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ESTACIO
Texto de pré-visualização
Jorge Amado capitães da areia Companhia das Letras Publicado em 1937 pouco depois de implantado o Estado Novo este livro teve a primeira edição apreendida e exemplares queimados em praça pública de Salvador por autoridades da ditadura Em 1940 marcou época na vida literária brasileira com nova edição e a partir daí sucederamse as edições nacionais e em idiomas estrangeiros A obra teve também adaptações para o rádio teatro e cinema Documento sobre a vida dos meninos abandonados nas ruas de Salvador Jorge Amado a descreve em páginas carregadas de beleza dramaticidade e lirismo Matilde Jogávamos jogos de prenda Andávamos de carro de boi Morávamos em casa malassombrada Conversávamos com moças e mágicos Achavas a Bahia imensa e misteriosa A poesia deste livro vem de ti Para Aydano do Couto Ferras José Olympio José Américo de Almeida João Nascimento Filho e para Anísio Teixeira amigo das crianças CRIANÇAS LADRONAS AS AVENTURAS SINISTRAS DOS CAPITÃES DA AREIA A CIDADE INFESTADA POR CRIANÇAS QUE VIVEM DO FURTO URGE UMA PROVIDÊNCIA DO JUIZ DE MENORES E DO CHEFE DE POLÍCIA ONTEM HOUVE MAIS UM ASSALTO Já por várias vezes o nosso jornal que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos Capitães da Areia nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos que se tornam diários fazendo jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do doutor Chefe de Polícia Esse bando que vive da rapina se compõe pelo que se sabe de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades indo desde os 8 aos 16 anos Crianças que naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa São chamados de Capitães da Areia porque o cais é o seu quartelgeneral E têm por comandante um mascote dos seus 14 anos que é o mais terrível de todos não só ladrão como já autor de um crime de ferimentos graves praticado na tarde de ontem Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida O que se faz necessário é uma urgente providência da policia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões Passemos agora a relatar o assalto de ontem do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça que teve sua residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado ferido pelo desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos NA RESIDÊNCIA DO COMENDADOR JOSE FERREIRA No Corredor da Vitória coração do mais chique bairro da cidade se eleva a bela vivenda do Comendador José Ferreira dos mais abastados e acreditados negociantes desta praça com loja de fazendas na rua Portugal É um gosto ver o palacete do comendador cercado de jardins na sua arquitetura colonial Pois ontem esse remanso de paz e trabalho honesto passou uma hora de indescritível agitação e susto com a invasão que sofreu por parte dos Capitães da Areia Os relógios badalavam as três horas da tarde e a cidade abafava de calor quando o jardineiro notou que algumas crianças vestidas de molambos rondavam o jardim da residência do comendador O jardineiro tratou de afastar da frente da casa aqueles incômodos visitantes E como eles continuassem o seu caminho descendo a rua Ramiro o jardineiro volveu ao seu trabalho nos jardins do fiando do palacete Minutos depois porém era o ASSALTO Não tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro ouviu gritos assustados vindos do interior da residência Eram gritos de pessoas terrivelmente assustadas Armandose de uma foice o jardineiro penetrou na casa e mal teve tempo de ver vários moleques que como um bando de demônios na expressão curiosa de Ramiro fugiam saltando as janelas carregados com objetos de valor da sala de jantar A empregada que havia gritado estava cuidando da senhora do comendador que tivera um ligeiro desmaio em virtude do susto que passara O Jardineiro dirigiuse às pressas para o jardim onde teve lugar a LUTA Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira de 11 anos neto do comendador que se achava de visita aos avós conversava com o chefe dos Capitães da Areia que é reconhecível devido a um talho que tem no rosto Na sua inocência Raul ria para o malvado que sem dúvida pensava em furtálo O jardineiro se atirou então em cima do ladrão Não esperava porém pela reação do moleque que se revelou um mestre nestas brigas E o resultado é que qando pensava ter seguro o chefe da malta o jardineiro recebeu uma punhalada no ombro e logo em seguida outra no braço sendo obrigado a largar o criminoso que fugiu A polícia tomou conhecimento do fato mas até o momento que escrevemos a presente nota nenhum rastro dos Capitães da Areia foi encontrado O Comendador José Ferreira ouvido pela nossa reportagem avalia o seu prejuízo em mais de um conto de réis pois só o pequeno relógio de sua esposa estava avaliado em 900 e foi furtado URGE UMA PROVIDÊNCIA Os moradores do aristocrático bairro estão alarmados e receosos de que os assaltos se sucedam pois este não é o primeiro levado a efeito pelos Capitães da Areia Urge uma providência que traga para semelhantes malandros um justo castigo e o sossego para as nossas mais distintas famílias Esperamos que o ilustre chefe de polícia e o não menos ilustre doutor Juiz de Menores saberão tomar as devidas providências contra esses criminosos tão Jovens e já tão ousados A OPINIÃO DA INOCÊNCIA A nossa reportagem ouviu também o pequeno Raul que como dissemos tem onze anos e já é dos ginasianos mais aplicados do Colégio Antônio Vieira Raul mostrava uma grande coragem e nos disse acerca da sua conversa com o terrível chefe dos Capitães da Areia Ele disse que eu era um tolo e não sabia o que era brincar Eu respondi que tinha uma bicicleta e muito brinquedo Ele riu e disse que tinha a rua e o cais Fiquei gostando dele parece um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras Ficamos então a pensar neste outro delicado problema para a infância que é o cinema que tanta idéia errada infunde às crianças acerca da vida Outro problema que está merecendo a atenção do doutor Juiz de Maiores A ele volveremos Reportagem publicada no Jornal da Tarde na página de Fatos Policiais com um clichê da casa do comendador e um deste no momento em que era condecorado CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr diretor do Jornal da Tarde Cordiais saudações Tendo chegado ao conhecimento do doutor chefe de polícia a reportagem publicada ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos Capitães da Areia bando de crianças delinqüentes e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na residência do comendador José Ferreira o doutor chefe de polícia se apressa a comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete antes ao juiz de maiores que à policia A polícia neste caso deve agir em obediência a um pedido do doutor Juiz de Menores Mas que no entanto vai tomar sérias providências para que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores do de anteontem sejam presos para sofrerem o castigo merecido Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica pela sua atitude em face desse problema Não tem agido com maior eficiência porque não foi solicitada pelo juiz de menores Cordiais saudações Secretário do Chefe de Policia Publicada em primeira página do Jornal da Tarde com clichê do chefe de polícia e um vasto comentário elogioso CARTA DO DOUTOR JUIZ DE MENORES À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Exmo Sr diretor do Jornal da Tarde Cidade do Salvador Neste Estado Meu caro patrício Cordiais saudações Folheando num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas preocupações do meu espinhoso cargo o vosso brilhante vespertino tomei conhecimento de uma epístola do infatigável doutor chefe de polícia do Estado na qual dizia dos motivos por que a polícia não pudera até a data presente intensificar a meritória campanha contra os menores delinqüentes que infestam a nossa urbe Justificase o doutor chefe de polícia declarando que não possuía ordens do juizado de menores no sentido de agir contra a delinqüência infantil Sem querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável chefia de polícia sou obrigado a bem da verdade essa mesma verdade que tenho colocado como o farol que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima a declarar que a desculpa não procede Não procede senhor diretor porque ao juizado de menores não compete perseguir e prender os menores delinqüentes e sim designar o local onde devem cumprir pena nomear curador para acompanhar qualquer processo contra eles instaurado etc Não cabe ao juizado de menores capturar os pequenos delinqüentes Cabe velar pelo seu destino posterior E o senhor doutor chefe de polícia sempre há de me encontrar onde o dever me chama porque jamais em 50 anos de vida impoluta deixei de cumprilo Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores vários menores delinqüentes ou abandonados Não tenho culpa porém de que fujam que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação e que por meio da fuga abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho Fogem e se tornam ainda mais perversos como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho Por quê Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim simples curioso da filosofia O que quero deixar claro e cristalino senhor diretor é que o doutor chefe de polícia pode contar com a melhor ajuda deste juizado de menores para intensificar a campanha contra os menores delinqüentes De VExa admirador e patrício grato Juiz de Menores Publicada no Jornal da Tarde com o clichê do juiz de menores em uma coluna e um pequeno comentário elogioso CARTA DE UMA MÃE COSTUREIRA À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr Redator Desculpe os erros e a letra pois não sou costumeira nestas coisas de escrever e se hoje venho a vossa presença é para botar os pontos nos ii Vi no jornal uma notícia sobre os furtos dos Capitães da Areia e logo depois veio a polícia e disse que ia perseguir eles e então o doutor dos menores veio com uma conversa dizendo que era uma pena que eles não se emendavam no reformatório para onde ele mandava os pobres É pra falar no tal do reformatório que eu escrevo estas mal traçadas linhas Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatório para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma Meu filho Alonso teve lá seis meses e se eu não arranjasse tirar ele daquele inferno em vida não sei se o desgraçado viveria mais seis meses O menos que acontece pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia O diretor de lá vive caindo de bêbedo e gosta de ver o chicote cantar nas costas dos filhos dos pobres Eu vi isso muitas vezes porque eles não ligam pra gente e diziam que era para dar exemplo Foi por isso que tirei meu filho de lá Se o jornal do senhor mandar uma pessoa lá secreta há de ver que comida eles comem o trabalho de escravo que têm que nem um homem forte agüenta e as surras que tomam Mas é preciso que vá secreto senão se eles souberem vira um céu abertoVá de repente e há de ver quem tem razão E por essas e outras que existem os Capitães da Areia Eu prefiro ver meu filho no meio deles que no tal reformatório Se o senhor quiser ver uma coisa de cortar o coração vá láTambém se quiser pode conversar com o Padre José Pedro que foi capelão de lá e viu tudo isso Ele também pode contar e com melhores palavras que eu não tenho Maria Ricardina costureira Publicada na quinta pagina do jornal da Tarde entre anúncios sem clichês e sem comentários CARTA DO PADRE JOSE PEDRO À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr Redator do Jornal da Tarde Saudações em Cristo Tendo lido no vosso conceituado jornal a carta de Maria Ricardina que apelava para mim como pessoa que podia esclarecer o que é a vida das crianças recolhidas ao reformatório de menores sou obrigado a sair da obscuridade em que vivo para vir vos dizer que infelizmente Maria Ricardina tem razão As crianças no aludido reformatório são tratadas como feras essa é a verdade Esqueceram a lição do suave Mestre senhor Redator e em vez de conquistarem as crianças com bons tratos fazemnas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos e castigos físicos verdadeiramente desumanos Eu tenho ido lá levar às crianças o consolo da religião e as encontro pouco dispostas a aceitálo devido naturalmente ao ódio que estão acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade O que tenho visto senhor Redator daria um volume Muito grato pela atenção Servo em Cristo Padre José Pedro Carta publicada na terceira página do Jornal da Tarde sob o título Será Verdade e sem comentários CARTA DO DIRETOR DO REFORMATÓRIO À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Exmo Sr diretor do Jornal da Tarde Saudações Tenho acompanhado com grande interesse a campanha que o brilhante órgão da imprensa baiana que com tão rútila inteligência dirigis tem feito contra os crimes apavorantes dos Capitães da areia bando de delinqüentes que amedronta a cidade e impede que ela viva sossegadamente Foi assim que li duas cartas de acusações contra o estabelecimento que dirijo e que a modéstia e somente a modéstia senhor diretor me impede que chame de modelar Quanto à carta de uma mulherzinha do povo não me preocupei com ela não merecia a minha resposta Sem dúvida é uma das multas que aqui vêm e querem impedir que o Reformatório cumpra a sua santa missão de educar os seus filhos Elas os criam na rua na pândega e como eles aqui são submetidos a uma vida exemplar elas são as primeiras a reclamar quando deviam beijar as mãos daqueles que estão fazendo dos seus filhos homens de bem Primeiro vêm pedir lugar para os filhos Depois sentem falta deles do produto dos furtos que eles levam para casa e então saem a reclamar contra o Reformatório Mas como já disse senhor diretor esta carta não me preocupou Não é uma mulherzinha do povo quem há de compreender a obra que estou realizando à frente deste estabelecimento O que me abismou senhor diretor foi a carta do Padre José Pedro Este sacerdote esquecendo as funções do seu cargo veio lançar contra o estabelecimento que dirijo graves acusações Esse padre que eu chamarei padre do demônio se me permitis uma pequena ironia senhor diretor abusou das suas funções para penetrar no nosso estabelecimento de educação em horas proibidas pelo regulamento e contra ele eu tenho de formular uma séria queixa ele tem incentivado os menores que o Estado colocou a meu cargo à revolta à desobediência Desde que ele penetrou os umbrais desta casa que os casos de rebeldia e contravenções aos regulamentos aumentaram O tal padre é apenas um instigador do mau caráter geral dos menores sob a minha guarda E por isso vou fecharlhe as portas desta casa de educação Porém senhor diretor fazendo minhas as palavras da costureira que escreveu a este jornal sou eu quem vem vos pedir que envieis um redator ao Reformatório Disso faço questão Assim podereis e o público também ter ciência exata e fé verdadeira sobre a maneira como são tratados os menores que se regeneram no Reformatório Baiano de Menores Delinqüentes e Abandonados Espero o vosso redator na segundafeira E se não digo que ele venha no dia que quiser é que estas visitas devem ser feitas nos dias permitidos pelo regulamento e é meu costume nunca me afastar do regulamento Este é o motivo único por que convido o vosso redator para segundafeira Pelo que vos fico imensamente grato como pela publicação desta Assim ficará confundido o falso vigário de Cristo Criado agradecido e admirador atento Diretor do Reformatório Baiano de Menores Delinqüentes e Abandonados Publicada na 3º página do Jornal da Tarde com um clichê do reformatório e uma notícia adiantando que na próxima segunda feira irá um redator do Jornal da Tarde ao reformatório UM ESTABELECIMENTO MODELAR ONDE REINAM A PAZ E O TRATADO UM DIRETOR QUE É UM AMIGO ÓTIMA COMIDA CRIANÇAS LADRONAS EM CAMINHO DA REGENERAÇÃO ACUSAÇÕES IMPROCEDENTES SÓ UM INCORRIGÍVEL RECLAMA O REFORMATÓRIO BAIANO É UMA GRANDE FAMÍLIA ONDE DEVIAM ESTAR OS CAPITÃES DA AREIA Títulos da reportagem publicada na segunda edição de terçafeira do jornal da Tarde ocupando toda a primeira página sobre o Reformatório Baiano com diversos clichês do prédio e um do diretor Sob a lua num velho trapiche abandonado O trapiche Sob a lua num velho trapiche abandonado as crianças dormem Antigamente aqui era o mar Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas ora vinham se bater mansamente A água passava por baixo da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora iluminadas por uma réstia amarela de lua Desta ponte saíram inúmeros veleiros carregados alguns eram enormes e pintados de estranhas cores para a aventura das travessias marítimas Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta ponte de tábuas hoje comidas Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do maroceano as noites diante dele eram de um verde escuro quase negras daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite Hoje a noite é alva em frente ao trapiche É que na sua frente se estende agora o areal do cais do porto Por baixo da ponte não há mais rumor de ondas A areia invadiu tudo fez o mar recuar de muitos metros Aos poucos lentamente a areia foi conquistando a frente do trapiche Não mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados Não mais trabalharam ali os negros musculosos que vieram da escravatura Não mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro nostálgicoA areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche É nunca mais encheram de fardos de sacos de caixões o imenso casarão Ficou abandonado em meio ao areal mancha negra na brancura do cais Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos que ai atravessavam em corridas brincalhonas que rolam a madeira das portas monumentais que o habitavam como senhores exclusivos Em certa época um cachorro vagabundo o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva Na primeira noite não dormiu ocupado em despedaçar ratos que passavam na sua frente Dormiu depois de algumas noites ladrando à lua pela madrugada pois grande parte do teto já ruíra e os raios da lua penetravam livremente iluminando o assoalho de tábuas grossas Mas aquele era um cachorro sem pouso certo e cedo partiu em busca de outra pousada o escuro de uma porta o vão de urna ponte o corpo quente de uma cadela E os ratos voltaram a dominas até que os Capitães da Areia lançaram as suas vistas para o casarão abandonado Neste tempo a porta caíra para um lado e um do grupo certo dia em que passeava na extensão dos seus domínios porque toda a zona do areal do cais como aliás toda a cidade da Bahia pertence aos Capitães da Areia entrou no trapiche Seria bem melhor dormida que a pura areia que as pontes dos demais trapiches onde por vezes a água subia tanto que ameaçava leválos E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho trapiche abandonado em companhia dos ratos sob a lua amarela Na frente a vastidão da areia uma brancura sem fimAo longe o mar que arrebentava no cais Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e saiam Pelo teto viam o céu de estrelas alua que os iluminava Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho do dia lhes proporcionava Estranhas coisas entraram então para o trapiche Não mais estranhas porém que aquela meninos moleques de todas as cores e de idades as mais variadas desde os 9 aos 16 anos que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava mas com os olhos puxados para as luzes dos navios com os ouvidos presos às canções que vinham das embarcações É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia Pedro Bala Desde cedo foi chamado assim desde seus cinco anos Hoje tem 15 anos Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia Nunca soube de sua mãe seu pai morrera de um balaço Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a cidade Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus becos Não há venda quitanda botequim que ele não conheça Quando se incorporou aos Capitães da Areia o cais recém construído atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade o chefe era Raimundo o Caboclo mulato avermelhado e forte Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo Pedro Bala era muito mais ativo sabia planejar os trabalhos sabia tratar com os outros trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe Um dia brigaram A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro um talho que ficou para o resto da vida Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a ele e ficaram esperando a revanche que não tardou Uma noite quando Raimundo quis surrar Barandão Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram Raimundo era mais alto e mais velho Porém Pedro Bala o cabelo loiro voando a cicatriz vermelha no rosto era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia como o próprio areal Engajou tempos depois num navio Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia e foi desta época que a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia crianças abandonadas que viviam do furto Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche Vestidos de farrapos sujos semiesfomeados agressivos soltando palavrões e fumando pontas de cigarro eram em verdade os donos da cidade os que a conheciam totalmente os que totalmente a amavam os seus poetas Noite dos Capitães da Areia A grande noite de Paz da Bahia veio do Cais envolveu os saveiros o forte o quebramar se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas Os sinos já não tocam as avemarias que as seis horas há muito que passaram E o céu está cheio de estrelas se bem a lua não tenha surgido nesta noite clara O trapiche se destaca na brancura do areal que conserva as marcas dos passos dos Capitães da Areia que já se recolheram Ao longe a fraca luz da lanterna da Porta do Mar botequim de marítimos parece agonizar Passa um vento frio que levanta a areia e torna difíceis os passos do negro João Grande que se recolhe Vai curvado pelo vento como a vela de um barco E alto o mais alto do bando e o mais forte também negro de carapinha baixa e músculos retesados embora tenha apenas treze anos dos quais quatro passados na mais absoluta liberdade correndo as ruas da Bahia com os Capitães da Areia Desde aquela tarde em que seu pai carroceiro gigantesco foi pegado por um caminhão quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua João Grande não voltou pequena casa do morro Na sua frente estava a cidade misteriosa e ele partiu para conquistála A cidade da Bahia negra e religiosa é quase tão misteriosa como o verde mar Por isso João Grande não voltou mais Engajou com 9 anos nos Capitães da Areia quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo pouco conhecido pois o Caboclo não gostava de se arriscar Cedo João Grande se fez um dos chefes e nunca deixou de ser convidado para as reuniões que os maiorais faziam planejar os furtos Não que fosse um bom organizador de assalta uma inteligência viva Ao contrário doía lhe a cabeça se tinha que pensar Ficava com os olhos ardendo como ficava também quando via alguém fazendo maldade com os menores Então seus músculos se retesavam e estava disposto a qualquer briga Mas a sua enorme força muscular o fizera temido O SemPernas dizia dele Este negro é burro mas é uma prensa E os menores aqueles pequeninos que chegavam para o grupo cheios de receio tinham nele o mais decidido protetor Pedro o chefe também gostava de ouvilo E João Grande bem sabia que não era por causa da sua força que tinha a amizade do Bala Pedro achava que o negro era bom e não se cansava de dizer Tu é bom Grande Tu é melhor que a gente Gosto de você e batia pancadinhas na perna do negro que ficava encabulado João Grande vem vindo para o trapiche O vento quer impedir passos e ele se curva todo resistindo contra o vento que levanta a areia Ele foi à Porta do Mar beber um trago de cachaça com o QueridodeDeus que chegou hoje dos mares do Sul de uma pescaria O QueridodeDeus é o mais célebre capoeirista da cidade Quem não o respeita na Bahia No jogo de capoeira de Angola ninguém pode se medir com o QueridodeDeus nem mesmo Zé Moleque que deixou fama no Rio de Janeiro O QueridodeDeus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no trapiche para continuar as lições de capoeira que Pedro Bala João Grande e o Gato tomam João Grande fuma um cigarro e anda para o trapiche As marcas dos seus grandes pés ficam na areia mas o vento logo as destrói O negro pensa que nessa noite de tanto vento são perigosos os caminhos do mar João Grande passa por debaixo da ponte os pés afundam na areia evitando tocar no corpo dos companheiros que já dormem Penetra no trapiche Espia um momento indeciso até que nota a luz da vela do Professor Lá está ele no mais longínquo canto do casarão lendo à luz de uma vela João Grande pensa que aquela luz ainda é menor e mais vacilante que a da lanterna da Porta do Mar e que o Professor está comendo os olhos de tanto ler aqueles livros de letra miúda João Grande anda para onde está o Professor se bem durma sempre na porta do trapiche como um cão de fila o punhal próximo da mão para evitar alguma surpresa Anda entre os grupos que conversam entre as crianças que dormem e chega para perto do Professor Acocorase junto a ele e fica espiando a leitura atenta do outro João José o Professor desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra se tomara perito nestes furtos Nunca porém vendia os livros que ia empilhando num canto do trapiche sob tijolos para que os ratos não os roessem Liaos todos numa ânsia que era quase febre Gostava de saber coisas e era ele quem muitas noites contava aos outras histórias de aventureiros de borne do mar de personagens heróicos e lendários histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade numa ânsia de aventuras e de heroísmo João José era o único que lia correntemente entre eles e no entanto só estive na escola ano e meio Mas o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa consciência do heróico das suas vidas Aquele saber aquela vocação para contar histórias fizerao respeitado entre os Capitães Areia se bem fosse franzino magro e triste o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope Apelidaramno de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços níqueis e também porque contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia Pedro Bala nada resolvia sem o consultar e várias vezes foi a imaginação Professor que criou os melhores planos de roubo Ninguém sabia entanto que um dia anos passados seria ele quem haveria de contar em quadros que assombrariam o país a história daquelas vidas e muitas outras histórias de homens lutadores e sofredores Talvez só o sou se DonAninha a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá porque DonAninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio noites de temporal João Grande ficou muito tempo atento à leitura Para o negro aquelas letras nada diziam O seu olhar ia do livro para a luz oscilante da vela e desta para o cabelo despenteado do Professor Terminou por se cansar e perguntou com sua voz cheia e quente Bonita Professor Professor desviou os olhos do livro bateu a mão descarnada no ombro do negro seu mais ardente admirador Uma história porreta seu Grande Seus olhos brilhavam De marinheiro É de um negro assim como tu Um negro macho de verdade Tu conta Quando findar de ler eu conto Tu vai ver só que negro E volveu os olhos para as páginas do livro João Grande acendeu um cigarro barato ofereceu outro em silêncio ao Professor e ficou fumando de cócoras como que guardando a leitura do outro Pelo trapiche ia um rumor de risadas de conversas de gritos João Grande distinguia bem a voz do SemPernas estrídula e fanhosaO SemPernas falava alto ria muito Era o espião do grupo aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade Coxo o defeito físico valera lhe o apelido Mas valialhe também a simpatia de quanta mãe de família o via humilde e tristonho na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite Agora meio do trapiche O SemPernas metia a ridículo o Gato que perde todo um dia para furtar um anelão cor de vinho sem nenhum valo real pedra falsa de falsa beleza também Fazia já uma semana que o Gato avisara a meio mundo Vi um anelão seu mano que nem de bispo Um anelão bom pro meu dedo Batuta mesmo Tu vai ver quando eu trouxer Em que vitrine No dedo de um pato Um gordo que todo dia toma o bonde de Brotas na Baixa do Sapateiro E o Gato não descansou enquanto não conseguiu no aperto um bonde das seis horas da tarde tirar o anel do dedo do homem escapulindo na confusão porque o dono logo percebeu Exibia o anel no dedo médio com vaidade O SemPernas ria Arriscar cadeia por uma porcaria Um troço feio Que tem tu com isso Eu acho bom tá acabado Tu é burro mesmo Isso no prego não dá nada Mas dá simpatia no meu dedo Tou arranjando uma comida Falavam naturalmente em mulher apesar do mais velho ter apenas 16 anos Cedo conheciam os mistérios do sexo Pedro Bala que ia entrando desapartou o começo de briga João Grande deixou o Professor lendo e veio para junto do chefe O SemPernas ria sozinho resmungando acerca do anel Pedro o chamou e foi com ele e com João Grande para o canto onde estava Professor Vem cá Professor Ficaram os quatro sentados O SemPernas acendeu uma ponta de charuto caro ficou saboreando João Grande espiava o pedaço de mar que se via através da porta além do areal Pedro falou Gonzales do 14 falou hoje comigo Quer mais corrente de ouro Da outra vez atalhou O SemPernas Não Tá querendo chapéu Mas só topa de feltro Palhinha não vale diz que não tem saída E também Que é que tem mais novamente interrompeu O SemPernas Tem que muito usado não presta Tá querendo muita coisa Se ainda pagasse que valesse a pena Tu sabe SemPernas que ele é um bicho caiado Pode não pagar bem mas é uma cova Dali não sai nada nem a gancho Também paga uma miséria E é interesse dele não dizer nada Se ele abrir a boca no mundo não há costas largas que livre ele do xilindró Tá bom SemPernas você não quer topar o negócio vá embora mas deixe a gente combinar as coisas direito Não tou dizendo que não topo Tou só falando que trabalhar pra um gringo ladrão não é negócio Mas se tu quer Ele diz que desta vez vai pagar melhor Uma coisa que pague a pena Mas só chapéu de feltro bom e novo Tu SemPernas podia ir com uns fazer esse negócioAmanhã de noite Gonzales manda um empregado do 14 aqui pra trazer os miúdos e levar as carapuças Bom lugar e nos cinemas disse o Professor voltandose para O SemPernas Bom é na Vitória e o SemPernas fez um gesto de desprezo É só entrar nos corredores e aquilo é chapéu garantido Tudo gente de nota Também tem guarda em penca Tu liga pra guarda Se ainda fosse tira Guarda é pra correr picula Tu vai comigo Professor Vou Mesmo que tou precisando de um chapéu Pedro Bala falou Arranja os que quiser SemPernas Este negócio fica por tua conta Menos o Grande e o Gato que eu tenho um negócio com eles pra amanhã virouse para João Grande Um negócio do QueridodeDeus Ele já teve me avisando E dizque de noite vem pra capoeira Pedro voltouse para o SemPernas que já se retirava para ir combinar com Pirulito a formação do grupo que ia em cata de chapéus no dia seguinte Olha SemPernas tu trata de avisar que se algum for bispado trate de dar o suíte para outro lado Não venha pra cá Pediu um cigarro João Grande deu O SemPernas já afastado chamava Pirulito Pedro foi em busca do Gato tinha um assunto a conversar com ele Depois voltou se estendeu perto do lugar onde estava Professor Este retornou ao seu livro sobre o qual se debruçou até que a vela queimouse toda e a escuridão do trapiche o envolveu João Grande caminhou vagarosamente para a porta onde se deitou ao comprido o punhal no cinto Pirulito era magro e muito alto uma cara seca meio amarelada os olhos encovados e fundos a boca rasgada e pouco risonha O SemPernas primeiro fez pilhéria perguntando se ele já estava rezado depois entrou no assunto da pilhagem de chapéus acertaram que a levariam um certo número de meninos que escolheram cuidadosamente marcaram as zonas onde operariam e se separaram Pirulito então foi para o seu canto costumeiro Dormia invariavelmente ali onde as paredes do trapiche faziam um ângulo Tinha disposto carinhosamente as suas coisas um cobertor velho um travesseiro que trouxera certa vez de um hotel onde penetrara levando as malas de um viajante um par de calças que vestia aos domingos junto com uma blusa de cor indefinida porém mais ou menos limpa E pregados na parede com pregos pequenos dois quadros de santos um Santo Antônio carregando um Menino Deus Pirulito se chamava Antônio e tinha ouvido dizer que Santo Antônio era brasileiro e uma Nossa Senhora das Sete Dores que tinha o peito cravado de setas sob o seu quadro uma flor murcha Pirulito recolheu a flor aspiroua viu que não tinha mais perfume Então a amarrou junto ao bentinho que trazia no peito e do bolso do velho paletó que vestia retirou um cravo vermelho que colhera num jardim mesmo sob as vistas do guarda naquela hora indecisa do crepúsculo E colocou o cravo por baixo do quadro enquanto fitava a santa com um olhar comovido Logo ajoelhouse Os outros a princípio faziam muita pilhéria quando o viam de joelhos rezando Porém já haviam se acostumado e ninguém mais reparava Começou a rezar e seu ar de asceta se pronunciou ainda mais seu rosto de criança ficou mais pálido e mais grave suas mãos longas e magras se levantaram ante o quadro Todo seu rosto tinha uma espécie de auréola e a sua voz tonalidades e vibrações que os companheiros não conheciam Era como se estivesse fora do mundo não no velho e arruinado trapiche mas numa outra terra junto com Nossa Senhora das Sete Dores No entanto sua reza era simples e não fora sequer aprendida em catecismos Pedia que a Senhora o ajudasse a um dia poder entrar para aquele colégio que estava no Sodré e de onde saíam os homens transformados em sacerdotes O SemPernas que vinha combinar um detalhe da questão dos chapéus e que desde que o vira rezando trazia uma pilhéria preparada uma pilhéria que só como pensar nela ele ria e que iria desconcertar completamente Pirulito quando chegou perto e viu Pirulito rezando de mãos levantadas olhos fixos ninguém sabia onde o rosto aberto em êxtase estava como que vestido de felicidade parou o riso burlão murchou nos seus lábios e ficou a espiálo meio a medo possuído de um sentimento que era um pouco de inveja e um pouco de desespero O SemPernas ficou parado olhando Pirulito não se mona Apenas seus lábios tinham um lento movimento O SemPernas costumava burlar dele como de todos os demais do grupo mesmo de Professor de quem gostava mesmo de Pedro Bala a quem respeitava Logo que um novato entrava para os Capitães da Areia formava uma idéia ruim de SemPernas Porque ele logo botava um apelido ria de um gesto de uma frase do novato Ridicularizava tudo era dos que mais brigavam Tinha mesmo fama de malvadoUma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche E um dia cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas um frango assado Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou friamente a canivete e na vista de todos o espremeu rindo Muitos do grupo não gostavam dele mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus amigos diziam que ele era um sujeito bom No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos E rindo e ridicularizando era que fugia da sua desgraça Era como um remédio Ficou parado olhando Pirulito que rezava concentrado No rosto do que rezava ia uma exaltação qualquer coisa que ao primeiro momento o SemPernas pensou que fosse alegria ou felicidade Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que ele não sabia definirE pensou contraindo o seu rosto pequeno que talvez por isso ele nunca tivesse pensado em rezar em se voltar para o céu de que tanto falava o padre José Pedro quando vinha vêlos O que ele queria era felicidade era alegria era fugir de toda aquela miséria de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava Havia é verdade a grande liberdade das ruas Mas havia também o abandono de qualquer carinho a falta de todas as palavras boas Pirulito buscava isso no céu nos quadros de santo nas flores murchas que trazia para Nossa Senhora das Sete Dores como um namorado romântico dos bairros chiques da cidade traz para aquela a quem ama com intenção de casamento Mas o SemPernas não compreendia que aquilo pudesse bastar Ele queria uma coisa imediata uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo Que o livrasse também daquela angústia daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de invernoNão queria o que tinha Pirulito o rosto cheio de uma exaltação Queria alegria uma mão que o acarinhasse alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos talvez tivessem sido apenas meses ou semanas mas para ele seriam sempre longos anos que vivera sozinho nas ruas da cidade hostilizado pelos homens que passavam empurrado pelos guardas surrado pelos moleques maiores Nunca tivera família Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria Sofreu fome um dia levaramno preso Ele quer um carinho ua mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta Em cada canto estava um com uma borracha comprida As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes A perna coxa se recusava a ajudálo E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar A princípio chorou muito depois não sabe como as lágrimas secaram Certa hora não resistiu mais abateuse no chão Sangrava Ainda hoje ouve como os soldados riam e como nu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto Depois encontrou os Capitães da Areia foi o Professor quem o trouxe haviam feito camaradagem num banco de jardim e ficou com eles Não tardou a se destacar porque sabia como nenhum afetar uma grande dor e assim conseguir enganar senhoras cujas casas eram depois visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos de valor e de todos os hábitos da casa E o Sem Pernas tinha verdadeira satisfação ao pensar em quanto o xingariam aquelas senhoras que o haviam tomado por um pobre órfão Assim se vingava porque seu coração estava cheio de ódio Confusamente desejava ter uma bomba como daquelas de certa história que o Professor contara que arrasasse toda a cidade que levasse todos pelos ares Assim ficaria alegre Talvez ficasse também se viesse alguém possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves que o apertasse contra o peito que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom um sono que não estivesse cheio dos sonhos da noite na cadeia Assim ficaria alegre o ódio não estaria mais no seu coração E não teria mais desprezo inveja ódio de Pirulito que de mãos levantadas e olhos fixos foge do seu mundo de sofrimentos para um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro Um rumor de conversas se aproxima Vem um grupo de quatro entrando no silêncio que já reina na noite do trapiche O SemPernas se estremece ri nas costas de Pirulito que continua a rezar Encolhe os ombros decide deixar para a manhã do dia seguinte o acerto dos detalhes do furto dos chapéus E como tem medo de dormir vai ao encontro do grupo que chega pede um cigarro diz dichotes sobre a aventura de mulheres que os quatro contam Uns franguinhos como vocês quem é que vai acreditar que seja capaz de derrubar uma mulher Isso devia ser algum xibungo vestido de menina Os outros se irritam Tu também se faz de besta Se quer é só vim com a gente amanhã Assim tu pode conhecer a zinha que é um peixão O SemPernas ri sardônico Não gosto de xibungo E sai andando pelo trapiche O Gato ainda não está dormindo Sempre sai depois das onze horas É o elegante do grupo Quando chegou alvo e rosado BoaVida tentou conquistálo Mas já naquele tempo o Gato era de uma agilidade incrível e não vinha como BoaVida pensava da casa de uma família Vinha do meio dos Índios Maloqueiros crianças que m vivem sob as pontes de Aracaju Fizera a viagem na rabada de um trem Conhecia bem a vida de um grupo de crianças abandonadas E já tinha da mais de 13 anos Assim conheceu logo os motivos por que BoaVida mulato troncudo e feio o tratou com tanta consideração lhe ofereceu cigarros e lhe deu parte do seu jantar e correu com ele acidade Depois bateram juntos um par de sapatos novos que estava exposto na porta de uma casa na Baixa dos Sapateiros Boa Vida tinha dito Deixa estar que eu sei onde se pode vender O Gato espiou seus sapatos puídos Eu tava querendo eles pra mim Já tou precisando Tu com um sapato ainda tão bom se admirou BoaVida que raras vezes levava sapatos e que naquele momento estava descalço Eu pago a tua parte Quanto tu pensa BoaVida olhou para ele O Gato levava gravata um paletó remendado e coisa espantosa levava meias Tu é da elegância hein sorriu Não nasci para essa vida Nasci para o grande mundo disse o Gato repetindo uma frase que ouvira certa vez de um caixeiroviajante num cabaré de Aracaju BoaVida achavao decididamente lindo O Gato tinha um ar petulante e embora não fosse uma beleza efeminada agradava a BoaVida que além de tudo não tinha muita sorte com mulheres pois aparentava muito menos que 13 anos baixo e acachapado O Gato era alto e sobre os seus lábios de 14 anos começava a surgir uma penugem de bigode que ele cultivava BoaVida naquele momento o amou com certeza porque disse Tu pode ficar com eles Eu te dou minha parte Tá certo Fico te devendo BoaVida quis aproveitar os agradecimentos do outro para iniciar sua conquista E baixou a mão pelas coxas do Gato que se esquivou só com o jogo do corpo O Gato riu consigo mesmo e não disse nada BoaVida achou que não devia insistir senão era capaz de espantar o menino Ele não sabia nada do Gato e nem imaginava que este conhecia seu jogo Andaram juntos parte da noite vendo a iluminação da cidade o Gato estava assombrado e por volta das onze foram para o trapiche BoaVida mostrou o Gato a Pedro e levouo depois para o lugar onde dormia Tenho aqui um lençol Dá pra nós dois O Gato deitou BoaVida se estendeu ao lado Quando pensou que o outro estava dormindo o abraçou com uma mão e com a outra começou a puxarlhe as calças devagarinho Num minuto o Gato estava de pé Tu te enganou mulato Eu sou é homem Mas BoaVida já não via nada só via seu desejo a vontade que tinha do corpo alvo do Gato de enrolar o rosto nos cabelos morenos do Gato de apalpar as carnes duras das coxas do Gato E se atirou em cima dele com intenção de derrubálo e forçálo Mas o Gato desviou o corpo passoulhe a perna BoaVida se estendeu de nariz Já tinha se formado um grupo em torno O Gato disse Ele pensava que eu era maricas Tu te faz de besta Arrancou com o lençol de BoaVida para outro canto e dormiu e dormiu Levaram algum tempo inimigos mas depois voltaram às boas e agora quando o Gato se cansa de uma pequena entrega ao BoaVidaUma noite o Gato andava pelas ruas das mulheres o cabelo muito lustroso de brilhantina barata uma gravata enrolada no pescoço assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade As mulheres o olhavam e riam Olha aquele frangote O que quererá por aqui O Gato respondia aos sorrisos e seguia Esperava que uma o chamasse e fizesse o amor com ele Mas não queria por dinheiro não só porque os níqueis que possuía não passavam de mil e quinhentos ou como porque os Capitães da Areia não gostavam de pagar mulher Tinham as negrinhas de dezesseis anos para derrubar no areal As mulheres olhavam para a sua figura de garoto Sem dúvida achavamno belo na sua meninice viciada e gostariam de fazer o amor com ele Mas não o chamavam porque aquela era a hora em que agi esperavam os homens que pagavam e elas tinham que pensar na casa e no almoço do dia seguinte Se contentavam assim com rir e fazer pilhérias Sabiam que dali sairia um daqueles vigaristas que enchem a vida de uma mulher que lhe tomam dinheiro dão pancadas mas também dão muito amor Muitas delas gostariam de ser a primeira mulher deste malandro tão jovem Mas eram dez horas hora dos homens que pagavam E o Gato andava de um lado para ou inutilmente Foi quando viu Dalva que vinha pela rua embuçada num capote de peles apesar da noite deverão Ela passou por ele quase da o ver Era uma mulher de uns trinta e cinco anos corpo forte rosto cheio de sensualidade O Gato a desejou imediatamente Foi a dela Viu quando entrou em casa sem se voltar Ficou na esq esperandoMinutos depois ela apareceu na janela O Gato subiu desceu a rua mas ela nem o olhava Depois passou um velho atendeu ao chamado dela entrou O Gato ainda esperou porém mesmo depois do velho ter saído muito apressado procurando não ser visto ela não voltou à janela Noites e noites o Gato volveu à mesma esquina só para vêla Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes usados e se pôr elegante Tinha o dom da elegância malandra que está mais no jeito de andar de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente O Gato desejava Dalva do mesmo modo como desejava comida ao ter fome como desejava dormir ao ter sono Já não atendia ao chamado das outras mulheres quando passada a meianoite elas já tinham feito para as despesas do dia seguinte e então queriam o amor juvenil do pequeno malandro Uma vez foi com uma só para saber da vida de Dalva Foi assim que se inteirou de que ela tinha um amante um tocador de flauta num café que tomava o dinheiro que ela fazia e ainda tomava porres colossais na sua casa atrapalhando a vida de todas as rameiras do prédio O Gato voltava todas as noites Dalva nunca lhe deu sequer um olhar Por isso ele ainda a amava mais Ficava numa espera dolorosa até meia hora depois de meia noite quando o flautista chegava e depois de a beijar na janela entrava pela porta mal iluminada Então o Gato ia para o trapiche a cabeça cheia de pensamentos se um dia o flautista não viesse Se o flautista morresse Era fraco talvez não agüentasse nem o peso dos quatorze anos do Gato E apertava a navalha que levava na blusa E uma noite o flautista não veio Nesta noite Dalva andara pelas ruas como uma doida voltara tarde para casa não recebera nenhum homem e agora estava ali postada na janela apesar de já ter dado as doze horas há muito tempo Aos poucos a rua foi ficando deserta Não restaram senão o Gato na esquina e Dalva que ainda esperava na janela O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre Dalva desesperava Então o Gato começou a passear de um lado para o outro da rua até que a mulher o notou e fez um sinal Ele veio logo sorrindo Tu não é um frangote que fica na esquina toda noite Quem fica na esquina sou eu Agora essa coisa de frangote Ela sorriu tristemente Tu quer me fazer um favor Te dou uma coisa mas logo pensou e fez um gesto Não Tu com certeza tá esperando tua comida e não vai perder tempo Posso sim A que estou esperando não vem agora Então eu quero filhinho que tu vá na rua Rui Barbosa O número é 35 Procura seu Gastão E no primeiro andar Diz a ele que estou esperando O Gato saiu humilhado Primeiro pensou em não ir e em nunca mais voltar a ver Dalva Mas depois se decidiu a ir para ver de perto o flautista que tinha coragem de abandonar uma mulher tão bonita Chegou no prédio um sobrado negro de muitos andares subiu as escadas no primeiro andar perguntou a um garoto que dormia no corredor qual era o quarto do Sr Gastão O garoto mostrou o último quarto o Gato bateu na porta O flautista veio abrir estava de cuecas e na cama o Gato viu uma mulher magra Estavam os dois bêbados O Gato falou Venho da parte de Dalva Diga àquela bruaca que não me amole Tou chateado dela até aqui e punha a mão aberta na garganta De dentro do quarto a mulher falou Quem é esse cocadinha Não te mete disse o flautista mas logo acrescentou É um recado da bruaca da Dalva Tá se pelando que eu volte A mulher riu um riso canalha de bêbada Mas tu agora só quer tua Bebezinha não é Vem me dar um beijinho anjo sem asas O flautista riu também Tá vendo pedaço de gente Diz isso a Dalva Tou vendo um couro espichado ali sim senhor Que urubu você arranjou hein camarada O flautista o olhou muito sério Não fale de minha noiva e logo Quer tomar um trago É caninha da boa O Gato entrou A mulher na cama se cobriu O flautista riu É um filhote somente Não faz medo Mesmo esse couro disse o Cato não me tenta Nem pra me tocar bronha Bebeu a cachaça O flautista já voltara para a cama e beijava a mulher Nem viram que o Gato saía e que levava a bolsa da prostituta que estava esquecida na cadeira sobre vestidos Na rua o Gato contou sessenta e oito milréis Jogou a bolsa no pé da escada meteu o dinheiro no bolso E foi para rua de Dalva assoviando Dalva o esperava na janela O Gato olhou para ela fixamente Vou emborcar e foi entrando sem esperar resposta Dalva mesmo no corredor perguntou O que foi que ele disse No quarto te digo Me mostre onde é Entraram no quarto A primeira coisa que o Gato viu foi um retrato de Gastão tocando flauta vestido de smoking Sentou na cama olhando o retrato Dalva espiava espantada e mal pôde novamente interrogar O que foi que ele disse O Gato respondeu Senta aqui e indicou a cama Esse frangote murmurou ela Olha bichinha ele tá grudado com outra sabe Também eu disse as boas aos dois E depois pelei a bruaca meteu a mão no bolso tirou o dinheiro Vamos rachar isso Tá com outra não é Mas meu Senhor do Bonfim há de fazer com que os dois fique entrevado Senhor do Bonfim é meu santo Foi até onde estava o quadro do santo Fez a promessa e voltou Guarda teu dinheiro Tu ganhou direito O Gato repetiu Senta aqui Desta vez ela sentou ele a pegou e a derrubou na cama Depois que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu murmurou O frangote parece um homem Ele se levantou endireitou as calças foi até onde estava o retrato do flautista Gastão e o rasgou Vou tirar um retrato pra tu botar ai A mulher riu e disse Vem bichinho bom Que malandro não vai sair dai Vou te ensinar tanta coisa meu cachorrinho Fechou a porta do quarto O Gato tirou a roupa Por isso o Gato sai toda meianoite e não dorme no trapiche Só volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia O SemPernas se aproximou e pilheriou Agora tu vai mostrar o anel não é Tu não tem nada com isso o Gato fumava um cigarro Tu quer vir pra ver se topa alguma mulher que te queira assim coxo Não vou em casa de couros Sei onde tem coisas que valha a pena Mas o Gato não estava disposto a conversar e o SemPernas continuou a sua peregrinação através do trapiche O SemPernas encostouse junto a uma parede e deixou que o tempo passasse Viu o Gato sair por volta das onze e meia Sorriu porque ele havia lavado a cara posto brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado que caracteriza os malandros e os marítimos Depois o SemPernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam Ali estavam mais ou menos cinqüenta crianças sem pai sem mãe sem mestre Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas Levavam vida nem sempre fácil arranjando o que comer e o que vestir ora carregando uma mala ora furtando carteiras e chapéus ora ameaçando homens por vezes pedindo esmola E o grupo era de mais de cem crianças pois muitas outras não dormiam no trapiche Se espalhavam nas portas dos arranhacéus nas pontes nos barcos virados na areia do Porto da Lenha Nenhuma delas reclamava Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar Quando calhava vir o padre José Pedro ou a mãedesanto DonAninha ou também o QueridodeDeus o doente tinha algum remédio Nunca porém era como um menino que tem sua casa O SemPernas ficava pensando E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida Voltouse porque ouviu movimento Alguém se levantava no meio do casarão O SemPernas reconheceu o negrinho Barandão que se dirigia de manso para o areal de fora do trapiche O SemPernas pensou que ele ia esconder qualquer coisa que furtara e não quem mostrar aos companheiros E aquilo era um crime conta as Leis dobando O SemPernas seguiu Barandão atravessando ente os que dormiam O negrinho já tinha transposto a porta do trapiche e dava a volta no prédio para o lado esquerdo Em cima era o céu de estrelas Barandão agora caminhava apressadamente O SemPernas notou que ele se dirigia para o outro extremo do trapiche onde a areia era mais fina ainda Foi então pelo outro lado e chegou a tempo de ver Barandão que se encontrava com um vulto Logo o reconheceu era Almiro um do grupo de doze anos gordo e preguiçoso Deitaramse juntos o negro acariciando Admiro O SemPernas chegou a ouvir palavras Um dizia meu filhinho meu filhinho O SemPernas recuou e a sua angústia cresceu Todos procuravam um carinho qualquer coisa fora daquela vida o Professor naqueles livros que lia a noite toda o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro Pirulito na oração que o transfigurava Barandão e Almiro no amor na areia do cais O SemPernas sentia que uma angústia o tomava e que era impassível dormir Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia Queria que aparecesse alguém a quem ele pudesse torturar com dichotes Queria uma briga Pensou em ir acender um fósforo na perna de um que dormisse Mas quando olhou da porta do trapiche sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir E saiu correndo pelo areal correndo sem fito fugindo da sua angústia Pedro Bala acordou com um ruído perto de si Dormia de bruços e olhou por baixo dos braços Viu que um menino se levantava e se aproximava cautelosamente do canto de Pirulito Pedro Bala no meio do sana em que estava pensou a princípio que se tratasse de um caso de pederastia E ficou atento para expulsar o passivo do grupo pois uma das leis do grupo era que não admitiriam pederastas passivos Mas acordou completamente e logo recordou que era impossível pois Pirulito não era destas coisas Devia se tratar de furto Realmente o garoto já abria o baú de Pirulito Pedro Bala se atirou em cima dele A luta foi rápida Pirulito acordou mas os demais dormiam Tu tá roubando um companheiro O outro ficou calado coçando o queixo ferido Pedro Bala continuou Amanhã tu vai embora Não quero mais tu com a gente Vai ficar com a gente de Ezequiel que vive roubando uns dos outros Eu só queria era ver Que era que tu vinha ver com as mãos Juro que era só para ver aquela medalha que ele tem Desembucha esta história direito senão leva porrada Pirulito se meteu Deixa ele Pedro Era bem capaz de querer ver mesmo a medalha É uma medalha que o padre José Pedro me deu E isso mesmo disse o menino eu só queria ver Juro mas tremia de medo Sabia que a vida de um expulso dos Capitães da Areia ficava difícil Ou entrava para o grupo de Ezequiel que vivi todo dia na cadeia ou acabava no reformatório Pirulito intercedeu de novo e Pedro Bala voltou para perto do Professor Então o menino disse com a voz ainda temendo Vou contar pra você saber Foi uma menina que eu vi hoje Tava na Cidade de Palha Eu tinha entrado na casa com idéia ti abafar um paletó quando ela veio e ficou perguntando o que eu queria Aí topamos a conversar Eu disse que amanhã ia levar um presente pra ela Porque foi boa boa assim comigo sabe e agora gritava parecia que tinha raiva Pirulito tomou a medalha que o padre lhe dera ficou mirando De repente estendeu para o menino Tome Dê a ela Mas não conte a Pedro Bala Volta Seca entrou no trapiche quando a madrugada já ia alta O cabelo de mulato sertanejo estava revolto Calçava alpercatas como quando viera da caatinga O seu rosto sombrio se projetou dentro do casarão Passou por cima do corpo do negro João Grande Cuspiu adiante passou o pé em cima Apertado no braço trazia um jornalOlhou todo o salão procurando alguém Segurou o jornal com as mãos grandes e calosas logo que distinguiu onde estava Professor E sem se importar da hora tardias e dirigiu para lá e começou a chamálo Professor Professor O que é Professor estava semiadormecido Eu quero uma coisa Professor sentouse O rosto sombrio de Volta Seca estava meio invisível na escuridão É tu Volta Seca Que é que tu quer Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário traz Tem um retrato Deixa pra amanhã que eu leio Lê hoje que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um canário O Professor buscou uma vela acendeu começou a ler a notícia do jornal Lampião tinha entrado numa vila da Bahia matara oito soldados deflorara moças saqueara os cofres da Prefeitura O rosto sombrio de Volta Seca se iluminou Sua boca apertada se abriu num sorriso E ainda feliz deixou o Professor que apagava a vela e foi para o seu canto Levava o jornal para cortar o retrato do grupo de Lampião Dentro dele ia uma alegria de primavera Ponto das Pitangueiras Esperavam que o guarda andasse Este demorou olhando o céu mirando a rua deserta O bonde desapareceu na curva Era o último dos bondes da linha de Brotas naquela noite O guarda acendeu um cigarro Com o vento que fazia gastou três fósforos Depois suspendeu a gola da capa pois havia um frio úmido que o vento trazia das chácaras onde balouçavam mangueiras e sapotizeiros Os três meninos esperavam que o guarda andasse para poder atravessar de um lado para o outro da rua e entrar na travessa sem calçamento O QueridodeDeus não tinha podido vir Toda a tarde tinha passado na Porta do Mar esperando o homem que não veio Se ele tivesse vindo seria mais fácil pois com o QueridodeDeus ele não ia discutir mesmo porque devia muita coisa ao capoeirista Mas não tinha vindo a informação fora errada e o QueridodeDeus já tinha uma viagem acertada para essa noite Ia a Itaparica Durante a tarde num terreninho que havia no findo da Porta do Mar fizeram treinos do jogo capoeira O Gato prometia ser com algum tempo um lutador capaz de se pegar com o próprio QueridodeDeus Pedro Bala também tinha muito jeito Dos três o menos ágil era o negro João Grande muito bom numa luta onde pudesse empregar sua enorme força física Assim mesmo aprendia o bastante para se livrar de um mais forte ele Quando se cansaram passaram para a sala Pediram quatro pi e o Gato sacou um baralho do bolso das calças Um velho bar sebento de canas muito grossasO Queridode Deus afirmava o homem viria o camarada que lhe dera a informação era um sujeito seguro Era negócio para render muito e o QueridodeDeus preferia chamar os Capitães da Areia seus amigos a um dos malandros do cais Sabia que os Capitães da Areia valiam mais que muitos homens e tinham a boca calada A Portado Mar estava quase deserto àquela hora Somente dois marinheiros de um baiano bebiam cerveja ao fundo conversando O Gato pôs o baralho em cima da mesa e propôs Quem topa uma ronda O QueridodeDeus pegou no baralho Tá mais que marcado seu Gato Um baralhinho bem velho Se tu tem outro eu não me importa Não Vamos com esse mesmo Começaram o jogo O Gato descobria duas cartas na mesa os outros apostavam numa a banca ficava com a outra A princípio Pedro Bala e o QueridodeDeus ganharam João Grande não estava jogando conhecia demais o baralho do Gato só fazia espiar rindo com seus dentes alvos quando o QueridodeDeus dizia que estava com sorte neste dia porque era o dia de Xangô seu santo Sabia que a sorte seria só no princípio e que quando o Gato começasse a ganhar não pararia mais Certo momento o Gato começou a ganhar Quando ganhou a primeira vez disse com uma voz meio triste Também já era tempo Tava com um peso da mãe João Grande abriu mais seu sorriso O Gato ganhou de novo Pedro Bala se levantou recolheu os níqueis que havia ganho O Gato olhou desconfiado Tu não vai botar nada agora Agora não que vou mijar e foi para os fundos do bar O QueridodeDeus ficou perdendo João Grande ria e o capoeirista se afundava Pedro Bala tinha voltado mas não jogava Ria com João Grande O Queridode Deus passou tudo quanto tinha ganho João Grande disse entre dentes Vai entrar no capital Ainda tou perdendo falou o Gato Reparou que Pedro tinha voltado Tu não arrisca mais nada Não vai na dama Tou cansado de jogar e Pedro Bala piscou para o Gato como que dizendo que ele se contentasse com o QueridodeDeus O QueridodeDeus passou cinco milréis do capital Só ganhara duas vezes durante as últimas jogadas e estava meio desconfiado O Gato abriu o baralho na mesaPuxou um rei e um sete Quem vai perguntou Ninguém foi Nem mesmo o QueridodeDeus que olhava o ar baralho muito desconfiado O Gato perguntou Tá pensando que tem treita Pode espiar Eu faço jogo limpo João Grande soltou uma daquelas suas gargalhadas escandalosas Pedro Bala e o QueridodeDeus riram também O Gato olhou para João Grande com raiva Esse negro é burra como uma porta Tu não tá vendoMas não completou a frase porque os dois marinheiros baiano que já miravam o jogo há bastante tempo se aproximaram Um deles o mais baixo que estava bêbado falou para o QueridodeDeus Podese entrar nesta brincadeira A banca é deste moço Os marinheiros olharam desconfiados para o menino Mas baixo cutucou o outro com o cotovelo e murmurou qualquer coisa ao ouvido O Gato riu para dentro porque sabia que ele estava dizendo que seria fácil arrancar o dinheiro daquela criança Se abancaram os dois e o QueridodeDeus achou estranho que Pedro Bala se abancasse também João Grande no entanto não só não achou estranho se abancou também Ele sabia que era preciso tapear os marinheiros e então era necessário que a gente do grupo perdesse também Os marinheiros do mesmo modo que tinha acontecido com o QueridodeDeus começaram ganhando Mas durou pouca a aragem da sorte e em breve só o Gato ganhava dos quatro Pedro Bala soltava aclamações Esse Gato quando tem sorte é um caso sério Também quando dá de perder perde a noite toda replicou João Grande e esta sua réplica deu grande confiança aos marinheiros sobre a honestidade do jogo e a possibilidade da sorte virar E continuaram a jogar e a perder O baixo só dizia A sorte tem de virar O outro que tinha um bigodinho jogava calado e cada vez apostava mais alto Também Pedro Bala subia o valor das suas apostas Certa hora o de bigodinho virou pro Gato A banca topa cinco mil O Gato coçou o cabelo cheio de brilhantina barata aparentando uma indecisão que os companheiros sabiam que não possuía Vá lá Topo Só pra dar meio de você livrar teu prejuízo O de bigodinho apostou cinco mil O baixo foi com três milréis Foram ambos num ás contra um valete da banca Pedro Bala e João Grande foram no ás também O Gato começou a virar as cartas A primeira era um nove O baixo batia com os dedos o outro puxava o bigodinho Veio em seguida um dois e o baixo disse Agora é o ás Dois depois um e batia com os dedos Mas veio um sete e depois um dez e então veio um valete O Gato arrastou a mesa enquanto Pedro Bala fazia uma cara de grande aborrecimento e dizia Amanhã quando o peso te pegar tu vai ver que te arraso O baixo confessou que estava limpo O de bigodinho meteu as mãos nos bolsos Tou só com os níqueis pra pagar a cerveja O garoto é um braço Se levantaram cumprimentaram o grupo pagaram a cerveja que tinham bebido na outra mesa O Gato os convidou a voltarem no outro dia O baixo respondeu que o navio deles saía aquela noite para Caravelas Só quando voltasse E se foram de braço dado comentando a pouca sorte O Gato contou o lucro Sem juntar o dinheiro que Pedro Bala e João Grande haviam perdido existia um lucro de trinta e oito milréis O Gato devolveu o dinheiro de Pedro Bala depois o de João Grande ficou um minuto pensando Meteu a mão no bolso tirou os cinco mil réis que o QueridodeDeus havia perdido anteriormente Toma batuta Tinha trapaça eu não quero embolsar teu cobre O QueridodeDeus beijou a nota com satisfação bateu a mão nas costas do Gato Tu vai longe menino Tu pode enricar com essas treitas Mas já o sol se punha e o homem não vinha Eles pediram outra pinga Com o cair da tarde o vento que vinha do mar aumentou O QueridodeDeus começava a ficar impaciente Fumava cigarro sobre cigarro Pedro Bala espiava para a porta O Gato dividiu os trinta e oito milréis pelos três João Grande perguntou Como teria ido o SemPernas com o abafa de chapéus Ninguém respondeu Esperavam o homem e agora tinham a impressão que ele não viria A informação tinha sido errada Não ouviam sequer a canção que vinha do marA Porta do Mar estava deserta e seu Felipe quase dormia no balcão Não tardaria no entanto a estar cheia e então todo acerto seria impossível com o homem Ele não haveria de querer conversar ali com o salão cheio Poderiam conhecêlo e ele não queria isto Tampouco o queriam os Capitães da Areia Em verdade o Gato não sabia de que se tratava E pouco má sabiam Pedro Bala e João Grande Sabiam quanto sabia o QueridodeDeus a quem o negócio tinha sido proposto e que o tinha aceito para Pedro Bala e os Capitães da Areia No entanto ele mesmo tinha apenas vagas informações e iam saber de tudo pelo homem que marcara uma entrevista à tarde na Porta do Mar Mas até as seis horas não chegou Em lugar dele chegou o tal que tinha falado ao QueridodeDeus Chegou na hora em que o grupo ia sair Explicou que homem não tinha podido vir Mas que esperava o QueridodeDeus à noite na rua em que morava Viria por volta de uma da madrugada O QueridodeDeus declarou que não podia ir mas que entregava o assunto aos Capitães da Areia O intermediário mirou os meninos desconfiado O QueridodeDeus perguntou Nunca ouviu falar nos Capitães da Areia Já sim Mas De qualquer jeito quem ia tratar do negócio era eles Daí O intermediário pareceu se conformar Combinaram pan um da manha e se separaram O QueridodeDeus foi para seu barco os Capitães da Areia para o trapiche o intermediário desapareceu no cais O SemPernas não havia ainda voltado Não havia ninguém no trapiche Deviam estar todos espalhados pelas ruas da cidade cavando o jantar Os três saíram novamente e foram comer num restaurante barato que havia no mercado Na saída do trapiche o Gato que estava muito alegre com o resultado do jogo quis passar uma rasteira em Pedro Bala Mas este livrou o corpo e derrubou o Gato Tou treinado nisso bestão Entraram no restaurante fazendo barulho Um velho que era o garçom se aproximou com desconfiança Sabia que os Capitães da Areia não gostavam de pagar e que aquele de talho na cara era o mais temível de todos Apesar de haver bastante gente no restaurante o velho disse Acabou tudo Não tem mais bóia Pedro Bala replicou Deixa de conversa fiada meu tio Nós quer comer João Grande bateu a mão na mesa Senão a gente vira esse fregemosca de cabeça pra baixo O velho ficava indeciso Então o Gato bateu o dinheiro em cima da mesa Hoje nós vai fazer gasto Foi um argumento suficiente O garçom começou a trazer os pratos um prato de sarapatel e depois uma feijoada Quem pagou foi o Gato Depois Pedro Bala propôs que fossem andando até Brotas pois já que iam a pé tinham muito que caminhar Não vale a pena tomar a taioba disse Pedro Bala É melhor que ninguém saiba que a gente foi pra lá O Gato então disse que chegaria depois e os encontraria lá Tinha uma coisa que fazer antes Ia avisar a Dalva para que não o esperasse essa noite E agora estavam ali no Ponto das Pitangueiras esperando que o guarda se alistasse Escondidos no vão de um portal não falavam Ouviam o vôo dos morcegos que atacavam os sapotis maduros nos pés Finalmente o guarda andou eles ficaram espiando até que a sua figura desapareceu na curva que a rua fazia Então atravessaram e entraram na alameda das chácaras e novamente se esconderam num portal O homem não tardou muito Saltou de um automóvel na esquina pagou a corrida e veio subindo a alameda Tudo o que se ouvia eram os seus passos e o rumor das folhas que o vento balançava nas árvores Quando o homem vinha próximo Pedro Bala saiu do portalOs outros vieram logo depois e como que o guardavam pareciam dois guardacostas O homem se aproximou mais do muro junto ao qual vinha andando Pedro caminhava para ele Quando estava defronte parou Pode me dar o fogo senhor levava na mão um cigarro apagado O homem não disse nada Sacou a caixa de fósforos estendeu ao menino Pedro riscou um e enquanto acendia o cigarro olhou para o homem Depois ao entregara caixa de fósforos perguntou É o senhor que se chama Joel Porquê quis saber o homem Foi o QueridodeDeus que nos mandou João Grande e o Gato se aproximavam O homem mirou os três com espanto Porém são uns meninos Isso não é negócio para Diga o que é a gente sabe fazer o trabalho direito retrucou Pedro Bala quando os outros dois tinham se aproximado Mas se um negócio que talvez nem homens e o homem pôs a mão na boca como quem teme ter dito mais do que convinha Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre E Capitães da Areia sempre faz os serviços bem feito Os Capitães da Areia Esse grupo de que falam os jornais meninos abandonados São vocês É a gente sim E dos que manda O homem parecia refletir Enfim se decidiu Eu preferia entregar esse negócio a homens Mas como tem que ser esta noite mesmo O jeito Vai ver como a gente sabe trabalhar Não fique assustado Venham comigo Mas deixem que eu vá na frente Vocês irão uns passos atrás de mim Os meninos obedeceram Num portão o homem parou abriu ficou esperando Veio de dentro um grande cão que lhe lambia as mãos O homem fez os três entrarem atravessaram uma rua de árvores o homem abriu a porta da casa Entraram para uma saleta o homem pôs a capa e o chapéu numa cadeira e sentouse Os três estavam de pé O homem fez sinal para que sentassem e primeiro eles miraram desconfiados as largas e cômodas poltronas Isso Pedro Bala e João Grande porque o Gato já estava se sentando muito a gosto numa atitude displicente A outro sinal do homem Pedro e o Grande se sentaram sendo que João Grande ficou sentado apenas na ponta da cadeira como se temesse sujá la O homem tinha um ar de riso De repente levantouse e falou mirando a Pedro em quem reconhecera o chefe O que vocês vão fazer é difícil e ao mesmo tempo é fácil Agora o que tem é que é uma coisa que necessita que ninguém saiba Não passa daqui disse Pedro Bala O homem puxou o relógio do bolso São uma e um quarto Ele só volta às duas e meia olhava os Capitães da Areia ainda com indecisão Então não é muito tempo falou Pedro Se quer que a gente vá é bom desembuchar logo O homem se decidiu Duas ruas adiante desta É a penúltima chácara à direita Tem que evitar um cachorro que já deve estar solto E bravo João Grande interrompeu O senhor tem ai um pedaço de carne Pra quê Pro cachorro Um pedaço chega Verei já Olhava os meninos Parecia perguntar a si mesmo se devia confiar neles Vocês entram pelos fundos Junto da cozinha na parte de fora da casa tem um quarto por cima da garagem É o do empregado que agora deve estar dentro de casa esperando o patrão É no quarto dele que vocês vão entrar Devem procurar um embrulho igual a este igualzinho Foi ao bolso da capa trouxe um pequeno pacote amarrado com uma fita corderosa É igualzinho Não sei se ainda estará no quartoTambém pode ser que o empregado o tenha no bolso Se assim for nada mais se pode fazer e um desespero repentino pareceu tomálo Se eu tivesse podido ir esta tarde Então com certeza ainda estaria no quartoMas agora quem sabe e cobriu o rosto com as mãos Mesmo que esteja com o empregado se pode trazer disse Pedro Não É essencial que ninguém saiba que houve furto deste embrulho O que vocês vão fazer é trocar os embrulhos se o outro estiver no quarto E se estiver com o empregado Então e a fisionomia do homem novamente se alterou João Grande pensou ouvir um nome que soava como Elisa Mas talvez fosse ilusão de João Grande que por vezes ouvia e via coisas que ninguém percebia O negro era muito mentiroso Então a gente troca os embrulhos do mesmo jeito Pode ficar descansado O senhor não conhece os Capitães da Areia Apesar do seu desespero o homem sorriu da bravata de Pedro Bala Então podem ir Depois tem que ser antes de duas horas voltem aqui Mas só quando a rua estiver deserta Eu os esperarei Acertaremos nossas contas entãoMas quero dizer outra coisa lealmente Se vocês forem percebidos e presos não me envolvam no caso Nada farei por vocês porque meu nome não pode aparecer nisso tudo Tratem de dar fim a este embrulho e não me chamem para nada É ganhar ou perder Neste caso replicou Pedro Bala é preciso marcar o preço Quanto o senhor paga à gente Dou 100 Trinta para cada e mais 10 para você apontou para Pedro O Gato se mexeu na cadeira Pedro fez sinal para que ele se calasse O senhor dá cinqüenta a cada e parece que ainda vai fazer negócio São 150 bicos pros três Senão não tem embrulho O homem não vacilou muito Olhava o relógio onde os ponteiros corriam Está bem Aí o Gato falou Não é que a gente desconfie do senhor Mas a coisa pode sair pelo avesso e o senhor mesmo disse que não se importaria com o que acontecesse à gente E daí É justo que o senhor nos passe logo algum João Grande apoiava o Gato com um gesto de cabeça Pedro Bala repetiu as últimas palavras do outro É justo repetiu também o homem Tirou uma carteira do ou uma nota de cem milréis Entregou a Pedro Agora toca a andar Se faz tarde Saíram Pedro Bala disse Pode ficar descansado Daqui a uma hora a gente volta com o embrulho Em frente da casa a rua estava completamente deserta numa janela da casa havia luz e eles viam a sombra de uma mulher que andava de um lado para outro o Grande bateu na testa Me esqueci da carne pro cachorro Pedro Bala estava olhando a janela com luz se voltou Não tem nada Isso me cheira a coisa de amigamento O sujeito aquele derrubava a zinha daqui e agora o empregado tem as cartas que os dois se escrevia e quer dar o alarme Esse pacote tá com perfume É que o outro há de ter Fez sinal para os dois esperarem do outro lado da rua chegou para perto do portão da casa Logo que se encostou um grande cão se aproximou latindo Pedro Bala amarrou um cordel no ferrolho do portão enquanto o cão andava de um lado para outro latindo baixo Depois chamou os outros dois Tu apontou pro Gato fica aqui na rua pra dar o alarma se vem alguém Tu Grande entra comigo Treparam na gradezinha do muro Pedro Bala puxou com o cordão o ferrolho e o portão abriu O Gato tinha ido para a esquina O cão ao ver o portão aberto se precipitou para a rua ficou remexendo uma lata de lixo Pedro Bala e João Grande pularam o muro cerraram o portão para que o cachorro não pudesse entrar se adiantaram entre as árvores Na janela iluminada da casa o vulto de mulher continuava a andar João Grande disse baixinho Tenho pena dela Quem manda deitar com outros Perto da casa o negro ficou para transmitir o aviso do Gato se viesse alguém Tinham assovios especiais para estes casos Pedro Bala rodeou a casa chegou à cozinhaA porta estava aberta como também a do quarto sobre a garagem Porém antes de subir a escada que dava para o quarto Pedro espiou pela porta da cozinha Na copa havia luz e um homem jogava paciência Deve ser o tal empregado pensou Pedro e rápido se afastou para a escada da garagem Subiu de quatro entrou no quarto do homemNão havia luz Pedro fechou a porta acendeu um fósforo Havia apenas uma cama um baú e um cabide na parede O fósforo se apagou mas Pedro já estava em cima da cama que co toda com as mãos Depois viu embaixo do colchão Tampouco nada Desceu então da cama se aproximou sem fazer ruído do baú Suspendeu a tampa acendeu um fósforo que prendeu nos dentes Remexeu a roupa com cuidado não havia nada Cuspiu o fósforo depois se lembrou que o homem podia não fumar e então o recolheu ao bolso e foi até o cabide Nada nos bolsos da roupa ali dependurada Pedro Bala acendeu outro fósforo mirou todo o quarto Com certeza está com o homem Agora é que vão ser elas Abriu a porta do quarto desceu as escadas Chegou na porta da cozinha o homem ainda estava sentado Então Pedro Bala reparou que ele estava sentado em cima do embrulho Aparecia uma ponta sob a perna do homem Pedro pensou que tudo estava perdido Como iria ele tirar o embrulho de baixo da perna do homem Saiu da porta da cozinha foi andando para onde estava o Grande Só se ele e o Grande atacassem o homem Mas aí haveria gritaria todo mundo saberia do roubo E o senhor que os tinha empregado não queria saber disso De repente teve uma idéia Chegou perto de onde tinha deixado o Grande assoviou baixinho João Grande apareceu logo Pedro falou em voz muito baixa Olha Grande o tal empregado tá sentado em riba do embrulho Tu vai chegar na porta da rua apertar a campainha e sumir depois É pro homem se levantar e eu abafar o embrulho Mas dá o suíte logo pro homem não te ver pensar que foi sonho Deixa passar o tempo de eu chegar na cozinha Voltou rápido para a porta da cozinha Dai a um minuto a campainha soou O empregado levantouse às pressas abotoou o paletó e se dirigiu para a frente da casa pelo corredor onde acendeu uma luz Pedro Bala penetrou na copa trocou os pacotes e abriu para os lados da chácara Saltou o muro assoviou para o Gato e João Grande O Gato veio logo Mas João Grande não apareceu Andaram de um lado para outro e o negro não chegava Pedro começava a ficar impaciente pensando que o empregado podia ter surpreendido João Grande e agora estar atracado com ele Mas quando ele passara por aqueles lados não havia escutado nenhum ruído Disse Se ele demorar a gente entra Assoviaram novamente não tiveram resposta Pedro Bala resolveu Vamos entrar de novo Mas ouviram o assovio de João Grande que não tardou a estar ao lado deles Pedro perguntou Onde tu te meteu O Gato tinha pegado o cachorro pela coleira e o punha para dentro do portão Tiraram o cordel do ferrolho e desapareceram pelo outro lado da rua Aí o Grande aplicou Na hora que meti o dedão na campainha entonce a dama lá em cima ficou muito assustada Pegou abriu a janela parecia que ia se atirar mesmoEspiava que fazia medo Tava mesmo chorando Entonces eu tava com pena e trepei pela bica pra dizer a ela que não chorasse mais que não tinha mais de quê Que agente tinha abafado os papéis E como tive que aplicar tudo a ela tive que demorar O Gato perguntou muito curioso Era boa era Era boa sim Passou a mão na minha cabeça depois me disse que muito obrigado que Deus ia me ajudar Deixa de ser burro negro Eu tava perguntando se era boa mas pra cama Se tu viu o coxame O negro não respondeu Um automóvel entrava pela rua Pedro Bala bateu no ombro do negro e João Grande sabia que o chefe estava aprovando o que ele fizera Então seu rosto se abriu de satisfação e murmurou Eu só queria ver acara do galego quando o patrão abrir o pacote não encontrar o que esperavam E já em outra rua os três soltaram a larga livre e ruidosa gargalhada dos Capitães da Areia que era como um hino do povo da Bahia As luzes do carrossel O Grande Japonês não era senão um pequeno carrossel nacional que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles meses de inverno quando as chuvas são longas e o Natal está muito distante ainda De tão desbotada que estava a tinta tinta que antigamente fora azul e vermelha e agora o azul era um branco sujo e o vermelho um quase corderosa e de tantos pedaços que faltavam em certos cavalos e em certos bancos Nhozinho França resolveu não armálo numa das praças centrais da cidade e sim em Itapagipe Ali as famílias não são tão ricas há muitas ruas só de operários e as crianças pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado O pano tinha muitos buracos também além de um rasgão enorme que fazia o carrossel depender da chuva Já fora belo fora mesmo o orgulho da meninada de Maceió noutros tempos Ficava então ao lado de uma rodagigante e de uma sombrinha sempre na mesma praça e nos domingos e feriados as crianças ricas vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde inglês as meninas de holandesa ou de finos vestidos de seda vinham se aboletar nos cavalos preferidos indo os menores nos bancos com as aias Os pais iam para a rodagigante outros preferiam a sombrinha onde podiam empurrar as mulheres tocando muitas vezes nas coxas e nas nádegasO parque de Nhozinho França era naquele tempo a alegria da cidade E mais que tudo o carrossel dava dinheiro rodando incansavelmente com as suas luzes de todas as cores Nhozinho achava a vida boa as mulheres belas os homens amáveis para com ele mas achava que a bebida era boa também fazia os homens mais amáveis e as mulheres mais belas E bebeu assim primeiro a sombrinha depois a rodagigante Depois como não queria se separar do carrossel ao qual tinha um pegadio especial o desarmou uma noite com o auxílio de amigos e começou a peregrinar nas cidades de Alagoas e Sergipe Enquanto isto os credores o xingavam de quanto nome feio conheciamAndou muito Nhozinho França com o seu carrossel Depois de percorrer todas as cidadezinhas dos dois estados de se embriagar em todos os seus bares penetrou no estado da Bahia e até para o bando de Lampião e lê deu uma função Estava numa pobre vila do sertão e não lhe faltava o dinheiro apenas para o transporte do seu carrossel Faltava para o miserável hotel onde se hospedara e que era o único da vila e também o trago de pinga para a cerveja que não era gelada ali assim mesmo ele gostava O carrossel armado no capim da praça da Matriz estava parado fazia uma semana Nhozinho França esperava a noite de sábado e a tarde de domingo para ver se fazia algum cobre para arribar para um lugar melhor Mas na sextafeira Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o carrossel teve muito que trabalhar Como as crianças os grandes cangaceiros homens que tinham vinte e trinta mortes acharam belo o carrossel acharam que mirar suas luzes rodando ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade E o carrossel de Nhozinho França salvou a pequena vila de ser saqueada as moças de serem defloradas os homens de serem mortos Só mesmo os dois soldados da polícia baiana que lustravam as botas na frente do posto policial foram fuzilados pelos cangaceiros assim mesmo antes que eles vissem o carrossel armado na praça da Matriz Porque talvez ai aos soldados da polícia baiana Lampião perdoasse nessa noite de suprema felicidade para o bando de cangaceiros Então eles foram como crianças gozaram daquela felicidade que nunca haviam gozado na sua meninice de filhos de camponeses montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel onde havia música de uma pianola e onde as luzes eram de todas as cores azuis verdes amarelas roxas vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca que ficou excitadíssimo e ao Sem Pernas naquela tarde em que os encontrou na Porta do Mar e os convidou para que o ajudassem no serviço de carrossel durante os dias que estivesse armado na Bahia em Itapagipe Não podia marcar ordenado mas talvez desse para tirar cada um uns cinco milréis por noite E quando Volta Seca mostrou suas habilidades em imitar animais os mais vários Nhozinho França se entusiasmou por completo mandou baixar mais uma garrafa de cerveja declarou que Volta Seca ficaria na porta chamando o público enquanto o SemPernas o ajudaria com as máquinas e tomaria conta pianola Ele mesmo venderia as entradas enquanto o carrossel estivesse parado Quando estivesse rodando Volta Seca o faria E de quando em vez disse piscando o olho um sai pra tomar uma pinga enquanto o outro faz o serviço de dois Volta Seca e o SemPernas nunca haviam acolhido uma com tanto entusiasmo Eles muitas vezes já tinham visto um carrossel mas quase sempre ouviam de longe cercado de mistério cavalgadas seus rápidos ginetes por meninos ricos e choraminguentos O Se Pernas já tinha mesmo certo dia em que penetrou num Parque de Diversões armado no Passeio Público chegado a comprar entrada para um mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido de farrapos Depois o bilheteiro não quis lhe devolver o bilhete da entrada o que fez com que o SemPernas metesse as mãos na gaveta da bilheteria que estava aberta abafasse o troco e tivesse que desaparecer do Passeio Público de uma maneira muito rápida enquanto em todo o Parque se ouviam os gritos de Ladrão ladrão Houve uma tremenda confusão enquanto o SemPernas descia muito calmamente a Gamboa de Cima levando nos bolsos pelo menos cinco vezes o que tinha pago pela entrada Mas o SemPernas preferiria sem dúvida ter rodado no carrossel montado naquele fantástico cavalo de cabeça de dragão que era sem dúvida a coisa mais estranha e tentadora na maravilha que era o carrossel para os seus olhos Criou ainda mais ódio aos guardas e maior amor aos carrosséis distantes E agora de repente vinha um homem que pagava cerveja e fazia o milagre de o chamar para viver uns dias junto a um verdadeiro carrossel movendo com ele montando nos seus cavalos vendo de perto rodarem as luzes de todas as cores E para o SemPernas Nhozinho França não era o bêbado que estava em sua frente na pobre mesa da Porta do Mar Para seus olhos era um ser extraordinário algo como Deus para quem rezava Pirulito algo como Xangô que era o santo de João Grande e do QueridodeDeus Porque nem o padre José Pedro e nem mesmo a mãedesanto DonAninha seriam capazes de realizar aquele milagre Nas noites da Bahia numa praça de Itapagipe as luzes do carrossel girariam loucamente movimentadas pelo SemPernasEra como num sonho sonho muito diverso dos que o SemPernas costumava ter nas suas noites angustiosas E pela primeira vez seus olhos sentiramse úmidos de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva E seus olhos úmidos miravam Nhozinho França como a um ídolo Por ele até a garganta de um homem o Sem Pernas abriria com a navalha que traz entre a calça e o velho colete preto que lhe serve de paletó É uma beleza disse Pedro Bala olhando o velho carrossel armado E João Grande abria os olhos para ver melhor Penduradas estavam as lâmpadas azuis verdes amarelas roxas vermelhas É velho e desbotado o carrossel de Nhozinho França Mas tem a sua beleza Talvez esteja nas lâmpadas ou na música da pianola velhas valsas de perdido tempo ou talvez nos ginetes de pau Entre eles tem um pato que é para sentar dentro os mais pequenos Tem a sua beleza sim porque a opinião unânime dos Capitães da Areia é que ele é maravilhoso Que importa que seja velho roto e de cores apagadas se agrada às crianças Foi uma surpresa quase incrível quando naquela noite o SemPernas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar uns dias num carrossel Muitos não acreditaram pensaram que fosse mais uma pilhéria do SemPernas Então iam perguntar a Volta Seca que como sempre estava metido no seu canto sem falar examinando um revólver que furtara numa casa de armas Volta Seca fazia que sim com a cabeça e por vezes dizia Lampião já rodou nele Lampião é meu padrim O SemPernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra noite quando o acabariam de armar E saiu para encontrar Nhozinho França Naquele momento todos os pequenos corações que pulsavam no trapiche invejaram a suprema felicidade do SemPernas piano mesmo Pirulito que tinha quadros de santos na sua parede Volta mesmo João Grande que nessa noite iria com o QueridodeDeus ao candomblé de Procópio no Matatu até mesmo o Professor que lia livros e quem sabe se também Pedro Bala que nunca tivera inveja de nenhum porque era o chefe de todos Todos o invejaram sim Como invejaram Volta Seca que no seu canto o cabelo mestiço e despenteado os olhos apertados e a boca rasgada naquele rictus raiva apontava o revólver ora para um dos meninos ora para um todos que passava ora para as estrelas que eram muitas no céu Na outra noite foram todos com o SemPernas e Volta Seca e tinham passado o dia fora ajudando Nhozinho a armar o carrossel ver o carrossel armado E estavam parados diante dele extasiados beleza as bocas abertas de admiração O SemPernas mostrava tu Volta Seca levava um por um para mostrar o cavalo que tinha s cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião Eram quase cem crianças olhando o velho carrossel de Nhozinho França estas horas estava encornado num pifão tremendo na Porta do Mar O SemPernas mostrou a máquina um pequeno motor que falhava muito com um orgulho de proprietário Volta Seca não se desprendia do cavalo onde rodara LampiãoO SemPernas estava muito cuidadoso do carrossel e não deixava que eles o tocassem que bulissem em nada Foi quando o Professor perguntou Tu já sabe mover com as máquinas Amanhã é que vou saber disse o SemPernas com um certo desgosto Amanhã seu Nhozinho vai me ensinar Então amanhã quando acabar a função tu pode botar ele pra rodar só com a gente Tu bota as coisas pra andar a gente se aboleta Pedro Bala apoiou a idéia com entusiasmo Os outros esperavam a resposta do SemPernas ansiosos O SemPernas disse que sim e então muitos bateram palmas outros gritaram Foi quando Volta Seca deixou o cavalo onde montara Lampião e veio para eles Quer ver uma coisa bonita Todos queriam O sertanejo trepou no carrossel deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorrisoEspiava a pianola espiava os meninos envoltos em alegria Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para ai ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia Todos estavam silenciosos Um operário que vinha pela rua vendo a aglomeração de meninos na praça veio para o lado deles E ficou também parado escutando a velha música Então a luz da lua se estendeu sobre todos as estrelas brilharam ainda mais no céu o mar ficou de todo manso talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia Neste momento de música eles sentiramse donos da cidade E amaramse uns aos outros se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade O SemPernas em se jogar no mar onde os sonhos são todos belos Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara E era uma unidade valsa velha e triste já esquecida por todos os homens da cidade Desemboca gente de todas asmas E noite de sábado amanhã os homens não irão para o trabalho Podem demorar na rua essa noite Muitos preferiram ir para os bares a Porta do Mar está cheia mas co que tinham filhos vieram com eles para a praça que é mal iluminada Em compensação aí estão as luzes do carrossel que rodam As crianças olham para elas e batem palmas Em frente à bilheteria Volta Seca imita vozes de animais e chama o público Leva uma cartucheira como se estivesse no sertão Nhozinho França achou que isto chamaria a atenção do povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro e a cartucheira atravessada E imita animais até que se reúnam homens mulheres e crianças na sua frente Então oferece entradas que as crianças compram Vai uma alegria por toda a praça As luzes do carrossel alegram a todos No centro agachado o SemPernas ajuda Nhozinho França a botar o motor para trabalhar E carrossel gira carregado de meninos a pianola toca suas velhas valsas Volta Seca vende entradas Na praça casais de namorados passeiam Mães de família compram picolés e sorvetes um poeta sentado perto do mar faz um poema sobre as luzes do carrossel e a alegria das crianças O carrossel ilumina toda a praça e todos os corações A cada momento desemboca das ruas e dos becos Volta Seca imita os animais vestido de cangaceiro Quando o carrossel pára de girar os meninos o invadem exibindo o bilhete de ingresso e é difícil contelos Quando um encontra mais lugar fica comum rosto magoado de desilusão e impaciente a sua vez E quando o carrossel pára os que vão nele querem saltar é preciso que o SemPernas venha e diga Pula fora Pula fora Ou então compra outra entrada Só assim deixam os velhos cavalos que nunca se cansam da corrida Outros cavalgam os ginetes e a corrida recomeça as girando todas as cores fazendo uma cor única e estranha a pi tocando sua antiga música Também vão casais de namorados bancos e enquanto gira o carrossel murmuram palavras de amor Há mesmo quem troque um beijo na corrida quando o motor falha e as luzes se apagam Então Nhozinho França e o SemPernas se debruçam sobre o motor e examinam o defeito até a corrida recomeçar abafando os protestos dos meninos O SemPernas já aprendeu todos os mistérios do motor Certa hora Nhozinho França manda que o SemPernas vá substituir Volta Seca na venda de bilhetes E manda que Volta Seca vá andar no carrossel E o menino toma o cavalo que serviu a Lampião E enquanto dura a corrida vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo E faz movimentos com o dedo como se atirasse nos que vão na sua frente e na sua imaginação os vê cair banhados em sangue sob os tiros da sua repetição E o cavalo corre e cada vez com mais e ele mata a todos porque são todos soldados ou fazendeiros ricos Depois possui nos bancos a todas as mulheres saqueia vilas cidades tens de ferro montado no seu cavalo armado com seu rifle Depois vai o SemPernas Vai calado uma estranha comoção o possui Vai como um crente para uma missa um amante para o seio da mulher amada um suicida para a morte Vai pálido e coxeia Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira Os lábios estão apertados seus ouvidos não ouvem a música da pianola só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe e uma casa e quem os beije e quem os ame Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza Já Se vê os soldados que o surraram o homem de colete queria Volta Seca os matou na sua corrida O SemPernas vai teso no seu cavalo É como se corresse sobre o mar para as estrelas na mais maravilhosa viagem do mundoUma viagem como o Professor nunca leu nem inventou Seu coração bate tanto tanto que ele o aperta com a mão Nesta noite os Capitães da Areia não vieram Não só a função carrossel na praça terminou muito tarde às duas horas da manhã os homens ainda rodavam como muitos deles inclusive Pedro Bala BoaVida Barandão e o Professor estavam ocupados em viria assuntos Marcaram para o dia seguinte das três para as quatro da manhã Pedro Bala perguntou ao SemPernas se ele já sabia manobrar bem com o motor Não paga a pena dar um prejuízo ao teu patrão explicou Já sei aquilo tudo de cor e decorado É o tipo da coisa canja O Professor que jogava damas com João Grande perguntou Não era bom agente de tarde dá um pulo na praça Quem sabe se não vale a pena Eu vou falou Pedro Bala Mas acho que não pode ir muitos A turma pode desconfiar de ver tanto junto O Gato disse que de tarde não ia Tinha o que fazer já que à noite ia estar ocupado no carrossel O SemPernas mangou Tu não pode passar um dia sem bater coxas com essa bruaca não é Tu vai acabar tatu O Gato não respondeu João Grande também não iria à tarde Tinha que ir encontrar como QueridodeDeus para irem comer uma feijoada na casa de DonAninha a mãedesantoFinalmente ficou resolvido que fosse um grupo pequeno operar à tarde na praça Os outros iriam para onde bem quisessem Só à noite se reuniriam para irem todos correr no carrossel É preciso levar gasolina gente pro motor O Professor tinha vencido João Grande já em três partidas fez uma coleta para comprarem dois litros de gasolina Eu levo Mas na tarde do domingo chegou o padre José Pedro que era uma das raríssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais permanente dos Capitães da Areia O padre José Pedro se fizera amigo deles há bastante tempo A amizade veio por intermédio do BoaVida Este um dia penetrara após uma missa na sacristia de uma igreja onde oficiava padre José Pedro Penetrara mais por curiosidade que por outra qualquer coisa BoaVida não era dos que mais faziam pela vida Gostava de deixara vida correr sem se preocupar muito Era mais um parasita do grupo Um dia quando lhe dava ganas entrava numa casa de onde trazia um objeto de valor ou batia o relógio de um homem Quase nunca o punha ele mesmo na mão dos intermediários Trazia e entregava a Pedro Bala assim como uma contribuição que dava ao grupo Tinha muitos amigos entre os estivadores do cais em várias casas pobres da Cidade de Palha em muitos pontos da Bahia Comia em casa de um em casa de outroEm geral não aborrecia a nenhum Se contentava com as mulheres que sobravam do Gato e mais que nenhum conhecia a cidade suas ruas seus lugares curiosos uma festa onde podiam ir beber e dançar Quando já tinha algum tempo que havia contribuído com algum objeto de valor para a economia do grupo fazia um esforço arranjava algo que rendesse dinheiro e entregava a Pedro Bala Mas realmente não gostava de nenhuma espécie de trabalho fosse honesto ou desonesto Gostava era de deitar na areia do cais horas e horas espiando os navios de ficar de cócoras tardes inteiras nos portões dos armazéns do porto ouvindo histórias de valentias Vestiasede farrapos pois só providenciava arranjar uma roupa quando seu traje caía aos pedaços Gostava de andar ao léu nas ruas da cidade entrando nos jardins para fumar um cigarro sentado num banco entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras Naquela manhã quando viu o povo saindo da missa entrou a igreja displicentemente e foi furando até a sacristia Espiava tudo os altares os santos riu de um São Benedito muito preto Na sacristia não tinha ninguém e ele viu um objeto de ouro que devia dar muito dinheiro Espiou mais uma vez não viu ninguém Foi passando a mão mas alguém tocou no seu ombro O padre José Pedro acabara de entrar Por que faz isso meu filho perguntou com um sorris enquanto tirava da mão do BoaVida o relicário de ouro Tava só dando uma espiada reverendo É batuta responde BoaVida com certo receio E batuta mesmo Mas não vá pensando que ia levar Ia deixar aí direitinhoSou de boa família O padre José Pedro espiou as roupas do BoaVida e riu BoaVida olhou também para seus trapos É que meu pai morreu sabe Mas até num colégio estive Tou falando a verdade Pra que é que eu ia roubar essa coisa apontava o relicário Demais numa igreja Não sou pagão O padre José Pedro sorriu de novo Sabia perfeitamente que BoaVida estava mentindo Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar relações comas crianças abandonadas da cidade Pensava que aquela era a missão que lhe estava reservada Já fizera umas tantas visitas ao reformatório de menores mas ali lhe punham todas as dificuldades porque ele não esposava as idéias do diretor de que é necessário surrar uma criança para a emendar de um erro E mesmo o diretor tinha idéias únicas sobre os erros Há bastante tempo que o padre José Pedro ouvia falar nos Capitães da Areia e sonhava entrar em contato com eles poder trazer todos aqueles corações a Deus Tinha uma vontade enorme de trabalhar com aquelas crianças de ajudálas a serem boas Por isso tratou o melhor que pôde a BoaVida Quem sabe se por intermédio dele não chegaria aos Capitães da Areia E assim foi O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência entre o clero Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padre s da Bahia Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de tecidos antes de entrar para o seminário O diretor da fábrica num dia em que o bispo a visitara resolveu dar mostra de generosidade e disse que já que o senhor bispo se queixava da falta de vocação sacerdotal ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou de alguém que quisesse estudar para padre José Pedro que estava no seu tear ouvindo se aproximou e disse que ele queria ser padre Tanto o patrão como o bispo tiveram uma surpresa José Pedro já não era moço e não tinha estudo algum Mas o patrão diante do bispo não quis voltar atrás E José Pedro foi para o seminário Os demais seminaristas riam dele Nunca conseguiu ser um bom aluno Bem comportado isso era Também dos mais devotos daqueles que mais se acercavam da igreja Não estava de acordo com muitas das coisas que aconteciam no seminário e por isso os meninos o perseguiam Não conseguia penetrar os mistérios da filosofia da teologia e do latim Mas era piedoso e tinha desejos de catequizar crianças ou índios Sofreu muito principalmente depois que passados dois anos o dono da fábrica deixou de pagar seus gastos e ele teve que trabalhar de bedel no seminário para poder continuar Mas conseguiu se ordenar e ficou adido a uma igreja da capital esperando uma paróquia Porém seu grande desejo era catequizar as crianças abandonadas da cidade os meninos que sem pai e sem mãe viviam do roubo em meio a todos os víciosO padre José Pedro queria levar aqueles corações todos a Deus Assim começou a freqüentar o reformatório de menores onde a princípio o diretora recebia com muita cortesia Mas quando ele declarou contra os castigos corporais contra deixar as crianças co fome dias seguidos então as coisas mudaram Um dia teve escrever uma carta sobre o assunto para a redação de um jornal Então sua entrada foi proibida no reformatório e até uma queixa contra foi dirigida ao arcebispado Por isso não teve uma freguesia Porém seu maior desejo era conhecer os Capitães da Areia problema dos menores abandonados e delinqüentes que quase preocupava a ninguém em toda a cidade era a maior preocupação padre José Pedro Ele queria se aproximar daquelas crianças não para trazêlas para Deus como para ver se havia algum meio melhorar sua situação Pouca influência tinha o padre José Pedro Não tinha mesmo influência nenhuma nem tampouco sabia como agir para ganhar a confiança daqueles pequenos ladrões Mas s que a vida deles era falta de todo o conforto de todo carinho uma vida de fome e de abandono E se o padre José Pedro não cama comida e roupa para levar até eles tinha pelo menos pala de carinho e sem dúvida muito amor no seu coração Numa se enganou a princípio o padre José Pedro em lhes oferecer trocado abandono da liberdade que gozavam soltos na rua possibilidade de vida mais confortável O padre José Pedro sabia que não podia acenar com o reformatório àquelas crianças Ele conhecia demais as leis do reformatório as escritas e as que cumpriam E sabia que não havia possibilidade de nele uma criança tomar boa e trabalhadoraMas o padre José Pedro confiava em amigas que possuía beatas velhas e religiosas Elas podiam se encarregar de vários dos Capitães da Areia de educálos e alimentálosMas isso seria o abandono de tudo de grande que tinha a vida a aventura da liberdade nas ruas da mais misteriosa e bela das cidades do mundo nas ruas da Bahia de Todos os Santos E logo que intermédio de Boa Vida o padre José Pedro fez relações com Capitães da Areia viu que se lhes fizesse essa proposta perderia a confiança que já depositavam nele e que se mudariam do trapiche ele nunca mais os veria Além do mais não tinha absoluta co naquelas solteironas velhuscas que viviam metidas na igreja e aproveitavam os intervalos das missas para comentarem a vida Lembravase que a princípio elas tinham ficado magoadas com ele porque ao acabar de celebrar pela primeira vez naquela igreja um grupo de beatas se acercou dele com o evidente propósito de o ajudar a mudar os trajes do oficio da missa E ressoaram em torno a ele exclamações comovidas Reverendozinho Anjo Gabriel Uma velhusca magra juntava as mãos em adoração Meu Jesuscristozinho Pareciam adorálo e o padre José Pedro se revoltou Em verdade ele sabia que a grande maioria dos padre s não se revoltava e ganhava tons presentes de galinhas perus lenços bordados e por vezes até antigos relógios de ouro que passavam através de gerações na mesma família Mas o padre José Pedro tinha outra idéia da sua missão pensava que os outros estavam errados e foi com um furor sagrado que disse As senhoras não têm o que fazer Não têm casa de que cuidar Eu não sou Jesuscristozinho nem Anjo Gabriel Vão para suas casas trabalhar preparar o almoço coser As beatas o olhavam assombradas Era como se ele fosse o próprio Anticristo O padre completou Em suas casas trabalhando servem melhor a Deus que aqui cheirando as fraldas dos padre s Vão vão E enquanto elas saíam atemorizadas ele repetia mais com magoa que com raiva Jesuscristozinho O nome de Deus em vão As beatas foram diretas ao padre Clóvis que era gordo calvo e muito bem humorado confessor preferido de todas elas Narraramlhe entre exclamações de assombro o que acabara de se passar O padre Clóvis mirou as beatas com um olhar terno e as consolou Logo passará Isto é começo Depois ele verá que vocês são mis santas umas verdadeiras filhas do Senhor Isso passará Não fiquem tristes Vão rezar um padrenosso e não se esqueçam que há benção hoje Ficou rindo quando elas partiram E murmurava de si para si Esses padre s recémordenados estragam a vida da gente Depois as beatas foram aos poucos se aproximando novamente do padre José Pedro A verdade é que nunca chegaram a ter com uma perfeita intimidade O seu ar sério a sua bondade que se reservava para quando se fazia necessária e seu horror às intriguinhas sacristia faziam com que elas o respeitassem mais que o amassem Algumas no entanto aquelas que em geral eram ou viúvas ou esposas de maus maridos se fizeram mais ou menos suas amigas Outra cais o afastava das beatas ele era a negação do pregador Nunca havia conseguido descrever o inferno com a força de convicção do padre Clóvis por exemplo Sua retórica era pobre e falha No entanto ele acreditava ele era um crente E dificilmente se poderia dizer que padre Clóvis acreditasse pelo menos no inferno A princípio o padre José Pedro pensara em levar os Capitães da Areia às beatas Pensava que assim salvaria não só as crianças de vida miserável como salvaria também as beatas de uma inutilidade perniciosa Poderia conseguir que elas se dedicassem aos meninos com a mesma fervorosa devoção com que se dedicavam às igrejas aos gordos padre s O padre José Pedro adivinhava mais do que sabia se elas passavam os dias em inúteis conversas nas igrejas ou aba lenços para o padre Clóvis era porque não haviam tido na malograda existência de virgens um filho um esposo a quem dedicar seu tempo e seu carinho Agora ele levaria filhos para elasMuito tempo o padre José Pedro acariciou este projeto Chegou mesmo levar para casa de uma um menino do reformatório Isso muito de conhecer os Capitães da Areia quando apenas ouvia falar nela experiência deu maus resultados o menino arribou da casa da solteirona levando uns objetos de prata preferindo a liberdade da rua mesmo vestido de farrapos e sem muita certeza de almoço aos trajes e ao almoço garantido com a obrigação de rezar o terço em alta assistir várias missas e bênçãos todos os dias Depois o padre José Pedro compreendeu que a experiência tinha fracassado mais por culpa da solteirona que do menino Porque evidentemente pensa padre José Pedro é impossível converter uma criança abandona e ladrona em um sacristão Mas é muito possível convertêla em um homem trabalhador E esperava quando conhecesse os Capitães da Areia entrar num acordo com alguns deles e com as beatas para tá uma nova experiência agora bem dirigida Mas logo depois que BoaVida o apresentou ao grupo que aos poucos ganhou a confiança da maioria viu que era totalmente inútil pensar nesse projeto Viu que era absurdo porque a liberdade era o sentimento mais arraigado nos corações dos Capitães da Areia e que tinha que tentar outros meios Nas primeiras vezes os meninos o olhavam com desconfiança Ouviam muitas vezes na rua dizer que padre dava peso que negócio de padre era para mulher Mas o padre José Pedro tinha sido operário e sabia como tratar os meninos Tratavaos como a homens como a amigos E assim conquistou a confiança deles se fez amigo de todos mesmo daqueles que como Pedro Bala e o Professor não gostavam de rezar Dificuldade grande só teve mesmo com o Sem Pernas Enquanto que o Professor Pedro Bala o Gato eram indiferentes às palavras do padre o Professor no entanto gostava dele pois lhe trazia livros Pirulito Volta Seca e João Grande principalmente o primeiro muito atentos ao que ele dizia o SemPernas lhe fazia uma oposição que a princípio tinha sido muito tenaz Porém o padre José Pedro terminara por conquistara confiança de todos E pelo menos em Pirulito descobrira uma vocação sacerdotal Mas naquela tarde não foi com muita satisfação que o viram chegar Pirulito se aproximou e beijou a mão do padre Volta Seca também Os demais o cumprimentaramO padre José Pedro explicou Hoje venho fazer um convite a todos vocês Os ouvidos se fizeram atentos O SemPernas resmungou Vai chamar a gente pra bênção Só quero ver quem topa Mas se calou porque Pedro Bala o olhava com raiva O padre sorriu com bondade Sentouse num caixão João Grande viu que a batina dele era suja e velha Tinha remendos feitos com linha a grande para a magreza do padre Cutucou Pedro Bala que espiou também Então o Bala disse Minha gente o padre José Pedro que é amigo de nós tem uma bisa pra gente Viva o padre José Pedro João Grande sabia que tudo era por causa da batina rasgada e grande para a magreza do padre Os outros responderam viva o padre sorriu acenando com a mão João Grande não tirava os olhos da batina Pensou que Pedro Bala era mesmo um chefe sabia de tudo sabia fazer tudo Por Pedro Bala João Grande se deixaria cortar a facão como aquele negro de Ilhéus por Barbosa o grande senhor do cangaço O padre José Pedro meteu a mão no bolso da batina tirou o breviário negro Abriu e de dentro sacou algumas notas de dez milréis Isso é pra gente andar no carrossel hoje Convido vocês todos para andarem hoje no carrossel da praça de Itapagipe Esperava que os rostos se animassem mais Que uma extraordinária alegria reinasse em toda sala Porque assim ficaria ainda mais convicto de que estava servindo a Deus quando daqueles quinhentos milréis que dona Guilhermina Silva dera para comprar velas pano altar da Virgem tirara cinqüenta milréis para levar os Capitães da Areia ao carrossel E como os rostos não ficaram subitamente alegres ele ficou desconcertado as notas na mão olhando a multidão de meninos Pedro Bala coçou o cabelo que lhe caía sobre as orelhas quis falar não acertou Olhou então para o Professor e foi este quem aplicou Padre o senhor é um homem bom Teve vontade de dir que o padre era bom como João Grande mas pensou que talvez o padre se ofendesse se ele o comparasse ao negro Mas o que temi que o SemPernas e Volta Seca tão os dois trabalhando no carrossel E a gente tá convidado aí fez uma pequena pausa pelo proprietário que é amigo deles pra andar à noite de graça Agente não esquece do convite do senhor O Professor falava pausado escolhendo as palavras pensando que aquele era um momento delicado adivinhando muita coisa e Pedro Bala o apoiava com a cabeça Fica pra outra vez Mas o senhor não vai zangar com a gente porque a gente não aceita Não vai não é e espiava o padre cujo rosto agora estava novamente alegre Não Fica pra outra vez Olhou para os meninos sorrindo Foi até melhor assim Porque o dinheiro que eu tinha e se calou de repente ante o fato que ia contar E pensou que talvez tive sido uma lição de Deus um aviso e que tivesse feito uma com malfeita Seu olhar foi tão estranho que os meninos se aproximam um passo Olhavam para o padre sem compreender Pedro Bala franzia testa como quando tinha um problema a resolver o Professor tentou falar Mas João Grande compreendeu tudo apesar de ser o mais burro de todos Era da igreja padree bateu na boca com raiva de si mesmo Os outros entenderam Pirulito pensou que tivesse sido um grande pecado mas sentiu que a bondade do padre era maior que o pecado Então o SemPernas veio coxeando ainda mais que o seu natural como se viesse lutando consigo mesmo chegou peno do padre e quase gritou a princípio se bem logo baixasse muito a voz A gente pode botar no lugar onde estava É coisa canja pra gente Não fique triste e sorria E o sorriso do SemPernas e a amizade que o padre lia nos olhos de todos haveria lágrimas nos olhos do Grande lhe restituíram a calma a serenidade a confiança no seu ato e no seu Deus Disse com sua voz natural Uma velha viúva deu quinhentos milréis para vela Eu tirei cinqüenta para vocês andarem no carrossel Deus julgará se fiz bem Agora compro mesmo de vela Pedro Bala sentia que tinha uma dívida a saldar com o padre Queria que o padre soubesse que todos eles compreendiam E como não achasse nada mais à mão se dispôs a perder o trabalho que poderiam fizer naquela tarde e convidou o padre A gente vai pro carrossel ver Volta Seca e SemPernas agora de tarde Quer ir com a gente padre Padre José Pedro disse que sim porque sabia que aquilo era mais um passo na sua intimidade com os Capitães da Areia E foi um grupo pm o padre para a praça Vários não foram o Gato inclusive que foi ver Dalva Mas os que iam pareciam um bando de bons meninos que tinham do catecismo Se estivessem bem vestidos e limpos pareceria um colégio de tão em ordem que eles iam Na praça rodaram tudo com o padre Mostravam com orgulho Volta Seca imitando animais vestido de cangaceiro o SemPernas fazendo sozinho o carrossel girar porque Nhozinho França fora tomar uma cerveja num bar Uma pena que à tarde as luzes do carrossel não estivessem acesas Não era tão belo como à noite as luzes girando de todas as cores Mas eles tinham orgulho de Volta Seca imitando animais do SemPernas movimentando o carrossel fazendo as crianças subirem as crianças baixarem O Professor com um pedaço de lápis e uma tampa de caixa desenhou Volta Seca vestido de cangaceiro Tinha um jeito especial para desenhar e por vem ganhava dinheiro fazendo desenho nas calçadas de homens que passavam de senhoritas que iam com os noivos Estes paravam um minuto riam do desenho ainda indeciso as noivas diziam Está muito parecido Ele recolhia os níqueis e então ficava a retocar o desenho feito a giz a ampliálo a colocar homens decais e mulheres da vida até um guarda o expulsava da calçadaPor vezes já tinha um grupo espiando e havia quem dissesse Este menino promete É pena que o governo não olhe e vocações e lembravam casos de meninos da rua que ajudados famílias foram grandes poetas cantores e pintores O Professor acabou o desenho no qual pôs o carrossel e Nhozinho França caindo de bêbado e deu ao padre Estavam todos num cerrado espiando o desenho que o padre elogiava quando ouviram Mas é o padre José Pedro E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como arma de guerra O padre José Pedro ficou meio sem jeito os me olhavam com curiosidade os ossos do pescoço e do peito da velha onde um barret custosíssimo brilhava à luz do sol Houve um m to em que todos ficaram calados até que o padre José Pedro ânimo e disse Boa tarde dona Margarida Mas a viúva Margarida Santos assestou novamente o lorgnon de ouro O senhor não se envergonha de estar nesse meio padre Um sacerdote do Senhor Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha São crianças senhora A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca O padre continuou Cristo disse Deixai vir a mim as criancinhas Criancinhas Criancinhas cuspiu a velha Ai de quem faça mala uma criança falou o Senhor e o padre José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha Isso não são crianças são ladrões Velhacos ladrões Isso não do são crianças São capazes até de ser dos Capitães da Areia Ladrões repetiu com nojo Os meninos a fitavam com curiosidade Só o SemPernas que tinha vindo do carrossel pois Nhozinho França já voltara a olhava com raiva Pedro Bala se adiantou um passo quis explicar O padre só quer aju Mas a velha deu um repelão e se afastou Não se aproxime de mim não se aproxime de mim imundície Se não fosse pelo padre eu chamava o guarda Pedro Bala aí riu escandalosamente pensando que se não fosse pelo padre a velha já não teria o barret nem tampouco o lorgnon A velha se afastou com um ar de grande superioridade não sem dizer es para o padre José Pedro Assim o senhor não vai longe padre Tenha mais cuidado com suas relações Pedro Bala ria cada vez mais e o padre também riu se bem sentisse triste pela velha pela incompreensão da velha Mas o carrossel girava com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos Capitães da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo de ar nos cavalos de girar com as luzes Eram crianças sim pensou padre No começo da noite caiu uma carga dágua Também as nuvens logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam ou também a lua cheia Pela madrugada os Capitães da Areia vieram O SemPernas botou o motor para trabalhar E eles esqueceram não eram iguais às demais crianças esqueceram que não tinham nem pai nem mãe que viviam de furto como homens que temidos na cidade como ladrões Esqueceram as palavras da velha de lorgnon Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças cavalgando os ginetes do carrossel girando com as luzes As estrelas brilhavam brilhava a lua cheia Mas mais que tudo brilhavam noite da Bahia as luzes azuis verdes amarelas roxas vermelhas do Grande Carrossel Japonês Docas Pedro Bala bateu a moeda de quatrocentos réis na parede da Alfândega ela caiu adiante da de BoaVida Depois Pirulito bate dele a moeda ficou entre a de Boa Vida e a de Pedro Bala BoaVida estava acocorado espiando Tirou o cigarro da boca Eu gosto é assim mesmo De começar ruim E continuaram o jogo mas BoaVida e Pirulito perderam moedas de quatrocentão que Pedro Bala embolsou Eu sou é bamba mesmo Diante deles estavam os saveiros ancorados Do Mercado mulheres e homens Eles esperavam nesta tarde o saveiro do QueridodeDeus O capoeirista estava numa pescaria que sua profissão e pescador Continuaram o jogo do cruzado até que Pedro Bala limpou os outros dois A cicatriz do seu rosto brilhava Gostava de vai assim num jogo limpo principalmente quando os parceiros eram da força do Pirulito que fora muito tempo o campeão do grupo e de BoaVida Quando terminaram BoaVida puxou o bolso para fora Tu vai me emprestar nem que seja um cruzado Tou a nemnem Depois mirou o mar os saveiros ancorados QueridodeDeus vai chegar de tardinha Vamos pias a Pirulito disse que ficava esperando o QueridodeDeus mas Pedro Bala foi com BoaVida para as docas Atravessaram as ruas do cais afundaram os pés na areiaUm navio desatracava do armazém 5 haviam movimento de gente que entrava e saía Pedro Bala perguntou ao BoaVida Tu não tem vontade de ser marítimo Tá vendo Gosto daqui Não quero arribar não Pois eu tenho vontade É bonito trepar num mastro E um temporal bem Tu te lembra daquela história que o Professor leu pra gente Aquela que tinha um temporalBatuta Era porreta sim Pedro Bala ficou se lembrando da história BoaVida achava besteira sair da Bahia onde quando crescesse seria tão fácil viver uma boa existência de malandro navalha na calça violão debaixo do braço uma morena para derrubar no areal Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente homem Chegaram ao portão do armazém sete João de Adão um estivador negro e fortíssimo antigo grevista temido e amado em toda a estiva estava sentado num caixãoFumava cachimbo e os músculos saltavam sob sua camisa Quando viu os meninos foi saudando Olha o amigo BoaVida E o Capitão Pedro Só chamava Pedro de Capitão Pedro e gostava de conversar com eles Ofereceu um pedaço de caixão a Pedro Bala BoaVida se acocorou na sua frente Num canto uma negra velha vendia laranjas cocadas vestida com uma saia de chitão e uma anágua que deixava ver os seios ainda duros apesar da sua idade BoaVida ficou espiando os peitos da negra enquanto descascava uma laranja que apanhara no bueiro Tu ainda tem uma peitam a bem boa hein tia A negra sorriu Esses meninos de hoje não respeita os mais velho compadre João de Adão Onde já se viu um capetinha destes falar em peito pra a velha encongrujada como eu Deixa de conversa tia Tu ainda topa a coisa A negra riu com vontade Já fechei a cancela BoaVida Passei da idade Pergunta este aponta João de Adão Vi quando ele quase menino as como tu fez a primeira greve aqui nas doca Naquele tempo ninguém sabia que diabo era greve Tu te lembra compadre João de Adão balançou a cabeça que sim fechou os o recordando os longínquos tempos da primeira greve que chefiara docas Era um dos doqueiros mais velhos embora ninguém lhe d a idade que tinha Pedro Bala falou Negro quando pinta três vezes trinta A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco Tinha tirado o lenço que enrolava na cabeça e BoaVida chalaceou Por isso tu anda com esse lenço O negra cheia de proso João de Adão perguntou Tu te lembra de Raimundo comadre Luisa O Loiro que morreu na greve Como não me lembro Era que toda tarde vinha dar dois dedo de prosa comigo gostava de pilhéria Mataram ele bem aqui naquele dia que a cavalaria ato a gente Olhou para Pedro Bala Tu nunca ouviu falar Capitão Não Tu tinha uns quatro anos Depois disso tu andou um ano casa de um pra casa de outro até que tu fugiu Depois a gente só saber de tu quando tu já era chefe dos Capitães da Areia Mas a gente sabia que tu havia de te arranjar Quantos anos tu tem agora Pedro ficou fazendo cálculos e o próprio João de Adão interrompeu Tu tá com uns quinze anos Não é comadre A negra fez que sim João de Adão continuou No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas A gente tem um lugar guardado pra tu Por quê perguntou BoaVida já que Pedro apenas olhava espantado Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente pelo direito da gente Era um homem e tanto Valia dez destes que a gente encontra por ai Meu paifez Pedro Bala que daquelas histórias só conhecia vagas rumores Teu pai era A gente chamava ele de Loiro Quando foi da greve fazia discurso pra gente nem parecia um estivador Foi pegado por uma bala Mas tem um lugar pra tu nas docas Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto Olhou João de Adão Por que tu nunca me contou isso Tu era pequeno para entender Agora tu tá ficando um homem e riu com satisfação Pedro Bala riu também Estava contente de saber a história de seu pai porque ele tinha sido um homem valente Mas perguntou lentamente E minha mãe tu conheceu João de Adão pensou um momento Não sei não Quando conheci o Loiro ele não tinha mulher Mas tu vivia com ele Eu conheci era a negra que estava falando Um pedaço mulher Corria uma história que teu pai tinha fintado ela de casa ela era de uma família rica lá de cima e apontava a cidade alta Morreu quando tu nem tinha seis meses Nesse tempo Raimundo trabalhava na fábrica de ciganos de Itapagipe Depois foi que veio pras docas João de Adão repetiu Quando tu quiser Pedro Bala fez um aceno com a cabeça Depois perguntou Foi uma coisa batuta a greve não foi E ficaram ouvindo João de Adão narrar a greve Quando ele acabou Pedro Bala disse Eu gostava de fazer uma greve Deve ser porreta Vinha entrando um navio João de Adão se levantou Agora a gente vai carregar aquele holandês O navio apitava nas manobras de atracação De todos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armazém Pedro Bala os olhou com carinho Seu pai fora um deles morrera defesa deles Ali iam passando homens brancos mulatos negros muitos negros Iam encher os porões de um navio de sacos de cacau fardos de fumo açúcar todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas onde outros homens como aqueles talvez altos loiros descarregariam o navio deixariam vazios os seus porões pai fora um deles Só agora o sabia E por eles fizera discursos trepado em um caixão brigara recebem uma bala no dia em que a cavalaria enfrentou os grevistas Talvez ali mesmo onde ele se sentava ti caldo o sangue de seu pai Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue que correra do corpo seu pai Por isso no dia em que quisesse teria um lugar nas d entre aqueles homens o lugar que fora de seu pai E teria também carregar fardos Vida dura aquela com fardos de sessenta quilos costas Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai João de Adão brigar com policias morrer pelo direito deles vingaria seu pai ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu vagamente Pedro Bala sabia o que era isso Imaginavase n greve lutandoE sorriam os seus olhos como sorriam os seus BoaVida que chupava a terceira laranja interrompeu seu sonho Tá pensando na morte da bezerra seu mano A preta velha olhou Pedro Bala com carinho É a cara do pai Só que tem o cabelo ondeado da mãe Se fosse esse talho na cara não tinha que tirar nem pôr pan Raimundo Um homem bonito BoaVida riu entre dentes Perguntou quanto devia pagou duzentos réis Depois olhou mais uma vez os peitos da ri perguntou Tu não tem uma fia minha tia Pra que tu quer saber desgraçado BoaVida riu Eu podia me amigar com ela A negra atirou o chinelo BoaVida desviou o corpo Se eu tivesse uma filha não era pra teu bico malandro Depois se lembrou Tu não vai hoje ao Gantois Vai ser uma batida daquelas Um fandango de primeira É festa de Omolu Muita bóia E aluá Se tem mirou Pedro Bala Por que tu não vai branco Omolu não é só santo de negro É santo dos pobres todos BoaVida estendeu a mão numa saudação quando ela falou em Omolu o deus da bexiga A tarde caía Um homem comprou cocada As luzes se acenderam de repente A negra se levantou boavida ajudou a que ela botasse o tabuleiro na cabeça Ao longe Pirulito apontava com o QueridodeDeus Pedro Bala olhou mais uma vez os homens que nas docas carregavam fardos para o navio holandês Nas largas costas negras e mestiças brilhavam gotas de suor Os pescoços musculosos iam curvados sob os fardosE os guindastes rodavam ruidosamente Um dia iria fazer uma greve como seu pai Lutar gelo direito Um dia um homem assim como João de Adão poderia contar a outros meninos na porta das docas a sua história como contavam a de seu pai Seus olhos tinham um intenso brilho na noite recémchegada Ajudaram o QueridodeDeus a desembarcar a pescaria que fora boa Yemanjá o tinha ajudado Um homem que tinha banca de peixe no mercado comprou toda a pescariaDepois foram comer num restaurante próximo Pirulito foi ver o padre José Pedro que estava lhe ensinando a ler e a escrever Passou pelo trapiche antes para apanhar uma caixa de penas que tinha levantado numa papelaria pela manhã Pedro Bala BoaVida e o QueridodeDeus andaram para o candomblé do Gantois o Querido era ogã onde Omolu apareceu com suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres no cântico mais lindo que pode haver que em breve a miséria acabaria que ele levaria a bexiga para a casa dos ricos e que os pobres seriam alimentados e felizes Os atabaques tocavam na noite de Omolu E ele anunciava que o dia de vingança dos pobres chegaria As negras dançavam os homens estavam alegres O dia da vingança chegaria Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade pois o BoaVida fora com o QueridodeDeus dançar num bleforé Desceu as ladeiras que o conduziam à cidade baixa Ia devagar como se carregasse um peso dentro de si ia como que curvado por dentro Pensava na conversa da tarde com João de Adão conversa que o alegrara porque ficara sabendo que seu pai fora um homem valente do cais um homem que chegara a deixar uma história Mas João de Adão falara também dos direitos dos doqueiros Pedro Bala nunca tinha ouvido falar naquilo e no entanto fora por estes direitos que seu pai morrera E depois na macumba do Gantois Omolu paramentado de vermelho dissera que odiada vingança dos pobres não tardaria a chegarE isso oprimia o coração de Pedro Bala como aqueles fardos de sessenta quilos oprimem o cangote dos estivadores Quando acabou a descida da ladeira se dirigiu para o areal vontade de ir para o trapiche ver se dormia Um cachorro latiu à sua passagem pensando que ele ia lhe disputar o osso que estava roendo No fim da rua Pedro Bala viu um vulto Parecia uma mulher andava apressada Sacudiu seu corpo de menino como se sacode animal jovem ao ver a fêmea e com passo rápido se aproximou mulher que agora entrava no areal A areia chiava sob os pés e a mulher notou que era seguida Pedro Bala podia vêla bem quando ela passava sob os postes era uma negrinha bem jovem talvez tivesse apenas anos como ele Mas os seios saltavam pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dançassem E o desejo cresceu deu Pedro Bala era um desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia Pensando nas nádegas rebolantes da negrinha pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas Omolu pedindo vingança na noite de macumba Pensava em derrubar a negrinha sobre a areia macia em acariciar seus seios duros talvez seios de virgem sempre seios de menina em possuir seu corpo quente de negra Apressou seus passos porque a negrinha se desviara da rua que cortava o areal e se internara por este se afastando dos postes de iluminação Mas quando ela notou que Pedro Bala estava cada vez mais próximo se lançou para a frente quase correndo Pedro compreendeu que ele ia para uma daquelas ruas perdidas entre o morro e o mar e que se atravessava o areal era para caminho mais curto e com mais facilidade poder fugir dele Ia um silêncio por todo o cais só chiar da areia sob os passos deles fazia estremecer de medo o coração da negrinha e de impaciência o coração de Pedro Bala Mas estava cada vez mais próximo Andava muito mais rápido que a negra e a alcançaria com mais dez passos E ela tinha ainda muito que andar no areal antes de atingir os trapiches e as ruas que ficam além dos trapiches Pedro sorria um sorriso de dentes apertados era igual a um animal feroz caçando no deserto um outro animal para seu almoço Quando já ia levando a mão para tocarem seu ombro e fazer com que ela voltasse o rosto a negrinha começou a correr Pedro Bala se lançou em sua perseguição e logo a alcançou Mas ia a tal velocidade esbarrou nela e ambos rolaram na areia Pedro se levantou de um rindo chegou para o lado dela que procurava se pôr em pé Não precisa lindeza Assim mesmo tá bom O rosto da negrinha era de terror Mas quando viu que seu seguidor era um menino de quinze para dezesseis anos se animou is um pouco e perguntou com raiva Que é que tu quer Deixa de orgulho morena Vamos bater um papozinho E a agarrou pelo braço e novamente a derrubou na areia O medo voltou a possuí la um terror doido Vinha da casa da avó e ia para sua onde mãe e irmãs a esperavamPara que tinha vindo de noite para que se arriscara na areia do cais Não sabia que a Meia das docas é a cama de amor de todos os malandros de todos os ladrões de todos marítimos de todos os Capitães da Areia de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de um corpo na cidade santa da Bahia Ela não sabia disto mal fizera quinze anos havia muito pouco tempo que era mulher Pedro Bala também só tinha quinze anos mas há muito tempo conhecia não só o areal e os seus segredos como os segredos do amor das mulheresPorque se os homens conhecem esses segredos muito antes que as mulheres os Capitães da Areia os conheciam muito antes que qualquer homem Pedro Bala a queria porque há muito sentia os desejos de homem e conhecia as carícias do amor Ela não o queria porque fazia pouco que se tornara mulher e pretendia reservar seu corpo para um mulato que a soubesse apaixonar Não o queria entregar assim ao primeiro que a encontrasse no areal E está com os olhos entupidos de medo Pedro Bala passou a mão na carapinha da negra Tu é um pancadão morena Nós vai fazer um filho lindo Ela lutou por se afastar dele Me deixa Me deixa desgraçado E olhava em torno de si para ver se enxergava alguém a quem gritar a quem pedir socorro alguém que a ajudasse a conservar a sua virgindade que tinham lhe ensinado que era preciosa Mas à noite no areal do cais da Bahia não se vêem senão sombras e não se ouvem mais que gemidos de amor baques de corpos que rolam confundidos na areia Pedro Bala acariciava seus seios e ela no fundo de seu terror começava a sentir um fio de desejo como um fio de água que corre entre montanhas e vai engrossando aos poucos até se transformar em caudaloso rio E isso fez com que crescesse o seu terror Se ela não resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possuísse estaria perdida iria deixar uma mancha de sangue no areal da qual ririam os estivadores na madrugada seguinte A certeza da sua fraqueza lhe deu novo alento e novas forças Baixou a cabeça mordeu a mão de Pedro que segurava seu seio Pedro deu um grito retirou a mão ela se levantou e correu Mas ele a pegou e agora seu desejo estava misturado com raiva Vamos deixar de chovenãomolha e tentava derrubála Deixa eu ir embora desgraçado Tu quer fazer minha desgraça filho da mãe Deixa eu ir embora que não tenho nada com tu Pedro não respondia Conhecia outras que faziam chiquê Em geral porque tinham um amante a esperálas Nem por um momento pensou que a negrinha fosse virgemMas ela resistia e o xingava e mordia batia suas frágeis mãos no peito de Pedro Bala Mas que é que tu viu cabocla Tu pensa que eu vou te deixar antes de tu me dar Deixa de orgulho Teu macho não vai saber ninguém fica sabendo E tu vai ver o que é um homem bom E agora fazia por acariciála queria dominar sua raiva fazer com que ela sentisse desejo Suas mãos desciam ao longo do seu corpo deitoua com esforço Ela agora repetia num refrão Me deixa desgraçado Me deixa desgraçado Ele suspendeu as saias pobres de chita apareceram as duras coxas da negra Mas estavam uma sobre a outra e Pedro Bala tentou separálas A negrinha reagiu de novo mas como o menino a estava acariciando e ela sentiu a chegada impetuosa do desejo não o xingou mais senão que disse num pedido angustioso Me deixa que eu sou virgem Tu pode ser bom não me querer Depois tu encontra outra Eu sou donzela tu vai me fazer mal Ele olhou ela estava chorando de medo e também porque sua vontade estava enfraquecendo seus peitos estavam intumescidos Tu é donzela mesmo Juro por Deus Nosso Senhor pela Virgem beijava os dedos postos em cruz Pedro Bala vacilava Os seios da negrinha intumescidos sob seus dedos As coxas duras a carapinha do sexo Tu tá falando a verdade e não deixava de acariciála Tou juro Deixa eu ir embora minha mãe tá me esperando Chorava e Pedro Bala tinha pena mas o desejo estava solto dentro dele Então propôs ao ouvido da negra e fazia cócegas a língua dele Só boto atrás Não Não Tu fica virgem igual Não tem nada Não Não que dói Mas ele a acarinhava uma cócega subiu pelo corpo dela Começou a compreender que se não o satisfizesse como ele queria sua virgindade ficaria ali E quando ele prometeu novamente sua língua a excitava no ouvido se doer eu tiro ela consentiu Tu jura que não vai na frente Juro Mas depois que tinha se satisfeito pela primeira vez e ela gritara e mordera as mãos vendo que ela ainda estava possuída pelo desejo tentou desvirginálaMas ela sentiu e saltou como uma louca Tu não te contenta desgraçado com o que me fez Tu quer me desgraçar E soluçava alto e levantava os braços estava como uma louca toda sua defesa eram seus gritos suas lágrimas suas imprecações contra o chefe dos Capitães da Areia Mas para Pedro a maior defesa da negrinha eram os olhos cheios de pavor olhos de animal mais fraco que não tem forças para se defender E como seu maior desejo fosse satisfizera e como aquela angústia do princípio da noite voltava a dominálo ele falou Se eu te deixar tu volta amanhã Volto sim Sô faço o que fiz hoje Te deixo donzela Ela fez que sim com a cabeça Seus olhos estavam iguais aos de um doido e naquele momento só sentia dor e pavor vontade de fugir Agora que as mãos dele os lábios dele o sexo de Pedro não tocavam mais nas carnes dela seu desejo desaparecera e pensava unicamente em defender sua virgindade Respirou quando ele disse Então tu pode ir Mas se tu não voltar amanhã Quando eu te pegar tu vai ver com quantos paus se faz uma cangalha Ela começou a andar sem nada responder Mas o menino a acompanhou Vou te levar para um malandro não lhe pegar Foram os dois e ela chorava Ele quis pegar na mão dela ela não deixou e se afastou dele Ele tentou novamente novamente ela retirou a mão Então ele disse Que diabo é isso E foram de mãos dadas Ela chorava e aquele choro foi angustiando Pedro Bala foi fazendo com que voltasse sua inquietação do começo da noite a visão de seu pai morrendo na luta a visão de Omolu anunciando vingança Começou a maldizer intimamente o encontro da cabrocha e apressou o passo para chegar quanto antes ao começo da rua Ela soluçava e ele falou com raiva Que foi que tu teve Tu não teve nada Ela apenas o olhou e seus olhos apesar de ainda ir com ele e ainda estar apavorada estavam cheios de ódio e desprezo Pedro baixou a cabeça não sabia o que dizer não tinha mais desejo nem raiva só tristeza no seu coração Ouviram a música de um samba que um homem cantava na rua Ela soluçou mais alto ele foi chutando a areia Agora se sentia mais fraco que ela a mão da negrinha pesava na sua como se fosse chumbo Largou a mão ela se afastou dele Pedro não protestou Queria não a ter encontrado não ter também João de Adão nem ter ido ao Gantois Chegaram na rua ele disse Agora tu pode ir ninguém te faz mal Ela olhou novamente com ódio deitou a correr Mas na esquina mais próxima parou virou para ele que ainda olhava e rogou praga com uma voz que o encheu de medo Peste fome e guerra te acompanha desgraçado Deus te castiga desgraçado Filho de uma mãe desgraçado desgraçado sua voz solitária atravessa a rua abalava Pedro Bala Ela antes de desaparecer na esquina cuspiu no chão num supremo desprezo e ainda repetiu Desgraçado Desgraçado Primeiro ele ficou parado depois deitou a correr no areal ia como se os ventos o açoitassem como se fugisse das pragas da negrinha E tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação a vontade de se vingar dos homens que tinham matado seu pai o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do outro lado do mar na Barra na Vitória na Graça o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida a pena que sentia pela pobre negrinha uma criança também Uma criança também ouvia na voz do vento no samba que cantavam uma voz dizia dentro dele Aventura de Ogum Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu carregado de nuvens negras e pesadas Pedro Bala o SemPernas e João Grande foram levar a mãedeSanto DonAninha até sua casa distante Ela viera ao trapiche pela tarde precisava de um favor deles e enquanto explicava a noite caiu espantosa e terrível Ogum esta zangado explicou a mãedeSanto DonAninha Fora este assunto que trouxera ali Numa batida num candomblé que se bem não fosse o seu porque nenhum polícia se aventurava a dar batida no candomblé de Aninha estava sob a sua proteção a polícia tinha carregado com Ogum que repousava no seu altar DonAninha tinha usado da sua força junto a um guarda para conseguir a volta do santo fora mesmo à casa de um professor da Faculdade de Medicina seu amigo que vinha estudar a religião negra no seu candomblé pedir que ele conseguisse a restituição do deus O professor realmente pensava em conseguir que a policia lhe entregasse a imagem Mas para juntar à sua coleção de ídolos negros e não para reintegrála no seu altar no candomblé distante Por isso por estar Ogum numa sala de detidos na polícia Xangô descarrega os raios nessa noite Por último DonAninha veio aonde estavam os Capitães da Areia seus amigos de há muito porque são amigos da grande mãedesanto todos os negros e todos os pobres da Bahia Para cada um ela tem uma palavra amiga e materna Cura doenças junta amantes seus feitiços matam homens ruins Explicou que tinha acontecido a Pedro Bala O chefe dos Capitães da Areia ia pouco aos candomblés como pouco ouvia as lições do padre José Pedro Mas era amigo tanto do padre como da Mãedesanto e entre os Capitães da Areia quando se é amigo se serve ao amigo Agora levavam Aninha para sua casa A noite em torno era tormentosa e colérica A chuva os curvava sob o grande guardachuva branco da Mãedesanto Os candomblés batiam em desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos deles Omolu anunciasse a vingança do povo pobre DonAninha disse aos meninos com uma voz amarga Não deixam os pobres viver Não deixam nem o deus dos pobres em paz Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus sua voz era amarga uma voz que não parecia da mãedesanto DonAninha Não se contentam de matar os pobres a fome Agora tiram os santos dos pobres alçava os punhos Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si Os pobres não tinham nada O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus onde Deus seria igual para todos Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo No reino do céu seriam iguais Mas já tinham sido desiguais na terra a balança pendia sempre para um lado As imprecações da mãedesanto enchiam a noite mais que o ruído dos agogôs e atabaques que desagravavam Ogum DonAninha era magra e alta um tipo aristocrático de negra e sabia levar como nenhuma das negras da cidade suas roupas de baiana Tinha o rosto alegre se bem bastasse um olhar seu para inspirar absoluto respeito Nisso se parecia com o padre José Pedro Mas agora estava com um ar terrível e suas imprecações contra os ricos e a polícia enchiam a noite da Bahia e o coração de Pedro Bala Quando a deixaram rodeada das suas filhasdesanto que beijavam sua mão Pedro Bala prometeu Deixa estar mãe Aninha que amanhã te trago Ogum Ela bateu a mão na cabeça loira dele sorriu João Grande e o SemPernas beijaram a mão da negra Desceram a ladeira Os agogôs e atabaques ressoavam desagravando Ogum O SemPernas não acreditava em nada mas devia favores a DonAninha Perguntou O que é que a gente vai fazer O troço está na polícia João Grande cuspiu estava com certo receio Não chame Ogum de troço SemPernas Ele castiga Tá preso não pode fazer nada riu o SemPernas João Grande calou a boca porque sabia que Ogum era grande demais mesmo na cadeia podia castigar o SemPernas Pedro Bala coçou o queixo pediu um cigarro Deixa eu matutar A gente tem que dar conta A gente garantiu a Aninha Agora tem que fazer Desceram para o trapiche A chuva entrava pelos buracos do teto a maior parte dos meninos se amontoavam nos cantos onde ainda havia telhado O Professor tentara acender sua vela mas o vento parecia brincar com ele apagavaa de minuto a minuto Afinal ele desistiu de ler essa noite e ficou peruando um jogo de seteemeio que o Gato bancava ajudado por BoaVida num canto Moedas no chão mas nenhum rumor desviava Pirulito das suas orações diante da Virgem e de Santo AntônioNestas noites de chuva eles não podiam dormir De quando em vez a luz de um relâmpago iluminava o trapiche e então se viam as caras magras e sujas dos Capitães da Areia Muitos deles eram tão crianças que temiam ainda dragões e monstros lendários Se chegavam para junto dos mais velhos que apenas sentiam frio e sono Outros os negros ouviram no trovão a voz de Xangô Para todos estas noites de chuva eram terríveis Mesmo para o Gato que tinha uma mulher em cujo seio escondia a jovem cabeça as noites de temporal eram noites más Porque nestas noites homens que na cidade não têm onde reclinar a sua cabeça amedrontada que não têm senão uma cama de solteiro e querem esconder num seio de mulher o seu temor pagavam para dormir com Dalva e pagavam bem Assim o Gato ficava no trapiche bancando jogos com seu baralho marcado ajudado na roubalheira pelo BoaVida Ficavam todos juntos inquietos mas sós todavia sentindo que lhes faltava algo não apenas uma cama quente num quarto coberto mas também doces palavras de mãe ou de irmã que fizessem o temor desaparecer Ficavam todos amontoados e alguns tiritavam de frio sob as camisas e calças esmolambadas Outros tinham paletós furtados ou apanhado sem lata de lixo paletós que utilizavam como sobretudo O Professor tinha mesmo um sobretudo de tão grande arrastava no chão Uma vez e era no verão um homem parara vestido com um grosso sobretudo para tomar um refresco numa das cantinas da cidade Parecia um estrangeiro Era pelo meio da tarde e o calor doía nas carnes Mas o homem parecia não sentilo vestido com seu sobretudo novo O Professor achou o homem engraçado e com cara de sujeito de dinheiro e começou a fazer um desenho dele com o sobretudo enorme maior que o homem era o próprio homem o sobretudo a giz no passeio E ria de satisfação porque provavelmente o homem lhe daria uma prata de dois milréis O homem voltouse na sua cadeira e olhou o desenho quase concluído O Professor ria achava o desenho bom o sobretudo dominando o homem era mais que o homem Mas o homem não gostou da coisa se deixou possuir por uma grande raiva levantouse da cadeira e deu dois pontapés no Professor Um atingiu o menino nos rins e ele rolou pela calçada gemendo O homem ainda meteu o pé no seu rosto dizendo congestionado ao se afastar Toma corneta para aprender a não fazer burla de um homem E saiu batendo moedas na mão após meio apagar com o pé o desenho A garçonete veio e ajudou o Professor a se levantar Olhou com piedade o menino que apalpava o lugar dos rins doloridos olhou o desenho disse Que bruto Até que o retrato estava parecido Um estúpido Meteu a mão no bolso onde guardava as gorjetas tirou uma prata de um milréis quis dar ao Professor Mas ele recusou com a mão sabia que ia fazer falta a elaOlhou o desenho semiapagado seguiu seu caminho ainda com as mãos nos rins Ia quase sem pensar com um nó na garganta Ele quisera agradar o homem merecer uma prata dele Tivera dois pontapés e palavras brutais Não compreendia Por que eram odiados assim na cidade Eram pobres crianças sem pai sem mãe Por que aqueles homens bem vestidos tanto os odiavam Foi com sua dor Mas aconteceu que no caminho para o trapiche no deserto do areal sob o sol encontrou novamente minutos depois o homem de sobretudo Parecia que ia para um dos navios atracados no porto e levava agora o sobretudo no braço porque o sol estava abrasador Professor tirou a navalha poucas vezes a usava e se aproximou do homem O calor tinha alijado do areal todos os homens e o do sobretudo cortava pela areia para fazer o caminho mais curto para o cais O Professor foi silenciosamente por detrás do homem quando chegou perto tomou a frente com a navalha na mão A vista do homem tinha transformado a confusão de seus sentimentos num único sentimento vingança O homem o olhou aterrorizado 0 Professor crescia em sua frente com a navalha aberta Murmurou entre dentes Sai moleque O Professor avançou com a navalha o homem ficou branco Que é isso Que é isso e mirava todos os lados na esperança de ver alguém Mas só ao longe nas docas apareciam perfis de homens Então o do sobretudo largou a correr quando o Professor saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha O sobretudo ficou abandonado no chão e o sangue caía da mão do homem na areia O Professor tomou pelo outro lado ficou um instante sem saber que fazer Não tardaria a vir um guarda logo muitos acompanhando o homem em sua perseguição Se o navio do homem saísse logo tudo estava bem a perseguição pouco demoraria Mas se tardasse a sair com certeza o homem o perseguiria até dar com ele e pôlo no xadrez Então o Professor lembrouseda garçonete Caminhou para a cantina do jardim que ficava em frente fez sinal para a garçonete Ela veio e logo compreendeu quando o viu com o sobretudo O Professor avisou Ele tá com um talho na mão Ela riu Tu te vingou hein Levou o sobretudo para a cantina guardou O Professor sumiu até que o navio saiu barra afora Mas de onde estava viu a batida dos guardas pelo areal e pelas ruas adjacentes Foi assim que o Professor tinha conseguido aquele sobretudo que nunca quis vender Adquirira um sobretudo e muito ódio E tempos depois quando as suas pinturas murais admiraram todo o país eram motivos de vidas de crianças abandonadas de velhos mendigos de operários e doqueiros que rebentavam cadeias notaram que nelas os gordos burgueses apareciam sempre vestidos com enormes sobretudos que tinham mais personalidade que eles próprios Pedro Bala João Grande e o SemPernas entraram no trapiche Foram para o grupo que jogava em torno ao Gato Quando eles chegaram o jogo parou um momento o Gato ficou espiando os três Quer topar um seteemeio Tou com cara de besta respondeu o SemPernas João Grande sentou para espiar Pedro Bala se afastou com o Professor para um canto Queria combinar uma maneira de roubar a imagem de Ogum da polícia Discutiram parte da noite e já eram onze horas quando Pedro Bala antes de sair falou para todos os Capitães da Areia Minha gente eu vou fazer um troço difícil Se eu não aparecer até de manhã vocês fica sabendo que eu tou na polícia e não demoro a tá no reformatório até fugir Ou até vocês me tirar de lá E saiu João Grande o acompanhou até a porta O Professor veio para junto do Gato novamente Os menores olhavam a partida do chefe com certo receio Tinham uma grande confiança em Pedro Bala e sem ele muitos não saberiam como se arranjar Pirulito veio do seu canto deixara uma oração pelo meio O que foi Pedro foi fazer um troço difícil Se não voltar de manhã é que tá na chave A gente tira ele respondeu Pirulito naturalmente e nem parecia que minutos antes estava ante um quadro da Virgem rezando pela salvação da sua pequena alma de ladrão E voltou aos seus santos a rezar por Pedro Bala O jogo recomeçou Chuva e raios trovões e nuvens no céu O frio intenso no trapiche Gotas de água caíam sobre os meninos que jogavam Mas o jogo agora era sem atenção o próprio Gato se esquecia de ganhar havia como que uma confusão em todo o trapiche Durou até que Professor disse Eu vou ver as coisas João Grande e o Gato foram com ele Nesta noite foi Pirulito que se deitou na porta do trapiche com o punhal sob a cabeça E perto dele Volta Seca espiava a noite com sua cara sombria E pensava em que lugar estaria nesta noite de temporal o grupo de Lampião na imensidade das caatingas Talvez que nessa noite de temporal lutassem com a polícia como ia fazer agora Pedro Bala E Volta Seca pensou que quando Pedro Bala fosse grande como um homem seria tão corajoso como Lampião Lampião era o dono do sertão das caatingas sem fim Pedro Bala seria dono da cidade do casario das ruas do cais E Volta Seca que era do sertão poderia andar nas caatingas e nas cidades Porque Lampião era seu padrinho e Pedro Bala seu amigo Imitou o cocorocó de um galo e isso era sinal de que Volta Seca estava alegre Pedro Bala enquanto subia a ladeira da Montanha revia mentalmente seu plano Fora arquitetado com a ajuda do Professor e era a coisa mais arriscada em que se metera até hoje Mas DonAninha bem que merecia que um corresse risco por ela Quando tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas tratava dele muitas vezes curava E quando aparecia um Capitão da Areia no seu terreiro ela o tratava como a um homem como a um ogã davalhe do melhor para comer do melhor para beber O plano era arriscado possivelmente não daria certo Pedro Bala comeria cadeia uns dias e terminaria remetido para o reformatório onde a vida era pior que vida de cão Mas havia uma possibilidade de dar certo e Pedro Bala jogaria tudo nesta possibilidade Chegou ao largo do Teatro A chuva caía e os guardas se abrigavam sob as capas Começou a subir a ladeira de São Bento vagarosamente Tomou por São Pedro atravessou o largo da Piedade subiu o Rosário agora estava nas Mercês diante da Central de Policia olhando as janelas o movimento de guardas e secretas que entravam e safam De minuto em minuto um bonde passava fazendo ruídos nos trilhos iluminando ainda mais a rua já bastante iluminada O guarda amigo de DonAninha tinha dito que Ogum estava na sala de detidos jogado sobre um armário em meio a diversos outros objetos apreendidos em batidas várias em casas de ladrões Naquela sala colocavam os que eram presos durante a noite antes de serem ouvidos ou pelo delegado ou pelos comissários de turno e que depois ou eram remetidos para as prisões ou para a rua Ali num canto a princípio dentro de um armário que logo se encheu depois junto ou sobre ele colocavam objetos sem valor apreendidos nas batidas policiais O plano de Pedro Bala era passar a noite ou parte dela na sala de detidos e levar ao sair se conseguisse sair a imagem de Ogum consigo Tinha uma grande vantagem não era conhecido entre a polícia Mesmo só raros guardas o conheciam como moleque das ruas se bem todos os guardas e mesmo alguns investigadores desejassem ardentemente capturar o chefe dos Capitães da Areia Sabiam dele apenas que tinha aquele talho no rosto e Pedro Bala passou a mão no talho Mas o pensavam maior do que era em verdade e também faziam a idéia de que Pedro Bala devia ser mulato e de mais idade Se chegassem a descobrir que ele era o chefe dos Capitães da Areia talvez nem para o reformatório o mandassem Muito provavelmente iria diretamente para a penitenciáriaPorque do reformatório se consegue fugir mas da penitenciária não é fáciL Enfim e Pedro Bala andou até o Campo Grande Mas já não ia com aquele seu passo despreocupado de moleque das ruas da cidade Ia agora gingando como um filho de marítimo o boné puxado por causa da chuva a gola do paletó devia ter sido anteriormente de um homem muito grande levantada O guarda estava debaixo de uma árvore por causa da chuva Pedro veio chegando assim como quem tem medo E quando falou ao guarda sua voz era a de uma criança que estava temerosa da noite tempestuosa da cidade Seu guarda O guarda olhou O que é moleque Eu não sou daqui Eu sou de Mar Grande vim com meu pai hoje O guarda não deixou que ele continuasse E o que tem isso Eu não tenho onde dormir Queria que o senhor deixasse eu dormir na polícia A policia não é hotel malandro Desaperta desaperta e fez sinal para que Pedro se afastasse Pedro tentou novamente puxar conversa mas o guarda o ameaçou com o cassetete Vai dormir num jardim Vai embora Pedro saiu com cara de choro O guarda ficou espiando o menino Pedro parou no ponto de bonde esperou Do primeiro carro não desceu ninguém mas do segundo saltou um casal Pedro se atirou em cima da mulher o homem viu que ele queria abafar a carteira dela segurou Pedro por um braço A coisa fora tão mal feita que se um dos Capitães da Areia passasse ali sem dúvida não reconheceria o seu chefe O guarda que via acena já estava junto a eles Então era assim que você não era daqui Um moleque ladrão Se afastou levando Pedro pelo braço O menino ia com uma cara entre amedrontada e risonha Só fiz isso pro senhor me pegar mesmo Hein Tudo que eu disse é verdade Meu pai é marítimo tem um saveiro em Mar Grande Hoje me deixou aqui não voltou com o temporal Eu não sei onde dormir pedi pra dormir na polícia O senhor não deixou eu fiz que ia roubar a mulher só pro senhor me pegar Agora tenho onde dormir E por muito tempo foi a única resposta do guarda Entraram na Central O guarda atravessou um corredor largou Pedro Bala na sala dos detidos Havia uns cinco ou seis homens O guarda disse troçando Agora você pode dormir filho da mãe E depois que o comissário chegar vamos ver quanto tempo você vai dormir aqui Pedro ficou calado Os outros presos nem ligavam para ele estavam muito interessados em fazer troça com um pederasta que tinha sido preso e se dizia chamar MariazinhaA um canto Pedro Bala viu o armário A imagem de Ogum estava ao lado junto de uma cesta para papéis inúteis Pedro se adiantou para ali tirou o paletó pôs sobre a imagem E enquanto os outros conversavam enrolou Ogum não era grande havia outras imagens muito maiores no seu paletó e deitouse no chão Pôs a cabeça sobre o embrulho e fez que dormia Os presos daquela noite continuavam a rir com o pederasta exceto um velho que tremia num canto Pedro não sabia se de frio ou de medo Mas ouvia a voz de um negro jovem que dizia a Mariazinha Quem tirou teu cabaço Ora me deixe respondeu o pederasta rindo Não Conta Conta disseram os outros Ah Foi Leopoldo Ah O velho continuava a tremer Um malandro de cara chupada pela tísica percebeu o velho no canto Tu por que não vai te enrabar com aquele velhote perguntou a Mariazinha que fez bico Não tá vendo logo que não me passo pra velho Olhe não quero mais conversa não Agora um guarda gozava na porta e o de cara chupada se virou para o velho que se encolheu todo Mas tu bem que gostava se ele lhe desse hoje hein tio Eu sou um velho Eu não fiz nada murmurou o velho mais que falou Não fiz nada minha filha está me esperando Pedro que estava de olhos fechados adivinhou que o velho chorava Mas continuou fingindo que estava dormindo Ogum doía nos ossos da sua cabeça Os presos continuavam a pilheriar com o pederasta e o velho até que chegou outro guarda e falou para o velho Você velhote Vamos Eu não fiz nada falou mais uma vez o velho Minha filha está me esperando se dirigia a todos guardas e presos E tremia tanto que todos tiveram pena e até o malandro de cara chupada baixou a cabeça Só o pederasta sorria O velho não voltou Depois foi o pederasta Demorou muito O de cara chupada explicava que Mariazinha era de boa família Naturalmente estavam telefonando para casa dele pedindo que o viessem buscar para não terem que o prender de novo naquela noite De quando em vez quando tomava cocaína demais dava escândalos na rua e era trazido por um guarda Quando Mariazinha voltou foi só para pegar o chapéu Então viu Pedro Bala deitado e disse Tão novinho este Mas é um amorzinho Pedro cuspiu de olhos fechados Sai xibungo antes que eu te pranche a cara Os outros riram e só então atentaram em Pedro Que é que tu tá fazendo aqui rato de igreja O que não é da tua conta macaqueio respondeu Pedro Bala ao de cara chupada Até o guarda riu e explicou para os outros a história de Pedro Mas o negro jovem foi chamado e eles ficaram silenciosos Sabiam que o negro tinha esfaqueado um homem num breforé nesta noite Quando o preto voltou trazia as mãos inchadas dos bolos Explicou Disse que vou ser processado por ferimentos leves E me dero duas dúzia Não conversou mais procurou um canto se arriou Os outros também ficaram calados E foram indo um por um para o despacho do comissário Uns eram postos em liberdade outros iam para o calabouço outros voltavam apanhados O temporal cessara e a madrugada chegava Pedro foi o último a ser chamado Deixou o paletó onde enrolara Ogum O comissário era um jovem advogado que reluzia um rubi no dedo e um charuto no queixo Quando Pedro entrou com o guarda pedia café em voz alta Pedro ficou diante da escrivaninha parado O guarda disse Esse é o menino do roubo no Campo Grande O comissário fez um sinal com a mão Veja se esse café sai ou não sai O guarda retirouse O comissário leu a parte do guarda que prendera Pedro Bala olhou o menino O que é que você tem a dizer E não venha me mentir não Pedro contou com uma voz amedrontada uma história comprida Que seu pai era saveirista em Mar Grande e naquele dia pela manhã viera com o saveiro e o trouxera Mas voltara em seguida para buscar outra carga e o deixara na cidade passeando porque o saveiro tornaria à Bahia ainda à tardinha e então ele poderia voltar com seu pai Mas com o temporal seu pai não tinha podido voltar e ele que não conhecia ninguém ficou na chuvas em ter onde dormir Perguntou a um homem na rua onde poderia dormir o homem respondera que na polícia Então ele pedira ao guarda que o levasse a dormir na policia o guarda não deixara ele fizera então que ia furtar a mulher só para ser levado para poder dormir sob um teto Tanto que não roubei e nem fugi concluiu O delegado que sorvia o café em golinhos disse de si para si Não é possível que uma criança desta idade inventasse essa história Depois como tinha veleidades literárias murmurou Eis aí um conto formidável e sorriu com bom humor Como é o nome de teu pai perguntou a Pedro Augusto Santos respondeu o menino dando o nome de um saveirista de Mar Grande Se o que você contou for verdade eu vou lhe soltar Mas se você quis me tapear com essa história vai ver Tocou a campainha chamando o guarda Pedro estava com os nervos todos em tensão O guarda chegou o comissário perguntou se na polícia havia um livro de registro de saveiristas de Mar Grande que ancoravam no cais do Mercado Tem sim senhor Vá ver se tem um tal Augusto Santos e volte para me dizer E ande depressa que minha hora está acabando Pedro Bala olhou para o relógio marcava cinco e meia da manhã O guarda demorou uns minutos o comissário não se ocupou mais de Pedro que estava de pé ante sua secretária Só quando o guarda voltou e disse Tem sim senhor Hoje mesmo teve no cais mas voltou logo o comissário fez um gesto com a mão e falou para o guarda Ponha esse moleque em liberdade Pedro pediu para ir buscar seu paletó Acomodou debaixo do braço nem parecia trazer a imagem envolvida nele Atravessaram o corredor novamente o guarda o deixo una porta Pedro tomou para o largo dos Aflitos rodeou o velho quartel desabou pela Gamboa de Cima Agora ia correndo mas ouviu passos atrás de si Parecia que o perseguiam Olhou Professor João Grande e o Gato vinham atrás dele Esperou que eles chegassem e perguntou curioso Que é que vocês tava fazendo por estas bandas O Professor coçou a cabeça Não vê que a gente saiu agora cedo E velo vindo por aqui andando sem que fazer foi quando topou com tu que vinha desabalado Pedro abriu o paletó mostrou a imagem de Ogum João Grande riu com satisfação Como foi que tu tapeou eles Foram descendo a ladeira escorregadia da chuva E Pedro Bala ia narrando as aventuras da noite O Gato perguntou Tu não teve nem um pingo de medo Primeiro Pedro Bala pensou em dizer que não depois confessou Pra falar verdade tive um cagaço da desgraça E riu da cara gozada que João Grande fazia O céu agora estava azul sem nuvens o sol brilhava e da ladeira eles viam os saveiros que partiam do cais do Mercado Deus sorri como um negrinho O menino era tentação por demais grande Nem parecia um meiodia de inverno O sol deixava cair sobre ruas uma claridade macia que não queimava mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher No jardim próximo as flores desabrochavam em cores Margaridas e onzehoras rosas e cravos dália e violetas Parecia haver na rua um perfume bom muito sutil mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagálo Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete A criada que lhe trouxera o prato cheio dissera mirando as ruas o sol de inverno os homens que passavam sem capa Tá fazendo um dia lindo Essas palavras foram com Pirulito pela rua Um dia lindo e o menino ia despreocupado assoviando um samba que lhe ensinara o QueridodeDeus recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para 1he conseguir um lugar n o seminário Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus Pirulito mirou o céu azul onde Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia Eles furtavam brigavam nas ruas xingavam nomes derrubavam negrinhas no areal por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias Mas no entanto eram bons uns eram amigos dos outros Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa nem pai nem mãe a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome porque eram raras as casas que davam de comer a um de vestir a outro E nem toda a cidade poderia dar a todos Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno Pedro Bala não acreditava no inferno Professor tampouco riam dele João Grande acreditava era em Xangô em Omolu nos deuses dos negros que vieram da África O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturavaos com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição que era coisa errada mas que a culpa não era deles Pirulito se entristeceu na beleza do dia Estariam todos condenados ao inferno O inferno era um lugar de fogo eterno era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava E no inferno havia martírios desconhecidos mesmo na polícia mesmo no reformatório de menores Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade Nos bancos homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto ao manejo do punhal e da navalha Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade a suprema justiça E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentosSua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado de furtos quase diários de mentiras nas portas das casas ricasPor isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom mas não tão justo também pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia Mesmo porque eles não tinham culpa A culpa era da vida O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para remediar a vida deles pois sabia que era a única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa Porém uma tarde em que estava o padre e estava o João de Adão o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal organizada era dos ricosQue enquanto tudo não mudasse os meninos não poderiam ser homens de bem E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque ricos não deixariamO padre José Pedro naquele dia tinha ficado muito triste e quando Pirulito o foi consolar explicando que ele não ligasse ao que João de Adão dizia o padre respondeu balançando a cabeça magra Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão que isso tudo está errado Mas Deus é bom e saberá dar o remédio Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudálos E como não encontrava meios e sim uma barreira na sua frente todos queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminosos ou como crianças iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família ficava como que desesperado por vezes ficava atarantadoMas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando meninos conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para extermina pederastia no grupo E isto foi uma das suas grandes experiências sentido de como agir para tratar com os Capitães da Areia Enquanto ele lhes disse que era necessário acabar pecado uma coisa imoral e feia os meninos riram nas suas costa e continuaram a dormir com os mais novos e bonitos Mas no dia e que o padre desta vez ajudado pelo QueridodeDeus afirmou que aquilo era coisa indigna num homem fazia um homem igual a uma mulher pior que uma mulher Pedro Bala tomou medidas violentas expulsou os passivos do grupo E por mais que o padre fizesse não quis mais ali Se eles voltar a safadeza volta padre Por assim dizer Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas Mas ia tenteando e por vezes sorna satisfeito dos resultados A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo Lá em cima na cidade alta os homens ricos e as mulheres queriam que os Capitães da Areia fossem para as prisões para o reformatório que era pior que as prisões Lá embaixo nas docas João de Adão queria acabar com os ricos fazer tudo igual dar escola aos meninos O padre queria dar casa escola carinho e conforto aos meninos sem a revolução sem acabar com os ricos Mas de todos os lados era uma barreira Ficava como perdido e pedia a Deus que o inspirasse E com certo pavor via que quando pensava no problema dava sem sequer o sentir razão ao doqueiro João de Adão Então era possuído de temor porque não fora assim que lhe haviam ensinado e rezava horas seguidas para que Deus o iluminasse Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho sem tremer até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus do céu de Cristo da bondade e da piedade Pirulito começou a mudar Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro E se voltou de todo para Deus ouvia a voz de Deus rezava ante os quadros que o padre lhe dera No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche Ele espancou um dos menores os outros se calaram No outro dia o padre disse que ele fizera mal que era preciso sofrer por Deus e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino a que espancara E não espancara mais nenhum evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham não tinham mesmo outro Pirulito sentia o chamado de Deus que era intenso e queria sofrer por Deus Ajoelhava horas e horas no trapiche dormia no chão nu rezava mesmo quando o sono o queria derrubar fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais Mas então amava Deuspurabondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na terra Depois veio aquela revelação de Deus justiça para Pirulito ficou Deusvingança e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus Suas orações foram mais longas o terror do inferno se misturava à beleza de Deus Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus viver só para a sua contemplação viver só para EleA bondade de Deus fazia com que ele esperasse conseguílo O temor de Deus vingandose dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meiodia cheia de beleza O sol é brando e claro as flores desabrocham no jardim vem uma calma e uma paz de todos os lados Mas mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino que está na prateleira daquela loja de uma só porta Na vitrina quadros de santos livros de orações em encadernações luxuosas terços de ouro relicários de prata Mas dentro bem na ponta da prateleira que chega até a porta a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus Deus criança e nu pobre como Pirulito O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino mostrálo aos homens gordos e ricos Por isso a imagem está ali e não se vende O Menino nas imagens é sempre gordo um ar de menino rico um Deus Rico Ali é um Deus Pobre um menino pobre mesmo igual a Pirulito ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente igual a um de colo de poucos meses de idade que fico abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque quando levava nos braços e que João Grande trouxe para o trapiche onde ficou até o fim da tarde os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do Grande afobados para arranjar leite e água para o bebê quando a mãedesanto DonAninha viera e o levara consigo recostado ao seu seio Só que aquele era um menino negro e o Menino branco No mais a parecença é absoluta Até uma cara de choro tem o Menino magro e pobre nos braços da Virgem E esta o oferece Pirulito aos carinhos de Pirulito ao amor de Pirulito Lá fora o dia é lindo o sol é brando as flores desabrocham Só o Menino tem for e frio neste dia Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia Rezará para ele cuidará dele o alimentará com seu amor Não vêem que ao contrário de todas as imagens ele não está preso nos braços da Virgem está solto nas suas mãos ela o está oferecendo carinho de Pirulito Ele dá um passo Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses pintando os lábios com uma nova marca de batom É facílimo levar o Menino Pirulito estende o pé noutro passo mas o temor de Deus o assalta E fica parado pensando Ele tinha jurado a Deus no seu temor que só furtaria para comer ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo um assalto para o qual fosse indicado por Pedro Bala Porque ele pensava que trair as leis nunca tinham sido escritas mas existiam na consciência de cada um deles dos Capitães da Areia era um pecado também E agora ia furtar só para ter o Menino consigo alimentálo com seu carinho Era um pecado não era para comer para matar o frio nem para cumprir as leis do grupo Deus era justo e o castigaria lhe daria o fogo do inferno Suas carnes arderiam suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava O Menino era do dono da loja Mas o dono da loja rinha tantos Meninos e todos gordos e rosados não iria sentir falta de um só e de um magro e friorento Os outros estavam como ventre envolto em panos caros sempre panos azuis mas de rica fazenda Este estava totalmente nu tinha frio no ventre era magro nem do escultor tivera carinhoE a Virgem o oferecia a Pirulito o Menino estava solto nos braços dela O dono da loja tinha tantos Meninos tantos Que falta lhe faria este Talvez nem se importasse talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender que estava solto nos braços da Virgem diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas Este não Ele é tão feio Deus me perdoe E ainda por cima solto dos braços de Nossa Senhora Cai no chão e pronto Esse não E o Menino ia ficando A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam mas ninguém o queria As beatas não queriam leválo para seus oratórios onde havia Meninos calçados de sandálias de ouro com coroa de ouro na cabeça Só Pirulito viu que o Menino tinha fome e sede tinha frio também e quis leválo Mas Pirulito não tinha dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas Pirulito podia leválo consigo podia dar ao Menino que comer que beber que vestir tudo tirado do seu amor a Deus Mas se o fizesse Deus o castigaria o fogo do inferno comeria durante uma vida que nunca acabava suas mãos que levassem o Menino sua cabeça que pensava em levar o Menino Então Pirulito lembrouse que só o pensar já era pecado Que se pecava só de pensar em cometer o pecado O frade alemão dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sabia porque estava pecando com o pensamento Pirulito estava pecando sentiu que estava pecando teve medo de Deus e deitou a correr para não continuar a pecar Mas não correu muito ficou na esquina pôde se afastar para longe da imagem Olhou outras vitrines assim não pecava Meteu as mãos no bolso prendia as mãos desviou pensamento Mas agora os homens que volviam ao trabalha após o almoço passavam na sua frente e um pensamento o assaltou dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam e então seria impossível levar o Menino Seria impossível E Pirulito voltou a frente da loja de objetos religiosos Lá estava o Menino e a Virgem o oferecia a Pirulito Um relógio deu a primeira hora da tarde Não tardariam a voltar os outros empregados Quantos seriam Mesmo que fosse somente um a loja era tão pequena que ficaria impossível levar o Menino Parece que é a Virgem que está lhe dizendo isso Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino agora não o poderá levar mais parece que está mesmo dizendo isso E com certeza foi ela sim foi ela quem com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha Sim foi a Virgem que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz Leve e cuide deleCuide bem Pirulito avança Vê o inferno o castigo de Deus suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão recebe o Menino que a Virgem lhe entrega o encosta ao peito e desaparece na rua Não olha o Menino Mas sente que agora encostado ao seu peito o Menino sorri não tem mais fome nem sede nem frio Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito Assim sorri o Menino Família Foi BoaVida que contou a Pedro Bala que naquela casa da Graça tinha coisa de ouro de fazer medo O dono da casa pelo jeito parecia colecionador o BoaVida tinha ouvido um malandro dizer que na casa havia uma sala entupida de objetos de ouro e prata que no emprego haviam de dar uma fortuna À tarde Pedro Bala foi como BoaVida ver a casa Era um prédio moderno e elegante jardim na frente garagem ao fundo espaçosa residência de gente rica O BoaVida cuspiu por entre os dentes desenhando uma flor no passeio com o cuspe e disse E dizer que nesse mundo só mora dois velhos hein Toca batuta comentou Pedro Bala Uma empregada abriu a porta da frente saiu para o jardim No hall que ficou à vista eles perceberam quadros pela parede estatuetas sobre as mesas Pedro Bala riu Se o Professor visse isso ficava doidinho Nunca vi tanto pegadio com livro e pintura Ele vai fazer uma pintura como eu deste tamanho e BoaVida mostrava o tamanho separando as mãos uma da outra Pedro Bala olhou mais uma vez a casa se acercou um pouco do jardim assoviando A empregada colhia flores e os seios alvos apareciam sob o decote pois ela estava curvada Pedro Bala espiou Eram seios alvos terminando em bicos vermelhos BoaVida suspirou ao seu lado Que montanha Bala Cala a boca Mas a empregada já os vira e os olhava como a perguntar o que desejavam Pedro Bala sacou o boné e pediu Podia dar uma caneca de água à gente por favor O sol encalistrando e sorria limpando com o boné a testa onde o suor corria Estava muito vermelho sob o sol seus cabelos loiros crescidos desabando sobre as orelhas em ondas maltratadas e a empregada mirou com simpatia Ao lado BoaVida fumava uma ponta de charuto com um pé em cima da gradezinha do jardim A criada primeiro falou para BoaVida com desprezo Tira esta pata daí de cima Depois sorriu para Pedro Bala Trago a água já Voltou com dois copos dágua e eram copos como eles nunca tinham visto de tão bonitos Beberam a água Pedro Bala agradeceu Muito obrigado e baixinho lindeza A empregada falou também baixinho Frangote atrevido Que hora tu sai daqui Te repara Tenho meu homem Ele me espera às nove horas da noite naquela esquina Pois hoje tou na outra Saíram pela rua BoaVida fumando sua ponta de charuto abanando o rosto com o chapéucoco que usava Pedro Bala com comentou Eu sou é mesmo simpático Aquela tá no papo BoaVida cuspiu novamente entre os dentes Também com essa cabeleira de mulher toda cheia de cachos Pedro Bala nu mostrou o punho fechado ao BoaVida Deixa de inveja mulato pachola BoaVida desviou a conversa souber onde fica os troço melhor a gente vem uns cinco ou seis tira o ourame E tu perde a comida A criada Como hoje mesmo Nove horas tou firme aí Voltouse Olhou a casa A criada se debruçava na grade Pedro Bala deu adeus Ela respondeu BoaVida cuspiu Ó peste de sorte nunca vi No outro dia por volta de onze e meia da manhã o SemPernas apareceu em frente à casa Quando ele tocou a campainha a empregada com certeza ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no seu quarto no Garcia porque não ouviu o tilintar O menino tocou de novo e na janela de um quarto do primeiro andar assomou a cabeça grisalha de uma senhora que mirou com os olhos apertados ao SemPernas Que é meu filho Dona eu sou um pobre órfão A senhora fez com a mão sinal que ele esperasse e dentro de poucos minutos estava no portão sem ouvir sequer as desculpas da empregada por não ter atendido à porta Pode dizer meu filho olhava os farrapos do SemPernas Dona eu não tenho pai faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu mostrava um laço preto no braço laço que tinha sido feito com a fita do chapéu novo do Gato que se danara Não tenho ninguém no mundo sou aleijado não posso trabalhar muito faz dois dias que não vejo de comer e não tenho onde dormir Parecia que ia chorar A senhora olhava muito impressionada Você é aleijado meu filho O SemPernas mostrou a perna capenga andou na frente da senhora forçando o defeito Ela o fitava com compaixão De que morreu sua mãe Mesmo não sei Deu uma coisa esquisita na pobre uma febre de mau agouro ela bateu a caçoleta em cinco dias E me deixou só no mundo Se eu ainda agüentasse o repuxo do trabalho ia me arranja Mas com esse aleijão só mesmo numa casa de família A senhora não tá precisando de um menino pra fazer compra ajudar no trabalho da casa Se tá dona E como o SemPernas pensasse que ela ainda estava indecisa completou com cinismo uma voz de choro Se eu quisesse me metia aí com esses meninos ladrão Com os tal de Capitães da Areia Mas eu não sou disso quero é trabalharSó que não agüento um trabalho pesado Sou um pobre órfão tou com fome Mas a senhora não estava indecisa Estava era se lembrando seu filho que tinha morrido com a idade daquele e que ao morrer matara toda a sua alegria e a do maridoEste ainda tinha as suas coleções de obras de arte mas ela tinha apenas a recordação daquele filho que a deixara tão cedo Por isso olha o SemPernas esfarrapado com um grande carinho e ao lhe falar sua voz tem uma doçura diferente da de sempre Há como que um pouco de alegria na doçura da sua voz e isso espanta a criada Entre meu filho Deixe estar que vou arranjar um trabalho para você pôs a mão fina e aristocrática onde brilhava solitário na cabeça suja do SemPernas e falou para a criada Maria José prepare o quarto de cima da garagem para este menino Mostre o banheiro a ele dê um roupão de Raul depois dê comida a ele Antes de botar o almoço dona Ester Antes sim Faz dois dias que ele não come pobrezinho O SemPernas nada dizia apenas secava com as costas da mão lagrimas fingidas Não chore falou a senhora e acariciou o rosto da criança A senhora é tão boa Deus lhe paga Depois perguntou como ele se chamava e o SemPernas deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça Augusto e como repetia o nome para si mesmo para não se esquecer que se chamava Augusto não viu no primeiro momento a emoção da senhora que murmurava Augusto o mesmo nome Disse em voz alta porque agora o SemPernas olhava seu rosto emocionado Meu filho também se chamava Augusto Morreu quando tinha assim o seu tamanho Mas entre meu filho vá se lavar para comer Dona Ester o acompanhou comovida Viu que a empregada mostrava o banheiro ao SemPernas davalhe um roupão e se dirigia pata o quarto em cima da garagem para arrumálo o chofer tinha se despedido o quarto estava vazio Dona Ester se aproximou disse ao SemPernas que parara na porta do banheiro Pode jogar essas roupas fora Maria José depois vai lhe trazer roupa O SemPernas agora olhava a senhora que desaparecia e tinha raiva mas não sabia se era dela ou de si mesmo Dona Ester sentouse em frente ao seu penteador ficou com os olhos parados quem a visse pensaria que ela olhava o céu através da janela Porém em verdade ela nada olhava nada via Olhava sim para dentro de si para as suas recordações de muitos anos e via um menino da idade do SemPernas vestido com uma roupa de marinheiro correndo no jardim da outra casa da qual se mudaram depois que ele morreu Era um menino cheio de vida e de alegria gostava de rir e de saltar Quando se cansava de correr com o gato de montar na gangorra do jardim de jogar a bola de borracha no quintal para o cão lobo a apanhar vinha e passava os braços em torno ao colo de dona Ester a beijava no rosto e ficava com ela vendo livros de figuras aprendendo a ler e a desenhar as letras Para têlo junto a si o maior tempo possível dona Ester e o marido resolveram ensinar ao filho as primeiras letras mesmo em casa Um dia e os olhos de dona Ester se enchem de lágrimas veio a febre Depois o pequeno caixão saiu pela porta e ela o olhava de olhos espantados não podia compreender seu filho houvesse morridoO retrato dele ampliado num quadro no seu quarto mas uma cortina o cobre sempre porque ela não gosta de rever a face do filho para não renovar sua angústia Também roupas que ele usou estão todas trancadas na sua pequena mala jamais buliram nela Mas agora dona Ester tira as chaves da sua caixa de jóias E lentamente muito lentamente se dirige para onde está a mala Puxa uma cadeira na qual senta Abre com mãos trêmulas a maleta Mira as calças e blusas a roupa de marinheiro os pequenos pijamas e camisolas com que ele dormia Aperta a roupa de marinheiro ao peito como se abraçasse seu filho As lágrimas rebentam Agora um menino pobre e órfão viera bater à sua porta Depois da morte de seu filho ela não quisera ter outro não gostava mesmo de ver e brincar com crianças para não avivar a dor das suas recordações Mas um pobre e órfão aleijado e triste que se dissera chamar Augusto como seu filho batera em sua porta pedindo pão pousada e carinho Por isso ela tem coragem de abrir a mala onde guarda roupas que seu filho usou Por isso tira esta roupa azul de marinheiro a roupa da qual ele mais gostava Porque para dona Ester seu filho voltou hoje na figura desta criança andrajosa e aleijada sem pai sem mãe Seu filho voltou e suas lágrimas não são apenas de dor Voltou seu filho macilento e esfomeado com uma perna aleijada e vestido de farrapos Mas em breve será novamente o Augusto alegre e feliz daqueles anos passados e novamente virá e passará os braços em torno ao seu pescoço e lerá as grandes letras da cartilha Dona Ester se levanta Leva consigo a roupa azul de marinheiro E é vestido com ela que o SemPernas come o melhor almoço da sua vida Se a roupa de marinheiro tivesse sido feita de propósito para ele não estaria tão bem Estava perfeita no SemPernas e quando ele se olhou no espelho da sala quase não se reconheceu Estava lavado a empregada tinha posto brilhantina no seu cabelo e perfume no seu rosto A roupa de marinheiro era um a beleza O SemPernas se mirava no espelho Passou a mão na cabeça depois no peito alisando a roupa sorriu pensando no Gato Daria muito para que o Gato o visse tão eleganteTinha também sapatos novos mas a verdade é que os sapatos o desgostavam um pouco porque tinham um laço de fita pareciam um pouco sapatos de mulher O SemPernas achava esquisito estar vestido de marinheiro com sapatos de mulher Andou para o jardim pois queria fumar nunca tinha deixado de tragar o seu cigarro após o almoço Por vezes não havia almoço mas havia sempre uma ponta de cigarro ou de charuto Ali era preciso cuidado não podia fumar abertamente Se o houvessem deixado na cozinha de mistura com a criadagem como o deixavam nas outras casas onde penetrara para depois roubar poderia fumar conversar na língua de poucos termos dos Capitães da Areia Mas desta vez o tinham lavado vestido de novo posto brilhantina no seu cabelo e perfume no rosto Depois tinham lhe dado comida na sala de jantar E durante o almoço a senhora conversara com ele como se ele fosse um menino bem criado Agora mandara que ele brincasse no jardim onde o gato amarelo que se chamava Berloque esquentava ao sol O SemPernas chega para um banco tira do bolso o maço de cigarros baratos Quando mudara a roupa não se esquecera dos cigarros Acende um e começa a saborear as tragadas pensando na sua nova vida Muitas vezes já fizera aquilo penetrar em casa de uma família como um menino pobre órfão e aleijado e neste título passar os dias necessários para fazer um reconhecimento completo da casa dos lugares onde guardávamos objetos de valor das saídas fáceis para uma fuga Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite levavam os objetos valiosos e no trapiche o SemPernas gozava invadido por uma grande alegria alegria da vingança Porque naquelas casas se o acolhiam se lhe davam comida e dormida era como cumprindo uma obrigação fastidiosa Os donos da casa evitavam se aproximar dele e o deixavam na sua sujeira nunca tinham uma palavra boa para ele Olhavamno sempre como a perguntar quando ele iria E muitas vezes a senhora que se comovera com a sua história contada na porta em voz soluçante e o acolhera mostrava evidentes sinais de arrependimento Para o SemPernas elas o acolhiam de remorso Porque o SemPernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres E odiava a todos com um ódio profundo Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras criar esfomeadas onde estavam os objetos de valor Mas desta vez estava sendo diferente Desta vez não o deixa na cozinha com seus molambos não o puseram a dormir no quintal Deramlhe roupa um quarto comida na sala de jantar Era como hóspede era como um hóspede querido E fumando o seu cigarro escondido o SemPernas pergunta a si mesmo por que está se escondendo para fumar o SemPernas pensa sem compreender Não compreende nada do que se passa Sua cata está franzida Lembra os dias da cadeia a surra que lhe deram os sonhos que nunca deixaram de perseguilo E de súbito tem medo de que nesta casa sejam bons para ele Sim um grande medo de que sejam bons para ele Não sabe mesmo porque mas tem medo E levanta se sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora Assim verão que é um menino perdido que não merece um quarto roupa nova comida na sala de jantar Assim o mandarão para a cozinha ele poderá 1evar para diante sua obra de vingança conservar o ódio no seu coração Porque se esse ódio desaparecer ele morrerá não terá nenhum motivo para viver E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem Pernas e ri numa gargalhada brutal Isso há de impedir sempre o SemPernas de ver o rosto bondoso de dona Ester o gesto protetor das mãos do padre José Pedro a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão Será sozinho e seu ódio alcança a todos brancos e negros homens e mulheres ricos e pobres Por isso teme que sejam bons para cons Pela tarde o dono da casa Raul chegou do seu escritório Era advogado de muito nome enriquecera na profissão era catedrático na Faculdade de Direito mas antes de tudo era um colecionador Tinha uma boa galeria de quadros e tinha moedas antigas obras raras de arte O SemPernas viu quando ele entrou Neste momento o SemPernas via as gravuras de um livro para crianças e ria sozinho do elefante tolo a quem o macaco enganava Raul não o viu subiu as escadas Mas depois a empregada veio chamar o SemPernas e o levou ao quarto de dona Ester Raul ali estava de manga a de camisa fumando um cigarro e olhou o menino com um sorriso divertido já que o SemPernas mostrava uma cara muito atrapalhada na entrada do quarto Passe O SemPernas entrou capengando não tinha onde botar as mãos Dona Ester falou com bondade Sente meu filho não tenha medo não O SemPernas sentouse na ponta de uma cadeira e ficou esperando O advogado o estudava mirando seu rosto mas era com simpatia e o SemPernas preparava as respostas para as inevitáveis perguntas Contou novamente a história inventada pela manhã mas quando começou a chorar abundantes lágrimas o advogado mandou que ele parasse e se levantou dirigindose à janela O SemPernas compreendeu que ele estava comovido e este resultado da sua arte o fez ficar orgulhoso Sorriu só para si Mas agora o advogado se aproximava de dona Ester e a beijava na testa e depois nos lábios O SemPernas baixou os olhos Raul andou até ele botou a mão no seu ombro e falou Deixe estar que agora você não passa mais fome Vá Vá brincar vá ver os livros À noite nós vamos ao cinema Você gosta de cinema Gosto sim senhor O advogado o despedia com um gesto O SemPernas saiu mas ainda viu Raul se aproximar de dona Ester e dizer És uma santa Vamos fazer dele um homem Era a hora do crepúsculo as luzes se acendiam e o SemPernas pensou que nesta hora os Capitães da Areia percorriam a cidade procurando o que comer Pena que no cinema não pudesse gritar quando o mocinho surrava o vilão como fazia nas vezes que conseguira penetrar no galinheiro do Olímpia ou do cinema de Itapagipe Ali no Guarani luxuoso e de cômodas cadeiras tinha que ouvir o filme em silêncio e num momento que não se conteve e soltou um assovio Raul o olhou É verdade que sorria mas também é certo que fez um gesto para que SemPernas não assoviasse mais Depois o levaram a tomar sorvete no bar que havia em frente ao cinema O Sem Pernas enquanto tomava seu gelado pensava em que ia cometendo uma irremediável tolice quando o advogado perguntara o que ele queria Estivera para pedir uma cerveja bem geladinha Mas se contivera em tempo e pedira o sorvete No automóvel o advogado foi na frente guiando e o SemPernas foi atrás com dona Ester que conversava com ele A conversa era difícil para o SemPernas que tinha que controlar sua terminologia que era escassa e repleta de palavrões Dona Ester perguntava coisas de sua mãe o SemPernas respondia como podia fazendo grande esforço para reter os detalhes que inventava para posteriormente cair em contradição Por fim chegaram na casa da Graça e dona Ester conduziu o SemPernas para o quarto em cima da garagem Não tem medo de dormir aí sozinho Não senhora Isso é por poucos dias Depois lhe porei lá em cima no quarto que foi de Augusto Não precisa dona Ester aqui tá muito bom Ela se acercou dele e o beijou na face Boa noite meu filho Saiu cerrando a porta O SemPernas ficou parado sem um gesto sem responder sequer o boa noite a mão no rosto no lugar em que dona Ester o beijara Não pensava não via nada Só a suave carícia do beijo uma carícia como nunca tivera uma carícia de mãe Só a suave carícia no seu rosto Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem Pernas Depois foi o horror dos sonhos da cadeia o homem de colete que ria brutalmente os soldados que surravam o SemPernas que corria com a perna aleijada em voltada saleta Mas de repente chegou dona Ester e o homem de colete e os soldados morreram entre infinitas torturas porque agora o SemPernas estava vestido com uma roupa de marinheiro e tinha um chicote na mão como o mocinho do cinema Oito dias se passaram Pedro Bala por várias vezes já andara em frente da casa para saber notícias do SemPernas que tardava a voltar ao trapiche Já havia tempo mais que suficiente para que o SemPernas soubesse onde se quedavam todos os objetos facilmente transportáveis da casa e as saídas que podiam auxiliar a fuga Mas em vez de ver o SemPernas Pedro Bala via era a empregada que pensava que ele vinha por ela Certo dia em que conversava com a empregada Pedro Bala tocou com muito jeito no assunto do SemPernas A moça daí tem um filho não tem É um menino que ela tá criando Muito bonzinho Pedro Bala sorriu porque sabia que o SemPernas quando queria se fazia passar pelo melhor menino do mundo A empregada continuou É um pouco mais moço que você mas é mesmo um menino Não é assim um perdido como você que até já dorme com mulher e ria para Pedro Bala Foi tu que tirou meu cabaço Não diga coisa feia Demais é mesmo mentira Juro Ela gostaria que fosse e se bem desconfiasse muito que não gostava que ele lhe dissesse aquilo Se sentia não só como amante do menino mas um pouco como mãe também Vem hoje que eu te ensino um modo gostoso De noite na esquina Mas diz um troço tu não trepa com esse menino daqui Esse nem sabe que é isso É um tolinho Menino mimado Tu tá feito bobo Não vê que eu não me passo De outra vez Pedro Bala conseguiu ver o SemPernas Este estava estirado no jardim o gato roncava ao seu lado espiando um livro de figuras e Pedro Bala ficou espantadíssimo quando o viu vestido com uma calça de casimira cinza e uma blusa de seda Até o cabelo do SemPernas estava penteado e Pedro Bala quedou um momento boquiaberto sem sequer assoviar para o SemPernas Afinal voltou a si e assoviou O SemPernas se pôs logo de pé viu o Bala do outro lado da rua Fez um sinal para que ele o esperasse saiu pelo portão após ver que ninguém da casa estava próximo Pedro Bala andava para a esquina e SemPernas o acompanhou Quando chegou perto ainda mais se espantou Pedro Bala Peste Tu tá até cheirando SemPernas O SemPernas fez uma cara de aborrecimento mas Bala continuou Tu tá dez vez mais elegante que o Gato Puxa Se tu aparecer assim na toca assim tratavam o trapiche os outros vai dar em cima de tu Tu tá mesmo uma tetéia Não chateia Tou vendo as coisas Não demora dou o fora tu pode vim com os outros Desta vez tu tá demorando É que os troço melhor tão trancado mentiu o SemPernas Vê se tu te arranja Depois lembrouse O Gringo andou ruim Quase bate o trinta e sete Andou por pouco Se não fosse DonAninha que deu beberagem a ele que botou ele em pé tu não via mais ele Tá mais magro que um espeto E com essa notícia se despediu dando mais uma vez pressa ao SemPernas O SemPernas voltou a se estender no jardim Mas agora não via as figuras do livro Via era o Gringo O Gringo fora um dos mais perseguidos pelo SemPernas no grupo Filho de árabes falava com uma pronúncia esquisita e isso dava lugar a piadas consecutivas do SemPernas O Gringo não era forte e nunca conseguira ser importante entre os Capitães da Areia se bem Pedro Bala e Professor procurassem dar lugar a isso Gostavam de ter entre eles um estrangeiro ou quase estrangeiro Mas o Gringo se contentava com pequenos furtos evitava os assaltos arriscados e ideava um baú cheio de bugigangas para vender nas ruas às criadas das casas ricas O Sem Pernas o maltratava sem piedade burlando dele do seu falar arrevesado da sua falta de coragem Mas agora deitado sobre a grama macia do jardim rico vestido com boa roupa penteado e com perfume um livro de figuras ao lado o SemPernas pensava no Gringo quase morrendo enquanto ele comia bem e vestia bem Não só o Gringo estivera quase morrendo Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos mal alimentados dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes Enquanto isso o SemPernas dormia em boa cama comia boa comida tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho Se sentiu como um traidor do grupo Era igual àquele doqueiro do qual fala João de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com desprezo Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado para o lado dos ricos furara a greve fora contratar homens de fora para trabalhar nas docas Nunca mais um homem do cais apertou sua mão nunca mais um o tratou como amigo E se para alguém o SemPernas abria exceção no seu ódio que abrangia o mundo todo era para as crianças que formavam os Capitães da Areia Estes eram seus companheiros eram iguais a ele eram as vítimas de todos os demais pensava o SemPernas E agora sentia que os estava abandonando que estava passando para o outro lado Com este pensamento se sobressaltou sentouse Não ele não os trairiaAntes de tudo estava a lei do grupo a lei dos Capitães da Areia Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo E nunca nenhum a havia traído do modo como o SemPernas a ia trair Para virar menino mimado para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles Não não os trairia Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa Mas a comida a roupa o quarto e mais que a comida a roupa e o quarto o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias Tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro Não não trairia Mas aí pensou se não ia trair dona Ester Ela confiara nele Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia só castigava quando havia erro pagava o bem com o bem O SemPernas ia trair essa lei ia pagar o bem com o mal Lembrouse que das outras vezes quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada era uma grande alegria que o invadia Desta vez não tinha alegria nenhuma Seu ódio para todos não desaparecera é verdade Mas abrira uma exceção para a gente daquela casa porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na face O SemPernas luta consigo mesmo Gostaria de continuar naquela vida Mas que adiantaria isso para os Capitães da Areia E ele era um deles nunca poderia deixar de ser um deles porque uma vez os soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria brutalmente E o SemPernas se decidiu Mas olhou com carinho as janelas do quarto de dona Ester e ela que o espiava notou que ele chorava Está chorando meu filho e desapareceu da janela para vir para junto dele Só então o SemPernas viu que estava mesmo chorando limpou as lágrimas mordeu a mão Dona Ester chegava para junto dele Está chorando Augusto Aconteceu alguma coisa Não senhora Não estou chorando não Não minta meu filho Bem que eu vejo O que passou Está se lembrando da sua mãe E o trouxe para junto de si sentouse no banco encostou a cabeça do Sem Pernas no seu seio maternal Não chore por sua mãe Agora você tem outra mãezinha que lhe quer bem e fará tudo para substituir a que você perdeu e ele faria tudo para substituir o filho que ela perdera ouviu o SemPernas dentro de si Dona Ester o beijou na face onde as lágrimas corriam Não chore que sua mãezinha fica triste Então os lábios do SemPernas se descerraram e ele soluçou chorou muito encostado ao peito de sua mãe E enquanto a abraçava e se deixava beijar soluçava porque a ia abandonar e mais que isso a ia roubar E ela talvez nunca soubesse que o SemPernas sentia que ia roubar a si próprio também Como não sabia que o choro dele que os soluços dele eram um pedido de perdão Os acontecimentos se precipitaram porque Raul teve que fazer uma viagem ao Rio de Janeiro a negócios importantes de advocacia E o SemPernas achou que não havia melhor ocasião para o assalto Na tarde em que se foi mirou a casa toda acariciou o gato Berloque conversou com a criada olhou os livros de gravura Depois foi ao quarto de dona Ester disseque ia até o Campo Grande passear Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande em vez de passear a pé O Sem Pernas baixou os olhos mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou Era a primeira vez que a beijava e ela ficou muito alegre Ele disse baixinho arrancando as palavras de dentro de si A senhora é muito boa Eu nunca vou esquecer Saiu e não voltou Essa noite dormiu no seu canto no trapiche Pedro Bala tinha ido com um grupo para a casa Os outros tinham rodeado o SemPernas admirando suas roupas seu cabelo assentado o perfume que evolava do seu corpo Mas o SemPernas meteu o braço em um foi resmungando para seu canto E ali ficou mordendo as unhas sem dormir angustiado até que Pedro Bala voltou com os outros trazendo os resultados do assalto Comunicou ao Sem Pernas que fora a coisa mais canja do mundo que ninguém dera fé na casa que todos tinham continuado dormindo Talvez que nem no dia seguinte descobrissem o roubo E mostrava os objetos de ouro e de prata Amanhã Gonzales dá uma dinheirama por isso O SemPernas fechava os olhos para não ver Depois que todos foram dormir ele se aproximou do Gato Tu quer fazer um negócio comigo Que é Eu dou essa roupa tu me dá a sua O Gato olhou cheio de espanto A sua roupa era a melhor do grupo sem dúvida Mas era roupa velha estava muito longe de valer a boa roupa de casimira que o SemPernas vestia Tá doido pensou o Gato enquanto respondia Se topo Nem se pergunta Trocaram a roupa O SemPernas voltou ao seu canto procurou dormir Na rua vinha doutor Raul com dois guardas Eram os mesmos soldados que o haviam espancado na cadeia O SemPernas corria mas doutor Raul o apontava e os soldados o levavam para a mesma sala A cena era a mesma de sempre os soldados que se divertiam a fazêlo correr com sua perna capengando e o espancavam e o homem de colete que ria Só que na sala estava também dona Ester que o olhava com os olhos tristes e dizia que ele não era mais seu filho era um ladrão E os olhos de dona Ester o faziam sofrer mais que as pancadas dos soldados mais que o riso brutal do homem Acordou molhado de suor fugiu da noite do trapiche a madrugada o encontrou vagando no areaL No outro dia à noite Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua parte no furto Mas o SemPernas o recusou sem dar explicações Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas que o jornal traziaEntão chamou SemPernas SemPernas O SemPernas veio Outros vieram com ele e formaram um círculo Professor disse Isso aqui é com tu SemPernas E leu uma notícia no jornal Ontem desapareceu da casa número da rua Graça um filho dos donos da casa chamado Augusto Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia É coxo de uma perna tem treze anos de idade é muito tímido veste roupa de casimira cinza A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos mas até agora não o encontrouA família gratificará bem quem der noticias do pequeno Augusto e o conduz a sua casa O SemPernas ficou calado Mordia o lábio Professor disse Ainda não descobriram o furto SemPernas fez que sim com a cabeça Quando descobrissem o furto não o procurariam mais como a um filho desaparecido Barandão fez uma cara de riso e gritou Tua família tá te procurando SemPernas Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu Mas não disse mais nada porque o SemPernas já estava em cima dele e levantava o punhal E esfaquearia sem dúvida o negrinho se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele Barandão saiu amedrontado O SemPernas foi indo para o seu canto um olhar de ódio para todos Pedro B ala foi atrás dele botou a mão em seu ombro São capazes de não descobrir nunca o roubo SemPernas Nunca saber de você Não se importe não Quando doutor Raul chegar vão saber E rebentou em soluços que deixaram os Capitães da Areia estupefatos Só Pedro Bala e o Professor compreendiam e este abanava as mãos porque não podia fazer nada Pedro Bala puxava uma conversa comprida sobre um assunto muito diferente Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era como uma queixa Manhã como um quadro Pedro Bala enquanto sobe a ladeira da montanha vai pensando que não existe nada melhor no mundo que andar assim ao azar nas ruas da BahiaAlgumas destas ruas são asfaltadas mas a grande a imensa maioria é calçada de pedras negras Moças se debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se é uma prostituta que o mira de um balcão velhíssimo enfeitado apenas de flores Entram mulheres de negros véus nas igrejas O sol bate nas pedras ou no asfalto do calçamento ilumina os telhados das casas Na sacada de um sobradão flores medram em pobres latas São de diversas cores e o sol lhes dá seu diário alimento de luz Os sinos da igreja da Conceição da Praia chamam as mulheres de véu que passam apressadasNo meio da ladeira um preto e um mulato estão curvados sobre uns dados que o preto acabou de jogar Pedro Bala ao passar cumprimenta o negro Como vai Coruja Branca E tu Bala Como vai essa prosopopéia Mas o mulato já atirou os dados e o negro se volta todo para o jogo Pedro Bala continua seu caminho O Professor vai com ele Sua figura magra se atira para frente como se lhe fosse difícil vencer a ladeira Mas sorri da festa do dia Pedro Bala virase para ele e surpreende seu sorriso A cidade está alegre cheia de sol Os dias da Bahia parecem dias de festa pensa Pedro Bala que se sente invadido também pela alegria Assovia com força bate risonhamente no ombro de Professor E os dois riem e logo a risada se transforma em gargalhada No entanto não têm mais que uns poucos níqueis no bolso vão vestidos de farrapos não sabem o que comerão Mas estão cheios da beleza do dia e da liberdade de andar pelas ruas da cidade E vão rindo sem ter do que Pedro Bala com o braço passado no ombro de Professor De onde estão podem ver o Mercado e o cais dos saveiros e mesmo o velho trapiche onde dormem Pedro Bala se recosta no muro da ladeira e diz a Professor Tu devia fazer uma pintura disto É porreta A fisionomia do Professor se fecha Eu sei que nunca há de ser Que Tem vez que me topo pensando e Professor mira o cais lá embaixo os saveiros parecendo brinquedos os homens miúdos carregando sacos nas costas Continua com a voz áspera como se alguém o tivesse batido Eu penso fazer um dia um bocado de pintura daqui Tu tem jeito Se tu tivesse andado pela escola mas nunca pode ser um troço alegre não Professor parece não ter ouvido a interrupção de Pedro Bala Agora está com os olhos longe e parece ainda mais fraco Por quê Pedro Bala está espantado Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza Tudo alegre Pedro Bala apontou os telhados da cidade baixa Tem mais cores que o arcoíris É mesmo Mas tu espia os homem tá tudo triste Não tou falando dos rico Tu sabe Falo dos outros dos das docas do mercado Tu sabe Tudo com cara de fome eu nem sei dizer É um troço que sinto Pedro Bala não estava mais espantado Por isso João de Adão já fez um bocado de greve nas docas Ele diz que um dia as coisas vira tudo vai ser de viceversa Também já li um livro Um livro de João de Adão Se eu tivesse estado numa escola como tu diz tinha sido bom Eu um dia ia fazer muito quadro bonito Um dia bonito gente alegre andando rindo namorando assim como aquela gente de Nazaré sabe Mas cadê escola Eu quero fazer um desenho alegre sai o dia bonito tudo bonito mas os homens sai triste não sei não Eu queria fazer uma coisa alegre Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu faz Pode até dá mais bonito mais vistoso Que é que tu sabe Que é que eu sei A gente nunca andou em escola Eu tenho vontade de fazer a cara dos homens a figura das ruas mas nunca tive na escola tem um bocado de coisa que eu não sei Fez uma pausa olhou Pedro Bala que o escutava continuou Tu já deu uma espiada na Escola de BelasArtes É um beleza rapaz Um dia andei de penetra me meti numa sala Tava tudo vestido de camisão nem me viram E tavam pintando uma mulher nua Se um dia eu pudesse Pedro Bala ficou pensativo Olhava Professor como que pensando Logo falou com um ar muito sério Tu sabe o preço Que preço De pagar na escola O professor Que história é essa A gente se reunia pagava pra tu Professor riu Tu nem sabe Tem tanta complicação Não pode não deixa de tolice João de Adão disse que um dia a gente pode ter escola Saíram andando Professor parecia ter perdido a alegria do dia Como que ela se afastara para longe dele Então Pedro Bala deulhe um soco de leve Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua Chile mano Sem escola sem nada Nenhum destes bananas da escola faz uma rara como tu Tu tem é jeito Professor riu Pedro Bala riu também E tu faz meu retrato hein Bota o nome embaixo não bota Capitão Pedro Bala macho valente Tomou uma atitude de lutador um braço estirado Professor riu Bala também riu logo o riso se transformou em gargalhada E só pararam de gargalhar para aderira um grupo de desocupados que se reunira em torno a um tocador de violão O homem tocava e cantava uma moda da cidade da Bahia Quando ela disse adeus meu peito em cruz transformou Eles aderiram Pouco depois cantavam junto ao homem E com eles cantavam todos e eram saveiristas malandros doqueiros até uma prostituta cantava O homem do violão estava todo entregue a sua música não via mesmo ninguém Se o homem não se levantasse para ir embora ainda tocando seu violão e cantando eles teriam se esquecido de continuar a caminhada para a cidade altaMas o homem foi embora levando a alegria da sua música O grupo se dispersou um vendedor de jornais passou apregoando os diários da manhã Professor e Pedro Bala continuaram a subir a ladeira Do largo do Teatro subiram para a rua Chile Professor tirou o giz do bolso sentouse no passeio Pedro Bala ficou a seu lado Quando viram vir o casal Professor começou a desenhar Fez um desenho o mais rápido que pôde O casal estava muito perto já Professor agora fazia as caras A moça sorria sem dúvida seriam noivos Mas iam tão entretidos na sua conversa que nem notaram o desenho Foi preciso que Pedro Bala se adiantasse até eles Não pise na cara da moça senhor O homem olhou para Pedro Bala e já ia dizer um desaforo quando a moça viu o desenho do Professor e chamou sua atenção Que bom e batia as mãos como uma menina a quem tivessem dado uma boneca de presente O rapaz espiou e sorriu Voltouse para Pedro Bala Foi você quem desenhou garoto Foi aqui o meu companheiro o pintor Professor Professor dava os últimos retoques no bigode elegantíssimo do homem Depois passou a aperfeiçoar a figura da moça Ela então ficou no jeito de quem estava posandoRiam os dois ela se dependurava no braço do amado O homem puxou a carteira de níqueis atirou uma prata de dois milréis que Pedro Bala apanhou no ar Seguiram O desenho ficou no meio do passeioUmas senhoritas que vinham das compras o viram de longe e uma disse Vamos depressa que aquilo parece que é um anúncio do novo filme de Barrymore Dizem que é um amor E ele é tão forte Pedro Bala e Professor ouviram e abriram na gargalhada E abraçados seguiram juntos na liberdade das ruas Quase junto do palácio do governo pararam novamente Professor ficou de giz na mão esperando que saísse do ponto do bonde um pato Pedro Bala assoviava ao seu lado Breve teriam o dinheiro para um bom almoço e ainda para levar um presente para Clara a amante do QueridodeDeus que fazia anos naquele dia Uma velhota deu dez tostões por seu desenho A velhota era feia e Professor tinha conservado sua feiúra no desenho Pedro Bala notou Se tu tivesse feito ela mais bonita e mocinha ela te dava mais Professor riu Assim passaram a manhã Professor fazendo a cara dos que vinham pela rua Pedro Bala recolhendo as pratas ou os níqueis que jogavam Quase meiodia veio um homem que fumava numa piteira que parecia cara Pedro Bala correu para avisar ao Professor Faz deste que parece que é um pato cheio da nota Professor começou a desenhar a figura magra do homem A piteira longa os cabelos encaracolados que apareciam sob o chapéu O homem trazia também um livro na mão e Professor teve um desejo irresistível de fazer o desenho do homem lendo o livro O homem ia passando Pedro Bala chamou sua atenção Olhe seu retrato senhor O homem tirou a longa piteira da boca perguntou a Bala O que meu filho Pedro Bala apontou o desenho em que o Professor trabalhava O homem aparecia sentado se bem não houvesse cadeira nem nada estava sentado no ar fumando sua piteira e lendo seu livro O cabelo encaracolado voava sob o chapéu O homem examinou o desenho atentamente foi espiálo em diversos ângulos nada dizia Quando o Professor deu o trabalho por concluído ele perguntou Onde você aprendeu desenho meu caro Em lugar nenhum Em lugar nenhum Como É sim senhor E como desenha Me dá vontade pego desenho O homem estava um pouco incrédulo mas sem dúvida recordou outros exemplos no fundo da sua memória Quer dizer que você nunca estudou desenho Nunca não senhor Posso garantir falou Pedro Bala Nós mora junto eu sei Então é uma verdadeira vocação murmurou o homem Voltou ao examinar o desenho Tirou uma longa fumaçada da sua piteira Os dois meninos olhavam para a piteira encantados O homem perguntou ao Professor Por que você me retratou sentado e lendo o livro Professor coçou a cabeça como se fosse uma coisa difícil de responder Pedro Bala quis falar mas nada disse estava atarantado Por fim Professor explicou Pensei que sentava melhor pro senhor coçou de novo a cabeça Não sei mesmo É uma verdadeira vocação murmurou o homem em voz mais baixa assim com o jeito de quem havia feito uma descoberta Pedro Bala esperava o níquel mesmo porque o guarda já os olhava desconfiado da esquina Professor espiava a piteira do homem longa desenhada a fogo uma maravilhaMas o homem continuou Onde você mora Pedro Bala não deu tempo a que Professor respondesse Foi ele quem falou A gente mora na Cidade de Palha O homem meteu a mão no bolso e tirou um cartão Você sabe ler A gente sabe sim senhor respondeu Professor Aí está meu endereço Eu quero que você me procure Talvez possa fazer alguma coisa por você Professor tomou o cartão O guarda se encaminhava para ele Pedro Bala se despediu Até logo doutor O homem ia puxando a carteira de níqueis mas viu o olhar do Professor na sua piteira Jogou o cigarro fora entregou a piteira ao menino Isso é pelo meu retrato Vá a minha casa Mas os dois desabaram pela rua Chile porque o guarda já estava quase junto a eles O homem olhava meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda Lhe roubaram alguma coisa senhor Não Por quê Porque como aqueles malandrins estavam aqui junto ao senhor Eram duas crianças Por sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura São ladrões retrucou o guarda São dos Capitães da Areia Capitães da Areia fez o homem se recordando Já li algo Não são crianças abandonadas Ladronas isso são Tenha cuidado senhor quando eles se aproximarem do senhor Veja se não lhe falta nada O homem fez que não com a cabeça e olhou a rua Mas não havia nem rastro dos dois meninos O homem agradeceu ao guarda afirmando mais uma vez que não tinha sido furtado e desceu a rua murmurando Assim que se perdem os grandes artistas Que pintor não seria O guarda o espiava Depois comentou para os botões da farda Bem dizem que estes poetas são doidos Professor exibia a piteira Estava agora nos fundos de um arranhacéu onde existia um restaurante chique Pedro Bala sabia como conseguir do cozinheiro os restos do menu Esperavam o almoço na rua deserta Depois que comeram Pedro Bala ofereceu cigarros e o Professor se dispôs a fumar na piteira que o homem lhe dera Procurou limpála O bicho era magro como um espeto É capaz de ser tutu Como não achou coisa melhor com que limpar fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira Quando terminou jogou o cartão na rua Pedro Bala perguntou Por que tu não guarda Pra que quero e o Professor riu Pedro Bala riu também e por um momento as suas gargalhadas encheram a rua Riam assim sem motivo pelo prazer de rir Mas Pedro Bala se fez sério O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor apanhou o cartão e leu o nome do homem Tu devia guardar Quem sabe Professor baixou a cabeça Deixa de ser besta Bala Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão Quem é que quer saber da gente Quem Só ladrão só ladrão e sua voz se elevava agora gritava com ódio Pedro Bala fez que sim com a cabeça sua mão soltou o cartão que caiu na sarjeta Agora não riam mais e estavam tristes na alegria da manhã cheia de sol da manhã igual a um quadro de um pintor das BelasArtes Operários passavam para o trabalho após o almoço pobre e era tudo que eles viam que eles conseguiam ver na manhã Alastrim Omolu mandou a bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não sabia destas coisas de vacina E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente botou negro cheio de chaga em cima da cama Então vinham os homens da Saúde Pública metiam os doentes num saco leva para o lazareto distante As mulheres ficavam chorando porque sabiam que eles nunca mais voltariam Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta para a cidade dos ricos Omolu não sabia da vacina Omolu era um deus das florestas da África que podia saber de vacinas e coisas científicas Mas como a bexiga já estava solta e era a terrível bexiga negra Omolu teve que deixar que ela descesse para a cidade dos pobres Já que a soltara tinha que deixar que ela realizasse sua obra Mas como Omolu tinha pena dos seus filhinhos pobres tirou a força da bexiga negra virou em alastrim que é uma bexiga branca e tola quase um sarampo Apesar disto os homens da Saúde Pública vinham e levavam os doentes para o lazareto Ali as famílias não podiam ir visitálos eles não tinham ninguém só a visita do médico Morriam sem ninguém saber e quando um conseguia voltar era mirado como um cadáver que houvesse ressuscitado Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade da vacina Os candomblés batiam noite e dia em honra a Omolu para aplacar a fúria de Omolu O paidesanto Paim do Alto do Abacaxi preferido de Omolu bordou uma toalha branca de seda com lantejoulas para oferecer a Omolu e aplacar sua raiva Mas Omolu não quis Omolu lutava contra a vacina Nas casas pobres as mulheres choravam De medo do alastrim de medo do lazareto Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim Uma noite quando o negrinho Barandão o procurou no seu canto para fazer o amor aquele amor que Pedro Bala proibira no trapiche Almiro lhe disse Tou com uma coceira danada Mostrou os braços já cheios de bolhas a Barandão Parece que também tou queimando de febre Barandão era um negrinho corajoso todo o grupo sabia disto Mas da bexiga da moléstia de Omolu Barandão tinha um medo doido um medo que muitas raças africanas tinham acumulado dentro dele E sem se preocupar que descobrissem suas relações sexuais com Almiro saiu gritando entre os grupos Almiro tá com bexiga Gentes Almiro tá com bexiga Os meninos foram se levantando aos poucos e se afastando receosos do lugar onde estava Almiro Este começou a soluçar Pedro Bala não tinha chegado ainda Professor o Gato e João Grande também andavam por fora Daí ter sido o SemPernas quem domino a situação O SemPernas nestes últimos tempos andava cada vez mais arredio quase não falava com ninguém Fazia espantosas burlas de todo mundo por tudo puxava uma briga só respeitava mesmo Pedro Bala Pirulito rezava por ele mais que por nenhum e por vezes pensava que Satanás tinha se metido no corpo do SemPernas O padre José Pedro era paciente com ele mas também do padre o SemPernas se afastara Não queria saber de ninguém conversa em que ele se metia era conversa que terminava em briga Quando o SemPernas passou entre os grupos todos se afastaram Quase o temiam tanto quanto à bexiga O SemPernas tinha arranjado por aqueles dias um cachorro ao qual se dedicava inteiramente A princípio quando o cão aparecera no trapiche esfomeado SemPernas o maltratou quanto pôde Mas terminou por acarinhálo e tomar para si Agora como que vivia inteiramente para o cachorro E por isso voltou só para levar o cão que o acompanhara para longe de Almiro Depois andou novamente para onde estavam os menino Estes cercavam Almiro de longe Apontavam as bolhas que apareciam no peito do menino Antes de tudo SemPernas falou com sua voz fanhosa para Barandão Agora tu vai ter bexiga na piroca negro burro Barandão o olhou assustado Depois SemPernas falou para todos apontando Almiro com o dedo Ninguém aqui vai ficar bexiguento só por causa deste freso Todos o olhavam esperando o que ele diria Almiro soluçava as mãos no rosto encolhido na parede SemPernas falava Ele vai sair daqui agorinha mesmo Vai se meter em qualquer canto da rua até que os matacachorro da saúde pegue ele e leve pro lazareto Não Não rugiu Almiro Vai sim fez SemPernas A gente não vai chamar os matacachorro aqui pra toda policia saber onde a gente se acoita Tu vai por bem ou por mal e leva teus trapos Vai pro inferno que a gente não vai ficar com bexiga por você Por amor de você xibungo Almiro fazia que não que não e seus soluços enchiam o trapiche 0 negrinho Barandão tremia Pirulito clamava que era castigo de Deus por causa dos pecados deles os outros não sabiam que fazer SemPernas se preparava para forçar sua idéia Pirulito se abraçou com um quadro de Nossa Senhora e disse Vamos rezar todo mundo que isto é um castigo de Deus pros pecados da gente A gente peca muito Deus tá castigando Vamos pedir perdão e sua voz era como um clamor soava anunciando vinganças Alguns juntaram as mãos e Pirulito chegou a iniciar um padrenosso Mas Sem Pernas o afastou com uma das mãos Sai sacrista Pirulito ficou rezando em voz baixa ainda atracado com o santo Parecia um quadro estranho Ao fundo Almiro soluçava e dizia que não Pirulito rezava os outros estavam indecisos não sabiam o que fazer Barandão tremia de medo pensando que estava contagiado SemPernas voltou a falar Gente se ele não quiser sair a gente bota ele pra fora debaixo de porrada Senão tudo vai morrer de bexiga tudo Vocês não vê desgraçados A gente bota ele pra fora até uma rua onde levem ele pro lazareto Não Não fazia Almiro Pelo amor de Deus Isso é castigo fez Pirulito Cala a boca filho de padre o SemPernas continuava Vamos levar ele gente já que ele não quer ir por bem Como via que os outros ainda estavam irresolutos marchou para o lado de Almiro e estendeu o pé para lhe dar uma pancada Assim tu vai embora bexiguento Almiro se encolheu mais Não Tu não pode fazer isso Eu sou um do grupo Espera Bala chegar É castigo É castigo a voz de Pirulito ainda irritou mais o SemPernas que descarregou um pontapé em Almiro Dá o fora bexiguento Dá o fora fresco Mas neste instante uma mão o pegou e o sacudiu longe Volta Seca se plantou entre Almiro e o SemPernas O mulato levava um revólver na mão e os seus olhos fuzilavam Juro que tem bala e que como um que toque em Almiro olhou para todos com sua cara sombria Que é que tu tem que fazer aqui cangaceiro SemPernas queria recuperar o domínio da situação Ele não é um soldado de policia pra gente tratar ele assim É um do grupo ele falou direito Vamos esperar Pedro Bala chegar Ele resolve E se alguém tocar nele eu queimo igual que fosse um macaco da polícia e segurava o revólverOs outros se afastaram aos poucos SemPernas cuspiu Tudo é uns covarde e seguiu para onde o cachorro o esperava Se deitou ao seu lado e os que ficaram mais perto dele a ouviam murmurar covardes covardes Volta Seca ficou diante de Almiro com o revólver na mão Almiro soluçava e mais alto gritava quando olhava as bolhas que se estendiam pelo seu corpo Pirulito rezava pedia a Deus que voltasse a ser suprema bondade não fosse suprema justiça Depois Pirulito se lembrou de chamar o padre José Pedro Escapuliu pela porta do trapiche se dirigiu à casa do padre Mas pelo caminho ainda ia rezando os olhos dilatados cheios do temor de Deus Pedro Bala chegou acompanhado do Professor e de João Grande Voltavam de um negócio que tinham resolvido bem e comentavam o sucesso entre gargalhadas O Gato tinha ido com eles mas não voltara Ficara em casa de Dalva Os três entraram no trapiche e a primeira coisa que enxergaram foi Volta Seca com o revólver na mão Que é isso perguntou Pedro Bala SemPernas se levantou do seu canto o cachorro o acompanhou Este besta metido a cangaceiro não quer deixar que a gente faça o que resolveu e apontava Almiro Aquele fresco tá com a bexiga João Grande se encolheu Pedro Bala olhou Almiro o Professor andou para onde esta Volta Seca O mulato não largava o revólver Pedro perguntou então Como foi Volta Seca Este tá com a maldita mostrou o menino que soluçava E aquele macaco mesmo que um soldado quis botar ele no meio da rua pra assistência levar ele lazareto Eu não tava me metendo Mas ele não quis ir Aí eles todos juntos cuspiu quis dar nele pra obrigar ele ir Foi quando ele falou que era do grupo que eles esperasse que tu chegasse Eu achei que ele falou direito fiquei do lado dele Ele não é um soldado de polícia pra tratar ele assim Tu fez direito Volta Seca Pedro Bala bateu no ombro do mulato Depois olhou Almiro Tu tá mesmo com ela O menino inclinou a cabeça e rebentou em soluços SemPernas gritou Só tem mesmo que fazer o que eu disse Não pode chamar a assistência aqui que todo mundo fica sabendo onde a gente se acoita Só tem mesmo que deixar ele numa rua onde passe gente Vamos fazer tu queira ou não Pedro Bala gritou Quem é o chefe daqui é tu ou eu Tu quer que eu te rebente SemPernas saiu murmurando O cachorro veio lamber seus pés mas ele deulhe um pontapé Logo depois se arrependeu porém e começou a acarinhar o cão enquanto espiava os outros Pedro Bala andou até Almiro João Grande queria vencer o medo e ir para junto de Almiro também Mas o medo da bexiga era uma coisa enorme nele era quase maior que sua bondade Só Professor estava junto de Pedro Bala Este disse a Almiro Almiro mostrou os braços cheios de bolhas Professor disse Deixa eu ver Almiro mostrou os braços cheios de bolhas Professor disse É alastrim Bexiga negra fica logo preta Pedro Bala ficou pensando Ia um silêncio pelo trapiche João Grande conseguiu vencer o medo e se aproximou Mas ia com passo arrastados Parecia violentar sua própria vontade para chegar até junto de Almiro Foi quando entrou Pirulito acompanhado do padre José Pedro O padre deu boas noites e perguntou quem era o doente Pirulito apontou Almiro o padre se dirigiu para ele chegou perto pegou no braço examinou Depois disse a Pedro Bala É preciso levar para a assistência Pro lazareto Sim Não não vai não fez Pedro Bala O SemPernas se levantou outra vez veio para junto deles Tou dizendo isso há muito tempo Tem que ir pro lazareto Não vai repetiu Pedro Bala Por que meu filho perguntou o padre José Pedro Tu sabe padre que ninguém volta do lazareto Ninguém volta E ele é um da gente um do grupo A gente não pode fazer isso Mas é a lei filho Morrer O padre mirou Pedro Bala com os olhos abertos Aquele meninos viviam a lhe dar surpresas sempre mais adiantados em inteligência do que ele pensava E no fundo o padre sabia que eles tinham razão Não vai não padre afirmou Pedro Bala Então que é que você vai fazer meu filho Tratar dele aqui Mas como Chamo DonAninha Mas ela não sabe tratar de ninguém Pedro Bala ficou confuso Passado um momento disse É melhor que morra aqui que no lazareto SemPernas se meteu de novo Vai pegar bexiga em todo mundo se dirigia aos outros Vai pegar em todo mundo A gente não pode deixar Cala a boca desgraçado senão eu te arrombo disse Pedro Mas o padre interveio Ele tem razão Bala Não vai pro lazareto padre O senhor é bom bem sabe que ele não pode ir Lá é uma miséria tudo morre O padre bem sabia que era verdade calou Foi quando João Grande falou Mas ele não tem casa Quem Almiro Tem sim Não quero ir para lá soluçou Almiro Eu tinha fugido Pedro Bala se aproximou dele e falou com voz muito mansa Deixa estar Almiro Primeiro eu vou lá falo com tua mãe Depois a gente leva você Tu lá fica bem não tem que ir pro lazareto E o padre arranja um médico pra cuidar de tu não arranja padre Levo sim prometeu o padre José Pedro Havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos de varíola que conhecessem para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos O padre José Pedro conhecia a lei mas mais uma vez ficou com os Capitães da Areia contra a lei Pedro Bala foi à casa de Almiro a mãe do menino ficou feito louca era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador além da Cidade de Palha Foram buscar Almiro e o padre o visitou e depois levou um médico Mas acontece que o médico estava cavando um lugar na Saúde Pública e denunciou o caso de varíola Almiro foi mesmo levado para o lazareto e o padre ficou em maus lençóis pois o médico que se dizia livrepensador mas em verdade era espírita denunciou o padre também como encobridor do caso As autoridades não agiram contra o padre mas se queixaram ao arcebispado E o padre José Pedro foi chamado à presença do Cônego Secretário do ArcebispadoFicou amedrontado Pesadas cortinas cadeiras de alto espaldar um retrato de Santo Inácio numa parede Na outra um crucifixo Uma grande mesa custosos tapetes O padre José Pedro entrou na sala com o coração batendo muito Não tinha absoluta certeza do motivo por que recebera aquela comunicação do Cônego Secretário do Arcebispado para comparecer ao Palácio Episcopal No primeiro momento lembrouse da paróquia que esperava inutilmente havia dois anos Seria sua paróquia Sorriu com alegria Então sim iria ser um verdadeiro sacerdote iria ter almas entregues a si à sua guia Serviria a Deus Mas certa tristeza o invadiu e suas crianças as crianças abandonadas das ruas da Bahia principalmente os Capitães da Areia como ficariam Ele era um dos seus poucos amigos Nunca um outro padre se voltara para aqueles meninos Se contentavam em ir celebrar de quando em vez uma missa no reformatório o que os tornava mais antipáticos ao meninos porque atrasava o magro café O padre José Pedro enquanto esperava sua paróquia se dedicara aos meninos abandonadosNão podia dizer que os resultados tivessem sido grandes Mas era preciso compreender que ele estava fazendo uma experiência que muita vezes tinha que voltar atrásFazia pouco tempo que o padre captar de todo a confiança dos meninos Estes já o tratavam como amigo mesmo quando não o levavam a sério como sacerdote O padre tiver de passar por cima de muita coisa para conseguir a confiança de Capitães da Areia Mas José Pedro pensava que só Pirulito e a sua vocação pagavam a pena O padre tivera que fazer muita coisa contra o que lhe haviam ensinado Pactuara mesmo com coisa que a Igreja condenaria Mas era o único jeito Aí o padre lembrouseque bem podia ser por causa daquilo que o haviam chamado Devia ter sido por aquilo Muitas beatas já murmuravam por causa das suas relações com as crianças que viviam do furto E havia aquele caso de Almiro Devia ser por aquilo O primeiro sentimento do padre José Pedro quando descobriu o motivo da comunicação foi um grande temor Ia ser castigado com certeza perderia toda esperança de uma paróquia E o padre José Pedro necessitava de uma paróquia Sustentava uma mãe velha uma irmã na Escola Normal Logo depois pensou que muito possivelmente tudo o que fizera fora errado seus superiores não aprovariam E no Seminário lhe tinham ensinado a obedecer Mas pensou nos meninos Na sua memória passaram as figuras de Pirulito Pedro Bala Professor SemPernas BoaVida o Gato Era preciso salvar aqueles pequeninos As crianças eram a maior ambição de Cristo Devia se fazer tudo para salvar aquelas crianças Não era culpa deles se estavam perdidos O Cônego entrou Nos seus pensamentos o padre nem vira que muitos minutos de espera tinham se passado Não viu tampouco quando o Cônego entrou com um passo mansoEra alto e muito magro anguloso com a batina muito limpa os raros cabelos que lhe restavam muito bem penteados Os lábios tinham uma linha dura Um rosário descialhe em torno ao pescoço Se bem sua figura desse uma impressão de pureza essa impressão não fazia seus traços mais doces Não havia nenhuma simpatia humana na sua figura nos seus traços duros Como que a pureza era uma couraça que o afastava do mundo Diziam que era inteligentíssimo grande orador sacro célebre pela rigidez dos seus costumes Ali estava parado diante do padre José Pedro olhando com olhos observadores a figura baixa do padre a sua batina suja e remendada em dois lugares o seu ar de medo a falta de inteligência que de mistura com a bondade se refletia na cara do padre Estudou o padre uns poucos minutos O bastante para penetrar a fundo na alma sem complicações de José Pedro Tossiu O padre o viu levantouse beijou humildemente sua mão Cônego Sentese padre Temos que conversar Olhava com os olhos sem expressão o padre Sentouse cruzou as mãos com grande cuidado afastou sua reluzente batina da batina suja do padre José Pedro Sua voz contrastava com sua pessoa Podiase dizer que era uma voz doce quase feminina se não fosse um acento de decisão que a cada passo surgia nela O padre José Pedro baixou a cabeça e esperou que o Cônego falasse Este começou Este arcebispado tem graves queixas contra o senhor padre Padre José Pedro quis figurar uma cara de quem não entendia Mas a malícia era superior à sua inteligência e naquele momento ele pensava nos Capitães da AreiaO Cônego sorriu ligeiramente Creio que o senhor já sabe do que se trata O padre olhou com uns olhos abertos mas logo baixou cabeça Só se é as crianças O pecador não pode esconder seu pecado ele está visível na sua consciência e a voz do Cônego tinha perdido aquela nota de doçura O padre José Pedro ouviu com pavor Era o que ele temia Os seus superiores aqueles que tinham inteligência para compreender os desejos de Deus não estavam de acordo com os métodos que ele empregara junto aos Capitães da Areia Vinha um temor de dentro dele não propriamente um temor do Cônego do arcebispo mas um temor de ter ofendido a Deus E até suas mãos tremiam ligeiramente A voz do Cônego retomou sua doçura Era como uma voz de mulher doce e suave mas que negava a um homem suas carícias Têmnos chegado bastantes queixas padre José Pedro O arcebispado tem fechado os olhos na esperança de que o senhor conhecesse seu erro e se emendasse Olhou o padre com olhos duros José Pedro baixou a cabeça Não faz muito tempo a viúva Santos queixouse O senhor ajudou uma corja de moleques numa praça a vaiála Melhor incitou os moleques a que a vaiassemQue tem a dizer padre Não é verdade Cônego O senhor quer dizer que a viúva mentiu Fuzilou o padre com os olhos Mas desta vez José Pedro não baixou a cabeça apenas repetiu O que ela disse não é verdade O senhor sabe que a viúva Santos é uma das melhores protetoras da religião na Bahia Não sabe dos donativos Eu posso lhe narrar o fato Não me interrompa No Seminário não lhe ensinaram a ser humilde e respeitoso com seus superiores Se bem o senhor não tivesse sido um aluno dos mais brilhantes O padre José Pedro sabia daquilo Não era preciso que lhe repetissem que fora um dos piores alunos do Seminário em matéria de estudos Por isso mesmo tinha tanto medo de ter errado de ter ofendido a Deus O Cônego devia ter razão era muito mais inteligente estava muito mais próximo de Deus que é a suprema inteligência O Cônego fez um gesto com a mão como quem relegava para longe aquele incidente da viúva e a sua voz se fez doce novamente Porém agora há coisa muito mais grave Por sua causa padre este arcebispado foi procurado pelas autoridades O senhor sabe o que fez Sabe O padre não tentou negar Foi o caso do menino com alastrim Um menino com varíola sim senhor E o senhor escondeu o caso das autoridades sanitárias O padre José Pedro tinha confiança na bondade de Deus Muitas vezes pensara que Deus aprovava o que ele estava fazendo Agora pensava isto também Aquele pensamento tinha enchido seu coração de repente Levantou o busto fixou a vista no Cônego O senhor sabe o que é o leprosário O Cônego não respondeu Pois é raro o homem que volta de lá Quanto mais uma criança Mandar uma criança para lá é cometer um assassinato Isso não é conosco respondeu o Cônego com voz inexpressiva mas cheia de decisão Isto é com a Saúde Pública Mas o nosso papel é respeitar as leis Mesmo quando atentam contra a lei da bondade de Deus Que sabe o senhor da bondade de Deus Que grande inteligência tem para saber dos desígnios de Deus O demônio da vaidade o dominou O padre José Pedro tentou explicar Eu sei que sou um padre ignorante e indigno de servir ao Senhor Mas estas crianças nunca tinham tido ninguém que olhasse por elas Eu tive a intenção A boa intenção não desculpa os maus atos cortou o Cônego com voz muito doce ao enunciar a sentença O padre José Pedro se sentiu novamente em dúvida Mas elevou o pensamento a Deus voltou parte da sua confiança Teriam sido maus Eram uns meninos que nunca tinham ouvido falar seriamente de Deus Misturam Deus com os santos dos negros não têm nenhuma idéia de religiãoEu quis ver se salvava aquelas almas Já lhe disse que suas intenções foram boas mas suas ações não corresponderam às intenções É que o senhor não conhece estes meninos o Cônego lhe deitou um olhar duro São meninos iguais a homens Vivem como homens conhecem a vida toda tudoE preciso tratar com jeito fazer concessões Por isso o senhor faz o que eles querem Às vezes tenho que fazer para conseguir um bom resultado Compactua com os roubos com os crimes destes perversos Que culpa eles têm o padre se lembrava de João de Adão Quem cuida deles Quem os ensina Quem os ajuda Que carinho eles têm estava exaltado e o Cônego se afastou mais dele enquanto o fitava com os olhinhos duros Roubam para comer porque todos estes ricos que têm para botar fora para dar para as igrejas não se lembram que existem crianças com fome Que culpa Calese a voz do Cônego era cheia de autoridade Que o visse falar diria que é um comunista que está falando E não é difícil No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido as teorias deles O senhor é um comunista um inimigo da Igreja O padre o olhou horrorizado O Cônego levantouse estendeu a mão para o padre Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras O senhor tem ofendido a Deus e à Igreja Tem desonrado as vestes sacerdotais que levaViolou as leis da Igreja e do Estado Tem agido como um comunista Por isso nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu Vá agora sua voz voltava a ser doce mas de uma doçura cheia de resolução uma doçura que não admitia réplicas penitenciese dos seus pecados dediquese aos fiéis da igreja em que trabalha e esqueça essas idéias comunistas senão teremos que tomar medidas mais sérias O senhor pensa que Deus aprova o que está fazendo Lembreseque a sua inteligência é muito pequena o senhor não pode penetrar nos desígnios de Deus Virou as costas ao padre e foi saindo O padre José Pedro deu dois passos até ele falou com voz estrangulada Se tem um até que quer ser padre O Cônego voltouse A entrevista está terminada padre José Pedro Pode se retirar e que Deus o ajude a pensar melhor Mas o padre ainda ficou parado uns minutos querendo dizer alguma coisa Mas não dizia nada estava como que apatetado olhando a porta por onde o Cônego tinha saído Naquele momento não podia pensar em nada Estava cômico com a mão ainda estendida o corpo meio caído para um lado a batina suja e remendada os olhos abertos apavorados os lábios tremendo como que querendo falar As pesadas cortinas impediam que a luz entrasse na sala O padre ainda se demorou na obscuridade Um comunista Uma orquestra vagabunda porém afinada tocava uma velha valsa na rua Fiquei sem alegria senhor meu Deus O padre José Pedro ia encostado à parede O Cônego dissera que ele não podia compreender os desígnios de Deus Não tinha inteligência estava falando igual a um comunista Era aquela palavra que mais perseguia o padre De todos os púlpitos todos os padres tinham falado contra aquela palavra E agora ele O Cônego era muito inteligente estava próximo de Deus pela inteligência eralhe fácil ouvir a voz de Deus Ele estava errado perdera aqueles dois anos de tanto trabalhoPensara levar tantas crianças a Deus Crianças extraviadas Será que elas tinham culpa Deixai vir a mim as criancinhas Cristo Era uma figura radiosa e moça Os sacerdotes também disseram que ele era um revolucionário Ele queria as crianças Ai de quem faça mal a uma criança A viúva Santos era uma protetora da Igreja Será que ela também ouvia a voz de Deus Dois anos perdidosFazia concessões sim fazia Senão como tratar com os Capitães da Areia Não eram crianças iguais às outras Sabiam tudo até os segredos do sexo Eram como homens se bem fossem crianças Não era possível tratálos como aos meninos que vão ao colégio dos jesuítas fazer a primeira comunhão Aqueles têm mãe pai irmãs padre s confessores e roupas e comida têm tudo Mas não seria ele quem podia dar lições ao Cônego O Cônego sabia de tudo era muito inteligente Podia ouvira voz de Deus Estava próximo de Deus Não foi dos alunos mais brilhantes Tinha sido dos piores Deus não ia falar a um padre ignorante Ouvia João de Adão Um comunista como João de Adão Mas os comunistas são maus querem acabar tudo João de Adão era um homem bom Um comunista E Cristo Não não podia pensar que Cristo fosse um comunista O Cônego devia entender melhor que um pobre padre de batina suja O Cônego era inteligente e Deus é a suprema inteligência Pirulito queria ser padre Queria ser padre sim a sua vocação era verdadeira Mas pecava todos os dias roubava assaltava Não era culpa deles Está falando como um comunista Por que este vai num automóvel fuma um charuto Falando como um comunista O Cônego disse será que Deus o perdoa O padre José Pedro vai encostado à parede As últimas notas da orquestra distante chegam aos seus ouvidos Os olhos do padre estão esbugalhados Sim padre José Pedro Deus às vezes fala aos mais ignorantes Aos mais ignorantes Ele era ignorante Mas Deus ouvi São uns pobres meninos Que sabem eles do bem e do mal Se ninguém nunca lhes ensinou nada Nunca ua mão de mãe nas suas cabeças Uma palavra boa de um pai Senhor eles não sabem o que fazemPor isso estive com eles fiz como eles queriam muitas vezes O padre aperta as mãos as eleva para o céu Será que um comunista age assim Dar um pouco de conforto àquelas pequenas almas Salválas melhorar seus destinos Antes dali só saíam ladrões batedores de carteira vigaristas os melhores eram os malandros A profissão mais digna Queria que agora saíssem homens para o trabalho honestos dignos Tinha que ir aos poucos Do reformatório saíam piores Não é com castigo brutal Deus ouvi Lá o castigo é brutal Só com paciência com bondade Cristo também pensava assim Por que como um comunista Deus pode falar a um ignorante Abandonar as crianças A paróquia está perdida Mãe velha que soluçará E a carreira da irmã na Escola Normal Também ela quer ensinar a crianças Mas serão outras crianças crianças com livros com pai com mãe Não serão iguais a estas abandonadas na rua dormindo sob a lua nas pontes nos trapiches Não pode abandonálas Com quem estará Deus Com o Cônego ou com o pobre padre A viúva Não Deus está com o padre Está com o padre Sou muito ignorante para ouvir a voz de Deus Se esconde na porta de uma igreja Mas por vezes Deus fala aos ignorantes Sai da porta da igreja continua a caminhada encostado na parede Continuará sim Se estiver errado Deus o perdoará As boas intenções não desculpam os maus atos Mas Deus é a suprema bondade Continuará Os Capitães da Areia talvez não dêem só ladrões E não seria uma grande alegria para Cristo Sim Cristo sorri É uma figura radiosa Sorri o padre José Pedro Obrigado meu Deus obrigado O padre ajoelha na rua levanta as mãos para o céu Mas olha a gente que sorri Se põe de pé espantado salta num bonde cheio de vergonha Um homem comenta Olha um padre bêbado Que descarado Todos riem no ponto de bondes BoaVida meteu a unha negra rasgou a bolha Depois espiou o braço estava cheio Por isso sentia tanto calor um amolecimento no corpo Era a febre da bexigaA cidade pobre estava assolada de bexiga Os médicos diziam que a epidemia já estava declinando mas ainda assim eram muitos os casos todos os dias ia gente para o lazareto Gente que não voltava pensou BoaVida Até Almiro por cuja causa se armara tão grande barulho no trapiche fora para o lazareto E não voltara Era um menino bonito Havia quem dissesse que ele e Barandão Mas não era ruim não aborrecia ninguém Sem Perna armara um escândalo Depois que soubera que ele morrera ficara ainda mais retraído parecia o culpado da morte de Almiro Não conversava com ninguém Só com o cachorro que arranjara Acaba doido pensou BoaVida Acendeu um cigarro Andou para o trapiche Só o Professor estava Àquelas horas da tarde era difícil que estivesse alguém no trapiche Professor viu quando ele entrou Passa um cigarro BoaVida BoaVida jogou um Chegou no seu canto fez uma trouxa com seus trapos Professor ficou espiando aquele movimento Tu vai embora BoaVida andou até ele com a trouxa debaixo do braço Tu não diz a ninguém Só a Bala Pra onde tu vai O mulato riu Pro lazareto Professor olhou os braços cheios de bolhas o peito Tu não vai BoaVida Por que mano Tu sabe É buraco na certa Tu pensa que eu vou ficar aqui pra pegar nos outros A gente trata de tu Morria tudo Almiro tinha casa tá certo Eu não tenho ninguém Professor calouse Queria dizer muita coisa O mulato estava na sua frente a trouxa debaixo do braço cheio de bolha de bexiga Boa Vida falou Tu diz a Pedro Bala Os outros não precisa Professor só soube dizer Tu vai mesmo BoaVida fez que sim saíram do trapiche BoaVida olhou a cidade fez um gesto com a mão Era como um adeus BoaVida era malandro e ninguém ama sua cidade como os malandros Olhou o Professor Quando tu fizer meu retrato Tu ainda vai fazer Vou BoaVida Vontade de dizer palavras carinhosas como a um irmão Não me faz cheio de bexiga não Seu vulto desapareceu no areal Professor ficou com as palavras presas um nó na garganta Mas também achava bonito BoaVida andar assim para a morte para não contaminar os outros Os homens assim são os que têm uma estrela no lugar do coração E quando morrem o coração fica no céu diz o QueridodeDeus BoaVida era um menino não era um homem Mas já tinha uma estrela no lugar do coração Já desapareceu o seu vulto E então a certeza de que não mais verá seu amigo encheu o coração do Professor A certeza de que o outro ia para a morte Nas macumbas em honra de Omolu o povo negro castigado com a bexiga cantava Cabono aziela engoma Quero vê couro zoa Omolu vai pro sertão Bexiga vai espalha Omolu espalhara a bexiga na cidade Era uma vingança contra a cidade dos ricos Mas os ricos tinham a vacina que sabia Omolu de vacinas Era um pobre deus das florestas dÁfrica Um deus dos negros pobres Que podia saber de vacinas Então a bexiga desceu e assolou o povo de Omolu Tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim bexiga branca e tola Assim mesmo morrera negro morrera pobre Mas Omolu dizia que não fora o alastrim que matara Fora o lazareto Omolu só queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros O lazareto é que os matava Mas as macumbas pediam que ele levasse a bexiga da cidade levasse para os ricos latifundiários do sertão Eles tinham dinheiro léguas e léguas de terra mas não sabiam tampouco da vacina O Omolu diz que vai pro sertão E os negros os ogãs as filhas e paisdesanto cantam Ele é mesmo nosso pai e é quem pode nos ajudar Omolu promete ir Mas para que seus filhos negros não esqueçam avisa no seu cântico de despedida Ora adeus ó meus filhinhos Queu vou e torno a vortá E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas numa noite de mistério da Bahia Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de JuazeiroA bexiga foi com ele BoaVida voltou magro a roupa dançando no seu corpo A cara agora estava toda picada Os outros o olharam ainda com receio quando naquela noite ele entrou no trapiche Mas Professor andou logo para ele Ficou bom mulato BoaVida sorriu Vinham apertar a mão dele Pedro Bala lhe deu um abraço Mulato bom Mulato batuta Até SemPernas veio João Grande ficou junto de BoaVida 0 mulato olhou os amigos Pediu um cigarro Sua mão estava descarnada o rosto ossudo Ficou calado olhando com amor o velho trapiche os meninos o cachorro que estava deitado no colo do SemPernas Então João Grande perguntou Como era o lazareto BoaVida se voltou rápido Seu rosto tomou uma expressão amarga de desgosto Demorou um pouco a responder Depois as palavras saíram com dificuldade Ninguém sabe dizer não É uma coisa por demais Uma nojeira A gente quando entra é igual um que entra no caixão Olhou os outros que estavam suspensos das suas palavras Sua voz era amarga Igual que entrasse pro caixão pra ir pro cemitério Igual Não achou mais que dizer SemPernas perguntou entre dentes Que mais Nada Nada Não sei não Por Deus não pergunte baixou a cabeça que balançava para todos os lados Sua voz saiu muito baixa como que ainda amedrontada É mesmo que ir pro cemitério Tudo já está morto Olhou como se pedisse que não lhe perguntassem mais nada João Grande disse para os outros A gente não devia perguntar nada BoaVida apoiou com um gesto da mão Disse baixinho Nada É ruim demais Professor olhou o peito de BoaVida Estava todo picado da varíola Mas no lugar do coração Professor viu uma estrela Uma estrela no lugar do coração Destino Ocuparam a mesa do canto O gato puxou o barulho Mas nem Pedro Bala nem João Grande nem Professor tampouco BoaVida se interessaram Esperavam o QueridodeDeus na Porta do Mar As mesas estavam cheias Muito tempo a Porta do Mar andara sem fregueses A varíola não deixava Agora que ela tinha ido embora os homens comentavam as mortes Alguém falou no lazareto É uma desgraça ser pobre disse um marítimo Numa mesa pediram cachaça Houve um movimento de copo no balcão Um velho então disse Ninguém pode mudar o destino É coisa feita lá em cima apontava o céu Mas João de Adão falou de outra mesa Um dia a gente muda o destino dos pobres Pedro Bala levantou a cabeça Professor ouviu sorridente Mas João Grande e BoaVida pareciam apoiar as palavras do velho que repetiu Ninguém pode mudar não Está escrito lá em cima Um dia a gente muda disse Pedro Bala e todos olharam para o menino Que é que tu sabe frangote perguntou o velho É filho do Loiro fala a voz do pai respondeu João Adão olhando com respeito O pai morreu pra mudar o destino da gente Olhou para todos O velho calou e também olhava com respeito A confiança foi de novo chegando para todos Lá fora um violão começou a tocar Noite da grande paz da grande paz dos teus olhos Filha de Bexiguento A música já recomeçara no morro Os malandros voltavam a tocar violão a cantar modinhas a inventar sambas que depois vendiam aos sambistas célebres da cidadeNa venda de Deoclécio novamente ficava um grupo todas as tardes Durante algum tempo tudo cessara no morro para dar lugar ao choro e lamentações das mulheres e criançasOs homens passavam de cabeça baixa para as suas casas ou para o trabalho E os caixões negros de adultos os caixões brancos de virgens os pequenos caixões de crianças desciam as ásperas ladeiras do morro para o cemitério distante Isso quando não eram sacos que desciam com os variolosos ainda vivos que eram levados para o lazaretoA família chorava como choraria a um morto pela certeza de que eles não voltariam jamais Nem a música de um violão Nem a voz cheia de um negro cortava então a tristeza do morro Só a reza das sentinelas o choro convulsivo das mulheres Assim estava o morro quando Estêvão foi levado para o lazareto Não voltou certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá Nesta tarde ela já estava com febreMas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a notícia conseguiu não ser metida num saco Aos poucos foi melhorando Os dois filhos andavam pela casa fazendo o que ela mandava Zé Fuinha era um bocado inútil ainda não sabia fazer nada com seus seis anos Mas Dora tinha treze para quatorze anos os seios já haviam começado a surgir sob o vestido parecia uma mulherzinha muito séria a buscar os remédios para a mãe a tratar dela Margarida melhorou quando já os violões recomeçavam a tocar no morro porque a epidemia de varíola tinha se acabado A música voltou a dominar as noites do morro e Margarida se bem ainda não estivesse completamente boa foi ã casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa Voltou com a trouxa nas costas se atirou para a fonte Trabalhou o dia todo sob o sol e a chuva que caiu pela tarde No outro dia não voltou ao trabalho porque recaiu do alastrime a recaída é sempre terrível Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela varíola Dora não soluçava Corriam as lágrimas pelo seu rosto mas enquanto o caixão descia ela pensava era em Zé Fuinha que pedia o que comer O irmãozinho chorava de dor e de fome Era muito menino para compreender que tinha ficado sem ninguém na imensidão da cidade Os vizinhos deram jantar aos órfãos nesta tarde No outro dia pela manhã o árabe que era dono dos barracões do morro mandou derramar álcool no de Margarida para desinfetar E logo o alugou pois era um barracão bem situado bem no alto da ladeira E enquanto os vizinhos discutiam o problema dos órfãos Dora tomou o irmão pela mão e desceu para a cidade Não se despediu de ninguém era como uma fuga Zé Fuinha ia sem saber para onde arrastado pela irmã Dora marchava tranqüila Na cidade havia de encontrar quem lhes desse de comer quem pelo menos tomasse conta de seu irmão Ela arranjaria um emprego de copeira numa casa Ainda era uma menina mas havia muitas casas que preferiam mesmo uma menina porque o ordenado era menor Sua mãe certa vez falara em a empregar de copeira na casa de uma freguesa Dora sabia onde era e se dirigiu para lá O morro a música dos violões o samba que um negro cantava ficaram para trás Os pés descalços de Dora se queimam no asfalto ardente Zé Fuinha vai alegre vendo a cidade para ele desconhecida os bondes que passam repleto as marinetes que buzinam a multidão que corta as ruas Dora fora com Margarida certa vez à casa desta freguesa É na Barra elas tinham ido num bonde bagageiro levando a trouxa de roupa lavada A dona da casa fizera festa a Dora perguntara se ela queria vir trabalhar ali Margarida ficara de trazêla quando ela estivesse mais crescida Era para lá que Dora pensava ir E perguntando a ume a outro tomou o caminho da Barra A caminhada era grande o sol no asfalto queimava seus pés sem sapato Zé Fuinha começou a pedir de comer e a se queixar do cansaço Dora o acalentou com promessas e seguiram Mas no Campo Grande Zé Fuinha não pôde mais A caminhada era demasiada para ele para os seus seis anos Então Dora entrou numa padaria trocou os únicos quinhentos réis que possuía comprou dois pães dormidos deixou Zé Fuinha sentado num banco com os pães Tu come e me espera tá ouvindo Eu vou ali volto já Mas não vá sair daqui senão você se perde Zé Fuinha prometeu com uma cara muito séria dando dentadas nos pães duros Ela o beijou e seguiu O guarda que a informou olhou para os seus seios que nasciam 0 cabelo loiro dela maltratado voava com o vento Sentia queimaduras nas solas dos pés e um cansaço no corpo todo Mas seguiu O número era 611 Quando chegou ao 53 parou um pouco para descansar e pensar o que diria à dona da casa Depois retomou a caminhada Agora a fome ajudava a magoar seu corpo a fome terrível das crianças de 13 anos uma fome que exige comida imediatamente Dora tinha vontade de chorar de se deixar cair na rua sob o sol e não fazer movimentos Uma saudade dos pais mortos a invadiu Mas reagiu contra tudo e continuou O 611 era uma casa grande quase um palacete com árvores na frente Numa mangueira um balanço onde uma menina da idade de Dora se divertia Um rapazote dos seus 17 anos a balançava e riam os dois Eram os filhos do dono da casa Dora ficou a olhálos com inveja uns minutos Depois tocou a campainha O rapaz olhou mas continuou a balançar a irmã Dora tocou novamente a empregada veio Ela explicou que queria falar com dona Laura a patroa A empregada a olhou com desconfiança Mas o rapazola deixou de balançar a irmã e andou até o portão Espiava os seios mal nascidos de Dora os pedaços de coxas que apareciam sob o vestido Perguntou O que é que você quer Eu queria falar com dona Laura Sou filha de Margarida que foi lavadeira dela Não vê que ela morreuO rapaz não despregava os olhos dos seios de Dora Era bonita a menina de olhos grandes cabelo muito loiro neta de italiano com mulata Margarida dizia que ela puxara ao avô que também tinha cabelos muito loiros e um bigodão bem tratado Dora baixou os olhos porque o rapaz não tirava os dele dos seus peitosEle também se desconcertou falou para a empregada Vá chamar mamãe Sim senhor O rapaz puxou um cigarro acendeu Jogou a fumaça para cima estendendo o beiço deu mais uma espiada para os peitos de Dora Você está procurando emprego Tou sim senhor O vento levantou um pouco o vestido dela Ele teve pensamento canalhas ao ver o pedaço de coxa Já se sonhava na cama Dora trazendo o café pela manhã a safadeza que se seguiria Vou ver se mamãe arranja um lugar pra você Ela agradeceu Mas estava um pouco assustada se bem lhe escapasse muito da malícia dos olhares dele Dona Laura chegou os cabelos grisalhos a filha atrás dela espiando Dora com olhos compridos Era sardenta mas tinha certa graça Dora contou que a mãe tinha morrido A senhora tinha me prometido um emprego De que foi que Margarida morreu De bexiga sim senhora Dora não sabia que dizendo aquilo tinha perdido a possibilidade do emprego De varíola A mocinha se afastou receosa Até o rapaz se desviou um pouco pensou nos seios pequenos de Dora marcados de varíola Cuspiu com nojo Dona Laura tomou um tom triste É que já tomei outra empregada Agora não tenho necessidade Dora pensou em Zé Fuinha A senhora não tem precisão de um menino pequeno pra faz compra recados estas coisas É meu irmão Não minha filha não tenho Não sabe de ninguém Não Se soubesse recomendaria você Queria acabar a conversa Voltouse para o filho Você tem dois milréis aí Emanuel Pra que mamãe Me dê O rapaz deu ela pôs em cima da grade Tinha medo de tocar em Dora queria que fosse dali antes de contagiar a casa Leve isso para você Que Deus lhe ajude Dora voltou a descer a rua O rapaz ainda espiou as nádegas que apareciam redondas sob o vestido apertado Mas a voz de dona Laura o interrompeu Ela falava para a empregada Dos Reis passe um pano com álcool no portão onde esta menina pegou Não é bom brincar com varíola O rapaz voltou a balançar a irmã sob as mangueiras Mas de vez em quando suspirava para si mesmo tinha uns peitos muito bons Zé Fuinha não estava no banco Dora levou um susto Era capaz que o irmão tivesse saído andando pela cidade e se perdesse E como ela o iria encontrar ela que tão pouco conhecia a cidade Demais um grande cansaço a invadia um desânimo saudade da mãe morta vontade de chorar Os pés doíam e ela tinha fome Pensou em comprar pão agora possuía dois mil e quatrocentos mas em vez disto saiu em busca do irmão Foi encontrálo embaixo das árvores do jardim comendo ameixas verdes Dora deulhe uma pancada na mão Tu não sabe que isso faz dor de barriga Tou com fome Ela comprou pão comeram A tarde toda foi uma caminhada de um lado para outro à procura de emprego Em todas as casas diziam que não o medo da varíola era maior que qualquer bondade No começo da noite Zé Fuinha não se agüentava mais de cansado Dora estava triste e pensava em voltar ao morro Ia ser uma carga para os vizinhos pobres Não queria voltar Do morro sua mãe tinha saído num caixão seu pai metido num saco Mais uma vez deixou Zé Fuinha sozinho num jardim para ir comprar o que comer numa padaria antes que fechasse Gastou os últimos níqueis As luzes se acenderam e ela achou a princípio muito bonito Mas logo depois sentiu que a cidade era sua inimiga que apenas queimara os seus pés e a cansara Aquelas casas bonitas não a quiseram Voltou curvada afastando com as costas das mãos as lágrimas E novamente não encontrou Zé Fuinha Depois de andar em volta do jardim foi dar com o irmão que espiava um jogo de gude entre dois garotos um negro forte e um magrelo branco Dora sentou num banco chamou o irmão Os garotos que jogavam se levantaram também Ela desembrulhou os pães deu um a Zé Fuinha Os garotos a olhavam O preto estava com fome ela bem viu Ofereceu do pão a eles Ficaram os quatro comendo o pão dormido era mais barato em silêncio Quando terminaram o preto bateu as mãos uma na outra falou Teu irmão disse que a mãe de você morreu de bexiga Papai também Lá também morreu um Teu pai Não Foi Almiro um do grupo O branco magrelo que tinha estado calado perguntou Você arranjou onde trabalhar Ninguém quer filha de bexiguento Agora chorava Zé Fuinha brincava no chão com as bolas que os outros tinham deixado perto das árvores O preto coçava a cabeça 0 magrelo olhou para ele depois para Dora Tu tem onde dormir Não O magrelo falou para o negro A gente leva ela pro trapiche Uma menina O que é que Bala vai dizer Tá chorando disse o magrelo em voz muito baixa O negro olhou Evidentemente estava atarantado O branco coçou o pescoço espantando uma mosca Botou a mão no ombro de Dora muito devagarinho como se tivesse medo de a tocar Vem com a gente A gente dorme num trapiche O preto fez esforço para sorrir Não é um palacete mas é melhor que a rua Andaram João Grande e Professor iam na frente Ambos tinham vontade de conversar com Dora mas nenhum sabia o que dizer não tinham se visto ainda num apuro assimA luz das lâmpadas batia nos cabelos loiros dela O preto disse É uma lindeza Batuta fez Professor Mas não olhavam nem os seios nem as coxas Olhavam o cabelo loiro batido pela luz das lâmpadas elétricas No areal Zé Fuinha não pôde mais ir andando O negro João Grande pegou a criança apesar de ser também criança e a botou nas costas Professor ia junto de Dora mas estavam calados na noite Entraram no trapiche meio desconfiados João Grande arriou Zé Fuinha no chão ficou parado esperando que o Professor e Dora entrassem Foram todos para o canto do Professor que acendeu a vela Os outros espiavam para o canto com surpresa O cachorro do SemPernas latiu Gente nova murmurou o Gato que ia sair Gato andou até onde eles estavam Quem é Professor A mãe e o pai morreu de bexiga Tavam na rua sem ter onde dormir Gato olhou para Dora ensaiando seu melhor sorriso Fez uma espécie de saudação tinha visto num cinema um galã fazendo com o corpo ensaiou uma frase que tinha ouvido certa vez Boasvindas madame Não se lembrou do resto ficou meio encabulado foi embora ver Dalva Mas os demais já se aproximavam SemPernas e BoaVida vinham na frente Dora olhava assustadaZé Fuinha dormia de cansaço João Grande se pôs na frente de Dora A luz da vela iluminava o cabelo loiro da menina de quando em vez pousava nos seios se levantou encostouse na parede Agora a lua aparecia pelos buracos do teto BoaVida estava diante deles SemPernas vinha coxeando e os outros logo atrás os olhos estirados para Dora BoaVida falou Quem é essa lasca Professor se adiantou Tava com fome Ela e o irmão A bexiga matou o pai e a mãe BoaVida riu um riso largo Empinou o corpo É um peixão SemPernas riu seu riso burlão apontou os outros Tá tudo como urubu em cima da carniça Dora se chegou para junto de Zé Fuinha que acordara e tremia de medo Uma voz disse entre os meninos Professor tu tá pensando que a comida é só pra tu e pra João Grande Deixa pra nós também Outro gritou Já tou com o ferro em brasa Muitos riram Um se adiantou mostrou o sexo a João Grande Vê como a bichinha está Grande Doidinha João Grande e se pôs na frente de Dora Não dizia nada mas puxou o punhal O SemPernas gritou Tu assim não arranja nada Ela tem que ser pra todos Professor replicou Não tão vendo que é uma menina Já tem peito gritou uma voz Volta Seca saiu de entre o grupo Trazia os olhos muito excitado um riso no rosto sombrio Lampião também não respeita cara Dá ela pra gente Grande Sabiam que Professor era fraco não agüentava pancada Estava doidamente excitados mas ainda temiam João Grande que segurava o punhal Volta Seca se via como no meio do grupo de Lampião pronto para deflorar junto com todos uma filha de fazendeiro A vela iluminava os cabelos loiros de Dora Ia um pavor pelo rosto dela João Grande não dizia nada mas segurava o punhal na mão Professor abriu a navalha ficou junto dele Então Volta Seca também puxou do punhal começou a avançarOs outros vinham por detrás dele o cachorro latia BoaVida falou mais uma vez Desaparta Grande É melhor Professor pensava que se o Gato estivesse ali estaria do lado deles porque o Gato já tinha mulher Mas o Gato já tinha saído Dora via o grupo avançar O medo foi vencendo o desânimo e o cansaço em que estava Zé Fuinha chorava Dora não tirava os olhos de Volta Seca A cara sombria do mulato estava aberta em desejo um riso nervoso a sacudia Viu também os sinais da varíola no rosto de BoaVida quando este passou em frente da vela e então se lembrou da mãe morta Um soluço a sacudiu e deteve um momento os meninos Professor disse Não vê que ela tá chorando Eles pararam um momento Mas Volta Seca falou E nós com isso A babaca é a mesma Continuaram avançando Iam vagarosamente os olhos fixos ora em Dora ora no punhal que João Grande tinha na mão De repente se apressaram chegaram muito mais perto João Grande falou pela primeira vez Furo o primeiro BoaVida riu Volta Seca manejou o punhal Zé Fuinha chorava Dora o olhou com os olhos apavorados Se abraçou nele viu João Grande derrubar BoaVida A voz de Pedro Bala que entrava fez com que parassem Que diabo é isso Professor levantouse Volta Seca o soltou já o havia cortado no braço BoaVida ficou deitado como estava um talho no rosto João Grande continuou em guarda na frente de Dora Pedro Bala se adiantou Que é isso BoaVida falou do chão mesmo Estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para ele só A gente também tem direito Também Eu pelo menos quero trepar hoje esganiçou SemPernas Pedro Bala olhou para Dora Vm os peitos o cabelo loiro Tão com o direito falou Arreda João Grande O negro olhou Pedro Bala espantado O grupo avançava novamente agora chefiado por Pedro Bala João Grande estendeu os braços gritou Bala eu como o primeiro que chegar aqui Pedro Bala adiantou mais um passo Sai Grande Tu não tá vendo que é uma menina Tu não tá vendo Pedro Bala parou o grupo parou atrás dele Agora Pedro Bala olhava Dora com outros olhos Via o terror no rosto dela as lágrimas que caíam dos olhos Ouviu o choro de Zé Fuinha João Grande falava Eu sempre tive contigo Bala Sou teu amigo mas ela é uma menina fui eu e Professor que trouxe ela Eu sou teu amigo mas se tu vier eu te mato É uma menina ninguém faz mal a ela A gente te derruba e depois disse Volta Seca Cala a boca gritou Pedro Bala João Grande continuou O pai dela a mãe dela morreu de bexiga A gente encontrou ela não tinha onde dormir a gente trouxe ela Não é uma puta é uma menina não vê que é uma meninaNinguém toca nela Bala Pedro Bala disse baixinho É uma menina Pulou para o lado de João Grande e de Professor Tu é um negro bom Tu tá com o direito voltouse para os outros Quem quiser vir venha Tu não pode fazer isso Bala e BoaVida passava a mão no talho Tu agora quer comer ela só com o Grande e Professor Juro que não quem comer ela nem eles quer É uma menina Mas ninguém toca nela Quem quiser que venha Os menores e mais medrosos foram se afastando BoaVida se levantou foi para seu canto limpando o sangue Volta Seca falou para Pedro Bala devagar Eu não vou não é de medo É que tu disse que é uma menina Pedro Bala se aproximou de Dora Tem medo não Ninguém toca em você Ela saiu do seu canto arrancou um pedaço da fralda começou a ver a ferida do Professor Depois marchou para onde estava BoaVida que se encolheu todo molhou a ferida do malandro botou um pano em cima Todo o temor todo o cansaço tinham desaparecido Porque confiava em Pedro Bala Depois perguntou a VoltaSeca Também tá ferido Não fez o mulato sem compreender E fugiu para seu canto Parecia ter medo de Dora SemPernas espiava O cachorro saiu do colo dele veio lamber os pés de Dora Ela o acarinhou perguntou ao SemPernas É teu É sim Mas pode ficar com ele Ela sorriu Pedro Bala andou ao léu no trapiche Depois disse para todos Amanhã ela vai embora Não quero menina aqui Não disse Dora Eu fico ajudo vocês Eu sei cozinhar coser lavar roupa Por mim pode ficar falou Volta Seca Dora olhou Pedro Bala Tu disse que ninguém me fazia mal Pedro Bala olhou os cabelos loiros A lua entrava pelo trapiche Dora Mãe O gato veio gingando o corpo naquele seu caminhar característico Andara procurando enfiar a linha na agulha uma imensidade de tempo Dora fizera Zé Fuinha dormir agora se preparava para ouvir Professor ler aquela história tão bonita que estava no livro de capa azul O Gato veio gingando o corpo se aproximou devagar Dora Que é Gato Tu quer fazer uma coisa Mirava a agulha e a linha que tinha na mão Parecia estar diante de um problema grave Não sabia como se arranjar Professor parou a leitura Gato mudou de conversa Tu ainda fica cego de tanto lê Professor Se ainda fosse luz elétrica olhou Dora sem se resolver Que é Gato Esse diabo desta linha Nunca vi coisa mais difícil Meter isso no rabo desta agulha Dê cá Enfiou a linha deu um nó numa das pontas Gato disse para Professor Só mulher é que sabe fazer esse troço Estendeu a mão para receber a agulha mas Dora não entregou Perguntou o que é que Gato tinha que coser Gato mostrou o paletó roto no bolso Era aquela roupa de casimira que fora do SemPernas quando ele andara feito menino rico numa casa da Graça É uma roupa porreta fez o Gato Boa mesmo apoiou Dora Tira o casaco Professor e Gato ficaram vendo ela coser Em verdade não era uma maravilha de costura mas eles nunca tinham tido ninguém que remendasse suas roupas E somente Gato e Pirulito tinham costume de remendar eles mesmos as suas Gato porque era metido a elegante e tinha uma amante Pirulito porque gostava de andar limpo Os outros deixavam que os farrapos que arranjavam se esfarrapassem ainda mais até se tornarem trapos inúteis Então mendigavam ou furtavam outra calça e outro paletó Dora acabou o serviço Tem mais Gato alisou o cabelo cheio de brilhantina As costas da camisa Virouse A camisa estava rasgada de cima a baixo Dora mandou que ele sentasse começou a coser no corpo dele mesmo Quando os dedos dela tocaram pela primeira vez nas costas de Gato ele sentiu um arrepio Como quando Dalva passava as unhas crescidas e tratadas arranhando suas costas e dizendo A gatinha arranha o gatinho Mas Dalva não cosia suas roupas talvez nem soubesse enfiar uma linha no fundo de uma agulha Gostava era de se bater com ele na cama arranhar suas costas mas de propósito pra o arrepiar e o excitar para que o amor se fizesse ainda melhor E Dora não Não era de propósito A mão dela unhas maltratadas e sujas roídas a dente não queria excitar nem arrepiar Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas do filho A mãe do Gato morrera cedo Era uma mulher frágil e bonitaTambém tinha as mãos maltratadas que esposa de operário não tem manicura E era dela também aquele gesto de remendar as camisas de Gato mesmo nas costas de GatoA mão de Dora o toca de novo Agora a sensação é diferente Não é mais um arrepio de desejo É aquela sensação de carinho bom de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe Dora está por detrás dele ele não vê Imagina então que é sua mãe que voltou Gato está pequenino de novo vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo E sua mãe vem faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis manejam a agulha de quando em vez o tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta Nenhum desejo Somente felicidade Ela voltou remenda as camisas do Gato Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir como quando era pequenino Se recorda que ainda uma criança Mas só na idade porque no mais é igual a um homem furtando para viver dormindo todas as noites com uma mulher da vida tomando dinheiro dela Mas nesta noite é totalmente criança esquece Dalva suas mãos que o arranham lábios que prendem os seus em beijos longos sexo que o absorve Esquece sua vida de pequeno batedor de carteiras de dono de um baralho marcado jogado desonesto Esquece tudo é apenas um menino de quatorze anos com uma mãezinha que remenda suas camisas Vontade de que ela cante para ele dormir Uma daquelas cantigas de ninar que falam em bicho papão Dora morde a linha se inclina para ele Os cabelos loiro dela tocam no ombro do Gato Mas ele não tem outro desejo senão que ela continue a ser sua mãezinha Sua felicidade naquele momento é quase absurda É como se não houvesse existido toda a sua vida depois da morte da sua mãe É como se tivesse se conservado um criança igual a todas Porque nesta noite sua mãe voltou Por isso a inconsciente carícia dos cabelos loiros de Dora não excita seu desejo Mas aumenta sua felicidade E a voz dela que diz tá pronto Gato soa aos seus ouvidos direitinho a voz doce e musical de sua mãe que cantava a cabeça do Gato recostada no seu colo cantigas de ninar Levanta olha Dora com olhos agradecidos Você é a mãezinha da gente agora mas fica encabulada do que diz pensa que Dora não compreenderá mesmo porque ela esta rindo com seu rosto sério de quase mulherzinha Mas Professor compreende e Gato na frente de Dora falando numa voz feliz mas sem desejo chamandoa de mãe e ela sorrindo com seu ar maternal de quase mulherzinha fica gravado na cabeça de Professor como um quadro Gato joga o paletó nas costas e sai com seu passo gingado Sente que há qualquer coisa de novo no trapiche eles encontraram mãe carinho e cuidados de mãe Dalva o estranha nesta noite Que foi que Gatinho teve Que foi Mas ele guarda seu segredo É uma coisa tão grande demais encontrar na terra uma mãe que já morreu Dalva não o entenderia Quando Professor estava começando a história João Grande chegou e sentouse ao lado deles A noite era chuvosa Na história que Professor lia a noite era chuvosa também e o navio estava em grande perigo Os marinheiros apanhavam de chicote o capitão era um malvado O barco a vela parecia soçobrar a cada momento o chicote dos oficiais caía sobre as costas nuas dos marinheiros João Grande tinha uma expressão de dor no rosto Volta Seca chegou com um jornal mas não interrompeu a história ficou ouvindo Agora o marinheiro John apanhava chibatadas porque escorregara e caíra no meio do temporal Volta Seca interrompeu Se Lampião tivesse aí já tinha comido esse capitão no fuzil Foi o que fez o marinheiro James um homenzarrão Se atirou em cima do capitão a revolta estalou no buque Lá fora chovia Chovia na história também era a história de um temporal e de uma revolta Um dos oficiais ficou do lado dos marinheiros É do balacobaco disse João Grande Amavam o heroísmo Volta Seca espiou Dora Os olhos dela brilhavam ela amava o heroísmo também Isso agradou ao sertanejo Depois o marinheiro James sustentou uma luta feroz Volta Seca assoviou como um passarinho de tanto contentamento Dora riu também satisfeita Riram os dois juntos logo foi uma gargalhada dos quatro como era costume dos Capitães da Areia Gargalharam alguns minutos outros se aproximaram a tempo de ouvir o resto da história Olhavam o rosto sério de Dora rosto de uma quase mulherzinha que os fitava com carinho de mãe Sorriam e quando o marinheiro James jogou o capitão do navio num barco salvavidas e o chamou de cobra sem veneno eles todos gargalharam junto com Dora e a olharam com amor Como crianças olham a mãe muito amada Quando a história acabou eles voltaram para os seus cantos entre comentários Porreta Macho bamba Também era um prensa O capitão fez uma cara hein Volta Seca espichou o jornal para Professor Dora olhou o mulato ele sorriu meio confuso É que traz notícias de Lampião seu rosto sombrio clareava Tu sabe que Lampião é meu padrim Padrinho Pois é Foi minha mãe que tomou porque Lampião é um macho de verdade não respeita cara Minha mãe era uma mulher valente uma mulher capaz de agüentar um fuzil Um dia fez correr dois soldados que se fizeram de besta Era um mulherão Valia um homem Dora ouvia encantada Seu rosto sério fitava com a maior simpatia o rosto sombrio do mulato Volta Seca ficou calado mas num jeito de quem queria dizer alguma coisa Por fim falou Tu também é valente Sabe Minha mãe era um mulherão destas grandes Era mulata não tinha cabelo loiro tinha uma carapinha danada Não era mais menina também podia ser tua avó Mas tu parece com ela Olhou Dora mas baixou a cabeça Parece mentira mas tu me lembra ela Parece mentira mas tu parece com ela Professor olhou com seus olhos de míope Volta Seca quase gritava seu rosto sombrio tinha a alegria de uma descoberta Também ele descobriu sua mãe pensou ProfessorDora estava séria mas sei olhar era carinhoso Volta Seca riu ela riu virou logo gargalhada Mas Professor não os acompanhou na gargalhada Começou a ler muito rápido o relato do jornal Lampião fora pegado de surpresa ao entrar numa vila O chofer de um caminhão que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila e avisara Dera tempo de pedirem reforços de vilas próximas e a coluna volante também veio Quando Lampião entrou na vila encontrou foi bala muita pela frente bala que ele não esperava O tiroteio foi grande Lampião só pôde mesmo abrir para a caatinga que é sua casa Um dos homens do grupo ficou estirado com um balaço no peito Cortaram a cabeça dele que foi enviada para a Bahia em triunfo Vinha a fotografia no jornal A boca aberta os olhos furados um homem segurando pela carapinha rala Tinham cortado o pescoço a facão Dora comentou Coitado dele Que judiaria Volta Seca olhou agradecido Seus olhos estavam injetados seu rosto todavia mais sombrio Dolorosamente sombrio Filho de uma égua disse baixo Filho de uma égua de chofer Se um dia eu te pegar A notícia adiantava que Lampião devia ter outros homens feridos pois a retirada do grupo fora por demais rápida Volta Seca falou em surdina Era como se falasse para si mesmo Já tá em tempo deu ir Pra onde perguntou Dora Pra junto de meu padrim Ele tá precisando de mim Ela o olhou com tristeza Tu vai mesmo Volta Seca Vou sim E se a polícia te matar cortar tua cabeça Juro que eu eles não topa vivo Vou com um mas eu eles não topa vivo Não tem medo não Afirmava à sua mãe forte e valente mulata sertaneja capaz de brigar com soldados comadre de Lampião amásia de cangaceiro que podia confiar nele que não o pegariam vivo que lutaria até morrer Dora ouvia com orgulho Professor apertou os olhos e viu também em lugar de Dora uma sertaneja forte defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis com a ajuda amiga dos cangaceirosViu a mãe de Volta Seca E era o que o mulato via Os cabelos loiros eram carapinha rala os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja o rosto grave era o rosto sombrio da camponesa explorada E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho Pirulito a viu chegar com desconfiança Para ele Dora era o pecado Havia bastante tempo que ele desistira das negrinhas do areal e da quentura dos corpos se embolando no areal Se despia aos poucos dos seus pecados para aparecer puro aos olhos de Deus e poder merecer a graça de se vestir com as vestes dos sacerdotes Pensava mesmo em arranjar um lugar de vendedor de jornais para fugir do pecado diário do furto Olhava Dora com receio a mulher era o pecado Em verdade ela era apenas uma criança uma criança abandonada como eles Não ria como as negrinhas do areal um riso insolente de convite um riso de dentes apertados pelo desejo Seu rosto era sério parecia o rosto de uma mulherzinha muito digna Mas os pequenos seios que nasciam se empinavam no vestido o pedaço de coxa que aparecia era branco e redondo Pirulito tinha medo Não tanto da tentação de Dora Ela não parecia das que tentavam era uma criança era muito cedo para isto Mas tinha medo da tentação que vinha dentro dele que o demônio punha dentro dele E procurava rezar em voz baixa enquanto ela se aproximava Dora ficou olhando os quadros de santo Professor parou atrás dela olhava também Havia flores sob a imagem do Menino Deus que Pirulito furtara um dia Dora chegou mais perto É uma beleza O medo começou a desaparecer do coração do Pirulito Ela se interessava pelos seus santos santos para os quais ninguém ligava no trapiche Dora perguntou É tudo teu Pirulito fez que sim com a cabeça e sorriu Se adiantou mostrou tudo que possuía Os quadros o catecismo o terço tudo Ela olhava com satisfação Sorria também enquanto Professor a espiava com os olhos míopes Pirulito contava a história de Santo Antônio que tinha estado em dois lugares ao mesmo tempo Isso para salvar seu pai da forca para a qual fora condenado injustamente Contava do mesmo modo como Professor lia histórias heróicas de marinheiros corajoso e revoltosos Dora escutava com a mesma atenção e a mesma simpatia Conversavam os dois Professor calado ouvindo Pirulito contou coisas da sua religião milagres de santos a bondade do padre José Pedro Quando tu conhecer ele vai gostar Ela disse que com certeza Ele já havia esquecido que ela podia trazer a tentação nos seios de menina nas coxas gordas na cabeleira loira agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho Como a uma mãe Só então compreendeu Porque naquele momento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser sacerdote que queria seguir aquela vocação que sentia o chamado de Deus Só à sua mãe teria coragem de contar isso E ela está na sua frente Ele fala Tu sabe que eu quero ser padre Que bom fez ela O rosto de Pirulito se iluminou Olhou para Dora falou com a voz exaltada Tu pensa que eu mereço Deus é bom mas também sabe castigar Por quê havia espanto na pergunta de Dora Tu não vê que a vida da gente é cheia de pecado Todo dia A culpa não é da gente esclareceu Dora A gente não tem ninguém Mas agora Pirulito tinha a ela A sua mãe Riu satisfeito Padre José Pedro também já disse isso É capaz Riu mais ela sorriu também animando é capaz de que um dia eu seja padre Tu vai ser sim Tu quer esse Deus Menino pra tu perguntou ele de repente Era como um filho que levasse parte da sua guloseima para sua mãe que lhe dera o níquel para que comprasse E Dora aceitou como uma mãe aceita parte da guloseima do filho querido para que este fique satisfeito Professor via a mãe de Pirulito que não sabia como era como fora Mas a via ali no lugar de Dora Sentiu inveja da felicidade de Pirulito Encontraram Pedro Bala estendido na areia O chefe dos Capitães da Areia não entrara para o trapiche nesta noite Ficara espiando a lua deitado na quentura boa da areia A chuva tinha cessado e vento que corna agora era morno Professor deitou também Dora sentou entre os dois Pedro Bala a espiou pelo canto dos olhos puxou o boné mais para a cara Dora disse voltada para ele Tu ontem foi bom comigo e meu irmão Tu devia ir embora respondeu Bala Ela não disse nada mas ficou triste Professor então falou Não Bala É como uma mãe Como uma mãe sim Pra todos Repetia É como uma mãe Como uma mãe Pedro Bala olhou os dois Suspendeu o boné sentou na areia Mas Dora o olhava com carinho Para ele Para ele era tudo esposa irmã e mãe Sorriu confuso para Dora Pensei que fosse ser uma tentação pra todos Ela fez que não ele continuou Depois podiam aproveitar uma hora que a gente não estava Riram Professor repetiu mais uma vez Não É como uma mãezinha Tu pode ficardisse Pedro Bala e Dora sorriu para ele era o seu herói uma figura que ela nunca tinha imaginado mas que um dia haveria de imaginar Amavao como a um filho sem carinho um irmão corajoso um amado tão belo como não havia outro Mas Professor viu os sorrisos dos dois E disse ainda uma vez com voz sombria É como mãe Dora Irmã e Noiva Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia o trocou por umas calças que deram a Brandão numa casa da cidade alta As calças tinham ficado enormes para o negrinho ele então as ofereceu a Dora Também estavam grandes para ela teve que as cortar nas pernas para que dessem Amarrou com cordão seguindo o exemplo de todos o vestido servia de blusa Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes todos a poderiam tomar como um menino um dos Capitães da Areia No dia em que vestida como um garoto ela apareceu na frente de Pedro Bala o menino começou a rir Chegou a se enrolar no chão de tanto rir Por fim conseguiu dizer Tu tá gozada Ela ficou triste Pedro Bala parou de rir Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia Agora eu tomo parte no que vocês fizer O assombro dele não teve limites Tu quer dizer Ela o olhava calma esperando que ele concluísse a frase que vai andar com a gente pela rua batendo coisas Isso mesmo sua voz estava cheia de resolução Tu endoidou Dizia com voz soturna porque para ele ela também não era mãe Também para o Professor ela era a Amada Não sei por quê Tu não tá vendo que tu não pode Que isso não é coisa pra menina Isso é coisa pra homem Como se vocês fosse tudo uns homão É tudo uns menino Pedro Bala procurou o que responder Mas a gente veste calça não é saia Eu também e mostrava as calças De momento ele não encontrou nada que dizer Olhou para ela e pensativo já não tinha vontade de rir Depois de algum tempo falou Se a polícia pegar a gente não tem nada Mas se pegar tu É igual Te metem no orfanato Tu nem sabe o que é Tem nada não Eu agora vou com vocês Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo Havia avisado Mas ela bem sabia que ele estava preocupado Por isso ainda disse Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz Tu não agüenta um empurrão Posso fazer outras coisa Pedro Bala se conformou No fundo gostava da atitude dela se bem tivesse medo dos resultados Andava com eles pelas ruas igual a um dos Capitães da Areia Já não achava a cidade inimiga Agora a amava também aprendi a andar nos becos nas ladeiras a pongar nos bondes nos automóveis em disparada Era ágil como o mais ágil Andava sempre com Pedro Bala João Grande e Professor João Grande não a largava era como uma sombra de Dora e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de meu irmão O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela Vivia num assombro das qualidades de Dora Quase a achava tão valente como Pedro Bala Dizia o Professor num espanto É valente como um homem Professor preferia que não fosse assim Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes Volta Seca Pirulito Tampouco um olhar fraternal como os que ela lançava a João Grande a SemPernas a Gato a ele mesmo Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o via na carreira fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja Ladrão Ladrão Me furtaram Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala e este nem reparava Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio roxo sangrando Topara com Ezequiel chefe de outro grupo de meninos mendigos e ladrões grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito mais sem ordem Ezequiel vinha com uns três do grupo inclusive um que fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um companheiro Pedro Bala tinha ido deixar Dora e Zé Fuinha no pé da ladeira do Taboão para que eles fossem para o trapiche João Grande tinha um serviço a fazer e não pudera ir com Dora Pedro Bala pensou em ir com ela em não deixála sozinha no areal Mas como ainda não caíra a noite não havia perigo de um negro dar em cima dela Demais ele tinha que ir receber uns cobres da mão de Gonzales do 14 dinheiro que era devido a uma batida que o grupo fizera nuns objetos de ouro de um árabe rico Enquanto andava para o 14 Pedro Bala pensava em Dora No cabelo loiro que caía no pescoço nos olhares dela Era bonita era igual a uma noiva Noiva Nem podia pensar nisso Não queria que os outros do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com ela E se ele dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele outro poderia se julgar no direito de também dizer E então não haveria mais lei nem direito entre os Capitães da Areia Pedro Bala se recorda de que é o chefe Vai tão distraído que quase esbarra com Ezequiel Estão os quatro parados diante dele Ezequiel é um mulato alto fuma uma ponta de charuto Pedro Bala fica parado também esperando Ezequiel cospe Não vê onde pisa Agora anda cego O que é que tu quer O menino que fora dos Capitães da Areia pergunta Como vão aqueles frescos Tu ainda se lembra da surra que apanhou lá Tu ainda deve guardar a marca O menino range os dentes quer avançar Mas Ezequiel faz um gesto com a mão e avisa a Pedro Bala Um dia destes vou fazer uma visita a vocês Uma visita pergunta Bala desconfiado Dizque agora vocês tem uma putinha lá pra todo mundo Dobre a língua filho da mãe Com o soco Ezequiel rolou Mas os outros três já estavam em cima de Pedro Bala Ezequiel meteu o pé na cara de Bala O que for dos Capitães da Areia gritou Segura ele bem e meteu um soco na boca de Pedro Ezequiel deu dois pontapés na cara de Bala Fique sabendo que sou teu patrão Quatro começou a xingar Pedro Bala mas um soco o calou O guarda vinha marchando para eles debandaram Pedro Bala apanhou o boné as lágrimas de raiva desciam junto com sangue Estendeu a mão fechada para o lado por onde Ezequiel e os seus haviam desaparecido O guarda falou Desaperta corneta Dá o fora antes que lhe leve pro xilindró Pedro Bala cuspiu puro sangue Desceu a ladeira devagar nem pensou em ir buscar o dinheiro de Gonzales Descia resmungando consigo mesmo Só são homem quatro contra um E pensava vinganças Entrou no trapiche Dora estava sozinha com o irmão que dormia Os últimos raios do sol entravam pelo teto dando uma estranha claridade ao casarão Dora o viu entrar e andou para ele Segurou os cobres Mas enxergou o olho inchado de Pedro o beiço partido Que foi meu irmão Ezequiel mais três Só são homem de quatro pra cima Fez isso em tu Foi quatro Assim mesmo porque me pegaram desprevenido Eu caí na besteira de pensar que Ezequiel vinha só Era quatro Ela o sentou foi ao canto de Pirulito trouxe água Com um pedaço de pano limpou as feridas dele Pedro arquitetava plano de vingança Ela apoiou A gente acaba com eles desta vez Pedro riu Tu vai também Se vou Agora limpava os lábios dele estava curvada na sua frente seu rosto bem próximo do de Bala os cabelos loiros misturados com os dele Por que foi a briga Por nada Diga Ele disse umas coisas Foi por causa de mim não foi Ele abanou a cabeça afirmando Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala os beijou e depois fugiu Ele saiu correndo atrás dela mas ela se escondia não se deixava pegar Aos poucos foram chegando os outros Ela de longe sorna para Pedro Bala Não havia nenhuma malícia no seu sorriso Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros Era um doce olhar de noiva de noiva ingênua e tímida Talvez mesmo não soubessem que era amor Apesar de não ser noite de lua havia um romântico romance no casarão colonial Ela sorria e baixava os olhos por vezes piscava com um olhe porque pensava que isto era namorar E seu coração batia rápido quando olhava Não sabia que isso era amor Por fim a lua veio estendeu sua luz amarela no trapiche Pedro Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado Disse Tu agora é minha noiva Um dia a gente se casa Continuou de olhos fechados Ela disse baixinho Tu é meu noivo Mesmo não sabendo que era amor sentiam que era bom Quando SemPernas e João Grande chegaram Pedro Bala se levantou da areia e reuniu os chefes Foram para junto da vela do Professor Dora veio também e sentou entre João Grande e BoaVida O malandro acendeu um cigarro falou para Dora Tou aprendendo tocar uma samba porreta E tou cavando um violão irmã Tu tá tocando batuta mesmo mano É um tal de sucesso nas festa Pedro Bala interrompeu a conversa Olhavam para o lábio dele o olho inchado Ele narrou o caso Quatro contra um Precisa duma lição falou SemPernas rindo Eu não vou com aquele cara Formaram um plano de batalha E pelo meio da noite saíram uns trinta O grupo de Ezequiel dormia para as bandas do Porto da Lenha nuns barcos virados e na ponteDora foi junto a Pedro Bala e levava uma navalha também SemPernas disse Até parece Rosa Palmeirão Nunca houvera mulher tão valente como Rosa Palmeirão Dera em seis soldados de uma vez Todo marítimo sabe o seu ABC no cais da Bahia Por isso Dora gosta da comparação e sorri Obrigado mano Irmão É uma palavra boa e amiga Se acostumaram a chamála de irmã Ela também os trata de mano de irmão Para os menores é como uma mãezinha igual a uma mãezinha Cuida deles Para os mais velhos é como uma irmã que diz palavras boas e brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa que levam Mas nenhum sabe que para Pedro Bala ela é a noiva Nem mesmo o Professor sabe E dentro do seu coração Professor também a chama de noiva O cachorro que o SemPernas arranjou vai latindo Volta Seca imita o latir de um cachorro todos riem João Grande assovia um samba BoaVida começa a cantá lo em voz alta A mulata me abandonou Vão alegres Levam navalhas e punhais nas calças Mas só o sacarão se os outros puxarem Porque os meninos abandonado também têm uma lei e uma moral um sentido de dignidade humana De repente João Grande grita É ali Com a algazarra que fazem Ezequiel sai de sob um barco Quem vem lá Os Capitães da Areia que não engole desaforo respondeu Pedro Bala E arrancaram para cima dos outros A volta foi um triunfo Apesar do SemPernas ter um talho e Barandão vir quase nos braços de tanta pancada um grandão do grupo de Ezequiel o surrara até que Volta Seca o rebentou voltavam todo alegres comentando a vitória Os que tinham ficado no trapiche deram vivas Ainda demoraram muito conversando comentando Falavam na coragem de Dora que brigara igual a um menino Igual a um homem dizia João Grande Era como uma irmã exatamente igual a uma irmã Igual a uma noiva exatamente igual a uma noiva pensava Pedro Bala estendido na areia A lua amarelava o areal as estrelas se refletiam no mar azul da BahiaEla veio deitou ao lado dele E começaram a falar de coisas tolas Igual a uma noiva Não se beijaram não se abraçaram o sexo não os chamava naquele momentoSó de leve o loiro cabelo dela tocava em Pedro Bala Tu tem um cabelo bonito disse ele Ela riu olhou o cabelo dele O teu também Riram os dois e logo foi uma gargalhada Era um hábito dos Capitães da Areia Ela começou a contar coisas do morro histórias dos vizinhos ele relembrava fatos da vida agitada do grupo Vim pra rua com cinco anos Menor que teu irmão Riam inocentemente felizes de estarem um ao lado do outro Depois o sono veio Estavam separados Pedro tomou a mão dela segurou Dormiram como dois irmãos Reformatório O Jornal da Tarde trouxe a notícia em grandes títulos Uma manchete ia de lado a lado na primeira página PRESO O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA Depois vinham os títulos que estavam em cima de um clichê onde se viam Pedro Bala Dora João Grande SemPernas e Gato cercados de guardas e investigadores UMA MENINA NO GRUPO A SUA HISTÓRIA RECOLHIDA A UM ORFANATO O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA É FILHO DE UM GREVISTA OS OUTROS CONSEGUEM FUGIR O REFORMATÓRIO O ENDIREITARÁ NOS AFIRMA O DIRETOR Sob o clichê vinha esta legenda Após ser batida esta chapa o chefe dos peraltas armou uma discussão e um barulho que deu lugar a que os demais moleques presos pudessem fugir O chefe é o que está marcado contra cruz e ao seu lado vêse Dora a nova gigolete dos moleques baianos Vinha a notícia Ontem a polícia baiana lavrou um tento Conseguiu prender o chefe do grupo de menores delinqüentes conhecidos pelo nome de Capitães da Areia Por mais de uma vez este jornal tratou do problema dos menores que viviam nas ruas e da cidade dedicados ao furto Por várias vezes também noticiamos os assaltos levados a efeito por este mesmo grupo Realmente a cidade vivia sob o temor constante destes meninos que ninguém sabia onde moravam cujo chefe ninguém conhecia Há alguns meses tivemos ocasião de publicar cartas do doutor Chefe de Polícia do doutor Juiz de Menores e do diretor do Reformatório Baiano sobre este problema Todos eles prometiam incentivar a campanha contra os menores delinqüentes e em particular contra os Capitães da Areia Esta campanha tão meritória deu os seus primeiros frutos ontem com a prisão do chefe desta malta e de vários do grupo inclusive uma menina Infelizmente devido a uma sagaz burla de Pedro Bala o chefe os demais conseguiram escapar de entre as mãos dos guardas Em todo caso a polícia já conseguiu muito prendendo o chefe e a romântica inspiradora dos roubos Dora uma figura interessantíssima de menor delinqüente Feitos estes comentários narremos os fatos A TENTATIVA DE FURTO Ontem às últimas horas da tarde cinco meninos e uma menina penetraram no palacete do doutor Alcebíades Menezes na ladeira de São Bento Foram porém pressentidos pelo filho do dono da casa estudante de medicina que deixou que eles penetrassem num quarto onde os trancou Chamou então os guardas e investigadores a quem os entregou A reportagem do Jornal da Tarde informada do fato partiu para a casa do doutor Alcebíades Lá chegando encontrou os menores que eram levados à chefia de políciaPedimos então para tirar um retrato do grupo A polícia muito gentilmente consentiu Pois no momento em que o fotógrafo acabava de fazer funcionar o magnésio e batera chapa Pedro Bala o temível chefe dos Capitães da Areia facilitou a EVASÃO Pondo em prática uma agilidade incomum Pedro Bala se livrou dos braços do investigador que o segurava e com um golpe de capoeira o derrubou No entanto não fugiuÉ claro que os demais guardas e investigadores se precipitaram em cima dele para impedir a sua fuga Só então foi possível compreender o plano do chefe dos Capitães da Areia pois este gritou para os companheiros presos Arriba pessoal Um único guarda ficara a tomar conta dos outros e um deles muito ágil o derrubou também com um golpe de capoeira E desabaram para a ladeira da Montanha NA POLÍCIA Na chefia de polícia quisemos ouvir Pedro Bala Mas ele nada nos disse como tampouco quis declarar às autoridades o lugar onde dormiam e guardavam seus furtos os Capitães da Areia Só declarou seu nome disse que era filho de um antigo grevista que foi morto num meeting na célebre greve das docas de 191 que não tinha ninguém no mundo Quanto a Dora é filha de uma lavadeira que morreu de varíola quando da epidemia que alastrou a cidade Não faz senão quatro meses que está entre os Capitães da Areia mas já tomou parte em muitos assaltos E parece ter uma grande honra nisso NOIVOS Dora declarou à nossa reportagem que era noiva de Pedro Bala e que iam se casar É uma menina ainda ingênua mais digna de piedade que de castigo Fala no seu noivado com maior das ingenuidades Não tem mais de quatorze anos enquanto Pedro Bala anda pelos seus dezesseis Dora foi leva da ao Orfanato Nossa Senhora da PiedadeNeste santo ambiente não tardará a esquecer Pedro Bala o romântico noivobandido e a sua vida criminosa entre os Capitães da Areia Quanto a Pedro Bala será recolhido ao Reformatório de Menores logo que a polícia consiga que ele declare qual o local onde se esconde o grupo A polícia tem grandes esperanças de conseguilo ainda hoje OUVINDO O DIRETOR NO REFORMATÓRIO O diretor do Reformatório Baiano de Menores Abandonados e Delinqüentes é um velho amigo do Jornal da Tarde Certa vez uma reportagem nossa desfez um círculo de calúnias jogada contra aquele estabelecimento de educação e seu diretorHoje ele se achava na polícia esperando poder levar consigo o menor Pedro Bala A uma pergunta nossa respondeu Ele se regenerará Veja o título da casa que dirijo Reformatório Ele se reformará E a outra pergunta nossa sorriu Fugir Não é fácil fugir do Reformatório Posso lhe garantir que não o fará Professor à noite leu a notícia para todos SemPernas disse Ele já tá no reformatório Eu vi quando saiu da polícia E ela no orfanato completou João Grande A gente livra eles afirmou Professor Depois virouse para o SemPernas Até Pedro Bala chegar tu fica como chefe SemPernas João Grande estendeu os braços para os outros falou Gentes até Bala voltar SemPernas é o chefe SemPernas disse Ele ficou pra livrar a gente É preciso que a gente livre ele Não direito Todos estavam decididos Quando o levaram para aquela sala Pedro Bala calculava o que o esperava Não veio nenhum guarda Vieram dois soldados de polícia um investigador o diretor do reformatório Fecharam a sala O investigador disse numa voz risonha Agora os jornalistas já foram moleque Tu agora vai dizer que sabe queira ou não queira O diretor do reformatório riu Ora se diz O investigador perguntou Onde é que vocês dormem Pedro Bala o olhou com ódio Se tá pensando que eu vou dizer Se vai Pode esperar deitado Virou as costas O investigador fez um sinal para os soldados Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez E o pé do investigador na sua cara Rolou no chão xingando Ainda não vai dizer perguntou o diretor do reformatório Isso é só o começo Não foi tudo o que Pedro Bala disse Agora davamlhe de todos os lados Chibatadas socos pontapés O diretor do reformatório levantouse sentoulhe o pé Pedro Bala caiu do outro lado da sala Nem se levantou Os soldados vibraram os chicotes Ele via João Grande Professor Volta Seca SemPernas o Gato Todos dependiam dele A segurança de todos dependia da coragem dele Ele era o chefe não podia trair Lembrouse da cena da tarde Conseguira dar fuga aos outros apesar de estar preso também O orgulho encheu seu peito Não falaria fugiria do reformatório libertaria Dora E se vingaria Se vingaria Grita de dor Mas não sai uma palavra dos seus lábios Vai te fazendo noite para ele Agora já não sente dores já não sente nada No entanto os soldados ainda o surram o investigador o soqueia Mas e não sente mais nada Desmaiou diz o investigador Deixe ele por minha conta explica o diretor do reformatório Eu levo ele pro reformatório lá ele abre a boca Garanto E eu dou o aviso a vocês O investigador assentiu Com a promessa de no dia seguinte mandar buscar Pedro Bala o diretor retirouse Na madrugada quando Pedro acordou os presos cantavam Era uma moda triste Falava do sol que havia nas ruas em quanto é grande e bela a liberdade O bedel Ranulfo que o tinha ido buscar na polícia o levou à presença do diretor Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior Mas ia satisfeito porque nada tinha dito porque não revelara o lugar onde os Capitães da Areia viviam Lembramse da canção que os presos cantavam na madrugada que nascia Dizia que a liberdade é o bem maior do mundo Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida LiberdadeJoão de Adão que estava nas ruas sob o sol falava nela também Dizia que não era só por salários que fizera aquelas greves nas docas e faria outras Era pela liberdade que os doqueiros tinham pouca Pela liberdade o pai de Pedro Bala morreran Pela liberdade pensava Pedro dos seus amigos ele apanhara uma surra na polícia Agora seu corpo estava mole e dolorido seus ouvidos cheios da moda que os presos cantavam Lá fora dizia a velha canção é o sol a liberdade e a vidaPela janela Pedro Bala vt o sol A estrada passa adiante dó grande portão do reformatório Aqui dentro é como se fosse uma eterna escuridão Lá fora é a liberdade e a vida E a vingança pensa Pedro Bala O diretor entra O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala O diretor sorri esfrega as mãos uma na outra senta ante uma alta secretária Olha Pedro Bala uns minutos Afinal Faz bastante tempo que espero este pássaro Ranulfo O bedel sorri aprovando as palavras do diretor É o chefe dos tais de Capitães da Areia Veja O tipo do criminoso nato É verdade que você não leu Lombroso Mas se lesse conheceria Traz todos os estigmas do crime na face Com esta idade já tem uma cicatriz Espie os olhos Não pode ser tratado como um qualquer Vamos lhe dar honras especiais Pedro Bala o espia com os olhos injetados Sente cansaço uma vontade doida de dormir Bedel Ranulfo aventura uma pergunta Levo pra junto dos outros O quê Não Para começar metao na cafua Vamos ver se ele sai um pouco mais regenerado de lá O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala O diretor ainda recomenda Regime número 3 Água e feijão murmura Ranulfo Dá uma espiada em Pedro Bala balança a cabeça Vai sair bem mais magro Lá fora é a liberdade e o sol A cadeia os presos na cadeia a surra ensinaram a Pedro Bala que a liberdade é o bem maior do mundo Agora sabe que não foi apenas para que sua história fosse contada no cais no Mercado na Porta do Mar que seu pai morrera pela liberdade A liberdade é como o sol É o bem maior do mundo Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora Fora atirado dentro da cafua Era um pequeno quarto por baixo da escada onde não se podia estar em pé porque não havia altura nem tampouco estar deitado ao comprido porque não havia comprimento Ou ficava sentado ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda Assim mesmo Pedro Bala se deitou Seu corpo dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua só servia para o homemcobra que vira certa vez no circo Era totalmente cerrado o quarto a escuridão era completa O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada Pedro Bala deitado como estava não podia fazer o menor movimento Por todos os lados as paredes o impediam Seus membros doíam ele tinha uma vontade doida de esticar as pernas Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na polícia e desta vez Dora não estava ali para trazer um pano frio e cuidar do seu rosto ferido A liberdade era Dora tambémNão era só o sol andar livre nas ruas rir no cais a grande gargalhada dos Capitães da Areia Era também sentir junto a si o cabelo loiro de Dora ouvir ela contar coisas do morro sentir os lábios dela sobre os seus lábios feridos Noiva Também ela estava sem liberdade Os membros de Pedro Bala doem e agora dói sua cabeça também Dora está como ele sem sol sem liberdade Foi levada para um orfanato Noiva Antes que ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra noiva Gostava de derrubar negrinhas no areal De encostar peito com peito cabeça com cabeça pernas com pernas sexo com sexo Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina menina como ele e conversar de coisas tolas e correr picula como os outros meninos sem a derrubar para fazer o amor Era outra maneira do amor pensava numa confusão Ele nunca tivera uma idéia perfeita do amor Que era ele senão uma criança abandonada nas ruas que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados os Capitães da Areia Que podia saber de amor Sempre pensara que o amor fosse o momento gostoso em que uma negrinha ou uma mulata gemia sob seu corpo no areal do cais Isto cedo aprendeu quando não tinha ainda 13 anos Isto sabiam todos os Capitães da Areia mesmo os mais pequenos aqueles que ainda não tinham forças para derrubar uma cabrocha Mas já o sabiam e pensavam com alegria no dia em que o fariam Os membros e a cabeça de Pedro Bala doem Tem sede ainda não bebeu nem comeu neste dia Com Dora foi diferente Logo que ela chegou tanto ele como todos os que estavam no trapiche pensaram em a derrubar em a possuir em praticar com ela que era bonita o único amor de que tinham notícia Mas como era apenas uma menina eles a tinham respeitado Depois ela foi como uma mãe para todos E como uma irmã também João Grande dizia certo Mas para ele desde o primeiro momento fora diferente Fora também uma companheira de brinquedos como para os demais irmã querida Mas fora também uma alegria diversa da que dá uma irmã Noiva Gostaria sim Mesmo quando quer negar a si próprio não pode É verdade que nada faz para isso que se contenta de conversar com ela de ouvir a sua voz pegar timidamente na sua mão Mas gostaria de possuíla também de vêla gemer de amor Não porém por uma noite Por todas as noites de toda uma vida Como outros têm esposa esposa que é mãe irmã e amiga Ela era mãe irmã e amigados Capitães da Areia Para Pedro Bala é noiva um dia será esposa Não a podem ter num orfanato como uma menina sem ninguém Ela tem um noivo uma legião de irmãos e de filhos de quem cuidar O cansaço desaparece dos membros de Pedro Bala Ele precisa de movimento de andar de correr para poder conceber um plano para livrar Dora Ali naquela escuridão é que não pode Fica inútil pensando que ela está talvez numa cafua também Sentase como pode Ratos correm na cafua Mas ele está por demais acostumado com os ratos não liga Mas Dora terá medo deste ruído contínuo É de enlouquecer um que não seja o chefe dos Capitães Areia Quanto mais uma menina É verdade que Dora é a menina valente de quantas mulheres já nasceram na Bahia que é a terra das mulheres valentes Mais valente mesmo que Rosa Palmeirão que deu em seis soldados que Maria Cabaçu que não respeitava cara que a companheira de Lampião que maneja um fuzil igual a um cangaceiro Mais valente porque é apenas uma menina apenas está começando a viver Pedro Bala sorri com orgulho apesar das dores do cansaço sede que aos poucos o aperta Como seria bom um copo dágua Diante do areal do trapiche é o mar um nunca acabar de água Mar que o QueridodeDeus o grande capoeirista corta com seu saveiro para as pescarias nos mares do Sul O QueridodeDeus é um bom sujeito Se Pedro Bala não houvesse aprendido com ele o jogo capoeira de Angola a luta mais bonita do mundo porque é também uma dança não teria podido dar fuga a João Grande Gato e SemPernas Agora ali na cafua sem poder se mexer a capoeira não vai lhe servir de nada Gostaria era de beber água Será que Dora também tem sede a estas horasDeve estar também numa cafua Pedro Bala imagina o orfanato igualzinho ao reformatório A sede é pior que uma cobra cascavel Faz mais medo que a bexiga Porque vai apertando a garganta de um vai fazendo os pensamentos confusos Um pouco de água Um pouco de luz também Porque se houver um pouco de luz talvez ele veja o rosto de Dora risonho Assim na escuridão ele o vê cheio de sofrimento cheio de dor Uma raiva surda impotente cresce dentro dele Levantase um pouco a cabeça encosta nos degraus escada que lhe serve de teto Esmurra a porta da cafua Mas parece que lá fora não tem ninguém que o ouça Vê a cara malvada do diretor Enterrará seu punhal até o mais fundo do coração do diretor Sem que sua mão trema sem remorsos gozando Seu punhal ficou na polícia Mas Volta Seca lhe dará o seu ele tem uma pistolaVolta Seca quer ir para o bando de Lampião que é seu padrinho Lampião mata soldado mata homem ruim Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um seu herói a um seu vingador É o braço armado dos pobres no sertão Um dia ele poderá ser do grupo de Lampião também E quem sabe se não poderiam invadir a cidade da Bahia abrir a cabeça do diretor do reformatórioQue cara ele não faria quando visse Pedro Bala entrar no reformatório na frente de uns cangaceiros Soltaria a garrafa de pinga presente de um amigo de Santo Amaro e Pedro Bala lhe abriria a cabeça Não Antes o deixaria naquela mesma cafua sem ter o que comer sem ter o que beber Sede A sede o maltrata Faz com que ele veja na escuridão da parede o rosto triste e doloroso de Dora Aquela certeza de que ela está sofrendo Fecha os olhos Procura pensar em Professor Volta Seca João Grande Gato SemPernas Boa Vida todos os do trapiche salvando Dora Mas não pode Mesmo de olhos fechados vê o rosto dela amargurado pela sede Esmurra a porta novamente Grita xinga nomes Ninguém o atende ninguém o vê ninguém o ouve Assim deve ser o inferno Pirulito tem razão de ter medo do inferno É por demais terrívelSofrer sede e escuridão A canção dos presos dizia que lá fora é a liberdade e o sol E também a água os rios correndo muito alvos sobre pedras as cascatas caindo o grande mar misterioso Professor que sabe muitas coisas porque à noite lê livros furtados à luz de uma vela está comendo os olhos lhe disse certa vez que tem mais água no mundo que terra Tinha lido num livro Mas nem um pingo de água na sua cafua Na de Dora não deve ter também Para que esmurrar a porta como o faz neste momento Ninguém o atende suas mãos já doem Na véspera o surraram na polícia Suas costas estão negras seu peito ferido o rosto inchado Por isso o diretor disse que ele tinha cara de criminoso Não tem não Ele quer é liberdade Um dia um velho disse que não se mudava o destino de ninguém João de Adão disseque se mudava sim ele acreditara em João de Adão Seu pai morrera para mudar o destino dos doqueiros Quando ele sair irá ser doqueiro também lutar pela liberdade pelo sol por água e de comer para todos Cospe um cuspe grosso A sede aperta sua garganta Pirulito quer ser padre para fugir daquele inferno Padre José Pedro sabia que o reformatório era assim falava contra meterem os meninos lá Mas que podia um pobre padre sem paróquia contra todos Porque todos odeiam os meninos pobres pensa Pedro Bala Quando sair pedirá à mãedesanto DonAninha que faça um feitiço forte para matar o diretor Ela tem força com Ogum e ele uma vez tirara Ogum da polícia Fizera muita coisa para a sua idade Dora também fizera muita coisa naqueles meses entre eles Agora passavam sede Pedro Bala esmurra inutilmente uma porta A sede o rói por dentro como uma legião de ratosCai enrodilhado no chão e o cansaço o vence Apesar da sede dorme Mas tem sonhos terríveis ratos roem o rosto belo de Dora Acorda porque alguém bate pancadas leves num dos degraus da escada Levanta se curvado não pode ficar de pé direito que a escada não consente Pergunta em voz baixa Tem alguém aí Uma alegria doida o invade quando respondem Quem é que tá aí Pedro Bala Tu é o chefe dos Capitães da Areia Sou Ouve um assovio A voz continua agora rápida Tenho um recado pra você um trouxe hoje Solta logo Agora vem gente Depois volto Pedro Bala ouve os passos que se afastam Mas está mais alegre Pensa em seguida que o recado é de Dora mas vê que é uma tolice pensar isso Como Dora havia de lhe enviar um recado Deve ser um do grupo Devem estar tratando de tirálo dali Mas primeiro é preciso que ele saia da cafua Enquanto ele estiver ali os Capitães da Areia não poderão fazer nada Depois que ele estiver andando no reformatório todo aí a fuga será fácil Pedro Bala sentase para pensar Que hora serão que dia será Ali é sempre noite nunca brilha a luz do sol Espera impaciente que o seu informante volte Porém este demora ele se agita Que estarão fazendo os outros sem ele Professor conceberá algum plano para o tirarem daliMas enquanto ele estive na cafua é inútil E enquanto não o tirarem ele não poderá tirar Dora do orfanato Abrem a porta Pedro Bala se atira para a frente pensando que o vão soltar Uma mão o empurra Ei calma Vê o bedel Ranulfo na porta Traz um caneco com água que Pedro Bala arranca das suas mãos e bebe em grandes goles Mas é tão pouca Não chega para matar a sedeO bedel lhe entrega um prato de barro com uma água onde bóiam alguns caroços de feijão Pedro Bala pede Pode me dar um pouco mais de água Amanhã ri o bedel Só um pouco mais Amanhã tem mais E se você continuar a bater na porta e gritar em vez de 8 passa 15 dias empurra a porta na cara de Pedro Bala Ouve a chave que o tranca Tateia na escuridão até encontrar o prato Bebe a água escura do feijão Nem repara que é salgadíssima Depois come os grãos durosMas a sede o ataca novamente O feijão muito salgado ativa a sede O que é um caneco de água para aquela sede que exigia uma moringa Deita Já não pensa em nadaPassamse horas Ele apenas vê na escuridão o rosto triste de Dora E sente dores no corpo todo Muito mais tarde ouve novamente baterem na escada Pergunta Tá aí Um capenga mandou dizer que vão te tirar daqui Logo que tu saia da cafua Já é de noite pergunta Pedro Tá começando Tou morto de sede A voz não responde Pedro pensa com desespero que é capaz do menino ter ido embora No entanto ele não ouviu passos na escada Mas volta a voz Água não posso Não tem como passar Mas quer um cigarro Quero sim Então espera Minutos depois as pancadas soam muito de leve na porta A vi por debaixo da porta Vou passar o cigarro por aqui Ponha as mãos embaixo bem no meio da greta da porta Pedro Bala faz o que lhe mandam Um cigarro amassado chega às suas mãos Ele acaba de o retirar de sob a porta Logo depois é um fósforo que vem sobre um pedaço de caixa o pedaço onde se risca Obrigado diz Pedro Bala Mas neste momento ouve um barulho lá fora O som de uma bofetada um corpo que rola E uma voz que ele não conhece fala Se tentar se comunicar com os de fora seu castigo será aumentado Pedro se encolhe Agora um vai sofrer castigo por causa dele Quando fugir levará aquele para os Capitães da Areia Para o sol e liberdade Acende o cigarroCom muito cuidado para não perder fósforo que é o único Esconde a brasa do cigarro sob a mão para que ninguém o possa ver pelas frestas da escada O silêncio o envolve de novo e com o silêncio os pensamentos as visões Quando termina de fumar se enrodilha no chão Se pudesse dormir Pelo menos não veria o rosto cheio de sofrimento de Dora Quantas horas Quantos dias A escuridão é sempre a mesma a sede é sempre igual Já lhe trouxeram água e feijão três vezes Aprendeu a não beber caldo de feijão que aumenta a sede Agora está muito mais fraco um desânimo no corpo todo O barril onde defeca exala um cheiro horrível Não o retiraram ainda E sua barriga dói sofre horrores para defecar É como se as tripas fossem sair As pernas não o ajudam O que o mantém em pé é o ódio que enche seu coração Filhos da mãe Desgraçados É tudo quanto consegue dizer Assim mesmo em voz baixa Já não tem forças para gritar para esmurrar a porta Agora está certo de que morrerá ali Cada vez sofre maiores dores para defecar Vê Dora estendida no chão morrendo de sede chamando por ele João Grande está do lado dela mas separado por grades Professore Pirulito choram Trouxeramlhe água e feijão pela quarta vez Ele bebe a água mas demora a comer o feijão Só sabe dizer em voz baixa Filhos da mãe Filhos da mãe Antes que a comida se poderia chamar aquilo de comida chegasse naquele dia para Pedro era sempre noite a voz voltou a chamálo na escada Ele perguntou sem se levantar sequer Quantos dias já tem que tou aqui Cinco Me dá outro cigarro O cigarro o reanima um pouco Pode pensar que com mais cinco dias morrerá Aquilo é castigo para um homem não para um menino O ódio não cresce mais em seu coraçãoJá atingiu o máximo É sempre noite Dora morre lentamente ante suas vistas João Grande ao seu lado as grades separando Professor e Pirulito choram Ele dorme ou está acordadoA barriga dói violentamente Quanto tempo durará ainda a escuridão E a agonia de Dora O cheiro do barril é insuportável Dora agoniza ante seus olhos Será que ele agoniza também A cara do diretor aparece ao lado do rosto de Dora Vem torturar sua agonia ainda mais Quanto tempo ela leva para morrer Pedro Bala pede que ela morra logo logo Será melhor Agora o direto veio veio para aumentar a tortura Ouve a voz dele Levanta e um pé o toca Abre mais os olhos Agora não vê mais Dora Só a cara do diretor que sorri Vamos ver se agora fica mais manso Não pode fitar a claridade que entra pelas janelas Mal se agüenta nas pernas Cai no meio do corredor Dora teria morrido ou não pensa ao cair Está novamente na sala do diretor Este o olha sorridente Gostou do apartamento Continua com muita vontade de roubar Eu sei ensinar quebrar moleque aqui Pedro Bala está irreconhecível de tão magro Os ossos aparecem junto à pele O rosto verdoso da complicação intestinal O bedel Fausto dono daquela voz que ele ouvira certa vez na porta da cafua está ao seu lado E um tipo forte tem fama de ser tão malvado quanto o diretor Pergunta Na oficina de ferreiro Acho que é melhor na plantação de cana Lavrar terra ri Fausto diz que está bem o diretor recomenda Olho nele Este é um pássaro ruim Mas eu te ensino Pedro Bala sustenta seu olhar O bedel o empurra Agora vê detidamente o casarão No meio do pátio o cabeleireiro raspa a sua cabeça a zero Vê a cabeleira loira rolar no chão Dãolhe umas calças e paletó de mescla azul Vestese ali mesmo O bedel leva o a uma oficina de ferreiro Tem um facão E uma foice Entrega os objetos a Pedro Bala Marcham para o canavial onde outros meninos trabalham Neste dia de tão fraco Pedro Bala mal sustém o facão Por isso os bedéis o soqueiam Ele nada diz À noite na fila olha para todos querendo descobrir aquele que lhe falava e dava cigarros Sobem as escadas andam para o dormitório que fica no terceiro andar para impedir qualquer idéia de fuga A porta é fechada O bedel Fausto diz Graça puxe a reza Um menino avermelhado faz o pelosinal Todos repetem as palavras e os gestos Depois é um padrenosso e uma avemaria ditas com voz forte apesar do cansaço Pedro se joga na cama Uma coberta suja o espera Mudam a roupa de cama de 15 em 15 dias E a roupa de cama é apenas uma coberta e uma fronha para um travesseiro de pedra Já está dormindo quando alguém toca no seu ombro Tu que é Pedro Bala não é Sim Fui eu que trouxe o recado Pedro olha o mulato que está a seu lado Pode ter dez anos Eles têm voltado Todo santo dia Só quer saber quando tu sai da cafua Diz que eu tou no canavial Tu não quer comer um sacana hoje Tem uns aqui a gente de noite Tou morto de sono Quanto tempo levei Oito dias Já morreu um ali O menino vai embora Pedro nem perguntou seu nome Tudo o que quer é dormir Mas os que andam para as camas dos pederastas fazem ruído O bedel Fausto sai do seu quarto de tabiques Que barulho é esse Silêncio Ele bate as mãos Todos de pé Fita a todos Ninguém sabe Silêncio O bedel esfrega os olhos anda entre as camas Um enorme relógio dá dez horas na parede Ninguém diz Silêncio O bedel range os dentes Então ficarão todos uma hora de pé Até as onze E o primeiro que tentar deitar vai pra cafua Agora está desocupada Uma voz de menino corta o silêncio Seu bedel É um pequeno meio amarelento Fale Henrique Eu sei Os olhos todos estão fitos nele Fausto anima a delação Diga o que sabe Foi Jeremias que ia pra cama de Berto fazer coisa feia Seu Jeremias seu Berto Os dois saem das suas camas De pé na porta Até meianoite Os outros podem deitar olha mais uma vez a todos Os castigados estão de pé na porta Quando o bedel se recolhe Jeremias ameaça Henrique Os outros comentam Pedro Bala dorme No refeitório enquanto bebiam o café aguado e mastigavam o bolachão duro seu vizinho de mesa fala Tu é o chefe dos Capitães da Areia sua voz é baixíssima Sou sim Vi teu retrato no jornal Tu é um macho Mas te acabaram olha o rosto magro de Bala Mastiga o bolachão Continua Tu vai ficar aqui Vou arribar Eu também Tenho um plano Quando eu bater asa posso ir pra teu grupo Pode Onde fica o buraco Pedro Bala olha com desconfiança Tu encontra a gente no Campo Grande toda tarde Pensa que vou dizer O bedel Campos bate as mãos Todos se levantam Dirigemse para as diversas oficinas ou para os terrenos cultivados Pelo meio da tarde Pedro Bala vê o SemPernas que passa na estrada Vê também um bedel que o tange Castigos Castigos É a palavra que Pedro Bala mais ouve no reformatório Por qualquer coisa são espancados por um nada são castigados O ódio se acumula dentro de todos eles No extremo do canavial passa um bilhete a SemPernas No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana Com certeza a puseram durante a noite É um rolo de corda fina e resistente Está novinha No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças A dificuldade é levar o rolo para o dormitório Fugir durante o dia é impossível com a vigilância dos bedéis Não pode levar o rolo entre a roupa que notariam De repente surge uma briga Jeremias se joga sobre o bedel Fausto com o facão na mão Outros meninos se atiram também mas vem um grupo de bedéis armados de chicotesEstão sujeitando Jeremias Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó abre para o dormitório Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão Pedro se esconde atrás de uma portaO bedel vem rápido passa Empurra a corda para baixo do colchão volta para o canavial Jeremias foi levado para a cafua Os bedéis agora juntam os meninos Ranulfo e Campos foram em perseguição de Agostinho que pulou a cerca na confusão da briga O bedel Fausto com um talho no ombro foi para a enfermaria O diretor está entre eles os olhos fuzilando de raiva Um bedel conta os meninos Pergunta a Pedro Bala Onde estava metido Saí pra não me meter no barulho O bedel o olha desconfiado mas passa Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho O fujão é surrado na vista de todos Depois o diretor diz Metamno na cafua Já está Jeremias fala Ranulfo Ficam os dois Assim podem conversar Pedro Bala se arrepia Como irão ficar dois na pequenez da cafua Nesta noite a vigilância é grande ele não tenta nada Os meninos rangem os dentes de raiva Duas noites depois quando o bedel Fausto já tinha se recolhido há muito ao seu quarto de tabiques e quando todos dormiam Pedro Bala se levantou tirou a corda de sob o colchão Sua cama ficava junto a uma janela Abriu Amarrou a corda num dos armadores de rede que existiam na parede Deixou que a corda caísse pela janelaEra curta Faltava ainda muito Recolheu Procurava fazer o menor barulho possível mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou Tu vai bater asa Aquele não tinha boa fama Costumava delatar Por isso mesmo fora colocado ao lado de Pedro Bala Bala puxou o punhal mostrou a ele Olha xereta trata de dormir Se tu piar eu te abro a garganta palavra de Pedro Bala E se tu disser alguma coisa depois que eu sair Tu já viu falar nos Capitães da Areia Já Pois eles me vinga Põe o punhal ao alcance da mão Recolhe completamente a corda amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o QueridodeDeus lhe ensinou Ameaça mais uma vez o menino joga a corda passa o corpo pela janela começa a descida Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator Se deixa escorregar pela corda salta ao chão O pulo é grande mas ele já salta correndo Pula a cerca após evitar os cachorros policiais que estão soltos Desaba pela estrada Tem alguns minutos de vantagem O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também Pedro Bala prende o punhal nos dentes tira a roupa Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro E nu na madrugada fria inicia a carreira para o sol para a liberdade Professor lê a manchete do Jornal da Tarde O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA CONSEGUE FUGIR DO REFORMATÓRIO Trazia uma longa entrevista com o diretor furioso Todo o trapiche ri Até o padre José Pedro que está com eles ri em gargalhadas como se fosse um dos Capitães da Areia Orfanato Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora Nascera no morro infância em correrias no morro Depois a liberdade das ruas da cidade a vida aventurosa dos Capitães da Areia Não era uma flor de estufa Amava o sol a rua a liberdade Fizeram duas tranças do seu cabelo amarraram com fitas Fitas corderosa Deramlhe um vestido de pano azul um avental de um azul mais escuro Faziam com que ela ouvisse aulas junto com meninas de cinco e seis anos A comida era má havia castigo também Ficar em jejum perder os recreios Veio uma febre ela esteve na enfermaria Quando voltou estava macilenta Tinha sempre febre mas não dizia nada porque odiava o silêncio da enfermaria onde o sol não entrava e das as horas pareciam a hora agonizante do crepúsculo Quando podia chegava perto das grades porque por vezes divisava Professor ou João Grande que rondavam por ali Um dia lhe passaram um bilhete Pedro Bala fugira do reformatório Viria tirála dali Nem sentiu a febre em que estava A visaram por intermédio de outro bilhete que Professor escreveu e lhe jogou que ela arranjasse um meio de ir para a enfermaria Mas nem foi preciso porque uma irmã notou o avermelhado das suas faces Pôs a mão no seu rosto Estás queimando de febre Era sempre crepúsculo na enfermaria Era como uma antesala do túmulo com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar O médico que a vira balançara a cabeça com tristeza Mas a luz entrou com eles Como Pedro Bala estava magro pensou Dora ao se pôr ao seu lado João Grande Gato Professor estavam com ele Professor mostrou anavalha à Irmã que abafou um grito A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os lençóis Dora queimava de febre mal podia estar de pé A Irmã murmurou Ela está muito doente Dora respondeu Eu vou Pedro Saíram pela porta Volta Seca tinha o grande cachorro preso pela coleira Tinham trazido um pedaço de carne Gato abriu o portão Na rua disse Foi canja Professor avisou Vamos embora antes que alarmem Se atiraram por uma ladeira Dora nem sentia a febre porque ia junto com Pedro Bala ele pegando na sua mão Volta Seca fechava a marcha a mão no punhal um sorriso no rosto sombrio Noite de Grande Paz Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora a irmãzinha Dora Dora noiva Professor vê Dora sua amada Os Capitães da Areia olham em silêncio A mãe desanto DonAninha reza oração forte para a febre que consome Dora desaparecer Com um galho de sabugueiro manda que a febre se vá Os olhos febris de Dora sorriem Parece que a grande paz da noite da Bahia está também nos seus olhos Os Capitães da Areia olham em silêncio sua mãe irmã e noiva Mal a recuperaram a febre a derrubou Onde está a alegria dela por que ela não corre picula com seus filhinhos menores não vai para a aventura das ruas com seus irmãos negros brancos e mulatos Onde está a alegria dos olhos dela Só uma grande paz a grande paz da noite Porque Pedro Bala aperta sua mão com calor A paz da noite da Bahia não está no coração dos Capitães da Areia Tremem com receio de perder Dora Mas a grande paz da noite está nos olhos dela Olhos que se fecham docemente enquanto a mãedesanto Aninha enxota a febre que a devora A paz da noite envolve o trapiche Dora Esposa O cachorro late a lua na areia SemPernas sai do trapiche acompanha DonAninha através do areal Ela disse que a febre não tardaria a ir embora Pirulito sai também vai chamar o padre José Pedro Tem confiança no padre ele pode saber um remédio Dentro do trapiche os Capitães da Areia estão silenciosos Dora pediu que eles fossem dormir Se deitaram pelo chão mas são raros os que dormem Na paz imensa da noite pensam na febre que consome Dora Ela beijou Zé Fuinha mandou que ele fosse dormir Ele não compreende bem Sabe que ela está doente mas não pensa um momento que ela o poderá abandonarMas os Capitães da Areia temem que isso aconteça Então ficarão novamente sem mãe sem irmã sem noiva Agora só João Grande e Pedro Bala estão a seu lado O negro sorri mas Dora sabe que o sorriso dele é forçado é um sorriso para a animar um sorriso arrancado à força da tristeza que o negro sente Pedro Bala segura sua mão Mais retirado Professor está dobrado sobre si mesmo a cabeça enterrada nas mãos Dora diz Pedro Que é Chegue aqui Ele se aproxima A voz dela é um fio de voz Pedro fala com carinho Tu quer alguma coisa Tu gosta de mim Tu bem sabe Deita aqui Pedro deita ao seu lado João Grande se afasta chega para perto de Professor Mas não conversam ficam entregues à sua tristeza No entanto é uma noite de paz que envolve o trapiche E a paz da noite está também nos olhos doentes de Dora Mais perto Ele se chega mais os corpos estão juntos Ela toma a mão dele leva ao seu peito Arde de febre A mão de Pedro está sobre seu seio de menina Ela faz com que ele a acaricie diz Tu sabe que já sou moça A mão dele pousada nos seus seios os corpos juntos Uma grande paz nos olhos dela Foi no orfanato Agora posso ser tua mulher Ele a olha espantado Não que tu tá doente Antes de eu morrer Vem Tu não vai morrer Se tu vier não Se abraçam O desejo é abrupto e terrível Pedro não a quer magoar mas ela não mostra sinais de dor Uma grande paz em todo seu ser Tu é minha agora fala ele com voz agitada Ela parecia não sentir a dor da posse Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria Agora a paz é só da noite com Dora está a alegria Os corpos se desunem Dora murmura É bom Sou tua mulher Ele a beija A paz voltou ao rosto dela Fita Pedro Bala com amor Agora vou dormir diz Deita ao lado dela segura sua mão ardente Esposa A paz da noite envolve os esposos O amor é sempre doce e bom mesmo quando a morte está próxima Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor Mas nos corações dos dois meninos não há mais nenhum medo Somente paz a paz da noite da Bahia Na madrugada Pedro põe a mão na testa de Dora Fria Não tem mais pulso o coração não bate mais O seu grito atravessa o trapiche desperta os meninos João Grande a olha de olhos abertos Diz a Pedro Bala Tu não devia ter feito Foi ela que quis explica e sai para não rebentar em soluços Professor se chega fica olhando Não tem coragem de tocar no corpo dela Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou não lhe resta mais nada que fazer ali Pirulito entra com o padre José Pedro O padre pega no pulso de Dora bota a mão na testa Está morta Inicia uma oração E quase todos rezam em voz alta Padre nosso que estais no céu Pedro Bala se lembra das rezas à noite no reformatório Seus ombros se encolhem tapa os ouvidos Voltase vê o corpo de Dora Pirulito pôs uma flor roxa entre seus dedos Pedro Bala rompe em soluços Veio a mãedesanto DonAninha veio também o QueridodeDeus Pedro Bala não toma parte da conversa Aninha diz Foi como uma sombra nesta vida Vira santa na outra Zumbi dos Palmares é santo dos candomblés de caboclo Rosa Palmeirão também Os homens e as mulheres valentes viram santo dos negros Foi como uma sombra repete João Grande Foi como uma sombra para todos um acontecimento sem explicação Menos para Pedro Bala que a teve Menos para Professor que a amou Padre José Pedro fala Vai pro céu não tinha pecado Não sabia o que era pecado Pirulito reza QueridodeDeus sabe o que esperam dele Que leve o cadáver no seu saveiro e o jogue no mar adiante do forte velho Como poderá sair um enterro do trapiche É difícil explicar tudo isso ao padre José Pedro O Sem Pernas o faz numa voz apressada O padre a princípio se horroriza É um pecado ele não pode consentir num pecado Mas consente que não vai denunciar onde moram os Capitães da Areia Pedro Bala não fala Em torno é a paz da noite Nos olhos mortos de Dora olhos de mãe de irmã de noiva e de esposa há uma grande paz Alguns meninos choram Volta Seca e João Grande vão levar o corpo Mas parado ante ele está Pedro Bala imóvel Volta Seca não pode estende as mãos João Grande chora como uma mulher DonAninha toma do braço de Pedro tirao dali e envolve o corpo de Dora numa toalha branca de rendas Vai para Yemanjá diz Ela também vira santo Mas ninguém pode levar o cadáver Porque Pedro Bala está abraçado com ele não o larga Professor o chama Deixa Eu também gostava dela Agora Levamna para a paz da noite para o mistério do mar O padre reza é uma estranha procissão que se dirige na noite para o saveiro do QueridodeDeus Do areal Pedro Bala vê o saveiro que se afasta Morde as mãos estende os braços Voltam para o trapiche A vela branca do saveiro se perde no mar A lua ilumina o areal as estrelas tanto estão no céu como no mar Há uma paz na noite Paz que veio dos olhos de Dora Como uma estrela de loira cabeleira Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no céu Assim foi com Zumbi com Lucas da Feira com Besouro todos os negros valentesMas nunca se viu um caso de uma mulher por mais valente que fosse virar estrela depois de morta Algumas como Rosa Palmeirão como Maria Cabaçu viraram santas nos candomblés de caboclo Nunca nenhuma virou estrela Pedro Bala se joga nágua Não pode ficar no trapiche entre os soluços e as lamentações Quer acompanhar Dora quer ir com ela se reunir a ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá Nada para diante sempre Segue a rota do saveiro do QueridodeDeus Nada nada sempre Vê Dora em sua frente Dora sua esposa os braços estendidos para ele Nada até já não ter forças Bóia então os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do céu Que importa morrer quando se vai em busca da amada quando o amor nos espera Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela indo para o céu Fora mais valente que todas mulheres mais valente que Rosa Palmeirão que Maria Cabaçu Tão valente que antes de morrer mesmo sendo uma menina se dera ao seu amor Por isso virou uma estrela no céu Uma estrela de longa cabeleira loira uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala Para ele veio também a paz da noite Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra O saveiro do QueridodeDeus o recolhe Canção da Bahia canção da liberdade Vocações Não havia passado muito tempo sobre a morte de Dora a imagem da sua presença tão rápida e no entanto tão marcante da sua morte também ainda enchia de visões as noites do trapiche Alguns quando entravam todavia olhavam para o canto onde ela costumava sentar ao lado do Professor e de João Grande Ainda com a esperança de encontrála Fora um acontecimento sem explicação Fora o totalmente inesperado na vida deles o aparecimento de ua mãe de uma irmã Motivo por que eles ainda a procuravam apesar de terem visto o Queridode Deus a levar no seu saveiro para o fundo do mar Só Pedro Bala não a procurava no trapiche Procurava ver no céu de tanta estrela uma que tivesse longa e loira cabeleira Um dia Professor entrou no trapiche e não acendeu sua vela não abriu um livro de histórias não conversou Para ele toda aquela vida tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre Quando ela viera enchera o trapiche com sua presença Para Professor tudo tinha uma nova significação O trapiche ficara como a moldura de um quadro ora os cabelos loiros caindo sobre Gato que via sua mãe ora os lábios que beijavam Zé Fuinha para ele dormir Ou a boca que cantava cantigas de ninarTambém sorrisos de orgulho para a coragem de Volta Seca como se fosse uma destemida mulata sertaneja Ou a entrada no trapiche os cabelos voando o rosto todo rindo de volta da aventura do dia nas ruas da cidade Ou os olhos cheios de amor a febre queimando seu rosto as mãos chamando o amado para a posse primeira e última Agora Professor olhava o trapiche como para uma moldura sem quadro Inútil Para ele deixara de ter significação ou tinha uma significação terrível demais Mudara muito naqueles meses após a morte de Dora andava calado o rosto sério e entrara em relações com aquele senhor que certa vez num passeio da rua Chile conversara com ele lhe dera uma piteira e seu endereço Nesta noite Professor não acendeu vela não abriu livro de história Ficou calado quando João Grande veio para seu lado Arrumava suas coisas numa trouxa Quase tudo era livro João Grande olhava sem dizer nada mas compreendia muito se bem todos dissessem que não havia negro mais burro que o negrinho João Grande Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também a seu lado e lhe ofereceu um cigarro Professor falou Vou embora Bala Pra onde mano Professor olhou o trapiche os meninos que andavam que riam que se moviam como sombras entre os ratos Que adianta a vida da gente Só pancada na polícia quando pegam a gente Todo mundo diz que um dia pode mudar Padre José Pedro João de Adão tu mesmo Agora vou mudar a minha Pedro Bala não disse nada mas a pergunta estava nos seus olhos João Grande não perguntava nada compreendia tudo Vou estudar com um pintor do Rio Dr Dantas aquele da piteira escreveu a ele mandou uns desenhos meus Ele mandou dizer que me mandasse Um dia vou mostrar como é a vida da gente Faço o retrato de todo mundo Tu falou uma vez lembra Pois faço A voz de Pedro Bala o animou Tu também vai ajudar a mudar a vida da gente Como fez João Grande Professor também não entendeu Tampouco Pedro Bala sabia explicar Mas tinha confiança no Professor nos quadros que ele faria na marca do ódio que ele levava no coração na marca de amor à justiça e à liberdade que ele levava dentro de si Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia Mesmo quando depois se vai se um artista e não um ladrão assassino ou malandro Mas Pedro Bala não sabia explicar tudo isso Apenas disse A gente nunca te esquece mano Tu lia história para gente era o mais batuta da gente O mais batuta Professor baixou a cabeça João Grande se levantou sua voz era um chamado era um grito de despedida também Gentes Gentes Vieram todos ficaram em torno João Grande estendeu os braços Gentes Professor vai embora Vai ser um pintor no Rio de Janeiro Gentes viva Professor O viva apertou o coração do menino Olhou para o trapiche Não era como um quadro sem moldura Era como a moldura de inúmeros quadros Como quadros de uma fita de cinema Vida s de luta e de coragem De miséria também Uma vontade de ficar Mas que adiantava ficar Se fosse poderia ser de melhor ajuda Mostraria aquelas vidas Apertam sua mão o abraçam Volta Seca está triste tão triste como se tivesse morrido um cangaceiro do grupo de Lampião Na noite do cais o homem da piteira que era um poeta entrega uma carta e dinheiro a Professor Ele o esperará no cais Telegrafei Espero que você não traia a confiança que depositei no seu talento Nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedida Volta Seca lhe dá um punhal de presente Pedro Bala faz tudo para rir para dizer coisas gozadasMas João Grande não esconde a tristeza que vai dentro dele Professor ainda de longe vê o boné de Pedro que se sacode no cais E no meio daqueles homens desconhecidos oficiais fardados comerciantes e senhoritas fica tímido não sabe que fazer sente que toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia Mas dentro do seu peito vem uma marca de amor à liberdade Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que antes de admirar espantam todo o país Passou o inverno passou o verão veio outro inverno e este cheio de longas chuvas o vento não deixou de correr uma só noite areal Agora Pirulito vendia jornais fazia trabalhos de engraxate carregava bagagens dos viajantes Conseguira deixar de furtar para viver Pedro Bata consentira que ele continuasse no trapiche apesar que ele não levava a mesma vida que os outros Pedro Bala não entende o que vai dentro de Pirulito Sabe que ele quer ser padre que quer fugir daquela vida Mas acha que aquilo não resolverá nada não endireitará nada na vida de todos eles O padre José Pedro fazia tudo para mudar a vida deles Mas era um só os outros não achavam que ele fizesse bem Que tinha adiantado Só todos unidos como dizia João de Adão Mas Deus chamava Pirulito Nas noites do trapiche o menino ouvia o chamado de Deus Era uma voz poderosa dentro dele Uma voz poderosa como a voz do mar como a voz do vento que corre em torno ao casarão Uma voz que não fala aos seus ouvidos que fala seu coração Uma voz que o chama que o alegra e o amedronta mesmo tempo Uma voz que exige tudo dele para lhe dar a felicidade a servir Deus o chama E o chamado de Deus dentro de Pirulito é poderoso como a voz do vento como a voz potente do mar Pirulito quer viver para Deus inteiramente para Deus uma vida de recolhimento e de penitência uma vida que o limpe dos pecados que o torne digno da contemplação de Deus Deus o chama e Pirulito pensa na sua salvação Será um penitente não olhará mais o espetáculo do mundo Não quer ver nada do que se passa no mundo para ter os olhos suficientemente limpos para poderem ver a face de Deus Porque para aqueles que não têm os olhos completamente limpos de todo pecado a face de Deus é terrível como o mar enfurecido Mas para que têm os olhos e o coração limpos de todo o pecado a face de Deus é mansa como as ondas do mar numa manhã de sol e de bonança Pirulito está marcado por Deus Mas está marcado também pela vida dos Capitães da Areia Desiste da sua liberdade de ver e ouvir o espetáculo do mundo da marca de aventura dos Capitães da Areia para ouvir o chamado de Deus Porque a voz de Deus que fala no seu coração é tão poderosa que não tem comparação Rezará pelos Capitães da Areia na sua cela de penitente Porque tem que ouvir e seguir a voz que o chama É uma voz que transfigura seu rosto na noite invernosa do trapicheComo se lá fora fosse a primavera Padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado Desta vez o Cônego está acompanhado do superior dos Capuchinhos Padre José Pedro treme pensando que novamente vão lhe ralhar vão falar dos seus pecados Fez uma coisa contra as leis para ajudar os Capitães da Areia Teme ter fracassado porque em quase nada conseguira melhorara vida deles Mas em certos momentos cruéis levara um pouco de conforto àqueles pequenos corações E tinha Pirulito Era uma conquista para Deus Se não fizera tudo se não transformara como queria aquelas vidas não tinha perdido tudo também Algo havia conseguido para Deus Se alegrava apesar da tristeza do pouco que havia conseguido para os Capitães da Areia Assim mesmo em certos momentos fora como a família que lhes faltava Certas horas tinha sido pai e mãe Agora os chefes estavam já rapazes quase homens Professor já tinha ido embora outros não tardariam a ir Mesmo que fossem ser ladrões levar uma vida de pecado em certos momentos o padre conseguira minorar o espetáculo de miséria das suas vidas com um pouco de conforto e de carinho E de solidariedade Mas desta vez o Cônego não ralha Anuncia que o arcebispado resolveu lhe dar uma paróquia Conclui O senhor nos deu muito que fazer padre com suas idéias erradas acerca de educação Espero que a bondade do Sr Arcebispo lhe dando esta paróquia fará com que o senhor pense nas suas obrigações e desista dessas inovações soviéticas A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros numa perdida vila do alto sertãoMas o nome do lugarejo alegrou o coração do padre José Pedro Ia para o meio dos cangaceiros E os cangaceiros são como crianças grandes Agradeceu ia falar mas o superior dos Capuchinhos o interrompeu O Sr Cônego me disse que entre estes meninos há um que tem vocação sacerdotal Ia falar disso mesmo disse o padre Nunca vi uma vocação tão decidida O missionário sorriu Porque nós estamos em falta de um irmão Não é o mesmo que ser padre bem sei Mas está muito próximo E se a sua vocação verdadeira a ordem pode fazêlo estudar e mesmo se ordenar Ele vai ficar louco de alegria O senhor responde por ele Pirulito irá ser frade Um dia talvez se ordene O padre sai agradecendo a Deus Levam o padre à estação O apito do trem é como um lamento Estão ali vários dos Capitães da Areia Padre José Pedro os fita com amor Pedro Bala diz O senhor foi bom pra gente padre Um homem bom A gente não vai esquecer o senhor Não reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com uma batina de frade um longo cordão pendendo ao lado Padre José Pedro diz Conhecem o irmão Francisco da Sagrada Família Eles olham Pirulito com certa vergonha Mas Pirulito sorri Está mais magro um ar de asceta Com o hábito de capuchinho fica muito alto Ele rezará por vocês diz o padre José Pedro Se despede Entra para o vagão O trem apita é como uma despedida Da janela o padre vê os meninos que agitam mãos e bonés velhos chapéus trapos que servem de lenço Uma velha que vai defronte dele doidinha para puxar conversa se espanta do padre chorando BoaVida pouco aparece no trapiche Tem um violão faz sambas está enorme mais um malandro nas ruas da Bahia Ninguém tem uma vida igual à dos malandros Passa o dia conversando nas docas no mercado vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite ou às macumbas Toca seu violão come e bebe do melhor apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia Então toca para eles ri com eles em gargalhadas como se ainda fosse um deles BoaVida vai se afastando aos poucos à proporção que vai crescendo Quando tiver dezenove anos já não voltará Será um malandro completo um daqueles mulatos que amam a Bahia acima de tudo que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade Inimigo da riqueza e do trabalho amigo das festas da música do corpo das cabrochas Malandro Armador de fuzuês Jogador de capoeira navalhista ladrão quando se fizer preciso De bom coração como canta um ABC que BoaVida faz acerca de outro malandro Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para o trabalho sendo malandro sempreUm dos valentões da cidade Figura que os futuros Capitães da Areia amarão e admirarão como Boa Vida amou e admirou o QueridodeDeus Um dia passado muito tempo Pedro Bala ia com o SemPernas pelas ruas Entraram numa igreja da Piedade gostavam de ver as coisas de ouro mesmo era fácil bater uma bolsa de uma senhora que rezasse Mas não havia nenhuma senhora na igreja àquela hora Somente um grupo de meninos pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo É Pirulito disse SemPernas Pedro Bala ficou olhando Encolheu os ombros Que adianta SemPernas olhou Não dá de comer Um dia um vai ser padre também Tem que ser é tudo junto SemPernas disse A bondade não basta Completou Só o ódio Pirulito não os via Com uma paciência e uma bondade extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça Pedro Bala botou a mão no ombro do SemPernas Nem o ódio nem a bondade Só a luta A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja A voz de ódio do SemPernas estava junto de Pedro Bala Mas ele não ouvia nenhuma Ouvia era a voz de João de Adão o doqueiro a voz de seu pai morrendo na luta Canção de amor da vitalina Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro Era a última de uma família rica andava pelos quarenta e cinco anos feia e nervosa Corna a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro de brilhantes e jóias acumuladas pela família através de gerações Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado de dinheiro Gonzales o dono da casa de penhor O 14 dava dinheiro por aqueles objetos Perguntou ao SemPernas Tu é capaz de penetrar Se sou Depois a gente invade Riram no trapiche Gato saiu para ver Dalva SemPernas avisou Amanhã de manhã vou lá A solteirona abriu a porta Só tinha uma criada uma negra velha que parecia fazer parte da herança pois acompanhava a família há cinqüenta anos A solteirona olhou muito digna para o SemPernas Quer alguma coisa Eu sou um pobre ódio e aleijado mostrava a perna coxa Não quero viver furtando nem pedindo esmola A senhora tem um trabalho para mim Posso fazer compras A solteirona não tirava os olhos dele Um menino Não era a bondade que falava dentro dela Era a voz do sexo que dava seus últimos latidos Dentro em pouco seu sexo ficaria inútil os médicos diziam que então o seu nervoso cessaria Muito antes quando ainda era mocinha houvera um menino na casa para fazer comprasFora bom Mas seu irmão descobrira expulsara o menino Agora o irmão estava morto outro menino vinha pedir para fazer compras Tá bem Mandou que ele tomasse banho Pela tarde deulhe dinheiro para as compras e mais para uma roupa para ele SemPernas conseguiu bater mil e duzentos nas contasPensou Aqui vou é fazer dinheiro Na cozinha a negra contava histórias antigas com sua língua embolada Sem Pernas ouvia demonstrando excessivo interesse para ganhar confiança da negra Mas quando perguntou pelas coisas de ouro a negra não respondeu SemPernas não insistiu Sabia ser paciente estava acostumado àquele trabalho Na sala a solteirona fazia ponto de cruz numa toalha mirava SemPernas com interesse pela porta Era feia de cara mas o corpo velhusco ainda tinha certo atrativo Chamou SemPernas para ver o trabalho que ela estava fazendo quando Sem Pernas olhou ela se curvou ele viu os seios grandes Mas não pensou que ela estivesse lhe mostrando Achou o trabalho muito bonito disse A senhora é muito inteligente Parecia até um menino bemeducado Apesar da perna coxa e da cara feia a solteirona o achou lindo Seria melhor que fosse um pouco menos crescido Mas assim mesmo Novamente se curvou mostrou os seios ao SemPernas Sem Pernas desviou o olhar não pensava que fosse de propósito Quando ele elogiou novamente o trabalho ela passou a mão no seu rosto Obrigada meu filho sua voz era lânguida A negra botou um colchão na sala de jantar para o SemPernas dormir Cobriu com um lençol arranjou um travesseiro A solteirona conversava na casa de uma amiga na mesma rua e quando voltou SemPernas já estava deitado Ouviu que ela se despedia de alguém Desculpe este trabalho de trazer uma vitalina pra casa Dona Joana não diga isso Entrou trancou a porta da rua tirou a chave A negra já tinha ido dormir no quarto junto da cozinha A solteirona veio até a sala de jantar deu uma espiada em SemPernas que fez que estava dormindo Suspirou Marchou para seu quarto As luzes estavam todas apagadas na casa Apesar de ser muito cedo em relação à hora em que dormiam no trapiche SemPernas se entregou ao sono Por isso não sabe a que horas a vitalina veio Sentiu foi uma mão que passava em seus cabelos Pensou que fosse um sonho bom A mão deslizava passava no seu peito na sua barriga agora segurava de manso no seu sexo SemPernas despertou completamente mas ficou de olhos fechados A solteirona machucava seu sexo se encostava contra ele Estava de camisa de dormir suspendeu a camisa botou a mão de SemPernas no seu corpo SemPernas se encostou nela Quis falar ela pôs a mão na sua boca apontou para a cozinha Pode ouvir Disse ainda mais baixo Tu vai ser bom para mim não vai Se apertava contra ele Puxou as calças do SemPernas Depois se cobriram com o lençol Mas quando SemPernas quis tudo ela disse Não Só em cima Era uma coisa incompleta que enraivecia SemPernas A solteirona gemia baixinho de amor Apertava a cabeça do SemPernas contra seus seios enormes o sexo dele contra suas coxas a mão do menino no seu sexo SemPernas levanta estremunhado Um grande cansaço nos seus membros Aquelas noites são como batalhas Nunca é um gozo completo uma satisfação total A solteirona quer uma migalha de amor Teme o amor completo o escândalo de um filho Mas tem sede e fome de amor quer nem que sejam as migalhas Mas SemPernas quer fazer o amor completo aquilo o irrita faz crescer seu ódio Ao mesmo tempo se sente preso ao corpo da solteirona às carícias a meio trocadas na noite Uma coisa o retém naquela casa Se bem ao acordar tenha ódio de Joana uma raiva impotente uma vontade de a estrangular já que não a pode possuir totalmente se a acha feia e velha quando a noite se acerca fica nervoso pelos carinhos da vitalina pela mão que movimenta seu sexo de menino pelos seus seios onde repousa a cabeça pelas suas coxas grossas Imagina planos para a possuir mas a solteirona os frustra fugindo no último momento e ralha com ele em voz baixa Uma raiva surda possui Sem PernasMas a mão dela vem de novo para seu sexo e ele não pode lutar contra o desejo E volta àquela luta tremenda da qual sai nervoso e esgotado Durante o dia responde mal a Joana diz brutalidades a solteirona chora Ele a chama de vitalina diz que vai embora Ela lhe dá dinheiro pede que ele fique Mas não é pelo dinheiro que ele fica Fica porque o desejo o retém Já sabe qual a chave que abre a sala onde Joana guarda seus objetos de ouro Sabe como tirar a chave para levála aos Capitães da Areia Mas o desejo o retém ali junto dos seios e das coxas da vitalina Junto da mão da vitalinaFora sempre infeliz para o lado de mulher Quando conseguia uma negrinha no areal era com a ajuda dos outros era à força Nenhuma olhava para ele convidando com os olhos Outros eram feios mas ele era repulsivo com a perna coxa andando feito caranguejo Demais terminara por se fazer antipático e a se acostumara possuir negrinhas a pulso Agora vinha uma mulher branca e com dinheiro velha e feiúsca era verdade mas bem comível ainda e se deitava com ele Acariciava seu sexo com a mão juntava coxa com coxa deitava sua cabeça nos seus seios grandes SemPernas não podia sair dali se bem cada dia estivesse mais bruto e mais inquietoSeu desejo reclamava uma posse completa Mas a vitalina se contentava em colher migalhas do amor SemPernas durante o dia a odeia se odeia odeia o mundo todo Pedro Bala reclamou a demora Já era tempo do SemPernas saber os segredos da casa SemPernas diz que sim que não demora mais E naquela noite a batalha de amor é mais forte ainda A solteirona geme de amor recolhendo as migalhas do amor Mas não cede a sua honra Isso dá coragem ao SemPernas para no outro dia arribar com a chave A vitalina o espera para o amor Está como uma esposa a quem o marido abandonasse Chora e se lastima Seu amor não vem ela também precisa de amor como todas essas moças que passam de vestidos bonitos na rua Mas o roubo a enfurece Porque pensa que SemPernas só amou nas noites longas de vícios para a furtar Sua sede de amor humilhada É como se houvessem cuspido na sua cara dizendo que era por causa da sua feiúra Chora não geme mais uma canção de amor Se sente com coragem para estrangular o SemPernas se encontrassePorque burlaram do seu amor da sede de amor que está no seu sangue A sua desgraça é mais completa porque durante uma semana foi plenamente feliz com as migalhas de amor Rola no chão com um ataque No trapiche SemPernas ri relatando sua aventura Mas no fundo sabe que a solteirona o fez ainda pior aumentou com seus vícios o ódio que vivia latente no seu coração Agora um desejo insatisfeito enche suas noites Um desejo que impede seu sono que lhe dá raiva Na rabada de um trem Os navios chegam a Ilhéus carregados de mulheres Mulheres que vêm da Bahia de Aracaju o mulherio todo de Recife mesmo do Rio de Janeiro Os gordos coronéis olham das pontes a chegada das mulheres Morenas loiras e mulatas vêm em busca deles Porque a notícia da alta do cacau correu pelo país todo A notícia de que numa cidade relativamente pequena como Ilhéus estavam abertos quatro cabarés Que os coronéis queimavam nas noites de jogo e de champanha notas de quinhentos milréisQue pela madrugada saíam nus pelas ruas da cidade formando o chamado terno do Y A notícia corria pelas ruas de mulheres perdidas Os caixeirosviajantes levavam a notícia O cabaré da Brama em Aracaju ficou despovoado de mulheres Foram para o ElDorado cabaré de Ilhéus O mulherio de Recife desceu todo em alguns navios do Lloyd Brasileiro Os pernambucanos ficaram sem mulheres vieram todas para o cabaré Bataclan apelidado pelos estudantes em férias de Escola Vieram algumas do Rio de Janeiro e estas foram para o Trianon exVesúvio o mais luxuoso dos quatro cabarés da cidade do cacau Até Rita Tanajura célebre pelas grandes nádegas reboleantes deixou a paz da sua cidade de Estância onde era a rainha do pequeno mulherio de vida fácil e onde se dava com todo mundo e veio ser a rainha do FarWest o cabaré da rua do Sapo onde os beijos e o estalo das garrafas de champanha se misturavam com os tiros com o barulho das brigas Porque o FarWest era o cabaré dos capatazes dos pequenos fazendeiros de repente enriquecidos Na rua de Dalva na zona das mulheres perdidas da Bahia a casas se despovoaram Vieram mulheres para o Bataclan mulheres para o ElDorado mulheres para o FarWestUmas poucas vieram para o Trianon onde dançavam com os coronéis No Bataclan mulheres pernambucanas e sergipanas davam parte do dinheiro que ganhavam dos coronéis e que era muito aos estudantes que em compensação lhes davam o amor Os viajantes enchiam o ElDorado Até no Far West as mulheres ganhavam jóias Por vezes ganhavam um tiro também como uma estranha jóia vermelha no peito Rita Tanajura dançava o charleston em cima de uma mesa entre champanha e tiros Tudo isso foi naquela alta do cacau de há muitos anos Quando Dalva soube que Isabel tinha colares e anel de brilhante e no entanto não estava no Trianon que era o mais luxuoso dos cabarés estava era no Bataclan não resistiu Arrumou as malas O que não faria ela no Trianon ela que era a melhor das mulheres da sua rua Enfardou Gato com uma elegantíssima roupa de casimira feita sol medida de repente Gato não era mais um menino era o mais jovem dos vigaristas da Bahia Na noite que envergando seu traje novo sapatos negros de verniz gravata borboleta chapéu de palhinha apareceu no trapiche João Grande soltou uma exclamação de assombro Pois não é o Gato Gato não fizera ainda dezoito anos Fazia quatro que amava Dalva Virou para João Grande Agora vou começar a vida Ofereceu cigarros tirados de uma cigarreira cara alisou o cabelo bem assentado Botou a mão no ombro de Pedro Bala Mano vou para Ilhéus A patroa vai cavar a vida Eu vou com ela Sou capaz de enricar Quando tiver fazendeiro a gente vai faze uma farra daquelas Pedro sorriu Era outro que ia Não seriam meninos toda vida Bem sabia que eles nunca tinham parecido crianças Desde pequenos na arriscada vida da rua os Capitães da Areia eram como homens eram iguais a homens Toda a diferença estava no tamanho No mais eram iguais amavam e derrubavam negras no areal desde cedo furtavam para viver como os ladrões da cidade Quando eram preso apanhavam surras como os homensPor vezes assaltavam de armas na mão como os mais temidos bandidos da Bahia Não tinham também conversas de meninos conversavam como homens Sentiam mesmo como homens Quando outras crianças só se preocupavam com brincar estudar livros para aprender a ler eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver Sempre tinham sido como homens na sua vida de miséria e de aventura nunca tinham sido perfeitamente crianças Porque o que faz a criança é o ambiente de casa pai mãe nenhuma responsabilidade Nunca eles tiveram pai e mãe na vida da rua E tiveram sempre que cuidar de si mesmos foram sempre os responsáveis por si Tinham sido sempre iguais a homens Agora os mais velhos os que eram desde há anos os chefes do grupo estavam rapazolas começavam a ir para seus destinosProfessor já fora fazia quadros no Rio de Janeiro BoaVida se desligara aos poucos do trapiche toca violão nas festas vai aos candomblés arma fuzuê nas quermesses É mais um malandro na cidade Seu nome já é conhecido até nos jornais Como os outros vagabundos é conhecido pelos investigadores de polícia que sempre estão de olho nos malandros Pirulito é frade num convento Deus o chamou nunca mais saberão dele Agora é o Gato que parte vai arrancar dinheiro dos coronéis de IlhéusO QueridodeDeus certa vez disse que Gato enricaria Porque a vida na rua no abandono fez de Gato um jogador desonesto um vigarista um gigolô de mulheres Não demorará que os outros partam Só Pedro Bala não sabe o que fazer Dentro em pouco será mais que um rapazola será um homem e terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia Para onde irá Não poderá ser um intelectual como Professor cujas mãos só viviam para pintar não nasceu para malandro como BoaVida que não sente o espetáculo da luta diária dos homens que só ama andar vagabundando pelas ruas conversar acocorado nas docas beber nas festas de morro Pedro sente o espetáculo dos homens acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede de liberdade que tem dentro de si Tampouco sente o chamado de Deus como Pirulito o sentiu Para ele as pregações do padre José Pedro nunca disseram nada Gostava do padre como de um homem bom Só as palavras de João de Adão encontravam acolhida no seu coração Mas João de Adão mesmo sabe muito pouco O que tem é músculos potentes e voz autoritária e no entanto amiga para chefiar uma greve Tampouco Pedro Bala quer ir como Gato enganar os coronéis de Ilhéus arranca o dinheiro deles Quer qualquer coisa que não sabe ainda o que é e por isso se demora entre os Capitães da Areia O trapiche grita se despedindo do Gato Este sorri elegantíssimo alisando o cabelo no dedo aquele anelão cor de vinho que furtar certa vez Do cais Pedro Bala dá adeus ao Gato Vestido com suas roupas esfarrapadas agitando o boné se sente muito longe do Gato que ao lado de Dalva parece um homem feito com sua roupa bem talhada Pedro sente uma aflição uma vontade de fugir de ir para qualquer parte num navio ou na rabada de um trem Mas quem vai na rabada de um trem é Volta Seca Uma tarde a polícia o pegou quando o mulato despojava um negociante da sua carteira Volta Seca tinha então dezesseis anos Foi levado para a polícia o surraram porque ele xingava todos soldados e delegados com aquele imenso desprezo que o sertanejo tem pela polícia Ele não soltou um grito enquanto apanhou Oito dias depois o puseram na rua e ele saiu quase alegre porque agora tinha uma missão na vida matar soldados de polícia Passou uns dias no trapiche o rosto sombrio afogado em pensamentos O sertão o chamava a luta do cangaço o chamava Um dia disse a Pedro Bala Vou passar uns tempos com os Maloqueiros em Aracaju Os Índios Maloqueiros eram os Capitães da Areia em Aracaju Viviam sob as pontes roubavam e brigavam nas ruas O juiz de menores Olimpio Mendonça era um homem bom procurava resolver os conflitos como melhor podia se abismava com a inteligência das crianças iguais a homens compreendia que era impossível resolver o problemaContava aos romancistas coisas dos meninos no fundo amava os meninos Mas se sentia aflito porque não podia resolver o problema deles Quando entre os Índios Maloqueiros aparecia algum novo ele já sabia que era um baiano que tinha chegado na rabada de um trem E quando um sumia sabia que tinha ido para entre os Capitães da Areia na Bahia Uma madrugada o trem de Sergipe apitou na estação da Calçada Ninguém tinha vindo trazer Volta Seca à estação porque ele ia para voltar ia passar uns tempos entre os Índios Maloqueiros esquecer a polícia baiana que o tinha marcado Volta Seca se meteu no vagão de carga que estava aberto se escondeu entre uns fardos Aos poucos o trem abandona a estação Depois é a estrada do sertão Índia Nordestina Nas casas de barro aparecem mulheres e meninas Os homens seminus lavram a terraNa estrada de animais que corre paralela à estrada de ferro passam boiadas Vaqueiros gritam tangendo os animais Nas estações vendem doces de milho mingau mungunzá pamonha e canjica O sertão vai entrando pelo nariz e pelos olhos de Volta Seca Queijos e rapaduras passam em tabuleiros nas pequenas estações as paisagens agrestes jamais esquecidas enchem novamente os olhos do sertanejo Estes muitos anos na cidade não tinham arrancado seu amor ao sertão miserável e belo Nunca fora um menino da cidade igual a Pedro Bala a BoaVida ao Gato Fora sempre um deslocado na cidade com uma fala diferente falando em Lampião dizendo meu padrim imitando as vozes dos animais sertanejos Antigamente ele e sua mãe tinham um pedaço de terra Ela era comadre de Lampião os coronéis respeitavam sua terra Mas quando Lampião se internou pelo sertão de Pernambuco os coronéis ficaram com a terra da mãe de Volta Seca Ela desceu para a cidade para pedir justiça Morreu no caminho Volta Seca continuou a caminhada com seu rosto sombrio Muita coisa aprendeu na cidade entre os Capitães da Areia Aprendeu que não era só no sertão que os homens ricos eram ruins para com os pobresNa cidade também Aprendeu que as crianças pobres são desgraçadas em toda parte que os ricos perseguem e mandam em toda parte Sorriu por vezes mas nunca deixou de odiar Na figura de José Pedro descobriu o motivo por que Lampião respeitava os padre s Se já pensava que Lampião era um herói a sua experiência na cidade o ódio adquirido na cidade fez com que amasse a figura de seu padrinho acima de tudo Acima mesmo da de Pedro Bala Agora é o sertão Perfume das flores do sertão Campos amigos aves amigas magros cachorros nas portas das casas Velhos que parecem missionários indianos negros de longos rosários no pescoço Cheiro bom de comidas de milho e mandioca Homens magros que lavram a terra para ganhar mil e quinhentos dos donos da terra Só caatinga é que é de todos porque Lampião libertou a caatinga expulsou os homens ricos da caatinga fez da caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros O herói Lampião herói de todo o sertão de cinco estados Dizem que ele é um criminoso um cangaceiro sem coração assassino desonrador ladrão Mas para Volta Seca para os homens as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares ele é um libertador um capitão de um novo exército Porque a liberdade é como o sol o bem maior do mundo E Lampião luta mata deflora e furta pela liberdade Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados Pernambuco Paraíba Alagoas Sergipe e Bahia O sertão comove os olhos de Volta Seca O trem não corre este vai devagar cortando as terras do sertão Aqui tudo é lírico pobre e belo Só a miséria dos homens é terrível Mas estes homens são tão fortes que conseguem criar beleza dentro desta miséria Que não farão quando Lampião libertar toda a caatinga implantar a justiça e a liberdade Passam violeiros improvisadores de poesia Passam vaqueiros que tangem o gado homens plantam mandioca e milho Nas estações os coronéis descem para estirar as pernas Levam grandes revólveres Os violeiros cegos cantam pedindo uma esmola Um negro de camisa e rosário atravessa essa a estação dizendo estranhas coisas em língua desconhecida Foi escravo hoje é um doido na estação Todos temem temem suas pragas Porque ele sofreu muito o chicote de feitor rasgou suas costas Também o chicote da polícia feitor dos ricos rasgou as costas de Volta Seca Todos o temerão um dia também Caatingas do sertão olor das flores sertanejas o manso andar do trem sertanejo Homens de alpercatas e chapéu de couro Criança que estudam para cangaceiro na escola da miséria e da exploração do homem O trem pára no meio da caatinga Volta Seca pula fora do vagão Os cangaceiros apontam os fuzis o caminhão que os trouxe está parado no outro lado da estrada os fios do telégrafo cortados Na caatinga agreste não se vê ninguém Uma moça desmaia num dos carros um caixeiroviajante esconde a carteira com dinheiroUm coronel gordo sai do vagão fala Capitão Virgulino O cangaceiro de óculos aponta o fuzil Para dentro Volta Seca pensa que seu coração vai estalar de alegria Encontrou seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião herói das crianças sertanejas Chega para junto dele um outro cangaceiro o quer afastar mas ele diz Meu padrim Quem é tu Sou Volta Seca filho de tua comadre Lampião o reconhece sorri Os cangaceiros estão entrando nos vagões de primeira não são muitos uns doze Volta Seca pede Meu padrim deixe eu ficar com você Me dê um fuzil Tu ainda é um menino Lampião olha com seus óculos escuros Não sou mais não já briguei com soldado Lampião grita Zé Baiano dá um fuzil a Volta Seca Olha o afilhado Tu guarda esta saída Se um quiser arribar mete fogo Entra para a coleta Desmaios e gritos lá dentro o soar de um disparo Depois o grupo volta para a estrada Traz dois soldados de polícia que viajavam no tremLampião divide dinheiro com os cangaceiros Volta Seca também recebe De um vagão sai um fio de sangue O cheiro bom do sertão penetra as narinas de volta SecaOs soldados são encostados numas árvores Zé Baiano prepara o fuzil mas a voz de Volta Seca faz um pedido Deixe pra mim padrim Eles me bateram na polícia bateram em muito menino Levanta o fuzil qual é o sertanejo que não tem boa pontaria Seu rosto sombrio tem um riso que o enche todo Cai o primeiro o segundo tenta fugir mas a bala o alcança nas costas Depois Volta Seca corre para cima dele com o punhal sacia sua vingança Zé Baiano diz Este menino é dos bons A mãe dele era um bicho minha comadre lembra Lampião orgulhoso Uma verdadeira fera pensa o viajante enquanto o trem se move lentamente após os empregados afastarem os toros de madeira de sobre os trilhos O grupo de cangaceiros se perde na caatinga O ar do sertão enche o peito de Volta Seca que pára e com o punhal faz dois traços na madeira do fuzil Os dois primeirosAo longe o trem apita angustiosamente Como um trapezista de circo Fora demasiada audácia atacar aquela casa da rua rui Barbosa Perto dali na praça do Palácio andavam muitos guardas investigadores soldados Mas eles tinham sede de aventura estavam cada vez maiores cada vez mais atrevidos Porém havia muita gente na casa deram o alarme os guardas chegaram Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça Barandão abriu no mundo também Mas o SemPernas ficou encurralado na rua Jogava picula com os guardas Estes tinham se despreocupado dos outros pensavam que já era alguma coisa pegar aquele coxo SemPernas corria de um lado para outro da rua os guardas avançavam Ele fez que ia escapuli por outro lado driblou um dos guardas saiu pela ladeira Mas em vez de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros se dirigiu para a praça do Palácio Porque SemPernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza Eram homens de pernas maiores que as suas e além do mais ele era coxo pouco podia correr E acima de tudo não queria que o pegassem Lembravase da vez que fora à polícia Dos sonhos das suas noites más Não o pegariam e enquanto corre este é o único pensamento que vai com ele Os guardas vêm nos seus calcanhares SemPernas sabe que eles gostarão de o pegar que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda Essa será a sua vingança Não deixará que o peguem não tocarão a mão no seu corpo SemPernas os odeia como odeia a todo mundo porque nunca pôde ter um carinho E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha marcado demais Nunca tivera uma alegria de criança Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas a vida de criança abandonada Nunca conseguira amar ninguém a não ser a este cachorro que o segue Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos o do SemPernas já estava cheio de ódio Odiava a cidade a vida os homensAmava unicamente o seu ódio sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico Uma vez uma mulher foi boa para ele Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama acariciara seu sexo se aproveitara dele para colher migalhas do amor que nunca tivera Nunca porém o tinham amado pelo que ele era menino abandonado aleijado e triste Muita gente tinha odiadoE ele odiara a todos Apanhara na polícia um homem ria quando o surravam Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas Se o levarem o homem rirá novo Não o levarão Vêm em seus calcanhares mas não o levarão Pensam que elevai parar junto ao grande elevador Mas SemPernas não pára Sobe para o pequeno muro volve o rosto para os guardas que ainda correm ri com toda a força do seu ódio cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo A praça toda fica em suspenso por um momento Se jogou diz uma mulher e desmaia SemPernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio O cachorro late entre as grades do muro Notícias de jornal O Jornal da Tarde publica um telegrama do rio dando conta do sucesso da exposição de um jovem pintor até então desconhecido Dias depois transcreve uma crítica de arte publicada também num jornal do Rio de Janeiro Porque o pintor é baiano e o Jornal da Tarde é muito cioso das glórias baianas Um trecho da crítica de arte após falar das qualidades e defeitos do novo pintor social de usar e abusar de expressões como clima luz cor ângulos força e outras mais diz um detalhe notaram todos que foram estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante Que representará para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros Sabese que o pintor João José tem uma história E continuava o abuso das palavras cor força clima luz ângulos e outras mais complicadas Meses depois uma notícia informava aos leitores do Jornal da Tarde sob o título de PRESENTE DE GREGO A POLÍCIA DE BELMONTE DEVOLVE O VIGARISTA GATO que a polícia de Belmonte havia recebido da policia de Ilhéus um verdadeiro presente de grego Um conhecido e jovem vigarista que atuava em Ilhéus com o nome de Gato após ter abiscoitado bons cobres de muitos fazendeiros e comerciantes fora remetido para Belmonte Lá continuava a passar contos do vigário em que era mestre Conseguira vender uma imensidade de terras ótimas para o cultivo do cacau a muitos fazendeiros Quando estes foram ver as terras não eram mais que o leito sobre o qual corre o rio Cachoeira A polícia de Belmonte tinha conseguido deitar mão no temível vigarista e o remetia de volta para Ilhéus Os ilheenses são mais ricos que nós terminava com certa ironia o correspondente que assinava a notícia podem sustentar com mais conforto o elegante Gato que os filhos da bela Belmonte a Princesa do Sul Porque se Belmonte é a Princesa Ilhéus é muito justamente chamada a Rainha do Sul Entre fatos policiais sem importância o Jornal da Tarde noticiou um dia que um malandro conhecido pelo nome de BoaVida armara um fuzuê tremendo numa festa na Cidade de Palha abrira a cabeça do dono da casa com uma garrafa de cerveja e estava sendo procurado pela polícia Perto de um Natal o Jornal da Tarde apareceu com manchetes em tipos enormes Uma notícia de tanta sensação como aquela que fizera conhecida a história da mulher que acompanhava o bando de Lampião a amante do cangaceiro Porque a população dos cinco estados de Bahia Sergipe Alagoas Paraíba e Pernambuco vive com os olhos fitos em Lampião Com ódio ou com amor nunca com indiferença A manchete dizia em letras garrafais UMA CRIANÇA DE 16 ANOS NO GRUPO DE LAMPIÃO Os tipos das letras dos títulos que encabeçavam a reportagem eram também enormes É UM DOS MAIS TEMÍVEIS CANGACEIROS TRINTA E CINCO TRAÇOS NO SEU FUZIL PERTENCEU AOS CAPITÃES DA AREIA A MORTE DE MACHADÃO DEVIDA A VOLTA SECA A reportagem era extensa Contava como as vilas saqueadas há algum tempo vinham notando entre o bando de Lampião uma criança de uns dezesseis anos que levava o nome de Volta Seca Apesar da sua idade o jovem cangaceiro se fizera temido em todo o sertão como um dos mais cruéis do grupo Constava que seu fuzil tinha trinta e cinco marcas E cada marca num fuzil de cangaceiro representa um homem morto Depois vinha a história da morte de Machadão um dos mais antigos do grupo de Lampião Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho sargento de polícia E Lampião o entregara a Volta Seca para que o despachasse Volta Seca o despachara devagarinho à ponta de punhal cortando os pedacinhos com visível satisfação Fora tanta a crueldade que Machadão horrorizado levantou o fuzil para acabar com Volta Seca Mas antes que disparasse Lampião que tinha um grande orgulho de Volta Seca atirou em Machadão Volta Seca continuara sua tarefa A notícia se estendia narrando diversos outros crimes do cangaceiro de 16 anos Depois lembrava que entre os Capitães da Areia vivera um menino com o nome de Volta Seca e que era possível que fosse o mesmo Vinham então várias considerações de ordem moral A edição se esgotou Meses depois a edição se esgotou novamente porque trazia a notícia da prisão de Volta Seca enquanto dormia executada pela coluna volante que percorria o sertão dando caça a Lampião Anunciava que o cangaceiro chegaria no outro dia à Bahia Vinham vários clichês onde Volta Seca aparecia com seu rosto sombrio O Jornal da Tarde dizia que era rosto de criminoso nato O que não era verdade como o próprio Jornal da Tarde noticiou tempos depois ao relatar em edições extraordinárias e sucessivas o júri que condenou Volta Seca a 30 anos de prisão por 15 mortes conhecidas e provadas No entanto seu fuzil tinha 60 marcas E o jornal lembrava esse fato repetindo que cada marca era um homem morto Mas publicava também parte do relatório do médicolegista cavalheiro de honestidade e cultura reconhecidas já então um dos grandes sociólogos e etnógrafos do país relatório que provava que Volta Seca era um tipo absolutamente normal e que se virara cangaceiro e matara tantos homens e com tamanha crueldade não fora por vocação de nascença Fora o ambiente e vinham as devidas considerações científicas O que aliás não despertou tanta curiosidade entre o público como a descrição de belíssimo vibrantíssimo e apaixonadíssimo discurso de doutor Promotor Público que fizera os jurados chorar e até o próprio juiz tinha limpado as lágrimas ao descrever o doutor Promotor com sublime força oratória o sofrimento das vítimas do feroz cangaceiromenino O público ficou indignado porque Volta Seca não chorou durante o júri Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma Companheiros Há um movimento novo na cidade Pedro Bala sai do trapiche com João Grande e Barandão O cais está deserto parece que todos o abandonaram Somente soldados de policia guardam os grandes armazéns Não há descarga de navios neste dia Porque os estivadores com João de Adão à frente foram prestar solidariedade aos condutores de bonde que estão em greve Parece que há uma festa na cidade mas uma festa diferente de todas Passam grupos de homens que conversam os automóveis cortam as ruas conduzindo gente para o trabalho empregados no comércio riem a ladeira da Montanha está cheia de gente que sobe e desce pois os elevadores também estão paradosAs marinetes vão entupidas gente sobrando pelas portas Os grupos de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato onde vão ouvir a leitura do manifesto dos estivadores que João de Adão conduz nas suas mãos grandes Na porta do sindicato grupos conversam soldados montam guarda Pedro Bala anda com João Grande e Barandão pelas ruas Diz Tá bonito João Grande também sorri o negrinho Barandão fala Hoje vai ter fuzuê Eu é que não queria ser condutor de bonde nem motorneiro Ganha uma porcaria Eles faz bem fala João Grande Vamos espiar propõe Pedro Bala Vão para a porta do sindicato Entram homens negros mulatos espanhóis e portugueses Vêem quando João de Adão e os outros estivadores saem entre vivas dos operários das linhas de bonde Eles vivam também João Grande e Barandão porque gostam do doqueiro João de Adão Pedro Bala não só por isso como porque acha bonito o espetáculo da greve é como uma das mais belas aventuras dos Capitães da Areia Um grupo de homens bem vestidos entra no sindicato Da porta eles ouvem uma voz que discursa uma que interrompe Vendido amarelo Tá bonito repete Pedro Bala Tem vontade de entrar de se misturar com os grevistas de gritar e lutar ao lado deles A cidade dormiu cedo A lua ilumina o céu vem a voz de um negro do mar em frente Canta a amargura da sua vida desde que a amada se foi No trapiche as crianças já dormem Até o negro João Grande ronca estirado na porta o punhal ao alcance da mão Somente Pedro Bala vela estirado na areia olhando a lua ouvindo o negro que canta as saudades da sua mulata que partiu O vento traz trechos soltos da canção e ela faz com que Pedro Bala procure Dora no meio das estrelas do céu Ela também virou uma estrela uma estranha estrela de longa cabeleira loira Os homens valentes têm uma estrela em lugar do coração Mas nunca se ouviu falar de uma mulher que tivesse no peito como uma flor uma estrela As mulheres mais valentes da terra e do mar da Bahia quando morriam viravam santas para os negros como os malandros que foram também muito valentes Rosa Palmeirão virou santa num candomblé de caboclo rezam para ela orações em nagô Maria Cabaçu é santa nos candomblés de Itabuna pois foi naquela cidade que ela mostrou sua coragem primeiro Eram duas mulheres grandes e fortes De braços musculosos como homens como grevistas Rosa Palmeirão era bonita tinha o andar gingado de marítima era uma mulher do mar certa vez teve um saveiro cortou as ondas da entrada da barra Os homens do cais a amavam não só pela sua coragem como pelo seu corpo também Maria Cabaçu era feia mulata escura filha de negro e índia grossa e zangada Dava nos homens que a achavam feia Mas se entregou toda a um cearense amarelo e fraco que a amou como se ela fosse uma mulher bonita de corpo belo e olhos sensuais Tinham sido valentes viraram santas nos candomblés de caboclo que são candomblés que de quando em vez inventam novos santos não têm aquela pureza de rito dos candomblés nagôs dos negros São candomblés dos mulatos Mas Dora fora mais valente que elas Era apenas uma menina vivera igual a um dos Capitães da Areia e todos sabem que um capitão da areia é igual a um homem valente Dora vivera com eles fora mãe para todos eles Mas fora irmã também correra com eles pelas ruas invadira casas batera carteiras brigara com o grupo de EzequielDepois para Pedro Bala fora noiva e esposa esposa quando a febre a devorava quando a morte já a rondava naquela noite de tanta paz Paz que ia dos olhos dela para a noite em torno Estivera no orfanato fugira dele igual a Pedro Bala fugindo do reformatório Tivera coragem para morrer consolando seus filhos irmãos noivos e esposo que eram os Capitães da Areia A mãedesanto DonAninha a enrolara numa toalha branca bordada como se fora para um santo O QueridodeDeus a levara no seu saveiro para junto de Yemanjá Padre José Pedro rezava Todos a queriam Mas só Pedro Bala quis ir com ela Professor fugiu do trapiche porque não pôde mais suportar o casarão depois que ela partiu Mas só Pedro Bala se jogou nágua para seguir o destino de Dora ir fazer com ela aquela maravilhosa viagem que os valentes fazem com Yemanjá no fundo verde do mar Por isso só ele viu quando ela virou estrela e cruzou os céus Ela veio só para ele com sua longa cabeleira loira Brilhou sobre sua cabeça de quase afogado e suicida Deulhe novas forças o saveiro do QueridodeDeus que voltava o pôde recolher Agora olha o céu procurando a estrela de Dora É uma estrela de longa cabeleira loira uma estrela como não existe nenhuma outra Porque nunca existiu nenhuma mulher como Dora que era uma menina A noite está cheia de estrelas que se refletem no mar calmo A voz do negro parece se dirigir às estrelas como que há pranto na sua voz cheia Ele também procura a amada que fugiu na noite da Bahia Pedro Bala pensa que a estrela que é Dora talvez ande agora correndo sobre as ruas becos e ladeiras da cidade a procuráloTalvez o pense numa aventura nas ladeiras Mas hoje não são os Capitães da Areia que estão metidos numa bela aventura São os condutores de bonde negros fortes mulatos risonhos espanhóis e portugueses que vieram de terras distantes São eles que levantam os braços e gritam iguais aos Capitães da Areia A greve se soltou na cidade É uma coisa bonita a greve é a mais bela das aventuras Pedro Bala tem vontade de entrar na greve de gritar com toda a força do seu peito de apartear os discursos Seu pai fazia discursos numa greve uma bala o derrubou Ele tem sangue de grevista Demais a vida da rua o ensinou a amar a liberdadeA canção daqueles presos dizia que a liberdade é como o sol o bem maior do mundo Sabe que os grevistas lutam pela liberdade por um pouco mais de pão por um pouco mais de liberdade É como uma festa aquela luta Os vultos que se aproximam o fazem levantar desconfiado Mas logo reconhece a figura enorme do estivador João de Adão Junto a ele vem um rapaz bem vestido mas com os cabelos despenteados Pedro Bala tira o boné fala para João de Adão Tu hoje ganhou viva hein João de Adão ri Distende seus músculos seu rosto está aberto num sorriso para o chefe dos Capitães da Areia Capitão Pedro eu quero apresentar a tu o companheiro Alberto O rapaz estende a mão para Pedro Bala O chefe dos Capitães da Areia limpa primeiro sua mão no paletó rasgado depois aperta a do estudante João de Adão está explicando É um estudante da Faculdade mas é um companheiro da gente Pedro Bala olha sem desconfiança O estudante sorri Já ouvi falar muito em você e em seu grupo Você é um batuta A gente é macho sim responde Pedro Bala João de Adão se aproxima mais Capitão a gente tem que conversar com tu Tem um assunto com tu Um troço sério Aqui o companheiro Alberto Vamos para dentro fala Pedro Bala Acordam João Grande ao passar O negro olha com desconfiança o estudante pensa que é um polícia levanta um pouco o punhal por detrás do braço Só Pedro Bala vê e fala É um amigo de João de Adão Vem com a gente Grande Vão os quatro Sentam num canto Alguns dos Capitães da Areia acordam e espiam o grupo O estudante olha o trapiche as crianças que dormem Treme como se um vento frio tivesse passado pelo seu corpo Que horror Mas Pedro Bala está dizendo a João de Adão Que coisa porreta a greve Nunca vi coisa tão bonita É como uma festa A greve é a festa dos pobres diz o estudante A voz de Alberto é mansa e boa Pedro Bala o escuta enlevado como se fosse a voz de um negro cantando uma canção no mar Meu pai morreu numa greve tu sabe Pergunte a João de Adão se está duvidando Foi uma morte bonita fala o estudante Ele foi um campeão da sua classe Não foi o Loiro O estudante sabe o nome de seu pai Seu pai foi um campeão Todos o conhecem Teve uma morte bonita morreu numa greve a greve é a festa dos pobres Escuta a voz do estudante Você acha a greve bonita Pedro Companheiro esse é um porreta diz João de Adão Tu não conhece os Capitães da Areia nem Capitão Pedro É um companheiro Companheiro Companheiro Pedro Bala acha a palavra mais bonita do mundo O estudante diz como Dora dizia a palavra irmão Pois companheiro Pedro a gente precisa de você e do seu grupo Pra quê pergunta João Grande curioso Pedro Bala apresenta Este negro é João Grande um negro bom Quem for bom é igual a João Grande melhor não é Alberto estende a mão ao negro João Grande fica um momento indeciso não está acostumado a apertos de mão Mas logo aperta aquela mão meio encabulado O estudante novamente diz Vocês são uns batutas De repente interessado pergunta É verdade que Volta Seca foi um de vocês Um dia a gente tira ele da cadeia é a resposta de Bala O estudante olha meio espantado Dá uma espiada pelo trapiche João de Adão faz um sinal como que lembrando Eu não lhe dizia Pedro Bala quer conversar sobre a greve saber o que querem dele É pra greve que precisa da gente Se for perguntou o estudante Se for pra ajudar os grevistas tou decidido Pode contar com a gente levantase está um rapazola o rosto disposto para a luta Tu não vê começa a explicar João de Adão Mas cala porque o estudante está falando A greve está indo muito em ordem Nós queremos fazer coisas com muita ordem porque assim venceremos e os operários conseguirão o aumento Nós não queremos armar barulho queremos mostrar que os operários são capazes de disciplina Uma pena pensa Pedro Bala que ama os barulhos Mas acontece que os diretores da Companhia andam contratando furagreves para trabalhar amanhã Se os operários dissolverem os grupos de furadores de greve darão margem a que a polícia intervenha e está todo o trabalho perdido Então o companheiro João de Adão lembrou de vocês Pra debandar os furagreve Tá certo diz Bala alegríssimo O estudante pensa na discussão daquela noite na organização Quando João de Adão fizera a proposta de chamar os Capitães da Areia muitos companheiros tinham se declarado contra Sorriam da idéia João de Adão só dizia Vocês não conhece os Capitães da Areia Aquilo aquela confiança impressionara Alberto e alguns outros Por fim a idéia venceu não perderiam nada em tentar Agora está satisfeito de ter vindo E na sua cabeça já fazia planos para aproveitar na luta os Capitães da Areia Para quanta coisa não serviriam aqueles meninos esfomeados e mal vestidos Lembravase de outros exemplos da luta antifascista na Itália os meninos de Lusso Sorria para Pedro Bala Explicou o plano os furadores de greve viriam pela madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar conta dos carros Os Capitães da Areia deviam se dividir em três grupos guardar as entradas dos três depósitosE impedir fosse como fosse que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha Pedro Bala assentia com a cabeça Virou para João de Adão Se SemPernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui Depois se lembra de Professor Professor inventava um plano bom num minuto Depois fazia um desenho da briga Agora tá no Rio Quem é pergunta o estudante Um chamado João José que a gente tratava de Professor Agora tá pintando quadro no Rio É o pintor João José Esse mesmo fez Bala Eu sempre pensei que fosse lenda essa história Sabe que ele é um companheiro bom Sempre foi um companheiro bom disse Pedro Bala com força O estudante fazia planos sobre os Capitães da Areia Agora Pedro Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer O estudante estava entusiasmado com as palavras do moleque Quando terminou de explicar Bala resumiu tudo nestas palavras A greve é a festa dos pobres Os pobres é tudo companheiro companheiro da gente Você é um batuta disse o estudante Vai ver como a gente acaba com os traidor Explicava a Alberto Eu vou com um grupo pro depósito maior João Grande vai com outro Barandão com o terceiro para o menor Não entra ninguém A gente sabe fazer Tu vai ver Eu estarei lá para ver fez o estudante Então às quatro horas da madrugada Tá certo O estudante faz um gesto Até logo companheiros Companheiros Palavra bonita pensa Pedro Bala Ninguém dorme mais no trapiche nesta noite Preparam as mais diversas armas Na madrugada que nasce as estrelas começam a desaparecer do céu Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de Dora que o alegra CompanheiraTambém ela tinha sido uma companheira boa A palavra brinca na sua boca é a palavra mais bonita que ele já viu Pedirá a BoaVida que faça um samba dela um samba para um negro cantar à noite no mar Vão como se fossem para uma festa Armados com as mais diversas armas navalhas punhais pedaços de pau Vão para uma festa porque a greve é a festa dos pobres repete Pedro Bala para si mesmo No pé da ladeira da Montanha se dividem em três grupos João Grande chefia um Barandão vai com outro o maior vai com Pedro Bala Vão para uma festa A primeira festa verdadeira que têm aquelas crianças Ainda assim é uma festa de homens Mas é uma festa dos pobres dos pobres como eles A madrugada é fria Na esquina do depósito quando Pedro Bala está colocando os meninos Alberto se aproxima dele Pedro se volta o rosto sorridente O estudante fala Eles já vêm companheiro Espera pra ver Agora é o estudante quem sorri Evidentemente está entusiasma do com os meninos Pedirá à organização para trabalhar com eles Irão fazer muitas coisas juntos Os furagreves vêm num grupo cerrado Um americano o chefia com a cara fechada Se dirigem todos para a entrada Da sombra dos becos ninguém sabe de onde como demônios fugidos do inferno surgem meninos esfarrapados e de armas na mão Punhais navalhas paus Tomam a porta o grupo dos furagreves pára Logo os demônios se atiram é um bolo só São em número maior que o grupo de furagreves Estes rolam com os golpes de capoeira recebem pauladas alguns já fogem Pedro Bala derruba o americano com a ajuda de outro o soqueiaOs furagreves pensam que são demônios fugidos do inferno A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada A greve não é furada Também João Grande e Barandão são vitoriosos O estudante ri com eles a gargalhada dos Capitães da Areia No trapiche diz para alegria dos meninos Vocês são os mais batutas que eu já vi Companheiros companheiros diz João de Adão Diz o vento que passa diz a voz do coração de Pedro Bala É como a música de uma canção cantada por um negro Companheiros Os atabaques ressoam como clarins de guerra Depois de terminada a greve o estudante continua a vir ao trapicheMantém longas conversas com Pedro Bala transforma os Capitães da Areia numa brigada de choque Uma tarde Pedro Bala vai pela rua Chile o boné desabado sobre os olhos assoviando enquanto arrasta os pés no chão Uma voz exclama Bala Se volta O Gato está elegantíssimo na sua frente Uma pérola na gravata um anel no dedo mínimo roupa azul chapéu de feltro quebrado num jeito malandro É tu Gato Vamos sair daqui Entram numa rua sem movimento Gato explica que chegou de lá Ilhéus há poucos dias Que arrancou um bocado de dinheiro de lá Está um homem e todo perfumado e elegante Quase não te conheço diz Pedro Bala E Dalva Ficou amigada com um coronel Mas eu já tinha deixado ela Agora tenho uma moreninha do balacobaco E aquele anelão que SemPernas fazia troça Gato ri Empurrei por quinhentão num coronel cheio da nota O bicho engoliu sem gritar Conversam e riem Gato pergunta notícia dos outros Diz que no dia seguinte embarcará para Aracaju com a morena pois açúcar está dando dinheiro Pedro Bala o vê ir embora todo elegante Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo no trapiche talvez não fosse um ladrão Aprenderia com Alberto estudante o que ninguém soubera lhe ensinar Aquilo que Professor como que adivinhara A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche É uma voz poderosa dentro dele poderosa como a voz do mar como a voz do vento tão poderosa como uma voz sem comparação Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que BoaVida fez Companheiros chegou a hora A voz o chama Uma voz que o alegra que faz bater seu coração Ajudar a mudar o destino de todos os pobres Uma voz que atravessa a cidade que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas Uma voz que vem do cais do peito dos estivadores de João de Adão de seu pai morrendo num comício dos marinheiros dos navios dos saveiristas e dos canoeiros Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira que vem dos golpes que o QueridodeDeus aplica Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia Uma voz que vem das filhasdesanto do candomblé de DonAninha na noite que a polícia levou Ogum Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia Que vem do reformatório e do orfanato Que vem do ódio do SemPernas se atirando do elevador para não se entregar Que vem no trem da Leste Brasileira através do sertão do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos Que vem de Alberto o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura Que vem dos quadros de Professor onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile Que vem de BoaVida e dos malandros da cidade do bojo dos seus violões dos sambas tristes que eles cantam Uma voz que vem de todos os pobres do peito de todos os pobres Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade de amizade companheiros Uma voz que convida para a festa da luta Que é como um samba alegre de negro como ressoar dos atabaques nas macumbas Voz que vem da lembrança de Dora valente lutadora Voz que chama Pedro Bala Como a voz de Deus chamava Pirulito a voz do ódio o SemPernas como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião Voz poderosa como nenhuma outra Porque é uma voz que chama para lutar por todos pelo destino de todos sem exceção Voz poderosa como nenhuma outra Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados Voz que traz com ela uma festa que faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera A primavera da luta Voz que chama Pedro Bala que o leva para a luta Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade de todos os peitos explorados da cidade Voz que traz o bem maior do mundo bem que é igual ao sol mesmo maior que o sol a liberdade A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela Uma voz de mulher canta a canção da Bahia Canção da beleza da Bahia Cidade negra e velha sinos de igreja ruas calçadas de pedra Canção da Bahia que uma mulher canta Dentro de Pedro Bala uma voz o chama voz que traz para a canção da Bahia a canção da liberdade Voz poderosa que o chama Voz de toda a cidade pobre da Bahia voz da liberdade A revolução chama Pedro Bala Pedro Bata foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lóide No cais dá adeus ao negro que parte para a sua primeira viagem Mas não é um adeus como aqueles que dera aos outros que partiram antes Não é mais um gesto de despedida É um gesto de saudação ao companheiro que parte Adeus companheiro Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia O destino deles mudou tudo agora é diverso Intervêm em comícios em greves em lutas obreirasO destino deles é outro A luta mudou seus destinos Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas do país Pedro Bala entra no trapiche A noite cobriu a cidade A voz do negro canta no mar A estrela de Dora brilha quase tanto quanto a lua no céu mais lindo do mundo Pedro Bala entra olha as crianças Barandão vem para junto dele agora tem 15 anos o negrinho Pedro Bala olha Estão deitados alguns já dormem outros conversam fumam cigarros riem a grande gargalhada dos Capitães da Areia Bala reúne a todos bota Barandão junto de si Gentes agora eu vou embora vou deixar vocês Vou embora Barandão agora fica o chefe Alberto vem sempre ver vocês vocês devem fazer o que ele diz E todo mundo ouça Barandão agora é o chefe O negrinho Barandão fala Gentes Pedro Bala vai embora Viva Pedro Bala Os punhos dos Capitães da Areia se levantam fechados Bala Bala gritam numa despedida Os gritos enchem a noite calam a voz do negro que canta no mar estremecem o céu de estrelas e o coração de Pedro Punhos fechados de crianças que se levantamBocas que gritam se despedindo do chefe Ba1a Bala Barandão está na frente de todos Ele agora é o chefe Pedro Bala parece ver Volta Seca SemPernas Gato Professor Pirulito BoaVida João Grande e Dora todos ao mesmo tempo entre eles Agora o destino deles mudou A voz do negro no mar canta o samba de BoaVida Companheiros vamos pra luta De punhos levantados as crianças saúdam Pedro Bala que parte para mudar o destino de outras crianças Barandão grita na frente de todos ele agora é o novo chefe De longe Pedro Bala ainda vê os Capitães da Areia Sob a lua num velho trapiche abandonado eles levantam os braços Estão em pé o destino mudou Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra Uma Pátria e uma família Anos depois os jornais de classe pequenos jornais dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas jornais que circulavam nas fábricas passados de mão em mão e que eram lidos à luz de fifós publicavam sempre notícias sobre um militante proletário o camarada Pedro Bala que estava perseguido pela policia de cinco estados como organizador de greves como dirigente de partidos ilegais como perigoso inimigo da ordem estabelecida No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar no ano que foi todo ele uma noite de terror esses jornais únicas bocas que ainda falavam clamavam pela liberdade de Pedro Bala líder da sua classe que se encontrava preso numa colônia E no dia em que ele fugiu em inúmeros lares na hora pobre do jantar rostos se iluminaram ao saber da notícia E apesar de que fora era o terror qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala fugitivo da polícia Porque a revolução é uma pátria e uma família Na casa malassombrada de Doninha Quaresma existiam botijas enterradas e a alma de Doninha hoje do Capitão na paz de Estância Sergipe março de 937 A bordo do Rakuyo Maru subindo a costa da América do pelo Pacífico em caminho do México junho de 937 FIM
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ESTACIO
Texto de pré-visualização
Jorge Amado capitães da areia Companhia das Letras Publicado em 1937 pouco depois de implantado o Estado Novo este livro teve a primeira edição apreendida e exemplares queimados em praça pública de Salvador por autoridades da ditadura Em 1940 marcou época na vida literária brasileira com nova edição e a partir daí sucederamse as edições nacionais e em idiomas estrangeiros A obra teve também adaptações para o rádio teatro e cinema Documento sobre a vida dos meninos abandonados nas ruas de Salvador Jorge Amado a descreve em páginas carregadas de beleza dramaticidade e lirismo Matilde Jogávamos jogos de prenda Andávamos de carro de boi Morávamos em casa malassombrada Conversávamos com moças e mágicos Achavas a Bahia imensa e misteriosa A poesia deste livro vem de ti Para Aydano do Couto Ferras José Olympio José Américo de Almeida João Nascimento Filho e para Anísio Teixeira amigo das crianças CRIANÇAS LADRONAS AS AVENTURAS SINISTRAS DOS CAPITÃES DA AREIA A CIDADE INFESTADA POR CRIANÇAS QUE VIVEM DO FURTO URGE UMA PROVIDÊNCIA DO JUIZ DE MENORES E DO CHEFE DE POLÍCIA ONTEM HOUVE MAIS UM ASSALTO Já por várias vezes o nosso jornal que é sem dúvida o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana tem trazido noticias sobre a atividade criminosa dos Capitães da Areia nome pelo qual é conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a nossa urbe Essas crianças que tão cedo se dedicaram à tenebrosa carreira do crime não têm moradia certa ou pelo menos a sua moradia ainda não foi localizada Como também ainda não foi localizado o local onde escondem o produto dos seus assaltos que se tornam diários fazendo jus a uma imediata providência do Juiz de Menores e do doutor Chefe de Polícia Esse bando que vive da rapina se compõe pelo que se sabe de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades indo desde os 8 aos 16 anos Crianças que naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa São chamados de Capitães da Areia porque o cais é o seu quartelgeneral E têm por comandante um mascote dos seus 14 anos que é o mais terrível de todos não só ladrão como já autor de um crime de ferimentos graves praticado na tarde de ontem Infelizmente a Identidade deste chefe é desconhecida O que se faz necessário é uma urgente providência da policia e do juizado de menores no sentido da extinção desse bando e para que recolham esses precoces criminosos que já não deixam a cidade dormir em paz o seu sono tão merecido aos Institutos de reforma de crianças ou às prisões Passemos agora a relatar o assalto de ontem do qual foi vítima um honrado comerciante da nossa praça que teve sua residência furtada em mais de um conto de réis e um seu empregado ferido pelo desalmado chefe dessa malta de jovens bandidos NA RESIDÊNCIA DO COMENDADOR JOSE FERREIRA No Corredor da Vitória coração do mais chique bairro da cidade se eleva a bela vivenda do Comendador José Ferreira dos mais abastados e acreditados negociantes desta praça com loja de fazendas na rua Portugal É um gosto ver o palacete do comendador cercado de jardins na sua arquitetura colonial Pois ontem esse remanso de paz e trabalho honesto passou uma hora de indescritível agitação e susto com a invasão que sofreu por parte dos Capitães da Areia Os relógios badalavam as três horas da tarde e a cidade abafava de calor quando o jardineiro notou que algumas crianças vestidas de molambos rondavam o jardim da residência do comendador O jardineiro tratou de afastar da frente da casa aqueles incômodos visitantes E como eles continuassem o seu caminho descendo a rua Ramiro o jardineiro volveu ao seu trabalho nos jardins do fiando do palacete Minutos depois porém era o ASSALTO Não tinham passado ainda cinco minutos quando o jardineiro Ramiro ouviu gritos assustados vindos do interior da residência Eram gritos de pessoas terrivelmente assustadas Armandose de uma foice o jardineiro penetrou na casa e mal teve tempo de ver vários moleques que como um bando de demônios na expressão curiosa de Ramiro fugiam saltando as janelas carregados com objetos de valor da sala de jantar A empregada que havia gritado estava cuidando da senhora do comendador que tivera um ligeiro desmaio em virtude do susto que passara O Jardineiro dirigiuse às pressas para o jardim onde teve lugar a LUTA Aconteceu que no jardim a linda criança que é Raul Ferreira de 11 anos neto do comendador que se achava de visita aos avós conversava com o chefe dos Capitães da Areia que é reconhecível devido a um talho que tem no rosto Na sua inocência Raul ria para o malvado que sem dúvida pensava em furtálo O jardineiro se atirou então em cima do ladrão Não esperava porém pela reação do moleque que se revelou um mestre nestas brigas E o resultado é que qando pensava ter seguro o chefe da malta o jardineiro recebeu uma punhalada no ombro e logo em seguida outra no braço sendo obrigado a largar o criminoso que fugiu A polícia tomou conhecimento do fato mas até o momento que escrevemos a presente nota nenhum rastro dos Capitães da Areia foi encontrado O Comendador José Ferreira ouvido pela nossa reportagem avalia o seu prejuízo em mais de um conto de réis pois só o pequeno relógio de sua esposa estava avaliado em 900 e foi furtado URGE UMA PROVIDÊNCIA Os moradores do aristocrático bairro estão alarmados e receosos de que os assaltos se sucedam pois este não é o primeiro levado a efeito pelos Capitães da Areia Urge uma providência que traga para semelhantes malandros um justo castigo e o sossego para as nossas mais distintas famílias Esperamos que o ilustre chefe de polícia e o não menos ilustre doutor Juiz de Menores saberão tomar as devidas providências contra esses criminosos tão Jovens e já tão ousados A OPINIÃO DA INOCÊNCIA A nossa reportagem ouviu também o pequeno Raul que como dissemos tem onze anos e já é dos ginasianos mais aplicados do Colégio Antônio Vieira Raul mostrava uma grande coragem e nos disse acerca da sua conversa com o terrível chefe dos Capitães da Areia Ele disse que eu era um tolo e não sabia o que era brincar Eu respondi que tinha uma bicicleta e muito brinquedo Ele riu e disse que tinha a rua e o cais Fiquei gostando dele parece um desses meninos de cinema que fogem de casa para passar aventuras Ficamos então a pensar neste outro delicado problema para a infância que é o cinema que tanta idéia errada infunde às crianças acerca da vida Outro problema que está merecendo a atenção do doutor Juiz de Maiores A ele volveremos Reportagem publicada no Jornal da Tarde na página de Fatos Policiais com um clichê da casa do comendador e um deste no momento em que era condecorado CARTA DO SECRETÁRIO DO CHEFE DE POLÍCIA À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr diretor do Jornal da Tarde Cordiais saudações Tendo chegado ao conhecimento do doutor chefe de polícia a reportagem publicada ontem na segunda edição desse jornal sobre as atividades dos Capitães da Areia bando de crianças delinqüentes e o assalto levado a efeito por este mesmo bando na residência do comendador José Ferreira o doutor chefe de polícia se apressa a comunicar à direção deste jornal que a solução do problema compete antes ao juiz de maiores que à policia A polícia neste caso deve agir em obediência a um pedido do doutor Juiz de Menores Mas que no entanto vai tomar sérias providências para que semelhantes atentados não se repitam e para que os autores do de anteontem sejam presos para sofrerem o castigo merecido Pelo exposto fica claramente provado que a polícia não merece nenhuma crítica pela sua atitude em face desse problema Não tem agido com maior eficiência porque não foi solicitada pelo juiz de menores Cordiais saudações Secretário do Chefe de Policia Publicada em primeira página do Jornal da Tarde com clichê do chefe de polícia e um vasto comentário elogioso CARTA DO DOUTOR JUIZ DE MENORES À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Exmo Sr diretor do Jornal da Tarde Cidade do Salvador Neste Estado Meu caro patrício Cordiais saudações Folheando num dos raros momentos de lazer que me deixam as múltiplas e variadas preocupações do meu espinhoso cargo o vosso brilhante vespertino tomei conhecimento de uma epístola do infatigável doutor chefe de polícia do Estado na qual dizia dos motivos por que a polícia não pudera até a data presente intensificar a meritória campanha contra os menores delinqüentes que infestam a nossa urbe Justificase o doutor chefe de polícia declarando que não possuía ordens do juizado de menores no sentido de agir contra a delinqüência infantil Sem querer absolutamente culpar a brilhante e infatigável chefia de polícia sou obrigado a bem da verdade essa mesma verdade que tenho colocado como o farol que ilumina a estrada da minha vida com a sua luz puríssima a declarar que a desculpa não procede Não procede senhor diretor porque ao juizado de menores não compete perseguir e prender os menores delinqüentes e sim designar o local onde devem cumprir pena nomear curador para acompanhar qualquer processo contra eles instaurado etc Não cabe ao juizado de menores capturar os pequenos delinqüentes Cabe velar pelo seu destino posterior E o senhor doutor chefe de polícia sempre há de me encontrar onde o dever me chama porque jamais em 50 anos de vida impoluta deixei de cumprilo Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o Reformatório de Menores vários menores delinqüentes ou abandonados Não tenho culpa porém de que fujam que não se impressionem com o exemplo de trabalho que encontram naquele estabelecimento de educação e que por meio da fuga abandonem um ambiente onde se respiram paz e trabalho e onde são tratados com o maior carinho Fogem e se tornam ainda mais perversos como se o exemplo que houvessem recebido fosse mau e daninho Por quê Isso é um problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim simples curioso da filosofia O que quero deixar claro e cristalino senhor diretor é que o doutor chefe de polícia pode contar com a melhor ajuda deste juizado de menores para intensificar a campanha contra os menores delinqüentes De VExa admirador e patrício grato Juiz de Menores Publicada no Jornal da Tarde com o clichê do juiz de menores em uma coluna e um pequeno comentário elogioso CARTA DE UMA MÃE COSTUREIRA À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr Redator Desculpe os erros e a letra pois não sou costumeira nestas coisas de escrever e se hoje venho a vossa presença é para botar os pontos nos ii Vi no jornal uma notícia sobre os furtos dos Capitães da Areia e logo depois veio a polícia e disse que ia perseguir eles e então o doutor dos menores veio com uma conversa dizendo que era uma pena que eles não se emendavam no reformatório para onde ele mandava os pobres É pra falar no tal do reformatório que eu escrevo estas mal traçadas linhas Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatório para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma Meu filho Alonso teve lá seis meses e se eu não arranjasse tirar ele daquele inferno em vida não sei se o desgraçado viveria mais seis meses O menos que acontece pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia O diretor de lá vive caindo de bêbedo e gosta de ver o chicote cantar nas costas dos filhos dos pobres Eu vi isso muitas vezes porque eles não ligam pra gente e diziam que era para dar exemplo Foi por isso que tirei meu filho de lá Se o jornal do senhor mandar uma pessoa lá secreta há de ver que comida eles comem o trabalho de escravo que têm que nem um homem forte agüenta e as surras que tomam Mas é preciso que vá secreto senão se eles souberem vira um céu abertoVá de repente e há de ver quem tem razão E por essas e outras que existem os Capitães da Areia Eu prefiro ver meu filho no meio deles que no tal reformatório Se o senhor quiser ver uma coisa de cortar o coração vá láTambém se quiser pode conversar com o Padre José Pedro que foi capelão de lá e viu tudo isso Ele também pode contar e com melhores palavras que eu não tenho Maria Ricardina costureira Publicada na quinta pagina do jornal da Tarde entre anúncios sem clichês e sem comentários CARTA DO PADRE JOSE PEDRO À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Sr Redator do Jornal da Tarde Saudações em Cristo Tendo lido no vosso conceituado jornal a carta de Maria Ricardina que apelava para mim como pessoa que podia esclarecer o que é a vida das crianças recolhidas ao reformatório de menores sou obrigado a sair da obscuridade em que vivo para vir vos dizer que infelizmente Maria Ricardina tem razão As crianças no aludido reformatório são tratadas como feras essa é a verdade Esqueceram a lição do suave Mestre senhor Redator e em vez de conquistarem as crianças com bons tratos fazemnas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos e castigos físicos verdadeiramente desumanos Eu tenho ido lá levar às crianças o consolo da religião e as encontro pouco dispostas a aceitálo devido naturalmente ao ódio que estão acumulando naqueles jovens corações tão dignos de piedade O que tenho visto senhor Redator daria um volume Muito grato pela atenção Servo em Cristo Padre José Pedro Carta publicada na terceira página do Jornal da Tarde sob o título Será Verdade e sem comentários CARTA DO DIRETOR DO REFORMATÓRIO À REDAÇÃO DO JORNAL DA TARDE Exmo Sr diretor do Jornal da Tarde Saudações Tenho acompanhado com grande interesse a campanha que o brilhante órgão da imprensa baiana que com tão rútila inteligência dirigis tem feito contra os crimes apavorantes dos Capitães da areia bando de delinqüentes que amedronta a cidade e impede que ela viva sossegadamente Foi assim que li duas cartas de acusações contra o estabelecimento que dirijo e que a modéstia e somente a modéstia senhor diretor me impede que chame de modelar Quanto à carta de uma mulherzinha do povo não me preocupei com ela não merecia a minha resposta Sem dúvida é uma das multas que aqui vêm e querem impedir que o Reformatório cumpra a sua santa missão de educar os seus filhos Elas os criam na rua na pândega e como eles aqui são submetidos a uma vida exemplar elas são as primeiras a reclamar quando deviam beijar as mãos daqueles que estão fazendo dos seus filhos homens de bem Primeiro vêm pedir lugar para os filhos Depois sentem falta deles do produto dos furtos que eles levam para casa e então saem a reclamar contra o Reformatório Mas como já disse senhor diretor esta carta não me preocupou Não é uma mulherzinha do povo quem há de compreender a obra que estou realizando à frente deste estabelecimento O que me abismou senhor diretor foi a carta do Padre José Pedro Este sacerdote esquecendo as funções do seu cargo veio lançar contra o estabelecimento que dirijo graves acusações Esse padre que eu chamarei padre do demônio se me permitis uma pequena ironia senhor diretor abusou das suas funções para penetrar no nosso estabelecimento de educação em horas proibidas pelo regulamento e contra ele eu tenho de formular uma séria queixa ele tem incentivado os menores que o Estado colocou a meu cargo à revolta à desobediência Desde que ele penetrou os umbrais desta casa que os casos de rebeldia e contravenções aos regulamentos aumentaram O tal padre é apenas um instigador do mau caráter geral dos menores sob a minha guarda E por isso vou fecharlhe as portas desta casa de educação Porém senhor diretor fazendo minhas as palavras da costureira que escreveu a este jornal sou eu quem vem vos pedir que envieis um redator ao Reformatório Disso faço questão Assim podereis e o público também ter ciência exata e fé verdadeira sobre a maneira como são tratados os menores que se regeneram no Reformatório Baiano de Menores Delinqüentes e Abandonados Espero o vosso redator na segundafeira E se não digo que ele venha no dia que quiser é que estas visitas devem ser feitas nos dias permitidos pelo regulamento e é meu costume nunca me afastar do regulamento Este é o motivo único por que convido o vosso redator para segundafeira Pelo que vos fico imensamente grato como pela publicação desta Assim ficará confundido o falso vigário de Cristo Criado agradecido e admirador atento Diretor do Reformatório Baiano de Menores Delinqüentes e Abandonados Publicada na 3º página do Jornal da Tarde com um clichê do reformatório e uma notícia adiantando que na próxima segunda feira irá um redator do Jornal da Tarde ao reformatório UM ESTABELECIMENTO MODELAR ONDE REINAM A PAZ E O TRATADO UM DIRETOR QUE É UM AMIGO ÓTIMA COMIDA CRIANÇAS LADRONAS EM CAMINHO DA REGENERAÇÃO ACUSAÇÕES IMPROCEDENTES SÓ UM INCORRIGÍVEL RECLAMA O REFORMATÓRIO BAIANO É UMA GRANDE FAMÍLIA ONDE DEVIAM ESTAR OS CAPITÃES DA AREIA Títulos da reportagem publicada na segunda edição de terçafeira do jornal da Tarde ocupando toda a primeira página sobre o Reformatório Baiano com diversos clichês do prédio e um do diretor Sob a lua num velho trapiche abandonado O trapiche Sob a lua num velho trapiche abandonado as crianças dormem Antigamente aqui era o mar Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas ora vinham se bater mansamente A água passava por baixo da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora iluminadas por uma réstia amarela de lua Desta ponte saíram inúmeros veleiros carregados alguns eram enormes e pintados de estranhas cores para a aventura das travessias marítimas Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta ponte de tábuas hoje comidas Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do maroceano as noites diante dele eram de um verde escuro quase negras daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite Hoje a noite é alva em frente ao trapiche É que na sua frente se estende agora o areal do cais do porto Por baixo da ponte não há mais rumor de ondas A areia invadiu tudo fez o mar recuar de muitos metros Aos poucos lentamente a areia foi conquistando a frente do trapiche Não mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados Não mais trabalharam ali os negros musculosos que vieram da escravatura Não mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro nostálgicoA areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche É nunca mais encheram de fardos de sacos de caixões o imenso casarão Ficou abandonado em meio ao areal mancha negra na brancura do cais Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos que ai atravessavam em corridas brincalhonas que rolam a madeira das portas monumentais que o habitavam como senhores exclusivos Em certa época um cachorro vagabundo o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva Na primeira noite não dormiu ocupado em despedaçar ratos que passavam na sua frente Dormiu depois de algumas noites ladrando à lua pela madrugada pois grande parte do teto já ruíra e os raios da lua penetravam livremente iluminando o assoalho de tábuas grossas Mas aquele era um cachorro sem pouso certo e cedo partiu em busca de outra pousada o escuro de uma porta o vão de urna ponte o corpo quente de uma cadela E os ratos voltaram a dominas até que os Capitães da Areia lançaram as suas vistas para o casarão abandonado Neste tempo a porta caíra para um lado e um do grupo certo dia em que passeava na extensão dos seus domínios porque toda a zona do areal do cais como aliás toda a cidade da Bahia pertence aos Capitães da Areia entrou no trapiche Seria bem melhor dormida que a pura areia que as pontes dos demais trapiches onde por vezes a água subia tanto que ameaçava leválos E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho trapiche abandonado em companhia dos ratos sob a lua amarela Na frente a vastidão da areia uma brancura sem fimAo longe o mar que arrebentava no cais Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e saiam Pelo teto viam o céu de estrelas alua que os iluminava Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho do dia lhes proporcionava Estranhas coisas entraram então para o trapiche Não mais estranhas porém que aquela meninos moleques de todas as cores e de idades as mais variadas desde os 9 aos 16 anos que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava mas com os olhos puxados para as luzes dos navios com os ouvidos presos às canções que vinham das embarcações É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia Pedro Bala Desde cedo foi chamado assim desde seus cinco anos Hoje tem 15 anos Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia Nunca soube de sua mãe seu pai morrera de um balaço Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a cidade Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus becos Não há venda quitanda botequim que ele não conheça Quando se incorporou aos Capitães da Areia o cais recém construído atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade o chefe era Raimundo o Caboclo mulato avermelhado e forte Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo Pedro Bala era muito mais ativo sabia planejar os trabalhos sabia tratar com os outros trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe Um dia brigaram A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro um talho que ficou para o resto da vida Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a ele e ficaram esperando a revanche que não tardou Uma noite quando Raimundo quis surrar Barandão Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram Raimundo era mais alto e mais velho Porém Pedro Bala o cabelo loiro voando a cicatriz vermelha no rosto era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia como o próprio areal Engajou tempos depois num navio Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia e foi desta época que a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia crianças abandonadas que viviam do furto Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche Vestidos de farrapos sujos semiesfomeados agressivos soltando palavrões e fumando pontas de cigarro eram em verdade os donos da cidade os que a conheciam totalmente os que totalmente a amavam os seus poetas Noite dos Capitães da Areia A grande noite de Paz da Bahia veio do Cais envolveu os saveiros o forte o quebramar se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas Os sinos já não tocam as avemarias que as seis horas há muito que passaram E o céu está cheio de estrelas se bem a lua não tenha surgido nesta noite clara O trapiche se destaca na brancura do areal que conserva as marcas dos passos dos Capitães da Areia que já se recolheram Ao longe a fraca luz da lanterna da Porta do Mar botequim de marítimos parece agonizar Passa um vento frio que levanta a areia e torna difíceis os passos do negro João Grande que se recolhe Vai curvado pelo vento como a vela de um barco E alto o mais alto do bando e o mais forte também negro de carapinha baixa e músculos retesados embora tenha apenas treze anos dos quais quatro passados na mais absoluta liberdade correndo as ruas da Bahia com os Capitães da Areia Desde aquela tarde em que seu pai carroceiro gigantesco foi pegado por um caminhão quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua João Grande não voltou pequena casa do morro Na sua frente estava a cidade misteriosa e ele partiu para conquistála A cidade da Bahia negra e religiosa é quase tão misteriosa como o verde mar Por isso João Grande não voltou mais Engajou com 9 anos nos Capitães da Areia quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo pouco conhecido pois o Caboclo não gostava de se arriscar Cedo João Grande se fez um dos chefes e nunca deixou de ser convidado para as reuniões que os maiorais faziam planejar os furtos Não que fosse um bom organizador de assalta uma inteligência viva Ao contrário doía lhe a cabeça se tinha que pensar Ficava com os olhos ardendo como ficava também quando via alguém fazendo maldade com os menores Então seus músculos se retesavam e estava disposto a qualquer briga Mas a sua enorme força muscular o fizera temido O SemPernas dizia dele Este negro é burro mas é uma prensa E os menores aqueles pequeninos que chegavam para o grupo cheios de receio tinham nele o mais decidido protetor Pedro o chefe também gostava de ouvilo E João Grande bem sabia que não era por causa da sua força que tinha a amizade do Bala Pedro achava que o negro era bom e não se cansava de dizer Tu é bom Grande Tu é melhor que a gente Gosto de você e batia pancadinhas na perna do negro que ficava encabulado João Grande vem vindo para o trapiche O vento quer impedir passos e ele se curva todo resistindo contra o vento que levanta a areia Ele foi à Porta do Mar beber um trago de cachaça com o QueridodeDeus que chegou hoje dos mares do Sul de uma pescaria O QueridodeDeus é o mais célebre capoeirista da cidade Quem não o respeita na Bahia No jogo de capoeira de Angola ninguém pode se medir com o QueridodeDeus nem mesmo Zé Moleque que deixou fama no Rio de Janeiro O QueridodeDeus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no trapiche para continuar as lições de capoeira que Pedro Bala João Grande e o Gato tomam João Grande fuma um cigarro e anda para o trapiche As marcas dos seus grandes pés ficam na areia mas o vento logo as destrói O negro pensa que nessa noite de tanto vento são perigosos os caminhos do mar João Grande passa por debaixo da ponte os pés afundam na areia evitando tocar no corpo dos companheiros que já dormem Penetra no trapiche Espia um momento indeciso até que nota a luz da vela do Professor Lá está ele no mais longínquo canto do casarão lendo à luz de uma vela João Grande pensa que aquela luz ainda é menor e mais vacilante que a da lanterna da Porta do Mar e que o Professor está comendo os olhos de tanto ler aqueles livros de letra miúda João Grande anda para onde está o Professor se bem durma sempre na porta do trapiche como um cão de fila o punhal próximo da mão para evitar alguma surpresa Anda entre os grupos que conversam entre as crianças que dormem e chega para perto do Professor Acocorase junto a ele e fica espiando a leitura atenta do outro João José o Professor desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra se tomara perito nestes furtos Nunca porém vendia os livros que ia empilhando num canto do trapiche sob tijolos para que os ratos não os roessem Liaos todos numa ânsia que era quase febre Gostava de saber coisas e era ele quem muitas noites contava aos outras histórias de aventureiros de borne do mar de personagens heróicos e lendários histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade numa ânsia de aventuras e de heroísmo João José era o único que lia correntemente entre eles e no entanto só estive na escola ano e meio Mas o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa consciência do heróico das suas vidas Aquele saber aquela vocação para contar histórias fizerao respeitado entre os Capitães Areia se bem fosse franzino magro e triste o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope Apelidaramno de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços níqueis e também porque contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia Pedro Bala nada resolvia sem o consultar e várias vezes foi a imaginação Professor que criou os melhores planos de roubo Ninguém sabia entanto que um dia anos passados seria ele quem haveria de contar em quadros que assombrariam o país a história daquelas vidas e muitas outras histórias de homens lutadores e sofredores Talvez só o sou se DonAninha a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá porque DonAninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio noites de temporal João Grande ficou muito tempo atento à leitura Para o negro aquelas letras nada diziam O seu olhar ia do livro para a luz oscilante da vela e desta para o cabelo despenteado do Professor Terminou por se cansar e perguntou com sua voz cheia e quente Bonita Professor Professor desviou os olhos do livro bateu a mão descarnada no ombro do negro seu mais ardente admirador Uma história porreta seu Grande Seus olhos brilhavam De marinheiro É de um negro assim como tu Um negro macho de verdade Tu conta Quando findar de ler eu conto Tu vai ver só que negro E volveu os olhos para as páginas do livro João Grande acendeu um cigarro barato ofereceu outro em silêncio ao Professor e ficou fumando de cócoras como que guardando a leitura do outro Pelo trapiche ia um rumor de risadas de conversas de gritos João Grande distinguia bem a voz do SemPernas estrídula e fanhosaO SemPernas falava alto ria muito Era o espião do grupo aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade Coxo o defeito físico valera lhe o apelido Mas valialhe também a simpatia de quanta mãe de família o via humilde e tristonho na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite Agora meio do trapiche O SemPernas metia a ridículo o Gato que perde todo um dia para furtar um anelão cor de vinho sem nenhum valo real pedra falsa de falsa beleza também Fazia já uma semana que o Gato avisara a meio mundo Vi um anelão seu mano que nem de bispo Um anelão bom pro meu dedo Batuta mesmo Tu vai ver quando eu trouxer Em que vitrine No dedo de um pato Um gordo que todo dia toma o bonde de Brotas na Baixa do Sapateiro E o Gato não descansou enquanto não conseguiu no aperto um bonde das seis horas da tarde tirar o anel do dedo do homem escapulindo na confusão porque o dono logo percebeu Exibia o anel no dedo médio com vaidade O SemPernas ria Arriscar cadeia por uma porcaria Um troço feio Que tem tu com isso Eu acho bom tá acabado Tu é burro mesmo Isso no prego não dá nada Mas dá simpatia no meu dedo Tou arranjando uma comida Falavam naturalmente em mulher apesar do mais velho ter apenas 16 anos Cedo conheciam os mistérios do sexo Pedro Bala que ia entrando desapartou o começo de briga João Grande deixou o Professor lendo e veio para junto do chefe O SemPernas ria sozinho resmungando acerca do anel Pedro o chamou e foi com ele e com João Grande para o canto onde estava Professor Vem cá Professor Ficaram os quatro sentados O SemPernas acendeu uma ponta de charuto caro ficou saboreando João Grande espiava o pedaço de mar que se via através da porta além do areal Pedro falou Gonzales do 14 falou hoje comigo Quer mais corrente de ouro Da outra vez atalhou O SemPernas Não Tá querendo chapéu Mas só topa de feltro Palhinha não vale diz que não tem saída E também Que é que tem mais novamente interrompeu O SemPernas Tem que muito usado não presta Tá querendo muita coisa Se ainda pagasse que valesse a pena Tu sabe SemPernas que ele é um bicho caiado Pode não pagar bem mas é uma cova Dali não sai nada nem a gancho Também paga uma miséria E é interesse dele não dizer nada Se ele abrir a boca no mundo não há costas largas que livre ele do xilindró Tá bom SemPernas você não quer topar o negócio vá embora mas deixe a gente combinar as coisas direito Não tou dizendo que não topo Tou só falando que trabalhar pra um gringo ladrão não é negócio Mas se tu quer Ele diz que desta vez vai pagar melhor Uma coisa que pague a pena Mas só chapéu de feltro bom e novo Tu SemPernas podia ir com uns fazer esse negócioAmanhã de noite Gonzales manda um empregado do 14 aqui pra trazer os miúdos e levar as carapuças Bom lugar e nos cinemas disse o Professor voltandose para O SemPernas Bom é na Vitória e o SemPernas fez um gesto de desprezo É só entrar nos corredores e aquilo é chapéu garantido Tudo gente de nota Também tem guarda em penca Tu liga pra guarda Se ainda fosse tira Guarda é pra correr picula Tu vai comigo Professor Vou Mesmo que tou precisando de um chapéu Pedro Bala falou Arranja os que quiser SemPernas Este negócio fica por tua conta Menos o Grande e o Gato que eu tenho um negócio com eles pra amanhã virouse para João Grande Um negócio do QueridodeDeus Ele já teve me avisando E dizque de noite vem pra capoeira Pedro voltouse para o SemPernas que já se retirava para ir combinar com Pirulito a formação do grupo que ia em cata de chapéus no dia seguinte Olha SemPernas tu trata de avisar que se algum for bispado trate de dar o suíte para outro lado Não venha pra cá Pediu um cigarro João Grande deu O SemPernas já afastado chamava Pirulito Pedro foi em busca do Gato tinha um assunto a conversar com ele Depois voltou se estendeu perto do lugar onde estava Professor Este retornou ao seu livro sobre o qual se debruçou até que a vela queimouse toda e a escuridão do trapiche o envolveu João Grande caminhou vagarosamente para a porta onde se deitou ao comprido o punhal no cinto Pirulito era magro e muito alto uma cara seca meio amarelada os olhos encovados e fundos a boca rasgada e pouco risonha O SemPernas primeiro fez pilhéria perguntando se ele já estava rezado depois entrou no assunto da pilhagem de chapéus acertaram que a levariam um certo número de meninos que escolheram cuidadosamente marcaram as zonas onde operariam e se separaram Pirulito então foi para o seu canto costumeiro Dormia invariavelmente ali onde as paredes do trapiche faziam um ângulo Tinha disposto carinhosamente as suas coisas um cobertor velho um travesseiro que trouxera certa vez de um hotel onde penetrara levando as malas de um viajante um par de calças que vestia aos domingos junto com uma blusa de cor indefinida porém mais ou menos limpa E pregados na parede com pregos pequenos dois quadros de santos um Santo Antônio carregando um Menino Deus Pirulito se chamava Antônio e tinha ouvido dizer que Santo Antônio era brasileiro e uma Nossa Senhora das Sete Dores que tinha o peito cravado de setas sob o seu quadro uma flor murcha Pirulito recolheu a flor aspiroua viu que não tinha mais perfume Então a amarrou junto ao bentinho que trazia no peito e do bolso do velho paletó que vestia retirou um cravo vermelho que colhera num jardim mesmo sob as vistas do guarda naquela hora indecisa do crepúsculo E colocou o cravo por baixo do quadro enquanto fitava a santa com um olhar comovido Logo ajoelhouse Os outros a princípio faziam muita pilhéria quando o viam de joelhos rezando Porém já haviam se acostumado e ninguém mais reparava Começou a rezar e seu ar de asceta se pronunciou ainda mais seu rosto de criança ficou mais pálido e mais grave suas mãos longas e magras se levantaram ante o quadro Todo seu rosto tinha uma espécie de auréola e a sua voz tonalidades e vibrações que os companheiros não conheciam Era como se estivesse fora do mundo não no velho e arruinado trapiche mas numa outra terra junto com Nossa Senhora das Sete Dores No entanto sua reza era simples e não fora sequer aprendida em catecismos Pedia que a Senhora o ajudasse a um dia poder entrar para aquele colégio que estava no Sodré e de onde saíam os homens transformados em sacerdotes O SemPernas que vinha combinar um detalhe da questão dos chapéus e que desde que o vira rezando trazia uma pilhéria preparada uma pilhéria que só como pensar nela ele ria e que iria desconcertar completamente Pirulito quando chegou perto e viu Pirulito rezando de mãos levantadas olhos fixos ninguém sabia onde o rosto aberto em êxtase estava como que vestido de felicidade parou o riso burlão murchou nos seus lábios e ficou a espiálo meio a medo possuído de um sentimento que era um pouco de inveja e um pouco de desespero O SemPernas ficou parado olhando Pirulito não se mona Apenas seus lábios tinham um lento movimento O SemPernas costumava burlar dele como de todos os demais do grupo mesmo de Professor de quem gostava mesmo de Pedro Bala a quem respeitava Logo que um novato entrava para os Capitães da Areia formava uma idéia ruim de SemPernas Porque ele logo botava um apelido ria de um gesto de uma frase do novato Ridicularizava tudo era dos que mais brigavam Tinha mesmo fama de malvadoUma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche E um dia cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas um frango assado Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou friamente a canivete e na vista de todos o espremeu rindo Muitos do grupo não gostavam dele mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus amigos diziam que ele era um sujeito bom No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos E rindo e ridicularizando era que fugia da sua desgraça Era como um remédio Ficou parado olhando Pirulito que rezava concentrado No rosto do que rezava ia uma exaltação qualquer coisa que ao primeiro momento o SemPernas pensou que fosse alegria ou felicidade Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que ele não sabia definirE pensou contraindo o seu rosto pequeno que talvez por isso ele nunca tivesse pensado em rezar em se voltar para o céu de que tanto falava o padre José Pedro quando vinha vêlos O que ele queria era felicidade era alegria era fugir de toda aquela miséria de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava Havia é verdade a grande liberdade das ruas Mas havia também o abandono de qualquer carinho a falta de todas as palavras boas Pirulito buscava isso no céu nos quadros de santo nas flores murchas que trazia para Nossa Senhora das Sete Dores como um namorado romântico dos bairros chiques da cidade traz para aquela a quem ama com intenção de casamento Mas o SemPernas não compreendia que aquilo pudesse bastar Ele queria uma coisa imediata uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo Que o livrasse também daquela angústia daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de invernoNão queria o que tinha Pirulito o rosto cheio de uma exaltação Queria alegria uma mão que o acarinhasse alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos talvez tivessem sido apenas meses ou semanas mas para ele seriam sempre longos anos que vivera sozinho nas ruas da cidade hostilizado pelos homens que passavam empurrado pelos guardas surrado pelos moleques maiores Nunca tivera família Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria Sofreu fome um dia levaramno preso Ele quer um carinho ua mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta Em cada canto estava um com uma borracha comprida As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes A perna coxa se recusava a ajudálo E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar A princípio chorou muito depois não sabe como as lágrimas secaram Certa hora não resistiu mais abateuse no chão Sangrava Ainda hoje ouve como os soldados riam e como nu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto Depois encontrou os Capitães da Areia foi o Professor quem o trouxe haviam feito camaradagem num banco de jardim e ficou com eles Não tardou a se destacar porque sabia como nenhum afetar uma grande dor e assim conseguir enganar senhoras cujas casas eram depois visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos de valor e de todos os hábitos da casa E o Sem Pernas tinha verdadeira satisfação ao pensar em quanto o xingariam aquelas senhoras que o haviam tomado por um pobre órfão Assim se vingava porque seu coração estava cheio de ódio Confusamente desejava ter uma bomba como daquelas de certa história que o Professor contara que arrasasse toda a cidade que levasse todos pelos ares Assim ficaria alegre Talvez ficasse também se viesse alguém possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves que o apertasse contra o peito que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom um sono que não estivesse cheio dos sonhos da noite na cadeia Assim ficaria alegre o ódio não estaria mais no seu coração E não teria mais desprezo inveja ódio de Pirulito que de mãos levantadas e olhos fixos foge do seu mundo de sofrimentos para um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro Um rumor de conversas se aproxima Vem um grupo de quatro entrando no silêncio que já reina na noite do trapiche O SemPernas se estremece ri nas costas de Pirulito que continua a rezar Encolhe os ombros decide deixar para a manhã do dia seguinte o acerto dos detalhes do furto dos chapéus E como tem medo de dormir vai ao encontro do grupo que chega pede um cigarro diz dichotes sobre a aventura de mulheres que os quatro contam Uns franguinhos como vocês quem é que vai acreditar que seja capaz de derrubar uma mulher Isso devia ser algum xibungo vestido de menina Os outros se irritam Tu também se faz de besta Se quer é só vim com a gente amanhã Assim tu pode conhecer a zinha que é um peixão O SemPernas ri sardônico Não gosto de xibungo E sai andando pelo trapiche O Gato ainda não está dormindo Sempre sai depois das onze horas É o elegante do grupo Quando chegou alvo e rosado BoaVida tentou conquistálo Mas já naquele tempo o Gato era de uma agilidade incrível e não vinha como BoaVida pensava da casa de uma família Vinha do meio dos Índios Maloqueiros crianças que m vivem sob as pontes de Aracaju Fizera a viagem na rabada de um trem Conhecia bem a vida de um grupo de crianças abandonadas E já tinha da mais de 13 anos Assim conheceu logo os motivos por que BoaVida mulato troncudo e feio o tratou com tanta consideração lhe ofereceu cigarros e lhe deu parte do seu jantar e correu com ele acidade Depois bateram juntos um par de sapatos novos que estava exposto na porta de uma casa na Baixa dos Sapateiros Boa Vida tinha dito Deixa estar que eu sei onde se pode vender O Gato espiou seus sapatos puídos Eu tava querendo eles pra mim Já tou precisando Tu com um sapato ainda tão bom se admirou BoaVida que raras vezes levava sapatos e que naquele momento estava descalço Eu pago a tua parte Quanto tu pensa BoaVida olhou para ele O Gato levava gravata um paletó remendado e coisa espantosa levava meias Tu é da elegância hein sorriu Não nasci para essa vida Nasci para o grande mundo disse o Gato repetindo uma frase que ouvira certa vez de um caixeiroviajante num cabaré de Aracaju BoaVida achavao decididamente lindo O Gato tinha um ar petulante e embora não fosse uma beleza efeminada agradava a BoaVida que além de tudo não tinha muita sorte com mulheres pois aparentava muito menos que 13 anos baixo e acachapado O Gato era alto e sobre os seus lábios de 14 anos começava a surgir uma penugem de bigode que ele cultivava BoaVida naquele momento o amou com certeza porque disse Tu pode ficar com eles Eu te dou minha parte Tá certo Fico te devendo BoaVida quis aproveitar os agradecimentos do outro para iniciar sua conquista E baixou a mão pelas coxas do Gato que se esquivou só com o jogo do corpo O Gato riu consigo mesmo e não disse nada BoaVida achou que não devia insistir senão era capaz de espantar o menino Ele não sabia nada do Gato e nem imaginava que este conhecia seu jogo Andaram juntos parte da noite vendo a iluminação da cidade o Gato estava assombrado e por volta das onze foram para o trapiche BoaVida mostrou o Gato a Pedro e levouo depois para o lugar onde dormia Tenho aqui um lençol Dá pra nós dois O Gato deitou BoaVida se estendeu ao lado Quando pensou que o outro estava dormindo o abraçou com uma mão e com a outra começou a puxarlhe as calças devagarinho Num minuto o Gato estava de pé Tu te enganou mulato Eu sou é homem Mas BoaVida já não via nada só via seu desejo a vontade que tinha do corpo alvo do Gato de enrolar o rosto nos cabelos morenos do Gato de apalpar as carnes duras das coxas do Gato E se atirou em cima dele com intenção de derrubálo e forçálo Mas o Gato desviou o corpo passoulhe a perna BoaVida se estendeu de nariz Já tinha se formado um grupo em torno O Gato disse Ele pensava que eu era maricas Tu te faz de besta Arrancou com o lençol de BoaVida para outro canto e dormiu e dormiu Levaram algum tempo inimigos mas depois voltaram às boas e agora quando o Gato se cansa de uma pequena entrega ao BoaVidaUma noite o Gato andava pelas ruas das mulheres o cabelo muito lustroso de brilhantina barata uma gravata enrolada no pescoço assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade As mulheres o olhavam e riam Olha aquele frangote O que quererá por aqui O Gato respondia aos sorrisos e seguia Esperava que uma o chamasse e fizesse o amor com ele Mas não queria por dinheiro não só porque os níqueis que possuía não passavam de mil e quinhentos ou como porque os Capitães da Areia não gostavam de pagar mulher Tinham as negrinhas de dezesseis anos para derrubar no areal As mulheres olhavam para a sua figura de garoto Sem dúvida achavamno belo na sua meninice viciada e gostariam de fazer o amor com ele Mas não o chamavam porque aquela era a hora em que agi esperavam os homens que pagavam e elas tinham que pensar na casa e no almoço do dia seguinte Se contentavam assim com rir e fazer pilhérias Sabiam que dali sairia um daqueles vigaristas que enchem a vida de uma mulher que lhe tomam dinheiro dão pancadas mas também dão muito amor Muitas delas gostariam de ser a primeira mulher deste malandro tão jovem Mas eram dez horas hora dos homens que pagavam E o Gato andava de um lado para ou inutilmente Foi quando viu Dalva que vinha pela rua embuçada num capote de peles apesar da noite deverão Ela passou por ele quase da o ver Era uma mulher de uns trinta e cinco anos corpo forte rosto cheio de sensualidade O Gato a desejou imediatamente Foi a dela Viu quando entrou em casa sem se voltar Ficou na esq esperandoMinutos depois ela apareceu na janela O Gato subiu desceu a rua mas ela nem o olhava Depois passou um velho atendeu ao chamado dela entrou O Gato ainda esperou porém mesmo depois do velho ter saído muito apressado procurando não ser visto ela não voltou à janela Noites e noites o Gato volveu à mesma esquina só para vêla Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes usados e se pôr elegante Tinha o dom da elegância malandra que está mais no jeito de andar de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente O Gato desejava Dalva do mesmo modo como desejava comida ao ter fome como desejava dormir ao ter sono Já não atendia ao chamado das outras mulheres quando passada a meianoite elas já tinham feito para as despesas do dia seguinte e então queriam o amor juvenil do pequeno malandro Uma vez foi com uma só para saber da vida de Dalva Foi assim que se inteirou de que ela tinha um amante um tocador de flauta num café que tomava o dinheiro que ela fazia e ainda tomava porres colossais na sua casa atrapalhando a vida de todas as rameiras do prédio O Gato voltava todas as noites Dalva nunca lhe deu sequer um olhar Por isso ele ainda a amava mais Ficava numa espera dolorosa até meia hora depois de meia noite quando o flautista chegava e depois de a beijar na janela entrava pela porta mal iluminada Então o Gato ia para o trapiche a cabeça cheia de pensamentos se um dia o flautista não viesse Se o flautista morresse Era fraco talvez não agüentasse nem o peso dos quatorze anos do Gato E apertava a navalha que levava na blusa E uma noite o flautista não veio Nesta noite Dalva andara pelas ruas como uma doida voltara tarde para casa não recebera nenhum homem e agora estava ali postada na janela apesar de já ter dado as doze horas há muito tempo Aos poucos a rua foi ficando deserta Não restaram senão o Gato na esquina e Dalva que ainda esperava na janela O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre Dalva desesperava Então o Gato começou a passear de um lado para o outro da rua até que a mulher o notou e fez um sinal Ele veio logo sorrindo Tu não é um frangote que fica na esquina toda noite Quem fica na esquina sou eu Agora essa coisa de frangote Ela sorriu tristemente Tu quer me fazer um favor Te dou uma coisa mas logo pensou e fez um gesto Não Tu com certeza tá esperando tua comida e não vai perder tempo Posso sim A que estou esperando não vem agora Então eu quero filhinho que tu vá na rua Rui Barbosa O número é 35 Procura seu Gastão E no primeiro andar Diz a ele que estou esperando O Gato saiu humilhado Primeiro pensou em não ir e em nunca mais voltar a ver Dalva Mas depois se decidiu a ir para ver de perto o flautista que tinha coragem de abandonar uma mulher tão bonita Chegou no prédio um sobrado negro de muitos andares subiu as escadas no primeiro andar perguntou a um garoto que dormia no corredor qual era o quarto do Sr Gastão O garoto mostrou o último quarto o Gato bateu na porta O flautista veio abrir estava de cuecas e na cama o Gato viu uma mulher magra Estavam os dois bêbados O Gato falou Venho da parte de Dalva Diga àquela bruaca que não me amole Tou chateado dela até aqui e punha a mão aberta na garganta De dentro do quarto a mulher falou Quem é esse cocadinha Não te mete disse o flautista mas logo acrescentou É um recado da bruaca da Dalva Tá se pelando que eu volte A mulher riu um riso canalha de bêbada Mas tu agora só quer tua Bebezinha não é Vem me dar um beijinho anjo sem asas O flautista riu também Tá vendo pedaço de gente Diz isso a Dalva Tou vendo um couro espichado ali sim senhor Que urubu você arranjou hein camarada O flautista o olhou muito sério Não fale de minha noiva e logo Quer tomar um trago É caninha da boa O Gato entrou A mulher na cama se cobriu O flautista riu É um filhote somente Não faz medo Mesmo esse couro disse o Cato não me tenta Nem pra me tocar bronha Bebeu a cachaça O flautista já voltara para a cama e beijava a mulher Nem viram que o Gato saía e que levava a bolsa da prostituta que estava esquecida na cadeira sobre vestidos Na rua o Gato contou sessenta e oito milréis Jogou a bolsa no pé da escada meteu o dinheiro no bolso E foi para rua de Dalva assoviando Dalva o esperava na janela O Gato olhou para ela fixamente Vou emborcar e foi entrando sem esperar resposta Dalva mesmo no corredor perguntou O que foi que ele disse No quarto te digo Me mostre onde é Entraram no quarto A primeira coisa que o Gato viu foi um retrato de Gastão tocando flauta vestido de smoking Sentou na cama olhando o retrato Dalva espiava espantada e mal pôde novamente interrogar O que foi que ele disse O Gato respondeu Senta aqui e indicou a cama Esse frangote murmurou ela Olha bichinha ele tá grudado com outra sabe Também eu disse as boas aos dois E depois pelei a bruaca meteu a mão no bolso tirou o dinheiro Vamos rachar isso Tá com outra não é Mas meu Senhor do Bonfim há de fazer com que os dois fique entrevado Senhor do Bonfim é meu santo Foi até onde estava o quadro do santo Fez a promessa e voltou Guarda teu dinheiro Tu ganhou direito O Gato repetiu Senta aqui Desta vez ela sentou ele a pegou e a derrubou na cama Depois que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu murmurou O frangote parece um homem Ele se levantou endireitou as calças foi até onde estava o retrato do flautista Gastão e o rasgou Vou tirar um retrato pra tu botar ai A mulher riu e disse Vem bichinho bom Que malandro não vai sair dai Vou te ensinar tanta coisa meu cachorrinho Fechou a porta do quarto O Gato tirou a roupa Por isso o Gato sai toda meianoite e não dorme no trapiche Só volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia O SemPernas se aproximou e pilheriou Agora tu vai mostrar o anel não é Tu não tem nada com isso o Gato fumava um cigarro Tu quer vir pra ver se topa alguma mulher que te queira assim coxo Não vou em casa de couros Sei onde tem coisas que valha a pena Mas o Gato não estava disposto a conversar e o SemPernas continuou a sua peregrinação através do trapiche O SemPernas encostouse junto a uma parede e deixou que o tempo passasse Viu o Gato sair por volta das onze e meia Sorriu porque ele havia lavado a cara posto brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado que caracteriza os malandros e os marítimos Depois o SemPernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam Ali estavam mais ou menos cinqüenta crianças sem pai sem mãe sem mestre Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas Levavam vida nem sempre fácil arranjando o que comer e o que vestir ora carregando uma mala ora furtando carteiras e chapéus ora ameaçando homens por vezes pedindo esmola E o grupo era de mais de cem crianças pois muitas outras não dormiam no trapiche Se espalhavam nas portas dos arranhacéus nas pontes nos barcos virados na areia do Porto da Lenha Nenhuma delas reclamava Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar Quando calhava vir o padre José Pedro ou a mãedesanto DonAninha ou também o QueridodeDeus o doente tinha algum remédio Nunca porém era como um menino que tem sua casa O SemPernas ficava pensando E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida Voltouse porque ouviu movimento Alguém se levantava no meio do casarão O SemPernas reconheceu o negrinho Barandão que se dirigia de manso para o areal de fora do trapiche O SemPernas pensou que ele ia esconder qualquer coisa que furtara e não quem mostrar aos companheiros E aquilo era um crime conta as Leis dobando O SemPernas seguiu Barandão atravessando ente os que dormiam O negrinho já tinha transposto a porta do trapiche e dava a volta no prédio para o lado esquerdo Em cima era o céu de estrelas Barandão agora caminhava apressadamente O SemPernas notou que ele se dirigia para o outro extremo do trapiche onde a areia era mais fina ainda Foi então pelo outro lado e chegou a tempo de ver Barandão que se encontrava com um vulto Logo o reconheceu era Almiro um do grupo de doze anos gordo e preguiçoso Deitaramse juntos o negro acariciando Admiro O SemPernas chegou a ouvir palavras Um dizia meu filhinho meu filhinho O SemPernas recuou e a sua angústia cresceu Todos procuravam um carinho qualquer coisa fora daquela vida o Professor naqueles livros que lia a noite toda o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro Pirulito na oração que o transfigurava Barandão e Almiro no amor na areia do cais O SemPernas sentia que uma angústia o tomava e que era impassível dormir Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia Queria que aparecesse alguém a quem ele pudesse torturar com dichotes Queria uma briga Pensou em ir acender um fósforo na perna de um que dormisse Mas quando olhou da porta do trapiche sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir E saiu correndo pelo areal correndo sem fito fugindo da sua angústia Pedro Bala acordou com um ruído perto de si Dormia de bruços e olhou por baixo dos braços Viu que um menino se levantava e se aproximava cautelosamente do canto de Pirulito Pedro Bala no meio do sana em que estava pensou a princípio que se tratasse de um caso de pederastia E ficou atento para expulsar o passivo do grupo pois uma das leis do grupo era que não admitiriam pederastas passivos Mas acordou completamente e logo recordou que era impossível pois Pirulito não era destas coisas Devia se tratar de furto Realmente o garoto já abria o baú de Pirulito Pedro Bala se atirou em cima dele A luta foi rápida Pirulito acordou mas os demais dormiam Tu tá roubando um companheiro O outro ficou calado coçando o queixo ferido Pedro Bala continuou Amanhã tu vai embora Não quero mais tu com a gente Vai ficar com a gente de Ezequiel que vive roubando uns dos outros Eu só queria era ver Que era que tu vinha ver com as mãos Juro que era só para ver aquela medalha que ele tem Desembucha esta história direito senão leva porrada Pirulito se meteu Deixa ele Pedro Era bem capaz de querer ver mesmo a medalha É uma medalha que o padre José Pedro me deu E isso mesmo disse o menino eu só queria ver Juro mas tremia de medo Sabia que a vida de um expulso dos Capitães da Areia ficava difícil Ou entrava para o grupo de Ezequiel que vivi todo dia na cadeia ou acabava no reformatório Pirulito intercedeu de novo e Pedro Bala voltou para perto do Professor Então o menino disse com a voz ainda temendo Vou contar pra você saber Foi uma menina que eu vi hoje Tava na Cidade de Palha Eu tinha entrado na casa com idéia ti abafar um paletó quando ela veio e ficou perguntando o que eu queria Aí topamos a conversar Eu disse que amanhã ia levar um presente pra ela Porque foi boa boa assim comigo sabe e agora gritava parecia que tinha raiva Pirulito tomou a medalha que o padre lhe dera ficou mirando De repente estendeu para o menino Tome Dê a ela Mas não conte a Pedro Bala Volta Seca entrou no trapiche quando a madrugada já ia alta O cabelo de mulato sertanejo estava revolto Calçava alpercatas como quando viera da caatinga O seu rosto sombrio se projetou dentro do casarão Passou por cima do corpo do negro João Grande Cuspiu adiante passou o pé em cima Apertado no braço trazia um jornalOlhou todo o salão procurando alguém Segurou o jornal com as mãos grandes e calosas logo que distinguiu onde estava Professor E sem se importar da hora tardias e dirigiu para lá e começou a chamálo Professor Professor O que é Professor estava semiadormecido Eu quero uma coisa Professor sentouse O rosto sombrio de Volta Seca estava meio invisível na escuridão É tu Volta Seca Que é que tu quer Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário traz Tem um retrato Deixa pra amanhã que eu leio Lê hoje que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um canário O Professor buscou uma vela acendeu começou a ler a notícia do jornal Lampião tinha entrado numa vila da Bahia matara oito soldados deflorara moças saqueara os cofres da Prefeitura O rosto sombrio de Volta Seca se iluminou Sua boca apertada se abriu num sorriso E ainda feliz deixou o Professor que apagava a vela e foi para o seu canto Levava o jornal para cortar o retrato do grupo de Lampião Dentro dele ia uma alegria de primavera Ponto das Pitangueiras Esperavam que o guarda andasse Este demorou olhando o céu mirando a rua deserta O bonde desapareceu na curva Era o último dos bondes da linha de Brotas naquela noite O guarda acendeu um cigarro Com o vento que fazia gastou três fósforos Depois suspendeu a gola da capa pois havia um frio úmido que o vento trazia das chácaras onde balouçavam mangueiras e sapotizeiros Os três meninos esperavam que o guarda andasse para poder atravessar de um lado para o outro da rua e entrar na travessa sem calçamento O QueridodeDeus não tinha podido vir Toda a tarde tinha passado na Porta do Mar esperando o homem que não veio Se ele tivesse vindo seria mais fácil pois com o QueridodeDeus ele não ia discutir mesmo porque devia muita coisa ao capoeirista Mas não tinha vindo a informação fora errada e o QueridodeDeus já tinha uma viagem acertada para essa noite Ia a Itaparica Durante a tarde num terreninho que havia no findo da Porta do Mar fizeram treinos do jogo capoeira O Gato prometia ser com algum tempo um lutador capaz de se pegar com o próprio QueridodeDeus Pedro Bala também tinha muito jeito Dos três o menos ágil era o negro João Grande muito bom numa luta onde pudesse empregar sua enorme força física Assim mesmo aprendia o bastante para se livrar de um mais forte ele Quando se cansaram passaram para a sala Pediram quatro pi e o Gato sacou um baralho do bolso das calças Um velho bar sebento de canas muito grossasO Queridode Deus afirmava o homem viria o camarada que lhe dera a informação era um sujeito seguro Era negócio para render muito e o QueridodeDeus preferia chamar os Capitães da Areia seus amigos a um dos malandros do cais Sabia que os Capitães da Areia valiam mais que muitos homens e tinham a boca calada A Portado Mar estava quase deserto àquela hora Somente dois marinheiros de um baiano bebiam cerveja ao fundo conversando O Gato pôs o baralho em cima da mesa e propôs Quem topa uma ronda O QueridodeDeus pegou no baralho Tá mais que marcado seu Gato Um baralhinho bem velho Se tu tem outro eu não me importa Não Vamos com esse mesmo Começaram o jogo O Gato descobria duas cartas na mesa os outros apostavam numa a banca ficava com a outra A princípio Pedro Bala e o QueridodeDeus ganharam João Grande não estava jogando conhecia demais o baralho do Gato só fazia espiar rindo com seus dentes alvos quando o QueridodeDeus dizia que estava com sorte neste dia porque era o dia de Xangô seu santo Sabia que a sorte seria só no princípio e que quando o Gato começasse a ganhar não pararia mais Certo momento o Gato começou a ganhar Quando ganhou a primeira vez disse com uma voz meio triste Também já era tempo Tava com um peso da mãe João Grande abriu mais seu sorriso O Gato ganhou de novo Pedro Bala se levantou recolheu os níqueis que havia ganho O Gato olhou desconfiado Tu não vai botar nada agora Agora não que vou mijar e foi para os fundos do bar O QueridodeDeus ficou perdendo João Grande ria e o capoeirista se afundava Pedro Bala tinha voltado mas não jogava Ria com João Grande O Queridode Deus passou tudo quanto tinha ganho João Grande disse entre dentes Vai entrar no capital Ainda tou perdendo falou o Gato Reparou que Pedro tinha voltado Tu não arrisca mais nada Não vai na dama Tou cansado de jogar e Pedro Bala piscou para o Gato como que dizendo que ele se contentasse com o QueridodeDeus O QueridodeDeus passou cinco milréis do capital Só ganhara duas vezes durante as últimas jogadas e estava meio desconfiado O Gato abriu o baralho na mesaPuxou um rei e um sete Quem vai perguntou Ninguém foi Nem mesmo o QueridodeDeus que olhava o ar baralho muito desconfiado O Gato perguntou Tá pensando que tem treita Pode espiar Eu faço jogo limpo João Grande soltou uma daquelas suas gargalhadas escandalosas Pedro Bala e o QueridodeDeus riram também O Gato olhou para João Grande com raiva Esse negro é burra como uma porta Tu não tá vendoMas não completou a frase porque os dois marinheiros baiano que já miravam o jogo há bastante tempo se aproximaram Um deles o mais baixo que estava bêbado falou para o QueridodeDeus Podese entrar nesta brincadeira A banca é deste moço Os marinheiros olharam desconfiados para o menino Mas baixo cutucou o outro com o cotovelo e murmurou qualquer coisa ao ouvido O Gato riu para dentro porque sabia que ele estava dizendo que seria fácil arrancar o dinheiro daquela criança Se abancaram os dois e o QueridodeDeus achou estranho que Pedro Bala se abancasse também João Grande no entanto não só não achou estranho se abancou também Ele sabia que era preciso tapear os marinheiros e então era necessário que a gente do grupo perdesse também Os marinheiros do mesmo modo que tinha acontecido com o QueridodeDeus começaram ganhando Mas durou pouca a aragem da sorte e em breve só o Gato ganhava dos quatro Pedro Bala soltava aclamações Esse Gato quando tem sorte é um caso sério Também quando dá de perder perde a noite toda replicou João Grande e esta sua réplica deu grande confiança aos marinheiros sobre a honestidade do jogo e a possibilidade da sorte virar E continuaram a jogar e a perder O baixo só dizia A sorte tem de virar O outro que tinha um bigodinho jogava calado e cada vez apostava mais alto Também Pedro Bala subia o valor das suas apostas Certa hora o de bigodinho virou pro Gato A banca topa cinco mil O Gato coçou o cabelo cheio de brilhantina barata aparentando uma indecisão que os companheiros sabiam que não possuía Vá lá Topo Só pra dar meio de você livrar teu prejuízo O de bigodinho apostou cinco mil O baixo foi com três milréis Foram ambos num ás contra um valete da banca Pedro Bala e João Grande foram no ás também O Gato começou a virar as cartas A primeira era um nove O baixo batia com os dedos o outro puxava o bigodinho Veio em seguida um dois e o baixo disse Agora é o ás Dois depois um e batia com os dedos Mas veio um sete e depois um dez e então veio um valete O Gato arrastou a mesa enquanto Pedro Bala fazia uma cara de grande aborrecimento e dizia Amanhã quando o peso te pegar tu vai ver que te arraso O baixo confessou que estava limpo O de bigodinho meteu as mãos nos bolsos Tou só com os níqueis pra pagar a cerveja O garoto é um braço Se levantaram cumprimentaram o grupo pagaram a cerveja que tinham bebido na outra mesa O Gato os convidou a voltarem no outro dia O baixo respondeu que o navio deles saía aquela noite para Caravelas Só quando voltasse E se foram de braço dado comentando a pouca sorte O Gato contou o lucro Sem juntar o dinheiro que Pedro Bala e João Grande haviam perdido existia um lucro de trinta e oito milréis O Gato devolveu o dinheiro de Pedro Bala depois o de João Grande ficou um minuto pensando Meteu a mão no bolso tirou os cinco mil réis que o QueridodeDeus havia perdido anteriormente Toma batuta Tinha trapaça eu não quero embolsar teu cobre O QueridodeDeus beijou a nota com satisfação bateu a mão nas costas do Gato Tu vai longe menino Tu pode enricar com essas treitas Mas já o sol se punha e o homem não vinha Eles pediram outra pinga Com o cair da tarde o vento que vinha do mar aumentou O QueridodeDeus começava a ficar impaciente Fumava cigarro sobre cigarro Pedro Bala espiava para a porta O Gato dividiu os trinta e oito milréis pelos três João Grande perguntou Como teria ido o SemPernas com o abafa de chapéus Ninguém respondeu Esperavam o homem e agora tinham a impressão que ele não viria A informação tinha sido errada Não ouviam sequer a canção que vinha do marA Porta do Mar estava deserta e seu Felipe quase dormia no balcão Não tardaria no entanto a estar cheia e então todo acerto seria impossível com o homem Ele não haveria de querer conversar ali com o salão cheio Poderiam conhecêlo e ele não queria isto Tampouco o queriam os Capitães da Areia Em verdade o Gato não sabia de que se tratava E pouco má sabiam Pedro Bala e João Grande Sabiam quanto sabia o QueridodeDeus a quem o negócio tinha sido proposto e que o tinha aceito para Pedro Bala e os Capitães da Areia No entanto ele mesmo tinha apenas vagas informações e iam saber de tudo pelo homem que marcara uma entrevista à tarde na Porta do Mar Mas até as seis horas não chegou Em lugar dele chegou o tal que tinha falado ao QueridodeDeus Chegou na hora em que o grupo ia sair Explicou que homem não tinha podido vir Mas que esperava o QueridodeDeus à noite na rua em que morava Viria por volta de uma da madrugada O QueridodeDeus declarou que não podia ir mas que entregava o assunto aos Capitães da Areia O intermediário mirou os meninos desconfiado O QueridodeDeus perguntou Nunca ouviu falar nos Capitães da Areia Já sim Mas De qualquer jeito quem ia tratar do negócio era eles Daí O intermediário pareceu se conformar Combinaram pan um da manha e se separaram O QueridodeDeus foi para seu barco os Capitães da Areia para o trapiche o intermediário desapareceu no cais O SemPernas não havia ainda voltado Não havia ninguém no trapiche Deviam estar todos espalhados pelas ruas da cidade cavando o jantar Os três saíram novamente e foram comer num restaurante barato que havia no mercado Na saída do trapiche o Gato que estava muito alegre com o resultado do jogo quis passar uma rasteira em Pedro Bala Mas este livrou o corpo e derrubou o Gato Tou treinado nisso bestão Entraram no restaurante fazendo barulho Um velho que era o garçom se aproximou com desconfiança Sabia que os Capitães da Areia não gostavam de pagar e que aquele de talho na cara era o mais temível de todos Apesar de haver bastante gente no restaurante o velho disse Acabou tudo Não tem mais bóia Pedro Bala replicou Deixa de conversa fiada meu tio Nós quer comer João Grande bateu a mão na mesa Senão a gente vira esse fregemosca de cabeça pra baixo O velho ficava indeciso Então o Gato bateu o dinheiro em cima da mesa Hoje nós vai fazer gasto Foi um argumento suficiente O garçom começou a trazer os pratos um prato de sarapatel e depois uma feijoada Quem pagou foi o Gato Depois Pedro Bala propôs que fossem andando até Brotas pois já que iam a pé tinham muito que caminhar Não vale a pena tomar a taioba disse Pedro Bala É melhor que ninguém saiba que a gente foi pra lá O Gato então disse que chegaria depois e os encontraria lá Tinha uma coisa que fazer antes Ia avisar a Dalva para que não o esperasse essa noite E agora estavam ali no Ponto das Pitangueiras esperando que o guarda se alistasse Escondidos no vão de um portal não falavam Ouviam o vôo dos morcegos que atacavam os sapotis maduros nos pés Finalmente o guarda andou eles ficaram espiando até que a sua figura desapareceu na curva que a rua fazia Então atravessaram e entraram na alameda das chácaras e novamente se esconderam num portal O homem não tardou muito Saltou de um automóvel na esquina pagou a corrida e veio subindo a alameda Tudo o que se ouvia eram os seus passos e o rumor das folhas que o vento balançava nas árvores Quando o homem vinha próximo Pedro Bala saiu do portalOs outros vieram logo depois e como que o guardavam pareciam dois guardacostas O homem se aproximou mais do muro junto ao qual vinha andando Pedro caminhava para ele Quando estava defronte parou Pode me dar o fogo senhor levava na mão um cigarro apagado O homem não disse nada Sacou a caixa de fósforos estendeu ao menino Pedro riscou um e enquanto acendia o cigarro olhou para o homem Depois ao entregara caixa de fósforos perguntou É o senhor que se chama Joel Porquê quis saber o homem Foi o QueridodeDeus que nos mandou João Grande e o Gato se aproximavam O homem mirou os três com espanto Porém são uns meninos Isso não é negócio para Diga o que é a gente sabe fazer o trabalho direito retrucou Pedro Bala quando os outros dois tinham se aproximado Mas se um negócio que talvez nem homens e o homem pôs a mão na boca como quem teme ter dito mais do que convinha Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre E Capitães da Areia sempre faz os serviços bem feito Os Capitães da Areia Esse grupo de que falam os jornais meninos abandonados São vocês É a gente sim E dos que manda O homem parecia refletir Enfim se decidiu Eu preferia entregar esse negócio a homens Mas como tem que ser esta noite mesmo O jeito Vai ver como a gente sabe trabalhar Não fique assustado Venham comigo Mas deixem que eu vá na frente Vocês irão uns passos atrás de mim Os meninos obedeceram Num portão o homem parou abriu ficou esperando Veio de dentro um grande cão que lhe lambia as mãos O homem fez os três entrarem atravessaram uma rua de árvores o homem abriu a porta da casa Entraram para uma saleta o homem pôs a capa e o chapéu numa cadeira e sentouse Os três estavam de pé O homem fez sinal para que sentassem e primeiro eles miraram desconfiados as largas e cômodas poltronas Isso Pedro Bala e João Grande porque o Gato já estava se sentando muito a gosto numa atitude displicente A outro sinal do homem Pedro e o Grande se sentaram sendo que João Grande ficou sentado apenas na ponta da cadeira como se temesse sujá la O homem tinha um ar de riso De repente levantouse e falou mirando a Pedro em quem reconhecera o chefe O que vocês vão fazer é difícil e ao mesmo tempo é fácil Agora o que tem é que é uma coisa que necessita que ninguém saiba Não passa daqui disse Pedro Bala O homem puxou o relógio do bolso São uma e um quarto Ele só volta às duas e meia olhava os Capitães da Areia ainda com indecisão Então não é muito tempo falou Pedro Se quer que a gente vá é bom desembuchar logo O homem se decidiu Duas ruas adiante desta É a penúltima chácara à direita Tem que evitar um cachorro que já deve estar solto E bravo João Grande interrompeu O senhor tem ai um pedaço de carne Pra quê Pro cachorro Um pedaço chega Verei já Olhava os meninos Parecia perguntar a si mesmo se devia confiar neles Vocês entram pelos fundos Junto da cozinha na parte de fora da casa tem um quarto por cima da garagem É o do empregado que agora deve estar dentro de casa esperando o patrão É no quarto dele que vocês vão entrar Devem procurar um embrulho igual a este igualzinho Foi ao bolso da capa trouxe um pequeno pacote amarrado com uma fita corderosa É igualzinho Não sei se ainda estará no quartoTambém pode ser que o empregado o tenha no bolso Se assim for nada mais se pode fazer e um desespero repentino pareceu tomálo Se eu tivesse podido ir esta tarde Então com certeza ainda estaria no quartoMas agora quem sabe e cobriu o rosto com as mãos Mesmo que esteja com o empregado se pode trazer disse Pedro Não É essencial que ninguém saiba que houve furto deste embrulho O que vocês vão fazer é trocar os embrulhos se o outro estiver no quarto E se estiver com o empregado Então e a fisionomia do homem novamente se alterou João Grande pensou ouvir um nome que soava como Elisa Mas talvez fosse ilusão de João Grande que por vezes ouvia e via coisas que ninguém percebia O negro era muito mentiroso Então a gente troca os embrulhos do mesmo jeito Pode ficar descansado O senhor não conhece os Capitães da Areia Apesar do seu desespero o homem sorriu da bravata de Pedro Bala Então podem ir Depois tem que ser antes de duas horas voltem aqui Mas só quando a rua estiver deserta Eu os esperarei Acertaremos nossas contas entãoMas quero dizer outra coisa lealmente Se vocês forem percebidos e presos não me envolvam no caso Nada farei por vocês porque meu nome não pode aparecer nisso tudo Tratem de dar fim a este embrulho e não me chamem para nada É ganhar ou perder Neste caso replicou Pedro Bala é preciso marcar o preço Quanto o senhor paga à gente Dou 100 Trinta para cada e mais 10 para você apontou para Pedro O Gato se mexeu na cadeira Pedro fez sinal para que ele se calasse O senhor dá cinqüenta a cada e parece que ainda vai fazer negócio São 150 bicos pros três Senão não tem embrulho O homem não vacilou muito Olhava o relógio onde os ponteiros corriam Está bem Aí o Gato falou Não é que a gente desconfie do senhor Mas a coisa pode sair pelo avesso e o senhor mesmo disse que não se importaria com o que acontecesse à gente E daí É justo que o senhor nos passe logo algum João Grande apoiava o Gato com um gesto de cabeça Pedro Bala repetiu as últimas palavras do outro É justo repetiu também o homem Tirou uma carteira do ou uma nota de cem milréis Entregou a Pedro Agora toca a andar Se faz tarde Saíram Pedro Bala disse Pode ficar descansado Daqui a uma hora a gente volta com o embrulho Em frente da casa a rua estava completamente deserta numa janela da casa havia luz e eles viam a sombra de uma mulher que andava de um lado para outro o Grande bateu na testa Me esqueci da carne pro cachorro Pedro Bala estava olhando a janela com luz se voltou Não tem nada Isso me cheira a coisa de amigamento O sujeito aquele derrubava a zinha daqui e agora o empregado tem as cartas que os dois se escrevia e quer dar o alarme Esse pacote tá com perfume É que o outro há de ter Fez sinal para os dois esperarem do outro lado da rua chegou para perto do portão da casa Logo que se encostou um grande cão se aproximou latindo Pedro Bala amarrou um cordel no ferrolho do portão enquanto o cão andava de um lado para outro latindo baixo Depois chamou os outros dois Tu apontou pro Gato fica aqui na rua pra dar o alarma se vem alguém Tu Grande entra comigo Treparam na gradezinha do muro Pedro Bala puxou com o cordão o ferrolho e o portão abriu O Gato tinha ido para a esquina O cão ao ver o portão aberto se precipitou para a rua ficou remexendo uma lata de lixo Pedro Bala e João Grande pularam o muro cerraram o portão para que o cachorro não pudesse entrar se adiantaram entre as árvores Na janela iluminada da casa o vulto de mulher continuava a andar João Grande disse baixinho Tenho pena dela Quem manda deitar com outros Perto da casa o negro ficou para transmitir o aviso do Gato se viesse alguém Tinham assovios especiais para estes casos Pedro Bala rodeou a casa chegou à cozinhaA porta estava aberta como também a do quarto sobre a garagem Porém antes de subir a escada que dava para o quarto Pedro espiou pela porta da cozinha Na copa havia luz e um homem jogava paciência Deve ser o tal empregado pensou Pedro e rápido se afastou para a escada da garagem Subiu de quatro entrou no quarto do homemNão havia luz Pedro fechou a porta acendeu um fósforo Havia apenas uma cama um baú e um cabide na parede O fósforo se apagou mas Pedro já estava em cima da cama que co toda com as mãos Depois viu embaixo do colchão Tampouco nada Desceu então da cama se aproximou sem fazer ruído do baú Suspendeu a tampa acendeu um fósforo que prendeu nos dentes Remexeu a roupa com cuidado não havia nada Cuspiu o fósforo depois se lembrou que o homem podia não fumar e então o recolheu ao bolso e foi até o cabide Nada nos bolsos da roupa ali dependurada Pedro Bala acendeu outro fósforo mirou todo o quarto Com certeza está com o homem Agora é que vão ser elas Abriu a porta do quarto desceu as escadas Chegou na porta da cozinha o homem ainda estava sentado Então Pedro Bala reparou que ele estava sentado em cima do embrulho Aparecia uma ponta sob a perna do homem Pedro pensou que tudo estava perdido Como iria ele tirar o embrulho de baixo da perna do homem Saiu da porta da cozinha foi andando para onde estava o Grande Só se ele e o Grande atacassem o homem Mas aí haveria gritaria todo mundo saberia do roubo E o senhor que os tinha empregado não queria saber disso De repente teve uma idéia Chegou perto de onde tinha deixado o Grande assoviou baixinho João Grande apareceu logo Pedro falou em voz muito baixa Olha Grande o tal empregado tá sentado em riba do embrulho Tu vai chegar na porta da rua apertar a campainha e sumir depois É pro homem se levantar e eu abafar o embrulho Mas dá o suíte logo pro homem não te ver pensar que foi sonho Deixa passar o tempo de eu chegar na cozinha Voltou rápido para a porta da cozinha Dai a um minuto a campainha soou O empregado levantouse às pressas abotoou o paletó e se dirigiu para a frente da casa pelo corredor onde acendeu uma luz Pedro Bala penetrou na copa trocou os pacotes e abriu para os lados da chácara Saltou o muro assoviou para o Gato e João Grande O Gato veio logo Mas João Grande não apareceu Andaram de um lado para outro e o negro não chegava Pedro começava a ficar impaciente pensando que o empregado podia ter surpreendido João Grande e agora estar atracado com ele Mas quando ele passara por aqueles lados não havia escutado nenhum ruído Disse Se ele demorar a gente entra Assoviaram novamente não tiveram resposta Pedro Bala resolveu Vamos entrar de novo Mas ouviram o assovio de João Grande que não tardou a estar ao lado deles Pedro perguntou Onde tu te meteu O Gato tinha pegado o cachorro pela coleira e o punha para dentro do portão Tiraram o cordel do ferrolho e desapareceram pelo outro lado da rua Aí o Grande aplicou Na hora que meti o dedão na campainha entonce a dama lá em cima ficou muito assustada Pegou abriu a janela parecia que ia se atirar mesmoEspiava que fazia medo Tava mesmo chorando Entonces eu tava com pena e trepei pela bica pra dizer a ela que não chorasse mais que não tinha mais de quê Que agente tinha abafado os papéis E como tive que aplicar tudo a ela tive que demorar O Gato perguntou muito curioso Era boa era Era boa sim Passou a mão na minha cabeça depois me disse que muito obrigado que Deus ia me ajudar Deixa de ser burro negro Eu tava perguntando se era boa mas pra cama Se tu viu o coxame O negro não respondeu Um automóvel entrava pela rua Pedro Bala bateu no ombro do negro e João Grande sabia que o chefe estava aprovando o que ele fizera Então seu rosto se abriu de satisfação e murmurou Eu só queria ver acara do galego quando o patrão abrir o pacote não encontrar o que esperavam E já em outra rua os três soltaram a larga livre e ruidosa gargalhada dos Capitães da Areia que era como um hino do povo da Bahia As luzes do carrossel O Grande Japonês não era senão um pequeno carrossel nacional que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles meses de inverno quando as chuvas são longas e o Natal está muito distante ainda De tão desbotada que estava a tinta tinta que antigamente fora azul e vermelha e agora o azul era um branco sujo e o vermelho um quase corderosa e de tantos pedaços que faltavam em certos cavalos e em certos bancos Nhozinho França resolveu não armálo numa das praças centrais da cidade e sim em Itapagipe Ali as famílias não são tão ricas há muitas ruas só de operários e as crianças pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado O pano tinha muitos buracos também além de um rasgão enorme que fazia o carrossel depender da chuva Já fora belo fora mesmo o orgulho da meninada de Maceió noutros tempos Ficava então ao lado de uma rodagigante e de uma sombrinha sempre na mesma praça e nos domingos e feriados as crianças ricas vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde inglês as meninas de holandesa ou de finos vestidos de seda vinham se aboletar nos cavalos preferidos indo os menores nos bancos com as aias Os pais iam para a rodagigante outros preferiam a sombrinha onde podiam empurrar as mulheres tocando muitas vezes nas coxas e nas nádegasO parque de Nhozinho França era naquele tempo a alegria da cidade E mais que tudo o carrossel dava dinheiro rodando incansavelmente com as suas luzes de todas as cores Nhozinho achava a vida boa as mulheres belas os homens amáveis para com ele mas achava que a bebida era boa também fazia os homens mais amáveis e as mulheres mais belas E bebeu assim primeiro a sombrinha depois a rodagigante Depois como não queria se separar do carrossel ao qual tinha um pegadio especial o desarmou uma noite com o auxílio de amigos e começou a peregrinar nas cidades de Alagoas e Sergipe Enquanto isto os credores o xingavam de quanto nome feio conheciamAndou muito Nhozinho França com o seu carrossel Depois de percorrer todas as cidadezinhas dos dois estados de se embriagar em todos os seus bares penetrou no estado da Bahia e até para o bando de Lampião e lê deu uma função Estava numa pobre vila do sertão e não lhe faltava o dinheiro apenas para o transporte do seu carrossel Faltava para o miserável hotel onde se hospedara e que era o único da vila e também o trago de pinga para a cerveja que não era gelada ali assim mesmo ele gostava O carrossel armado no capim da praça da Matriz estava parado fazia uma semana Nhozinho França esperava a noite de sábado e a tarde de domingo para ver se fazia algum cobre para arribar para um lugar melhor Mas na sextafeira Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o carrossel teve muito que trabalhar Como as crianças os grandes cangaceiros homens que tinham vinte e trinta mortes acharam belo o carrossel acharam que mirar suas luzes rodando ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade E o carrossel de Nhozinho França salvou a pequena vila de ser saqueada as moças de serem defloradas os homens de serem mortos Só mesmo os dois soldados da polícia baiana que lustravam as botas na frente do posto policial foram fuzilados pelos cangaceiros assim mesmo antes que eles vissem o carrossel armado na praça da Matriz Porque talvez ai aos soldados da polícia baiana Lampião perdoasse nessa noite de suprema felicidade para o bando de cangaceiros Então eles foram como crianças gozaram daquela felicidade que nunca haviam gozado na sua meninice de filhos de camponeses montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel onde havia música de uma pianola e onde as luzes eram de todas as cores azuis verdes amarelas roxas vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca que ficou excitadíssimo e ao Sem Pernas naquela tarde em que os encontrou na Porta do Mar e os convidou para que o ajudassem no serviço de carrossel durante os dias que estivesse armado na Bahia em Itapagipe Não podia marcar ordenado mas talvez desse para tirar cada um uns cinco milréis por noite E quando Volta Seca mostrou suas habilidades em imitar animais os mais vários Nhozinho França se entusiasmou por completo mandou baixar mais uma garrafa de cerveja declarou que Volta Seca ficaria na porta chamando o público enquanto o SemPernas o ajudaria com as máquinas e tomaria conta pianola Ele mesmo venderia as entradas enquanto o carrossel estivesse parado Quando estivesse rodando Volta Seca o faria E de quando em vez disse piscando o olho um sai pra tomar uma pinga enquanto o outro faz o serviço de dois Volta Seca e o SemPernas nunca haviam acolhido uma com tanto entusiasmo Eles muitas vezes já tinham visto um carrossel mas quase sempre ouviam de longe cercado de mistério cavalgadas seus rápidos ginetes por meninos ricos e choraminguentos O Se Pernas já tinha mesmo certo dia em que penetrou num Parque de Diversões armado no Passeio Público chegado a comprar entrada para um mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido de farrapos Depois o bilheteiro não quis lhe devolver o bilhete da entrada o que fez com que o SemPernas metesse as mãos na gaveta da bilheteria que estava aberta abafasse o troco e tivesse que desaparecer do Passeio Público de uma maneira muito rápida enquanto em todo o Parque se ouviam os gritos de Ladrão ladrão Houve uma tremenda confusão enquanto o SemPernas descia muito calmamente a Gamboa de Cima levando nos bolsos pelo menos cinco vezes o que tinha pago pela entrada Mas o SemPernas preferiria sem dúvida ter rodado no carrossel montado naquele fantástico cavalo de cabeça de dragão que era sem dúvida a coisa mais estranha e tentadora na maravilha que era o carrossel para os seus olhos Criou ainda mais ódio aos guardas e maior amor aos carrosséis distantes E agora de repente vinha um homem que pagava cerveja e fazia o milagre de o chamar para viver uns dias junto a um verdadeiro carrossel movendo com ele montando nos seus cavalos vendo de perto rodarem as luzes de todas as cores E para o SemPernas Nhozinho França não era o bêbado que estava em sua frente na pobre mesa da Porta do Mar Para seus olhos era um ser extraordinário algo como Deus para quem rezava Pirulito algo como Xangô que era o santo de João Grande e do QueridodeDeus Porque nem o padre José Pedro e nem mesmo a mãedesanto DonAninha seriam capazes de realizar aquele milagre Nas noites da Bahia numa praça de Itapagipe as luzes do carrossel girariam loucamente movimentadas pelo SemPernasEra como num sonho sonho muito diverso dos que o SemPernas costumava ter nas suas noites angustiosas E pela primeira vez seus olhos sentiramse úmidos de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva E seus olhos úmidos miravam Nhozinho França como a um ídolo Por ele até a garganta de um homem o Sem Pernas abriria com a navalha que traz entre a calça e o velho colete preto que lhe serve de paletó É uma beleza disse Pedro Bala olhando o velho carrossel armado E João Grande abria os olhos para ver melhor Penduradas estavam as lâmpadas azuis verdes amarelas roxas vermelhas É velho e desbotado o carrossel de Nhozinho França Mas tem a sua beleza Talvez esteja nas lâmpadas ou na música da pianola velhas valsas de perdido tempo ou talvez nos ginetes de pau Entre eles tem um pato que é para sentar dentro os mais pequenos Tem a sua beleza sim porque a opinião unânime dos Capitães da Areia é que ele é maravilhoso Que importa que seja velho roto e de cores apagadas se agrada às crianças Foi uma surpresa quase incrível quando naquela noite o SemPernas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar uns dias num carrossel Muitos não acreditaram pensaram que fosse mais uma pilhéria do SemPernas Então iam perguntar a Volta Seca que como sempre estava metido no seu canto sem falar examinando um revólver que furtara numa casa de armas Volta Seca fazia que sim com a cabeça e por vezes dizia Lampião já rodou nele Lampião é meu padrim O SemPernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra noite quando o acabariam de armar E saiu para encontrar Nhozinho França Naquele momento todos os pequenos corações que pulsavam no trapiche invejaram a suprema felicidade do SemPernas piano mesmo Pirulito que tinha quadros de santos na sua parede Volta mesmo João Grande que nessa noite iria com o QueridodeDeus ao candomblé de Procópio no Matatu até mesmo o Professor que lia livros e quem sabe se também Pedro Bala que nunca tivera inveja de nenhum porque era o chefe de todos Todos o invejaram sim Como invejaram Volta Seca que no seu canto o cabelo mestiço e despenteado os olhos apertados e a boca rasgada naquele rictus raiva apontava o revólver ora para um dos meninos ora para um todos que passava ora para as estrelas que eram muitas no céu Na outra noite foram todos com o SemPernas e Volta Seca e tinham passado o dia fora ajudando Nhozinho a armar o carrossel ver o carrossel armado E estavam parados diante dele extasiados beleza as bocas abertas de admiração O SemPernas mostrava tu Volta Seca levava um por um para mostrar o cavalo que tinha s cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião Eram quase cem crianças olhando o velho carrossel de Nhozinho França estas horas estava encornado num pifão tremendo na Porta do Mar O SemPernas mostrou a máquina um pequeno motor que falhava muito com um orgulho de proprietário Volta Seca não se desprendia do cavalo onde rodara LampiãoO SemPernas estava muito cuidadoso do carrossel e não deixava que eles o tocassem que bulissem em nada Foi quando o Professor perguntou Tu já sabe mover com as máquinas Amanhã é que vou saber disse o SemPernas com um certo desgosto Amanhã seu Nhozinho vai me ensinar Então amanhã quando acabar a função tu pode botar ele pra rodar só com a gente Tu bota as coisas pra andar a gente se aboleta Pedro Bala apoiou a idéia com entusiasmo Os outros esperavam a resposta do SemPernas ansiosos O SemPernas disse que sim e então muitos bateram palmas outros gritaram Foi quando Volta Seca deixou o cavalo onde montara Lampião e veio para eles Quer ver uma coisa bonita Todos queriam O sertanejo trepou no carrossel deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorrisoEspiava a pianola espiava os meninos envoltos em alegria Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para ai ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia Todos estavam silenciosos Um operário que vinha pela rua vendo a aglomeração de meninos na praça veio para o lado deles E ficou também parado escutando a velha música Então a luz da lua se estendeu sobre todos as estrelas brilharam ainda mais no céu o mar ficou de todo manso talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia Neste momento de música eles sentiramse donos da cidade E amaramse uns aos outros se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade O SemPernas em se jogar no mar onde os sonhos são todos belos Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara E era uma unidade valsa velha e triste já esquecida por todos os homens da cidade Desemboca gente de todas asmas E noite de sábado amanhã os homens não irão para o trabalho Podem demorar na rua essa noite Muitos preferiram ir para os bares a Porta do Mar está cheia mas co que tinham filhos vieram com eles para a praça que é mal iluminada Em compensação aí estão as luzes do carrossel que rodam As crianças olham para elas e batem palmas Em frente à bilheteria Volta Seca imita vozes de animais e chama o público Leva uma cartucheira como se estivesse no sertão Nhozinho França achou que isto chamaria a atenção do povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro e a cartucheira atravessada E imita animais até que se reúnam homens mulheres e crianças na sua frente Então oferece entradas que as crianças compram Vai uma alegria por toda a praça As luzes do carrossel alegram a todos No centro agachado o SemPernas ajuda Nhozinho França a botar o motor para trabalhar E carrossel gira carregado de meninos a pianola toca suas velhas valsas Volta Seca vende entradas Na praça casais de namorados passeiam Mães de família compram picolés e sorvetes um poeta sentado perto do mar faz um poema sobre as luzes do carrossel e a alegria das crianças O carrossel ilumina toda a praça e todos os corações A cada momento desemboca das ruas e dos becos Volta Seca imita os animais vestido de cangaceiro Quando o carrossel pára de girar os meninos o invadem exibindo o bilhete de ingresso e é difícil contelos Quando um encontra mais lugar fica comum rosto magoado de desilusão e impaciente a sua vez E quando o carrossel pára os que vão nele querem saltar é preciso que o SemPernas venha e diga Pula fora Pula fora Ou então compra outra entrada Só assim deixam os velhos cavalos que nunca se cansam da corrida Outros cavalgam os ginetes e a corrida recomeça as girando todas as cores fazendo uma cor única e estranha a pi tocando sua antiga música Também vão casais de namorados bancos e enquanto gira o carrossel murmuram palavras de amor Há mesmo quem troque um beijo na corrida quando o motor falha e as luzes se apagam Então Nhozinho França e o SemPernas se debruçam sobre o motor e examinam o defeito até a corrida recomeçar abafando os protestos dos meninos O SemPernas já aprendeu todos os mistérios do motor Certa hora Nhozinho França manda que o SemPernas vá substituir Volta Seca na venda de bilhetes E manda que Volta Seca vá andar no carrossel E o menino toma o cavalo que serviu a Lampião E enquanto dura a corrida vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo E faz movimentos com o dedo como se atirasse nos que vão na sua frente e na sua imaginação os vê cair banhados em sangue sob os tiros da sua repetição E o cavalo corre e cada vez com mais e ele mata a todos porque são todos soldados ou fazendeiros ricos Depois possui nos bancos a todas as mulheres saqueia vilas cidades tens de ferro montado no seu cavalo armado com seu rifle Depois vai o SemPernas Vai calado uma estranha comoção o possui Vai como um crente para uma missa um amante para o seio da mulher amada um suicida para a morte Vai pálido e coxeia Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira Os lábios estão apertados seus ouvidos não ouvem a música da pianola só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe e uma casa e quem os beije e quem os ame Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza Já Se vê os soldados que o surraram o homem de colete queria Volta Seca os matou na sua corrida O SemPernas vai teso no seu cavalo É como se corresse sobre o mar para as estrelas na mais maravilhosa viagem do mundoUma viagem como o Professor nunca leu nem inventou Seu coração bate tanto tanto que ele o aperta com a mão Nesta noite os Capitães da Areia não vieram Não só a função carrossel na praça terminou muito tarde às duas horas da manhã os homens ainda rodavam como muitos deles inclusive Pedro Bala BoaVida Barandão e o Professor estavam ocupados em viria assuntos Marcaram para o dia seguinte das três para as quatro da manhã Pedro Bala perguntou ao SemPernas se ele já sabia manobrar bem com o motor Não paga a pena dar um prejuízo ao teu patrão explicou Já sei aquilo tudo de cor e decorado É o tipo da coisa canja O Professor que jogava damas com João Grande perguntou Não era bom agente de tarde dá um pulo na praça Quem sabe se não vale a pena Eu vou falou Pedro Bala Mas acho que não pode ir muitos A turma pode desconfiar de ver tanto junto O Gato disse que de tarde não ia Tinha o que fazer já que à noite ia estar ocupado no carrossel O SemPernas mangou Tu não pode passar um dia sem bater coxas com essa bruaca não é Tu vai acabar tatu O Gato não respondeu João Grande também não iria à tarde Tinha que ir encontrar como QueridodeDeus para irem comer uma feijoada na casa de DonAninha a mãedesantoFinalmente ficou resolvido que fosse um grupo pequeno operar à tarde na praça Os outros iriam para onde bem quisessem Só à noite se reuniriam para irem todos correr no carrossel É preciso levar gasolina gente pro motor O Professor tinha vencido João Grande já em três partidas fez uma coleta para comprarem dois litros de gasolina Eu levo Mas na tarde do domingo chegou o padre José Pedro que era uma das raríssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais permanente dos Capitães da Areia O padre José Pedro se fizera amigo deles há bastante tempo A amizade veio por intermédio do BoaVida Este um dia penetrara após uma missa na sacristia de uma igreja onde oficiava padre José Pedro Penetrara mais por curiosidade que por outra qualquer coisa BoaVida não era dos que mais faziam pela vida Gostava de deixara vida correr sem se preocupar muito Era mais um parasita do grupo Um dia quando lhe dava ganas entrava numa casa de onde trazia um objeto de valor ou batia o relógio de um homem Quase nunca o punha ele mesmo na mão dos intermediários Trazia e entregava a Pedro Bala assim como uma contribuição que dava ao grupo Tinha muitos amigos entre os estivadores do cais em várias casas pobres da Cidade de Palha em muitos pontos da Bahia Comia em casa de um em casa de outroEm geral não aborrecia a nenhum Se contentava com as mulheres que sobravam do Gato e mais que nenhum conhecia a cidade suas ruas seus lugares curiosos uma festa onde podiam ir beber e dançar Quando já tinha algum tempo que havia contribuído com algum objeto de valor para a economia do grupo fazia um esforço arranjava algo que rendesse dinheiro e entregava a Pedro Bala Mas realmente não gostava de nenhuma espécie de trabalho fosse honesto ou desonesto Gostava era de deitar na areia do cais horas e horas espiando os navios de ficar de cócoras tardes inteiras nos portões dos armazéns do porto ouvindo histórias de valentias Vestiasede farrapos pois só providenciava arranjar uma roupa quando seu traje caía aos pedaços Gostava de andar ao léu nas ruas da cidade entrando nos jardins para fumar um cigarro sentado num banco entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras Naquela manhã quando viu o povo saindo da missa entrou a igreja displicentemente e foi furando até a sacristia Espiava tudo os altares os santos riu de um São Benedito muito preto Na sacristia não tinha ninguém e ele viu um objeto de ouro que devia dar muito dinheiro Espiou mais uma vez não viu ninguém Foi passando a mão mas alguém tocou no seu ombro O padre José Pedro acabara de entrar Por que faz isso meu filho perguntou com um sorris enquanto tirava da mão do BoaVida o relicário de ouro Tava só dando uma espiada reverendo É batuta responde BoaVida com certo receio E batuta mesmo Mas não vá pensando que ia levar Ia deixar aí direitinhoSou de boa família O padre José Pedro espiou as roupas do BoaVida e riu BoaVida olhou também para seus trapos É que meu pai morreu sabe Mas até num colégio estive Tou falando a verdade Pra que é que eu ia roubar essa coisa apontava o relicário Demais numa igreja Não sou pagão O padre José Pedro sorriu de novo Sabia perfeitamente que BoaVida estava mentindo Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar relações comas crianças abandonadas da cidade Pensava que aquela era a missão que lhe estava reservada Já fizera umas tantas visitas ao reformatório de menores mas ali lhe punham todas as dificuldades porque ele não esposava as idéias do diretor de que é necessário surrar uma criança para a emendar de um erro E mesmo o diretor tinha idéias únicas sobre os erros Há bastante tempo que o padre José Pedro ouvia falar nos Capitães da Areia e sonhava entrar em contato com eles poder trazer todos aqueles corações a Deus Tinha uma vontade enorme de trabalhar com aquelas crianças de ajudálas a serem boas Por isso tratou o melhor que pôde a BoaVida Quem sabe se por intermédio dele não chegaria aos Capitães da Areia E assim foi O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência entre o clero Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padre s da Bahia Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de tecidos antes de entrar para o seminário O diretor da fábrica num dia em que o bispo a visitara resolveu dar mostra de generosidade e disse que já que o senhor bispo se queixava da falta de vocação sacerdotal ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou de alguém que quisesse estudar para padre José Pedro que estava no seu tear ouvindo se aproximou e disse que ele queria ser padre Tanto o patrão como o bispo tiveram uma surpresa José Pedro já não era moço e não tinha estudo algum Mas o patrão diante do bispo não quis voltar atrás E José Pedro foi para o seminário Os demais seminaristas riam dele Nunca conseguiu ser um bom aluno Bem comportado isso era Também dos mais devotos daqueles que mais se acercavam da igreja Não estava de acordo com muitas das coisas que aconteciam no seminário e por isso os meninos o perseguiam Não conseguia penetrar os mistérios da filosofia da teologia e do latim Mas era piedoso e tinha desejos de catequizar crianças ou índios Sofreu muito principalmente depois que passados dois anos o dono da fábrica deixou de pagar seus gastos e ele teve que trabalhar de bedel no seminário para poder continuar Mas conseguiu se ordenar e ficou adido a uma igreja da capital esperando uma paróquia Porém seu grande desejo era catequizar as crianças abandonadas da cidade os meninos que sem pai e sem mãe viviam do roubo em meio a todos os víciosO padre José Pedro queria levar aqueles corações todos a Deus Assim começou a freqüentar o reformatório de menores onde a princípio o diretora recebia com muita cortesia Mas quando ele declarou contra os castigos corporais contra deixar as crianças co fome dias seguidos então as coisas mudaram Um dia teve escrever uma carta sobre o assunto para a redação de um jornal Então sua entrada foi proibida no reformatório e até uma queixa contra foi dirigida ao arcebispado Por isso não teve uma freguesia Porém seu maior desejo era conhecer os Capitães da Areia problema dos menores abandonados e delinqüentes que quase preocupava a ninguém em toda a cidade era a maior preocupação padre José Pedro Ele queria se aproximar daquelas crianças não para trazêlas para Deus como para ver se havia algum meio melhorar sua situação Pouca influência tinha o padre José Pedro Não tinha mesmo influência nenhuma nem tampouco sabia como agir para ganhar a confiança daqueles pequenos ladrões Mas s que a vida deles era falta de todo o conforto de todo carinho uma vida de fome e de abandono E se o padre José Pedro não cama comida e roupa para levar até eles tinha pelo menos pala de carinho e sem dúvida muito amor no seu coração Numa se enganou a princípio o padre José Pedro em lhes oferecer trocado abandono da liberdade que gozavam soltos na rua possibilidade de vida mais confortável O padre José Pedro sabia que não podia acenar com o reformatório àquelas crianças Ele conhecia demais as leis do reformatório as escritas e as que cumpriam E sabia que não havia possibilidade de nele uma criança tomar boa e trabalhadoraMas o padre José Pedro confiava em amigas que possuía beatas velhas e religiosas Elas podiam se encarregar de vários dos Capitães da Areia de educálos e alimentálosMas isso seria o abandono de tudo de grande que tinha a vida a aventura da liberdade nas ruas da mais misteriosa e bela das cidades do mundo nas ruas da Bahia de Todos os Santos E logo que intermédio de Boa Vida o padre José Pedro fez relações com Capitães da Areia viu que se lhes fizesse essa proposta perderia a confiança que já depositavam nele e que se mudariam do trapiche ele nunca mais os veria Além do mais não tinha absoluta co naquelas solteironas velhuscas que viviam metidas na igreja e aproveitavam os intervalos das missas para comentarem a vida Lembravase que a princípio elas tinham ficado magoadas com ele porque ao acabar de celebrar pela primeira vez naquela igreja um grupo de beatas se acercou dele com o evidente propósito de o ajudar a mudar os trajes do oficio da missa E ressoaram em torno a ele exclamações comovidas Reverendozinho Anjo Gabriel Uma velhusca magra juntava as mãos em adoração Meu Jesuscristozinho Pareciam adorálo e o padre José Pedro se revoltou Em verdade ele sabia que a grande maioria dos padre s não se revoltava e ganhava tons presentes de galinhas perus lenços bordados e por vezes até antigos relógios de ouro que passavam através de gerações na mesma família Mas o padre José Pedro tinha outra idéia da sua missão pensava que os outros estavam errados e foi com um furor sagrado que disse As senhoras não têm o que fazer Não têm casa de que cuidar Eu não sou Jesuscristozinho nem Anjo Gabriel Vão para suas casas trabalhar preparar o almoço coser As beatas o olhavam assombradas Era como se ele fosse o próprio Anticristo O padre completou Em suas casas trabalhando servem melhor a Deus que aqui cheirando as fraldas dos padre s Vão vão E enquanto elas saíam atemorizadas ele repetia mais com magoa que com raiva Jesuscristozinho O nome de Deus em vão As beatas foram diretas ao padre Clóvis que era gordo calvo e muito bem humorado confessor preferido de todas elas Narraramlhe entre exclamações de assombro o que acabara de se passar O padre Clóvis mirou as beatas com um olhar terno e as consolou Logo passará Isto é começo Depois ele verá que vocês são mis santas umas verdadeiras filhas do Senhor Isso passará Não fiquem tristes Vão rezar um padrenosso e não se esqueçam que há benção hoje Ficou rindo quando elas partiram E murmurava de si para si Esses padre s recémordenados estragam a vida da gente Depois as beatas foram aos poucos se aproximando novamente do padre José Pedro A verdade é que nunca chegaram a ter com uma perfeita intimidade O seu ar sério a sua bondade que se reservava para quando se fazia necessária e seu horror às intriguinhas sacristia faziam com que elas o respeitassem mais que o amassem Algumas no entanto aquelas que em geral eram ou viúvas ou esposas de maus maridos se fizeram mais ou menos suas amigas Outra cais o afastava das beatas ele era a negação do pregador Nunca havia conseguido descrever o inferno com a força de convicção do padre Clóvis por exemplo Sua retórica era pobre e falha No entanto ele acreditava ele era um crente E dificilmente se poderia dizer que padre Clóvis acreditasse pelo menos no inferno A princípio o padre José Pedro pensara em levar os Capitães da Areia às beatas Pensava que assim salvaria não só as crianças de vida miserável como salvaria também as beatas de uma inutilidade perniciosa Poderia conseguir que elas se dedicassem aos meninos com a mesma fervorosa devoção com que se dedicavam às igrejas aos gordos padre s O padre José Pedro adivinhava mais do que sabia se elas passavam os dias em inúteis conversas nas igrejas ou aba lenços para o padre Clóvis era porque não haviam tido na malograda existência de virgens um filho um esposo a quem dedicar seu tempo e seu carinho Agora ele levaria filhos para elasMuito tempo o padre José Pedro acariciou este projeto Chegou mesmo levar para casa de uma um menino do reformatório Isso muito de conhecer os Capitães da Areia quando apenas ouvia falar nela experiência deu maus resultados o menino arribou da casa da solteirona levando uns objetos de prata preferindo a liberdade da rua mesmo vestido de farrapos e sem muita certeza de almoço aos trajes e ao almoço garantido com a obrigação de rezar o terço em alta assistir várias missas e bênçãos todos os dias Depois o padre José Pedro compreendeu que a experiência tinha fracassado mais por culpa da solteirona que do menino Porque evidentemente pensa padre José Pedro é impossível converter uma criança abandona e ladrona em um sacristão Mas é muito possível convertêla em um homem trabalhador E esperava quando conhecesse os Capitães da Areia entrar num acordo com alguns deles e com as beatas para tá uma nova experiência agora bem dirigida Mas logo depois que BoaVida o apresentou ao grupo que aos poucos ganhou a confiança da maioria viu que era totalmente inútil pensar nesse projeto Viu que era absurdo porque a liberdade era o sentimento mais arraigado nos corações dos Capitães da Areia e que tinha que tentar outros meios Nas primeiras vezes os meninos o olhavam com desconfiança Ouviam muitas vezes na rua dizer que padre dava peso que negócio de padre era para mulher Mas o padre José Pedro tinha sido operário e sabia como tratar os meninos Tratavaos como a homens como a amigos E assim conquistou a confiança deles se fez amigo de todos mesmo daqueles que como Pedro Bala e o Professor não gostavam de rezar Dificuldade grande só teve mesmo com o Sem Pernas Enquanto que o Professor Pedro Bala o Gato eram indiferentes às palavras do padre o Professor no entanto gostava dele pois lhe trazia livros Pirulito Volta Seca e João Grande principalmente o primeiro muito atentos ao que ele dizia o SemPernas lhe fazia uma oposição que a princípio tinha sido muito tenaz Porém o padre José Pedro terminara por conquistara confiança de todos E pelo menos em Pirulito descobrira uma vocação sacerdotal Mas naquela tarde não foi com muita satisfação que o viram chegar Pirulito se aproximou e beijou a mão do padre Volta Seca também Os demais o cumprimentaramO padre José Pedro explicou Hoje venho fazer um convite a todos vocês Os ouvidos se fizeram atentos O SemPernas resmungou Vai chamar a gente pra bênção Só quero ver quem topa Mas se calou porque Pedro Bala o olhava com raiva O padre sorriu com bondade Sentouse num caixão João Grande viu que a batina dele era suja e velha Tinha remendos feitos com linha a grande para a magreza do padre Cutucou Pedro Bala que espiou também Então o Bala disse Minha gente o padre José Pedro que é amigo de nós tem uma bisa pra gente Viva o padre José Pedro João Grande sabia que tudo era por causa da batina rasgada e grande para a magreza do padre Os outros responderam viva o padre sorriu acenando com a mão João Grande não tirava os olhos da batina Pensou que Pedro Bala era mesmo um chefe sabia de tudo sabia fazer tudo Por Pedro Bala João Grande se deixaria cortar a facão como aquele negro de Ilhéus por Barbosa o grande senhor do cangaço O padre José Pedro meteu a mão no bolso da batina tirou o breviário negro Abriu e de dentro sacou algumas notas de dez milréis Isso é pra gente andar no carrossel hoje Convido vocês todos para andarem hoje no carrossel da praça de Itapagipe Esperava que os rostos se animassem mais Que uma extraordinária alegria reinasse em toda sala Porque assim ficaria ainda mais convicto de que estava servindo a Deus quando daqueles quinhentos milréis que dona Guilhermina Silva dera para comprar velas pano altar da Virgem tirara cinqüenta milréis para levar os Capitães da Areia ao carrossel E como os rostos não ficaram subitamente alegres ele ficou desconcertado as notas na mão olhando a multidão de meninos Pedro Bala coçou o cabelo que lhe caía sobre as orelhas quis falar não acertou Olhou então para o Professor e foi este quem aplicou Padre o senhor é um homem bom Teve vontade de dir que o padre era bom como João Grande mas pensou que talvez o padre se ofendesse se ele o comparasse ao negro Mas o que temi que o SemPernas e Volta Seca tão os dois trabalhando no carrossel E a gente tá convidado aí fez uma pequena pausa pelo proprietário que é amigo deles pra andar à noite de graça Agente não esquece do convite do senhor O Professor falava pausado escolhendo as palavras pensando que aquele era um momento delicado adivinhando muita coisa e Pedro Bala o apoiava com a cabeça Fica pra outra vez Mas o senhor não vai zangar com a gente porque a gente não aceita Não vai não é e espiava o padre cujo rosto agora estava novamente alegre Não Fica pra outra vez Olhou para os meninos sorrindo Foi até melhor assim Porque o dinheiro que eu tinha e se calou de repente ante o fato que ia contar E pensou que talvez tive sido uma lição de Deus um aviso e que tivesse feito uma com malfeita Seu olhar foi tão estranho que os meninos se aproximam um passo Olhavam para o padre sem compreender Pedro Bala franzia testa como quando tinha um problema a resolver o Professor tentou falar Mas João Grande compreendeu tudo apesar de ser o mais burro de todos Era da igreja padree bateu na boca com raiva de si mesmo Os outros entenderam Pirulito pensou que tivesse sido um grande pecado mas sentiu que a bondade do padre era maior que o pecado Então o SemPernas veio coxeando ainda mais que o seu natural como se viesse lutando consigo mesmo chegou peno do padre e quase gritou a princípio se bem logo baixasse muito a voz A gente pode botar no lugar onde estava É coisa canja pra gente Não fique triste e sorria E o sorriso do SemPernas e a amizade que o padre lia nos olhos de todos haveria lágrimas nos olhos do Grande lhe restituíram a calma a serenidade a confiança no seu ato e no seu Deus Disse com sua voz natural Uma velha viúva deu quinhentos milréis para vela Eu tirei cinqüenta para vocês andarem no carrossel Deus julgará se fiz bem Agora compro mesmo de vela Pedro Bala sentia que tinha uma dívida a saldar com o padre Queria que o padre soubesse que todos eles compreendiam E como não achasse nada mais à mão se dispôs a perder o trabalho que poderiam fizer naquela tarde e convidou o padre A gente vai pro carrossel ver Volta Seca e SemPernas agora de tarde Quer ir com a gente padre Padre José Pedro disse que sim porque sabia que aquilo era mais um passo na sua intimidade com os Capitães da Areia E foi um grupo pm o padre para a praça Vários não foram o Gato inclusive que foi ver Dalva Mas os que iam pareciam um bando de bons meninos que tinham do catecismo Se estivessem bem vestidos e limpos pareceria um colégio de tão em ordem que eles iam Na praça rodaram tudo com o padre Mostravam com orgulho Volta Seca imitando animais vestido de cangaceiro o SemPernas fazendo sozinho o carrossel girar porque Nhozinho França fora tomar uma cerveja num bar Uma pena que à tarde as luzes do carrossel não estivessem acesas Não era tão belo como à noite as luzes girando de todas as cores Mas eles tinham orgulho de Volta Seca imitando animais do SemPernas movimentando o carrossel fazendo as crianças subirem as crianças baixarem O Professor com um pedaço de lápis e uma tampa de caixa desenhou Volta Seca vestido de cangaceiro Tinha um jeito especial para desenhar e por vem ganhava dinheiro fazendo desenho nas calçadas de homens que passavam de senhoritas que iam com os noivos Estes paravam um minuto riam do desenho ainda indeciso as noivas diziam Está muito parecido Ele recolhia os níqueis e então ficava a retocar o desenho feito a giz a ampliálo a colocar homens decais e mulheres da vida até um guarda o expulsava da calçadaPor vezes já tinha um grupo espiando e havia quem dissesse Este menino promete É pena que o governo não olhe e vocações e lembravam casos de meninos da rua que ajudados famílias foram grandes poetas cantores e pintores O Professor acabou o desenho no qual pôs o carrossel e Nhozinho França caindo de bêbado e deu ao padre Estavam todos num cerrado espiando o desenho que o padre elogiava quando ouviram Mas é o padre José Pedro E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como arma de guerra O padre José Pedro ficou meio sem jeito os me olhavam com curiosidade os ossos do pescoço e do peito da velha onde um barret custosíssimo brilhava à luz do sol Houve um m to em que todos ficaram calados até que o padre José Pedro ânimo e disse Boa tarde dona Margarida Mas a viúva Margarida Santos assestou novamente o lorgnon de ouro O senhor não se envergonha de estar nesse meio padre Um sacerdote do Senhor Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha São crianças senhora A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca O padre continuou Cristo disse Deixai vir a mim as criancinhas Criancinhas Criancinhas cuspiu a velha Ai de quem faça mala uma criança falou o Senhor e o padre José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha Isso não são crianças são ladrões Velhacos ladrões Isso não do são crianças São capazes até de ser dos Capitães da Areia Ladrões repetiu com nojo Os meninos a fitavam com curiosidade Só o SemPernas que tinha vindo do carrossel pois Nhozinho França já voltara a olhava com raiva Pedro Bala se adiantou um passo quis explicar O padre só quer aju Mas a velha deu um repelão e se afastou Não se aproxime de mim não se aproxime de mim imundície Se não fosse pelo padre eu chamava o guarda Pedro Bala aí riu escandalosamente pensando que se não fosse pelo padre a velha já não teria o barret nem tampouco o lorgnon A velha se afastou com um ar de grande superioridade não sem dizer es para o padre José Pedro Assim o senhor não vai longe padre Tenha mais cuidado com suas relações Pedro Bala ria cada vez mais e o padre também riu se bem sentisse triste pela velha pela incompreensão da velha Mas o carrossel girava com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos Capitães da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo de ar nos cavalos de girar com as luzes Eram crianças sim pensou padre No começo da noite caiu uma carga dágua Também as nuvens logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam ou também a lua cheia Pela madrugada os Capitães da Areia vieram O SemPernas botou o motor para trabalhar E eles esqueceram não eram iguais às demais crianças esqueceram que não tinham nem pai nem mãe que viviam de furto como homens que temidos na cidade como ladrões Esqueceram as palavras da velha de lorgnon Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças cavalgando os ginetes do carrossel girando com as luzes As estrelas brilhavam brilhava a lua cheia Mas mais que tudo brilhavam noite da Bahia as luzes azuis verdes amarelas roxas vermelhas do Grande Carrossel Japonês Docas Pedro Bala bateu a moeda de quatrocentos réis na parede da Alfândega ela caiu adiante da de BoaVida Depois Pirulito bate dele a moeda ficou entre a de Boa Vida e a de Pedro Bala BoaVida estava acocorado espiando Tirou o cigarro da boca Eu gosto é assim mesmo De começar ruim E continuaram o jogo mas BoaVida e Pirulito perderam moedas de quatrocentão que Pedro Bala embolsou Eu sou é bamba mesmo Diante deles estavam os saveiros ancorados Do Mercado mulheres e homens Eles esperavam nesta tarde o saveiro do QueridodeDeus O capoeirista estava numa pescaria que sua profissão e pescador Continuaram o jogo do cruzado até que Pedro Bala limpou os outros dois A cicatriz do seu rosto brilhava Gostava de vai assim num jogo limpo principalmente quando os parceiros eram da força do Pirulito que fora muito tempo o campeão do grupo e de BoaVida Quando terminaram BoaVida puxou o bolso para fora Tu vai me emprestar nem que seja um cruzado Tou a nemnem Depois mirou o mar os saveiros ancorados QueridodeDeus vai chegar de tardinha Vamos pias a Pirulito disse que ficava esperando o QueridodeDeus mas Pedro Bala foi com BoaVida para as docas Atravessaram as ruas do cais afundaram os pés na areiaUm navio desatracava do armazém 5 haviam movimento de gente que entrava e saía Pedro Bala perguntou ao BoaVida Tu não tem vontade de ser marítimo Tá vendo Gosto daqui Não quero arribar não Pois eu tenho vontade É bonito trepar num mastro E um temporal bem Tu te lembra daquela história que o Professor leu pra gente Aquela que tinha um temporalBatuta Era porreta sim Pedro Bala ficou se lembrando da história BoaVida achava besteira sair da Bahia onde quando crescesse seria tão fácil viver uma boa existência de malandro navalha na calça violão debaixo do braço uma morena para derrubar no areal Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente homem Chegaram ao portão do armazém sete João de Adão um estivador negro e fortíssimo antigo grevista temido e amado em toda a estiva estava sentado num caixãoFumava cachimbo e os músculos saltavam sob sua camisa Quando viu os meninos foi saudando Olha o amigo BoaVida E o Capitão Pedro Só chamava Pedro de Capitão Pedro e gostava de conversar com eles Ofereceu um pedaço de caixão a Pedro Bala BoaVida se acocorou na sua frente Num canto uma negra velha vendia laranjas cocadas vestida com uma saia de chitão e uma anágua que deixava ver os seios ainda duros apesar da sua idade BoaVida ficou espiando os peitos da negra enquanto descascava uma laranja que apanhara no bueiro Tu ainda tem uma peitam a bem boa hein tia A negra sorriu Esses meninos de hoje não respeita os mais velho compadre João de Adão Onde já se viu um capetinha destes falar em peito pra a velha encongrujada como eu Deixa de conversa tia Tu ainda topa a coisa A negra riu com vontade Já fechei a cancela BoaVida Passei da idade Pergunta este aponta João de Adão Vi quando ele quase menino as como tu fez a primeira greve aqui nas doca Naquele tempo ninguém sabia que diabo era greve Tu te lembra compadre João de Adão balançou a cabeça que sim fechou os o recordando os longínquos tempos da primeira greve que chefiara docas Era um dos doqueiros mais velhos embora ninguém lhe d a idade que tinha Pedro Bala falou Negro quando pinta três vezes trinta A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco Tinha tirado o lenço que enrolava na cabeça e BoaVida chalaceou Por isso tu anda com esse lenço O negra cheia de proso João de Adão perguntou Tu te lembra de Raimundo comadre Luisa O Loiro que morreu na greve Como não me lembro Era que toda tarde vinha dar dois dedo de prosa comigo gostava de pilhéria Mataram ele bem aqui naquele dia que a cavalaria ato a gente Olhou para Pedro Bala Tu nunca ouviu falar Capitão Não Tu tinha uns quatro anos Depois disso tu andou um ano casa de um pra casa de outro até que tu fugiu Depois a gente só saber de tu quando tu já era chefe dos Capitães da Areia Mas a gente sabia que tu havia de te arranjar Quantos anos tu tem agora Pedro ficou fazendo cálculos e o próprio João de Adão interrompeu Tu tá com uns quinze anos Não é comadre A negra fez que sim João de Adão continuou No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas A gente tem um lugar guardado pra tu Por quê perguntou BoaVida já que Pedro apenas olhava espantado Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente pelo direito da gente Era um homem e tanto Valia dez destes que a gente encontra por ai Meu paifez Pedro Bala que daquelas histórias só conhecia vagas rumores Teu pai era A gente chamava ele de Loiro Quando foi da greve fazia discurso pra gente nem parecia um estivador Foi pegado por uma bala Mas tem um lugar pra tu nas docas Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto Olhou João de Adão Por que tu nunca me contou isso Tu era pequeno para entender Agora tu tá ficando um homem e riu com satisfação Pedro Bala riu também Estava contente de saber a história de seu pai porque ele tinha sido um homem valente Mas perguntou lentamente E minha mãe tu conheceu João de Adão pensou um momento Não sei não Quando conheci o Loiro ele não tinha mulher Mas tu vivia com ele Eu conheci era a negra que estava falando Um pedaço mulher Corria uma história que teu pai tinha fintado ela de casa ela era de uma família rica lá de cima e apontava a cidade alta Morreu quando tu nem tinha seis meses Nesse tempo Raimundo trabalhava na fábrica de ciganos de Itapagipe Depois foi que veio pras docas João de Adão repetiu Quando tu quiser Pedro Bala fez um aceno com a cabeça Depois perguntou Foi uma coisa batuta a greve não foi E ficaram ouvindo João de Adão narrar a greve Quando ele acabou Pedro Bala disse Eu gostava de fazer uma greve Deve ser porreta Vinha entrando um navio João de Adão se levantou Agora a gente vai carregar aquele holandês O navio apitava nas manobras de atracação De todos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armazém Pedro Bala os olhou com carinho Seu pai fora um deles morrera defesa deles Ali iam passando homens brancos mulatos negros muitos negros Iam encher os porões de um navio de sacos de cacau fardos de fumo açúcar todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas onde outros homens como aqueles talvez altos loiros descarregariam o navio deixariam vazios os seus porões pai fora um deles Só agora o sabia E por eles fizera discursos trepado em um caixão brigara recebem uma bala no dia em que a cavalaria enfrentou os grevistas Talvez ali mesmo onde ele se sentava ti caldo o sangue de seu pai Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue que correra do corpo seu pai Por isso no dia em que quisesse teria um lugar nas d entre aqueles homens o lugar que fora de seu pai E teria também carregar fardos Vida dura aquela com fardos de sessenta quilos costas Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai João de Adão brigar com policias morrer pelo direito deles vingaria seu pai ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu vagamente Pedro Bala sabia o que era isso Imaginavase n greve lutandoE sorriam os seus olhos como sorriam os seus BoaVida que chupava a terceira laranja interrompeu seu sonho Tá pensando na morte da bezerra seu mano A preta velha olhou Pedro Bala com carinho É a cara do pai Só que tem o cabelo ondeado da mãe Se fosse esse talho na cara não tinha que tirar nem pôr pan Raimundo Um homem bonito BoaVida riu entre dentes Perguntou quanto devia pagou duzentos réis Depois olhou mais uma vez os peitos da ri perguntou Tu não tem uma fia minha tia Pra que tu quer saber desgraçado BoaVida riu Eu podia me amigar com ela A negra atirou o chinelo BoaVida desviou o corpo Se eu tivesse uma filha não era pra teu bico malandro Depois se lembrou Tu não vai hoje ao Gantois Vai ser uma batida daquelas Um fandango de primeira É festa de Omolu Muita bóia E aluá Se tem mirou Pedro Bala Por que tu não vai branco Omolu não é só santo de negro É santo dos pobres todos BoaVida estendeu a mão numa saudação quando ela falou em Omolu o deus da bexiga A tarde caía Um homem comprou cocada As luzes se acenderam de repente A negra se levantou boavida ajudou a que ela botasse o tabuleiro na cabeça Ao longe Pirulito apontava com o QueridodeDeus Pedro Bala olhou mais uma vez os homens que nas docas carregavam fardos para o navio holandês Nas largas costas negras e mestiças brilhavam gotas de suor Os pescoços musculosos iam curvados sob os fardosE os guindastes rodavam ruidosamente Um dia iria fazer uma greve como seu pai Lutar gelo direito Um dia um homem assim como João de Adão poderia contar a outros meninos na porta das docas a sua história como contavam a de seu pai Seus olhos tinham um intenso brilho na noite recémchegada Ajudaram o QueridodeDeus a desembarcar a pescaria que fora boa Yemanjá o tinha ajudado Um homem que tinha banca de peixe no mercado comprou toda a pescariaDepois foram comer num restaurante próximo Pirulito foi ver o padre José Pedro que estava lhe ensinando a ler e a escrever Passou pelo trapiche antes para apanhar uma caixa de penas que tinha levantado numa papelaria pela manhã Pedro Bala BoaVida e o QueridodeDeus andaram para o candomblé do Gantois o Querido era ogã onde Omolu apareceu com suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres no cântico mais lindo que pode haver que em breve a miséria acabaria que ele levaria a bexiga para a casa dos ricos e que os pobres seriam alimentados e felizes Os atabaques tocavam na noite de Omolu E ele anunciava que o dia de vingança dos pobres chegaria As negras dançavam os homens estavam alegres O dia da vingança chegaria Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade pois o BoaVida fora com o QueridodeDeus dançar num bleforé Desceu as ladeiras que o conduziam à cidade baixa Ia devagar como se carregasse um peso dentro de si ia como que curvado por dentro Pensava na conversa da tarde com João de Adão conversa que o alegrara porque ficara sabendo que seu pai fora um homem valente do cais um homem que chegara a deixar uma história Mas João de Adão falara também dos direitos dos doqueiros Pedro Bala nunca tinha ouvido falar naquilo e no entanto fora por estes direitos que seu pai morrera E depois na macumba do Gantois Omolu paramentado de vermelho dissera que odiada vingança dos pobres não tardaria a chegarE isso oprimia o coração de Pedro Bala como aqueles fardos de sessenta quilos oprimem o cangote dos estivadores Quando acabou a descida da ladeira se dirigiu para o areal vontade de ir para o trapiche ver se dormia Um cachorro latiu à sua passagem pensando que ele ia lhe disputar o osso que estava roendo No fim da rua Pedro Bala viu um vulto Parecia uma mulher andava apressada Sacudiu seu corpo de menino como se sacode animal jovem ao ver a fêmea e com passo rápido se aproximou mulher que agora entrava no areal A areia chiava sob os pés e a mulher notou que era seguida Pedro Bala podia vêla bem quando ela passava sob os postes era uma negrinha bem jovem talvez tivesse apenas anos como ele Mas os seios saltavam pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dançassem E o desejo cresceu deu Pedro Bala era um desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia Pensando nas nádegas rebolantes da negrinha pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas Omolu pedindo vingança na noite de macumba Pensava em derrubar a negrinha sobre a areia macia em acariciar seus seios duros talvez seios de virgem sempre seios de menina em possuir seu corpo quente de negra Apressou seus passos porque a negrinha se desviara da rua que cortava o areal e se internara por este se afastando dos postes de iluminação Mas quando ela notou que Pedro Bala estava cada vez mais próximo se lançou para a frente quase correndo Pedro compreendeu que ele ia para uma daquelas ruas perdidas entre o morro e o mar e que se atravessava o areal era para caminho mais curto e com mais facilidade poder fugir dele Ia um silêncio por todo o cais só chiar da areia sob os passos deles fazia estremecer de medo o coração da negrinha e de impaciência o coração de Pedro Bala Mas estava cada vez mais próximo Andava muito mais rápido que a negra e a alcançaria com mais dez passos E ela tinha ainda muito que andar no areal antes de atingir os trapiches e as ruas que ficam além dos trapiches Pedro sorria um sorriso de dentes apertados era igual a um animal feroz caçando no deserto um outro animal para seu almoço Quando já ia levando a mão para tocarem seu ombro e fazer com que ela voltasse o rosto a negrinha começou a correr Pedro Bala se lançou em sua perseguição e logo a alcançou Mas ia a tal velocidade esbarrou nela e ambos rolaram na areia Pedro se levantou de um rindo chegou para o lado dela que procurava se pôr em pé Não precisa lindeza Assim mesmo tá bom O rosto da negrinha era de terror Mas quando viu que seu seguidor era um menino de quinze para dezesseis anos se animou is um pouco e perguntou com raiva Que é que tu quer Deixa de orgulho morena Vamos bater um papozinho E a agarrou pelo braço e novamente a derrubou na areia O medo voltou a possuí la um terror doido Vinha da casa da avó e ia para sua onde mãe e irmãs a esperavamPara que tinha vindo de noite para que se arriscara na areia do cais Não sabia que a Meia das docas é a cama de amor de todos os malandros de todos os ladrões de todos marítimos de todos os Capitães da Areia de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de um corpo na cidade santa da Bahia Ela não sabia disto mal fizera quinze anos havia muito pouco tempo que era mulher Pedro Bala também só tinha quinze anos mas há muito tempo conhecia não só o areal e os seus segredos como os segredos do amor das mulheresPorque se os homens conhecem esses segredos muito antes que as mulheres os Capitães da Areia os conheciam muito antes que qualquer homem Pedro Bala a queria porque há muito sentia os desejos de homem e conhecia as carícias do amor Ela não o queria porque fazia pouco que se tornara mulher e pretendia reservar seu corpo para um mulato que a soubesse apaixonar Não o queria entregar assim ao primeiro que a encontrasse no areal E está com os olhos entupidos de medo Pedro Bala passou a mão na carapinha da negra Tu é um pancadão morena Nós vai fazer um filho lindo Ela lutou por se afastar dele Me deixa Me deixa desgraçado E olhava em torno de si para ver se enxergava alguém a quem gritar a quem pedir socorro alguém que a ajudasse a conservar a sua virgindade que tinham lhe ensinado que era preciosa Mas à noite no areal do cais da Bahia não se vêem senão sombras e não se ouvem mais que gemidos de amor baques de corpos que rolam confundidos na areia Pedro Bala acariciava seus seios e ela no fundo de seu terror começava a sentir um fio de desejo como um fio de água que corre entre montanhas e vai engrossando aos poucos até se transformar em caudaloso rio E isso fez com que crescesse o seu terror Se ela não resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possuísse estaria perdida iria deixar uma mancha de sangue no areal da qual ririam os estivadores na madrugada seguinte A certeza da sua fraqueza lhe deu novo alento e novas forças Baixou a cabeça mordeu a mão de Pedro que segurava seu seio Pedro deu um grito retirou a mão ela se levantou e correu Mas ele a pegou e agora seu desejo estava misturado com raiva Vamos deixar de chovenãomolha e tentava derrubála Deixa eu ir embora desgraçado Tu quer fazer minha desgraça filho da mãe Deixa eu ir embora que não tenho nada com tu Pedro não respondia Conhecia outras que faziam chiquê Em geral porque tinham um amante a esperálas Nem por um momento pensou que a negrinha fosse virgemMas ela resistia e o xingava e mordia batia suas frágeis mãos no peito de Pedro Bala Mas que é que tu viu cabocla Tu pensa que eu vou te deixar antes de tu me dar Deixa de orgulho Teu macho não vai saber ninguém fica sabendo E tu vai ver o que é um homem bom E agora fazia por acariciála queria dominar sua raiva fazer com que ela sentisse desejo Suas mãos desciam ao longo do seu corpo deitoua com esforço Ela agora repetia num refrão Me deixa desgraçado Me deixa desgraçado Ele suspendeu as saias pobres de chita apareceram as duras coxas da negra Mas estavam uma sobre a outra e Pedro Bala tentou separálas A negrinha reagiu de novo mas como o menino a estava acariciando e ela sentiu a chegada impetuosa do desejo não o xingou mais senão que disse num pedido angustioso Me deixa que eu sou virgem Tu pode ser bom não me querer Depois tu encontra outra Eu sou donzela tu vai me fazer mal Ele olhou ela estava chorando de medo e também porque sua vontade estava enfraquecendo seus peitos estavam intumescidos Tu é donzela mesmo Juro por Deus Nosso Senhor pela Virgem beijava os dedos postos em cruz Pedro Bala vacilava Os seios da negrinha intumescidos sob seus dedos As coxas duras a carapinha do sexo Tu tá falando a verdade e não deixava de acariciála Tou juro Deixa eu ir embora minha mãe tá me esperando Chorava e Pedro Bala tinha pena mas o desejo estava solto dentro dele Então propôs ao ouvido da negra e fazia cócegas a língua dele Só boto atrás Não Não Tu fica virgem igual Não tem nada Não Não que dói Mas ele a acarinhava uma cócega subiu pelo corpo dela Começou a compreender que se não o satisfizesse como ele queria sua virgindade ficaria ali E quando ele prometeu novamente sua língua a excitava no ouvido se doer eu tiro ela consentiu Tu jura que não vai na frente Juro Mas depois que tinha se satisfeito pela primeira vez e ela gritara e mordera as mãos vendo que ela ainda estava possuída pelo desejo tentou desvirginálaMas ela sentiu e saltou como uma louca Tu não te contenta desgraçado com o que me fez Tu quer me desgraçar E soluçava alto e levantava os braços estava como uma louca toda sua defesa eram seus gritos suas lágrimas suas imprecações contra o chefe dos Capitães da Areia Mas para Pedro a maior defesa da negrinha eram os olhos cheios de pavor olhos de animal mais fraco que não tem forças para se defender E como seu maior desejo fosse satisfizera e como aquela angústia do princípio da noite voltava a dominálo ele falou Se eu te deixar tu volta amanhã Volto sim Sô faço o que fiz hoje Te deixo donzela Ela fez que sim com a cabeça Seus olhos estavam iguais aos de um doido e naquele momento só sentia dor e pavor vontade de fugir Agora que as mãos dele os lábios dele o sexo de Pedro não tocavam mais nas carnes dela seu desejo desaparecera e pensava unicamente em defender sua virgindade Respirou quando ele disse Então tu pode ir Mas se tu não voltar amanhã Quando eu te pegar tu vai ver com quantos paus se faz uma cangalha Ela começou a andar sem nada responder Mas o menino a acompanhou Vou te levar para um malandro não lhe pegar Foram os dois e ela chorava Ele quis pegar na mão dela ela não deixou e se afastou dele Ele tentou novamente novamente ela retirou a mão Então ele disse Que diabo é isso E foram de mãos dadas Ela chorava e aquele choro foi angustiando Pedro Bala foi fazendo com que voltasse sua inquietação do começo da noite a visão de seu pai morrendo na luta a visão de Omolu anunciando vingança Começou a maldizer intimamente o encontro da cabrocha e apressou o passo para chegar quanto antes ao começo da rua Ela soluçava e ele falou com raiva Que foi que tu teve Tu não teve nada Ela apenas o olhou e seus olhos apesar de ainda ir com ele e ainda estar apavorada estavam cheios de ódio e desprezo Pedro baixou a cabeça não sabia o que dizer não tinha mais desejo nem raiva só tristeza no seu coração Ouviram a música de um samba que um homem cantava na rua Ela soluçou mais alto ele foi chutando a areia Agora se sentia mais fraco que ela a mão da negrinha pesava na sua como se fosse chumbo Largou a mão ela se afastou dele Pedro não protestou Queria não a ter encontrado não ter também João de Adão nem ter ido ao Gantois Chegaram na rua ele disse Agora tu pode ir ninguém te faz mal Ela olhou novamente com ódio deitou a correr Mas na esquina mais próxima parou virou para ele que ainda olhava e rogou praga com uma voz que o encheu de medo Peste fome e guerra te acompanha desgraçado Deus te castiga desgraçado Filho de uma mãe desgraçado desgraçado sua voz solitária atravessa a rua abalava Pedro Bala Ela antes de desaparecer na esquina cuspiu no chão num supremo desprezo e ainda repetiu Desgraçado Desgraçado Primeiro ele ficou parado depois deitou a correr no areal ia como se os ventos o açoitassem como se fugisse das pragas da negrinha E tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação a vontade de se vingar dos homens que tinham matado seu pai o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do outro lado do mar na Barra na Vitória na Graça o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida a pena que sentia pela pobre negrinha uma criança também Uma criança também ouvia na voz do vento no samba que cantavam uma voz dizia dentro dele Aventura de Ogum Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu carregado de nuvens negras e pesadas Pedro Bala o SemPernas e João Grande foram levar a mãedeSanto DonAninha até sua casa distante Ela viera ao trapiche pela tarde precisava de um favor deles e enquanto explicava a noite caiu espantosa e terrível Ogum esta zangado explicou a mãedeSanto DonAninha Fora este assunto que trouxera ali Numa batida num candomblé que se bem não fosse o seu porque nenhum polícia se aventurava a dar batida no candomblé de Aninha estava sob a sua proteção a polícia tinha carregado com Ogum que repousava no seu altar DonAninha tinha usado da sua força junto a um guarda para conseguir a volta do santo fora mesmo à casa de um professor da Faculdade de Medicina seu amigo que vinha estudar a religião negra no seu candomblé pedir que ele conseguisse a restituição do deus O professor realmente pensava em conseguir que a policia lhe entregasse a imagem Mas para juntar à sua coleção de ídolos negros e não para reintegrála no seu altar no candomblé distante Por isso por estar Ogum numa sala de detidos na polícia Xangô descarrega os raios nessa noite Por último DonAninha veio aonde estavam os Capitães da Areia seus amigos de há muito porque são amigos da grande mãedesanto todos os negros e todos os pobres da Bahia Para cada um ela tem uma palavra amiga e materna Cura doenças junta amantes seus feitiços matam homens ruins Explicou que tinha acontecido a Pedro Bala O chefe dos Capitães da Areia ia pouco aos candomblés como pouco ouvia as lições do padre José Pedro Mas era amigo tanto do padre como da Mãedesanto e entre os Capitães da Areia quando se é amigo se serve ao amigo Agora levavam Aninha para sua casa A noite em torno era tormentosa e colérica A chuva os curvava sob o grande guardachuva branco da Mãedesanto Os candomblés batiam em desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos deles Omolu anunciasse a vingança do povo pobre DonAninha disse aos meninos com uma voz amarga Não deixam os pobres viver Não deixam nem o deus dos pobres em paz Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus sua voz era amarga uma voz que não parecia da mãedesanto DonAninha Não se contentam de matar os pobres a fome Agora tiram os santos dos pobres alçava os punhos Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si Os pobres não tinham nada O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus onde Deus seria igual para todos Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo No reino do céu seriam iguais Mas já tinham sido desiguais na terra a balança pendia sempre para um lado As imprecações da mãedesanto enchiam a noite mais que o ruído dos agogôs e atabaques que desagravavam Ogum DonAninha era magra e alta um tipo aristocrático de negra e sabia levar como nenhuma das negras da cidade suas roupas de baiana Tinha o rosto alegre se bem bastasse um olhar seu para inspirar absoluto respeito Nisso se parecia com o padre José Pedro Mas agora estava com um ar terrível e suas imprecações contra os ricos e a polícia enchiam a noite da Bahia e o coração de Pedro Bala Quando a deixaram rodeada das suas filhasdesanto que beijavam sua mão Pedro Bala prometeu Deixa estar mãe Aninha que amanhã te trago Ogum Ela bateu a mão na cabeça loira dele sorriu João Grande e o SemPernas beijaram a mão da negra Desceram a ladeira Os agogôs e atabaques ressoavam desagravando Ogum O SemPernas não acreditava em nada mas devia favores a DonAninha Perguntou O que é que a gente vai fazer O troço está na polícia João Grande cuspiu estava com certo receio Não chame Ogum de troço SemPernas Ele castiga Tá preso não pode fazer nada riu o SemPernas João Grande calou a boca porque sabia que Ogum era grande demais mesmo na cadeia podia castigar o SemPernas Pedro Bala coçou o queixo pediu um cigarro Deixa eu matutar A gente tem que dar conta A gente garantiu a Aninha Agora tem que fazer Desceram para o trapiche A chuva entrava pelos buracos do teto a maior parte dos meninos se amontoavam nos cantos onde ainda havia telhado O Professor tentara acender sua vela mas o vento parecia brincar com ele apagavaa de minuto a minuto Afinal ele desistiu de ler essa noite e ficou peruando um jogo de seteemeio que o Gato bancava ajudado por BoaVida num canto Moedas no chão mas nenhum rumor desviava Pirulito das suas orações diante da Virgem e de Santo AntônioNestas noites de chuva eles não podiam dormir De quando em vez a luz de um relâmpago iluminava o trapiche e então se viam as caras magras e sujas dos Capitães da Areia Muitos deles eram tão crianças que temiam ainda dragões e monstros lendários Se chegavam para junto dos mais velhos que apenas sentiam frio e sono Outros os negros ouviram no trovão a voz de Xangô Para todos estas noites de chuva eram terríveis Mesmo para o Gato que tinha uma mulher em cujo seio escondia a jovem cabeça as noites de temporal eram noites más Porque nestas noites homens que na cidade não têm onde reclinar a sua cabeça amedrontada que não têm senão uma cama de solteiro e querem esconder num seio de mulher o seu temor pagavam para dormir com Dalva e pagavam bem Assim o Gato ficava no trapiche bancando jogos com seu baralho marcado ajudado na roubalheira pelo BoaVida Ficavam todos juntos inquietos mas sós todavia sentindo que lhes faltava algo não apenas uma cama quente num quarto coberto mas também doces palavras de mãe ou de irmã que fizessem o temor desaparecer Ficavam todos amontoados e alguns tiritavam de frio sob as camisas e calças esmolambadas Outros tinham paletós furtados ou apanhado sem lata de lixo paletós que utilizavam como sobretudo O Professor tinha mesmo um sobretudo de tão grande arrastava no chão Uma vez e era no verão um homem parara vestido com um grosso sobretudo para tomar um refresco numa das cantinas da cidade Parecia um estrangeiro Era pelo meio da tarde e o calor doía nas carnes Mas o homem parecia não sentilo vestido com seu sobretudo novo O Professor achou o homem engraçado e com cara de sujeito de dinheiro e começou a fazer um desenho dele com o sobretudo enorme maior que o homem era o próprio homem o sobretudo a giz no passeio E ria de satisfação porque provavelmente o homem lhe daria uma prata de dois milréis O homem voltouse na sua cadeira e olhou o desenho quase concluído O Professor ria achava o desenho bom o sobretudo dominando o homem era mais que o homem Mas o homem não gostou da coisa se deixou possuir por uma grande raiva levantouse da cadeira e deu dois pontapés no Professor Um atingiu o menino nos rins e ele rolou pela calçada gemendo O homem ainda meteu o pé no seu rosto dizendo congestionado ao se afastar Toma corneta para aprender a não fazer burla de um homem E saiu batendo moedas na mão após meio apagar com o pé o desenho A garçonete veio e ajudou o Professor a se levantar Olhou com piedade o menino que apalpava o lugar dos rins doloridos olhou o desenho disse Que bruto Até que o retrato estava parecido Um estúpido Meteu a mão no bolso onde guardava as gorjetas tirou uma prata de um milréis quis dar ao Professor Mas ele recusou com a mão sabia que ia fazer falta a elaOlhou o desenho semiapagado seguiu seu caminho ainda com as mãos nos rins Ia quase sem pensar com um nó na garganta Ele quisera agradar o homem merecer uma prata dele Tivera dois pontapés e palavras brutais Não compreendia Por que eram odiados assim na cidade Eram pobres crianças sem pai sem mãe Por que aqueles homens bem vestidos tanto os odiavam Foi com sua dor Mas aconteceu que no caminho para o trapiche no deserto do areal sob o sol encontrou novamente minutos depois o homem de sobretudo Parecia que ia para um dos navios atracados no porto e levava agora o sobretudo no braço porque o sol estava abrasador Professor tirou a navalha poucas vezes a usava e se aproximou do homem O calor tinha alijado do areal todos os homens e o do sobretudo cortava pela areia para fazer o caminho mais curto para o cais O Professor foi silenciosamente por detrás do homem quando chegou perto tomou a frente com a navalha na mão A vista do homem tinha transformado a confusão de seus sentimentos num único sentimento vingança O homem o olhou aterrorizado 0 Professor crescia em sua frente com a navalha aberta Murmurou entre dentes Sai moleque O Professor avançou com a navalha o homem ficou branco Que é isso Que é isso e mirava todos os lados na esperança de ver alguém Mas só ao longe nas docas apareciam perfis de homens Então o do sobretudo largou a correr quando o Professor saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha O sobretudo ficou abandonado no chão e o sangue caía da mão do homem na areia O Professor tomou pelo outro lado ficou um instante sem saber que fazer Não tardaria a vir um guarda logo muitos acompanhando o homem em sua perseguição Se o navio do homem saísse logo tudo estava bem a perseguição pouco demoraria Mas se tardasse a sair com certeza o homem o perseguiria até dar com ele e pôlo no xadrez Então o Professor lembrouseda garçonete Caminhou para a cantina do jardim que ficava em frente fez sinal para a garçonete Ela veio e logo compreendeu quando o viu com o sobretudo O Professor avisou Ele tá com um talho na mão Ela riu Tu te vingou hein Levou o sobretudo para a cantina guardou O Professor sumiu até que o navio saiu barra afora Mas de onde estava viu a batida dos guardas pelo areal e pelas ruas adjacentes Foi assim que o Professor tinha conseguido aquele sobretudo que nunca quis vender Adquirira um sobretudo e muito ódio E tempos depois quando as suas pinturas murais admiraram todo o país eram motivos de vidas de crianças abandonadas de velhos mendigos de operários e doqueiros que rebentavam cadeias notaram que nelas os gordos burgueses apareciam sempre vestidos com enormes sobretudos que tinham mais personalidade que eles próprios Pedro Bala João Grande e o SemPernas entraram no trapiche Foram para o grupo que jogava em torno ao Gato Quando eles chegaram o jogo parou um momento o Gato ficou espiando os três Quer topar um seteemeio Tou com cara de besta respondeu o SemPernas João Grande sentou para espiar Pedro Bala se afastou com o Professor para um canto Queria combinar uma maneira de roubar a imagem de Ogum da polícia Discutiram parte da noite e já eram onze horas quando Pedro Bala antes de sair falou para todos os Capitães da Areia Minha gente eu vou fazer um troço difícil Se eu não aparecer até de manhã vocês fica sabendo que eu tou na polícia e não demoro a tá no reformatório até fugir Ou até vocês me tirar de lá E saiu João Grande o acompanhou até a porta O Professor veio para junto do Gato novamente Os menores olhavam a partida do chefe com certo receio Tinham uma grande confiança em Pedro Bala e sem ele muitos não saberiam como se arranjar Pirulito veio do seu canto deixara uma oração pelo meio O que foi Pedro foi fazer um troço difícil Se não voltar de manhã é que tá na chave A gente tira ele respondeu Pirulito naturalmente e nem parecia que minutos antes estava ante um quadro da Virgem rezando pela salvação da sua pequena alma de ladrão E voltou aos seus santos a rezar por Pedro Bala O jogo recomeçou Chuva e raios trovões e nuvens no céu O frio intenso no trapiche Gotas de água caíam sobre os meninos que jogavam Mas o jogo agora era sem atenção o próprio Gato se esquecia de ganhar havia como que uma confusão em todo o trapiche Durou até que Professor disse Eu vou ver as coisas João Grande e o Gato foram com ele Nesta noite foi Pirulito que se deitou na porta do trapiche com o punhal sob a cabeça E perto dele Volta Seca espiava a noite com sua cara sombria E pensava em que lugar estaria nesta noite de temporal o grupo de Lampião na imensidade das caatingas Talvez que nessa noite de temporal lutassem com a polícia como ia fazer agora Pedro Bala E Volta Seca pensou que quando Pedro Bala fosse grande como um homem seria tão corajoso como Lampião Lampião era o dono do sertão das caatingas sem fim Pedro Bala seria dono da cidade do casario das ruas do cais E Volta Seca que era do sertão poderia andar nas caatingas e nas cidades Porque Lampião era seu padrinho e Pedro Bala seu amigo Imitou o cocorocó de um galo e isso era sinal de que Volta Seca estava alegre Pedro Bala enquanto subia a ladeira da Montanha revia mentalmente seu plano Fora arquitetado com a ajuda do Professor e era a coisa mais arriscada em que se metera até hoje Mas DonAninha bem que merecia que um corresse risco por ela Quando tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas tratava dele muitas vezes curava E quando aparecia um Capitão da Areia no seu terreiro ela o tratava como a um homem como a um ogã davalhe do melhor para comer do melhor para beber O plano era arriscado possivelmente não daria certo Pedro Bala comeria cadeia uns dias e terminaria remetido para o reformatório onde a vida era pior que vida de cão Mas havia uma possibilidade de dar certo e Pedro Bala jogaria tudo nesta possibilidade Chegou ao largo do Teatro A chuva caía e os guardas se abrigavam sob as capas Começou a subir a ladeira de São Bento vagarosamente Tomou por São Pedro atravessou o largo da Piedade subiu o Rosário agora estava nas Mercês diante da Central de Policia olhando as janelas o movimento de guardas e secretas que entravam e safam De minuto em minuto um bonde passava fazendo ruídos nos trilhos iluminando ainda mais a rua já bastante iluminada O guarda amigo de DonAninha tinha dito que Ogum estava na sala de detidos jogado sobre um armário em meio a diversos outros objetos apreendidos em batidas várias em casas de ladrões Naquela sala colocavam os que eram presos durante a noite antes de serem ouvidos ou pelo delegado ou pelos comissários de turno e que depois ou eram remetidos para as prisões ou para a rua Ali num canto a princípio dentro de um armário que logo se encheu depois junto ou sobre ele colocavam objetos sem valor apreendidos nas batidas policiais O plano de Pedro Bala era passar a noite ou parte dela na sala de detidos e levar ao sair se conseguisse sair a imagem de Ogum consigo Tinha uma grande vantagem não era conhecido entre a polícia Mesmo só raros guardas o conheciam como moleque das ruas se bem todos os guardas e mesmo alguns investigadores desejassem ardentemente capturar o chefe dos Capitães da Areia Sabiam dele apenas que tinha aquele talho no rosto e Pedro Bala passou a mão no talho Mas o pensavam maior do que era em verdade e também faziam a idéia de que Pedro Bala devia ser mulato e de mais idade Se chegassem a descobrir que ele era o chefe dos Capitães da Areia talvez nem para o reformatório o mandassem Muito provavelmente iria diretamente para a penitenciáriaPorque do reformatório se consegue fugir mas da penitenciária não é fáciL Enfim e Pedro Bala andou até o Campo Grande Mas já não ia com aquele seu passo despreocupado de moleque das ruas da cidade Ia agora gingando como um filho de marítimo o boné puxado por causa da chuva a gola do paletó devia ter sido anteriormente de um homem muito grande levantada O guarda estava debaixo de uma árvore por causa da chuva Pedro veio chegando assim como quem tem medo E quando falou ao guarda sua voz era a de uma criança que estava temerosa da noite tempestuosa da cidade Seu guarda O guarda olhou O que é moleque Eu não sou daqui Eu sou de Mar Grande vim com meu pai hoje O guarda não deixou que ele continuasse E o que tem isso Eu não tenho onde dormir Queria que o senhor deixasse eu dormir na polícia A policia não é hotel malandro Desaperta desaperta e fez sinal para que Pedro se afastasse Pedro tentou novamente puxar conversa mas o guarda o ameaçou com o cassetete Vai dormir num jardim Vai embora Pedro saiu com cara de choro O guarda ficou espiando o menino Pedro parou no ponto de bonde esperou Do primeiro carro não desceu ninguém mas do segundo saltou um casal Pedro se atirou em cima da mulher o homem viu que ele queria abafar a carteira dela segurou Pedro por um braço A coisa fora tão mal feita que se um dos Capitães da Areia passasse ali sem dúvida não reconheceria o seu chefe O guarda que via acena já estava junto a eles Então era assim que você não era daqui Um moleque ladrão Se afastou levando Pedro pelo braço O menino ia com uma cara entre amedrontada e risonha Só fiz isso pro senhor me pegar mesmo Hein Tudo que eu disse é verdade Meu pai é marítimo tem um saveiro em Mar Grande Hoje me deixou aqui não voltou com o temporal Eu não sei onde dormir pedi pra dormir na polícia O senhor não deixou eu fiz que ia roubar a mulher só pro senhor me pegar Agora tenho onde dormir E por muito tempo foi a única resposta do guarda Entraram na Central O guarda atravessou um corredor largou Pedro Bala na sala dos detidos Havia uns cinco ou seis homens O guarda disse troçando Agora você pode dormir filho da mãe E depois que o comissário chegar vamos ver quanto tempo você vai dormir aqui Pedro ficou calado Os outros presos nem ligavam para ele estavam muito interessados em fazer troça com um pederasta que tinha sido preso e se dizia chamar MariazinhaA um canto Pedro Bala viu o armário A imagem de Ogum estava ao lado junto de uma cesta para papéis inúteis Pedro se adiantou para ali tirou o paletó pôs sobre a imagem E enquanto os outros conversavam enrolou Ogum não era grande havia outras imagens muito maiores no seu paletó e deitouse no chão Pôs a cabeça sobre o embrulho e fez que dormia Os presos daquela noite continuavam a rir com o pederasta exceto um velho que tremia num canto Pedro não sabia se de frio ou de medo Mas ouvia a voz de um negro jovem que dizia a Mariazinha Quem tirou teu cabaço Ora me deixe respondeu o pederasta rindo Não Conta Conta disseram os outros Ah Foi Leopoldo Ah O velho continuava a tremer Um malandro de cara chupada pela tísica percebeu o velho no canto Tu por que não vai te enrabar com aquele velhote perguntou a Mariazinha que fez bico Não tá vendo logo que não me passo pra velho Olhe não quero mais conversa não Agora um guarda gozava na porta e o de cara chupada se virou para o velho que se encolheu todo Mas tu bem que gostava se ele lhe desse hoje hein tio Eu sou um velho Eu não fiz nada murmurou o velho mais que falou Não fiz nada minha filha está me esperando Pedro que estava de olhos fechados adivinhou que o velho chorava Mas continuou fingindo que estava dormindo Ogum doía nos ossos da sua cabeça Os presos continuavam a pilheriar com o pederasta e o velho até que chegou outro guarda e falou para o velho Você velhote Vamos Eu não fiz nada falou mais uma vez o velho Minha filha está me esperando se dirigia a todos guardas e presos E tremia tanto que todos tiveram pena e até o malandro de cara chupada baixou a cabeça Só o pederasta sorria O velho não voltou Depois foi o pederasta Demorou muito O de cara chupada explicava que Mariazinha era de boa família Naturalmente estavam telefonando para casa dele pedindo que o viessem buscar para não terem que o prender de novo naquela noite De quando em vez quando tomava cocaína demais dava escândalos na rua e era trazido por um guarda Quando Mariazinha voltou foi só para pegar o chapéu Então viu Pedro Bala deitado e disse Tão novinho este Mas é um amorzinho Pedro cuspiu de olhos fechados Sai xibungo antes que eu te pranche a cara Os outros riram e só então atentaram em Pedro Que é que tu tá fazendo aqui rato de igreja O que não é da tua conta macaqueio respondeu Pedro Bala ao de cara chupada Até o guarda riu e explicou para os outros a história de Pedro Mas o negro jovem foi chamado e eles ficaram silenciosos Sabiam que o negro tinha esfaqueado um homem num breforé nesta noite Quando o preto voltou trazia as mãos inchadas dos bolos Explicou Disse que vou ser processado por ferimentos leves E me dero duas dúzia Não conversou mais procurou um canto se arriou Os outros também ficaram calados E foram indo um por um para o despacho do comissário Uns eram postos em liberdade outros iam para o calabouço outros voltavam apanhados O temporal cessara e a madrugada chegava Pedro foi o último a ser chamado Deixou o paletó onde enrolara Ogum O comissário era um jovem advogado que reluzia um rubi no dedo e um charuto no queixo Quando Pedro entrou com o guarda pedia café em voz alta Pedro ficou diante da escrivaninha parado O guarda disse Esse é o menino do roubo no Campo Grande O comissário fez um sinal com a mão Veja se esse café sai ou não sai O guarda retirouse O comissário leu a parte do guarda que prendera Pedro Bala olhou o menino O que é que você tem a dizer E não venha me mentir não Pedro contou com uma voz amedrontada uma história comprida Que seu pai era saveirista em Mar Grande e naquele dia pela manhã viera com o saveiro e o trouxera Mas voltara em seguida para buscar outra carga e o deixara na cidade passeando porque o saveiro tornaria à Bahia ainda à tardinha e então ele poderia voltar com seu pai Mas com o temporal seu pai não tinha podido voltar e ele que não conhecia ninguém ficou na chuvas em ter onde dormir Perguntou a um homem na rua onde poderia dormir o homem respondera que na polícia Então ele pedira ao guarda que o levasse a dormir na policia o guarda não deixara ele fizera então que ia furtar a mulher só para ser levado para poder dormir sob um teto Tanto que não roubei e nem fugi concluiu O delegado que sorvia o café em golinhos disse de si para si Não é possível que uma criança desta idade inventasse essa história Depois como tinha veleidades literárias murmurou Eis aí um conto formidável e sorriu com bom humor Como é o nome de teu pai perguntou a Pedro Augusto Santos respondeu o menino dando o nome de um saveirista de Mar Grande Se o que você contou for verdade eu vou lhe soltar Mas se você quis me tapear com essa história vai ver Tocou a campainha chamando o guarda Pedro estava com os nervos todos em tensão O guarda chegou o comissário perguntou se na polícia havia um livro de registro de saveiristas de Mar Grande que ancoravam no cais do Mercado Tem sim senhor Vá ver se tem um tal Augusto Santos e volte para me dizer E ande depressa que minha hora está acabando Pedro Bala olhou para o relógio marcava cinco e meia da manhã O guarda demorou uns minutos o comissário não se ocupou mais de Pedro que estava de pé ante sua secretária Só quando o guarda voltou e disse Tem sim senhor Hoje mesmo teve no cais mas voltou logo o comissário fez um gesto com a mão e falou para o guarda Ponha esse moleque em liberdade Pedro pediu para ir buscar seu paletó Acomodou debaixo do braço nem parecia trazer a imagem envolvida nele Atravessaram o corredor novamente o guarda o deixo una porta Pedro tomou para o largo dos Aflitos rodeou o velho quartel desabou pela Gamboa de Cima Agora ia correndo mas ouviu passos atrás de si Parecia que o perseguiam Olhou Professor João Grande e o Gato vinham atrás dele Esperou que eles chegassem e perguntou curioso Que é que vocês tava fazendo por estas bandas O Professor coçou a cabeça Não vê que a gente saiu agora cedo E velo vindo por aqui andando sem que fazer foi quando topou com tu que vinha desabalado Pedro abriu o paletó mostrou a imagem de Ogum João Grande riu com satisfação Como foi que tu tapeou eles Foram descendo a ladeira escorregadia da chuva E Pedro Bala ia narrando as aventuras da noite O Gato perguntou Tu não teve nem um pingo de medo Primeiro Pedro Bala pensou em dizer que não depois confessou Pra falar verdade tive um cagaço da desgraça E riu da cara gozada que João Grande fazia O céu agora estava azul sem nuvens o sol brilhava e da ladeira eles viam os saveiros que partiam do cais do Mercado Deus sorri como um negrinho O menino era tentação por demais grande Nem parecia um meiodia de inverno O sol deixava cair sobre ruas uma claridade macia que não queimava mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher No jardim próximo as flores desabrochavam em cores Margaridas e onzehoras rosas e cravos dália e violetas Parecia haver na rua um perfume bom muito sutil mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagálo Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete A criada que lhe trouxera o prato cheio dissera mirando as ruas o sol de inverno os homens que passavam sem capa Tá fazendo um dia lindo Essas palavras foram com Pirulito pela rua Um dia lindo e o menino ia despreocupado assoviando um samba que lhe ensinara o QueridodeDeus recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para 1he conseguir um lugar n o seminário Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus Pirulito mirou o céu azul onde Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia Eles furtavam brigavam nas ruas xingavam nomes derrubavam negrinhas no areal por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias Mas no entanto eram bons uns eram amigos dos outros Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa nem pai nem mãe a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome porque eram raras as casas que davam de comer a um de vestir a outro E nem toda a cidade poderia dar a todos Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno Pedro Bala não acreditava no inferno Professor tampouco riam dele João Grande acreditava era em Xangô em Omolu nos deuses dos negros que vieram da África O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturavaos com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição que era coisa errada mas que a culpa não era deles Pirulito se entristeceu na beleza do dia Estariam todos condenados ao inferno O inferno era um lugar de fogo eterno era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava E no inferno havia martírios desconhecidos mesmo na polícia mesmo no reformatório de menores Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade Nos bancos homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto ao manejo do punhal e da navalha Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade a suprema justiça E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentosSua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado de furtos quase diários de mentiras nas portas das casas ricasPor isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom mas não tão justo também pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia Mesmo porque eles não tinham culpa A culpa era da vida O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para remediar a vida deles pois sabia que era a única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa Porém uma tarde em que estava o padre e estava o João de Adão o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal organizada era dos ricosQue enquanto tudo não mudasse os meninos não poderiam ser homens de bem E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque ricos não deixariamO padre José Pedro naquele dia tinha ficado muito triste e quando Pirulito o foi consolar explicando que ele não ligasse ao que João de Adão dizia o padre respondeu balançando a cabeça magra Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão que isso tudo está errado Mas Deus é bom e saberá dar o remédio Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudálos E como não encontrava meios e sim uma barreira na sua frente todos queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminosos ou como crianças iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família ficava como que desesperado por vezes ficava atarantadoMas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando meninos conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para extermina pederastia no grupo E isto foi uma das suas grandes experiências sentido de como agir para tratar com os Capitães da Areia Enquanto ele lhes disse que era necessário acabar pecado uma coisa imoral e feia os meninos riram nas suas costa e continuaram a dormir com os mais novos e bonitos Mas no dia e que o padre desta vez ajudado pelo QueridodeDeus afirmou que aquilo era coisa indigna num homem fazia um homem igual a uma mulher pior que uma mulher Pedro Bala tomou medidas violentas expulsou os passivos do grupo E por mais que o padre fizesse não quis mais ali Se eles voltar a safadeza volta padre Por assim dizer Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas Mas ia tenteando e por vezes sorna satisfeito dos resultados A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo Lá em cima na cidade alta os homens ricos e as mulheres queriam que os Capitães da Areia fossem para as prisões para o reformatório que era pior que as prisões Lá embaixo nas docas João de Adão queria acabar com os ricos fazer tudo igual dar escola aos meninos O padre queria dar casa escola carinho e conforto aos meninos sem a revolução sem acabar com os ricos Mas de todos os lados era uma barreira Ficava como perdido e pedia a Deus que o inspirasse E com certo pavor via que quando pensava no problema dava sem sequer o sentir razão ao doqueiro João de Adão Então era possuído de temor porque não fora assim que lhe haviam ensinado e rezava horas seguidas para que Deus o iluminasse Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho sem tremer até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus do céu de Cristo da bondade e da piedade Pirulito começou a mudar Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro E se voltou de todo para Deus ouvia a voz de Deus rezava ante os quadros que o padre lhe dera No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche Ele espancou um dos menores os outros se calaram No outro dia o padre disse que ele fizera mal que era preciso sofrer por Deus e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino a que espancara E não espancara mais nenhum evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham não tinham mesmo outro Pirulito sentia o chamado de Deus que era intenso e queria sofrer por Deus Ajoelhava horas e horas no trapiche dormia no chão nu rezava mesmo quando o sono o queria derrubar fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais Mas então amava Deuspurabondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na terra Depois veio aquela revelação de Deus justiça para Pirulito ficou Deusvingança e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus Suas orações foram mais longas o terror do inferno se misturava à beleza de Deus Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus viver só para a sua contemplação viver só para EleA bondade de Deus fazia com que ele esperasse conseguílo O temor de Deus vingandose dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meiodia cheia de beleza O sol é brando e claro as flores desabrocham no jardim vem uma calma e uma paz de todos os lados Mas mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino que está na prateleira daquela loja de uma só porta Na vitrina quadros de santos livros de orações em encadernações luxuosas terços de ouro relicários de prata Mas dentro bem na ponta da prateleira que chega até a porta a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus Deus criança e nu pobre como Pirulito O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino mostrálo aos homens gordos e ricos Por isso a imagem está ali e não se vende O Menino nas imagens é sempre gordo um ar de menino rico um Deus Rico Ali é um Deus Pobre um menino pobre mesmo igual a Pirulito ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente igual a um de colo de poucos meses de idade que fico abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque quando levava nos braços e que João Grande trouxe para o trapiche onde ficou até o fim da tarde os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do Grande afobados para arranjar leite e água para o bebê quando a mãedesanto DonAninha viera e o levara consigo recostado ao seu seio Só que aquele era um menino negro e o Menino branco No mais a parecença é absoluta Até uma cara de choro tem o Menino magro e pobre nos braços da Virgem E esta o oferece Pirulito aos carinhos de Pirulito ao amor de Pirulito Lá fora o dia é lindo o sol é brando as flores desabrocham Só o Menino tem for e frio neste dia Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia Rezará para ele cuidará dele o alimentará com seu amor Não vêem que ao contrário de todas as imagens ele não está preso nos braços da Virgem está solto nas suas mãos ela o está oferecendo carinho de Pirulito Ele dá um passo Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses pintando os lábios com uma nova marca de batom É facílimo levar o Menino Pirulito estende o pé noutro passo mas o temor de Deus o assalta E fica parado pensando Ele tinha jurado a Deus no seu temor que só furtaria para comer ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo um assalto para o qual fosse indicado por Pedro Bala Porque ele pensava que trair as leis nunca tinham sido escritas mas existiam na consciência de cada um deles dos Capitães da Areia era um pecado também E agora ia furtar só para ter o Menino consigo alimentálo com seu carinho Era um pecado não era para comer para matar o frio nem para cumprir as leis do grupo Deus era justo e o castigaria lhe daria o fogo do inferno Suas carnes arderiam suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava O Menino era do dono da loja Mas o dono da loja rinha tantos Meninos e todos gordos e rosados não iria sentir falta de um só e de um magro e friorento Os outros estavam como ventre envolto em panos caros sempre panos azuis mas de rica fazenda Este estava totalmente nu tinha frio no ventre era magro nem do escultor tivera carinhoE a Virgem o oferecia a Pirulito o Menino estava solto nos braços dela O dono da loja tinha tantos Meninos tantos Que falta lhe faria este Talvez nem se importasse talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender que estava solto nos braços da Virgem diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas Este não Ele é tão feio Deus me perdoe E ainda por cima solto dos braços de Nossa Senhora Cai no chão e pronto Esse não E o Menino ia ficando A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam mas ninguém o queria As beatas não queriam leválo para seus oratórios onde havia Meninos calçados de sandálias de ouro com coroa de ouro na cabeça Só Pirulito viu que o Menino tinha fome e sede tinha frio também e quis leválo Mas Pirulito não tinha dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas Pirulito podia leválo consigo podia dar ao Menino que comer que beber que vestir tudo tirado do seu amor a Deus Mas se o fizesse Deus o castigaria o fogo do inferno comeria durante uma vida que nunca acabava suas mãos que levassem o Menino sua cabeça que pensava em levar o Menino Então Pirulito lembrouse que só o pensar já era pecado Que se pecava só de pensar em cometer o pecado O frade alemão dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sabia porque estava pecando com o pensamento Pirulito estava pecando sentiu que estava pecando teve medo de Deus e deitou a correr para não continuar a pecar Mas não correu muito ficou na esquina pôde se afastar para longe da imagem Olhou outras vitrines assim não pecava Meteu as mãos no bolso prendia as mãos desviou pensamento Mas agora os homens que volviam ao trabalha após o almoço passavam na sua frente e um pensamento o assaltou dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam e então seria impossível levar o Menino Seria impossível E Pirulito voltou a frente da loja de objetos religiosos Lá estava o Menino e a Virgem o oferecia a Pirulito Um relógio deu a primeira hora da tarde Não tardariam a voltar os outros empregados Quantos seriam Mesmo que fosse somente um a loja era tão pequena que ficaria impossível levar o Menino Parece que é a Virgem que está lhe dizendo isso Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino agora não o poderá levar mais parece que está mesmo dizendo isso E com certeza foi ela sim foi ela quem com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha Sim foi a Virgem que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz Leve e cuide deleCuide bem Pirulito avança Vê o inferno o castigo de Deus suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão recebe o Menino que a Virgem lhe entrega o encosta ao peito e desaparece na rua Não olha o Menino Mas sente que agora encostado ao seu peito o Menino sorri não tem mais fome nem sede nem frio Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito Assim sorri o Menino Família Foi BoaVida que contou a Pedro Bala que naquela casa da Graça tinha coisa de ouro de fazer medo O dono da casa pelo jeito parecia colecionador o BoaVida tinha ouvido um malandro dizer que na casa havia uma sala entupida de objetos de ouro e prata que no emprego haviam de dar uma fortuna À tarde Pedro Bala foi como BoaVida ver a casa Era um prédio moderno e elegante jardim na frente garagem ao fundo espaçosa residência de gente rica O BoaVida cuspiu por entre os dentes desenhando uma flor no passeio com o cuspe e disse E dizer que nesse mundo só mora dois velhos hein Toca batuta comentou Pedro Bala Uma empregada abriu a porta da frente saiu para o jardim No hall que ficou à vista eles perceberam quadros pela parede estatuetas sobre as mesas Pedro Bala riu Se o Professor visse isso ficava doidinho Nunca vi tanto pegadio com livro e pintura Ele vai fazer uma pintura como eu deste tamanho e BoaVida mostrava o tamanho separando as mãos uma da outra Pedro Bala olhou mais uma vez a casa se acercou um pouco do jardim assoviando A empregada colhia flores e os seios alvos apareciam sob o decote pois ela estava curvada Pedro Bala espiou Eram seios alvos terminando em bicos vermelhos BoaVida suspirou ao seu lado Que montanha Bala Cala a boca Mas a empregada já os vira e os olhava como a perguntar o que desejavam Pedro Bala sacou o boné e pediu Podia dar uma caneca de água à gente por favor O sol encalistrando e sorria limpando com o boné a testa onde o suor corria Estava muito vermelho sob o sol seus cabelos loiros crescidos desabando sobre as orelhas em ondas maltratadas e a empregada mirou com simpatia Ao lado BoaVida fumava uma ponta de charuto com um pé em cima da gradezinha do jardim A criada primeiro falou para BoaVida com desprezo Tira esta pata daí de cima Depois sorriu para Pedro Bala Trago a água já Voltou com dois copos dágua e eram copos como eles nunca tinham visto de tão bonitos Beberam a água Pedro Bala agradeceu Muito obrigado e baixinho lindeza A empregada falou também baixinho Frangote atrevido Que hora tu sai daqui Te repara Tenho meu homem Ele me espera às nove horas da noite naquela esquina Pois hoje tou na outra Saíram pela rua BoaVida fumando sua ponta de charuto abanando o rosto com o chapéucoco que usava Pedro Bala com comentou Eu sou é mesmo simpático Aquela tá no papo BoaVida cuspiu novamente entre os dentes Também com essa cabeleira de mulher toda cheia de cachos Pedro Bala nu mostrou o punho fechado ao BoaVida Deixa de inveja mulato pachola BoaVida desviou a conversa souber onde fica os troço melhor a gente vem uns cinco ou seis tira o ourame E tu perde a comida A criada Como hoje mesmo Nove horas tou firme aí Voltouse Olhou a casa A criada se debruçava na grade Pedro Bala deu adeus Ela respondeu BoaVida cuspiu Ó peste de sorte nunca vi No outro dia por volta de onze e meia da manhã o SemPernas apareceu em frente à casa Quando ele tocou a campainha a empregada com certeza ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no seu quarto no Garcia porque não ouviu o tilintar O menino tocou de novo e na janela de um quarto do primeiro andar assomou a cabeça grisalha de uma senhora que mirou com os olhos apertados ao SemPernas Que é meu filho Dona eu sou um pobre órfão A senhora fez com a mão sinal que ele esperasse e dentro de poucos minutos estava no portão sem ouvir sequer as desculpas da empregada por não ter atendido à porta Pode dizer meu filho olhava os farrapos do SemPernas Dona eu não tenho pai faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu mostrava um laço preto no braço laço que tinha sido feito com a fita do chapéu novo do Gato que se danara Não tenho ninguém no mundo sou aleijado não posso trabalhar muito faz dois dias que não vejo de comer e não tenho onde dormir Parecia que ia chorar A senhora olhava muito impressionada Você é aleijado meu filho O SemPernas mostrou a perna capenga andou na frente da senhora forçando o defeito Ela o fitava com compaixão De que morreu sua mãe Mesmo não sei Deu uma coisa esquisita na pobre uma febre de mau agouro ela bateu a caçoleta em cinco dias E me deixou só no mundo Se eu ainda agüentasse o repuxo do trabalho ia me arranja Mas com esse aleijão só mesmo numa casa de família A senhora não tá precisando de um menino pra fazer compra ajudar no trabalho da casa Se tá dona E como o SemPernas pensasse que ela ainda estava indecisa completou com cinismo uma voz de choro Se eu quisesse me metia aí com esses meninos ladrão Com os tal de Capitães da Areia Mas eu não sou disso quero é trabalharSó que não agüento um trabalho pesado Sou um pobre órfão tou com fome Mas a senhora não estava indecisa Estava era se lembrando seu filho que tinha morrido com a idade daquele e que ao morrer matara toda a sua alegria e a do maridoEste ainda tinha as suas coleções de obras de arte mas ela tinha apenas a recordação daquele filho que a deixara tão cedo Por isso olha o SemPernas esfarrapado com um grande carinho e ao lhe falar sua voz tem uma doçura diferente da de sempre Há como que um pouco de alegria na doçura da sua voz e isso espanta a criada Entre meu filho Deixe estar que vou arranjar um trabalho para você pôs a mão fina e aristocrática onde brilhava solitário na cabeça suja do SemPernas e falou para a criada Maria José prepare o quarto de cima da garagem para este menino Mostre o banheiro a ele dê um roupão de Raul depois dê comida a ele Antes de botar o almoço dona Ester Antes sim Faz dois dias que ele não come pobrezinho O SemPernas nada dizia apenas secava com as costas da mão lagrimas fingidas Não chore falou a senhora e acariciou o rosto da criança A senhora é tão boa Deus lhe paga Depois perguntou como ele se chamava e o SemPernas deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça Augusto e como repetia o nome para si mesmo para não se esquecer que se chamava Augusto não viu no primeiro momento a emoção da senhora que murmurava Augusto o mesmo nome Disse em voz alta porque agora o SemPernas olhava seu rosto emocionado Meu filho também se chamava Augusto Morreu quando tinha assim o seu tamanho Mas entre meu filho vá se lavar para comer Dona Ester o acompanhou comovida Viu que a empregada mostrava o banheiro ao SemPernas davalhe um roupão e se dirigia pata o quarto em cima da garagem para arrumálo o chofer tinha se despedido o quarto estava vazio Dona Ester se aproximou disse ao SemPernas que parara na porta do banheiro Pode jogar essas roupas fora Maria José depois vai lhe trazer roupa O SemPernas agora olhava a senhora que desaparecia e tinha raiva mas não sabia se era dela ou de si mesmo Dona Ester sentouse em frente ao seu penteador ficou com os olhos parados quem a visse pensaria que ela olhava o céu através da janela Porém em verdade ela nada olhava nada via Olhava sim para dentro de si para as suas recordações de muitos anos e via um menino da idade do SemPernas vestido com uma roupa de marinheiro correndo no jardim da outra casa da qual se mudaram depois que ele morreu Era um menino cheio de vida e de alegria gostava de rir e de saltar Quando se cansava de correr com o gato de montar na gangorra do jardim de jogar a bola de borracha no quintal para o cão lobo a apanhar vinha e passava os braços em torno ao colo de dona Ester a beijava no rosto e ficava com ela vendo livros de figuras aprendendo a ler e a desenhar as letras Para têlo junto a si o maior tempo possível dona Ester e o marido resolveram ensinar ao filho as primeiras letras mesmo em casa Um dia e os olhos de dona Ester se enchem de lágrimas veio a febre Depois o pequeno caixão saiu pela porta e ela o olhava de olhos espantados não podia compreender seu filho houvesse morridoO retrato dele ampliado num quadro no seu quarto mas uma cortina o cobre sempre porque ela não gosta de rever a face do filho para não renovar sua angústia Também roupas que ele usou estão todas trancadas na sua pequena mala jamais buliram nela Mas agora dona Ester tira as chaves da sua caixa de jóias E lentamente muito lentamente se dirige para onde está a mala Puxa uma cadeira na qual senta Abre com mãos trêmulas a maleta Mira as calças e blusas a roupa de marinheiro os pequenos pijamas e camisolas com que ele dormia Aperta a roupa de marinheiro ao peito como se abraçasse seu filho As lágrimas rebentam Agora um menino pobre e órfão viera bater à sua porta Depois da morte de seu filho ela não quisera ter outro não gostava mesmo de ver e brincar com crianças para não avivar a dor das suas recordações Mas um pobre e órfão aleijado e triste que se dissera chamar Augusto como seu filho batera em sua porta pedindo pão pousada e carinho Por isso ela tem coragem de abrir a mala onde guarda roupas que seu filho usou Por isso tira esta roupa azul de marinheiro a roupa da qual ele mais gostava Porque para dona Ester seu filho voltou hoje na figura desta criança andrajosa e aleijada sem pai sem mãe Seu filho voltou e suas lágrimas não são apenas de dor Voltou seu filho macilento e esfomeado com uma perna aleijada e vestido de farrapos Mas em breve será novamente o Augusto alegre e feliz daqueles anos passados e novamente virá e passará os braços em torno ao seu pescoço e lerá as grandes letras da cartilha Dona Ester se levanta Leva consigo a roupa azul de marinheiro E é vestido com ela que o SemPernas come o melhor almoço da sua vida Se a roupa de marinheiro tivesse sido feita de propósito para ele não estaria tão bem Estava perfeita no SemPernas e quando ele se olhou no espelho da sala quase não se reconheceu Estava lavado a empregada tinha posto brilhantina no seu cabelo e perfume no seu rosto A roupa de marinheiro era um a beleza O SemPernas se mirava no espelho Passou a mão na cabeça depois no peito alisando a roupa sorriu pensando no Gato Daria muito para que o Gato o visse tão eleganteTinha também sapatos novos mas a verdade é que os sapatos o desgostavam um pouco porque tinham um laço de fita pareciam um pouco sapatos de mulher O SemPernas achava esquisito estar vestido de marinheiro com sapatos de mulher Andou para o jardim pois queria fumar nunca tinha deixado de tragar o seu cigarro após o almoço Por vezes não havia almoço mas havia sempre uma ponta de cigarro ou de charuto Ali era preciso cuidado não podia fumar abertamente Se o houvessem deixado na cozinha de mistura com a criadagem como o deixavam nas outras casas onde penetrara para depois roubar poderia fumar conversar na língua de poucos termos dos Capitães da Areia Mas desta vez o tinham lavado vestido de novo posto brilhantina no seu cabelo e perfume no rosto Depois tinham lhe dado comida na sala de jantar E durante o almoço a senhora conversara com ele como se ele fosse um menino bem criado Agora mandara que ele brincasse no jardim onde o gato amarelo que se chamava Berloque esquentava ao sol O SemPernas chega para um banco tira do bolso o maço de cigarros baratos Quando mudara a roupa não se esquecera dos cigarros Acende um e começa a saborear as tragadas pensando na sua nova vida Muitas vezes já fizera aquilo penetrar em casa de uma família como um menino pobre órfão e aleijado e neste título passar os dias necessários para fazer um reconhecimento completo da casa dos lugares onde guardávamos objetos de valor das saídas fáceis para uma fuga Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite levavam os objetos valiosos e no trapiche o SemPernas gozava invadido por uma grande alegria alegria da vingança Porque naquelas casas se o acolhiam se lhe davam comida e dormida era como cumprindo uma obrigação fastidiosa Os donos da casa evitavam se aproximar dele e o deixavam na sua sujeira nunca tinham uma palavra boa para ele Olhavamno sempre como a perguntar quando ele iria E muitas vezes a senhora que se comovera com a sua história contada na porta em voz soluçante e o acolhera mostrava evidentes sinais de arrependimento Para o SemPernas elas o acolhiam de remorso Porque o SemPernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres E odiava a todos com um ódio profundo Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras criar esfomeadas onde estavam os objetos de valor Mas desta vez estava sendo diferente Desta vez não o deixa na cozinha com seus molambos não o puseram a dormir no quintal Deramlhe roupa um quarto comida na sala de jantar Era como hóspede era como um hóspede querido E fumando o seu cigarro escondido o SemPernas pergunta a si mesmo por que está se escondendo para fumar o SemPernas pensa sem compreender Não compreende nada do que se passa Sua cata está franzida Lembra os dias da cadeia a surra que lhe deram os sonhos que nunca deixaram de perseguilo E de súbito tem medo de que nesta casa sejam bons para ele Sim um grande medo de que sejam bons para ele Não sabe mesmo porque mas tem medo E levanta se sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora Assim verão que é um menino perdido que não merece um quarto roupa nova comida na sala de jantar Assim o mandarão para a cozinha ele poderá 1evar para diante sua obra de vingança conservar o ódio no seu coração Porque se esse ódio desaparecer ele morrerá não terá nenhum motivo para viver E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem Pernas e ri numa gargalhada brutal Isso há de impedir sempre o SemPernas de ver o rosto bondoso de dona Ester o gesto protetor das mãos do padre José Pedro a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão Será sozinho e seu ódio alcança a todos brancos e negros homens e mulheres ricos e pobres Por isso teme que sejam bons para cons Pela tarde o dono da casa Raul chegou do seu escritório Era advogado de muito nome enriquecera na profissão era catedrático na Faculdade de Direito mas antes de tudo era um colecionador Tinha uma boa galeria de quadros e tinha moedas antigas obras raras de arte O SemPernas viu quando ele entrou Neste momento o SemPernas via as gravuras de um livro para crianças e ria sozinho do elefante tolo a quem o macaco enganava Raul não o viu subiu as escadas Mas depois a empregada veio chamar o SemPernas e o levou ao quarto de dona Ester Raul ali estava de manga a de camisa fumando um cigarro e olhou o menino com um sorriso divertido já que o SemPernas mostrava uma cara muito atrapalhada na entrada do quarto Passe O SemPernas entrou capengando não tinha onde botar as mãos Dona Ester falou com bondade Sente meu filho não tenha medo não O SemPernas sentouse na ponta de uma cadeira e ficou esperando O advogado o estudava mirando seu rosto mas era com simpatia e o SemPernas preparava as respostas para as inevitáveis perguntas Contou novamente a história inventada pela manhã mas quando começou a chorar abundantes lágrimas o advogado mandou que ele parasse e se levantou dirigindose à janela O SemPernas compreendeu que ele estava comovido e este resultado da sua arte o fez ficar orgulhoso Sorriu só para si Mas agora o advogado se aproximava de dona Ester e a beijava na testa e depois nos lábios O SemPernas baixou os olhos Raul andou até ele botou a mão no seu ombro e falou Deixe estar que agora você não passa mais fome Vá Vá brincar vá ver os livros À noite nós vamos ao cinema Você gosta de cinema Gosto sim senhor O advogado o despedia com um gesto O SemPernas saiu mas ainda viu Raul se aproximar de dona Ester e dizer És uma santa Vamos fazer dele um homem Era a hora do crepúsculo as luzes se acendiam e o SemPernas pensou que nesta hora os Capitães da Areia percorriam a cidade procurando o que comer Pena que no cinema não pudesse gritar quando o mocinho surrava o vilão como fazia nas vezes que conseguira penetrar no galinheiro do Olímpia ou do cinema de Itapagipe Ali no Guarani luxuoso e de cômodas cadeiras tinha que ouvir o filme em silêncio e num momento que não se conteve e soltou um assovio Raul o olhou É verdade que sorria mas também é certo que fez um gesto para que SemPernas não assoviasse mais Depois o levaram a tomar sorvete no bar que havia em frente ao cinema O Sem Pernas enquanto tomava seu gelado pensava em que ia cometendo uma irremediável tolice quando o advogado perguntara o que ele queria Estivera para pedir uma cerveja bem geladinha Mas se contivera em tempo e pedira o sorvete No automóvel o advogado foi na frente guiando e o SemPernas foi atrás com dona Ester que conversava com ele A conversa era difícil para o SemPernas que tinha que controlar sua terminologia que era escassa e repleta de palavrões Dona Ester perguntava coisas de sua mãe o SemPernas respondia como podia fazendo grande esforço para reter os detalhes que inventava para posteriormente cair em contradição Por fim chegaram na casa da Graça e dona Ester conduziu o SemPernas para o quarto em cima da garagem Não tem medo de dormir aí sozinho Não senhora Isso é por poucos dias Depois lhe porei lá em cima no quarto que foi de Augusto Não precisa dona Ester aqui tá muito bom Ela se acercou dele e o beijou na face Boa noite meu filho Saiu cerrando a porta O SemPernas ficou parado sem um gesto sem responder sequer o boa noite a mão no rosto no lugar em que dona Ester o beijara Não pensava não via nada Só a suave carícia do beijo uma carícia como nunca tivera uma carícia de mãe Só a suave carícia no seu rosto Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem Pernas Depois foi o horror dos sonhos da cadeia o homem de colete que ria brutalmente os soldados que surravam o SemPernas que corria com a perna aleijada em voltada saleta Mas de repente chegou dona Ester e o homem de colete e os soldados morreram entre infinitas torturas porque agora o SemPernas estava vestido com uma roupa de marinheiro e tinha um chicote na mão como o mocinho do cinema Oito dias se passaram Pedro Bala por várias vezes já andara em frente da casa para saber notícias do SemPernas que tardava a voltar ao trapiche Já havia tempo mais que suficiente para que o SemPernas soubesse onde se quedavam todos os objetos facilmente transportáveis da casa e as saídas que podiam auxiliar a fuga Mas em vez de ver o SemPernas Pedro Bala via era a empregada que pensava que ele vinha por ela Certo dia em que conversava com a empregada Pedro Bala tocou com muito jeito no assunto do SemPernas A moça daí tem um filho não tem É um menino que ela tá criando Muito bonzinho Pedro Bala sorriu porque sabia que o SemPernas quando queria se fazia passar pelo melhor menino do mundo A empregada continuou É um pouco mais moço que você mas é mesmo um menino Não é assim um perdido como você que até já dorme com mulher e ria para Pedro Bala Foi tu que tirou meu cabaço Não diga coisa feia Demais é mesmo mentira Juro Ela gostaria que fosse e se bem desconfiasse muito que não gostava que ele lhe dissesse aquilo Se sentia não só como amante do menino mas um pouco como mãe também Vem hoje que eu te ensino um modo gostoso De noite na esquina Mas diz um troço tu não trepa com esse menino daqui Esse nem sabe que é isso É um tolinho Menino mimado Tu tá feito bobo Não vê que eu não me passo De outra vez Pedro Bala conseguiu ver o SemPernas Este estava estirado no jardim o gato roncava ao seu lado espiando um livro de figuras e Pedro Bala ficou espantadíssimo quando o viu vestido com uma calça de casimira cinza e uma blusa de seda Até o cabelo do SemPernas estava penteado e Pedro Bala quedou um momento boquiaberto sem sequer assoviar para o SemPernas Afinal voltou a si e assoviou O SemPernas se pôs logo de pé viu o Bala do outro lado da rua Fez um sinal para que ele o esperasse saiu pelo portão após ver que ninguém da casa estava próximo Pedro Bala andava para a esquina e SemPernas o acompanhou Quando chegou perto ainda mais se espantou Pedro Bala Peste Tu tá até cheirando SemPernas O SemPernas fez uma cara de aborrecimento mas Bala continuou Tu tá dez vez mais elegante que o Gato Puxa Se tu aparecer assim na toca assim tratavam o trapiche os outros vai dar em cima de tu Tu tá mesmo uma tetéia Não chateia Tou vendo as coisas Não demora dou o fora tu pode vim com os outros Desta vez tu tá demorando É que os troço melhor tão trancado mentiu o SemPernas Vê se tu te arranja Depois lembrouse O Gringo andou ruim Quase bate o trinta e sete Andou por pouco Se não fosse DonAninha que deu beberagem a ele que botou ele em pé tu não via mais ele Tá mais magro que um espeto E com essa notícia se despediu dando mais uma vez pressa ao SemPernas O SemPernas voltou a se estender no jardim Mas agora não via as figuras do livro Via era o Gringo O Gringo fora um dos mais perseguidos pelo SemPernas no grupo Filho de árabes falava com uma pronúncia esquisita e isso dava lugar a piadas consecutivas do SemPernas O Gringo não era forte e nunca conseguira ser importante entre os Capitães da Areia se bem Pedro Bala e Professor procurassem dar lugar a isso Gostavam de ter entre eles um estrangeiro ou quase estrangeiro Mas o Gringo se contentava com pequenos furtos evitava os assaltos arriscados e ideava um baú cheio de bugigangas para vender nas ruas às criadas das casas ricas O Sem Pernas o maltratava sem piedade burlando dele do seu falar arrevesado da sua falta de coragem Mas agora deitado sobre a grama macia do jardim rico vestido com boa roupa penteado e com perfume um livro de figuras ao lado o SemPernas pensava no Gringo quase morrendo enquanto ele comia bem e vestia bem Não só o Gringo estivera quase morrendo Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos mal alimentados dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes Enquanto isso o SemPernas dormia em boa cama comia boa comida tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho Se sentiu como um traidor do grupo Era igual àquele doqueiro do qual fala João de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com desprezo Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado para o lado dos ricos furara a greve fora contratar homens de fora para trabalhar nas docas Nunca mais um homem do cais apertou sua mão nunca mais um o tratou como amigo E se para alguém o SemPernas abria exceção no seu ódio que abrangia o mundo todo era para as crianças que formavam os Capitães da Areia Estes eram seus companheiros eram iguais a ele eram as vítimas de todos os demais pensava o SemPernas E agora sentia que os estava abandonando que estava passando para o outro lado Com este pensamento se sobressaltou sentouse Não ele não os trairiaAntes de tudo estava a lei do grupo a lei dos Capitães da Areia Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo E nunca nenhum a havia traído do modo como o SemPernas a ia trair Para virar menino mimado para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles Não não os trairia Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa Mas a comida a roupa o quarto e mais que a comida a roupa e o quarto o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias Tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro Não não trairia Mas aí pensou se não ia trair dona Ester Ela confiara nele Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia só castigava quando havia erro pagava o bem com o bem O SemPernas ia trair essa lei ia pagar o bem com o mal Lembrouse que das outras vezes quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada era uma grande alegria que o invadia Desta vez não tinha alegria nenhuma Seu ódio para todos não desaparecera é verdade Mas abrira uma exceção para a gente daquela casa porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na face O SemPernas luta consigo mesmo Gostaria de continuar naquela vida Mas que adiantaria isso para os Capitães da Areia E ele era um deles nunca poderia deixar de ser um deles porque uma vez os soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria brutalmente E o SemPernas se decidiu Mas olhou com carinho as janelas do quarto de dona Ester e ela que o espiava notou que ele chorava Está chorando meu filho e desapareceu da janela para vir para junto dele Só então o SemPernas viu que estava mesmo chorando limpou as lágrimas mordeu a mão Dona Ester chegava para junto dele Está chorando Augusto Aconteceu alguma coisa Não senhora Não estou chorando não Não minta meu filho Bem que eu vejo O que passou Está se lembrando da sua mãe E o trouxe para junto de si sentouse no banco encostou a cabeça do Sem Pernas no seu seio maternal Não chore por sua mãe Agora você tem outra mãezinha que lhe quer bem e fará tudo para substituir a que você perdeu e ele faria tudo para substituir o filho que ela perdera ouviu o SemPernas dentro de si Dona Ester o beijou na face onde as lágrimas corriam Não chore que sua mãezinha fica triste Então os lábios do SemPernas se descerraram e ele soluçou chorou muito encostado ao peito de sua mãe E enquanto a abraçava e se deixava beijar soluçava porque a ia abandonar e mais que isso a ia roubar E ela talvez nunca soubesse que o SemPernas sentia que ia roubar a si próprio também Como não sabia que o choro dele que os soluços dele eram um pedido de perdão Os acontecimentos se precipitaram porque Raul teve que fazer uma viagem ao Rio de Janeiro a negócios importantes de advocacia E o SemPernas achou que não havia melhor ocasião para o assalto Na tarde em que se foi mirou a casa toda acariciou o gato Berloque conversou com a criada olhou os livros de gravura Depois foi ao quarto de dona Ester disseque ia até o Campo Grande passear Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande em vez de passear a pé O Sem Pernas baixou os olhos mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou Era a primeira vez que a beijava e ela ficou muito alegre Ele disse baixinho arrancando as palavras de dentro de si A senhora é muito boa Eu nunca vou esquecer Saiu e não voltou Essa noite dormiu no seu canto no trapiche Pedro Bala tinha ido com um grupo para a casa Os outros tinham rodeado o SemPernas admirando suas roupas seu cabelo assentado o perfume que evolava do seu corpo Mas o SemPernas meteu o braço em um foi resmungando para seu canto E ali ficou mordendo as unhas sem dormir angustiado até que Pedro Bala voltou com os outros trazendo os resultados do assalto Comunicou ao Sem Pernas que fora a coisa mais canja do mundo que ninguém dera fé na casa que todos tinham continuado dormindo Talvez que nem no dia seguinte descobrissem o roubo E mostrava os objetos de ouro e de prata Amanhã Gonzales dá uma dinheirama por isso O SemPernas fechava os olhos para não ver Depois que todos foram dormir ele se aproximou do Gato Tu quer fazer um negócio comigo Que é Eu dou essa roupa tu me dá a sua O Gato olhou cheio de espanto A sua roupa era a melhor do grupo sem dúvida Mas era roupa velha estava muito longe de valer a boa roupa de casimira que o SemPernas vestia Tá doido pensou o Gato enquanto respondia Se topo Nem se pergunta Trocaram a roupa O SemPernas voltou ao seu canto procurou dormir Na rua vinha doutor Raul com dois guardas Eram os mesmos soldados que o haviam espancado na cadeia O SemPernas corria mas doutor Raul o apontava e os soldados o levavam para a mesma sala A cena era a mesma de sempre os soldados que se divertiam a fazêlo correr com sua perna capengando e o espancavam e o homem de colete que ria Só que na sala estava também dona Ester que o olhava com os olhos tristes e dizia que ele não era mais seu filho era um ladrão E os olhos de dona Ester o faziam sofrer mais que as pancadas dos soldados mais que o riso brutal do homem Acordou molhado de suor fugiu da noite do trapiche a madrugada o encontrou vagando no areaL No outro dia à noite Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua parte no furto Mas o SemPernas o recusou sem dar explicações Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas que o jornal traziaEntão chamou SemPernas SemPernas O SemPernas veio Outros vieram com ele e formaram um círculo Professor disse Isso aqui é com tu SemPernas E leu uma notícia no jornal Ontem desapareceu da casa número da rua Graça um filho dos donos da casa chamado Augusto Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia É coxo de uma perna tem treze anos de idade é muito tímido veste roupa de casimira cinza A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos mas até agora não o encontrouA família gratificará bem quem der noticias do pequeno Augusto e o conduz a sua casa O SemPernas ficou calado Mordia o lábio Professor disse Ainda não descobriram o furto SemPernas fez que sim com a cabeça Quando descobrissem o furto não o procurariam mais como a um filho desaparecido Barandão fez uma cara de riso e gritou Tua família tá te procurando SemPernas Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu Mas não disse mais nada porque o SemPernas já estava em cima dele e levantava o punhal E esfaquearia sem dúvida o negrinho se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele Barandão saiu amedrontado O SemPernas foi indo para o seu canto um olhar de ódio para todos Pedro B ala foi atrás dele botou a mão em seu ombro São capazes de não descobrir nunca o roubo SemPernas Nunca saber de você Não se importe não Quando doutor Raul chegar vão saber E rebentou em soluços que deixaram os Capitães da Areia estupefatos Só Pedro Bala e o Professor compreendiam e este abanava as mãos porque não podia fazer nada Pedro Bala puxava uma conversa comprida sobre um assunto muito diferente Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era como uma queixa Manhã como um quadro Pedro Bala enquanto sobe a ladeira da montanha vai pensando que não existe nada melhor no mundo que andar assim ao azar nas ruas da BahiaAlgumas destas ruas são asfaltadas mas a grande a imensa maioria é calçada de pedras negras Moças se debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se é uma prostituta que o mira de um balcão velhíssimo enfeitado apenas de flores Entram mulheres de negros véus nas igrejas O sol bate nas pedras ou no asfalto do calçamento ilumina os telhados das casas Na sacada de um sobradão flores medram em pobres latas São de diversas cores e o sol lhes dá seu diário alimento de luz Os sinos da igreja da Conceição da Praia chamam as mulheres de véu que passam apressadasNo meio da ladeira um preto e um mulato estão curvados sobre uns dados que o preto acabou de jogar Pedro Bala ao passar cumprimenta o negro Como vai Coruja Branca E tu Bala Como vai essa prosopopéia Mas o mulato já atirou os dados e o negro se volta todo para o jogo Pedro Bala continua seu caminho O Professor vai com ele Sua figura magra se atira para frente como se lhe fosse difícil vencer a ladeira Mas sorri da festa do dia Pedro Bala virase para ele e surpreende seu sorriso A cidade está alegre cheia de sol Os dias da Bahia parecem dias de festa pensa Pedro Bala que se sente invadido também pela alegria Assovia com força bate risonhamente no ombro de Professor E os dois riem e logo a risada se transforma em gargalhada No entanto não têm mais que uns poucos níqueis no bolso vão vestidos de farrapos não sabem o que comerão Mas estão cheios da beleza do dia e da liberdade de andar pelas ruas da cidade E vão rindo sem ter do que Pedro Bala com o braço passado no ombro de Professor De onde estão podem ver o Mercado e o cais dos saveiros e mesmo o velho trapiche onde dormem Pedro Bala se recosta no muro da ladeira e diz a Professor Tu devia fazer uma pintura disto É porreta A fisionomia do Professor se fecha Eu sei que nunca há de ser Que Tem vez que me topo pensando e Professor mira o cais lá embaixo os saveiros parecendo brinquedos os homens miúdos carregando sacos nas costas Continua com a voz áspera como se alguém o tivesse batido Eu penso fazer um dia um bocado de pintura daqui Tu tem jeito Se tu tivesse andado pela escola mas nunca pode ser um troço alegre não Professor parece não ter ouvido a interrupção de Pedro Bala Agora está com os olhos longe e parece ainda mais fraco Por quê Pedro Bala está espantado Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza Tudo alegre Pedro Bala apontou os telhados da cidade baixa Tem mais cores que o arcoíris É mesmo Mas tu espia os homem tá tudo triste Não tou falando dos rico Tu sabe Falo dos outros dos das docas do mercado Tu sabe Tudo com cara de fome eu nem sei dizer É um troço que sinto Pedro Bala não estava mais espantado Por isso João de Adão já fez um bocado de greve nas docas Ele diz que um dia as coisas vira tudo vai ser de viceversa Também já li um livro Um livro de João de Adão Se eu tivesse estado numa escola como tu diz tinha sido bom Eu um dia ia fazer muito quadro bonito Um dia bonito gente alegre andando rindo namorando assim como aquela gente de Nazaré sabe Mas cadê escola Eu quero fazer um desenho alegre sai o dia bonito tudo bonito mas os homens sai triste não sei não Eu queria fazer uma coisa alegre Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu faz Pode até dá mais bonito mais vistoso Que é que tu sabe Que é que eu sei A gente nunca andou em escola Eu tenho vontade de fazer a cara dos homens a figura das ruas mas nunca tive na escola tem um bocado de coisa que eu não sei Fez uma pausa olhou Pedro Bala que o escutava continuou Tu já deu uma espiada na Escola de BelasArtes É um beleza rapaz Um dia andei de penetra me meti numa sala Tava tudo vestido de camisão nem me viram E tavam pintando uma mulher nua Se um dia eu pudesse Pedro Bala ficou pensativo Olhava Professor como que pensando Logo falou com um ar muito sério Tu sabe o preço Que preço De pagar na escola O professor Que história é essa A gente se reunia pagava pra tu Professor riu Tu nem sabe Tem tanta complicação Não pode não deixa de tolice João de Adão disse que um dia a gente pode ter escola Saíram andando Professor parecia ter perdido a alegria do dia Como que ela se afastara para longe dele Então Pedro Bala deulhe um soco de leve Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua Chile mano Sem escola sem nada Nenhum destes bananas da escola faz uma rara como tu Tu tem é jeito Professor riu Pedro Bala riu também E tu faz meu retrato hein Bota o nome embaixo não bota Capitão Pedro Bala macho valente Tomou uma atitude de lutador um braço estirado Professor riu Bala também riu logo o riso se transformou em gargalhada E só pararam de gargalhar para aderira um grupo de desocupados que se reunira em torno a um tocador de violão O homem tocava e cantava uma moda da cidade da Bahia Quando ela disse adeus meu peito em cruz transformou Eles aderiram Pouco depois cantavam junto ao homem E com eles cantavam todos e eram saveiristas malandros doqueiros até uma prostituta cantava O homem do violão estava todo entregue a sua música não via mesmo ninguém Se o homem não se levantasse para ir embora ainda tocando seu violão e cantando eles teriam se esquecido de continuar a caminhada para a cidade altaMas o homem foi embora levando a alegria da sua música O grupo se dispersou um vendedor de jornais passou apregoando os diários da manhã Professor e Pedro Bala continuaram a subir a ladeira Do largo do Teatro subiram para a rua Chile Professor tirou o giz do bolso sentouse no passeio Pedro Bala ficou a seu lado Quando viram vir o casal Professor começou a desenhar Fez um desenho o mais rápido que pôde O casal estava muito perto já Professor agora fazia as caras A moça sorria sem dúvida seriam noivos Mas iam tão entretidos na sua conversa que nem notaram o desenho Foi preciso que Pedro Bala se adiantasse até eles Não pise na cara da moça senhor O homem olhou para Pedro Bala e já ia dizer um desaforo quando a moça viu o desenho do Professor e chamou sua atenção Que bom e batia as mãos como uma menina a quem tivessem dado uma boneca de presente O rapaz espiou e sorriu Voltouse para Pedro Bala Foi você quem desenhou garoto Foi aqui o meu companheiro o pintor Professor Professor dava os últimos retoques no bigode elegantíssimo do homem Depois passou a aperfeiçoar a figura da moça Ela então ficou no jeito de quem estava posandoRiam os dois ela se dependurava no braço do amado O homem puxou a carteira de níqueis atirou uma prata de dois milréis que Pedro Bala apanhou no ar Seguiram O desenho ficou no meio do passeioUmas senhoritas que vinham das compras o viram de longe e uma disse Vamos depressa que aquilo parece que é um anúncio do novo filme de Barrymore Dizem que é um amor E ele é tão forte Pedro Bala e Professor ouviram e abriram na gargalhada E abraçados seguiram juntos na liberdade das ruas Quase junto do palácio do governo pararam novamente Professor ficou de giz na mão esperando que saísse do ponto do bonde um pato Pedro Bala assoviava ao seu lado Breve teriam o dinheiro para um bom almoço e ainda para levar um presente para Clara a amante do QueridodeDeus que fazia anos naquele dia Uma velhota deu dez tostões por seu desenho A velhota era feia e Professor tinha conservado sua feiúra no desenho Pedro Bala notou Se tu tivesse feito ela mais bonita e mocinha ela te dava mais Professor riu Assim passaram a manhã Professor fazendo a cara dos que vinham pela rua Pedro Bala recolhendo as pratas ou os níqueis que jogavam Quase meiodia veio um homem que fumava numa piteira que parecia cara Pedro Bala correu para avisar ao Professor Faz deste que parece que é um pato cheio da nota Professor começou a desenhar a figura magra do homem A piteira longa os cabelos encaracolados que apareciam sob o chapéu O homem trazia também um livro na mão e Professor teve um desejo irresistível de fazer o desenho do homem lendo o livro O homem ia passando Pedro Bala chamou sua atenção Olhe seu retrato senhor O homem tirou a longa piteira da boca perguntou a Bala O que meu filho Pedro Bala apontou o desenho em que o Professor trabalhava O homem aparecia sentado se bem não houvesse cadeira nem nada estava sentado no ar fumando sua piteira e lendo seu livro O cabelo encaracolado voava sob o chapéu O homem examinou o desenho atentamente foi espiálo em diversos ângulos nada dizia Quando o Professor deu o trabalho por concluído ele perguntou Onde você aprendeu desenho meu caro Em lugar nenhum Em lugar nenhum Como É sim senhor E como desenha Me dá vontade pego desenho O homem estava um pouco incrédulo mas sem dúvida recordou outros exemplos no fundo da sua memória Quer dizer que você nunca estudou desenho Nunca não senhor Posso garantir falou Pedro Bala Nós mora junto eu sei Então é uma verdadeira vocação murmurou o homem Voltou ao examinar o desenho Tirou uma longa fumaçada da sua piteira Os dois meninos olhavam para a piteira encantados O homem perguntou ao Professor Por que você me retratou sentado e lendo o livro Professor coçou a cabeça como se fosse uma coisa difícil de responder Pedro Bala quis falar mas nada disse estava atarantado Por fim Professor explicou Pensei que sentava melhor pro senhor coçou de novo a cabeça Não sei mesmo É uma verdadeira vocação murmurou o homem em voz mais baixa assim com o jeito de quem havia feito uma descoberta Pedro Bala esperava o níquel mesmo porque o guarda já os olhava desconfiado da esquina Professor espiava a piteira do homem longa desenhada a fogo uma maravilhaMas o homem continuou Onde você mora Pedro Bala não deu tempo a que Professor respondesse Foi ele quem falou A gente mora na Cidade de Palha O homem meteu a mão no bolso e tirou um cartão Você sabe ler A gente sabe sim senhor respondeu Professor Aí está meu endereço Eu quero que você me procure Talvez possa fazer alguma coisa por você Professor tomou o cartão O guarda se encaminhava para ele Pedro Bala se despediu Até logo doutor O homem ia puxando a carteira de níqueis mas viu o olhar do Professor na sua piteira Jogou o cigarro fora entregou a piteira ao menino Isso é pelo meu retrato Vá a minha casa Mas os dois desabaram pela rua Chile porque o guarda já estava quase junto a eles O homem olhava meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda Lhe roubaram alguma coisa senhor Não Por quê Porque como aqueles malandrins estavam aqui junto ao senhor Eram duas crianças Por sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura São ladrões retrucou o guarda São dos Capitães da Areia Capitães da Areia fez o homem se recordando Já li algo Não são crianças abandonadas Ladronas isso são Tenha cuidado senhor quando eles se aproximarem do senhor Veja se não lhe falta nada O homem fez que não com a cabeça e olhou a rua Mas não havia nem rastro dos dois meninos O homem agradeceu ao guarda afirmando mais uma vez que não tinha sido furtado e desceu a rua murmurando Assim que se perdem os grandes artistas Que pintor não seria O guarda o espiava Depois comentou para os botões da farda Bem dizem que estes poetas são doidos Professor exibia a piteira Estava agora nos fundos de um arranhacéu onde existia um restaurante chique Pedro Bala sabia como conseguir do cozinheiro os restos do menu Esperavam o almoço na rua deserta Depois que comeram Pedro Bala ofereceu cigarros e o Professor se dispôs a fumar na piteira que o homem lhe dera Procurou limpála O bicho era magro como um espeto É capaz de ser tutu Como não achou coisa melhor com que limpar fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira Quando terminou jogou o cartão na rua Pedro Bala perguntou Por que tu não guarda Pra que quero e o Professor riu Pedro Bala riu também e por um momento as suas gargalhadas encheram a rua Riam assim sem motivo pelo prazer de rir Mas Pedro Bala se fez sério O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor apanhou o cartão e leu o nome do homem Tu devia guardar Quem sabe Professor baixou a cabeça Deixa de ser besta Bala Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão Quem é que quer saber da gente Quem Só ladrão só ladrão e sua voz se elevava agora gritava com ódio Pedro Bala fez que sim com a cabeça sua mão soltou o cartão que caiu na sarjeta Agora não riam mais e estavam tristes na alegria da manhã cheia de sol da manhã igual a um quadro de um pintor das BelasArtes Operários passavam para o trabalho após o almoço pobre e era tudo que eles viam que eles conseguiam ver na manhã Alastrim Omolu mandou a bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não sabia destas coisas de vacina E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente botou negro cheio de chaga em cima da cama Então vinham os homens da Saúde Pública metiam os doentes num saco leva para o lazareto distante As mulheres ficavam chorando porque sabiam que eles nunca mais voltariam Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta para a cidade dos ricos Omolu não sabia da vacina Omolu era um deus das florestas da África que podia saber de vacinas e coisas científicas Mas como a bexiga já estava solta e era a terrível bexiga negra Omolu teve que deixar que ela descesse para a cidade dos pobres Já que a soltara tinha que deixar que ela realizasse sua obra Mas como Omolu tinha pena dos seus filhinhos pobres tirou a força da bexiga negra virou em alastrim que é uma bexiga branca e tola quase um sarampo Apesar disto os homens da Saúde Pública vinham e levavam os doentes para o lazareto Ali as famílias não podiam ir visitálos eles não tinham ninguém só a visita do médico Morriam sem ninguém saber e quando um conseguia voltar era mirado como um cadáver que houvesse ressuscitado Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade da vacina Os candomblés batiam noite e dia em honra a Omolu para aplacar a fúria de Omolu O paidesanto Paim do Alto do Abacaxi preferido de Omolu bordou uma toalha branca de seda com lantejoulas para oferecer a Omolu e aplacar sua raiva Mas Omolu não quis Omolu lutava contra a vacina Nas casas pobres as mulheres choravam De medo do alastrim de medo do lazareto Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim Uma noite quando o negrinho Barandão o procurou no seu canto para fazer o amor aquele amor que Pedro Bala proibira no trapiche Almiro lhe disse Tou com uma coceira danada Mostrou os braços já cheios de bolhas a Barandão Parece que também tou queimando de febre Barandão era um negrinho corajoso todo o grupo sabia disto Mas da bexiga da moléstia de Omolu Barandão tinha um medo doido um medo que muitas raças africanas tinham acumulado dentro dele E sem se preocupar que descobrissem suas relações sexuais com Almiro saiu gritando entre os grupos Almiro tá com bexiga Gentes Almiro tá com bexiga Os meninos foram se levantando aos poucos e se afastando receosos do lugar onde estava Almiro Este começou a soluçar Pedro Bala não tinha chegado ainda Professor o Gato e João Grande também andavam por fora Daí ter sido o SemPernas quem domino a situação O SemPernas nestes últimos tempos andava cada vez mais arredio quase não falava com ninguém Fazia espantosas burlas de todo mundo por tudo puxava uma briga só respeitava mesmo Pedro Bala Pirulito rezava por ele mais que por nenhum e por vezes pensava que Satanás tinha se metido no corpo do SemPernas O padre José Pedro era paciente com ele mas também do padre o SemPernas se afastara Não queria saber de ninguém conversa em que ele se metia era conversa que terminava em briga Quando o SemPernas passou entre os grupos todos se afastaram Quase o temiam tanto quanto à bexiga O SemPernas tinha arranjado por aqueles dias um cachorro ao qual se dedicava inteiramente A princípio quando o cão aparecera no trapiche esfomeado SemPernas o maltratou quanto pôde Mas terminou por acarinhálo e tomar para si Agora como que vivia inteiramente para o cachorro E por isso voltou só para levar o cão que o acompanhara para longe de Almiro Depois andou novamente para onde estavam os menino Estes cercavam Almiro de longe Apontavam as bolhas que apareciam no peito do menino Antes de tudo SemPernas falou com sua voz fanhosa para Barandão Agora tu vai ter bexiga na piroca negro burro Barandão o olhou assustado Depois SemPernas falou para todos apontando Almiro com o dedo Ninguém aqui vai ficar bexiguento só por causa deste freso Todos o olhavam esperando o que ele diria Almiro soluçava as mãos no rosto encolhido na parede SemPernas falava Ele vai sair daqui agorinha mesmo Vai se meter em qualquer canto da rua até que os matacachorro da saúde pegue ele e leve pro lazareto Não Não rugiu Almiro Vai sim fez SemPernas A gente não vai chamar os matacachorro aqui pra toda policia saber onde a gente se acoita Tu vai por bem ou por mal e leva teus trapos Vai pro inferno que a gente não vai ficar com bexiga por você Por amor de você xibungo Almiro fazia que não que não e seus soluços enchiam o trapiche 0 negrinho Barandão tremia Pirulito clamava que era castigo de Deus por causa dos pecados deles os outros não sabiam que fazer SemPernas se preparava para forçar sua idéia Pirulito se abraçou com um quadro de Nossa Senhora e disse Vamos rezar todo mundo que isto é um castigo de Deus pros pecados da gente A gente peca muito Deus tá castigando Vamos pedir perdão e sua voz era como um clamor soava anunciando vinganças Alguns juntaram as mãos e Pirulito chegou a iniciar um padrenosso Mas Sem Pernas o afastou com uma das mãos Sai sacrista Pirulito ficou rezando em voz baixa ainda atracado com o santo Parecia um quadro estranho Ao fundo Almiro soluçava e dizia que não Pirulito rezava os outros estavam indecisos não sabiam o que fazer Barandão tremia de medo pensando que estava contagiado SemPernas voltou a falar Gente se ele não quiser sair a gente bota ele pra fora debaixo de porrada Senão tudo vai morrer de bexiga tudo Vocês não vê desgraçados A gente bota ele pra fora até uma rua onde levem ele pro lazareto Não Não fazia Almiro Pelo amor de Deus Isso é castigo fez Pirulito Cala a boca filho de padre o SemPernas continuava Vamos levar ele gente já que ele não quer ir por bem Como via que os outros ainda estavam irresolutos marchou para o lado de Almiro e estendeu o pé para lhe dar uma pancada Assim tu vai embora bexiguento Almiro se encolheu mais Não Tu não pode fazer isso Eu sou um do grupo Espera Bala chegar É castigo É castigo a voz de Pirulito ainda irritou mais o SemPernas que descarregou um pontapé em Almiro Dá o fora bexiguento Dá o fora fresco Mas neste instante uma mão o pegou e o sacudiu longe Volta Seca se plantou entre Almiro e o SemPernas O mulato levava um revólver na mão e os seus olhos fuzilavam Juro que tem bala e que como um que toque em Almiro olhou para todos com sua cara sombria Que é que tu tem que fazer aqui cangaceiro SemPernas queria recuperar o domínio da situação Ele não é um soldado de policia pra gente tratar ele assim É um do grupo ele falou direito Vamos esperar Pedro Bala chegar Ele resolve E se alguém tocar nele eu queimo igual que fosse um macaco da polícia e segurava o revólverOs outros se afastaram aos poucos SemPernas cuspiu Tudo é uns covarde e seguiu para onde o cachorro o esperava Se deitou ao seu lado e os que ficaram mais perto dele a ouviam murmurar covardes covardes Volta Seca ficou diante de Almiro com o revólver na mão Almiro soluçava e mais alto gritava quando olhava as bolhas que se estendiam pelo seu corpo Pirulito rezava pedia a Deus que voltasse a ser suprema bondade não fosse suprema justiça Depois Pirulito se lembrou de chamar o padre José Pedro Escapuliu pela porta do trapiche se dirigiu à casa do padre Mas pelo caminho ainda ia rezando os olhos dilatados cheios do temor de Deus Pedro Bala chegou acompanhado do Professor e de João Grande Voltavam de um negócio que tinham resolvido bem e comentavam o sucesso entre gargalhadas O Gato tinha ido com eles mas não voltara Ficara em casa de Dalva Os três entraram no trapiche e a primeira coisa que enxergaram foi Volta Seca com o revólver na mão Que é isso perguntou Pedro Bala SemPernas se levantou do seu canto o cachorro o acompanhou Este besta metido a cangaceiro não quer deixar que a gente faça o que resolveu e apontava Almiro Aquele fresco tá com a bexiga João Grande se encolheu Pedro Bala olhou Almiro o Professor andou para onde esta Volta Seca O mulato não largava o revólver Pedro perguntou então Como foi Volta Seca Este tá com a maldita mostrou o menino que soluçava E aquele macaco mesmo que um soldado quis botar ele no meio da rua pra assistência levar ele lazareto Eu não tava me metendo Mas ele não quis ir Aí eles todos juntos cuspiu quis dar nele pra obrigar ele ir Foi quando ele falou que era do grupo que eles esperasse que tu chegasse Eu achei que ele falou direito fiquei do lado dele Ele não é um soldado de polícia pra tratar ele assim Tu fez direito Volta Seca Pedro Bala bateu no ombro do mulato Depois olhou Almiro Tu tá mesmo com ela O menino inclinou a cabeça e rebentou em soluços SemPernas gritou Só tem mesmo que fazer o que eu disse Não pode chamar a assistência aqui que todo mundo fica sabendo onde a gente se acoita Só tem mesmo que deixar ele numa rua onde passe gente Vamos fazer tu queira ou não Pedro Bala gritou Quem é o chefe daqui é tu ou eu Tu quer que eu te rebente SemPernas saiu murmurando O cachorro veio lamber seus pés mas ele deulhe um pontapé Logo depois se arrependeu porém e começou a acarinhar o cão enquanto espiava os outros Pedro Bala andou até Almiro João Grande queria vencer o medo e ir para junto de Almiro também Mas o medo da bexiga era uma coisa enorme nele era quase maior que sua bondade Só Professor estava junto de Pedro Bala Este disse a Almiro Almiro mostrou os braços cheios de bolhas Professor disse Deixa eu ver Almiro mostrou os braços cheios de bolhas Professor disse É alastrim Bexiga negra fica logo preta Pedro Bala ficou pensando Ia um silêncio pelo trapiche João Grande conseguiu vencer o medo e se aproximou Mas ia com passo arrastados Parecia violentar sua própria vontade para chegar até junto de Almiro Foi quando entrou Pirulito acompanhado do padre José Pedro O padre deu boas noites e perguntou quem era o doente Pirulito apontou Almiro o padre se dirigiu para ele chegou perto pegou no braço examinou Depois disse a Pedro Bala É preciso levar para a assistência Pro lazareto Sim Não não vai não fez Pedro Bala O SemPernas se levantou outra vez veio para junto deles Tou dizendo isso há muito tempo Tem que ir pro lazareto Não vai repetiu Pedro Bala Por que meu filho perguntou o padre José Pedro Tu sabe padre que ninguém volta do lazareto Ninguém volta E ele é um da gente um do grupo A gente não pode fazer isso Mas é a lei filho Morrer O padre mirou Pedro Bala com os olhos abertos Aquele meninos viviam a lhe dar surpresas sempre mais adiantados em inteligência do que ele pensava E no fundo o padre sabia que eles tinham razão Não vai não padre afirmou Pedro Bala Então que é que você vai fazer meu filho Tratar dele aqui Mas como Chamo DonAninha Mas ela não sabe tratar de ninguém Pedro Bala ficou confuso Passado um momento disse É melhor que morra aqui que no lazareto SemPernas se meteu de novo Vai pegar bexiga em todo mundo se dirigia aos outros Vai pegar em todo mundo A gente não pode deixar Cala a boca desgraçado senão eu te arrombo disse Pedro Mas o padre interveio Ele tem razão Bala Não vai pro lazareto padre O senhor é bom bem sabe que ele não pode ir Lá é uma miséria tudo morre O padre bem sabia que era verdade calou Foi quando João Grande falou Mas ele não tem casa Quem Almiro Tem sim Não quero ir para lá soluçou Almiro Eu tinha fugido Pedro Bala se aproximou dele e falou com voz muito mansa Deixa estar Almiro Primeiro eu vou lá falo com tua mãe Depois a gente leva você Tu lá fica bem não tem que ir pro lazareto E o padre arranja um médico pra cuidar de tu não arranja padre Levo sim prometeu o padre José Pedro Havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos de varíola que conhecessem para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos O padre José Pedro conhecia a lei mas mais uma vez ficou com os Capitães da Areia contra a lei Pedro Bala foi à casa de Almiro a mãe do menino ficou feito louca era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador além da Cidade de Palha Foram buscar Almiro e o padre o visitou e depois levou um médico Mas acontece que o médico estava cavando um lugar na Saúde Pública e denunciou o caso de varíola Almiro foi mesmo levado para o lazareto e o padre ficou em maus lençóis pois o médico que se dizia livrepensador mas em verdade era espírita denunciou o padre também como encobridor do caso As autoridades não agiram contra o padre mas se queixaram ao arcebispado E o padre José Pedro foi chamado à presença do Cônego Secretário do ArcebispadoFicou amedrontado Pesadas cortinas cadeiras de alto espaldar um retrato de Santo Inácio numa parede Na outra um crucifixo Uma grande mesa custosos tapetes O padre José Pedro entrou na sala com o coração batendo muito Não tinha absoluta certeza do motivo por que recebera aquela comunicação do Cônego Secretário do Arcebispado para comparecer ao Palácio Episcopal No primeiro momento lembrouse da paróquia que esperava inutilmente havia dois anos Seria sua paróquia Sorriu com alegria Então sim iria ser um verdadeiro sacerdote iria ter almas entregues a si à sua guia Serviria a Deus Mas certa tristeza o invadiu e suas crianças as crianças abandonadas das ruas da Bahia principalmente os Capitães da Areia como ficariam Ele era um dos seus poucos amigos Nunca um outro padre se voltara para aqueles meninos Se contentavam em ir celebrar de quando em vez uma missa no reformatório o que os tornava mais antipáticos ao meninos porque atrasava o magro café O padre José Pedro enquanto esperava sua paróquia se dedicara aos meninos abandonadosNão podia dizer que os resultados tivessem sido grandes Mas era preciso compreender que ele estava fazendo uma experiência que muita vezes tinha que voltar atrásFazia pouco tempo que o padre captar de todo a confiança dos meninos Estes já o tratavam como amigo mesmo quando não o levavam a sério como sacerdote O padre tiver de passar por cima de muita coisa para conseguir a confiança de Capitães da Areia Mas José Pedro pensava que só Pirulito e a sua vocação pagavam a pena O padre tivera que fazer muita coisa contra o que lhe haviam ensinado Pactuara mesmo com coisa que a Igreja condenaria Mas era o único jeito Aí o padre lembrouseque bem podia ser por causa daquilo que o haviam chamado Devia ter sido por aquilo Muitas beatas já murmuravam por causa das suas relações com as crianças que viviam do furto E havia aquele caso de Almiro Devia ser por aquilo O primeiro sentimento do padre José Pedro quando descobriu o motivo da comunicação foi um grande temor Ia ser castigado com certeza perderia toda esperança de uma paróquia E o padre José Pedro necessitava de uma paróquia Sustentava uma mãe velha uma irmã na Escola Normal Logo depois pensou que muito possivelmente tudo o que fizera fora errado seus superiores não aprovariam E no Seminário lhe tinham ensinado a obedecer Mas pensou nos meninos Na sua memória passaram as figuras de Pirulito Pedro Bala Professor SemPernas BoaVida o Gato Era preciso salvar aqueles pequeninos As crianças eram a maior ambição de Cristo Devia se fazer tudo para salvar aquelas crianças Não era culpa deles se estavam perdidos O Cônego entrou Nos seus pensamentos o padre nem vira que muitos minutos de espera tinham se passado Não viu tampouco quando o Cônego entrou com um passo mansoEra alto e muito magro anguloso com a batina muito limpa os raros cabelos que lhe restavam muito bem penteados Os lábios tinham uma linha dura Um rosário descialhe em torno ao pescoço Se bem sua figura desse uma impressão de pureza essa impressão não fazia seus traços mais doces Não havia nenhuma simpatia humana na sua figura nos seus traços duros Como que a pureza era uma couraça que o afastava do mundo Diziam que era inteligentíssimo grande orador sacro célebre pela rigidez dos seus costumes Ali estava parado diante do padre José Pedro olhando com olhos observadores a figura baixa do padre a sua batina suja e remendada em dois lugares o seu ar de medo a falta de inteligência que de mistura com a bondade se refletia na cara do padre Estudou o padre uns poucos minutos O bastante para penetrar a fundo na alma sem complicações de José Pedro Tossiu O padre o viu levantouse beijou humildemente sua mão Cônego Sentese padre Temos que conversar Olhava com os olhos sem expressão o padre Sentouse cruzou as mãos com grande cuidado afastou sua reluzente batina da batina suja do padre José Pedro Sua voz contrastava com sua pessoa Podiase dizer que era uma voz doce quase feminina se não fosse um acento de decisão que a cada passo surgia nela O padre José Pedro baixou a cabeça e esperou que o Cônego falasse Este começou Este arcebispado tem graves queixas contra o senhor padre Padre José Pedro quis figurar uma cara de quem não entendia Mas a malícia era superior à sua inteligência e naquele momento ele pensava nos Capitães da AreiaO Cônego sorriu ligeiramente Creio que o senhor já sabe do que se trata O padre olhou com uns olhos abertos mas logo baixou cabeça Só se é as crianças O pecador não pode esconder seu pecado ele está visível na sua consciência e a voz do Cônego tinha perdido aquela nota de doçura O padre José Pedro ouviu com pavor Era o que ele temia Os seus superiores aqueles que tinham inteligência para compreender os desejos de Deus não estavam de acordo com os métodos que ele empregara junto aos Capitães da Areia Vinha um temor de dentro dele não propriamente um temor do Cônego do arcebispo mas um temor de ter ofendido a Deus E até suas mãos tremiam ligeiramente A voz do Cônego retomou sua doçura Era como uma voz de mulher doce e suave mas que negava a um homem suas carícias Têmnos chegado bastantes queixas padre José Pedro O arcebispado tem fechado os olhos na esperança de que o senhor conhecesse seu erro e se emendasse Olhou o padre com olhos duros José Pedro baixou a cabeça Não faz muito tempo a viúva Santos queixouse O senhor ajudou uma corja de moleques numa praça a vaiála Melhor incitou os moleques a que a vaiassemQue tem a dizer padre Não é verdade Cônego O senhor quer dizer que a viúva mentiu Fuzilou o padre com os olhos Mas desta vez José Pedro não baixou a cabeça apenas repetiu O que ela disse não é verdade O senhor sabe que a viúva Santos é uma das melhores protetoras da religião na Bahia Não sabe dos donativos Eu posso lhe narrar o fato Não me interrompa No Seminário não lhe ensinaram a ser humilde e respeitoso com seus superiores Se bem o senhor não tivesse sido um aluno dos mais brilhantes O padre José Pedro sabia daquilo Não era preciso que lhe repetissem que fora um dos piores alunos do Seminário em matéria de estudos Por isso mesmo tinha tanto medo de ter errado de ter ofendido a Deus O Cônego devia ter razão era muito mais inteligente estava muito mais próximo de Deus que é a suprema inteligência O Cônego fez um gesto com a mão como quem relegava para longe aquele incidente da viúva e a sua voz se fez doce novamente Porém agora há coisa muito mais grave Por sua causa padre este arcebispado foi procurado pelas autoridades O senhor sabe o que fez Sabe O padre não tentou negar Foi o caso do menino com alastrim Um menino com varíola sim senhor E o senhor escondeu o caso das autoridades sanitárias O padre José Pedro tinha confiança na bondade de Deus Muitas vezes pensara que Deus aprovava o que ele estava fazendo Agora pensava isto também Aquele pensamento tinha enchido seu coração de repente Levantou o busto fixou a vista no Cônego O senhor sabe o que é o leprosário O Cônego não respondeu Pois é raro o homem que volta de lá Quanto mais uma criança Mandar uma criança para lá é cometer um assassinato Isso não é conosco respondeu o Cônego com voz inexpressiva mas cheia de decisão Isto é com a Saúde Pública Mas o nosso papel é respeitar as leis Mesmo quando atentam contra a lei da bondade de Deus Que sabe o senhor da bondade de Deus Que grande inteligência tem para saber dos desígnios de Deus O demônio da vaidade o dominou O padre José Pedro tentou explicar Eu sei que sou um padre ignorante e indigno de servir ao Senhor Mas estas crianças nunca tinham tido ninguém que olhasse por elas Eu tive a intenção A boa intenção não desculpa os maus atos cortou o Cônego com voz muito doce ao enunciar a sentença O padre José Pedro se sentiu novamente em dúvida Mas elevou o pensamento a Deus voltou parte da sua confiança Teriam sido maus Eram uns meninos que nunca tinham ouvido falar seriamente de Deus Misturam Deus com os santos dos negros não têm nenhuma idéia de religiãoEu quis ver se salvava aquelas almas Já lhe disse que suas intenções foram boas mas suas ações não corresponderam às intenções É que o senhor não conhece estes meninos o Cônego lhe deitou um olhar duro São meninos iguais a homens Vivem como homens conhecem a vida toda tudoE preciso tratar com jeito fazer concessões Por isso o senhor faz o que eles querem Às vezes tenho que fazer para conseguir um bom resultado Compactua com os roubos com os crimes destes perversos Que culpa eles têm o padre se lembrava de João de Adão Quem cuida deles Quem os ensina Quem os ajuda Que carinho eles têm estava exaltado e o Cônego se afastou mais dele enquanto o fitava com os olhinhos duros Roubam para comer porque todos estes ricos que têm para botar fora para dar para as igrejas não se lembram que existem crianças com fome Que culpa Calese a voz do Cônego era cheia de autoridade Que o visse falar diria que é um comunista que está falando E não é difícil No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido as teorias deles O senhor é um comunista um inimigo da Igreja O padre o olhou horrorizado O Cônego levantouse estendeu a mão para o padre Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras O senhor tem ofendido a Deus e à Igreja Tem desonrado as vestes sacerdotais que levaViolou as leis da Igreja e do Estado Tem agido como um comunista Por isso nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu Vá agora sua voz voltava a ser doce mas de uma doçura cheia de resolução uma doçura que não admitia réplicas penitenciese dos seus pecados dediquese aos fiéis da igreja em que trabalha e esqueça essas idéias comunistas senão teremos que tomar medidas mais sérias O senhor pensa que Deus aprova o que está fazendo Lembreseque a sua inteligência é muito pequena o senhor não pode penetrar nos desígnios de Deus Virou as costas ao padre e foi saindo O padre José Pedro deu dois passos até ele falou com voz estrangulada Se tem um até que quer ser padre O Cônego voltouse A entrevista está terminada padre José Pedro Pode se retirar e que Deus o ajude a pensar melhor Mas o padre ainda ficou parado uns minutos querendo dizer alguma coisa Mas não dizia nada estava como que apatetado olhando a porta por onde o Cônego tinha saído Naquele momento não podia pensar em nada Estava cômico com a mão ainda estendida o corpo meio caído para um lado a batina suja e remendada os olhos abertos apavorados os lábios tremendo como que querendo falar As pesadas cortinas impediam que a luz entrasse na sala O padre ainda se demorou na obscuridade Um comunista Uma orquestra vagabunda porém afinada tocava uma velha valsa na rua Fiquei sem alegria senhor meu Deus O padre José Pedro ia encostado à parede O Cônego dissera que ele não podia compreender os desígnios de Deus Não tinha inteligência estava falando igual a um comunista Era aquela palavra que mais perseguia o padre De todos os púlpitos todos os padres tinham falado contra aquela palavra E agora ele O Cônego era muito inteligente estava próximo de Deus pela inteligência eralhe fácil ouvir a voz de Deus Ele estava errado perdera aqueles dois anos de tanto trabalhoPensara levar tantas crianças a Deus Crianças extraviadas Será que elas tinham culpa Deixai vir a mim as criancinhas Cristo Era uma figura radiosa e moça Os sacerdotes também disseram que ele era um revolucionário Ele queria as crianças Ai de quem faça mal a uma criança A viúva Santos era uma protetora da Igreja Será que ela também ouvia a voz de Deus Dois anos perdidosFazia concessões sim fazia Senão como tratar com os Capitães da Areia Não eram crianças iguais às outras Sabiam tudo até os segredos do sexo Eram como homens se bem fossem crianças Não era possível tratálos como aos meninos que vão ao colégio dos jesuítas fazer a primeira comunhão Aqueles têm mãe pai irmãs padre s confessores e roupas e comida têm tudo Mas não seria ele quem podia dar lições ao Cônego O Cônego sabia de tudo era muito inteligente Podia ouvira voz de Deus Estava próximo de Deus Não foi dos alunos mais brilhantes Tinha sido dos piores Deus não ia falar a um padre ignorante Ouvia João de Adão Um comunista como João de Adão Mas os comunistas são maus querem acabar tudo João de Adão era um homem bom Um comunista E Cristo Não não podia pensar que Cristo fosse um comunista O Cônego devia entender melhor que um pobre padre de batina suja O Cônego era inteligente e Deus é a suprema inteligência Pirulito queria ser padre Queria ser padre sim a sua vocação era verdadeira Mas pecava todos os dias roubava assaltava Não era culpa deles Está falando como um comunista Por que este vai num automóvel fuma um charuto Falando como um comunista O Cônego disse será que Deus o perdoa O padre José Pedro vai encostado à parede As últimas notas da orquestra distante chegam aos seus ouvidos Os olhos do padre estão esbugalhados Sim padre José Pedro Deus às vezes fala aos mais ignorantes Aos mais ignorantes Ele era ignorante Mas Deus ouvi São uns pobres meninos Que sabem eles do bem e do mal Se ninguém nunca lhes ensinou nada Nunca ua mão de mãe nas suas cabeças Uma palavra boa de um pai Senhor eles não sabem o que fazemPor isso estive com eles fiz como eles queriam muitas vezes O padre aperta as mãos as eleva para o céu Será que um comunista age assim Dar um pouco de conforto àquelas pequenas almas Salválas melhorar seus destinos Antes dali só saíam ladrões batedores de carteira vigaristas os melhores eram os malandros A profissão mais digna Queria que agora saíssem homens para o trabalho honestos dignos Tinha que ir aos poucos Do reformatório saíam piores Não é com castigo brutal Deus ouvi Lá o castigo é brutal Só com paciência com bondade Cristo também pensava assim Por que como um comunista Deus pode falar a um ignorante Abandonar as crianças A paróquia está perdida Mãe velha que soluçará E a carreira da irmã na Escola Normal Também ela quer ensinar a crianças Mas serão outras crianças crianças com livros com pai com mãe Não serão iguais a estas abandonadas na rua dormindo sob a lua nas pontes nos trapiches Não pode abandonálas Com quem estará Deus Com o Cônego ou com o pobre padre A viúva Não Deus está com o padre Está com o padre Sou muito ignorante para ouvir a voz de Deus Se esconde na porta de uma igreja Mas por vezes Deus fala aos ignorantes Sai da porta da igreja continua a caminhada encostado na parede Continuará sim Se estiver errado Deus o perdoará As boas intenções não desculpam os maus atos Mas Deus é a suprema bondade Continuará Os Capitães da Areia talvez não dêem só ladrões E não seria uma grande alegria para Cristo Sim Cristo sorri É uma figura radiosa Sorri o padre José Pedro Obrigado meu Deus obrigado O padre ajoelha na rua levanta as mãos para o céu Mas olha a gente que sorri Se põe de pé espantado salta num bonde cheio de vergonha Um homem comenta Olha um padre bêbado Que descarado Todos riem no ponto de bondes BoaVida meteu a unha negra rasgou a bolha Depois espiou o braço estava cheio Por isso sentia tanto calor um amolecimento no corpo Era a febre da bexigaA cidade pobre estava assolada de bexiga Os médicos diziam que a epidemia já estava declinando mas ainda assim eram muitos os casos todos os dias ia gente para o lazareto Gente que não voltava pensou BoaVida Até Almiro por cuja causa se armara tão grande barulho no trapiche fora para o lazareto E não voltara Era um menino bonito Havia quem dissesse que ele e Barandão Mas não era ruim não aborrecia ninguém Sem Perna armara um escândalo Depois que soubera que ele morrera ficara ainda mais retraído parecia o culpado da morte de Almiro Não conversava com ninguém Só com o cachorro que arranjara Acaba doido pensou BoaVida Acendeu um cigarro Andou para o trapiche Só o Professor estava Àquelas horas da tarde era difícil que estivesse alguém no trapiche Professor viu quando ele entrou Passa um cigarro BoaVida BoaVida jogou um Chegou no seu canto fez uma trouxa com seus trapos Professor ficou espiando aquele movimento Tu vai embora BoaVida andou até ele com a trouxa debaixo do braço Tu não diz a ninguém Só a Bala Pra onde tu vai O mulato riu Pro lazareto Professor olhou os braços cheios de bolhas o peito Tu não vai BoaVida Por que mano Tu sabe É buraco na certa Tu pensa que eu vou ficar aqui pra pegar nos outros A gente trata de tu Morria tudo Almiro tinha casa tá certo Eu não tenho ninguém Professor calouse Queria dizer muita coisa O mulato estava na sua frente a trouxa debaixo do braço cheio de bolha de bexiga Boa Vida falou Tu diz a Pedro Bala Os outros não precisa Professor só soube dizer Tu vai mesmo BoaVida fez que sim saíram do trapiche BoaVida olhou a cidade fez um gesto com a mão Era como um adeus BoaVida era malandro e ninguém ama sua cidade como os malandros Olhou o Professor Quando tu fizer meu retrato Tu ainda vai fazer Vou BoaVida Vontade de dizer palavras carinhosas como a um irmão Não me faz cheio de bexiga não Seu vulto desapareceu no areal Professor ficou com as palavras presas um nó na garganta Mas também achava bonito BoaVida andar assim para a morte para não contaminar os outros Os homens assim são os que têm uma estrela no lugar do coração E quando morrem o coração fica no céu diz o QueridodeDeus BoaVida era um menino não era um homem Mas já tinha uma estrela no lugar do coração Já desapareceu o seu vulto E então a certeza de que não mais verá seu amigo encheu o coração do Professor A certeza de que o outro ia para a morte Nas macumbas em honra de Omolu o povo negro castigado com a bexiga cantava Cabono aziela engoma Quero vê couro zoa Omolu vai pro sertão Bexiga vai espalha Omolu espalhara a bexiga na cidade Era uma vingança contra a cidade dos ricos Mas os ricos tinham a vacina que sabia Omolu de vacinas Era um pobre deus das florestas dÁfrica Um deus dos negros pobres Que podia saber de vacinas Então a bexiga desceu e assolou o povo de Omolu Tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim bexiga branca e tola Assim mesmo morrera negro morrera pobre Mas Omolu dizia que não fora o alastrim que matara Fora o lazareto Omolu só queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros O lazareto é que os matava Mas as macumbas pediam que ele levasse a bexiga da cidade levasse para os ricos latifundiários do sertão Eles tinham dinheiro léguas e léguas de terra mas não sabiam tampouco da vacina O Omolu diz que vai pro sertão E os negros os ogãs as filhas e paisdesanto cantam Ele é mesmo nosso pai e é quem pode nos ajudar Omolu promete ir Mas para que seus filhos negros não esqueçam avisa no seu cântico de despedida Ora adeus ó meus filhinhos Queu vou e torno a vortá E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas numa noite de mistério da Bahia Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de JuazeiroA bexiga foi com ele BoaVida voltou magro a roupa dançando no seu corpo A cara agora estava toda picada Os outros o olharam ainda com receio quando naquela noite ele entrou no trapiche Mas Professor andou logo para ele Ficou bom mulato BoaVida sorriu Vinham apertar a mão dele Pedro Bala lhe deu um abraço Mulato bom Mulato batuta Até SemPernas veio João Grande ficou junto de BoaVida 0 mulato olhou os amigos Pediu um cigarro Sua mão estava descarnada o rosto ossudo Ficou calado olhando com amor o velho trapiche os meninos o cachorro que estava deitado no colo do SemPernas Então João Grande perguntou Como era o lazareto BoaVida se voltou rápido Seu rosto tomou uma expressão amarga de desgosto Demorou um pouco a responder Depois as palavras saíram com dificuldade Ninguém sabe dizer não É uma coisa por demais Uma nojeira A gente quando entra é igual um que entra no caixão Olhou os outros que estavam suspensos das suas palavras Sua voz era amarga Igual que entrasse pro caixão pra ir pro cemitério Igual Não achou mais que dizer SemPernas perguntou entre dentes Que mais Nada Nada Não sei não Por Deus não pergunte baixou a cabeça que balançava para todos os lados Sua voz saiu muito baixa como que ainda amedrontada É mesmo que ir pro cemitério Tudo já está morto Olhou como se pedisse que não lhe perguntassem mais nada João Grande disse para os outros A gente não devia perguntar nada BoaVida apoiou com um gesto da mão Disse baixinho Nada É ruim demais Professor olhou o peito de BoaVida Estava todo picado da varíola Mas no lugar do coração Professor viu uma estrela Uma estrela no lugar do coração Destino Ocuparam a mesa do canto O gato puxou o barulho Mas nem Pedro Bala nem João Grande nem Professor tampouco BoaVida se interessaram Esperavam o QueridodeDeus na Porta do Mar As mesas estavam cheias Muito tempo a Porta do Mar andara sem fregueses A varíola não deixava Agora que ela tinha ido embora os homens comentavam as mortes Alguém falou no lazareto É uma desgraça ser pobre disse um marítimo Numa mesa pediram cachaça Houve um movimento de copo no balcão Um velho então disse Ninguém pode mudar o destino É coisa feita lá em cima apontava o céu Mas João de Adão falou de outra mesa Um dia a gente muda o destino dos pobres Pedro Bala levantou a cabeça Professor ouviu sorridente Mas João Grande e BoaVida pareciam apoiar as palavras do velho que repetiu Ninguém pode mudar não Está escrito lá em cima Um dia a gente muda disse Pedro Bala e todos olharam para o menino Que é que tu sabe frangote perguntou o velho É filho do Loiro fala a voz do pai respondeu João Adão olhando com respeito O pai morreu pra mudar o destino da gente Olhou para todos O velho calou e também olhava com respeito A confiança foi de novo chegando para todos Lá fora um violão começou a tocar Noite da grande paz da grande paz dos teus olhos Filha de Bexiguento A música já recomeçara no morro Os malandros voltavam a tocar violão a cantar modinhas a inventar sambas que depois vendiam aos sambistas célebres da cidadeNa venda de Deoclécio novamente ficava um grupo todas as tardes Durante algum tempo tudo cessara no morro para dar lugar ao choro e lamentações das mulheres e criançasOs homens passavam de cabeça baixa para as suas casas ou para o trabalho E os caixões negros de adultos os caixões brancos de virgens os pequenos caixões de crianças desciam as ásperas ladeiras do morro para o cemitério distante Isso quando não eram sacos que desciam com os variolosos ainda vivos que eram levados para o lazaretoA família chorava como choraria a um morto pela certeza de que eles não voltariam jamais Nem a música de um violão Nem a voz cheia de um negro cortava então a tristeza do morro Só a reza das sentinelas o choro convulsivo das mulheres Assim estava o morro quando Estêvão foi levado para o lazareto Não voltou certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá Nesta tarde ela já estava com febreMas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a notícia conseguiu não ser metida num saco Aos poucos foi melhorando Os dois filhos andavam pela casa fazendo o que ela mandava Zé Fuinha era um bocado inútil ainda não sabia fazer nada com seus seis anos Mas Dora tinha treze para quatorze anos os seios já haviam começado a surgir sob o vestido parecia uma mulherzinha muito séria a buscar os remédios para a mãe a tratar dela Margarida melhorou quando já os violões recomeçavam a tocar no morro porque a epidemia de varíola tinha se acabado A música voltou a dominar as noites do morro e Margarida se bem ainda não estivesse completamente boa foi ã casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa Voltou com a trouxa nas costas se atirou para a fonte Trabalhou o dia todo sob o sol e a chuva que caiu pela tarde No outro dia não voltou ao trabalho porque recaiu do alastrime a recaída é sempre terrível Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela varíola Dora não soluçava Corriam as lágrimas pelo seu rosto mas enquanto o caixão descia ela pensava era em Zé Fuinha que pedia o que comer O irmãozinho chorava de dor e de fome Era muito menino para compreender que tinha ficado sem ninguém na imensidão da cidade Os vizinhos deram jantar aos órfãos nesta tarde No outro dia pela manhã o árabe que era dono dos barracões do morro mandou derramar álcool no de Margarida para desinfetar E logo o alugou pois era um barracão bem situado bem no alto da ladeira E enquanto os vizinhos discutiam o problema dos órfãos Dora tomou o irmão pela mão e desceu para a cidade Não se despediu de ninguém era como uma fuga Zé Fuinha ia sem saber para onde arrastado pela irmã Dora marchava tranqüila Na cidade havia de encontrar quem lhes desse de comer quem pelo menos tomasse conta de seu irmão Ela arranjaria um emprego de copeira numa casa Ainda era uma menina mas havia muitas casas que preferiam mesmo uma menina porque o ordenado era menor Sua mãe certa vez falara em a empregar de copeira na casa de uma freguesa Dora sabia onde era e se dirigiu para lá O morro a música dos violões o samba que um negro cantava ficaram para trás Os pés descalços de Dora se queimam no asfalto ardente Zé Fuinha vai alegre vendo a cidade para ele desconhecida os bondes que passam repleto as marinetes que buzinam a multidão que corta as ruas Dora fora com Margarida certa vez à casa desta freguesa É na Barra elas tinham ido num bonde bagageiro levando a trouxa de roupa lavada A dona da casa fizera festa a Dora perguntara se ela queria vir trabalhar ali Margarida ficara de trazêla quando ela estivesse mais crescida Era para lá que Dora pensava ir E perguntando a ume a outro tomou o caminho da Barra A caminhada era grande o sol no asfalto queimava seus pés sem sapato Zé Fuinha começou a pedir de comer e a se queixar do cansaço Dora o acalentou com promessas e seguiram Mas no Campo Grande Zé Fuinha não pôde mais A caminhada era demasiada para ele para os seus seis anos Então Dora entrou numa padaria trocou os únicos quinhentos réis que possuía comprou dois pães dormidos deixou Zé Fuinha sentado num banco com os pães Tu come e me espera tá ouvindo Eu vou ali volto já Mas não vá sair daqui senão você se perde Zé Fuinha prometeu com uma cara muito séria dando dentadas nos pães duros Ela o beijou e seguiu O guarda que a informou olhou para os seus seios que nasciam 0 cabelo loiro dela maltratado voava com o vento Sentia queimaduras nas solas dos pés e um cansaço no corpo todo Mas seguiu O número era 611 Quando chegou ao 53 parou um pouco para descansar e pensar o que diria à dona da casa Depois retomou a caminhada Agora a fome ajudava a magoar seu corpo a fome terrível das crianças de 13 anos uma fome que exige comida imediatamente Dora tinha vontade de chorar de se deixar cair na rua sob o sol e não fazer movimentos Uma saudade dos pais mortos a invadiu Mas reagiu contra tudo e continuou O 611 era uma casa grande quase um palacete com árvores na frente Numa mangueira um balanço onde uma menina da idade de Dora se divertia Um rapazote dos seus 17 anos a balançava e riam os dois Eram os filhos do dono da casa Dora ficou a olhálos com inveja uns minutos Depois tocou a campainha O rapaz olhou mas continuou a balançar a irmã Dora tocou novamente a empregada veio Ela explicou que queria falar com dona Laura a patroa A empregada a olhou com desconfiança Mas o rapazola deixou de balançar a irmã e andou até o portão Espiava os seios mal nascidos de Dora os pedaços de coxas que apareciam sob o vestido Perguntou O que é que você quer Eu queria falar com dona Laura Sou filha de Margarida que foi lavadeira dela Não vê que ela morreuO rapaz não despregava os olhos dos seios de Dora Era bonita a menina de olhos grandes cabelo muito loiro neta de italiano com mulata Margarida dizia que ela puxara ao avô que também tinha cabelos muito loiros e um bigodão bem tratado Dora baixou os olhos porque o rapaz não tirava os dele dos seus peitosEle também se desconcertou falou para a empregada Vá chamar mamãe Sim senhor O rapaz puxou um cigarro acendeu Jogou a fumaça para cima estendendo o beiço deu mais uma espiada para os peitos de Dora Você está procurando emprego Tou sim senhor O vento levantou um pouco o vestido dela Ele teve pensamento canalhas ao ver o pedaço de coxa Já se sonhava na cama Dora trazendo o café pela manhã a safadeza que se seguiria Vou ver se mamãe arranja um lugar pra você Ela agradeceu Mas estava um pouco assustada se bem lhe escapasse muito da malícia dos olhares dele Dona Laura chegou os cabelos grisalhos a filha atrás dela espiando Dora com olhos compridos Era sardenta mas tinha certa graça Dora contou que a mãe tinha morrido A senhora tinha me prometido um emprego De que foi que Margarida morreu De bexiga sim senhora Dora não sabia que dizendo aquilo tinha perdido a possibilidade do emprego De varíola A mocinha se afastou receosa Até o rapaz se desviou um pouco pensou nos seios pequenos de Dora marcados de varíola Cuspiu com nojo Dona Laura tomou um tom triste É que já tomei outra empregada Agora não tenho necessidade Dora pensou em Zé Fuinha A senhora não tem precisão de um menino pequeno pra faz compra recados estas coisas É meu irmão Não minha filha não tenho Não sabe de ninguém Não Se soubesse recomendaria você Queria acabar a conversa Voltouse para o filho Você tem dois milréis aí Emanuel Pra que mamãe Me dê O rapaz deu ela pôs em cima da grade Tinha medo de tocar em Dora queria que fosse dali antes de contagiar a casa Leve isso para você Que Deus lhe ajude Dora voltou a descer a rua O rapaz ainda espiou as nádegas que apareciam redondas sob o vestido apertado Mas a voz de dona Laura o interrompeu Ela falava para a empregada Dos Reis passe um pano com álcool no portão onde esta menina pegou Não é bom brincar com varíola O rapaz voltou a balançar a irmã sob as mangueiras Mas de vez em quando suspirava para si mesmo tinha uns peitos muito bons Zé Fuinha não estava no banco Dora levou um susto Era capaz que o irmão tivesse saído andando pela cidade e se perdesse E como ela o iria encontrar ela que tão pouco conhecia a cidade Demais um grande cansaço a invadia um desânimo saudade da mãe morta vontade de chorar Os pés doíam e ela tinha fome Pensou em comprar pão agora possuía dois mil e quatrocentos mas em vez disto saiu em busca do irmão Foi encontrálo embaixo das árvores do jardim comendo ameixas verdes Dora deulhe uma pancada na mão Tu não sabe que isso faz dor de barriga Tou com fome Ela comprou pão comeram A tarde toda foi uma caminhada de um lado para outro à procura de emprego Em todas as casas diziam que não o medo da varíola era maior que qualquer bondade No começo da noite Zé Fuinha não se agüentava mais de cansado Dora estava triste e pensava em voltar ao morro Ia ser uma carga para os vizinhos pobres Não queria voltar Do morro sua mãe tinha saído num caixão seu pai metido num saco Mais uma vez deixou Zé Fuinha sozinho num jardim para ir comprar o que comer numa padaria antes que fechasse Gastou os últimos níqueis As luzes se acenderam e ela achou a princípio muito bonito Mas logo depois sentiu que a cidade era sua inimiga que apenas queimara os seus pés e a cansara Aquelas casas bonitas não a quiseram Voltou curvada afastando com as costas das mãos as lágrimas E novamente não encontrou Zé Fuinha Depois de andar em volta do jardim foi dar com o irmão que espiava um jogo de gude entre dois garotos um negro forte e um magrelo branco Dora sentou num banco chamou o irmão Os garotos que jogavam se levantaram também Ela desembrulhou os pães deu um a Zé Fuinha Os garotos a olhavam O preto estava com fome ela bem viu Ofereceu do pão a eles Ficaram os quatro comendo o pão dormido era mais barato em silêncio Quando terminaram o preto bateu as mãos uma na outra falou Teu irmão disse que a mãe de você morreu de bexiga Papai também Lá também morreu um Teu pai Não Foi Almiro um do grupo O branco magrelo que tinha estado calado perguntou Você arranjou onde trabalhar Ninguém quer filha de bexiguento Agora chorava Zé Fuinha brincava no chão com as bolas que os outros tinham deixado perto das árvores O preto coçava a cabeça 0 magrelo olhou para ele depois para Dora Tu tem onde dormir Não O magrelo falou para o negro A gente leva ela pro trapiche Uma menina O que é que Bala vai dizer Tá chorando disse o magrelo em voz muito baixa O negro olhou Evidentemente estava atarantado O branco coçou o pescoço espantando uma mosca Botou a mão no ombro de Dora muito devagarinho como se tivesse medo de a tocar Vem com a gente A gente dorme num trapiche O preto fez esforço para sorrir Não é um palacete mas é melhor que a rua Andaram João Grande e Professor iam na frente Ambos tinham vontade de conversar com Dora mas nenhum sabia o que dizer não tinham se visto ainda num apuro assimA luz das lâmpadas batia nos cabelos loiros dela O preto disse É uma lindeza Batuta fez Professor Mas não olhavam nem os seios nem as coxas Olhavam o cabelo loiro batido pela luz das lâmpadas elétricas No areal Zé Fuinha não pôde mais ir andando O negro João Grande pegou a criança apesar de ser também criança e a botou nas costas Professor ia junto de Dora mas estavam calados na noite Entraram no trapiche meio desconfiados João Grande arriou Zé Fuinha no chão ficou parado esperando que o Professor e Dora entrassem Foram todos para o canto do Professor que acendeu a vela Os outros espiavam para o canto com surpresa O cachorro do SemPernas latiu Gente nova murmurou o Gato que ia sair Gato andou até onde eles estavam Quem é Professor A mãe e o pai morreu de bexiga Tavam na rua sem ter onde dormir Gato olhou para Dora ensaiando seu melhor sorriso Fez uma espécie de saudação tinha visto num cinema um galã fazendo com o corpo ensaiou uma frase que tinha ouvido certa vez Boasvindas madame Não se lembrou do resto ficou meio encabulado foi embora ver Dalva Mas os demais já se aproximavam SemPernas e BoaVida vinham na frente Dora olhava assustadaZé Fuinha dormia de cansaço João Grande se pôs na frente de Dora A luz da vela iluminava o cabelo loiro da menina de quando em vez pousava nos seios se levantou encostouse na parede Agora a lua aparecia pelos buracos do teto BoaVida estava diante deles SemPernas vinha coxeando e os outros logo atrás os olhos estirados para Dora BoaVida falou Quem é essa lasca Professor se adiantou Tava com fome Ela e o irmão A bexiga matou o pai e a mãe BoaVida riu um riso largo Empinou o corpo É um peixão SemPernas riu seu riso burlão apontou os outros Tá tudo como urubu em cima da carniça Dora se chegou para junto de Zé Fuinha que acordara e tremia de medo Uma voz disse entre os meninos Professor tu tá pensando que a comida é só pra tu e pra João Grande Deixa pra nós também Outro gritou Já tou com o ferro em brasa Muitos riram Um se adiantou mostrou o sexo a João Grande Vê como a bichinha está Grande Doidinha João Grande e se pôs na frente de Dora Não dizia nada mas puxou o punhal O SemPernas gritou Tu assim não arranja nada Ela tem que ser pra todos Professor replicou Não tão vendo que é uma menina Já tem peito gritou uma voz Volta Seca saiu de entre o grupo Trazia os olhos muito excitado um riso no rosto sombrio Lampião também não respeita cara Dá ela pra gente Grande Sabiam que Professor era fraco não agüentava pancada Estava doidamente excitados mas ainda temiam João Grande que segurava o punhal Volta Seca se via como no meio do grupo de Lampião pronto para deflorar junto com todos uma filha de fazendeiro A vela iluminava os cabelos loiros de Dora Ia um pavor pelo rosto dela João Grande não dizia nada mas segurava o punhal na mão Professor abriu a navalha ficou junto dele Então Volta Seca também puxou do punhal começou a avançarOs outros vinham por detrás dele o cachorro latia BoaVida falou mais uma vez Desaparta Grande É melhor Professor pensava que se o Gato estivesse ali estaria do lado deles porque o Gato já tinha mulher Mas o Gato já tinha saído Dora via o grupo avançar O medo foi vencendo o desânimo e o cansaço em que estava Zé Fuinha chorava Dora não tirava os olhos de Volta Seca A cara sombria do mulato estava aberta em desejo um riso nervoso a sacudia Viu também os sinais da varíola no rosto de BoaVida quando este passou em frente da vela e então se lembrou da mãe morta Um soluço a sacudiu e deteve um momento os meninos Professor disse Não vê que ela tá chorando Eles pararam um momento Mas Volta Seca falou E nós com isso A babaca é a mesma Continuaram avançando Iam vagarosamente os olhos fixos ora em Dora ora no punhal que João Grande tinha na mão De repente se apressaram chegaram muito mais perto João Grande falou pela primeira vez Furo o primeiro BoaVida riu Volta Seca manejou o punhal Zé Fuinha chorava Dora o olhou com os olhos apavorados Se abraçou nele viu João Grande derrubar BoaVida A voz de Pedro Bala que entrava fez com que parassem Que diabo é isso Professor levantouse Volta Seca o soltou já o havia cortado no braço BoaVida ficou deitado como estava um talho no rosto João Grande continuou em guarda na frente de Dora Pedro Bala se adiantou Que é isso BoaVida falou do chão mesmo Estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para ele só A gente também tem direito Também Eu pelo menos quero trepar hoje esganiçou SemPernas Pedro Bala olhou para Dora Vm os peitos o cabelo loiro Tão com o direito falou Arreda João Grande O negro olhou Pedro Bala espantado O grupo avançava novamente agora chefiado por Pedro Bala João Grande estendeu os braços gritou Bala eu como o primeiro que chegar aqui Pedro Bala adiantou mais um passo Sai Grande Tu não tá vendo que é uma menina Tu não tá vendo Pedro Bala parou o grupo parou atrás dele Agora Pedro Bala olhava Dora com outros olhos Via o terror no rosto dela as lágrimas que caíam dos olhos Ouviu o choro de Zé Fuinha João Grande falava Eu sempre tive contigo Bala Sou teu amigo mas ela é uma menina fui eu e Professor que trouxe ela Eu sou teu amigo mas se tu vier eu te mato É uma menina ninguém faz mal a ela A gente te derruba e depois disse Volta Seca Cala a boca gritou Pedro Bala João Grande continuou O pai dela a mãe dela morreu de bexiga A gente encontrou ela não tinha onde dormir a gente trouxe ela Não é uma puta é uma menina não vê que é uma meninaNinguém toca nela Bala Pedro Bala disse baixinho É uma menina Pulou para o lado de João Grande e de Professor Tu é um negro bom Tu tá com o direito voltouse para os outros Quem quiser vir venha Tu não pode fazer isso Bala e BoaVida passava a mão no talho Tu agora quer comer ela só com o Grande e Professor Juro que não quem comer ela nem eles quer É uma menina Mas ninguém toca nela Quem quiser que venha Os menores e mais medrosos foram se afastando BoaVida se levantou foi para seu canto limpando o sangue Volta Seca falou para Pedro Bala devagar Eu não vou não é de medo É que tu disse que é uma menina Pedro Bala se aproximou de Dora Tem medo não Ninguém toca em você Ela saiu do seu canto arrancou um pedaço da fralda começou a ver a ferida do Professor Depois marchou para onde estava BoaVida que se encolheu todo molhou a ferida do malandro botou um pano em cima Todo o temor todo o cansaço tinham desaparecido Porque confiava em Pedro Bala Depois perguntou a VoltaSeca Também tá ferido Não fez o mulato sem compreender E fugiu para seu canto Parecia ter medo de Dora SemPernas espiava O cachorro saiu do colo dele veio lamber os pés de Dora Ela o acarinhou perguntou ao SemPernas É teu É sim Mas pode ficar com ele Ela sorriu Pedro Bala andou ao léu no trapiche Depois disse para todos Amanhã ela vai embora Não quero menina aqui Não disse Dora Eu fico ajudo vocês Eu sei cozinhar coser lavar roupa Por mim pode ficar falou Volta Seca Dora olhou Pedro Bala Tu disse que ninguém me fazia mal Pedro Bala olhou os cabelos loiros A lua entrava pelo trapiche Dora Mãe O gato veio gingando o corpo naquele seu caminhar característico Andara procurando enfiar a linha na agulha uma imensidade de tempo Dora fizera Zé Fuinha dormir agora se preparava para ouvir Professor ler aquela história tão bonita que estava no livro de capa azul O Gato veio gingando o corpo se aproximou devagar Dora Que é Gato Tu quer fazer uma coisa Mirava a agulha e a linha que tinha na mão Parecia estar diante de um problema grave Não sabia como se arranjar Professor parou a leitura Gato mudou de conversa Tu ainda fica cego de tanto lê Professor Se ainda fosse luz elétrica olhou Dora sem se resolver Que é Gato Esse diabo desta linha Nunca vi coisa mais difícil Meter isso no rabo desta agulha Dê cá Enfiou a linha deu um nó numa das pontas Gato disse para Professor Só mulher é que sabe fazer esse troço Estendeu a mão para receber a agulha mas Dora não entregou Perguntou o que é que Gato tinha que coser Gato mostrou o paletó roto no bolso Era aquela roupa de casimira que fora do SemPernas quando ele andara feito menino rico numa casa da Graça É uma roupa porreta fez o Gato Boa mesmo apoiou Dora Tira o casaco Professor e Gato ficaram vendo ela coser Em verdade não era uma maravilha de costura mas eles nunca tinham tido ninguém que remendasse suas roupas E somente Gato e Pirulito tinham costume de remendar eles mesmos as suas Gato porque era metido a elegante e tinha uma amante Pirulito porque gostava de andar limpo Os outros deixavam que os farrapos que arranjavam se esfarrapassem ainda mais até se tornarem trapos inúteis Então mendigavam ou furtavam outra calça e outro paletó Dora acabou o serviço Tem mais Gato alisou o cabelo cheio de brilhantina As costas da camisa Virouse A camisa estava rasgada de cima a baixo Dora mandou que ele sentasse começou a coser no corpo dele mesmo Quando os dedos dela tocaram pela primeira vez nas costas de Gato ele sentiu um arrepio Como quando Dalva passava as unhas crescidas e tratadas arranhando suas costas e dizendo A gatinha arranha o gatinho Mas Dalva não cosia suas roupas talvez nem soubesse enfiar uma linha no fundo de uma agulha Gostava era de se bater com ele na cama arranhar suas costas mas de propósito pra o arrepiar e o excitar para que o amor se fizesse ainda melhor E Dora não Não era de propósito A mão dela unhas maltratadas e sujas roídas a dente não queria excitar nem arrepiar Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas do filho A mãe do Gato morrera cedo Era uma mulher frágil e bonitaTambém tinha as mãos maltratadas que esposa de operário não tem manicura E era dela também aquele gesto de remendar as camisas de Gato mesmo nas costas de GatoA mão de Dora o toca de novo Agora a sensação é diferente Não é mais um arrepio de desejo É aquela sensação de carinho bom de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe Dora está por detrás dele ele não vê Imagina então que é sua mãe que voltou Gato está pequenino de novo vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo E sua mãe vem faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis manejam a agulha de quando em vez o tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta Nenhum desejo Somente felicidade Ela voltou remenda as camisas do Gato Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir como quando era pequenino Se recorda que ainda uma criança Mas só na idade porque no mais é igual a um homem furtando para viver dormindo todas as noites com uma mulher da vida tomando dinheiro dela Mas nesta noite é totalmente criança esquece Dalva suas mãos que o arranham lábios que prendem os seus em beijos longos sexo que o absorve Esquece sua vida de pequeno batedor de carteiras de dono de um baralho marcado jogado desonesto Esquece tudo é apenas um menino de quatorze anos com uma mãezinha que remenda suas camisas Vontade de que ela cante para ele dormir Uma daquelas cantigas de ninar que falam em bicho papão Dora morde a linha se inclina para ele Os cabelos loiro dela tocam no ombro do Gato Mas ele não tem outro desejo senão que ela continue a ser sua mãezinha Sua felicidade naquele momento é quase absurda É como se não houvesse existido toda a sua vida depois da morte da sua mãe É como se tivesse se conservado um criança igual a todas Porque nesta noite sua mãe voltou Por isso a inconsciente carícia dos cabelos loiros de Dora não excita seu desejo Mas aumenta sua felicidade E a voz dela que diz tá pronto Gato soa aos seus ouvidos direitinho a voz doce e musical de sua mãe que cantava a cabeça do Gato recostada no seu colo cantigas de ninar Levanta olha Dora com olhos agradecidos Você é a mãezinha da gente agora mas fica encabulada do que diz pensa que Dora não compreenderá mesmo porque ela esta rindo com seu rosto sério de quase mulherzinha Mas Professor compreende e Gato na frente de Dora falando numa voz feliz mas sem desejo chamandoa de mãe e ela sorrindo com seu ar maternal de quase mulherzinha fica gravado na cabeça de Professor como um quadro Gato joga o paletó nas costas e sai com seu passo gingado Sente que há qualquer coisa de novo no trapiche eles encontraram mãe carinho e cuidados de mãe Dalva o estranha nesta noite Que foi que Gatinho teve Que foi Mas ele guarda seu segredo É uma coisa tão grande demais encontrar na terra uma mãe que já morreu Dalva não o entenderia Quando Professor estava começando a história João Grande chegou e sentouse ao lado deles A noite era chuvosa Na história que Professor lia a noite era chuvosa também e o navio estava em grande perigo Os marinheiros apanhavam de chicote o capitão era um malvado O barco a vela parecia soçobrar a cada momento o chicote dos oficiais caía sobre as costas nuas dos marinheiros João Grande tinha uma expressão de dor no rosto Volta Seca chegou com um jornal mas não interrompeu a história ficou ouvindo Agora o marinheiro John apanhava chibatadas porque escorregara e caíra no meio do temporal Volta Seca interrompeu Se Lampião tivesse aí já tinha comido esse capitão no fuzil Foi o que fez o marinheiro James um homenzarrão Se atirou em cima do capitão a revolta estalou no buque Lá fora chovia Chovia na história também era a história de um temporal e de uma revolta Um dos oficiais ficou do lado dos marinheiros É do balacobaco disse João Grande Amavam o heroísmo Volta Seca espiou Dora Os olhos dela brilhavam ela amava o heroísmo também Isso agradou ao sertanejo Depois o marinheiro James sustentou uma luta feroz Volta Seca assoviou como um passarinho de tanto contentamento Dora riu também satisfeita Riram os dois juntos logo foi uma gargalhada dos quatro como era costume dos Capitães da Areia Gargalharam alguns minutos outros se aproximaram a tempo de ouvir o resto da história Olhavam o rosto sério de Dora rosto de uma quase mulherzinha que os fitava com carinho de mãe Sorriam e quando o marinheiro James jogou o capitão do navio num barco salvavidas e o chamou de cobra sem veneno eles todos gargalharam junto com Dora e a olharam com amor Como crianças olham a mãe muito amada Quando a história acabou eles voltaram para os seus cantos entre comentários Porreta Macho bamba Também era um prensa O capitão fez uma cara hein Volta Seca espichou o jornal para Professor Dora olhou o mulato ele sorriu meio confuso É que traz notícias de Lampião seu rosto sombrio clareava Tu sabe que Lampião é meu padrim Padrinho Pois é Foi minha mãe que tomou porque Lampião é um macho de verdade não respeita cara Minha mãe era uma mulher valente uma mulher capaz de agüentar um fuzil Um dia fez correr dois soldados que se fizeram de besta Era um mulherão Valia um homem Dora ouvia encantada Seu rosto sério fitava com a maior simpatia o rosto sombrio do mulato Volta Seca ficou calado mas num jeito de quem queria dizer alguma coisa Por fim falou Tu também é valente Sabe Minha mãe era um mulherão destas grandes Era mulata não tinha cabelo loiro tinha uma carapinha danada Não era mais menina também podia ser tua avó Mas tu parece com ela Olhou Dora mas baixou a cabeça Parece mentira mas tu me lembra ela Parece mentira mas tu parece com ela Professor olhou com seus olhos de míope Volta Seca quase gritava seu rosto sombrio tinha a alegria de uma descoberta Também ele descobriu sua mãe pensou ProfessorDora estava séria mas sei olhar era carinhoso Volta Seca riu ela riu virou logo gargalhada Mas Professor não os acompanhou na gargalhada Começou a ler muito rápido o relato do jornal Lampião fora pegado de surpresa ao entrar numa vila O chofer de um caminhão que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila e avisara Dera tempo de pedirem reforços de vilas próximas e a coluna volante também veio Quando Lampião entrou na vila encontrou foi bala muita pela frente bala que ele não esperava O tiroteio foi grande Lampião só pôde mesmo abrir para a caatinga que é sua casa Um dos homens do grupo ficou estirado com um balaço no peito Cortaram a cabeça dele que foi enviada para a Bahia em triunfo Vinha a fotografia no jornal A boca aberta os olhos furados um homem segurando pela carapinha rala Tinham cortado o pescoço a facão Dora comentou Coitado dele Que judiaria Volta Seca olhou agradecido Seus olhos estavam injetados seu rosto todavia mais sombrio Dolorosamente sombrio Filho de uma égua disse baixo Filho de uma égua de chofer Se um dia eu te pegar A notícia adiantava que Lampião devia ter outros homens feridos pois a retirada do grupo fora por demais rápida Volta Seca falou em surdina Era como se falasse para si mesmo Já tá em tempo deu ir Pra onde perguntou Dora Pra junto de meu padrim Ele tá precisando de mim Ela o olhou com tristeza Tu vai mesmo Volta Seca Vou sim E se a polícia te matar cortar tua cabeça Juro que eu eles não topa vivo Vou com um mas eu eles não topa vivo Não tem medo não Afirmava à sua mãe forte e valente mulata sertaneja capaz de brigar com soldados comadre de Lampião amásia de cangaceiro que podia confiar nele que não o pegariam vivo que lutaria até morrer Dora ouvia com orgulho Professor apertou os olhos e viu também em lugar de Dora uma sertaneja forte defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis com a ajuda amiga dos cangaceirosViu a mãe de Volta Seca E era o que o mulato via Os cabelos loiros eram carapinha rala os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja o rosto grave era o rosto sombrio da camponesa explorada E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho Pirulito a viu chegar com desconfiança Para ele Dora era o pecado Havia bastante tempo que ele desistira das negrinhas do areal e da quentura dos corpos se embolando no areal Se despia aos poucos dos seus pecados para aparecer puro aos olhos de Deus e poder merecer a graça de se vestir com as vestes dos sacerdotes Pensava mesmo em arranjar um lugar de vendedor de jornais para fugir do pecado diário do furto Olhava Dora com receio a mulher era o pecado Em verdade ela era apenas uma criança uma criança abandonada como eles Não ria como as negrinhas do areal um riso insolente de convite um riso de dentes apertados pelo desejo Seu rosto era sério parecia o rosto de uma mulherzinha muito digna Mas os pequenos seios que nasciam se empinavam no vestido o pedaço de coxa que aparecia era branco e redondo Pirulito tinha medo Não tanto da tentação de Dora Ela não parecia das que tentavam era uma criança era muito cedo para isto Mas tinha medo da tentação que vinha dentro dele que o demônio punha dentro dele E procurava rezar em voz baixa enquanto ela se aproximava Dora ficou olhando os quadros de santo Professor parou atrás dela olhava também Havia flores sob a imagem do Menino Deus que Pirulito furtara um dia Dora chegou mais perto É uma beleza O medo começou a desaparecer do coração do Pirulito Ela se interessava pelos seus santos santos para os quais ninguém ligava no trapiche Dora perguntou É tudo teu Pirulito fez que sim com a cabeça e sorriu Se adiantou mostrou tudo que possuía Os quadros o catecismo o terço tudo Ela olhava com satisfação Sorria também enquanto Professor a espiava com os olhos míopes Pirulito contava a história de Santo Antônio que tinha estado em dois lugares ao mesmo tempo Isso para salvar seu pai da forca para a qual fora condenado injustamente Contava do mesmo modo como Professor lia histórias heróicas de marinheiros corajoso e revoltosos Dora escutava com a mesma atenção e a mesma simpatia Conversavam os dois Professor calado ouvindo Pirulito contou coisas da sua religião milagres de santos a bondade do padre José Pedro Quando tu conhecer ele vai gostar Ela disse que com certeza Ele já havia esquecido que ela podia trazer a tentação nos seios de menina nas coxas gordas na cabeleira loira agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho Como a uma mãe Só então compreendeu Porque naquele momento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser sacerdote que queria seguir aquela vocação que sentia o chamado de Deus Só à sua mãe teria coragem de contar isso E ela está na sua frente Ele fala Tu sabe que eu quero ser padre Que bom fez ela O rosto de Pirulito se iluminou Olhou para Dora falou com a voz exaltada Tu pensa que eu mereço Deus é bom mas também sabe castigar Por quê havia espanto na pergunta de Dora Tu não vê que a vida da gente é cheia de pecado Todo dia A culpa não é da gente esclareceu Dora A gente não tem ninguém Mas agora Pirulito tinha a ela A sua mãe Riu satisfeito Padre José Pedro também já disse isso É capaz Riu mais ela sorriu também animando é capaz de que um dia eu seja padre Tu vai ser sim Tu quer esse Deus Menino pra tu perguntou ele de repente Era como um filho que levasse parte da sua guloseima para sua mãe que lhe dera o níquel para que comprasse E Dora aceitou como uma mãe aceita parte da guloseima do filho querido para que este fique satisfeito Professor via a mãe de Pirulito que não sabia como era como fora Mas a via ali no lugar de Dora Sentiu inveja da felicidade de Pirulito Encontraram Pedro Bala estendido na areia O chefe dos Capitães da Areia não entrara para o trapiche nesta noite Ficara espiando a lua deitado na quentura boa da areia A chuva tinha cessado e vento que corna agora era morno Professor deitou também Dora sentou entre os dois Pedro Bala a espiou pelo canto dos olhos puxou o boné mais para a cara Dora disse voltada para ele Tu ontem foi bom comigo e meu irmão Tu devia ir embora respondeu Bala Ela não disse nada mas ficou triste Professor então falou Não Bala É como uma mãe Como uma mãe sim Pra todos Repetia É como uma mãe Como uma mãe Pedro Bala olhou os dois Suspendeu o boné sentou na areia Mas Dora o olhava com carinho Para ele Para ele era tudo esposa irmã e mãe Sorriu confuso para Dora Pensei que fosse ser uma tentação pra todos Ela fez que não ele continuou Depois podiam aproveitar uma hora que a gente não estava Riram Professor repetiu mais uma vez Não É como uma mãezinha Tu pode ficardisse Pedro Bala e Dora sorriu para ele era o seu herói uma figura que ela nunca tinha imaginado mas que um dia haveria de imaginar Amavao como a um filho sem carinho um irmão corajoso um amado tão belo como não havia outro Mas Professor viu os sorrisos dos dois E disse ainda uma vez com voz sombria É como mãe Dora Irmã e Noiva Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia o trocou por umas calças que deram a Brandão numa casa da cidade alta As calças tinham ficado enormes para o negrinho ele então as ofereceu a Dora Também estavam grandes para ela teve que as cortar nas pernas para que dessem Amarrou com cordão seguindo o exemplo de todos o vestido servia de blusa Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes todos a poderiam tomar como um menino um dos Capitães da Areia No dia em que vestida como um garoto ela apareceu na frente de Pedro Bala o menino começou a rir Chegou a se enrolar no chão de tanto rir Por fim conseguiu dizer Tu tá gozada Ela ficou triste Pedro Bala parou de rir Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia Agora eu tomo parte no que vocês fizer O assombro dele não teve limites Tu quer dizer Ela o olhava calma esperando que ele concluísse a frase que vai andar com a gente pela rua batendo coisas Isso mesmo sua voz estava cheia de resolução Tu endoidou Dizia com voz soturna porque para ele ela também não era mãe Também para o Professor ela era a Amada Não sei por quê Tu não tá vendo que tu não pode Que isso não é coisa pra menina Isso é coisa pra homem Como se vocês fosse tudo uns homão É tudo uns menino Pedro Bala procurou o que responder Mas a gente veste calça não é saia Eu também e mostrava as calças De momento ele não encontrou nada que dizer Olhou para ela e pensativo já não tinha vontade de rir Depois de algum tempo falou Se a polícia pegar a gente não tem nada Mas se pegar tu É igual Te metem no orfanato Tu nem sabe o que é Tem nada não Eu agora vou com vocês Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo Havia avisado Mas ela bem sabia que ele estava preocupado Por isso ainda disse Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz Tu não agüenta um empurrão Posso fazer outras coisa Pedro Bala se conformou No fundo gostava da atitude dela se bem tivesse medo dos resultados Andava com eles pelas ruas igual a um dos Capitães da Areia Já não achava a cidade inimiga Agora a amava também aprendi a andar nos becos nas ladeiras a pongar nos bondes nos automóveis em disparada Era ágil como o mais ágil Andava sempre com Pedro Bala João Grande e Professor João Grande não a largava era como uma sombra de Dora e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de meu irmão O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela Vivia num assombro das qualidades de Dora Quase a achava tão valente como Pedro Bala Dizia o Professor num espanto É valente como um homem Professor preferia que não fosse assim Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes Volta Seca Pirulito Tampouco um olhar fraternal como os que ela lançava a João Grande a SemPernas a Gato a ele mesmo Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o via na carreira fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja Ladrão Ladrão Me furtaram Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala e este nem reparava Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio roxo sangrando Topara com Ezequiel chefe de outro grupo de meninos mendigos e ladrões grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito mais sem ordem Ezequiel vinha com uns três do grupo inclusive um que fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um companheiro Pedro Bala tinha ido deixar Dora e Zé Fuinha no pé da ladeira do Taboão para que eles fossem para o trapiche João Grande tinha um serviço a fazer e não pudera ir com Dora Pedro Bala pensou em ir com ela em não deixála sozinha no areal Mas como ainda não caíra a noite não havia perigo de um negro dar em cima dela Demais ele tinha que ir receber uns cobres da mão de Gonzales do 14 dinheiro que era devido a uma batida que o grupo fizera nuns objetos de ouro de um árabe rico Enquanto andava para o 14 Pedro Bala pensava em Dora No cabelo loiro que caía no pescoço nos olhares dela Era bonita era igual a uma noiva Noiva Nem podia pensar nisso Não queria que os outros do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com ela E se ele dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele outro poderia se julgar no direito de também dizer E então não haveria mais lei nem direito entre os Capitães da Areia Pedro Bala se recorda de que é o chefe Vai tão distraído que quase esbarra com Ezequiel Estão os quatro parados diante dele Ezequiel é um mulato alto fuma uma ponta de charuto Pedro Bala fica parado também esperando Ezequiel cospe Não vê onde pisa Agora anda cego O que é que tu quer O menino que fora dos Capitães da Areia pergunta Como vão aqueles frescos Tu ainda se lembra da surra que apanhou lá Tu ainda deve guardar a marca O menino range os dentes quer avançar Mas Ezequiel faz um gesto com a mão e avisa a Pedro Bala Um dia destes vou fazer uma visita a vocês Uma visita pergunta Bala desconfiado Dizque agora vocês tem uma putinha lá pra todo mundo Dobre a língua filho da mãe Com o soco Ezequiel rolou Mas os outros três já estavam em cima de Pedro Bala Ezequiel meteu o pé na cara de Bala O que for dos Capitães da Areia gritou Segura ele bem e meteu um soco na boca de Pedro Ezequiel deu dois pontapés na cara de Bala Fique sabendo que sou teu patrão Quatro começou a xingar Pedro Bala mas um soco o calou O guarda vinha marchando para eles debandaram Pedro Bala apanhou o boné as lágrimas de raiva desciam junto com sangue Estendeu a mão fechada para o lado por onde Ezequiel e os seus haviam desaparecido O guarda falou Desaperta corneta Dá o fora antes que lhe leve pro xilindró Pedro Bala cuspiu puro sangue Desceu a ladeira devagar nem pensou em ir buscar o dinheiro de Gonzales Descia resmungando consigo mesmo Só são homem quatro contra um E pensava vinganças Entrou no trapiche Dora estava sozinha com o irmão que dormia Os últimos raios do sol entravam pelo teto dando uma estranha claridade ao casarão Dora o viu entrar e andou para ele Segurou os cobres Mas enxergou o olho inchado de Pedro o beiço partido Que foi meu irmão Ezequiel mais três Só são homem de quatro pra cima Fez isso em tu Foi quatro Assim mesmo porque me pegaram desprevenido Eu caí na besteira de pensar que Ezequiel vinha só Era quatro Ela o sentou foi ao canto de Pirulito trouxe água Com um pedaço de pano limpou as feridas dele Pedro arquitetava plano de vingança Ela apoiou A gente acaba com eles desta vez Pedro riu Tu vai também Se vou Agora limpava os lábios dele estava curvada na sua frente seu rosto bem próximo do de Bala os cabelos loiros misturados com os dele Por que foi a briga Por nada Diga Ele disse umas coisas Foi por causa de mim não foi Ele abanou a cabeça afirmando Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala os beijou e depois fugiu Ele saiu correndo atrás dela mas ela se escondia não se deixava pegar Aos poucos foram chegando os outros Ela de longe sorna para Pedro Bala Não havia nenhuma malícia no seu sorriso Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros Era um doce olhar de noiva de noiva ingênua e tímida Talvez mesmo não soubessem que era amor Apesar de não ser noite de lua havia um romântico romance no casarão colonial Ela sorria e baixava os olhos por vezes piscava com um olhe porque pensava que isto era namorar E seu coração batia rápido quando olhava Não sabia que isso era amor Por fim a lua veio estendeu sua luz amarela no trapiche Pedro Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado Disse Tu agora é minha noiva Um dia a gente se casa Continuou de olhos fechados Ela disse baixinho Tu é meu noivo Mesmo não sabendo que era amor sentiam que era bom Quando SemPernas e João Grande chegaram Pedro Bala se levantou da areia e reuniu os chefes Foram para junto da vela do Professor Dora veio também e sentou entre João Grande e BoaVida O malandro acendeu um cigarro falou para Dora Tou aprendendo tocar uma samba porreta E tou cavando um violão irmã Tu tá tocando batuta mesmo mano É um tal de sucesso nas festa Pedro Bala interrompeu a conversa Olhavam para o lábio dele o olho inchado Ele narrou o caso Quatro contra um Precisa duma lição falou SemPernas rindo Eu não vou com aquele cara Formaram um plano de batalha E pelo meio da noite saíram uns trinta O grupo de Ezequiel dormia para as bandas do Porto da Lenha nuns barcos virados e na ponteDora foi junto a Pedro Bala e levava uma navalha também SemPernas disse Até parece Rosa Palmeirão Nunca houvera mulher tão valente como Rosa Palmeirão Dera em seis soldados de uma vez Todo marítimo sabe o seu ABC no cais da Bahia Por isso Dora gosta da comparação e sorri Obrigado mano Irmão É uma palavra boa e amiga Se acostumaram a chamála de irmã Ela também os trata de mano de irmão Para os menores é como uma mãezinha igual a uma mãezinha Cuida deles Para os mais velhos é como uma irmã que diz palavras boas e brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa que levam Mas nenhum sabe que para Pedro Bala ela é a noiva Nem mesmo o Professor sabe E dentro do seu coração Professor também a chama de noiva O cachorro que o SemPernas arranjou vai latindo Volta Seca imita o latir de um cachorro todos riem João Grande assovia um samba BoaVida começa a cantá lo em voz alta A mulata me abandonou Vão alegres Levam navalhas e punhais nas calças Mas só o sacarão se os outros puxarem Porque os meninos abandonado também têm uma lei e uma moral um sentido de dignidade humana De repente João Grande grita É ali Com a algazarra que fazem Ezequiel sai de sob um barco Quem vem lá Os Capitães da Areia que não engole desaforo respondeu Pedro Bala E arrancaram para cima dos outros A volta foi um triunfo Apesar do SemPernas ter um talho e Barandão vir quase nos braços de tanta pancada um grandão do grupo de Ezequiel o surrara até que Volta Seca o rebentou voltavam todo alegres comentando a vitória Os que tinham ficado no trapiche deram vivas Ainda demoraram muito conversando comentando Falavam na coragem de Dora que brigara igual a um menino Igual a um homem dizia João Grande Era como uma irmã exatamente igual a uma irmã Igual a uma noiva exatamente igual a uma noiva pensava Pedro Bala estendido na areia A lua amarelava o areal as estrelas se refletiam no mar azul da BahiaEla veio deitou ao lado dele E começaram a falar de coisas tolas Igual a uma noiva Não se beijaram não se abraçaram o sexo não os chamava naquele momentoSó de leve o loiro cabelo dela tocava em Pedro Bala Tu tem um cabelo bonito disse ele Ela riu olhou o cabelo dele O teu também Riram os dois e logo foi uma gargalhada Era um hábito dos Capitães da Areia Ela começou a contar coisas do morro histórias dos vizinhos ele relembrava fatos da vida agitada do grupo Vim pra rua com cinco anos Menor que teu irmão Riam inocentemente felizes de estarem um ao lado do outro Depois o sono veio Estavam separados Pedro tomou a mão dela segurou Dormiram como dois irmãos Reformatório O Jornal da Tarde trouxe a notícia em grandes títulos Uma manchete ia de lado a lado na primeira página PRESO O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA Depois vinham os títulos que estavam em cima de um clichê onde se viam Pedro Bala Dora João Grande SemPernas e Gato cercados de guardas e investigadores UMA MENINA NO GRUPO A SUA HISTÓRIA RECOLHIDA A UM ORFANATO O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA É FILHO DE UM GREVISTA OS OUTROS CONSEGUEM FUGIR O REFORMATÓRIO O ENDIREITARÁ NOS AFIRMA O DIRETOR Sob o clichê vinha esta legenda Após ser batida esta chapa o chefe dos peraltas armou uma discussão e um barulho que deu lugar a que os demais moleques presos pudessem fugir O chefe é o que está marcado contra cruz e ao seu lado vêse Dora a nova gigolete dos moleques baianos Vinha a notícia Ontem a polícia baiana lavrou um tento Conseguiu prender o chefe do grupo de menores delinqüentes conhecidos pelo nome de Capitães da Areia Por mais de uma vez este jornal tratou do problema dos menores que viviam nas ruas e da cidade dedicados ao furto Por várias vezes também noticiamos os assaltos levados a efeito por este mesmo grupo Realmente a cidade vivia sob o temor constante destes meninos que ninguém sabia onde moravam cujo chefe ninguém conhecia Há alguns meses tivemos ocasião de publicar cartas do doutor Chefe de Polícia do doutor Juiz de Menores e do diretor do Reformatório Baiano sobre este problema Todos eles prometiam incentivar a campanha contra os menores delinqüentes e em particular contra os Capitães da Areia Esta campanha tão meritória deu os seus primeiros frutos ontem com a prisão do chefe desta malta e de vários do grupo inclusive uma menina Infelizmente devido a uma sagaz burla de Pedro Bala o chefe os demais conseguiram escapar de entre as mãos dos guardas Em todo caso a polícia já conseguiu muito prendendo o chefe e a romântica inspiradora dos roubos Dora uma figura interessantíssima de menor delinqüente Feitos estes comentários narremos os fatos A TENTATIVA DE FURTO Ontem às últimas horas da tarde cinco meninos e uma menina penetraram no palacete do doutor Alcebíades Menezes na ladeira de São Bento Foram porém pressentidos pelo filho do dono da casa estudante de medicina que deixou que eles penetrassem num quarto onde os trancou Chamou então os guardas e investigadores a quem os entregou A reportagem do Jornal da Tarde informada do fato partiu para a casa do doutor Alcebíades Lá chegando encontrou os menores que eram levados à chefia de políciaPedimos então para tirar um retrato do grupo A polícia muito gentilmente consentiu Pois no momento em que o fotógrafo acabava de fazer funcionar o magnésio e batera chapa Pedro Bala o temível chefe dos Capitães da Areia facilitou a EVASÃO Pondo em prática uma agilidade incomum Pedro Bala se livrou dos braços do investigador que o segurava e com um golpe de capoeira o derrubou No entanto não fugiuÉ claro que os demais guardas e investigadores se precipitaram em cima dele para impedir a sua fuga Só então foi possível compreender o plano do chefe dos Capitães da Areia pois este gritou para os companheiros presos Arriba pessoal Um único guarda ficara a tomar conta dos outros e um deles muito ágil o derrubou também com um golpe de capoeira E desabaram para a ladeira da Montanha NA POLÍCIA Na chefia de polícia quisemos ouvir Pedro Bala Mas ele nada nos disse como tampouco quis declarar às autoridades o lugar onde dormiam e guardavam seus furtos os Capitães da Areia Só declarou seu nome disse que era filho de um antigo grevista que foi morto num meeting na célebre greve das docas de 191 que não tinha ninguém no mundo Quanto a Dora é filha de uma lavadeira que morreu de varíola quando da epidemia que alastrou a cidade Não faz senão quatro meses que está entre os Capitães da Areia mas já tomou parte em muitos assaltos E parece ter uma grande honra nisso NOIVOS Dora declarou à nossa reportagem que era noiva de Pedro Bala e que iam se casar É uma menina ainda ingênua mais digna de piedade que de castigo Fala no seu noivado com maior das ingenuidades Não tem mais de quatorze anos enquanto Pedro Bala anda pelos seus dezesseis Dora foi leva da ao Orfanato Nossa Senhora da PiedadeNeste santo ambiente não tardará a esquecer Pedro Bala o romântico noivobandido e a sua vida criminosa entre os Capitães da Areia Quanto a Pedro Bala será recolhido ao Reformatório de Menores logo que a polícia consiga que ele declare qual o local onde se esconde o grupo A polícia tem grandes esperanças de conseguilo ainda hoje OUVINDO O DIRETOR NO REFORMATÓRIO O diretor do Reformatório Baiano de Menores Abandonados e Delinqüentes é um velho amigo do Jornal da Tarde Certa vez uma reportagem nossa desfez um círculo de calúnias jogada contra aquele estabelecimento de educação e seu diretorHoje ele se achava na polícia esperando poder levar consigo o menor Pedro Bala A uma pergunta nossa respondeu Ele se regenerará Veja o título da casa que dirijo Reformatório Ele se reformará E a outra pergunta nossa sorriu Fugir Não é fácil fugir do Reformatório Posso lhe garantir que não o fará Professor à noite leu a notícia para todos SemPernas disse Ele já tá no reformatório Eu vi quando saiu da polícia E ela no orfanato completou João Grande A gente livra eles afirmou Professor Depois virouse para o SemPernas Até Pedro Bala chegar tu fica como chefe SemPernas João Grande estendeu os braços para os outros falou Gentes até Bala voltar SemPernas é o chefe SemPernas disse Ele ficou pra livrar a gente É preciso que a gente livre ele Não direito Todos estavam decididos Quando o levaram para aquela sala Pedro Bala calculava o que o esperava Não veio nenhum guarda Vieram dois soldados de polícia um investigador o diretor do reformatório Fecharam a sala O investigador disse numa voz risonha Agora os jornalistas já foram moleque Tu agora vai dizer que sabe queira ou não queira O diretor do reformatório riu Ora se diz O investigador perguntou Onde é que vocês dormem Pedro Bala o olhou com ódio Se tá pensando que eu vou dizer Se vai Pode esperar deitado Virou as costas O investigador fez um sinal para os soldados Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez E o pé do investigador na sua cara Rolou no chão xingando Ainda não vai dizer perguntou o diretor do reformatório Isso é só o começo Não foi tudo o que Pedro Bala disse Agora davamlhe de todos os lados Chibatadas socos pontapés O diretor do reformatório levantouse sentoulhe o pé Pedro Bala caiu do outro lado da sala Nem se levantou Os soldados vibraram os chicotes Ele via João Grande Professor Volta Seca SemPernas o Gato Todos dependiam dele A segurança de todos dependia da coragem dele Ele era o chefe não podia trair Lembrouse da cena da tarde Conseguira dar fuga aos outros apesar de estar preso também O orgulho encheu seu peito Não falaria fugiria do reformatório libertaria Dora E se vingaria Se vingaria Grita de dor Mas não sai uma palavra dos seus lábios Vai te fazendo noite para ele Agora já não sente dores já não sente nada No entanto os soldados ainda o surram o investigador o soqueia Mas e não sente mais nada Desmaiou diz o investigador Deixe ele por minha conta explica o diretor do reformatório Eu levo ele pro reformatório lá ele abre a boca Garanto E eu dou o aviso a vocês O investigador assentiu Com a promessa de no dia seguinte mandar buscar Pedro Bala o diretor retirouse Na madrugada quando Pedro acordou os presos cantavam Era uma moda triste Falava do sol que havia nas ruas em quanto é grande e bela a liberdade O bedel Ranulfo que o tinha ido buscar na polícia o levou à presença do diretor Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior Mas ia satisfeito porque nada tinha dito porque não revelara o lugar onde os Capitães da Areia viviam Lembramse da canção que os presos cantavam na madrugada que nascia Dizia que a liberdade é o bem maior do mundo Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida LiberdadeJoão de Adão que estava nas ruas sob o sol falava nela também Dizia que não era só por salários que fizera aquelas greves nas docas e faria outras Era pela liberdade que os doqueiros tinham pouca Pela liberdade o pai de Pedro Bala morreran Pela liberdade pensava Pedro dos seus amigos ele apanhara uma surra na polícia Agora seu corpo estava mole e dolorido seus ouvidos cheios da moda que os presos cantavam Lá fora dizia a velha canção é o sol a liberdade e a vidaPela janela Pedro Bala vt o sol A estrada passa adiante dó grande portão do reformatório Aqui dentro é como se fosse uma eterna escuridão Lá fora é a liberdade e a vida E a vingança pensa Pedro Bala O diretor entra O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala O diretor sorri esfrega as mãos uma na outra senta ante uma alta secretária Olha Pedro Bala uns minutos Afinal Faz bastante tempo que espero este pássaro Ranulfo O bedel sorri aprovando as palavras do diretor É o chefe dos tais de Capitães da Areia Veja O tipo do criminoso nato É verdade que você não leu Lombroso Mas se lesse conheceria Traz todos os estigmas do crime na face Com esta idade já tem uma cicatriz Espie os olhos Não pode ser tratado como um qualquer Vamos lhe dar honras especiais Pedro Bala o espia com os olhos injetados Sente cansaço uma vontade doida de dormir Bedel Ranulfo aventura uma pergunta Levo pra junto dos outros O quê Não Para começar metao na cafua Vamos ver se ele sai um pouco mais regenerado de lá O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala O diretor ainda recomenda Regime número 3 Água e feijão murmura Ranulfo Dá uma espiada em Pedro Bala balança a cabeça Vai sair bem mais magro Lá fora é a liberdade e o sol A cadeia os presos na cadeia a surra ensinaram a Pedro Bala que a liberdade é o bem maior do mundo Agora sabe que não foi apenas para que sua história fosse contada no cais no Mercado na Porta do Mar que seu pai morrera pela liberdade A liberdade é como o sol É o bem maior do mundo Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora Fora atirado dentro da cafua Era um pequeno quarto por baixo da escada onde não se podia estar em pé porque não havia altura nem tampouco estar deitado ao comprido porque não havia comprimento Ou ficava sentado ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda Assim mesmo Pedro Bala se deitou Seu corpo dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua só servia para o homemcobra que vira certa vez no circo Era totalmente cerrado o quarto a escuridão era completa O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada Pedro Bala deitado como estava não podia fazer o menor movimento Por todos os lados as paredes o impediam Seus membros doíam ele tinha uma vontade doida de esticar as pernas Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na polícia e desta vez Dora não estava ali para trazer um pano frio e cuidar do seu rosto ferido A liberdade era Dora tambémNão era só o sol andar livre nas ruas rir no cais a grande gargalhada dos Capitães da Areia Era também sentir junto a si o cabelo loiro de Dora ouvir ela contar coisas do morro sentir os lábios dela sobre os seus lábios feridos Noiva Também ela estava sem liberdade Os membros de Pedro Bala doem e agora dói sua cabeça também Dora está como ele sem sol sem liberdade Foi levada para um orfanato Noiva Antes que ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra noiva Gostava de derrubar negrinhas no areal De encostar peito com peito cabeça com cabeça pernas com pernas sexo com sexo Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina menina como ele e conversar de coisas tolas e correr picula como os outros meninos sem a derrubar para fazer o amor Era outra maneira do amor pensava numa confusão Ele nunca tivera uma idéia perfeita do amor Que era ele senão uma criança abandonada nas ruas que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados os Capitães da Areia Que podia saber de amor Sempre pensara que o amor fosse o momento gostoso em que uma negrinha ou uma mulata gemia sob seu corpo no areal do cais Isto cedo aprendeu quando não tinha ainda 13 anos Isto sabiam todos os Capitães da Areia mesmo os mais pequenos aqueles que ainda não tinham forças para derrubar uma cabrocha Mas já o sabiam e pensavam com alegria no dia em que o fariam Os membros e a cabeça de Pedro Bala doem Tem sede ainda não bebeu nem comeu neste dia Com Dora foi diferente Logo que ela chegou tanto ele como todos os que estavam no trapiche pensaram em a derrubar em a possuir em praticar com ela que era bonita o único amor de que tinham notícia Mas como era apenas uma menina eles a tinham respeitado Depois ela foi como uma mãe para todos E como uma irmã também João Grande dizia certo Mas para ele desde o primeiro momento fora diferente Fora também uma companheira de brinquedos como para os demais irmã querida Mas fora também uma alegria diversa da que dá uma irmã Noiva Gostaria sim Mesmo quando quer negar a si próprio não pode É verdade que nada faz para isso que se contenta de conversar com ela de ouvir a sua voz pegar timidamente na sua mão Mas gostaria de possuíla também de vêla gemer de amor Não porém por uma noite Por todas as noites de toda uma vida Como outros têm esposa esposa que é mãe irmã e amiga Ela era mãe irmã e amigados Capitães da Areia Para Pedro Bala é noiva um dia será esposa Não a podem ter num orfanato como uma menina sem ninguém Ela tem um noivo uma legião de irmãos e de filhos de quem cuidar O cansaço desaparece dos membros de Pedro Bala Ele precisa de movimento de andar de correr para poder conceber um plano para livrar Dora Ali naquela escuridão é que não pode Fica inútil pensando que ela está talvez numa cafua também Sentase como pode Ratos correm na cafua Mas ele está por demais acostumado com os ratos não liga Mas Dora terá medo deste ruído contínuo É de enlouquecer um que não seja o chefe dos Capitães Areia Quanto mais uma menina É verdade que Dora é a menina valente de quantas mulheres já nasceram na Bahia que é a terra das mulheres valentes Mais valente mesmo que Rosa Palmeirão que deu em seis soldados que Maria Cabaçu que não respeitava cara que a companheira de Lampião que maneja um fuzil igual a um cangaceiro Mais valente porque é apenas uma menina apenas está começando a viver Pedro Bala sorri com orgulho apesar das dores do cansaço sede que aos poucos o aperta Como seria bom um copo dágua Diante do areal do trapiche é o mar um nunca acabar de água Mar que o QueridodeDeus o grande capoeirista corta com seu saveiro para as pescarias nos mares do Sul O QueridodeDeus é um bom sujeito Se Pedro Bala não houvesse aprendido com ele o jogo capoeira de Angola a luta mais bonita do mundo porque é também uma dança não teria podido dar fuga a João Grande Gato e SemPernas Agora ali na cafua sem poder se mexer a capoeira não vai lhe servir de nada Gostaria era de beber água Será que Dora também tem sede a estas horasDeve estar também numa cafua Pedro Bala imagina o orfanato igualzinho ao reformatório A sede é pior que uma cobra cascavel Faz mais medo que a bexiga Porque vai apertando a garganta de um vai fazendo os pensamentos confusos Um pouco de água Um pouco de luz também Porque se houver um pouco de luz talvez ele veja o rosto de Dora risonho Assim na escuridão ele o vê cheio de sofrimento cheio de dor Uma raiva surda impotente cresce dentro dele Levantase um pouco a cabeça encosta nos degraus escada que lhe serve de teto Esmurra a porta da cafua Mas parece que lá fora não tem ninguém que o ouça Vê a cara malvada do diretor Enterrará seu punhal até o mais fundo do coração do diretor Sem que sua mão trema sem remorsos gozando Seu punhal ficou na polícia Mas Volta Seca lhe dará o seu ele tem uma pistolaVolta Seca quer ir para o bando de Lampião que é seu padrinho Lampião mata soldado mata homem ruim Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um seu herói a um seu vingador É o braço armado dos pobres no sertão Um dia ele poderá ser do grupo de Lampião também E quem sabe se não poderiam invadir a cidade da Bahia abrir a cabeça do diretor do reformatórioQue cara ele não faria quando visse Pedro Bala entrar no reformatório na frente de uns cangaceiros Soltaria a garrafa de pinga presente de um amigo de Santo Amaro e Pedro Bala lhe abriria a cabeça Não Antes o deixaria naquela mesma cafua sem ter o que comer sem ter o que beber Sede A sede o maltrata Faz com que ele veja na escuridão da parede o rosto triste e doloroso de Dora Aquela certeza de que ela está sofrendo Fecha os olhos Procura pensar em Professor Volta Seca João Grande Gato SemPernas Boa Vida todos os do trapiche salvando Dora Mas não pode Mesmo de olhos fechados vê o rosto dela amargurado pela sede Esmurra a porta novamente Grita xinga nomes Ninguém o atende ninguém o vê ninguém o ouve Assim deve ser o inferno Pirulito tem razão de ter medo do inferno É por demais terrívelSofrer sede e escuridão A canção dos presos dizia que lá fora é a liberdade e o sol E também a água os rios correndo muito alvos sobre pedras as cascatas caindo o grande mar misterioso Professor que sabe muitas coisas porque à noite lê livros furtados à luz de uma vela está comendo os olhos lhe disse certa vez que tem mais água no mundo que terra Tinha lido num livro Mas nem um pingo de água na sua cafua Na de Dora não deve ter também Para que esmurrar a porta como o faz neste momento Ninguém o atende suas mãos já doem Na véspera o surraram na polícia Suas costas estão negras seu peito ferido o rosto inchado Por isso o diretor disse que ele tinha cara de criminoso Não tem não Ele quer é liberdade Um dia um velho disse que não se mudava o destino de ninguém João de Adão disseque se mudava sim ele acreditara em João de Adão Seu pai morrera para mudar o destino dos doqueiros Quando ele sair irá ser doqueiro também lutar pela liberdade pelo sol por água e de comer para todos Cospe um cuspe grosso A sede aperta sua garganta Pirulito quer ser padre para fugir daquele inferno Padre José Pedro sabia que o reformatório era assim falava contra meterem os meninos lá Mas que podia um pobre padre sem paróquia contra todos Porque todos odeiam os meninos pobres pensa Pedro Bala Quando sair pedirá à mãedesanto DonAninha que faça um feitiço forte para matar o diretor Ela tem força com Ogum e ele uma vez tirara Ogum da polícia Fizera muita coisa para a sua idade Dora também fizera muita coisa naqueles meses entre eles Agora passavam sede Pedro Bala esmurra inutilmente uma porta A sede o rói por dentro como uma legião de ratosCai enrodilhado no chão e o cansaço o vence Apesar da sede dorme Mas tem sonhos terríveis ratos roem o rosto belo de Dora Acorda porque alguém bate pancadas leves num dos degraus da escada Levanta se curvado não pode ficar de pé direito que a escada não consente Pergunta em voz baixa Tem alguém aí Uma alegria doida o invade quando respondem Quem é que tá aí Pedro Bala Tu é o chefe dos Capitães da Areia Sou Ouve um assovio A voz continua agora rápida Tenho um recado pra você um trouxe hoje Solta logo Agora vem gente Depois volto Pedro Bala ouve os passos que se afastam Mas está mais alegre Pensa em seguida que o recado é de Dora mas vê que é uma tolice pensar isso Como Dora havia de lhe enviar um recado Deve ser um do grupo Devem estar tratando de tirálo dali Mas primeiro é preciso que ele saia da cafua Enquanto ele estiver ali os Capitães da Areia não poderão fazer nada Depois que ele estiver andando no reformatório todo aí a fuga será fácil Pedro Bala sentase para pensar Que hora serão que dia será Ali é sempre noite nunca brilha a luz do sol Espera impaciente que o seu informante volte Porém este demora ele se agita Que estarão fazendo os outros sem ele Professor conceberá algum plano para o tirarem daliMas enquanto ele estive na cafua é inútil E enquanto não o tirarem ele não poderá tirar Dora do orfanato Abrem a porta Pedro Bala se atira para a frente pensando que o vão soltar Uma mão o empurra Ei calma Vê o bedel Ranulfo na porta Traz um caneco com água que Pedro Bala arranca das suas mãos e bebe em grandes goles Mas é tão pouca Não chega para matar a sedeO bedel lhe entrega um prato de barro com uma água onde bóiam alguns caroços de feijão Pedro Bala pede Pode me dar um pouco mais de água Amanhã ri o bedel Só um pouco mais Amanhã tem mais E se você continuar a bater na porta e gritar em vez de 8 passa 15 dias empurra a porta na cara de Pedro Bala Ouve a chave que o tranca Tateia na escuridão até encontrar o prato Bebe a água escura do feijão Nem repara que é salgadíssima Depois come os grãos durosMas a sede o ataca novamente O feijão muito salgado ativa a sede O que é um caneco de água para aquela sede que exigia uma moringa Deita Já não pensa em nadaPassamse horas Ele apenas vê na escuridão o rosto triste de Dora E sente dores no corpo todo Muito mais tarde ouve novamente baterem na escada Pergunta Tá aí Um capenga mandou dizer que vão te tirar daqui Logo que tu saia da cafua Já é de noite pergunta Pedro Tá começando Tou morto de sede A voz não responde Pedro pensa com desespero que é capaz do menino ter ido embora No entanto ele não ouviu passos na escada Mas volta a voz Água não posso Não tem como passar Mas quer um cigarro Quero sim Então espera Minutos depois as pancadas soam muito de leve na porta A vi por debaixo da porta Vou passar o cigarro por aqui Ponha as mãos embaixo bem no meio da greta da porta Pedro Bala faz o que lhe mandam Um cigarro amassado chega às suas mãos Ele acaba de o retirar de sob a porta Logo depois é um fósforo que vem sobre um pedaço de caixa o pedaço onde se risca Obrigado diz Pedro Bala Mas neste momento ouve um barulho lá fora O som de uma bofetada um corpo que rola E uma voz que ele não conhece fala Se tentar se comunicar com os de fora seu castigo será aumentado Pedro se encolhe Agora um vai sofrer castigo por causa dele Quando fugir levará aquele para os Capitães da Areia Para o sol e liberdade Acende o cigarroCom muito cuidado para não perder fósforo que é o único Esconde a brasa do cigarro sob a mão para que ninguém o possa ver pelas frestas da escada O silêncio o envolve de novo e com o silêncio os pensamentos as visões Quando termina de fumar se enrodilha no chão Se pudesse dormir Pelo menos não veria o rosto cheio de sofrimento de Dora Quantas horas Quantos dias A escuridão é sempre a mesma a sede é sempre igual Já lhe trouxeram água e feijão três vezes Aprendeu a não beber caldo de feijão que aumenta a sede Agora está muito mais fraco um desânimo no corpo todo O barril onde defeca exala um cheiro horrível Não o retiraram ainda E sua barriga dói sofre horrores para defecar É como se as tripas fossem sair As pernas não o ajudam O que o mantém em pé é o ódio que enche seu coração Filhos da mãe Desgraçados É tudo quanto consegue dizer Assim mesmo em voz baixa Já não tem forças para gritar para esmurrar a porta Agora está certo de que morrerá ali Cada vez sofre maiores dores para defecar Vê Dora estendida no chão morrendo de sede chamando por ele João Grande está do lado dela mas separado por grades Professore Pirulito choram Trouxeramlhe água e feijão pela quarta vez Ele bebe a água mas demora a comer o feijão Só sabe dizer em voz baixa Filhos da mãe Filhos da mãe Antes que a comida se poderia chamar aquilo de comida chegasse naquele dia para Pedro era sempre noite a voz voltou a chamálo na escada Ele perguntou sem se levantar sequer Quantos dias já tem que tou aqui Cinco Me dá outro cigarro O cigarro o reanima um pouco Pode pensar que com mais cinco dias morrerá Aquilo é castigo para um homem não para um menino O ódio não cresce mais em seu coraçãoJá atingiu o máximo É sempre noite Dora morre lentamente ante suas vistas João Grande ao seu lado as grades separando Professor e Pirulito choram Ele dorme ou está acordadoA barriga dói violentamente Quanto tempo durará ainda a escuridão E a agonia de Dora O cheiro do barril é insuportável Dora agoniza ante seus olhos Será que ele agoniza também A cara do diretor aparece ao lado do rosto de Dora Vem torturar sua agonia ainda mais Quanto tempo ela leva para morrer Pedro Bala pede que ela morra logo logo Será melhor Agora o direto veio veio para aumentar a tortura Ouve a voz dele Levanta e um pé o toca Abre mais os olhos Agora não vê mais Dora Só a cara do diretor que sorri Vamos ver se agora fica mais manso Não pode fitar a claridade que entra pelas janelas Mal se agüenta nas pernas Cai no meio do corredor Dora teria morrido ou não pensa ao cair Está novamente na sala do diretor Este o olha sorridente Gostou do apartamento Continua com muita vontade de roubar Eu sei ensinar quebrar moleque aqui Pedro Bala está irreconhecível de tão magro Os ossos aparecem junto à pele O rosto verdoso da complicação intestinal O bedel Fausto dono daquela voz que ele ouvira certa vez na porta da cafua está ao seu lado E um tipo forte tem fama de ser tão malvado quanto o diretor Pergunta Na oficina de ferreiro Acho que é melhor na plantação de cana Lavrar terra ri Fausto diz que está bem o diretor recomenda Olho nele Este é um pássaro ruim Mas eu te ensino Pedro Bala sustenta seu olhar O bedel o empurra Agora vê detidamente o casarão No meio do pátio o cabeleireiro raspa a sua cabeça a zero Vê a cabeleira loira rolar no chão Dãolhe umas calças e paletó de mescla azul Vestese ali mesmo O bedel leva o a uma oficina de ferreiro Tem um facão E uma foice Entrega os objetos a Pedro Bala Marcham para o canavial onde outros meninos trabalham Neste dia de tão fraco Pedro Bala mal sustém o facão Por isso os bedéis o soqueiam Ele nada diz À noite na fila olha para todos querendo descobrir aquele que lhe falava e dava cigarros Sobem as escadas andam para o dormitório que fica no terceiro andar para impedir qualquer idéia de fuga A porta é fechada O bedel Fausto diz Graça puxe a reza Um menino avermelhado faz o pelosinal Todos repetem as palavras e os gestos Depois é um padrenosso e uma avemaria ditas com voz forte apesar do cansaço Pedro se joga na cama Uma coberta suja o espera Mudam a roupa de cama de 15 em 15 dias E a roupa de cama é apenas uma coberta e uma fronha para um travesseiro de pedra Já está dormindo quando alguém toca no seu ombro Tu que é Pedro Bala não é Sim Fui eu que trouxe o recado Pedro olha o mulato que está a seu lado Pode ter dez anos Eles têm voltado Todo santo dia Só quer saber quando tu sai da cafua Diz que eu tou no canavial Tu não quer comer um sacana hoje Tem uns aqui a gente de noite Tou morto de sono Quanto tempo levei Oito dias Já morreu um ali O menino vai embora Pedro nem perguntou seu nome Tudo o que quer é dormir Mas os que andam para as camas dos pederastas fazem ruído O bedel Fausto sai do seu quarto de tabiques Que barulho é esse Silêncio Ele bate as mãos Todos de pé Fita a todos Ninguém sabe Silêncio O bedel esfrega os olhos anda entre as camas Um enorme relógio dá dez horas na parede Ninguém diz Silêncio O bedel range os dentes Então ficarão todos uma hora de pé Até as onze E o primeiro que tentar deitar vai pra cafua Agora está desocupada Uma voz de menino corta o silêncio Seu bedel É um pequeno meio amarelento Fale Henrique Eu sei Os olhos todos estão fitos nele Fausto anima a delação Diga o que sabe Foi Jeremias que ia pra cama de Berto fazer coisa feia Seu Jeremias seu Berto Os dois saem das suas camas De pé na porta Até meianoite Os outros podem deitar olha mais uma vez a todos Os castigados estão de pé na porta Quando o bedel se recolhe Jeremias ameaça Henrique Os outros comentam Pedro Bala dorme No refeitório enquanto bebiam o café aguado e mastigavam o bolachão duro seu vizinho de mesa fala Tu é o chefe dos Capitães da Areia sua voz é baixíssima Sou sim Vi teu retrato no jornal Tu é um macho Mas te acabaram olha o rosto magro de Bala Mastiga o bolachão Continua Tu vai ficar aqui Vou arribar Eu também Tenho um plano Quando eu bater asa posso ir pra teu grupo Pode Onde fica o buraco Pedro Bala olha com desconfiança Tu encontra a gente no Campo Grande toda tarde Pensa que vou dizer O bedel Campos bate as mãos Todos se levantam Dirigemse para as diversas oficinas ou para os terrenos cultivados Pelo meio da tarde Pedro Bala vê o SemPernas que passa na estrada Vê também um bedel que o tange Castigos Castigos É a palavra que Pedro Bala mais ouve no reformatório Por qualquer coisa são espancados por um nada são castigados O ódio se acumula dentro de todos eles No extremo do canavial passa um bilhete a SemPernas No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana Com certeza a puseram durante a noite É um rolo de corda fina e resistente Está novinha No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças A dificuldade é levar o rolo para o dormitório Fugir durante o dia é impossível com a vigilância dos bedéis Não pode levar o rolo entre a roupa que notariam De repente surge uma briga Jeremias se joga sobre o bedel Fausto com o facão na mão Outros meninos se atiram também mas vem um grupo de bedéis armados de chicotesEstão sujeitando Jeremias Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó abre para o dormitório Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão Pedro se esconde atrás de uma portaO bedel vem rápido passa Empurra a corda para baixo do colchão volta para o canavial Jeremias foi levado para a cafua Os bedéis agora juntam os meninos Ranulfo e Campos foram em perseguição de Agostinho que pulou a cerca na confusão da briga O bedel Fausto com um talho no ombro foi para a enfermaria O diretor está entre eles os olhos fuzilando de raiva Um bedel conta os meninos Pergunta a Pedro Bala Onde estava metido Saí pra não me meter no barulho O bedel o olha desconfiado mas passa Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho O fujão é surrado na vista de todos Depois o diretor diz Metamno na cafua Já está Jeremias fala Ranulfo Ficam os dois Assim podem conversar Pedro Bala se arrepia Como irão ficar dois na pequenez da cafua Nesta noite a vigilância é grande ele não tenta nada Os meninos rangem os dentes de raiva Duas noites depois quando o bedel Fausto já tinha se recolhido há muito ao seu quarto de tabiques e quando todos dormiam Pedro Bala se levantou tirou a corda de sob o colchão Sua cama ficava junto a uma janela Abriu Amarrou a corda num dos armadores de rede que existiam na parede Deixou que a corda caísse pela janelaEra curta Faltava ainda muito Recolheu Procurava fazer o menor barulho possível mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou Tu vai bater asa Aquele não tinha boa fama Costumava delatar Por isso mesmo fora colocado ao lado de Pedro Bala Bala puxou o punhal mostrou a ele Olha xereta trata de dormir Se tu piar eu te abro a garganta palavra de Pedro Bala E se tu disser alguma coisa depois que eu sair Tu já viu falar nos Capitães da Areia Já Pois eles me vinga Põe o punhal ao alcance da mão Recolhe completamente a corda amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o QueridodeDeus lhe ensinou Ameaça mais uma vez o menino joga a corda passa o corpo pela janela começa a descida Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator Se deixa escorregar pela corda salta ao chão O pulo é grande mas ele já salta correndo Pula a cerca após evitar os cachorros policiais que estão soltos Desaba pela estrada Tem alguns minutos de vantagem O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também Pedro Bala prende o punhal nos dentes tira a roupa Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro E nu na madrugada fria inicia a carreira para o sol para a liberdade Professor lê a manchete do Jornal da Tarde O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA CONSEGUE FUGIR DO REFORMATÓRIO Trazia uma longa entrevista com o diretor furioso Todo o trapiche ri Até o padre José Pedro que está com eles ri em gargalhadas como se fosse um dos Capitães da Areia Orfanato Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora Nascera no morro infância em correrias no morro Depois a liberdade das ruas da cidade a vida aventurosa dos Capitães da Areia Não era uma flor de estufa Amava o sol a rua a liberdade Fizeram duas tranças do seu cabelo amarraram com fitas Fitas corderosa Deramlhe um vestido de pano azul um avental de um azul mais escuro Faziam com que ela ouvisse aulas junto com meninas de cinco e seis anos A comida era má havia castigo também Ficar em jejum perder os recreios Veio uma febre ela esteve na enfermaria Quando voltou estava macilenta Tinha sempre febre mas não dizia nada porque odiava o silêncio da enfermaria onde o sol não entrava e das as horas pareciam a hora agonizante do crepúsculo Quando podia chegava perto das grades porque por vezes divisava Professor ou João Grande que rondavam por ali Um dia lhe passaram um bilhete Pedro Bala fugira do reformatório Viria tirála dali Nem sentiu a febre em que estava A visaram por intermédio de outro bilhete que Professor escreveu e lhe jogou que ela arranjasse um meio de ir para a enfermaria Mas nem foi preciso porque uma irmã notou o avermelhado das suas faces Pôs a mão no seu rosto Estás queimando de febre Era sempre crepúsculo na enfermaria Era como uma antesala do túmulo com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar O médico que a vira balançara a cabeça com tristeza Mas a luz entrou com eles Como Pedro Bala estava magro pensou Dora ao se pôr ao seu lado João Grande Gato Professor estavam com ele Professor mostrou anavalha à Irmã que abafou um grito A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os lençóis Dora queimava de febre mal podia estar de pé A Irmã murmurou Ela está muito doente Dora respondeu Eu vou Pedro Saíram pela porta Volta Seca tinha o grande cachorro preso pela coleira Tinham trazido um pedaço de carne Gato abriu o portão Na rua disse Foi canja Professor avisou Vamos embora antes que alarmem Se atiraram por uma ladeira Dora nem sentia a febre porque ia junto com Pedro Bala ele pegando na sua mão Volta Seca fechava a marcha a mão no punhal um sorriso no rosto sombrio Noite de Grande Paz Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora a irmãzinha Dora Dora noiva Professor vê Dora sua amada Os Capitães da Areia olham em silêncio A mãe desanto DonAninha reza oração forte para a febre que consome Dora desaparecer Com um galho de sabugueiro manda que a febre se vá Os olhos febris de Dora sorriem Parece que a grande paz da noite da Bahia está também nos seus olhos Os Capitães da Areia olham em silêncio sua mãe irmã e noiva Mal a recuperaram a febre a derrubou Onde está a alegria dela por que ela não corre picula com seus filhinhos menores não vai para a aventura das ruas com seus irmãos negros brancos e mulatos Onde está a alegria dos olhos dela Só uma grande paz a grande paz da noite Porque Pedro Bala aperta sua mão com calor A paz da noite da Bahia não está no coração dos Capitães da Areia Tremem com receio de perder Dora Mas a grande paz da noite está nos olhos dela Olhos que se fecham docemente enquanto a mãedesanto Aninha enxota a febre que a devora A paz da noite envolve o trapiche Dora Esposa O cachorro late a lua na areia SemPernas sai do trapiche acompanha DonAninha através do areal Ela disse que a febre não tardaria a ir embora Pirulito sai também vai chamar o padre José Pedro Tem confiança no padre ele pode saber um remédio Dentro do trapiche os Capitães da Areia estão silenciosos Dora pediu que eles fossem dormir Se deitaram pelo chão mas são raros os que dormem Na paz imensa da noite pensam na febre que consome Dora Ela beijou Zé Fuinha mandou que ele fosse dormir Ele não compreende bem Sabe que ela está doente mas não pensa um momento que ela o poderá abandonarMas os Capitães da Areia temem que isso aconteça Então ficarão novamente sem mãe sem irmã sem noiva Agora só João Grande e Pedro Bala estão a seu lado O negro sorri mas Dora sabe que o sorriso dele é forçado é um sorriso para a animar um sorriso arrancado à força da tristeza que o negro sente Pedro Bala segura sua mão Mais retirado Professor está dobrado sobre si mesmo a cabeça enterrada nas mãos Dora diz Pedro Que é Chegue aqui Ele se aproxima A voz dela é um fio de voz Pedro fala com carinho Tu quer alguma coisa Tu gosta de mim Tu bem sabe Deita aqui Pedro deita ao seu lado João Grande se afasta chega para perto de Professor Mas não conversam ficam entregues à sua tristeza No entanto é uma noite de paz que envolve o trapiche E a paz da noite está também nos olhos doentes de Dora Mais perto Ele se chega mais os corpos estão juntos Ela toma a mão dele leva ao seu peito Arde de febre A mão de Pedro está sobre seu seio de menina Ela faz com que ele a acaricie diz Tu sabe que já sou moça A mão dele pousada nos seus seios os corpos juntos Uma grande paz nos olhos dela Foi no orfanato Agora posso ser tua mulher Ele a olha espantado Não que tu tá doente Antes de eu morrer Vem Tu não vai morrer Se tu vier não Se abraçam O desejo é abrupto e terrível Pedro não a quer magoar mas ela não mostra sinais de dor Uma grande paz em todo seu ser Tu é minha agora fala ele com voz agitada Ela parecia não sentir a dor da posse Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria Agora a paz é só da noite com Dora está a alegria Os corpos se desunem Dora murmura É bom Sou tua mulher Ele a beija A paz voltou ao rosto dela Fita Pedro Bala com amor Agora vou dormir diz Deita ao lado dela segura sua mão ardente Esposa A paz da noite envolve os esposos O amor é sempre doce e bom mesmo quando a morte está próxima Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor Mas nos corações dos dois meninos não há mais nenhum medo Somente paz a paz da noite da Bahia Na madrugada Pedro põe a mão na testa de Dora Fria Não tem mais pulso o coração não bate mais O seu grito atravessa o trapiche desperta os meninos João Grande a olha de olhos abertos Diz a Pedro Bala Tu não devia ter feito Foi ela que quis explica e sai para não rebentar em soluços Professor se chega fica olhando Não tem coragem de tocar no corpo dela Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou não lhe resta mais nada que fazer ali Pirulito entra com o padre José Pedro O padre pega no pulso de Dora bota a mão na testa Está morta Inicia uma oração E quase todos rezam em voz alta Padre nosso que estais no céu Pedro Bala se lembra das rezas à noite no reformatório Seus ombros se encolhem tapa os ouvidos Voltase vê o corpo de Dora Pirulito pôs uma flor roxa entre seus dedos Pedro Bala rompe em soluços Veio a mãedesanto DonAninha veio também o QueridodeDeus Pedro Bala não toma parte da conversa Aninha diz Foi como uma sombra nesta vida Vira santa na outra Zumbi dos Palmares é santo dos candomblés de caboclo Rosa Palmeirão também Os homens e as mulheres valentes viram santo dos negros Foi como uma sombra repete João Grande Foi como uma sombra para todos um acontecimento sem explicação Menos para Pedro Bala que a teve Menos para Professor que a amou Padre José Pedro fala Vai pro céu não tinha pecado Não sabia o que era pecado Pirulito reza QueridodeDeus sabe o que esperam dele Que leve o cadáver no seu saveiro e o jogue no mar adiante do forte velho Como poderá sair um enterro do trapiche É difícil explicar tudo isso ao padre José Pedro O Sem Pernas o faz numa voz apressada O padre a princípio se horroriza É um pecado ele não pode consentir num pecado Mas consente que não vai denunciar onde moram os Capitães da Areia Pedro Bala não fala Em torno é a paz da noite Nos olhos mortos de Dora olhos de mãe de irmã de noiva e de esposa há uma grande paz Alguns meninos choram Volta Seca e João Grande vão levar o corpo Mas parado ante ele está Pedro Bala imóvel Volta Seca não pode estende as mãos João Grande chora como uma mulher DonAninha toma do braço de Pedro tirao dali e envolve o corpo de Dora numa toalha branca de rendas Vai para Yemanjá diz Ela também vira santo Mas ninguém pode levar o cadáver Porque Pedro Bala está abraçado com ele não o larga Professor o chama Deixa Eu também gostava dela Agora Levamna para a paz da noite para o mistério do mar O padre reza é uma estranha procissão que se dirige na noite para o saveiro do QueridodeDeus Do areal Pedro Bala vê o saveiro que se afasta Morde as mãos estende os braços Voltam para o trapiche A vela branca do saveiro se perde no mar A lua ilumina o areal as estrelas tanto estão no céu como no mar Há uma paz na noite Paz que veio dos olhos de Dora Como uma estrela de loira cabeleira Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no céu Assim foi com Zumbi com Lucas da Feira com Besouro todos os negros valentesMas nunca se viu um caso de uma mulher por mais valente que fosse virar estrela depois de morta Algumas como Rosa Palmeirão como Maria Cabaçu viraram santas nos candomblés de caboclo Nunca nenhuma virou estrela Pedro Bala se joga nágua Não pode ficar no trapiche entre os soluços e as lamentações Quer acompanhar Dora quer ir com ela se reunir a ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá Nada para diante sempre Segue a rota do saveiro do QueridodeDeus Nada nada sempre Vê Dora em sua frente Dora sua esposa os braços estendidos para ele Nada até já não ter forças Bóia então os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do céu Que importa morrer quando se vai em busca da amada quando o amor nos espera Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela indo para o céu Fora mais valente que todas mulheres mais valente que Rosa Palmeirão que Maria Cabaçu Tão valente que antes de morrer mesmo sendo uma menina se dera ao seu amor Por isso virou uma estrela no céu Uma estrela de longa cabeleira loira uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala Para ele veio também a paz da noite Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra O saveiro do QueridodeDeus o recolhe Canção da Bahia canção da liberdade Vocações Não havia passado muito tempo sobre a morte de Dora a imagem da sua presença tão rápida e no entanto tão marcante da sua morte também ainda enchia de visões as noites do trapiche Alguns quando entravam todavia olhavam para o canto onde ela costumava sentar ao lado do Professor e de João Grande Ainda com a esperança de encontrála Fora um acontecimento sem explicação Fora o totalmente inesperado na vida deles o aparecimento de ua mãe de uma irmã Motivo por que eles ainda a procuravam apesar de terem visto o Queridode Deus a levar no seu saveiro para o fundo do mar Só Pedro Bala não a procurava no trapiche Procurava ver no céu de tanta estrela uma que tivesse longa e loira cabeleira Um dia Professor entrou no trapiche e não acendeu sua vela não abriu um livro de histórias não conversou Para ele toda aquela vida tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre Quando ela viera enchera o trapiche com sua presença Para Professor tudo tinha uma nova significação O trapiche ficara como a moldura de um quadro ora os cabelos loiros caindo sobre Gato que via sua mãe ora os lábios que beijavam Zé Fuinha para ele dormir Ou a boca que cantava cantigas de ninarTambém sorrisos de orgulho para a coragem de Volta Seca como se fosse uma destemida mulata sertaneja Ou a entrada no trapiche os cabelos voando o rosto todo rindo de volta da aventura do dia nas ruas da cidade Ou os olhos cheios de amor a febre queimando seu rosto as mãos chamando o amado para a posse primeira e última Agora Professor olhava o trapiche como para uma moldura sem quadro Inútil Para ele deixara de ter significação ou tinha uma significação terrível demais Mudara muito naqueles meses após a morte de Dora andava calado o rosto sério e entrara em relações com aquele senhor que certa vez num passeio da rua Chile conversara com ele lhe dera uma piteira e seu endereço Nesta noite Professor não acendeu vela não abriu livro de história Ficou calado quando João Grande veio para seu lado Arrumava suas coisas numa trouxa Quase tudo era livro João Grande olhava sem dizer nada mas compreendia muito se bem todos dissessem que não havia negro mais burro que o negrinho João Grande Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também a seu lado e lhe ofereceu um cigarro Professor falou Vou embora Bala Pra onde mano Professor olhou o trapiche os meninos que andavam que riam que se moviam como sombras entre os ratos Que adianta a vida da gente Só pancada na polícia quando pegam a gente Todo mundo diz que um dia pode mudar Padre José Pedro João de Adão tu mesmo Agora vou mudar a minha Pedro Bala não disse nada mas a pergunta estava nos seus olhos João Grande não perguntava nada compreendia tudo Vou estudar com um pintor do Rio Dr Dantas aquele da piteira escreveu a ele mandou uns desenhos meus Ele mandou dizer que me mandasse Um dia vou mostrar como é a vida da gente Faço o retrato de todo mundo Tu falou uma vez lembra Pois faço A voz de Pedro Bala o animou Tu também vai ajudar a mudar a vida da gente Como fez João Grande Professor também não entendeu Tampouco Pedro Bala sabia explicar Mas tinha confiança no Professor nos quadros que ele faria na marca do ódio que ele levava no coração na marca de amor à justiça e à liberdade que ele levava dentro de si Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia Mesmo quando depois se vai se um artista e não um ladrão assassino ou malandro Mas Pedro Bala não sabia explicar tudo isso Apenas disse A gente nunca te esquece mano Tu lia história para gente era o mais batuta da gente O mais batuta Professor baixou a cabeça João Grande se levantou sua voz era um chamado era um grito de despedida também Gentes Gentes Vieram todos ficaram em torno João Grande estendeu os braços Gentes Professor vai embora Vai ser um pintor no Rio de Janeiro Gentes viva Professor O viva apertou o coração do menino Olhou para o trapiche Não era como um quadro sem moldura Era como a moldura de inúmeros quadros Como quadros de uma fita de cinema Vida s de luta e de coragem De miséria também Uma vontade de ficar Mas que adiantava ficar Se fosse poderia ser de melhor ajuda Mostraria aquelas vidas Apertam sua mão o abraçam Volta Seca está triste tão triste como se tivesse morrido um cangaceiro do grupo de Lampião Na noite do cais o homem da piteira que era um poeta entrega uma carta e dinheiro a Professor Ele o esperará no cais Telegrafei Espero que você não traia a confiança que depositei no seu talento Nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedida Volta Seca lhe dá um punhal de presente Pedro Bala faz tudo para rir para dizer coisas gozadasMas João Grande não esconde a tristeza que vai dentro dele Professor ainda de longe vê o boné de Pedro que se sacode no cais E no meio daqueles homens desconhecidos oficiais fardados comerciantes e senhoritas fica tímido não sabe que fazer sente que toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia Mas dentro do seu peito vem uma marca de amor à liberdade Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que antes de admirar espantam todo o país Passou o inverno passou o verão veio outro inverno e este cheio de longas chuvas o vento não deixou de correr uma só noite areal Agora Pirulito vendia jornais fazia trabalhos de engraxate carregava bagagens dos viajantes Conseguira deixar de furtar para viver Pedro Bata consentira que ele continuasse no trapiche apesar que ele não levava a mesma vida que os outros Pedro Bala não entende o que vai dentro de Pirulito Sabe que ele quer ser padre que quer fugir daquela vida Mas acha que aquilo não resolverá nada não endireitará nada na vida de todos eles O padre José Pedro fazia tudo para mudar a vida deles Mas era um só os outros não achavam que ele fizesse bem Que tinha adiantado Só todos unidos como dizia João de Adão Mas Deus chamava Pirulito Nas noites do trapiche o menino ouvia o chamado de Deus Era uma voz poderosa dentro dele Uma voz poderosa como a voz do mar como a voz do vento que corre em torno ao casarão Uma voz que não fala aos seus ouvidos que fala seu coração Uma voz que o chama que o alegra e o amedronta mesmo tempo Uma voz que exige tudo dele para lhe dar a felicidade a servir Deus o chama E o chamado de Deus dentro de Pirulito é poderoso como a voz do vento como a voz potente do mar Pirulito quer viver para Deus inteiramente para Deus uma vida de recolhimento e de penitência uma vida que o limpe dos pecados que o torne digno da contemplação de Deus Deus o chama e Pirulito pensa na sua salvação Será um penitente não olhará mais o espetáculo do mundo Não quer ver nada do que se passa no mundo para ter os olhos suficientemente limpos para poderem ver a face de Deus Porque para aqueles que não têm os olhos completamente limpos de todo pecado a face de Deus é terrível como o mar enfurecido Mas para que têm os olhos e o coração limpos de todo o pecado a face de Deus é mansa como as ondas do mar numa manhã de sol e de bonança Pirulito está marcado por Deus Mas está marcado também pela vida dos Capitães da Areia Desiste da sua liberdade de ver e ouvir o espetáculo do mundo da marca de aventura dos Capitães da Areia para ouvir o chamado de Deus Porque a voz de Deus que fala no seu coração é tão poderosa que não tem comparação Rezará pelos Capitães da Areia na sua cela de penitente Porque tem que ouvir e seguir a voz que o chama É uma voz que transfigura seu rosto na noite invernosa do trapicheComo se lá fora fosse a primavera Padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado Desta vez o Cônego está acompanhado do superior dos Capuchinhos Padre José Pedro treme pensando que novamente vão lhe ralhar vão falar dos seus pecados Fez uma coisa contra as leis para ajudar os Capitães da Areia Teme ter fracassado porque em quase nada conseguira melhorara vida deles Mas em certos momentos cruéis levara um pouco de conforto àqueles pequenos corações E tinha Pirulito Era uma conquista para Deus Se não fizera tudo se não transformara como queria aquelas vidas não tinha perdido tudo também Algo havia conseguido para Deus Se alegrava apesar da tristeza do pouco que havia conseguido para os Capitães da Areia Assim mesmo em certos momentos fora como a família que lhes faltava Certas horas tinha sido pai e mãe Agora os chefes estavam já rapazes quase homens Professor já tinha ido embora outros não tardariam a ir Mesmo que fossem ser ladrões levar uma vida de pecado em certos momentos o padre conseguira minorar o espetáculo de miséria das suas vidas com um pouco de conforto e de carinho E de solidariedade Mas desta vez o Cônego não ralha Anuncia que o arcebispado resolveu lhe dar uma paróquia Conclui O senhor nos deu muito que fazer padre com suas idéias erradas acerca de educação Espero que a bondade do Sr Arcebispo lhe dando esta paróquia fará com que o senhor pense nas suas obrigações e desista dessas inovações soviéticas A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros numa perdida vila do alto sertãoMas o nome do lugarejo alegrou o coração do padre José Pedro Ia para o meio dos cangaceiros E os cangaceiros são como crianças grandes Agradeceu ia falar mas o superior dos Capuchinhos o interrompeu O Sr Cônego me disse que entre estes meninos há um que tem vocação sacerdotal Ia falar disso mesmo disse o padre Nunca vi uma vocação tão decidida O missionário sorriu Porque nós estamos em falta de um irmão Não é o mesmo que ser padre bem sei Mas está muito próximo E se a sua vocação verdadeira a ordem pode fazêlo estudar e mesmo se ordenar Ele vai ficar louco de alegria O senhor responde por ele Pirulito irá ser frade Um dia talvez se ordene O padre sai agradecendo a Deus Levam o padre à estação O apito do trem é como um lamento Estão ali vários dos Capitães da Areia Padre José Pedro os fita com amor Pedro Bala diz O senhor foi bom pra gente padre Um homem bom A gente não vai esquecer o senhor Não reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com uma batina de frade um longo cordão pendendo ao lado Padre José Pedro diz Conhecem o irmão Francisco da Sagrada Família Eles olham Pirulito com certa vergonha Mas Pirulito sorri Está mais magro um ar de asceta Com o hábito de capuchinho fica muito alto Ele rezará por vocês diz o padre José Pedro Se despede Entra para o vagão O trem apita é como uma despedida Da janela o padre vê os meninos que agitam mãos e bonés velhos chapéus trapos que servem de lenço Uma velha que vai defronte dele doidinha para puxar conversa se espanta do padre chorando BoaVida pouco aparece no trapiche Tem um violão faz sambas está enorme mais um malandro nas ruas da Bahia Ninguém tem uma vida igual à dos malandros Passa o dia conversando nas docas no mercado vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite ou às macumbas Toca seu violão come e bebe do melhor apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia Então toca para eles ri com eles em gargalhadas como se ainda fosse um deles BoaVida vai se afastando aos poucos à proporção que vai crescendo Quando tiver dezenove anos já não voltará Será um malandro completo um daqueles mulatos que amam a Bahia acima de tudo que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade Inimigo da riqueza e do trabalho amigo das festas da música do corpo das cabrochas Malandro Armador de fuzuês Jogador de capoeira navalhista ladrão quando se fizer preciso De bom coração como canta um ABC que BoaVida faz acerca de outro malandro Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para o trabalho sendo malandro sempreUm dos valentões da cidade Figura que os futuros Capitães da Areia amarão e admirarão como Boa Vida amou e admirou o QueridodeDeus Um dia passado muito tempo Pedro Bala ia com o SemPernas pelas ruas Entraram numa igreja da Piedade gostavam de ver as coisas de ouro mesmo era fácil bater uma bolsa de uma senhora que rezasse Mas não havia nenhuma senhora na igreja àquela hora Somente um grupo de meninos pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo É Pirulito disse SemPernas Pedro Bala ficou olhando Encolheu os ombros Que adianta SemPernas olhou Não dá de comer Um dia um vai ser padre também Tem que ser é tudo junto SemPernas disse A bondade não basta Completou Só o ódio Pirulito não os via Com uma paciência e uma bondade extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça Pedro Bala botou a mão no ombro do SemPernas Nem o ódio nem a bondade Só a luta A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja A voz de ódio do SemPernas estava junto de Pedro Bala Mas ele não ouvia nenhuma Ouvia era a voz de João de Adão o doqueiro a voz de seu pai morrendo na luta Canção de amor da vitalina Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro Era a última de uma família rica andava pelos quarenta e cinco anos feia e nervosa Corna a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro de brilhantes e jóias acumuladas pela família através de gerações Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado de dinheiro Gonzales o dono da casa de penhor O 14 dava dinheiro por aqueles objetos Perguntou ao SemPernas Tu é capaz de penetrar Se sou Depois a gente invade Riram no trapiche Gato saiu para ver Dalva SemPernas avisou Amanhã de manhã vou lá A solteirona abriu a porta Só tinha uma criada uma negra velha que parecia fazer parte da herança pois acompanhava a família há cinqüenta anos A solteirona olhou muito digna para o SemPernas Quer alguma coisa Eu sou um pobre ódio e aleijado mostrava a perna coxa Não quero viver furtando nem pedindo esmola A senhora tem um trabalho para mim Posso fazer compras A solteirona não tirava os olhos dele Um menino Não era a bondade que falava dentro dela Era a voz do sexo que dava seus últimos latidos Dentro em pouco seu sexo ficaria inútil os médicos diziam que então o seu nervoso cessaria Muito antes quando ainda era mocinha houvera um menino na casa para fazer comprasFora bom Mas seu irmão descobrira expulsara o menino Agora o irmão estava morto outro menino vinha pedir para fazer compras Tá bem Mandou que ele tomasse banho Pela tarde deulhe dinheiro para as compras e mais para uma roupa para ele SemPernas conseguiu bater mil e duzentos nas contasPensou Aqui vou é fazer dinheiro Na cozinha a negra contava histórias antigas com sua língua embolada Sem Pernas ouvia demonstrando excessivo interesse para ganhar confiança da negra Mas quando perguntou pelas coisas de ouro a negra não respondeu SemPernas não insistiu Sabia ser paciente estava acostumado àquele trabalho Na sala a solteirona fazia ponto de cruz numa toalha mirava SemPernas com interesse pela porta Era feia de cara mas o corpo velhusco ainda tinha certo atrativo Chamou SemPernas para ver o trabalho que ela estava fazendo quando Sem Pernas olhou ela se curvou ele viu os seios grandes Mas não pensou que ela estivesse lhe mostrando Achou o trabalho muito bonito disse A senhora é muito inteligente Parecia até um menino bemeducado Apesar da perna coxa e da cara feia a solteirona o achou lindo Seria melhor que fosse um pouco menos crescido Mas assim mesmo Novamente se curvou mostrou os seios ao SemPernas Sem Pernas desviou o olhar não pensava que fosse de propósito Quando ele elogiou novamente o trabalho ela passou a mão no seu rosto Obrigada meu filho sua voz era lânguida A negra botou um colchão na sala de jantar para o SemPernas dormir Cobriu com um lençol arranjou um travesseiro A solteirona conversava na casa de uma amiga na mesma rua e quando voltou SemPernas já estava deitado Ouviu que ela se despedia de alguém Desculpe este trabalho de trazer uma vitalina pra casa Dona Joana não diga isso Entrou trancou a porta da rua tirou a chave A negra já tinha ido dormir no quarto junto da cozinha A solteirona veio até a sala de jantar deu uma espiada em SemPernas que fez que estava dormindo Suspirou Marchou para seu quarto As luzes estavam todas apagadas na casa Apesar de ser muito cedo em relação à hora em que dormiam no trapiche SemPernas se entregou ao sono Por isso não sabe a que horas a vitalina veio Sentiu foi uma mão que passava em seus cabelos Pensou que fosse um sonho bom A mão deslizava passava no seu peito na sua barriga agora segurava de manso no seu sexo SemPernas despertou completamente mas ficou de olhos fechados A solteirona machucava seu sexo se encostava contra ele Estava de camisa de dormir suspendeu a camisa botou a mão de SemPernas no seu corpo SemPernas se encostou nela Quis falar ela pôs a mão na sua boca apontou para a cozinha Pode ouvir Disse ainda mais baixo Tu vai ser bom para mim não vai Se apertava contra ele Puxou as calças do SemPernas Depois se cobriram com o lençol Mas quando SemPernas quis tudo ela disse Não Só em cima Era uma coisa incompleta que enraivecia SemPernas A solteirona gemia baixinho de amor Apertava a cabeça do SemPernas contra seus seios enormes o sexo dele contra suas coxas a mão do menino no seu sexo SemPernas levanta estremunhado Um grande cansaço nos seus membros Aquelas noites são como batalhas Nunca é um gozo completo uma satisfação total A solteirona quer uma migalha de amor Teme o amor completo o escândalo de um filho Mas tem sede e fome de amor quer nem que sejam as migalhas Mas SemPernas quer fazer o amor completo aquilo o irrita faz crescer seu ódio Ao mesmo tempo se sente preso ao corpo da solteirona às carícias a meio trocadas na noite Uma coisa o retém naquela casa Se bem ao acordar tenha ódio de Joana uma raiva impotente uma vontade de a estrangular já que não a pode possuir totalmente se a acha feia e velha quando a noite se acerca fica nervoso pelos carinhos da vitalina pela mão que movimenta seu sexo de menino pelos seus seios onde repousa a cabeça pelas suas coxas grossas Imagina planos para a possuir mas a solteirona os frustra fugindo no último momento e ralha com ele em voz baixa Uma raiva surda possui Sem PernasMas a mão dela vem de novo para seu sexo e ele não pode lutar contra o desejo E volta àquela luta tremenda da qual sai nervoso e esgotado Durante o dia responde mal a Joana diz brutalidades a solteirona chora Ele a chama de vitalina diz que vai embora Ela lhe dá dinheiro pede que ele fique Mas não é pelo dinheiro que ele fica Fica porque o desejo o retém Já sabe qual a chave que abre a sala onde Joana guarda seus objetos de ouro Sabe como tirar a chave para levála aos Capitães da Areia Mas o desejo o retém ali junto dos seios e das coxas da vitalina Junto da mão da vitalinaFora sempre infeliz para o lado de mulher Quando conseguia uma negrinha no areal era com a ajuda dos outros era à força Nenhuma olhava para ele convidando com os olhos Outros eram feios mas ele era repulsivo com a perna coxa andando feito caranguejo Demais terminara por se fazer antipático e a se acostumara possuir negrinhas a pulso Agora vinha uma mulher branca e com dinheiro velha e feiúsca era verdade mas bem comível ainda e se deitava com ele Acariciava seu sexo com a mão juntava coxa com coxa deitava sua cabeça nos seus seios grandes SemPernas não podia sair dali se bem cada dia estivesse mais bruto e mais inquietoSeu desejo reclamava uma posse completa Mas a vitalina se contentava em colher migalhas do amor SemPernas durante o dia a odeia se odeia odeia o mundo todo Pedro Bala reclamou a demora Já era tempo do SemPernas saber os segredos da casa SemPernas diz que sim que não demora mais E naquela noite a batalha de amor é mais forte ainda A solteirona geme de amor recolhendo as migalhas do amor Mas não cede a sua honra Isso dá coragem ao SemPernas para no outro dia arribar com a chave A vitalina o espera para o amor Está como uma esposa a quem o marido abandonasse Chora e se lastima Seu amor não vem ela também precisa de amor como todas essas moças que passam de vestidos bonitos na rua Mas o roubo a enfurece Porque pensa que SemPernas só amou nas noites longas de vícios para a furtar Sua sede de amor humilhada É como se houvessem cuspido na sua cara dizendo que era por causa da sua feiúra Chora não geme mais uma canção de amor Se sente com coragem para estrangular o SemPernas se encontrassePorque burlaram do seu amor da sede de amor que está no seu sangue A sua desgraça é mais completa porque durante uma semana foi plenamente feliz com as migalhas de amor Rola no chão com um ataque No trapiche SemPernas ri relatando sua aventura Mas no fundo sabe que a solteirona o fez ainda pior aumentou com seus vícios o ódio que vivia latente no seu coração Agora um desejo insatisfeito enche suas noites Um desejo que impede seu sono que lhe dá raiva Na rabada de um trem Os navios chegam a Ilhéus carregados de mulheres Mulheres que vêm da Bahia de Aracaju o mulherio todo de Recife mesmo do Rio de Janeiro Os gordos coronéis olham das pontes a chegada das mulheres Morenas loiras e mulatas vêm em busca deles Porque a notícia da alta do cacau correu pelo país todo A notícia de que numa cidade relativamente pequena como Ilhéus estavam abertos quatro cabarés Que os coronéis queimavam nas noites de jogo e de champanha notas de quinhentos milréisQue pela madrugada saíam nus pelas ruas da cidade formando o chamado terno do Y A notícia corria pelas ruas de mulheres perdidas Os caixeirosviajantes levavam a notícia O cabaré da Brama em Aracaju ficou despovoado de mulheres Foram para o ElDorado cabaré de Ilhéus O mulherio de Recife desceu todo em alguns navios do Lloyd Brasileiro Os pernambucanos ficaram sem mulheres vieram todas para o cabaré Bataclan apelidado pelos estudantes em férias de Escola Vieram algumas do Rio de Janeiro e estas foram para o Trianon exVesúvio o mais luxuoso dos quatro cabarés da cidade do cacau Até Rita Tanajura célebre pelas grandes nádegas reboleantes deixou a paz da sua cidade de Estância onde era a rainha do pequeno mulherio de vida fácil e onde se dava com todo mundo e veio ser a rainha do FarWest o cabaré da rua do Sapo onde os beijos e o estalo das garrafas de champanha se misturavam com os tiros com o barulho das brigas Porque o FarWest era o cabaré dos capatazes dos pequenos fazendeiros de repente enriquecidos Na rua de Dalva na zona das mulheres perdidas da Bahia a casas se despovoaram Vieram mulheres para o Bataclan mulheres para o ElDorado mulheres para o FarWestUmas poucas vieram para o Trianon onde dançavam com os coronéis No Bataclan mulheres pernambucanas e sergipanas davam parte do dinheiro que ganhavam dos coronéis e que era muito aos estudantes que em compensação lhes davam o amor Os viajantes enchiam o ElDorado Até no Far West as mulheres ganhavam jóias Por vezes ganhavam um tiro também como uma estranha jóia vermelha no peito Rita Tanajura dançava o charleston em cima de uma mesa entre champanha e tiros Tudo isso foi naquela alta do cacau de há muitos anos Quando Dalva soube que Isabel tinha colares e anel de brilhante e no entanto não estava no Trianon que era o mais luxuoso dos cabarés estava era no Bataclan não resistiu Arrumou as malas O que não faria ela no Trianon ela que era a melhor das mulheres da sua rua Enfardou Gato com uma elegantíssima roupa de casimira feita sol medida de repente Gato não era mais um menino era o mais jovem dos vigaristas da Bahia Na noite que envergando seu traje novo sapatos negros de verniz gravata borboleta chapéu de palhinha apareceu no trapiche João Grande soltou uma exclamação de assombro Pois não é o Gato Gato não fizera ainda dezoito anos Fazia quatro que amava Dalva Virou para João Grande Agora vou começar a vida Ofereceu cigarros tirados de uma cigarreira cara alisou o cabelo bem assentado Botou a mão no ombro de Pedro Bala Mano vou para Ilhéus A patroa vai cavar a vida Eu vou com ela Sou capaz de enricar Quando tiver fazendeiro a gente vai faze uma farra daquelas Pedro sorriu Era outro que ia Não seriam meninos toda vida Bem sabia que eles nunca tinham parecido crianças Desde pequenos na arriscada vida da rua os Capitães da Areia eram como homens eram iguais a homens Toda a diferença estava no tamanho No mais eram iguais amavam e derrubavam negras no areal desde cedo furtavam para viver como os ladrões da cidade Quando eram preso apanhavam surras como os homensPor vezes assaltavam de armas na mão como os mais temidos bandidos da Bahia Não tinham também conversas de meninos conversavam como homens Sentiam mesmo como homens Quando outras crianças só se preocupavam com brincar estudar livros para aprender a ler eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver Sempre tinham sido como homens na sua vida de miséria e de aventura nunca tinham sido perfeitamente crianças Porque o que faz a criança é o ambiente de casa pai mãe nenhuma responsabilidade Nunca eles tiveram pai e mãe na vida da rua E tiveram sempre que cuidar de si mesmos foram sempre os responsáveis por si Tinham sido sempre iguais a homens Agora os mais velhos os que eram desde há anos os chefes do grupo estavam rapazolas começavam a ir para seus destinosProfessor já fora fazia quadros no Rio de Janeiro BoaVida se desligara aos poucos do trapiche toca violão nas festas vai aos candomblés arma fuzuê nas quermesses É mais um malandro na cidade Seu nome já é conhecido até nos jornais Como os outros vagabundos é conhecido pelos investigadores de polícia que sempre estão de olho nos malandros Pirulito é frade num convento Deus o chamou nunca mais saberão dele Agora é o Gato que parte vai arrancar dinheiro dos coronéis de IlhéusO QueridodeDeus certa vez disse que Gato enricaria Porque a vida na rua no abandono fez de Gato um jogador desonesto um vigarista um gigolô de mulheres Não demorará que os outros partam Só Pedro Bala não sabe o que fazer Dentro em pouco será mais que um rapazola será um homem e terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia Para onde irá Não poderá ser um intelectual como Professor cujas mãos só viviam para pintar não nasceu para malandro como BoaVida que não sente o espetáculo da luta diária dos homens que só ama andar vagabundando pelas ruas conversar acocorado nas docas beber nas festas de morro Pedro sente o espetáculo dos homens acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede de liberdade que tem dentro de si Tampouco sente o chamado de Deus como Pirulito o sentiu Para ele as pregações do padre José Pedro nunca disseram nada Gostava do padre como de um homem bom Só as palavras de João de Adão encontravam acolhida no seu coração Mas João de Adão mesmo sabe muito pouco O que tem é músculos potentes e voz autoritária e no entanto amiga para chefiar uma greve Tampouco Pedro Bala quer ir como Gato enganar os coronéis de Ilhéus arranca o dinheiro deles Quer qualquer coisa que não sabe ainda o que é e por isso se demora entre os Capitães da Areia O trapiche grita se despedindo do Gato Este sorri elegantíssimo alisando o cabelo no dedo aquele anelão cor de vinho que furtar certa vez Do cais Pedro Bala dá adeus ao Gato Vestido com suas roupas esfarrapadas agitando o boné se sente muito longe do Gato que ao lado de Dalva parece um homem feito com sua roupa bem talhada Pedro sente uma aflição uma vontade de fugir de ir para qualquer parte num navio ou na rabada de um trem Mas quem vai na rabada de um trem é Volta Seca Uma tarde a polícia o pegou quando o mulato despojava um negociante da sua carteira Volta Seca tinha então dezesseis anos Foi levado para a polícia o surraram porque ele xingava todos soldados e delegados com aquele imenso desprezo que o sertanejo tem pela polícia Ele não soltou um grito enquanto apanhou Oito dias depois o puseram na rua e ele saiu quase alegre porque agora tinha uma missão na vida matar soldados de polícia Passou uns dias no trapiche o rosto sombrio afogado em pensamentos O sertão o chamava a luta do cangaço o chamava Um dia disse a Pedro Bala Vou passar uns tempos com os Maloqueiros em Aracaju Os Índios Maloqueiros eram os Capitães da Areia em Aracaju Viviam sob as pontes roubavam e brigavam nas ruas O juiz de menores Olimpio Mendonça era um homem bom procurava resolver os conflitos como melhor podia se abismava com a inteligência das crianças iguais a homens compreendia que era impossível resolver o problemaContava aos romancistas coisas dos meninos no fundo amava os meninos Mas se sentia aflito porque não podia resolver o problema deles Quando entre os Índios Maloqueiros aparecia algum novo ele já sabia que era um baiano que tinha chegado na rabada de um trem E quando um sumia sabia que tinha ido para entre os Capitães da Areia na Bahia Uma madrugada o trem de Sergipe apitou na estação da Calçada Ninguém tinha vindo trazer Volta Seca à estação porque ele ia para voltar ia passar uns tempos entre os Índios Maloqueiros esquecer a polícia baiana que o tinha marcado Volta Seca se meteu no vagão de carga que estava aberto se escondeu entre uns fardos Aos poucos o trem abandona a estação Depois é a estrada do sertão Índia Nordestina Nas casas de barro aparecem mulheres e meninas Os homens seminus lavram a terraNa estrada de animais que corre paralela à estrada de ferro passam boiadas Vaqueiros gritam tangendo os animais Nas estações vendem doces de milho mingau mungunzá pamonha e canjica O sertão vai entrando pelo nariz e pelos olhos de Volta Seca Queijos e rapaduras passam em tabuleiros nas pequenas estações as paisagens agrestes jamais esquecidas enchem novamente os olhos do sertanejo Estes muitos anos na cidade não tinham arrancado seu amor ao sertão miserável e belo Nunca fora um menino da cidade igual a Pedro Bala a BoaVida ao Gato Fora sempre um deslocado na cidade com uma fala diferente falando em Lampião dizendo meu padrim imitando as vozes dos animais sertanejos Antigamente ele e sua mãe tinham um pedaço de terra Ela era comadre de Lampião os coronéis respeitavam sua terra Mas quando Lampião se internou pelo sertão de Pernambuco os coronéis ficaram com a terra da mãe de Volta Seca Ela desceu para a cidade para pedir justiça Morreu no caminho Volta Seca continuou a caminhada com seu rosto sombrio Muita coisa aprendeu na cidade entre os Capitães da Areia Aprendeu que não era só no sertão que os homens ricos eram ruins para com os pobresNa cidade também Aprendeu que as crianças pobres são desgraçadas em toda parte que os ricos perseguem e mandam em toda parte Sorriu por vezes mas nunca deixou de odiar Na figura de José Pedro descobriu o motivo por que Lampião respeitava os padre s Se já pensava que Lampião era um herói a sua experiência na cidade o ódio adquirido na cidade fez com que amasse a figura de seu padrinho acima de tudo Acima mesmo da de Pedro Bala Agora é o sertão Perfume das flores do sertão Campos amigos aves amigas magros cachorros nas portas das casas Velhos que parecem missionários indianos negros de longos rosários no pescoço Cheiro bom de comidas de milho e mandioca Homens magros que lavram a terra para ganhar mil e quinhentos dos donos da terra Só caatinga é que é de todos porque Lampião libertou a caatinga expulsou os homens ricos da caatinga fez da caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros O herói Lampião herói de todo o sertão de cinco estados Dizem que ele é um criminoso um cangaceiro sem coração assassino desonrador ladrão Mas para Volta Seca para os homens as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares ele é um libertador um capitão de um novo exército Porque a liberdade é como o sol o bem maior do mundo E Lampião luta mata deflora e furta pela liberdade Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados Pernambuco Paraíba Alagoas Sergipe e Bahia O sertão comove os olhos de Volta Seca O trem não corre este vai devagar cortando as terras do sertão Aqui tudo é lírico pobre e belo Só a miséria dos homens é terrível Mas estes homens são tão fortes que conseguem criar beleza dentro desta miséria Que não farão quando Lampião libertar toda a caatinga implantar a justiça e a liberdade Passam violeiros improvisadores de poesia Passam vaqueiros que tangem o gado homens plantam mandioca e milho Nas estações os coronéis descem para estirar as pernas Levam grandes revólveres Os violeiros cegos cantam pedindo uma esmola Um negro de camisa e rosário atravessa essa a estação dizendo estranhas coisas em língua desconhecida Foi escravo hoje é um doido na estação Todos temem temem suas pragas Porque ele sofreu muito o chicote de feitor rasgou suas costas Também o chicote da polícia feitor dos ricos rasgou as costas de Volta Seca Todos o temerão um dia também Caatingas do sertão olor das flores sertanejas o manso andar do trem sertanejo Homens de alpercatas e chapéu de couro Criança que estudam para cangaceiro na escola da miséria e da exploração do homem O trem pára no meio da caatinga Volta Seca pula fora do vagão Os cangaceiros apontam os fuzis o caminhão que os trouxe está parado no outro lado da estrada os fios do telégrafo cortados Na caatinga agreste não se vê ninguém Uma moça desmaia num dos carros um caixeiroviajante esconde a carteira com dinheiroUm coronel gordo sai do vagão fala Capitão Virgulino O cangaceiro de óculos aponta o fuzil Para dentro Volta Seca pensa que seu coração vai estalar de alegria Encontrou seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião herói das crianças sertanejas Chega para junto dele um outro cangaceiro o quer afastar mas ele diz Meu padrim Quem é tu Sou Volta Seca filho de tua comadre Lampião o reconhece sorri Os cangaceiros estão entrando nos vagões de primeira não são muitos uns doze Volta Seca pede Meu padrim deixe eu ficar com você Me dê um fuzil Tu ainda é um menino Lampião olha com seus óculos escuros Não sou mais não já briguei com soldado Lampião grita Zé Baiano dá um fuzil a Volta Seca Olha o afilhado Tu guarda esta saída Se um quiser arribar mete fogo Entra para a coleta Desmaios e gritos lá dentro o soar de um disparo Depois o grupo volta para a estrada Traz dois soldados de polícia que viajavam no tremLampião divide dinheiro com os cangaceiros Volta Seca também recebe De um vagão sai um fio de sangue O cheiro bom do sertão penetra as narinas de volta SecaOs soldados são encostados numas árvores Zé Baiano prepara o fuzil mas a voz de Volta Seca faz um pedido Deixe pra mim padrim Eles me bateram na polícia bateram em muito menino Levanta o fuzil qual é o sertanejo que não tem boa pontaria Seu rosto sombrio tem um riso que o enche todo Cai o primeiro o segundo tenta fugir mas a bala o alcança nas costas Depois Volta Seca corre para cima dele com o punhal sacia sua vingança Zé Baiano diz Este menino é dos bons A mãe dele era um bicho minha comadre lembra Lampião orgulhoso Uma verdadeira fera pensa o viajante enquanto o trem se move lentamente após os empregados afastarem os toros de madeira de sobre os trilhos O grupo de cangaceiros se perde na caatinga O ar do sertão enche o peito de Volta Seca que pára e com o punhal faz dois traços na madeira do fuzil Os dois primeirosAo longe o trem apita angustiosamente Como um trapezista de circo Fora demasiada audácia atacar aquela casa da rua rui Barbosa Perto dali na praça do Palácio andavam muitos guardas investigadores soldados Mas eles tinham sede de aventura estavam cada vez maiores cada vez mais atrevidos Porém havia muita gente na casa deram o alarme os guardas chegaram Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça Barandão abriu no mundo também Mas o SemPernas ficou encurralado na rua Jogava picula com os guardas Estes tinham se despreocupado dos outros pensavam que já era alguma coisa pegar aquele coxo SemPernas corria de um lado para outro da rua os guardas avançavam Ele fez que ia escapuli por outro lado driblou um dos guardas saiu pela ladeira Mas em vez de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros se dirigiu para a praça do Palácio Porque SemPernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza Eram homens de pernas maiores que as suas e além do mais ele era coxo pouco podia correr E acima de tudo não queria que o pegassem Lembravase da vez que fora à polícia Dos sonhos das suas noites más Não o pegariam e enquanto corre este é o único pensamento que vai com ele Os guardas vêm nos seus calcanhares SemPernas sabe que eles gostarão de o pegar que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda Essa será a sua vingança Não deixará que o peguem não tocarão a mão no seu corpo SemPernas os odeia como odeia a todo mundo porque nunca pôde ter um carinho E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha marcado demais Nunca tivera uma alegria de criança Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas a vida de criança abandonada Nunca conseguira amar ninguém a não ser a este cachorro que o segue Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos o do SemPernas já estava cheio de ódio Odiava a cidade a vida os homensAmava unicamente o seu ódio sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico Uma vez uma mulher foi boa para ele Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama acariciara seu sexo se aproveitara dele para colher migalhas do amor que nunca tivera Nunca porém o tinham amado pelo que ele era menino abandonado aleijado e triste Muita gente tinha odiadoE ele odiara a todos Apanhara na polícia um homem ria quando o surravam Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas Se o levarem o homem rirá novo Não o levarão Vêm em seus calcanhares mas não o levarão Pensam que elevai parar junto ao grande elevador Mas SemPernas não pára Sobe para o pequeno muro volve o rosto para os guardas que ainda correm ri com toda a força do seu ódio cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo A praça toda fica em suspenso por um momento Se jogou diz uma mulher e desmaia SemPernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio O cachorro late entre as grades do muro Notícias de jornal O Jornal da Tarde publica um telegrama do rio dando conta do sucesso da exposição de um jovem pintor até então desconhecido Dias depois transcreve uma crítica de arte publicada também num jornal do Rio de Janeiro Porque o pintor é baiano e o Jornal da Tarde é muito cioso das glórias baianas Um trecho da crítica de arte após falar das qualidades e defeitos do novo pintor social de usar e abusar de expressões como clima luz cor ângulos força e outras mais diz um detalhe notaram todos que foram estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante Que representará para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros Sabese que o pintor João José tem uma história E continuava o abuso das palavras cor força clima luz ângulos e outras mais complicadas Meses depois uma notícia informava aos leitores do Jornal da Tarde sob o título de PRESENTE DE GREGO A POLÍCIA DE BELMONTE DEVOLVE O VIGARISTA GATO que a polícia de Belmonte havia recebido da policia de Ilhéus um verdadeiro presente de grego Um conhecido e jovem vigarista que atuava em Ilhéus com o nome de Gato após ter abiscoitado bons cobres de muitos fazendeiros e comerciantes fora remetido para Belmonte Lá continuava a passar contos do vigário em que era mestre Conseguira vender uma imensidade de terras ótimas para o cultivo do cacau a muitos fazendeiros Quando estes foram ver as terras não eram mais que o leito sobre o qual corre o rio Cachoeira A polícia de Belmonte tinha conseguido deitar mão no temível vigarista e o remetia de volta para Ilhéus Os ilheenses são mais ricos que nós terminava com certa ironia o correspondente que assinava a notícia podem sustentar com mais conforto o elegante Gato que os filhos da bela Belmonte a Princesa do Sul Porque se Belmonte é a Princesa Ilhéus é muito justamente chamada a Rainha do Sul Entre fatos policiais sem importância o Jornal da Tarde noticiou um dia que um malandro conhecido pelo nome de BoaVida armara um fuzuê tremendo numa festa na Cidade de Palha abrira a cabeça do dono da casa com uma garrafa de cerveja e estava sendo procurado pela polícia Perto de um Natal o Jornal da Tarde apareceu com manchetes em tipos enormes Uma notícia de tanta sensação como aquela que fizera conhecida a história da mulher que acompanhava o bando de Lampião a amante do cangaceiro Porque a população dos cinco estados de Bahia Sergipe Alagoas Paraíba e Pernambuco vive com os olhos fitos em Lampião Com ódio ou com amor nunca com indiferença A manchete dizia em letras garrafais UMA CRIANÇA DE 16 ANOS NO GRUPO DE LAMPIÃO Os tipos das letras dos títulos que encabeçavam a reportagem eram também enormes É UM DOS MAIS TEMÍVEIS CANGACEIROS TRINTA E CINCO TRAÇOS NO SEU FUZIL PERTENCEU AOS CAPITÃES DA AREIA A MORTE DE MACHADÃO DEVIDA A VOLTA SECA A reportagem era extensa Contava como as vilas saqueadas há algum tempo vinham notando entre o bando de Lampião uma criança de uns dezesseis anos que levava o nome de Volta Seca Apesar da sua idade o jovem cangaceiro se fizera temido em todo o sertão como um dos mais cruéis do grupo Constava que seu fuzil tinha trinta e cinco marcas E cada marca num fuzil de cangaceiro representa um homem morto Depois vinha a história da morte de Machadão um dos mais antigos do grupo de Lampião Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho sargento de polícia E Lampião o entregara a Volta Seca para que o despachasse Volta Seca o despachara devagarinho à ponta de punhal cortando os pedacinhos com visível satisfação Fora tanta a crueldade que Machadão horrorizado levantou o fuzil para acabar com Volta Seca Mas antes que disparasse Lampião que tinha um grande orgulho de Volta Seca atirou em Machadão Volta Seca continuara sua tarefa A notícia se estendia narrando diversos outros crimes do cangaceiro de 16 anos Depois lembrava que entre os Capitães da Areia vivera um menino com o nome de Volta Seca e que era possível que fosse o mesmo Vinham então várias considerações de ordem moral A edição se esgotou Meses depois a edição se esgotou novamente porque trazia a notícia da prisão de Volta Seca enquanto dormia executada pela coluna volante que percorria o sertão dando caça a Lampião Anunciava que o cangaceiro chegaria no outro dia à Bahia Vinham vários clichês onde Volta Seca aparecia com seu rosto sombrio O Jornal da Tarde dizia que era rosto de criminoso nato O que não era verdade como o próprio Jornal da Tarde noticiou tempos depois ao relatar em edições extraordinárias e sucessivas o júri que condenou Volta Seca a 30 anos de prisão por 15 mortes conhecidas e provadas No entanto seu fuzil tinha 60 marcas E o jornal lembrava esse fato repetindo que cada marca era um homem morto Mas publicava também parte do relatório do médicolegista cavalheiro de honestidade e cultura reconhecidas já então um dos grandes sociólogos e etnógrafos do país relatório que provava que Volta Seca era um tipo absolutamente normal e que se virara cangaceiro e matara tantos homens e com tamanha crueldade não fora por vocação de nascença Fora o ambiente e vinham as devidas considerações científicas O que aliás não despertou tanta curiosidade entre o público como a descrição de belíssimo vibrantíssimo e apaixonadíssimo discurso de doutor Promotor Público que fizera os jurados chorar e até o próprio juiz tinha limpado as lágrimas ao descrever o doutor Promotor com sublime força oratória o sofrimento das vítimas do feroz cangaceiromenino O público ficou indignado porque Volta Seca não chorou durante o júri Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma Companheiros Há um movimento novo na cidade Pedro Bala sai do trapiche com João Grande e Barandão O cais está deserto parece que todos o abandonaram Somente soldados de policia guardam os grandes armazéns Não há descarga de navios neste dia Porque os estivadores com João de Adão à frente foram prestar solidariedade aos condutores de bonde que estão em greve Parece que há uma festa na cidade mas uma festa diferente de todas Passam grupos de homens que conversam os automóveis cortam as ruas conduzindo gente para o trabalho empregados no comércio riem a ladeira da Montanha está cheia de gente que sobe e desce pois os elevadores também estão paradosAs marinetes vão entupidas gente sobrando pelas portas Os grupos de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato onde vão ouvir a leitura do manifesto dos estivadores que João de Adão conduz nas suas mãos grandes Na porta do sindicato grupos conversam soldados montam guarda Pedro Bala anda com João Grande e Barandão pelas ruas Diz Tá bonito João Grande também sorri o negrinho Barandão fala Hoje vai ter fuzuê Eu é que não queria ser condutor de bonde nem motorneiro Ganha uma porcaria Eles faz bem fala João Grande Vamos espiar propõe Pedro Bala Vão para a porta do sindicato Entram homens negros mulatos espanhóis e portugueses Vêem quando João de Adão e os outros estivadores saem entre vivas dos operários das linhas de bonde Eles vivam também João Grande e Barandão porque gostam do doqueiro João de Adão Pedro Bala não só por isso como porque acha bonito o espetáculo da greve é como uma das mais belas aventuras dos Capitães da Areia Um grupo de homens bem vestidos entra no sindicato Da porta eles ouvem uma voz que discursa uma que interrompe Vendido amarelo Tá bonito repete Pedro Bala Tem vontade de entrar de se misturar com os grevistas de gritar e lutar ao lado deles A cidade dormiu cedo A lua ilumina o céu vem a voz de um negro do mar em frente Canta a amargura da sua vida desde que a amada se foi No trapiche as crianças já dormem Até o negro João Grande ronca estirado na porta o punhal ao alcance da mão Somente Pedro Bala vela estirado na areia olhando a lua ouvindo o negro que canta as saudades da sua mulata que partiu O vento traz trechos soltos da canção e ela faz com que Pedro Bala procure Dora no meio das estrelas do céu Ela também virou uma estrela uma estranha estrela de longa cabeleira loira Os homens valentes têm uma estrela em lugar do coração Mas nunca se ouviu falar de uma mulher que tivesse no peito como uma flor uma estrela As mulheres mais valentes da terra e do mar da Bahia quando morriam viravam santas para os negros como os malandros que foram também muito valentes Rosa Palmeirão virou santa num candomblé de caboclo rezam para ela orações em nagô Maria Cabaçu é santa nos candomblés de Itabuna pois foi naquela cidade que ela mostrou sua coragem primeiro Eram duas mulheres grandes e fortes De braços musculosos como homens como grevistas Rosa Palmeirão era bonita tinha o andar gingado de marítima era uma mulher do mar certa vez teve um saveiro cortou as ondas da entrada da barra Os homens do cais a amavam não só pela sua coragem como pelo seu corpo também Maria Cabaçu era feia mulata escura filha de negro e índia grossa e zangada Dava nos homens que a achavam feia Mas se entregou toda a um cearense amarelo e fraco que a amou como se ela fosse uma mulher bonita de corpo belo e olhos sensuais Tinham sido valentes viraram santas nos candomblés de caboclo que são candomblés que de quando em vez inventam novos santos não têm aquela pureza de rito dos candomblés nagôs dos negros São candomblés dos mulatos Mas Dora fora mais valente que elas Era apenas uma menina vivera igual a um dos Capitães da Areia e todos sabem que um capitão da areia é igual a um homem valente Dora vivera com eles fora mãe para todos eles Mas fora irmã também correra com eles pelas ruas invadira casas batera carteiras brigara com o grupo de EzequielDepois para Pedro Bala fora noiva e esposa esposa quando a febre a devorava quando a morte já a rondava naquela noite de tanta paz Paz que ia dos olhos dela para a noite em torno Estivera no orfanato fugira dele igual a Pedro Bala fugindo do reformatório Tivera coragem para morrer consolando seus filhos irmãos noivos e esposo que eram os Capitães da Areia A mãedesanto DonAninha a enrolara numa toalha branca bordada como se fora para um santo O QueridodeDeus a levara no seu saveiro para junto de Yemanjá Padre José Pedro rezava Todos a queriam Mas só Pedro Bala quis ir com ela Professor fugiu do trapiche porque não pôde mais suportar o casarão depois que ela partiu Mas só Pedro Bala se jogou nágua para seguir o destino de Dora ir fazer com ela aquela maravilhosa viagem que os valentes fazem com Yemanjá no fundo verde do mar Por isso só ele viu quando ela virou estrela e cruzou os céus Ela veio só para ele com sua longa cabeleira loira Brilhou sobre sua cabeça de quase afogado e suicida Deulhe novas forças o saveiro do QueridodeDeus que voltava o pôde recolher Agora olha o céu procurando a estrela de Dora É uma estrela de longa cabeleira loira uma estrela como não existe nenhuma outra Porque nunca existiu nenhuma mulher como Dora que era uma menina A noite está cheia de estrelas que se refletem no mar calmo A voz do negro parece se dirigir às estrelas como que há pranto na sua voz cheia Ele também procura a amada que fugiu na noite da Bahia Pedro Bala pensa que a estrela que é Dora talvez ande agora correndo sobre as ruas becos e ladeiras da cidade a procuráloTalvez o pense numa aventura nas ladeiras Mas hoje não são os Capitães da Areia que estão metidos numa bela aventura São os condutores de bonde negros fortes mulatos risonhos espanhóis e portugueses que vieram de terras distantes São eles que levantam os braços e gritam iguais aos Capitães da Areia A greve se soltou na cidade É uma coisa bonita a greve é a mais bela das aventuras Pedro Bala tem vontade de entrar na greve de gritar com toda a força do seu peito de apartear os discursos Seu pai fazia discursos numa greve uma bala o derrubou Ele tem sangue de grevista Demais a vida da rua o ensinou a amar a liberdadeA canção daqueles presos dizia que a liberdade é como o sol o bem maior do mundo Sabe que os grevistas lutam pela liberdade por um pouco mais de pão por um pouco mais de liberdade É como uma festa aquela luta Os vultos que se aproximam o fazem levantar desconfiado Mas logo reconhece a figura enorme do estivador João de Adão Junto a ele vem um rapaz bem vestido mas com os cabelos despenteados Pedro Bala tira o boné fala para João de Adão Tu hoje ganhou viva hein João de Adão ri Distende seus músculos seu rosto está aberto num sorriso para o chefe dos Capitães da Areia Capitão Pedro eu quero apresentar a tu o companheiro Alberto O rapaz estende a mão para Pedro Bala O chefe dos Capitães da Areia limpa primeiro sua mão no paletó rasgado depois aperta a do estudante João de Adão está explicando É um estudante da Faculdade mas é um companheiro da gente Pedro Bala olha sem desconfiança O estudante sorri Já ouvi falar muito em você e em seu grupo Você é um batuta A gente é macho sim responde Pedro Bala João de Adão se aproxima mais Capitão a gente tem que conversar com tu Tem um assunto com tu Um troço sério Aqui o companheiro Alberto Vamos para dentro fala Pedro Bala Acordam João Grande ao passar O negro olha com desconfiança o estudante pensa que é um polícia levanta um pouco o punhal por detrás do braço Só Pedro Bala vê e fala É um amigo de João de Adão Vem com a gente Grande Vão os quatro Sentam num canto Alguns dos Capitães da Areia acordam e espiam o grupo O estudante olha o trapiche as crianças que dormem Treme como se um vento frio tivesse passado pelo seu corpo Que horror Mas Pedro Bala está dizendo a João de Adão Que coisa porreta a greve Nunca vi coisa tão bonita É como uma festa A greve é a festa dos pobres diz o estudante A voz de Alberto é mansa e boa Pedro Bala o escuta enlevado como se fosse a voz de um negro cantando uma canção no mar Meu pai morreu numa greve tu sabe Pergunte a João de Adão se está duvidando Foi uma morte bonita fala o estudante Ele foi um campeão da sua classe Não foi o Loiro O estudante sabe o nome de seu pai Seu pai foi um campeão Todos o conhecem Teve uma morte bonita morreu numa greve a greve é a festa dos pobres Escuta a voz do estudante Você acha a greve bonita Pedro Companheiro esse é um porreta diz João de Adão Tu não conhece os Capitães da Areia nem Capitão Pedro É um companheiro Companheiro Companheiro Pedro Bala acha a palavra mais bonita do mundo O estudante diz como Dora dizia a palavra irmão Pois companheiro Pedro a gente precisa de você e do seu grupo Pra quê pergunta João Grande curioso Pedro Bala apresenta Este negro é João Grande um negro bom Quem for bom é igual a João Grande melhor não é Alberto estende a mão ao negro João Grande fica um momento indeciso não está acostumado a apertos de mão Mas logo aperta aquela mão meio encabulado O estudante novamente diz Vocês são uns batutas De repente interessado pergunta É verdade que Volta Seca foi um de vocês Um dia a gente tira ele da cadeia é a resposta de Bala O estudante olha meio espantado Dá uma espiada pelo trapiche João de Adão faz um sinal como que lembrando Eu não lhe dizia Pedro Bala quer conversar sobre a greve saber o que querem dele É pra greve que precisa da gente Se for perguntou o estudante Se for pra ajudar os grevistas tou decidido Pode contar com a gente levantase está um rapazola o rosto disposto para a luta Tu não vê começa a explicar João de Adão Mas cala porque o estudante está falando A greve está indo muito em ordem Nós queremos fazer coisas com muita ordem porque assim venceremos e os operários conseguirão o aumento Nós não queremos armar barulho queremos mostrar que os operários são capazes de disciplina Uma pena pensa Pedro Bala que ama os barulhos Mas acontece que os diretores da Companhia andam contratando furagreves para trabalhar amanhã Se os operários dissolverem os grupos de furadores de greve darão margem a que a polícia intervenha e está todo o trabalho perdido Então o companheiro João de Adão lembrou de vocês Pra debandar os furagreve Tá certo diz Bala alegríssimo O estudante pensa na discussão daquela noite na organização Quando João de Adão fizera a proposta de chamar os Capitães da Areia muitos companheiros tinham se declarado contra Sorriam da idéia João de Adão só dizia Vocês não conhece os Capitães da Areia Aquilo aquela confiança impressionara Alberto e alguns outros Por fim a idéia venceu não perderiam nada em tentar Agora está satisfeito de ter vindo E na sua cabeça já fazia planos para aproveitar na luta os Capitães da Areia Para quanta coisa não serviriam aqueles meninos esfomeados e mal vestidos Lembravase de outros exemplos da luta antifascista na Itália os meninos de Lusso Sorria para Pedro Bala Explicou o plano os furadores de greve viriam pela madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar conta dos carros Os Capitães da Areia deviam se dividir em três grupos guardar as entradas dos três depósitosE impedir fosse como fosse que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha Pedro Bala assentia com a cabeça Virou para João de Adão Se SemPernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui Depois se lembra de Professor Professor inventava um plano bom num minuto Depois fazia um desenho da briga Agora tá no Rio Quem é pergunta o estudante Um chamado João José que a gente tratava de Professor Agora tá pintando quadro no Rio É o pintor João José Esse mesmo fez Bala Eu sempre pensei que fosse lenda essa história Sabe que ele é um companheiro bom Sempre foi um companheiro bom disse Pedro Bala com força O estudante fazia planos sobre os Capitães da Areia Agora Pedro Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer O estudante estava entusiasmado com as palavras do moleque Quando terminou de explicar Bala resumiu tudo nestas palavras A greve é a festa dos pobres Os pobres é tudo companheiro companheiro da gente Você é um batuta disse o estudante Vai ver como a gente acaba com os traidor Explicava a Alberto Eu vou com um grupo pro depósito maior João Grande vai com outro Barandão com o terceiro para o menor Não entra ninguém A gente sabe fazer Tu vai ver Eu estarei lá para ver fez o estudante Então às quatro horas da madrugada Tá certo O estudante faz um gesto Até logo companheiros Companheiros Palavra bonita pensa Pedro Bala Ninguém dorme mais no trapiche nesta noite Preparam as mais diversas armas Na madrugada que nasce as estrelas começam a desaparecer do céu Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de Dora que o alegra CompanheiraTambém ela tinha sido uma companheira boa A palavra brinca na sua boca é a palavra mais bonita que ele já viu Pedirá a BoaVida que faça um samba dela um samba para um negro cantar à noite no mar Vão como se fossem para uma festa Armados com as mais diversas armas navalhas punhais pedaços de pau Vão para uma festa porque a greve é a festa dos pobres repete Pedro Bala para si mesmo No pé da ladeira da Montanha se dividem em três grupos João Grande chefia um Barandão vai com outro o maior vai com Pedro Bala Vão para uma festa A primeira festa verdadeira que têm aquelas crianças Ainda assim é uma festa de homens Mas é uma festa dos pobres dos pobres como eles A madrugada é fria Na esquina do depósito quando Pedro Bala está colocando os meninos Alberto se aproxima dele Pedro se volta o rosto sorridente O estudante fala Eles já vêm companheiro Espera pra ver Agora é o estudante quem sorri Evidentemente está entusiasma do com os meninos Pedirá à organização para trabalhar com eles Irão fazer muitas coisas juntos Os furagreves vêm num grupo cerrado Um americano o chefia com a cara fechada Se dirigem todos para a entrada Da sombra dos becos ninguém sabe de onde como demônios fugidos do inferno surgem meninos esfarrapados e de armas na mão Punhais navalhas paus Tomam a porta o grupo dos furagreves pára Logo os demônios se atiram é um bolo só São em número maior que o grupo de furagreves Estes rolam com os golpes de capoeira recebem pauladas alguns já fogem Pedro Bala derruba o americano com a ajuda de outro o soqueiaOs furagreves pensam que são demônios fugidos do inferno A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada A greve não é furada Também João Grande e Barandão são vitoriosos O estudante ri com eles a gargalhada dos Capitães da Areia No trapiche diz para alegria dos meninos Vocês são os mais batutas que eu já vi Companheiros companheiros diz João de Adão Diz o vento que passa diz a voz do coração de Pedro Bala É como a música de uma canção cantada por um negro Companheiros Os atabaques ressoam como clarins de guerra Depois de terminada a greve o estudante continua a vir ao trapicheMantém longas conversas com Pedro Bala transforma os Capitães da Areia numa brigada de choque Uma tarde Pedro Bala vai pela rua Chile o boné desabado sobre os olhos assoviando enquanto arrasta os pés no chão Uma voz exclama Bala Se volta O Gato está elegantíssimo na sua frente Uma pérola na gravata um anel no dedo mínimo roupa azul chapéu de feltro quebrado num jeito malandro É tu Gato Vamos sair daqui Entram numa rua sem movimento Gato explica que chegou de lá Ilhéus há poucos dias Que arrancou um bocado de dinheiro de lá Está um homem e todo perfumado e elegante Quase não te conheço diz Pedro Bala E Dalva Ficou amigada com um coronel Mas eu já tinha deixado ela Agora tenho uma moreninha do balacobaco E aquele anelão que SemPernas fazia troça Gato ri Empurrei por quinhentão num coronel cheio da nota O bicho engoliu sem gritar Conversam e riem Gato pergunta notícia dos outros Diz que no dia seguinte embarcará para Aracaju com a morena pois açúcar está dando dinheiro Pedro Bala o vê ir embora todo elegante Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo no trapiche talvez não fosse um ladrão Aprenderia com Alberto estudante o que ninguém soubera lhe ensinar Aquilo que Professor como que adivinhara A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche É uma voz poderosa dentro dele poderosa como a voz do mar como a voz do vento tão poderosa como uma voz sem comparação Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que BoaVida fez Companheiros chegou a hora A voz o chama Uma voz que o alegra que faz bater seu coração Ajudar a mudar o destino de todos os pobres Uma voz que atravessa a cidade que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas Uma voz que vem do cais do peito dos estivadores de João de Adão de seu pai morrendo num comício dos marinheiros dos navios dos saveiristas e dos canoeiros Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira que vem dos golpes que o QueridodeDeus aplica Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia Uma voz que vem das filhasdesanto do candomblé de DonAninha na noite que a polícia levou Ogum Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia Que vem do reformatório e do orfanato Que vem do ódio do SemPernas se atirando do elevador para não se entregar Que vem no trem da Leste Brasileira através do sertão do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos Que vem de Alberto o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura Que vem dos quadros de Professor onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile Que vem de BoaVida e dos malandros da cidade do bojo dos seus violões dos sambas tristes que eles cantam Uma voz que vem de todos os pobres do peito de todos os pobres Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade de amizade companheiros Uma voz que convida para a festa da luta Que é como um samba alegre de negro como ressoar dos atabaques nas macumbas Voz que vem da lembrança de Dora valente lutadora Voz que chama Pedro Bala Como a voz de Deus chamava Pirulito a voz do ódio o SemPernas como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião Voz poderosa como nenhuma outra Porque é uma voz que chama para lutar por todos pelo destino de todos sem exceção Voz poderosa como nenhuma outra Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados Voz que traz com ela uma festa que faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera A primavera da luta Voz que chama Pedro Bala que o leva para a luta Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade de todos os peitos explorados da cidade Voz que traz o bem maior do mundo bem que é igual ao sol mesmo maior que o sol a liberdade A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela Uma voz de mulher canta a canção da Bahia Canção da beleza da Bahia Cidade negra e velha sinos de igreja ruas calçadas de pedra Canção da Bahia que uma mulher canta Dentro de Pedro Bala uma voz o chama voz que traz para a canção da Bahia a canção da liberdade Voz poderosa que o chama Voz de toda a cidade pobre da Bahia voz da liberdade A revolução chama Pedro Bala Pedro Bata foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lóide No cais dá adeus ao negro que parte para a sua primeira viagem Mas não é um adeus como aqueles que dera aos outros que partiram antes Não é mais um gesto de despedida É um gesto de saudação ao companheiro que parte Adeus companheiro Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia O destino deles mudou tudo agora é diverso Intervêm em comícios em greves em lutas obreirasO destino deles é outro A luta mudou seus destinos Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas do país Pedro Bala entra no trapiche A noite cobriu a cidade A voz do negro canta no mar A estrela de Dora brilha quase tanto quanto a lua no céu mais lindo do mundo Pedro Bala entra olha as crianças Barandão vem para junto dele agora tem 15 anos o negrinho Pedro Bala olha Estão deitados alguns já dormem outros conversam fumam cigarros riem a grande gargalhada dos Capitães da Areia Bala reúne a todos bota Barandão junto de si Gentes agora eu vou embora vou deixar vocês Vou embora Barandão agora fica o chefe Alberto vem sempre ver vocês vocês devem fazer o que ele diz E todo mundo ouça Barandão agora é o chefe O negrinho Barandão fala Gentes Pedro Bala vai embora Viva Pedro Bala Os punhos dos Capitães da Areia se levantam fechados Bala Bala gritam numa despedida Os gritos enchem a noite calam a voz do negro que canta no mar estremecem o céu de estrelas e o coração de Pedro Punhos fechados de crianças que se levantamBocas que gritam se despedindo do chefe Ba1a Bala Barandão está na frente de todos Ele agora é o chefe Pedro Bala parece ver Volta Seca SemPernas Gato Professor Pirulito BoaVida João Grande e Dora todos ao mesmo tempo entre eles Agora o destino deles mudou A voz do negro no mar canta o samba de BoaVida Companheiros vamos pra luta De punhos levantados as crianças saúdam Pedro Bala que parte para mudar o destino de outras crianças Barandão grita na frente de todos ele agora é o novo chefe De longe Pedro Bala ainda vê os Capitães da Areia Sob a lua num velho trapiche abandonado eles levantam os braços Estão em pé o destino mudou Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra Uma Pátria e uma família Anos depois os jornais de classe pequenos jornais dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas jornais que circulavam nas fábricas passados de mão em mão e que eram lidos à luz de fifós publicavam sempre notícias sobre um militante proletário o camarada Pedro Bala que estava perseguido pela policia de cinco estados como organizador de greves como dirigente de partidos ilegais como perigoso inimigo da ordem estabelecida No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar no ano que foi todo ele uma noite de terror esses jornais únicas bocas que ainda falavam clamavam pela liberdade de Pedro Bala líder da sua classe que se encontrava preso numa colônia E no dia em que ele fugiu em inúmeros lares na hora pobre do jantar rostos se iluminaram ao saber da notícia E apesar de que fora era o terror qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala fugitivo da polícia Porque a revolução é uma pátria e uma família Na casa malassombrada de Doninha Quaresma existiam botijas enterradas e a alma de Doninha hoje do Capitão na paz de Estância Sergipe março de 937 A bordo do Rakuyo Maru subindo a costa da América do pelo Pacífico em caminho do México junho de 937 FIM