Ora dirá Leibniz se as palavras são arbitrá rias as noções que elas conotam não podem ser Podemos dizer que Leibniz adota com ressalvas uma doutri na convencionalista da linguagem Mas o filósofo evita reduzir a verdade mesma a um fato subjetivo e contingente o arbitrário se encontra somente nas palavras jamais nas idéias Porque estas exprimem possibilidades Novos ensaios III iv 17 Embora o nome sirva para apontar uma coisa e conservar a memória e o conhecimento atual dessa coisa a idéia dessa coisa não é uma essência nominal as essências não dependem da escolha dos nomes 84Leibniz adianta aqui uma distinção que fará apenas no 27 entre as idéias e as noções as expressões que estão em nossa alma quer concebamos ou não são idéias aquelas que forma mos ou concebemos são noções ou conceitos Podemos imaginar que estamos formando uma noção quando na verdade estamos usando palavras vãs ou falando de quimeras Tratase das idéias falsas do 23 que sugerem uma crítica da linguagem 85Leibniz analisa o conhecimento supositivo ou simbólico no qual não contemplamos a idéia porque a substituímos por sim bolos e sem remeter a definição ao definido supomos que a noção que cada signo resume é possível Ora como nosso pensamento se fundamenta na memória Novos ensaios IV i 8 sobretudo em raciocínios longos e utilizamos idéias que supõem a fidelidade de nossa lembrança Novos ensaios IV i 9 não podemos nos impedir de recorrer a esses pensamentos cegos e estamos sempre sujeitos ao erro mesmo em relação a noções familiares como o número 1000 porque usamos o símbolo e o definimos como 10 ve zes 100 sem pensar o que é 10 e o que é 100 sem contemplar o conteúdo da noção Pode pois haver algo de vazio Novos en 108 raios II xxix 10 no pensamento por isso esse conhecimento cego se aproxima do conhecimento de noções impossíveis Além do exemplo do número 1000 Leibniz retoma o exem plo do quiliógono que aparecia na Sexta Meditação 2 Ali Des cartes diferenciava a pura intelecção pela qual concebemos facil mente como no caso de um triângulo o quiliógono como uma figura de mil lados e a imaginação pela qual representamos con fusamente alguma figura que não é um quiliógono Para Leibniz Novos ensaios II xxix 13 esse exemplo indica a confusão en tre imagem e idéia Temos uma idéia confusa tanto da figura como de seu número mil lados até que possamos distinguir esse número contando ou enumerando feito isso temos a idéia de um quiliógono e podemos pois conhecer sua natureza e suas propriedades embora não possamos formar uma imagem deste polígono Eis por que a contemplação da idéia não se identifica com a contemplação de uma imagem mesmo que fosse uma imagem clara como a de um triângulo ainda assim teríamos do triângulo apenas uma idéia confusa se não distinguíssemos os elementos da noção 86No caso do conhecimento confuso embora possamos re conhecer o que a idéia exprime não conhecemos suficientemen te os elementos constitutivos da idéia e não podemos enumerar separadamente essas notas que distinguem uma coisa das demais não podemos enfim analisar a idéia É por isso que recorremos a exemplos para designála É por isso também que não construí mos um conhecimento racional unicamente com base nessa cla reza porque não podemos nos assegurar da possibilidade do que a idéia exprime Tratase pois de um conhecimento ligado à experiência à imaginação e aos sentidos que não exigem provas para que estejamos certos de que experimentamos imaginamos ou sentimos No caso do conhecimento intuitivo meu espírito compreen de ao mesmo tempo e distintamente todos os elementos primiti vos de uma noção Discurso 24 Ora se compreendo simul taneamente todos os elementos da idéia não preciso analisála E é apenas isso que aproxima o conhecimento claro e confuso e o c onhecimento intuitivo em ambos não procedemos a uma análi se para definir a idéia seja porque não podemos conhecimento 109 confuso seja porque não precisamos conhecimento intuitivo o conhecimento é intuitivo quando o espírito percebe a conve niência de duas idéias imediatamente por elas mesmas sem in tervenção de qualquer outra Nesse caso o espírito não precisa se ocupar em provar ou examinar a verdade Novos ensaios IV ii 1 87Leibniz considera inicialmente duas concepções sobre as idéias muitos consideram que as idéias são a forma ou diferença de nossos pensamentos nesse caso uma idéia é um modo do pensamento ou do espírito do qual recebe ou toma de emprésti mo sua realidade formal Descartes Meditações III 17 p 112 Ora para Leibniz afirmar isso seria também dizer que uma idéia é um pensamento atual e nada mais Outros consideram que a idéia é um objeto imediato do pen samento ou uma forma permanente neste caso Descartes diria que a idéia possui realidade objetiva a entidade ou o ser da coi sa representada pela idéia na medida em que tal entidade está na idéia Objeções e respostas Razões dispostas de uma forma geométrica Def III A distinção apresentada por Leibniz aqui é pois um aprofundamento de uma distinção estabelecida por Descartes Leibniz se filia a esta última interpretação a idéia é um obje to imediato do pensamento Afirmar a idéia como objeto como realidade inata ao espírito é afirmar a permanência e a realidade da idéia independente de nosso pensamento atual E a prova des sa objetividade é que a nossa alma tem sempre nela a qualidade de representar qualquer natureza ou forma seja qual for quando surge a ocasião de pensar nela nossa alma tem a qualidade de tornar presente à consciência as idéias que existem virtualmente em nosso pensamento e a experiência sensível é apenas a ocasião para que as idéias ressurjam em nossa consciência Mas se a ex periência é uma ocasião é porque as idéias existem em nós e sempre em nós quer nela pensemos ou não 26 88A idéia é tanto um objeto de pensamento que correspon de à coisa de alguma maneira como uma faculdade ou qualida de da alma de exprimir essa coisa assim Leibniz parece conciliar uma certa passividade da alma de perceber um objeto de pensa mento com uma faculdade ativa da alma de exprimir uma essên 110 cia ou uma existência Deus e o mundo quando a ocasião para isso se apresenta Não seria possível tornar presente esse objeto da alma se ela não fosse expressiva Leibniz afirma que Uma coi sa exprime uma outra quando há uma relação constante e re grada entre o que se pode dizer de uma coisa e o que se pode dizer de outra Carta a Arnauld 9 de outubro de 1687 A expressão prossegue Leibniz nessa carta é um gênero do qual a percepção natural o sentimento animal e o conhecimento intelectual são es pécies Todas as criaturas expressam o todo mas na alma racio nal essa expressão é acompanhada de consciência e nesse caso é pensamento Assim a expressão na alma racional é sua faculda de de se representar qualquer coisa ou qualidade de pensar em tudo em Deus quando tem idéias distintas Novos ensaios II i 1 no universo através das idéias confusas Novos ensaios II i 1 nas essências ou formas isto é no possível submetido apenas ao prin cípio de não contradição nas existências ou naturezas uma li mitação da essência cf Discurso de metafísica 16 89 A alma é um pequeno mundo Novos ensaios II i 1 nada nos é estranho mesmo que não tenhamos consciência atual dessa totalidade Assim recordando sua doutrina da substância individual já apresentada e contra a doutrina escolástica das es pécies Leibniz afirma que é mau hábito pensarmos como se a nossa alma recebesse algumas espécies mensageiras e tivesse portas e janelas através das quais essas intermediárias entre os objetos e a alma pudessem passar dos objetos às almas para tor nar os objetos inteligíveis A alma é seu próprio objeto imediato interno temos todas as idéias no espírito e desde sempre porque cada substância está prenhe de seu futuro Monadologia 22 e pensa confusamente naquilo que no futuro através da apercep ção ou consciência poderá pensar racionalmente e com distinção As idéias que temos no espírito são pois diz Leibniz a matéria de que se forma esse pensamento o uso curioso que Leibniz faz aqui do termo matéria fica mais claro se pensarmos a maté ria como o que ainda não é apercebido ou pensado com cons ciência pelo espírito matéria seria então essa confusão a que no futuro o pensamento dará uma forma e tornará distinto ou para mais uma vez adiantar a distinção do 27 a idéia é dita matéria 111 porque ainda não foi formulada pelo pensamento ainda não é uma noção ou conceito mas existe no espírito 900 que Platão considerou excelentemente pela teoria da reminiscência e provou no Mênon 80d86c com o exemplo do rapazinho conduzido às mais difíceis verdades da geometria através de perguntas feitas com ordem e propósito foi o caráter virtual das idéias inatas e das verdades que delas dependem de modo que a alma só precisa de animadversiones para conhecer as idéias e as verdades Em outras palavras as idéias existem virtual mente no espírito e esperam a ocasião de se atualizar mas para tra zêlas à consciência justamente porque a alma não é passiva é preciso um esforço uma aplicação da alma ao objeto considera do é preciso atenção e um pensamento reflexivo 91Aristóteles é apresentado no 27 em oposição a Platão que vai aos fundamentos das coisas como um filósofo que esco lheu o ponto de vista da prática ou do discurso conforme à práti ca praticologia ou conforme a opinião doxologia 92 Como os pensamentos nascem em nós uns dos outros pela relação de todas as coisas entre si de acordo com a duração e a extensão a ocasião pode ser pensada em linguagem prática como a experiência Assim a experiência seria um tipo de ajuda certamente não a única à atualização das idéias que estão vir tualmente em nossa alma É verdade que se pode ir longe sem nenhuma ajuda que se pode fabricar as ciências em um gabi nete e mesmo de olhos fechados sem apreender pela vista nem pelo toque as verdades de que se precisa para tanto Novos en saios I i 5 Isso só prova todavia que há graus na dificulda de de nos apercebermos do que está em nós o espírito pode ti rar os conhecimentos inatos de seu próprio fundo embora fre qüentemente isso não seja uma coisa fácil Novos ensaios I i 5 Por isso Leibniz confessa que a experiência é necessária para que a alma seja determinada a tais ou tais pensamentos e para que ela preste atenção às idéias Novos ensaios II i 2 É somente nesse sentido porque a experiência pode funcionar como a ocasião para as idéias que Leibniz conciliador por exce lência admite pensar com Aristóteles e o vulgo que nossas no ções provêm dos sentidos Há pois uma influência ideal não real das coisas sobre nós É isso que justifica a maneira aristoté 112 lica de falar a experiência vital basta e é útil de nada serve ir mais longe quando a decifração intelectual do mundo não al cançou a distinção 93Já sabemos pelos 89 e 1316 que nossa alma expri me Deus e o mundo que depende apenas de Deus para existir e que cada alma conhece o infinito conhece tudo mas confusamen te Princípios da natureza e da graça 13 porque cada percepção distinta compreende uma infinidade de percepções confusas que envolvem todo o universo a alma possui muitas percepções sem apercepção que Leibniz denomina pequenas percepções claras no conjunto mas confusas em suas partes ou elementos Novos ensaios prefácio percepções que não são distintas porque não poderíamos pensar distintamente no todo do universo que é nossa alma É por isso que Leibniz não pode aceitar a comparação de nos sa alma a pequenas tábuas ainda vazias senão em sentido práti co e corrige o dito de Aristóteles De anima III iv 4304 4321 afirmando que não há nada no intelecto que não tenha estado antes ou que não provenha dos sentidos a não ser o próprio in telecto cf Novos ensaios II i 2 94A distinção no vocabulário e a tentativa de conciliação entre a linguagem prática e a metafísica levam a considerar o ina tismo e a abrangência de nossa alma quando se fala das idéias e quando se fala de noções a nossa finitude diante da apreensão de certas idéias inatas que atualizamos ou pensamos distintamente e da fabricação ou produção de conceitos práticos que servem em nossa vida diária ou em três quartas partes de nossas ações Seja como for diz Leibniz por mais que possamos dizer em linguagem prática que todas as nossas idéias provêm da ex periência essa afirmação será falsa se identificarmos experiência com sentidos pois há idéias que provêm da experiência interna que o eu por meio da reflexão tem de si mesmo Essas são ver dades primitivas de fato isto é conhecimentos intuitivos como aquele que se tem das noções primeiras e indefiníveis mas dife rentemente dessas são verdades contingentes não necessárias cf Novos ensaios IV ii 1 Tratase de um sentimento imediato como é o cogito cartesiano que não necessita de uma prova ou de uma análise demonstrativa para ser aceita é por isso que as 113 idéias claras e confusas são acompanhadas da contemplação da idéia Mas tratase também do primeiro princípio geral ao dizer que uma coisa é o que ela é ou que sou uma coisa que pensa digo ao mesmo tempo que A é A cf Novos ensaios IV ii 1 Tratase pois do princípio de identidade ao pensar no eu con siderando o que está em nós pensamos no Ser na Substância no simples e no composto no imaterial e até mesmo em Deus Monadologia 30 cf tb NE II i 2 em outras palavras ultra passamos a imediatez do cogito cartesiano 95Somente depois de esclarecer a natureza das idéias 23 27 e especificar no interior dessa questão a origem das idéias 2627 Leibniz retoma a questão proposta no início do 23 a saber como Deus age sobre o entendimento dos espírito 23 0 28 decorre diretamente das considerações dos 26 e 27 uma vez que todas as idéias são inatas ao espírito embora pareçam provir da experiência ainda que possamos dizer em linguagem prática que os objetos exteriores agem sobre a alma é preciso reconhe cer a verdade metafísica do inatismo e da independência da alma cf 8 e assim reconhecer que se a alma é seu único objeto ime diato interno é porque depende apenas de Deus para existir daí Deus ser seu único objeto imediato externo 96 0 Verbo era luz verdadeira que ilumina todo homem ele vinha ao mundo ou A luz verdadeira que ilumina todo ho mem vinha ao mundo ou Ele o Verbo era a luz verdadeira que ilumina todo homem vindo a este mundo Jo 1 9 97Leibniz precisa por um lado da transcendência divina e precisa portanto afirmar que Deus está fora de nós sob o risco de cair na causa imanente espinosana Por outro precisa subli nhar diante da abrangência ou extensão que atribuiu às substân cias individuais nossa dependência em relação a Deus já que so mos seres possíveis e não seríamos postos na existência nem continuaríamos existindo se não fosse por um ato de escolha da vontade livre de um Deus sábio e bom A solução parece ser a fór mula objeto imediato externo que veremos no 29 traz o ris co do ocasionalismo e leva Leibniz a formular a tese da harmonia preestabelecida É para evitar desde já no 28 o risco de cair no ocasionalis mo de Malebranche que Leibniz explica objeto imediato exter 114 no por fórmulas como pelo seu concurso ordinário Deus nos determina a pensar nas idéias efetivamente no momento em que nossos sentidos estão dispostos de uma certa maneira segundo as leis por Ele estabelecidas Pela harmonia preestabelecida Leib niz evita a influência direta de uma substância sobre outra e o mi lagre perpétuo de um Deus ex machina que restitui o mundo à existência em cada momento de um tempo descontínuo O mun do é como um relógio regulado desde o começo não precisa da ação de Deus intervindo a todo tempo cada estado nasce do es tado passado e gera de si o estado futuro Não há influência de uma substância sobre outra nem do corpo sobre a alma ou vice versa mas tudo concorda pelas leis ordinárias do mundo estabe lecidas por Deus cf Carta a Arnauld 30 de abril de 1687 É assim que a série de nossas idéias se harmoniza com as disposições de nossos sentidos e estes com o estado do mundo a cada momento o que a alma percebe são suas mudanças inter nas ou idéias cuja causa é Deus Daí Leibniz afirmar que Deus é a luz que ilumina todo homem confirmando sua tese pela refe rência à Escritura e se remetendo como a Sagrada Escritura e os Santos Padres a Platão tratase de uma interiorização da luz do Sol platônico e nesse sentido a luz que Deus concede aos espí ritos para esclarecer seu entendimento permite uma atualização de idéias virtuais Então Deus está fora de nós mas a ação que exerce sobre o entendimento é interna porque permite que a alma conheça e torne presente as idéias que existem nela a alma hu mana conhece a si mesma graças à ação de Deus sobre ela 98Aristóteles De Anima III 5 4302 15 distingue o intelec to paciente receptivo e o intelecto agente que exerce a ação de dar forma ao intelecto paciente para esclarecêlo Averrois consi dera os dois rigorosamente distintos e o intelecto agente comum a todos os homens seria uma parte destacada do intelecto divino Na Teodicéia Discurso da conformidade entre a fé e a razão 78 Leibniz critica a mortalidade da alma ou do intelecto pa ciente próprio a cada homem aliada à imortalidade do intelecto agente que seria uma certa inteligência sublunar da qual partici paríamos e pela participação teríamos um entendimento ativo Opinião que para Leibniz se aproxima perigosamente da afirma ção de uma alma universal do mundo que subsistiria enquanto 115 as almas particulares nasceriam e pereceriam A interpretação le gítima de Aristóteles segundo Leibniz seria a de Guilherme de SantoAmor segundo a qual os dois intelectos não seriam absolu tamente separados e o intelecto agente próprio a cada indivíduo corresponderia a uma luz recebida de Deus que iluminaria os da dos sensíveis para tornálos inteligíveis mas as idéias teriam ori gem externa ao nosso pensamento com o que sabemos Leibniz não poderia concordar 99Alusão a Malebranche e à teoria da visão em Deus cf La Recherche de la vérité livro III parte II cap IVII e Esclarecimen to X Conversations chrétiennes Entretiens IIII Méditations chré tiennes IIV 100 Para se contrapor a Malebranche Leibniz afirma que pensamos pelas nossas próprias idéias e não pelas de Deus ve mos as coisas por Deus mas em nós Essa oposição em relação a Malebranche é feita em dois momentos num primeiro Leibniz retoma sua explicação da natureza da substância individual toda a extensão e a independência de nossa alma que a faz conter tudo o que lhe acontece e exprimir Deus e com ele todos os se res possíveis e atuais como um efeito exprime a sua causa Pensar pelas idéias de outrem diz Leibniz é inconcebível é não consi derar a verdadeira natureza da substância individual e em últi ma instância negar a existência de substâncias individuais ao ne gar às almas a ação de pensar é tornar a alma puramente passi va Eis por que num segundo momento Leibniz afirma que a substância tem não apenas a potência passiva de ser afetada de uma certa maneira lembremos da definição da idéia como obje to de pensamento 26 mas tem também uma potência ativa de suscitar em si mesma essas afecções de tornar presente uma idéia inata virtual de esforçarse e dedicar atenção a si mesma para pensar distintamente uma idéia tratase da faculdade ou qualidade da alma de expressar uma essência forma ou natureza 26 A natureza da alma é tal que ela possui marcas ou sinais de seus pensamentos futuros que se tornarão distintos ou serão pensados com consciência no momento devido de acordo com a harmonia preestabelecida 101Com efeito essas questões são tão complexas que Leib niz dedicará a elas grande parte dos Ensaios de Teodicéia cf por exemplo 3455 116 102Depois de tratar da relação entre Deus e os espíritos do ponto de vista do entendimento dos espíritos 2329 Leibniz passa a tratar essa questão do ponto de vista da vontade das cria turas inteligentes Para tanto caracteriza a vontade humana pri meiro a partir de sua espontaneidade recordando o que já disse ra acerca da substância individual cf 8 e da criação contínua ou concurso ordinário de Deus cf 14 Deus concorre fisica mente para as ações das criaturas racionais na medida em que as produz e conserva continuamente mas tudo o que acontece a cada indivíduo está contido em sua noção Em segundo lugar Leibniz caracteriza a vontade das criaturas através da tendência espontânea para o bem aparente Deus age sobre os espíritos também através de um concurso moral por meio do decreto ge ral que faz com que a vontade tenda para o aparentemente me lhor As criaturas não podem conhecer o absolutamente melhor mas através dessa tendência exprimem ou imitam a vontade di vina cf 3 E finalmente a vontade é definida a partir da liber dade ou indiferença se oposta à necessidade absoluta já que pelo princípio de razão não pode haver uma indiferença de equi líbrio Deus determina nossa vontade pela tendência ao bem mas as escolhas não são necessárias Assim embora determina das por essa tendência e portanto pela nossa condição presente isto é pela compreensão limitada do melhor somos responsáveis por nossas ações 103Leibniz introduz a questão da predestinação agimos se gundo nossa vontade livre e temos o poder de agir diversamente ou suspender a ação mas é verdadeiro e mesmo certo desde toda a eternidade que nenhuma alma se há de servir deste poder em determinada circunstância Em outras palavras se todos os pecados estão determinados como os homens podem ser res ponsáveis por suas ações Tratase do labirinto da liberdade e da necessidade Leibniz não identifica necessidade e determinação assim embora as ações sejam determinadas elas são contingen tes cf 13 A queixa do pecador é injusta porque Deus não é causa de suas ações embora concorra ordinariamente para elas a causa é a criatura e sua vontade De um ponto de vista prático antes de escolher a ação e seu contrário são possíveis logo de pois da ação sabemos apenas que Deus a previu e essa previsão 117 não torna a ação necessária nem atribui a Deus a responsabilida de por ela 104Leibniz reintroduz a questão tratada no 13 aqui po rém não mais como um problema mas como um fato a causa da previsão divina é a noção completa da sustância individual o homem contém todas as suas determinações futuras que são pre vistas como determinações de urna vontade livre 105Leibniz imagina uma objeção relacionada ao mal Se a noção individual de cada pessoa envolve todas as suas ações e portanto também os pecados e Deus escolhe Judas por exem plo sabendo de seu pecado então não seria Deus o responsável pelo pecado Como conciliar a sabedoria divina e o mal que per cebemos no mundo Em nossa condição de criaturas finitas não podemos compreender como cada pecado contribui para o me lhor dos mundos possíveis não compreendemos as razões parti culares das escolhas divinas somente os princípios ou regras ge rais de sua ação Assim devemos invocar o melhor e dizer que embora Deus queira sempre o bem ele permite o mal como con dição do melhor cf 7 Eis o fundamento do otimismo leib niziano 106São Paulo Epístola aos Romanos 11 33 cf Teodicéia 134 107Posteriormente na Teodicéia 2933 e 153 e no texto Causa Dei 2939 e 6973 Leibniz oferecerá uma sistematiza ção acerca do mal a fim de mostrar como a causa do mal são as criaturas e não Deus Leibniz adota duas proposições tradicionais que ele amarra ao seu próprio sistema Deus permite o mal com preendido no melhor plano mas não é sua causa a fonte do mal é uma imperfeição original da criatura ou uma privação O mal pode ser tomado metafisicamente fisicamente e moralmente O mal moral restrito às criaturas racionais é o pecado ou o mal da culpa isto é as ações viciosas dos seres dotados de razão Dessas ações resulta o mal físico ou mal da pena ou seja os sofrimentos desses seres racionais Ambos mal moral e mal físico são males possíveis mas derivam de um mal necessário o mal metafísico todas as criaturas são essencialmente limitadas Em outras pala vras a fonte ou a causa ideal do mal são as verdades eternas as criaturas são marcadas por essa imperfeição ou limitação já no es 118 tado de pura possibilidade pois diz Leibniz o que não possui limites em seu poder em sua sabedoria e em toda perfeição que pode ter não é uma criatura mas Deus O fundamento do mal é por isso necessário o mal consiste formalmente na privação Todavia a limitação natural de toda criatura é a causa ideal não eficiente do mal assim mesmo que sua possibilidade seja neces sária a atualização do mal permanece contingente em última instância porque o ato mau faz parte de um universo contingen te e os males só passam da potência ao ato em função da har monia das coisas ou de sua conveniência com a melhor série de coisas 108Os supralapsários são aqueles que com Calvino e Zwin gle afirmam que Deus escolheu os eleitos que serão salvos antes mesmo da previsão do pecado e se opõem assim àqueles que como Lutero afirmam que essa escolha só se dá depois da queda de Adão Cf Teodicéia 7784 109Cf Santo Agostinho Confissões III VII 12 VII XVI 22 110Leibniz utiliza o vocabulário tradicional para afirmar que Deus é princípio da graça e através dela remedeia a limita ção natural das criaturas Ordinária ou extraordinária a graça não é arbitrária está no interior da ordem mesmo a graça extraordi nária o milagre que está acima da ordem física ou das leis subal ternas da natureza é conforme a ordem universal O vocabulário teológico distingue entre a graça suficiente que sob a condição de que a vontade humana coopere é suficiente para produzir a salvação e a graça eficaz que produzindo seu efeito leva à sal vação Cf Teodicéia 99106 e 134 Cf também Malebranche Tratado da natureza e da graça Disc III 2021 111A onisciência divina se divide em três ciências embora rigorosamente só existam duas de acordo com o objeto de que trata A ciência da pura inteligência ou dos seres possíveis que podem ser considerados separadamente ou em relação com a in finidade de mundos completos possíveis A ciência da visão ou das coisas efetivamente existentes que difere da primeira apenas pela consciência reflexiva de Deus acerca do decreto que condu ziu o mundo à existência É ela o fundamento da presciência di vina uma vez que engloba a visão do passado do presente e do futuro E finalmente a ciência dita média 119 112Leibniz introduz a problemática da graça pela posição que defende a gratuidade do dom da graça Mas assim como não se pode explicar o dom da graça pela previsão das ações dos ho mens ou seja por seu mérito também não se deve pensar essa gratuidade como ausência de razões embora aos homens não seja possível compreender essas razões particulares como mos trará no fim do artigo 113Tradução aos que previu dar o dom da fé Tratase de uma doutrina de inspiração pelagiana segundo a qual Deus dá a graça e a salvação àqueles dos quais previu a fé e caridade Para Pelagio contemporâneo a Santo Agostinho a vontade humana é capaz de agir bem sem a graça merecendo assim a graça Ora para Leibniz a fé e a boa vontade são espécies de graças assim não pode ser essa a justificação da distribuição das graças 114Tratase da ciência média dos molinistas Segundo Moli na 15361600 Deus conhece três tipos de acontecimento os possíveis e impossíveis objeto de uma ciência da simples inteli gência os atuais objeto de uma ciência da visão e os condicio nais objeto da ciência média Essa última envolve então os acon tecimentos que se atualizariam caso as condições para isso se efe tivassem Logo no juízo de Leibniz ela está contida na ciência da simples inteligência de outra forma negaríamos a possibilidade de um saber a priori dos fatos condicionais na exata medida em que desconsideraríamos a existência de uma razão a priori para a ocorrência do fato Embora pense na igualdade das ciências da simples visão e média Leibniz sugere uma forma de entender a onisciência divina de modo que se mantenha a tripartição originá ria da concepção escolástica a ciência média estudaria as verda des possíveis como a ciência da inteligência cujo objeto mais res trito do que anteriormente seriam as verdades possíveis e neces sárias isto é verdades eternas que são válidas em todos os mun dos possíveis e ao mesmo tempo contingentes como a ciência da visão que versaria sobre as verdades contingentes e atuais ou seja as verdades que distinguem cada mundo possível ou as cir cunstâncias variáveis da existência cf Causa Dei g 1317 Molina considerava que Deus dá a graça a todos aqueles que a merecem não por sua fé mas por suas predisposições na turais anteriores à fé porque Deus conhece pela ciência média 120 tudo que o livrearbítrio faria em cada circunstância possível Ora dirá Leibniz assim como respondia à doutrina de inspiração pe lagiana afirmando que a fé é uma graça neste caso também essas disposições naturais são graças Assim não se pode conceber a razão da distribuição das graças a partir da ciência média 115A solução leibniziana para a questão da graça está em sua doutrina da substância individual e da criação do melhor dos mundos todas as graças ordinárias e extraordinárias estão conti das na noção de cada indivíduo assim como tudo o mais que acontece a essa pessoa E a razão para a existência desta pessoa é a criação do melhor plano possível no qual esta pessoa está en volvida Assim Leibniz considera que a graça é gratuita e que não se pode dar nenhuma razão particular para justificála nem o mérito pessoal nem as disposições naturais O que jamais pode significar que a graça seja um decreto absoluto isto é um ato iso lado de todas as outras vontades divinas e sem razões Não conhe cemos as razões São Paulo Epístola aos Romanos XI 33 mas elas existem 116Leibniz considera que um domínio de conhecimento deve enviar àquele que lhe é superior e mais abrangente dessa forma assim como a física deve enviar à metafísica como seu fundamento a metafísica nos remete à piedade Mostrando como suas considerações metafísicas sobretudo aquelas sobre a perfei ção das operações de Deus cf Discurso g 17 e sobre a subs tância individual cf 44 89 e 1316 confirmam a religião Leibniz está ao mesmo tempo fazendo um elogio à sua própria filosofia e uma crítica a outras filosofias que também tinham pretensões no terreno da piedade e da religião 117Leibniz introduz neste artigo o tema da união com Deus a que se dedicará no final do texto Para tanto analisando as con seqüências do princípio da perfeição das ações de Deus afirma primeiramente a dependência de toda criatura em relação a Deus considerando como cada substância individualmente depende de Deus na origem de sua existência em sua existência atual e em seu desenvolvimento e como todas dependem de Deus nas rela ções que mantêm com todas as outras substâncias individuais só Deus estabelece a comunicação entre as criaturas Essa depen dência implica a união com Deus por isso Leibniz evoca São Pau lo Corintios I 15 28 para dizer ser Deus tudo em todos 121 118Tratase de Santa Teresa dÁvila seu Libro de la vida foi traduzido para o francês em 1670 por Arnauld dAndilly do qual Leibniz cita provavelmente o capítulo XIII Cf também Leibniz Sistema novo da natureza 14 Leibniz evoca Santa Teresa a fim de considerando as conse qüências de sua doutrina da substância individual acentuar a in dependência das criaturas em relação às coisas exteriores e ao mesmo tempo a total dependência de cada criatura em relação a Deus Essa dependência que é o fundamento da união com Deus é vista agora sob o aspecto da espontaneidade de cada substân cia também determinada pelo Criador 119A última conseqüência dos princípios metafísicos reto mados por Leibniz no início do artigo é a imortalidade da alma Com efeito afirmada a íntima união de cada substância com Deus e a independência em relação ao mundo uma substância só pode perecer por uma decisão de Deus de a aniquilar A alma é em si mesma imperecível daí a dissolução do corpo não a destruir A imortalidade se relaciona à simplicidade da substância cf Dis curso 9 o que mais tarde levará Leibniz a afirmar que quando o corpo se dissipa a alma não permanece no caos de matéria con fusa mas permanece ligada a um corpo orgânico imperceptível cf Sistema novo da natureza 7 120Esse mistério seria inexplicável para Descartes e mi raculoso para Malebranche Com efeito de acordo com o primei ro cf Discurso do método V Meditações VI Cartas a Elisabeth 21 de maio de 1643 e 28 de junho de 1643 As paixões da alma I 3050 há ação real da alma sobre o corpo e viceversa mas segundo os princípios do próprio Descartes a relação de causa e efeito deve se dar entre homogêneos o que torna a influência da substância pensante sobre a substância extensa e viceversa inin teligível A crítica de Leibniz a Descartes não se limita todavia aos problemas que o próprio Descartes mesmo havia percebido Para Leibniz a substância individual não tem portas nem janelas não há ação direta de uma substância sobre outra mas além disso a extensão não é uma substância e não tem atividade Malebranche cf por exemplo Méditations chrétiennes V VI IX XII por sua vez afirmava que não há ação real de um ser so bre outro e só Deus é causa eficiente Leibniz considera a teoria 122 das causas ocasionais a afirmação de um milagre perpétuo já que supõe a intervenção direta de Deus e assim contrária ao princí pio da simplicidade das vias cf Carta a Arnauld 30 de abril de 1687 121A verdadeira razão a que Leibniz chega a partir de sua concepção de substância individual que é espontânea e espelho de tudo o que se passa no universo é a harmonia preestabeleci da A espontaneidade própria da substância evita o recurso ao milagre perpétuo de Malebranche É verdade que é Deus quem estabelece a comunicação ou o acordo entre as substâncias mas isso se dá segundo leis ordinárias pois Deus criou o mundo de maneira a que houvesse essa correspondência independente mente de sua intervenção A relação entre a alma e o corpo é um caso particular da relação entre as substâncias considerando o corpo como agregado de substâncias simples como algo subs tancial embora não substância Ora cada alma tem um ponto de vista próprio a partir do qual exprime a totalidade do universo O corpo é este ponto de vista é o centro de perspectiva da alma cujas ações por sua vez correspondem ao que se passa no corpo que se reflete nos ou tros corpos Embora obedeçam a diferentes legislações a alma às causas finais e ao princípio do melhor e o corpo às leis da causalidade e do movimento há uma harmonia entre eles e se completam como princípio de atividade a alma e princípio de passividade o corpo cf por exemplo Cartas a Arnauld 414 de julho de 1686 30 de abril e 9 de outubro de 1687 Sistema novo da natureza 1218 122Nosso corpo nos pertence na medida em que determi na nosso ponto de vista sobre o universo no tempo e no espaço e a relação que ele mantém com os demais determina nossa ma neira de perceber de algum modo e por certo tempo Mas o cor po enquanto matéria segunda agregado de substâncias simples pode se dissipar Toda alma deve porém estar sempre ligada a uma matéria primeira que sobrevive à destruição do corpo orga nizado cf Teodicéia 124 Carta a Arnauld 9 de outubro de 1687 Sistema novo da natureza 7 123A explicação da percepção sensível se relaciona direta mente à questão da comunicação entre a alma e o corpo A alma 123 exprime a totalidade do mundo mas mais particularmente seu corpo que é seu ponto de vista A percepção corresponde no corpo a certos movimentos que se exprimem na alma pela har monia preestabelecida e como todos os corpos simpatizam é impossível nossa alma atender a tudo em particular Assim a per cepção resulta de pequenas percepções como uma percepção dominante Mas há casos em que não há uma percepção domi nante e a alma só pode aperceberse das pequenas percepções confusamente cf Cartas a Arnauld 30 de abril e 9 de outubro de 1687 124Na redação primitiva do texto Leibniz iniciava este arti go pela seguinte frase Uma coisa que não tento determinar é se os corpos são substâncias falando no rigor metafísico ou se são apenas fenômenos verdadeiros como o arcoíris nem por conse qüência se há substâncias almas ou formas substanciais que não são inteligentes Mas supondo que os corpos A questão da substancialidade do corpo é de fato um problema para Leibniz Em textos e cartas posteriores ao Discurso Leibniz passará a afir mar que o corpo orgânico ou matéria segunda é um agregado de substâncias simples que recebe sua unidade da alma ou forma dominante e é essa alma que o torna unum per se um por si e não um simples amontoado de substâncias Mas como conceber a dominação de uma alma sobre todas as outras se a substância se define por sua atividade espontânea e autônoma Na Corres pondência com Des Bosses na qual Leibniz discute essas ques tões a dominação é interpretada como graus de perfeição e Leib niz considera que o agregado de substâncias que faz o corpo não é uma substância em si mesmo mas um fenômeno Na Corres pondência com Arnauld afirmará que é um abuso de linguagem chamar o corpo independente da alma substância Cf Cartas a Arnauld 28 de novembro6 de dezembro de 1686 23 de março de 1690 No entanto em textos posteriores como os Princípios da natureza e da graça de 1714 Leibniz continua denominando substância os corpos cf 1 3 e 4 125Os corpos que são unum per se se opõem aos que são unum per accidens como um rebanho de carneiros porque pos suem um princípio de unidade a alma Cf Carta a Arnauld 28 de novembro6 de dezembro de 1686 124 126A principal diferença entre os átomos materiais e as mô nadas espirituais reside no fato de que estas últimas são dotadas de reflexão isto é de consciência N do T 127Desde de 1677 Leibniz define a noção de pessoa a par tir de sua qualidade moral cf Nova methodus discendae docen daeque jurisprudentiae 128Leibniz não se atém aqui como fará em textos posterio res como a Monadologia 1836 a descrever minuciosamente a hierarquia dos seres Preocupase apenas em distinguir os espí ritos entre as demais substâncias depois de apontar o que há de comum entre as formas substanciais almas e espíritos a saber 1 são imperecíveis pois dependem apenas de Deus e são sim ples de maneira que não há dissolução cf Discurso 9 e 32 eis por que são comparados aos átomos de Demócrito Gassendi e Cordemoy embora as substâncias leibnizianas não sejam mate riais e 2 caracterizamse por exprimir a totalidade do universo cada uma corresponde a um ponto de vista do universo inteiro cf Discurso 9 1415 26 e 33 Os espíritos ou almas racionais distinguemse pela capacidade de reflexão o que no plano do conhecimento significa que podem conhecer as verdades neces sárias e no plano moral os faz pessoas porque possuem identi dade e uma certa noção do bem e buscam livremente realizálo É também pela reflexão que a imortalidade dos espíritos envolve a recordação de si mesmo 129A cidade de Deus objeto do próximo artigo é um mun do moral no interior do mundo natural O mundo não é apenas uma máquina sumamente admirável mas é dotado de perfeição moral Essa a razão moral para que a imortalidade dos espíritos seja diferente da simples permanência das outras substâncias 130A união dos espíritos com Deus se justifica do lado dos espíritos pela diferença de natureza que guardam em relação às outras substâncias os espíritos exprimem o Criador diretamente e não através da expressão do universo têm consciência do que são e fazem e compreendem alguma coisa dos desígnios de Deus gra ças ao conhecimento de verdades universais 131Todavia se Deus se importa mais com um homem do que com um leão não se pode assegurar que prefira um homem a toda a espécie de leões Cf Teodicéia 118 125 132Em relação a Deus a união do Criador com os espíritos se justifica porque o próprio Deus é o maior e mais sábio dos es píritos porque pode comunicar aos outros espíritos seus senti mentos e vontades de maneira particular e porque como a sa bedoria prefere sempre o mais perfeito assim Deus prefere as mais perfeitas dentre as criaturas assim como nós devemos nos voltar a ele Mas diferente de nós cuja sociedade com Deus signi fica o amor que Deus tem em relação a nós e portanto a maior satisfação que pode ter uma alma nosso amor em relação a Deus não acrescenta nada à sua satisfação 133Importantes textos de Leibniz como o Discurso de meta ffsica 1686 a Monadologia e os Princípios da natureza e da graça ambos de 1714 em que o autor sintetiza as grandes teses de sua filosofia apresentam em seus últimos parágrafos e então como acabamento essencial de sua metafísica uma imagem polí tica Mesmo diante da transformação na forma de tratamento e na abordagem dos temas ocorrida nos quase trinta anos que sepa ram a Monadologia e os Princípios da natureza e da graça do Discurso a parte final dos textos e coroação das teses é sempre um convite aos homens para se elevarem a Deus através de uma apologia da república universal dos espíritos Deus é o monarca da mais perfeita república composta por todos os espíritos Dis curso 36 Os espíritos ou criaturas racionais entram em socie dade com Deus e constituem o mais perfeito estado a cidade de Deus sob o mais perfeito dos monarcas Monadologia 85 Em virtude da razão e do conhecimento das verdades eternas todos os espíritos são membros da cidade de Deus isto é do mais per feito estado formado e governado pelo maior e melhor dos mo narcas Princípios da natureza e da graça 15 A imagem e a idéia da instauração de um reino moral da gra ça no seio do mundo natural que funda uma sociedade dos ho mens com Deus percorrem as três décadas de desenvolvimento da singularidade do pensamento leibniziano sem sofrer alteração e sem perder a força É através dessa metáfora política que Leib niz concilia dois aspectos fundamentais de sua metafísica e de sua teologia Deus não é apenas o artífice da máquina do mundo é o príncipe supremo dos cidadãos de sua república Ele não é apenas arquiteto e geômetra é também legislador monarca e se 126 nhor O universo além da perfeição metafísica é dotado de per feição moral O aspecto lógico quantitativo da criação do mun do por um Deus que produz o máximo de efeitos com um míni mo de gastos conduz ao aspecto moral qualitativo da fundação de uma cidade governada por um Senhor cujo principal desígnio é a felicidade dos cidadãos mostrando a inseparabilidade e a har monia dessas duas perspectivas 134Cf Discurso de metafísica 5 135A formação da cidade de Deus se explica em primeiro lugar pela perfeição intrínseca dos espíritos e pela possibilidade que eles têm de aperfeiçoarse através do conhecimento Em ter mos morais isso significa que eles podem ser amigos ou seja podem querer todos a mesma coisa a saber o bem universal ou a justiça que conhecem graças à razão Sobre este assunto Grua Lajustice humaine selon Leibniz Paris PUF 1956 e Jurispruden ce universelle et théodicée selon Leibniz Paris PUF 1953 136A preferência de Deus pelos espíritos se fundamenta no fato de ele mesmo ser um espírito e como espírito dotado de von tade que escolhe livremente o melhor 137Gênesis 1 27 138Atos 17 28 139 0 segundo aspecto que explica a existência da cidade de Deus ou desta união que Deus mantém com as criaturas racio nais é o fato de poder tirar delas mais glória do que dos outros seres já que os espíritos agem com conhecimento à imitação da natureza divina Ora o fim da criação é a glória ou a manifestação por Deus e a comunicação de suas perfeições por isso a criatura que tem a possibilidade de conhecer alguma coisa das perfeições divinas e então agir livremente como um colaborador exprime a glória de Deus muito melhor que as demais criaturas 140Depois de descrever a cidade de Deus a partir de analo gias com o mundo humano como uma sociedade entre um prín cipe e seus súditos porque Deus se humaniza se presta a an tropologias Leibniz define a lei desta sociedade a felicidade A condição dessa felicidade será a imortalidade dos espíritos como afirma em seguida 141A conclusão do Discurso é cristã As importantes verda des que os filósofos antigos conheceram pouco mas podem ter 127 conhecido uma parte delas porque as verdades reveladas estão de acordo com a razão embora possam estar acima dela são as verdades acerca do reino dos céus e do amor que Deus tem pelo homem verdades reveladas por Cristo 142João 17 23 cf Discurso de metafísica 4 143Lucas 12 67 144Mateus 10 30 Lucas 12 7 145Mateus 24 35 146Lucas 12 4 cf Discurso de metafísica 28 147Mateus 12 36 e 10 42 148Mateus 13 43 149Romanos 8 28 Coríntios I 2 9 cf Discurso de meta física 36 Mas porque a inquietude é essencial à felicidade das criaturas cf Novos ensaios II xxi 32 nossa felicidade nunca consistirá e não deve consistir em um gozo pleno no qual nada mais haveria a desejar e que tornaria estúpido nosso espírito mas sim em um progresso perpétuo em direção a novos prazeres e novas perfeições Princípios da natureza e da graça 18 128 OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA OU A MONADOLOGIA Tradução ALEXANDRE DA CRUZ BONILHA Revisão MÁRCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR 1A Mônada de que aqui falaremos não é outra coisa senão uma substância simples que entra nos compostos simples quer dizer sem partes Teodicéia 10 2 E tem de haver substâncias simples uma vez que existem compostos pois o composto nada mais é do que uma reunião ou aggregatum dos simples 3 Ora onde não há partes não há extensão nem figu ra nem divisibilidade possível E estas Mônadas são os ver dadeiros Átomos da Natureza e em suma os Elementos das coisas 4 Tampouco há dissolução a temer e não há maneira concebível pela qual uma substância simples possa perecer naturalmente Teodicéia 89 5 Pela mesma razão não há maneira concebível pela qual uma substância simples possa começar naturalmente posto que não poderia ser formada por composição 6 Assim podese dizer que as Mônadas só poderiam começar ou terminar de uma só vez ou seja só poderiam co meçar por criação e terminar por aniquilação ao passo que o que é composto começa e termina por partes 7 Tampouco há meio de explicar como uma Mônada poderia ser alterada ou transformada em seu interior por al guma outra criatura pois nela nada se poderia introduzir nem se poderia conceber nela nenhum movimento interno 131 que pudesse ser excitado dirigido aumentado ou diminuí do em seu interior como é possível nos compostos em que há mudanças entre as partes As Mônadas não têm janelas pelas quais algo possa entrar ou sair Os acidentes não po deriam separarse nem se pôr a vaguear fora das substân cias como faziam outrora as espécies sensíveis dos escolás ticos Assim nem substância nem acidente podem de fora entrar em uma Mônada 8 Entretanto é preciso que as Mônadas tenham algu mas qualidades caso contrário nem sequer seriam Seres E se as substâncias simples não diferissem por suas qualida des não haveria meio de perceber qualquer mudança nas coisas já que o que está no composto só pode provir dos ingredientes simples e fossem as Mônadas sem qualidades seriam indiscerníveis umas das outras posto que também não diferem em quantidade E por conseguinte o pleno sendo suposto cada lugar só continuaria a receber no mo vimento o Equivalente do que tivera e um estado de coisas seria indiscernível do outro 9 É preciso mesmo que cada Mônada seja diferente de cada uma das outras Pois nunca há na natureza dois Seres que sejam perfeitamente iguais um ao outro e nos quais não seja possível encontrar uma diferença interna ou fun dada em uma denominação intrínseca 10Dou também por aceito que todo ser criado está su jeito à mudança e por conseguinte a Mônada criada também e mesmo que esta mudança seja contínua em cada uma 11Do que acabamos de dizer seguese que as mudan ças naturais das Mônadas provêm de um princípio interno já que uma causa externa não poderia influir em seu inte rior Teodicéia 396 e 400 12 Mas também é preciso que além do princípio da mudança haja um pormenor do que muda que faça por assim dizer a especificação e variedade das substâncias simples 132 13 Esse detalhe deve envolver uma multiplicidade na unidade ou no simples pois como toda mudança natural se faz gradualmente algo muda e algo permanece E por conse guinte é necessário que na substância simples haja uma pluralidade de afecções e de relações ainda que nela não haja partes 14 0 estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na unidade ou na substância simples não é outra coisa senão aquilo que se chama de Percepção que deve ser bem distinguida da apercepção ou da consciência como se verá adiante E nisto os cartesianos equivocaram se muito ao desconsiderarem as percepções de que não nos apercebemos Foi isso também que os fez acreditar que só os espíritos eram Mônadas e que não havia Almas dos ani mais nem outras enteléquias e confundiram com o vulgo um longo atordoamento com morte no sentido rigoroso o que os fez ainda cair no preconceito escolástico das almas inteiramente separadas havendo mesmo reforçado nos es píritos mal formados a opinião da mortalidade das almas 15 A Ação do princípio interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a outra pode ser chamada Apetição é verdade que o apetite nem sempre pode alcan çar inteiramente toda a percepção a que tende mas sem pre obtém algo dela e chega a percepções novas 16 Nós mesmos experimentamos uma multiplicidade na substância simples quando descobrimos que o menor pensamento de que nos apercebemos envolve uma varie dade no objeto Assim todos os que reconhecem que a Al ma é uma substância simples devem reconhecer esta multi plicidade na Mônada e o senhor Bayle não devia encontrar dificuldade nisso como fez no artigo Rorarius de seu Di cionário 17Por outro lado vemonos obrigados a confessar que a percepção e o que depende dela é inexplicável por razões mecânicas isto é por figuras e por movimentos E supon 133 do que haja uma Máquina cuja estrutura faça pensar sentir ter percepção podese concebêla ampliada e conservando as mesmas proporções de maneira que se possa entrar nela como em um moinho Feito isso ao visitála por den tro só encontraremos peças que se põem reciprocamente em movimento e nunca algo que explique uma percepção Portanto tem de se buscála na substância simples e não no composto ou na máquina E é só isso que podemos en contrar na substância simples ou seja as percepções e suas mudanças E é também apenas nisso que podem con sistir todas as ações internas das substâncias simples Pre fácio Teodicéia 18 Poderseiam chamar Enteléquias todas as substân cias simples ou Mônadas criadas pois contêm uma certa perfeição Exovrn iò êvtEXéç e uma suficiência ávtidpxeta que as torna fontes de suas ações internas e por assim di zer Autômatos incorpóreos 19 Se quisermos chamar de Alma tudo o que tem per cepções e apetites no sentido geral que acabo de explicar todas as substâncias simples ou Mônadas criadas poderiam ser chamadas de Almas mas como o sentimento é algo mais que uma simples percepção admito que o nome geral de Mônadas e de Enteléquias baste para as substâncias sim ples que só tenham percepção e que se chame de almas só aquelas cuja percepção é mais distinta e acompanhada de memória 20 Pois experimentamos em nós mesmos um Estado no qual não nos lembramos de nada nem temos nenhuma percepção distinta como quando sofremos um desmaio ou somos vencidos por um profundo sono sem sonhos Neste estado a alma não difere sensivelmente de uma simples Mônada mas como este estado não é duradouro e a alma subtraise dele ela é algo mais 21 Não se segue daí que a substância simples não te nha nenhuma percepção Isto não pode ocorrer precisa 134 mente pelas razões já mencionadas pois ela não poderia perecer nem tampouco subsistir sem alguma afecção que outra coisa não é senão sua percepção Mas quando há uma grande multiplicidade de pequenas percepções em que nada é distinto ficamos aturdidos como quando se gira continuamente em um mesmo sentido várias vezes segui das e sobrevém uma vertigem que pode fazernos desmaiar e que não nos permite distinguir nada E a morte pode pro duzir este estado nos animais por um tempo 22 E assim como todo estado presente de uma subs tância simples é naturalmente uma conseqüência de seu es tado precedente o presente também está prenhe do futu ro Teodicéia 360 23 Assim quando voltando do aturdimento apercebe monos de nossas percepções é preciso que as tenhamos tido imediatamente antes embora sem apercebermonos delas pois uma percepção só pode provir naturalmente de outra percepção como um movimento só pode provir na turalmente de um movimento Teodicéia 401403 24 Com isso vêse que se em nossas percepções não ti véssemos nada de distinto e por assim dizer de elevado e de um gosto mais aprimorado só conheceríamos o atordoa mento É este o estado das Mônadas simplesmente nuas 25Também vemos que a natureza deu percepções apri moradas aos animais pelo cuidado que teve em fornecer lhes órgãos que reúnam vários raios de luz ou várias ondu lações do ar para que pela sua união tivessem mais eficá cia Algo semelhante ocorre com o odor com o gosto e com o tato e talvez com muitos outros sentidos que nos são des conhecidos E logo explicarei como o que se passa na Al ma representa o que ocorre nos órgãos 26 A memória fornece às almas uma espécie de conse cução que imita a razão mas que deve ser distinguida dela E o que observamos nos animais que tendo a percepção de algo que os incomoda e de que já tiveram antes uma percep 135 ção semelhante associamno pela representação de sua me mória aquilo que estava ligado a esta percepção precedente e são levados a sentimentos semelhantes aos que então ha viam experimentado Por exemplo quando se mostra um pau aos cães eles se lembram da dor que lhes causou e ganem e fogem Prelimin 65 27 E a imaginação forte que os incomoda e agita pro vém ou da magnitude ou da multiplicidade das percepções anteriores Pois freqüentemente uma impressão forte pro voca de uma só vez o efeito de um hábito prolongado ou de muitas percepções fracas reiteradas 28 Os homens agem como os animais quando as con secuções de suas percepções só se efetuam pelo princípio da memória à semelhança dos médicos empíricos que pos suem simplesmente a prática sem a teoria e somos mera mente empíricos em três quartos de nossas ações Por exem plo quando se espera que amanhã raie o dia procedese como um empirista porque sempre foi assim até hoje Só o astrônomo julga nesse caso segundo a razão 29 Mas o conhecimento das verdades necessárias e eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos faz possuidores da razão e das ciências elevandonos ao co nhecimento de nós mesmos e de Deus É o que se chama de Alma Racional ou espírito 30 Também pelo conhecimento das verdades necessá rias e por suas abstrações elevandonos aos atos reflexivos que nos fazem pensar no que se chama Eu e considerar que isto ou aquilo está em nós e é assim que ao pensar em nós pensamos no ser na substância no simples ou no composto no imaterial e no próprio Deus quando conce bemos que o que em nós é limitado nele é sem limites E estes atos reflexivos fornecem os objetos principais de nos sos raciocínios Prefácio Teodicéia 31 Nossos raciocínios estão fundados em dois grandes princípios o da contradição em virtude do qual julgamos 136 que é falso o que ele implica e verdadeiro o que é oposto ou contraditório ao falso Teodicéia 44 e 169 32 E o de razão suficiente em virtude do qual consi deramos que nenhum fato pode ser verdadeiro ou existen te nenhum enunciado verdadeiro sem que haja uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo ainda que com muita freqüência estas razões não possam ser co nhecidas por nós Teodicéia 44 e 169 33 Há dois tipos de verdades as de raciocínio e as de fato As verdades de razão são necessárias e seu oposto é impossível e as defato são contingentes e seu oposto é pos sível Quando uma verdade é necessária podese encontrar sua razão pela análise resolvendoa em idéias e em verda des mais simples até se chegar às primitivas Teodicéia 170 174 189 280282 367 Resumo 34 Objeção 34 É assim que os matemáticos reduzem pela análise os teoremas de especulação e os cânones de prática a defi nições axiomas e postulados 35 E há enfim idéias simples cuja definição não pode ríamos dar há também Axiomas e Postulados ou em suma princípios primitivos que não poderiam ser provados e tampouco têm necessidade de sêlo são os enunciados idênticos cujo oposto contém uma contradição expressa 36 Mas a razão suficiente deve encontrarse também nas verdades contingentes ou de fato ou seja na série das coisas espalhadas pelo universo das criaturas onde a reso lução em razões particulares poderia chegar a um detalha mento sem limite devido à variedade imensa das coisas da natureza e à divisão dos corpos até o infinito Há uma infi nidade de figuras e de movimentos presentes e passados que entram na causa eficiente desse meu ato presente de escrever e há uma infinidade de pequenas inclinações e disposições de minha alma presentes e passadas que en tram na sua causa final Teodicéia 36 37 44 45 49 52 121 122 337 340344 137 37 E como todo este detalhe não encerra senão outros contingentes anteriores ou mais detalhados cada um dos quais ainda necessitando de uma análise semelhante que pudesse explicálo não se logrou avançar mais com isso a razão suficiente ou última tem de estar fora da seqüência ou séries deste detalhe das contingências por infinito que este possa ser 38 Assim sendo a razão última das coisas deve estar em uma substância necessária na qual o detalhe das mudan ças só esteja eminentemente como em sua fonte é o que chamamos Deus Teodicéia 7 39 Ora sendo esta substância uma razão suficiente de todo este detalhe o qual também está interligado em toda parte não há mais que um Deus e este Deus é suficiente 40 Podese julgar também que esta Substância Supre ma que é única universal e necessária não tendo nada fora dela que lhe seja independente e sendo uma conseqüên cia simples do ser possível deva ser incapaz de limites e conter tanta realidade quanto seja possível 41 Donde se segue que Deus é absolutamente perfeito pois a perfeição não é senão a grandeza da realidade posi tiva considerada precisamente pondo à parte as restrições ou os limites das coisas que os têm E onde não há limites ou seja em Deus a perfeição é absolutamente infinita Teo dicéia 22 Prefácio Teodicéia 42 Seguese também que as perfeições das criaturas procedem da influência de Deus mas suas imperfeições de sua própria natureza incapaz de ser ilimitada Por isto distinguemse de Deus Teodicéia 20 2731 153 167 377 ss 43 Também é verdade que em Deus reside não só a fonte das existências mas também a das essências enquan to reais ou do que há de real na possibilidade Porque o Entendimento de Deus é a região das verdades eternas ou das idéias de que estas verdades dependem e sem ele não 138 haveria nada de real nas possibilidades e não somente nada de existente como tampouco nada de possível Teo dicéia 20 44 Pois se há uma realidade nas essências ou possibi lidades ou então nas verdades eternas é imperativo que esta realidade esteja fundada em algo existente e Atual e por conseguinte na Existência do Ser necessário no qual a Essência encerra a Existência ou no qual é suficiente ser possível para ser atual Teodicéia 184189 335 45 Assim só Deus ou o Ser necessário tem o privilé gio de ter de existir necessariamente se é possível E como nada pode impedir a possibilidade do que não encerra ne nhum limite nenhuma negação e por conseguinte nenhu ma contradição isto é suficiente para se conhecer a existên cia de Deus a priori Também a provamos pela realidade das verdades eternas Mas acabamos de provála também a pos teriori posto que existem seres contingentes que só podem ter sua razão última ou suficiente no ser necessário que pos sui em si mesmo a razão de sua existência 46 No entanto não se deve pensar com alguns que as verdades eternas sendo dependentes de Deus sejam ar bitrárias e dependam de sua vontade como parece conce ber Descartes e depois o senhor Poiret Isto só é verdadei ro no caso das verdades contingentes cujo princípio é a conveniência ou a eleição do melhor ao passo que as Ver dades Necessárias dependem unicamente de seu entendi mento e são seu objeto interno Teodicéia 180184 185 335 351 380 47 Assim só Deus é a unidade primitiva ou a substân cia simples originária da qual todas as Mônadas criadas ou derivativas são produções e nascem por assim dizer por Fulgurações contínuas da Divindade de momento a mo mento limitadas pela receptividade da criatura para a qual é essencial ser limitada Teodicéia 382391 398 395 48 Em Deus está a potência que é a fonte de tudo de pois o conhecimento que contém o detalhe das idéias e por 139 fim a vontade que opera as mudanças ou produções se gundo o princípio do melhor E isto corresponde ao que nas Mônadas criadas constitui o Sujeito ou Base a Faculda de Perceptiva e a Faculdade Apetitiva Mas em Deus estes atributos são absolutamente infinitos ou perfeitos enquan to nas Mônadas criadas ou nas Enteléquias ou perfectiha bies como traduziu esta palavra Ermolao Barbaro não pas sam de imitações proporcionais à perfeição delas Teodi céia 7 149 150 87 49 Dizse que a criatura age exteriormente na medida em que tem perfeição e padece a ação de outra na medida em que é imperfeita Assim atribuise ação à Mônada na medi da em que esta tem percepções distintas e paixão na medida em que as tem confusas Teodicéia 32 66 386 50 E uma criatura é mais perfeita que outra quando se encontra nela o que serve para dar a razão a priori do que se passa na outra e por isso se diz que age sobre a outra 51 Mas nas substâncias simples só há uma influência ideal de uma Mônada sobre outra a qual não pode efetuar se senão pela intervenção de Deus enquanto nas idéias de Deus uma Mônada requer com razão que Deus tendo regu lado as outras desde o começo das coisas também a consi dere Pois como uma Mônada criada não poderia influir fi sicamente no interior de outra só por este meio uma pode depender de outra Teodicéia 9 54 65 66 201 Resumo 3 Objeção 52 E por isto as ações e paixões entre as criaturas são mútuas Pois Deus ao comparar duas substâncias simples encontra em cada uma delas razões que o obrigam a aco modála à outra e por conseguinte o que é ativo em cer tos aspectos é passivo de outro ponto de vista ativo en quanto o que se conhece distintamente nele serve para ex plicar o que acontece em outro e passivo enquanto a razão do que lhe acontece encontrase no que se conhece distin tamente em outro Teodicéia 66 140 53 Ora como há uma infinidade de universos possíveis nas idéias de Deus e apenas um deles pode existir tem de haver uma razão suficiente da escolha de Deus que o de termine a preferir um a outro Teodicéia 8 10 44 173 196 ss 225 414416 54 E esta razão só pode encontrarse na conveniência ou nos graus de perfeição que estes mundos contêm cada possível tendo o direito de pretender à Existência segundo a medida da perfeição que envolva Teodicéia 74 167 350 201 130 352 345 ss 354 55 E esta é a causa da existência do melhor que a sa bedoria revelou a Deus que sua bondade o levou a esco lher e sua potência o levou a produzir Teodicéia 8 78 80 84 119 204 206 208 Resumo 1 2 Objeção 82 Objeção 56 Ora esta ligação ou acomodação de todas as coi sas criadas a cada uma e de cada uma a todas as outras faz com que cada substância simples tenha relações que ex pressem todas as outras e que seja por conseguinte um espelho vivo perpétuo do universo Teodicéia 130 360 57 E assim como uma mesma cidade contemplada de diversos lados parece totalmente outra e sendo como que multiplicada perspectivamente o mesmo ocorre quando devido à multiplicidade infinita de substâncias simples pa rece haver outros tantos universos diferentes que entretan to nada mais são do que as perspectivas de um só segun do os diferentes pontos de vista de cada Mônada Teodicéia 147 58 E este é o meio de obter toda a variedade possível mas com a maior ordem possível ou seja é o meio de ob ter tanta perfeição quanto possível Teodicéia 120 124 241 ss 214 243 275 59 Também esta hipótese que ouso afirmar demons trada é a única que destaca como é devido a grandeza de Deus o senhor Bayle o reconheceu quando lhe fez obje ções em seu Dicionário artigo Rorarius onde ficou mes 141 mo tentado a crer que eu concedia demasiado a Deus e mais do que possível Mas não pôde alegar razão alguma da impossibilidade desta harmonia universal que faz com que cada substância expresse exatamente todas as demais mediante as relações que mantém com elas 60 Vêemse ademais pelo que acabo de dizer as ra zões a priori das coisas não poderem ser de outro modo porque Deus ao regular o todo considerou cada parte e particularmente cada Mônada cuja natureza sendo repre sentativa não poderia ser limitada por coisa alguma a re presentar só uma parte das coisas ainda que seja verdade que essa representação seja apenas confusa quanto ao de talhe de todo o universo e distinta apenas em uma pequena parte das coisas isto é naquelas que são ou as mais próxi mas ou as maiores com relação a cada uma das mônadas de outro modo cada Mônada seria uma Divindade Não é no objeto mas na modificação do conhecimento do objeto que as Mônadas são limitadas Todas elas tendem confusa mente ao infinito ao todo mas são limitadas e distinguem se pelos graus das percepções distintas 61 E nisto os compostos simbolizam os simples Pois como tudo é pleno e toda a matéria por conseguinte liga da e como no pleno todo movimento produz algum efei to sobre os corpos distantes segundo a distância de ma neira que cada corpo é afetado não só por aqueles que o tocam ressentindose de algum modo de tudo o que lhes ocorre como também por meio deste s ressentese ainda dos que tocam os primeiros com os quais está imediata mente em contato Donde se segue que esta comunicação atinge qualquer distância E por conseguinte todo corpo ressentese de tudo o que se faz no universo de tal modo que aquele que tudo visse poderia ler em cada um o que se faz em toda parte e mesmo o que ocorreu e o que ocor rerá observando no presente o que está distante tanto nos tempos como nos lugares Bvgicvoua tdvtia dizia Hipócra 142 tes Mas uma Alma pode ler em si mesma só o que nela está distintamente representado ela não poderia desenvolver de uma só vez todos seus recantos íntimos pois eles se es tendem até o infinito 62 Assim ainda que cada Mônada criada represente todo o universo ela representa com maior distinção o cor po que lhe é particularmente afetado e cuja enteléquia cons titui e como esse corpo expressa todo o universo pela cone xão de toda a matéria no pleno a Alma representa também todo o universo ao representar este corpo que lhe pertence de maneira particular Teodicéia 400 63 0 corpo pertencente a uma Mônada que é sua En teléquia ou Alma constitui com a Enteléquia o que se pode chamar um vivente e com a Alma o que se pode chamar um animal Ora esse corpo de um vivente ou de um ani mal é sempre orgânico pois cada Mônada sendo a seu modo um espelho do universo e estando o universo regu lado conforme uma ordem perfeita é preciso que haja tam bém uma ordem no representante ou seja nas percepções da alma e por conseguinte no corpo segundo a qual o uni verso está representado nela Teodicéia 403 64 Assim cada corpo orgânico de um vivente é uma Espécie de Máquina Divina ou de Autômato Natural que supera infinitamente todos os Autômatos artificiais Porque uma Máquina construída segundo a arte humana não é Máquina em cada uma de suas partes Por exemplo o den te de uma roda de latão tem partes ou fragmentos que não são mais para nós algo artificial e não têm mais nada que identifique a Máquina para o uso da qual está destinada a roda Mas as Máquinas da Natureza isto é os corpos vivos são Máquinas inclusive em suas menores partes até o infi nito E isto que constitui a diferença entre a Natureza e a Arte isto é entre a arte Divina e a Nossa Teodicéia 134 146 194 403 65 E o Autor da Natureza pôde praticar este artifício divino e infinitamente maravilhoso porque cada porção da 143 matéria não só é divisível ao infinito como reconheceram os antigos como ainda está subdividida atualmente sem fim cada parte em partes das quais cada uma tem algum movi mento próprio de outro modo seria impossível que cada porção da matéria pudesse expressar todo o universo Dis curso preliminar 70 Teodicéia 195 66 Podese assim observar que há um Mundo de cria turas de viventes de Animais de Enteléquias de Almas na menor parte da matéria 67 Cada porção da matéria pode ser concebida como um jardim cheio de plantas e como um lago cheio de peixes Mas cada ramo da planta cada membro do Animal cada go ta de seus humores é também um jardim ou um lago 68 E embora a terra e o ar interpostos entre as plantas do jardim ou a água interposta entre os peixes do lago não sejam planta nem peixe eles os contêm ainda mas muito freqüentemente com uma sutileza que para nós é imper ceptível 69 Assim não há nada inculto estéril ou morto no uni verso não há caos não há confusão senão na aparência se ria como se víssemos de uma certa distância num lago um movimento confuso e um tumulto dos peixes do lago sem que discerníssemos os próprios peixes Prefácio Teodicéia 70 Assim vemos que cada corpo vivo tem uma Ente léquia dominante que no Animal é a Alma mas os mem bros deste corpo vivo estão plenos de outros viventes plan tas animais cada um dos quais tem ainda sua Enteléquia ou sua Alma dominante 71 Mas não se deve pensar como alguns que haviam compreendido mal meu pensamento que cada Alma tem uma massa ou porção de matéria própria ou que está afe tada a ela para sempre e que possui conseqüentemente outros viventes inferiores destinados a servila para sempre Pois todos os corpos estão em um fluxo perpétuo como os rios e as partes neles entram e saem continuamente 144 72 Assim a alma só muda de corpo pouco a pouco e gradativamente de maneira que nunca é despojada instan taneamente de todos os seus órgãos e freqüentemente há metamorfose nos animais mas nunca Metempsicose nem transmigração das Almas tampouco há Almas completa mente separadas nem gênios sem corpo Só Deus está completamente separado Teodicéia 90 124 73 É isso que faz com que não haja nunca nem com pleta geração nem morte perfeita no sentido estrito a sa ber a que consiste na separação da alma E o que chama mos gerações são desenvolvimentos e crescimentos assim como o que chamamos mortes são envolvimentos e dimi nuições 74 Os filósofos já ficaram muito embaraçados a res peito da origem das Formas Enteléquias ou Almas mas hoje quando nos apercebemos por investigações exatas feitas em plantas insetos e animais que os corpos orgâni cos da natureza nunca são produzidos a partir de um caos ou de uma putrefação mas sempre a partir de sementes nas quais sem dúvida havia alguma preformação conside ramos que antes da concepção não só já existia em seu interior o corpo orgânico como também uma Alma neste corpo e em uma palavra o animal mesmo e que median te a concepção este animal só foi disposto para uma gran de transformação para tornarse um animal de outra espé cie Vêse mesmo algo parecido fora da geração quando os vermes se transformam em moscas e as lagartas em borbo letas Teodicéia 86 89 Prefácio Teodicéia 90 187188 403 397 75 Os animais dos quais alguns são elevados ao grau dos maiores animais por meio da concepção podem ser chamados espermáticos mas os que permanecem em sua espécie isto é a maioria nascem multiplicamse e são des truídos como os animais grandes e não há senão um pe queno número de Eleitos que passa a um teatro maior 145 76 Mas isto só é meia verdade julguei então que se o animal nunca começa naturalmente tampouco termina naturalmente e que não só não haverá geração como tam pouco destruição completa nem morte no sentido estrito E estes raciocínios feitos a posteriori e tirados das experiên cias concordam perfeitamente com meus princípios dedu zidos a priori como acima Teodicéia 90 77 Assim podese dizer que não só a Alma espelho de um universo indestrutível é indestrutível como tam bém o próprio animal ainda que sua Máquina freqüente mente pereça em parte e abandone ou tome despojos or gânicos 78 Estes princípios me permitiram explicar natural mente a união ou melhor a conformidade da alma e do corpo orgânico A alma segue suas próprias leis e os corpos também as suas e eles se encontram em virtude da harmo nia preestabelecida entre todas as substâncias pois todas elas são representações de um mesmo universo Prefácio Teodicéia 340 352 353 358 79 As almas agem segundo as leis das causas finais por apetições fins e meios Os corpos agem segundo as leis das causas eficientes ou dos movimentos E os dois rei nos das causas eficientes e o das causas finais são harmô nicos entre si 80 Descartes reconheceu que as almas não podem dar força aos corpos porque sempre há na matéria a mesma quantidade de força Entretanto acreditou que a alma po dia mudar a direção dos corpos Mas isto foi assim porque em seu tempo desconheciase a lei da natureza que estabe lece também a conservação da mesma direção total na ma téria Se a conhecesse teria caído no meu sistema da har monia preestabelecida Prefácio Teodicéia 22 59 60 61 63 66 345 346 ss 354 355 81 Este Sistema faz com que os corpos ajam como se não houvesse Almas o que é impossível e que as Almas 146 ajam como se não houvesse corpos e que ambos ajam co mo se um influísse no outro 82 Quanto aos espíritos ou Almas racionais ainda que eu considere haver no fundo a mesma coisa em todos os viventes e animais como acabamos de dizer a saber que o Animal e a Alma só começam com o mundo e como o mundo não acabam há todavia uma particularidade nos animais racionais a saber que seus pequenos Animais Es permáticos enquanto não são senão isso somente têm Al mas ordinárias ou sensitivas mas assim que os eleitos por assim dizer alcançam por concepção atual a natureza hu mana suas almas sensitivas são elevadas ao grau da razão e à prerrogativa dos Espíritos Teodicéia 91 397 83 Entre outras diferenças entre as Almas ordinárias e os Espíritos algumas das quais já assinalei há ainda esta as almas em geral são espelhos vivos ou imagens do uni verso das criaturas enquanto os espíritos são ainda ima gens da própria divindade ou do próprio autor da nature za capazes de conhecer o sistema do universo e de imitar algo dele mediante amostras arquitetônicas pois cada espí rito é como uma pequena divindade em seu âmbito Teodi céia 147 84 É o que faz com que os espíritos sejam capazes de ingressar em uma Espécie de Sociedade com Deus e por isto Deus é para eles não só o que um inventor é para sua Máquina o que Deus é relativamente às outras criaturas como também o que um príncipe é para seus súditos e in clusive um pai para seus filhos 85 Donde é fácil concluir que a reunião de todos os Espíritos deve constituir a Cidade de Deus isto é o estado mais perfeito possível sob o mais perfeito dos monarcas Teodicéia 146 Resumo 2 4 Objeção 86 Esta cidade de Deus esta Monarquia verdadeira mente universal é um Mundo Moral no Mundo Natural e o que há de mais elevado e divino nas obras de Deus Nisto consiste verdadeiramente a glória de Deus posto que não 147 teria nenhuma se sua grandeza e sua bondade não fossem conhecidas e admiradas pelos espíritos E também relativa mente a esta cidade divina que Ele tem propriamente Bon dade enquanto sua sabedoria e sua potência manifestam se em tudo 87 Assim como acima estabelecemos uma Harmonia perfeita entre dois Reinos Naturais o das causas eficientes outro das finais também devemos destacar outra harmo nia entre o reino Físico da Natureza e o reino Moral da Gra ça isto é entre Deus considerado como Arquiteto da Má quina do universo e Deus considerado como Monarca da cidade divina dos Espíritos Teodicéia 62 74 118 112 130 247 248 88 Esta harmonia faz com que as coisas conduzam à graça pelas próprias vias da natureza e que este globo por exemplo deva ser destruído e reparado pelas vias naturais nos momentos requeridos pelo governo dos Espíritos para castigo de uns e recompensa de outros Teodicéia 18 ss 110 244 245 e 340 89 Também se pode dizer que Deus como arquiteto satisfaz em tudo a Deus como legislador e que assim os pecados devem implicar seu próprio castigo segundo a or dem da natureza e em virtude da própria estrutura mecâni ca das coisas e que do mesmo modo as belas ações obte rão sua recompensa por vias mecânicas em relação aos cor pos ainda que isto não possa nem deva ocorrer sempre imediatamente 90 Enfim sob este governo perfeito não haverá boa Ação sem recompensa nem má sem castigo e tudo deve resultar no bem dos bons isto é dos que não estão des contentes nesse grande Estado que confiam na providên cia depois de terem cumprido seu dever e que amam e imitam como é devido o Autor de todo o bem compra zendose na consideração de suas perfeições segundo a natureza do verdadeiro amor puro que faz com que se sin 148 ta prazer com a felicidade daquilo que se ama É isto que faz trabalhar as pessoas sábias e virtuosas em tudo o que parece conforme à vontade divina presuntiva ou antece dente e o que as faz se contentarem entretanto com o que Deus faz com que ocorra efetivamente pela sua vontade secreta conseqüente e decisiva reconhecendo que se pu déssemos entender suficientemente a ordem do universo descobriríamos que supera todas as aspirações dos mais sá bios e que é impossível fazêlo melhor do que é não só relativamente ao todo em geral mas também relativamente a nós mesmos em particular se estamos ligados como é devido ao Autor do todo não só como arquiteto e causa eficiente de nosso ser mas também como nosso Senhor e causa final que deve constituir todo o fim de nossa vonta de e o único que pode fazer nossa felicidade Teodicéia 134 fin Prefácio Teodicéia 278 149 PRINCÍPIOS DA NATUREZA E DA GRAÇA FUNDADOS NA RAZÃO Tradução ALEXANDRE DA CRUZ BONILHA Revisão MARCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR 1 A substância é um Ser capaz de Ação Ela é simples ou composta A substância simples é aquela que não tem partes A composta é a reunião das substâncias simples ou Mônadas Monas é uma palavra grega que significa unida de ou o que é uno Os compostos ou os corpos são Multipli cidades e as Substâncias simples as Vidas as Almas os Espí ritos são unidades É preciso que em toda parte haja substân cias simples porque sem as simples não haveria compostas Por conseguinte toda a natureza está plena de vida 2As Mônadas não tendo partes não podem ser forma das nem destruídas Não podem começar nem terminar natu ralmente e duram por conseguinte tanto quanto o universo que será mudado mas não será destruído Não podem ter fi guras caso contrário teriam partes e por conseguinte uma Mônada em si mesma e em um momento dado não pode ria distinguirse de outra a não ser pelas qualidades e ações internas que não podem ser outra coisa senão suas percep ções isto é as representações do composto ou do que é ex terno no simples e suas apetições isto é suas passagens ou tendências de uma percepção a outra que são os prin cípios da mudança Pois a simplicidade da substância não impede a multiplicidade das modificações que devem ocor rer simultaneamente nesta mesma substância simples e de vem consistir na variedade das relações com as coisas que 153 estão fora É como um centro ou ponto no qual por mais simples que seja existem uma infinidade de ângulos forma dos pelas linhas que para ele convergem 3 Na natureza tudo é pleno Há substâncias simples em toda parte efetivamente separadas umas das outras por ações próprias que mudam continuamente suas relações e cada substância simples ou Mônada distinta que constitui o centro de uma substância composta como por exemplo de um animal e o principio de sua unicidade está rodea da por uma massa composta de uma infinidade de outras Mônadas que constituem o corpo próprio desta Mônada central a qual representa segundo as afecções desse cor po como em uma espécie de centro as coisas que estão fora dela E este corpo é orgânico quando forma uma espé cie de Autômato ou Máquina da Natureza que é máquina não apenas no todo como também nas mais ínfimas par tes que podem ser observadas E como tudo está ligado de vido à plenitude do mundo e cada corpo atua em maior ou menor medida sobre cada um dos demais segundo a distância sendo por sua vez afetado por reação seguese que cada Mônada é um Espelho vivo ou dotado de ação interna representativo do universo segundo seu ponto de vista e tão regulado como o próprio universo Na Mônada as percepções nascem umas de outras segundo as leis dos Apetites ou das causas finais do bem e do mal que consis tem nas percepções notáveis reguladas ou desreguladas assim como as mudanças dos corpos e os fenômenos ex ternos nascem uns de outros segundo as leis das causas eficientes isto é dos movimentos Assim há uma harmo nia perfeita entre as percepções da Mônada e os movimen tos dos corpos preestabelecida de antemão entre o sistema das causas eficientes e o das causas finais e nisto consiste o acordo e a união física da alma e do corpo sem que um deles possa mudar as leis do outro 154 4 Cada Mônada com seu corpo particular constitui uma substância viva Desse modo não só há vida em toda parte incorporada nos membros ou órgãos como também há uma infinidade de graus entre as Mônadas e umas do minam mais ou menos as outras Mas quando a Mônada tem órgãos tão ajustados que graças a eles ganham relevo e distinção as impressões que eles recebem e por conseguin te também as percepções que os representam como por exemplo quando mediante a configuração dos humores dos olhos os raios da luz se concentram e atuam com maior força então se pode chegar até o sentimento quer dizer até uma percepção acompanhada de memória isto é uma percepção cujo eco perdura durante muito tempo fazendo se ouvir na ocasião apropriada tal vivente é chamado ani mal e sua Mônada é chamada alma E quando esta Alma se eleva até a Razão ela é algo mais sublime e pode ser in cluída entre os espíritos o que logo se explicará É verdade que os Animais se encontram às vezes no estado de simples viventes e suas Almas no estado de sim ples Mônadas a saber quando suas percepções não são su ficientemente distintas para que possam recordarse delas como ocorre em um profundo sono sem sonhos ou em um desmaio Mas as percepções que se tornaram inteiramente confusas devem voltar a desenvolverse nos animais pelas razões que direi mais adiante no 12 Assim é bom distinguir entre a percepção que é o estado interior da Mônada repre sentando as coisas externas e a apercepção que é a cons ciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior a qual não é dada a todas as almas e nem sempre a mesma alma Foi por não ter feito esta distinção que os cartesianos erraram ao desconsiderar as percepções de que não nos apercebemos assim como o vulgo desconsidera os corpos insensíveis Foi isto também que levou estes mesmos carte sianos a acreditar que só os espíritos são Mônadas que não existem almas dos animais e menos ainda outros princípios 155 de vida E assim como chocaram demasiado a opinião co mum dos homens recusando sentimento aos animais con formaramse demasiadamente pelo contrário aos preconcei tos do vulgo ao confundirem um longo aturdimento que provém de uma grande confusão das percepções com mor te propriamente dita na qual cessaria qualquer percepção Isto reforçou a opinião mal fundada da destruição de algumas almas e o pernicioso sentimento de alguns espíritos fortemen te presunçosos que combateram a imortalidade da nossa 5 Existe uma ligação nas percepções dos animais que tem certa semelhança com a Razão mas está fundada ape nas na memória dos fatos ou efeitos e de modo algum no conhecimento das causas Assim um cão foge do bastão com o qual lhe bateram porque a memória lhe representa a dor que esse bastão lhe causou E os homens enquanto empí ricos isto é nas três quartas partes de suas ações só atuam como animais Por exemplo esperase que amanhã raie o dia porque sempre se experimentou assim só um astrôno mo prevê tal fenômeno segundo a razão e mesmo esta previsão falhará finalmente quando a causa do dia que não é eterna cessar Mas o raciocínio verdadeiro depende das verdades necessárias ou eternas como são a da Lógica a dos Números e a da Geometria que tornam indubitável a conexão entre as idéias e infalíveis suas conseqüências Os animais nos quais não se notam essas conseqüências são chamados bestas mas os que conhecem essas verdades ne cessárias são em sentido próprio os que são chamados animais racionais e cujas almas se conhece pelo nome de espíritos Essas almas são capazes de realizar Atos reflexi vos e de considerar o que chamamos eu Substância Alma Espírito em uma palavra as coisas e as verdades imate riais e é isso que nos torna capazes de ciências ou conhe cimentos demonstrativos 6 As investigações dos modernos nos ensinaram e a razão o confirma que aqueles seres vivos cujos órgãos co 156 nhecemos isto é as plantas e os animais não provêm em absoluto de uma putrefação ou de um Caos como acredi tavam os antigos mas de sementes preformadas e por con seguinte da Transformação dos viventes preexistentes Nas sementes dos animais grandes há pequenos animais que mediante a concepção adotam um novo revestimento do qual se apropriam que lhes permite se alimentar e crescer para passar a um teatro maior e realizar a propagação do animal grande É verdade que as Almas dos Animais Esper máticos humanos não são racionais e só chegam a sêlo quando a concepção destina estes animais à natureza huma na E assim como em geral os animais não nascem inteira mente na concepção ou geração tampouco perecem com pletamente nisso que chamamos morte porque é razoável que o que não começa naturalmente tampouco termine naturalmente na ordem da natureza Assim ao abandonar sua máscara ou seus despojos voltam simplesmente a um teatro mais sutil onde contudo podem ser tão sensíveis e estar tão bem regulados como no maior E o que se acaba de dizer dos grandes animais tem lugar também na geração e na morte dos animais espermáticos isto é estes são de senvolvimentos de outros animais espermáticos menores comparados com os quais podem ser considerados gran des pois na natureza tudo vai ao infinito Assim pois não só as Almas como também os animais são ingênitos e im perecíveis são apenas desenvolvidos envolvidos reves tidos despojados transformados as Almas nunca abando nam totalmente seu corpo e não passam de um corpo a outro inteiramente novo Não há metempsicose mas sim meta morfose Os animais mudam tomam e abandonam só par tes Isto ocorre pouco a pouco e segundo pequenas por ções insensíveis mas continuamente na Nutrição e de uma só vez de maneira sensível ainda que raramente na con cepção ou na morte quando adquirem ou perdem muito de uma vez 157 7 Até aqui só falamos como simples físicos agora de vemos elevarnos à metafisica valendonos do grande prin cípio pouco empregado usualmente que afirma que nada se faz sem razão suficiente isto é que nada ocorre sem que seja possível àquele que conheça suficientemente as coisas dar uma razão que baste para determinar por que é assim e não de outro modo Posto este princípio a primeira per gunta que temos direito de formular será por que existe al guma coisa e não o nada Pois o nada é mais simples e mais fácil do que alguma coisa Ademais supondose que devam existir coisas é preciso que se possa dar a razão de por que devem existir assim e não de outro modo 8 Ora não se poderia encontrar esta razão suficiente da existência do universo na série das coisas contingentes isto é na série dos corpos e de suas representações nas Al mas porque a Matéria sendo em si mesma indiferente ao movimento e ao repouso e a tal ou qual movimento não poderíamos encontrar nela a razão do movimento e menos ainda de um movimento determinado E ainda que o movi mento presente que está na matéria provenha do prece dente e este de outro precedente com isso não consegui ríamos avançar ainda que retrocedêssemos indefinidamente pois sempre permanece a mesma questão Assim é preciso que a razão suficiente que não necessita de outra razão esteja fora desta série de coisas contingentes e se encon tre em uma substância que seja sua causa e que seja um Ser necessário que tenha em si a Razão de sua existência pois de outro modo não teríamos ainda uma razão suficien te na qual pudéssemos parar E esta última razão das coisas se chama Deus 9 Esta substância simples primitiva deve encerrar emi nentemente as perfeições contidas nas substâncias derivati vas que são seus efeitos Assim terá a potência o conheci mento e a vontade perfeitos isto é terá onipotência onis ciência e bondade soberanas E como a justiça considera 158 da de maneira geral não é outra coisa que bondade con forme à sabedoria é preciso que haja também uma justiça soberana em Deus A Razão que fez com que as coisas exis tissem por Ele faz com que continuem dependendo dele também enquanto existem e operam e elas recebem conti nuamente dele aquilo que faz com que possuam alguma perfeição mas o que lhes resta de imperfeição provém da limitação essencial e original da criatura 10Da perfeição suprema de Deus seguese que ao pro duzir o universo Ele elegeu o melhor Plano possível no qual existisse a maior variedade possível associada à maior ordem possível o terreno o lugar o tempo mais bem dis postos o máximo efeito produzido pelas vias mais simples e o máximo de potência o máximo de conhecimento o máximo de felicidade e de bondade que o universo pudes se admitir nas criaturas Pois como todos os Possíveis pre tendem à existência no entendimento de Deus na propor ção de suas perfeições o resultado de todas essas preten sões deve ser o Mundo Atual o mais perfeito possível E sem isto não seria possível dar a razão de por que as coisas ocorreram antes assim do que de outro modo 11A Suprema Sabedoria de Deus o fez eleger sobretu do as leis do movimento melhor ajustadas e que melhor convêm às razões abstratas ou Metafísicas Nelas conserva se a mesma quantidade da força total e absoluta ou da ação a mesma quantidade da força respectiva ou da reação a mesma quantidade por fim da força diretiva Ademais a ação é sempre igual à reação e o efeito integral sempre equivale à sua causa plena É surpreendente que somente mediante a consideração das causas eficientes ou da maté ria não possamos explicar as leis do movimento descober tas em nosso tempo parte das quais foram descobertas por mim mesmo Pois percebi que era necessário recorrer às causas finais e que estas leis não dependem do princípio da necessidade como as verdades Lógicas Aritméticas e 159 Geométricas mas sim do princípio da conveniência isto é da eleição realizada pela Sabedoria E esta é uma das provas mais eficazes e mais sensíveis da existência de Deus para os que podem aprofundar estas questões 12 Seguese ainda da Perfeição do Autor Supremo que não só a ordem do universo inteiro é a mais perfeita possí vel como também que cada espelho vivo que representa o universo segundo seu ponto de vista isto é cada Mônada cada centro substancial deve ter suas percepções e seus apetites regulados do modo mais compatível possível com todo o resto Donde se segue ainda que as almas quer di zer as Mônadas mais dominantes ou ainda mais os pró prios animais não podem deixar de despertar do estado de dormência a que a morte ou algum outro acidente possa submetêlos 13 Pois nas coisas tudo está regulado de uma vez para sempre com tanta ordem e correspondência quanto possí vel já que a Suprema Sabedoria e Bondade não podem atuar senão com perfeita harmonia o presente está prenhe do futuro o futuro poderia ser lido no passado o longín quo está expresso no próximo Poderíamos reconhecer a beleza do universo em cada alma se pudéssemos desdo brar todas as suas dobras que só se desenvolvem sensivel mente no tempo Mas como cada percepção distinta da alma compreende uma infinidade de percepções confusas que envolvem todo o universo e como a própria alma só conhece as coisas que pode perceber na medida em que possui percepções distintas e acuradas destas coisas tendo perfeição na mesma medida em que possui percepções dis tintas Cada alma conhece o infinito conhece tudo mas con fusamente como quando passeando nas margens do mar e ouvindo o grande barulho que produz ouço os barulhos particulares de cada onda de que se compõe o barulho to tal mas sem discernilos Mas percepções confusas são o resultado das impressões que todo o universo produz em 160 nós O mesmo ocorre com cada Mônada Só Deus tem um conhecimento distinto de tudo pois Ele é a fonte de tudo Dele se disse muito atinadamente que é como centro em toda parte mas que sua circunferência não está em parte alguma pois tudo lhe é imediatamente presente sem ne nhum distanciamento deste centro 14 Quanto à Alma racional ou espírito há nela algo mais que nas Mônadas ou mesmo nas simples Almas Não é só um espelho do universo das criaturas como também uma imagem da divindade O espírito não apenas tem uma percepção das obras de Deus como ainda é capaz de pro duzir algo que se lhes assemelhe ainda que em pequena escala Pois para além das maravilhas dos sonhos em que inventamos sem esforço mas também independente de nossa vontade coisas cuja descoberta exigiria de nós em estado de vigília uma longa reflexão nossa Alma é Arqui tetônica também nas ações voluntárias e descobrindo as ciências segundo as quais Deus regulou as coisas pondere mensura numero etc ela imita em seu âmbito e em seu pequeno mundo no qual lhe é permitido exercerse o que Deus faz no grande 15 Por isso todos os Espíritos seja dos homens seja dos gênios ao entrarem em uma espécie de Sociedade com Deus em virtude da Razão e das verdades eternas são mem bros da Cidade de Deus quer dizer do Estado mais perfei to formado e governado pelo maior e o melhor dos Mo narcas no qual não há crime sem castigo nem boas ações sem recompensa proporcional e finalmente tanta virtude e felicidade quanto possível E isto não mediante uma per turbação da natureza como se o que Deus prepara para as almas perturbasse as leis dos corpos mas pela ordem mes ma das coisas naturais em virtude da harmonia preestabe lecida desde sempre entre os Reinos da Natureza e da Gra ça entre Deus como Arquiteto e Deus como Monarca de maneira que a própria natureza conduz à graça e a graça aperfeiçoa a natureza valendose dela 161 16 Assim ainda que a Razão não nos possa ensinar o detalhe do vasto futuro reservado à revelação esta mesma razão nos assegura que as coisas estão feitas de maneira tal que excede nossos desejos Posto que Deus é também a mais perfeita e a mais feliz e portanto a mais amável das substâncias e posto que o amor puro e verdadeiro consiste no estado que nos faz sentir prazer com as perfeições e com a felicidade daquilo que amamos esse Amor nos deve proporcionar o maior prazer de que sejamos capazes quan do Deus for seu objeto 17 E é fácil amálo como se deve se o conhecermos como acabo de dizer Pois ainda que Deus não seja sensí vel aos nossos sentidos externos não deixa de ser muito amável e de proporcionar um prazer muito grande Vemos quanto prazer as honras proporcionam aos homens embo ra não consistam de qualidades dos sentidos exteriores Már tires e fanáticos embora a afecção desses últimos seja des regrada mostram o poder do prazer do espírito Além dis so os próprios prazeres dos sentidos se reduzem a praze res intelectuais confusamente conhecidos A Música nos encanta ainda que sua beleza só consis ta nas relações dos números e cálculo de que não nos aper cebemos e que a alma não deixa de realizar das batidas ou vibrações dos corpos sonoros que se produzem segun do intervalos regulares Os prazeres que a visão encontra nas proporções são da mesma natureza e os causados pe los demais sentidos vêm a ser algo semelhante ainda que não possamos explicálo com tanta distinção 18 Podese mesmo dizer que desde agora o Amor de Deus nos faz experimentar antecipadamente o gosto da fe licidade futura e ainda que seja desinteressado constitui por si mesmo nosso bem maior e nosso maior interesse ainda que não o buscássemos e só considerássemos o pra zer que nos proporciona e não a utilidade que produz Pois infunde em nós uma perfeita confiança na bondade de nos 162 so Autor e Senhor a qual produz uma verdadeira tranqüili dade de espírito não como os estóicos que se tornam pa cientes pela força mas por um contentamento presente que nos assegura também uma felicidade futura E além do prazer presente nada poderia ser mais útil para o futuro Pois o amor de Deus preenche também nossas esperanças e nos conduz ao caminho da suprema felicidade já que em virtude da ordem perfeita estabelecida no universo tudo está feito do melhor modo possível tanto para o bem geral como também para o maior bem particular daqueles que es tão persuadidos e contentes com o divino governo como não poderia deixar de ser entre aqueles que sabem amar a fonte de todo o bem É verdade que a suprema felicidade qualquer que seja a visão beatífica ou conhecimento de Deus que a acompanhe jamais poderia ser plena porque sendo Deus infinito não poderia ser conhecido inteiramente As sim nossa felicidade nunca consistirá e não deve consistir num gozo pleno no qual nada mais haveria a desejar e que tornaria estúpido nosso espírito mas sim num progresso per pétuo para novos prazeres e novas perfeições 163