·
Filosofia ·
Filosofia
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
8
Filosofia da Ciencia - Consciencia em Maquinas e Funcionalismo
Filosofia
USP
8
Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo USP - Materialismo vs Espiritualismo e Consciência
Filosofia
USP
8
Filosofia da Ciência da Mente - Crítica ao Funcionalismo e Psicossubstancialismo
Filosofia
USP
17
Princípios das Coisas Materiais - Análise e Reflexões
Filosofia
USP
8
Paralelismo Psicofísico e Superveniência - Filosofia da Ciência da Mente USP
Filosofia
USP
42
Mecanicismo - Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciencia
Filosofia
USP
24
Revisitando o Cânone da Filosofia Moderna Inicial - Análise e Reflexões
Filosofia
USP
482
Gorgias de Platao - Analise do Dialogo e Retorica
Filosofia
USP
98
Discurso de Metafísica e Outros Textos - Leibniz - Filosofia Clássica
Filosofia
USP
17
Historia das Teorias da Luz e Visao - Filosofia da Ciencia USP
Filosofia
USP
Preview text
TCFC3 Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo FLF0445 USP Prof Osvaldo Pessoa Jr Cap V 33 SENSAÇÕES QUALITATIVAS Qual a natureza das impressões sensoriais subjetivas 1 O aspecto qualitativo do mental O maior problema para o funcionalismo ou tese da homogeneidade que examinamos nas seções III4 e 6 é dar conta do aspecto qualitativo do mental o que FODOR 1981 chamou de conteúdo qualitativo Não é fácil dizer o que é o conteúdo qualitativo De fato segundo algumas teorias não é possível sequer dizer o que ele é porque ele não pode ser conhecido por descrição mas apenas através da experiência direta Apesar disso eu tentarei descrevêlo Tente imaginarse olhando para uma parede em branco através de um filtro vermelho Agora troque o filtro vermelho por um verde e deixe o resto exatamente como estava antes Alguma coisa relativa ao caráter de sua experiência se altera quando o filtro é trocado e é esse tipo de coisa que os filósofos chamam de conteúdo qualitativo A razão pela qual o conteúdo qualitativo representa um problema para o funcionalismo é evidente O funcionalismo está comprometido com a definição dos estados mentais em termos de suas causas e seus efeitos Parece possível no entanto que dois estados mentais possam ter as mesmas relações causais diferindo porém em seu conteúdo qualitativo48 Este é um ponto central a ser explorado ao longo de todo curso a natureza qualitativa da vivência subjetiva consciente Termos como dados dos sentidos e quália serão usados na discussão deste ponto Argumentos como o do espectro invertido que remontam a John Locke e que examinaremos na seção V6 são usados para questionar a validade do funcionalismo de estados mentais como colocado por Fodor na última oração citada acima 2 A concepção das propriedades primárias e secundárias Na seção II1 apresentamos a distinção entre qualidade e estrutura em nosso campo fenomênico mental Na Fig II2 representamos a distinção entre realidade externa encéfalo e consciência e aqui iremos fixar nossa atenção ao mundo externo e à consciência No mundo externo há coisas ou entes e em nossa mente há percepções sensações ideias ou representações dessas coisas A concepção das propriedades primárias e secundárias parte da distinção entre estrutura e qualidade em nosso campo fenomênico 1 Estrutura nossas percepções ou representações de propriedades geométricas e matemáticas dos corpos externos como figura tamanho número textura movimento 2 Qualidade as percepções do mundo externo por meio de cores tons de som cheiros gostos e as sensações do tato 48 FODOR 1981 op cit nota 31 p 130 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 34 A tese central desta visão desenvolvida por Galileo Descartes Boyle e Locke é de que há uma semelhança entre as estruturas de nosso campo fenomênico e as estruturas no mundo externo mas não entre as qualidades de nossa percepção e qualquer coisa no mundo externo As estruturas do mundo externo são chamadas propriedades primárias e elas incluem a forma o tamanho a textura um tipo de forma o número o movimento a solidez ou elasticidade cuja percepção pode envolver apertar o objeto As propriedades primárias são semelhantes às ideias geométricas que fazemos delas por exemplo percebo visual ou tactilmente a forma da mesa junto com uma capacidade de imaginar objetos tridimensionais e esta é a forma real da mesa desprezando detalhes microscópicos e efeitos de perspectiva O que Locke chamou de propriedades secundárias são aquelas propriedades primárias que causam em nós as sensações qualitativas Por exemplo a rugosidade micrométrica na asa de um besouro iridescente difrata a luz e causa em nós a percepção da cor azul podemos tomar a propriedade secundária como a rugosidade ou se preferirmos o comprimento de onda da luz que incide em nossos olhos ambas são propriedades geométricas de coisas do mundo externo que participam da cadeia causal que gera em nós a qualidade subjetiva Porém não há semelhança entre a qualidade percebida e a rugosidade ou a onda eletromagnética a asa do besouro não tem azulidão e nem a luz a azulidão só existiria em nossa mente A única conexão entre as propriedades secundárias e sensações qualitativas seria de causalidade MENTE MUNDO EXTERNO 1 Ideias geométricas figura número etc Propriedades primárias 2 Sensações qualitativas cores etc Propriedades secundárias Tabela V1 Esquema simplificado da representação em nossas mentes das propriedades do mundo externo A concepção das propriedades secundárias defende que há uma semelhança entre os dois itens da linha 1 mas não entre os dois itens da linha 2 Em Aristóteles já havia a distinção entre percepções que denominou de comuns o movimento o repouso o número a figura e a magnitude De anima II 6 418a17 e as próprias visão de cor audição de som gustação de sabor ao passo que o tato comporta um maior número de diferenças 418a11 O que ocorreu no séc XVII com o nascimento da ciência moderna foi o desenvolvimento da noção mecanicista ver seção IV1 de que o mundo consiste apenas de corpos físicos de natureza geométrica e que suas propriedades só são fielmente representadas por ideias matemáticas ao passo que as sensações qualitativas são algo presente apenas em nossa mente não sendo semelhante a nada no mundo externo Segundo GALILEO em O ensaiador 48 p 219 que nos corpos externos para excitar em nós os sabores os cheiros e os sons seja necessário mais que grandezas figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos eu não acredito acho que tirando os ouvidos as línguas e os narizes permanecem os números as figuras e os movimentos mas não os cheiros nem os sabores nem os sons que fora do animal vivente acredito que sejam só nomes como nada mais é além de nome a cócega tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz René DESCARTES49 adotou esta distinção nos Princípios de filosofia I 70 p 54 Como sabemos claramente escreve nos objetos há inúmeras propriedades tais como dimensão figura número etc 49 ARISTÓTELES 2006 De anima trad Maria Cecília G dos Reis Editora 34 São Paulo orig em grego c 350 AEC p 86 GALILEI G 1973 O ensaiador in Os Pensadores v 12 Bruno Galileu Campanella trad H Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 35 Mas quando pensamos perceber cores em objetos facilmente deslizamos no erro de sustentar que o que é chamado cor nos objetos é algo inteiramente semelhante à cor que percebemos John LOCKE 1694 também traçou essa distinção com relação ao que chamou de qualidades das coisas que seriam a potência de produzir qualquer ideia na nossa mente As qualidades primárias de um corpo seriam as causas produtoras das nossas ideias simples de solidez extensão figura movimento ou repouso e número e as qualidades secundárias nos próprios corpos não são mais do que potências para produzir em nós várias sensações Tais são as cores os sons os paladares etc 50 3 Quália e termos correlatos O que Locke chamou de ideias das qualidades secundárias 12 é o que chamamos acima de sensações qualitativas e que viriam mais tarde ser chamadas de dados dos sentidos sense data MOORE 1913 sensa BROAD 1925 perceptos RUSSELL 1927 sentimentos brutos raw feels FEIGL 1956 1967 propriedades fenomênicas ou propriedades subjetivas e intrínsecas DENNETT 198851 O termo correlato quale singular ou quália plural foi cunhado pelo filósofo estadunidense CI LEWIS 192952 Há de fato características qualitativas reconhecíveis do dado of the given que podem ser repetidas em diferentes experiências e são portanto uma variedade de universais chamo a essas de quália Mas apesar de estes quália serem universais no sentido de serem reconhecidos de uma experiência para outra eles devem ser distinguidos das propriedades dos objetos Confusão entre esses dois é característico de muitas concepções históricas assim como de atuais teorias de essência O quale é intuído diretamente é dado e não é passível de qualquer erro porque ele é puramente subjetivo Barraco Abril Cultural São Paulo orig em italiano 1623 DESCARTES R 2007 Princípios de filosofia trad A Cotrim HG Burati Rideel São Paulo orig em latim 1644 50 LOCKE J 1999 1694 op cit nota 5 Livro II Cap VIII 810 pp 15661 Como o termo qualidade secundária de Locke pode ser confundido com sensação qualitativa preferimos falar de propriedade secundária ao nos referirmos ao mundo externo A concepção de Locke tem gerado diferentes interpretações em função do significado do termo potência power Para um vislumbre das controvérsias interpretativas ver BOLTON M 2022 Primary and secondary qualities in Early Modern Philosophy Stanford Encyclopedia of Philosophy online Kant estendeu também para as propriedades primárias a noção de que as nossas representações mentais não são semelhantes às propriedades das coisas em si KANT I 2014 Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa apresentarse como ciência trad JO Almeida Marques Estação Liberdade São Paulo orig em alemão 1783 Observação II Primeira Parte seção 13 IV 289 A6364 51 MOORE GE 1913 The status of sensedata Proceedings of the Aristotelian Society 14 35581 BROAD 1925 op cit nota 34 pp 1812 RUSSELL B 1978 1927 Análise da matéria trad NC Caixeiro Zahar Rio de Janeiro FEIGL H 1967 The mental and the physical the essay and a postscript U Minnesota Press Minneapolis orig 1956 p 5 DENNETT D 1988 Quining qualia in Marcel AJ Bisiach E orgs Consciousness in contemporary science Oxford U Press pp 4277 termos usados na p 43 PRICE HH 1932 Perception Methuen London 52 LEWIS CI 1929 Mind and the worldorder Scribners New York p 121 O termo Quale foi usado anteriormente por Hering na versão alemã de seu livro HERING E 1920 Grundzüge der Lehre vom Lichtsinn Springer Berlin p 12 em inglês a tradução qualities aparece também na p 12 Outlines of a theory of the light sense trad LM Hurvich D Jameson Harvard U Press Cambridge 1964 Quale e quália seriam antônimos de quantum e quanta todas vêm do latim mas já são consideradas palavras do português por isso o acento em quália seguindo a pronúncia em latim Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 36 Ao vivenciar agora a verdidão de um abacate temos um sentimento bruto que nossa memória associa a outras memórias de objetos que chamamos verde Esse sentimento bruto e a memória de outros sentimentos brutos estabelecem uma relação que julgamos como de identidade propiciando a atribuição de um nome para a experiência verde abacate por exemplo O quale do verde abacate é sentimento bruto junto com esse reconhecimento de que ele ocorre em outras circunstâncias O termo quália é muito próximo do conceito de dados dos sentidos sensedata utilizado no período antes da 2a Guerra Mundial no contexto britânico por Moore Russell Broad Price Ayer etc para designar objetos mentais cuja existência e propriedades nos seriam diretamente conhecidos na percepção ou seja que realmente teriam as propriedades que aparentam ter As teorias dos dados dos sentidos entraram em declínio com a virada linguística e pragmática da filosofia após a Guerra Um exemplo clássico de quale é a vermelhidão de um tomate maduro ou seja a sensação subjetiva que um observador normal tem ao fitar um tomate na luz solar É preciso distinguir as propriedades do pigmento do tomate que poderíamos chamar de vermelho ou VERMELHOV ver seção IV6 da sensação subjetiva de vermelhidão ou VERMELHOM que seria o quale 4 O teste introspectivo do quale Exemplos claros de quália são o cheiro de sândalo a sensação de uma nota musical a dor ao se topar o dedão do pé Podemos estar seguros que uma propriedade mental é um quale se pudermos realizar o seguinte teste introspectivo do quale após vivenciar o quale e refletir sobre a experiência buscar novamente vivenciar o quale não apenas lembrar dele mas viver novamente a experiência do quale e reconhecer a semelhança com a primeira experiência Isso é fácil de realizar com sensações constantes no tempo como cores e cheiros Já para uma emoção não é tão fácil realizar o teste pois emoções fortes costumam desviar a consciência do estado de introspecção O fato de não conseguirmos realizar o teste para um certo estado mental não significa que tal estado não envolva quália o teste seria apenas um critério suficiente para se estabelecer uma experiência como envolvendo um quale Uma sensação fugaz pode ser considerada um quale mas neste caso não temos como realizar o teste do quale o que conseguimos fazer talvez é realizar o teste do quale com a memória da sensação fugaz o que é bem diferente Uma pósimagem verde obtida ao olhar para uma parede branca após fitar durante um minuto o tomate vermelho claramente passa no teste do quale Já as sensações que ocorrem em sonhos não são passíveis do teste do quale a não ser que se tenha um sonho lúcido Ao aplicarmos o teste introspectivo do quale é preciso fazer a distinção entre qualidade e estrutura seção II1 Certamente a forma de um objeto no campo visual permanece o mesmo para a nossa percepção com o passar do tempo mas não chamamos a esta forma de quale mas sim de uma propriedade relacional estrutural ou geométrica Mas haveria algum quale associado a esta forma Encontramos problemas adicionais para nosso teste introspectivo Um pensamento é uma propriedade estrutural Ao pensarmos podemos vivenciar um quale Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 37 5 A crítica de Dennett DENNETT 198853 defende que os vários conceitos técnicos e teóricos de quália são vagos e equívocos e que a correspondente noção préteórica é completamente confusa de maneira que é muito melhor taticamente declarar que simplesmente não há quália p 44 Em seu ataque o filósofo estadunidense faz uso de diversos experimentos mentais como o da máquina degustadora de vinho Por exemplo ele imagina uma máquina baseada em inteligência artificial que é capaz de degustar vinhos de maneira mais confiável do que seres humanos produzindo um relato verbal próprio de degustadores humanos De maneira irônica conclui assumindo o discurso do oponente mas certamente não importa o quão sensível e discriminador este sistema possa se tornar ele nunca terá ou apreciará o que nós fazemos quando degustamos um vinho os quália da experiência consciente Quaisquer que sejam as propriedades informacionais disposicionais e funcionais que seus estados internos possuem nenhum deles será especial da maneira que são os quália Se você compartilha dessa intuição então você acredita que há quália no sentido em que almejo demolir p 46 Após criticar a definição ostensiva de quália considera quatro propriedades de segunda ordem que os quália possuiriam supõese que os quália são propriedades dos estados mentais de um sujeito que sejam 1 inefáveis 2 intrínsecas 3 privadas e 4 diretamente ou imediatamente acessíveis na consciência p 47 Passa então a criticar tais propriedades de segunda ordem 6 Experimento mental do espectro invertido Para deixar clara a diferença entre as propriedades secundárias de uma coisa e os quália gerados em um sujeito observador podemos imaginar a situação hipotética em que alguém nasce com alterações no aparelho perceptivo de tal maneira a ver as cores trocadas No exemplo dado por LOCKE 1694 Livro II Cap XXXII 15 se a ideia que uma violeta produziu na mente de um homem através dos seus olhos fosse a mesma que uma calêndula amarela produziu num outro homem e viceversa Ou seja imagine um ser humano que inverte as cores do espectro de um arcoíris trocando violeta e amarelo teríamos como descobrir que sua sensação subjetiva é diferente Ora quando ele era pequeno ao ver uma calêndula com um quale violeta vibrante sua mãe lhe disse que ela era amarela e assim o jovem passa a chamar de amarelo tudo o que lhe gera o quale da violeteza de maneira a estar de acordo com o uso linguístico de seus amigos Em outras palavras não teríamos como identificar esta pessoa a não ser que ela confundisse dois pigmentos que os outros não confundem como faz um daltônico Vemos assim em que sentido um quale é anterior à linguagem e não pode ser capturado por ela Supondo que todos os seres humanos sejam biologicamente semelhantes supomos que a maioria vê as cores de maneira semelhante a nós mas não temos como verificar isso pelo menos por enquanto Se um marciano chegasse à Terra e perguntasse o que é a vermelhidão não adiantaria apontar para um tomate pois a percepção que o marciano teria do tomate seria completamente diferente da nossa 53 DENNETT 1988 op cit nota 51 Disponibilizamos uma tradução da seção 3 deste artigo em que o autor critica a noção de quália a partir de três experimentos mentais intuition pumps o do espectro invertido o da máquina de junção de mentes e o da pegadinha neurocirúrgica Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 38 Uma versão diferente do experimento mental do espectro invertido é usada como argumento contra o funcionalismo de estados mentais seção III4 FODOR 1981 p 130 explica isso na continuação da citação apresentada na seção V1 Aparentemente é possível imaginar dois observadores semelhantes em todos os aspectos psicológicos relevantes com a única exceção de que as experiências subjetivas que possuem o conteúdo qualitativo do vermelho para um observador teriam o conteúdo qualitativo do verde para o outro observador O comportamento de ambos não revela a diferença porque todos os dois veem um tomate maduro e um pôr do sol flamejante como sendo de cor semelhante e chamam essa cor de vermelho Além disso a conexão causal entre suas experiências qualitativamente distintas e seus outros estados mentais também poderiam ser idênticas Talvez ambos pensem na Chapeuzinho Vermelho quando veem tomates maduros sintamse deprimidos quando veem a cor verde e assim por diante Parece que qualquer coisa que pudesse ser incluída na noção de papel causal de suas experiências poderia ser compartilhada por eles e apesar disso o conteúdo qualitativo das experiências poderia ser totalmente diferente Se isto for possível então a abordagem funcionalista não funciona para os estados mentais que possuem conteúdo qualitativo Se uma pessoa está tendo uma experiência do verde enquanto outra está tendo uma do vermelho elas certamente devem estar em estados mentais diferentes Neste caso supõese que duas pessoas possam vivenciar espectros invertidos mesmo sem nenhuma diferença em sua estrutura causal subjacente mas esta possibilidade teria que ser investigada experimentalmente Por outro lado o neurocientista Stephen Palmer mostrou que há restrições adicionais na nossa experiência de cores como a existência de matizes de cores únicas unique hues que são vermelho amarelo verde e azul que permitem fazer testes comportamentais para detectar diferenças entre duas pessoas que porventura invertam o espectro No entanto haveria ainda três possibilidades de transformação que não poderiam ser detectados com os testes de semelhança entre cores e de relações de composição i inversão só de vermelho e verde ii inversão de amarelo e azul e de preto e branco iii inversão dos três pares de cores oponentes vermelhoverde azulamarelo e pretobranco54 7 O experimento mental do quarto de Mary O argumento de que nem todo conhecimento pode fazer parte da Física foi colocado de maneira sucinta por Russell em sua Análise da matéria É óbvio que uma pessoa que pode ver sabe de coisas que um cego não pode saber cannot know mas um cego pode saber tudo sobre Física Assim o conhecimento que outros homens tenham e ele não tem não é parte da Física RUSSELL 1927 p 389 1978 p 379 Uma versão mais recente desta ideia é uma das questões mais discutidas na filosofia da mente contemporânea o experimento mental do quarto de Mary proposto pelo filósofo australiano Frank Jackson 198255 Imaginemos uma neurocientista chamada Mary que vive no século XXIII quando toda a ciência da visão em cores já teria sido desvendada Ela foi criada em um quarto preto branco e cinza e nunca viu ou vivenciou cores quando ela sai para 54 PALMER SE 1999 Color consciousness and the isomorphism constraint Behavioral and Brain Sciences 22 92343 seguido de discussão pp 94489 Versão abreviada Consciousness and isomorphism in Baars BJ Banks WP Newman JB orgs 2003 Essential sources in the scientific study of consciousness MIT Press Cambridge pp 185200 55 JACKSON F 1982 Epiphenomenal qualia Philosophical Quarterly 32 12736 JACKSON F 1986 What Mary didnt know Journal of Philosophy 83 29195 Há traduções disponibilizadas no curso A referência de RUSSELL 1978 1927 está na nota 51 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 39 uma balada coloca óculos especiais para não detectar cores Além disso podemos supor que uma vez por semana durante seu sono profundo ao longo de toda sua vida uma manipulação especial é feita em seu encéfalo para que este não atrofie e Mary não perca a capacidade de vivenciar cores Por outro lado Mary tornouse uma renomada neurocientista tendo estudado teoricamente e experimentalmente todos os aspectos físicos químicos e biológicos da ciência da visão Segundo Jackson ela teria conhecimento físico completo a respeito das cores ou seja um conhecimento descritivo linguísticoquantitativo completo que deixa de fora apenas o contato acquaintance com as cores e a capacidade de manipular experimentalmente as percepções visuais de uma pessoa A questão é ela conhece tudo o que há para saber a respeito das cores Quando Mary finalmente sai do quarto e observa pela primeira vez uma mancha de tinta verde pintada em uma parede ela adquire conhecimento novo E a seguir quando alguém lhe diz que aquela mancha tem cor verde há algum elemento novo adicionado a seus conhecimentos sobre o verde A resposta usual é sim Isso indica que há uma diferença entre o conhecimento físico descrição linguísticoquantitativa e capacidade experimental de manipulação de um elemento e a vivência acquaintance do mesmo Essa diferença é o que é chamado de quália ou qualidades subjetivas O chamado argumento do conhecimento de Jackson desemboca assim na tese de que há conhecimento não fisico sobre o mundo Notamos que este experimento mental define conhecimento físico de uma determinada maneira Mas aceitando esta definição concluise que o conhecimento de quália é um conhecimento não físico Mas poderseia concluir também que os quália são entes não físicos como defende David Chalmers Para isso seria preciso adicionar mais uma hipótese ao argumento a hipótese de que se algo é conhecível e se for físico então ele é conhecível fisicamente56 Inferese então que há algo nãofísico que é conhecível que seriam os quália Portanto o fisicismo seria falso Aceitandose o argumento de Jackson o dilema resultante é ou admitir que o fisicismo é falso ou considerar que os quália são físicos escapando da hipótese de Chalmers Esta segunda alternativa resulta no fisicismo qualitativo ou tese do encéfalo colorido que veremos mais adiante Um ponto semelhante é salientado por Owen Flanagan que considera que o experimento mental do quarto de Mary refuta um fisicismo linguístico mas não um fisicismo metafísico ou ôntico Muita discussão sobre este argumento do conhecimento aconteceu nas últimas décadas com a proposta de diversas soluções como a envolvendo conceitos fenomênicos que seriam conhecimento novo adquirido por Mary fora de seu quarto Não iremos explorar essas diversas propostas para isso ver NIDARÜMELIN 201057 56 Definamos os seguintes predicados Fx x é físico Cx x é conhecível Px x é conhecível fisicamente Consideremos agora três enunciados 1 x Px Fx hipótese científica qualquer coisa que seja conhecível fisicamente é uma coisa física 2 x Cx Px argumento do conhecimento de Jackson 3 x Cx Fx Px hipótese de Chalmers De 2 e 3 inferese x Cx Fx donde x Fx 57 Esta posição pode ser associada a David Chalmers p 162 que considera que um quale seja uma propriedade p 359 CHALMERS DJ 1996 The conscious mind Oxford University Press New York NIDARÜMELIN Martine 2010 Qualia the knowledge argument Stanford Encyclopedia of Philosophy online Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 40 8 O cerebroscópio O cerebroscópio ou melhor encefaloscópio é um equipamento fictício imaginado por Paul Meehl e Herbert Feigl ver FEIGL 1956 1967 p 63 que permitiria que uma pessoa tivesse acesso visual a qualquer processo físicoquímico no encéfalo de outra pessoa Por exemplo suponha que Mary esteja observando em um cerebroscópio que gera imagens em preto e branco o encéfalo de uma amiga Giuli que está observando um abacate inacessível para Mary Mary teria acesso ao correlato encefálico imediato da vivência visual da verdidão e com seu conhecimento poderia inferir que Giuli está observando um objeto verde mesmo não tendo ela mesma Mary acesso a qualquer quale cromático Quando Mary sai do quarto e vê pela primeira vez uma mancha colorida na parede ela não tem como saber qual o nome dessa cor DENNETT 1991 pp 399400 com seu truque da banana azul argumenta que ela teria como saber pois ao conhecer tudo sobre a estrutura e funcionamento do encéfalo ela saberia quais pensamentos secundários seriam gerados ao observar cada uma das cores58 Desconsiderando esta possibilidade aventada por Dennett se Mary estivesse de posse de um autocerebroscópio ou seja um cerebroscópio voltado para seu próprio encéfalo ela poderia facilmente inferir qual cor objetiva CORV ela estava vendo 9 Lacuna explicativa e princípios não explicados Essa discussão ilumina o lugar das qualidades subjetivas no mundo material apontando para uma lacuna explicativa na expressão de Joseph LEVINE entre a descrição linguístico quantitativa da ciência e as qualidades subjetivas Na terminologia de CHALMERS 1995 este seria um problema difícil relacionado à pesquisa sobre a consciência59 Colocado brevemente qualidades não são deriváveis de quantidades A neurociência do futuro terá que se contentar em estabelecer leis de ponte termo usado por CHALMERS 1995 entre estados encefálicos descritos quantitativamente e manipulados experimentalmente e estados mentais qualitativos sendo que parte dessas leis serão princípios nãoexplicados como ocorre em toda teoria física baseada em princípios como a Teoria da Relatividade Restrita onde os princípios não são explicados pela teoria mas aceitos por causa das consequências observacionais deduzidas a partir deles As qualidades subjetivas não poderão ser derivadas ou explicadas inteiramente de maneira matemática e quantitativa a natureza das qualidades envolve algo que está para além da representação ou modelização a própria realidade ou sua materialidade Voltaremos para essa importante questão mais para frente 58 DENNETT DC 1991 Consciousness explained Back Bay Books New York FEIGL 1956 1967 op cit nota 51 59 LEVINE J 1983 Materialism and the explanatory gap Pacific Philosophical Quarterly 64 35461 CHALMERS DJ 1995 O enigma da experiência consciente trad LMS Augusto versão disponibilizada em nosso curso original em Scientific American 2736 8086 O termo explanatory gap é também traduzido por hiato explicativo de todo modo no contexto da Filosofia da Ciência não se considera adequado o termo explanatório O conceito de lacuna explicativa não é novo aparecendo por exemplo em TYNDALL 1868 que citaremos adiante que escreve sobre o abismo chasm entre processos físicos e fatos da consciência
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
8
Filosofia da Ciencia - Consciencia em Maquinas e Funcionalismo
Filosofia
USP
8
Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo USP - Materialismo vs Espiritualismo e Consciência
Filosofia
USP
8
Filosofia da Ciência da Mente - Crítica ao Funcionalismo e Psicossubstancialismo
Filosofia
USP
17
Princípios das Coisas Materiais - Análise e Reflexões
Filosofia
USP
8
Paralelismo Psicofísico e Superveniência - Filosofia da Ciência da Mente USP
Filosofia
USP
42
Mecanicismo - Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciencia
Filosofia
USP
24
Revisitando o Cânone da Filosofia Moderna Inicial - Análise e Reflexões
Filosofia
USP
482
Gorgias de Platao - Analise do Dialogo e Retorica
Filosofia
USP
98
Discurso de Metafísica e Outros Textos - Leibniz - Filosofia Clássica
Filosofia
USP
17
Historia das Teorias da Luz e Visao - Filosofia da Ciencia USP
Filosofia
USP
Preview text
TCFC3 Filosofia da Ciência da Mente e do Encéfalo FLF0445 USP Prof Osvaldo Pessoa Jr Cap V 33 SENSAÇÕES QUALITATIVAS Qual a natureza das impressões sensoriais subjetivas 1 O aspecto qualitativo do mental O maior problema para o funcionalismo ou tese da homogeneidade que examinamos nas seções III4 e 6 é dar conta do aspecto qualitativo do mental o que FODOR 1981 chamou de conteúdo qualitativo Não é fácil dizer o que é o conteúdo qualitativo De fato segundo algumas teorias não é possível sequer dizer o que ele é porque ele não pode ser conhecido por descrição mas apenas através da experiência direta Apesar disso eu tentarei descrevêlo Tente imaginarse olhando para uma parede em branco através de um filtro vermelho Agora troque o filtro vermelho por um verde e deixe o resto exatamente como estava antes Alguma coisa relativa ao caráter de sua experiência se altera quando o filtro é trocado e é esse tipo de coisa que os filósofos chamam de conteúdo qualitativo A razão pela qual o conteúdo qualitativo representa um problema para o funcionalismo é evidente O funcionalismo está comprometido com a definição dos estados mentais em termos de suas causas e seus efeitos Parece possível no entanto que dois estados mentais possam ter as mesmas relações causais diferindo porém em seu conteúdo qualitativo48 Este é um ponto central a ser explorado ao longo de todo curso a natureza qualitativa da vivência subjetiva consciente Termos como dados dos sentidos e quália serão usados na discussão deste ponto Argumentos como o do espectro invertido que remontam a John Locke e que examinaremos na seção V6 são usados para questionar a validade do funcionalismo de estados mentais como colocado por Fodor na última oração citada acima 2 A concepção das propriedades primárias e secundárias Na seção II1 apresentamos a distinção entre qualidade e estrutura em nosso campo fenomênico mental Na Fig II2 representamos a distinção entre realidade externa encéfalo e consciência e aqui iremos fixar nossa atenção ao mundo externo e à consciência No mundo externo há coisas ou entes e em nossa mente há percepções sensações ideias ou representações dessas coisas A concepção das propriedades primárias e secundárias parte da distinção entre estrutura e qualidade em nosso campo fenomênico 1 Estrutura nossas percepções ou representações de propriedades geométricas e matemáticas dos corpos externos como figura tamanho número textura movimento 2 Qualidade as percepções do mundo externo por meio de cores tons de som cheiros gostos e as sensações do tato 48 FODOR 1981 op cit nota 31 p 130 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 34 A tese central desta visão desenvolvida por Galileo Descartes Boyle e Locke é de que há uma semelhança entre as estruturas de nosso campo fenomênico e as estruturas no mundo externo mas não entre as qualidades de nossa percepção e qualquer coisa no mundo externo As estruturas do mundo externo são chamadas propriedades primárias e elas incluem a forma o tamanho a textura um tipo de forma o número o movimento a solidez ou elasticidade cuja percepção pode envolver apertar o objeto As propriedades primárias são semelhantes às ideias geométricas que fazemos delas por exemplo percebo visual ou tactilmente a forma da mesa junto com uma capacidade de imaginar objetos tridimensionais e esta é a forma real da mesa desprezando detalhes microscópicos e efeitos de perspectiva O que Locke chamou de propriedades secundárias são aquelas propriedades primárias que causam em nós as sensações qualitativas Por exemplo a rugosidade micrométrica na asa de um besouro iridescente difrata a luz e causa em nós a percepção da cor azul podemos tomar a propriedade secundária como a rugosidade ou se preferirmos o comprimento de onda da luz que incide em nossos olhos ambas são propriedades geométricas de coisas do mundo externo que participam da cadeia causal que gera em nós a qualidade subjetiva Porém não há semelhança entre a qualidade percebida e a rugosidade ou a onda eletromagnética a asa do besouro não tem azulidão e nem a luz a azulidão só existiria em nossa mente A única conexão entre as propriedades secundárias e sensações qualitativas seria de causalidade MENTE MUNDO EXTERNO 1 Ideias geométricas figura número etc Propriedades primárias 2 Sensações qualitativas cores etc Propriedades secundárias Tabela V1 Esquema simplificado da representação em nossas mentes das propriedades do mundo externo A concepção das propriedades secundárias defende que há uma semelhança entre os dois itens da linha 1 mas não entre os dois itens da linha 2 Em Aristóteles já havia a distinção entre percepções que denominou de comuns o movimento o repouso o número a figura e a magnitude De anima II 6 418a17 e as próprias visão de cor audição de som gustação de sabor ao passo que o tato comporta um maior número de diferenças 418a11 O que ocorreu no séc XVII com o nascimento da ciência moderna foi o desenvolvimento da noção mecanicista ver seção IV1 de que o mundo consiste apenas de corpos físicos de natureza geométrica e que suas propriedades só são fielmente representadas por ideias matemáticas ao passo que as sensações qualitativas são algo presente apenas em nossa mente não sendo semelhante a nada no mundo externo Segundo GALILEO em O ensaiador 48 p 219 que nos corpos externos para excitar em nós os sabores os cheiros e os sons seja necessário mais que grandezas figuras e multiplicidade de movimentos vagarosos ou rápidos eu não acredito acho que tirando os ouvidos as línguas e os narizes permanecem os números as figuras e os movimentos mas não os cheiros nem os sabores nem os sons que fora do animal vivente acredito que sejam só nomes como nada mais é além de nome a cócega tiradas as axilas e a pele ao redor do nariz René DESCARTES49 adotou esta distinção nos Princípios de filosofia I 70 p 54 Como sabemos claramente escreve nos objetos há inúmeras propriedades tais como dimensão figura número etc 49 ARISTÓTELES 2006 De anima trad Maria Cecília G dos Reis Editora 34 São Paulo orig em grego c 350 AEC p 86 GALILEI G 1973 O ensaiador in Os Pensadores v 12 Bruno Galileu Campanella trad H Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 35 Mas quando pensamos perceber cores em objetos facilmente deslizamos no erro de sustentar que o que é chamado cor nos objetos é algo inteiramente semelhante à cor que percebemos John LOCKE 1694 também traçou essa distinção com relação ao que chamou de qualidades das coisas que seriam a potência de produzir qualquer ideia na nossa mente As qualidades primárias de um corpo seriam as causas produtoras das nossas ideias simples de solidez extensão figura movimento ou repouso e número e as qualidades secundárias nos próprios corpos não são mais do que potências para produzir em nós várias sensações Tais são as cores os sons os paladares etc 50 3 Quália e termos correlatos O que Locke chamou de ideias das qualidades secundárias 12 é o que chamamos acima de sensações qualitativas e que viriam mais tarde ser chamadas de dados dos sentidos sense data MOORE 1913 sensa BROAD 1925 perceptos RUSSELL 1927 sentimentos brutos raw feels FEIGL 1956 1967 propriedades fenomênicas ou propriedades subjetivas e intrínsecas DENNETT 198851 O termo correlato quale singular ou quália plural foi cunhado pelo filósofo estadunidense CI LEWIS 192952 Há de fato características qualitativas reconhecíveis do dado of the given que podem ser repetidas em diferentes experiências e são portanto uma variedade de universais chamo a essas de quália Mas apesar de estes quália serem universais no sentido de serem reconhecidos de uma experiência para outra eles devem ser distinguidos das propriedades dos objetos Confusão entre esses dois é característico de muitas concepções históricas assim como de atuais teorias de essência O quale é intuído diretamente é dado e não é passível de qualquer erro porque ele é puramente subjetivo Barraco Abril Cultural São Paulo orig em italiano 1623 DESCARTES R 2007 Princípios de filosofia trad A Cotrim HG Burati Rideel São Paulo orig em latim 1644 50 LOCKE J 1999 1694 op cit nota 5 Livro II Cap VIII 810 pp 15661 Como o termo qualidade secundária de Locke pode ser confundido com sensação qualitativa preferimos falar de propriedade secundária ao nos referirmos ao mundo externo A concepção de Locke tem gerado diferentes interpretações em função do significado do termo potência power Para um vislumbre das controvérsias interpretativas ver BOLTON M 2022 Primary and secondary qualities in Early Modern Philosophy Stanford Encyclopedia of Philosophy online Kant estendeu também para as propriedades primárias a noção de que as nossas representações mentais não são semelhantes às propriedades das coisas em si KANT I 2014 Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa apresentarse como ciência trad JO Almeida Marques Estação Liberdade São Paulo orig em alemão 1783 Observação II Primeira Parte seção 13 IV 289 A6364 51 MOORE GE 1913 The status of sensedata Proceedings of the Aristotelian Society 14 35581 BROAD 1925 op cit nota 34 pp 1812 RUSSELL B 1978 1927 Análise da matéria trad NC Caixeiro Zahar Rio de Janeiro FEIGL H 1967 The mental and the physical the essay and a postscript U Minnesota Press Minneapolis orig 1956 p 5 DENNETT D 1988 Quining qualia in Marcel AJ Bisiach E orgs Consciousness in contemporary science Oxford U Press pp 4277 termos usados na p 43 PRICE HH 1932 Perception Methuen London 52 LEWIS CI 1929 Mind and the worldorder Scribners New York p 121 O termo Quale foi usado anteriormente por Hering na versão alemã de seu livro HERING E 1920 Grundzüge der Lehre vom Lichtsinn Springer Berlin p 12 em inglês a tradução qualities aparece também na p 12 Outlines of a theory of the light sense trad LM Hurvich D Jameson Harvard U Press Cambridge 1964 Quale e quália seriam antônimos de quantum e quanta todas vêm do latim mas já são consideradas palavras do português por isso o acento em quália seguindo a pronúncia em latim Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 36 Ao vivenciar agora a verdidão de um abacate temos um sentimento bruto que nossa memória associa a outras memórias de objetos que chamamos verde Esse sentimento bruto e a memória de outros sentimentos brutos estabelecem uma relação que julgamos como de identidade propiciando a atribuição de um nome para a experiência verde abacate por exemplo O quale do verde abacate é sentimento bruto junto com esse reconhecimento de que ele ocorre em outras circunstâncias O termo quália é muito próximo do conceito de dados dos sentidos sensedata utilizado no período antes da 2a Guerra Mundial no contexto britânico por Moore Russell Broad Price Ayer etc para designar objetos mentais cuja existência e propriedades nos seriam diretamente conhecidos na percepção ou seja que realmente teriam as propriedades que aparentam ter As teorias dos dados dos sentidos entraram em declínio com a virada linguística e pragmática da filosofia após a Guerra Um exemplo clássico de quale é a vermelhidão de um tomate maduro ou seja a sensação subjetiva que um observador normal tem ao fitar um tomate na luz solar É preciso distinguir as propriedades do pigmento do tomate que poderíamos chamar de vermelho ou VERMELHOV ver seção IV6 da sensação subjetiva de vermelhidão ou VERMELHOM que seria o quale 4 O teste introspectivo do quale Exemplos claros de quália são o cheiro de sândalo a sensação de uma nota musical a dor ao se topar o dedão do pé Podemos estar seguros que uma propriedade mental é um quale se pudermos realizar o seguinte teste introspectivo do quale após vivenciar o quale e refletir sobre a experiência buscar novamente vivenciar o quale não apenas lembrar dele mas viver novamente a experiência do quale e reconhecer a semelhança com a primeira experiência Isso é fácil de realizar com sensações constantes no tempo como cores e cheiros Já para uma emoção não é tão fácil realizar o teste pois emoções fortes costumam desviar a consciência do estado de introspecção O fato de não conseguirmos realizar o teste para um certo estado mental não significa que tal estado não envolva quália o teste seria apenas um critério suficiente para se estabelecer uma experiência como envolvendo um quale Uma sensação fugaz pode ser considerada um quale mas neste caso não temos como realizar o teste do quale o que conseguimos fazer talvez é realizar o teste do quale com a memória da sensação fugaz o que é bem diferente Uma pósimagem verde obtida ao olhar para uma parede branca após fitar durante um minuto o tomate vermelho claramente passa no teste do quale Já as sensações que ocorrem em sonhos não são passíveis do teste do quale a não ser que se tenha um sonho lúcido Ao aplicarmos o teste introspectivo do quale é preciso fazer a distinção entre qualidade e estrutura seção II1 Certamente a forma de um objeto no campo visual permanece o mesmo para a nossa percepção com o passar do tempo mas não chamamos a esta forma de quale mas sim de uma propriedade relacional estrutural ou geométrica Mas haveria algum quale associado a esta forma Encontramos problemas adicionais para nosso teste introspectivo Um pensamento é uma propriedade estrutural Ao pensarmos podemos vivenciar um quale Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 37 5 A crítica de Dennett DENNETT 198853 defende que os vários conceitos técnicos e teóricos de quália são vagos e equívocos e que a correspondente noção préteórica é completamente confusa de maneira que é muito melhor taticamente declarar que simplesmente não há quália p 44 Em seu ataque o filósofo estadunidense faz uso de diversos experimentos mentais como o da máquina degustadora de vinho Por exemplo ele imagina uma máquina baseada em inteligência artificial que é capaz de degustar vinhos de maneira mais confiável do que seres humanos produzindo um relato verbal próprio de degustadores humanos De maneira irônica conclui assumindo o discurso do oponente mas certamente não importa o quão sensível e discriminador este sistema possa se tornar ele nunca terá ou apreciará o que nós fazemos quando degustamos um vinho os quália da experiência consciente Quaisquer que sejam as propriedades informacionais disposicionais e funcionais que seus estados internos possuem nenhum deles será especial da maneira que são os quália Se você compartilha dessa intuição então você acredita que há quália no sentido em que almejo demolir p 46 Após criticar a definição ostensiva de quália considera quatro propriedades de segunda ordem que os quália possuiriam supõese que os quália são propriedades dos estados mentais de um sujeito que sejam 1 inefáveis 2 intrínsecas 3 privadas e 4 diretamente ou imediatamente acessíveis na consciência p 47 Passa então a criticar tais propriedades de segunda ordem 6 Experimento mental do espectro invertido Para deixar clara a diferença entre as propriedades secundárias de uma coisa e os quália gerados em um sujeito observador podemos imaginar a situação hipotética em que alguém nasce com alterações no aparelho perceptivo de tal maneira a ver as cores trocadas No exemplo dado por LOCKE 1694 Livro II Cap XXXII 15 se a ideia que uma violeta produziu na mente de um homem através dos seus olhos fosse a mesma que uma calêndula amarela produziu num outro homem e viceversa Ou seja imagine um ser humano que inverte as cores do espectro de um arcoíris trocando violeta e amarelo teríamos como descobrir que sua sensação subjetiva é diferente Ora quando ele era pequeno ao ver uma calêndula com um quale violeta vibrante sua mãe lhe disse que ela era amarela e assim o jovem passa a chamar de amarelo tudo o que lhe gera o quale da violeteza de maneira a estar de acordo com o uso linguístico de seus amigos Em outras palavras não teríamos como identificar esta pessoa a não ser que ela confundisse dois pigmentos que os outros não confundem como faz um daltônico Vemos assim em que sentido um quale é anterior à linguagem e não pode ser capturado por ela Supondo que todos os seres humanos sejam biologicamente semelhantes supomos que a maioria vê as cores de maneira semelhante a nós mas não temos como verificar isso pelo menos por enquanto Se um marciano chegasse à Terra e perguntasse o que é a vermelhidão não adiantaria apontar para um tomate pois a percepção que o marciano teria do tomate seria completamente diferente da nossa 53 DENNETT 1988 op cit nota 51 Disponibilizamos uma tradução da seção 3 deste artigo em que o autor critica a noção de quália a partir de três experimentos mentais intuition pumps o do espectro invertido o da máquina de junção de mentes e o da pegadinha neurocirúrgica Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 38 Uma versão diferente do experimento mental do espectro invertido é usada como argumento contra o funcionalismo de estados mentais seção III4 FODOR 1981 p 130 explica isso na continuação da citação apresentada na seção V1 Aparentemente é possível imaginar dois observadores semelhantes em todos os aspectos psicológicos relevantes com a única exceção de que as experiências subjetivas que possuem o conteúdo qualitativo do vermelho para um observador teriam o conteúdo qualitativo do verde para o outro observador O comportamento de ambos não revela a diferença porque todos os dois veem um tomate maduro e um pôr do sol flamejante como sendo de cor semelhante e chamam essa cor de vermelho Além disso a conexão causal entre suas experiências qualitativamente distintas e seus outros estados mentais também poderiam ser idênticas Talvez ambos pensem na Chapeuzinho Vermelho quando veem tomates maduros sintamse deprimidos quando veem a cor verde e assim por diante Parece que qualquer coisa que pudesse ser incluída na noção de papel causal de suas experiências poderia ser compartilhada por eles e apesar disso o conteúdo qualitativo das experiências poderia ser totalmente diferente Se isto for possível então a abordagem funcionalista não funciona para os estados mentais que possuem conteúdo qualitativo Se uma pessoa está tendo uma experiência do verde enquanto outra está tendo uma do vermelho elas certamente devem estar em estados mentais diferentes Neste caso supõese que duas pessoas possam vivenciar espectros invertidos mesmo sem nenhuma diferença em sua estrutura causal subjacente mas esta possibilidade teria que ser investigada experimentalmente Por outro lado o neurocientista Stephen Palmer mostrou que há restrições adicionais na nossa experiência de cores como a existência de matizes de cores únicas unique hues que são vermelho amarelo verde e azul que permitem fazer testes comportamentais para detectar diferenças entre duas pessoas que porventura invertam o espectro No entanto haveria ainda três possibilidades de transformação que não poderiam ser detectados com os testes de semelhança entre cores e de relações de composição i inversão só de vermelho e verde ii inversão de amarelo e azul e de preto e branco iii inversão dos três pares de cores oponentes vermelhoverde azulamarelo e pretobranco54 7 O experimento mental do quarto de Mary O argumento de que nem todo conhecimento pode fazer parte da Física foi colocado de maneira sucinta por Russell em sua Análise da matéria É óbvio que uma pessoa que pode ver sabe de coisas que um cego não pode saber cannot know mas um cego pode saber tudo sobre Física Assim o conhecimento que outros homens tenham e ele não tem não é parte da Física RUSSELL 1927 p 389 1978 p 379 Uma versão mais recente desta ideia é uma das questões mais discutidas na filosofia da mente contemporânea o experimento mental do quarto de Mary proposto pelo filósofo australiano Frank Jackson 198255 Imaginemos uma neurocientista chamada Mary que vive no século XXIII quando toda a ciência da visão em cores já teria sido desvendada Ela foi criada em um quarto preto branco e cinza e nunca viu ou vivenciou cores quando ela sai para 54 PALMER SE 1999 Color consciousness and the isomorphism constraint Behavioral and Brain Sciences 22 92343 seguido de discussão pp 94489 Versão abreviada Consciousness and isomorphism in Baars BJ Banks WP Newman JB orgs 2003 Essential sources in the scientific study of consciousness MIT Press Cambridge pp 185200 55 JACKSON F 1982 Epiphenomenal qualia Philosophical Quarterly 32 12736 JACKSON F 1986 What Mary didnt know Journal of Philosophy 83 29195 Há traduções disponibilizadas no curso A referência de RUSSELL 1978 1927 está na nota 51 Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 39 uma balada coloca óculos especiais para não detectar cores Além disso podemos supor que uma vez por semana durante seu sono profundo ao longo de toda sua vida uma manipulação especial é feita em seu encéfalo para que este não atrofie e Mary não perca a capacidade de vivenciar cores Por outro lado Mary tornouse uma renomada neurocientista tendo estudado teoricamente e experimentalmente todos os aspectos físicos químicos e biológicos da ciência da visão Segundo Jackson ela teria conhecimento físico completo a respeito das cores ou seja um conhecimento descritivo linguísticoquantitativo completo que deixa de fora apenas o contato acquaintance com as cores e a capacidade de manipular experimentalmente as percepções visuais de uma pessoa A questão é ela conhece tudo o que há para saber a respeito das cores Quando Mary finalmente sai do quarto e observa pela primeira vez uma mancha de tinta verde pintada em uma parede ela adquire conhecimento novo E a seguir quando alguém lhe diz que aquela mancha tem cor verde há algum elemento novo adicionado a seus conhecimentos sobre o verde A resposta usual é sim Isso indica que há uma diferença entre o conhecimento físico descrição linguísticoquantitativa e capacidade experimental de manipulação de um elemento e a vivência acquaintance do mesmo Essa diferença é o que é chamado de quália ou qualidades subjetivas O chamado argumento do conhecimento de Jackson desemboca assim na tese de que há conhecimento não fisico sobre o mundo Notamos que este experimento mental define conhecimento físico de uma determinada maneira Mas aceitando esta definição concluise que o conhecimento de quália é um conhecimento não físico Mas poderseia concluir também que os quália são entes não físicos como defende David Chalmers Para isso seria preciso adicionar mais uma hipótese ao argumento a hipótese de que se algo é conhecível e se for físico então ele é conhecível fisicamente56 Inferese então que há algo nãofísico que é conhecível que seriam os quália Portanto o fisicismo seria falso Aceitandose o argumento de Jackson o dilema resultante é ou admitir que o fisicismo é falso ou considerar que os quália são físicos escapando da hipótese de Chalmers Esta segunda alternativa resulta no fisicismo qualitativo ou tese do encéfalo colorido que veremos mais adiante Um ponto semelhante é salientado por Owen Flanagan que considera que o experimento mental do quarto de Mary refuta um fisicismo linguístico mas não um fisicismo metafísico ou ôntico Muita discussão sobre este argumento do conhecimento aconteceu nas últimas décadas com a proposta de diversas soluções como a envolvendo conceitos fenomênicos que seriam conhecimento novo adquirido por Mary fora de seu quarto Não iremos explorar essas diversas propostas para isso ver NIDARÜMELIN 201057 56 Definamos os seguintes predicados Fx x é físico Cx x é conhecível Px x é conhecível fisicamente Consideremos agora três enunciados 1 x Px Fx hipótese científica qualquer coisa que seja conhecível fisicamente é uma coisa física 2 x Cx Px argumento do conhecimento de Jackson 3 x Cx Fx Px hipótese de Chalmers De 2 e 3 inferese x Cx Fx donde x Fx 57 Esta posição pode ser associada a David Chalmers p 162 que considera que um quale seja uma propriedade p 359 CHALMERS DJ 1996 The conscious mind Oxford University Press New York NIDARÜMELIN Martine 2010 Qualia the knowledge argument Stanford Encyclopedia of Philosophy online Ĉ do Mentencéfalo 2024 Cap V Sensações qualitativas 40 8 O cerebroscópio O cerebroscópio ou melhor encefaloscópio é um equipamento fictício imaginado por Paul Meehl e Herbert Feigl ver FEIGL 1956 1967 p 63 que permitiria que uma pessoa tivesse acesso visual a qualquer processo físicoquímico no encéfalo de outra pessoa Por exemplo suponha que Mary esteja observando em um cerebroscópio que gera imagens em preto e branco o encéfalo de uma amiga Giuli que está observando um abacate inacessível para Mary Mary teria acesso ao correlato encefálico imediato da vivência visual da verdidão e com seu conhecimento poderia inferir que Giuli está observando um objeto verde mesmo não tendo ela mesma Mary acesso a qualquer quale cromático Quando Mary sai do quarto e vê pela primeira vez uma mancha colorida na parede ela não tem como saber qual o nome dessa cor DENNETT 1991 pp 399400 com seu truque da banana azul argumenta que ela teria como saber pois ao conhecer tudo sobre a estrutura e funcionamento do encéfalo ela saberia quais pensamentos secundários seriam gerados ao observar cada uma das cores58 Desconsiderando esta possibilidade aventada por Dennett se Mary estivesse de posse de um autocerebroscópio ou seja um cerebroscópio voltado para seu próprio encéfalo ela poderia facilmente inferir qual cor objetiva CORV ela estava vendo 9 Lacuna explicativa e princípios não explicados Essa discussão ilumina o lugar das qualidades subjetivas no mundo material apontando para uma lacuna explicativa na expressão de Joseph LEVINE entre a descrição linguístico quantitativa da ciência e as qualidades subjetivas Na terminologia de CHALMERS 1995 este seria um problema difícil relacionado à pesquisa sobre a consciência59 Colocado brevemente qualidades não são deriváveis de quantidades A neurociência do futuro terá que se contentar em estabelecer leis de ponte termo usado por CHALMERS 1995 entre estados encefálicos descritos quantitativamente e manipulados experimentalmente e estados mentais qualitativos sendo que parte dessas leis serão princípios nãoexplicados como ocorre em toda teoria física baseada em princípios como a Teoria da Relatividade Restrita onde os princípios não são explicados pela teoria mas aceitos por causa das consequências observacionais deduzidas a partir deles As qualidades subjetivas não poderão ser derivadas ou explicadas inteiramente de maneira matemática e quantitativa a natureza das qualidades envolve algo que está para além da representação ou modelização a própria realidade ou sua materialidade Voltaremos para essa importante questão mais para frente 58 DENNETT DC 1991 Consciousness explained Back Bay Books New York FEIGL 1956 1967 op cit nota 51 59 LEVINE J 1983 Materialism and the explanatory gap Pacific Philosophical Quarterly 64 35461 CHALMERS DJ 1995 O enigma da experiência consciente trad LMS Augusto versão disponibilizada em nosso curso original em Scientific American 2736 8086 O termo explanatory gap é também traduzido por hiato explicativo de todo modo no contexto da Filosofia da Ciência não se considera adequado o termo explanatório O conceito de lacuna explicativa não é novo aparecendo por exemplo em TYNDALL 1868 que citaremos adiante que escreve sobre o abismo chasm entre processos físicos e fatos da consciência