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TCFC3 Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo FLF0445 USP Prof Osvaldo Pessoa Jr Cap II 9 PARALELISMO PSICOFÍSICO E SUPERVENIÊNCIA Pode haver mudança mental sem alteração física 1 Qualidade vs estrutura Considere a cena visual que você tem diante de si em algum momento como na Fig II1 Geralmente vemos objetos coloridos os quais sabemos o que são Dentre esses objetos pode haver pastas para guardar folhas de papel e uma lagarta cachorrinho A compreensão que temos das coisas à nossa volta é um atributo mental relacionado à experiência que tivemos ao longo de toda vida Podemos se quisermos deixar de lado mentalmente que o objeto diante de nós é uma pasta e teremos um objeto de lados retos com uma certa cor digamos verde Esta cor que vivenciamos é um exemplo de qualidade subjetiva Digamos que haja uma outra pasta azul clara ao lado da pasta verde A vivência do azul claro ou azulclarice é também uma qualidade subjetiva Figura II1 Qualidade vs estrutura em representações do campo fenomênico visual a À esquerda desenho feito por Ernst Mach do campo visual a partir de seu olho esquerdo ressaltando a estrutura da cena com qualidades cromáticas apenas em tom de cinza b Cena cotidiana com qualidades cromáticas relacionadas espacialmente de certa maneira compondo uma estrutura Por outro lado a relação entre essas duas qualidades no caso uma relação de distância espacial é algo distinto de uma qualidade pelo menos não é uma qualidade cromática O conjunto de relações de meu campo fenomênico costuma ser chamado de estrutura A distinção entre qualidade e estrutura em nosso campo fenomênico está presente em vários filósofos e será fundamental em nosso curso Em sua análise do campo fenomênico Immanuel Kant fez a distinção entre dados matéria da sensação e estruturação dos dados forma da intuição e categorias do entendimento17 Esta distinção entre matéria e forma remonta a Aristóteles que a aplicava para as coisas do mundo e não especificamente para o campo 17 Sendo contudo simplesmente intuições sensíveis pelas quais determinamos todos os objetos apenas como fenômenos a forma da intuição enquanto estrutura subjetiva da sensibilidade precede toda a matéria as sensações e por conseguinte o espaço e o tempo precedem todos os fenômenos e todos os dados da experiência e essa forma da intuição é que torna essa experiência possível KANT I 1781 2001 Crítica da razão pura 5a ed trad MP Santos AF Morujão Fundação Calouste Gulbekian Lisboa trecho A267 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 10 fenomênico apesar de ele distinguir entre as percepções próprias e comuns como veremos na seção V2 Aristóteles deixou claro que toda matéria a que temos acesso é enformada e que a matéria prima sem forma é apenas uma abstração Constatação análoga parece valer para a distinção entre qualidade matéria da sensibilidade e estrutura forma Veremos também outros autores que fazem a distinção entre qualidade e estrutura como Bertrand Russell e Stephen Pepper Quando olhei pela primeira vez para a pasta verde tive uma experiência cromática ou seja uma experiência de modalidade visual associada à matiz cromática em inglês hue ou seja à cor da pasta Sabese que há uma área no córtex visual chamada área visual 4 ou simplesmente V4 cuja lesão pode destruir nossa capacidade de identificar matizes cromáticas Pois bem deixei de olhar para a pasta e dez segundos depois olhei para ela novamente e identifiquei a mesma cor Temos aí uma relação entre duas experiências cromáticas e uma constatação de que se trata da mesma cor Esta relação faz parte da estrutura de minha vivência subjetiva e caracteriza uma vivência comum que tenho toda vez que olho para a mesma pasta A este universal ou seja a essas diversas experiências nas quais identifico uma semelhança chamamos quale cujo plural em português é quália As relações estruturais podem ser reproduzidas de maneira quantitativa Um artista pode fazer um desenho a lápis da cena diante de si e esta cena pode ser digitalizada e armazenada em um computador para posterior reprodução As relações entre as linhas do desenho podem ser quantificadas anotandose para cada ponto do desenho a quantidade de grafite utilizada dando conta de traços mais claros ou mais escuros Um marciano que se depare com esse código de distribuição de pontos no espaço poderá reproduzir as relações presentes no desenho A situação para as qualidades é diferente Argumentaremos mais para frente que a verdidão que vejo na pasta não está na pasta mas em minha mente Uma imagem de computador pode gerar em minha mente o mesmo quale da verdidão mas ele não conseguirá fazer isso com um marciano que por definição identifica a radiação eletromagnética a partir de outros recursos encefálicos por exemplo talvez ele sinta um cheiro específico ao se deparar com a pasta iluminada pintada com pigmento verde Figura II2 Três domínios da realidade que apresentam semelhança estrutural 1 mundo externo 2 campo fenomênico e 3 o encéfalo A estrutura apresentada no campo fenomênico visual é semelhante à do mundo externo observado e ao correlato encefálico imediato da consciência A distinção entre qualidade e estrutura se dá claramente na consciência 2 Já na realidade física 1 e 3 podese postular que os relata das relações estruturais sejam coisasemsi materialidade ou inescrutáveis Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 11 Discutiremos esse assunto ao longo de todo curso Nem todos os filósofos concordam com a distinção feita Mas um último ponto a ser adiantado é que há uma semelhança estrutural entre três domínios de realidade 1 as coisas no mundo externo como as pastas sobre minha mesa 2 a percepção que tenho dessas pastas em meu campo visual subjetivo 3 as estruturas em meu encéfalo que se correlacionam com a vivência subjetiva do campo visual Fig II2 A exploração da semelhança estrutural que há entre os domínios 2 e 3 ou seja entre mente e encéfalo ou mente e corpo já foi vista com relação às teorias filosóficas do séc XVII seção I5 e foi desenvolvida no séc XIX recebendo o nome de paralelismo psicofísico como veremos na seção seguinte Já com relação à natureza das qualidades mentais a discussão é mais difícil 2 Paralelismo psicofísico O termo paralelismo psicofísico ou paralelismo psicofisiológico foi bastante usado no período 18601915 para designar a constatação empírica de que há uma correlação entre os eventos mentais e os eventos corporais sem uma explicação adicional de porque isso acontece A teoria de que processos conscientes e nervosos variam concomitantemente quer haja ou não qualquer conexão causal entre eles cada alteração psíquica ou estado psíquico ou psicose envolve uma correspondente alteração neural ou estado neural neurose e viceversa18 Chamaremos a este de PARALELISMO1 Um outro sentido PARALELISMO2 usado no período especialmente nas Ilhas Britânicas adicionava a cláusula de que não ocorre interação entre a série mental e a série corporal sendo assim uma expressão da harmonia préestabelecida de Leibniz ou talvez do ocasionismo de Malebranche seção I5 podendo mesmo ser aceito como expressão de uma mera relação empírica sentido 1 acima Nas palavras de John Hughlings JACKSON 1887 p 37 19 Uma terceira doutrina a da concomitância aquela que eu adotei afirma que a estados de consciência ou sinonimamente estados da mente são totalmente diferentes dos estados nervosos dos centros mais altos b as duas coisas ocorrem juntas para cada estado mental há um estado nervoso correlativo c apesar de as duas coisas ocorrerem em paralelismo não há nenhuma interferência de um para o outro Assim nós não dizemos que os estados psíquicos são funções do encéfalo centros mais altos mas simplesmente que eles ocorrem durante o funcionamento do encéfalo O conceito de paralelismo psicofísico foi bastante explorado por Gustav Fechner a quem mencionamos na seção I5 Seu biógrafo Michael Heidelberger considera que além do postulado empírico da acepção 1 há uma outra acepção de paralelismo psicofísico que Fechner denominou visão da identidade PARALELISMO3 Esta seria a teoria metafísica de Fechner a doutrina de duas perspectivas próxima ao dualismo de atributos de Spinoza Para o pioneiro da psicofísica um ser humano seria uma entidade única cujas propriedades são 18 A primeira citação é do verbete Parallelism Psychophysical da Encyclopædia Britannica de 1911 vol 20 p 762 A segunda é do jesuíta WALKER LJ 1913 Psychophysical parallelism Catholic Encyclopedia vol 11 Ambos estão disponíveis na internet 19 Uma crítica a esta acepção está na p 169 de HEIDELBERGER M 2004 Nature from within Gustav Theodor Fechner and his psychophysical worldview trad C Klohr U Pittsburgh Press cap 5 orig em alemão 1993 O uso do termo paralelismo por Fechner em 1861 está indicado na p 101 Este capítulo está também disponível como um artigo na internet HEIDELBERGER M 2001 The mindbody problem in the origin of logical empiricism Herbert Feigl and psychophysical parallelism PhilSci Archive 945 26 pp A citação seguinte é de JACKSON JH 1887 Remarks on evolution and dissolution of the nervous system Journal of Mental Science 33 2548 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 12 consideradas mentais quando são percebidas internamente e consideradas físicas quando vistas externamente Fechner introduziu a expressão paralelismo do mental e do físico em 1861 O termo paralelismo psicofísico sentido 1 passou a exprimir o reconhecimento de que a ciência da fisiologia tinha de fato estabelecido os processos corporais concomitantes a muitos processos mentais e por indução isso deveria valer para todos os processos mentais Isso está bem expresso pelo filósofo e psicólogo escocês Alexander Bain20 Temos assim indícios fisiológicos por um lado de que um certo tempo transcorre na propagação nervosa e temos indícios mentais por outro lado de que um tempo equivalente é ocupado pela sensação pensamento e volição Nosso pensamento não pode nunca transcender o passo físico da força nervosa pp 3738 O termo mais simples que pode ser empregado para um estado mental é um choque uma palavra igualmente aplicável para o lado corporal e para o lado mental porque há uma rápida transição da quiescência para a excitação circunstância esta em que há um paralelismo acurado entre os fatos físicos e mentais p 40 Paralela a esta série mental está a série física de fatos a agitação sucessiva dos órgãos físicos Enquanto rodamos o círculo mental da sensação emoção e pensamento há um círculo físico não quebrado de efeitos Assim quando falamos de uma causa mental uma agência mental temos sempre uma causa de dois lados o efeito produzido não é o efeito da mente sozinha mas da mente em companhia do corpo p 131 Notamos que o conceito posicionavase simetricamente em relação às perspectivas da mente e do corpo A estipulação de que haveria um mapeamento bijetor correspondência um paraum entre sensações e estados psicofísicos foi formulada de maneira explícita por George Elias Müller 1896 apontando como precursores a Ernst Mach 1866 e Ewald Hering 1878 3 Reação filosófica contra o paralelismo O paralelismo psicofísico foi criticado por diversos pensadores das humanidades como Leslie WALKER no texto citado na seção anterior O paralelista afirma que operações intelectuais possuem uma contrapartida fisiológica exata o que é mais do que ele consegue provar Mas que as operações propriamente intelectuais juízo inferência lógica conceitos gerais vastos e de longo alcance como são em seu significado devam ter uma contrapartida exata na atividade das células cerebrais e suas conexões neuronais é uma hipótese que os fatos conhecidos da psicofísica não sustentam e que também é inconcebível Como pode por exemplo um conceito geral que se refere à realidade objetiva e que abraça esquematicamente em um ato único muitas notas diversas ter qualquer semelhança com o distúrbio do equilíbrio neural que o acompanha um distúrbio que não possui nenhuma unidade salvo por ocorrer em diferentes partes do mesmo encéfalo mais ou menos simultaneamente Esta reação filosófica contra o paralelismo psicofísico teve início no contexto alemão por volta de 1893 com os ataques do filósofo Christian Sigwart seguidos por outros críticos como Wilhelm Dilthey que reconheceram que a postura era muito próxima ao materialismo sujeitando a mente ao determinismo e tirando da alma humana a capacidade de escolher livremente os seus atos causais sobre a matéria A defesa do paralelismo e da psicologia experimental foi feita pelo psicólogo Hermann Ebbinghaus seguindose um debate com 20 BAIN A 1873 Mind and body the theories of their relation HS King Co London Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 13 Dilthey HEIDELBERGER 2004 p 17980 O psicólogo Wilhelm Wundt 1894 concordava com o paralelismo para sensações e sentimentos elementares e suas associações mas a rejeitava para funções mentais mais elevadas SCHEERER 1994 p 185 A cisão entre filósofos e psicólogos experimentais se desdobraria no combate ao psicologismo ensejado por Frege Husserl e outros Há também uma deficiência inversa no conceito de paralelismo que é o fato de que alterações corporais frequentemente não têm paralelo perceptível na mente Este problema acabaria sendo assimilado pelo conceito assimétrico de superveniência que examinamos na seção II5 4 Isomorfismo psicofísico Köhler No final da seção II2 mencionamos que GE Müller 1896 formulou explicitamente a tese do paralelismo psicofísico como uma correspondência umparaum entre sensações subjetivas e estados encefálicos Posteriormente em 1929 o psicólogo gestaltista Wolfgang Köhler introduziu a expressão isomorfismo psicofísico21 para exprimir essa correlação entre as propriedades sistêmicas estruturais funcionais da mente e do encéfalo Resumindo esta posição Roger Sperry salientou três níveis do que chamou de isomorfismo psiconeural a mais velha mais simples e ainda a mais comum noção sobre este assunto sustenta que padrões encefálicos se assemelham em forma a e num certo sentido fazem uma cópia em miniatura de objetos externos e aqueles da consciência Esta doutrina formalmente chamada de isomorfismo psiconeural foi estendida para correlações de intensidade e de organização temporal assim como em padronização espacial Ela parece receber algum apoio direto na evidência anatômica de que superfícies sensoriais como a retina a pele a cóclea e assim por diante são de fato projetadas nos centros encefálicos de acordo com um plano topográfico ordenado SPERRY 1952 pp 29394 O que Köhler 1929 1943 chamou de isomorfismo psicofísico pp 6162 é definido por ele como exigindo que em um dado caso a organização da experiência e os fatos fisiológicos subjacentes têm a mesma estrutura p 301 Assim no caso espacial e temporal a ordem experienciada no espaço tempo é sempre idêntica estruturalmente à ordem funcional na distribuição sequência dos processos encefálicos subjacentes p 6061 Outra aplicação do princípio ocorre com a presença de experiências simultâneas distintas que às vezes são agrupadas subjetivamente às vezes não como no exemplo de uma voz cantada que é simultânea à redação de uma sentença e que não são agrupadas juntas Neste caso o princípio assume a seguinte forma unidades na experiência vão juntas com unidades funcionais nos processos fisiológicos subjacentes 6263 Köhler salientou que o correlato encefálico imediato de um quale de azulidão não faz parte do isomorfismo porque este isomorfismo referese a uma propriedade estrutural Systemeigenschaften e não a uma propriedade material Materialeigenschaften como os quália cf SCHEERER 1994 p 189 O isomorfismo psicofísico pode ser entendido como uma 21 KOHLER W 1929 Gestalt psychology New York Liveright Ver discussão histórica e conceitual em SCHEERER E 1994 Psychoneural isomorphism historical background and current relevance Philosophical Psychology 7 183210 e em BORING EG 1942 Sensation and perception in the history of experimental psychology AppletonCentury New York pp 8390 9596 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 14 defesa da tese da identidade menteencéfalo Cap IX para propriedades estruturais do campo fenomênico mas não para os quália A ênfase de Köhler em salientar que a semelhança é funcional parece tornar o princípio menos forte do que a maneira em que Sperry p 293 o enunciou Por exemplo na percepção visual de uma figura geométrica simples como um triângulo o padrão encefálico é considerado como tendo pelo menos grosseiramente e com certas qualificações uma forma triangular Essa interpretação mais forte do princípio de Köhler é também mencionada por BORING 1933 p 23738 que a critica Há uma tendência crescente de aplicar o termo de Köhler isomorfismo para a correspondência geral entre as ordens da mente fenomênica e as ordens do corpo neural como se o espaço pensado fosse espaço neural tempo pensado tempo neural intensidade pensada intensidade neural qualidade pensada comoqueirachamála neural thought quality neural whatyoumaycallit Deveria estar claro que nenhuma correspondência simples como esta poderia estar correta W Köhler usou a palavra apenas para o espaço mas tinha princípios semelhantes para o tempo e para a organização Apenas Hering parece ter pensado em um comoqueirachamála neural para servir de correspondência às qualidades subjetivas tal comoqueirachamála seriam as qualidades químicas das células nervosas que chamava de energias específicas seguindo Johannes Müller veremos isso melhor no Cap IV22 5 Superveniência do mental ao corpo Voltemos agora ao experimento mental da seção I2 Supusemos que fosse feita uma cópia material humana perfeita de uma pessoa digamos Calvin1 e nos perguntamos se sua cópia Calvin2 teria consciência Vamos agora adotar a resposta materialista e examinar suas consequências ou seja vamos supor que Calvin2 é criado com consciência Os espiritualistas que queiram acompanhar o raciocínio podem considerar uma modificação do experimento mental e supor que uma alma ou um espírito tenha sido criado juntamente com Calvin2 Supondo que os estados materiais das duas pessoas são perfeitamente semelhantes até a escala molecular a segunda pergunta a ser feita concerne à natureza dos estados mentais de Calvin1 e Calvin2 no instante da reprodução Neste instante da criação os dois estariam em estados idênticos de consciência Teriam pensamentos perfeitamente semelhantes os mesmos sonhos emoções veriam exatamente as mesmas cores ou estariam prestando atenção aos mesmos cheiros A posição de que as consciências seriam perfeitamente semelhantes é compartilhada pela grande maioria dos materialistas e exprime a tese da superveniência ou sobreveniência dos estados mentais aos estados corporais A discordância entre os materialistas surge com relação a em que sentido o mental se reduz ao corporal ou em que sentido ele emerge como algo parcialmente independente Exploraremos esta distinção ao longo do curso A tese da superveniência do mental ao corporal diz que o estado material do corpo nível subveniente fixa univocamente o estado mental nível superveniente Em outras palavras qualquer alteração no nível superior envolvendo estados mentais requer uma alteração no nível inferior uma alteração do estado material ou físico Ou alternativamente se 22 SPERRY RW 1952 Neurology and the mindbrain problem American Scientist 40 291312 BORING EG 1933 The physical dimensions of consciousness Century New York HERING E 1913 On the theory of nerveactivity in Memory lectures on the specific energies of the nervous system 4a ed Open Court Chicago pp 4370 trad da palestra dada em 1898 em Leipzig pp 5860 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 15 um estado de nível inferior não se altera então o nível superior também permanecerá o mesmo Esta última condição é exatamente o que é explorado no experimento mental da duplicação humana A tese de que Calvin1 e Calvin2 têm propriedades mentais ou experiências subjetivas perfeitamente semelhantes é uma consequência da tese da superveniência do mental aos estados materiais do corpo humano A Fig II3 ilustra o mapeamento sobrejetor muitosparaum dos estados materiais encefálicos para os estados mentais ou de consciência exigido pela tese da superveniência Se os estados materiais do encéfalo forem considerados com uma resolução molecular está claro que pequenas variações nos estados físicos por exemplo na escala das moléculas não levarão a uma alteração consciente subjetivamente perceptível No entanto se a resolução considerada agrupar todos os estados físicos subvenientes a um estado mental estados físicos esses descritos em grão fino por exemplo m1 até m5 em um único estado físico m em grão mais grosso a relação entre estados materiais e de consciência se aproxima de uma relação bijetora um paraum Em qual escala isso ocorreria Esta é uma importante questão empírica que permanece em aberto Nesta escala se poderia falar mais apropriadamente em paralelismo ou isomorfismo psicofísico Para explorarmos a tese da superveniência considere o desenho do cubo de Necker da Fig II4 Tratase de um desenho bidimensional mas nossa mente é capaz de representar para si mesma ou projetar uma figura semelhante à que surge quando vemos um cubo tridimensional No entanto essa projeção pode ocorrer de duas maneiras diferentes conforme qual é o quadrado que salta para fora do papel A transição entre os dois casos pode ser ocasionada de maneira consciente mas também pode ocorrer espontaneamente sem uma decisão consciente nossa O ponto deste exemplo é que a mudança de uma situação perceptiva para outra implica uma mudança de estados mentais Que consequência se pode tirar desta constatação usando a tese da superveniência Figura II3 Esquema ilustrativo da relação de superveniência de estados de consciência ci aos estados materiais mj Figura II4 Desenho do cubo de Necker A partir de uma figura bidimensional um dodecágono nãosimples resultante da projeção paralela oblíqua de um cubo conseguimos projetar mentalmente duas representações distintas conforme o lado do cubo que aparece para fora do papel Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 16 A consequência é que necessariamente há uma alteração no estado físico do encéfalo na passagem de um estado perceptivo para outro Quando percebemos o quadrado da esquerda para frente e alteramos conscientemente a percepção para que o quadrado direito esteja para frente necessariamente alteramos o estado físico do encéfalo segundo a tese da superveniência23 Nesse sentido a mente tem poder causal sobre a matéria Resta porém discutir se a mente é um produto da matéria se é idêntica a ela ou se é independente Um outro exemplo envolveria a produção de um pensamento imagino se hoje à tarde irá chover e tiro uma conclusão O estado mental associado à crença de que irá chover é distinto daquele associado à crença de que não irá chover então pela tese da superveniência os estados encefálicos associados precisam ser diferentes 6 Dualismo de atributos e o experimento mental da cópia material Na seção I5 apresentamos o dualismo de atributos de Spinoza que afirma que mente e matéria seriam atributos ou aspectos diferentes da substância única fundamental Deus ou a Natureza Mencionamos que a visão de Fechner se aproxima desta posição Um autor recente que também defende essa concepção é Thomas Nagel24 Se correlações estritas são observadas entre uma variável fenomenológica e uma fisiológica a hipótese seria não que o estado fisiológico causa o fenomenológico mas que há um terceiro termo que implica os dois mas que não é definido como mera conjunção dos outros dois NAGEL 2002 p 221 Uma questão que se pode levantar é qual é a posição que um dualista de atributos adotaria no experimento mental da duplicação material humana seção I2 Para isso alguma especificação adicional da teoria dualista de aspectos deve ser feita Dado que estudamos na seção anterior a relação de superveniência poderíamos estipular que para o dualista de aspectos o atributo material deve supervir à substância fundamental Neste caso qual seria a posição deste dualista Esta situação é representada na Fig II5 e vemos que um mesmo estado material pode supervir a diferentes estados fundamentais Assim Calvin1 e Calvin2 podem estar em estados fundamentais distintos e portanto podem ter estados mentais distintos Figura II5 Relação de superveniência de estados materiais aos estados da substância fundamental spinozana 23 Esta tese aparece em Hermann von Helmholtz estamos justificados quando diferentes percepções se oferecem para nós a inferir que as condições reais subjacentes são diferentes HELMHOLTZ Wissenschaftliche Abhandlungen II 1882 p 656 conforme citado em WEYL H 1927 1949 Philosophy of mathematics and natural science trad O Helmer Princeton U Press p 26 24 NAGEL T 2002 The psychophysical nexus in Nagel T Concealment and exposure other essays Oxford U Press p 194235 versão preliminar publicada em 2000
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fenomênico visual a À esquerda desenho feito por Ernst Mach do campo visual a partir de seu olho esquerdo ressaltando a estrutura da cena com qualidades cromáticas apenas em tom de cinza b Cena cotidiana com qualidades cromáticas relacionadas espacialmente de certa maneira compondo uma estrutura Por outro lado a relação entre essas duas qualidades no caso uma relação de distância espacial é algo distinto de uma qualidade pelo menos não é uma qualidade cromática O conjunto de relações de meu campo fenomênico costuma ser chamado de estrutura A distinção entre qualidade e estrutura em nosso campo fenomênico está presente em vários filósofos e será fundamental em nosso curso Em sua análise do campo fenomênico Immanuel Kant fez a distinção entre dados matéria da sensação e estruturação dos dados forma da intuição e categorias do entendimento17 Esta distinção entre matéria e forma remonta a Aristóteles que a aplicava para as coisas do mundo e não especificamente para o campo 17 Sendo contudo simplesmente intuições sensíveis pelas quais determinamos todos os objetos apenas como fenômenos a forma da intuição enquanto estrutura subjetiva da sensibilidade precede toda a matéria as sensações e por conseguinte o espaço e o tempo precedem todos os fenômenos e todos os dados da experiência e essa forma da intuição é que torna essa experiência possível KANT I 1781 2001 Crítica da razão pura 5a ed trad MP Santos AF Morujão Fundação Calouste Gulbekian Lisboa trecho A267 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 10 fenomênico apesar de ele distinguir entre as percepções próprias e comuns como veremos na seção V2 Aristóteles deixou claro que toda matéria a que temos acesso é enformada e que a matéria prima sem forma é apenas uma abstração Constatação análoga parece valer para a distinção entre qualidade matéria da sensibilidade e estrutura forma Veremos também outros autores que fazem a distinção entre qualidade e estrutura como Bertrand Russell e Stephen Pepper Quando olhei pela primeira vez para a pasta verde tive uma experiência cromática ou seja uma experiência de modalidade visual associada à matiz cromática em inglês hue ou seja à cor da pasta Sabese que há uma área no córtex visual chamada área visual 4 ou simplesmente V4 cuja lesão pode destruir nossa capacidade de identificar matizes cromáticas Pois bem deixei de olhar para a pasta e dez segundos depois olhei para ela novamente e identifiquei a mesma cor Temos aí uma relação entre duas experiências cromáticas e uma constatação de que se trata da mesma cor Esta relação faz parte da estrutura de minha vivência subjetiva e caracteriza uma vivência comum que tenho toda vez que olho para a mesma pasta A este universal ou seja a essas diversas experiências nas quais identifico uma semelhança chamamos quale cujo plural em português é quália As relações estruturais podem ser reproduzidas de maneira quantitativa Um artista pode fazer um desenho a lápis da cena diante de si e esta cena 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estrutura apresentada no campo fenomênico visual é semelhante à do mundo externo observado e ao correlato encefálico imediato da consciência A distinção entre qualidade e estrutura se dá claramente na consciência 2 Já na realidade física 1 e 3 podese postular que os relata das relações estruturais sejam coisasemsi materialidade ou inescrutáveis Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 11 Discutiremos esse assunto ao longo de todo curso Nem todos os filósofos concordam com a distinção feita Mas um último ponto a ser adiantado é que há uma semelhança estrutural entre três domínios de realidade 1 as coisas no mundo externo como as pastas sobre minha mesa 2 a percepção que tenho dessas pastas em meu campo visual subjetivo 3 as estruturas em meu encéfalo que se correlacionam com a vivência subjetiva do campo visual Fig II2 A exploração da semelhança estrutural que há entre os domínios 2 e 3 ou seja entre mente e encéfalo ou mente e corpo já foi vista com relação às teorias filosóficas do séc XVII seção I5 e foi desenvolvida no séc XIX recebendo o nome de paralelismo psicofísico como veremos na seção seguinte Já com relação à natureza das qualidades mentais a discussão é mais difícil 2 Paralelismo psicofísico O termo paralelismo psicofísico ou paralelismo psicofisiológico foi bastante usado no período 18601915 para designar a constatação empírica de que há uma correlação entre os eventos mentais e os eventos corporais sem uma explicação adicional de porque isso acontece A teoria de que processos conscientes e nervosos variam concomitantemente quer haja ou não qualquer conexão causal entre eles cada alteração psíquica ou estado psíquico ou psicose envolve uma correspondente alteração neural ou estado neural neurose e viceversa18 Chamaremos a este de PARALELISMO1 Um outro sentido PARALELISMO2 usado no período especialmente nas Ilhas Britânicas adicionava a cláusula de que não ocorre interação entre a série mental e a série corporal sendo assim uma expressão da harmonia préestabelecida de Leibniz ou talvez do ocasionismo de Malebranche seção I5 podendo mesmo ser aceito como expressão de uma mera relação empírica sentido 1 acima Nas palavras de John Hughlings JACKSON 1887 p 37 19 Uma terceira doutrina a da concomitância aquela que eu adotei afirma que a estados de consciência ou sinonimamente estados da mente são totalmente diferentes dos estados nervosos dos centros mais altos b as duas coisas ocorrem juntas para cada estado mental há um estado nervoso correlativo c apesar de as duas coisas ocorrerem em paralelismo não há nenhuma interferência de um para o outro Assim nós não dizemos que os estados psíquicos são funções do encéfalo centros mais altos mas simplesmente que eles ocorrem durante o funcionamento do encéfalo O conceito de paralelismo psicofísico foi bastante explorado por Gustav Fechner a quem mencionamos na seção I5 Seu biógrafo Michael Heidelberger considera que além do postulado empírico da acepção 1 há uma outra acepção de paralelismo psicofísico que Fechner denominou visão da identidade PARALELISMO3 Esta seria a teoria metafísica de Fechner a doutrina de duas perspectivas próxima ao dualismo de atributos de Spinoza Para o pioneiro da psicofísica um ser humano seria uma entidade única cujas propriedades são 18 A primeira citação é do verbete Parallelism Psychophysical da Encyclopædia Britannica de 1911 vol 20 p 762 A segunda é do jesuíta WALKER LJ 1913 Psychophysical parallelism Catholic Encyclopedia vol 11 Ambos estão disponíveis na internet 19 Uma crítica a esta acepção está na p 169 de HEIDELBERGER M 2004 Nature from within Gustav Theodor Fechner and his psychophysical worldview trad C Klohr U Pittsburgh Press cap 5 orig em alemão 1993 O uso do termo paralelismo por Fechner em 1861 está indicado na p 101 Este capítulo está também disponível como um artigo na internet HEIDELBERGER M 2001 The mindbody problem in the origin of logical empiricism Herbert Feigl and psychophysical parallelism PhilSci Archive 945 26 pp A citação seguinte é de JACKSON JH 1887 Remarks on evolution and dissolution of the nervous system Journal of Mental Science 33 2548 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 12 consideradas mentais quando são percebidas internamente e consideradas físicas quando vistas externamente Fechner introduziu a expressão paralelismo do mental e do físico em 1861 O termo paralelismo psicofísico sentido 1 passou a exprimir o reconhecimento de que a ciência da fisiologia tinha de fato estabelecido os processos corporais concomitantes a muitos processos mentais e por indução isso deveria valer para todos os processos mentais Isso está bem expresso pelo filósofo e psicólogo escocês Alexander Bain20 Temos assim indícios fisiológicos por um lado de que um certo tempo transcorre na propagação nervosa e temos indícios mentais por outro lado de que um tempo equivalente é ocupado pela sensação pensamento e volição Nosso pensamento não pode nunca transcender o passo físico da força nervosa pp 3738 O termo mais simples que pode ser empregado para um estado mental é um choque uma palavra igualmente aplicável para o lado corporal e para o lado mental porque há uma rápida transição da quiescência para a excitação circunstância esta em que há um paralelismo acurado entre os fatos físicos e mentais p 40 Paralela a esta série mental está a série física de fatos a agitação sucessiva dos órgãos físicos Enquanto rodamos o círculo mental da sensação emoção e pensamento há um círculo físico não quebrado de efeitos Assim quando falamos de uma causa mental uma agência mental temos sempre uma causa de dois lados o efeito produzido não é o efeito da mente sozinha mas da mente em companhia do corpo p 131 Notamos que o conceito posicionavase simetricamente em relação às perspectivas da mente e do corpo A estipulação de que haveria um mapeamento bijetor correspondência um paraum entre sensações e estados psicofísicos foi formulada de maneira explícita por George Elias Müller 1896 apontando como precursores a Ernst Mach 1866 e Ewald Hering 1878 3 Reação filosófica contra o paralelismo O paralelismo psicofísico foi criticado por diversos pensadores das humanidades como Leslie WALKER no texto citado na seção anterior O paralelista afirma que operações intelectuais possuem uma contrapartida fisiológica exata o que é mais do que ele consegue provar Mas que as operações propriamente intelectuais juízo inferência lógica conceitos gerais vastos e de longo alcance como são em seu significado devam ter uma contrapartida exata na atividade das células cerebrais e suas conexões neuronais é uma hipótese que os fatos conhecidos da psicofísica não sustentam e que também é inconcebível Como pode por exemplo um conceito geral que se refere à realidade objetiva e que abraça esquematicamente em um ato único muitas notas diversas ter qualquer semelhança com o distúrbio do equilíbrio neural que o acompanha um distúrbio que não possui nenhuma unidade salvo por ocorrer em diferentes partes do mesmo encéfalo mais ou menos simultaneamente Esta reação filosófica contra o paralelismo psicofísico teve início no contexto alemão por volta de 1893 com os ataques do filósofo Christian Sigwart seguidos por outros críticos como Wilhelm Dilthey que reconheceram que a postura era muito próxima ao materialismo sujeitando a mente ao determinismo e tirando da alma humana a capacidade de escolher livremente os seus atos causais sobre a matéria A defesa do paralelismo e da psicologia experimental foi feita pelo psicólogo Hermann Ebbinghaus seguindose um debate com 20 BAIN A 1873 Mind and body the theories of their relation HS King Co London Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 13 Dilthey HEIDELBERGER 2004 p 17980 O psicólogo Wilhelm Wundt 1894 concordava com o paralelismo para sensações e sentimentos elementares e suas associações mas a rejeitava para funções mentais mais elevadas SCHEERER 1994 p 185 A cisão entre filósofos e psicólogos experimentais se desdobraria no combate ao psicologismo ensejado por Frege Husserl e outros Há também uma deficiência inversa no conceito de paralelismo que é o fato de que alterações corporais frequentemente não têm paralelo perceptível na mente Este problema acabaria sendo assimilado pelo conceito assimétrico de superveniência que examinamos na seção II5 4 Isomorfismo psicofísico Köhler No final da seção II2 mencionamos que GE Müller 1896 formulou explicitamente a tese do paralelismo psicofísico como uma correspondência umparaum entre sensações subjetivas e estados encefálicos Posteriormente em 1929 o psicólogo gestaltista Wolfgang Köhler introduziu a expressão isomorfismo psicofísico21 para exprimir essa correlação entre as propriedades sistêmicas estruturais funcionais da mente e do encéfalo Resumindo esta posição Roger Sperry salientou três níveis do que chamou de isomorfismo psiconeural a mais velha mais simples e ainda a mais comum noção sobre este assunto sustenta que padrões encefálicos se assemelham em forma a e num certo sentido fazem uma cópia em miniatura de objetos externos e aqueles da consciência Esta doutrina formalmente chamada de isomorfismo psiconeural foi estendida para correlações de intensidade e de organização temporal assim como em padronização espacial Ela parece receber algum apoio direto na evidência anatômica de que superfícies sensoriais como a retina a pele a cóclea e assim por diante são de fato projetadas nos centros encefálicos de acordo com um plano topográfico ordenado SPERRY 1952 pp 29394 O que Köhler 1929 1943 chamou de isomorfismo psicofísico pp 6162 é definido por ele como exigindo que em um dado caso a organização da experiência e os fatos fisiológicos subjacentes têm a mesma estrutura p 301 Assim no caso espacial e temporal a ordem experienciada no espaço tempo é sempre idêntica estruturalmente à ordem funcional na distribuição sequência dos processos encefálicos subjacentes p 6061 Outra aplicação do princípio ocorre com a presença de experiências simultâneas distintas que às vezes são agrupadas subjetivamente às vezes não como no exemplo de uma voz cantada que é simultânea à redação de uma sentença e que não são agrupadas juntas Neste caso o princípio assume a seguinte forma unidades na experiência vão juntas com unidades funcionais nos processos fisiológicos subjacentes 6263 Köhler salientou que o correlato encefálico imediato de um quale de azulidão não faz parte do isomorfismo porque este isomorfismo referese a uma propriedade estrutural Systemeigenschaften e não a uma propriedade material Materialeigenschaften como os quália cf SCHEERER 1994 p 189 O isomorfismo psicofísico pode ser entendido como uma 21 KOHLER W 1929 Gestalt psychology New York Liveright Ver discussão histórica e conceitual em SCHEERER E 1994 Psychoneural isomorphism historical background and current relevance Philosophical Psychology 7 183210 e em BORING EG 1942 Sensation and perception in the history of experimental psychology AppletonCentury New York pp 8390 9596 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 14 defesa da tese da identidade menteencéfalo Cap IX para propriedades estruturais do campo fenomênico mas não para os quália A ênfase de Köhler em salientar que a semelhança é funcional parece tornar o princípio menos forte do que a maneira em que Sperry p 293 o enunciou Por exemplo na percepção visual de uma figura geométrica simples como um triângulo o padrão encefálico é considerado como tendo pelo menos grosseiramente e com certas qualificações uma forma triangular Essa interpretação mais forte do princípio de Köhler é também mencionada por BORING 1933 p 23738 que a critica Há uma tendência crescente de aplicar o termo de Köhler isomorfismo para a correspondência geral entre as ordens da mente fenomênica e as ordens do corpo neural como se o espaço pensado fosse espaço neural tempo pensado tempo neural intensidade pensada intensidade neural qualidade pensada comoqueirachamála neural thought quality neural whatyoumaycallit Deveria estar claro que nenhuma correspondência simples como esta poderia estar correta W Köhler usou a palavra apenas para o espaço mas tinha princípios semelhantes para o tempo e para a organização Apenas Hering parece ter pensado em um comoqueirachamála neural para servir de correspondência às qualidades subjetivas tal comoqueirachamála seriam as qualidades químicas das células nervosas que chamava de energias específicas seguindo Johannes Müller veremos isso melhor no Cap IV22 5 Superveniência do mental ao corpo Voltemos agora ao experimento mental da seção I2 Supusemos que fosse feita uma cópia material humana perfeita de uma pessoa digamos Calvin1 e nos perguntamos se sua cópia Calvin2 teria consciência Vamos agora adotar a resposta materialista e examinar suas consequências ou seja vamos supor que Calvin2 é criado com consciência Os espiritualistas que queiram acompanhar o raciocínio podem considerar uma modificação do experimento mental e supor que uma alma ou um espírito tenha sido criado juntamente com Calvin2 Supondo que os estados materiais das duas pessoas são perfeitamente semelhantes até a escala molecular a segunda pergunta a ser feita concerne à natureza dos estados mentais de Calvin1 e Calvin2 no instante da reprodução Neste instante da criação os dois estariam em estados idênticos de consciência Teriam pensamentos perfeitamente semelhantes os mesmos sonhos emoções veriam exatamente as mesmas cores ou estariam prestando atenção aos mesmos cheiros A posição de que as consciências seriam perfeitamente semelhantes é compartilhada pela grande maioria dos materialistas e exprime a tese da superveniência ou sobreveniência dos estados mentais aos estados corporais A discordância entre os materialistas surge com relação a em que sentido o mental se reduz ao corporal ou em que sentido ele emerge como algo parcialmente independente Exploraremos esta distinção ao longo do curso A tese da superveniência do mental ao corporal diz que o estado material do corpo nível subveniente fixa univocamente o estado mental nível superveniente Em outras palavras qualquer alteração no nível superior envolvendo estados mentais requer uma alteração no nível inferior uma alteração do estado material ou físico Ou alternativamente se 22 SPERRY RW 1952 Neurology and the mindbrain problem American Scientist 40 291312 BORING EG 1933 The physical dimensions of consciousness Century New York HERING E 1913 On the theory of nerveactivity in Memory lectures on the specific energies of the nervous system 4a ed Open Court Chicago pp 4370 trad da palestra dada em 1898 em Leipzig pp 5860 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 15 um estado de nível inferior não se altera então o nível superior também permanecerá o mesmo Esta última condição é exatamente o que é explorado no experimento mental da duplicação humana A tese de que Calvin1 e Calvin2 têm propriedades mentais ou experiências subjetivas perfeitamente semelhantes é uma consequência da tese da superveniência do mental aos estados materiais do corpo humano A Fig II3 ilustra o mapeamento sobrejetor muitosparaum dos estados materiais encefálicos para os estados mentais ou de consciência exigido pela tese da superveniência Se os estados materiais do encéfalo forem considerados com uma resolução molecular está claro que pequenas variações nos estados físicos por exemplo na escala das moléculas não levarão a uma alteração consciente subjetivamente perceptível No entanto se a resolução considerada agrupar todos os estados físicos subvenientes a um estado mental estados físicos esses descritos em grão fino por exemplo m1 até m5 em um único estado físico m em grão mais grosso a relação entre estados materiais e de consciência se aproxima de uma relação bijetora um paraum Em qual escala isso ocorreria Esta é uma importante questão empírica que permanece em aberto Nesta escala se poderia falar mais apropriadamente em paralelismo ou isomorfismo psicofísico Para explorarmos a tese da superveniência considere o desenho do cubo de Necker da Fig II4 Tratase de um desenho bidimensional mas nossa mente é capaz de representar para si mesma ou projetar uma figura semelhante à que surge quando vemos um cubo tridimensional No entanto essa projeção pode ocorrer de duas maneiras diferentes conforme qual é o quadrado que salta para fora do papel A transição entre os dois casos pode ser ocasionada de maneira consciente mas também pode ocorrer espontaneamente sem uma decisão consciente nossa O ponto deste exemplo é que a mudança de uma situação perceptiva para outra implica uma mudança de estados mentais Que consequência se pode tirar desta constatação usando a tese da superveniência Figura II3 Esquema ilustrativo da relação de superveniência de estados de consciência ci aos estados materiais mj Figura II4 Desenho do cubo de Necker A partir de uma figura bidimensional um dodecágono nãosimples resultante da projeção paralela oblíqua de um cubo conseguimos projetar mentalmente duas representações distintas conforme o lado do cubo que aparece para fora do papel Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap II Paralelismo Psicofísico e Superveniência 16 A consequência é que necessariamente há uma alteração no estado físico do encéfalo na passagem de um estado perceptivo para outro Quando percebemos o quadrado da esquerda para frente e alteramos conscientemente a percepção para que o quadrado direito esteja para frente necessariamente alteramos o estado físico do encéfalo segundo a tese da superveniência23 Nesse sentido a mente tem poder causal sobre a matéria Resta porém discutir se a mente é um produto da matéria se é idêntica a ela ou se é independente Um outro exemplo envolveria a produção de um pensamento imagino se hoje à tarde irá chover e tiro uma conclusão O estado mental associado à crença de que irá chover é distinto daquele associado à crença de que não irá chover então pela tese da superveniência os estados encefálicos associados precisam ser diferentes 6 Dualismo de atributos e o experimento mental da cópia material Na seção I5 apresentamos o dualismo de atributos de Spinoza que afirma que mente e matéria seriam atributos ou aspectos diferentes da substância única fundamental Deus ou a Natureza Mencionamos que a visão de Fechner se aproxima desta posição Um autor recente que também defende essa concepção é Thomas Nagel24 Se correlações estritas são observadas entre uma variável fenomenológica e uma fisiológica a hipótese seria não que o estado fisiológico causa o fenomenológico mas que há um terceiro termo que implica os dois mas que não é definido como mera conjunção dos outros dois NAGEL 2002 p 221 Uma questão que se pode levantar é qual é a posição que um dualista de atributos adotaria no experimento mental da duplicação material humana seção I2 Para isso alguma especificação adicional da teoria dualista de aspectos deve ser feita Dado que estudamos na seção anterior a relação de superveniência poderíamos estipular que para o dualista de aspectos o atributo material deve supervir à substância fundamental Neste caso qual seria a posição deste dualista Esta situação é representada na Fig II5 e vemos que um mesmo estado material pode supervir a diferentes estados fundamentais Assim Calvin1 e Calvin2 podem estar em estados fundamentais distintos e portanto podem ter estados mentais distintos Figura II5 Relação de superveniência de estados materiais aos estados da substância fundamental spinozana 23 Esta tese aparece em Hermann von Helmholtz estamos justificados quando diferentes percepções se oferecem para nós a inferir que as condições reais subjacentes são diferentes HELMHOLTZ Wissenschaftliche Abhandlungen II 1882 p 656 conforme citado em WEYL H 1927 1949 Philosophy of mathematics and natural science trad O Helmer Princeton U Press p 26 24 NAGEL T 2002 The psychophysical nexus in Nagel T Concealment and exposure other essays Oxford U Press p 194235 versão preliminar publicada em 2000