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MUNIZ SODRÉ O FASCISMO DA COR UMA RADIOGRAFIA DO RACISMO NACIONAL EDITORA VOZES MUNIZ SODRÉ O FASCISMO DA COR UMA RADIOGRAFIA DO RACISMO NACIONAL EDITORA VOZES Petrópolis Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Sodré Muniz O fascismo da cor uma radiografia do racismo nacional Muniz Sodré Petrópolis RJ Vozes 2023 Inclui bibliografia ISBN 9786557138342 1 Racismo 2 Racismo Aspectos sociais 3 Racismo Brasil I Título 22124246 CDD3058 Índices para catálogo sistemático 1 Racismo Sociologia 3058 Cibele Maria Dias Bibliotecária CRB89427 2023 Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ wwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora CONSELHO EDITORIAL Diretor Gilberto Gonçalves Garcia Editores Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki Welder Lancieri Marchini Conselheiros Elói Dionísio Piva Francisco Morás Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann Volney J Berkenbrock Secretário executivo Leonardo ART dos Santos Editoração Maria da Conceição B de Sousa Diagramação Raquel Nascimento Revisão gráfica Anna Carolina Guimarães Capa SGDesign Conversão para eBook SCALT Soluções Editoriais ISBN 9786557138342 Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda SUMÁRIO Prólogo Homo americanus 1 O nacional brasileiro 2 Da estrutura à forma 3 Contradição e ambiguidade 4 A passagem ao ato racista Posfácio Referências PRÓLOGO Homo americanus No início da terceira década do século XXI a questão racial irrompe no mundo como um tópico de primeiro plano e não mais como mera contradição secundária conforme diagnosticava uma histórica linha de pensamento segundo a qual a relação de classe principalmente aferida pela estrutura socioeconômica esgotaria as relações caracterizadas como raciais¹ Ou então sustentava que o efetivamente importante é a análise de uma totalidade concreta em seu desenvolvimento contraditório no qual o racismo figura como item problemático porém menor dentro da luta anticolonial e posto à espera que primeiro se equacionem os grandes trâmites geopolíticos de uma formação econômicosocial qualquer Até mesmo um ativista e pensador com grande relevância histórica como Frantz Fanon primeiro admitia que o racismo não passa de um elemento de um todo maior o da opressão sistematizada de um povo² para então introduzir a pergunta sobre como se comporta particularmente um povo que oprime Entretanto essa irrupção de agora é transnacional e a sua caracterização como superestrutural não basta para delimitar o alcance conceitual do racismo De um lado o fenômeno reflete um aspecto do turbocapitalismo financeiro que enfatiza a preocupação corporativa com a redefinição da ambiência social desde a preservação física do meio ambiente até as barreiras de cor e de gênero De outro um giro nos direcionamentos epistemológicos centrados nas coordenadas espaciais do Estadonação Politicamente o antirracismo aparece também como um sintoma da reaproximação epocal entre sociedade política e sociedade civil historicamente separadas ou então como reação indireta à degradação das instituições democráticas que começa a afetar a percepção histórica dos próprios fundamentos civilizados ou ocidentalistas de certas formações nacionais Mas é igualmente um ponto forte na massificação de novos valores feminismo ecologia liberdade de gênero autoexpressões minoritárias dentre os quais o antirracismo desde a segunda metade do século passado Na Europa ao mesmo tempo em que se generaliza o reconhecimento do racismo como um dos problemas centrais assistese entretanto ao fortalecimento da direita ultranacionalista e extremista com ênfase nas velhas obsessões antissemitas e antinegras concomitante à agonia das percepções universalistas e das dicotomias que moldaram o sistemamundo do passado Isso é ainda mais nítido nos Estados Unidos onde após a tumultuada transição do Governo Donald Trump para o de Joe Biden 2021 elites intelectuais e colunistas de imprensa referiamse pela primeira vez ao supremacismo branco como uma ameaça à democracia É que se tornou pública depois de uma confidencialidade universitária de várias décadas a Critical Race Theory CRT corrente de estudos empenhada desde os anos de 1970 em desmontar os mecanismos institucionais que ainda relegam os negros aos escalões inferiores da sociedade Isso ocorre no quadro de uma política identitária mais incisiva em termos intelectuais numa conjuntura histórica de alterações significativas na composição demográfica que tem deixado à mostra um crescimento extraordinário da porcentagem de cidadãos não brancos na população americana Não se trata apenas portanto de uma nova inflexão crítica de intelectuais e sim da irrupção no presente do movimento social antirracista com potência renovada No país que modelou o sonho da democracia liberal e tem levantado a bandeira de sua universalidade atualizase criticamente hoje a indagação de Samuel Johnson um dos paisfundadores founding fathers da nação em 1775 Como é possível que se ouçam de traficantes de negros os mais altos brados de liberdade Liberdade é palavrachave do universalismo liberal americano Esses brados que não incluíam escravos ressoariam nos acordos míticos da memória ou seja a memória como acordo entre passado e presente portanto como horizonte do futuro fontes de unidade e coesão interna que Thomas Jefferson redator da Declaração da Independência e terceiro presidente norteamericano citava como decisivos para a transformação das treze colônias emancipadas em estados unidos No movimento fundacional a nação resultava da aliança militar e federativa dos estados não de um pacto democrático da cidadania diversa Efetiva mesmo é a diversidade republicana dos três poderes Emanciparse da Inglaterra portanto não implicava emancipar os escravos importados desde 1619 embora essa ideia estivesse presente em algumas das consciências liberais ativas na movimentação da independência É possível encontrar algo semelhante na luta cubana contra o colonialismo espanhol em meados do século XIX quando o líder negro Antonio Maceo identificava independência com o fim do escravismo em oposição aos setores ligados à burguesia colonial que não relacionavam independência com abolição da escravatura Também no Brasil oitocentista se dizia que o país era escravo de Portugal e que a liberdade viria com a independência mas essa retórica repelía a ideia de libertação dos reais escravos Não há laivo explícito de escravismo nem de supremacismo na Constituição de 1787 essa dita original mas também não existe nenhuma garantia legal de civilidade diversa O sistema de governo por ela criado focouse apenas em uma república se puderem mantêla conforme as palavras de Benjamin Franklin outro paifundador À sombra de um constitucionalismo triunfante que colocava a esfera política num plano excels0 acima do social e do histórico fundaramse a nação e o racismo americanos Antecipavase o sonho de uma república segura e civilizadora de outras a qualquer custo desejo inequivocamente paranoico de um governo global conduzido por um Estado universal e homogêneo Olhado com uma espécie de continuidade do Sacro Império Romanogermânico esse desejo pode ser chamado de paneuropa um dos nomes imperiais possíveis para a forma civilizatória europeia que inclui os Estados Unidos ou América nome ideológico para a regeneração do velho mundo pelo novo Imperial e messiânico o discurso da americanização do mundo como destino enunciado pelo Presidente Theodore Roosevelt em 1898 é uma marca de continuidade do Império Romano com novo formato diferente dos impérios coloniais que atravessaram a modernidade ocidental Não à toa o território norteamericano fora também pensado por um de seus paisfundadores como uma cena A América foi designada pela Providência para ser o teatro onde o homem deve atingir a sua verdadeira estatura³ Já em pleno terceiro milênio os Estados Unidos apesar de todas suas graves crises econômicas e da perda progressiva da hegemonia simbólica sobre o mundo ocidental continuam mantendo o que já foi designado como um sistema imperial isto é uma organização que vai além do próprio Estado na direção de uma estrutura transnacional com um centro republicano dominante e uma periferia dependente Por isso desde o século XVIII noções como união ou unidade estritamente republicanas sobressaem no léxico dos temores das elites intelectuais e políticas americanas É que o mantenimento republicano corresponde a uma violência estrutural desde o início manifestada na chacina das populações indígenas e nas conquistas militares externas e internas em que se inclui o morticínio cerca de 780 mil cidadãos para a união dos estados conhecido como Guerra Civil Americana 18611865 A Guerra Civil é um evento fundacional e inesgotável no plano do imaginário coletivo de um país que alcançou a sua unidade ideal e alavancou a produção capitalista por meio da combinação perfeita entre a potência para destruir guerra e para construir trabalho A exaltação vitalista da técnica que aparece na Europa no início do século XX é a mesma da guerra Adequase esteticamente à modernidade industrial americana o espírito do Manifesto futurista de Marinetti 1909 Queremos glorificar a guerra a única higiene do mundo o militarismo o patriotismo o gesto destruidor dos anarquistas as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher Isso era prenúncio de um fascismo não limitado à Itália Nas entreguerras também ressoava na mentalidade conservadora alemã a apologia guerreira feita pelo famoso ensaísta Ernst Jünger Numa orgia furiosa o verdadeiro homem se recupera de sua continência Os instintos reprimidos durante muito tempo pela sociedade e por suas leis retomam seu caráter essencial de coisa santa e de razão suprema em A guerra nossa mãe Despercebida mas total a mobilização humana pela guerra é epidêmica em termos de trabalho tecnologia indústria negócios e vida social Na realidade há um laço de estrutura entre guerra e Estado moderno entidades consubstanciais na filosofia hegeliana mas isso se oculta aos olhos públicos na medida em que a violência pode ser sublimada ou transferida para a linguagem O próprio da América entretanto é deixar patente a impossibilidade de um Estado pacífico ainda que as suas guerras não sejam necessariamente ganhas como se depreende dos humilhantes fracassos militares em determinadas intervenções Vietnã Afeganistão Mas a guerra permanente é a dimensão paranoica de um poder que fascinado pelo próprio mito de origem faz da violência a sua regra combinada à dimensão perversa de um paradigma de uniformidade e igualdade assegurado economicamente pelo capital politicamente pela República e psicossocialmente por um desejo espacial de uniformidade inclusive caracteriológica implicada na medição científica do sangue por padrões de raça Só alcançando a essência de todo poder que é a negação do outro pela pulsão de morte também implícita nas grandes realizações tecnológicas o capital se perfaz como lei estrutural de organização do mundo Acrescentese a dimensão religiosa a força coesiva dos colonosfundadores está na crença inalterável em um Ser Supremo guerreiro o Deus bíblico do Antigo Testamento Não é uma divindade a ser pensada como um transcendente sagrado posto que a real transcendência se deslocou para o Dinheiro e para o Estado in Gold we trust realmente sagrada é a fé na possibilidade individual de enriquecer ou tornarse próspero mas sim como o magno senhor da guerra implacável para com os inimigos de crença Crença significa inclusive por etimologia kredh força vital atributo que sempre esteve presente na consolidação comunitária de tribos e sociedades mas sem qualquer relação de causalidade com um culto à guerra É uma força interna que rege como uma espécie de lei o espírito americano em analogia com o material presente ao lado do narrativo no Pentateuco os cinco primeiros livros da Bíblia Gênesis Êxodo Levítico Números e Deuteronômio onde se narra e se legisla a lei resulta da aliança da divindade com o povo eleito a vontade de Deus para Israel Foi precisamente da tradição puritana do Covenant a causa cívica como decorrência da obediência absoluta a Deus que se inspiraram os paisfundadores em fins do século XVIII Paradoxalmente apesar desse fundamento míticoreligioso o velho antissemitismo europeu foi acolhido pela matriz racial americana Do Pentateuco provém igualmente por duvidosa interpretação a crença racista de que os africanos descendem de Canaã ancestral amaldiçoado por Noé Gn 101518 É bíblica a regência social da América Profunda por uma forma de poder que se pode identificar ao lado do hard power economia tecnologia e guerra e do soft power propaganda e entretenimento como staying power ou seja a capacidade de fixação e resiliência do fundamentalismo religioso dos brancossaxõesprotestantes em que o Outro não encontra lugar estrutural É uma regência com alcance interno a discriminação antinegra e antiindígena e externo como se comprova por exemplo no extermínio de um milhão de filipinos o equivalente a 10 da população pelas tropas invasoras americanas no início do século XX a título declarado de limpeza étnica O fervor belicista é um traço irretorquível da construção de uma nação globalmente grandiosa pelo proclamado pendor republicanodemocrático assim como pela notável sublimação da libido pulsão vital guerreira realizada por seu soft power Sob todos os ângulos América equivale a power isto é poder como força letal ou dissuasiva Diz Susan Sontag Ninguém duvida da força dos Estados Unidos Mas a força não é tudo de que uma nação precisa O fato entretanto é que em 242 anos de democracia a América viveu apenas 16 sem conflito armado reflexo modelar do capital o país é movido por um permanente estado de violência interno e externo em que a segregação racial é um dos aspectos mais conspícuos A máquina tecnossocial criada pelo poder industrialmilitar é no limite uma economia de guerra existencialmente transcrita pela sólida hegemonia interna que constitui a cidadania americana No entrelaçamento fundacional de Estado capitalismo e guerra a socialização do indivíduo passa por sua identificação projetiva com uma pulsão de morte coletiva Por isso liberdade individual é popularmente concebida como posse de armas o ethos público como exibição de vontade de poder seja no plano civil que aspira à igualdade de todos diante de seu próprio desejo seja no militar que vive do planejamento lógico e tecnocientífico da força de dissuasão ou de contenção dos inimigos da república O equilíbrio republicano pautase por liberdade e igualdade Mas convém atentar para a evidência histórica de que a liberdade fundacional no pacto federativo americano referese primeiramente aos estados isto é são livres para moldar republicanamente o sistema democrático inclusive com dispositivos segregacionistas Quanto à igualdade é um conceito trabalhado primordialmente pela filosofia pela literatura francesa e pelos movimentos de esquerda ao redor do mundo igualdade como equidade política e judicial Vale refletir sobre ela a partir de uma passagem relevante do francês Badiou A igualdade é uma declaração certamente situada num dado regime de desigualdade mas que afirma efetuarse em um tempo de abolição desse regime Não é o programa da abolição é a afirmação de que essa abolição se efetua vêse então que o exercício da igualdade é sempre da ordem das consequências e nunca da ordem do que busca um fim Causalidade ou consequências e não finalidade Isto é essencial O que se pode ter e o que se trata de organizar são as consequências da declaração igualitária e não os meios da igualdade como fim4 Na verdade um século antes de Badiou já o pensador liberal e germanista brasileiro Tobias Barreto assinalava a incompatibilidade entre os dois célebres termos da Revolução Francesa a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelemse mutuamente não milita dúvida A liberdade é um direito que tende a traduzirse no fato um princípio de vida uma condição do progresso e desenvolvimento a igualdade porém não é um fato nem um direito nem um princípio nem uma condição é quando muito um postulado da razão ou antes um sentimento A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer eu sou a igualdade alguma coisa de que somente ele diz Quem me dera ser A liberdade entregue a si mesma à sua própria ação produz naturalmente a desigualdade da mesma forma que a igualdade tomada como princípio prático naturalmente produz a escravidão5 Tobias Barreto não está se referindo aos Estados Unidos mas a sua reflexão ajustase notavelmente à grande característica política desse país que é a de tomar a igualdade como princípio prático entronizado pela Constituição em que o primado da lei se confunde com o da liberdade Desse princípio prático decorreria para ele a escravidão mas também podese acrescentar a desigualdade estrutural como bem viu em meados do século XX o economista Gunnar Myrdal Prêmio Nobel em 1974 ao realizar um estudo sobre o negro americano Myrdal chamou de dilema teórico o problema de utilização de uma metodologia baseada na igualdade para a análise de um grupo humano valorado como inferior diante da escala axiológica superior atribuída aos brancos6 Na verdade como complementa Badiou a igualdade enquanto regime de existência coletiva num determinado tempo histórico a afirmação de que somos iguais depende de uma política de emancipação para se tornar real Ora uma política emancipatória capaz de abranger brancos e negros é até agora impossível de se concretizar nos Estados Unidos onde a segregação racial construiuse como uma ideologia nacional pósGuerra Civil e não como mera continuidade discriminatória do escravismo para amortecer o choque dos temores de classe social no sentido de que a emancipação dos negros com a demanda que ela trazia de igualdade de direitos civis e políticos estivesse vindo minar a visão anterior de igualdade e de identidade do mundo branco7 Como se infere embora o Norte tenha sido militarmente vitorioso no conflito armado o vencedor ideológico foi o Sul onde a cor branca era socialmente representada como nobre ou superior Assim em 1896 a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que segregar brancos e negros não contrariava a Constituição segregados porém iguais era uma proposição aceitável A igualdade republicana portanto pelo menos até 1950 é exclusivamente branca e estruturalmente bélica Em outros termos a república é o espelho do ser de um Estado nacional mas o seu vir a ser pertence a outra dinâmica que é aquela da livre movimentação democrática assegurada pela organização das consequências republicanas democracia e liberdades não se deduzem automaticamente de República Na falta de uma política emancipatória o jogo civil das afirmações desiguais de liberdade acaba deixando a descoberto que alguns cidadãos são mais livres e iguais do que outros inexiste democracia moderna se existem cidadãos de segunda classe Ou seja na guerra que trava eventualmente com a sua própria cidadania escudado na miragem de apenas uma declaração de igualdade o Estado tira a máscara de protetor das liberdades democráticas Historicamente as diretrizes republicanofederativas de igualdade acabaram predominando sobre a radicalidade democrática a exclusão de uma parte importante da cidadania negra uma falha imaginária na uniformidade étnica originária cimentou a coesão cívica ou hegemonia interna que é forte nos Estados Unidos uma nação de colonos brancos Essa exclusão que tivera marco inicial na independência reeditouse após a Guerra Civil quando a anunciada Reconstrução breve período de vigência da igualdade civil entre 1865 e 1867 foi primeiro solapada pela violência da White League uma coalizão terrorista responsável por massacres e sabotagens dos direitos civis de exescravos depois pela liberdade federativa e o acordo conciliatório com as velhas oligarquias sulistas formuladoras das leis de segregação racial O racismo é assim central na vida política e social da América como pilar de sustentação à imagem de um edifício cimentado pela consciência antinegra e consagração da etnia que se proclama original e que acredita numa civilização hereditária assegurada pelas leis de um Deus branco como no Pentateuco e pela história de conquistas armadas Como mecanismo básico de coesão da aliança fundadora o racismo supõe religiosamente uma vítima sacrificial escolhida fora do pacto originário É no limite a base do estado de guerra interno ou da construção metafísica de um eterno inimigo da uniformidade paranoica que será sempre o Outro particularmente o negro é como se a sociedade civil depois ter neutralizado os povos originários fosse organizada de modo a se defender dos descendentes de escravos Daí deriva uma razão de Estado etnocrática à sombra de estatuto ideal de igualdade eternamente à espera de reconstrução políticosocialemancipatória A democracia resultante apregoada como modelo universal é internamente perversa A leucocracia poder do privilégio branco que é uma etnocracia exercida por segregação de direito e de fato vigorou em aberto até a metade do século passado sob a égide de um lema absurdo separate but equal separados mas iguais embora constitucionalmente amparado São patentes os três sistemas de inscrição do leucon O saber que descreve textos eruditos e de propaganda o poder que prescreve leis decretos medidas as massas que transcrevem senso comum rumores8 Na prática algo como se o sujeito de pele clara dissesse esse outro está entre nós mas não é um de nós e o impasse se resolveria por separatismo a partir de uma linha de diferença sanguínea ou subdermica estabelecida pelo sistema chamado Jim Crow que vigorou até 1963 o outro não é um de nós mas é alguma coisa negro hispano etc desde que mantida a distância física e hierárquica Num país de imigração ativa a coesão social não se pauta por um nós ou um comum nacional e sim por um pluralismo de comunidades regido pelos princípios e valores da etnia fundadora que é anglosaxônica branca e cristã assim como pela política paroquial dos estados O que se poderia chamar de comum é o paradigma existencial da concorrência capitalista socius germinal da solidão de massa e matriz psicossocial de uma consciência binária ganhadoresperdedores onde cada matança em série de negros ou brancos definese como uma afirmação perversa da violência constitutiva de uma moderna sociedade republicana espiritualmente fundada em guerra Há exemplos flagrantes de orquestração da violência antinegra em momentos diversos da história americana mas se revelou marcante o período entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX Assim é que em 1898 Wilmington Carolina do Norte foi palco de um golpe supremacista que destituiu a administração negra da cidade A prosperidade econômica e social da comunidade afrodescendente incomodava de tal modo a população branca que para esta se tornou imperativo articular a neutralização política e administrativa do controle majoritário obtido por negros Mas um massacre de população negra como o ocorrido em Tulsa Oklahoma 31051921 pode ser tomado como paradigma da guerra racial interna devido a um incidente equívoco parte da população branca da cidade fez terra arrasada de um bairro próspero Greenwood conhecido como Wall Street negra com o auxílio de seis aviões que despejavam bombas incendiárias destruindo 34 quarteirões e matando mais de uma centena de pessoas inclusive mulheres e crianças Reinterpretandose os termos da apologia guerreira de Ernst Jünger os instintos reprimidos retomaram por um dia o seu caráter essencial O chamado massacre de Tulsa permanece na história americana como um tenebroso e inexplicado episódio de síntese do racismo antinegro mas também como modelagem de um virtual genocídio interno que historicamente já tinha sido perpetrado contra os povos ameríndios o extermínio de 50 milhões de búfalos nas pradarias do Oeste romantizado pelo soft power nos westerns ao estilo de Buffalo Bill era apenas parte da estratégia militar que orientou as Guerras Indígenas 16091924 ou seja aniquilar pela fome a insurgência originária Ao mito expansionista do faroeste corresponde hoje a persistente ideologia da expansão brancoamericana sobre o resto do mundo Maior potência militar e econômica do planeta a América pode proclamarse como líder ocidental do primado da lei da democracia da propriedade privada do livrecomércio do pluralismo de opiniões e de todas as liberdades reputadas como naturais mas ao mesmo tempo como senhor essencial da guerra que é um fenômeno germinal em graus de intensidade diferentes em toda e qualquer organização estatal moderna Considerandose a raridade da realização democrática no mundo a democracia americana passa a como modelar a despeito de sua hipocrisia uma vez que as instituições republicanas operam por meio de complexas ritualizações jurídicas e eleitorais uma maquiagem das desigualdades cívicas de fundo racial Aliás hipócrita ou mentirosa uma vez que a liberdade apregoada está fundada num falseamento básico metafísico todos são igual e institucionalmente livres destinado a encobrir a verdade da guerra como sustentáculo perene da república A dinâmica institucional ganha assim maior peso republicano logo a estabilidade de uma estrutura de pax romana assegurada pela União do que democrático no sentido amplo e convulsivo da palavra que implicaria instabilidade das posições de mando por circulação das elites étnicas A chamada democracia jeffersoniana a partir do nome de Thomas Jefferson terceiro presidente americano que preconizava oposição radical à aristocracia e à primazia do mercado sempre foi uma ideologia republicana Partido Democrata Republicano era o nome do partido de Jefferson Na América todo expresidente exceto Donald Trump o único dirigente americano acusado de sedição antidemocrática continua a receber informações sigilosas graças a uma tradição de confiança republicana Entretanto democracia ao contrário de república não se sustenta na unidade da guerra mas num pacto implícito de convivência civil É fenômeno agonístico sim porém no sentido de luta por polêmicas É abertura de possibilidades coletivas Não apenas regime de governo orientado pela igualdade formal dos cidadãos perante leis e sim forma de vida guiada por um princípio aglutinador das diferenças sociais que desde o século XVIII começou a ser chamado de povo Não é portanto apenas reconhecimento do outro como um igual e sim como um diferente aceitável em sua imprevisibilidade individual e grupal Democracia implica sistema aberto e em princípio mais frágil por necessariamente comportar pluralismo e conflitualidade logo a indeterminação de posições Mas o formalismo estável da república americana assentado igualmente na força planetária da economia comporta as muitas possibilidades liberaisdemocráticas de que indivíduos pertencentes a minorias tenham acesso a parcelas de ascensão social e de poder Daí a virtual formação de setores abastados de classe média negra e uma certa expansão da representatividade societária abrigadas numa ideologia das oportunidades que celebra o excepcionalismo americano seja o sonho do êxito individualista liberal seja a difusão da imagem de uma utopia democrática realizada Embora os partidos políticos jamais tenham feito esforços no sentido da legitimação de negros que no entanto obtiveram o direito de voto desde 1871 tornouse possível eleger um presidente negro como foi o caso de Barack Obama ou uma mulher negra Kamala Harris como vicepresidente da república Ou seja o excepcionalismo comporta uma representatividade elástica Isso repercute como adequada tonalidade afetiva no estilo de governo e como novas inflexões possíveis no interior da movimentação democrática e antirracista As tonalidades do poder identificadas como duras alternamse com as brandas permitindo a avaliação civil do espírito do tempo Por isso é possível formular avaliações não propriamente políticoideológicas sobre os grandes partidos a exemplo do Partido Republicano apontado como um caso inequívoco de decadência moral apoiado no eleitorado rural ele foi passando aos poucos do centrodireita para a extremadireita e abandonando qualquer perspectiva éticopolítica A alternância do poder federal pelo voto historicamente bipartidarista um sistema convoluto regido por um colégio eleitoral que não representa de fato o voto popular é também capaz de alternar a orientação da economia monetarismo ou keynesianismo como demonstrou Joe Biden logo após chegar ao poder aspirando a fazer história liberal com uma espécie de Doutrina Biden incipiente que anunciaria o fim da ortodoxia econômica e a retomada da política de bemestar social Mas qualquer vontade de restauração do New Deal Franklin D Roosevelt ou da Great Society Lyndon B Johnson pontos altos do liberalismo americano passa ao largo da cruel estrutura hierárquica das castas raciais conforme ressoa em um ditado deles A única coisa que aprendemos com uma nova eleição é que nada aprendemos com a última Senão talvez o conhecimento de que o voto muda apenas o estilo de adaptação do poder à ficção de uma sociedade sem classes outro nome para uma sociedade em que a escolha políticopartidária é no limite ideologicamente irrelevante Uma maneira menos sociológicojornalística de se debruçar sobre essa mesma questão aparece em Baudrillard crítico notável da cultura pósmoderna mas fascinado pelos Estados Unidos chamado simplesmente de América outra maneira de dizer o poder norteamericano que considerava um país extraordinário por fazer coexistir o colosso tecnológico e industrial com os desertos como formas sublimes de afastamento de toda socialidade e sentimentalidade ou como paisagens sem disfarces do inumano daquilo que ele vê como indiferença crua a toda cultura Deste modo América é o seu verdadeiro campo de pesquisa ou de observação de uma hegemonia mundial à base da simulação radical dos valores universais da paródia dos sistemas de representação e da própria onipotência militar Isso significa poder não como uma realidade crível mas como uma configuração virtual que absorve e metaboliza em seu benefício qualquer elemento Pode ser feito de inúmeras partículas inteligentes sem mudar nada de sua estrutura opaca é como um corpo que muda de células sem deixar de ser o mesmo9 Essa configuração seria o segredo da América exposto em seus paradoxos Assim logo cada molécula da nação americana como por transfusão de sangue terá vindo de outra parte A América terá se tornado negra índia hispânica portoriquenha sem deixar de ser a América Ela será tanto mais miticamente do que autenticamente americana E tanto mais fundamentalista quanto não tiver mais fundamento se é que já teve algum posto que até mesmo os paisfundadores vieram de outra parte E tanto mais integrista quanto se tiver tornado nos fatos multirracial e multicultural E tanto mais imperialista quanto for dirigida pelos descendentes de escravos A especulação é contemporânea de Ronald Reagan que segundo a crônica jornalística acreditava piamente na realidade da América dos filmes de John Wayne e do ingênuo jeito de viver americano ilustrado em revistas por Norman Rockwell É portanto anterior aos governos de Clinton Bush Obama Trump e Biden mas se mantém válida no que diz respeito à inalterabilidade republicana do corpo nacional americano apesar da alternância cíclica do binarismo partidário em que o voto popular e democrático apenas reforça miticamente a simulação de mudanças Aliás a crítica é ferinamente profética quanto ao imperialismo conduzido por descendentes de escravos o governo do democrata negro Barack Obama formalmente mais civil ou ocidentalizado do que o do antecessor George W Bush que deixou em ruínas o Iraque foi tão guerreiro ou exterminador de lideranças revoltosas no Oriente Médio quanto qualquer presidente republicano de linha dura O comando rotineiro da execução de adversários políticos por drones foi característico do governo Obama por ele próprio reconhecido como um incontornável fato presidencial tanto que se intensificou com Trump e depois com Biden Esse é o fato permanente da Real Politik americana uma espécie de paz belicista conjugação do paroxismo guerreiro escudado nas oligarquia do complexo militarindustrial do complexo do gás petróleo e mineração e do complexo bancáriofinanceiro em que se faz corriqueiro o assassinato de inimigos políticos em qualquer parte do mundo assim como a intervenção armada a depender das circunstâncias Manter o mundo em guerra é um fato conexo à dependência dos fornecimentos americanos A menos de um mês já empossado na presidência da república 2021 Joe Biden ordenou um bombardeio americano na Síria De um modo mais largo parece haver um pacto estrutural de guerra entre as classes dirigentes americanas com definições não apenas industriais e externas mas também ideológicas no sentido de que funciona como um macrooperador ontológico da distinção entre seres humanos imperiais e seres vassalos Internamente o suposto genótipo negro é um marcador de vassalagem Nesse pacto estrutural republicanos e democratas são praticamente a mesma coisa O peso da diferença recai sobre a tonalidade afetiva isto é sobre o estilo de liderança ou de governo no caso dos democratas hoje mais permeável às variáveis democráticas sem no entanto esquecer que os abolicionistas do século XIX eram republicanos A diferença não é propriamente ideológica mas de variações no estilo de condução da guerra externa e de sensibilidade interna a questões como saúde justiça e educação reveladoras de desigualdades sociais Não há como associar o barbarismo partidário de Donald Trump à civilidade democrata isso que a esfera pública americana designa como comity de líderes como Barack Obama e Joe Biden Tudo devidamente computado a negritude física de Obama como ele próprio admitiu ao fim de seu mandato em nada contribuiu para alterar a composição das castas raciais em seu país Pelo contrário registraramse fortes indicações de exacerbação do preconceito A persistência dessa dominação supremacista escapa às análises pósmodernistas de natureza culturalista ou filosófica atentas à retórica autopublicitária do igualitarismo americano mas de certo modo indiferentes às suas assimetrias objetivas particularmente as raciais A palavra casta antitética à imagem de uma formação social caracterizada por explícitas diferenças de classe se justifica como ideia de uma categoria racial estanque ou de uma hierarquia escravista quase religiosa profundamente arraigada nas formas de vida e nas consciências corroborando a suspeita hoje criticamente levantada de que o racismo antinegro esteja no próprio DNA da América Embora seja um fenômeno com maior força explícita no Sul de memória coletiva escravista a sua incidência é nacional como um tipo de afecção comum à cidadania hegemônica que é caucasiana Na sintomática invasão do Capitólio sede do Congresso Americano por extremistas de direita em janeiro de 2021 concretamente um acontecimento mais semiótico do que militar strictosensu foram conspícuos a bandeira dos Confederados e ao lado um nó de carrasco semelhante ao usado para enforcar negros no passado Tratase da semiose característica do período em que a proliferação de estátuas de generais confederados em praças de cidades do Sul coincidia com os linchamentos de milhares de afrodescendentes por acusações de estupro e outros pretextos A expressão niggerknocking bater em negros designa uma tradição sulista Melhor do que qualquer tratado uma canção famosa na voz de Billie Holiday Strange Fruit 1936 de Abel Meerepol eleita pela revista Time como a canção do século faz a síntese trágica do trauma histórico de linchamentos Southern trees bear a strange fruit árvores do Sul carregam um fruto estranho Blood on the leaves and blood at the root sangue nas folhas e sangue na raiz Black bodies swinging in the southern breeze corpos negros balançando na brisa do Sul Strange fruit hanging from poplar trees estranho fruto dependurado em álamos Pastoral scene of the gallant South cena pastoral do Sul galante The bulging eyes and the twisted mouth os olhos fora das órbitas e a boca contorcida Scent of magnolias sweet and fresh perfume de magnólias doce e fresco Then the sudden smell of burning flesh então o fedor súbito de carne humana queimada Here is the fruit for the crows to pluck eis o fruto para corvos arrancarem For the rain to gather for the wind to suck para a chuva colher para o vento tragar For the sun to rot for the trees do drop para o sol fazer apodrecer para as árvores deixarem cair Here is a strange and bitter crop eis uma safra estranha e amarga É sabido que o mero olhar ou mesmo um suposto olhar de um homem negro para uma mulher branca na rua poderia desencadear um linchamento Foram vários os casos dessa natureza dentre os 2812 linchamentos de homens negros computados entre os anos de 1885 e 1915 São dados típicos do Sul e certamente insólitos no Norte dos Estados Unidos Assim é que no ano de 2020 em Nova York mais precisamente no Central Park uma jovem que passeava com seu cachorro denunciou à polícia um homem negro que a estaria filmando com uma câmera uma espécie de tradução do clichê sulista um negro olha uma branca A infâmia não resistiu à prova tecnológica a moça não era o objeto da filmagem por falsa denúncia à polícia acabou perdendo o emprego e sendo submetida a um programa de reeducação A distância entre o Sul dos enforcamentos e o Norte da correção judicial não é apenas espaçotemporal No que se refere à violenta passagem ao ato em episódios racistas o Norte sempre foi mais civilrepublicano do que o Sul onde a violência policial contra negros apoiase até hoje em conluios implícitos com o sistema judicial Mas a generalidade das situações tem deixado evidente que a existência de burguesias negras no passado escravocrata ou no presente liberal e antirracista não altera substancialmente a barreira existencial da cor Se individualmente a guerra é o veneno do ódio na veia Martin Luther King o racismo é coletivamente a presença da barbárie guerreira no sangue civilizatório O episódio da jovem branca no Central Park é assim o índice eloquente da persistência do velho espírito sulista em qualquer parte do território americano isto é a inevitabilidade do racismo A crença na supremacia da cor é tão absoluta quanto a crença no exclusivismo do Antigo Testamento e no Oeste branco como Destino O fervor místico da brancura está no cimento armado do staying power da etnia fundadora ou quakers pretensos restauradores da fé cristã derivados do protestantismo britânico do século XVII Entre esse espírito e o da guerra não há distância significativa Um quaker pacifista é um homem morto diz um personagem de ficção americana É dramática em vários planos a profundidade da afecção racista na sociedade americana A cor da pele é o índice imediato para o ato discriminatório mas não se trata apenas de fenótipo e sim de genótipo portanto de raça apesar da prova biológica em contrário Em termos morfológicos o racismo americano é epidérmico e subdérmico Por um lado visa a cor da pele a tal ponto que tempos atrás as afrodescendentes experimentavam cosméticos de clareamento da pele para evitar ataques nas ruas ou melhorar as perspectivas de emprego Por outro lado é uma fantasia mítica e ideológica em torno do sangue daí a one drop rule em que uma única gota de sangue negro caracterizaria a diferença racial Mítica porque deita raízes bíblicas na maldição de Noé não há talvez nada mais primitivame nte cristão do que o racismo cujo molde moderno é aliás o antissemitismo cristão Mas também uma fantasia ideológica porque compõe a estrutura de dominação de classe social Por isso a condenação de um policial branco em 2021 pelo assassinato bárbaro de um cidadão negro George Floyd não foi um mero fato de correção judicial mas apenas um índice positivo na continuidade da longa luta coletiva por equidade existencial Talvez seja possível pautar o movimento cívico pelo advento de uma Era pósGeorge Floyd Sem grandes tintas otimistas porém no mesmo dia da condenação outro negro foi assassinado por policiais Ou então no mesmo mês mais de uma dezena de deputados republicanos votaram contra uma lei destinada a instituir a data de 19 de junho como feriado celebratório da abolição da escravatura O racismo continua a ser a sinalização constante para a evidência de que o excepconalismo um padrão único de excelência e normalidade existenciais apregoado como virtude básica da América é tãosó uma questão de crença puritana ao modo da fervent prayer prece fervorosa conclamada no hino God Bless America 1 Ao longo da década de 1970 podiase ouvir o argumento de que o racismo brasileiro era invenção de sociólogo americano Seria provavelmente uma reação ao fato de que logo depois da Segunda Guerra uma missão sociológica da Unesco pusera em dúvida a suposição panglossiana de que o Brasil fosse um exemplo de harmonia racial para o mundo Por outro lado nunca esteve ausente da maciça divulgação cultural norteamericana a tese de que o racismo nos Estados Unidos seria uma questão secundária diante da amplitude institucional de seus valores democráticos 2 FRANTZ F Racismo e cultura Por uma revolução africana Textos políticos Zahar 2021 p 71 3 ADAMS J Diary and Autobiography 4 BADIOU A Laventure de la philosophie française Depuis les années 1960 La Fabrique 2012 p 255 5 MENEZES TB Um discurso em mangas de camisa Jornal do Recife 1877 Livraria São José 1970 6 Cf GUNNAR M An american dilemma the negro problem and modern democracy Harper Brothers 1944 7 PIERRE R La société des égaux Seuil 2011 p 214215 8 KORINMAN M RONAI M Le modèle blanc In CHATELET F Histoire des Idéologies Savoir et pouvoir du XVIIIe au XXe siècle Hachette 1978 p 260 9 BAUDRILLARD J Carnaval et cannibale ou le jeu de lantagonisme mondial Éd de lHerne 2004 p 276 I O NACIONAL BRASILEIRO Muito diferente do americano é o caso do Brasil marcado por baixa cultura republicana ou seja por mediações sociais mais familiais relações de parentesco compadrio amizade e cooptação grupal do que legais A transição histórica foi proclamada por militares tributários das forças terrestres portuguesas por sua vez dependentes da potência armada inglesa tornados republicanos de curta data Na verdade uma espécie de vanguarda ao atraso ou seja a guarda palaciana do Império convertida em guarda constitucional os mesmos que antes coonestavam a tortura dos escravos e que quase exterminaram a população paraguaia em nome do imperador O Império deu lugar a uma República de Fazendeiros País territorialmente segmentado e controlado por oligarquias latifundiárias não houve aqui um pacto fundacional dos estados e sim uma transformação multissecular da empresa colonial das origens realizada por latifúndio monocultor e regime escravista no lugar de Estado em território nacional Estas são linhas gerais da tese de Caio Prado Jr em Formação do Brasil contemporâneo 1942 uma síntese historiográfica razoavelmente consolidada na literatura dos intérpretes do Brasil Rejeitando as hipóteses marxistas de feudalismo ou semifeudalismo na formação econômicosocial brasileira Caio Prado identifica traços peculiares no desenvolvimento do país em que se impõe a exploração rural de tipo colonial voltada para o mercado externo conduzida pela família patriarcal escorada em relações escravistas de trabalho à sombra da Igreja Católica e do Império10 É corrente o dito de que o Império deu ao país o Estadonação povo não Originalmente entretanto nada de Estado nem de nação nem de república e sim a empresa Brasil que foi sempre um negócio muito lucrativo primeiro séculos XVI e XVII devido à exportação do açúcar e depois graças ao diamante e ao ouro A empresa não foi exclusivamente lusa já que o Nordeste e seu açúcar foram explorados até meados do século XVII pelo capital holandês da Companhia das Índias Ocidentais Mas a palavra brazileiro com este sufixo designativo de atividade profissional designava originalmente o português que vinha fazer negócio ou enriquecer no Brasil à custa da riqueza da terra e da mão de obra escravizada Essa modalidade de constelação territorialnacional é verificável em vários espaços coloniais do passado mas pode ser comparada a outras no presente histórico a exemplo de países europeus administrados como se fossem empresas ou enclaves de negócios bancos principalmente por oligarquias financeiras em conluio com o Estado Por trás disso tudo uma oligarquia armada vocacionada para a militarização da sociedade e para a tutela da vida republicana Mas o que era empresa Brasil para os agentes estrangeiros que comercializavam os produtos brasileiros não era internamente nenhuma empresa e sim um domínio econômico e oligárquico chamado engenho ou casagrande versões nordestinas da plantation americana Não reinava aí o espírito burguês que caracterizaria a cidade e sim o ânimo fidalgo ou senhorial de quem detinha poder de vida e de morte sobre a mão de obra escrava atrelada à produção açucareira A palavra empresa poderia ser mais tarde depois da Independência aplicada à fazenda cafeeira do oeste paulista quando o cafeicultor se liga de forma dependente ao poder financeiro da burguesia urbana Nessa modernização com inequívocas tintas liberais apesar das interpretações sobre ideias fora do lugar o passado escravista continuaria ideologicamente mais forte do que o ambíguo presente Assim a transição da economia agropecuária com população rural ao capitalismo industrial com população urbana deixou parcialmente intacta a condição servil do negro que era antes verdadeira moeda de troca numa sociedade assim descrita Do senhor da grande fazenda numerosa escravaria podese chegar até a viúva que tem um único escravo o qual aluga para viver Todos os que podem têm escravos da Igreja ao liberto11 Em Memórias póstumas de Brás Cubas Machado de Assis eterniza como personagem conceitual a imagem do escravo Prudêncio que uma vez libertado organiza a sua poupança por meio da compra de um escravo Integra a história nacional como um vício de fundação a transmissão do poder e da riqueza concentrada entre famílias compadres e aliados Primeiramente a casagrande com senzala e tudo é o Estado E isso se depreende até mesmo de análises muito conservadoras como a de Oliveira Vianna que observava Os senhores de engenho não constituíam um onipotente legislativo tinham de desdobrarse em executivo Com exceção da Bahia a Independência transcorreu sem derramamento de sangue deixando inalterada a composição colonial das elites dirigentes e o espírito escravista Advinda a República o Estado configura uma casagrande sem senzala visível Isso é o que se tem chamado de patrimonialismo exaustivamente analisado por Raymundo Faoro O regime republicano foi instaurado para assegurar a continuidade do ciclo patrimonialista de apropriação de riquezas e poder sob as novas condições do capitalismo industrial Até começar a ser modernizado por influência dos militares franceses a partir da década de 1920 o poder armado permanecia como uma espécie de necrorreserva de garantia do ethos escravista do passado Assim proclamada por golpe como uma maquiagem de coisas velhas a República abriu caminho para uma federação supostamente nova que apenas consolidava os direitos das oligarquias estaduais Conjugando pátria a patrimônio no tempo do pretérito portanto acomodando o aparelho de Estado à oligarquia das famílias a República já nasceu Velha Enquanto a Abolição tinha sido uma etapa prevista no processo capitalista de desmontagem da estrutura colonial e ingresso no circuito neocolonialista britânico a República embora também muito debatida foi um fato de última hora de cima para baixo A tal ponto que a população do Rio de Janeiro confundiu a proclamação com desfile militar e os negros temeram que pudesse se tratar da restauração do escravismo No Maranhão chegou a haver massacre de negros favoráveis à continuidade da monarquia Não era um temor absurdo pois havia precedentes históricos Em 1802 Napoleão Bonaparte restaurou nas colônias francesas a escravidão que tinha sido abolida em 1794 em 1856 o presidente da Nicarágua William Walker um aventureiro e pirata americano que tinha tomado o poder simplesmente revogou a abolição da escravatura datada de 1824 Aqui não se restaurou evidentemente essa forma de produção mas se preservou um modelo duplo de dominação políticosocial que combina o autoritarismo da custódia militar com o patrimonialismo ou sistema de poder baseado em relações de família e compadrio Sem qualquer projeto político republicano igualitário a Proclamação foi o passo formal para a apropriação do Estado pelos donos da terra ou seja para a certeza de continuidade do controle oligárquico das organizações estatais e das instituições da sociedade civil O primeiro Congresso Constituinte Republicano 18901891 acolhia retoricamente a ideia de que a igualdade cidadã deveria prevalecer sobre os privilégios sociais porém isso era uma vez mais na história conversa liberal para inglês ouvir Aos negros já tinham sido negadas desde a Lei das Terras 1853 as possibilidades de acesso à lavoura autônoma mas o fenômeno estendeuse de outras formas até os imigrantes brancos convertidos em assalariados posseiros ou trabalhadores eventuais uma vez que não interessava aos fazendeiros nem mesmo aos governantes a generalização da pequena propriedade O poder senhorial continuou a ser exercido como uma herança de formas tradicionais de mando e privilégio Disso fenômeno marcante é a figura do coronel nordestino um misto de autoritarismo com senhorialidade ou mandonismo que pode ser lido como um traço psicossocial da fusão imaginária da força armada com o poder fundiário portanto da permanência de um aspecto da forma escravista A senhorialidade é a expressão externa da desigualdade racial e social assegurada pela forma escravista É uma combinação que lastreia a peculiaridade da dominação racial colando patriarcado a capitalismo Na baixa cultura republicana consequente não há nenhum caminho igualitário das possibilidades de acesso às vias de mobilidade social A solução de compromisso brasileira transigente uma vez que o separatismo não entrou no ajuste civilizatório proclama a igualdade social do afrodescendente mas sem derrubar as barreiras à ascensão social nem reconhecer o negro como singular como um cidadão dotado de fala própria A cor branca é conotada como uma prerrogativa E isso se mede pelo desigualitarismo isto é pelo poder de recusa da medida igualitária da cidadania Real ou virtualmente o cidadão pleno é um parente ou um compadre no interior de um círculo de reconhecimento social Em termos muito sumários podese dizer que até a Abolição a sociedade brasileira era composta pelos protagonistas do descobrimento portugueses africanos e indígenas principalmente além de outras eventuais nacionalidades enquanto após o fim da escravatura se poderia chamála de sociedade do encobrimento no sentido de uma formação social orientada para o apagamento do que houve antes Na sociedade escravista o racismo era uma tecnologia de poder declarada ou visível cujo arcabouço consistia em um tríptico de estigmatizaçãodiscriminaçãosegregação estruturalmente ou sistemicamente inscrito em leis e fatos normativos Ou seja não era um fenômeno ideologicamente dependente apenas de doutrinas e discursos uma vez que estava naturalizado pelo arcabouço colonial A sociedade pósabolicionista empreende a transição para a modernidade requerida pelo capitalismo industrial um período que vai da Proclamação da República até a meia década posterior à Segunda Grande Guerra mas sem abolir cultural ou simbolicamente esse arcabouço que foi sim uma estrutura colonial A racialização pósabolicionista era uma estratégia endocolonial de construção de fronteiras sociais internas ideologicamente respaldada por saberes pseudocientíficos sobre a inferioridade antropológica do negro assim como por interesses econômicos no sentido de atribuir menor valor salarial à sua força de trabalho como homem livre Podese vislumbrar correspondências entre esses propósitos e os do fascismo emergente na Europa O racismo passa a funcionar como estratégia de hierarquização social dentro de uma cadeia de continuidade que se pauta por novas regras No entanto aquela mesmo lógica explicativa da sociedade escravista é teoricamente deslocada para o racismo contemporâneo como o faz Almeida O racismo é decorrência da própria estrutura social ou seja do modo normal como se constituem as relações políticas econômicas jurídicas e até familiares não sendo patologia social nem um desarranjo institucional12 Daí para ele derivamse três concepções ou modalidades individual racismo e subjetividade institucional racismo e Estado e estrutural racismo e economia De fato na tradição do pensamento estrutura ou sistema designa solidariedade dos elementos de um conjunto assim como derivação funcional de cada um deles por sua vez articulados a uma totalidade que no caso das relações humanas pode ser designada como organização Estado e economia articulamse por deliberação racional para organizar a dimensão extrínseca do poder ou seja o mandar fazer alguma coisa Aquilo a que normalmente damos o nome de estrutura social ou sistema social é a organização de relações econômicas políticas e intersubjetivas em termos societários portanto uma mediação simbólica estável com princípios coerentes as posições de deveres e direitos ocupadas pelos indivíduos no interior da sociedade interrelacionamse de forma cristalizada na legislação e nas convenções políticas O apartheid sulafricano uma transfiguração jurídicopolítica do espírito multissecular dos huguenotes holandeses pelos bôers foi estrutural ou sistêmica assim como a segregação racial americana herdada dos colonosfundadores No caso brasileiro é forçoso ponderar que um efeito estrutural não é exatamente estrutura mas elemento de uma forma que eventualmente pode revelarse estruturante Isso fica mais nítido quando se olha para a liturgia afrobrasileira o candomblé como uma resultante da forma cultural africana nos termos de Oliveira O conceito de forma cultural vai além do conceito de estrutura pois ela não é apenas um conjunto de elementos que estruturam um sistema ela é a possibilidade de existência do sistema Não é com certeza um conceito apriorístico ou metafísico É mais a expressão conceitual de uma experiência coletiva que soube sobreviver na história de seus cismas e crises atualizando seus elementos criando suas categorias e inovando em suas expressões13 No interior da forma operam processos de subjetivação que são modos regulatórios de natureza institucional e não necessariamente deliberados da formação de um comum social É essa ideia de um comum na forma que preside à concepção de Darcy Ribeiro sobre o povo brasileiro por ele visto como uma etnia nacional Diz Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológicoregionais bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes os brasileiros se sabem se sentem e se comportam como uma só gente pertencente a uma mesma etnia participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciam os habitantes de uma região os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas14 Ainda que admitindo importantes disparidades e antagonismos Darcy parte da certeza de uma uniformidade cultural supostamente responsável por um Estado uniétnico Nesta perspectiva os povos indígenas constituem uma multiplicidade de microetnias sem incidência sobre o todo enquanto os negros seriam assimilados à etnia nacional uma vez que não teriam contribuído para a protocélula original da cultura brasileira por terem sido agentes culturais mais passivos do que ativos Como bem se vê a perspectiva de Darcy Ribeiro apesar de seu reconhecido progressismo político não projeta nenhuma luz sobre a questão persistente do racismo no Brasil Contra esse tipo de pano de fundo a explanacao de Almeida é oportuna por levar a evitar que se desloque o problema da discriminacao para o casuísmo Tem o mérito teórico de tornar didática a compreensão do racismo deixando claro que não se trata de patologia nem desarranjo institucional mas de um efeito de totalidade os comportamentos individuais e as instituições são racistas porque a sociedade é racista Assim o fenômeno pode ser definido como manifestação normal da sociedade na medida em que é lógico uma lógica de reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam o socius da qual decorre o sistema de ideias que ofereceria uma explicação racional para a desigualdade social Como já se pode prever essa racionalidade conflui para a luta de classes como chave geral explicativa Nesta costumam reencontrarse tanto as posições analíticas da esquerda política quanto aquelas da direita largamente disseminadas em livros e artigos jornalísticos que investem contra as marcações identitárias dos conflitos em detrimento das divisões de classe social Mas embasado em sociólogos de grande alcance como Florestan Fernandes Almeida está ciente de que a relação de classe não esgota a relação social Ou seja não se pode compreender o racismo apenas como derivação automática dos sistemas econômicos e políticos Tratase de algo mais profundo que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade Esse algo mais profundo demanda para nós outro tipo de explicação mais próxima à perspectiva de Jessé Souza que parte da ideia de que classe econômica é principalmente uma construção sociocultural e se debruça sobre a experiência da escravidão como semente de toda a sociabilidade brasileira15 De fato o racismo de pósAbolição é uma forma sistemática recorrente mas sem a legitimidade outorgada pela unidade de um sistema ou estrutura de discriminação baseada no imaginário da raça Afigurase como algo mais próximo à ideia de um processo indicativo de uma dinâmica interativa de elementos discriminatórios ao modo de uma fusão ou do que designamos como forma social escravista As práticas desse processo contribuem para a reprodução da lógica de subalternidade dos descendentes de africanos certamente derivada de uma ordem específica de classes sociais porém não mais constituem uma estrutura econômica política e jurídica a exemplo de uma sociedade plena e formalmente escravista Há sem dúvida uma dimensão estruturante do fenômeno no tocante ao sentido da forma que permeia as instituições e constitui subjetividades junto a amplas parcelas da sociedade nacional É a dimensão predominante na esfera privada com sistemáticos reflexos coletivos Na esfera pública existe incidência sistemática das práticas discriminatórias embora não como uma estrutura formalizada o que constitui um marcador diferencial do racismo brasileiro Não é nenhuma estrutura que faz funcionar os mecanismos de discriminação Sem dúvida alguma essa palavra tem forte apelo político no ativismo afro mas o estrutural não explica a complexidade do arraigado no sentimento racista Considerese assim a palavra paraestrutura o prefixo grego para aponta para um processo ao lado de um sistema identificável É possível pensar em estrutura como um jogo com suas regras e peças interdependentes Há situações cruciais em que as peças mudam mas o jogo continua No caso do racismo pósabolicionista mudou o jogo estrutura porém ficaram as peças imersas no imaginário escravista isto é nas imagens ambíguas de uma forma social hierárquica Paraestrutural significa estar fora da estrutura jurídicopolítica mas dentro das vontades e das práticas na medida em que para isso houver margem institucional ou então oportunidade social Vontade não deve aqui ser entendida como fenômeno individual ou subjetivo e sim como a força interna de uma forma coletiva Não que o racismo se reduza a uma lógica das ações oportunas ou das afecções subjetivas uma vez que ocupa um lugar cultural transmitido de uma geração para outra dentro dos processos de produção econômica e de sociabilidade nacionais A classe social não pode ser descartada como categoria analítica porém demanda um remanejamento compreensivo que entendemos como a postura epistemológica e metodológica de inclusão do sensório toda a dinâmica das afecções ou dos afetos na tarefa analítica Dúvida não há quanto à existência de uma infraestrutura socioeconômica enviesada por trás da discriminação mas esta não se deduz daquela a partir de dados primários e históricos extraídos segundo um sistema de interpretação predeterminado Os resultados de operações deste tipo estatísticas sobre a divisão do trabalho educação saúde segurança etc são politicamente relevantes e particularmente responsáveis pela tomada de consciência da mistificação embutida na ideologia da democracia racial que alimentou durante muito tempo o discurso da esfera pública oficial É também politicamente estratégico quando se pensa a partir de compromisso com transformação das condições de vida fazer a avaliação métrica das consequências da vulnerabilidade socioeconômica num país de tão profunda desigualdade social Basta pensar em dados do tipo as pessoas negras e pardas morreram 57 a mais do que as brancas em decorrência da Covid19 Mas em termos teóricos e acadêmicos são resultados tautológicos o mesmo de uma macrointerpretação termina revelando apenas o mesmo de uma disciplina passando por cima das variações imprevisíveis nas práticas ou nos atos concretos A revelação disciplinar pautada apenas pelos métodos adequados à reprodução acadêmica do conhecimento de um modo geral a perspectiva socioeconômica gera um tipo de saber fixado em macrocategorias classe social poder de Estado estrutura global etc que podem ser abordadas em crosssection isto é a análise transversal e universalista de uma realidade múltipla muitas regiões muitos países sem considerar especificidades locais As grandes categorias se autossatisfazem epistemicamente por interpretações mecânicas e permanecem à parte da experiência concreta do fenômeno Assim um objeto civlizatóriamente embaraçoso e com particularidades nacionais como o racismo acaba tornandose invisível diante da altura ou elitismo categorial que o contempla As correntes sociológicas sulamericanas em especial a sociologia econômica que fizeram ou fazem a cabeça de inteiras gerações intelectuais estudos das relações centroperiferia impossibilidade de ações autônomas dos Estados formação de burguesias industriais etc levados a cabo por autores de peso científico como Celso Furtado Raúl Prebisch Anibal Pinto Jose Medina Echavarria Maria da Conceição Tavares não incluíram o racismo no rol das questões nacionais primárias eventualmente confinandoo ao lugar de objeto de micropolíticas regionais A heterogeneidade estrutural dos países de capitalismo dependente diferente da polarização entre atraso e modernização na perspectiva do dualismo estrutural teorizada por autores como Prebisch e Pinto referiase à coexistência de modos de produção econômicos distintos em variações regionais sem qualquer referência a desigualdades raciais tidas como secundárias Não se trata apenas de uma falha teórica mas também da dificuldade de compreender um fenômeno que embaraça a consciência dita civilizada das elites neocoloniais Não raro as duas coisas interpenetramse como ressalta Clóvis Moura a propósito de Celso Furtado para quem o reduzido desenvolvimento da população submetida à escravidão deviase ao atraso mental do negro Entretanto seria enganos pensar que Furtado um dos mais ativos e radicais pensadores da Cepal atribuísse a esse seu juízo sobre a população negra a causa do entorpecimento da economia nacional16 Na verdade para ele sempre existiu um estancamento do crescimento econômico em países sob a dependência do centro capitalista como o Brasil mas isso seria devido aos fatores da concentração do progresso tecnológico em determinadas regiões assim como à forte concentração de renda A questão social do afrodescendente apenas deixava de ser pensada no âmbito dessa categorização teórica Ao que conste há apenas uma hipótese econômicosociológica que tenta ligar racismo a modelo de crescimento econômico no Brasil Tratase da hipótese da redistribuição intermediária formulada por Maria da Conceição Tavares e José Serra segundo a qual a compressão salarial era necessária ao modelo vigente na época para financiar a inversão e redistribuir o superexcedente para as classes médias17 Nesta argumentação o sistema econômico teria algo como um preconceito de classe de cor porque só as classes médias e ricas brancos em suma poderiam consumir Trabalhadores pretos e mulatos não poderiam fazêlo devido à compressão dos salários que funcionaria como mecanismo de transferência de renda para as classes médias A hipótese foi criticada num ensaio hoje bastante conhecido Crítica da razão dualista pelo sociólogo Francisco de Oliveira para quem a falha do argumento estava no fato de que a compressão salarial transfere os ganhos da elevação da maisvalia absoluta e relativa para o polo da acumulação e não para o consumo A renda das classes médias seria uma necessidade da estrutura produtiva em seu sentido global e não um estado de bemestar dos favorecidos já que decorre das exigências técnicoinstitucionais da nova estrutura industrial e portanto das novas ocupações criadas Isto faria da renda uma exigência objetiva da estrutura produtiva e não um efeito de presumido preconceito de classe ou de cor por parte da acumulação capitalista Contraargumentamos que de fato a acumulação de capital seria em princípio neutra com relação à cor da pele do agente produtivo Mas enquanto um dos sistemas centrais de ação histórica o capitalismo acumula igualmente significações mercantis que orientam diretamente a integração das estruturas societárias e indiretamente as condições de vida dos atores sociais No âmago da determinação econômica das classes sociais está alojada como construção histórica a orientação racial embora multifacetada e parcialmente autonomizada com relação às condições materiais de produção Parcialmente porque a perspectiva aceitável de uma superexploração do trabalho necessária para compensar as perdas das burguesias dirigentes em suas relações de dependência com o Centro capitalista implica reescravizar de outra maneira a mão de obra abundante em que pontificam aos afrodescendentes Desta maneira a acumulação não é absolutamente neutra com respeito aos modelos culturais de incrementação do trabalho e da produtividade ou com relação às múltiplas formas discriminatórias da civilização tecnoeconômica que se alimentam de uma margem estrutural de pobreza daí a hipótese do racismo socioeconômico No viés capitalista da abolição da escravatura brasileira não houve reforma agrária nem direito ao trabalho e nem estrutura políticopartidária que reorientasse os conflitos entre as classes dirigentes e os exescravos Estes últimos estariam portanto naturalmente destinados a posições subordinadas na reprodução das classes sociais e na distribuição espacial dos agentes produtivos Nascem aí os diagnósticos no sentido de que se o racismo bem como o sexismo tornase parte da estrutura objetiva das relações ideológicos e políticas do capitalismo então a reprodução de uma divisão racial ou sexual do trabalho pode ser explicada sem apelar para preconceito e elementos subjetivos18 No tocante aos aspectos concretos do desenvolvimento econômico esse tipo de análise repercutia sociologicamente as denúncias do ativismo negro de que sempre houve fortes obstáculos à mobilidade social dos afrodescendentes no mercado de trabalho Têm o mérito de contradizer a tese do industrialismo como um fenômeno benéfico para a fluidez social e consequentemente para a mobilidade da população negra Mas se esse tipo de argumentação pode se aplicar em parte ao mecanismo de subordinação econômica e social do exescravo deixa de alcançar os aspectos morfológicos e culturais do racismo com sua massa nebulosa de elementos subjetivos e negacionismos que incide de forma continuada sobre o afrodescendente como dispositivo de poder que naturaliza a discriminação e aprofunda a desigualdade social O problema porém é que o racismo não pode ser realmente compreendido como efeito de estrutura da sociedade desigual mas como um macrofenômeno antropológico na escala do que Marcel Mauss chamaria mutatis mutandis de fato social total cuja incidência humana se universalizou com a colonialidade A autonomização histórica e existencial do fenômeno dá margem a variáveis aparentemente inexplicáveis O racismo brasileiro de hoje persiste no interior de um efeito permanente da antiga estrutura escravista uma verdadeira forma social autonomizada como herança autoritária de práticas patrimoniais das classes dirigentes uma a mais no rol do clientelismo colonial e imperial a que aderiu inerciamente a burguesia industrial nativa Não existe a objetividade ideológica atribuída pelas lentes do cânone positivista Isento de coerência ideológica o racismo subsiste e não por hipóteses duvidosas de inconsciente coletivo ou de mentalidade de época mas por um singular efeito parasitário do sistema socialmente excludente em determinadas práticas intersubjetivas de uma forma de vida enraizada na escravidão que no entanto foi política e juridicamente abolida Esse efeito é simultaneamente econômico societário e institucional o que leva à suposição de que o imaginário da raça esteja na base da definição de classe social no Brasil ou seja a classe social é sempre racializada Isso pode ser visualizado numa metáfora espacial imaginese uma casagrande a sede do engenho açucareiro teorizada por Gilberto Freyre o ideólogo oficial das relações raciais no Brasil que passou por um retrofit arquitetônico como resultado as residências ou os edifícios de luxo no espaço urbano e rearrumou o seu mobiliário mas não alterou substancialmente as relações com a mão de obra escrava apenas atualizando uma hipotética estrutura de sentimentos O sujeito da consciência racista não é mais o barãoproprietário de corpos assujeitados para o trabalho gratuito mas o baronete imaginário esse sim fora do lugar fora da casagrande suposto senhor de almas alheias Tratase agora de controle institucional por uma burguesia nacional branca De certo modo essa metáfora já estava concretamente configurada em determinadas dificuldades encontradas pelo regime escravista no espaço urbano O historiador Chalhoub traz à luz a expressão viver sobre si19 que traduzia o consentimento de proprietários de escravos para que estes pudessem habitar e alimentarse fora da propriedade senhorial Em termos práticos o indivíduo permanecia escravo mas desembaraçava o senhor de obrigações evidentes quando consideradas no contexto do trabalho rural com a casagrande e sua senzala ou algo equivalente O historiador está debruçado sobre as relações de cortiços com epidemias no espaço carioca mas o que particularmente nos chama a atenção nesse esdrúxulo sobre si é a prefiguração de uma vida posterior sem o espaço físico do domínio ou casagrande embora com os laços escravistas presentes ao modo do que alguns poderiam chamar de uma estrutura de sentimentos É mais ou menos notório que um teórico importante das relações entre cultura e sociedade como Raymond Williams tenha girado analiticamente em torno do conceito de estrutura de sentimentos20 nem sempre muito bem esclarecido porém entendido de modo geral como formas emergentes de experiências típicas em que significados e valores são mais sentidos e vividos do que apreendidos intelectualmente A palavra estrutura como já ressaltamos supõe um enquadramento lógico com interdependência e coerência institucionais ou mesmo burocráticas no âmbito da sociedade civil contemporânea Aplicase melhor a uma realidade sociopolítica direta ou indiretamente articulada a uma burocracia funcional e certamente não responde pelo funcionamento de práticas racialmente discriminatórias no Brasil Sobre esse conceito é esclarecedora uma frase do jurista Luis Roberto Barroso ministro do Supremo Tribunal Federal No Brasil a estrutura legal foi montada para o sistema não funcionar Ou seja há uma espécie de dissonância cognitiva entre a organização e a prática a existência de uma estrutura não assegura o funcionamento de coisa nenhuma Por outro lado a funcionalidade do racismo no âmbito das instituições e das relações subjetivas independe de uma estrutura o que torna ainda mais difícil a sua apreensão por mecanismos puramente racionais Ademais a permanência de elementos estruturais numa transição histórica não significa a continuidade da estrutura e sim um jogo de recomposição indireta com novas regras Assim a menos que o espírito crítico escolha por aferrarse à ideia de uma estrutura de sentimentos o adjetivo paraestrutural seria mais adequado a uma sistematização em que o racismo aparece como uma significação imaginária central21 socialmente transmissível pela dinâmica institucional capaz de catalisar os traços intensivos de uma política discriminatória por meio de formas esquemáticas ou imagens dinâmicas de um determinado tipo de ação humana A velha questão da raça biologicamente definida e inscrita numa estrutura econômicopolíticojurídica deslocase para a da identificação institucional da cidadania aceitável Na paraestrutura o racismo é institucionalmente sistemático em vez de totalmente sistêmico razão pela qual lança à compreensão conjuntamente racional e sensível o desafio de elucidar a transmissão dos mecanismos discriminatórios22 A esquematização discriminatória tem um sentido que é a hierarquização excludente da cidadania negra Apesar de pequenas conquistas obtidas ao longo de mais de um século de movimentação civil o homem negro brasileiro configura uma cidadania de segunda classe mantida em seu lugar por um racismo não legalmente sistêmico Isto quer dizer que a hierarquia discriminatória é pautada por um paradigma de brancura parcialmente alheio à suposição de supremacia racial como é no limite o caso dos Estados Unidos mas atento às aparências isto é à cor e ao status social São duas porém as equações estruturantes do fenômeno a primeira é o racismo morfológico ou morfofenotípico que visa o indivíduo particular a segunda é o racismo cultural cujo objeto é uma determinada forma de vida com costumes e crenças particulares No tocante à equação morfológica diferentemente da hipótese americana de uma classificação subdérmica ancorada na matriz do antissemitismo o racismo brasileiro é epidérmico Costa e Silva poeta diplomata e destacado africanista brasileiro resume No Brasil é predominante a questão da aparência nos Estados Unidos da ascendência E relata Um artista norteamericano que viveu alguns anos no Brasil enviava os seus trabalhos semanalmente para os Estados Unidos e de lá recebia o pagamento em dólares Pergunteilhe certo dia numa roda de amigos por que estava vivendo no Brasil E ele respondeu prontamente Porque nos Estados Unidos sou negro no Brasil sou branco e é enorme a diferença23 Aparência desde a cor da pele até a roupa é uma categoria que se constrói socialmente e que atribui poder social conforme os quadros de referência instituídos isto é conforme determinados marcadores semióticos que concorrem para a definição de cor e status No cotidiano nacional a atenção ao aspecto físico automatizase sistematicamente em funcionamentos institucionais assim como nas relações intersubjetivas Relatava o notável geógrafo Milton Santos que ao viajar de primeira classe em aviões de empresas brasileiras membros da tripulação lhe dirigiam a palavra em inglês negro em primeira classe seria certamente estrangeiro Nós nos dispomos aqui a observar de perto a questão racial com nova lente reflexiva a partir de sua inserção num território nacional específico onde mais da metade da população é constituída por escuros negros e pardos em contraste com os 12 da população negra norteamericana mas onde por outro lado são muito maiores as desvantagens sociais por efeito da relação racial O racismo da sociedade brasileira tem cromatismo próprio Nova lente reflexiva É que dezenas de obras e milhares de páginas empenharamse ao longo de todo o século XX na análise do racismo como ideologia e das práticas concretas de exclusão ou discriminação das diferenças étnicas sem que se tenha realmente obtido uma compreensão razoável da persistência do fenômeno na moderna sociedade do conhecimento No Brasil os intérpretes mais conspícuos da história social e econômica do país no geral epígonos de luminares como Franz Boas Karl Marx Max Weber e CM Keynes produziram análises influentes sobre a singularidade do escravismo mas nada de realmente significativo sobre o racismo antinegro Desse último caso um exemplo notável é a análise de Gorender sobre o escravismo nacional em que ele metodologicamente adverte O de que se carece a meu ver é de uma teoria geral do escravismo colonial que proporcione a reconstrução sistemática do modo de produção como totalidade orgânica como totalidade unificadora de categorias cujas conexões necessárias decorrentes de determinações essenciais sejam formuláveis em leis específicas24 Ou seja todo o empenho do trabalho destinase a comprovar com rigorosas categorias do materialismo histórico a tese controversa sobre a existência de um modo de produção colonial no Brasil mas sem levantar a questão do racismo que no entanto era o objeto concreto de luta do movimento negro É apenas contextual acadêmica a pertinência de metadiagnósticos teóricos sobre a condição colonial permanente ou sobre a alienação da burguesia dirigente num país de capitalismo dependente mas opaca ante à realidade prática da discriminação racial Tomese como exemplo uma única evidência histórica já no primeiro ano da república proibiuse a entrada de asiáticos e africanos em território brasileiro Por mais que se pretenda estabelecer relações de causa e efeito entre capitalismo e racismo em busca de metaexplicações tornase difícil conceber o trânsito imediato ou relevante entre uma atitude discriminatória apreensível no interior da historicidade políticosocial e o advento do capital industrial Outro exemplo como conciliar teoricamente o projeto igualitário de Cuba com a política de afastamento sistemático de negros hoje admitida até mesmo por dirigentes cubanos das posições de poder Não que o fenômeno racial seja impenetrável à razão mas o racionalismo restritivo das práticas historiográficas sociológicas antropológicas e psicológicas conduz à adoção exclusiva do pensável isto é do que pode ser pensado ou analisado apenas à luz do modo como a sociedade se predispõe a entender o seu próprio funcionamento políticosocial É o contrário de uma compreensão ao mesmo tempo individual e coletiva da permanência na consciência histórica dos fatores excludentes de aparências que não coincidam com aquelas da brancura hegemônica do paradigma leucocrático O racionalismo acadêmicodisciplinar isso que o sociólogo Guerreiro Ramos chamou de sociologia enlatada é socialmente asséptico esquivandose da dificuldade de criticar o vínculo entre a interpretação e a práxis Há mais de um tipo de compreensão do racismo nacional como se evidencia no trabalho já citado de Clóvis Moura um competente sociólogo negro comprometido com o movimento antirracista ciente de que o desenvolvimento das forças produtivas retroalimentava o que ele chama de escravismo tardio no Brasil A sua perspectiva entretanto centrase na divisão da força de trabalho É também o que Florestan Fernandes quer oferecer em sua obra sobre o tema25 hoje merecidamente acolhida como um clássico da sociologia históricoestrutural por sua demonstração minuciosa de como o negro foi expulso do sistema de relações de produção e impelido sem retorno a um sistemático desajustamento social De fato o sociólogo vai além do determinismo metodológico de seus próprios conceitos fundacionais para a cientificidade do campo sociológico no país ao corroborar as dúvidas sobre o mito da escravidão benévola e ao tentar apontar compreensivamente para as consequências do impedimento por parte das elites dirigentes de que pudesse florescer a vida social do exescravo À sombra do temor coletivo das rebeliões negras o liberto sempre foi conotado como inimigo público e doméstico mas além disso como psicologicamente deformado A respeito disto Cida Bento cita Florestan Fernandes a escravidão deformou o seu agente de trabalho impedindo que o negro e o mulato tivessem plenas possibilidades de colher os frutos da universalização do trabalho livre e o seu comentário de que nada disso nascia ou ocorria sob o propósito declarado ou oculto de prejudicar o negro26 A crítica de Cida Bento ressalta a estranheza quanto ao fato de que nenhum estudioso apontou a existência de uma deformação na personalidade do escravizador isto é do branco27 Para ela o próprio Florestan apesar de tão consciente do racismo no Brasil deixou de compreender a cegueira conveniente sobre o impacto da escravidão no grupo escravista É que compreender diz Claudel é agarrar ao mesmo tempo reunir pela pegada Como se diz que o fogo pega ou que o cimento pega ou que as águas de um lago pegam no inverno ou que uma ideia pega no público é assim que as coisas se compreendem e que nós as compreendemos28 O poeta está falando do esclarecimento recíproco entre a inteligência e a sensibilidade ou entre o objetivo e o subjetivo Diferentemente do mero entendimento lógico a compreensão implica a profundidade do ver como algo além da incorporação intelectual de um saber que pode ser a própria desincorporação emocional de uma representação ou de uma crença Assim é por exemplo o desnudamento educativo da alma ou consciência própria da individualidade sugerido por Fernando PessoaAlberto Caeiro O essencial é saber ver Saber sem estar a pensar Mas isso triste de nós que trazemos a alma vestida exige uma aprendizagem de desaprender O guardador de rebanhos Com a exigência de um profundo compromisso existencial na atitude compreensiva emerge a dimensão ética Ilustrativa é uma passagem em A peste de Albert Camus quando Tarrou se recusa a deixar a cidade de Oran avassalada pela epidemia para continuar a tratar inutilmente os doentes a exemplo do que fazia o seu amigo Rieux O que lhe leva a se ocupar disso Eu não sei Minha moral talvez Mas qual A compreensão Tratase assim de não se pautar exclusivamente pelas leis nem pelas causalidades absolutas da ciência Isso está implícito num verso de outro poeta um dos maiores da língua portuguesa As leis não bastam Os lírios não nascem da lei Nosso tempo de Carlos Drummond de Andrade É que as explicações apenas racionalistas da história se apoiam na exclusividade das determinações materiais para os fenômenos intelectuais culturais e morais de um período qualquer Os casos de natureza subjetiva os lírios do poeta são deslocados para as lentes de uma visão atomística dos fatos tidos como desvios individuais ou subjetivos de uma regra determinista Esta é a regra que faz recair todo o peso da explicação sobre o histórico projeto classista e pósabolicionista de transformação dos exescravos em excedente estrutural de mão de obra com vistas ao rebaixamento do valor da força de trabalho No entanto o mero protocolo disciplinar e determinista não diz como isso se tornou socialmente possível Ou seja não explica o fenômeno de que da coexistência de brancos e negros pobres em numerosos segmentos populacionais no início do século XX tenhase desenvolvido progressivamente apenas uma classe média branca Em outros termos não consegue eliminar a hipótese de que haja lugar para a concepção de uma sensibilidade difusa ou de um espírito o invisível nas transformações e passagens não assimilável de todo às rígidas formulações cientificistas no que se refere a ânimos e comportamentos característicos de um momento Faltalhe o que Rey chama de capacidade de escuta algo que leve à captura de um processo em ato Capacidade de escutar tanto aquilo que é dito quanto aquilo que não é dito aquilo que é a condição de dizer capacidade que não poderia tomar emprestados seus recursos ou seus princípios de um saber constituído Não encontraremos nenhuma disciplina que possa legitimar ou dar uma aparência de coerência a uma escuta desse tipo29 O espírito a ser apreendido ou escutado não procede de arquétipos inconscientes nem de supostas epistemes intertempormais É algo que se faz presente tanto na consciência discriminatória dos senhores quanto eventualmente na consciência discriminada dos supostos servos que ao modo do fenômeno da servidão voluntária La Boétie transcrevem existencialmente as prescrições racistas seja reproduzindoas ativamente seja aceitandoas dentro do curso inercial dos fatos sociais Por exemplo o fascismo europeu emergente desde os começos do século passado era certamente uma forma suscetível de análise racionalista enquanto forma de Estado ou de reação política às reivindicações crescentes das classes obreiras orientadas para o socialismo mas sem qualquer doutrina própria era principalmente um estado de espírito avesso a discursos e traços estranhos em concidadãos próximos sentidos como inquietantes ou inaceitáveis Pensar o fascismo como uma forma de vida aproximao de protoformas atuais a exemplo das minorias aberrantes da extremadireita nativista do tipo de supremacistas brancos americanos e de milícias armadas exasperadas pelas mutações culturais da globalização Também o relaciona indiretamente ao conservadorismo senhorial brasileiro cujos componentes sensíveis cristalizamse no fascismo nacional Nas décadas de 1930 e de 1940 do século passado o chamado integralismo corporificou partidariamente esse movimento num grau mais elevado do que em qualquer outro país sulamericano Especificamente sobre o racismo uma movimentação sensível humanamente negativa ou retrópica ressoa hoje em representações sociais ideias imagens discursos atitudes anacrônicas mas nada que se identifique como um sistema coerente embora se possa vislumbrar uma coerência convergente quanto aos alvos da rejeição seja uma ideologia uma religião ou pessoas de aparência socialmente desvalorizada Em outras palavras não predomina um discurso conceitualmente racista entendido como unidade complexa de palavras e ações constitutiva do social e sim uma zona fronteiriça da discursividade que melhor se define como um sentimento de existência isolado ou fechado em si mesmo como algo aquém de qualquer expressão conceitual ou de articulação lógica um ponto de existência um ponto de vida ou seja como a resultante automática de reações emocionais enraizadas Decorre daí esse sentimento concebido por Ledrut como algo aquém de qualquer expressão conceitual não é uma representação ou um sistema de representações nem se reduz à ideologia nem à filosofia nem à religião nem a nenhum outro complexo de ideias e de crenças30 No problema da compreensão geral do mundo por uma sociedade esse sentimento implica uma intuição de base que responderia pela apreensão da existência por parte dos membros de uma civilização determinada A palavra apreensão sublinha que não se trata de um conhecimento stricto sensu nem de qualquer percepção intelectualizada e sim de um sensório global uma espécie de síntese afetiva da diversidade cultural que informa os esquemas existenciais ordenadores da experiência comum Em vez de um ponto de vista apenas racional seria mais adequado falarse de um ponto de vida ou de um ponto de existência É precisamente esse sentimento isolado e apreendido pelo espírito colonialista que sempre respaldado por abstrações humanistas responde pela negação de igualdade ao diferente e pelas ações etnocidas Podese detectálo no interior das formas de vida que caracterizamos como retropias idealizações ativas de um passado morto mas confortável a um imaginário regressivo ou então como protofascistas É verdade que até mesmo em sistematizações ideológicas ou em partidos políticos o isolamento físico e emocional sempre produziu radicalismos e extremismos o sentimento de existência pode ser individual ou grupal O fato a se ponderar é que nesse sentimento inominável sem significado sem correlação entre diferenças podese enxergar aversão ou horror ao outro pois como diz um personagem de ficção o horror não tem quase nunca a face do inimigo e sim daqueles mais próximos De fato o racismo exacerbase quando o dessemelhante p ex o escravo controlado como mero objeto e mantido à distância física e social pelo senhor começa a tornarse semelhante o liberto suscetível de assimilação ou de semelhança social com o antigo senhor e deste modo passa a ser conotado existencialmente como intruso Confirma Cida Bento Os negros são vistos como invasores do que os brancos consideram seu espaço privativo seu território Os negros estão fora de lugar quando ocupam espaços considerados de prestígio poder e mando Quando se colocam em posição de igualdade são percebidos como concorrentes31 Do horror à intrusão não estão ausentes circunstâncias sóciohistóricas Por exemplo a existência de uma memória coletiva escravista necessária à manutenção de uma hierarquia nas interações sociais que não deixa de evocar um sistema inconfessável de classificação humana Nos Estados Unidos o mito da supremacia étnica a crônica infame e subterrânea dos milhares de linchamentos de negros e a indiferença ante as centenas de atentados contra igrejas da gente negra compõem uma tradição ou uma protoforma confederada e coletiva para o Sul norteamericano que pode diluirse discursivamente mas sem desaparecer no Norte Essa protoforma de aversão coletiva pode alimentarse de doutrinas anacrônicas ou de textos extremistas mas independe de um discurso sistemático ou organizado Em certos casos se configura como uma forma de vida integrista ou como uma retropia fascista Pode transparecer numa semiose de gestos ritos p ex a cruz incendiada pela KuKluxKlan olhares enviesados ou na instintiva rejeição à presença do outro Nela predomina um sentimento inominável mais forte do que palavras As circunstâncias podem variar sem que sequer se arranhe o inominável No Brasil é forte a memória escravista assestada sobre o fenótipo negro mas igualmente sobre particularidades da forma de vida afrobrasileira Em termos de registro escrito vale citar o artigo 157 do Código Penal de 1890 que proibia praticar o espiritismo a magia e seus sortilégios usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública Eugenia e racismo cultural Na passagem do totalitarismo despótico do senhor de escravos às formas calmas ou perversas de hierarquização racial a forma de vida afro passa por maiores foros de ameaça e portanto de rejeição Desde o começo tudo o que culturalmente se relacionasse ao negro ainda que de modo indireto era socialmente estigmatizado A rejeição ia desde a linguagem até as crenças e a música Vejamos o verbo vadiar Em português vernacular sempre significou não ter ralé para o trabalho ou seja ironicamente trabalhar como mouro mas no serviço de Deus senão simplesmente distrairse Na boca do povo um verso de canção como eu vim aqui foi para vadiar queria dizer exatamente isso desfrutar musicalmente do mundo Entendese assim como a vadiagem negra foi criminalizada pelo código penal Lei da Vadiagem existente desde 1890 mas regularizada em 1942 A música negra era vadiação algo a ser eugenicamente reprimido É exemplar o conhecido episódio do CortaJaca protagonizado pela maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga O fato é que Nair de Teffé esposa do Presidente Hermes da Fonseca 19101914 apresentou a um público de elite carioca e de diplomatas no Palácio do Catete 26101914 o maxixe CortaJaca acompanhado por violão Em meio a preconceitos de natureza diversa Chiquinha neta de escrava militante abolicionista notabilizavase como uma artista que abria alas para a música brasileira como nas palavras de Mário de Andrade Francisca Gonzaga teve contra si a fase musical muita ingrata em que compôs fase de transição com suas habaneras polcas quadrilhas tangos e maxixes em que as características raciais ainda lutam muito com os elementos da importação32 Na época eram dois objetos socialmente escandalosos o violão era prática policial corrente o confisco desse instrumento musical inclusive na própria residência do sambista e o maxixe aliás nome de uma etnia africana hoje pouco conhecida dança dita excomungada O Senador Ruy Barbosa comentou o fato em sessão do Senado Federal classificando a composição musical como a mais baixa a mais chula a mais grosseira de todas as danças selvagens a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba e apostrofando que nas recepções presidenciais o cortajaca é executado com todas as honras da música de Wagner e não se quer que a consciência deste país se revolte que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria O episódio é anterior à chegada ao Rio de Janeiro 1917 do jovem compositor Darius Milhaud mestre da técnica politonal como secretário da embaixada francesa no Brasil na época conduzida pelo aclamado poeta e dramaturgo Paul Claudel Ruy Barbosa foi de fato uma figura importante no processo de transição da monarquia para a república como advogado público de ideias industrialistas e da luta por uma Constituição liberal Abolicionista advogado e jurista de destaque internacional desde a notória Conferência de Haia Ruy era um dos intelectuais mais brilhantes de sua época e até hoje cultuado como ícone da inteligência brasileira Mas em termos de nacionalismo cultural Ruy era outra coisa Ao contrário dele Milhaud percebeu a relevância cultural do trânsito original entre a música de concerto e a popular Seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos maxixes samba e cateretês como Tupynambá ou o genial Nazareth A riqueza rítmica a fantasia indefinidamente renovada a verve a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa encontradas em cada obra destes dois mestres fazem deles a glória e a joia da arte brasileira33 A música de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá foi marcante na trajetória musical de Milhaud que comporia Boi no Telhado com apropriações da música brasileira O incidente com Chiquinha Gonzaga pode soar como menor ou teoricamente pouco relevante mas o caminho compreensivo leva a atentar para o fato de que Ruy Barbosa era também membro de uma elite desejosa de apagar da memória social a mancha da escravatura Quando ministro da Fazenda 1890 tinha mandado queimar os arquivos da escravidão basicamente os registros de antigos escravos em comarcas sob alegações até hoje controvertidas porém em princípio para lavar historicamente a referida mancha O episódio da condenação do maxixe era motivado por um ataque partidarista ao bisonho presidente Hermes da Fonseca não raro motivo de piada em botequins cariocas seu adversário político mas revelava ao mesmo tempo o desprezo elitista por manifestações da cultura afro e popular Crenças e músicas de origem negra são tópicos relevantes da estigmatização abrigada nas programações morais e sanitárias da doutrina eugenista o dito racismo científico que despontou mundialmente desde fins do século XIX até quase metade do século passado Inspiravase no pensamento do inglês Francis Galton que preconizava a expansão das influências que melhoram as qualidades inatas de uma raça bem como das qualidades que se pode desenvolver até alcançar a máxima superioridade34 Para Gobineau teórico da eugenia e amigo de Dom Pedro II a mestiçagem conduziria o país à ruína Mas na eugenia brasileira prevaleceu a perspectiva de Lamarck outro teórico importante para quem políticas adequadas de saúde e educação poderiam aperfeiçoar racialmente negros e mestiços Os princípios eugenistas da miscigenação positiva e do branqueamento sistemático que aspirava ao desaparecimento progressivo do negro presidiam à importação acelerada de cerca de quatro milhões de imigrantes europeus entre fins do século XIX e meados dos anos de 1930 como uma tentativa de contrabalançar a presença de 60 de negros na população brasileira Vejase o dedo do Império Britânico que tinha agido decisivamente no passado para coibir o tráfico negreiro por interesses comerciais próprios mas que exercia também influência ideológica em projetos de modernização nacionais sob o estandarte da civilização e progresso De lá provinha o fluxo mais constante das doutrinas eugenistas cujo horizonte racial era o embranquecimento progressivo do mundo Hoje se modernizou a letra da lei penal e são também estudados como anacronismos os preceitos da eugenia que repercutiam e eram debatidos nas elites ideológicas construtoras do senso comum compostas por médicos jornalistas e intelectuais de destaque a exemplo do escritor Monteiro Lobato militante eugenista escritor de largo público e um dos mais importantes editores nacionais nas primeiras décadas do século passado Isto é fato de entendimento objetivo Em termos subjetivos a perspectiva compreensiva evidencia a permanência em corações e mentes do velho sensório do preconceito que estigmatiza não apenas a cor da pele mas também as formas de crença ou de vida associadas à cultura africana o que implica uma rejeição radical ao estatuto de pessoa do negro supostamente livre Antes mesmo da Abolição na segunda metade do século XIX o advogado e abolicionista Luiz Gama baiano filho da ativista Luisa Mahin e vendido ainda criança como escravo pelo próprio pai tinha questionado a natureza da libertação do escravo Impedido de ingressar na Faculdade de Direito Gama tornouse advogado e pensador por conta própria Uma frase sua sobre a condição do exescravo é filosoficamente notável Faltalhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira Para bem aquilatar o alcance desse juízo podese partir de Espinosa para quem a escravidão de uma coisa é o fato de que ela está submetida a uma causa exterior por outro lado a liberdade consiste não em estar submetido a uma causa mas sim em estar liberado dela Este argumento do Breve tratado é retomado por Abensour para introduzir a questão da servidão voluntária como um estado de não liberdade de sujeição cuja particularidade é que a causa da escravidão não é mais exterior mas sim interior pois é o agente ou o próprio sujeito que se submete voluntariamente à escravidão é ele que através de sua atividade é autor da sua própria servidão35 Espinosa não está certamente falando de exploração negreira nem a este fenômeno se refere o famoso conceito de servidão voluntária de La Boétie mas esse caminho reflexivo tem afinidade teórica com o problema da libertação jurídica pura e simples suscitado por Luiz Gama A frase do abolicionista é de fato notável porque reivindica implicitamente a ótica compreensiva ao trazer à tona a dimensão subjetiva da experiência humana do liberto antecipando em um século a perspectiva analítica a psicologia clínica do psiquiatra e ativista Fanon Eu me dediquei neste estudo a abordar a miséria do negro Tátil e afetivamente Não quis ser objetivo Aliás a verdade é não me foi possível ser objetivo36 Se fizermos incidir uma luz de fundo marxista sobre o problema trazido pela frase de Luiz Gama poderemos inicialmente depreender que o humano não é algo imanente ao ser individual e sim uma virtualidade inscrita no conjunto das relações sociais Isso afeta a questão da liberdade Acabandose o domínio direto de um homem o senhor sobre outro o escravo começa o domínio das condições de produção sociais regidas pela mercadoria Em termos mais explícitos a dominação e a repressão diretas sobre o corpo do indivíduo dão lugar à exploração pelo trabalho A libertação do escravo acontece portanto no quadro de substituição da tortura física pelo fetichismo a abstração ou ocultação do poder da mercadoria Entra em cena um novo senhor o capital indiferente à qualificação humana do liberto ideologicamente a depender do quadro interpretativo o trabalho poderia tornarse a própria essência perdurável do homem Marx ou então o disfarce da degradação humana como deixaria transparecer o dístico nazista no pórtico do campo de concentração de Auschwitz Arbeit macht frei o trabalho liberta Essa libertação degradada destinouse ao negro uma vez que o exescravo e seus descendentes não foram socialmente semiotizados como trabalhadores passíveis de qualificação profissional requerida pelas ocupações emergentes no âmbito do capitalismo industrial A essência perdurável simplesmente não contemplava o negro tornado humanamente irrelevante no interior da forma social escravista A frase de Luiz Gama vislumbra profeticamente o vácuo no reconhecimento da personalidade do liberto isto é a negação de sua possível estabilidade em termos de pensar agir e sentir Numa outra aproximação de sentido denuncia a infantilização do liberto solto no mundo como órfão do Estado e concebido como ente sem voz própria infans aquele que não fala ou criança logo a quem se nega a liberdade de decidir e mesmo de ser infeliz portanto de pensar a sua miserabilidade É oportuno evocar Pascal A grandeza do homem é grande quando ele sabe que é miserável Uma árvore não sabe que é miserável Saber que é miserável é então ser miserável mas é grande saber que é miserável³⁷ Grandeza e miséria ou infelicidade unemse para indicar que a aceitação do paradoxo é humana e está inclusa na possibilidade de afeto por si mesmo como transparece num verso do americano Walt Whitman autodeclarado poeta do corpo e da alma A afeição ainda resolverá os Problemas da liberdade Aqueles que se amam Tornarseão invencíveis O exescravo não dispunha de um quadro social que lhe permitisse amar a si mesmo Assim na frase do abolicionista Luiz Gama antevése o problema existencial da libertação política ou seja o problema da condição de quem precisa continuamente desembaraçarse de uma identidade reputada como subumana Em outros termos libertarse de ou para alguma coisa Daí então o imperativo de recusar a suposição societária econômica política de que a vida pessoal possa ser delimitada pela dimensão econômica senão pelas regras da empregabilidade Aí se entrevê a filosofia do liberalismo cuja expressão ontológica mais simples ser ter e cuja ética se apoiam na hipótese mercantil de que a vida econômica conduz a uma antropologia moral Para Stuart Mill corifeu do liberalismo a única liberdade que merece este nome é a que consiste em cada um buscar o seu próprio bem à sua própria maneira desde que não tente privar os outros da sua ou impedir de alcançála³⁸ Nessa lógica individualista e desigualitária até hoje persistente de que valores simbólicos esses mesmos inscritos nos aportes civilizatórios dos povos implicados na diáspora negra possam reduzirse a uma equivalência monetária inscrevese o horizonte da libertação jurídicopolítica a mera disponibilização salarial da força própria de trabalho De uma maneira geral os abolicionistas eram liberais que encaravam a liberdade como propriedade do próprio corpo ou de bens com valor de troca Disso dependeria a formação do caráter homem bom era o homem com bens Não conseguir empregarse equivalia a não ter estofo moral Gama pôde antever porque já era capaz de discernir em outros discursos abolicionistas a ausência de referências à virtualidade política ou cultural do homem negro concreto Ou seja o africano e seus filhos eram conotados como vazios de possibilidades quanto à construção de uma Polis aceitável ou de uma nova civilidade por não serem percebidos como sujeitos de um valor absoluto com um fim em si mesmo perspectiva kantiana para a definição de pessoa e sim como valor relativo ou valor de meio O liberto portanto conotado como sujeito de poder social zero Essa perspectiva é radicalmente ética não referida à codificação de regras de conduta nem a ajustamentos morais e sim a tudo que implique um destino comum norteado pela razão fundadora da comunidade dos homens Referese portanto a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e de conviver responsavelmente Não é um movimento abstrato sob a ótica da ética liberdade não significa apenas ausência de repressão ou de coerção física nem propriedade econômica de bens mas potência de ação política de participação social ou simplesmente de não agir nos termos desejados pela sociedade civil saída da escravatura A não ação é também potência A palavra dignidade é aqui relevante e pertinente por ser indissociável em Kant de duas outras características do humano a liberdade e a razão Segundo ele no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade O que tem um preço pode ser substituído por qualquer outra coisa a título de equivalente ao contrário o que é superior a todo preço e em consequência não admite equivalente é o que tem uma dignidade³⁹ Ou seja a dignidade é a única condição capaz de fazer com que uma coisa tenha um fim em si mesmo portanto um fim intrínseco e não relativo A dignidade entendida como valor interior absoluto gerador do respeito ao si mesmo é o farol da ética Esse farol o valor é imanente ao agir humano uma imanência dinâmica comum a toda habitação humana num espaço determinado isto é ao que corresponde a exigências radicais da própria vida Ética é precisamente o movimento de escuta dessa dinâmica abrangente maior do que os limites da subjetividade instituída mas imanente a qualquer modo de existir Pela ética não pela economia se aspira à clareza e à luminosidade da existência humana Isso é o que advém na abertura inerente à existência e se materializa na perspectiva que politicamente se conquista por meio da liberdade compreendida como a afinação ética e política com a plenitude do modo de existir e não como a formação de cidadãos morigorados industriosos e moralizados Estes eram os atributos da moralidade operária que ressoavam ao pé da letra nas expectativas das classes dirigentes quanto à mão de obra livre e posta no mercado Gama um abolicionista original antecipou um ponto crucial Contornando o imperativo ético da dignidade e a exigência política de uma libertação com perspectivas existenciais a Abolição apenas transferiria o nível da escravidão de uma forma jurídicopolítica societária portanto de uma estrutura ou um sistema lógico para o que estamos chamando de forma social escravista em que o racismo se revela constitutivo Se fosse aqui o caso de adotar uma perspectiva macroexplicativa de natureza marxista p ex para o fenômeno teríamos certamente de recorrer às muitas indagações já feitas sobre a via não clássica de transição do escravismo colonial e imperial sustentado pela velha classe latifundiária para a industrialização de tipo capitalista e a urbanização progressiva Mais de um intérprete do Brasil se debruçou sobre as peculiaridades da transformação da questão agrária operada pelo alto sem compromisso com camadas subalternas e com preservação de barreiras contra a cidadania plena O que aqui de fato nos interessa teoricamente é a elucidação da forma escravista que escapa às macroexplicações A primeira inclinação como acontece na interpretação imediata de uma forma qualquer é confundila com a imagem de um objeto determinado por exemplo a escravidão Ela seria assim um signo ou a mera representação do fenômeno Mas como diz Focillon O signo significa enquanto a forma se significa A frase contempla o trabalho artístico em que é enorme a diferença entre formas e ideias Mas é precisamente do mundo das artes que se pode partir com o conceito de forma para apreender algo que um sistema lógico não revela ou seja a dinâmica ou a atividade dos afetos Por exemplo a escola é uma forma De quê De incorporação de saberes e de promoção de conexões pertinentes É mais precisamente uma forma cultural Nela o essencial não está nos conteúdos nem nos suportes técnicos mas na modalidade espaçotemporal institucionalmente assumida pela transmissão cultural que é a escolarização Como resultado autônomo da produçãoreprodução da unidade de um sistema a formaescola separa a transmissão de qualquer sistema fixo prédios suportes técnicos etc para radicála no próprio processo de escolarização O princípio educativo moderno está nessa forma que opera por meio da definição de um espaço particular uma conexão entre o interno a transmissão técnica de saberes e o externo as flutuações da vida social ou da história Sendo estrita definição de espaço a forma reproduzse propagase no imaginário ou melhor consideramola como uma espécie de fissura através da qual podemos introduzir num reino incerto que não é nem o espaço nem a razão uma multiplicidade de imagens que aspiram a nascer40 Uma vez mais recuperamos aqui uma observação atinente ao campo artístico no sentido de que as formas que vivem no espaço e na matéria vivem no espírito para acentuar a inexistência de antagonismo entre espírito e forma na dimensão social Como se fosse uma obra de arte perversa a forma social escravista cria a relação racial na esteira de uma histórica desconfiança residual ou uma aversão existencial ao indivíduo de pele escura marcando espaços materiais e psíquicos nas relações intersubjetivas embora gerando imagens convenientes de negação do racismo stricto sensu Diz Coccia Qualquer forma ou qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem41 No caso brasileiro a forma escravista é o que existe fora do próprio lugar ou seja fora da sociedade escravista do passado ao modo de uma vida depois do corpo Vale reiterar Uma imagem é a fuga de uma forma do corpo de que é forma sem que essa existência exterior chegue a se definir como aquela de um outro corpo ou um outro objeto42 Essas imagens que não são recordações nem ideias correspondem a uma sensibilidade capaz de evoluir no espaço e no tempo a ponto de desembocar no conveniente negacionismo intelectual do anacrônico sentimento discriminatório que as anima isto é o racismo Entretanto esse racismo é hoje perfeitamente detectável inclusive por experiências psicossociais relativas à persistência do racismo morfológico Um exemplo Num teste de imagem ou de aparência convidamse oito profissionais de recursos humanos divididos em dois grupos A e B de quatro pessoas A experiência consiste em exibir aos profissionais fotos diversas e perguntar o que veem em cada uma delas43 No grupo A são brancos todos os indivíduos retratados a A primeira imagem é a de um homem de meia idade que parece correr na rua O que veem nela Alguém que tem pressa ou está atrasado b na segunda uma mulher examina numa loja um blazer elegante O que veem Uma designer de moda ou uma provável compradora c na terceira um homem munido de uma tesoura faz a poda de plantas O que veem Um homem que cuida de seu jardim d na quarta uma mulher de spray na mão está em vias de desenhar numa parede O que veem Uma grafiteira com o comentário de que grafitagem é arte e na quinta uma mulher executa uma tarefa numa pia doméstica O que veem Uma dona de casa em sua cozinha f na sexta um homem de terno azulmarinho com paletó e gravata O que veem Um executivo de empresa provavelmente de finanças ou de recursos humanos No grupo B são negros todos os indivíduos retratados a Na primeira imagem o que veem no homem que parece correr na rua Alguém que está fugindo um ladrão b Na segunda a mulher segura o blazer para mostrâlo ou vendêlo portanto é uma vendedora c na terceira o que veem é um jardineiro em sua função na casa de um proprietário d na quarta a mulher é vista como uma pichadora de muros não como artista do grafite e na quinta o que veem é uma empregada doméstica ou uma diarista não a dona de sua própria casa f na sexta a imagem é interpretada como a de um segurança de shopping senão de um motorista profissional A forma escravista O teste de imagem faz aparecer a forma social escravista De fato afastada a hipótese pseudocientífica de uma outra raça dentro da esfera humana a aparência cor cabelo olhos traços biométricos avulta como um vetor antropológico decisivo para o fato discriminatório Mas a crueza do fenômeno pode variar de acordo com as características históricas dos territórios nacionais o que implica supor que as sociedades de acumulação primitiva do capital baseada no escravismo desenvolvem formas sociais de alta intensidade discriminatória A compreensão disso a elucidação objetiva e subjetiva da vinculação entre afeto representação e ação e não apenas o entendimento obtido por descrições históricas sociológicas antropológicas e psicológicas demanda um além uma sensibilidade social presente na base do senso comum que indicamos como um caminho filosoficamente intuitivo da lógica da existência essa mesma que supomos encontrar no conceito de forma social uma realidade a ser buscada no meio vital onde são gerados os saberes comuns Ora um saber anacrônico como o que está reconhecidamente implícito no racismo pode perder validade histórica mas ainda assim deixar intacto o meio vital em que foi gerado e alojarse numa forma social onde prosperam representações e afeções sociais capazes de alimentar as crenças sobre a inferioridade humana do Outro Nada impede que mesmo abolido o regime escravagista em termos políticos e jurídicos uma sociedade com forte tradição patrimonialista e senhorial preserve relações sociais de natureza escravista por meio de um jogo de posições em que o lugar social do descendente de africanos já esteja ideologicamente predeterminado pela escassa visibilidade nos foros públicos por meio de barreiras educacionais e empregatícias Tudo isso tem raízes históricas comprováveis A partir de 1850 data que costuma assinalar o começo da decadência da mão de obra escrava na lavoura cafeeira intensificamse no parlamento brasileiro Câmara e Senado as discussões sobre uma política imigratória capaz de compensar a presumida deficiência da mão de obra negra mas ao mesmo tempo de incrementar a modernização da civilização e dos costumes por meio de trabalhadores morigerados industriosos e moralizados Isso quer dizer indivíduos radicalmente opostos aos estereótipos de preguiça e de vadiagem atribuídos aos negros que no Brasil aspiravam à posse de terras e a meios de produção autônomos Já desde a primeira metade do século XIX eram notórias as discussões públicas e até mesmo experiências práticas sobre a imigração chinesa com resultados precários Nas entrelinhas onde a brancura se desenhava como requisito importante para a inclusão de estrangeiros numa suposta raça brasileira emergia a dicotomia da imigração desejável e indesejável A República no mesmo ano de sua proclamação proibiu a imigração de asiáticos e africanos O senador Nicolau Vergueiro tornouse pioneiro na importação de imigrantes europeus para as suas plantações com esses mesmos critérios racialistas Em fins do século XIX se intensificaram as tentativas estatais de atrair mão de obra anglogermânica criamse sociedades protetoras da imigração o que depois permitiria caracterizar a organização do Estado republicano como baseada no aumento da população branca no país Isso fez prosperar uma atmosfera social em que o progresso civilizatório seria aferido pela melhoria da coloração populacional um processo que tinha no horizonte graças ao evolucionismo filosófico e às doutrinas eugenistas o desaparecimento progressivo do negro Enunciamos então uma proposição básica A sociedade escravista foi extinta no Brasil pela Lei Áurea 1888 mas a forma social escravista permanece até os dias de hoje Supomos portanto 1 uma diferença entre o conceito de sociedade e o de forma social sustentando que 2 a forma ultrapassa a materialidade da sociedade escravista ao mesmo tempo em que mantém culturalmente a sua substância hegemônica que é a colonialidade A forma social escravista é de fato o modo como a sociedade pós abolicionista sonha com um além societário O sonho produz imagens do mundo Racismo é o espelhamento social do sonho elitista de uma sociedade com um povo uno e depurado da mancha da escravidão expressão de Ruy Barbosa assim como das exasperações identitárias sejam morfológicas ou culturais Essa forma faz parte no limite daquilo que o escritor Monteiro Lobato chamou de processo indireto de recomposição da exclusão do exescravo Ainda na primeira metade do século XX Lobato o escritor infantojuvenil logo um educador heterodoxo de maior sucesso em sua época para quem era difícil ser gente no concerto dos povos com negros africanos criando aqui problemas terríveis dizia em carta ao amigo Godofredo Rangel que a escrita é um processo indireto de fazer eugenia e no Brasil os processos indiretos work muito mais eficientemente Lobato era militante do movimento eugenista Processo indireto é para ele o racismo sem doutrina gritada da cordialidade patronal ou paternalista tanto em que seus textos ficcionais se pode encontrar um ambíguo afeto para com os negros e presente de modo oblíquo nos discursos eugenistas que transitaram de fins do século XIX até o terceiro milênio Essa particular compreensão da forma social escravistaracista parte da necessária distinção entre representação maneira de conceber o mundo ou a realidade das coisas e crença ou seja o fato de incorporar a realidade tal e qual portanto é um motor ou a energia das representações coletivas44 A forma institucional não se reduz à materialidade propriamente dita da instituição Assim o modo de realização da forma institucional ultrapassa os mecanismos de gestão de produção das normas conferindolhe certa plasticidade que decorre do que lhe acontece como signo da transformação de uma sociedade Ela aparece publicamente como estando em construção45 Essa forma toma o lugar de ideologias que já não mais vigoram para perpetuar determinados dispositivos de representação Da mesma maneira forma social distinguese de sociedade e pode dar continuidade a representações passadas O societário ou a dimensão dita oficial diz respeito às unidades estáveis da organização coletiva como os sistemas territoriais as indústrias as associações voluntárias as cooperativas etc Já o social propriamente dito referese aos laços de parentesco de amizade e de sociabilidade que se fazem e se desfazem sem a durabilidade do que está implicado no societário Uma forma social contorna a dimensão societária Este é o caminho que leva à compreensão de como uma sociedade politicamente democrática pode conviver com formas de vida protofascistas Assim a forma social pode ser historicamente assimétrica à modernidade das formas de produção vigentes desde que não existam condições culturais nem educacionais para a simetria Isso é possível por motivo da prevalência a partir de um determinado momento histórico da hegemonia controle ideológico ou cultural sobre a dominação monodirecional inerente ao fator exclusivamente econômico da relação escravista em que o escravo é apenas mercadoria peça viva ou coisa que fala De fato o campo da hegemonia comporta uma dupla via discursiva mesmo assimétrica em termos de liberdade de ação em que a fala subalterna é mais do que um eco do senhor de escravo pela possibilidade de negociar p ex o resgate da liberdade e de articular estratégias culturais irmandades liturgias ludismos Um primeiro passo metodológico nos conduz a confrontar a ideia de sociedade entendida como uma totalidade de relações de produção e de dominação dentro de um mesmo conjunto à ideia de cultura entendida como saberes e comportamentos distintivos aprendidos e transmitidos aos membros de um grupo humano Social e sociedade são noções aplicáveis a modos de organização tanto humanos como animais enquanto cultura que abarca formas de mediação como crenças artes ritos pensamentos e configura uma dimensão moral ou afetiva restringese à dimensão humana Um segundo passo leva à distinção entre vinculação originária em que nascimento e morte presidem à existência comum e relação secundária denotativa das conexões nas esferas da produção e da exploração mantidas pelos grupos entre si dentro de um mesmo conjunto ou para com outros conjuntos Nessa dimensão secundária a sociedade impõese como uma totalidade ou um sistema de relações
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Texto de pré-visualização
MUNIZ SODRÉ O FASCISMO DA COR UMA RADIOGRAFIA DO RACISMO NACIONAL EDITORA VOZES MUNIZ SODRÉ O FASCISMO DA COR UMA RADIOGRAFIA DO RACISMO NACIONAL EDITORA VOZES Petrópolis Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Sodré Muniz O fascismo da cor uma radiografia do racismo nacional Muniz Sodré Petrópolis RJ Vozes 2023 Inclui bibliografia ISBN 9786557138342 1 Racismo 2 Racismo Aspectos sociais 3 Racismo Brasil I Título 22124246 CDD3058 Índices para catálogo sistemático 1 Racismo Sociologia 3058 Cibele Maria Dias Bibliotecária CRB89427 2023 Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís 100 25689900 Petrópolis RJ wwwvozescombr Brasil Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora CONSELHO EDITORIAL Diretor Gilberto Gonçalves Garcia Editores Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki Welder Lancieri Marchini Conselheiros Elói Dionísio Piva Francisco Morás Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann Volney J Berkenbrock Secretário executivo Leonardo ART dos Santos Editoração Maria da Conceição B de Sousa Diagramação Raquel Nascimento Revisão gráfica Anna Carolina Guimarães Capa SGDesign Conversão para eBook SCALT Soluções Editoriais ISBN 9786557138342 Este livro foi composto pela Editora Vozes Ltda SUMÁRIO Prólogo Homo americanus 1 O nacional brasileiro 2 Da estrutura à forma 3 Contradição e ambiguidade 4 A passagem ao ato racista Posfácio Referências PRÓLOGO Homo americanus No início da terceira década do século XXI a questão racial irrompe no mundo como um tópico de primeiro plano e não mais como mera contradição secundária conforme diagnosticava uma histórica linha de pensamento segundo a qual a relação de classe principalmente aferida pela estrutura socioeconômica esgotaria as relações caracterizadas como raciais¹ Ou então sustentava que o efetivamente importante é a análise de uma totalidade concreta em seu desenvolvimento contraditório no qual o racismo figura como item problemático porém menor dentro da luta anticolonial e posto à espera que primeiro se equacionem os grandes trâmites geopolíticos de uma formação econômicosocial qualquer Até mesmo um ativista e pensador com grande relevância histórica como Frantz Fanon primeiro admitia que o racismo não passa de um elemento de um todo maior o da opressão sistematizada de um povo² para então introduzir a pergunta sobre como se comporta particularmente um povo que oprime Entretanto essa irrupção de agora é transnacional e a sua caracterização como superestrutural não basta para delimitar o alcance conceitual do racismo De um lado o fenômeno reflete um aspecto do turbocapitalismo financeiro que enfatiza a preocupação corporativa com a redefinição da ambiência social desde a preservação física do meio ambiente até as barreiras de cor e de gênero De outro um giro nos direcionamentos epistemológicos centrados nas coordenadas espaciais do Estadonação Politicamente o antirracismo aparece também como um sintoma da reaproximação epocal entre sociedade política e sociedade civil historicamente separadas ou então como reação indireta à degradação das instituições democráticas que começa a afetar a percepção histórica dos próprios fundamentos civilizados ou ocidentalistas de certas formações nacionais Mas é igualmente um ponto forte na massificação de novos valores feminismo ecologia liberdade de gênero autoexpressões minoritárias dentre os quais o antirracismo desde a segunda metade do século passado Na Europa ao mesmo tempo em que se generaliza o reconhecimento do racismo como um dos problemas centrais assistese entretanto ao fortalecimento da direita ultranacionalista e extremista com ênfase nas velhas obsessões antissemitas e antinegras concomitante à agonia das percepções universalistas e das dicotomias que moldaram o sistemamundo do passado Isso é ainda mais nítido nos Estados Unidos onde após a tumultuada transição do Governo Donald Trump para o de Joe Biden 2021 elites intelectuais e colunistas de imprensa referiamse pela primeira vez ao supremacismo branco como uma ameaça à democracia É que se tornou pública depois de uma confidencialidade universitária de várias décadas a Critical Race Theory CRT corrente de estudos empenhada desde os anos de 1970 em desmontar os mecanismos institucionais que ainda relegam os negros aos escalões inferiores da sociedade Isso ocorre no quadro de uma política identitária mais incisiva em termos intelectuais numa conjuntura histórica de alterações significativas na composição demográfica que tem deixado à mostra um crescimento extraordinário da porcentagem de cidadãos não brancos na população americana Não se trata apenas portanto de uma nova inflexão crítica de intelectuais e sim da irrupção no presente do movimento social antirracista com potência renovada No país que modelou o sonho da democracia liberal e tem levantado a bandeira de sua universalidade atualizase criticamente hoje a indagação de Samuel Johnson um dos paisfundadores founding fathers da nação em 1775 Como é possível que se ouçam de traficantes de negros os mais altos brados de liberdade Liberdade é palavrachave do universalismo liberal americano Esses brados que não incluíam escravos ressoariam nos acordos míticos da memória ou seja a memória como acordo entre passado e presente portanto como horizonte do futuro fontes de unidade e coesão interna que Thomas Jefferson redator da Declaração da Independência e terceiro presidente norteamericano citava como decisivos para a transformação das treze colônias emancipadas em estados unidos No movimento fundacional a nação resultava da aliança militar e federativa dos estados não de um pacto democrático da cidadania diversa Efetiva mesmo é a diversidade republicana dos três poderes Emanciparse da Inglaterra portanto não implicava emancipar os escravos importados desde 1619 embora essa ideia estivesse presente em algumas das consciências liberais ativas na movimentação da independência É possível encontrar algo semelhante na luta cubana contra o colonialismo espanhol em meados do século XIX quando o líder negro Antonio Maceo identificava independência com o fim do escravismo em oposição aos setores ligados à burguesia colonial que não relacionavam independência com abolição da escravatura Também no Brasil oitocentista se dizia que o país era escravo de Portugal e que a liberdade viria com a independência mas essa retórica repelía a ideia de libertação dos reais escravos Não há laivo explícito de escravismo nem de supremacismo na Constituição de 1787 essa dita original mas também não existe nenhuma garantia legal de civilidade diversa O sistema de governo por ela criado focouse apenas em uma república se puderem mantêla conforme as palavras de Benjamin Franklin outro paifundador À sombra de um constitucionalismo triunfante que colocava a esfera política num plano excels0 acima do social e do histórico fundaramse a nação e o racismo americanos Antecipavase o sonho de uma república segura e civilizadora de outras a qualquer custo desejo inequivocamente paranoico de um governo global conduzido por um Estado universal e homogêneo Olhado com uma espécie de continuidade do Sacro Império Romanogermânico esse desejo pode ser chamado de paneuropa um dos nomes imperiais possíveis para a forma civilizatória europeia que inclui os Estados Unidos ou América nome ideológico para a regeneração do velho mundo pelo novo Imperial e messiânico o discurso da americanização do mundo como destino enunciado pelo Presidente Theodore Roosevelt em 1898 é uma marca de continuidade do Império Romano com novo formato diferente dos impérios coloniais que atravessaram a modernidade ocidental Não à toa o território norteamericano fora também pensado por um de seus paisfundadores como uma cena A América foi designada pela Providência para ser o teatro onde o homem deve atingir a sua verdadeira estatura³ Já em pleno terceiro milênio os Estados Unidos apesar de todas suas graves crises econômicas e da perda progressiva da hegemonia simbólica sobre o mundo ocidental continuam mantendo o que já foi designado como um sistema imperial isto é uma organização que vai além do próprio Estado na direção de uma estrutura transnacional com um centro republicano dominante e uma periferia dependente Por isso desde o século XVIII noções como união ou unidade estritamente republicanas sobressaem no léxico dos temores das elites intelectuais e políticas americanas É que o mantenimento republicano corresponde a uma violência estrutural desde o início manifestada na chacina das populações indígenas e nas conquistas militares externas e internas em que se inclui o morticínio cerca de 780 mil cidadãos para a união dos estados conhecido como Guerra Civil Americana 18611865 A Guerra Civil é um evento fundacional e inesgotável no plano do imaginário coletivo de um país que alcançou a sua unidade ideal e alavancou a produção capitalista por meio da combinação perfeita entre a potência para destruir guerra e para construir trabalho A exaltação vitalista da técnica que aparece na Europa no início do século XX é a mesma da guerra Adequase esteticamente à modernidade industrial americana o espírito do Manifesto futurista de Marinetti 1909 Queremos glorificar a guerra a única higiene do mundo o militarismo o patriotismo o gesto destruidor dos anarquistas as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher Isso era prenúncio de um fascismo não limitado à Itália Nas entreguerras também ressoava na mentalidade conservadora alemã a apologia guerreira feita pelo famoso ensaísta Ernst Jünger Numa orgia furiosa o verdadeiro homem se recupera de sua continência Os instintos reprimidos durante muito tempo pela sociedade e por suas leis retomam seu caráter essencial de coisa santa e de razão suprema em A guerra nossa mãe Despercebida mas total a mobilização humana pela guerra é epidêmica em termos de trabalho tecnologia indústria negócios e vida social Na realidade há um laço de estrutura entre guerra e Estado moderno entidades consubstanciais na filosofia hegeliana mas isso se oculta aos olhos públicos na medida em que a violência pode ser sublimada ou transferida para a linguagem O próprio da América entretanto é deixar patente a impossibilidade de um Estado pacífico ainda que as suas guerras não sejam necessariamente ganhas como se depreende dos humilhantes fracassos militares em determinadas intervenções Vietnã Afeganistão Mas a guerra permanente é a dimensão paranoica de um poder que fascinado pelo próprio mito de origem faz da violência a sua regra combinada à dimensão perversa de um paradigma de uniformidade e igualdade assegurado economicamente pelo capital politicamente pela República e psicossocialmente por um desejo espacial de uniformidade inclusive caracteriológica implicada na medição científica do sangue por padrões de raça Só alcançando a essência de todo poder que é a negação do outro pela pulsão de morte também implícita nas grandes realizações tecnológicas o capital se perfaz como lei estrutural de organização do mundo Acrescentese a dimensão religiosa a força coesiva dos colonosfundadores está na crença inalterável em um Ser Supremo guerreiro o Deus bíblico do Antigo Testamento Não é uma divindade a ser pensada como um transcendente sagrado posto que a real transcendência se deslocou para o Dinheiro e para o Estado in Gold we trust realmente sagrada é a fé na possibilidade individual de enriquecer ou tornarse próspero mas sim como o magno senhor da guerra implacável para com os inimigos de crença Crença significa inclusive por etimologia kredh força vital atributo que sempre esteve presente na consolidação comunitária de tribos e sociedades mas sem qualquer relação de causalidade com um culto à guerra É uma força interna que rege como uma espécie de lei o espírito americano em analogia com o material presente ao lado do narrativo no Pentateuco os cinco primeiros livros da Bíblia Gênesis Êxodo Levítico Números e Deuteronômio onde se narra e se legisla a lei resulta da aliança da divindade com o povo eleito a vontade de Deus para Israel Foi precisamente da tradição puritana do Covenant a causa cívica como decorrência da obediência absoluta a Deus que se inspiraram os paisfundadores em fins do século XVIII Paradoxalmente apesar desse fundamento míticoreligioso o velho antissemitismo europeu foi acolhido pela matriz racial americana Do Pentateuco provém igualmente por duvidosa interpretação a crença racista de que os africanos descendem de Canaã ancestral amaldiçoado por Noé Gn 101518 É bíblica a regência social da América Profunda por uma forma de poder que se pode identificar ao lado do hard power economia tecnologia e guerra e do soft power propaganda e entretenimento como staying power ou seja a capacidade de fixação e resiliência do fundamentalismo religioso dos brancossaxõesprotestantes em que o Outro não encontra lugar estrutural É uma regência com alcance interno a discriminação antinegra e antiindígena e externo como se comprova por exemplo no extermínio de um milhão de filipinos o equivalente a 10 da população pelas tropas invasoras americanas no início do século XX a título declarado de limpeza étnica O fervor belicista é um traço irretorquível da construção de uma nação globalmente grandiosa pelo proclamado pendor republicanodemocrático assim como pela notável sublimação da libido pulsão vital guerreira realizada por seu soft power Sob todos os ângulos América equivale a power isto é poder como força letal ou dissuasiva Diz Susan Sontag Ninguém duvida da força dos Estados Unidos Mas a força não é tudo de que uma nação precisa O fato entretanto é que em 242 anos de democracia a América viveu apenas 16 sem conflito armado reflexo modelar do capital o país é movido por um permanente estado de violência interno e externo em que a segregação racial é um dos aspectos mais conspícuos A máquina tecnossocial criada pelo poder industrialmilitar é no limite uma economia de guerra existencialmente transcrita pela sólida hegemonia interna que constitui a cidadania americana No entrelaçamento fundacional de Estado capitalismo e guerra a socialização do indivíduo passa por sua identificação projetiva com uma pulsão de morte coletiva Por isso liberdade individual é popularmente concebida como posse de armas o ethos público como exibição de vontade de poder seja no plano civil que aspira à igualdade de todos diante de seu próprio desejo seja no militar que vive do planejamento lógico e tecnocientífico da força de dissuasão ou de contenção dos inimigos da república O equilíbrio republicano pautase por liberdade e igualdade Mas convém atentar para a evidência histórica de que a liberdade fundacional no pacto federativo americano referese primeiramente aos estados isto é são livres para moldar republicanamente o sistema democrático inclusive com dispositivos segregacionistas Quanto à igualdade é um conceito trabalhado primordialmente pela filosofia pela literatura francesa e pelos movimentos de esquerda ao redor do mundo igualdade como equidade política e judicial Vale refletir sobre ela a partir de uma passagem relevante do francês Badiou A igualdade é uma declaração certamente situada num dado regime de desigualdade mas que afirma efetuarse em um tempo de abolição desse regime Não é o programa da abolição é a afirmação de que essa abolição se efetua vêse então que o exercício da igualdade é sempre da ordem das consequências e nunca da ordem do que busca um fim Causalidade ou consequências e não finalidade Isto é essencial O que se pode ter e o que se trata de organizar são as consequências da declaração igualitária e não os meios da igualdade como fim4 Na verdade um século antes de Badiou já o pensador liberal e germanista brasileiro Tobias Barreto assinalava a incompatibilidade entre os dois célebres termos da Revolução Francesa a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelemse mutuamente não milita dúvida A liberdade é um direito que tende a traduzirse no fato um princípio de vida uma condição do progresso e desenvolvimento a igualdade porém não é um fato nem um direito nem um princípio nem uma condição é quando muito um postulado da razão ou antes um sentimento A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer eu sou a igualdade alguma coisa de que somente ele diz Quem me dera ser A liberdade entregue a si mesma à sua própria ação produz naturalmente a desigualdade da mesma forma que a igualdade tomada como princípio prático naturalmente produz a escravidão5 Tobias Barreto não está se referindo aos Estados Unidos mas a sua reflexão ajustase notavelmente à grande característica política desse país que é a de tomar a igualdade como princípio prático entronizado pela Constituição em que o primado da lei se confunde com o da liberdade Desse princípio prático decorreria para ele a escravidão mas também podese acrescentar a desigualdade estrutural como bem viu em meados do século XX o economista Gunnar Myrdal Prêmio Nobel em 1974 ao realizar um estudo sobre o negro americano Myrdal chamou de dilema teórico o problema de utilização de uma metodologia baseada na igualdade para a análise de um grupo humano valorado como inferior diante da escala axiológica superior atribuída aos brancos6 Na verdade como complementa Badiou a igualdade enquanto regime de existência coletiva num determinado tempo histórico a afirmação de que somos iguais depende de uma política de emancipação para se tornar real Ora uma política emancipatória capaz de abranger brancos e negros é até agora impossível de se concretizar nos Estados Unidos onde a segregação racial construiuse como uma ideologia nacional pósGuerra Civil e não como mera continuidade discriminatória do escravismo para amortecer o choque dos temores de classe social no sentido de que a emancipação dos negros com a demanda que ela trazia de igualdade de direitos civis e políticos estivesse vindo minar a visão anterior de igualdade e de identidade do mundo branco7 Como se infere embora o Norte tenha sido militarmente vitorioso no conflito armado o vencedor ideológico foi o Sul onde a cor branca era socialmente representada como nobre ou superior Assim em 1896 a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que segregar brancos e negros não contrariava a Constituição segregados porém iguais era uma proposição aceitável A igualdade republicana portanto pelo menos até 1950 é exclusivamente branca e estruturalmente bélica Em outros termos a república é o espelho do ser de um Estado nacional mas o seu vir a ser pertence a outra dinâmica que é aquela da livre movimentação democrática assegurada pela organização das consequências republicanas democracia e liberdades não se deduzem automaticamente de República Na falta de uma política emancipatória o jogo civil das afirmações desiguais de liberdade acaba deixando a descoberto que alguns cidadãos são mais livres e iguais do que outros inexiste democracia moderna se existem cidadãos de segunda classe Ou seja na guerra que trava eventualmente com a sua própria cidadania escudado na miragem de apenas uma declaração de igualdade o Estado tira a máscara de protetor das liberdades democráticas Historicamente as diretrizes republicanofederativas de igualdade acabaram predominando sobre a radicalidade democrática a exclusão de uma parte importante da cidadania negra uma falha imaginária na uniformidade étnica originária cimentou a coesão cívica ou hegemonia interna que é forte nos Estados Unidos uma nação de colonos brancos Essa exclusão que tivera marco inicial na independência reeditouse após a Guerra Civil quando a anunciada Reconstrução breve período de vigência da igualdade civil entre 1865 e 1867 foi primeiro solapada pela violência da White League uma coalizão terrorista responsável por massacres e sabotagens dos direitos civis de exescravos depois pela liberdade federativa e o acordo conciliatório com as velhas oligarquias sulistas formuladoras das leis de segregação racial O racismo é assim central na vida política e social da América como pilar de sustentação à imagem de um edifício cimentado pela consciência antinegra e consagração da etnia que se proclama original e que acredita numa civilização hereditária assegurada pelas leis de um Deus branco como no Pentateuco e pela história de conquistas armadas Como mecanismo básico de coesão da aliança fundadora o racismo supõe religiosamente uma vítima sacrificial escolhida fora do pacto originário É no limite a base do estado de guerra interno ou da construção metafísica de um eterno inimigo da uniformidade paranoica que será sempre o Outro particularmente o negro é como se a sociedade civil depois ter neutralizado os povos originários fosse organizada de modo a se defender dos descendentes de escravos Daí deriva uma razão de Estado etnocrática à sombra de estatuto ideal de igualdade eternamente à espera de reconstrução políticosocialemancipatória A democracia resultante apregoada como modelo universal é internamente perversa A leucocracia poder do privilégio branco que é uma etnocracia exercida por segregação de direito e de fato vigorou em aberto até a metade do século passado sob a égide de um lema absurdo separate but equal separados mas iguais embora constitucionalmente amparado São patentes os três sistemas de inscrição do leucon O saber que descreve textos eruditos e de propaganda o poder que prescreve leis decretos medidas as massas que transcrevem senso comum rumores8 Na prática algo como se o sujeito de pele clara dissesse esse outro está entre nós mas não é um de nós e o impasse se resolveria por separatismo a partir de uma linha de diferença sanguínea ou subdermica estabelecida pelo sistema chamado Jim Crow que vigorou até 1963 o outro não é um de nós mas é alguma coisa negro hispano etc desde que mantida a distância física e hierárquica Num país de imigração ativa a coesão social não se pauta por um nós ou um comum nacional e sim por um pluralismo de comunidades regido pelos princípios e valores da etnia fundadora que é anglosaxônica branca e cristã assim como pela política paroquial dos estados O que se poderia chamar de comum é o paradigma existencial da concorrência capitalista socius germinal da solidão de massa e matriz psicossocial de uma consciência binária ganhadoresperdedores onde cada matança em série de negros ou brancos definese como uma afirmação perversa da violência constitutiva de uma moderna sociedade republicana espiritualmente fundada em guerra Há exemplos flagrantes de orquestração da violência antinegra em momentos diversos da história americana mas se revelou marcante o período entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX Assim é que em 1898 Wilmington Carolina do Norte foi palco de um golpe supremacista que destituiu a administração negra da cidade A prosperidade econômica e social da comunidade afrodescendente incomodava de tal modo a população branca que para esta se tornou imperativo articular a neutralização política e administrativa do controle majoritário obtido por negros Mas um massacre de população negra como o ocorrido em Tulsa Oklahoma 31051921 pode ser tomado como paradigma da guerra racial interna devido a um incidente equívoco parte da população branca da cidade fez terra arrasada de um bairro próspero Greenwood conhecido como Wall Street negra com o auxílio de seis aviões que despejavam bombas incendiárias destruindo 34 quarteirões e matando mais de uma centena de pessoas inclusive mulheres e crianças Reinterpretandose os termos da apologia guerreira de Ernst Jünger os instintos reprimidos retomaram por um dia o seu caráter essencial O chamado massacre de Tulsa permanece na história americana como um tenebroso e inexplicado episódio de síntese do racismo antinegro mas também como modelagem de um virtual genocídio interno que historicamente já tinha sido perpetrado contra os povos ameríndios o extermínio de 50 milhões de búfalos nas pradarias do Oeste romantizado pelo soft power nos westerns ao estilo de Buffalo Bill era apenas parte da estratégia militar que orientou as Guerras Indígenas 16091924 ou seja aniquilar pela fome a insurgência originária Ao mito expansionista do faroeste corresponde hoje a persistente ideologia da expansão brancoamericana sobre o resto do mundo Maior potência militar e econômica do planeta a América pode proclamarse como líder ocidental do primado da lei da democracia da propriedade privada do livrecomércio do pluralismo de opiniões e de todas as liberdades reputadas como naturais mas ao mesmo tempo como senhor essencial da guerra que é um fenômeno germinal em graus de intensidade diferentes em toda e qualquer organização estatal moderna Considerandose a raridade da realização democrática no mundo a democracia americana passa a como modelar a despeito de sua hipocrisia uma vez que as instituições republicanas operam por meio de complexas ritualizações jurídicas e eleitorais uma maquiagem das desigualdades cívicas de fundo racial Aliás hipócrita ou mentirosa uma vez que a liberdade apregoada está fundada num falseamento básico metafísico todos são igual e institucionalmente livres destinado a encobrir a verdade da guerra como sustentáculo perene da república A dinâmica institucional ganha assim maior peso republicano logo a estabilidade de uma estrutura de pax romana assegurada pela União do que democrático no sentido amplo e convulsivo da palavra que implicaria instabilidade das posições de mando por circulação das elites étnicas A chamada democracia jeffersoniana a partir do nome de Thomas Jefferson terceiro presidente americano que preconizava oposição radical à aristocracia e à primazia do mercado sempre foi uma ideologia republicana Partido Democrata Republicano era o nome do partido de Jefferson Na América todo expresidente exceto Donald Trump o único dirigente americano acusado de sedição antidemocrática continua a receber informações sigilosas graças a uma tradição de confiança republicana Entretanto democracia ao contrário de república não se sustenta na unidade da guerra mas num pacto implícito de convivência civil É fenômeno agonístico sim porém no sentido de luta por polêmicas É abertura de possibilidades coletivas Não apenas regime de governo orientado pela igualdade formal dos cidadãos perante leis e sim forma de vida guiada por um princípio aglutinador das diferenças sociais que desde o século XVIII começou a ser chamado de povo Não é portanto apenas reconhecimento do outro como um igual e sim como um diferente aceitável em sua imprevisibilidade individual e grupal Democracia implica sistema aberto e em princípio mais frágil por necessariamente comportar pluralismo e conflitualidade logo a indeterminação de posições Mas o formalismo estável da república americana assentado igualmente na força planetária da economia comporta as muitas possibilidades liberaisdemocráticas de que indivíduos pertencentes a minorias tenham acesso a parcelas de ascensão social e de poder Daí a virtual formação de setores abastados de classe média negra e uma certa expansão da representatividade societária abrigadas numa ideologia das oportunidades que celebra o excepcionalismo americano seja o sonho do êxito individualista liberal seja a difusão da imagem de uma utopia democrática realizada Embora os partidos políticos jamais tenham feito esforços no sentido da legitimação de negros que no entanto obtiveram o direito de voto desde 1871 tornouse possível eleger um presidente negro como foi o caso de Barack Obama ou uma mulher negra Kamala Harris como vicepresidente da república Ou seja o excepcionalismo comporta uma representatividade elástica Isso repercute como adequada tonalidade afetiva no estilo de governo e como novas inflexões possíveis no interior da movimentação democrática e antirracista As tonalidades do poder identificadas como duras alternamse com as brandas permitindo a avaliação civil do espírito do tempo Por isso é possível formular avaliações não propriamente políticoideológicas sobre os grandes partidos a exemplo do Partido Republicano apontado como um caso inequívoco de decadência moral apoiado no eleitorado rural ele foi passando aos poucos do centrodireita para a extremadireita e abandonando qualquer perspectiva éticopolítica A alternância do poder federal pelo voto historicamente bipartidarista um sistema convoluto regido por um colégio eleitoral que não representa de fato o voto popular é também capaz de alternar a orientação da economia monetarismo ou keynesianismo como demonstrou Joe Biden logo após chegar ao poder aspirando a fazer história liberal com uma espécie de Doutrina Biden incipiente que anunciaria o fim da ortodoxia econômica e a retomada da política de bemestar social Mas qualquer vontade de restauração do New Deal Franklin D Roosevelt ou da Great Society Lyndon B Johnson pontos altos do liberalismo americano passa ao largo da cruel estrutura hierárquica das castas raciais conforme ressoa em um ditado deles A única coisa que aprendemos com uma nova eleição é que nada aprendemos com a última Senão talvez o conhecimento de que o voto muda apenas o estilo de adaptação do poder à ficção de uma sociedade sem classes outro nome para uma sociedade em que a escolha políticopartidária é no limite ideologicamente irrelevante Uma maneira menos sociológicojornalística de se debruçar sobre essa mesma questão aparece em Baudrillard crítico notável da cultura pósmoderna mas fascinado pelos Estados Unidos chamado simplesmente de América outra maneira de dizer o poder norteamericano que considerava um país extraordinário por fazer coexistir o colosso tecnológico e industrial com os desertos como formas sublimes de afastamento de toda socialidade e sentimentalidade ou como paisagens sem disfarces do inumano daquilo que ele vê como indiferença crua a toda cultura Deste modo América é o seu verdadeiro campo de pesquisa ou de observação de uma hegemonia mundial à base da simulação radical dos valores universais da paródia dos sistemas de representação e da própria onipotência militar Isso significa poder não como uma realidade crível mas como uma configuração virtual que absorve e metaboliza em seu benefício qualquer elemento Pode ser feito de inúmeras partículas inteligentes sem mudar nada de sua estrutura opaca é como um corpo que muda de células sem deixar de ser o mesmo9 Essa configuração seria o segredo da América exposto em seus paradoxos Assim logo cada molécula da nação americana como por transfusão de sangue terá vindo de outra parte A América terá se tornado negra índia hispânica portoriquenha sem deixar de ser a América Ela será tanto mais miticamente do que autenticamente americana E tanto mais fundamentalista quanto não tiver mais fundamento se é que já teve algum posto que até mesmo os paisfundadores vieram de outra parte E tanto mais integrista quanto se tiver tornado nos fatos multirracial e multicultural E tanto mais imperialista quanto for dirigida pelos descendentes de escravos A especulação é contemporânea de Ronald Reagan que segundo a crônica jornalística acreditava piamente na realidade da América dos filmes de John Wayne e do ingênuo jeito de viver americano ilustrado em revistas por Norman Rockwell É portanto anterior aos governos de Clinton Bush Obama Trump e Biden mas se mantém válida no que diz respeito à inalterabilidade republicana do corpo nacional americano apesar da alternância cíclica do binarismo partidário em que o voto popular e democrático apenas reforça miticamente a simulação de mudanças Aliás a crítica é ferinamente profética quanto ao imperialismo conduzido por descendentes de escravos o governo do democrata negro Barack Obama formalmente mais civil ou ocidentalizado do que o do antecessor George W Bush que deixou em ruínas o Iraque foi tão guerreiro ou exterminador de lideranças revoltosas no Oriente Médio quanto qualquer presidente republicano de linha dura O comando rotineiro da execução de adversários políticos por drones foi característico do governo Obama por ele próprio reconhecido como um incontornável fato presidencial tanto que se intensificou com Trump e depois com Biden Esse é o fato permanente da Real Politik americana uma espécie de paz belicista conjugação do paroxismo guerreiro escudado nas oligarquia do complexo militarindustrial do complexo do gás petróleo e mineração e do complexo bancáriofinanceiro em que se faz corriqueiro o assassinato de inimigos políticos em qualquer parte do mundo assim como a intervenção armada a depender das circunstâncias Manter o mundo em guerra é um fato conexo à dependência dos fornecimentos americanos A menos de um mês já empossado na presidência da república 2021 Joe Biden ordenou um bombardeio americano na Síria De um modo mais largo parece haver um pacto estrutural de guerra entre as classes dirigentes americanas com definições não apenas industriais e externas mas também ideológicas no sentido de que funciona como um macrooperador ontológico da distinção entre seres humanos imperiais e seres vassalos Internamente o suposto genótipo negro é um marcador de vassalagem Nesse pacto estrutural republicanos e democratas são praticamente a mesma coisa O peso da diferença recai sobre a tonalidade afetiva isto é sobre o estilo de liderança ou de governo no caso dos democratas hoje mais permeável às variáveis democráticas sem no entanto esquecer que os abolicionistas do século XIX eram republicanos A diferença não é propriamente ideológica mas de variações no estilo de condução da guerra externa e de sensibilidade interna a questões como saúde justiça e educação reveladoras de desigualdades sociais Não há como associar o barbarismo partidário de Donald Trump à civilidade democrata isso que a esfera pública americana designa como comity de líderes como Barack Obama e Joe Biden Tudo devidamente computado a negritude física de Obama como ele próprio admitiu ao fim de seu mandato em nada contribuiu para alterar a composição das castas raciais em seu país Pelo contrário registraramse fortes indicações de exacerbação do preconceito A persistência dessa dominação supremacista escapa às análises pósmodernistas de natureza culturalista ou filosófica atentas à retórica autopublicitária do igualitarismo americano mas de certo modo indiferentes às suas assimetrias objetivas particularmente as raciais A palavra casta antitética à imagem de uma formação social caracterizada por explícitas diferenças de classe se justifica como ideia de uma categoria racial estanque ou de uma hierarquia escravista quase religiosa profundamente arraigada nas formas de vida e nas consciências corroborando a suspeita hoje criticamente levantada de que o racismo antinegro esteja no próprio DNA da América Embora seja um fenômeno com maior força explícita no Sul de memória coletiva escravista a sua incidência é nacional como um tipo de afecção comum à cidadania hegemônica que é caucasiana Na sintomática invasão do Capitólio sede do Congresso Americano por extremistas de direita em janeiro de 2021 concretamente um acontecimento mais semiótico do que militar strictosensu foram conspícuos a bandeira dos Confederados e ao lado um nó de carrasco semelhante ao usado para enforcar negros no passado Tratase da semiose característica do período em que a proliferação de estátuas de generais confederados em praças de cidades do Sul coincidia com os linchamentos de milhares de afrodescendentes por acusações de estupro e outros pretextos A expressão niggerknocking bater em negros designa uma tradição sulista Melhor do que qualquer tratado uma canção famosa na voz de Billie Holiday Strange Fruit 1936 de Abel Meerepol eleita pela revista Time como a canção do século faz a síntese trágica do trauma histórico de linchamentos Southern trees bear a strange fruit árvores do Sul carregam um fruto estranho Blood on the leaves and blood at the root sangue nas folhas e sangue na raiz Black bodies swinging in the southern breeze corpos negros balançando na brisa do Sul Strange fruit hanging from poplar trees estranho fruto dependurado em álamos Pastoral scene of the gallant South cena pastoral do Sul galante The bulging eyes and the twisted mouth os olhos fora das órbitas e a boca contorcida Scent of magnolias sweet and fresh perfume de magnólias doce e fresco Then the sudden smell of burning flesh então o fedor súbito de carne humana queimada Here is the fruit for the crows to pluck eis o fruto para corvos arrancarem For the rain to gather for the wind to suck para a chuva colher para o vento tragar For the sun to rot for the trees do drop para o sol fazer apodrecer para as árvores deixarem cair Here is a strange and bitter crop eis uma safra estranha e amarga É sabido que o mero olhar ou mesmo um suposto olhar de um homem negro para uma mulher branca na rua poderia desencadear um linchamento Foram vários os casos dessa natureza dentre os 2812 linchamentos de homens negros computados entre os anos de 1885 e 1915 São dados típicos do Sul e certamente insólitos no Norte dos Estados Unidos Assim é que no ano de 2020 em Nova York mais precisamente no Central Park uma jovem que passeava com seu cachorro denunciou à polícia um homem negro que a estaria filmando com uma câmera uma espécie de tradução do clichê sulista um negro olha uma branca A infâmia não resistiu à prova tecnológica a moça não era o objeto da filmagem por falsa denúncia à polícia acabou perdendo o emprego e sendo submetida a um programa de reeducação A distância entre o Sul dos enforcamentos e o Norte da correção judicial não é apenas espaçotemporal No que se refere à violenta passagem ao ato em episódios racistas o Norte sempre foi mais civilrepublicano do que o Sul onde a violência policial contra negros apoiase até hoje em conluios implícitos com o sistema judicial Mas a generalidade das situações tem deixado evidente que a existência de burguesias negras no passado escravocrata ou no presente liberal e antirracista não altera substancialmente a barreira existencial da cor Se individualmente a guerra é o veneno do ódio na veia Martin Luther King o racismo é coletivamente a presença da barbárie guerreira no sangue civilizatório O episódio da jovem branca no Central Park é assim o índice eloquente da persistência do velho espírito sulista em qualquer parte do território americano isto é a inevitabilidade do racismo A crença na supremacia da cor é tão absoluta quanto a crença no exclusivismo do Antigo Testamento e no Oeste branco como Destino O fervor místico da brancura está no cimento armado do staying power da etnia fundadora ou quakers pretensos restauradores da fé cristã derivados do protestantismo britânico do século XVII Entre esse espírito e o da guerra não há distância significativa Um quaker pacifista é um homem morto diz um personagem de ficção americana É dramática em vários planos a profundidade da afecção racista na sociedade americana A cor da pele é o índice imediato para o ato discriminatório mas não se trata apenas de fenótipo e sim de genótipo portanto de raça apesar da prova biológica em contrário Em termos morfológicos o racismo americano é epidérmico e subdérmico Por um lado visa a cor da pele a tal ponto que tempos atrás as afrodescendentes experimentavam cosméticos de clareamento da pele para evitar ataques nas ruas ou melhorar as perspectivas de emprego Por outro lado é uma fantasia mítica e ideológica em torno do sangue daí a one drop rule em que uma única gota de sangue negro caracterizaria a diferença racial Mítica porque deita raízes bíblicas na maldição de Noé não há talvez nada mais primitivame nte cristão do que o racismo cujo molde moderno é aliás o antissemitismo cristão Mas também uma fantasia ideológica porque compõe a estrutura de dominação de classe social Por isso a condenação de um policial branco em 2021 pelo assassinato bárbaro de um cidadão negro George Floyd não foi um mero fato de correção judicial mas apenas um índice positivo na continuidade da longa luta coletiva por equidade existencial Talvez seja possível pautar o movimento cívico pelo advento de uma Era pósGeorge Floyd Sem grandes tintas otimistas porém no mesmo dia da condenação outro negro foi assassinado por policiais Ou então no mesmo mês mais de uma dezena de deputados republicanos votaram contra uma lei destinada a instituir a data de 19 de junho como feriado celebratório da abolição da escravatura O racismo continua a ser a sinalização constante para a evidência de que o excepconalismo um padrão único de excelência e normalidade existenciais apregoado como virtude básica da América é tãosó uma questão de crença puritana ao modo da fervent prayer prece fervorosa conclamada no hino God Bless America 1 Ao longo da década de 1970 podiase ouvir o argumento de que o racismo brasileiro era invenção de sociólogo americano Seria provavelmente uma reação ao fato de que logo depois da Segunda Guerra uma missão sociológica da Unesco pusera em dúvida a suposição panglossiana de que o Brasil fosse um exemplo de harmonia racial para o mundo Por outro lado nunca esteve ausente da maciça divulgação cultural norteamericana a tese de que o racismo nos Estados Unidos seria uma questão secundária diante da amplitude institucional de seus valores democráticos 2 FRANTZ F Racismo e cultura Por uma revolução africana Textos políticos Zahar 2021 p 71 3 ADAMS J Diary and Autobiography 4 BADIOU A Laventure de la philosophie française Depuis les années 1960 La Fabrique 2012 p 255 5 MENEZES TB Um discurso em mangas de camisa Jornal do Recife 1877 Livraria São José 1970 6 Cf GUNNAR M An american dilemma the negro problem and modern democracy Harper Brothers 1944 7 PIERRE R La société des égaux Seuil 2011 p 214215 8 KORINMAN M RONAI M Le modèle blanc In CHATELET F Histoire des Idéologies Savoir et pouvoir du XVIIIe au XXe siècle Hachette 1978 p 260 9 BAUDRILLARD J Carnaval et cannibale ou le jeu de lantagonisme mondial Éd de lHerne 2004 p 276 I O NACIONAL BRASILEIRO Muito diferente do americano é o caso do Brasil marcado por baixa cultura republicana ou seja por mediações sociais mais familiais relações de parentesco compadrio amizade e cooptação grupal do que legais A transição histórica foi proclamada por militares tributários das forças terrestres portuguesas por sua vez dependentes da potência armada inglesa tornados republicanos de curta data Na verdade uma espécie de vanguarda ao atraso ou seja a guarda palaciana do Império convertida em guarda constitucional os mesmos que antes coonestavam a tortura dos escravos e que quase exterminaram a população paraguaia em nome do imperador O Império deu lugar a uma República de Fazendeiros País territorialmente segmentado e controlado por oligarquias latifundiárias não houve aqui um pacto fundacional dos estados e sim uma transformação multissecular da empresa colonial das origens realizada por latifúndio monocultor e regime escravista no lugar de Estado em território nacional Estas são linhas gerais da tese de Caio Prado Jr em Formação do Brasil contemporâneo 1942 uma síntese historiográfica razoavelmente consolidada na literatura dos intérpretes do Brasil Rejeitando as hipóteses marxistas de feudalismo ou semifeudalismo na formação econômicosocial brasileira Caio Prado identifica traços peculiares no desenvolvimento do país em que se impõe a exploração rural de tipo colonial voltada para o mercado externo conduzida pela família patriarcal escorada em relações escravistas de trabalho à sombra da Igreja Católica e do Império10 É corrente o dito de que o Império deu ao país o Estadonação povo não Originalmente entretanto nada de Estado nem de nação nem de república e sim a empresa Brasil que foi sempre um negócio muito lucrativo primeiro séculos XVI e XVII devido à exportação do açúcar e depois graças ao diamante e ao ouro A empresa não foi exclusivamente lusa já que o Nordeste e seu açúcar foram explorados até meados do século XVII pelo capital holandês da Companhia das Índias Ocidentais Mas a palavra brazileiro com este sufixo designativo de atividade profissional designava originalmente o português que vinha fazer negócio ou enriquecer no Brasil à custa da riqueza da terra e da mão de obra escravizada Essa modalidade de constelação territorialnacional é verificável em vários espaços coloniais do passado mas pode ser comparada a outras no presente histórico a exemplo de países europeus administrados como se fossem empresas ou enclaves de negócios bancos principalmente por oligarquias financeiras em conluio com o Estado Por trás disso tudo uma oligarquia armada vocacionada para a militarização da sociedade e para a tutela da vida republicana Mas o que era empresa Brasil para os agentes estrangeiros que comercializavam os produtos brasileiros não era internamente nenhuma empresa e sim um domínio econômico e oligárquico chamado engenho ou casagrande versões nordestinas da plantation americana Não reinava aí o espírito burguês que caracterizaria a cidade e sim o ânimo fidalgo ou senhorial de quem detinha poder de vida e de morte sobre a mão de obra escrava atrelada à produção açucareira A palavra empresa poderia ser mais tarde depois da Independência aplicada à fazenda cafeeira do oeste paulista quando o cafeicultor se liga de forma dependente ao poder financeiro da burguesia urbana Nessa modernização com inequívocas tintas liberais apesar das interpretações sobre ideias fora do lugar o passado escravista continuaria ideologicamente mais forte do que o ambíguo presente Assim a transição da economia agropecuária com população rural ao capitalismo industrial com população urbana deixou parcialmente intacta a condição servil do negro que era antes verdadeira moeda de troca numa sociedade assim descrita Do senhor da grande fazenda numerosa escravaria podese chegar até a viúva que tem um único escravo o qual aluga para viver Todos os que podem têm escravos da Igreja ao liberto11 Em Memórias póstumas de Brás Cubas Machado de Assis eterniza como personagem conceitual a imagem do escravo Prudêncio que uma vez libertado organiza a sua poupança por meio da compra de um escravo Integra a história nacional como um vício de fundação a transmissão do poder e da riqueza concentrada entre famílias compadres e aliados Primeiramente a casagrande com senzala e tudo é o Estado E isso se depreende até mesmo de análises muito conservadoras como a de Oliveira Vianna que observava Os senhores de engenho não constituíam um onipotente legislativo tinham de desdobrarse em executivo Com exceção da Bahia a Independência transcorreu sem derramamento de sangue deixando inalterada a composição colonial das elites dirigentes e o espírito escravista Advinda a República o Estado configura uma casagrande sem senzala visível Isso é o que se tem chamado de patrimonialismo exaustivamente analisado por Raymundo Faoro O regime republicano foi instaurado para assegurar a continuidade do ciclo patrimonialista de apropriação de riquezas e poder sob as novas condições do capitalismo industrial Até começar a ser modernizado por influência dos militares franceses a partir da década de 1920 o poder armado permanecia como uma espécie de necrorreserva de garantia do ethos escravista do passado Assim proclamada por golpe como uma maquiagem de coisas velhas a República abriu caminho para uma federação supostamente nova que apenas consolidava os direitos das oligarquias estaduais Conjugando pátria a patrimônio no tempo do pretérito portanto acomodando o aparelho de Estado à oligarquia das famílias a República já nasceu Velha Enquanto a Abolição tinha sido uma etapa prevista no processo capitalista de desmontagem da estrutura colonial e ingresso no circuito neocolonialista britânico a República embora também muito debatida foi um fato de última hora de cima para baixo A tal ponto que a população do Rio de Janeiro confundiu a proclamação com desfile militar e os negros temeram que pudesse se tratar da restauração do escravismo No Maranhão chegou a haver massacre de negros favoráveis à continuidade da monarquia Não era um temor absurdo pois havia precedentes históricos Em 1802 Napoleão Bonaparte restaurou nas colônias francesas a escravidão que tinha sido abolida em 1794 em 1856 o presidente da Nicarágua William Walker um aventureiro e pirata americano que tinha tomado o poder simplesmente revogou a abolição da escravatura datada de 1824 Aqui não se restaurou evidentemente essa forma de produção mas se preservou um modelo duplo de dominação políticosocial que combina o autoritarismo da custódia militar com o patrimonialismo ou sistema de poder baseado em relações de família e compadrio Sem qualquer projeto político republicano igualitário a Proclamação foi o passo formal para a apropriação do Estado pelos donos da terra ou seja para a certeza de continuidade do controle oligárquico das organizações estatais e das instituições da sociedade civil O primeiro Congresso Constituinte Republicano 18901891 acolhia retoricamente a ideia de que a igualdade cidadã deveria prevalecer sobre os privilégios sociais porém isso era uma vez mais na história conversa liberal para inglês ouvir Aos negros já tinham sido negadas desde a Lei das Terras 1853 as possibilidades de acesso à lavoura autônoma mas o fenômeno estendeuse de outras formas até os imigrantes brancos convertidos em assalariados posseiros ou trabalhadores eventuais uma vez que não interessava aos fazendeiros nem mesmo aos governantes a generalização da pequena propriedade O poder senhorial continuou a ser exercido como uma herança de formas tradicionais de mando e privilégio Disso fenômeno marcante é a figura do coronel nordestino um misto de autoritarismo com senhorialidade ou mandonismo que pode ser lido como um traço psicossocial da fusão imaginária da força armada com o poder fundiário portanto da permanência de um aspecto da forma escravista A senhorialidade é a expressão externa da desigualdade racial e social assegurada pela forma escravista É uma combinação que lastreia a peculiaridade da dominação racial colando patriarcado a capitalismo Na baixa cultura republicana consequente não há nenhum caminho igualitário das possibilidades de acesso às vias de mobilidade social A solução de compromisso brasileira transigente uma vez que o separatismo não entrou no ajuste civilizatório proclama a igualdade social do afrodescendente mas sem derrubar as barreiras à ascensão social nem reconhecer o negro como singular como um cidadão dotado de fala própria A cor branca é conotada como uma prerrogativa E isso se mede pelo desigualitarismo isto é pelo poder de recusa da medida igualitária da cidadania Real ou virtualmente o cidadão pleno é um parente ou um compadre no interior de um círculo de reconhecimento social Em termos muito sumários podese dizer que até a Abolição a sociedade brasileira era composta pelos protagonistas do descobrimento portugueses africanos e indígenas principalmente além de outras eventuais nacionalidades enquanto após o fim da escravatura se poderia chamála de sociedade do encobrimento no sentido de uma formação social orientada para o apagamento do que houve antes Na sociedade escravista o racismo era uma tecnologia de poder declarada ou visível cujo arcabouço consistia em um tríptico de estigmatizaçãodiscriminaçãosegregação estruturalmente ou sistemicamente inscrito em leis e fatos normativos Ou seja não era um fenômeno ideologicamente dependente apenas de doutrinas e discursos uma vez que estava naturalizado pelo arcabouço colonial A sociedade pósabolicionista empreende a transição para a modernidade requerida pelo capitalismo industrial um período que vai da Proclamação da República até a meia década posterior à Segunda Grande Guerra mas sem abolir cultural ou simbolicamente esse arcabouço que foi sim uma estrutura colonial A racialização pósabolicionista era uma estratégia endocolonial de construção de fronteiras sociais internas ideologicamente respaldada por saberes pseudocientíficos sobre a inferioridade antropológica do negro assim como por interesses econômicos no sentido de atribuir menor valor salarial à sua força de trabalho como homem livre Podese vislumbrar correspondências entre esses propósitos e os do fascismo emergente na Europa O racismo passa a funcionar como estratégia de hierarquização social dentro de uma cadeia de continuidade que se pauta por novas regras No entanto aquela mesmo lógica explicativa da sociedade escravista é teoricamente deslocada para o racismo contemporâneo como o faz Almeida O racismo é decorrência da própria estrutura social ou seja do modo normal como se constituem as relações políticas econômicas jurídicas e até familiares não sendo patologia social nem um desarranjo institucional12 Daí para ele derivamse três concepções ou modalidades individual racismo e subjetividade institucional racismo e Estado e estrutural racismo e economia De fato na tradição do pensamento estrutura ou sistema designa solidariedade dos elementos de um conjunto assim como derivação funcional de cada um deles por sua vez articulados a uma totalidade que no caso das relações humanas pode ser designada como organização Estado e economia articulamse por deliberação racional para organizar a dimensão extrínseca do poder ou seja o mandar fazer alguma coisa Aquilo a que normalmente damos o nome de estrutura social ou sistema social é a organização de relações econômicas políticas e intersubjetivas em termos societários portanto uma mediação simbólica estável com princípios coerentes as posições de deveres e direitos ocupadas pelos indivíduos no interior da sociedade interrelacionamse de forma cristalizada na legislação e nas convenções políticas O apartheid sulafricano uma transfiguração jurídicopolítica do espírito multissecular dos huguenotes holandeses pelos bôers foi estrutural ou sistêmica assim como a segregação racial americana herdada dos colonosfundadores No caso brasileiro é forçoso ponderar que um efeito estrutural não é exatamente estrutura mas elemento de uma forma que eventualmente pode revelarse estruturante Isso fica mais nítido quando se olha para a liturgia afrobrasileira o candomblé como uma resultante da forma cultural africana nos termos de Oliveira O conceito de forma cultural vai além do conceito de estrutura pois ela não é apenas um conjunto de elementos que estruturam um sistema ela é a possibilidade de existência do sistema Não é com certeza um conceito apriorístico ou metafísico É mais a expressão conceitual de uma experiência coletiva que soube sobreviver na história de seus cismas e crises atualizando seus elementos criando suas categorias e inovando em suas expressões13 No interior da forma operam processos de subjetivação que são modos regulatórios de natureza institucional e não necessariamente deliberados da formação de um comum social É essa ideia de um comum na forma que preside à concepção de Darcy Ribeiro sobre o povo brasileiro por ele visto como uma etnia nacional Diz Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas funções ecológicoregionais bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes os brasileiros se sabem se sentem e se comportam como uma só gente pertencente a uma mesma etnia participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciam os habitantes de uma região os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas14 Ainda que admitindo importantes disparidades e antagonismos Darcy parte da certeza de uma uniformidade cultural supostamente responsável por um Estado uniétnico Nesta perspectiva os povos indígenas constituem uma multiplicidade de microetnias sem incidência sobre o todo enquanto os negros seriam assimilados à etnia nacional uma vez que não teriam contribuído para a protocélula original da cultura brasileira por terem sido agentes culturais mais passivos do que ativos Como bem se vê a perspectiva de Darcy Ribeiro apesar de seu reconhecido progressismo político não projeta nenhuma luz sobre a questão persistente do racismo no Brasil Contra esse tipo de pano de fundo a explanacao de Almeida é oportuna por levar a evitar que se desloque o problema da discriminacao para o casuísmo Tem o mérito teórico de tornar didática a compreensão do racismo deixando claro que não se trata de patologia nem desarranjo institucional mas de um efeito de totalidade os comportamentos individuais e as instituições são racistas porque a sociedade é racista Assim o fenômeno pode ser definido como manifestação normal da sociedade na medida em que é lógico uma lógica de reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam o socius da qual decorre o sistema de ideias que ofereceria uma explicação racional para a desigualdade social Como já se pode prever essa racionalidade conflui para a luta de classes como chave geral explicativa Nesta costumam reencontrarse tanto as posições analíticas da esquerda política quanto aquelas da direita largamente disseminadas em livros e artigos jornalísticos que investem contra as marcações identitárias dos conflitos em detrimento das divisões de classe social Mas embasado em sociólogos de grande alcance como Florestan Fernandes Almeida está ciente de que a relação de classe não esgota a relação social Ou seja não se pode compreender o racismo apenas como derivação automática dos sistemas econômicos e políticos Tratase de algo mais profundo que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade Esse algo mais profundo demanda para nós outro tipo de explicação mais próxima à perspectiva de Jessé Souza que parte da ideia de que classe econômica é principalmente uma construção sociocultural e se debruça sobre a experiência da escravidão como semente de toda a sociabilidade brasileira15 De fato o racismo de pósAbolição é uma forma sistemática recorrente mas sem a legitimidade outorgada pela unidade de um sistema ou estrutura de discriminação baseada no imaginário da raça Afigurase como algo mais próximo à ideia de um processo indicativo de uma dinâmica interativa de elementos discriminatórios ao modo de uma fusão ou do que designamos como forma social escravista As práticas desse processo contribuem para a reprodução da lógica de subalternidade dos descendentes de africanos certamente derivada de uma ordem específica de classes sociais porém não mais constituem uma estrutura econômica política e jurídica a exemplo de uma sociedade plena e formalmente escravista Há sem dúvida uma dimensão estruturante do fenômeno no tocante ao sentido da forma que permeia as instituições e constitui subjetividades junto a amplas parcelas da sociedade nacional É a dimensão predominante na esfera privada com sistemáticos reflexos coletivos Na esfera pública existe incidência sistemática das práticas discriminatórias embora não como uma estrutura formalizada o que constitui um marcador diferencial do racismo brasileiro Não é nenhuma estrutura que faz funcionar os mecanismos de discriminação Sem dúvida alguma essa palavra tem forte apelo político no ativismo afro mas o estrutural não explica a complexidade do arraigado no sentimento racista Considerese assim a palavra paraestrutura o prefixo grego para aponta para um processo ao lado de um sistema identificável É possível pensar em estrutura como um jogo com suas regras e peças interdependentes Há situações cruciais em que as peças mudam mas o jogo continua No caso do racismo pósabolicionista mudou o jogo estrutura porém ficaram as peças imersas no imaginário escravista isto é nas imagens ambíguas de uma forma social hierárquica Paraestrutural significa estar fora da estrutura jurídicopolítica mas dentro das vontades e das práticas na medida em que para isso houver margem institucional ou então oportunidade social Vontade não deve aqui ser entendida como fenômeno individual ou subjetivo e sim como a força interna de uma forma coletiva Não que o racismo se reduza a uma lógica das ações oportunas ou das afecções subjetivas uma vez que ocupa um lugar cultural transmitido de uma geração para outra dentro dos processos de produção econômica e de sociabilidade nacionais A classe social não pode ser descartada como categoria analítica porém demanda um remanejamento compreensivo que entendemos como a postura epistemológica e metodológica de inclusão do sensório toda a dinâmica das afecções ou dos afetos na tarefa analítica Dúvida não há quanto à existência de uma infraestrutura socioeconômica enviesada por trás da discriminação mas esta não se deduz daquela a partir de dados primários e históricos extraídos segundo um sistema de interpretação predeterminado Os resultados de operações deste tipo estatísticas sobre a divisão do trabalho educação saúde segurança etc são politicamente relevantes e particularmente responsáveis pela tomada de consciência da mistificação embutida na ideologia da democracia racial que alimentou durante muito tempo o discurso da esfera pública oficial É também politicamente estratégico quando se pensa a partir de compromisso com transformação das condições de vida fazer a avaliação métrica das consequências da vulnerabilidade socioeconômica num país de tão profunda desigualdade social Basta pensar em dados do tipo as pessoas negras e pardas morreram 57 a mais do que as brancas em decorrência da Covid19 Mas em termos teóricos e acadêmicos são resultados tautológicos o mesmo de uma macrointerpretação termina revelando apenas o mesmo de uma disciplina passando por cima das variações imprevisíveis nas práticas ou nos atos concretos A revelação disciplinar pautada apenas pelos métodos adequados à reprodução acadêmica do conhecimento de um modo geral a perspectiva socioeconômica gera um tipo de saber fixado em macrocategorias classe social poder de Estado estrutura global etc que podem ser abordadas em crosssection isto é a análise transversal e universalista de uma realidade múltipla muitas regiões muitos países sem considerar especificidades locais As grandes categorias se autossatisfazem epistemicamente por interpretações mecânicas e permanecem à parte da experiência concreta do fenômeno Assim um objeto civlizatóriamente embaraçoso e com particularidades nacionais como o racismo acaba tornandose invisível diante da altura ou elitismo categorial que o contempla As correntes sociológicas sulamericanas em especial a sociologia econômica que fizeram ou fazem a cabeça de inteiras gerações intelectuais estudos das relações centroperiferia impossibilidade de ações autônomas dos Estados formação de burguesias industriais etc levados a cabo por autores de peso científico como Celso Furtado Raúl Prebisch Anibal Pinto Jose Medina Echavarria Maria da Conceição Tavares não incluíram o racismo no rol das questões nacionais primárias eventualmente confinandoo ao lugar de objeto de micropolíticas regionais A heterogeneidade estrutural dos países de capitalismo dependente diferente da polarização entre atraso e modernização na perspectiva do dualismo estrutural teorizada por autores como Prebisch e Pinto referiase à coexistência de modos de produção econômicos distintos em variações regionais sem qualquer referência a desigualdades raciais tidas como secundárias Não se trata apenas de uma falha teórica mas também da dificuldade de compreender um fenômeno que embaraça a consciência dita civilizada das elites neocoloniais Não raro as duas coisas interpenetramse como ressalta Clóvis Moura a propósito de Celso Furtado para quem o reduzido desenvolvimento da população submetida à escravidão deviase ao atraso mental do negro Entretanto seria enganos pensar que Furtado um dos mais ativos e radicais pensadores da Cepal atribuísse a esse seu juízo sobre a população negra a causa do entorpecimento da economia nacional16 Na verdade para ele sempre existiu um estancamento do crescimento econômico em países sob a dependência do centro capitalista como o Brasil mas isso seria devido aos fatores da concentração do progresso tecnológico em determinadas regiões assim como à forte concentração de renda A questão social do afrodescendente apenas deixava de ser pensada no âmbito dessa categorização teórica Ao que conste há apenas uma hipótese econômicosociológica que tenta ligar racismo a modelo de crescimento econômico no Brasil Tratase da hipótese da redistribuição intermediária formulada por Maria da Conceição Tavares e José Serra segundo a qual a compressão salarial era necessária ao modelo vigente na época para financiar a inversão e redistribuir o superexcedente para as classes médias17 Nesta argumentação o sistema econômico teria algo como um preconceito de classe de cor porque só as classes médias e ricas brancos em suma poderiam consumir Trabalhadores pretos e mulatos não poderiam fazêlo devido à compressão dos salários que funcionaria como mecanismo de transferência de renda para as classes médias A hipótese foi criticada num ensaio hoje bastante conhecido Crítica da razão dualista pelo sociólogo Francisco de Oliveira para quem a falha do argumento estava no fato de que a compressão salarial transfere os ganhos da elevação da maisvalia absoluta e relativa para o polo da acumulação e não para o consumo A renda das classes médias seria uma necessidade da estrutura produtiva em seu sentido global e não um estado de bemestar dos favorecidos já que decorre das exigências técnicoinstitucionais da nova estrutura industrial e portanto das novas ocupações criadas Isto faria da renda uma exigência objetiva da estrutura produtiva e não um efeito de presumido preconceito de classe ou de cor por parte da acumulação capitalista Contraargumentamos que de fato a acumulação de capital seria em princípio neutra com relação à cor da pele do agente produtivo Mas enquanto um dos sistemas centrais de ação histórica o capitalismo acumula igualmente significações mercantis que orientam diretamente a integração das estruturas societárias e indiretamente as condições de vida dos atores sociais No âmago da determinação econômica das classes sociais está alojada como construção histórica a orientação racial embora multifacetada e parcialmente autonomizada com relação às condições materiais de produção Parcialmente porque a perspectiva aceitável de uma superexploração do trabalho necessária para compensar as perdas das burguesias dirigentes em suas relações de dependência com o Centro capitalista implica reescravizar de outra maneira a mão de obra abundante em que pontificam aos afrodescendentes Desta maneira a acumulação não é absolutamente neutra com respeito aos modelos culturais de incrementação do trabalho e da produtividade ou com relação às múltiplas formas discriminatórias da civilização tecnoeconômica que se alimentam de uma margem estrutural de pobreza daí a hipótese do racismo socioeconômico No viés capitalista da abolição da escravatura brasileira não houve reforma agrária nem direito ao trabalho e nem estrutura políticopartidária que reorientasse os conflitos entre as classes dirigentes e os exescravos Estes últimos estariam portanto naturalmente destinados a posições subordinadas na reprodução das classes sociais e na distribuição espacial dos agentes produtivos Nascem aí os diagnósticos no sentido de que se o racismo bem como o sexismo tornase parte da estrutura objetiva das relações ideológicos e políticas do capitalismo então a reprodução de uma divisão racial ou sexual do trabalho pode ser explicada sem apelar para preconceito e elementos subjetivos18 No tocante aos aspectos concretos do desenvolvimento econômico esse tipo de análise repercutia sociologicamente as denúncias do ativismo negro de que sempre houve fortes obstáculos à mobilidade social dos afrodescendentes no mercado de trabalho Têm o mérito de contradizer a tese do industrialismo como um fenômeno benéfico para a fluidez social e consequentemente para a mobilidade da população negra Mas se esse tipo de argumentação pode se aplicar em parte ao mecanismo de subordinação econômica e social do exescravo deixa de alcançar os aspectos morfológicos e culturais do racismo com sua massa nebulosa de elementos subjetivos e negacionismos que incide de forma continuada sobre o afrodescendente como dispositivo de poder que naturaliza a discriminação e aprofunda a desigualdade social O problema porém é que o racismo não pode ser realmente compreendido como efeito de estrutura da sociedade desigual mas como um macrofenômeno antropológico na escala do que Marcel Mauss chamaria mutatis mutandis de fato social total cuja incidência humana se universalizou com a colonialidade A autonomização histórica e existencial do fenômeno dá margem a variáveis aparentemente inexplicáveis O racismo brasileiro de hoje persiste no interior de um efeito permanente da antiga estrutura escravista uma verdadeira forma social autonomizada como herança autoritária de práticas patrimoniais das classes dirigentes uma a mais no rol do clientelismo colonial e imperial a que aderiu inerciamente a burguesia industrial nativa Não existe a objetividade ideológica atribuída pelas lentes do cânone positivista Isento de coerência ideológica o racismo subsiste e não por hipóteses duvidosas de inconsciente coletivo ou de mentalidade de época mas por um singular efeito parasitário do sistema socialmente excludente em determinadas práticas intersubjetivas de uma forma de vida enraizada na escravidão que no entanto foi política e juridicamente abolida Esse efeito é simultaneamente econômico societário e institucional o que leva à suposição de que o imaginário da raça esteja na base da definição de classe social no Brasil ou seja a classe social é sempre racializada Isso pode ser visualizado numa metáfora espacial imaginese uma casagrande a sede do engenho açucareiro teorizada por Gilberto Freyre o ideólogo oficial das relações raciais no Brasil que passou por um retrofit arquitetônico como resultado as residências ou os edifícios de luxo no espaço urbano e rearrumou o seu mobiliário mas não alterou substancialmente as relações com a mão de obra escrava apenas atualizando uma hipotética estrutura de sentimentos O sujeito da consciência racista não é mais o barãoproprietário de corpos assujeitados para o trabalho gratuito mas o baronete imaginário esse sim fora do lugar fora da casagrande suposto senhor de almas alheias Tratase agora de controle institucional por uma burguesia nacional branca De certo modo essa metáfora já estava concretamente configurada em determinadas dificuldades encontradas pelo regime escravista no espaço urbano O historiador Chalhoub traz à luz a expressão viver sobre si19 que traduzia o consentimento de proprietários de escravos para que estes pudessem habitar e alimentarse fora da propriedade senhorial Em termos práticos o indivíduo permanecia escravo mas desembaraçava o senhor de obrigações evidentes quando consideradas no contexto do trabalho rural com a casagrande e sua senzala ou algo equivalente O historiador está debruçado sobre as relações de cortiços com epidemias no espaço carioca mas o que particularmente nos chama a atenção nesse esdrúxulo sobre si é a prefiguração de uma vida posterior sem o espaço físico do domínio ou casagrande embora com os laços escravistas presentes ao modo do que alguns poderiam chamar de uma estrutura de sentimentos É mais ou menos notório que um teórico importante das relações entre cultura e sociedade como Raymond Williams tenha girado analiticamente em torno do conceito de estrutura de sentimentos20 nem sempre muito bem esclarecido porém entendido de modo geral como formas emergentes de experiências típicas em que significados e valores são mais sentidos e vividos do que apreendidos intelectualmente A palavra estrutura como já ressaltamos supõe um enquadramento lógico com interdependência e coerência institucionais ou mesmo burocráticas no âmbito da sociedade civil contemporânea Aplicase melhor a uma realidade sociopolítica direta ou indiretamente articulada a uma burocracia funcional e certamente não responde pelo funcionamento de práticas racialmente discriminatórias no Brasil Sobre esse conceito é esclarecedora uma frase do jurista Luis Roberto Barroso ministro do Supremo Tribunal Federal No Brasil a estrutura legal foi montada para o sistema não funcionar Ou seja há uma espécie de dissonância cognitiva entre a organização e a prática a existência de uma estrutura não assegura o funcionamento de coisa nenhuma Por outro lado a funcionalidade do racismo no âmbito das instituições e das relações subjetivas independe de uma estrutura o que torna ainda mais difícil a sua apreensão por mecanismos puramente racionais Ademais a permanência de elementos estruturais numa transição histórica não significa a continuidade da estrutura e sim um jogo de recomposição indireta com novas regras Assim a menos que o espírito crítico escolha por aferrarse à ideia de uma estrutura de sentimentos o adjetivo paraestrutural seria mais adequado a uma sistematização em que o racismo aparece como uma significação imaginária central21 socialmente transmissível pela dinâmica institucional capaz de catalisar os traços intensivos de uma política discriminatória por meio de formas esquemáticas ou imagens dinâmicas de um determinado tipo de ação humana A velha questão da raça biologicamente definida e inscrita numa estrutura econômicopolíticojurídica deslocase para a da identificação institucional da cidadania aceitável Na paraestrutura o racismo é institucionalmente sistemático em vez de totalmente sistêmico razão pela qual lança à compreensão conjuntamente racional e sensível o desafio de elucidar a transmissão dos mecanismos discriminatórios22 A esquematização discriminatória tem um sentido que é a hierarquização excludente da cidadania negra Apesar de pequenas conquistas obtidas ao longo de mais de um século de movimentação civil o homem negro brasileiro configura uma cidadania de segunda classe mantida em seu lugar por um racismo não legalmente sistêmico Isto quer dizer que a hierarquia discriminatória é pautada por um paradigma de brancura parcialmente alheio à suposição de supremacia racial como é no limite o caso dos Estados Unidos mas atento às aparências isto é à cor e ao status social São duas porém as equações estruturantes do fenômeno a primeira é o racismo morfológico ou morfofenotípico que visa o indivíduo particular a segunda é o racismo cultural cujo objeto é uma determinada forma de vida com costumes e crenças particulares No tocante à equação morfológica diferentemente da hipótese americana de uma classificação subdérmica ancorada na matriz do antissemitismo o racismo brasileiro é epidérmico Costa e Silva poeta diplomata e destacado africanista brasileiro resume No Brasil é predominante a questão da aparência nos Estados Unidos da ascendência E relata Um artista norteamericano que viveu alguns anos no Brasil enviava os seus trabalhos semanalmente para os Estados Unidos e de lá recebia o pagamento em dólares Pergunteilhe certo dia numa roda de amigos por que estava vivendo no Brasil E ele respondeu prontamente Porque nos Estados Unidos sou negro no Brasil sou branco e é enorme a diferença23 Aparência desde a cor da pele até a roupa é uma categoria que se constrói socialmente e que atribui poder social conforme os quadros de referência instituídos isto é conforme determinados marcadores semióticos que concorrem para a definição de cor e status No cotidiano nacional a atenção ao aspecto físico automatizase sistematicamente em funcionamentos institucionais assim como nas relações intersubjetivas Relatava o notável geógrafo Milton Santos que ao viajar de primeira classe em aviões de empresas brasileiras membros da tripulação lhe dirigiam a palavra em inglês negro em primeira classe seria certamente estrangeiro Nós nos dispomos aqui a observar de perto a questão racial com nova lente reflexiva a partir de sua inserção num território nacional específico onde mais da metade da população é constituída por escuros negros e pardos em contraste com os 12 da população negra norteamericana mas onde por outro lado são muito maiores as desvantagens sociais por efeito da relação racial O racismo da sociedade brasileira tem cromatismo próprio Nova lente reflexiva É que dezenas de obras e milhares de páginas empenharamse ao longo de todo o século XX na análise do racismo como ideologia e das práticas concretas de exclusão ou discriminação das diferenças étnicas sem que se tenha realmente obtido uma compreensão razoável da persistência do fenômeno na moderna sociedade do conhecimento No Brasil os intérpretes mais conspícuos da história social e econômica do país no geral epígonos de luminares como Franz Boas Karl Marx Max Weber e CM Keynes produziram análises influentes sobre a singularidade do escravismo mas nada de realmente significativo sobre o racismo antinegro Desse último caso um exemplo notável é a análise de Gorender sobre o escravismo nacional em que ele metodologicamente adverte O de que se carece a meu ver é de uma teoria geral do escravismo colonial que proporcione a reconstrução sistemática do modo de produção como totalidade orgânica como totalidade unificadora de categorias cujas conexões necessárias decorrentes de determinações essenciais sejam formuláveis em leis específicas24 Ou seja todo o empenho do trabalho destinase a comprovar com rigorosas categorias do materialismo histórico a tese controversa sobre a existência de um modo de produção colonial no Brasil mas sem levantar a questão do racismo que no entanto era o objeto concreto de luta do movimento negro É apenas contextual acadêmica a pertinência de metadiagnósticos teóricos sobre a condição colonial permanente ou sobre a alienação da burguesia dirigente num país de capitalismo dependente mas opaca ante à realidade prática da discriminação racial Tomese como exemplo uma única evidência histórica já no primeiro ano da república proibiuse a entrada de asiáticos e africanos em território brasileiro Por mais que se pretenda estabelecer relações de causa e efeito entre capitalismo e racismo em busca de metaexplicações tornase difícil conceber o trânsito imediato ou relevante entre uma atitude discriminatória apreensível no interior da historicidade políticosocial e o advento do capital industrial Outro exemplo como conciliar teoricamente o projeto igualitário de Cuba com a política de afastamento sistemático de negros hoje admitida até mesmo por dirigentes cubanos das posições de poder Não que o fenômeno racial seja impenetrável à razão mas o racionalismo restritivo das práticas historiográficas sociológicas antropológicas e psicológicas conduz à adoção exclusiva do pensável isto é do que pode ser pensado ou analisado apenas à luz do modo como a sociedade se predispõe a entender o seu próprio funcionamento políticosocial É o contrário de uma compreensão ao mesmo tempo individual e coletiva da permanência na consciência histórica dos fatores excludentes de aparências que não coincidam com aquelas da brancura hegemônica do paradigma leucocrático O racionalismo acadêmicodisciplinar isso que o sociólogo Guerreiro Ramos chamou de sociologia enlatada é socialmente asséptico esquivandose da dificuldade de criticar o vínculo entre a interpretação e a práxis Há mais de um tipo de compreensão do racismo nacional como se evidencia no trabalho já citado de Clóvis Moura um competente sociólogo negro comprometido com o movimento antirracista ciente de que o desenvolvimento das forças produtivas retroalimentava o que ele chama de escravismo tardio no Brasil A sua perspectiva entretanto centrase na divisão da força de trabalho É também o que Florestan Fernandes quer oferecer em sua obra sobre o tema25 hoje merecidamente acolhida como um clássico da sociologia históricoestrutural por sua demonstração minuciosa de como o negro foi expulso do sistema de relações de produção e impelido sem retorno a um sistemático desajustamento social De fato o sociólogo vai além do determinismo metodológico de seus próprios conceitos fundacionais para a cientificidade do campo sociológico no país ao corroborar as dúvidas sobre o mito da escravidão benévola e ao tentar apontar compreensivamente para as consequências do impedimento por parte das elites dirigentes de que pudesse florescer a vida social do exescravo À sombra do temor coletivo das rebeliões negras o liberto sempre foi conotado como inimigo público e doméstico mas além disso como psicologicamente deformado A respeito disto Cida Bento cita Florestan Fernandes a escravidão deformou o seu agente de trabalho impedindo que o negro e o mulato tivessem plenas possibilidades de colher os frutos da universalização do trabalho livre e o seu comentário de que nada disso nascia ou ocorria sob o propósito declarado ou oculto de prejudicar o negro26 A crítica de Cida Bento ressalta a estranheza quanto ao fato de que nenhum estudioso apontou a existência de uma deformação na personalidade do escravizador isto é do branco27 Para ela o próprio Florestan apesar de tão consciente do racismo no Brasil deixou de compreender a cegueira conveniente sobre o impacto da escravidão no grupo escravista É que compreender diz Claudel é agarrar ao mesmo tempo reunir pela pegada Como se diz que o fogo pega ou que o cimento pega ou que as águas de um lago pegam no inverno ou que uma ideia pega no público é assim que as coisas se compreendem e que nós as compreendemos28 O poeta está falando do esclarecimento recíproco entre a inteligência e a sensibilidade ou entre o objetivo e o subjetivo Diferentemente do mero entendimento lógico a compreensão implica a profundidade do ver como algo além da incorporação intelectual de um saber que pode ser a própria desincorporação emocional de uma representação ou de uma crença Assim é por exemplo o desnudamento educativo da alma ou consciência própria da individualidade sugerido por Fernando PessoaAlberto Caeiro O essencial é saber ver Saber sem estar a pensar Mas isso triste de nós que trazemos a alma vestida exige uma aprendizagem de desaprender O guardador de rebanhos Com a exigência de um profundo compromisso existencial na atitude compreensiva emerge a dimensão ética Ilustrativa é uma passagem em A peste de Albert Camus quando Tarrou se recusa a deixar a cidade de Oran avassalada pela epidemia para continuar a tratar inutilmente os doentes a exemplo do que fazia o seu amigo Rieux O que lhe leva a se ocupar disso Eu não sei Minha moral talvez Mas qual A compreensão Tratase assim de não se pautar exclusivamente pelas leis nem pelas causalidades absolutas da ciência Isso está implícito num verso de outro poeta um dos maiores da língua portuguesa As leis não bastam Os lírios não nascem da lei Nosso tempo de Carlos Drummond de Andrade É que as explicações apenas racionalistas da história se apoiam na exclusividade das determinações materiais para os fenômenos intelectuais culturais e morais de um período qualquer Os casos de natureza subjetiva os lírios do poeta são deslocados para as lentes de uma visão atomística dos fatos tidos como desvios individuais ou subjetivos de uma regra determinista Esta é a regra que faz recair todo o peso da explicação sobre o histórico projeto classista e pósabolicionista de transformação dos exescravos em excedente estrutural de mão de obra com vistas ao rebaixamento do valor da força de trabalho No entanto o mero protocolo disciplinar e determinista não diz como isso se tornou socialmente possível Ou seja não explica o fenômeno de que da coexistência de brancos e negros pobres em numerosos segmentos populacionais no início do século XX tenhase desenvolvido progressivamente apenas uma classe média branca Em outros termos não consegue eliminar a hipótese de que haja lugar para a concepção de uma sensibilidade difusa ou de um espírito o invisível nas transformações e passagens não assimilável de todo às rígidas formulações cientificistas no que se refere a ânimos e comportamentos característicos de um momento Faltalhe o que Rey chama de capacidade de escuta algo que leve à captura de um processo em ato Capacidade de escutar tanto aquilo que é dito quanto aquilo que não é dito aquilo que é a condição de dizer capacidade que não poderia tomar emprestados seus recursos ou seus princípios de um saber constituído Não encontraremos nenhuma disciplina que possa legitimar ou dar uma aparência de coerência a uma escuta desse tipo29 O espírito a ser apreendido ou escutado não procede de arquétipos inconscientes nem de supostas epistemes intertempormais É algo que se faz presente tanto na consciência discriminatória dos senhores quanto eventualmente na consciência discriminada dos supostos servos que ao modo do fenômeno da servidão voluntária La Boétie transcrevem existencialmente as prescrições racistas seja reproduzindoas ativamente seja aceitandoas dentro do curso inercial dos fatos sociais Por exemplo o fascismo europeu emergente desde os começos do século passado era certamente uma forma suscetível de análise racionalista enquanto forma de Estado ou de reação política às reivindicações crescentes das classes obreiras orientadas para o socialismo mas sem qualquer doutrina própria era principalmente um estado de espírito avesso a discursos e traços estranhos em concidadãos próximos sentidos como inquietantes ou inaceitáveis Pensar o fascismo como uma forma de vida aproximao de protoformas atuais a exemplo das minorias aberrantes da extremadireita nativista do tipo de supremacistas brancos americanos e de milícias armadas exasperadas pelas mutações culturais da globalização Também o relaciona indiretamente ao conservadorismo senhorial brasileiro cujos componentes sensíveis cristalizamse no fascismo nacional Nas décadas de 1930 e de 1940 do século passado o chamado integralismo corporificou partidariamente esse movimento num grau mais elevado do que em qualquer outro país sulamericano Especificamente sobre o racismo uma movimentação sensível humanamente negativa ou retrópica ressoa hoje em representações sociais ideias imagens discursos atitudes anacrônicas mas nada que se identifique como um sistema coerente embora se possa vislumbrar uma coerência convergente quanto aos alvos da rejeição seja uma ideologia uma religião ou pessoas de aparência socialmente desvalorizada Em outras palavras não predomina um discurso conceitualmente racista entendido como unidade complexa de palavras e ações constitutiva do social e sim uma zona fronteiriça da discursividade que melhor se define como um sentimento de existência isolado ou fechado em si mesmo como algo aquém de qualquer expressão conceitual ou de articulação lógica um ponto de existência um ponto de vida ou seja como a resultante automática de reações emocionais enraizadas Decorre daí esse sentimento concebido por Ledrut como algo aquém de qualquer expressão conceitual não é uma representação ou um sistema de representações nem se reduz à ideologia nem à filosofia nem à religião nem a nenhum outro complexo de ideias e de crenças30 No problema da compreensão geral do mundo por uma sociedade esse sentimento implica uma intuição de base que responderia pela apreensão da existência por parte dos membros de uma civilização determinada A palavra apreensão sublinha que não se trata de um conhecimento stricto sensu nem de qualquer percepção intelectualizada e sim de um sensório global uma espécie de síntese afetiva da diversidade cultural que informa os esquemas existenciais ordenadores da experiência comum Em vez de um ponto de vista apenas racional seria mais adequado falarse de um ponto de vida ou de um ponto de existência É precisamente esse sentimento isolado e apreendido pelo espírito colonialista que sempre respaldado por abstrações humanistas responde pela negação de igualdade ao diferente e pelas ações etnocidas Podese detectálo no interior das formas de vida que caracterizamos como retropias idealizações ativas de um passado morto mas confortável a um imaginário regressivo ou então como protofascistas É verdade que até mesmo em sistematizações ideológicas ou em partidos políticos o isolamento físico e emocional sempre produziu radicalismos e extremismos o sentimento de existência pode ser individual ou grupal O fato a se ponderar é que nesse sentimento inominável sem significado sem correlação entre diferenças podese enxergar aversão ou horror ao outro pois como diz um personagem de ficção o horror não tem quase nunca a face do inimigo e sim daqueles mais próximos De fato o racismo exacerbase quando o dessemelhante p ex o escravo controlado como mero objeto e mantido à distância física e social pelo senhor começa a tornarse semelhante o liberto suscetível de assimilação ou de semelhança social com o antigo senhor e deste modo passa a ser conotado existencialmente como intruso Confirma Cida Bento Os negros são vistos como invasores do que os brancos consideram seu espaço privativo seu território Os negros estão fora de lugar quando ocupam espaços considerados de prestígio poder e mando Quando se colocam em posição de igualdade são percebidos como concorrentes31 Do horror à intrusão não estão ausentes circunstâncias sóciohistóricas Por exemplo a existência de uma memória coletiva escravista necessária à manutenção de uma hierarquia nas interações sociais que não deixa de evocar um sistema inconfessável de classificação humana Nos Estados Unidos o mito da supremacia étnica a crônica infame e subterrânea dos milhares de linchamentos de negros e a indiferença ante as centenas de atentados contra igrejas da gente negra compõem uma tradição ou uma protoforma confederada e coletiva para o Sul norteamericano que pode diluirse discursivamente mas sem desaparecer no Norte Essa protoforma de aversão coletiva pode alimentarse de doutrinas anacrônicas ou de textos extremistas mas independe de um discurso sistemático ou organizado Em certos casos se configura como uma forma de vida integrista ou como uma retropia fascista Pode transparecer numa semiose de gestos ritos p ex a cruz incendiada pela KuKluxKlan olhares enviesados ou na instintiva rejeição à presença do outro Nela predomina um sentimento inominável mais forte do que palavras As circunstâncias podem variar sem que sequer se arranhe o inominável No Brasil é forte a memória escravista assestada sobre o fenótipo negro mas igualmente sobre particularidades da forma de vida afrobrasileira Em termos de registro escrito vale citar o artigo 157 do Código Penal de 1890 que proibia praticar o espiritismo a magia e seus sortilégios usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública Eugenia e racismo cultural Na passagem do totalitarismo despótico do senhor de escravos às formas calmas ou perversas de hierarquização racial a forma de vida afro passa por maiores foros de ameaça e portanto de rejeição Desde o começo tudo o que culturalmente se relacionasse ao negro ainda que de modo indireto era socialmente estigmatizado A rejeição ia desde a linguagem até as crenças e a música Vejamos o verbo vadiar Em português vernacular sempre significou não ter ralé para o trabalho ou seja ironicamente trabalhar como mouro mas no serviço de Deus senão simplesmente distrairse Na boca do povo um verso de canção como eu vim aqui foi para vadiar queria dizer exatamente isso desfrutar musicalmente do mundo Entendese assim como a vadiagem negra foi criminalizada pelo código penal Lei da Vadiagem existente desde 1890 mas regularizada em 1942 A música negra era vadiação algo a ser eugenicamente reprimido É exemplar o conhecido episódio do CortaJaca protagonizado pela maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga O fato é que Nair de Teffé esposa do Presidente Hermes da Fonseca 19101914 apresentou a um público de elite carioca e de diplomatas no Palácio do Catete 26101914 o maxixe CortaJaca acompanhado por violão Em meio a preconceitos de natureza diversa Chiquinha neta de escrava militante abolicionista notabilizavase como uma artista que abria alas para a música brasileira como nas palavras de Mário de Andrade Francisca Gonzaga teve contra si a fase musical muita ingrata em que compôs fase de transição com suas habaneras polcas quadrilhas tangos e maxixes em que as características raciais ainda lutam muito com os elementos da importação32 Na época eram dois objetos socialmente escandalosos o violão era prática policial corrente o confisco desse instrumento musical inclusive na própria residência do sambista e o maxixe aliás nome de uma etnia africana hoje pouco conhecida dança dita excomungada O Senador Ruy Barbosa comentou o fato em sessão do Senado Federal classificando a composição musical como a mais baixa a mais chula a mais grosseira de todas as danças selvagens a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba e apostrofando que nas recepções presidenciais o cortajaca é executado com todas as honras da música de Wagner e não se quer que a consciência deste país se revolte que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria O episódio é anterior à chegada ao Rio de Janeiro 1917 do jovem compositor Darius Milhaud mestre da técnica politonal como secretário da embaixada francesa no Brasil na época conduzida pelo aclamado poeta e dramaturgo Paul Claudel Ruy Barbosa foi de fato uma figura importante no processo de transição da monarquia para a república como advogado público de ideias industrialistas e da luta por uma Constituição liberal Abolicionista advogado e jurista de destaque internacional desde a notória Conferência de Haia Ruy era um dos intelectuais mais brilhantes de sua época e até hoje cultuado como ícone da inteligência brasileira Mas em termos de nacionalismo cultural Ruy era outra coisa Ao contrário dele Milhaud percebeu a relevância cultural do trânsito original entre a música de concerto e a popular Seria desejável que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos maxixes samba e cateretês como Tupynambá ou o genial Nazareth A riqueza rítmica a fantasia indefinidamente renovada a verve a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa encontradas em cada obra destes dois mestres fazem deles a glória e a joia da arte brasileira33 A música de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá foi marcante na trajetória musical de Milhaud que comporia Boi no Telhado com apropriações da música brasileira O incidente com Chiquinha Gonzaga pode soar como menor ou teoricamente pouco relevante mas o caminho compreensivo leva a atentar para o fato de que Ruy Barbosa era também membro de uma elite desejosa de apagar da memória social a mancha da escravatura Quando ministro da Fazenda 1890 tinha mandado queimar os arquivos da escravidão basicamente os registros de antigos escravos em comarcas sob alegações até hoje controvertidas porém em princípio para lavar historicamente a referida mancha O episódio da condenação do maxixe era motivado por um ataque partidarista ao bisonho presidente Hermes da Fonseca não raro motivo de piada em botequins cariocas seu adversário político mas revelava ao mesmo tempo o desprezo elitista por manifestações da cultura afro e popular Crenças e músicas de origem negra são tópicos relevantes da estigmatização abrigada nas programações morais e sanitárias da doutrina eugenista o dito racismo científico que despontou mundialmente desde fins do século XIX até quase metade do século passado Inspiravase no pensamento do inglês Francis Galton que preconizava a expansão das influências que melhoram as qualidades inatas de uma raça bem como das qualidades que se pode desenvolver até alcançar a máxima superioridade34 Para Gobineau teórico da eugenia e amigo de Dom Pedro II a mestiçagem conduziria o país à ruína Mas na eugenia brasileira prevaleceu a perspectiva de Lamarck outro teórico importante para quem políticas adequadas de saúde e educação poderiam aperfeiçoar racialmente negros e mestiços Os princípios eugenistas da miscigenação positiva e do branqueamento sistemático que aspirava ao desaparecimento progressivo do negro presidiam à importação acelerada de cerca de quatro milhões de imigrantes europeus entre fins do século XIX e meados dos anos de 1930 como uma tentativa de contrabalançar a presença de 60 de negros na população brasileira Vejase o dedo do Império Britânico que tinha agido decisivamente no passado para coibir o tráfico negreiro por interesses comerciais próprios mas que exercia também influência ideológica em projetos de modernização nacionais sob o estandarte da civilização e progresso De lá provinha o fluxo mais constante das doutrinas eugenistas cujo horizonte racial era o embranquecimento progressivo do mundo Hoje se modernizou a letra da lei penal e são também estudados como anacronismos os preceitos da eugenia que repercutiam e eram debatidos nas elites ideológicas construtoras do senso comum compostas por médicos jornalistas e intelectuais de destaque a exemplo do escritor Monteiro Lobato militante eugenista escritor de largo público e um dos mais importantes editores nacionais nas primeiras décadas do século passado Isto é fato de entendimento objetivo Em termos subjetivos a perspectiva compreensiva evidencia a permanência em corações e mentes do velho sensório do preconceito que estigmatiza não apenas a cor da pele mas também as formas de crença ou de vida associadas à cultura africana o que implica uma rejeição radical ao estatuto de pessoa do negro supostamente livre Antes mesmo da Abolição na segunda metade do século XIX o advogado e abolicionista Luiz Gama baiano filho da ativista Luisa Mahin e vendido ainda criança como escravo pelo próprio pai tinha questionado a natureza da libertação do escravo Impedido de ingressar na Faculdade de Direito Gama tornouse advogado e pensador por conta própria Uma frase sua sobre a condição do exescravo é filosoficamente notável Faltalhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira Para bem aquilatar o alcance desse juízo podese partir de Espinosa para quem a escravidão de uma coisa é o fato de que ela está submetida a uma causa exterior por outro lado a liberdade consiste não em estar submetido a uma causa mas sim em estar liberado dela Este argumento do Breve tratado é retomado por Abensour para introduzir a questão da servidão voluntária como um estado de não liberdade de sujeição cuja particularidade é que a causa da escravidão não é mais exterior mas sim interior pois é o agente ou o próprio sujeito que se submete voluntariamente à escravidão é ele que através de sua atividade é autor da sua própria servidão35 Espinosa não está certamente falando de exploração negreira nem a este fenômeno se refere o famoso conceito de servidão voluntária de La Boétie mas esse caminho reflexivo tem afinidade teórica com o problema da libertação jurídica pura e simples suscitado por Luiz Gama A frase do abolicionista é de fato notável porque reivindica implicitamente a ótica compreensiva ao trazer à tona a dimensão subjetiva da experiência humana do liberto antecipando em um século a perspectiva analítica a psicologia clínica do psiquiatra e ativista Fanon Eu me dediquei neste estudo a abordar a miséria do negro Tátil e afetivamente Não quis ser objetivo Aliás a verdade é não me foi possível ser objetivo36 Se fizermos incidir uma luz de fundo marxista sobre o problema trazido pela frase de Luiz Gama poderemos inicialmente depreender que o humano não é algo imanente ao ser individual e sim uma virtualidade inscrita no conjunto das relações sociais Isso afeta a questão da liberdade Acabandose o domínio direto de um homem o senhor sobre outro o escravo começa o domínio das condições de produção sociais regidas pela mercadoria Em termos mais explícitos a dominação e a repressão diretas sobre o corpo do indivíduo dão lugar à exploração pelo trabalho A libertação do escravo acontece portanto no quadro de substituição da tortura física pelo fetichismo a abstração ou ocultação do poder da mercadoria Entra em cena um novo senhor o capital indiferente à qualificação humana do liberto ideologicamente a depender do quadro interpretativo o trabalho poderia tornarse a própria essência perdurável do homem Marx ou então o disfarce da degradação humana como deixaria transparecer o dístico nazista no pórtico do campo de concentração de Auschwitz Arbeit macht frei o trabalho liberta Essa libertação degradada destinouse ao negro uma vez que o exescravo e seus descendentes não foram socialmente semiotizados como trabalhadores passíveis de qualificação profissional requerida pelas ocupações emergentes no âmbito do capitalismo industrial A essência perdurável simplesmente não contemplava o negro tornado humanamente irrelevante no interior da forma social escravista A frase de Luiz Gama vislumbra profeticamente o vácuo no reconhecimento da personalidade do liberto isto é a negação de sua possível estabilidade em termos de pensar agir e sentir Numa outra aproximação de sentido denuncia a infantilização do liberto solto no mundo como órfão do Estado e concebido como ente sem voz própria infans aquele que não fala ou criança logo a quem se nega a liberdade de decidir e mesmo de ser infeliz portanto de pensar a sua miserabilidade É oportuno evocar Pascal A grandeza do homem é grande quando ele sabe que é miserável Uma árvore não sabe que é miserável Saber que é miserável é então ser miserável mas é grande saber que é miserável³⁷ Grandeza e miséria ou infelicidade unemse para indicar que a aceitação do paradoxo é humana e está inclusa na possibilidade de afeto por si mesmo como transparece num verso do americano Walt Whitman autodeclarado poeta do corpo e da alma A afeição ainda resolverá os Problemas da liberdade Aqueles que se amam Tornarseão invencíveis O exescravo não dispunha de um quadro social que lhe permitisse amar a si mesmo Assim na frase do abolicionista Luiz Gama antevése o problema existencial da libertação política ou seja o problema da condição de quem precisa continuamente desembaraçarse de uma identidade reputada como subumana Em outros termos libertarse de ou para alguma coisa Daí então o imperativo de recusar a suposição societária econômica política de que a vida pessoal possa ser delimitada pela dimensão econômica senão pelas regras da empregabilidade Aí se entrevê a filosofia do liberalismo cuja expressão ontológica mais simples ser ter e cuja ética se apoiam na hipótese mercantil de que a vida econômica conduz a uma antropologia moral Para Stuart Mill corifeu do liberalismo a única liberdade que merece este nome é a que consiste em cada um buscar o seu próprio bem à sua própria maneira desde que não tente privar os outros da sua ou impedir de alcançála³⁸ Nessa lógica individualista e desigualitária até hoje persistente de que valores simbólicos esses mesmos inscritos nos aportes civilizatórios dos povos implicados na diáspora negra possam reduzirse a uma equivalência monetária inscrevese o horizonte da libertação jurídicopolítica a mera disponibilização salarial da força própria de trabalho De uma maneira geral os abolicionistas eram liberais que encaravam a liberdade como propriedade do próprio corpo ou de bens com valor de troca Disso dependeria a formação do caráter homem bom era o homem com bens Não conseguir empregarse equivalia a não ter estofo moral Gama pôde antever porque já era capaz de discernir em outros discursos abolicionistas a ausência de referências à virtualidade política ou cultural do homem negro concreto Ou seja o africano e seus filhos eram conotados como vazios de possibilidades quanto à construção de uma Polis aceitável ou de uma nova civilidade por não serem percebidos como sujeitos de um valor absoluto com um fim em si mesmo perspectiva kantiana para a definição de pessoa e sim como valor relativo ou valor de meio O liberto portanto conotado como sujeito de poder social zero Essa perspectiva é radicalmente ética não referida à codificação de regras de conduta nem a ajustamentos morais e sim a tudo que implique um destino comum norteado pela razão fundadora da comunidade dos homens Referese portanto a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e de conviver responsavelmente Não é um movimento abstrato sob a ótica da ética liberdade não significa apenas ausência de repressão ou de coerção física nem propriedade econômica de bens mas potência de ação política de participação social ou simplesmente de não agir nos termos desejados pela sociedade civil saída da escravatura A não ação é também potência A palavra dignidade é aqui relevante e pertinente por ser indissociável em Kant de duas outras características do humano a liberdade e a razão Segundo ele no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade O que tem um preço pode ser substituído por qualquer outra coisa a título de equivalente ao contrário o que é superior a todo preço e em consequência não admite equivalente é o que tem uma dignidade³⁹ Ou seja a dignidade é a única condição capaz de fazer com que uma coisa tenha um fim em si mesmo portanto um fim intrínseco e não relativo A dignidade entendida como valor interior absoluto gerador do respeito ao si mesmo é o farol da ética Esse farol o valor é imanente ao agir humano uma imanência dinâmica comum a toda habitação humana num espaço determinado isto é ao que corresponde a exigências radicais da própria vida Ética é precisamente o movimento de escuta dessa dinâmica abrangente maior do que os limites da subjetividade instituída mas imanente a qualquer modo de existir Pela ética não pela economia se aspira à clareza e à luminosidade da existência humana Isso é o que advém na abertura inerente à existência e se materializa na perspectiva que politicamente se conquista por meio da liberdade compreendida como a afinação ética e política com a plenitude do modo de existir e não como a formação de cidadãos morigorados industriosos e moralizados Estes eram os atributos da moralidade operária que ressoavam ao pé da letra nas expectativas das classes dirigentes quanto à mão de obra livre e posta no mercado Gama um abolicionista original antecipou um ponto crucial Contornando o imperativo ético da dignidade e a exigência política de uma libertação com perspectivas existenciais a Abolição apenas transferiria o nível da escravidão de uma forma jurídicopolítica societária portanto de uma estrutura ou um sistema lógico para o que estamos chamando de forma social escravista em que o racismo se revela constitutivo Se fosse aqui o caso de adotar uma perspectiva macroexplicativa de natureza marxista p ex para o fenômeno teríamos certamente de recorrer às muitas indagações já feitas sobre a via não clássica de transição do escravismo colonial e imperial sustentado pela velha classe latifundiária para a industrialização de tipo capitalista e a urbanização progressiva Mais de um intérprete do Brasil se debruçou sobre as peculiaridades da transformação da questão agrária operada pelo alto sem compromisso com camadas subalternas e com preservação de barreiras contra a cidadania plena O que aqui de fato nos interessa teoricamente é a elucidação da forma escravista que escapa às macroexplicações A primeira inclinação como acontece na interpretação imediata de uma forma qualquer é confundila com a imagem de um objeto determinado por exemplo a escravidão Ela seria assim um signo ou a mera representação do fenômeno Mas como diz Focillon O signo significa enquanto a forma se significa A frase contempla o trabalho artístico em que é enorme a diferença entre formas e ideias Mas é precisamente do mundo das artes que se pode partir com o conceito de forma para apreender algo que um sistema lógico não revela ou seja a dinâmica ou a atividade dos afetos Por exemplo a escola é uma forma De quê De incorporação de saberes e de promoção de conexões pertinentes É mais precisamente uma forma cultural Nela o essencial não está nos conteúdos nem nos suportes técnicos mas na modalidade espaçotemporal institucionalmente assumida pela transmissão cultural que é a escolarização Como resultado autônomo da produçãoreprodução da unidade de um sistema a formaescola separa a transmissão de qualquer sistema fixo prédios suportes técnicos etc para radicála no próprio processo de escolarização O princípio educativo moderno está nessa forma que opera por meio da definição de um espaço particular uma conexão entre o interno a transmissão técnica de saberes e o externo as flutuações da vida social ou da história Sendo estrita definição de espaço a forma reproduzse propagase no imaginário ou melhor consideramola como uma espécie de fissura através da qual podemos introduzir num reino incerto que não é nem o espaço nem a razão uma multiplicidade de imagens que aspiram a nascer40 Uma vez mais recuperamos aqui uma observação atinente ao campo artístico no sentido de que as formas que vivem no espaço e na matéria vivem no espírito para acentuar a inexistência de antagonismo entre espírito e forma na dimensão social Como se fosse uma obra de arte perversa a forma social escravista cria a relação racial na esteira de uma histórica desconfiança residual ou uma aversão existencial ao indivíduo de pele escura marcando espaços materiais e psíquicos nas relações intersubjetivas embora gerando imagens convenientes de negação do racismo stricto sensu Diz Coccia Qualquer forma ou qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem41 No caso brasileiro a forma escravista é o que existe fora do próprio lugar ou seja fora da sociedade escravista do passado ao modo de uma vida depois do corpo Vale reiterar Uma imagem é a fuga de uma forma do corpo de que é forma sem que essa existência exterior chegue a se definir como aquela de um outro corpo ou um outro objeto42 Essas imagens que não são recordações nem ideias correspondem a uma sensibilidade capaz de evoluir no espaço e no tempo a ponto de desembocar no conveniente negacionismo intelectual do anacrônico sentimento discriminatório que as anima isto é o racismo Entretanto esse racismo é hoje perfeitamente detectável inclusive por experiências psicossociais relativas à persistência do racismo morfológico Um exemplo Num teste de imagem ou de aparência convidamse oito profissionais de recursos humanos divididos em dois grupos A e B de quatro pessoas A experiência consiste em exibir aos profissionais fotos diversas e perguntar o que veem em cada uma delas43 No grupo A são brancos todos os indivíduos retratados a A primeira imagem é a de um homem de meia idade que parece correr na rua O que veem nela Alguém que tem pressa ou está atrasado b na segunda uma mulher examina numa loja um blazer elegante O que veem Uma designer de moda ou uma provável compradora c na terceira um homem munido de uma tesoura faz a poda de plantas O que veem Um homem que cuida de seu jardim d na quarta uma mulher de spray na mão está em vias de desenhar numa parede O que veem Uma grafiteira com o comentário de que grafitagem é arte e na quinta uma mulher executa uma tarefa numa pia doméstica O que veem Uma dona de casa em sua cozinha f na sexta um homem de terno azulmarinho com paletó e gravata O que veem Um executivo de empresa provavelmente de finanças ou de recursos humanos No grupo B são negros todos os indivíduos retratados a Na primeira imagem o que veem no homem que parece correr na rua Alguém que está fugindo um ladrão b Na segunda a mulher segura o blazer para mostrâlo ou vendêlo portanto é uma vendedora c na terceira o que veem é um jardineiro em sua função na casa de um proprietário d na quarta a mulher é vista como uma pichadora de muros não como artista do grafite e na quinta o que veem é uma empregada doméstica ou uma diarista não a dona de sua própria casa f na sexta a imagem é interpretada como a de um segurança de shopping senão de um motorista profissional A forma escravista O teste de imagem faz aparecer a forma social escravista De fato afastada a hipótese pseudocientífica de uma outra raça dentro da esfera humana a aparência cor cabelo olhos traços biométricos avulta como um vetor antropológico decisivo para o fato discriminatório Mas a crueza do fenômeno pode variar de acordo com as características históricas dos territórios nacionais o que implica supor que as sociedades de acumulação primitiva do capital baseada no escravismo desenvolvem formas sociais de alta intensidade discriminatória A compreensão disso a elucidação objetiva e subjetiva da vinculação entre afeto representação e ação e não apenas o entendimento obtido por descrições históricas sociológicas antropológicas e psicológicas demanda um além uma sensibilidade social presente na base do senso comum que indicamos como um caminho filosoficamente intuitivo da lógica da existência essa mesma que supomos encontrar no conceito de forma social uma realidade a ser buscada no meio vital onde são gerados os saberes comuns Ora um saber anacrônico como o que está reconhecidamente implícito no racismo pode perder validade histórica mas ainda assim deixar intacto o meio vital em que foi gerado e alojarse numa forma social onde prosperam representações e afeções sociais capazes de alimentar as crenças sobre a inferioridade humana do Outro Nada impede que mesmo abolido o regime escravagista em termos políticos e jurídicos uma sociedade com forte tradição patrimonialista e senhorial preserve relações sociais de natureza escravista por meio de um jogo de posições em que o lugar social do descendente de africanos já esteja ideologicamente predeterminado pela escassa visibilidade nos foros públicos por meio de barreiras educacionais e empregatícias Tudo isso tem raízes históricas comprováveis A partir de 1850 data que costuma assinalar o começo da decadência da mão de obra escrava na lavoura cafeeira intensificamse no parlamento brasileiro Câmara e Senado as discussões sobre uma política imigratória capaz de compensar a presumida deficiência da mão de obra negra mas ao mesmo tempo de incrementar a modernização da civilização e dos costumes por meio de trabalhadores morigerados industriosos e moralizados Isso quer dizer indivíduos radicalmente opostos aos estereótipos de preguiça e de vadiagem atribuídos aos negros que no Brasil aspiravam à posse de terras e a meios de produção autônomos Já desde a primeira metade do século XIX eram notórias as discussões públicas e até mesmo experiências práticas sobre a imigração chinesa com resultados precários Nas entrelinhas onde a brancura se desenhava como requisito importante para a inclusão de estrangeiros numa suposta raça brasileira emergia a dicotomia da imigração desejável e indesejável A República no mesmo ano de sua proclamação proibiu a imigração de asiáticos e africanos O senador Nicolau Vergueiro tornouse pioneiro na importação de imigrantes europeus para as suas plantações com esses mesmos critérios racialistas Em fins do século XIX se intensificaram as tentativas estatais de atrair mão de obra anglogermânica criamse sociedades protetoras da imigração o que depois permitiria caracterizar a organização do Estado republicano como baseada no aumento da população branca no país Isso fez prosperar uma atmosfera social em que o progresso civilizatório seria aferido pela melhoria da coloração populacional um processo que tinha no horizonte graças ao evolucionismo filosófico e às doutrinas eugenistas o desaparecimento progressivo do negro Enunciamos então uma proposição básica A sociedade escravista foi extinta no Brasil pela Lei Áurea 1888 mas a forma social escravista permanece até os dias de hoje Supomos portanto 1 uma diferença entre o conceito de sociedade e o de forma social sustentando que 2 a forma ultrapassa a materialidade da sociedade escravista ao mesmo tempo em que mantém culturalmente a sua substância hegemônica que é a colonialidade A forma social escravista é de fato o modo como a sociedade pós abolicionista sonha com um além societário O sonho produz imagens do mundo Racismo é o espelhamento social do sonho elitista de uma sociedade com um povo uno e depurado da mancha da escravidão expressão de Ruy Barbosa assim como das exasperações identitárias sejam morfológicas ou culturais Essa forma faz parte no limite daquilo que o escritor Monteiro Lobato chamou de processo indireto de recomposição da exclusão do exescravo Ainda na primeira metade do século XX Lobato o escritor infantojuvenil logo um educador heterodoxo de maior sucesso em sua época para quem era difícil ser gente no concerto dos povos com negros africanos criando aqui problemas terríveis dizia em carta ao amigo Godofredo Rangel que a escrita é um processo indireto de fazer eugenia e no Brasil os processos indiretos work muito mais eficientemente Lobato era militante do movimento eugenista Processo indireto é para ele o racismo sem doutrina gritada da cordialidade patronal ou paternalista tanto em que seus textos ficcionais se pode encontrar um ambíguo afeto para com os negros e presente de modo oblíquo nos discursos eugenistas que transitaram de fins do século XIX até o terceiro milênio Essa particular compreensão da forma social escravistaracista parte da necessária distinção entre representação maneira de conceber o mundo ou a realidade das coisas e crença ou seja o fato de incorporar a realidade tal e qual portanto é um motor ou a energia das representações coletivas44 A forma institucional não se reduz à materialidade propriamente dita da instituição Assim o modo de realização da forma institucional ultrapassa os mecanismos de gestão de produção das normas conferindolhe certa plasticidade que decorre do que lhe acontece como signo da transformação de uma sociedade Ela aparece publicamente como estando em construção45 Essa forma toma o lugar de ideologias que já não mais vigoram para perpetuar determinados dispositivos de representação Da mesma maneira forma social distinguese de sociedade e pode dar continuidade a representações passadas O societário ou a dimensão dita oficial diz respeito às unidades estáveis da organização coletiva como os sistemas territoriais as indústrias as associações voluntárias as cooperativas etc Já o social propriamente dito referese aos laços de parentesco de amizade e de sociabilidade que se fazem e se desfazem sem a durabilidade do que está implicado no societário Uma forma social contorna a dimensão societária Este é o caminho que leva à compreensão de como uma sociedade politicamente democrática pode conviver com formas de vida protofascistas Assim a forma social pode ser historicamente assimétrica à modernidade das formas de produção vigentes desde que não existam condições culturais nem educacionais para a simetria Isso é possível por motivo da prevalência a partir de um determinado momento histórico da hegemonia controle ideológico ou cultural sobre a dominação monodirecional inerente ao fator exclusivamente econômico da relação escravista em que o escravo é apenas mercadoria peça viva ou coisa que fala De fato o campo da hegemonia comporta uma dupla via discursiva mesmo assimétrica em termos de liberdade de ação em que a fala subalterna é mais do que um eco do senhor de escravo pela possibilidade de negociar p ex o resgate da liberdade e de articular estratégias culturais irmandades liturgias ludismos Um primeiro passo metodológico nos conduz a confrontar a ideia de sociedade entendida como uma totalidade de relações de produção e de dominação dentro de um mesmo conjunto à ideia de cultura entendida como saberes e comportamentos distintivos aprendidos e transmitidos aos membros de um grupo humano Social e sociedade são noções aplicáveis a modos de organização tanto humanos como animais enquanto cultura que abarca formas de mediação como crenças artes ritos pensamentos e configura uma dimensão moral ou afetiva restringese à dimensão humana Um segundo passo leva à distinção entre vinculação originária em que nascimento e morte presidem à existência comum e relação secundária denotativa das conexões nas esferas da produção e da exploração mantidas pelos grupos entre si dentro de um mesmo conjunto ou para com outros conjuntos Nessa dimensão secundária a sociedade impõese como uma totalidade ou um sistema de relações