160
Literatura
UNEB
190
Literatura
UNEB
300
Literatura
UNEB
6
Literatura
UNEB
50
Literatura
UNEB
11
Literatura
UNEB
43
Literatura
UNEB
13
Literatura
UNEB
13
Literatura
UNEB
1
Literatura
UERJ
Texto de pré-visualização
A PRESENÇA DA LITERATURA DE AXÉ NA OBRA CAPITÃES DA AREIA DE JORGE AMADO Michelle Souza de Oliveira Anjos UNEB michellesouzadeoliveiraanjosgmailcom RESUMO Este trabalho propõe uma análise da obra Capitães da Areia 2008 de Jorge Amado a partir da presença da literatura de axé vertente que incorpora elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé A narrativa ao retratar a vivência de meninos em situação de rua em Salvador manifesta uma profunda influência da cosmovisão de matriz africana tanto na caracterização dos personagens quanto na construção simbólica do espaço urbano Por meio da mitologia dos orixás da oralidade e da corporeidade Jorge Amado legitima os saberes e a espiritualidade do povo negro contribuindo para a valorização da identidade afrobrasileira na literatura Palavraschave Jorge Amado Orixás Identidade afrobrasileira 1Sobre a obra e o autor Capitães da Areia publicado originalmente em 1937 é uma das obras mais emblemáticas do escritor baiano Jorge Amado Nascido em Itabuna em 1912 e falecido em 2001 Amado é um dos principais nomes da literatura brasileira do século XX Sua produção literária é marcada pelo retrato sensível do povo baiano pelo engajamento político e pela denúncia social especialmente da desigualdade e da marginalização A obra retrata a vida de meninos abandonados nas ruas de Salvador que formam um grupo de sobrevivência e amizade Vivendo no trapiche um antigo armazém abandonado eles enfrentam a fome a repressão policial e o preconceito social Jorge Amado denuncia com lirismo e realismo as contradições de uma sociedade que exclui os mais vulneráveis Capitães da Areia é uma obra que promove uma reflexão profunda sobre a infância marginalizada revelando como as crianças em situação de rua são empurradas à criminalidade não por escolha mas por falta de oportunidades A narrativa utiliza uma linguagem acessível com forte presença de regionalismos o que contribui para a autenticidade da ambientação As vozes dos personagens se manifestam com força e sensibilidade permitindo ao leitor perceber seus medos esperanças e afetos O protagonismo de Pedro Bala Dora SemPernas e outros personagens é um exemplo claro da complexidade emocional e moral que Amado imprime aos seus protagonistas A cidade de Salvador é representada em sua totalidade da opulência da cidade alta à pobreza das docas revelando um espaço urbano desigual onde o direito à infância é negado a muitos Capitães da Areia foi censurado na época de sua publicação o que mostra sua força crítica e seu impacto social Mesmo décadas depois permanece atual ao retratar uma realidade que ainda persiste em muitas cidades brasileiras Jorge Amado criou uma obra potente lírica e politicamente relevante Capitães da Areia é até hoje uma referência na discussão sobre infância exclusão e justiça social Ao dar voz aos invisibilizados o autor contribui para uma literatura que humaniza denuncia e emociona tornando a leitura uma ferramenta de transformação social e crítica 2Literatura de Axé O que é e como se manifesta A literatura de axé é uma vertente literária que se fundamenta nos elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé O termo axé se refere à energia sagrada à força vital que permeia o universo e é associada aos orixás entidades espirituais centrais no candomblé Em sua essência o axé representa o poder a vitalidade e a conexão espiritual que circula nas forças naturais e humanas A literatura de axé é caracterizada pela incorporação de elementos ritualísticos simbólicos e orais que remontam às práticas religiosas e culturais afrobrasileiras Ela se distingue por seu foco na oralidade na musicalidade das palavras e na celebração das identidades negras e dos saberes ancestrais Ao contrário da literatura ocidental frequentemente linear e racional a literatura de axé abraça a circularidade do tempo as narrativas míticas e a visão de mundo das religiões de matriz africana Essa forma literária não apenas representa mas busca encarnar os mitos os rituais e a cosmovisão dos povos afrodescendentes valorizando o corpo o movimento e a força espiritual A obra de Jorge Amado especialmente Capitães da Areia se insere nesse contexto ao utilizar a mitologia dos orixás e as práticas do candomblé como componentes essenciais de sua estrutura narrativa 3 A Simbologia do Candomblé em Capitães da Areia Em Capitães da Areia Jorge Amado insere o candomblé como parte integrante do cotidiano dos personagens O sincretismo religioso presente em Salvador é retratado através das festas populares das menções aos orixás e do respeito às entidades espirituais Jorge Amado não apenas referencia os orixás mas recria a narrativa a partir de seus arquétipos e atributos simbólicos A linguagem simbólica também se manifesta nas descrições da cidade de Salvador com suas ladeiras igrejas e terreiros compondo um espaço sagrado e profano ao mesmo tempo A cidade se apresenta como um espaço vivo de experiências espirituais e culturais onde o axé se manifesta tanto na arquitetura quanto nas relações sociais 4 Orixás e Capitães da Areia Paralelos Simbólicos Entre Divindades e Meninos em situação de Rua Em Capitães da Areia Jorge Amado entrelaça a realidade dos meninos em situação de rua com elementos do candomblé estabelecendo paralelos simbólicos entre os personagens e os orixás Essa conexão não apenas enriquece a narrativa mas também confere uma dimensão espiritual e cultural à luta e resistência dos jovens marginalizados 41 Ogum e Pedro Bala Liderança e Resistência Ogum orixá associado à guerra à tecnologia e à proteção é conhecido por sua coragem e liderança Pedro Bala líder dos Capitães da Areia personifica essas características ao comandar o grupo com determinação e bravura Sua trajetória reflete a luta constante por justiça e sobrevivência nas ruas de Salvador Embora a obra não estabeleça uma associação direta entre Pedro Bala e Ogum a simbologia presente na narrativa permite essa interpretação A liderança de Pedro Bala e sua disposição para enfrentar adversidades ecoam as qualidades atribuídas a Ogum no candomblé 42 Omolu e a Epidemia A Presença do Sagrado na Doença Omolu orixá ligado às doenças e à cura é mencionado na obra durante a epidemia de varíola que assola Salvador A narrativa sugere que a doença foi enviada por Omolu como punição aos ricos da Cidade Alta Omolu mandou a bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não sabia destas coisas de vacina AMADO 2008 p 155 Essa referência destaca a presença do sagrado na explicação das calamidades refletindo a visão de mundo dos personagens e a influência das religiões afrobrasileiras na cultura local 43 QueridodeDeus Sincretismo Religioso e Identidade QueridodeDeus personagem que ensina capoeira aos meninos é descrito como devoto de Xangô e Omolu além de santos católicos Essa combinação de crenças evidencia o sincretismo religioso presente na obra e na sociedade baiana João Grande acreditava era em Xangô em Omolu nos deuses dos negros que vieram da África O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturava os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa AMADO 2008 p 117 44 DonAninha A Mãe de Santo e o Saber Ancestral DonAninha mãe de santo respeitada é uma das poucas figuras adultas que os Capitães da Areia confiam Sua sabedoria e conexão com os orixás conferemlhe um papel de guia espiritual para os meninos O Professor ao refletir sobre seus planos futuros reconhece a importância de DonAninha Talvez só o sou se DonAninha a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá porque DonAninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio noites de temporal AMADO 2008 p 25 5 Narrativa e Oralidade O Axé Como Estratégia Narrativa Um dos aspectos mais relevantes da literatura de axé é o uso da oralidade como elemento estruturante da narrativa Jorge Amado adota uma linguagem que remete aos contadores de histórias dos terreiros com ritmo repetições e musicalidade Essa oralidade aproxima a narrativa de uma dimensão performática onde a palavra não é apenas portadora de sentido mas também de força A presença de provérbios cantigas e expressões populares baianas reforça essa dimensão O texto não apenas representa o axé ele o encarna E com isso contribui para romper com os paradigmas literários eurocêntricos oferecendo uma alternativa de leitura e escrita comprometida com a cultura afrobrasileira 6A presença de Ogum e Xangô em Capitães da Areia símbolos da luta e da resistência dos oprimidos Um dos trechos mais simbólicos de Capitães da Areia que evidencia o sincretismo religioso e a resistência cultural afrobrasileira é o capítulo intitulado Aventura de Ogum Nele Jorge Amado constrói uma narrativa carregada de religiosidade de matriz africana misturando elementos míticos sociais e políticos e inserindo os orixás Ogum e Xangô como figuras centrais de um conflito entre a fé do povo negro e pobre da Bahia e a repressão institucional Ogum orixá da guerra da tecnologia e da luta é representado como um símbolo da resistência dos pobres contra a violência do Estado A cena em que DonAninha a mãe desanto respeitada e temida relata a apreensão da imagem de Ogum pela polícia simboliza a tentativa da autoridade de silenciar e apagar as manifestações culturais e religiosas afrobrasileiras DonAninha desabafa em tom de revolta Não deixam os pobres viver Não deixam nem o deus dos pobres em paz Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus AMADO 2008 p 101 Essa fala carrega o peso histórico da marginalização e criminalização dos cultos de matriz africana e posiciona a religiosidade como ferramenta de expressão identitária e resistência A tempestade que cai sobre Salvador na noite da narrativa é interpretada como a manifestação da ira de Xangô orixá da justiça e dos raios pela profanação do sagrado Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu carregado de nuvens negras e pesadas Pedro Bala o SemPernas e João Grande foram levar a mãedeSanto DonAninha até sua casa distante Ela viera ao trapiche pela tarde precisava de um favor deles e enquanto explicava a noite caiu espantosa e terrível Ogum está zangado explicou a mãedeSanto DonAninha AMADO 2008 p 100 Aqui os fenômenos naturais são lidos como sinais espirituais e os orixás aparecem como agentes vivos e atuantes na realidade dos personagens reafirmando o caráter teológico e revolucionário da literatura de axé Além disso o capítulo destaca a solidariedade entre os personagens marginalizados Pedro Bala ao prometer à mãedesanto que trará Ogum de volta reconhece a importância do respeito e da dignidade espiritual de seu povo Deixa estar mãe Aninha que amanhã te trago Ogum AMADO 2008 p 102 Essa promessa é carregada de um sentido de missão e compromisso coletivo que ultrapassa a fé individual e se torna ato de resistência política A descrição da figura de DonAninha também reforça a centralidade das mulheres negras como guardiãs do sagrado e líderes comunitárias Ela é apresentada como uma mulher alta magra aristocrática respeitada por sua sabedoria e poder espiritual Sua imagem rompe com os estereótipos comuns e coloca a mulher negra como agente de transformação Dessa forma o capítulo Aventura de Ogum é uma das passagens mais ricas e simbólicas da obra pois une fé cultura política e denúncia social Jorge Amado não apenas expõe a violência sofrida pelos praticantes das religiões afrobrasileiras como também celebra sua força sua beleza e sua capacidade de resistir Assim Ogum e Xangô não são apenas personagens do panteão iorubá são ícones de uma literatura engajada que reivindica espaço e voz para os excluídos 61 A Ancestralidade como Estrutura e Resistência na Obra A ancestralidade enquanto categoria central da literatura de axé transcende o tempo linear e estabelece uma ponte entre passado presente e futuro Em Capitães da Areia essa dimensão ancestral atua como alicerce simbólico e epistemológico da narrativa conferindolhe uma lógica própria que escapa às convenções ocidentais e racionalistas Jorge Amado constrói sua literatura ancorandose na cosmovisão afro brasileira na qual os mortos os orixás e os saberes do terreiro não estão confinados à memória mas presentes e ativos no cotidiano dos personagens Essa presença ancestral não se dá apenas por menções diretas a figuras religiosas ou práticas rituais Ela se manifesta na circularidade da narrativa na reiteração dos temas do pertencimento da comunidade e da luta pela sobrevivência todos ancorados em uma visão de mundo que valoriza a coletividade e o sagrado A figura de DonAninha por exemplo representa mais do que a mãe de santo ela é a memória viva da tradição a guardiã de um saber ancestral que orienta e sustenta espiritualmente os meninos Sua escuta dos búzios é metáfora do diálogo constante entre o visível e o invisível entre o presente e os ensinamentos dos mais velhos A ancestralidade funciona ainda como uma forma de resistência às estruturas opressoras da sociedade colonial e cristã Ao incorporar essa lógica africana de existência à estrutura da narrativa Jorge Amado desafia os cânones literários e propõe uma literatura que abriga o encantamento o mistério e o axé como formas legítimas de conhecimento A escrita tornase assim um terreiro simbólico onde se invocam forças e memórias que garantem a continuidade de um povo historicamente silenciado Nesse contexto o romance não apenas retrata uma realidade social de exclusão mas insere nela uma proposta estética e espiritual de redenção A luta dos Capitães da Areia iluminada pelo axé de seus ancestrais transcende a marginalização social para se tornar um grito de resistência cultural e religiosa A ancestralidade nesse sentido não é um tema é a própria espinha dorsal da narrativa que confere dignidade voz e futuro aos personagens 7 Identidade Ancestralidade e Resistência A inserção da mitologia afrobrasileira na obra de Jorge Amado configurase como estratégia de resistência cultural A literatura do autor baiano não apenas retrata mas celebra o candomblé como saber e como força vital A relação dos Capitães da Areia com os elementos do axé representa portanto não apenas um retrato social mas uma afirmação política e espiritual Ao incorporar os mitos ritos e crenças afrobrasileiras Jorge Amado contribui para legitimar essas tradições dentro do espaço literário brasileiro Isso se reflete inclusive na recepção da obra por leitores e estudiosos que identificam na escrita do autor um compromisso com a dignidade e a representação dos povos de axé 8 Considerações Finais A análise da presença da literatura de axé em Capitães da Areia permite compreender a obra não apenas como romance social mas como um espaço de afirmação identitária e religiosa Os elementos do candomblé longe de serem decorativos compõem a estrutura simbólica da narrativa configurandose como literatura de axé Nesse sentido Jorge Amado se alinha a uma tradição literária que reconhece a ancestralidade africana como matriz fundamental da cultura brasileira Sua obra contribui assim para ampliar os horizontes do que se entende por literatura nacional incorporando vozes corpos e espiritualidades historicamente marginalizados Referências AMADO Jorge Capitães da Areia São Paulo Companhia das Letras 2008 LEITE Gildeci de Oliveira Autores de Axé Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Literatura e Outras Artes de Axé Salvador EDUFBA 2012 LEITE Gildeci de Oliveira Amado Axé de Mar Morto In LEITE G O SARAIVA F F PRADO T M C Orgs II Webinário Estudos Amadianos 20 anos de permanência Salvador Quarteto Editora 2021 p 185203 PRANDI Reginaldo Mitologia dos Orixás São Paulo Companhia das Letras 2001 SANTOS Vivaldo da Costa Candomblés da Bahia São Paulo Corrupio 2009 SILVA José Carlos Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 A PRESENÇA DA LITERATURA DE AXÉ NA OBRA CAPITÃES DA AREIA DE JORGE AMADO Michelle Souza de Oliveira Anjos UNEB michellesouzadeoliveiraanjosgmailcom RESUMO Este trabalho propõe uma análise da obra Capitães da Areia 2008 de Jorge Amado a partir da presença da literatura de axé vertente que incorpora elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé A narrativa ao retratar a vivência de meninos em situação de rua em Salvador manifesta uma profunda influência da cosmovisão de matriz africana tanto na caracterização dos personagens quanto na construção simbólica do espaço urbano Por meio da mitologia dos orixás da oralidade e da corporeidade Jorge Amado legitima os saberes e a espiritualidade do povo negro contribuindo para a valorização da identidade afrobrasileira na literatura Palavraschave Jorge Amado Orixás Identidade afrobrasileira 1 Sobre a obra e o autor Capitães da Areia publicado originalmente em 1937 é uma das obras mais emblemáticas do escritor baiano Jorge Amado Nascido em Itabuna em 1912 e falecido em 2001 Amado é um dos principais nomes da literatura brasileira do século XX Sua produção literária é marcada pelo retrato sensível do povo baiano pelo engajamento político e pela denúncia social especialmente da desigualdade e da marginalização A obra retrata a vida de meninos abandonados nas ruas de Salvador que formam um grupo de sobrevivência e amizade Vivendo no trapiche um antigo armazém abandonado eles enfrentam a fome a repressão policial e o preconceito social Jorge Amado denuncia com lirismo e realismo as contradições de uma sociedade que exclui os mais vulneráveis Capitães da Areia é uma obra que fomenta uma análise perspicaz sobre uma fase infantil à margem da sociedade mostrando como crianças sem lar são levadas ao mundo do crime não por vontade própria mas por não ter oportunidade A narrativa utiliza uma linguagem acessível com forte presença de regionalismos o que contribui para as desvantagens da ambientação As vozes dos personagens se manifestam com força e sensibilidade permitindo ao leitor perceber seus medos esperanças e afetos O protagonismo de Pedro Bala Dora SemPernas e outros personagens é um exemplo claro da complexidade emocional e moral que Amado imprime aos seus protagonistas A cidade de Salvador é representada em sua totalidade da opulência da cidade alta à pobreza das docas revelando um espaço urbano desigual onde o direito à infância é negado a muitos Capitães da Areia foi censurado na época de sua publicação o que mostra sua força crítica e seu impacto social Mesmo décadas depois permanece atual ao retratar uma realidade que ainda persiste em muitas cidades brasileiras Jorge Amado criou uma obra potente lírica e politicamente relevante Capitães da Areia é até hoje uma referência na discussão sobre infância exclusão e justiça social Ao dar voz aos invisibilizados o autor contribui para uma literatura que humaniza denuncia e emociona tornando a leitura uma ferramenta de transformação social e crítica Ao examinar a obra de Jorge Amado Gildeci de Oliveira Leite ressalta que o autor transcende a mera observação da sociedade construindo uma narrativa que abraça a influência africana ancestral como um alicerce essencial da identidade cultural baiana e da resistência social LEITE 2015 p 38 Esse posicionamento é fundamental pois amplia a compreensão da obra para além do retrato social estrito revelando uma afirmação simbólica dos valores culturais e espirituais que dignificam os marginalizados e lhes conferem agilidade na narrativa 2 Literatura de Axé O que é e como se manifesta A literatura de axé é uma vertente literária que se fundamenta nos elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé O termo axé se refere à energia sagrada à força vital que permeia o universo e é associado aos orixás entidades espirituais centrais no candomblé Em sua essência o axé representa o poder a vitalidade e a conexão espiritual que circula nas forças naturais e humanas A literatura de axé é descrita pela incorporação de elementos ritualísticos simbólicos e orais que remontam às práticas religiosas e culturais afrobrasileiras Ela se distingue por seu foco na oralidade na musicalidade identidade das palavras e na celebração das negras e dos saberes ancestrais Ao contrário da literatura ocidental muitas vezes linear e racional a literatura de axé abraça a circularidade do tempo as narrativas míticas e a visão de mundo das religiões de matriz africana Essa forma literária não apenas representa mas busca encarnar os mitos os rituais e a cosmovisão dos povos afrodescendentes valorizando o corpo o movimento e a força espiritual A produção de Jorge Amado em Capitães da Areia nesse caso apresenta os orixás e os rituais do candomblé Reginaldo Prandi enfatiza que o axé não é apenas um conteúdo temático mas uma matéria própria da experiência sensível e da narrativa que impregna o tempo e o espaço dos povos de matriz africana PRANDI 1997 p 32 conferindo uma temporalidade circular e uma cosmovisão em que passado e presente dialogam constantemente Nesse sentido a literatura de axé surge como um saber ancestral que resiste à imposição das narrativas dominantes incorporando uma epistemologia própria que Jorge Amado reconhece e valoriza De modo semelhante Leite defende que a literatura e os mitos afrobaianos tais como demonstrados em Capitães da Areia espelham os deleites e os desafios da vida social e cultural da Bahia onde aoralidade e o ritual de performance afirmam a existência de modos alternativos de conhecimento e expressão LEITE 2012 p 39 Dessa forma a literatura de axé emerge como um campo vivo de resistência cultural e epistemológica sobretudo quando se insere em obras que celebram e legitimam saberes ancestrais 3 A Simbologia do Candomblé em Capitães da Areia Em Capitães da Areia Jorge Amado insere o candomblé como parte integrante do cotidiano dos personagens O sincretismo religioso presente em Salvador é retratado através das festas populares das menções aos orixás e do respeito às entidades espirituais Jorge Amado não apenas faz referência aos orixás mas recria a narrativa a partir de seus arquétipos e atributos simbólicos A linguagem simbólica também se manifesta nas autoridades da cidade de Salvador com suas ladeiras lojas e terreiros compondo um espaço sagrado e profano ao mesmo tempo A cidade se apresenta como um espaço vivo de experiências espirituais e culturais onde o axé se manifesta tanto na arquitetura quanto nas relações sociais Para Tavares os candomblés na Bahia específicos mais do que um culto religioso formam um território cultural que articula resistência identidade e sociabilidade das populações afrodescendentes TAVARES 2009 p 54 Jorge Amado portanto torna esse contexto uma estrutura narrativa onde mulher religião e cultura afrobrasileira são fundamentais A obra expressa um dialogismo entre o profano e o sagrado fazendo do espaço urbano um cenário ritmado pelos tempos e sentidos do axé desafiando a lógica linear e racionalista que silencia e marginaliza o conhecimento afrobrasileiro Silva 2015 corrobora essa visão ao destacar como Jorge Amado recupera a ancestralidade e a presença viva dos orixás como elementos estruturadores da subjetividade negra e da narrativa literária SILVA 2015 p 65 Por fim Leite em sua obra específica sobre a medicina popular e a fé ressalta Omolu Obaluaé São Lázaro e São Roque configuramse na cultura afrobrasileira como símbolos de uma medicina do pobre na qual a fé é componente essencial da cura e da resistência LEITE 2016 p 120 Esses elementos aprofundam a dimensão espiritual do cotidiano na narrativa e confirmam o papel da religiosidade afrobrasileira como força vital e mecanismo de preservação cultural 4 Orixás e Capitães da Areia Paralelos Simbólicos Entre Divindades e Meninos em situação de Rua Em Capitães da Areia Jorge Amado entrelaça a realidade dos meninos em situação de rua com elementos do candomblé estabelecendo paralelos simbólicos entre os personagens e os orixás Essa conexão não apenas enriquece a narrativa mas também confere uma dimensão espiritual e cultural à luta e resistência dos jovens marginalizados 41 Ogum e Pedro Bala Liderança e Resistência A trajetória de Pedro Bala líder dos Capitães da Areia reflete a luta constante pela justiça e sobrevivência nas ruas de Salvador Embora a obra não estabeleça uma associação direta entre Pedro Bala e Ogum a simbologia presente na narrativa permite essa interpretação A liderança de Pedro Bala e sua disposição para enfrentar adversidades ecoam as qualidades atribuídas a Ogum no candomblé Prandi 1997 ressalta que Ogum é a realização que abre caminhos é construída luta contra as forças adversárias sendo um símbolo de força trabalho e proteção para os oprimidos PRANDI 1997 p 27 Tal descrição se alinha perfeitamente à figura de Pedro Bala que se destaca pela liderança e persistência frente às atribuições de sua condição Esse ponto evidencia a dimensão afetiva social e espiritual da doença no contexto dos marginalizados 42 Omolu e a Epidemia A Presença do Sagrado na Doença A narrativa sugere que a doença foi enviada por Omolu como proteção aos ricos da Cidade Alta Omolu mandou uma bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não destas sabiam coisas de vacinar AMADO 2008 p 155 Essa referência destaca a presença do sagrado na explicação das calamidades refletindo a visão do mundo dos personagens e a influência das religiões afrobrasileiras na cultura local Gildeci de Oliveira Leite em sua análise sobre Omolu e a medicina popular explica que a figura de Omolu que se mistura com São Lázaro e São Roque no sincretismo personifica tanto a doença quanto a cura na prática dos pobres para os quais a fé constitui a medicina mais acessível LEITE 2016 p 122 No caso do romance a doença tornase um elemento espiritual que reforça a presença do axé e a luta pela sobrevivência num sistema desigual 43 QueridodeDeus Sincretismo Religioso e Identidade QueridodeDeus personagem que ensina capoeira aos meninos é descrito como devoto de Xangô e Omolu além de santos católicos Essa combinação de ligação evidencia o sincretismo religioso presente na obra e na sociedade baiana O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturavaos com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa AMADO 2008 p 117 Consequentemente QueridodeDeus representa um ser inserido numa rica teia identitária que conjuga diversas referências religiosas e culturais Ildásio Tavares destaca que o sincretismo é uma ferramenta política e espiritual de resistência que protege e se adapta às manifestações religiosas afrobrasileiras à pressão da sociedade dominante TAVARES 2009 p 77 Assim QueridodeDeus simboliza essa complexa articulação identitária onde o imanente e o transcendente se combinam para afirmar uma presença imperativa 44 DonAninha A Mãe de Santo e o Saber Ancestral A mãe de santo DonAninha é uma das personagens adultas em Capitães da Areia Sua sabedoria e conexão com os orixás conferemlhe um papel de guia espiritual para os meninos O Professor ao refletir sobre seus planos futuros confirma a importância de DonAninha Para Leite as mães de santo como DonAninha representam a memória viva da ancestralidade e o elo entre os mundos sendo fundamentais na preservação da cultura dos terreiros e na orientação espiritual das comunidades marginalizadas LEITE 2012 p 45 5 Narrativa e Oralidade O Axé Como Estratégia Narrativa Um dos aspectos mais relevantes da literatura de axé é o uso da oralidade como elemento estruturante da narrativa Jorge Amado adota uma linguagem que remete aos contadores de histórias dos terreiros com ritmo repetições e musicalidade Essa oralidade aproximase da narrativa de uma dimensão performática onde a palavra não é apenas portadora de sentido mas também de força A presença de provérbios cantigas e expressões populares baianas reforçam essa dimensão O texto não representa apenas o axé ele o encarna E com isso contribui para romper com os paradigmas literários eurocêntricos oferecendo uma alternativa de leitura e escrita comprometida com a cultura afrobrasileira Prandi ressalta que na tradição oral afrobrasileira a palavra tem poder ontológico é força e encantamento funcionando como um veículo para o axé que sustenta a cosmovisão PRANDI 1997 p 38 Gildeci de Oliveira Leite acrescenta que a oralidade não é apenas um atributo estético mas uma estratégia de resistência e manutenção da identidade cultural diante do racismo institucionalizado LEITE 2016 p 75 6 A presença de Ogum e Xangô em Capitães da Areia símbolos da luta e da resistência dos oprimidos Um dos trechos mais simbólicos de Capitães da Areia que evidencia o sincretismo religioso e a resistência cultural afrobrasileira é o capítulo intitulado Aventura de Ogum Nele Jorge Amado construiu uma narrativa composta de religiosidade de matriz africana misturando elementos míticos sociais e políticos e inserindo os orixás Ogum e Xangô como figuras centrais de um conflito entre a fé do povo negro e pobre da Bahia e a repressão institucional Ogum orixá da guerra da tecnologia e da luta é representado como um símbolo da resistência dos pobres contra a violência do Estado A cena em que DonAninha a mãedesanto respeitada e temida relata a apreensão da imagem de Ogum pela polícia simboliza a tentativa de autoridade de silenciar e apagar as manifestações culturais e religiosas afrobrasileiras DonAninha desabafa em tom de revolta Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus AMADO 2008 p 101 Essa fala carrega o peso histórico da marginalização e criminalização dos cultos de matriz africana e posiciona a religiosidade como ferramenta de expressão identitária e resistência Muniz Sodré ao analisar o fascismo da cor oferece um importante apoio ao afirmar que a perseguição religiosa e o racismo são mecanismos de controle social que objetivam manter a população negra no lugar da exclusão negando seu direito à cultura e à fé SODRÉ 2023 p 52 O capítulo ilustra essa dinâmica mostrando que a luta por Ogum é também uma luta pela preservação da fé e da cultura do povo negro baiano A tempestade que cai sobre Salvador na noite da narrativa é interpretada como uma manifestação da ira de Xangô orixá da justiça e dos raios pela profanação do sagrado Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu de nuvens negras e pesadas Pedro Bala e João Grande levaram a mãedeSanto DonAninha até sua casa AMADO 2008 p 100 Aqui as aparências naturais são lidas como sinais espirituais e os orixás aparecem como agentes vivos e atuantes na realidade dos personagens reafirmando o caráter teológico e revolucionário da literatura de axé Além disso o capítulo destaca a solidariedade entre os personagens marginalizados Pedro Bala ao prometer à mãedesanto que traz Ogum de volta garantindo a importância do respeito e da dignidade espiritual de seu povo Essa promessa é feita de um sentido de missão e compromisso coletivo que ultrapassa a fé individual e se torna ato de resistência política A descrição da figura de DonAninha também reforça a centralidade das mulheres negras como guardiãs do sagrado e líderes comunitárias Ela é apresentada como uma mulher alta magra aristocrática respeitada por sua sabedoria e poder espiritual Dessa forma o capítulo Aventura de Ogum é uma das passagens mais ricas e simbólicas da obra pois une fé cultura política e denúncia social Jorge Amado não apenas expõe a violência sofrida pelos praticantes das religiões afrobrasileiras como também celebra sua força sua beleza e sua capacidade de resistir Assim Ogum e Xangô não são apenas personagens do panteão iorubá são ícones de uma literatura engajada que reivindica espaço e voz para os excluídos 61 A Ancestralidade como Estrutura e Resistência na Obra A ancestralidade enquanto categoria central da literatura de axé transcende o tempo linear e estabelece uma ponte entre passado presente e futuro Em Capitães da Areia essa dimensão ancestral atua como alicerce simbólico e epistemológico da narrativa conferindolhe uma lógica própria que escapa às convenções ocidentais e racionalistas Jorge Amado construiu sua literatura ancorandose na cosmovisão afrobrasileira na qual os mortos os orixás e os saberes do terreiro não estão confinados à memória mas presentes e ativos no cotidiano dos personagens Essa presença ancestral não se dá apenas por menções diretas a figuras religiosas ou práticas rituais Ela se manifesta na circularidade da narrativa na reiteração dos temas do pertencimento da comunidade e da luta pela sobrevivência todos ancorados em uma visão de mundo que valoriza a coletividade e o sagrado A figura de DonAninha por exemplo representa mais do que uma mãe de santo ela é uma memória viva da tradição a guardiã de um saber ancestral que orienta e sustenta espiritualmente os meninos Sua escuta dos búzios é metáfora do diálogo constante entre o visível e o invisível entre o presente e os ensinamentos dos mais velhos Leite destaca que a ancestralidade tecida em mitos identidades e práticas mantém viva a negra e cria uma possibilidade epistemológica que desafia o paradigma dominante reforçando a luta por reconhecimento cultural e social LEITE 2015 p 52 Marco Aurélio Luz e Narcimária Luz corroboram essa releitura crítica ao afirmarem que uma narrativa afrobrasileira insurgese contra o racismo estrutural por meio da afirmação da alteridade da memória e da resistência ética e estética promovendo o direito à diferença LUZ LUZ 2012 p 14 A ancestralidade funciona ainda como uma forma de resistência às estruturas opressoras da sociedade colonial e cristã Ao incorporar essa lógica africana de existência à estrutura da narrativa Jorge Amado desafia as cânones literárias e propõe uma literatura que abriga o encantamento o mistério e o axé como formas legítimas de conhecimento A escrita tornase assim um terreiro simbólico onde se invoca forças e memórias que garantem a continuidade de um povo historicamente silenciado Nesse contexto o romance não apenas retrata uma realidade social de exclusão mas insira nela uma proposta estética e espiritual de redenção A luta dos Capitães da Areia iluminada pelo axé de seus ancestrais transcende a marginalização social para se tornar um grito de resistência cultural e religiosa A ancestralidade nesse sentido não é um tema é a própria espinha dorsal da narrativa que confere dignidade voz e futuro aos personagens 7 Identidade Ancestralidade e Resistência A inserção da mitologia afrobrasileira na obra de Jorge Amado configurase como estratégia de resistência cultural A literatura do autor baiano não apenas retrata mas celebra o candomblé como saber e como força vital A relação dos Capitães da Areia com os elementos do axé representa portanto não apenas um retrato social mas uma afirmação política e espiritual Ao incorporar os mitos ritos e crenças afrobrasileiras Jorge Amado contribui para legitimar essas tradições dentro do espaço literário brasileiro Isso se reflete inclusive na recepção da obra por leitores e estudiosos que identificam na escrita do autor um compromisso com a dignidade e a representação dos povos de axé Muniz Sodré observa que a questão da cor no Brasil se expressa como uma posição racial que mantém os corpos negros em condição de invisibilidade e marginalidade social mas a religiosidade de matriz africana atua como um campo de afirmação identitária e resistência SODRÉ 2023 p 93 Assim Capitães da Areia tornase espaço de insurgência cultural e social contribuindo para as discussões sobre identidade racial cultural e religiosa 8 Considerações Finais Uma análise da presença da literatura de axé em Capitães da Areia permite compreender a obra não apenas como romance social mas como um espaço de afirmação identitária e religiosa Os elementos do candomblé integram a estrutura simbólica fundamental da narrativa configurandose como expressão clara da literatura de axé Essa posição epistemológica proposta por Jorge Amado desenvolve uma obra que transcende o romance de denúncia social para assumir um papel de resistência cultural política e espiritual O romance se insere numa tradição literária comprometida com a visibilização do povo negro e das suas múltiplas identidades incorporando elementos materiais e imateriais da ancestralidade africana como matriz fundamental da cultura brasileira Muitas vezes invisibilizadas ou estigmatizadas por discursos hegemônicos à medida que culturas afrobrasileiras ganham em Capitães da Areia não são apenas representação mas protagonismo epistemológico Nesse sentido Jorge Amado inaugura uma estética que se ancora numa cosmovisão marcada pelo axé energia vital que atravessa e conecta todas as dimensões da existência A literatura dessa forma deixa de ser apenas um registro narrativo ou crítica social para se transformar num instrumento vivo de afirmação da alteridade A tensão entre o sagrado e o profano o corpo e o mito o som e o silêncio configura uma narrativa que dialoga com as tradições orais dos povos afrodescendentes rompendo com o cânone literário ocidental e eurocêntrico Além disso a obra se destaca por fornecer pluralidade e profundidade às personagens negras e pobres conferindolhes subjetividades ricas e determinadas por uma ancestralidade viva A figura de DonAninha por exemplo emerge como símbolo de sabedoria ancestral e de resistência feminina num contexto historicamente adverso Sua centralidade no tecido narrativo mostra que Jorge Amado valoriza não apenas os conteúdos simbólicos do candomblé mas coloca as mulheres negras como protagonistas no campo da memória espiritualidade e luta política Além disso a apropriação da mitologia dos orixás fornece à narrativa um sistema de simbolização que conecta os conflitos do dia a dia a uma dimensão transcendental O axioma da ancestralidade como já ressaltado por diversos autores e autores conecta o passado o presente e o futuro instaurando uma temporalidade circular que desafia o paradigma linear ocidental Essa concepção do tempo e da existência fortalece a ideia de uma resistência cultural perene na qual o presente dos marginalizados é iluminado pela força dos ancestrais Nesse ponto a combinação entre a denúncia da exclusão social e a celebração da cultura de matriz africana materializase sobretudo na inserção do axé como movimento estruturante da narrativa Essa energia espiritual não é apenas tema mas estratégica estética e ética conferindo à obra um caráter performativo no qual a linguagem o ritmo e a oralidade reproduzem o poder transgressor da cultura dos terreiros Jorge Amado assim propõe um espaço literário que funcione como um verdadeiro terreiro simbólico no qual as vozes historicamente silenciadas encontram não só escuta mas reverberação É fundamental destacar que tal inserção não se limita a um exotismo folclórico mas assume dimensão política e de afirmação identitária A perseguição enfrentada pelos praticantes do candomblé e o racismo estrutural que marginaliza os corpos negros são elementos centrais na narrativa mas também espaço para a insurgência e a invenção de novas formas de existência e resistência Conforme Muniz Sodré destaca transgredir a lógica do racismo nacional implica compreender o fascismo da cor como um sistema que insiste em negar a legitimidade das religiões afrobrasileiras e nesse contexto a literatura de Amado atua como contraponto necessário à negação histórica A força de Capitães da Areia reside pois na construção de uma poética que articula estética e política corpo e ancestralidade narrativas pessoais e coletivas Ao dar voz a personagens que encarnam o axé Jorge Amado não apenas humaniza o retrato da infância marginalizada mas também transforma o romance num espaço simbólico de cura memória e luta O resultado é uma obra que convida o leitor a considerar outros modos de estar no mundo para além dos parâmetros hegemônicos promovendo a interculturalidade e o diálogo entre epistemologias distintas Finalmente a compreensão da obra como parte da literatura de axé permite reposicionála dentro de um campo literário maior que reivindica para a cultura afrobrasileira um lugar legítimo e central no panorama nacional Tal reposicionamento amplia o conceito de literatura nacional incluindo nela corpos histórias e espiritualidades tradicionalmente marginalizadas ou silenciadas Nesse sentido a obra se reafirma como um legado imperativo não apenas para os estudos literários mas para as discussões sociais culturais e políticas contemporâneas apontando caminhos para a construção de uma sociedade mais plural justa e sensível às diferenças Se desejar posso ajudar a elaborar o conteúdo formatado para que caiba exatamente em duas laudas incluindo espaçamento tamanho de fonte e margens ou mesmo acrescentar uma seção de descrição crítica ainda mais detalhada Referências AMADO Jorge Capitães da Areia São Paulo Companhia das Letras 2008 LEITE Gildeci de Oliveira Autores de Axé Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Literatura e Outras Artes de Axé Salvador EDUFBA 2012 LEITE Gildeci de Oliveira Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 LEITE Gildeci de Oliveira Omolu Obaluaé São Lázaro São Roque a Fé a Medicina do Pobre Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Amado Axé de Mar Morto In LEITE G O SARAIVA F F PRADO T M C Orgs II Webinário Estudos Amadianos 20 anos de permanência Salvador Quarteto Editora 2021 p 185203 LUZ Marco Aurélio LUZ Narcimária Correia do Patrocínio Orgs Pensamento Insurgente direito à alteridade comunicação e educação Salvador EDUFBA 2012 PRANDI Reginaldo Deuses africanos no Brasil In Herdeiras do Axé São Paulo Hucitec 1997 p 150 SODRÉ Muniz O Fascismo da Cor uma radiografia do racismo nacional Petrópolis Vozes 2023 SILVA José Carlos Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 TAVARES Ildásio Candomblés na Bahia São Paulo Corrupião 2009 A PRESENÇA DA LITERATURA DE AXÉ NA OBRA CAPITÃES DA AREIA DE JORGE AMADO Michelle Souza de Oliveira Anjos UNEB michellesouzadeoliveiraanjosgmailcom RESUMO Este trabalho propõe uma análise da obra Capitães da Areia 2008 de Jorge Amado a partir da presença da literatura de axé vertente que incorpora elementos das religiões afro brasileiras especialmente o candomblé A narrativa ao retratar a vivência de meninos em situação de rua em Salvador manifesta uma profunda influência da cosmovisão de matriz africana tanto na caracterização dos personagens quanto na construção simbólica do espaço urbano Por meio da mitologia dos orixás da oralidade e da corporeidade Jorge Amado legitima os saberes e a espiritualidade do povo negro contribuindo para a valorização da identidade afrobrasileira na literatura Palavraschave Jorge Amado Orixás Identidade afrobrasileira 1 Sobre a obra e o autor Capitães da Areia publicado originalmente em 1937 é uma das obras mais emblemáticas do escritor baiano Jorge Amado Nascido em Itabuna em 1912 e falecido em 2001 Amado é um dos principais nomes da literatura brasileira do século XX Sua produção literária é marcada pelo retrato sensível do povo baiano pelo engajamento político e pela denúncia social especialmente da desigualdade e da marginalização A obra retrata a vida de meninos abandonados nas ruas de Salvador que formam um grupo de sobrevivência e amizade Vivendo no trapiche um antigo armazém abandonado eles enfrentam a fome a repressão policial e o preconceito social Jorge Amado denuncia com lirismo e realismo as contradições de uma sociedade que exclui os mais vulneráveis Capitães da Areia é uma obra que fomenta uma análise perspicaz sobre uma fase infantil à margem da sociedade mostrando como crianças sem lar são levadas ao mundo do crime não por vontade própria mas por não ter oportunidade A narrativa utiliza uma linguagem acessível com forte presença de regionalismos o que contribui para as desvantagens da ambientação As vozes dos personagens se manifestam com força e sensibilidade permitindo ao leitor perceber seus medos esperanças e afetos O protagonismo de Pedro Bala Dora SemPernas e outros personagens é um exemplo claro da complexidade emocional e moral que Amado imprime aos seus protagonistas A cidade de Salvador é representada em sua totalidade da opulência da cidade alta à pobreza das docas revelando um espaço urbano desigual onde o direito à infância é negado a muitos Capitães da Areia foi censurado na época de sua publicação o que mostra sua força crítica e seu impacto social Mesmo décadas depois permanece atual ao retratar uma realidade que ainda persiste em muitas cidades brasileiras Jorge Amado criou uma obra potente lírica e politicamente relevante Capitães da Areia é até hoje uma referência na discussão sobre infância exclusão e justiça social Ao dar voz aos invisibilizados o autor contribui para uma literatura que humaniza denuncia e emociona tornando a leitura uma ferramenta de transformação social e crítica Ao examinar a obra de Jorge Amado Gildeci de Oliveira Leite ressalta que o autor transcende a mera observação da sociedade construindo uma narrativa que abraça a influência africana ancestral como um alicerce essencial da identidade cultural baiana e da resistência social LEITE 2015 p 38 Esse posicionamento é fundamental pois amplia a compreensão da obra para além do retrato social estrito revelando uma afirmação simbólica dos valores culturais e espirituais que dignificam os marginalizados e lhes conferem agilidade na narrativa 2 Literatura de Axé O que é e como se manifesta A literatura de axé é uma vertente literária que se fundamenta nos elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé O termo axé se refere à energia sagrada à força vital que permeia o universo e é associado aos orixás entidades espirituais centrais no candomblé Em sua essência o axé representa o poder a vitalidade e a conexão espiritual que circula nas forças naturais e humanas A literatura de axé é descrita pela incorporação de elementos ritualísticos simbólicos e orais que remontam às práticas religiosas e culturais afrobrasileiras Ela se distingue por seu foco na oralidade na musicalidade identidade das palavras e na celebração das negras e dos saberes ancestrais Ao contrário da literatura ocidental muitas vezes linear e racional a literatura de axé abraça a circularidade do tempo as narrativas míticas e a visão de mundo das religiões de matriz africana Essa forma literária não apenas representa mas busca encarnar os mitos os rituais e a cosmovisão dos povos afrodescendentes valorizando o corpo o movimento e a força espiritual A produção de Jorge Amado em Capitães da Areia nesse caso apresenta os orixás e os rituais do candomblé Reginaldo Prandi enfatiza que o axé não é apenas um conteúdo temático mas uma matéria própria da experiência sensível e da narrativa que impregna o tempo e o espaço dos povos de matriz africana PRANDI 1997 p 32 conferindo uma temporalidade circular e uma cosmovisão em que passado e presente dialogam constantemente Nesse sentido a literatura de axé surge como um saber ancestral que resiste à imposição das narrativas dominantes incorporando uma epistemologia própria que Jorge Amado reconhece e valoriza De modo semelhante Leite defende que a literatura e os mitos afrobaianos tais como demonstrados em Capitães da Areia espelham os deleites e os desafios da vida social e cultural da Bahia onde aoralidade e o ritual de performance afirmam a existência de modos alternativos de conhecimento e expressão LEITE 2012 p 39 Dessa forma a literatura de axé emerge como um campo vivo de resistência cultural e epistemológica sobretudo quando se insere em obras que celebram e legitimam saberes ancestrais 3 A Simbologia do Candomblé em Capitães da Areia Em Capitães da Areia Jorge Amado insere o candomblé como parte integrante do cotidiano dos personagens O sincretismo religioso presente em Salvador é retratado através das festas populares das menções aos orixás e do respeito às entidades espirituais Jorge Amado não apenas faz referência aos orixás mas recria a narrativa a partir de seus arquétipos e atributos simbólicos A linguagem simbólica também se manifesta nas autoridades da cidade de Salvador com suas ladeiras lojas e terreiros compondo um espaço sagrado e profano ao mesmo tempo A cidade se apresenta como um espaço vivo de experiências espirituais e culturais onde o axé se manifesta tanto na arquitetura quanto nas relações sociais Para Tavares os candomblés na Bahia específicos mais do que um culto religioso formam um território cultural que articula resistência identidade e sociabilidade das populações afrodescendentes TAVARES 2009 p 54 Jorge Amado portanto torna esse contexto uma estrutura narrativa onde mulher religião e cultura afrobrasileira são fundamentais A obra expressa um dialogismo entre o profano e o sagrado fazendo do espaço urbano um cenário ritmado pelos tempos e sentidos do axé desafiando a lógica linear e racionalista que silencia e marginaliza o conhecimento afrobrasileiro Silva 2015 corrobora essa visão ao destacar como Jorge Amado recupera a ancestralidade e a presença viva dos orixás como elementos estruturadores da subjetividade negra e da narrativa literária SILVA 2015 p 65 Por fim Leite em sua obra específica sobre a medicina popular e a fé ressalta Omolu Obaluaé São Lázaro e São Roque configuramse na cultura afro brasileira como símbolos de uma medicina do pobre na qual a fé é componente essencial da cura e da resistência LEITE 2016 p 120 Esses elementos aprofundam a dimensão espiritual do cotidiano na narrativa e confirmam o papel da religiosidade afrobrasileira como força vital e mecanismo de preservação cultural 4 Orixás e Capitães da Areia Paralelos Simbólicos Entre Divindades e Meninos em situação de Rua Em Capitães da Areia Jorge Amado entrelaça a realidade dos meninos em situação de rua com elementos do candomblé estabelecendo paralelos simbólicos entre os personagens e os orixás Essa conexão não apenas enriquece a narrativa mas também confere uma dimensão espiritual e cultural à luta e resistência dos jovens marginalizados 41 Ogum e Pedro Bala Liderança e Resistência A trajetória de Pedro Bala líder dos Capitães da Areia reflete a luta constante pela justiça e sobrevivência nas ruas de Salvador Embora a obra não estabeleça uma associação direta entre Pedro Bala e Ogum a simbologia presente na narrativa permite essa interpretação A liderança de Pedro Bala e sua disposição para enfrentar adversidades ecoam as qualidades atribuídas a Ogum no candomblé Prandi 1997 ressalta que Ogum é a realização que abre caminhos é construída luta contra as forças adversárias sendo um símbolo de força trabalho e proteção para os oprimidos PRANDI 1997 p 27 Tal descrição se alinha perfeitamente à figura de Pedro Bala que se destaca pela liderança e persistência frente às atribuições de sua condição Esse ponto evidencia a dimensão afetiva social e espiritual da doença no contexto dos marginalizados 42 Omolu e a Epidemia A Presença do Sagrado na Doença A narrativa sugere que a doença foi enviada por Omolu como proteção aos ricos da Cidade Alta Omolu mandou uma bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não destas sabiam coisas de vacinar AMADO 2008 p 155 Essa referência destaca a presença do sagrado na explicação das calamidades refletindo a visão do mundo dos personagens e a influência das religiões afrobrasileiras na cultura local Gildeci de Oliveira Leite em sua análise sobre Omolu e a medicina popular explica que a figura de Omolu que se mistura com São Lázaro e São Roque no sincretismo personifica tanto a doença quanto a cura na prática dos pobres para os quais a fé constitui a medicina mais acessível LEITE 2016 p 122 No caso do romance a doença tornase um elemento espiritual que reforça a presença do axé e a luta pela sobrevivência num sistema desigual 43 QueridodeDeus Sincretismo Religioso e Identidade QueridodeDeus personagem que ensina capoeira aos meninos é descrito como devoto de Xangô e Omolu além de santos católicos Essa combinação de ligação evidencia o sincretismo religioso presente na obra e na sociedade baiana O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturavaos com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa AMADO 2008 p 117 Consequentemente QueridodeDeus representa um ser inserido numa rica teia identitária que conjuga diversas referências religiosas e culturais Ildásio Tavares destaca que o sincretismo é uma ferramenta política e espiritual de resistência que protege e se adapta às manifestações religiosas afrobrasileiras à pressão da sociedade dominante TAVARES 2009 p 77 Assim QueridodeDeus simboliza essa complexa articulação identitária onde o imanente e o transcendente se combinam para afirmar uma presença imperativa 44 DonAninha A Mãe de Santo e o Saber Ancestral A mãe de santo DonAninha é uma das personagens adultas em Capitães da Areia Sua sabedoria e conexão com os orixás conferemlhe um papel de guia espiritual para os meninos O Professor ao refletir sobre seus planos futuros confirma a importância de DonAninha Para Leite as mães de santo como DonAninha representam a memória viva da ancestralidade e o elo entre os mundos sendo fundamentais na preservação da cultura dos terreiros e na orientação espiritual das comunidades marginalizadas LEITE 2012 p 45 5 Narrativa e Oralidade O Axé Como Estratégia Narrativa Um dos aspectos mais relevantes da literatura de axé é o uso da oralidade como elemento estruturante da narrativa Jorge Amado adota uma linguagem que remete aos contadores de histórias dos terreiros com ritmo repetições e musicalidade Essa oralidade aproximase da narrativa de uma dimensão performática onde a palavra não é apenas portadora de sentido mas também de força A presença de provérbios cantigas e expressões populares baianas reforçam essa dimensão O texto não representa apenas o axé ele o encarna E com isso contribui para romper com os paradigmas literários eurocêntricos oferecendo uma alternativa de leitura e escrita comprometida com a cultura afrobrasileira Prandi ressalta que na tradição oral afrobrasileira a palavra tem poder ontológico é força e encantamento funcionando como um veículo para o axé que sustenta a cosmovisão PRANDI 1997 p 38 Gildeci de Oliveira Leite acrescenta que a oralidade não é apenas um atributo estético mas uma estratégia de resistência e manutenção da identidade cultural diante do racismo institucionalizado LEITE 2016 p 75 6 A presença de Ogum e Xangô em Capitães da Areia símbolos da luta e da resistência dos oprimidos Um dos trechos mais simbólicos de Capitães da Areia que evidencia o sincretismo religioso e a resistência cultural afrobrasileira é o capítulo intitulado Aventura de Ogum Nele Jorge Amado construiu uma narrativa composta de religiosidade de matriz africana misturando elementos míticos sociais e políticos e inserindo os orixás Ogum e Xangô como figuras centrais de um conflito entre a fé do povo negro e pobre da Bahia e a repressão institucional Ogum orixá da guerra da tecnologia e da luta é representado como um símbolo da resistência dos pobres contra a violência do Estado A cena em que DonAninha a mãede santo respeitada e temida relata a apreensão da imagem de Ogum pela polícia simboliza a tentativa de autoridade de silenciar e apagar as manifestações culturais e religiosas afro brasileiras DonAninha desabafa em tom de revolta Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus AMADO 2008 p 101 Essa fala carrega o peso histórico da marginalização e criminalização dos cultos de matriz africana e posiciona a religiosidade como ferramenta de expressão identitária e resistência Muniz Sodré ao analisar o fascismo da cor oferece um importante apoio ao afirmar que a perseguição religiosa e o racismo são mecanismos de controle social que objetivam manter a população negra no lugar da exclusão negando seu direito à cultura e à fé SODRÉ 2023 p 52 O capítulo ilustra essa dinâmica mostrando que a luta por Ogum é também uma luta pela preservação da fé e da cultura do povo negro baiano A tempestade que cai sobre Salvador na noite da narrativa é interpretada como uma manifestação da ira de Xangô orixá da justiça e dos raios pela profanação do sagrado Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu de nuvens negras e pesadas Pedro Bala e João Grande levaram a mãedeSanto DonAninha até sua casa AMADO 2008 p 100 Aqui as aparências naturais são lidas como sinais espirituais e os orixás aparecem como agentes vivos e atuantes na realidade dos personagens reafirmando o caráter teológico e revolucionário da literatura de axé Além disso o capítulo destaca a solidariedade entre os personagens marginalizados Pedro Bala ao prometer à mãedesanto que traz Ogum de volta garantindo a importância do respeito e da dignidade espiritual de seu povo Essa promessa é feita de um sentido de missão e compromisso coletivo que ultrapassa a fé individual e se torna ato de resistência política A descrição da figura de DonAninha também reforça a centralidade das mulheres negras como guardiãs do sagrado e líderes comunitárias Ela é apresentada como uma mulher alta magra aristocrática respeitada por sua sabedoria e poder espiritual Dessa forma o capítulo Aventura de Ogum é uma das passagens mais ricas e simbólicas da obra pois une fé cultura política e denúncia social Jorge Amado não apenas expõe a violência sofrida pelos praticantes das religiões afrobrasileiras como também celebra sua força sua beleza e sua capacidade de resistir Assim Ogum e Xangô não são apenas personagens do panteão iorubá são ícones de uma literatura engajada que reivindica espaço e voz para os excluídos 61 A Ancestralidade como Estrutura e Resistência na Obra A ancestralidade enquanto categoria central da literatura de axé transcende o tempo linear e estabelece uma ponte entre passado presente e futuro Em Capitães da Areia essa dimensão ancestral atua como alicerce simbólico e epistemológico da narrativa conferindolhe uma lógica própria que escapa às convenções ocidentais e racionalistas Jorge Amado construiu sua literatura ancorandose na cosmovisão afrobrasileira na qual os mortos os orixás e os saberes do terreiro não estão confinados à memória mas presentes e ativos no cotidiano dos personagens Essa presença ancestral não se dá apenas por menções diretas a figuras religiosas ou práticas rituais Ela se manifesta na circularidade da narrativa na reiteração dos temas do pertencimento da comunidade e da luta pela sobrevivência todos ancorados em uma visão de mundo que valoriza a coletividade e o sagrado A figura de DonAninha por exemplo representa mais do que uma mãe de santo ela é uma memória viva da tradição a guardiã de um saber ancestral que orienta e sustenta espiritualmente os meninos Sua escuta dos búzios é metáfora do diálogo constante entre o visível e o invisível entre o presente e os ensinamentos dos mais velhos Leite destaca que a ancestralidade tecida em mitos identidades e práticas mantém viva a negra e cria uma possibilidade epistemológica que desafia o paradigma dominante reforçando a luta por reconhecimento cultural e social LEITE 2015 p 52 Marco Aurélio Luz e Narcimária Luz corroboram essa releitura crítica ao afirmarem que uma narrativa afrobrasileira insurgese contra o racismo estrutural por meio da afirmação da alteridade da memória e da resistência ética e estética promovendo o direito à diferença LUZ LUZ 2012 p 14 A ancestralidade funciona ainda como uma forma de resistência às estruturas opressoras da sociedade colonial e cristã Ao incorporar essa lógica africana de existência à estrutura da narrativa Jorge Amado desafia as cânones literárias e propõe uma literatura que abriga o encantamento o mistério e o axé como formas legítimas de conhecimento A escrita tornase assim um terreiro simbólico onde se invoca forças e memórias que garantem a continuidade de um povo historicamente silenciado Nesse contexto o romance não apenas retrata uma realidade social de exclusão mas insira nela uma proposta estética e espiritual de redenção A luta dos Capitães da Areia iluminada pelo axé de seus ancestrais transcende a marginalização social para se tornar um grito de resistência cultural e religiosa A ancestralidade nesse sentido não é um tema é a própria espinha dorsal da narrativa que confere dignidade voz e futuro aos personagens 7 Identidade Ancestralidade e Resistência A inserção da mitologia afrobrasileira na obra de Jorge Amado configurase como estratégia de resistência cultural A literatura do autor baiano não apenas retrata mas celebra o candomblé como saber e como força vital A relação dos Capitães da Areia com os elementos do axé representa portanto não apenas um retrato social mas uma afirmação política e espiritual Ao incorporar os mitos ritos e crenças afrobrasileiras Jorge Amado contribui para legitimar essas tradições dentro do espaço literário brasileiro Isso se reflete inclusive na recepção da obra por leitores e estudiosos que identificam na escrita do autor um compromisso com a dignidade e a representação dos povos de axé Muniz Sodré observa que a questão da cor no Brasil se expressa como uma posição racial que mantém os corpos negros em condição de invisibilidade e marginalidade social mas a religiosidade de matriz africana atua como um campo de afirmação identitária e resistência SODRÉ 2023 p 93 Assim Capitães da Areia tornase espaço de insurgência cultural e social contribuindo para as discussões sobre identidade racial cultural e religiosa 8 Considerações Finais Uma análise da presença da literatura de axé em Capitães da Areia permite compreender a obra não apenas como romance social mas como um espaço de afirmação identitária e religiosa Os elementos do candomblé integram a estrutura simbólica fundamental da narrativa configurandose como expressão clara da literatura de axé Essa posição epistemológica proposta por Jorge Amado desenvolve uma obra que transcende o romance de denúncia social para assumir um papel de resistência cultural política e espiritual O romance se insere numa tradição literária comprometida com a visibilização do povo negro e das suas múltiplas identidades incorporando elementos materiais e imateriais da ancestralidade africana como matriz fundamental da cultura brasileira Muitas vezes invisibilizadas ou estigmatizadas por discursos hegemônicos à medida que culturas afro brasileiras ganham em Capitães da Areia não são apenas representação mas protagonismo epistemológico Nesse sentido Jorge Amado inaugura uma estética que se ancora numa cosmovisão marcada pelo axé energia vital que atravessa e conecta todas as dimensões da existência A literatura dessa forma deixa de ser apenas um registro narrativo ou crítica social para se transformar num instrumento vivo de afirmação da alteridade A tensão entre o sagrado e o profano o corpo e o mito o som e o silêncio configura uma narrativa que dialoga com as tradições orais dos povos afrodescendentes rompendo com o cânone literário ocidental e eurocêntrico Além disso a obra se destaca por fornecer pluralidade e profundidade às personagens negras e pobres conferindolhes subjetividades ricas e determinadas por uma ancestralidade viva A figura de DonAninha por exemplo emerge como símbolo de sabedoria ancestral e de resistência feminina num contexto historicamente adverso Sua centralidade no tecido narrativo mostra que Jorge Amado valoriza não apenas os conteúdos simbólicos do candomblé mas coloca as mulheres negras como protagonistas no campo da memória espiritualidade e luta política Além disso a apropriação da mitologia dos orixás fornece à narrativa um sistema de simbolização que conecta os conflitos do dia a dia a uma dimensão transcendental O axioma da ancestralidade como já ressaltado por diversos autores e autores conecta o passado o presente e o futuro instaurando uma temporalidade circular que desafia o paradigma linear ocidental Essa concepção do tempo e da existência fortalece a ideia de uma resistência cultural perene na qual o presente dos marginalizados é iluminado pela força dos ancestrais Nesse ponto a combinação entre a denúncia da exclusão social e a celebração da cultura de matriz africana materializase sobretudo na inserção do axé como movimento estruturante da narrativa Essa energia espiritual não é apenas tema mas estratégica estética e ética conferindo à obra um caráter performativo no qual a linguagem o ritmo e a oralidade reproduzem o poder transgressor da cultura dos terreiros Jorge Amado assim propõe um espaço literário que funcione como um verdadeiro terreiro simbólico no qual as vozes historicamente silenciadas encontram não só escuta mas reverberação É fundamental destacar que tal inserção não se limita a um exotismo folclórico mas assume dimensão política e de afirmação identitária A perseguição enfrentada pelos praticantes do candomblé e o racismo estrutural que marginaliza os corpos negros são elementos centrais na narrativa mas também espaço para a insurgência e a invenção de novas formas de existência e resistência Conforme Muniz Sodré destaca transgredir a lógica do racismo nacional implica compreender o fascismo da cor como um sistema que insiste em negar a legitimidade das religiões afrobrasileiras e nesse contexto a literatura de Amado atua como contraponto necessário à negação histórica A força de Capitães da Areia reside pois na construção de uma poética que articula estética e política corpo e ancestralidade narrativas pessoais e coletivas Ao dar voz a personagens que encarnam o axé Jorge Amado não apenas humaniza o retrato da infância marginalizada mas também transforma o romance num espaço simbólico de cura memória e luta O resultado é uma obra que convida o leitor a considerar outros modos de estar no mundo para além dos parâmetros hegemônicos promovendo a interculturalidade e o diálogo entre epistemologias distintas Finalmente a compreensão da obra como parte da literatura de axé permite reposicionála dentro de um campo literário maior que reivindica para a cultura afrobrasileira um lugar legítimo e central no panorama nacional Tal reposicionamento amplia o conceito de literatura nacional incluindo nela corpos histórias e espiritualidades tradicionalmente marginalizadas ou silenciadas Nesse sentido a obra se reafirma como um legado imperativo não apenas para os estudos literários mas para as discussões sociais culturais e políticas contemporâneas apontando caminhos para a construção de uma sociedade mais plural justa e sensível às diferenças Se desejar posso ajudar a elaborar o conteúdo formatado para que caiba exatamente em duas laudas incluindo espaçamento tamanho de fonte e margens ou mesmo acrescentar uma seção de descrição crítica ainda mais detalhada Referências AMADO Jorge Capitães da Areia São Paulo Companhia das Letras 2008 LEITE Gildeci de Oliveira Autores de Axé Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Literatura e Outras Artes de Axé Salvador EDUFBA 2012 LEITE Gildeci de Oliveira Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 LEITE Gildeci de Oliveira Omolu Obaluaé São Lázaro São Roque a Fé a Medicina do Pobre Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Amado Axé de Mar Morto In LEITE G O SARAIVA F F PRADO T M C Orgs II Webinário Estudos Amadianos 20 anos de permanência Salvador Quarteto Editora 2021 p 185203 LUZ Marco Aurélio LUZ Narcimária Correia do Patrocínio Orgs Pensamento Insurgente direito à alteridade comunicação e educação Salvador EDUFBA 2012 PRANDI Reginaldo Deuses africanos no Brasil In Herdeiras do Axé São Paulo Hucitec 1997 p 150 SODRÉ Muniz O Fascismo da Cor uma radiografia do racismo nacional Petrópolis Vozes 2023 SILVA José Carlos Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 TAVARES Ildásio Candomblés na Bahia São Paulo Corrupião 2009
160
Literatura
UNEB
190
Literatura
UNEB
300
Literatura
UNEB
6
Literatura
UNEB
50
Literatura
UNEB
11
Literatura
UNEB
43
Literatura
UNEB
13
Literatura
UNEB
13
Literatura
UNEB
1
Literatura
UERJ
Texto de pré-visualização
A PRESENÇA DA LITERATURA DE AXÉ NA OBRA CAPITÃES DA AREIA DE JORGE AMADO Michelle Souza de Oliveira Anjos UNEB michellesouzadeoliveiraanjosgmailcom RESUMO Este trabalho propõe uma análise da obra Capitães da Areia 2008 de Jorge Amado a partir da presença da literatura de axé vertente que incorpora elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé A narrativa ao retratar a vivência de meninos em situação de rua em Salvador manifesta uma profunda influência da cosmovisão de matriz africana tanto na caracterização dos personagens quanto na construção simbólica do espaço urbano Por meio da mitologia dos orixás da oralidade e da corporeidade Jorge Amado legitima os saberes e a espiritualidade do povo negro contribuindo para a valorização da identidade afrobrasileira na literatura Palavraschave Jorge Amado Orixás Identidade afrobrasileira 1Sobre a obra e o autor Capitães da Areia publicado originalmente em 1937 é uma das obras mais emblemáticas do escritor baiano Jorge Amado Nascido em Itabuna em 1912 e falecido em 2001 Amado é um dos principais nomes da literatura brasileira do século XX Sua produção literária é marcada pelo retrato sensível do povo baiano pelo engajamento político e pela denúncia social especialmente da desigualdade e da marginalização A obra retrata a vida de meninos abandonados nas ruas de Salvador que formam um grupo de sobrevivência e amizade Vivendo no trapiche um antigo armazém abandonado eles enfrentam a fome a repressão policial e o preconceito social Jorge Amado denuncia com lirismo e realismo as contradições de uma sociedade que exclui os mais vulneráveis Capitães da Areia é uma obra que promove uma reflexão profunda sobre a infância marginalizada revelando como as crianças em situação de rua são empurradas à criminalidade não por escolha mas por falta de oportunidades A narrativa utiliza uma linguagem acessível com forte presença de regionalismos o que contribui para a autenticidade da ambientação As vozes dos personagens se manifestam com força e sensibilidade permitindo ao leitor perceber seus medos esperanças e afetos O protagonismo de Pedro Bala Dora SemPernas e outros personagens é um exemplo claro da complexidade emocional e moral que Amado imprime aos seus protagonistas A cidade de Salvador é representada em sua totalidade da opulência da cidade alta à pobreza das docas revelando um espaço urbano desigual onde o direito à infância é negado a muitos Capitães da Areia foi censurado na época de sua publicação o que mostra sua força crítica e seu impacto social Mesmo décadas depois permanece atual ao retratar uma realidade que ainda persiste em muitas cidades brasileiras Jorge Amado criou uma obra potente lírica e politicamente relevante Capitães da Areia é até hoje uma referência na discussão sobre infância exclusão e justiça social Ao dar voz aos invisibilizados o autor contribui para uma literatura que humaniza denuncia e emociona tornando a leitura uma ferramenta de transformação social e crítica 2Literatura de Axé O que é e como se manifesta A literatura de axé é uma vertente literária que se fundamenta nos elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé O termo axé se refere à energia sagrada à força vital que permeia o universo e é associada aos orixás entidades espirituais centrais no candomblé Em sua essência o axé representa o poder a vitalidade e a conexão espiritual que circula nas forças naturais e humanas A literatura de axé é caracterizada pela incorporação de elementos ritualísticos simbólicos e orais que remontam às práticas religiosas e culturais afrobrasileiras Ela se distingue por seu foco na oralidade na musicalidade das palavras e na celebração das identidades negras e dos saberes ancestrais Ao contrário da literatura ocidental frequentemente linear e racional a literatura de axé abraça a circularidade do tempo as narrativas míticas e a visão de mundo das religiões de matriz africana Essa forma literária não apenas representa mas busca encarnar os mitos os rituais e a cosmovisão dos povos afrodescendentes valorizando o corpo o movimento e a força espiritual A obra de Jorge Amado especialmente Capitães da Areia se insere nesse contexto ao utilizar a mitologia dos orixás e as práticas do candomblé como componentes essenciais de sua estrutura narrativa 3 A Simbologia do Candomblé em Capitães da Areia Em Capitães da Areia Jorge Amado insere o candomblé como parte integrante do cotidiano dos personagens O sincretismo religioso presente em Salvador é retratado através das festas populares das menções aos orixás e do respeito às entidades espirituais Jorge Amado não apenas referencia os orixás mas recria a narrativa a partir de seus arquétipos e atributos simbólicos A linguagem simbólica também se manifesta nas descrições da cidade de Salvador com suas ladeiras igrejas e terreiros compondo um espaço sagrado e profano ao mesmo tempo A cidade se apresenta como um espaço vivo de experiências espirituais e culturais onde o axé se manifesta tanto na arquitetura quanto nas relações sociais 4 Orixás e Capitães da Areia Paralelos Simbólicos Entre Divindades e Meninos em situação de Rua Em Capitães da Areia Jorge Amado entrelaça a realidade dos meninos em situação de rua com elementos do candomblé estabelecendo paralelos simbólicos entre os personagens e os orixás Essa conexão não apenas enriquece a narrativa mas também confere uma dimensão espiritual e cultural à luta e resistência dos jovens marginalizados 41 Ogum e Pedro Bala Liderança e Resistência Ogum orixá associado à guerra à tecnologia e à proteção é conhecido por sua coragem e liderança Pedro Bala líder dos Capitães da Areia personifica essas características ao comandar o grupo com determinação e bravura Sua trajetória reflete a luta constante por justiça e sobrevivência nas ruas de Salvador Embora a obra não estabeleça uma associação direta entre Pedro Bala e Ogum a simbologia presente na narrativa permite essa interpretação A liderança de Pedro Bala e sua disposição para enfrentar adversidades ecoam as qualidades atribuídas a Ogum no candomblé 42 Omolu e a Epidemia A Presença do Sagrado na Doença Omolu orixá ligado às doenças e à cura é mencionado na obra durante a epidemia de varíola que assola Salvador A narrativa sugere que a doença foi enviada por Omolu como punição aos ricos da Cidade Alta Omolu mandou a bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não sabia destas coisas de vacina AMADO 2008 p 155 Essa referência destaca a presença do sagrado na explicação das calamidades refletindo a visão de mundo dos personagens e a influência das religiões afrobrasileiras na cultura local 43 QueridodeDeus Sincretismo Religioso e Identidade QueridodeDeus personagem que ensina capoeira aos meninos é descrito como devoto de Xangô e Omolu além de santos católicos Essa combinação de crenças evidencia o sincretismo religioso presente na obra e na sociedade baiana João Grande acreditava era em Xangô em Omolu nos deuses dos negros que vieram da África O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturava os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa AMADO 2008 p 117 44 DonAninha A Mãe de Santo e o Saber Ancestral DonAninha mãe de santo respeitada é uma das poucas figuras adultas que os Capitães da Areia confiam Sua sabedoria e conexão com os orixás conferemlhe um papel de guia espiritual para os meninos O Professor ao refletir sobre seus planos futuros reconhece a importância de DonAninha Talvez só o sou se DonAninha a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá porque DonAninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio noites de temporal AMADO 2008 p 25 5 Narrativa e Oralidade O Axé Como Estratégia Narrativa Um dos aspectos mais relevantes da literatura de axé é o uso da oralidade como elemento estruturante da narrativa Jorge Amado adota uma linguagem que remete aos contadores de histórias dos terreiros com ritmo repetições e musicalidade Essa oralidade aproxima a narrativa de uma dimensão performática onde a palavra não é apenas portadora de sentido mas também de força A presença de provérbios cantigas e expressões populares baianas reforça essa dimensão O texto não apenas representa o axé ele o encarna E com isso contribui para romper com os paradigmas literários eurocêntricos oferecendo uma alternativa de leitura e escrita comprometida com a cultura afrobrasileira 6A presença de Ogum e Xangô em Capitães da Areia símbolos da luta e da resistência dos oprimidos Um dos trechos mais simbólicos de Capitães da Areia que evidencia o sincretismo religioso e a resistência cultural afrobrasileira é o capítulo intitulado Aventura de Ogum Nele Jorge Amado constrói uma narrativa carregada de religiosidade de matriz africana misturando elementos míticos sociais e políticos e inserindo os orixás Ogum e Xangô como figuras centrais de um conflito entre a fé do povo negro e pobre da Bahia e a repressão institucional Ogum orixá da guerra da tecnologia e da luta é representado como um símbolo da resistência dos pobres contra a violência do Estado A cena em que DonAninha a mãe desanto respeitada e temida relata a apreensão da imagem de Ogum pela polícia simboliza a tentativa da autoridade de silenciar e apagar as manifestações culturais e religiosas afrobrasileiras DonAninha desabafa em tom de revolta Não deixam os pobres viver Não deixam nem o deus dos pobres em paz Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus AMADO 2008 p 101 Essa fala carrega o peso histórico da marginalização e criminalização dos cultos de matriz africana e posiciona a religiosidade como ferramenta de expressão identitária e resistência A tempestade que cai sobre Salvador na noite da narrativa é interpretada como a manifestação da ira de Xangô orixá da justiça e dos raios pela profanação do sagrado Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu carregado de nuvens negras e pesadas Pedro Bala o SemPernas e João Grande foram levar a mãedeSanto DonAninha até sua casa distante Ela viera ao trapiche pela tarde precisava de um favor deles e enquanto explicava a noite caiu espantosa e terrível Ogum está zangado explicou a mãedeSanto DonAninha AMADO 2008 p 100 Aqui os fenômenos naturais são lidos como sinais espirituais e os orixás aparecem como agentes vivos e atuantes na realidade dos personagens reafirmando o caráter teológico e revolucionário da literatura de axé Além disso o capítulo destaca a solidariedade entre os personagens marginalizados Pedro Bala ao prometer à mãedesanto que trará Ogum de volta reconhece a importância do respeito e da dignidade espiritual de seu povo Deixa estar mãe Aninha que amanhã te trago Ogum AMADO 2008 p 102 Essa promessa é carregada de um sentido de missão e compromisso coletivo que ultrapassa a fé individual e se torna ato de resistência política A descrição da figura de DonAninha também reforça a centralidade das mulheres negras como guardiãs do sagrado e líderes comunitárias Ela é apresentada como uma mulher alta magra aristocrática respeitada por sua sabedoria e poder espiritual Sua imagem rompe com os estereótipos comuns e coloca a mulher negra como agente de transformação Dessa forma o capítulo Aventura de Ogum é uma das passagens mais ricas e simbólicas da obra pois une fé cultura política e denúncia social Jorge Amado não apenas expõe a violência sofrida pelos praticantes das religiões afrobrasileiras como também celebra sua força sua beleza e sua capacidade de resistir Assim Ogum e Xangô não são apenas personagens do panteão iorubá são ícones de uma literatura engajada que reivindica espaço e voz para os excluídos 61 A Ancestralidade como Estrutura e Resistência na Obra A ancestralidade enquanto categoria central da literatura de axé transcende o tempo linear e estabelece uma ponte entre passado presente e futuro Em Capitães da Areia essa dimensão ancestral atua como alicerce simbólico e epistemológico da narrativa conferindolhe uma lógica própria que escapa às convenções ocidentais e racionalistas Jorge Amado constrói sua literatura ancorandose na cosmovisão afro brasileira na qual os mortos os orixás e os saberes do terreiro não estão confinados à memória mas presentes e ativos no cotidiano dos personagens Essa presença ancestral não se dá apenas por menções diretas a figuras religiosas ou práticas rituais Ela se manifesta na circularidade da narrativa na reiteração dos temas do pertencimento da comunidade e da luta pela sobrevivência todos ancorados em uma visão de mundo que valoriza a coletividade e o sagrado A figura de DonAninha por exemplo representa mais do que a mãe de santo ela é a memória viva da tradição a guardiã de um saber ancestral que orienta e sustenta espiritualmente os meninos Sua escuta dos búzios é metáfora do diálogo constante entre o visível e o invisível entre o presente e os ensinamentos dos mais velhos A ancestralidade funciona ainda como uma forma de resistência às estruturas opressoras da sociedade colonial e cristã Ao incorporar essa lógica africana de existência à estrutura da narrativa Jorge Amado desafia os cânones literários e propõe uma literatura que abriga o encantamento o mistério e o axé como formas legítimas de conhecimento A escrita tornase assim um terreiro simbólico onde se invocam forças e memórias que garantem a continuidade de um povo historicamente silenciado Nesse contexto o romance não apenas retrata uma realidade social de exclusão mas insere nela uma proposta estética e espiritual de redenção A luta dos Capitães da Areia iluminada pelo axé de seus ancestrais transcende a marginalização social para se tornar um grito de resistência cultural e religiosa A ancestralidade nesse sentido não é um tema é a própria espinha dorsal da narrativa que confere dignidade voz e futuro aos personagens 7 Identidade Ancestralidade e Resistência A inserção da mitologia afrobrasileira na obra de Jorge Amado configurase como estratégia de resistência cultural A literatura do autor baiano não apenas retrata mas celebra o candomblé como saber e como força vital A relação dos Capitães da Areia com os elementos do axé representa portanto não apenas um retrato social mas uma afirmação política e espiritual Ao incorporar os mitos ritos e crenças afrobrasileiras Jorge Amado contribui para legitimar essas tradições dentro do espaço literário brasileiro Isso se reflete inclusive na recepção da obra por leitores e estudiosos que identificam na escrita do autor um compromisso com a dignidade e a representação dos povos de axé 8 Considerações Finais A análise da presença da literatura de axé em Capitães da Areia permite compreender a obra não apenas como romance social mas como um espaço de afirmação identitária e religiosa Os elementos do candomblé longe de serem decorativos compõem a estrutura simbólica da narrativa configurandose como literatura de axé Nesse sentido Jorge Amado se alinha a uma tradição literária que reconhece a ancestralidade africana como matriz fundamental da cultura brasileira Sua obra contribui assim para ampliar os horizontes do que se entende por literatura nacional incorporando vozes corpos e espiritualidades historicamente marginalizados Referências AMADO Jorge Capitães da Areia São Paulo Companhia das Letras 2008 LEITE Gildeci de Oliveira Autores de Axé Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Literatura e Outras Artes de Axé Salvador EDUFBA 2012 LEITE Gildeci de Oliveira Amado Axé de Mar Morto In LEITE G O SARAIVA F F PRADO T M C Orgs II Webinário Estudos Amadianos 20 anos de permanência Salvador Quarteto Editora 2021 p 185203 PRANDI Reginaldo Mitologia dos Orixás São Paulo Companhia das Letras 2001 SANTOS Vivaldo da Costa Candomblés da Bahia São Paulo Corrupio 2009 SILVA José Carlos Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 A PRESENÇA DA LITERATURA DE AXÉ NA OBRA CAPITÃES DA AREIA DE JORGE AMADO Michelle Souza de Oliveira Anjos UNEB michellesouzadeoliveiraanjosgmailcom RESUMO Este trabalho propõe uma análise da obra Capitães da Areia 2008 de Jorge Amado a partir da presença da literatura de axé vertente que incorpora elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé A narrativa ao retratar a vivência de meninos em situação de rua em Salvador manifesta uma profunda influência da cosmovisão de matriz africana tanto na caracterização dos personagens quanto na construção simbólica do espaço urbano Por meio da mitologia dos orixás da oralidade e da corporeidade Jorge Amado legitima os saberes e a espiritualidade do povo negro contribuindo para a valorização da identidade afrobrasileira na literatura Palavraschave Jorge Amado Orixás Identidade afrobrasileira 1 Sobre a obra e o autor Capitães da Areia publicado originalmente em 1937 é uma das obras mais emblemáticas do escritor baiano Jorge Amado Nascido em Itabuna em 1912 e falecido em 2001 Amado é um dos principais nomes da literatura brasileira do século XX Sua produção literária é marcada pelo retrato sensível do povo baiano pelo engajamento político e pela denúncia social especialmente da desigualdade e da marginalização A obra retrata a vida de meninos abandonados nas ruas de Salvador que formam um grupo de sobrevivência e amizade Vivendo no trapiche um antigo armazém abandonado eles enfrentam a fome a repressão policial e o preconceito social Jorge Amado denuncia com lirismo e realismo as contradições de uma sociedade que exclui os mais vulneráveis Capitães da Areia é uma obra que fomenta uma análise perspicaz sobre uma fase infantil à margem da sociedade mostrando como crianças sem lar são levadas ao mundo do crime não por vontade própria mas por não ter oportunidade A narrativa utiliza uma linguagem acessível com forte presença de regionalismos o que contribui para as desvantagens da ambientação As vozes dos personagens se manifestam com força e sensibilidade permitindo ao leitor perceber seus medos esperanças e afetos O protagonismo de Pedro Bala Dora SemPernas e outros personagens é um exemplo claro da complexidade emocional e moral que Amado imprime aos seus protagonistas A cidade de Salvador é representada em sua totalidade da opulência da cidade alta à pobreza das docas revelando um espaço urbano desigual onde o direito à infância é negado a muitos Capitães da Areia foi censurado na época de sua publicação o que mostra sua força crítica e seu impacto social Mesmo décadas depois permanece atual ao retratar uma realidade que ainda persiste em muitas cidades brasileiras Jorge Amado criou uma obra potente lírica e politicamente relevante Capitães da Areia é até hoje uma referência na discussão sobre infância exclusão e justiça social Ao dar voz aos invisibilizados o autor contribui para uma literatura que humaniza denuncia e emociona tornando a leitura uma ferramenta de transformação social e crítica Ao examinar a obra de Jorge Amado Gildeci de Oliveira Leite ressalta que o autor transcende a mera observação da sociedade construindo uma narrativa que abraça a influência africana ancestral como um alicerce essencial da identidade cultural baiana e da resistência social LEITE 2015 p 38 Esse posicionamento é fundamental pois amplia a compreensão da obra para além do retrato social estrito revelando uma afirmação simbólica dos valores culturais e espirituais que dignificam os marginalizados e lhes conferem agilidade na narrativa 2 Literatura de Axé O que é e como se manifesta A literatura de axé é uma vertente literária que se fundamenta nos elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé O termo axé se refere à energia sagrada à força vital que permeia o universo e é associado aos orixás entidades espirituais centrais no candomblé Em sua essência o axé representa o poder a vitalidade e a conexão espiritual que circula nas forças naturais e humanas A literatura de axé é descrita pela incorporação de elementos ritualísticos simbólicos e orais que remontam às práticas religiosas e culturais afrobrasileiras Ela se distingue por seu foco na oralidade na musicalidade identidade das palavras e na celebração das negras e dos saberes ancestrais Ao contrário da literatura ocidental muitas vezes linear e racional a literatura de axé abraça a circularidade do tempo as narrativas míticas e a visão de mundo das religiões de matriz africana Essa forma literária não apenas representa mas busca encarnar os mitos os rituais e a cosmovisão dos povos afrodescendentes valorizando o corpo o movimento e a força espiritual A produção de Jorge Amado em Capitães da Areia nesse caso apresenta os orixás e os rituais do candomblé Reginaldo Prandi enfatiza que o axé não é apenas um conteúdo temático mas uma matéria própria da experiência sensível e da narrativa que impregna o tempo e o espaço dos povos de matriz africana PRANDI 1997 p 32 conferindo uma temporalidade circular e uma cosmovisão em que passado e presente dialogam constantemente Nesse sentido a literatura de axé surge como um saber ancestral que resiste à imposição das narrativas dominantes incorporando uma epistemologia própria que Jorge Amado reconhece e valoriza De modo semelhante Leite defende que a literatura e os mitos afrobaianos tais como demonstrados em Capitães da Areia espelham os deleites e os desafios da vida social e cultural da Bahia onde aoralidade e o ritual de performance afirmam a existência de modos alternativos de conhecimento e expressão LEITE 2012 p 39 Dessa forma a literatura de axé emerge como um campo vivo de resistência cultural e epistemológica sobretudo quando se insere em obras que celebram e legitimam saberes ancestrais 3 A Simbologia do Candomblé em Capitães da Areia Em Capitães da Areia Jorge Amado insere o candomblé como parte integrante do cotidiano dos personagens O sincretismo religioso presente em Salvador é retratado através das festas populares das menções aos orixás e do respeito às entidades espirituais Jorge Amado não apenas faz referência aos orixás mas recria a narrativa a partir de seus arquétipos e atributos simbólicos A linguagem simbólica também se manifesta nas autoridades da cidade de Salvador com suas ladeiras lojas e terreiros compondo um espaço sagrado e profano ao mesmo tempo A cidade se apresenta como um espaço vivo de experiências espirituais e culturais onde o axé se manifesta tanto na arquitetura quanto nas relações sociais Para Tavares os candomblés na Bahia específicos mais do que um culto religioso formam um território cultural que articula resistência identidade e sociabilidade das populações afrodescendentes TAVARES 2009 p 54 Jorge Amado portanto torna esse contexto uma estrutura narrativa onde mulher religião e cultura afrobrasileira são fundamentais A obra expressa um dialogismo entre o profano e o sagrado fazendo do espaço urbano um cenário ritmado pelos tempos e sentidos do axé desafiando a lógica linear e racionalista que silencia e marginaliza o conhecimento afrobrasileiro Silva 2015 corrobora essa visão ao destacar como Jorge Amado recupera a ancestralidade e a presença viva dos orixás como elementos estruturadores da subjetividade negra e da narrativa literária SILVA 2015 p 65 Por fim Leite em sua obra específica sobre a medicina popular e a fé ressalta Omolu Obaluaé São Lázaro e São Roque configuramse na cultura afrobrasileira como símbolos de uma medicina do pobre na qual a fé é componente essencial da cura e da resistência LEITE 2016 p 120 Esses elementos aprofundam a dimensão espiritual do cotidiano na narrativa e confirmam o papel da religiosidade afrobrasileira como força vital e mecanismo de preservação cultural 4 Orixás e Capitães da Areia Paralelos Simbólicos Entre Divindades e Meninos em situação de Rua Em Capitães da Areia Jorge Amado entrelaça a realidade dos meninos em situação de rua com elementos do candomblé estabelecendo paralelos simbólicos entre os personagens e os orixás Essa conexão não apenas enriquece a narrativa mas também confere uma dimensão espiritual e cultural à luta e resistência dos jovens marginalizados 41 Ogum e Pedro Bala Liderança e Resistência A trajetória de Pedro Bala líder dos Capitães da Areia reflete a luta constante pela justiça e sobrevivência nas ruas de Salvador Embora a obra não estabeleça uma associação direta entre Pedro Bala e Ogum a simbologia presente na narrativa permite essa interpretação A liderança de Pedro Bala e sua disposição para enfrentar adversidades ecoam as qualidades atribuídas a Ogum no candomblé Prandi 1997 ressalta que Ogum é a realização que abre caminhos é construída luta contra as forças adversárias sendo um símbolo de força trabalho e proteção para os oprimidos PRANDI 1997 p 27 Tal descrição se alinha perfeitamente à figura de Pedro Bala que se destaca pela liderança e persistência frente às atribuições de sua condição Esse ponto evidencia a dimensão afetiva social e espiritual da doença no contexto dos marginalizados 42 Omolu e a Epidemia A Presença do Sagrado na Doença A narrativa sugere que a doença foi enviada por Omolu como proteção aos ricos da Cidade Alta Omolu mandou uma bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não destas sabiam coisas de vacinar AMADO 2008 p 155 Essa referência destaca a presença do sagrado na explicação das calamidades refletindo a visão do mundo dos personagens e a influência das religiões afrobrasileiras na cultura local Gildeci de Oliveira Leite em sua análise sobre Omolu e a medicina popular explica que a figura de Omolu que se mistura com São Lázaro e São Roque no sincretismo personifica tanto a doença quanto a cura na prática dos pobres para os quais a fé constitui a medicina mais acessível LEITE 2016 p 122 No caso do romance a doença tornase um elemento espiritual que reforça a presença do axé e a luta pela sobrevivência num sistema desigual 43 QueridodeDeus Sincretismo Religioso e Identidade QueridodeDeus personagem que ensina capoeira aos meninos é descrito como devoto de Xangô e Omolu além de santos católicos Essa combinação de ligação evidencia o sincretismo religioso presente na obra e na sociedade baiana O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturavaos com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa AMADO 2008 p 117 Consequentemente QueridodeDeus representa um ser inserido numa rica teia identitária que conjuga diversas referências religiosas e culturais Ildásio Tavares destaca que o sincretismo é uma ferramenta política e espiritual de resistência que protege e se adapta às manifestações religiosas afrobrasileiras à pressão da sociedade dominante TAVARES 2009 p 77 Assim QueridodeDeus simboliza essa complexa articulação identitária onde o imanente e o transcendente se combinam para afirmar uma presença imperativa 44 DonAninha A Mãe de Santo e o Saber Ancestral A mãe de santo DonAninha é uma das personagens adultas em Capitães da Areia Sua sabedoria e conexão com os orixás conferemlhe um papel de guia espiritual para os meninos O Professor ao refletir sobre seus planos futuros confirma a importância de DonAninha Para Leite as mães de santo como DonAninha representam a memória viva da ancestralidade e o elo entre os mundos sendo fundamentais na preservação da cultura dos terreiros e na orientação espiritual das comunidades marginalizadas LEITE 2012 p 45 5 Narrativa e Oralidade O Axé Como Estratégia Narrativa Um dos aspectos mais relevantes da literatura de axé é o uso da oralidade como elemento estruturante da narrativa Jorge Amado adota uma linguagem que remete aos contadores de histórias dos terreiros com ritmo repetições e musicalidade Essa oralidade aproximase da narrativa de uma dimensão performática onde a palavra não é apenas portadora de sentido mas também de força A presença de provérbios cantigas e expressões populares baianas reforçam essa dimensão O texto não representa apenas o axé ele o encarna E com isso contribui para romper com os paradigmas literários eurocêntricos oferecendo uma alternativa de leitura e escrita comprometida com a cultura afrobrasileira Prandi ressalta que na tradição oral afrobrasileira a palavra tem poder ontológico é força e encantamento funcionando como um veículo para o axé que sustenta a cosmovisão PRANDI 1997 p 38 Gildeci de Oliveira Leite acrescenta que a oralidade não é apenas um atributo estético mas uma estratégia de resistência e manutenção da identidade cultural diante do racismo institucionalizado LEITE 2016 p 75 6 A presença de Ogum e Xangô em Capitães da Areia símbolos da luta e da resistência dos oprimidos Um dos trechos mais simbólicos de Capitães da Areia que evidencia o sincretismo religioso e a resistência cultural afrobrasileira é o capítulo intitulado Aventura de Ogum Nele Jorge Amado construiu uma narrativa composta de religiosidade de matriz africana misturando elementos míticos sociais e políticos e inserindo os orixás Ogum e Xangô como figuras centrais de um conflito entre a fé do povo negro e pobre da Bahia e a repressão institucional Ogum orixá da guerra da tecnologia e da luta é representado como um símbolo da resistência dos pobres contra a violência do Estado A cena em que DonAninha a mãedesanto respeitada e temida relata a apreensão da imagem de Ogum pela polícia simboliza a tentativa de autoridade de silenciar e apagar as manifestações culturais e religiosas afrobrasileiras DonAninha desabafa em tom de revolta Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus AMADO 2008 p 101 Essa fala carrega o peso histórico da marginalização e criminalização dos cultos de matriz africana e posiciona a religiosidade como ferramenta de expressão identitária e resistência Muniz Sodré ao analisar o fascismo da cor oferece um importante apoio ao afirmar que a perseguição religiosa e o racismo são mecanismos de controle social que objetivam manter a população negra no lugar da exclusão negando seu direito à cultura e à fé SODRÉ 2023 p 52 O capítulo ilustra essa dinâmica mostrando que a luta por Ogum é também uma luta pela preservação da fé e da cultura do povo negro baiano A tempestade que cai sobre Salvador na noite da narrativa é interpretada como uma manifestação da ira de Xangô orixá da justiça e dos raios pela profanação do sagrado Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu de nuvens negras e pesadas Pedro Bala e João Grande levaram a mãedeSanto DonAninha até sua casa AMADO 2008 p 100 Aqui as aparências naturais são lidas como sinais espirituais e os orixás aparecem como agentes vivos e atuantes na realidade dos personagens reafirmando o caráter teológico e revolucionário da literatura de axé Além disso o capítulo destaca a solidariedade entre os personagens marginalizados Pedro Bala ao prometer à mãedesanto que traz Ogum de volta garantindo a importância do respeito e da dignidade espiritual de seu povo Essa promessa é feita de um sentido de missão e compromisso coletivo que ultrapassa a fé individual e se torna ato de resistência política A descrição da figura de DonAninha também reforça a centralidade das mulheres negras como guardiãs do sagrado e líderes comunitárias Ela é apresentada como uma mulher alta magra aristocrática respeitada por sua sabedoria e poder espiritual Dessa forma o capítulo Aventura de Ogum é uma das passagens mais ricas e simbólicas da obra pois une fé cultura política e denúncia social Jorge Amado não apenas expõe a violência sofrida pelos praticantes das religiões afrobrasileiras como também celebra sua força sua beleza e sua capacidade de resistir Assim Ogum e Xangô não são apenas personagens do panteão iorubá são ícones de uma literatura engajada que reivindica espaço e voz para os excluídos 61 A Ancestralidade como Estrutura e Resistência na Obra A ancestralidade enquanto categoria central da literatura de axé transcende o tempo linear e estabelece uma ponte entre passado presente e futuro Em Capitães da Areia essa dimensão ancestral atua como alicerce simbólico e epistemológico da narrativa conferindolhe uma lógica própria que escapa às convenções ocidentais e racionalistas Jorge Amado construiu sua literatura ancorandose na cosmovisão afrobrasileira na qual os mortos os orixás e os saberes do terreiro não estão confinados à memória mas presentes e ativos no cotidiano dos personagens Essa presença ancestral não se dá apenas por menções diretas a figuras religiosas ou práticas rituais Ela se manifesta na circularidade da narrativa na reiteração dos temas do pertencimento da comunidade e da luta pela sobrevivência todos ancorados em uma visão de mundo que valoriza a coletividade e o sagrado A figura de DonAninha por exemplo representa mais do que uma mãe de santo ela é uma memória viva da tradição a guardiã de um saber ancestral que orienta e sustenta espiritualmente os meninos Sua escuta dos búzios é metáfora do diálogo constante entre o visível e o invisível entre o presente e os ensinamentos dos mais velhos Leite destaca que a ancestralidade tecida em mitos identidades e práticas mantém viva a negra e cria uma possibilidade epistemológica que desafia o paradigma dominante reforçando a luta por reconhecimento cultural e social LEITE 2015 p 52 Marco Aurélio Luz e Narcimária Luz corroboram essa releitura crítica ao afirmarem que uma narrativa afrobrasileira insurgese contra o racismo estrutural por meio da afirmação da alteridade da memória e da resistência ética e estética promovendo o direito à diferença LUZ LUZ 2012 p 14 A ancestralidade funciona ainda como uma forma de resistência às estruturas opressoras da sociedade colonial e cristã Ao incorporar essa lógica africana de existência à estrutura da narrativa Jorge Amado desafia as cânones literárias e propõe uma literatura que abriga o encantamento o mistério e o axé como formas legítimas de conhecimento A escrita tornase assim um terreiro simbólico onde se invoca forças e memórias que garantem a continuidade de um povo historicamente silenciado Nesse contexto o romance não apenas retrata uma realidade social de exclusão mas insira nela uma proposta estética e espiritual de redenção A luta dos Capitães da Areia iluminada pelo axé de seus ancestrais transcende a marginalização social para se tornar um grito de resistência cultural e religiosa A ancestralidade nesse sentido não é um tema é a própria espinha dorsal da narrativa que confere dignidade voz e futuro aos personagens 7 Identidade Ancestralidade e Resistência A inserção da mitologia afrobrasileira na obra de Jorge Amado configurase como estratégia de resistência cultural A literatura do autor baiano não apenas retrata mas celebra o candomblé como saber e como força vital A relação dos Capitães da Areia com os elementos do axé representa portanto não apenas um retrato social mas uma afirmação política e espiritual Ao incorporar os mitos ritos e crenças afrobrasileiras Jorge Amado contribui para legitimar essas tradições dentro do espaço literário brasileiro Isso se reflete inclusive na recepção da obra por leitores e estudiosos que identificam na escrita do autor um compromisso com a dignidade e a representação dos povos de axé Muniz Sodré observa que a questão da cor no Brasil se expressa como uma posição racial que mantém os corpos negros em condição de invisibilidade e marginalidade social mas a religiosidade de matriz africana atua como um campo de afirmação identitária e resistência SODRÉ 2023 p 93 Assim Capitães da Areia tornase espaço de insurgência cultural e social contribuindo para as discussões sobre identidade racial cultural e religiosa 8 Considerações Finais Uma análise da presença da literatura de axé em Capitães da Areia permite compreender a obra não apenas como romance social mas como um espaço de afirmação identitária e religiosa Os elementos do candomblé integram a estrutura simbólica fundamental da narrativa configurandose como expressão clara da literatura de axé Essa posição epistemológica proposta por Jorge Amado desenvolve uma obra que transcende o romance de denúncia social para assumir um papel de resistência cultural política e espiritual O romance se insere numa tradição literária comprometida com a visibilização do povo negro e das suas múltiplas identidades incorporando elementos materiais e imateriais da ancestralidade africana como matriz fundamental da cultura brasileira Muitas vezes invisibilizadas ou estigmatizadas por discursos hegemônicos à medida que culturas afrobrasileiras ganham em Capitães da Areia não são apenas representação mas protagonismo epistemológico Nesse sentido Jorge Amado inaugura uma estética que se ancora numa cosmovisão marcada pelo axé energia vital que atravessa e conecta todas as dimensões da existência A literatura dessa forma deixa de ser apenas um registro narrativo ou crítica social para se transformar num instrumento vivo de afirmação da alteridade A tensão entre o sagrado e o profano o corpo e o mito o som e o silêncio configura uma narrativa que dialoga com as tradições orais dos povos afrodescendentes rompendo com o cânone literário ocidental e eurocêntrico Além disso a obra se destaca por fornecer pluralidade e profundidade às personagens negras e pobres conferindolhes subjetividades ricas e determinadas por uma ancestralidade viva A figura de DonAninha por exemplo emerge como símbolo de sabedoria ancestral e de resistência feminina num contexto historicamente adverso Sua centralidade no tecido narrativo mostra que Jorge Amado valoriza não apenas os conteúdos simbólicos do candomblé mas coloca as mulheres negras como protagonistas no campo da memória espiritualidade e luta política Além disso a apropriação da mitologia dos orixás fornece à narrativa um sistema de simbolização que conecta os conflitos do dia a dia a uma dimensão transcendental O axioma da ancestralidade como já ressaltado por diversos autores e autores conecta o passado o presente e o futuro instaurando uma temporalidade circular que desafia o paradigma linear ocidental Essa concepção do tempo e da existência fortalece a ideia de uma resistência cultural perene na qual o presente dos marginalizados é iluminado pela força dos ancestrais Nesse ponto a combinação entre a denúncia da exclusão social e a celebração da cultura de matriz africana materializase sobretudo na inserção do axé como movimento estruturante da narrativa Essa energia espiritual não é apenas tema mas estratégica estética e ética conferindo à obra um caráter performativo no qual a linguagem o ritmo e a oralidade reproduzem o poder transgressor da cultura dos terreiros Jorge Amado assim propõe um espaço literário que funcione como um verdadeiro terreiro simbólico no qual as vozes historicamente silenciadas encontram não só escuta mas reverberação É fundamental destacar que tal inserção não se limita a um exotismo folclórico mas assume dimensão política e de afirmação identitária A perseguição enfrentada pelos praticantes do candomblé e o racismo estrutural que marginaliza os corpos negros são elementos centrais na narrativa mas também espaço para a insurgência e a invenção de novas formas de existência e resistência Conforme Muniz Sodré destaca transgredir a lógica do racismo nacional implica compreender o fascismo da cor como um sistema que insiste em negar a legitimidade das religiões afrobrasileiras e nesse contexto a literatura de Amado atua como contraponto necessário à negação histórica A força de Capitães da Areia reside pois na construção de uma poética que articula estética e política corpo e ancestralidade narrativas pessoais e coletivas Ao dar voz a personagens que encarnam o axé Jorge Amado não apenas humaniza o retrato da infância marginalizada mas também transforma o romance num espaço simbólico de cura memória e luta O resultado é uma obra que convida o leitor a considerar outros modos de estar no mundo para além dos parâmetros hegemônicos promovendo a interculturalidade e o diálogo entre epistemologias distintas Finalmente a compreensão da obra como parte da literatura de axé permite reposicionála dentro de um campo literário maior que reivindica para a cultura afrobrasileira um lugar legítimo e central no panorama nacional Tal reposicionamento amplia o conceito de literatura nacional incluindo nela corpos histórias e espiritualidades tradicionalmente marginalizadas ou silenciadas Nesse sentido a obra se reafirma como um legado imperativo não apenas para os estudos literários mas para as discussões sociais culturais e políticas contemporâneas apontando caminhos para a construção de uma sociedade mais plural justa e sensível às diferenças Se desejar posso ajudar a elaborar o conteúdo formatado para que caiba exatamente em duas laudas incluindo espaçamento tamanho de fonte e margens ou mesmo acrescentar uma seção de descrição crítica ainda mais detalhada Referências AMADO Jorge Capitães da Areia São Paulo Companhia das Letras 2008 LEITE Gildeci de Oliveira Autores de Axé Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Literatura e Outras Artes de Axé Salvador EDUFBA 2012 LEITE Gildeci de Oliveira Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 LEITE Gildeci de Oliveira Omolu Obaluaé São Lázaro São Roque a Fé a Medicina do Pobre Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Amado Axé de Mar Morto In LEITE G O SARAIVA F F PRADO T M C Orgs II Webinário Estudos Amadianos 20 anos de permanência Salvador Quarteto Editora 2021 p 185203 LUZ Marco Aurélio LUZ Narcimária Correia do Patrocínio Orgs Pensamento Insurgente direito à alteridade comunicação e educação Salvador EDUFBA 2012 PRANDI Reginaldo Deuses africanos no Brasil In Herdeiras do Axé São Paulo Hucitec 1997 p 150 SODRÉ Muniz O Fascismo da Cor uma radiografia do racismo nacional Petrópolis Vozes 2023 SILVA José Carlos Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 TAVARES Ildásio Candomblés na Bahia São Paulo Corrupião 2009 A PRESENÇA DA LITERATURA DE AXÉ NA OBRA CAPITÃES DA AREIA DE JORGE AMADO Michelle Souza de Oliveira Anjos UNEB michellesouzadeoliveiraanjosgmailcom RESUMO Este trabalho propõe uma análise da obra Capitães da Areia 2008 de Jorge Amado a partir da presença da literatura de axé vertente que incorpora elementos das religiões afro brasileiras especialmente o candomblé A narrativa ao retratar a vivência de meninos em situação de rua em Salvador manifesta uma profunda influência da cosmovisão de matriz africana tanto na caracterização dos personagens quanto na construção simbólica do espaço urbano Por meio da mitologia dos orixás da oralidade e da corporeidade Jorge Amado legitima os saberes e a espiritualidade do povo negro contribuindo para a valorização da identidade afrobrasileira na literatura Palavraschave Jorge Amado Orixás Identidade afrobrasileira 1 Sobre a obra e o autor Capitães da Areia publicado originalmente em 1937 é uma das obras mais emblemáticas do escritor baiano Jorge Amado Nascido em Itabuna em 1912 e falecido em 2001 Amado é um dos principais nomes da literatura brasileira do século XX Sua produção literária é marcada pelo retrato sensível do povo baiano pelo engajamento político e pela denúncia social especialmente da desigualdade e da marginalização A obra retrata a vida de meninos abandonados nas ruas de Salvador que formam um grupo de sobrevivência e amizade Vivendo no trapiche um antigo armazém abandonado eles enfrentam a fome a repressão policial e o preconceito social Jorge Amado denuncia com lirismo e realismo as contradições de uma sociedade que exclui os mais vulneráveis Capitães da Areia é uma obra que fomenta uma análise perspicaz sobre uma fase infantil à margem da sociedade mostrando como crianças sem lar são levadas ao mundo do crime não por vontade própria mas por não ter oportunidade A narrativa utiliza uma linguagem acessível com forte presença de regionalismos o que contribui para as desvantagens da ambientação As vozes dos personagens se manifestam com força e sensibilidade permitindo ao leitor perceber seus medos esperanças e afetos O protagonismo de Pedro Bala Dora SemPernas e outros personagens é um exemplo claro da complexidade emocional e moral que Amado imprime aos seus protagonistas A cidade de Salvador é representada em sua totalidade da opulência da cidade alta à pobreza das docas revelando um espaço urbano desigual onde o direito à infância é negado a muitos Capitães da Areia foi censurado na época de sua publicação o que mostra sua força crítica e seu impacto social Mesmo décadas depois permanece atual ao retratar uma realidade que ainda persiste em muitas cidades brasileiras Jorge Amado criou uma obra potente lírica e politicamente relevante Capitães da Areia é até hoje uma referência na discussão sobre infância exclusão e justiça social Ao dar voz aos invisibilizados o autor contribui para uma literatura que humaniza denuncia e emociona tornando a leitura uma ferramenta de transformação social e crítica Ao examinar a obra de Jorge Amado Gildeci de Oliveira Leite ressalta que o autor transcende a mera observação da sociedade construindo uma narrativa que abraça a influência africana ancestral como um alicerce essencial da identidade cultural baiana e da resistência social LEITE 2015 p 38 Esse posicionamento é fundamental pois amplia a compreensão da obra para além do retrato social estrito revelando uma afirmação simbólica dos valores culturais e espirituais que dignificam os marginalizados e lhes conferem agilidade na narrativa 2 Literatura de Axé O que é e como se manifesta A literatura de axé é uma vertente literária que se fundamenta nos elementos das religiões afrobrasileiras especialmente o candomblé O termo axé se refere à energia sagrada à força vital que permeia o universo e é associado aos orixás entidades espirituais centrais no candomblé Em sua essência o axé representa o poder a vitalidade e a conexão espiritual que circula nas forças naturais e humanas A literatura de axé é descrita pela incorporação de elementos ritualísticos simbólicos e orais que remontam às práticas religiosas e culturais afrobrasileiras Ela se distingue por seu foco na oralidade na musicalidade identidade das palavras e na celebração das negras e dos saberes ancestrais Ao contrário da literatura ocidental muitas vezes linear e racional a literatura de axé abraça a circularidade do tempo as narrativas míticas e a visão de mundo das religiões de matriz africana Essa forma literária não apenas representa mas busca encarnar os mitos os rituais e a cosmovisão dos povos afrodescendentes valorizando o corpo o movimento e a força espiritual A produção de Jorge Amado em Capitães da Areia nesse caso apresenta os orixás e os rituais do candomblé Reginaldo Prandi enfatiza que o axé não é apenas um conteúdo temático mas uma matéria própria da experiência sensível e da narrativa que impregna o tempo e o espaço dos povos de matriz africana PRANDI 1997 p 32 conferindo uma temporalidade circular e uma cosmovisão em que passado e presente dialogam constantemente Nesse sentido a literatura de axé surge como um saber ancestral que resiste à imposição das narrativas dominantes incorporando uma epistemologia própria que Jorge Amado reconhece e valoriza De modo semelhante Leite defende que a literatura e os mitos afrobaianos tais como demonstrados em Capitães da Areia espelham os deleites e os desafios da vida social e cultural da Bahia onde aoralidade e o ritual de performance afirmam a existência de modos alternativos de conhecimento e expressão LEITE 2012 p 39 Dessa forma a literatura de axé emerge como um campo vivo de resistência cultural e epistemológica sobretudo quando se insere em obras que celebram e legitimam saberes ancestrais 3 A Simbologia do Candomblé em Capitães da Areia Em Capitães da Areia Jorge Amado insere o candomblé como parte integrante do cotidiano dos personagens O sincretismo religioso presente em Salvador é retratado através das festas populares das menções aos orixás e do respeito às entidades espirituais Jorge Amado não apenas faz referência aos orixás mas recria a narrativa a partir de seus arquétipos e atributos simbólicos A linguagem simbólica também se manifesta nas autoridades da cidade de Salvador com suas ladeiras lojas e terreiros compondo um espaço sagrado e profano ao mesmo tempo A cidade se apresenta como um espaço vivo de experiências espirituais e culturais onde o axé se manifesta tanto na arquitetura quanto nas relações sociais Para Tavares os candomblés na Bahia específicos mais do que um culto religioso formam um território cultural que articula resistência identidade e sociabilidade das populações afrodescendentes TAVARES 2009 p 54 Jorge Amado portanto torna esse contexto uma estrutura narrativa onde mulher religião e cultura afrobrasileira são fundamentais A obra expressa um dialogismo entre o profano e o sagrado fazendo do espaço urbano um cenário ritmado pelos tempos e sentidos do axé desafiando a lógica linear e racionalista que silencia e marginaliza o conhecimento afrobrasileiro Silva 2015 corrobora essa visão ao destacar como Jorge Amado recupera a ancestralidade e a presença viva dos orixás como elementos estruturadores da subjetividade negra e da narrativa literária SILVA 2015 p 65 Por fim Leite em sua obra específica sobre a medicina popular e a fé ressalta Omolu Obaluaé São Lázaro e São Roque configuramse na cultura afro brasileira como símbolos de uma medicina do pobre na qual a fé é componente essencial da cura e da resistência LEITE 2016 p 120 Esses elementos aprofundam a dimensão espiritual do cotidiano na narrativa e confirmam o papel da religiosidade afrobrasileira como força vital e mecanismo de preservação cultural 4 Orixás e Capitães da Areia Paralelos Simbólicos Entre Divindades e Meninos em situação de Rua Em Capitães da Areia Jorge Amado entrelaça a realidade dos meninos em situação de rua com elementos do candomblé estabelecendo paralelos simbólicos entre os personagens e os orixás Essa conexão não apenas enriquece a narrativa mas também confere uma dimensão espiritual e cultural à luta e resistência dos jovens marginalizados 41 Ogum e Pedro Bala Liderança e Resistência A trajetória de Pedro Bala líder dos Capitães da Areia reflete a luta constante pela justiça e sobrevivência nas ruas de Salvador Embora a obra não estabeleça uma associação direta entre Pedro Bala e Ogum a simbologia presente na narrativa permite essa interpretação A liderança de Pedro Bala e sua disposição para enfrentar adversidades ecoam as qualidades atribuídas a Ogum no candomblé Prandi 1997 ressalta que Ogum é a realização que abre caminhos é construída luta contra as forças adversárias sendo um símbolo de força trabalho e proteção para os oprimidos PRANDI 1997 p 27 Tal descrição se alinha perfeitamente à figura de Pedro Bala que se destaca pela liderança e persistência frente às atribuições de sua condição Esse ponto evidencia a dimensão afetiva social e espiritual da doença no contexto dos marginalizados 42 Omolu e a Epidemia A Presença do Sagrado na Doença A narrativa sugere que a doença foi enviada por Omolu como proteção aos ricos da Cidade Alta Omolu mandou uma bexiga negra para a cidade Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolu era um deus das florestas da África não destas sabiam coisas de vacinar AMADO 2008 p 155 Essa referência destaca a presença do sagrado na explicação das calamidades refletindo a visão do mundo dos personagens e a influência das religiões afrobrasileiras na cultura local Gildeci de Oliveira Leite em sua análise sobre Omolu e a medicina popular explica que a figura de Omolu que se mistura com São Lázaro e São Roque no sincretismo personifica tanto a doença quanto a cura na prática dos pobres para os quais a fé constitui a medicina mais acessível LEITE 2016 p 122 No caso do romance a doença tornase um elemento espiritual que reforça a presença do axé e a luta pela sobrevivência num sistema desigual 43 QueridodeDeus Sincretismo Religioso e Identidade QueridodeDeus personagem que ensina capoeira aos meninos é descrito como devoto de Xangô e Omolu além de santos católicos Essa combinação de ligação evidencia o sincretismo religioso presente na obra e na sociedade baiana O QueridodeDeus que era um pescador valente e um capoeirista sem igual também acreditava neles misturavaos com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa AMADO 2008 p 117 Consequentemente QueridodeDeus representa um ser inserido numa rica teia identitária que conjuga diversas referências religiosas e culturais Ildásio Tavares destaca que o sincretismo é uma ferramenta política e espiritual de resistência que protege e se adapta às manifestações religiosas afrobrasileiras à pressão da sociedade dominante TAVARES 2009 p 77 Assim QueridodeDeus simboliza essa complexa articulação identitária onde o imanente e o transcendente se combinam para afirmar uma presença imperativa 44 DonAninha A Mãe de Santo e o Saber Ancestral A mãe de santo DonAninha é uma das personagens adultas em Capitães da Areia Sua sabedoria e conexão com os orixás conferemlhe um papel de guia espiritual para os meninos O Professor ao refletir sobre seus planos futuros confirma a importância de DonAninha Para Leite as mães de santo como DonAninha representam a memória viva da ancestralidade e o elo entre os mundos sendo fundamentais na preservação da cultura dos terreiros e na orientação espiritual das comunidades marginalizadas LEITE 2012 p 45 5 Narrativa e Oralidade O Axé Como Estratégia Narrativa Um dos aspectos mais relevantes da literatura de axé é o uso da oralidade como elemento estruturante da narrativa Jorge Amado adota uma linguagem que remete aos contadores de histórias dos terreiros com ritmo repetições e musicalidade Essa oralidade aproximase da narrativa de uma dimensão performática onde a palavra não é apenas portadora de sentido mas também de força A presença de provérbios cantigas e expressões populares baianas reforçam essa dimensão O texto não representa apenas o axé ele o encarna E com isso contribui para romper com os paradigmas literários eurocêntricos oferecendo uma alternativa de leitura e escrita comprometida com a cultura afrobrasileira Prandi ressalta que na tradição oral afrobrasileira a palavra tem poder ontológico é força e encantamento funcionando como um veículo para o axé que sustenta a cosmovisão PRANDI 1997 p 38 Gildeci de Oliveira Leite acrescenta que a oralidade não é apenas um atributo estético mas uma estratégia de resistência e manutenção da identidade cultural diante do racismo institucionalizado LEITE 2016 p 75 6 A presença de Ogum e Xangô em Capitães da Areia símbolos da luta e da resistência dos oprimidos Um dos trechos mais simbólicos de Capitães da Areia que evidencia o sincretismo religioso e a resistência cultural afrobrasileira é o capítulo intitulado Aventura de Ogum Nele Jorge Amado construiu uma narrativa composta de religiosidade de matriz africana misturando elementos míticos sociais e políticos e inserindo os orixás Ogum e Xangô como figuras centrais de um conflito entre a fé do povo negro e pobre da Bahia e a repressão institucional Ogum orixá da guerra da tecnologia e da luta é representado como um símbolo da resistência dos pobres contra a violência do Estado A cena em que DonAninha a mãede santo respeitada e temida relata a apreensão da imagem de Ogum pela polícia simboliza a tentativa de autoridade de silenciar e apagar as manifestações culturais e religiosas afro brasileiras DonAninha desabafa em tom de revolta Pobre não pode dançar não pode cantar pra seu deus não pode pedir uma graça a seu deus AMADO 2008 p 101 Essa fala carrega o peso histórico da marginalização e criminalização dos cultos de matriz africana e posiciona a religiosidade como ferramenta de expressão identitária e resistência Muniz Sodré ao analisar o fascismo da cor oferece um importante apoio ao afirmar que a perseguição religiosa e o racismo são mecanismos de controle social que objetivam manter a população negra no lugar da exclusão negando seu direito à cultura e à fé SODRÉ 2023 p 52 O capítulo ilustra essa dinâmica mostrando que a luta por Ogum é também uma luta pela preservação da fé e da cultura do povo negro baiano A tempestade que cai sobre Salvador na noite da narrativa é interpretada como uma manifestação da ira de Xangô orixá da justiça e dos raios pela profanação do sagrado Outra noite uma noite de inverno na qual os saveiros não se aventuraram no mar noite da cólera de Yemanjá e Xangô quando os relâmpagos eram o único brilho no céu de nuvens negras e pesadas Pedro Bala e João Grande levaram a mãedeSanto DonAninha até sua casa AMADO 2008 p 100 Aqui as aparências naturais são lidas como sinais espirituais e os orixás aparecem como agentes vivos e atuantes na realidade dos personagens reafirmando o caráter teológico e revolucionário da literatura de axé Além disso o capítulo destaca a solidariedade entre os personagens marginalizados Pedro Bala ao prometer à mãedesanto que traz Ogum de volta garantindo a importância do respeito e da dignidade espiritual de seu povo Essa promessa é feita de um sentido de missão e compromisso coletivo que ultrapassa a fé individual e se torna ato de resistência política A descrição da figura de DonAninha também reforça a centralidade das mulheres negras como guardiãs do sagrado e líderes comunitárias Ela é apresentada como uma mulher alta magra aristocrática respeitada por sua sabedoria e poder espiritual Dessa forma o capítulo Aventura de Ogum é uma das passagens mais ricas e simbólicas da obra pois une fé cultura política e denúncia social Jorge Amado não apenas expõe a violência sofrida pelos praticantes das religiões afrobrasileiras como também celebra sua força sua beleza e sua capacidade de resistir Assim Ogum e Xangô não são apenas personagens do panteão iorubá são ícones de uma literatura engajada que reivindica espaço e voz para os excluídos 61 A Ancestralidade como Estrutura e Resistência na Obra A ancestralidade enquanto categoria central da literatura de axé transcende o tempo linear e estabelece uma ponte entre passado presente e futuro Em Capitães da Areia essa dimensão ancestral atua como alicerce simbólico e epistemológico da narrativa conferindolhe uma lógica própria que escapa às convenções ocidentais e racionalistas Jorge Amado construiu sua literatura ancorandose na cosmovisão afrobrasileira na qual os mortos os orixás e os saberes do terreiro não estão confinados à memória mas presentes e ativos no cotidiano dos personagens Essa presença ancestral não se dá apenas por menções diretas a figuras religiosas ou práticas rituais Ela se manifesta na circularidade da narrativa na reiteração dos temas do pertencimento da comunidade e da luta pela sobrevivência todos ancorados em uma visão de mundo que valoriza a coletividade e o sagrado A figura de DonAninha por exemplo representa mais do que uma mãe de santo ela é uma memória viva da tradição a guardiã de um saber ancestral que orienta e sustenta espiritualmente os meninos Sua escuta dos búzios é metáfora do diálogo constante entre o visível e o invisível entre o presente e os ensinamentos dos mais velhos Leite destaca que a ancestralidade tecida em mitos identidades e práticas mantém viva a negra e cria uma possibilidade epistemológica que desafia o paradigma dominante reforçando a luta por reconhecimento cultural e social LEITE 2015 p 52 Marco Aurélio Luz e Narcimária Luz corroboram essa releitura crítica ao afirmarem que uma narrativa afrobrasileira insurgese contra o racismo estrutural por meio da afirmação da alteridade da memória e da resistência ética e estética promovendo o direito à diferença LUZ LUZ 2012 p 14 A ancestralidade funciona ainda como uma forma de resistência às estruturas opressoras da sociedade colonial e cristã Ao incorporar essa lógica africana de existência à estrutura da narrativa Jorge Amado desafia as cânones literárias e propõe uma literatura que abriga o encantamento o mistério e o axé como formas legítimas de conhecimento A escrita tornase assim um terreiro simbólico onde se invoca forças e memórias que garantem a continuidade de um povo historicamente silenciado Nesse contexto o romance não apenas retrata uma realidade social de exclusão mas insira nela uma proposta estética e espiritual de redenção A luta dos Capitães da Areia iluminada pelo axé de seus ancestrais transcende a marginalização social para se tornar um grito de resistência cultural e religiosa A ancestralidade nesse sentido não é um tema é a própria espinha dorsal da narrativa que confere dignidade voz e futuro aos personagens 7 Identidade Ancestralidade e Resistência A inserção da mitologia afrobrasileira na obra de Jorge Amado configurase como estratégia de resistência cultural A literatura do autor baiano não apenas retrata mas celebra o candomblé como saber e como força vital A relação dos Capitães da Areia com os elementos do axé representa portanto não apenas um retrato social mas uma afirmação política e espiritual Ao incorporar os mitos ritos e crenças afrobrasileiras Jorge Amado contribui para legitimar essas tradições dentro do espaço literário brasileiro Isso se reflete inclusive na recepção da obra por leitores e estudiosos que identificam na escrita do autor um compromisso com a dignidade e a representação dos povos de axé Muniz Sodré observa que a questão da cor no Brasil se expressa como uma posição racial que mantém os corpos negros em condição de invisibilidade e marginalidade social mas a religiosidade de matriz africana atua como um campo de afirmação identitária e resistência SODRÉ 2023 p 93 Assim Capitães da Areia tornase espaço de insurgência cultural e social contribuindo para as discussões sobre identidade racial cultural e religiosa 8 Considerações Finais Uma análise da presença da literatura de axé em Capitães da Areia permite compreender a obra não apenas como romance social mas como um espaço de afirmação identitária e religiosa Os elementos do candomblé integram a estrutura simbólica fundamental da narrativa configurandose como expressão clara da literatura de axé Essa posição epistemológica proposta por Jorge Amado desenvolve uma obra que transcende o romance de denúncia social para assumir um papel de resistência cultural política e espiritual O romance se insere numa tradição literária comprometida com a visibilização do povo negro e das suas múltiplas identidades incorporando elementos materiais e imateriais da ancestralidade africana como matriz fundamental da cultura brasileira Muitas vezes invisibilizadas ou estigmatizadas por discursos hegemônicos à medida que culturas afro brasileiras ganham em Capitães da Areia não são apenas representação mas protagonismo epistemológico Nesse sentido Jorge Amado inaugura uma estética que se ancora numa cosmovisão marcada pelo axé energia vital que atravessa e conecta todas as dimensões da existência A literatura dessa forma deixa de ser apenas um registro narrativo ou crítica social para se transformar num instrumento vivo de afirmação da alteridade A tensão entre o sagrado e o profano o corpo e o mito o som e o silêncio configura uma narrativa que dialoga com as tradições orais dos povos afrodescendentes rompendo com o cânone literário ocidental e eurocêntrico Além disso a obra se destaca por fornecer pluralidade e profundidade às personagens negras e pobres conferindolhes subjetividades ricas e determinadas por uma ancestralidade viva A figura de DonAninha por exemplo emerge como símbolo de sabedoria ancestral e de resistência feminina num contexto historicamente adverso Sua centralidade no tecido narrativo mostra que Jorge Amado valoriza não apenas os conteúdos simbólicos do candomblé mas coloca as mulheres negras como protagonistas no campo da memória espiritualidade e luta política Além disso a apropriação da mitologia dos orixás fornece à narrativa um sistema de simbolização que conecta os conflitos do dia a dia a uma dimensão transcendental O axioma da ancestralidade como já ressaltado por diversos autores e autores conecta o passado o presente e o futuro instaurando uma temporalidade circular que desafia o paradigma linear ocidental Essa concepção do tempo e da existência fortalece a ideia de uma resistência cultural perene na qual o presente dos marginalizados é iluminado pela força dos ancestrais Nesse ponto a combinação entre a denúncia da exclusão social e a celebração da cultura de matriz africana materializase sobretudo na inserção do axé como movimento estruturante da narrativa Essa energia espiritual não é apenas tema mas estratégica estética e ética conferindo à obra um caráter performativo no qual a linguagem o ritmo e a oralidade reproduzem o poder transgressor da cultura dos terreiros Jorge Amado assim propõe um espaço literário que funcione como um verdadeiro terreiro simbólico no qual as vozes historicamente silenciadas encontram não só escuta mas reverberação É fundamental destacar que tal inserção não se limita a um exotismo folclórico mas assume dimensão política e de afirmação identitária A perseguição enfrentada pelos praticantes do candomblé e o racismo estrutural que marginaliza os corpos negros são elementos centrais na narrativa mas também espaço para a insurgência e a invenção de novas formas de existência e resistência Conforme Muniz Sodré destaca transgredir a lógica do racismo nacional implica compreender o fascismo da cor como um sistema que insiste em negar a legitimidade das religiões afrobrasileiras e nesse contexto a literatura de Amado atua como contraponto necessário à negação histórica A força de Capitães da Areia reside pois na construção de uma poética que articula estética e política corpo e ancestralidade narrativas pessoais e coletivas Ao dar voz a personagens que encarnam o axé Jorge Amado não apenas humaniza o retrato da infância marginalizada mas também transforma o romance num espaço simbólico de cura memória e luta O resultado é uma obra que convida o leitor a considerar outros modos de estar no mundo para além dos parâmetros hegemônicos promovendo a interculturalidade e o diálogo entre epistemologias distintas Finalmente a compreensão da obra como parte da literatura de axé permite reposicionála dentro de um campo literário maior que reivindica para a cultura afrobrasileira um lugar legítimo e central no panorama nacional Tal reposicionamento amplia o conceito de literatura nacional incluindo nela corpos histórias e espiritualidades tradicionalmente marginalizadas ou silenciadas Nesse sentido a obra se reafirma como um legado imperativo não apenas para os estudos literários mas para as discussões sociais culturais e políticas contemporâneas apontando caminhos para a construção de uma sociedade mais plural justa e sensível às diferenças Se desejar posso ajudar a elaborar o conteúdo formatado para que caiba exatamente em duas laudas incluindo espaçamento tamanho de fonte e margens ou mesmo acrescentar uma seção de descrição crítica ainda mais detalhada Referências AMADO Jorge Capitães da Areia São Paulo Companhia das Letras 2008 LEITE Gildeci de Oliveira Autores de Axé Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Literatura e Outras Artes de Axé Salvador EDUFBA 2012 LEITE Gildeci de Oliveira Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 LEITE Gildeci de Oliveira Omolu Obaluaé São Lázaro São Roque a Fé a Medicina do Pobre Salvador EDUFBA 2016 LEITE Gildeci de Oliveira Amado Axé de Mar Morto In LEITE G O SARAIVA F F PRADO T M C Orgs II Webinário Estudos Amadianos 20 anos de permanência Salvador Quarteto Editora 2021 p 185203 LUZ Marco Aurélio LUZ Narcimária Correia do Patrocínio Orgs Pensamento Insurgente direito à alteridade comunicação e educação Salvador EDUFBA 2012 PRANDI Reginaldo Deuses africanos no Brasil In Herdeiras do Axé São Paulo Hucitec 1997 p 150 SODRÉ Muniz O Fascismo da Cor uma radiografia do racismo nacional Petrópolis Vozes 2023 SILVA José Carlos Jorge Amado da ancestralidade à representação dos orixás Salvador EDUFBA 2015 TAVARES Ildásio Candomblés na Bahia São Paulo Corrupião 2009