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TCFC3 Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo FLF0445 USP Prof Osvaldo Pessoa Jr Cap IV 25 CRÍTICA AO FUNCIONALISMO PSICOSSUBSTANCIALISMO Como se articula a negação monista do funcionalismo Afinal uma máquina pode ser consciente 1 Dois argumentos contra o funcionalismo moinho e quarto chinês Conforme vimos o funcionalismo da tese da homogeneidade defende que a mente surge a partir da organização ou do estado informacional do sistema nervoso ou seja a partir das relações causais entre as partes do sistema nervoso incluindo as entradas sensoriais e as saídas comportamentais sem importar qual é o substrato material que sustenta tais relações A visão de que isso se aplica a toda a natureza ou seja que a descrição puramente quantitativa consegue esgotar a natureza é chamada de mecanicismo como mencionado em nota da seção I3 Leibniz caracterizou a descrição mecânica como aquela que é feita apenas com figura e movimento e argumentou que ela é insuficiente para dar conta da percepção no que é conhecido como o argumento do moinho39 Imaginandose que há uma máquina cuja estrutura a faça pensar sentir e perceber poder seá guardadas as mesmas proporções concebêla ampliada de sorte que se possa nela entrar como em um moinho Admitido isso lá não encontraremos se a visitarmos por dentro senão peças impulsionandose umas às outras e nada que explique uma percepção Portanto essa explicação deve ser procurada na substância simples e não no composto ou na máquina Tratase de um argumento que apela para nossas intuições sobre a consciência e sobre o funcionamento de máquinas Na seção IV3 chamaremos esse tipo de negação do funcionalismo de psicossubstancialismo no sentido de que a substância seria essencial para definir a mente Outro tipo de argumento foi dado por John Searle40 contra a inteligência artificial forte que como vimos consiste na tese funcionalista de que máquinas podem ter consciência Na década de 1970 programas de inteligência artificial passaram a conseguir responder perguntas indiretas a respeito de estórias contadas com por exemplo a estória de um homem que entra num restaurante pede um hambúrguer e sai satisfeito dando uma boa gorjeta Perguntase então se o homem comeu o hambúrguer e o programa responde que sim A partir disso podemos esperar que no futuro esta tarefa seja realizada com maestria com a máquina passando no teste de Turing Para tal simulação da habilidade humana de compreensão de estórias a inteligência artificial forte defenderia que 1 a máquina literalmente compreende a estória e fornece respostas às perguntas e com isso ela 2 explica a habilidade humana para entender a estória e responder a perguntas sobre ela p 417 Searle então apresentou seu argumento do quarto chinês Ele imagina um quarto com duas janelinhas sendo que na janela de entrada se coloca uma frase em chinês e na janela de saída aparece a tradução para o inglês Como as traduções são perfeitas somos levados a dizer que o quarto conhece os significados da língua chinesa Porém o que ocorre é que dentro da 39 LEIBNIZ 1714 Monadologia op cit nota 6 17 40 SEARLE J 1980 Minds brains and programs Behavioral and Brain Sciences 3 41724 Tradução de Cléa RO Ribeiro em httpwwwfilosofiadamenteorgimagesstoriestextosmentesdoc e disponibilizado em nosso curso Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 26 sala há uma pessoa que recebe as mensagens procura a tradução em um grande livro e monta a resposta seguindo todas as regras apresentadas nos livros Ela porém não entende o significado de nenhuma palavra em chinês mas age somente de acordo com regras que lhe são dadas A conclusão do argumento é que o comportamento inteligente de uma máquina pode ser devido apenas ao fato de ela seguir regras detalhadas sem que haja qualquer compreensão consciente sobre o que está acontecendo Assim Searle nega as duas afirmações feitas acima 1 uma máquina pode responder corretamente a todas as perguntas a respeito da estória sem compreendêla no sentido em que um ser humano consciente a compreende 2 como não haveria compreensão não se pode dizer que uma explicação tenha sido fornecida para a habilidade humana de dar respostas corretas às perguntas Esses pontos parecem corretos mas não refutam a tese funcionalista de que a mente e a compreensão subjetiva possam emergir a partir de uma organização causal extremamente complicada Uma das afirmações sustentada pela IA forte é esta quando eu compreendo uma estória em inglês o que estou fazendo é exatamente o mesmo ou talvez mais do mesmo que fazia no caso da manipulação dos símbolos em chinês O que distingue o caso do inglês que eu compreendo do caso em chinês que não compreendo seria apenas uma maior manipulação de símbolos formais Não demonstrei que esta afirmação é falsa mas no exemplo certamente pareceria uma afirmação inacreditável SEARLE 1980 p 418 2 Experimento mental da troca de células encefálicas por chips Uma boa maneira de explorar as posições em filosofia da mente é apresentando experimentos mentais Gedankenexperimenten thought experiments também traduzido por experimentos de pensamento ou seja experimentos que não podem ser realizados pelo menos não hoje em dia por razões técnicas ou então por uma questão de princípio Neste curso diversos experimentos mentais nos guiam na exploração da consciência e do encéfalo Já examinamos o experimento mental da cópia humana material perfeita que definiu as posições do materialismo e do espiritualismo e o da ginoide feita de circuitos integrados que definiu o comportamentalismo filosófico e o mentalismo Consideremos agora o experimento mental da troca de células cerebrais por chips de silício explorada por John SEARLE 1997 p 9841 Imagine que seu cérebro comece a deteriorarse de tal forma que aos poucos você vai ficando cego Imagine que os médicos desesperados ansiosos por aliviar seu sofrimento experimentem qualquer método para recuperar sua visão Como último recurso tentam implantar circuitos integrados de silício dentro de seu córtex visual Suponha que para seu assombro e também deles os circuitos integrados de silício devolvam sua visão a seu estado normal Agora imagine que para sua maior depressão seu cérebro continue a degenerarse e que os médicos continuem a implantar mais circuitos integrados de silício Você já pode perceber aonde o experimento de pensamento vai chegar no final podemos imaginar que seu cérebro estará inteiramente substituído por circuitos integrados de silício que ao balançar a cabeça você poderá ouvir os circuitos integrados chocalhando por todos os lados dentro de seu crânio 41 SEARLE J 1992 1997 A redescoberta da mente op cit nota 27 Cap 3 seção I O termo naturalismo biológico é usado no início do Cap 1 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 27 Supomos assim que cada célula de encéfalo é substituída por um chip que reproduz as mesmas relações causais de entrada e saída conhecidas hoje em dia e que os chips tenham a mesma plasticidade que as células reais estabelecendo novas conexões sinápticas etc Ao final da substituição a pessoa terá consciência ou não Não temos certeza do que aconteceria pois o experimento é apenas imaginado Mas podemos definir duas posições antagônicas com relação ao resultado esperado do experimento 1 A suposição de que a consciência se manteria intacta caracteriza um funcionalismo que seria a tese da homogeneidade ao nível de células biológicas a organização entre as células desprezando os detalhes internos seria suficiente para fazer emergir a consciência subjetiva 2 Em oposição a este tipo de funcionalismo temos a posição que chamamos de psicossubstancialismo e Searle chama de naturalismo biológico alguma coisa que ocorre nos processos biológicos dentro das células seria essencial para a emergência da consciência Assim a pessoa aos poucos iria perdendo a consciência42 3 Psicossubstancialismo Para a negação do funcionalismo da tese da homogeneidade usarei o neologismo psicossubstancialismo ou seja a noção de que a mente requer uma substância que pode ser a matéria ou outra entidade física ou outra categoria de entidade irredutível a relações O hilemorfismo de Aristóteles seria uma visão substancialista na medida em que na natureza não haveria forma sem matéria ao contrário da visão de Platão mas não seria psicossubstancialista pois argumentase que Aristóteles tendia a aceitar que a alma humana poderia se instanciar em um substrato nãobiológico desde que cumprisse sua função ver seção A13 do Apêndice Histórico O naturalismo biológico de Searle seria também uma expressão do psicossubstancialismo Outros termos usados para psicossubstancialismo no contexto dos monismos russellianos que veremos na seção VIII3 são qüidismo Marco Aurélio Alves ou inescrutabilismo onde quididade ou inescrutável designam a coisaemsi substancial que seria essencial para a consciência o que na Fig II2 chamamos de materialidade 42 A primeira possibilidade que Searle considera é o nosso caso 1 funcionalista Com relação ao nosso caso 2 em que a consciência da pessoa vai desaparecendo Searle considera a situação chamemos de caso 2a em que seu comportamento externamente observável permanece o mesmo p 100 Este seria o caso de um zumbi filosófico um corpo age por automatismos sem que haja uma vivência subjetiva consciente Podemos definir três espécies de zumbis filosóficos Zumbi1 Chalmers imaginou a possibilidade de uma cópia material humana perfeita como Calvin2 não ter consciência um materialista nega que isto possa ocorrer de maneira que para ele não haveria zumbis1 Zumbi2 Uma pessoa sofre alterações materiais significativas como no exemplo de Searle e perde a consciência mas mantém todos os comportamentos intactos passando no teste de Turing robótico Zumbi3 Este seria um caso que de fato existe como na crise epilética da ausência perdese temporariamente a consciência mas mantémse alguns automatismos só que o comportamento fica muito alterado e a pessoa não responde a alterações sutis no ambiente Para o nosso caso 2 parece mais razoável a situação 2b à medida que perdemos a consciência nosso comportamento se altera e vai perdendo repertório talvez de maneira semelhante a um zumbi3 Por fim Searle imagina um terceiro caso em que a consciência permaneceria intacta mas perderia qualquer controle sobre o corpo que se torna paralisado este é a situação da síndrome de encarceramento lockedin syndrome Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 28 4 Concepção das Energias Específicas No artigo de Sperry mencionado na seção III6 apresentase a concepção do fisiologista alemão Ewald Hering que sugeriu que diferentes qualidades de sensação como dor paladar e cor junto com outros atributos mentais poderiam ser correlacionados com a descarga de modos específicos de energia nervosa SPERRY 1952 p 292 As diferentes qualidades de diferentes modos sensoriais surgiriam a partir de diferentes bases energéticas de natureza química e não apenas a partir da organização das conexões neuronais Esta posição psicossubstancialista clássica era baseada no conceito de energia específica desenvolvida por seu orientador Johannes Müller Em 1835 Müller enunciara a lei das energias nervosas específicas o termo Kraft em alemão era na época traduzido por força ou por energia considerando inicialmente que os próprios nervos sensoriais seriam a sede dessas energias específicas e não alguma região mais interna ao encéfalo Cada energia específica estaria associada a uma modalidade visão audição olfato etc e não às diferentes qualidades que se manifestam em uma mesma modalidade sensorial BRIDGES 1912 p 57 A opinião de Müller ao longo de boa parte de sua carreira era de que as energias específicas eram de natureza distinta das forças ou energias físicas distinguia assim a física dos nervos Nervenphysik do princípio ou forçaenergia dos nervos Nervenkraft43 No entanto a partir de 1840 surgiram as investigações bioelétricas de Matteucci e de Du BoisReymond este aluno de Müller e então na 4ª edição do seu Manual de Fisiologia 1844 Müller escreveu que temos que reconhecer que foi provado que o princípio nervoso e a eletricidade física são idênticos Uma boa análise do uso do conceito de energia específica foi feita pelo psicólogo James Bridges radicado no Canadá Antes de continuar devemos fazer referência a uma certa ambiguidade no termo energia específica Ela confunde função com propriedade ou qualidade Faz muita diferença é claro se o sentido da frase é propriedade específica ou função específica A maioria dos escritores sobre o assunto usa o termo de maneira tão solta que é difícil saber o que exatamente querem dizer quando falam de energia específica Wundt não negaria a energia específica no sentido de uma função específica de qualquer unidade nervosa dada mas ele a negaria no sentido de uma propriedade específica isto é um processo químico ou físico específico naquela unidade como um correlato de uma qualidade específica da sensação Está claro que o segundo sentido propriedades inclui o primeiro função mas o contrário não é verdadeiro pelo menos não necessariamente Com a doutrina Müller queria dizer um processo propriedade nervoso específico e nos parece que também Helmholtz BRIDGES 1912 p 58 Hering seguiu as concepções de Müller adaptandoas para um ponto de vista materialista Em palestra ministrada em 1898 e incluída na quarta edição do livro Memória Hering discorreu sobre energias específicas e qualidades instanciadas quimicamente criticando a tese funcionalista da homogeneidade A teoria da homogeneidade Gleichartigkeitstheorie do processo excitatório em todas as fibras nervosas envolve a asserção adicional de que esse processo permanece qualitativamente o mesmo em uma mesma fibra e que ela é variável apenas quanto à sua intensidade e tempo de propagação HERING 1913 p 58 43 BRIDGES 1912 op cit nota 36 HERING 1913 op cit nota 22 A presente seção é baseada em PESSOA 2023 op cit nota 36 pp 3067 31011 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 29 Quem pode negar que as alterações químicas na substância de um infusório microorganismo variam qualitativamente de acordo com as alterações em suas condiçõesdevida externas por exemplo no material alimentar ou em outros estímulos agindo sobre o seu corpo p 59 Aceitando porém a possibilidade de condiçõesdeexcitação qualitativamente diferentes na mesma célula e na fibra que salta dela abrese para a teoria da vida nervosa uma série de pontos de vista que está em larga medida excluída pela teoria da homogeneidade p 60 A visão geralmente aceita atualmente é de que em conformidade com sua homogeneidade inalterável de excitação essas fibras secretoras podem influenciar apenas quantitativamente a atividade de suas células glandulares dependentes Mas como seria se de acordo com a natureza da excitação dada pela fibra nervosa os processos químicos nas células secretoras fossem diferentes e consequentemente o sistema nervoso pudesse afetar dentro de certos limites definidos a qualidade da secreção fornecida por uma única célula pp 6061 5 Uma máquina pode ser consciente Na discussão feita até aqui vemos que a pergunta sobre se máquinas podem ter consciência pode obter diversas respostas Se definirmos consciência no sentido do comportamentalismo filosófico então parece muito plausível que passaremos a atribuir consciência a robôs antes de 2050 digamos Porém em nosso curso adotamos a definição mentalista de consciência que considera que vivenciamos subjetivamente um estado qualitativo que escapa num certo sentido às palavras e que não pode pelo menos até hoje em dia ser observado diretamente do ponto de vista externo objetivo por outras pessoas Da perspectiva mentalista colocase então a questão de como surge a consciência a partir do corpo materialismo ou a partir de duas substâncias separadas o espiritualismo ou dualismo de substância Para o espiritualismo uma máquina não pode ter consciência Para o materialismo a questão depende de se a consciência é fruto apenas da organização entre as partes sendo irrelevante a natureza física do substrato que compõe essas partes tese funcionalista da homogeneidade ou se que a natureza desse substrato é essencial para a consciência naturalismo biológico ou psicossubstancialismo Para o funcionalismo de estados mentais bastaria a máquina reproduzir as relações causais entre estados mentais o chamado funcionalismo de máquina para ela ter consciência Neste caso os estados mentais seriam simplesmente estados do programa computacional Em tal concepção seria irrelevante a vivência qualitativa que sentimos em nossos estados conscientes pois não é isso que define um estado mental Assim segundo essa concepção uma máquina seria consciente apenas em um sentido funcional não num sentido mentalista Para poder afirmar que uma máquina é consciente em um sentido forte com vivência qualitativa o funcionalismo deve se ater à tese da homogeneidade que defende que as partes que compõem o substrato material da mente em seres humanos ou máquinas devem estar organizadas de maneira apropriada Uma questão em aberto é qual a escala de descrição em que a reprodução artificial das partes de um encéfalo humano poderia gerar um sistema artificial consciente Talvez a mera reprodução de gânglios e núcleos encefálicos não seja o suficiente por isso é mais comum imaginar a substituição de células biológicas por componentes artificiais com plasticidade como visto no experimento mental da troca de células encefálicas por chips seção IV2 Neste caso em que há reprodução das relações causais entre as células do encéfalo a tese funcionalista da homogeneidade defende que uma máquina poderá ter consciência no Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 30 sentido de possuir também vivência subjetiva de qualidades etc mesmo diante de críticas como o argumento do moinho de Leibniz seção IV1 Por outro lado a posição psicossubstancialista se opõe a isso supondo que há algo dentro da célula biológica ou no meio intercelular que seja essencial para a consciência Assim um encéfalo artificial feito a partir da substituição de células por componentes artificiais não teria consciência Segundo esta visão se quisermos no futuro construir robôs conscientes e inteligentes a estratégia mais viável seria acoplar um encéfalo de origem primata a um corpo artificial A posição psicossubstancialista nega que a substituição de células por chips pudesse gerar uma máquina consciente Porém poderíamos passar a investigar escalas espaciais menores Se descobríssemos que uma parte da célula biológica é essencial para a consciência então as outras partes poderiam ser substituídas por partes sintéticas como explorada hoje em dia na área chamada de biologia sintética Neste caso para esta visão um robô artificial poderia ter consciência se ele carregasse em suas células sintéticas esta parte material essencial 6 Nota sobre duas acepções de predicados V x M Para finalizar este capítulo vale a pena relembrarmos que um predicado geralmente usado como atributo mental como inteligência pode ser definido de duas maneiras Uma definição verificável V caracteriza a inteligência como a capacidade de um sistema cumprir eficientemente uma tarefa complexa de maneira verificável intersubjetiva mente Tal acepção INTELIGÊNCIAV pode ser aplicada igualmente a uma pessoa ou a uma máquina sem precisarmos nos preocupar com a natureza do sistema Por outro lado o termo inteligência pode ser entendido como inteligência no sentido humano envolvendo consciência Neste caso estamos definindo um atributo mental M INTELIGÊNCIAM e segundo o psicossubstancialista uma máquina de silício não possuiria este predicado ao passo que o funcionalista de máquina diria que possui Com relação ao comportamentalismo filosófico discutido na seção III2 podemos dizer que não é feita distinção entre as acepções V e M ou seja só se consideram os predicados tipo V Quanto ao teste de Turing todos hão de concordar que ele fornece um bom critério para se caracterizar a INTELIGÊNCIAV No início de seu artigo Turing parece se limitar a isso mas aí na seção em que discute o argumento da consciência ele desliza para uma discussão filosófica sobre INTELIGÊNCIAM Outra situação em que a presente distinção é útil é exemplificada na questão Uma árvore grande que caiu em um bosque desabitado emitiu um som ao cair44 Não havendo animais no bosque não ocorre a sensação subjetiva do som na mente de ninguém ou seja não há SOMM mas por outro lado são produzidas vibrações no ar o que em física é considerado um som Neste caso podemos dizer que houve sim SOMV 44 Esta pergunta é atribuída a George Berkeley 1710 mas este a colocou de outra forma Usando nossa terminologia ele argumentou que se alguém quiser imaginar que há somV sem somM esta pessoa terá que reconhecer que este cenário está apenas em sua mente ou seja só há há somV sem somMM Um realista ontológico concederá que isto se aplique ao cenário imaginado em minha mente mas defenderá que há instâncias desconhecidas de há somV sem somMV Ver 23 de BERKELEY G 1973 Tratado sobre os princípios do conhecimento humano trad A Sérgio in Os Pensadores vol 23 Abril Cultural São Paulo pp 750 orig em inglês 1710 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 31 7 Transhumanismo criônica e espiritualismo Com o rápido avanço tecnológico atual colocase a questão de se os produtos tecnológicos criados pelo homem escaparão de seu controle levando a consequências indesejáveis como o aumento das desigualdades sociais o domínio da máquina sobre o homem ou até mesmo a extinção da humanidade Tratase de uma discussão sobre o futuro da humanidade ao longo do presente século Há duas atitudes básicas diante deste cenário futuro As abordagens transhumanistas veem com interesse a integração do ser humano com os produtos tecnológicos fabricados pelo homem mas apesar deste otimismo não deixam de se preocupar com os perigos sociais desta integração Por outro lado as abordagens conservacionistas são bem mais críticas em relação aos rumos que a tecnociência vem tomando e são pessimistas quanto aos benefícios da extensão das capacidades humanas vislumbradas pelo transhumanismo Um dos desejos mais difundidos entre os transhumanistas é o de prolongar suas vidas por centenas e centenas de anos Simon Young 2006 defende veementemente o prolongamento da vida afirmando que a morte é uma obscenidade e a velhice e doenças uma escravidão biológica Em contrapartida o ambientalista conservacionista Bill McKibben 2003 adota a postura que chama de mortista valorizando a duração centenária atual de nossas vidas45 A criônica é a tecnologia que busca congelar o corpo ou só a cabeça em nitrogênio líquido na esperança de ressuscitálos no futuro digamos daqui a 200 anos quando a tecnologia o permitir Algumas milhares de pessoas já contrataram esse serviço funerário especialmente nos Estados Unidos a um custo de em torno de 100 mil dólares em 1990 para o corpo todo e 35 mil dólares para só a cabeça46 Para a melhor conservação do corpo o ideal é que o procedimento de suspensão se inicie em até seis minutos após a declaração legal de morte substituindose o sangue por uma solução usada para preservar os órgãos no armazenamento a baixas temperaturas e o corpo ser levado imediatamente por uma equipe especializada A criônica é bastante criticada por desviar recursos que poderiam ter uma destinação social mais eficaz sendo considerada por sociedades científicas como baseada em pseudociência Para o materialismo a possibilidade de ocorrer uma ressuscitação após 200 anos de congelamento de um corpo bem conservado não traz problemas se o corpo puder ser ressuscitado de maneira detalhada com preservação das memórias é natural que a consciência possa ressurgir e o sujeito poderá ter a impressão de ter meramente acordado de um sono profundo Já para visões espiritualistas a possibilidade de uma ressuscitação criônica pode trazer problemas As concepções católicas a respeito da morte dividemse principalmente entre visões agostinianas platônicas e tomistas aristotélicas O seguidor de Agostinho considera que na morte o indivíduo continua existindo com a sobrevivência da alma Concebese que alma sai do corpo e vai para o céu postulado pela religião se houver ressuscitamento do corpo após duzentos anos podese supor que a alma simplesmente retorna para o corpo Já para o seguidor 45 A divisão entre transhumanistas sigla H e conservacionistas é examinada por LILLEY S 2012 Transhumanism and society the social debate over human enhancement Springer Dordrecht As referências citadas são YOUNG S 2006 Designer evolution a transhumanist manifesto Prometheus Amherst NY pp 15 41 MCKIBBEN B 2003 Enough staying human in an engineered age Henry Holt New York 46 DARWIN M 1990 The cost of cryonics httpswwwalcororglibrarycostofcryonics Uma avaliação da percepção pública da criônica é feita em STODOLSKY DS 2016 The growth and decline of cryonics Cogent Social Sciences 2 artigo 1167576 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 32 de Tomás de Aquino a situação é mais complexa47 Segundo Aristóteles a pessoa ou indivíduo é entendido como composto de alma forma e corpo matéria Para Aquino na morte a alma seria preservada mas não o corpo de maneira que a pessoa deixaria de existir Porém na ressureição final o corpo voltaria a se reunir com a alma restaurando o indivíduo seria isso o que aconteceria ao final de um processo bem sucedido de ressureição criônica Outra concepção interessante de analisar é o espiritismo Para Allan Kardec 1857 além do corpo e do espírito haveria um perispírito feito de matéria sutil e que se desprenderia do corpo na morte acompanhando o espírito A reencarnação seria a ligação com um outro corpo material sendo fecundado O perispírito que viveu em um corpo que agora é um cadáver congelado crionicamente poderia reencarnar em outro corpo enquanto o corpo original está congelado Em caso positivo o que aconteceria depois de duzentos anos quando o corpo é reanimado O perispírito poderia habitar dois corpos diferentes ao mesmo tempo 47 TONER P 2009 Personhood and death in St Thomas Aquinas History of Philosophy Quarterly 26 121 138
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que é conhecido como o argumento do moinho39 Imaginandose que há uma máquina cuja estrutura a faça pensar sentir e perceber poder seá guardadas as mesmas proporções concebêla ampliada de sorte que se possa nela entrar como em um moinho Admitido isso lá não encontraremos se a visitarmos por dentro senão peças impulsionandose umas às outras e nada que explique uma percepção Portanto essa explicação deve ser procurada na substância simples e não no composto ou na máquina Tratase de um argumento que apela para nossas intuições sobre a consciência e sobre o funcionamento de máquinas Na seção IV3 chamaremos esse tipo de negação do funcionalismo de psicossubstancialismo no sentido de que a substância seria essencial para definir a mente Outro tipo de argumento foi dado por John Searle40 contra a inteligência artificial forte que como vimos consiste na tese funcionalista de que máquinas podem ter consciência Na década de 1970 programas de inteligência artificial passaram a conseguir responder 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silício dentro de seu córtex visual Suponha que para seu assombro e também deles os circuitos integrados de silício devolvam sua visão a seu estado normal Agora imagine que para sua maior depressão seu cérebro continue a degenerarse e que os médicos continuem a implantar mais circuitos integrados de silício Você já pode perceber aonde o experimento de pensamento vai chegar no final podemos imaginar que seu cérebro estará inteiramente substituído por circuitos integrados de silício que ao balançar a cabeça você poderá ouvir os circuitos integrados chocalhando por todos os lados dentro de seu crânio 41 SEARLE J 1992 1997 A redescoberta da mente op cit nota 27 Cap 3 seção I O termo naturalismo biológico é usado no início do Cap 1 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 27 Supomos assim que cada célula de encéfalo é substituída por um chip que reproduz as mesmas relações causais de entrada e saída conhecidas hoje em dia e que os chips tenham a mesma plasticidade que as células reais estabelecendo novas conexões sinápticas etc Ao final da substituição a pessoa terá consciência ou não Não temos certeza do que aconteceria pois o experimento é apenas imaginado Mas podemos definir duas posições antagônicas com relação ao resultado esperado do experimento 1 A suposição de que a consciência se manteria intacta caracteriza um funcionalismo que seria a tese da homogeneidade ao nível de células biológicas a organização entre as células desprezando os detalhes internos seria suficiente para fazer emergir a consciência subjetiva 2 Em oposição a este tipo de funcionalismo temos a posição que chamamos de psicossubstancialismo e Searle chama de naturalismo biológico alguma coisa que ocorre nos processos biológicos dentro das células seria essencial para a emergência da consciência Assim a pessoa aos poucos iria perdendo a consciência42 3 Psicossubstancialismo Para a negação do funcionalismo da tese da homogeneidade usarei o neologismo psicossubstancialismo ou seja a noção de que a mente requer uma substância que pode ser a matéria ou outra entidade física ou outra categoria de entidade irredutível a relações O hilemorfismo de Aristóteles seria uma visão substancialista na medida em que na natureza não haveria forma sem matéria ao contrário da visão de Platão mas não seria psicossubstancialista pois argumentase que Aristóteles tendia a aceitar que a alma humana poderia se instanciar em um substrato nãobiológico desde que cumprisse sua função ver seção A13 do Apêndice Histórico O naturalismo biológico de Searle seria também uma expressão do psicossubstancialismo Outros termos usados para psicossubstancialismo no contexto dos monismos russellianos que veremos na seção VIII3 são qüidismo Marco Aurélio Alves ou inescrutabilismo onde quididade ou inescrutável designam a coisaemsi substancial que seria essencial para a consciência o que na Fig II2 chamamos de materialidade 42 A primeira possibilidade que Searle considera é o nosso caso 1 funcionalista Com relação ao nosso caso 2 em que a consciência da pessoa vai desaparecendo Searle considera a situação chamemos de caso 2a em que seu comportamento externamente observável permanece o mesmo p 100 Este seria o caso de um zumbi filosófico um corpo age por automatismos sem que haja uma vivência subjetiva consciente Podemos definir três espécies de zumbis filosóficos Zumbi1 Chalmers imaginou a possibilidade de uma cópia material humana perfeita como Calvin2 não ter consciência um materialista nega que isto possa ocorrer de maneira que para ele não haveria zumbis1 Zumbi2 Uma pessoa sofre alterações materiais significativas como no exemplo de Searle e perde a consciência mas mantém todos os comportamentos intactos passando no teste de Turing robótico Zumbi3 Este seria um caso que de fato existe como na crise epilética da ausência perdese temporariamente a consciência mas mantémse alguns automatismos só que o comportamento fica muito alterado e a pessoa não responde a alterações sutis no ambiente Para o nosso caso 2 parece mais razoável a situação 2b à medida que perdemos a consciência nosso comportamento se altera e vai perdendo repertório talvez de maneira semelhante a um zumbi3 Por fim Searle imagina um terceiro caso em que a consciência permaneceria intacta mas perderia qualquer controle sobre o corpo que se torna paralisado este é a situação da síndrome de encarceramento lockedin syndrome Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 28 4 Concepção das Energias Específicas No artigo de Sperry mencionado na seção III6 apresentase a concepção do fisiologista alemão Ewald Hering que sugeriu que diferentes qualidades de sensação como dor paladar e cor junto com outros atributos mentais poderiam ser correlacionados com a descarga de modos específicos de energia nervosa SPERRY 1952 p 292 As diferentes qualidades de diferentes modos sensoriais surgiriam a partir de diferentes bases energéticas de natureza química e não apenas a partir da organização das conexões neuronais Esta posição psicossubstancialista clássica era baseada no conceito de energia específica desenvolvida por seu orientador Johannes Müller Em 1835 Müller enunciara a lei das energias nervosas específicas o termo Kraft em alemão era na época traduzido por força ou por energia considerando inicialmente que os próprios nervos sensoriais seriam a sede dessas energias específicas e não alguma região mais interna ao encéfalo Cada energia específica estaria associada a uma modalidade visão audição olfato etc e não às diferentes qualidades que se manifestam em uma mesma modalidade sensorial BRIDGES 1912 p 57 A opinião de Müller ao longo de boa parte de sua carreira era de que as energias específicas eram de natureza distinta das forças ou energias físicas distinguia assim a física dos nervos Nervenphysik do princípio ou forçaenergia dos nervos Nervenkraft43 No entanto a partir de 1840 surgiram as investigações bioelétricas de Matteucci e de Du BoisReymond este aluno de Müller e então na 4ª edição do seu Manual de Fisiologia 1844 Müller escreveu que temos que reconhecer que foi provado que o princípio nervoso e a eletricidade física são idênticos Uma boa análise do uso do conceito de energia específica foi feita pelo psicólogo James Bridges radicado no Canadá Antes de continuar devemos fazer referência a uma certa ambiguidade no termo energia específica Ela confunde função com propriedade ou qualidade Faz muita diferença é claro se o sentido da frase é propriedade específica ou função específica A maioria dos escritores sobre o assunto usa o termo de maneira tão solta que é difícil saber o que exatamente querem dizer quando falam de energia específica Wundt não negaria a energia específica no sentido de uma função específica de qualquer unidade nervosa dada mas ele a negaria no sentido de uma propriedade específica isto é um processo químico ou físico específico naquela unidade como um correlato de uma qualidade específica da sensação Está claro que o segundo sentido propriedades inclui o primeiro função mas o contrário não é verdadeiro pelo menos não necessariamente Com a doutrina Müller queria dizer um processo propriedade nervoso específico e nos parece que também Helmholtz BRIDGES 1912 p 58 Hering seguiu as concepções de Müller adaptandoas para um ponto de vista materialista Em palestra ministrada em 1898 e incluída na quarta edição do livro Memória Hering discorreu sobre energias específicas e qualidades instanciadas quimicamente criticando a tese funcionalista da homogeneidade A teoria da homogeneidade Gleichartigkeitstheorie do processo excitatório em todas as fibras nervosas envolve a asserção adicional de que esse processo permanece qualitativamente o mesmo em uma mesma fibra e que ela é variável apenas quanto à sua intensidade e tempo de propagação HERING 1913 p 58 43 BRIDGES 1912 op cit nota 36 HERING 1913 op cit nota 22 A presente seção é baseada em PESSOA 2023 op cit nota 36 pp 3067 31011 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 29 Quem pode negar que as alterações químicas na substância de um infusório microorganismo variam qualitativamente de acordo com as alterações em suas condiçõesdevida externas por exemplo no material alimentar ou em outros estímulos agindo sobre o seu corpo p 59 Aceitando porém a possibilidade de condiçõesdeexcitação qualitativamente diferentes na mesma célula e na fibra que salta dela abrese para a teoria da vida nervosa uma série de pontos de vista que está em larga medida excluída pela teoria da homogeneidade p 60 A visão geralmente aceita atualmente é de que em conformidade com sua homogeneidade inalterável de excitação essas fibras secretoras podem influenciar apenas quantitativamente a atividade de suas células glandulares dependentes Mas como seria se de acordo com a natureza da excitação dada pela fibra nervosa os processos químicos nas células secretoras fossem diferentes e consequentemente o sistema nervoso pudesse afetar dentro de certos limites definidos a qualidade da secreção fornecida por uma única célula pp 6061 5 Uma máquina pode ser consciente Na discussão feita até aqui vemos que a pergunta sobre se máquinas podem ter consciência pode obter diversas respostas Se definirmos consciência no sentido do comportamentalismo filosófico então parece muito plausível que passaremos a atribuir consciência a robôs antes de 2050 digamos Porém em nosso curso adotamos a definição mentalista de consciência que considera que vivenciamos subjetivamente um estado qualitativo que escapa num certo sentido às palavras e que não pode pelo menos até hoje em dia ser observado diretamente do ponto de vista externo objetivo por outras pessoas Da perspectiva mentalista colocase então a questão de como surge a consciência a partir do corpo materialismo ou a partir de duas substâncias separadas o espiritualismo ou dualismo de substância Para o espiritualismo uma máquina não pode ter consciência Para o materialismo a questão depende de se a consciência é fruto apenas da organização entre as partes sendo irrelevante a natureza física do substrato que compõe essas partes tese funcionalista da homogeneidade ou se que a natureza desse substrato é essencial para a consciência naturalismo biológico ou psicossubstancialismo Para o funcionalismo de estados mentais bastaria a máquina reproduzir as relações causais entre estados mentais o chamado funcionalismo de máquina para ela ter consciência Neste caso os estados mentais seriam simplesmente estados do programa computacional Em tal concepção seria irrelevante a vivência qualitativa que sentimos em nossos estados conscientes pois não é isso que define um estado mental Assim segundo essa concepção uma máquina seria consciente apenas em um sentido funcional não num sentido mentalista Para poder afirmar que uma máquina é consciente em um sentido forte com vivência qualitativa o funcionalismo deve se ater à tese da homogeneidade que defende que as partes que compõem o substrato material da mente em seres humanos ou máquinas devem estar organizadas de maneira apropriada Uma questão em aberto é qual a escala de descrição em que a reprodução artificial das partes de um encéfalo humano poderia gerar um sistema artificial consciente Talvez a mera reprodução de gânglios e núcleos encefálicos não seja o suficiente por isso é mais comum imaginar a substituição de células biológicas por componentes artificiais com plasticidade como visto no experimento mental da troca de células encefálicas por chips seção IV2 Neste caso em que há reprodução das relações causais entre as células do encéfalo a tese funcionalista da homogeneidade defende que uma máquina poderá ter consciência no Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 30 sentido de possuir também vivência subjetiva de qualidades etc mesmo diante de críticas como o argumento do moinho de Leibniz seção IV1 Por outro lado a posição psicossubstancialista se opõe a isso supondo que há algo dentro da célula biológica ou no meio intercelular que seja essencial para a consciência Assim um encéfalo artificial feito a partir da substituição de células por componentes artificiais não teria consciência Segundo esta visão se quisermos no futuro construir robôs conscientes e inteligentes a estratégia mais viável seria acoplar um encéfalo de origem primata a um corpo artificial A posição psicossubstancialista nega que a substituição de células por chips pudesse gerar uma máquina consciente Porém poderíamos passar a investigar escalas espaciais menores Se descobríssemos que uma parte da célula biológica é essencial para a consciência então as outras partes poderiam ser substituídas por partes sintéticas como explorada hoje em dia na área chamada de biologia sintética Neste caso para esta visão um robô artificial poderia ter consciência se ele carregasse em suas células sintéticas esta parte material essencial 6 Nota sobre duas acepções de predicados V x M Para finalizar este capítulo vale a pena relembrarmos que um predicado geralmente usado como atributo mental como inteligência pode ser definido de duas maneiras Uma definição verificável V caracteriza a inteligência como a capacidade de um sistema cumprir eficientemente uma tarefa complexa de maneira verificável intersubjetiva mente Tal acepção INTELIGÊNCIAV pode ser aplicada igualmente a uma pessoa ou a uma máquina sem precisarmos nos preocupar com a natureza do sistema Por outro lado o termo inteligência pode ser entendido como inteligência no sentido humano envolvendo consciência Neste caso estamos definindo um atributo mental M INTELIGÊNCIAM e segundo o psicossubstancialista uma máquina de silício não possuiria este predicado ao passo que o funcionalista de máquina diria que possui Com relação ao comportamentalismo filosófico discutido na seção III2 podemos dizer que não é feita distinção entre as acepções V e M ou seja só se consideram os predicados tipo V Quanto ao teste de Turing todos hão de concordar que ele fornece um bom critério para se caracterizar a INTELIGÊNCIAV No início de seu artigo Turing parece se limitar a isso mas aí na seção em que discute o argumento da consciência ele desliza para uma discussão filosófica sobre INTELIGÊNCIAM Outra situação em que a presente distinção é útil é exemplificada na questão Uma árvore grande que caiu em um bosque desabitado emitiu um som ao cair44 Não havendo animais no bosque não ocorre a sensação subjetiva do som na mente de ninguém ou seja não há SOMM mas por outro lado são produzidas vibrações no ar o que em física é considerado um som Neste caso podemos dizer que houve sim SOMV 44 Esta pergunta é atribuída a George Berkeley 1710 mas este a colocou de outra forma Usando nossa terminologia ele argumentou que se alguém quiser imaginar que há somV sem somM esta pessoa terá que reconhecer que este cenário está apenas em sua mente ou seja só há há somV sem somMM Um realista ontológico concederá que isto se aplique ao cenário imaginado em minha mente mas defenderá que há instâncias desconhecidas de há somV sem somMV Ver 23 de BERKELEY G 1973 Tratado sobre os princípios do conhecimento humano trad A Sérgio in Os Pensadores vol 23 Abril Cultural São Paulo pp 750 orig em inglês 1710 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 31 7 Transhumanismo criônica e espiritualismo Com o rápido avanço tecnológico atual colocase a questão de se os produtos tecnológicos criados pelo homem escaparão de seu controle levando a consequências indesejáveis como o aumento das desigualdades sociais o domínio da máquina sobre o homem ou até mesmo a extinção da humanidade Tratase de uma discussão sobre o futuro da humanidade ao longo do presente século Há duas atitudes básicas diante deste cenário futuro As abordagens transhumanistas veem com interesse a integração do ser humano com os produtos tecnológicos fabricados pelo homem mas apesar deste otimismo não deixam de se preocupar com os perigos sociais desta integração Por outro lado as abordagens conservacionistas são bem mais críticas em relação aos rumos que a tecnociência vem tomando e são pessimistas quanto aos benefícios da extensão das capacidades humanas vislumbradas pelo transhumanismo Um dos desejos mais difundidos entre os transhumanistas é o de prolongar suas vidas por centenas e centenas de anos Simon Young 2006 defende veementemente o prolongamento da vida afirmando que a morte é uma obscenidade e a velhice e doenças uma escravidão biológica Em contrapartida o ambientalista conservacionista Bill McKibben 2003 adota a postura que chama de mortista valorizando a duração centenária atual de nossas vidas45 A criônica é a tecnologia que busca congelar o corpo ou só a cabeça em nitrogênio líquido na esperança de ressuscitálos no futuro digamos daqui a 200 anos quando a tecnologia o permitir Algumas milhares de pessoas já contrataram esse serviço funerário especialmente nos Estados Unidos a um custo de em torno de 100 mil dólares em 1990 para o corpo todo e 35 mil dólares para só a cabeça46 Para a melhor conservação do corpo o ideal é que o procedimento de suspensão se inicie em até seis minutos após a declaração legal de morte substituindose o sangue por uma solução usada para preservar os órgãos no armazenamento a baixas temperaturas e o corpo ser levado imediatamente por uma equipe especializada A criônica é bastante criticada por desviar recursos que poderiam ter uma destinação social mais eficaz sendo considerada por sociedades científicas como baseada em pseudociência Para o materialismo a possibilidade de ocorrer uma ressuscitação após 200 anos de congelamento de um corpo bem conservado não traz problemas se o corpo puder ser ressuscitado de maneira detalhada com preservação das memórias é natural que a consciência possa ressurgir e o sujeito poderá ter a impressão de ter meramente acordado de um sono profundo Já para visões espiritualistas a possibilidade de uma ressuscitação criônica pode trazer problemas As concepções católicas a respeito da morte dividemse principalmente entre visões agostinianas platônicas e tomistas aristotélicas O seguidor de Agostinho considera que na morte o indivíduo continua existindo com a sobrevivência da alma Concebese que alma sai do corpo e vai para o céu postulado pela religião se houver ressuscitamento do corpo após duzentos anos podese supor que a alma simplesmente retorna para o corpo Já para o seguidor 45 A divisão entre transhumanistas sigla H e conservacionistas é examinada por LILLEY S 2012 Transhumanism and society the social debate over human enhancement Springer Dordrecht As referências citadas são YOUNG S 2006 Designer evolution a transhumanist manifesto Prometheus Amherst NY pp 15 41 MCKIBBEN B 2003 Enough staying human in an engineered age Henry Holt New York 46 DARWIN M 1990 The cost of cryonics httpswwwalcororglibrarycostofcryonics Uma avaliação da percepção pública da criônica é feita em STODOLSKY DS 2016 The growth and decline of cryonics Cogent Social Sciences 2 artigo 1167576 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap IV Crítica ao Funcionalismo Psicossubstancialismo 32 de Tomás de Aquino a situação é mais complexa47 Segundo Aristóteles a pessoa ou indivíduo é entendido como composto de alma forma e corpo matéria Para Aquino na morte a alma seria preservada mas não o corpo de maneira que a pessoa deixaria de existir Porém na ressureição final o corpo voltaria a se reunir com a alma restaurando o indivíduo seria isso o que aconteceria ao final de um processo bem sucedido de ressureição criônica Outra concepção interessante de analisar é o espiritismo Para Allan Kardec 1857 além do corpo e do espírito haveria um perispírito feito de matéria sutil e que se desprenderia do corpo na morte acompanhando o espírito A reencarnação seria a ligação com um outro corpo material sendo fecundado O perispírito que viveu em um corpo que agora é um cadáver congelado crionicamente poderia reencarnar em outro corpo enquanto o corpo original está congelado Em caso positivo o que aconteceria depois de duzentos anos quando o corpo é reanimado O perispírito poderia habitar dois corpos diferentes ao mesmo tempo 47 TONER P 2009 Personhood and death in St Thomas Aquinas History of Philosophy Quarterly 26 121 138