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Geografia ·

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Sou historiador monitor local e atuo aqui nas atividades da comunidade desde a gestão da associação sou liderança na Coordenação Estadual de Quilombos CONAQ membro da Coordenação Nacional de Quilombos também e faço parte da Comissão Nacional de Educação Escolar quilombola também fui diretor e atualmente fui direcionado pelas comunidades para participar do Conselho Nacional de Educação na pauta de Ciências Humanas pra tá discutindo currículo lá juntamente com a equipe que tá nesse grupo de discussão lá tá Então essa é um pouquinho da minha atuação aqui na comunidade além da liderança nacional aí do movimento quilombola e hoje eu vou conversar com você um pouquinho né Rápido porque vocês têm o material noturno ainda pra fazer sobre um pouquinho da história da comunidade que é Ivaporunduva e como estamos né Porque estamos aqui em questão de localização geográfica nós estamos aqui no Vale do Ribeira município de Eldorado região do Estado de São Paulo um município que concentra aí o maior número de comunidades quilombolas do Estado de São Paulo sendo treze comunidades quilombolas e Ivaporunduva é a mais antiga delas Ivaporunduva vem aí do Guarani então significa rios de águas boas de muitos frutos No processo de colonização foi dado esse nome aqui para este território quilombo Assim como Eldorado que tinha o nome de Xiririca também do Guarani aí depois mais recente há cinco seis décadas atrás mudaram para Eldorado por conta de ser um município onde ocorreu a corrida do ouro né Eldorado é também o quarto município em extensão territorial Como que surge então o território de Ivaporunduvaesse povoado no nesta região Lá no século XVI veio prá cá nessa região Martin Afonso de Souza em uma expedição e aí ele passa pelo Rio de Janeiro Guanabara faz uma pausa lá após dias de navegação com seu grupo é já era explorada aquela região e depois continuou margeando o litoral até chegar aqui na nossa região do Ribeira e eles percebem que já havia pessoas aqui na região né Os povos originários já estavam por aqui e faziam essa caminhada até o Paraná né Pelo litoral já faziam o uso deste território então já havia pessoas ali não foi uma descoberta assim né Porque assim como os demais e chegando aqui lá em 1531 eles veem a área e têm a percepção da extensão do território e da possibilidade de riqueza Eles comunicam a Coroa portuguesa da possibilidade de exploração aqui na região e seguem viagem Então daqui ele vai lá pra baixada santista município de São Vicente tá Então São Vicente é de 1532 e aí eles colocam lá o slogan da cidade São Vicente é a primeira cidade do Brasil mas já tinha passado aqui por Cananéia e pelo Vale do Ribeira E então a partir deste informe de Portugal as pessoas começam a vir com mais expedições pra cá aí começa a formar os municípios do vale do Ribeira principalmente Cananéia e Iguape Registro Sete Barrase aí o pessoal vem chegando né Votuporanga Eldorado como que eles vem chegando Pelo Rio Ribeira de Iguape vocês vão ver amanhã mais vão ter a possibilidade de ver esse rio que é um rio interestadual deságua lá no Paraná E deságua aqui em Iguape aqui no litoral E esse rio era um rio possível de navegação Chegou em Eldorado foram criando os povoados as fazendas e então ali a gente Tem a fazenda Poçã Lajeado tem a fazenda Caiacanga a gente tem em Registro o quilombo Peropava é em Iguape a gente têm a comunidade quilombola e aí foi né local de exploração foi ampliando os territórios e depois foram vindo para esta região Aí a portuguesa Maria Joana chega um pouco depois no século XVII A margem abaixo já tava mais povoada e ela sobe o Rio Ribeira e com os seus pararam às margens e percebem a possibilidade de riqueza Então adentraram no Rio Bocó viram que tinha vários córregos que desaguavam nele e como possibilidade de minério né E também pequenas pepitas de ouro Em alguns registros a gente têm parte dessa história então houve essa chegada a gente fala de 1630 pra cá esse primeiro grupo que chega aqui nessa região com mais de 12 13 negros africanos que estavam embarcados mais os que estavam ali pra servir capitão do mato jagunço e nesse território eles começaram a explorar o ouro em pó que é o ouro de aluvião né Há vários resquícios ainda hoje visualmente onde houve o processo de exploração de ouro Há valas há corregos é que foram desviados há empilhamento de pedra então tem o que a gente chama de córrego do ouro tem as valas né Onde houve esse processo de exploração do ouro Mas você acredita nisso Elson Houve realmente No final dos anos 80 nós tínhamos três senhores aqui que faleceram e eles buscavam a possibilidade de ir atrás desse ouro e eles tinham garrafinhas com ouro em pó e algumas pepitas de ouro E isso a gente via na mão deles e até na escola também No final dos anos 80 mostravam né E aí depois com o falecimento deles a família ficou com aquilo ali e não deram mais prosseguimento de fazer essas demonstrações até porque as especulações começaram a crescer muito sobre o nosso território né Nos anos 80 90 aí por conta dessas riquezas Mas então esse grupo é liderado pela Maria Joana vieram na busca desse minério alguns registros falam que foi tirado mais de 400 arrobas de ouro aqui da região e ela criou com a mão de obra africana escravizada a sede da fazenda a 900 metros daqui que vocês vão conhecer o Centro Histórico do Quilombo onde tem uma igreja histórica de Nossa Senhora do Rosário que é a padroeira foi trazida de Portugal pra cá também como imagem e onde era a senzala que se deteriorou no final dos anos 40 E aí explorando essa região ela obrigou eles construírem essa igreja com mais de 350 anos que está instituída Hoje ela é tombada pela Secretaria da Cultura e está em processo de tombamento também pelo Iphan então é aberta para visitações E pra nós é um símbolo histórico de resistência porque foi construída por mão de obra africana escravizada foi tentado implantar o catolicismo sobre os nossos ancestrais e de fato conseguiram porque essa é a única igreja que tem aqui dentro do território Mas com o passar do tempo esse catolicismo não ficou tão conservador Dentro desse sincretismo também a gente não tem uma exclusão de religiões Já houve momentos ali de fazer casamento estava o padre mãe de santo e o pastor no mesmo espaço celebrando há famílias evangélicas ou protestantes na comunidade Há mas tem famílias de outras religiões Porque antes o local de reunião discussão e articulação era dentro da igreja Passa um tempo ela fica doente e retorna para Portugal Alguns historiadores inclusive o historiador daqui do vale do Ribeira que é o professor Carlos falam que ela foi pra Minas Gerais para a corrida do ouro Mas como ela teria ido doente deixou um grupo grande de negros africanos aqui por mais de três meses sem notícias E aí eles perceberam que tinham sido abandonados A partir daí a Ivaporunduva já tá liberta daquele período de escravização final do século XVII Graças a Deus que partiu foi e não voltou risos Um grande ganho para nossos ancestrais que viveram aqui Aí a notícia se espalhou e os negros de outras regiões começaram a vir pra cá também e aqui formou esse grande núcleo de pessoas africanas libertas mesmo antes das falsas leis abolicionistas E aí o que eles fizeram Houve tentativa de capturálos novamente houve guerra às margens do Ribeira de Iguape mas eles prevaleceram e a igreja sempre foi um encontro para se esconder e se fechar lá dentro porque é um espaço construído de pedra e de taipa e uma parede de 15 metros de largura Pra chamar atenção também batiam o sino E aqui começaram a se formar as primeiras famílias pretas libertas Por que Quando eles foram capturados na África as famílias não foram escolhidas era muito aleatório esse processo E daqui dividiu outras comunidades Nós temos nessa mesma margem do Ribeira o quilombo São Pedro que nasce de famílias nossas aqui Ah mas como você sabe disso Pelos eixos familiares nossos Os marinhos os Rodrigues Cubos Furquins a gente fala do Gregório Marinho que é a ligação familiar nossa que marca o século XVIII mas os pupos também não estavam aqui e aí essa região mais abaixo de outro município também se formou mais tarde a partir das falsas leis abolicionistas outro núcleo de quilombos que formam os três quilombos de Eldorado Mas daqui de Ivaporunduva é que nasce esse primeiro processo Por que falamos de falsas leis abolicionistas Por que a Lei do Ventre Livre é uma falsa lei onde a coroa disse que poderia cuidar daquela criança ou a criança tava liberta Como a criança recém nascida vai se virar sendo que os pais estavam ali trabalhando 24h escravizados Então aí fica uma interrogação Aí vem a Lei dos Sexagenários de 1985 onde todos aqueles que completassem 60 anos estariam libertos mas como que em uma expectativa de vida de 30 35 anos iria chegar aos 60 E aí a grande Lei Áurea de 1888 mas no dia 14 de maio os libertados iriam pra onde As pessoas começaram a procurar espaço pra ficarem e aí se depararam com um grande problema as regiões já estavam sendo exploradas então eles acabavam voltando para o mesmo ponto E aí aqueles fazendeiros como dizem os livros eu já falo exploradores sequestradores diziam que eles poderiam ficar ali sem sofrer consequências mas sob sua própria subordinação Por que eles não puderam ocupar o território Porque em 1850 teve a primeira lei de terra oficial no Brasil onde a Colônia Portuguesa dividiu nosso território brasileiro Ele foi dividido para espanhois e portugueses que já estavam aqui e para os negros e indígenas nada sobrou A primeira lei de cotas do Brasil foi pra brancos Pretos e indígenas não tinham acesso à educação Então nasce as primeiras famílias do vale do Ribeira formamse outras comunidades aqui e os povos originários também aprendem outras técnicas do usos de recursos naturais da mata atlântica Para poder viver no território passaram a desenvolver a agricultura formar suas pequenas casas e fixaram se no território É assim que se dá nossa estrutura aqui nem Ivaporunduva e nas comunidades vizinhas Fizemos a Primeira Guerra Mundial depois a segunda e após essa é que a articulação fica mais forte a gente tem uma Ditadura Militar que termina na década de 80 e o nosso povo articulando não se podia fazer reuniões a censura era muito grande Então criouse na Constituição Federal o Artigo 68 a gente pediu reconhecimento do Encontro Quilombo o Governo Federal criou a Fundação Cultural Palmares em 1989 não tinha corpo técnico depois se cria uma equipe no início dos anos 90 e em 94 fomos reconhecidos como quilombo Em 97 e 98 o Estado também entra em ação através da fundação Instituto Terras de São Paulo com uma equipe também mínima e então a gente passa a ser reconhecido pelo Estado como quilombo em 97 Em 98 a gente consegue a primeira parte do título A nossa associação está constituída de forma que todo mundo vota somos aqui 110 famílias 400 habitantes e essas famílias participam dessa associação onde todos são sócios Há uma votação a cada dois anos a gente elege uma diretoria com 10 membros Não é piramidal é circular Coordenador Geral com seus respectivos vices Esses 10 membros discutem semanalmente a política da comunidade Quando tem problema que eles não conseguem resolver chamam a Assembleia Geral pra discutir no grupo Não tem reeleição Temos grupos de fontes de renda que é dividida por igual por toda a comunidade Venda de banana palmito turismo grupo de artesanato Por fim temos de 10 a 12 funcionários públicos e aposentados Na maioria das casas aqui não temos cercas ou muros porque o território é coletivo Em 2002 tivemos a segunda parte reconhecida e o Incra reconheceu todo o território foi um processo maior Em 2003 a última faixa que faltava foi reconhecida O título foi registrado em 2010 em julho Nós somos a primeira comunidade do Vale do Ribeira a ter o registro definitivo das terras O restante é área de proteção ambiental Nós estamos lutando pelo título de todos os territórios quilombolas não só aqui E há também uma coisa do Governo Estadual de tentar emitir títulos provisórios de usufruto e nós não estamos aceitando isso Nós queremos o título de posse definitiva dos territórios para que as famílias possam dar continuidade sem o medo de ser destituído daquele local No quilombo toda família tem casa e fonte de alimento e auxílio da comunidade Nós trabalhamos de forma coletiva Estar no quilombo é respeitar as formas de vida as pessoas o coletivismo a prosperidade e saber que virão gerações futuras Elson quilombo e historiador Em sequência foram feitas algumas perguntas relevantes para o historiador da Comunidade Quilombola de Eldorado Pergunta Você comentou que o trabalho de vocês junto com o turismo de base comunitária depois não entendi como vocês dividem essa renda gerada por todo esse trabalho que vocês fazem Uma coisa que também fiquei em dúvida é que hoje a gente tem também a questão das mudanças climáticas desde 1980 enfim e hoje a crise é muito mais agravada e você falou Ah a gente olha o sol o tempo e sabe plantar de acordo com isso Como ficaram esses períodos pra cá Se perderam muitas plantações Enfim como está esse panorama dessas perdas por conta da crise fogo Se nessa região vocês chegaram a ser afetados diretamente por isso Resposta A questão do processo das cadeias produtivas por exemplo a banana a gente comercializa por semana 800 cachos de banana O recurso cai na conta da Associação e a Tesouraria se reúne uma vez por mês e cada produtor vai lá assina o seu vale e sua parte é depositada em sua conta Turismo e artesanato é a mesma coisa E a questão climática afetou bastante a região porque quando se tem quatro estações e uma delas praticamente não existiu ao longo do ano a sua produção é prejudicada Pergunta O senhor falou que o Quilombo em associação sobrevive através da agricultura Como funciona a associação para conseguir políticas públicas para ajudar Se o senhor participa de programas para a compra de equipamentos adubo etc Resposta Nós éramos excluídos desses programas O CONAF abriu as portas do Banco do Brasil aqui na região em 2002 a fundação do Instituto Terras de São Paulo nós não tínhamos acesso Passamos a ter acessos após os nossos terem acesso à universidade e voltarem Nós fortalecemos o conhecimento da Academia com o conhecimento prático nosso do dia a dia e passamos a dizer não Pergunta Pergunta As pessoas saem daqui do quilombo e vão para as universidades para trazer conhecimento ou não Resposta Pra agregar conhecimento à comunidade Se saírem daqui nós queremos que saiam para viver bem e não sobreviver Pergunta Pergunta você citou os alimentos que ajudam na contribuição de renda vocês aqui dentro produzem outros alimentos e fazem essa troca entre vocês Outra coisa sobre o aumento da produção Além da produção orgânica também adotam técnicas e princípios da produção ecológica se também seguem essa pauta e se você identifica que a juventude aqui dentro tem essa dificuldade de identificação com território Resposta No passado já tiveram hoje não Eles já têm consciência de quem são onde estão Não tem mais essa negação da identidade A escola onde eu fui alfabetizado negou muito esse processo e para os meus que estavam naquela época na escola Mas não desvalorizo a cultura dos de fora também E a produção é diversa mas esse ano não conseguimos plantar arroz então fizemos compra de mercadoria Nós fazemos trocas com vizinhos E o excessivo da horta nós vendemos Aqui a maioria dos produtores são orgânicos apenas três produtores trabalham com o convencional A gente tem uma inspeção Pergunta Gostaria de saber o impacto do bolsonarismo para a comunidade Se teve impactos diretos Como é a participação da comunidade nos Conselhos Resposta Nós temos membros de cada conselho E a questão política nós tivemos quatro anos de retrocesso falando da perspectiva quilombola porque foram quatro anos sem a certificação e sem o registro de território políticas negacionistas repressão Ele deixou um projeto de Minas e Energia para explorar o minério aqui nessa região eles ameaçaram entrar na justiça nós fomos ao Ministério da Energia cobramos o atual presidente colocamos em processo que queriam entrar na nossa comunidade A política do Tarcísio nosso governador não é diferente A seguir temos uma breve entrevista com um dos membros da comunidade Me fala seu nome completo e sua função aqui no Quilombo Como vocês se organizam aqui Meu nome é Laudessandro Marinho da Silva tenho 40 anos formação técnica em agricultura e Barachel em Administração de empresas Hoje sou coordenador geral do grupo de agricultura orgânica Trabalho no processo de controle gerenciamento prestação de contas e entregas dos alimentos que saem da comunidade para a alimentação escolar Hoje nós entregamos para as escolas estaduais pelo projeto PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar que é um projeto estadual Então entregamos para a região centro centrosul e Mogi das Cruzes E esse processo de prestação de contas emissão de nota fiscal e controle das entregas é a minha função e também participar dos eventos e reuniões dentro do território quilombola Quais os principais desafios para vocês manterem a agricultura e como elas resistem à essa lógica do capitalismo O maior desafio é trabalhar contra o sistema capital O nosso trabalho aqui é mais de proteção do ambiente natureza e nós fazemos parte dela e a dificuldade é que o sistema é contrário a isso Sempre quer buscar o lucro Aqui para a valorização da cultura quilombola às vezes a gente tem que contrapor esse sistema Basicamente a produção do agronegócio não é para a alimentação de pessoas é para suprir outras coisas E a gente contrapõe isso por isso falamos agricultura de subsistência Como é a questão do turismo de base comunitária Para nós o território é o símbolo da liberdade Essa luta é resistência nada mais É a nossa luta pela liberdade a conquista daquilo que é direito nosso A gente só pode falar do turismo porque nós temos um território Essa luta de mais de 300 anos é para manter a natureza viva A gente é descendente de um povo escravizado pela mineração Essa parte do turismo a gente reflete o que é importante Temos ameaças ainda e contrapomos isso porque queremos que a natureza seja liberta E o turismo dentro da nossa comunidade é de base comunitária contando também a história do ponto de vista nosso Nós falamos a partir de nossa experiência de vida e a partir daquilo que acreditamos que a história é de fato Nós não somos descendentes de fugitivos Eles não cometeram crimes para fugir Nós lutamos e resistimos contra o processo da escravidão Quais são as principais festividades que vocês têm aqui hoje dentro do quilombo Nós seguimos algumas festividades dentro do ano por exemplo a gente segue as festividades de Santos Em janeiro nós comemoramos o São Sebastião santo protetor da natureza e também da cura E em junho os Santos juninos E a comemoração da Padroeira da Nossa Senhora dos Homens Pretos em outubro Território de afetos práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro Mariléa de Almeida ORCID iD 0000000160153226 Núcleo de Pesquisa da Mandata Quilombola Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo São Paulo Brasil Resumo A visibilidade atual das mulheres quilombolas é o ponto de partida deste artigo que pergunta sobre os modos femininos de fazer política especialmente a dimensão antirracista dessas ações O recorte temporal parte do final de 1980 quando foi criado o direito territorial para as comunidades remanescentes de quilombo O trabalho focaliza práticas de quilombolas do Rio de Janeiro que ao transmitirem saberes fortalecem os laços entre as pessoas e os territórios onde vivem Essas ações compreendidas como territórios de afetos ampliam espaços de subjetivação por meio dos deslocamentos de sentimentos provocados pelos dispositivos racistas sexistas e classistas que incidem sobre seus corpos e territórios Palavraschave Mulheres quilombolas Práticas antirracistas Território Afetos Territory of affection antiracist female practices in the contemporary quilombos of Rio de Janeiro Abstract The current visibility of quilombola women is the starting point of this thesis that asks about feminine ways of doing politics especially the antiracist dimension of their practices The timeframe starts in the late 1980s when the territorial rights of the descendants of quilombola communities were created The work focuses on the practices of quilombola women from Rio de Janeiro who in transmitting knowledge strengthen the bonds between people and the territories they inhabit These actions understood as territories of affection expand spaces of subjectivity through the shifting feelings provoked by racist sexist and classist dispositifs that affect their bodies and territories Keywords Quilombola women Antiracist practices Territory Affection Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp Email marileaatmgmailcom Apresentação Faz tempo que a imagem dos quilombos tem sido utilizada para evocar a resistência antirracista bem como propor um modelo societário a ser seguido1 Até o século XX o tropo predominante sobre a resistência quilombola valorizava experiências masculinas em termos de virilidade violência e força Entretanto nas últimas três décadas estamos presenciando transformações nos significados atribuídos à resistência quilombola A recente visibilidade e o reconhecimento do protagonismo das mulheres quilombolas na luta pela terra exprimem que o conteúdo dessas mudanças incorpora a dimensão de gênero Esse acontecimento histórico materializase em inúmeros trabalhos acadêmicos documentários e matérias jornalísticas2 Destacase em 2020 a publicação do livro Mulheres quilombolas territórios de existências negras femininas A obra coletiva escrita por dezoito mulheres quilombolas apresenta teorizações que acontecem rente aos corpos nos enfrentamentos com a violência que incide sobre seus territórios suas comunidades e suas corporeidades Dealdina 2020 Nas últimas três décadas as mulheres quilombolas deslocaramse da invisibilidade e ocuparam a cena pública como autoras de suas histórias Esse percurso histórico é narrado em minha tese Territórios de afetos práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro defendida em 2018 no programa de pósgraduação em História da Universidade Estadual de Campinas Unicamp Em linhas gerais o trabalho pergunta sobre as novidades que as práticas de mulheres quilombolas têm trazido para o fazer político especialmente para os campos dos antirracismos e dos feminismos O arco temporal parte do fim de 1980 quando foi criado o direito territorial para as comunidades remanescentes de quilombo chegando até a primeira década dos anos 2000 quando ocorre de forma simultânea e paradoxal a ampliação de políticas públicas em territórios quilombolas e o crescente processo de burocratização de acesso ao direito territorial Durante a pesquisa realizada nas comunidades quilombolas do Rio de Janeiro entrevistei 48 quilombolas a maioria mulheres negras cisgênero de idade e tom de pele diversificados Igualmente variadas eram as formações acadêmicas filiações políticas e práticas religiosas Algumas delas concederamme entrevistas que seguiram a linha do relato de vida enfocando as práticas mobilizadas durante os processos de engajamento na luta quilombola Em geral os temas relacionados ao racismo e ao sexismo surgiram 1 Uma proposta que articula a militância política à dimensão conceitual de quilombo é o conceito de quilombismo criado por Abdias do Nascimento nos anos 1980 Tratase de um projeto político que pretende aglutinar os movimentos negros em torno do modelo coletivo de Palmares Nascimento 2019 destacase igualmente a abordagem da historiadora Beatriz Nascimento que abordou o quilombo como tecnologia política banto e instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da identidade negra brasileira Nascimento 2018 2 Entre trabalhos acadêmicos e livros destaco Prates 2015 Böschemeier 2010 Cunha 2009 e Silva 2019 entre os documentários destaco Dandaras 2015 e Raça 2012 nesses encontros sem que eu os tivesse provocado Muitas vezes percebi que meu corpo de mulher negra com meu cabelo crespo era um facilitador para que as mulheres começassem a falar comigo sobre esses temas Suas reações entretanto eram diversas passaram pela admiração pelo espanto pela curiosidade e até pela desconfiança Em alguns casos elas destacavam o fato de eu ser a primeira ou estar entre as poucas pesquisadoras negras com quem tiveram contato Para as finalidades deste artigo cujo objetivo central é tornar visível os usos da transmissão da história por meio da oralidade como uma prática antirracista pelas mulheres quilombolas o texto se desdobra em três eixos analíticos O primeiro descreve em linhas gerais as condições históricas que favoreceram a visibilidade contemporânea das mulheres quilombolas O segundo detalha as bases teóricas que embasam a abordagem sobre o conceito territórios dos afetos E por fim no terreno das práticas percorro a trajetória de Marilda de Souza liderança do Quilombo de Bracuí situado em Angra dos Reis RJ Marilda é contadora de história reconhecida como uma guardiã da memória coletiva do grupo reconheciam o peso do racismo na perpetuação das injustiças sociais Sobre os significados de quilombo as mulheres e as práticas culturais identificadas como femininas foram sendo aos poucos selecionadas como os novos símbolos da terra Esse processo se reforçou conforme na batalha discursiva passaram a ser reivindicadas as relações que se estabelecem com o território e não apenas comprovações materiais e arqueológicas da origem histórica do grupo Se por um lado os novos sentidos do termo permitiram o reconhecimento de inúmeros grupos como quilombolas por outro a identidade construída sob uma ideia estática de tradição cultural não significou o acesso imediato ao direito territorial tampouco trouxe transformações significativas das condições de vida das comunidades que passaram a se autodefinir como quilombolas Durante toda existência do direito quilombola a instabilidade tem regido o tom das políticas públicas Essa situação foi detalhada pela pesquisadora Allyne Andrade e Silva 2020 em sua pesquisa sobre o Programa Brasil Quilombola PBQ O programa foi criado em 2004 com o objetivo de implementar políticas públicas interinstitucionais destinadas a essas populações Em que pese a inovação da proposta conforme detalha a pesquisadora desde a sua criação o PBQ foi objeto de disputas políticas e de progressivos esvaziamentos orçamentários Em 2016 o golpe parlamentar que levou ao poder Michel Temer igualmente atingiu as comunidades quilombolas culminando com o encerramento do PBQ A ineficácia e a descontinuidade das políticas públicas materializamse inclusive pela discrepância sobre o quantitativo de comunidades existentes no país A Fundação Palmares até novembro de 2018 havia certificado 3212 comunidades quilombolas4 Em janeiro de 2021 o relatório publicado pelo grupo de pesquisa Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Cebrap sugere que número de comunidades quilombolas pode chegar a 6 mil Essa conclusão ocorre a partir da análise de dados preliminarmente divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE que em 2020 realizou um levantamento dos territórios quilombolas Arruti et al 2021 A consolidação dos dados da pesquisa do IBGE servirá de base para a realização do primeiro censo demográfico sobre os territórios quilombolas informação incontornável para o desenho eficaz de políticas públicas De todo modo a expressividade numérica dos territórios quilombolas é diametralmente oposta à quantidade de titulações obtidas Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Incra responsável pela titulação dos territórios paz quilombola Para a autora um quilombo como o de Palmares entre um ataque e outro da repressão oficial mantinhase ora retroagindo ora se reproduzindo E os tempos de paz eram fundamentais para a longevidade dos quilombos porque permitiam a reprodução dos seus modos de vida Nascimento 2018 4 Fundação Cultural Palmares Quadro geral de comunidades remanescentes de quilombos CRQs 2018 Disponível em httpwwwpalmaresgovbrwpcontentuploads201507quadrogeralpdf Acesso em 14 ago 2021 tradicionais quilombolas entre os anos de 2005 e 2018 apenas 278 foram contemplados com a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação RTID uma das primeiras e mais importantes etapas do moroso processo de regularização territorial No mesmo período somente 124 comunidades tiveram a titulação de seus territórios5 Apesar da atual inexistência de dados oficiais atualizados sobre as comunidades quilombolas em 2013 o relatório do Programa Brasil Quilombola detalhou a situação de precariedade em que vivem as comunidades certificadas como quilombolas Brasil 2013 p 16 Das 80 mil famílias quilombolas constantes no Cadastro Único CadÚnico sistema que serve de banco de dados para programas sociais o documento indicou que 747 viviam em extrema pobreza O relatório também apontou que os quilombolas tinham menos acesso a serviços básicos como saneamento e energia elétrica quando comparados ao restante da população Entre os quilombolas 487 viviam em casas com piso de terra batida 5521 não contavam com água encanada 3306 não tinham banheiro e 1507 deles só contavam com esgoto a céu aberto Havia ainda alto índice de analfabetos 2481 não sabiam ler e em 2013 a taxa de analfabetismo dentro das comunidades quilombolas era quase três vezes mais alta do que a média nacional de 91 apontada pela Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Pnad Os números expressam como o desamparo social é consequência da forma predominante de governar os corpos daqueles que vivem nas comunidades quilombolas impondolhes condições desumanas Essa situação evidencia como o racismo governa as condutas por meio de tecnologias de poder que permitem a agressão e justificam a destruição corporal e simbólica daquelas populações já que quando se trata dos territórios quilombolas estamos falando de uma série de práticas saberes e valores que se perdem diante das dificuldades de continuar vivendo a partir de seus modos de vida tradicionais Encruzilhadas teóricas território afeto e política As condições materiais colocam em risco a continuidade dos modos de vida Não por acaso que várias mulheres quilombolas se valem da transmissão de saberes como forma fortalecer os vínculos entre as pessoas e os territórios Suas práticas mobilizam o que denomino de território de afeto entendido como um campo de ação política que se exprime pela manutenção criação ou redefinição de espaços potencializados para aqueles que vivem nos territórios quilombolas Territórios de afetos não são definidos pela identidade jurídica quilombola mas pela relação que se estabelece com o lugar 5 INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Relatório Técnico de Identificação e Delimitação RTID resultado anual de 2005 a 2018 2019 Disponíveis em httpswwwgovbrincra ptbrassuntosgovernancafundiariaandamentoprocessospdf Acesso em 14 ago 2014 e com aqueles que nele vivem Tratase de uma atitude política que privilegia o uso de saberes como forma de ampliar espaços de subjetivação constituídos por meio dos deslocamentos de sentidos que essas mulheres realizam em relação aos efeitos das exclusões de raça de classe ou de gênero que afetam seus corpos e os territórios de suas comunidades Lanço mão do termo afeto no caminho aberto por Espinosa ou seja as afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída estimulada ou refreada e ao mesmo tempo as ideias dessas afecções Espinosa 2013 p 16377 Socialmente nomeamos sensações que atravessam os nossos corpos como amor raiva medo mas vale dizer que os afetos não se confundem com o que chamamos de sentimentos Os afetos são intensidades que atravessam os nossos corpos e muitas vezes não conseguimos nomear mas que mobilizam nossos gestos ações e pensamentos Nos últimos anos em termos teóricos cada vez mais se reconhece nas Ciências Sociais a importância do afeto ao lado da razão do cálculo e da estratégia nas múltiplas dinâmicas da vida incluindo a política Esse tem sido o fundamento teórico central do que atualmente denominamos virada afetiva Nos Estados Unidos desde a década de 1990 e no Brasil nos últimos anos a abordagem tem sido usada pelas teorizações feministas e queer Apesar das diferentes filiações teóricas em torno da virada afetiva há pelo menos duas convergências que merecem destaque primeira a rejeição de uma hierarquia entre mente e corpo para a construção do conhecimento Almeida 2018 segunda o enfoque tanto em nosso poder de afetar o mundo a nossa volta quanto o de sermos afetados por ele Hardt 2015 As dores e os traumas narrados permitem visualizar os deslocamentos dos afetos tristes em direção aos afetos que potencializam a ação o que leva a pensar sobre a importância da criação de espaços outros de subjetivação Por isso a abordagem de território que atravessa este trabalho engloba a um só tempo três dimensões que não estão apartadas entre si mas que para fins de visualização descrevo nos seguintes termos a materialidade física das relações que as quilombolas estabelecem com o território do quilombo a materialidade simbólica dos significados que atribuem aos espaços e por fim a materialidade subjetiva dada pela abertura de espaços de deslocamento de sentido de discursos racistas sexistas e classistas Por essa articulação são valiosas as reflexões propostas por Muniz Sodré que ao falar das especificidades dos territórios negros considerou A territorialização é de fato dotada de força ativa Se isso foi historicamente recalcado devese ao fato de que a modelização universalista a metafísica da representação opõese a uma apreensão topológica territorializante do mundo ou seja a uma relação entre seres e objetos em que se pense a partir das especificidades de um território Sodré 1988 p 13 Sodré cuja abordagem sobre território questiona os modelos teóricos que tendem a pensar os espaços como homogêneos e fixos em suas funcionalidades define território em termos de porosidade uma vez que seria dotado de uma força ativa o que implica tomar os territórios em termos de multiplicidade e deslocamentos bem como as afecções que eles provocam É uma discussão que nos leva às intrínsecas relações entre espaço e subjetividade Para abordar as motivações do presente que conduzem a luta quilombola inspirome de igual modo na abordagem de Givânia Maria da Silva quilombola e pesquisadora da educação do Quilombo Conceição das Crioulas situado em Salgueiro PE que diz Partindo dessa perspectiva pensar quilombo como o presente é necessário nos despir dos conceitos de quilombo apenas como algo ligado ao passado estático e reconhecêlo no hoje Essa visão estática não reconhece as mudanças que ocorreram ora por força das organizações próprias dos quilombos ora pelas novas formas de escravização Só a partir de uma compreensão nova em que se considere a diversidade quilombola suas características e especificidades culturais regionais geográficas e políticas é que podemos compreender melhor quem são os quilombos suas lutas e resistências como estratégias de construção de seus modelos de desenvolvimento e processos organizativos próprios É preciso pensar em um presente que coloque o Estado brasileiro na condição de agente devedor mas ao mesmo tempo responsável pela elaboração e execução das políticas públicas para as comunidades quilombolas rompendo com as marcas do passado escravo que as colocou em situação de desigualdade Silva 2012 p 3738 Os territórios de afetos concebidos como criações do presente referemse às práticas construídas pelos deslocamentos dos sentimentos relacionados tanto à materialidade da terra seja o medo de perdêla seja o cansaço da espera jurídica seja o orgulho de preservála quanto aos dispositivos dominantes de poder que se baseiam nas exclusões de raça gênero e classe A fim de visualizarmos os usos da história e da oralidade como uma experiência que evoca territórios afetivos seguiremos pelas trilhas construídas por Marilda de Souza Francisco História e reparação as práticas de Marilda de Souza Francisco Marilda é uma liderança quilombola respeitada dentro e fora da comunidade por ter se constituído como um arquivo vivo das histórias locais partilhandoas pela oralidade A primeira vez que estivemos juntas foi no finalzinho da tarde de 24 de fevereiro de 2016 Naquele dia Angélica de Souza Pinheiro outra liderança do quilombo que lamentavelmente veio a falecer em setembro de 2016 levoume até a casa de Marilda para que eu fizesse os primeiros contatos6 No caminho Angélica mencionou que a irmã de Marilda Maria Lúcia estava hospitalizada e que ela vinha a acompanhando no hospital Diante disso imaginei que o encontro seria breve apenas para agendarmos uma conversa futura a ser realizada em momento mais conveniente Quando lá chegamos à medida que iniciamos informalmente as apresentações Marilda começou a contar histórias que envolviam a irmã e outros integrantes da comunidade Aos poucos enquanto falava percebi como o semblante de preocupação dava lugar a uma expressão mais descontraída Naquele instante intuí que estava diante de uma contadora de histórias Marilda nasceu em 15 de fevereiro de 1962 em Angra dos Reis nas mesmas terras que em 1878 foram doadas no testamento do comendador José de Souza Breves para o grupo de exescravos e escravas da fazenda Durante a infância nos terreiros do Bracuí além das brincadeiras e travessuras ela ouvia a forma como seu pai Antônio Francisco Ramos contava histórias Um jeito segundo ela cheio de alegria Aos poucos Marilda foi desejando recontálas de seu jeito Eram histórias do tempo do cativeiro dos desembarques clandestinos da doação das terras feita no fim do século XIX das condições de vida no pósabolição das grilagens e das pressões para que seus familiares abandonassem o território Também eram histórias de fantasmas assombrações descoladas da necessidade de semelhança com a realidade No Bracuí as narrativas sobre o passado estão presentificadas não apenas nas paisagens mas também nos corpos que recontam essas histórias Bracuí é terra de griots e griottes ou seja lugar de inúmeros contadores de história7 Foi nessa terra que Marilda aprendeu tais histórias mas foram as condições históricas em torno da construção da diferença quilombola que favoreceram o reconhecimento do valor dos saberes que ela possuía Naquele momento ela foi construindo novos significados para as histórias contadas por seu pai conferindolhes a potencialidade política de criar laços entre as pessoas e o espaço onde vivem além de concebêlas como algo fortalecedor da autoestima para aqueles que moram no Bracuí A esse respeito Marilda explica então a nossa luta continua sendo pela conquista da terra e o fortalecimento da comunidade das pessoas tipo educação mesmo autoestima porque nós negros temos muita baixa estima pelo que aconteceu nos tempos passados Marilda de Souza Francisco 2014 Do enunciado acima destaco a articulação entre a luta pela terra e a necessidade de fortalecimento da autoestima por meio da educação É uma percepção acurada de que o racismo não implica apenas privação material e de direitos mas também afeta o que há de mais subjetivo a capacidade de visualização das próprias potencialidades Para isso é preciso elaborar o trauma pelo que aconteceu nos tempos passados uma atitude corajosa de enfrentamento da dor A análise de bell hooks tratando da dimensão do trauma na experiência negra estadunidense converge com a percepção de Marilda Em toda a história de nosso país negros e sociedade como um todo quiseram minimizar a realidade do trauma na vida do negro Isso tem sido fácil a qualquer um que se concentra nos assuntos relativos à sobrevivência material e vê sua privação como a razão principal da continuidade de nosso caráter coletivo de subordinação em vez de se situar no tema do trauma e recuperar nossas pautas hooks 2003 p 238 Notemos como hooks indica tal qual Marilda que a elaboração do trauma deve estar incluída nas agendas de reivindicações da luta antirracista que as necessidades materiais devem estar entrelaçadas às subjetivas Para ela o conhecimento histórico tem sido um dos meios de compreender as injustiças e reelaborar a dor A exemplificar essa percepção vejamos um trecho em que a griotte do Bracuí narra uma conversa que teve com sua irmã A minha irmã falava assim poxa quando eu cresci às vezes eu me revoltava por ser negra porque eu não via um negro rico eu não via um negro com carro Só via o negro sempre lutando muito para ter alguma coisa Agora eu olhava as outras pessoas de cor branca e num instante as pessoas tinham uma casa boa Aí eu fui falando para ela assim Maria Lúcia até os italianos que vieram depois ganharam terra e plantaram mas minha filha eles os negros tinham condições de escravos e depois quando eles foram libertos eles continuaram não tendo nada Marilda de Souza Francisco 2016 Maria Lúcia Oliveira irmã mais velha de Marilda pela parte materna é capelã na igreja da comunidade ou seja responsável pelos ofícios religiosos além de jongueira sendo alguém por quem Marilda expressa respeito e admiração No seu dizer elas desenvolveram uma relação de amizade em que conversas como as acima são frequentes Ali Marilda desloca o ressentimento manifestado pela irmã valendose do conhecimento histórico para explicar as desigualdades entre negros e brancos 8 Tradução livre da autora Em sua fala os negros não podem se sentir mal por aquilo que não receberam uma abordagem que permite a elaboração dos traumas individuais e coletivos favorecendo tanto a criação de espaços outros de subjetivação como a denúncia de injustiças Nessa segunda dimensão parafraseando Conceição Evaristo as narrativas para Marilda não se destinam a ninar os sonhos da casagrande e sim incomodálos em seus sonos injustos 2007 p 21 Para Marilda seu engajamento político teve início nos anos 1980 especialmente nas reuniões de grupos de jovens de que participava junto à igreja católica A aproximação do grupo do Bracuí com setores progressistas católicos se relaciona à tentativa de expulsão dos moradores por duas empresas a Bracuhy e a Sonial cujos interesses residiam na indústria do turismo e visavam investimentos nas terras litorâneas onde vivia parte dos moradores do Bracuí Naquela época setores progressistas ligados à teologia da libertação funcionavam como aglutinadores de demandas sociais por meio das comunidades eclesiais de base ou da Pastoral da Terra Mas foi o ativismo quilombola na década de 1990 que permitiu que ela visualizasse a potencialidade das narrativas orais na luta pela terra Em Bracuí essa aproximação começou na década de 1990 liderada pelo jovem Leandro da Silva Ramos a partir de seus contatos com lideranças do Quilombo de Campinho da Independência primeira comunidade a ter as terras tituladas em 1995 Por meio dessas trocas Leandro foi compreendendo o direito das comunidades negras rurais e os procedimentos que o grupo de Bracuí deveria realizar Desencadeouse então um trabalho junto à comunidade para que se compreendesse a questão quilombola nos termos jurídicos contemporâneos Sobre isso Leandro que na época tinha 24 anos narrou no relatório de identificação da comunidade Muita gente não acreditava que aquilo era pra gente Gente com medo de ser enganada de ser mais grileiro chegando na região pra tomar as terras da gente De tão calejados ficaram muito desconfiados Só com o tempo é que ganharam mais confiança Mattos et al 2009 p 77 Marilda estava entre os moradores do Bracuí que rapidamente se engajaram no processo de aquilombamento da comunidade não deixando portanto que a percepção calejada do passado bloqueasse as possibilidades do presente Seu envolvimento derivou tanto do acúmulo de experiência política nas organizações de base da igreja católica como do reencontro pessoal com as histórias locais durante sua participação em um projeto desenvolvido na escola da comunidade onde trabalhava como zeladora Em 1992 a diretora da escola Áurea Pires da Gama da comunidade de Santa Rita do Bracuí convidou Marilda para colaborar com o projeto Descobrindo as Histórias Locais cujo objetivo era levantar as histórias do território onde a escola está situada O trabalho estava vinculado à Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis que inspirada pela proposta de Paulo Freire incentivou a construção de práticas pedagógicas que tomassem as experiências dos alunos como ponto de partida Vale lembrar que nesse município o Partido dos Trabalhadores PT conseguira se reeleger em 1992 o que permitiu a continuidade de iniciativas da área educacional com viés popular No projeto Marilda ficou responsável em levar e acompanhar a equipe pedagógica da escola até os moradores mais velhos a fim de que contassem as histórias locais Os esforços culminaram com a construção dos livros Bracuí conhecer para amar produzido mais artesanalmente e Bracuí sua luta sua história que recebeu duas edições uma em 2000 e a outra em 2004 Nesse ir e vir pelas casas Marilda foi construindo sentidos outros para as histórias que ouvia de seu pai Na verdade eu comecei a descobrir que essas histórias tinham valor para educação disseme No trecho abaixo ela mesma descreve o processo Fomos no seu Adriano no seu Manoel Moraes pessoas mais velhas Dona Joana que já faleceu Aí eu falei assim meu pai contava muito essas histórias também e eu sempre gostei de ouvir sentada na beira do fogão Aqui não tinha luz aqui não tinha televisão não tinha nada e meu pai gostava de contar as histórias E então foi onde eu descobri que eu lembrava também de várias coisas de várias histórias que meu pai contava Então a gente foi fazendo um apanhado de tudo isso e foi transformando em livro Muitas histórias que meu pai contava eu achava que era da cabeça dele Eu achava que ele tinha inventado mas não era não era história mesmo que aconteceu no local Várias pessoas contavam a mesma história com outras palavras ou com outros jeitos mas era a mesma história Marilda de Souza Francisco 2016 Do longo trecho acima destaco o momento em que Marilda começa a intuir que as histórias de seu pai não eram invenção faziam referência a acontecimentos efetivamente ocorridos naquelas terras no passado Brincando sobre a decepção de descobrir que seu pai não havia criado aquelas histórias ela ressaltou Não foi meu pai que inventou Toda família contava a mesma história do negro fujão só que cada família dava o seu final De casa em casa Marilda viu que alguns temas se repetiam como o desembarque clandestino de escravos no século XIX a doação das terras da Fazenda de Santa Rita do Bracuí aos escravos no período que antecede a abolição da escravatura as inúmeras tentativas de retirada das terras do grupo no pósabolição os atos de ousadia dos negros e das negras do Bracuí no período da escravidão ou após o fim do regime escravocrata Uma história local que se conecta com a história do mundo Também a história oral do lugar querendo ou não está ligada à história do Brasil e está ligada de certo modo à história do mundo Quando a gente vê um filme do negro da África que foi para outros países eu fico pensando que é a mesma história nossa do Quilombo do Bracuí O negro saiu do seu continente e foi para vários lugares e teve os mesmos tratamentos Marilda de Souza Francisco 2016 Marilda narra como a história oral local se conecta com a perspectiva diaspórica já que sublinha similitudes entre as experiências negras por conta do tráfico atlântico Ao assistir em um filme a experiência negra em outros países ela a conecta com as histórias orais que circulam no Quilombo do Bracuí Esse processo favoreceu que Marilda enxergasse o que estava debaixo de seu nariz ainda que opaco a comunidade do Bracuí tinha uma história que fazia parte da narrativa da escravidão do Brasil e do mundo e o melhor muitos da localidade sabiam contála inclusive ela mesma Eu me reconheci nelas Algumas histórias que eles contavam eu sabia também Pra mim aquilo não tinha importância Não tinha Eu ficava assim gente mas como Eu também sei disso Já tive a oportunidade de ver de ouvir essas histórias Aí eu fiquei assim eu também sei falar isso Não foi fácil assim Pensava Eu acho que só tem importância porque as pessoas são mais velhas Se eu falar não vai ser tão importante Porque eu sou mais nova E aí a gente continuou indo nas casas três a quatro meses Marilda de Souza Francisco 2016 Eu me reconheci nelas diz aludindo às pessoas mais velhas que ela e o grupo da escola seguiam ouvindo e registrando durante o projeto Ao ouvir essa frase na varanda de Marilda as palavras ressoaram em mim como uma poesia cuja poética indica sua invenção de si como contadora de histórias Não foi porém como ela diz um processo fácil ou imediato Se eu falar não vai ser tão importante Porque eu sou mais nova Notemos que o questionamento não gira em torno da habilidade de contar eu sabia também mas das condições de ser ouvida Os mais velhos estavam autorizados pela tradição Dado que a transmissão de experiência de hierarquia e do respeito aos mais velhos está imbricada em práticas das tradições culturais afrobrasileiras Martins 2016 eles são ouvidos porque são os mais velhos Outro elemento que poderia impedir sua enunciação era o medo de contar e ser julgada por não ter formação acadêmica Porque até então eu tinha muita vergonha de falar de achar que estava falando errado me preocupar muito em estar falando E aí depois a gente vai deixando isso pra lá Falei assim bom se eu estou falando errado o pesquisador que arrume Eu sempre falo os professores de português não têm interesse de estar fazendo as pesquisas sobre a linguística essa mistura de comunidades diferenciadas não Marilda de Souza Francisco 2016 A vergonha de falar errado ou melhor fora dos padrões da norma gramatical é um temor que a afligiu no princípio Todavia no decorrer do processo ela foi perdendo a timidez sugerindo inclusive que professores de português pesquisem sobre os diferentes falares da língua Por meio dessa atitude Marilda aponta que as pesquisas deveriam ampliar olhares e não trazer constrangimentos e hierarquizações dos diferentes registros de oralidade De certa maneira sua postura denuncia o preconceito linguístico que atravessa a linguagem e que como apontou Marcos Bagno se baseia na crença de que a língua portuguesa digna desse nome é aquela ensinada nas escolas explicada nas gramáticas e catalogadas nos dicionários e qualquer prática que escape do triângulo escolagramáticadicionário é considerada feia rudimentar e incipiente Bagno 1999 p 40 Nessa perspectiva um dos efeitos do preconceito linguístico é a interdição que segundo Foucault 1996 compõe um dos procedimentos de exclusão dos discursos baseada na premissa de que nem todos têm o direito de dizer tudo em qualquer circunstância e sobre qualquer coisa Um dos efeitos da interdição sobre os modos de falar de mulheres pobres que não puderam completar a escolarização formal é a própria impossibilidade de terem suas habilidades intelectuais e criativas reconhecidas Marilda ao dizer que deixou de se preocupar com os erros rasura as interdições de classe raça e gênero que incidem sobre seu corpo Considerando o que discutimos até aqui podemos perguntar o que mobiliza sua atitude em torno da prática de contar histórias Em uma de nossas conversas ela me ofereceu uma possível resposta Era uma facilidade que eu comecei a entender que eu tinha mas nunca assim pra motivo de estudo nem nada não Então ali contando a história é quando a gente se sente bem É gostoso fazer E eu sempre gostei disso Marilda de Souza Francisco 2016 O argumento de Marilda é simples não se trata apenas de cumprir uma missão política ou uma pragmática acadêmica mas também de ir ao encontro de algo que lhe dá prazer e potencializa sua vida Com isso ela problematiza a imagem recorrente sobre mulheres negras de que o dever é que mobiliza suas ações concebendoas como aquelas que estão no mundo para servir aos outros e renunciar ao prazer Priscila Vieira 2013 analisando a concepção de cuidado de si e do outro em Foucault estabelece uma diferença entre o modelo socrático e a prática dos cínicos Para a autora na prática socrática o cuidado de si e do outro considerava a necessidade de haver uma harmonia entre o discurso e a ação ou seja entre aquilo que se diz e o próprio modo de viver Já entre os cínicos tratavase de mostrar a verdade pelo escândalo da própria vida A ancestralidade é atualizada no presente como potência por Marilda já que os antepassados que viveram no quilombo além dos conteúdos das histórias deixaram ensinamentos sobre os modos de viver Em um relato sobre o aspecto das casas no quilombo ela demonstra a relação que estabelece com o legado do passado A ideia de quilombo caiu por terra não é Tem alguns que logo falam a gente idealiza o quilombo com aquelas casas de pau a pique tudo juntinho Aí eu falei assim infelizmente a empresa de tijolo chegou para a gente e falou olha você tem que fazer a casa de tijolo porque a casa de pau a pique traz doença Não era porque estavam com coisa da gente ficar doente eles queriam vender tijolo cimento e telha Então é por isso que nossas casas se transformaram tudo em casa de alvenaria porque minha filha se fosse dar doença dá na casa de alvenaria dá na casa de pau a pique dá tudo Antigamente a gente tinha casa de pau a pique e ninguém ficou doente Marilda de Souza Francisco 2016 Aqui Marilda apresenta duas formas de se aproximar do legado do passado expresso no modo de habitar A primeira transforma a ancestralidade em um dispositivo de poder que retira os quilombolas do tempo e do espaço do presente considerando que suas ações devam estar movidas pelo interesse por um passado que se apresenta como estático A segunda defendida por Marilda faz uso da tradição como forma de potencializar a vida no presente Por isso ao longo da narrativa ela problematiza a idealização em torno dos quilombolas lançando mão do exemplo da casa de pau a pique A narrativa que romantiza os quilombos preocupase com o fim das casas porque ela representa a tradição como invariável Para Marilda não se trata de representar ou encenar o passado mas de mobilizar valores e modos de vida herdados dos antepassados para potencializar o presente Problematizar as idealizações envolve recuperar as condições históricas que fizeram com que as casas passassem a ser construídas em alvenaria associando essas transformações à racionalidade capitalista que com a finalidade de vender material de construção vendeu a ideia de que a casa de pau a pique trazia doenças Esse discurso ressoa em transformações atuais na própria comunidade já que as construções eram primeiramente feitas por meio de mutirão E com o passar do tempo foram deixando de habitar dessa maneira Valendose da contextualização Marilda mostra como os quilombos são afetados pelas mesmas condições históricas que o conjunto da sociedade a racionalidade capitalista que não apenas produz mercadorias também produz formas de sociabilidade Outra maneira de pensar sobre os quilombolas é naturalizar as condições de pobreza como se fossem indissociáveis dos corpos negros Sobre isso Marilda em outro momento relata Ah mas eu achei que o quilombo era um lugar onde tinha aquelas casas de taipa muita criança e não sei que lá Às vezes ainda falam assim aquelas crianças descalças barrigudas rementes correndo pra lá e pra cá ou chorando Uma vez eu falei para o garoto aquele quilombo onde tem muita miséria não é Aí quando você chega aqui e vê um sítio vocês acham que não é um quilombo não é Marilda de Souza Francisco 2016 No trecho acima ela questiona como a semântica da precariedade cerca o pensar sobre os modos de vida quilombolas Daí a necessidade de ir ao quilombo e encontrar muita miséria já que essa é a condição naturalizada dos negros Tratase de relacionar os quilombos contemporâneos às narrativas de assujeitamento do passado escravista pensamento que segundo Marilda também permeava a comunidade de Santa Rita do Bracuí antes de entender do que se tratava o direito quilombola O próprio quilombola mesmo alguns falaram na época Santa Rita vai ser um quilombo Quilombo é atraso Vai ter que voltar a trabalhar na roça não vai poder ter mais nada Eu falei gente Ninguém volta no tempo não Aí hoje estamos com o projeto da horta As pessoas vêm e perguntam se você quer Não é obrigado a querer não Marilda de Souza Francisco 2016 Ela reforça a ideia de que não é possível voltar no tempo Recentemente o companheiro de Marilda e seu filho Marcos Vinícius retomaram a horta no quintal Pai e filho têm articulado os saberes dos mais velhos aos conhecimentos que o jovem aprendeu na faculdade no curso de agroecologia Em uma conversa ele me disse que um dos princípios da agroecologia é plantar respeitando o tempo das plantas e das pessoas o que destoa da temporalidade capitalista da eficiência Tanto na fala de Marilda como na de Marcos Vinícius aparece o incentivo para que outros moradores voltem a plantar mas não como obrigação Por meio dos dois exemplos da casa de pau a pique e da horta observemos que não se retomam as tradições para encenar o passado mas para se aproximar dos valores constitutivos de um modo de transmitir a experiência E que valores são esses Tem gente que diz que coisa boa é o lugar que tem sua casa murada O esgoto correndo na rua mas se sua casa está murada ladrilhada isso que é bom Eu já gosto mesmo de não ter muro todo mundo entra passa e olha Ô seu danado você pegou meu cacau Mesmo que às vezes fica brigando com as crianças mas eu estou interagindo com as coisas Agora a pessoa se esconder atrás de um muro faz um muro maior do que esse pé de abacate Eu gosto de minha casa sem muro sem cerca Esse é o meu jeito de ver Gosto da natureza mas também eu gosto de ir para a cidade desde que eu vá à cidade e volte pra cá Marilda de Souza Francisco 2016 Para Marilda habitar de uma determinada forma está ligado a um modo de viver Não ter muro significa que as crianças por exemplo podem entrar em seu quintal e pegar uma fruta gerando uma maneira de interagir entre os moradores Em sua ética o terreiro a casa e o corpo estão integrados Vemos que a relação com território é afetiva Ao mesmo tempo não há um juízo de valor sobre a cidade e o lugar onde vive A certa altura ela diz que gosta de ir à cidade desde que eu vá e volte pra cá Valendose de práticas de transmissão da experiência que ocorre por meio da oralidade Marilda recupera narrativas soterradas pela vergonha e pela dor causadas pelo racismo Narrar as experiências de mulheres quilombolas como a de Marilda de Souza faz parte de uma escolha política cuja motivação é tornar visíveis simultaneamente os dispositivos racistas e sexistas que colocam seus corpos saberes e territórios sob risco constante bem como os agenciamentos que no cruzamento entre ética e política rasuram as formas convencionais de fazer política produzindo devires políticos e subjetivos Não se trata de idealizálas tampouco de sugerir que haja um único modelo político a ser seguido Suas experiências não são exemplares em um sentido moral mas podem ser inspiradoras em tempos em que a racionalidade neoliberal com sofisticados dispositivos de poder tende a limitar nossa capacidade de criação de projetos coletivos Referências ALMEIDA Mariléa de Territórios de afetos práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro Tese Doutorado em História Unicamp Campinas SP 2018 ARRUTI José Maurício et al O impacto da covid19 sobre as comunidades quilombolas Informativo Desigualdades Raciais e Covid19 AfroCebrap n 6 2021 bagno Marcos Mito nº 4 As pessoas sem instrução falam tudo errado In bagno Marcos Preconceito Linguístico O que é Como se faz São Paulo Loyola 1999 p 4045 BÖSCHEMEIER Ana Gretel Echazú Natureza de mulher marca de mãe nome de negra identidades em trânsito e políticas do corpo na comunidade quilombola de Boa Vista dos Negros Dissertação Mestrado em Antropologia UFRN Nata RN 2010 BRASIL Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial Programa Brasil Quilombola relatório de gestão 2012 Brasília SEPPIR 2013 CUNHA Priscila Bastos Entre o quilombo e a cidade trajetórias de individuação de jovens mulheres negras Dissertação Mestrado em Educação UFF Niterói RJ 2009 DEALDINA Selma dos Santos Org Mulheres quilombolas territórios de existências negras femininas São Paulo Sueli Carneiro Jandaíra 2020 ESPINOSA Benedictus de Ética Belo Horizonte Autêntica 2013 EVARISTO Conceição Da grafiadesenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita In alexandre Marcos Antônio Org Representações performáticas brasileiras teorias práticas e suas interfaces Belo Horizonte Mazza 2007 p 1621 FOUCAULT Michel A ordem do discurso São Paulo Loyola 1996 HALE Thomas A Griottes females voices from West Africa Research in African Literatures Bloomington v 25 n 3 p 7191 1994 HERNANDEZ Leila Leite O olhar imperial e a invenção da África In HERNANDEZ Leila Leite A África na sala de aula visita à História Contemporânea São Paulo Selo Negro 2005 pp 1744 HARDT Michael Para que servem os afetos Intersemiose Recife ano 4 n 7 p 914 janjun 2015 HOOKS bell Healing wounded hearts In HOOKS bell Rock my soul black people and selfesteem New York Atria 2003 p 120 MARTINS Leda Maria Performances da oralitura corpo lugar da memória Letras Santa Maria n 26 p 6381 juldez 2016 MATTOS Hebe Maria ABREU Martha SOUZA Mirian Alves COUTO Patrícia Brandão Relatório antropológico de caracterização histórica econômica e sóciocultural do Quilombo de Santa Rita do Bracuí Niterói UFF Faculdade Euclides da Cunha IncraSRRJ 2009 NASCIMENTO Abdias O quilombismo documentos de uma militância panafricanista São Paulo Editora Perspectiva 2019 NASCIMENTO Beatriz Maria do Beatriz Nascimento quilombola e intelectual possibilidades nos dias da destruição São Paulo Editora Filhos da África 2018 SILVA Allyne Andrade e Direito e políticas públicas quilombolas Belo Horizonte São Paulo DPlácido 2020 SILVA Givânia Maria Educação como processo de luta política a experiência de educação diferenciada do território quilombola de Conceição das Crioulas Dissertação Mestrado Políticas Públicas e Gestão da Educação UnB Brasília DF 2012 SODRÉ Muniz O terreiro e a cidade a forma social negrobrasileira Petrópolis Vozes 1988 VIEIRA Priscila Piazentini Foucault e a vontade de transformar radicalmente a existência Revista Ecopolítica São Paulo n 7 v 2 pp 6075 setdez 2013 Fontes orais FRANCISCO Marilda de Souza 55 anos fev 2016 Entrevistadora Mariléa de Almeida Angra dos Reis RJ 24 27 28 fev 2016 Artigo publicado como parte da premiação do II Prêmio ABHO de Teses Ecléa Bosi 2020 no qual a autora recebeu menção honrosa Fonte de financiamento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Fapesp Conflitos de interesse nada a declarar Revista do Programa de PósGraduação em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul eISSN 1983201X httpsseerufrgsbranos90 ARTIGO LIVRE Ruth Pinheiro trajetória de vida e movimento negro contemporâneo no Rio de Janeiro 19481988 Ruth Pinheiro Life trajectory and contemporary black movement in Rio de Janeiro Brazil 19481988 Samuel Silva Rodrigues de Oliveira¹ Roberto Carlos da Silva Borges² Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca Rio de Janeiro RJ Brasil RESUMO Este artigo analisa a trajetória de Ruth Pinheiro e sua relação com o movimento negro contemporâneo Ela é uma das lideranças femininas negras no Rio de Janeiro e se tornou uma ativista a partir do final dos anos 1970 na redemocratização que se constituiu um momento de ruptura para a construção da cidadania política de debate das relações raciais no Brasil e de maior protagonismo feminino no âmbito do movimento social A partir de entrevistas de História Oral e do cotejamento com outras pesquisas analisase a trajetória de vida de uma mulher negra dialogando com as análises da história social e política dos afrobrasileiros no século XX PALAVRASCHAVE Movimento Negro Contemporâneo mulheres negras Rio de Janeiro História Oral racismo ABSTRACT This article analyzes the trajectory of Ruth Pinheiro and her relationship with the contemporary black social movement She is one of the black female leaders in Rio de Janeiro and became an activist from the end of the 1970s in a moment of rupture for the construction of political citizenship the debate of racial relations in Brazil and the greater female protagonism Based on Oral History interviews and comparisons with other research the article analyzes the life trajectory of a black woman dialoguing with the analyzes of the social and political history of AfroBrazilians in the 20th century KEYWORDS Contemporary Black Social Movement black women Rio de Janeiro Oral History racism ¹Email samuoliveirayahoocombr httpsorcidorg0000000237719057 ²Email borgesrcsgmailcom httpsorcidorg000000019373748X DOI 10224561983201X121630 Anos 90 Porto Alegre v 30 e2023004 2023 Este é um artigo Open Access sob a licença CC BY 1 de 17 E sofri um negócio chato no trabalho porque eu não entendia Eu não sabia nem que eu era negra para mim aquilo não existia Minha mãe me arrumava muito bem arrumada ela costurava fazia aquelas roupas bonitas e todo mundo dizia que eu era burguesa que eu era rica que era não sei o que E comentei isso com várias pessoas que ficavam Vai lá no IPCN Vai lá no IPCN Pinheiro 2021 p 143 conseguir a instalação de uma linha telefônica no IPCN e pela capacidade de se comunicar organizar e de fazer articulações com vários grupos dentro e fora do Brasil mas também por isso foi taxada de burgesa e classe média a despeito de sua trajetória ser identificada com as lutas das classes populares e contra as desigualdades de raça e gênero Ao longo do artigo dialogaremos direta e indiretamente com a proposição de Petrônio Domingues 2019 que considera a microhistória como central para a construção da história negra no pósabolição Este procedimento analítico é fundamental para criticar uma visão reducionista do negro como marginalizado numa identidade fixa que reitera a ideia de anomia social e para considerar as múltiplas articulações e mobilidades na construção de sua agência histórica Meu pai Walter Pinheiro era um negro empreendedor naquela época quando eu nasci em 1948 ele já tinha uma agência de automóveis E minha mãe era uma dona de casa e costureira Meus pais se separaram eu tinha cerca de sete anos e tive mais dois irmãos por parte de pai e mãe Fomos estudar num colégio interno porque naquela época se internavam as crianças Fiquei no colégio interno até 11 anos de sete aos 11 anos E depois de lá eu fui morar com meu pai e uma madrasta uma pessoa branca que nos maltratava muito Foi muito difícil esse período da minha infância e eu gostava muito de estudar Então meu castigo era sempre ficar sem estudar porque era a única coisa que eu queria Naquele tempo era assim Pinheiro 2021 p 138 Vila Isabel durante parte significativa de sua vida Nos anos 1950 nas estatísticas da cidade havia uma clara definição dos bairros suburbanos como marcados por um convívio entre brancos pardos e pretos em acordo com a classificação de corraça dos censos do IBGE Esse espaço do subúrbio definiase por contraste com a zona sul identificada às classes mais abastadas e à modernidade e por ambivalências de aproximação e distância da favela identificada com a pobreza e como símbolo da segregação econômica e racial Na estatística e cotidiano urbano a favela era símbolo da marginalização social e da maioria negra Pretos e pardos predominavam quando comparados a outros lugares na estatística geral da cidade e dos bairros recenseados O pósabolição em uma das cidades que foi um dos maiores portos de desembarque de escravizados das Américas foi vivenciado através de projetos de reforma urbana que procuravam embranquecer a cidade e eliminar a pobreza e o atraso identificado aos territórios negros O subúrbio demarcavase como um espaço que se identificou com a possibilidade de ascensão social e construção de moradias para as classes médias e trabalhadora numa distinção aos espaços das favelas categoria inventada como estigma de classe e raça Em meio à retórica do embranquecimento e do assimilacionismo no discurso da mestiçagem e harmonia racial que prevaleceu na sociedade brasileira na maior parte do século XX as instituições famílias práticas de lazer e associações negras constituíramse nos espaços suburbanos em tensão com os discursos de embranquecimento e também como símbolos de orgulho da negritude no Rio de Janeiro Giacomini 2006 Santos 2016 Schwarcz 2017 Cruz 2021 No caso de Ruth Pinheiro isso ficou evidente tanto na construção dos vínculos de parentesco com sua família no espaço suburbano como com terreiros das religiões afrobrasileiras e também com a escola de samba de Vila Isabel espaço privilegiado para a relação que veio a constituir com o sambista Martinho da Vila nos anos 1980 Pinheiro 2021 Um terceiro traço na constituição da experiência de uma classe média negra carioca e que atravessa a trajetória de Ruth Pinheiro é sua relação com a educação formal Ela realizou o ensino primário num colégio interno após a separação dos pais e conviveu com a madrasta branca que não aceitava os filhos do antigo casamento e que a proibia de estudar A conclusão do ensino secundário e a posterior realização de um curso técnico são evidenciadas como uma conquista em meio às várias dificuldades experimentadas no intercurso das mudanças de moradia da necessidade de trabalhar e de seu interesse e esforço para manter o foco nos estudos Em meados dos anos 1950 a educação nas escolas era uma possibilidade de ascensão social no Rio de Janeiro por ser a Capital Federal a cidade vivenciou a expansão de sua estrutura educacional a partir dos anos 1930 e melhorou a oportunidade de instrução para a maior parte de seus cidadãos Todavia ser negranegro criava limites às possibilidades de escolarização já que estas eram em sua maioria ocupada e dirigida por brancos e racistas As pesquisas O Negro na cidade do Rio de Janeiro 1996 de Luís Costa Pinto e Diploma de brancura 2006 de Jerry Dávila são enfáticas em mostrar a forma como os espaços educacionais instituíram linhas de cor reproduzindo parâmetros e estereótipos racistas que classificavam o estudante negro como inferior o que dificultava a permanência e limitava as possibilidades dos afrobrasileiros nas instituições de ensino Ruth Pinheiro evidencia uma série de dificuldades nesse sistema de ensino formal além das situações vivenciadas na própria família sejam as violências da madrasta que a impedia de estudar seja a necessidade de trabalhar para compor a renda de casa Ao concluir o ensino secundário no Rio de Janeiro com 17 anos abriuse a possibilidade de trabalhar em uma atividade especializada na Companhia Brasileira de Telefone CBT e posteriormente a realização do ensino técnicoprofissional Um dos meus tios Tio José irmão de minha mãe trabalhava na Light me levou para fazer uma entrevista na Companhia Telefônica Brasileira E naquele tempo não era difícil o emprego para mulheres se soubesse datilografia era fácil Estavam precisando de muitas mulheres e as mulheres não tinham esse hábito de procurar um trabalho Nem podiam A maioria das mulheres era casada ou quando era solteira o pai que sustentava e tinha aquele orgulho de dizer Ah minha filha sou eu que sustento e não sei o que Mas eu tive que trabalhar não tinha jeito A gente precisava sair da casa dos parentes Meu tio querido me levou para fazer a prova eu consegui passar Era um cargo chamado Atendente de Consertos na antiga CTB Companhia Telefônica Brasileira Eu não tinha dezoito anos ainda e tive que esperar fazer dezoito anos para começar a trabalhar Com dezesseis anos eu fiz a prova passei e depois não me deixaram trabalhar eu tinha que começar só quando completasse dezoito anos E fui trabalhar num setor de consertos atendia consertos e naquele tempo era um inferno porque todos os telefones não funcionavam no Rio de Janeiro não é risos Quem tinha telefone era raridade era rico e quando dava um defeito se desse uma chuva na cidade pronto era um mês para reparar e dálhe xingamentos Com dezenove anos eu já fui ser a gerente do setor Eu levava muito a sério aquele trabalho e eles estavam querendo trocar o atendimento tirar os homens porque os homens não tinham paciência xingavam os assinantes aquela coisa toda risos O setor foi passando para as mulheres aos poucos Fiquei lá de supervisora um ano depois melhorei fui para um setor mais técnico tive que fazer curso técnico de Telecomunicações para Trabalhar na facilidade era o setor que analisava a disponibilidade de pares vagos nos cabos atendíamos os cabistas que trabalhavam na rua Fiz o curso no Sindicato dos Telefônicos na Rua Moraes e Silva no bairro Maracanã Eu fui trabalhar nesse setor não me lembro de se foi no final de 66 ou início de 67 Pinheiro 2021 p 139 O testemunho de Ruth Pinheiro é bastante enfático e esclarecedor sobre o significado da posição de uma mulher negra educada no mercado de trabalho Em 1962 houve transformações no status feminino na sociedade brasileira A Lei n 412162 alterou a condição civil das mulheres que eram identificadas no Código Civil como incapazes de adquirir bens móveis e imóveis e relações trabalhistas sem a anuência de seu tutor fosse o pai ou o marido Esse domínio patriarcal enraizavase não só no âmbito legal mas também no costume como lembra A maioria das mulheres era casada ou quando era solteira o pai que sustentava e tinha aquele orgulho de dizer Ah minha filha sou eu que sustento e não sei o que Ruth ingressou no mercado de trabalho em 1963 evidenciando que mesmo depois da queda da incapacidade civil feminina esse hábito e instituição patriarcal criavam opressões para as mulheres inibindo o ingresso no mercado de trabalho e fomentando dificuldades no espaço público Não obstante a compreensão desse hábito patriarcal de construir uma distinção para a dona de casa e a filha sustentada que podiam trabalhar no espaço doméstico mas não eram reconhecidas por isso a trajetória de Ruth Pinheiro e de sua mãe sempre foram vinculadas ao trabalho Eram mulheres negras e ambas participaram do mercado de trabalho ao longo de toda a vida Sobre a mãe pairava ainda o estigma da separação e desquite uma vez que o Código Civil brasileiro só reconheceu esse direito feminino e matrimonial nos anos 1970 O exemplo materno uma mulher negra que trabalhava cuidava da família e enfrentava as opressões femininas no espaço público serviu de exemplo para a filha Durante a entrevista há marcações críticas à mãe mas também de reconhecimento de sua luta e importância Segundo Ruth Pinheiro as possibilidades da educação formal o gosto por estudar e o fato de estar sempre bem arrumada e alinhada com a moda abriram as possibilidades de entrada no mercado de trabalho formal com carteira assinada um emprego de escritório numa empresa pública Entre 1965 e a década de 1990 ela trabalhou na Companhia Telefônica Brasileira e depois TELERJ chegando a se aposentar nesse serviço Ingressando com 18 anos na empresa foi atendente de consertos resolvendo os problemas relatados pelas pessoas ricas ter um telefone era uma raridade Posteriormente chegou à gerência do setor contribuía o fato dela levar a sério o emprego e o fato da empresa ter intenção de tirar aquele posto de comando da mão dos homens percebendo que as mulheres conseguiam conversar e lidar melhor com as reclamações e ofensas Essa trajetória seguiu com a realização de um curso técnico profissional de telecomunicações no Sindicato dos Telefônicos e a mudança de profissão na TELERJ passando a trabalhar no setor de facilidades analisando a disponibilidade linhas telefônicas para instalações O trabalho exigia educação formal e o ambiente do setor técnico de uma empresa pública era dominado por pessoas de cor branca Seguía o padrão da estrutura da sociedade brasileira em que marcadores de classe educação e raça caminham juntos na definição de hierarquias sociais Os engenheiros ocupavam cargos de comando e eram poucos que eram negros sendo seu amigo Jofre Celino um dos primeiros negros na empresa Apesar de a linha de cor se constituir no espaço de trabalho de maioria branca ela não percebia e não tinha consciência dessa condição até sofrer uma injúria racial uma coisa chata e uma violência que a mobilizou de diversas maneiras e que gerou constrangimentos O episódio chato na empresa foi o seguinte depois de alguns anos eu ia ser chefe de um setor A pessoa que estava lá de chefe teve um problema de saúde precisou se afastar Então meu chefe disse Vou te transferir para Botafogo Isso foi em 1979 Era uma estação nova que estava abrindo e eu fui para Botafogo Cheguei lá para ser apresentada às meninas que iriam trabalhar comigo cada uma veio de um setor diferente para formar aquela nova estação Uma menina linda negra o nome dela era Rosa o apelido dela era Rosa bonita de tão linda que era ela se levantou e falou assim O que é isso Vocês vão colocar uma negra para ser nossa chefe A telefônica não é mais a mesma Ela se levantou e falou isso Eu fiquei assim meio atônita Fiquei atordoada depois comecei a pensar Gente não é possível Uma negra que podia dizer assim Pô que bom né que vem uma pessoa parecida comigo da minha etnia Aí eu fiquei pensando Não sei o que eu vou fazer mas eu tenho que lutar contra isso não é possível ter essa diferença Naquele tempo a gente não tinha como dar queixa já existia uma lei existia a luta contra o racismo mas não existia estrutura para denúncias Pinheiro 2021 p 142143 A injúria racial vivenciada no ambiente de trabalho explicitava o racismo estrutural existente nos ambientes de maioria branca da sociedade brasileira A forma como uma mulher negra reagiu à liderança de Ruth Pinheiro nos ajuda a compreender sobre como o racismo ao ser estruturante da economia e das subjetividades organiza também o comportamento Embora não possam ser consideradas racistas pelo fato de o racismo ser um um sistema de poder socioeconômico de exploração e de exclusão Hall 2003 impossível de ser exercido por pessoas negras os sujeitos negros podem naturalizar hierarquias ratificar etiquetas agenciadas pelo preconceito de corraça e reproduzir práticas racistas vivenciadas socialmente O caso explicita ainda os traços e dilemas da identidade negra no Brasil em que a retórica da mestiçagem e da assimilação permitiu que os pardos cujo fenótipo é mais próximo do que é considerado branco ascendesse socialmente e apagassem as marcas da própria negritude Nos anos 1950 e 1960 as análises de Florestan Fernandes 2001 e Luís Costa Pinto 1996 evidenciaram que a ascensão social em espaços urbanos e no processo de industrialização era acompanhada pela identificação com padrões e estéticas embranquecidas negando a negritude e perpetuando a linha de cor como referência de diferentes formas de sociabilidade Esses trabalhos sociológicos foram patrocinados pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e Cultura Unesco em 1949 na perspectiva de combate ao nazifascismo e na expectativa de que o modelo miscigenado da sociedade brasileira oferece uma solução à questão racial no mundo Contudo os estudos das relações raciais promovidos pela Unesco em várias regiões do país mostraram um racismo à brasileira em que ninguém se declarava com preconceito mas se mantinham as linhas de cor rígidas nos ambientes sociais A experiência de injúria racial narrada realça um dos traços dessas relações raciais no país evocava não somente a negação do racismo como um ideal definidor do comportamento social padrão mas também a permissão para que uma situação chata acontecesse sem punição ou censura no ambiente de trabalho Assim revela também certa maneira de ler a legislação antirracista da época uma vez que já havia instrumentos jurídicos para coibir tais comportamentos em 1951 a Lei Afonso Arinos que pela primeira vez tipificava o racismo e a injúria racial como crime já estava implementada A legislação foi uma conquista e mobilização de intelectuais dos movimentos negros e de suas associações que denunciavam e problematizavam o fato de negros não serem aceitos em ambientes elitizados e serem discriminados em várias situações sociais A norma também repercutiu o debate do antifascismo no pósguerra no qual a derrota nazista levou a uma crítica contundente ao preconceito racial na construção dos regimes políticos e das democracias Ainda que existisse uma lei contra o racismo a fala de Ruth destaca uma convivência cotidiana do racismo sem transformar isso em um problema4 Essa perspectiva existia antes da Ditadura CivilMilitar uma vez que as retóricas da harmonia racial e mestiçagem limitam as denúncias de racismo e o reconhecimento de uma identidade negra apesar de estabelecer linhas de cor e exclusão nos espaços de sociabilidade Munanga 2019 Fernandes 2001 mas ganhou um significado mais explícito após o Golpe de 1964 Um dos aspectos estruturantes da legitimidade do regime era a propaganda de uma democracia racial no país Isso servia tanto para estigmatizar os movimentos negros acusandoos como antinacionais e americanizados quanto para aproximar e projetar o Brasil no cenário internacional como uma comunidade nacional que havia resolvido os problemas raciais e vivia um regime liberal Os historiadores são unânimes em identificar o fim dos direitos civis e políticos como um empecilho ao funcionamento e manifestações de associações reuniões e protestos negros no espaço público uma vez que estes eram taxados como subversivos Domingues 2005 2009 2019 Pereira 20125 Em 1968 A Lei de Segurança Nacional tipificava como crime qualquer denúncia de racismo censurando e limitando o espaço de denúncia Nos órgãos de polícia política e segurança passouse a tipificar o racismo negro as manifestações da população afrobrasileira que denunciavam a existência do racismo e a marginalização social do negro na sociedade Ou seja havia tanto uma estrutura de costumes e construção de uma identidade nacional assimilacionista quanto uma prática de repressão na construção de um discurso oficial da Ditadura que corroborava para silenciar a experiência de racismo e hierarquias sociocracias Essa configuração concorreu para repressão e censura do protesto negro na Ditadura que compõe a maior parte da experiência de Ruth Pinheiro de juventude e vida adulta Ao narrar sua trajetória de conquista de trabalho e formação familiar e educacional ela evocou vários debates e discussões sobre a posição das mulheres negras na sociedade brasileira As autoras do feminismo negro sublinharam que a mulher negra experimenta uma posição de inferioridade na estrutura social do capitalismo vivenciando a exploração socioeconômica em diversos aspectos balizadas e legitimada pelos ethos sociais do patriarcaismo e do racismo Gonzales 2020 A trajetória de trabalho e formação também dialoga com a configuração socioeconômica do Brasil Analisando a trajetória brasileira e da América Latina George Andrews 2014 salientou um processo de ascensão social dos afrobrasileiros experimentado com o processo de urbanização industrialização e crescimento econômico ao longo do século XX Essa mobilidade ascendente foi vivenciada na modernização econômica e tem sua inflexão nos anos 1930 ao contrário do discurso do embranquecimento que estigmatizava a negritude como sinônimo do atraso e tentava promover políticas que favorecessem imigrantes europeus a retórica assimilacionista da modernização social 31 e da mestiçagem foi um traço que se viu em vários países da América Latina para promover uma integração social sem a problematização do racismo e da marginalização social do negro Guimarães 2001 Domingues 2005 Andrews 2014 A trajetória de Ruth Pinheiro e de outras famílias negras mostra que essa integração social transcorreu com o racismo como parte do costume e do padrão de comportamento e sociabilidade em espaços privados e públicos A oralidade também testemunha os limites da construção de uma identidade de classe média e trabalhadora negra na sociedade brasileira A redução da escala de análise na trajetória de Ruth Pinheiro permite pensar em aspectos da estrutura social construída no pósabolição Na segunda metade do século XX o padrão de vida dos afrobrasileiros continuava rebaixado em função de um processo de abolição que perpetuou e reproduziu hierarquias e desigualdades econômicas e raciais Mas como tem salientado Petrônio Domingues 2019 isso não significou o enclausuramento das famílias negras em uma situação de anomia Elas produziram trajetórias e estratégias para construir suas vidas que podem ser compreendidas a partir da microhistória E a oralidade de uma mulher negra ajuda a esclarecer tal fenômeno social evidenciando as tensões sociais constituídas na construção de uma identidade de classe média negra no subúrbio carioca Telefonista do movimento negro Ruth Pinheiro no movimento negro contemporâneo no Rio de Janeiro 19791988 As análises do movimento negro contemporâneo enfatizam uma mudança ocorrida nos anos 1970 no contexto da redemocratização Sob influência dos novos movimentos sociais que reinventavam identidades e discursos de justiça social se articula de maneira contundente e com outro escopo a palavra negro como identidade positiva e crítica à realidade sóciopolítica brasileira Em São Paulo a criação do Movimento Negro Unificado MNU em 6 de junho de 1978 e seu primeiro congresso em 1979 organizandose de maneira nacional e em conexão com vários militantes foi um marco para o repertório de ação coletiva do movimento social O evento é importante por salientar não apenas uma transformação dos discursos contra a injustiça social no Brasil mas também sob a própria ideia de democracia na conjuntura da abertura política que também marcaria a Constituição de 1988 Harchard 2001 Pereira 2010 Alberto 2017 Gonzales 2021 A abertura política no Brasil tinha uma dupla dimensão conduzida pelo alto a partir de 1974 por um projeto de distensão controlada por militares em meio a crises político partidárias nos governos de Ernesto Geisel 19741979 e João Batista Figueiredo 19791985 para negociar e controlar a maioria no Congresso Nacional e também marcada pela pressão de movimentos sociais e renovação da rede de associativismos que reivindicavam uma mudança na cultura de direitos O movimento negro contemporâneo foi um desses focos de resistência contra o Regime Militar compunha o ciclo de protestos que tinham como eixo a crítica à Ditadura numa pluralidade de agendas e reivindicações do direito de ter direitos e de ocupar o espaço público para estabelecer reivindicações políticas sociais e culturais Analisando a emergência desse movimento social Joel Rufino 1985 fala de uma resistência negra experimentada a partir da contradição da modernização autoritária para a população afrobrasileira ela experimentava a possibilidade de migração para as cidades e expectativa de melhora das condições de vida mas era a mais espoliada nas relações de trabalho que retiravam direitos das classes trabalhadoras no milagre econômico e tinha sua ascensão limitada pelo racismo O milagre econômico é uma expressão utilizada para falar do período de crescimento do Produto Interno Bruto PIB entre os anos 1969 e 1973 numa taxa média acima 10 ao ano Tal expansão realizada quando o país vivia o impacto do Ato Institucional no 5 que restringiu ainda 32 mais a liberdade e cidadania e justificou perseguições e tortura praticada pela polícia política Aquela expressão foi utilizada como propaganda para legitimar o Regime Militar e evocava a excepcionalidade histórica daquele momento equiparandoo ao milagre alemão e ao milagre japonês no pósguerra As bases econômicas do crescimento do PIB e industrialização foram uma reforma trabalhista que retirou direitos dos trabalhadores reduziu o valor do saláriomínimo reprimiu greves e promoveu o endividamento através da criação de empresas estatais e da expansão de investimentos públicos através dos Planejamentos Nacionais de Desenvolvimento Joel Rufino 1985 e Lélia Gonzales 2020 e outros intelectuais do movimento negro contemporâneo escreveram parte de sua obra criticando o milagre expondo como a pronunciada melhora provocada modernização autoritária e migração para as grandes cidades perpetuava o racismo e a marginalização do negro na sociedade Na narrativa de Ruth Pinheiro a descoberta do movimento negro é lembrada a partir da experiência de ascensão social durante o Regime Militar do contato com outros grupos que reivindicavam a negritude e do reconhecimento do racismo na realidade que a circundava O ano de 1979 marca uma virada na narrativa de vida de Ruth Pinheiro Em seu testemunho esse ano delimita uma mudança do centro de sua vida que não era organizado apenas pelo trabalho e pela família mas também pelo convívio que se constituiu com as associações de luta antirracista no Rio de Janeiro Ela é enfática ao dizer que nem sabia que era negra que para mim aquilo não existia sendo essa descoberta construída a partir do envolvimento com a rede associativa do movimento negro e na luta pela redemocratização Não obstante o MNU ter marcado a mudança desse repertório do protesto negro em cenário nacional Ruth oferece um relato de uma rede associativa distinta daquela organizada em São Paulo Primeiro evidencia a centralidade do Instituto Político Cultural Negro IPCN a decisão de buscar o IPCN para levar à diante a denúncia de racismo era bastante temerária e gerava dúvidas e o apoio do colega aquele que se tornaria um dos primeiros engenheiros negros da CTB foi central para demarcar uma virada em sua trajetória conscientizandose do racismo e se aproximando da luta antirracista O IPCN foi criado em 1975 por um grupo de intelectuais e artistas interessados no debate sobre a diáspora e a cultura negra Esse movimento transcorria em meio a reinvenção de uma identidade black carioca centrada na cultura e nos bailes que enfatizavam a beleza negra mas também reivindicava a ascendência das lutas antirracistas construídas na cidade através de lideranças mais tradicionais que tinham na figura de Abdias do Nascimento e do Teatro Experimental do Negro TEN uma referência Nesse cenário havia um tensionamento em falar o que era a cultura afro na diáspora e o que era a luta política contra o racismo e a discriminação Nas leituras e interpretações de militantes do movimento negro carioca dos anos 1970 e 1980 através da oralidade e memória recolhida no livro Histórias do Movimento Negro no Brasil 2007 há uma tensão estabelecida entre o reconhecimento de uma rede associativa plural e em expansão e a centralidade do IPCN na nucleação de ações e na trajetória de formação do movimento negro Vários militantes falam da importância do IPCN por ter uma sede fixa na Avenida Mem de Sá no 208 no centro do Rio de Janeiro a sede foi adquirida em 1977 por intermédio do Instituto Cultural BrasilAlemanha e por seu início ter sido marcado por reuniões e debates no Teatro Opinião em Copacabana Alberti Pereira 2007 Espaços como o Teatro Opinião e Teatro Casa Grande localizavamse na zona sul do Rio de Janeiro e se constituíram em espaço de formação política e resistência à Ditadura Em sua entrevista Ruth fala desse contato com esses espaços da cultura nas reuniões do IPCN no Teatro Opinião e a tomada da consciência da negritude Fui trabalhar na Rua Siqueira Campos 37 em Copacabana e fui melhorando de situação E nessa época eu conheci a ter a oportunidade de sair um pouquinho tipo ir num teatro naquele tempo era uma aberração o teatro era caro O Teatro Municipal era distante da gente era tudo assim distante Um dia eu resolvi ir lá ao Teatro Opinião onde aconteciam aquelas discussões políticas importantes Eu falei assim Eu vou lá Minha mãe Maluca vai se meter em negócio político vai ser presa vai sumir porque estava na ditadura não é Vai sumir vai morrer Eu fui nessa reunião do Teatro Opinião Cheguei lá eu encontrei Milton Gonçalves Martinho da Vila Quem mais meu Deus que eu encontrei A Neilda que hoje é assessora da Benedita E Tinha mais Ah a Idalice Moreira Bastos a Dai Ela era uma cabeleireira que nessa época ainda não estava com um salão dela mas trabalhava no salão de outra pessoa e ela trançava e tratava cabelos crespos uma pessoa influente era modelo A Dai foi a responsável nesse meu caminho de militância no movimento negro ela fazia nossa cabeça também E aí conversando conversando O Martinho da Vila perguntou Você ainda mora em Vila Isabel porque eu o conhecia da escola de samba Na Vila Isabel eu já fui tudo menos o grande amor do mestresala risos Eu falei assim Não estou morando em Botafogo Ele disse Olha estou com vontade de fazer um evento que é O Canto Livre de Angola Estou com vontade de fazer um intercâmbio cultural Deixa as coisas melhorarem que eu vou fazer isso Brizola vem aí O slogan Brizola vem aí o Brizola vem aí e todo mundo queria que o Brizola entrasse acabou que o Brizola se elegeu e o Martinho conseguiu vários apoios para realizar o sonho dos intercâmbios Aí aquele grupo que eu encontrei lá no Teatro Opinião também participava desta construção com o Martinho e tudo o que era problema de telefone eles ligavam para mim Então eu era a atendente de problemas telefônicos de Benedita de José Miguel que era um político influente na época José Miguel era da Zona Oeste ele foi o responsável pelo projeto da Semana de Cultura AfroBrasileira no estado e do Monumento á Zumbi dos Palmares quase ninguém se lembra dele mais foi importantíssimo para nós Pinheiro 2021 p 141 O segundo traço da memória e trajetória de Ruth Pinheiro foi a importância do Partido Democrata Trabalhista PDT na organização dessa rede de ação do protesto negro no Rio de Janeiro A redemocratização foi mediada por dois eventos políticosadministrativos que estruturaram as disputas a fusão do Estado da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1974 e as eleições vencidas pelo Partido Democrata Trabalhista PDT nos anos 1980 Em meio ao processo de distensão controlada o Governo Militar buscava controlar a força oposicionista no estado da Guanabara locus de atuação de movimentos sociais e do partido oposicionista Movimento Democrático Brasileiro MDB A imposição da fusão entre o estado da Guanabara que existiu desde 1960 quando a cidade deixou de ser Distrito Federal com o estado do Rio de Janeiro tentava limitar a influência oposicionista na Câmara Federal e na política federativa Assim como a criação de senadores biónicos e a Lei Falcão buscavam controlar as eleições e favorecer a vitória do partido governista em 1979 com a volta do multipartidarismo tentavase evitar que políticos identificados como símbolos da luta contra a Ditadura ganhassem espaço Isso levou o Governo Militar a garantir a legenda do Partido Trabalhista Brasileiro PTB para Darci Vargas evitando que Leonel Brizola refundasse a legenda O político retornou do exílio e buscou construir sua base política no Rio de Janeiro apesar de ser gaúcho e criou o Partido Democrático Trabalhista PDT O lema reproduzido por Ruth Pinheiro Brizola vem aí ganhou espaço na esfera pública da cidade e sinalizava o carisma do político como símbolo de combate à Ditadura e ao que ela representava O trabalhismo brizolista dos anos 1970 era contudo bastante distinto Em seu carisma Brizola galvanizava a luta contra o imperialismo em favor do desenvolvimento industrial e soberania nacional com expansão de direitos sociais para a classe trabalhadora projeto fortemente identificado com o trabalhismo constituído no período anterior ao Golpe de 1964 com a pauta da democracia e a luta pelo reconhecimento dos novos movimentos sociais João Trajano SentoSé no livro Brizolismo 1999 enfatiza que a criação do novo trabalhismo foi favorecida pela experiência do exílio e o socialismo democrático incorporando demandas e reivindicações das pautas políticas renovadas após as manifestações da Revolução de 1968 Em reunião em Lisboa em 1979 Brizola já indicava o intento de fundar Anos 90 Porto Alegre v 30 e2023004 2023 11 de 17 o trabalhismo em outras bases Como já indicava a Carta de Lisboa o programa trabalhistasocialista defende direitos das minorias segregadas principalmente étnicas com o convite do cacique Mário Juruna para ingressar no PDT e com a eleição de Abdias Nascimento também pela legenda uma foto do líder histórico do movimento negro está fixada no auditório da sede do partido junto às de Vargas Jango e Brizola como reconhecimento simbólico da relevância do significado da sua causa SentoSé 1999 p 187 Na eleição de 1982 Leonel Brizola foi vencedor do pleito estadual numa vitória dramática contra Miro Teixeira sucessor de Chagas Freitas e da máquina articulada em torno do Partido Democrático Social PDS no controle do governo do estado do Rio de Janeiro e Moreira Franco que tentava galvanizar a rede de apoio de Amaral Peixoto e do Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMDB no estado O líder pedetista denunciou fraudes que buscavam impedilo de se eleger e cuidou de agenciar um vínculo com os movimentos sociais populares Américo Freire explica que a transição democrática quando comparada à ocorrida em outros países da América Latina e de regimes fascistas do franquismo e salazarismo foi marcada pela articulação pelo alto a partir de arranjos entre militares e o parlamento com menor vínculo com os movimentos sociais sendo o Partido dos Trabalhadores PT um dos outsiders que viria a arrebatar esses novos atores da cena política nacional mas com variações regionais e locais No Rio de Janeiro esse papel foi cumprido pelo Partido Democrático Trabalhista PDT que estabeleceu seu vínculo em áreas de perfil popular como nas reivindicações de regularização fundiária e no compromisso radicalmente contrário à política de remoção de populações faveladas Freire 2016 p 190 No caso dos movimentos de negritude o governo estadual de Leonel Brizola 19821986 foi marcado pelo investimento na educação pela construção do sambódromo e o reconhecimento cultural da população negra na região do porto É nesse período que ocorrem as primeiras tentativas de políticas culturais para identificar e definir um vínculo da região portuária cercada pelos bairros Saúde Gamboa e Santo Cristo com a diáspora africana Não obstante a área ter sido densamente ocupada por escravizados e libertos ao longo do século XIX sendo uma centralidade para a organização do trabalho e moradia dos afrobrasileiros sucessivas reformas urbanas tentaram apagar esse vínculo Nos anos 1980 através de uma política de patrimônio que tentava reconhecer a diversidade étnicocultural estabelecer vínculos com movimentos sociais e também marcar um viés crítico à imagem de uma nacionalidade homogênea e ufanista construída na Ditadura iniciouse um processo de reconhecimento da etnicidade negra na região portuária Roberta Sampaio no trabalho A pequena África 2015 explica que a categoria político e cultural pequena África ganha evidência nessa conjuntura da redemocratização em disputa com uma memória lusobrasileira que identificava a região a partir da migração portuguesa para o Morro da Conceição Várias associações culturais dentro e fora da região portuária lutaram pelo reconhecimento do espaço como locus da resistência da população negra no Rio de Janeiro Sampaio 2015 A criação da Semana da Cultura AfroBrasileira no estado e o monumento de Zumbi dos Palmares em frente ao sambódromo são marcos dessa luta que também é reconhecida por Ruth Pinheiro É interessante notar a posição de Ruth Pinheiro nessa rede que envolveu a redemocratização no estado do Rio de Janeiro Diferente de José Miguel e Benedita da Silva políticos negros que se engajaram na estrutura político partidária do PDT e do PT ela participa desse processo como eleitora vivendo maior parte de sua experiência de vida sob a Ditadura não tinha até então exercido o direito de voto Além disso estava estritamente vinculada à rede de associativismo negro Por ocupar um cargo na CBT seu agenciamento era estratégico para favorecer a instalação de telefones nas sedes de associações negras e por facilitar contatos com lideranças de outros estados e de fora do Brasil Isso foi experimentado de forma contundente nos projetos articulados por Martinho da Vila nos anos Anos 90 Porto Alegre v 30 e2023004 2023 12 de 17 1980 O cantor intelectual e ativista tinha vínculos com a Angola onde cantou em um festival em 1972 e realizou em 1982 o projeto Canto Livre de Angola reunindo cantores que celebravam a independência e negritude na diáspora Isso transformou Martinho da Vila num embaixador honorário de Angola no Brasil uma vez que o Brasil não tinha embaixada naquele país ele era chamado para fazer intermediações de autoridades e lideranças políticas e culturais Vila 2021 Ruth foi uma das parceiras de Martinho da Vila Dentro da rede de sociabilidade do movimento negro ela tem orgulho de se identificar como a telefonista do movimento negro por resolver os problemas com telefone item de luxo na sociedade de consumo dos anos 1970 e 1980 e central para definir estratégias e contatos de um movimento social no cenário nacional e internacional Esse agenciamento realizado era motivo de orgulho e medo uma vez que havia repressão à organização sociopolítica do movimento social Então o Movimento Negro Ó tem que mandar um recado lá para o Rio Grande do Sul para a Vera Triunfo que era conhecida no Rio Grande do Sul combativa então eu mandava o recado Ah manda lá pro seu João lá no Maranhão aí eu mandava o recado Eu comecei a fazer parte de todas as reuniões e eventos que naquela época eram poucos As reuniões a gente não podia dizer com certeza que iam acontecer Reunião em São Gonçalo cada um levava uma lata de sardinha um pão porque se estivesse com bolsa de compras alguma coisa maior você podia ser interrogada ou parada para saber para onde que você ia Era assim desse jeito Se estivessem três quatro pretos juntos então Hoje eles matam não é Naquele tempo também sumiam com pessoas também matavam Mas era diferente escondido não tinha celular para filmar Então comecei a gostar e de acordo com o meu tempo participava Pinheiro 2021 p 144145 Vários traços de comportamento para participar dessa rede de sociabilidade são elencados e performados por Ruth Pinheiro Primeiro o conhecimento das lideranças e figuras chave do movimento negro nos vários estados bem como o conhecimento da negritude com seus saberes estéticos e políticos Gomes 2017 Ruth Pinheiro é emblemática em reconhecer Idalice Moreira Bastos Dai cabeleireira pioneira em salões afro e para cuidado de cabelos naturais sem química no Rio de Janeiro como central para influenciar sua adesão ao movimento negro Segundo havia a compreensão de um cenário repressivo na cidade com medo de uma parada ou batida policial para identificar a reunião de negros e seus objetivos A redemocratização nos anos 1970 e 1980 não era experimentada como liberdade para ação e reunião o fato dela ser experimentada como controlada por militares e arranjos pelas elites políticas criava uma interdição aos protestos e manifestações negras Em terceiro lugar podemos através da oralidade de Ruth Pinheiro pensar a agência das mulheres no movimento negro Petrônio Domingues 2009 realça a importância de refletir sobre a agência de mulheres negras para além das lideranças e militantes mais destacadas do tempo recente Ressalta que na trajetória do protesto e associações negras no Brasil elas tiveram participação destacada desde o início do século XX mas conviviam com o sexismo de organizações civis e movimentos sociais que davam destaque ao protagonismo masculino No movimento negro contemporâneo há uma ruptura com esse padrão de comportamento com o surgimento de várias organizações e lideranças de mulheres negras que assumem maior protagonismo na cena pública e denunciam a opressão e patriarcaismo na sociedade e no movimento negro havendo uma discussão específica sobre o feminismo negro Domingues 2009 Ruth Pinheiro experimenta esse cenário de mudança do movimento negro contemporâneo vivenciou situações em que realizava o apoio da rede associativa como telefonista e ajudando na organização Anos 90 Porto Alegre v 30 e2023004 2023 13 de 17 das reuniões e nos anos 1990 ganharia destaque na liderança de organizações civis Ela demarca o ano de 1988 e 1990 como um momento de transformação de sua posição de frequentadora e secretária do movimento social para uma posição de liderança ocupando a presidência de associações civis voltadas ao afroempreendedorismo Essa mudança não foi vivenciada sem conflitos pois ainda que tivesse participação e convívio com várias mulheres negras no movimento ela experimentava o sexismo nesses espaços onde a posição de portavoz era identificada com a liderança masculina que resistia a reconhecer as mulheres nesse lugar Vivendo essa tensão ela tornouse uma das lideranças do movimento de empreendedores afrobrasileiros nos anos 1990 e 2000 Em 1989 ela esteve envolvida na fundação do Instituto Palmares de Direitos Humanos IPDH que tinha por base o debate e a luta do movimento negro contemporâneo reconhecendo o racismo na sociedade brasileira lutando pela redemocratização e reivindicando da ampliação da cidadania para a população afrobrasileira Além disso o foco das ações do IPDH era a questão da formação das classes médias e dos afroempreendedores promovendo mobilidade social ascendente e consolidando grupos de apoio à microempreendedores na comunidade negra Estavam portanto distante do debate sobre a revolução social a partir de um viés marxista presente no movimento negro dos anos 1980 e focavam na perspectiva de promover a ascensão social Também se afastavam de uma visão que identificava a população negra apenas como parte dos marginais sociais e da classe trabalhadora focalizavam em sua política os afroempreendedores ou classes médias negras Desse projeto surgiu outra organização civil o Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo Santos Neves CANDON Considerações finais A pesquisa e trabalho de História Oral tem sido importante para a análise da história negra no Brasil e na diáspora Isso se manifesta em diferentes projetos de pesquisa que buscam a oralidade e o registro simbólico do cotidiano na experiência e vida de diferentes indivíduos e coletividades para evidenciar a experiência do racismo e as estratégias de resistência e consciência da opressão de classe e raça Nas análises do movimento negro do século XX destacamse os trabalhos de Verena Alberti Amilcar Pereira Petrônio Domingues Michel Hardchat Sônia Giacomini Amauri Pereira entre outros que problematizam a memória dos militantes do movimento negro as periodizações e articulações entre a vida e a consciência da negritude evidenciando projetos sociais e políticos heterogêneos e diferenças regionais e conexões transnacionais A trajetória de Ruth Pinheiro ajuda a compor um quadro dessa agência social e política a partir de uma personagem que era reconhecida como telefonista do movimento negro Ela teve uma experiência na formação do movimento negro contemporâneo nos anos 1970 e 1980 como mulher que não estava numa posição de liderança fato que viria a acontecer nos anos 1990 através do CANDON Em sua trajetória ela demarca a centralidade do IPCN e do brizolismo e na construção da sociabilidade do movimento negro ao mesmo tempo que constrói sua identidade e família negra a partir de suas experiências como parte de uma classe média negra na zona norte e subúrbio do Rio de Janeiro A consciência racial na personagem se manifesta através de diferentes interseções no espaço urbano no trabalho e na cultura e política carioca A redução da escala na trajetória de uma personagem e a metodologia de História Oral possibilitam a construção de uma história social complexa que não se fixe em marcos temporais fixos e que ajude a refletir sobre a importância da subjetividade e memória na construção do social A entrevista com Ruth Pinheiro contribui para rever e análise a história do movimento negro deslocando o foco de análise para as sociabilidades que formam a agência e o engajamento sociopolítico dos militantes Referências ALBERTI Verena PEREIRA Amilcar Araújo Histórias do movimento negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de janeiro Pallas CPDOCFGV 2007 ALBERTO Paulina L Termos de Inclusão Campinas Unicamp 2017 ALBERTI Verena Ouvir contar textos em História Oral Rio de Janeiro FGV 2004 ANDREWS George Reid América Afrolatina18002000 São Paulo Editora da UFSCAR 2014 BOURDIEU Pierre A ilusão biográfica In FERREIRA Marieta de Moraes AMADO Janaína org Usos e Abusos da História Oral Rio de Janeiro FGV 2005 COSTA PINTO Luís A O negro no Rio de Janeiro relações de raça numa sociedade em mudança Rio de Janeiro UFRJ 1998 CRUZ Alline Torres Dias da De Madureira à Dona Clara suburbanização e racismo no Rio de Janeiro no contexto pósemancipação 19011920 São Paulo Huitec 2020 DÁVILA Jerry Diploma de Brancura política social e racial no Brasil 1917 1945 São Paulo Editora Unesp 2006 DOMINGUES Petrônio Entre Dandaras e luizas Mahins mulheres negras e antiracismo no Brasil In PEREIRA Amauri Mendes SILVA Joselina da org O movimento negro brasileiro escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil Belo Horizonte Nandyala 2009 p 1749 DOMINGUES Petrônio Movimento Negro alguns apontamentos históricos Tempo Rio de Janeiro v 12 n 23 2007 DOMINGUES Petrônio O mito da democracia racial e a mestiçagem no Brasil Diálogos Latinoamericanos v 6 n 10 p 117131 2005 Disponível em httpstidsskriftdkdialogosarticleview113653 Acesso em 21092021 DOMINGUES Petrônio Uma história não contada negro racismo e branqueamento em São Paulo no pósabolição São Paulo Editora SENAC 2019 FREIRE Américo O fio da História Leonel Brizola e a renovação da tradição trabalhista no Brasil contemporâneo 19801990 In FREIRE Américo FERREIRA Jorge org A razão indignada Leonel Brizola em dois tempos 19611964 e 19792004 Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2016 p 181207 GIACOMINI Sonia Maria A alma da festa família etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro o Renascença Clube Belo Horizonte Editora da UFMG Rio de Janeiro IUPERJ 2006 GOMES Nilma Lino O movimento negro educador Saberes construídos nas lutas por emancipação Petrópolis Vozes 2017 GONZALES Lélia Por um feminismo afrolatinoamericano ensaios intervenções e diálogos Rio de Janeiro Zahar 2020 GUIMARÃES Antônio Sérgio Democracia racial o ideal o pacto e o mito Novos Estudos CEBRAP São Paulo n 61 p 147162 nov 2001 GUIMARÃES Antônio Racismo e Antirracismo no Brasil 2 ed São Paulo Editora 34 2005 HALL Stuart Da diáspora Identidades e Mediações Culturais Belo Horizonte Editora da UFMG 2003 KILOMBA Grada Memórias da plantação episódios de racismo cotidiano Tradução Jess Oliveira Rio de Janeiro Cobogó 2020 MUNANGA Kabenguele Nosso racismo é um crime perfeito 2011 Disponível em httpsfpabramoorgbr20100908nossoracismoeumcrimeperfeitoentrevistacomkabengelemunanga Acessado em 10012022 MUNANGA Kabenguele Reconstruindo a mestiçagem 2 ed Belo Horizonte Autêntica 2019 MELO Diogo Jorge de OLIVEIRA Samuel Silva Rodrigues de Lygia Santos trajetória de uma intelectual negra no Rio de Janeiro 19341980 Estudos Iberoamericanos v 17 p 116 2021 Disponível em httpsdoiorg10154481980864x2021340396 PEREIRA Amauri Mendes SILVA Joselina da org O movimento negro brasileiro escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil Belo Horizonte Nandyala 2009 PEREIRA Amilcar Araújo O Mundo Negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 2010 268 f Tese Doutorado em História Universidade Federal Fluminense Niterói 2010 PIMENTA Denise Nacif ALMEIDA Juniele Rabêlo LIMA Lívia Morais Garcia Impermanências História oral mulheres e envelhecimento na pandemia Vol 1 São Paulo Letra Voz 2021 PINHEIRO Ruth Ruth Pinheiro uma trajetória de vida trabalho e luta política no movimento negro e na organização do empreendedorismo afrobrasileiro Entrevista concedida a Samuel Oliveira e Roberto Borges In PIMENTA Denise Nacif ALMEIDA Juniele Rabêlo LIMA Lívia Morais Garcia Impermanências História oral mulheres e envelhecimento na pandemia Vol1 São Paulo Letra Voz 2021 p 135165 PORTELLI Alessandro Ensaios de História Oral São Paulo Letra e Voz 2010 OLIVEIRA Samuel Silva Rodrigues de Zózimo Bulbul a prática de história oral no Centenário da Abolição 1988 e a história de vida de um artista negro 19371959 História Oral v 24 n 1 p 239257 2021 Disponível em httpsdoiorg1051880hov24i11102 SANSONE Lívio Negritude sem etnicidade o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil Salvador Editora da UFBA 2004 SANTOS Joel Rufino dos O movimento negro e a crise brasileira Política e Administração Rio de Janeiro v 2 p 287307 julset 1985 SANTOS Myrian Sepúlveda org Nos quintais do samba da Grande Madureira memória historias e imagens de ontem e hoje Rio de Janeiro Olhares 2016 SCHWARCZ Lilian Central do Brasil uma linha divisória que separa e une subúrbios e centros In Lima Barreto triste visionário São Paulo Cia das Letras 2017 p 162188 SENTOSÉ João Trajano Brizolismo Rio de Janeiro FGV 1999 VILA Martinho Martilho da Vila e o Projeto Kalunga Entrevista no site do Museu Afrodigital Disponível em httpwwwmuseuafroriouerjbrpageid2026 Acesso em 26 nov 2021 Notas 1É um espaço cultural e de luta antirracista localizado no bairro da Lapa na Cidade do Rio de Janeiro onde mulheres negras se reúnem para produzirem variadas ações É também o último local onde a vereadora Marielle PSOL esteve antes de ser executada 2Essas associações e seus significados sociopolíticos serão explorados ao longo do artigo 3 Sobre a noção de trajetória aqui mobilizada para compreensão da história no pósabolição através do método da História Oral ver Melo Oliveira 2021 Oliveira 2021 4 Interessante observar que até hoje a despeito das leis do posicionamento das pessoas negras e de todas as mídias embora o racismo se constitua como crime ainda é muito difícil tipificálo pelo fato de muitas pessoas ainda o considerarem como algo a menos 5 É importante ratificar no entanto que ainda não superamos estes discursos de harmonia racial e da mestiçagem que levam muitos a propagarem ainda hoje que o Brasil não é um país racista Como assevera Munanga 2011 o Brasil é um país em que há racismo mas não há racistas Bibliografia Candeia Isnard 1978 Escola de Samba Árvore que esqueceu a raiz Rio de Janeiro Editora LidadorSEECRJ Candeia 1978a 90 Anos de Abolição Rio de Janeiro GRAN Escola de Samba Quilombo Diop Cheikh Anta 1963 The Cultural Unity of Black Africa translation by Présence Africaine Republished by Third World Press Chicago 1978 Diop Cheikh Anta 1974 The African Origin of Civilization Myth or Reality translated by Mercer Cook Westport Lawrence Hill Gomara Lopes de 1554 Historia de Mexico Anvers in Sertima 1976 Jairazbhoy R A 1974 Ancient Egyptians and Chinese in America Ottowa Rowman and Littlefield Lucas J Olumide 1978 The Religion of the Yorubas Lagos CMS Bookshop Moura Clovis 1977 O Negro de Bom Escravo a Mau Cidadão Rio de Janeiro Editora Conquista Nascimento Beatriz 1979 O Quilombo do Jabaquara Revista de Cultura Vozes Petrópolis Ano 73 abril n 3 Nascimento Elisa Larkin 1981 PanAfricanismo na América do Sul Emergência de uma Rebelião Negra Petrópolis Editora Vozes Orozco y Berra M 1880 Historia antigua y de la Conquista de México in Sertima 1976 Price Richard org 1973 Maroon Societies Rebel Slave Communities in the Americas Garden City Anchor Books Quartim João 1971 Dictatorship and Armed Struggle in Brazil translated by David Fernbach New York Monthly Review Press Sertima Ivan Van 1976 They Came Before Columbus the African Presence in America New York Random House Weiner Leo 1922 Africa and the Discovery of America Chicago Innes Sons Wuthenau Alexander von 1975 Unexpected Faces in Ancient America New York Crown Publishers O CONCEITO DE QUILOMBO E A RESISTÊNCIA CULTURAL NEGRA Beatriz Nascimento Objetivos 1 Caracterizar o quilombo como instituição africana de origem angolana na história da prédiáspora 2 Indicar as conotações que tal instituição recebe no período colonial e Imperial no Brasil 3 Caracterizar a instituição quilombo na passagem para princípios ideológicos como forma de resistência cultural 4 Historicizar a ideologia junto às etapas do movimento de conscientização do negro e da sociedade brasileira no século XX Introdução A visão que o mundo ocidental procurou transmitir da África foi a de um continente isolado e bizarro cuja História foi despertada com a chegada dos europeus Da mesma forma que se deu com o território de origem do povo negro a História deste só o é se tiver sido marcada por acontecimentos significantes da História da civilização ocidental O risco maior de tal procedimento de historiadores desta parte do mundo repousa na ruptura da identidade dos negros e seus descendentes tanto em relação ao seu passado africano quanto à sua trajetória na própria história dos países em que foram alocados após o tráfico negreiro Numerosas foram as formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica No Brasil poderemos citar uma lista destes movimentos que no âmbito doméstico ou social tornamse mais fascinantes quanto mais se apresenta a variedade de manifestações de caráter linguístico religioso artístico social político e de hábitos gestos etc Não nos cabe aqui porém discorrer sobre estes movimentos Um movimento de âmbito social e político é o objetivo do nosso estudo Tratase do Quilombo kilombo que representou na história do nosso povo um marco na sua capacidade de resistência e organização Todas estas formas de resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil O Quilombo como instituição africana Dois incentivos iniciais fizeram com que os portugueses ao contrário dos demais europeus se internassem no continente africano e procurassem conquistar uma colônia em Angola O primeiro seria repetir o caso brasileiro ou seja adquirir terras próprias para se fixar como naquela colônia americana O segundo objetivava encontrar minério precioso em Angola objetivo logo frustrado Beatriz Nascimento é historiadora professora da UFRJ e militante do movimento negro Os europeus descobriram ainda no século XV que a maior fonte de riquezas era o tráfico escravista O Brasil passou a ser o maior receptor desta mercadoria nos mercados do século XVI Decorrente da procura de escravos intensificouse a penetração interior geralmente organizada pelo rei do Congo que orientava os ataques dos portugueses A zona da caça preferida era a região da etnia mbundu no Sul de Angola No século XVII os portugueses verificaram definitivamente que o comércio humano mais que qualquer atividade atendia aos interesses coloniais Três métodos principais se mostraram eficazes para este empreendimento O primeiro baseavase na compra por traficantes nos mercados dos povos mais atacados junto às fronteiras do Congo e de Angola Mpumbu povo fixado próximo ao lago Stanley deu nome a estes traficantes os famosos pombeiros O segundo método consistia na forma de obter escravos através da imposição de tributos aos chefes mbundus conquistados Tal tributo era pago em jovens escravos adultos conhecidos sob o nome de peças da Índia O terceiro método de adquirir escravos era através de guerras diretas Os governadores eram os mais interessados neste último procedimento Alguns deles com interesses no Brasil preocupavamse em abastecer de escravos suas próprias terras americanas Ao entrar no continente africano os europeus encontraram sociedades de diversos tipos naquele momento em processo de redefinição na medida em que surgia em alguns pontos a organização do Estado Este como o exemplo do Reino do Congo chocavase com algumas formações tradicionais como no caso das formações baseadas no modo de produção de linhagem da qual os mbundus faziam parte David Birmingham dá bem a medida dos conflitos existentes nas sociedades bantus da África centroocidental no momento da penetração portuguesa Diversas etnias se entrechocam se sucedem no mesmo espaço seja aderindo ao novo momento seja resistindo a esta penetração Dentre estas vamos encontrar os Imbangalas também conhecidos como Jagas caçadores vindos do Leste que por volta de 1560 começam a invadir o Reino do Congo e que por volta de 1569 tinham conseguido expulsar o rei e os portugueses da capital obrigandoos a exilarse numa ilha no rio Entre 1571 e 1574 os europeus usando armas de fogo fazem recuar este combativo povo Dez anos mais tarde os Imbangalas combatiam ao lado dos mbundu contra a penetração portuguesa Sua entrada no território dos mbundus foi precedida de uma luta feroz entre Ngola chefedos mesmos e Kingui chefe dos Imbangala Os Imbangala que dominaram Angola eram considerados um povo terrível que vivia inteiramente do saque não criava gado nem possuía plantação Ao contrário das outras linhagens não criavam os filhos pois estes poderiam atrapalhálos nos diversos deslocamentos que se faziam necessários Matavamnos ao nascer e adotavam os adolescentes das tribos que derrotavam Eram antropófagos e em sua cultura adereços tatuagem e o vinho de palma tinham especial significado Esta característica nômade dos Imbangalas acrescida da especificidade de sua formação social pode ser reconhecida na instituição Kilombo A sociedade guerreira Imbangala era aberta a todos os estrangeiros desde que iniciados Tal iniciação substitui o rito de passagem das demais formações de linhagem Por não conviverem com os filhos e adotarem os daquelas formações com as quais entrava em contato os Imbangalas tiveram papel relevante neste período da história angolana a maior parte das vezes na resistência aos portugueses outras no domínio de vastas regiões de fornecimento de escravos Por tudo isto o kilombo cortava transversalmente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder frente às outras instituições de Angola O ritual de iniciação baseavase na prática da circuncisão que expressava o rito de passagem incorporando jovens da várias linhagens na mesma sociedade guerreira Kilombo aqui recebe o significado de instituição em si Seria Kilombo os próprios indivíduos ao se incorporarem à sociedade Imbalala O outro significado estava representado pelo território ou campo de guerra que denominavase jaga Ainda outro significado para kilombo dizia respeito ao local casa sagrada onde processavase o ritual de iniciação O acampamento de escravos fugitivos assim como quando alguns Imbangalas estavam em comércio negreiro com os portugueses também era Kilombo Mais tarde no século XIX as caravanas do comércio em Angola recebiam esta denominação Observandose a interrelação entre Brasil e Angola frente ao tráfico negreiro não é difícil estabelecer conexão entre a história desta instituição na África Angola e aqui A dificuldade está em se estabelecer linhas de contato direto como por exemplo entre a formação de um quilombo aqui e suas origens territoriais e de composição étnica em Angola Se os componentes nacionais eram descendentes diretos dos envolvidos na África ou ainda se haveria relação direta com quilombos combativos aqui e grupos africanos que atuavam na zona de guerra naquele momento do outro lado do Atlântico O Quilombo como instituição no período colonial e Imperial no Brasil A primeira referência a quilombo que surge em documento oficial português data de 1559 mas somente em 1740 em 2 de dezembro assustadas frente ao recrudescimento dos núcleos de população negra livres do domínio colonial depois das guerras do nordeste no século XVII as autoridades portuguesas definem ao seu modo o que significia quilombo toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco em parte desprovida ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles Como esclarecimento as guerras do nordeste referidas acima dizem respeito à destruição do Quilombo dos Palmares assim como toda a agitação que se processou ao redor deste núcleo Dos primeiros quilombos brasileiros no século XVII sem dúvida Palmares se sobressai sem similar Das notícias da época a quantidade destes estabelecimentos está diretamente relacionada ao desmembramento deste grande estado que inaugura uma experiência singular na História do Brasil Se inferirmos através de coincidência de datas vamos notar que o Quilombo dos Palmares não deixa de ser fenômeno paralelo ao que está se desenrolando em Angola no final do século XVI e início do século XVII Talvez seja este quilombo o único a se poder fazer correlação entre o kilombo instituição angolana e quilombo no Brasil colonial O auge da resistência Ja ga se dá exatamente entre 1584 e meados do outro século após o qual esta etnia se alia ao esforço negreiro português Neste mesmo momento se estru tura AngolaJanga conhecido como Quilombo dos Palmares no Brasil Alguns outros fatores coincidentes com a realidade angolana podem ser remarcados como por exemplo a nomeação do chefe africano de Palmares Ganga Zumba Tal título era dado ao rei Imbangala com uma pequena va riaçâo Gaga O adorno da cabeleira verificado pelo cronista quando o rei palmarino conferencia em Recife a trégua que tem o seu nome era costume do Imbangala Calando por exemplo usar o cabelo em tranças longas ador nadas de conchas como sinal de autoridade O estilo da guerra baseada nu ma máquina que se opunha em várias frentes aos prováveis inimigos da insti tuição ou seja a corte transversal e a centralidade nova frente ao regime colo nial Por fim o nome dual da instituição no Brasil AngolaJanga Certo é que o nome Angola dado ao território colonial africano derivou do nome do rei mbundu Ngola o qual emprestou aos seus diversos descendentessucessores Provavelmente representantes desta dinastia africa na são transferidos pelo tráfico para o Brasil Certo é que estejam em Palma res também como chefes do estabelecimento sedicioso Provável que o se gundo nome janga variação de jaga demonstra a união destas duas li nhagens chefiando o Quilombo de Palmares porque assim estavam relacio nados no controle do território mbundu em Angola Estas considerações em torno deste Quilombo no Brasil nos dão a medi da do quanto as realidades de Brasil e Angola estavam num estágio ainda possível de interrelação Os demais quilombos vão se distanciando do mo delo africano e procurarão um caminho de acordo com as suas necessidades em território brasileiro Falta ainda um esforço historiográfico de ao estudar os quilombos bra silleiros definilos segundo suas estruturas e sua dinâmica no tempo De um modo geral definese quilombo como se em todo o tempo de sua história fossem aldeias do tipo que existia na Africa onde os negros se refugiavam para curtir o seu banzo No período colonial o quilombo se caracterizou pela formação de gran des Estados como o da Comarca do Rio das Mortes em Minas Gerais des membrado em 1750 Podemos afirmar que como Palmares este quilombo age de acordo com as condições estruturais inclusive econômica no contexto dos ciclos econômicos no Brasil Antes o açúcar de Pernambuco agora o ouro de Minas Gerais Dentro desta perspectiva se é possível encarálos como sistemas sociais alternativos ou no dizer de Ciro Famarion brechas no sistema escravista Um ponto importante e em certa medida controverso é a atitude destes grandes estabelecimentos frente ao regime da escravidão É preciso reforçar que o africano não é um ser estereotipado na assunção do bon sauvage e que a Africa não era necessariamente um paraíso bizarro A instituição da escravidão era conhecida e utilizada desde a Antiguidade africana entretan to esta escravidão não tinha o caráter de propriedade encontrado no siste ma escravagista colonial Antes diversos fatores levavam um homem livre à condição de escravo entre eles as guerras vizinhas em momento de instabi lidade política os filhos de mãe escrava não resgatados dependência devido a castigo imposto pela quebra de normas grupais perigo de vida dentro do grupo que poderia levar ao pedido de proteção de outra linhagem a chama da escravidão voluntária Frente a este último fator o quilombo sendo uma instituição de ho mens egressos da escravidão colonial ou em perigo frente a esta cujos laços estavam baseados em condições extraordinárias poderia perfeitamente fazer uso destes mecanismos tradicionalmente conhecidos e suportar no seu inte rior a prática da escravidão Além disso aliado no espaço e no tempo ao sistema social escravagista não seria de todo impossível em alguns momentos tal instituição interferir na economia dos grandes quilombos Um exemplo de tal prática inferese do assentimento de GangaZumba em transformar os palmarinos nãoadesistas à trégua de Recife em escravos coloniais Mas é preciso recordar que o escravo colonial ao aderir ao quilombo muitas vezes poderia fazêlo na condição do escravo voluntário É perfeita mente compreensível desde que tal prática era largamente utilizada em Africa Isto posto o que difere estes quilombos do século XVII dos demais era a possibilidade de grupos de etnias comuns ainda poderem ser encontrados num espaço territorial e voltados para um tipo de economia o que dá a me dida do risco que representavam para o sistema colonial Podemos mesmo afirmar que estes quilombos são o primeiro momento da nossa história em que o Brasil assim se identifica enquanto Estado centralizado A partir do desmembramento dos quilombos do Tijuco e da Comarca do Rio das Mortes no século XVIII o quilombo se redefine variando confor me a área geográfica a repressão oficial e a diversidade étnica que se torna cada vez mais comum quanto foi a política negreira de misturar povos de origem diversa Neste século a proliferação de quilombos se faz em todo o território das capitanias coloniais A diferença básica entre estes e os do século XVIII está diretamente vinculada à impossibilidade de cada um em si representar um risco ao sistema Neste particular tanto no século XVII quanto no século XIX esta instituição procede como frinchas no sistema muitas vezes convivendo pacificamente que ao ser vista globalmente ou seja em todo o espaço terri torial e em todo o tempo histórico traduzia uma instabilidade inerente ao sistema escravagista A oscilação das atividades econômicas ora numa região ora noutra provocava muitas vezes o afrouxamento dos laços entre escravos e senhores A fuga passa a ser uma instituição decorrente desta fragilidade colonial e integrante da ordem do quilombo O saque as razzias enfim o banditismo social são a tônica que define a sobrevivência destes aglomerados É assim que no Código de Processo Penal de 1835 o quilombo no senti do de valhacouto de bandidos se distingue de qualquer outra forma de con testação dos escravos Mas se assemelha enquanto perigo à estabilidade e in tegridade do Império sendo a pena para os seus integrantes corresponde à mesma dos participantes de insurreições ou seja a degola Neste período ele está inserido no chamado perigo negro movimen to que assim se denomina em função das guerras da Bahia e do Maranhão Sindicâncias policiais são feitas de acordo com denúncias muitas vezes não confirmadas Em outras ocasiões são encontrados grupos sociais que desen 44 Ano 3 nº 6 e 7 AFRODIÁSPORA a castigo imposto pela quebra de normas grupais perigo de vida dentro do grupo que poderia levar ao pedido de proteção de outra linhagem a chama da escravidão voluntária Frente a este último fator o quilombo sendo uma instituição de ho mens egressos da escravidão colonial ou em perigo frente a esta cujos laços estavam baseados em condições extraordinárias poderia perfeitamente fazer uso destes mecanismos tradicionalmente conhecidos e suportar no seu inte rior a prática da escravidão Além disso aliado no espaço e no tempo ao sistema social escravagista não seria de todo impossível em alguns momentos tal instituição interferir na economia dos grandes quilombos Um exemplo de tal prática inferese do assentimento de GangaZumba em transformar os palmarinos nãoadesistas à trégua de Recife em escravos coloniais Mas é preciso recordar que o escravo colonial ao aderir ao quilombo muitas vezes poderia fazêlo na condição do escravo voluntário É perfeita mente compreensível desde que tal prática era largamente utilizada em Africa Isto posto o que difere estes quilombos do século XVII dos demais era a possibilidade de grupos de etnias comuns ainda poderem ser encontrados num espaço territorial e voltados para um tipo de economia o que dá a me dida do risco que representavam para o sistema colonial Podemos mesmo afirmar que estes quilombos são o primeiro momento da nossa história em que o Brasil assim se identifica enquanto Estado centralizado A partir do desmembramento dos quilombos do Tijuco e da Comarca do Rio das Mortes no século XVIII o quilombo se redefine variando confor me a área geográfica a repressão oficial e a diversidade étnica que se torna cada vez mais comum quanto foi a política negreira de misturar povos de origem diversa Neste século a proliferação de quilombos se faz em todo o território das capitanias coloniais A diferença básica entre estes e os do século XVIII está diretamente vinculada à impossibilidade de cada um em si representar um risco ao sistema Neste particular tanto no século XVII quanto no século XIX esta instituição procede como frinchas no sistema muitas vezes convivendo pacificamente que ao ser vista globalmente ou seja em todo o espaço terri torial e em todo o tempo histórico traduzia uma instabilidade inerente ao sistema escravagista A oscilação das atividades econômicas ora numa região ora noutra provocava muitas vezes o afrouxamento dos laços entre escravos e senhores A fuga passa a ser uma instituição decorrente desta fragilidade colonial e integrante da ordem do quilombo O saque as razzias enfim o banditismo social são a tônica que define a sobrevivência destes aglomerados É assim que no Código de Processo Penal de 1835 o quilombo no senti do de valhacouto de bandidos se distingue de qualquer outra forma de con testação dos escravos Mas se assemelha enquanto perigo à estabilidade e in tegridade do Império sendo a pena para os seus integrantes corresponde à mesma dos participantes de insurreições ou seja a degola Neste período ele está inserido no chamado perigo negro movimen to que assim se denomina em função das guerras da Bahia e do Maranhão Sindicâncias policiais são feitas de acordo com denúncias muitas vezes não confirmadas Em outras ocasiões são encontrados grupos sociais que desen volvem nos quilombos intensas atividades religiosas Como o exemplo do Qui lombo de N Sa dos Mares e Cabula em Salvador Outro dado importante do período é que os quilombos de grande porte se encontram em morros e periferia dos centros urbanos mais importantes como de Catumbi o do Corcovado o de Manuel Congo no Rio de Janei ro imperial Muitos destes quilombos se organizam dentro de um arcabouço ideológico ou seja a fuga implica numa reação ao colonialismo Já existe neste momento a tradição oral ao lado de referências literárias do fenômeno no passado O quilombo como passagem para princípios ideológicos É no final do século XIX que o quilombo recebe o significado de instru mento ideológico contra as formas de opressão Sua mística vai alimentar o sonho de liberdade de milhares de escravos das plantações em São Paulo mais das vezes através da retórica abolicionista Esta passagem de instituição em si para símbolo de resistência mais uma vez redefine o quilombo O surgimento do Quilombo do Jabaquara é o me lhor exemplo Os negros fugidos das fazendas paulistas migram para Santos em busca de um quilombo que era apregoado pelos seguidores de Antônio Bento quilombo este que na verdade viria a ser uma grande favela frustran do aquele ideal de território livre onde se podia dedicar às práticas culturais africanas e ao mesmo tempo uma reação militar ao regime escravocrata É enquanto caracterização ideológica que o quilombo inaugura o século XX Tendo findado o antigo regime com ele foise o estabelecimento como resistência à escravidão Mas justamente por ter sido durante três séculos con cretamente uma instituição livre paralela ao sistema dominante sua mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional Assim é que na trilha da Semana de 22 a edição da coleção Brasiliana da Editora Nacio nal publica três títulos sobre o quilombo de autores como Nina Rodrigues Ernesto Enne e Edison Carneiro Não deixando de citar Artur Ramos e Guer feiro Ramos além da versão romanceada um pouco anterior de Felício dos Santos Este momento de definição da nacionalidade faz com que a produção intelectual se debruce sobre este fenômeno buscando seus aspectos positivos como reforço de uma identidade histórica brasileira Mas não só nela em outras manifestações artísticas o quilombo é relembrado como desejo de uma utopia A maior ou menor familiaridade com as teorias da resistência popu lar marcam esta produção que é inclusive demonstrada em letras de samba Muitas vezes referidas em instituições escolares É comum até 1964 a narrati va da história oficial ser encontrada nos livros escolares De todo modo até os anos 70 o quilombo adquire este papel ideológico fornecendo material para a ficção participativa como o caso da peça teatral Arena Conta Zumbi buscando o reforço da nacionalidade brasileira através do filão da resistência popular às formas de opressão confundido num bom sentido o território pal marino com a esperança de um Brasil mais justo onde houvesse liberdade união e igualdade Ao analisarmos esta conotação não poderíamos esquecer da heroicida de tão intrinsecamente ligada à história dos quilombos Como não poderia deixar de ser a figura do herói é enormemente destacada principalmente a figura de Zumbi e isto mais do que tudo neste período ganha uma repre sentação capaz de ao lado de muito poucos a imagem deste chefe se confun dir com uma alma nova nacional Não chega a ser exagero afirmar que entre 1888 e 1970 com raras exce ções o negro brasileiro não pôde expressarse por sua voz na luta pelo reco nhecimento de sua participação social Soa interessante que tal expressão ve nha a acontecer num momento em que o país estava sufocado sob uma forte repressão ao livre pensamento e à liberdade da reunião Este era o momento dos anos 70 Talvez por ser um grupo extremamente submetido e que não oferecia um imediato perigo às chamadas instituições vigentes os negros puderam inaugurar um movimento social baseado na verbalização ou discurso veicula da à necessidade de autoafirmação e recuperação da identidade cultural Foi a retórica do quilombo a análise deste como sistema alternativo que serviu de símbolo principal para a trajetória deste movimento Chama mos isto de correção da nacionalidade A ausência de cidadania plena de canais reivindicatórios eficazes a fragilidade de uma consciência brasileira do povo implicou numa rejeição do que era considerado nacional e dirigiu este movimento para a identificação da historicidade heróica do passado Como antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo de fa to em 70 o quilombo voltase como código que reage ao colonialismo cultu ral reafirma a herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de refor çar a identidade étnica Toda a literatura e a oralidade histórica sobre quilombos impulsiona ram este movimento que tinha como finalidade a revisão de conceitos histó ricos estereotipados Com a publicação de artigo no Jornal do Brasil em novembro de 1974 o Grupo Palmares do Rio Grande do Sul do qual participava entre outros o poeta Oliveira Silveira sugeria que a data de 20 de novembro lembrando o assassinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares passasse a ser comemorada como data nacional contrapondose ao 13 de maio Argumen tava que a lembrança de um acontecimento em todos os sentidos dignifican te da capacidade de resistência dos antepassados traria uma identificação mais positiva do que a Abolição da escravatura até então vista como uma dádiva de cima para baixo do sistema escravagista e de S Alteza Imperial Sua sugestão foi imediatamente aceita e a procura de maiores esclareci mentos sobre aqueles fenômenos de resistência tomou forma de aulas deba tes pesquisas e projeções que alimentaram o anseio de liberdade de jovens através de entidades escolas universidades e da mídia Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro sinônimo de comportamento do negro e espe rança para uma melhor sociedade Passou a ser sede interior e exterior de to das as formas de resistência cultural Tudo de atitude à associação seria qui lombo desde que buscasse maior valorização da herança negra Hoje o 20 de novembro é data instituída de fato no calendário cívico nacional como Dia da Consciência Negra ou AfroBrasileira 46 Ano 3 nº 6 e 7 AFRODIÁSPORA deixar de ser a figura do herói é enormemente destacada principalmente a figura de Zumbi e isto mais do que tudo neste período ganha uma repre sentação capaz de ao lado de muito poucos a imagem deste chefe se confun dir com uma alma nova nacional Não chega a ser exagero afirmar que entre 1888 e 1970 com raras exce ções o negro brasileiro não pôde expressarse por sua voz na luta pelo reco nhecimento de sua participação social Soa interessante que tal expressão ve nha a acontecer num momento em que o país estava sufocado sob uma forte repressão ao livre pensamento e à liberdade da reunião Este era o momento dos anos 70 Talvez por ser um grupo extremamente submetido e que não oferecia um imediato perigo às chamadas instituições vigentes os negros puderam inaugurar um movimento social baseado na verbalização ou discurso veicula da à necessidade de autoafirmação e recuperação da identidade cultural Foi a retórica do quilombo a análise deste como sistema alternativo que serviu de símbolo principal para a trajetória deste movimento Chama mos isto de correção da nacionalidade A ausência de cidadania plena de canais reivindicatórios eficazes a fragilidade de uma consciência brasileira do povo implicou numa rejeição do que era considerado nacional e dirigiu este movimento para a identificação da historicidade heróica do passado Como antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo de fa to em 70 o quilombo voltase como código que reage ao colonialismo cultu ral reafirma a herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de refor çar a identidade étnica Toda a literatura e a oralidade histórica sobre quilombos impulsiona ram este movimento que tinha como finalidade a revisão de conceitos histó ricos estereotipados Com a publicação de artigo no Jornal do Brasil em novembro de 1974 o Grupo Palmares do Rio Grande do Sul do qual participava entre outros o poeta Oliveira Silveira sugeria que a data de 20 de novembro lembrando o assassinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares passasse a ser comemorada como data nacional contrapondose ao 13 de maio Argumen tava que a lembrança de um acontecimento em todos os sentidos dignifican te da capacidade de resistência dos antepassados traria uma identificação mais positiva do que a Abolição da escravatura até então vista como uma dádiva de cima para baixo do sistema escravagista e de S Alteza Imperial Sua sugestão foi imediatamente aceita e a procura de maiores esclareci mentos sobre aqueles fenômenos de resistência tomou forma de aulas deba tes pesquisas e projeções que alimentaram o anseio de liberdade de jovens através de entidades escolas universidades e da mídia Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro sinônimo de comportamento do negro e espe rança para uma melhor sociedade Passou a ser sede interior e exterior de to das as formas de resistência cultural Tudo de atitude à associação seria qui lombo desde que buscasse maior valorização da herança negra Hoje o 20 de novembro é data instituída de fato no calendário cívico nacional como Dia da Consciência Negra ou AfroBrasileira AFRODIÁSPORA Ano 3 nº 6 e 7 47 Considerações finais Este esboço de estudo tentou trazer uma unidade no tempo do fenôme no quilombo Foi escolhido um método histórico descritivo por acharmos que caberia este esforço na medida em que as variáveis do quilombo são negli genciadas oficialmente Por outro lado seria necessário um corpo analítico para se compreender por que este fenômeno sobrevive no inconsciente coletivo dos negros e de inteligência brasileira Durante sua trajetória o quilombo serve de símbolo que abrange cono tações de resistência étnica e política Como instituição guarda características singulares do seu modelo africano Como prática política apregoia ideias de emancipação de cunho liberal que a qualquer momento de crise da naciona lidade brasileira corrige distorções impostas pelos poderes dominantes O fas cínio de heroicidade de um povo regularmente apresentado como dócil e sub serviente reforça o caráter hodierno da comunidade negra que se volta para uma atitude crítica frente às desigualdades sociais a que está submetida Por tudo isto o quilombo representa um instrumento vigoroso no proces so de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto afirmação étnica e nacional O fato de ter existido como brecha no sistema em que os negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforço à identidade cultural Bibliografia Birmingham David 1973 A Conquista Portuguesa de Angola a Regra do Jogo Lisboa Conrad Robert 1975 Os últimos anos da escravatura no Brasil Rio Civili zação BrasileiraMEC Carneiro Edison 1965 O Quilombo dos Palmares Rio Civilização Brasileira Freitas Décio 1971 Palmares a guerra dos escravos Porto Alegre Editora Movimento Nascimento Abdias 1980 O Quilombismo RioPetrópolis Editora Vozes Nascimento Maria Beatriz 1978 O quilombo do Jabaquara Revista de Cultura Vozes maiojunho Serrano Carlos 1982 História e antropologia na pesquisa do mesmo es paço a AfroAmérica África Revista do Centro de Estudos Africanos da USP nº 5 Rodrigues José Honório 1970 A rebeldia negra e a abolição História e Historiografia Petrópolis Vozes 48 Ano 3 nº 6 e 7 AFRODIÁSPORA AFRODIÁSPORA Ano 3 nº 6 e 7 49 Vertentes Interfaces I Estudos Literários e Comparados Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 UM OUTRO ZUMBI DE PALMARES O QUILOMBISMO COMO VALOR SIMBÓLICO EM POEMAS AFROBRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis RESUMO Examinase como a figura de Zumbi e do quilombo de Palmares aparecem em poemas afrobrasileiros contemporâneos em suas acepções denotativas e sobretudo conota tivas associados à reivindicação de liberdade igualdade e dignidade a todas as minorias Para tanto resenhase a evolução do conceito de quilombo no Brasil e em especial sua retomada com valor simbólico segundo a noção de quilombismo como ideiaforça proposta por Ab dias Nascimento Avaliase como o termo assume significados diferentes a partir do lugar ocupado por aquele que o emprega salientandose a diferença conceitual presente em seus usos a partir da ótica do colonizador branco e da do negro Na esteira dessas últimas refle xões tomando o quilombismo em seu valor ideológico mobilizador analisamse poemas de Henrique Cunha Carlos Assumpção e Eduardo de Oliveira Embasa o ensaio o pensamento de historiadores e teóricos que têm pesquisado o fenômeno quilombola especialmente Abdias Nascimento e Beatriz Nascimento PALAVRASCHAVE Literatura afrobrasileira Palmares Poemas Quilombismo Zumbi Doutora em Letras Docente do Departamento de LLA da URI Campus Frederico Westphalen atuando no Mestrado e Graduação em Letras Mestranda em Letras no PPGL da URI Campus Frederico Westphalen Graduada em Comunicação Soci alJornalismo pela UFSMFW 120 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 Este ensaio propõese a examinar como as figuras históricas de Zumbi e dos quilombos em especial o palmarino reaparecem em seu valor simbólico em poemas da literatura brasileira contemporânea Para tanto inicialmente fazse necessário configurar o conceito de quilombo em suas mutantes significações e sua retomada em seu valor simbólico e mobilizador O quilombo é um conceito oriundo dentre os africanos bantos habitantes da África Centro Ocidental e Leste Ainda que nesse contexto histórico o termo desig nasse formação social dos Imbangalas os quais acolhiam em sua sociedade guerreira jovens de várias linhagens incorporandoos através do ritual da circuncisão abrangia ainda os significados de território ou campo de guerra local casa sagrada onde se processava o ritual de iniciação e acampamento de escravos fugitivos NASCIMEN TO 2006 p 59119 A pesquisadora moçambicana Aida Freudenthal que após re gistrar que os Imbangala se sedentarizaram ao longo do século XVIII assinala outras denominações para esses agrupamentos mutolo couto ou valhacouto apresenta também a acepção de quilombo como grupo de escravos fugidos e local onde eles se instalavam FREUDENTHAL 1997 p 110 apud RATTS 2006 p 58 o que coincide com o conceito brasileiro de quilombo mais difundido ou seja estabeleci mento territorial no qual fugitivos buscam abrigo Também conhecido como mocambo GOMES 2015 o quilombo era em seu sentido denotativo um lugar normalmente disfarçado ou oculto em meio ao ma to habitado por negros que haviam escapado do cativeiro Como definido pelas au toridades portuguesas no século XIX quilombo é toda a habitação de negros fugi dos que passem de cinco em parte desprovida ainda que não tenham ranchos levan tados nem se achem pilões neles NASCIMENTO 2006 p 119 A multiplicação dos quilombos transformou o evento de um fato casual em uma organização planeja da para a sobrevivência dos escravos Nessa conjuntura o quilombo Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 121 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 procede como frinchas no sistema muitas vezes conviven do pacificamente que ao ser vista globalmente ou seja em to do o espaço territorial e em todo o tempo histórico traduzia uma instabilidade inerente ao sistema escravagista A oscilação das atividades econômicas ora numa região ora noutra provo cava muitas vezes o afrouxamento dos laços entre os escravos e senhores A fuga passa a ser decorrente dessa fragilidade colo nial e integrante da ordem do quilombo O saque as razias en fim o banditismo social são a tônica que define a sobrevivência desses aglomerados NASCIMENTO 2006 p 122 Configurados como um perigo à estabilidade e à integridade do Império os quilombolas eram destinados à degola Contudo como Abdias Nascimento acentua 2009 p 202 com exceção dos índios o africano escravizado foi o primeiro e único trabalhador durante três séculos e meio a erguer as estruturas deste país cha mado Brasil sem que tenham sido tratados como iguais Assim não admira que os escravos que não aceitavam as condições do sistema escravagista a que eram subme tidos fugissem das fazendas refugiandose nas florestas o que dificultava sua captu ra Contudo vale lembrar como o faz Beatriz Nascimento que o conceito de quilombo na visão dos negros assume outro caráter Ao invés de escravos fugidos a visão é de seres que buscam liberdade e dignidade homens e mulheres que repudia vam todas as violências sofridas corporais culturais e morais NASCIMENTO 2006 Também Abdias Nascimento 1980 afirma Quilombo não significa escravo fugitivo Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre solidariedade convivência comunhão existencial NASCIMENTO 1980 p 263 No ambiente quilombola os negros recuperam sua cultura e identidade pesso al e histórica que haviam sido fraturadas rompidas desvinculadas de seus ancestrais pela interferência do tráfego negreiro Para os descendentes africanos e afro brasileiros o quilombo atesta sua habilidade de resistência e organização frente ao sistema escravagista Isso equivale para Abdias Nascimento 1980 a uma libertação 122 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 em que passavam a usufruir de direitos e não de obrigações sociais deixando de sus tentar a burguesia para sustentar a si e à própria comunidade quilombola No quilombo todos os elementos e fatores tinham propriedade e uso coleti vo A vida era mantida conforme os costumes africanos de acordo com o sistema produtivo comunitário visando igualdade plantando e produzindo em comunidade todos eram beneficiados Como Abdias Nascimento informa a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sociopolítico em termos de igualitarismo econômico Como sistema econômico o quilombismo tem sido a ade quação ao meio brasileiro do comunitarismo ou ujamaaísmo da tradição africana Em tal sistema as relações de produção dife rem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliati va do trabalho chamada capitalismo fundada na razão do lu cro a qualquer custo Não há propriedade privada da terra dos meios de produção e de outros elementos da natureza todos os fatores e elementos básicos são de propriedade e uso coletivo Uma sociedade criativa no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo opressão ou explo ração o trabalho é antes uma forma de libertação humana de que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação soci al NASCIMENTO A 2009 p 202 Examinando os motivos que levaram à marginalização e à inferiorização do negro Abdias Nascimento 1980 p 261 argumenta que ocorreu no Brasil a crista lização políticosocial dos interesses exclusivos de um estrato hierárquico no qual os africanos e seus descendentes tiveram direitos usurpados em todos os sentidos em pregatício direitos civis etc Esse cenário se criou devido às falsas teorias opresso ras assumidas com base na supremacia racial Nas palavras de Nascimento 1980 p 261 no Brasil a intelligentisia responsável pela cobertura ideológica da opressão atra vés da teorização científica da inferioridade biossocial do negro e da defesa a idei as de branqueamento aliouse a mentores europeus e norteamericanos fabricou uma ciên cia histórica ou humana que ajudou a desumanização dos afri canos e seus descendentes para servir os interesses dos opres Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 123 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 sores eurocentristas Uma ciência histórica que não serve à his tória do povo de que trata negandose a si mesma O autor relembra os tantos anos em que os africanos e seus descendentes so freram com a submissão imposta pelo sistema escravagista e depois pelo racismo que se mantém até a atualidade Daí por que Abdias Nascimento incita ao fim do co lonialismo mental e à libertação impulsionada e inspirada pelo quilombismo NAS CIMENTO 1980 Ao final do século XIX quando o ideal de liberdade abolicionista se difunde e a retórica abolicionista alimenta o sonho de liberdade dos exescravos o quilombo recebe o significado de instrumento ideológico contra as formas de opressão Essa transformação de instituição para símbolo de resistência redefine seu significado Como Beatriz Nascimento explica Foi a retórica do quilombo a análise deste como sistema alter nativo que serviu de símbolo principal para a trajetória deste movimento Chamamos isto de correção da nacionalidade A ausência de cidadania plena de canais reivindicatórios eficazes a fragilidade de uma consciência brasileira do povo implicou numa rejeição do que era considerado nacional e dirigiu este movimento para a identificação da historicidade heroica do passado NASCIMENTO 2006 p 123124 Essa busca por afirmação e recuperação da identidade cultural provocou efei to nos produtores intelectuais afrobrasileiros os quais debruçandose sobre ques tões positivas acerca da história do negro reescrevem a história dos exescravos pela ótica do quilombismo Então contada a partir de um outro olhar aparece a heroici dade intimamente associada à história dos quilombos muitas vezes tendo como per sonagem central a figura do Zumbi dos Palmares A par da revisão histórica e revisão de conceitos estereotipados a atribuição de valor ideológico e simbólico ao quilombo impulsionou a organização do movi mento negro no Brasil e algumas conquistas históricas Em 1974 o grupo Palmares do Rio Grande do Sul teve a iniciativa de sugerir através de proposta do poeta gaú 124 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 cho Oliveira Silveira que a data de 20 de novembro passasse a ser comemorada co mo data nacional contestando a data 13 de maio Esta revela na visão dos negros uma falsa abolição após a qual persistiu de fato se não mais de direito a escravidão negra aquela lembra não somente o assassinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares mas também a resistência dos antepassados a qual traz uma lembrança dignificante em todos os sentidos NASCIMENTO 2006 Essa prática de cunho liberal emancipatório tende a retificar as distorções perpetuadas pelos poderes dominantes Assim a utilização do termo quilombo passa a ter uma conotação basicamente ideológica basicamente doutrinária no sentido de agregação no sentido de comunidade no sentido de luta como se reconhecendo homem como se reconhecendo pessoa que realmente deve lutar por melhores condições de vida porque merece essas melhores condições de vida desde o momento em que faz parte dessa sociedade NASCIMENTO 1989 apud RATTS 2006 p 53 No entender da pesquisadora O fascínio de heroicidade de um povo re gularmente apresentado como dócil e subserviente reforça o caráter hodierno da co munidade que se volta para uma atitude crítica frente às desigualdades sociais a que está submetida NASCIMENTO 2006 p 124 Dessa forma o ideal quilombola atua como um instrumento potente para o desenvolvimento de reconhecimento da identidade afrobrasileira para uma maior autoafirmação étnica e nacional de seres atuantes revolucionários em busca de seus direitos de cidadania Com referência ao uso da mística quilombola como poder mobilizador é fun damental a atuação de Abdias Nascimento o qual teorizou extensivamente sobre o quilombismo e seu valor ideológico Segundo ele todos os quilombos foram uma unidade uma única afirmação humana étnica e cultural a um tempo integrando uma prática de libertação e as sumindo o comando da própria história A este complexo de significações a esta praxis afrobrasileira eu denomino de qui lombismo NASCIMENTO 1980 p 255 Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 125 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 Nesse sentido o quilombismo atuou como uma ideiaforça energia que ins pira modelos de organização dinâmica desde o século XV NASCIMENTO 1980 p 256 Compartilhando a noção do poder gerador e dinamizador do conceito Bea triz Nascimento afirma que este passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural Tudo de atitude à associação seria quilombo desde que buscasse maior valorização da herança negra NASCIMENTO 2006 p 124 Ao lembrar como acatando as exigências do tempo histórico e circunstâncias do espaço geográfico o quilombismo passa por constantes reatualizações Abdias Nascimento 1980 ressalta que apesar de situações variadas conferirem aos quilom bos diferenças em suas formas organizativas estes permanecem iguais em sua essên cia No entender do teórico o movimento quilombista está longe de haver esgotado seu papel histórico Está tão vivo hoje quanto no passado pois a situação das cama das negras continua a mesma com pequenas alterações de superfície NASCI MENTO 1980 p 258 É justamente esse projeto de formação de uma sociedade coletiva fundada na justiça igualdade liberdade e respeito aos humanos e desvinculada da exploração econômica e do preconceito racial que tem mobilizado as lideranças e escritores ne gros especialmente quando a situação de marginalidade social e econômica do afro descendente é contrastada a esse ideal Assim compreendese por que o quilombis mo tem operado com frequência como ideiaforça impulsionadora na literatura bra sileira contemporânea como se verá nas análises dos poemas de Eduardo de Olivei ra Henrique Cunha e Carlos Assumpção Inicialmente abordase o soneto Zumbi de Palmares de Eduardo de Olivei ra publicado na primeira edição dos Cadernos Negros em 1978 Esse poeta 1926 2012 foi professor conferencista e político Ativista atento aos direitos humanos foi o fundador e presidente do Congresso Nacional AfroBrasileiro CNAB Publicou nove livros dentre os quais Além do pó Banzo Gestas líricas da negritude Cancioneiro das 126 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 horas e Evangelho da Solidão É autor ainda do Hino à Negritude composição oficiali zada em todo o território nacional em 2009 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados na qual alguns versos relembram também a figura de Zumbi Dos Palmares os feitos heroicosSão exemplos da eterna li çãoque no solo Tupo Nos legara ZumbiSonhando com a libertaçãoSendo filho também da MãeÁfrica PERSONALIDADES s d O soneto Zumbi de Palmares inicia evocando a figura histórica de Zumbi Foste um guerreiro audaz e libertário fustigando o label da escravidão Sendo a um só tempo herói e visionário não pelejaste e nem morreste em vão OLIVEIRA 1978 p 17 Já o primeiro verso ressalta a liderança de guerreiro dotado de coragem e arro jo bem como seu papel libertário A conjunção e que liga guerreiro audaz à li bertário deixa claro que na imaginação do autor a função guerreira tem papel emi nentemente libertário Ademais como essa evocação é destacada na linha inicial do poema depreendese que o valor rememorativo do líder palmarino ligase acima de tudo a sua figura como fonte de inspiração libertária ideia que é confirmada no ver so seguinte fustigando o label sic da escravidão O verso inverte a imagem usual do senhor que fustiga o escravo pois agora cabe a Zumbi fustigar a própria institui ção que desumanizava os escravos A esse respeito é evocativo o uso do substantivo labéu palavra associada à injúria infâmia e vergonha e portanto à macula na honra de alguém Ademais como registra o verbete ferrete 2016 da Wikipedia o ferrete ferro em brasas usadas para marcar gado couro ou escravos era ferramenta aquecida até que ficasse incandescente e prensada contra o objeto a gravar no sentido figurativo denota o próprio sinal de ignomínia labéu deixado pelo ferro em brasa Como o ver bete enfatiza No caso de escravos serviu também como labéu ou estigma para humilhar e fazer sofrer os recémcapturados ou comprados Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 127 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 Para além de lembrar a valentia e a liderança libertária de Zumbi que enfrentou os escravocratas liderando mais de vinte batalhas travadas como tentativas de destruir o Quilombo de Palmares sempre como vencedor os dois últimos versos do quarteto inici al remetem à imagem do herói Zumbi mas agora já no desfecho de sua vida Aqui se ressalta a equiparação por proximidade de herói e visionário ou seja um idealista mas também um ser dotado da habilidade de enxergar mais do que o presente antecipando mudanças no futuro e capaz ainda de sacrificar a vida por tal ideal Notase o sentido político entranhado ainda na palavra visionário pois Zumbi foi o idealizador e mante nedor do Quilombo dos Palmares após a queda do qual os demais quilombos foram aos poucos perdendo sua força e sendo destituídos Quando o eu lírico diz não pelejaste e nem morreste em vão OLIVEIRA 1978 p 17 podese pensar que os combates quilombolas e que a morte de Zumbi de Palmares influí ram também na libertação do povo negro escravizado como se observa na segunda estrofe do soneto Teu vulto negro e forte foi o ideário de toda uma sofrida geração que sob a ação do teu poder lendário pôsse a caminho da libertação OLIVEIRA 1978 p 17 É bem visível nessa estrofe a força mobilizadora do quilombismo Temse no vamente a caracterização de Zumbi com seus ideais de liberdade e como um líder forte e res peitado voltado à libertação dos escravos Teu vulto negro e forte foi o ideário de toda uma sofrida geração OLIVEIRA 1978 p 17 Considerados como propriedade objetos de seu senhor antes que seres humanos os negros eram submetidos a toda sorte de sofrimentos não bastasse a privação da liberdade a saudade da pátria natal e dos parentes dos quais foram sepa rados o duro regime de trabalho as chibatas eram ainda quando doentes ou idosos abando nados já que era mais barato comprar um novo escravo A liberdade a ser obtida sob a lide rança de Zumbi é vista como um processo uma geração sob a ação do teu poder lendário pôsse a caminho da libertação OLIVEIRA 1978 p 17 128 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 Nas duas últimas estrofes as referências à Zumbi como guerreiro combatente e líder são de molde a exaltar sua força de forma contrastiva Oh caçador de algozes Como os Andes tu enfrentastes Himalaias de tiranos antes que à História fosses entre os grandes Hoje segues à frente do meu povo colhendo triunfos através dos anos ante os clarões do sol de um mundo novo OLIVEIRA 1978 p 17 Notese a figura usada para ressaltar a bravura do guerreiro tanto Zumbi quanto os senhores escravocratas são comparados a montanhas imagem que muitas vezes é usa da na literatura para evocar fortaleza ou lugar seguro De fato tanto a liderança de Zumbi para os negros quanto as lideranças senhoriais eram nesse período marcado por confrontos de parte a parte referências para seus liderados O efeito maior da imagem porém é a proporção sugerida pelas montanhas ambas grandiosas a primeira Cordilhei ra dos Andes é a maior cadeia montanhosa do mundo em comprimento a segunda Hi maiala em altura CORDILHEIRA 2016 Dessa forma a bravura de Zumbi sai exalta da dado que se antepõe a adversários mais poderosos que ele atuando como caçador de algozes e tiranos Mais uma vez a inversão de poder percebida na primeira estrofe se repete agora é Zumbi que se torna o executor de penas contra aqueles que se aproveita vam dos negros de modo injusto e cruel A sugestão mais forte do alcance da ideiaforça quilombola é adiada até o últi mo terceto quando é registrada a permanência da liderança de Zumbi através dos anos não mais sua presença física mas seu ideário e exemplo são equiparados a clarões do sol de um mundo novo rompendo as trevas da desigualdade e da escravidão de toda sorte e liderando os afrodescendentes a uma nova realidade em que afinal pudessem usufruir direitos garantidos por lei conquistar seu espaço na sociedade colher os triunfos que começaram a ser plantados com a ousadia e audácia de um sonhador chamado Zumbi dos Palmares Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 129 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 O próximo poema Quilombo foi escrito por Henrique Cunha Jr 1952 ou apenas Cunha como é conhecido Filho do líder da causa negra Henrique Antunes Cu nha foi criado na militância dos movimentos negros dirigiu grupos amadores de teatro na década de 1970 tendo sido também membro do Grupo Congada de São Carlos SP Participou da fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros da qual foi o primeiro presidente Livredocente pela Universidade de São Paulo e Professor Titular da Universidade Federal do Ceará Cunha publicou poemas um volume de escritos políticos e dois livros de contos além da peça de teatro Negros que riem encenada em São Paulo nos anos 1980 O poema Quilombo representa ainda outra forma da militância de Cunha que entre 1978 e 1981 participou dos primeiros números da série Cadernos negros HEN RIQUE s d Em contraste com o poema anterior que aborda o fenômeno quilombola a partir de uma perspectiva cronológica detendose inicialmente no quilombo histórico e expon do após o alcance do ideal de Zumbi o poema de Cunha fala de outros guerreiros as minorias negras silenciosas e marginalizadas que povoam nossas cidades Os homens ainda caminham pela noite À luz da Lua não portam mais lanças Nem mais as direções têm fuga para o mato A mãe noite ainda embala o caminho quilombola CUNHA 1980 p 46 A primeira estrofe voltase ao quilombo Faz referência à lua e à noite pois era nesse período que ocorria a fuga dos escravos para os quilombos O eu lírico registra diferenças po rém os homens não mais portam armas nem têm nas matas uma rota para a liberdade Con tudo resta ainda um caminho e mesmo esses caminhantes desprotegidos e sem rumo ainda estão à busca de melhores dias A mãe noite ainda embala o caminho quilombola CUNHA 1980 p 46 São negras figuras à luz da lua Por entre sombras de edifícios Atrás dos telhados das favelas Nos cômodos escuros das penitenciárias CUNHA 1980 p 46 130 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 A segunda estofe traz à tona o problema social enfrentado pelos negros desde a sua abolição os quais se viram desamparados uma vez que foram expulsos das senzalas e não tinham para onde ir Em um momento inicial continuaram a trabalhar para seus se nhores sem nada receber em troca a não ser alimento e abrigo Depois a marginalidade continuou e continua ainda é entre sombras que se movem esses homens e seu abrigo são as favelas É como se ainda estivessem presos por grilhões invisíveis aprisionamento social que se materializa quando recolhidos em penitenciárias Percebese na terceira estrofe uma crítica aos movimentos que não se desenvol vem em comum e em união mas desencontrados e dispersos CUNHA 1980 p 46 O eu lírico compara ideias às lanças usadas pelos quilombolas nas batalhas porém as primeiras são mais eficazes no combate a essa nova servidão do que as segundas Ideias mais agudas que as lanças CUNHA 1980 p 46 estas sim capazes de unificar mais uma vez esses novos quilombolas já que todas estradas têm um só destino São conspirações silenciosas Ideias mais agudas que as lanças Movimentos desencontrados e dispersos Mas todas estradas tem um só destino CUNHA 1980 p 46 A estrofe final não só aclara o destino final o quilombismo como aponta seu ca minho Agora já não são as matas ou as comunidades cooperativas que lá se formavam que irão provocar uma ebulição transformadora no afrodescendente mas antes a força das ideias presentes nos livros e daquelas advindas da própria vivência da população marginaliza da e sofrida O quilombo está aí Nas páginas dos livros Nas esquinas nos campos Nos pensamentos e sofrimentos O quilombo está aí em pé de guerra CUNHA 1980 p 46 Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 131 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 A afirmação de que o quilombo está em todos os lugares reflete a noção de que se configura em mais do que o mero espaço físico esconderijo de escravos fugitivos mas também como ideologia ideal de liberdade fraternidade humanidade liberdade como definiu Abdias Nascimento 1980 Ademais o último verso O quilombo está aí em pé de guerra CUNHA 1980 p 46 assegura que ainda há batalhas para enfrentar e vencer e que o ideal quilombola continua vivo na memória dos negros dandolhes força para continuar a luta O terceiro e último poema a ser analisado Minha Luta reforça a ideia da conti nuidade do quilombismo sob a perspectiva de um eu coletivo um eu lírico que não só fala em nome de sua coletividade mas se junta a ela em suas lutas É de autoria de Carlos Assumpção 1927 considerado pelo professor e crítico Eduardo de Assis Duarte como um dos decanos da poesia de protesto do século XX DUARTE 2011 p 551 As sumpção iniciou sua colaboração na revista literária Veredas no suplemento cultural Arte Agora e no D O Cultura do Diário Oficial do Estado de São Paulo Publicou nas anto logias O negro escrito 1987 Quilombo de palavras 1992 2000 bem como em volumes de Cadernos negros É autor dos volumes Protesto 1982 e Quilombo 2000 DUARTE 2011 Composto por três estrofes o poema inicia com a proclamação de uma luta inici almente identificada como pessoal mas imediatamente identificada como estando enrai zada na luta dos ancestrais Uma vez clara essa vinculação a proclamação deixa clara o caráter essencialmente comunitário da luta não é só minhaé luta de todos Saibam que minha luta Está enraizada nas lutas de meus avós E também saibam que minha luta Não é só minha É luta de todos nós ASSUMPÇÃO 1980 p 18 Nesses versos a presença da ancestralidade é marcante e indica de onde vem a força para lutar pela liberdade justiça e contra discriminação Saibam que minha lu taEstá enraizada nas lutas de meus avós ASSUMPÇÃO 1980 p 18 A luta é genera liza para os negros que a ela devem aderir pois o passado foi muito cruel para todos Por 132 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 isso É luta de todos nós ASSUMPÇÃO 1980 p 18 uma forma de resiliência e opo sição à submissão não mais agora em um período escravocrata de fato mas em resposta a outras formas sob as quais a escravidão persiste Ontem lutaram comigo nos quilombos Índios e brancos pobres irmãos explorados também Meu quilombo de hoje Não é diferente dos quilombos do passado Nas lutas contra a injustiça Nas lutas contra a discriminação Ninguém pode ser Injustiçado Discriminado ASSUMPÇÃO 1980 p 18 Retomando o contexto do quilombismo histórico em que brancos e índios po bres se juntavam aos negros nos quilombos os versos proclamam a extensão da luta que não deve se limitar à população afrodescendente mas como já defendia Abdias Nasci mento 1980 2009 deve estenderse a todos aqueles que são marginalizados e que ne cessitam portanto lutar pelos ideais de igualdade e liberdade tanto quanto seus irmãos negros Antecipandose àqueles que poderiam supor que esse novo quilombismo difere daquele que nos chegou da história o eu lírico enfatiza outra das ideiaschave defendidas por Abdias Nascimento já apresentada neste trabalho a noção do quilombismo como uma única afirmação humana étnica e cultural que operou e opera sempre como prática libertadora tática daqueles que desejam assumir o comando da própria história Por isso chama a atenção para o objetivo das lutas contra a injustiça contra a discriminação sem pre E para que isso fique particularmente claro reafirma o direito de todos à justiça e à igualdade enfatizando que desses direitos ninguém deve ser alijado Ninguém pode ser InjustiçadoDiscriminado A terceira e última estrofe do poema de Carlos Assumpção retoma o ideal de li berdade e fraternidade promovido pelo quilombismo Quem ame realmente a liberdade Quem realmente seja irmão Quem tenha realmente amor no peito Dême a mão Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 133 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 Juntese à minha voz Que meu quilombo de hoje amigos É igual aos quilombos do passado É quilombo de todos os oprimidos É quilombo de todos os explorados É quilombo aonde todos são bemvindos É quilombo de todos nós ASSUMPÇÃO 1984 p 18 O chamamento Quem ame realmente a liberdadeQuem realmente seja ir mãoQuem tenha realmente amor no peitoDême a mãoJuntese à minha voz AS SUMPÇÃO 1980 p 18 remete aos ideais de liberdade e fraternidade daí o convite a ser irmão amigo dar a mão juntar a voz em luta Notese ainda a ênfase na continuidade do ideal quilombola expressa através da reiteração da palavra quilombo o que inicia co mo meu quilombo de hoje é reafirmado em espírito fraternal aos amigos de outras etnias e posicionalidade que se quiserem juntar ao eu lírico ser o mesmo quilombo de ontem e de sempre Então cada repetição expõe uma faceta do quilombo a soma das quais proporciona a visão da opressão geral e contínua que se estende do passado ao presente unindo todos aqueles que sofrem males sociais Conforme reflexão publicada no v 3 dos Cadernos negros a rememoração dos laços identitários com a África e do compromisso quilombola tem para ele como também o tinha para Abdias Nascimento papel inspirador e mobilizador A volta à África e ao quilombo são entendidas por mim como es tado de reflexão que impulsiona as novas realizações É o caminho histórico de reconhecimento de si na reconstrução da história em oposição à história do branco opressor Portanto África quilombo escravidão nos meus escritos são uma fase e um meio de nos ex plicar e nos entendermos e tomarmos consciência de nossa vida Estes elementos oferecem energia revolucionária e contém as for mas comunitárias úteis para nossa consciência Estamos no Brasil e no século XX portanto é aqui e agora que se deve realizar aquilo que temos de África quilombo e escravos CUNHA JR 1980 p 42 Outra não parece ser a motivação dos demais autores cujos poemas foram anali sados neste trabalho nos quais é evidente a motivação do ideal quilombola Zumbi e 134 Denise Almeida Silva Tani Gobbi dos Reis Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 Palmares recorrem em seus poemas já agora não no seu sentido físico material mas em seu simbolismo como exemplo a ser perseguido na consecução dos mesmos ideais de li berdade e dignidade que mobilizavam o herói palmarino Mais que o vulto histórico per siste Zumbi como símbolo de luta o qual está tão vivo quando viva está ainda a desi gualdade social e econômica que historicamente tem sido o quinhão de muitos afrodes cendentes ANOTHER ZUMBI DE PAMARES THE SYMBOLYC VALUE OF MAROONAGE IN AFROBRAZIILIAN CONTEMPORARY POETRY ABSTRACT This paper examines how the figures of Zumbi and of the Palmares Quilombo ap pear in their denotative and connotative meanings in contemporary AfroBrazilian poems associ ated with the claim of freedom equality and dignity for all minorities The essay summarizes the evolution of the concept of quilombo maroon state in Brazil and how it came to acquire sym bolic value according to the notion of quilombismo maroonage as an ideiaforça a propelling pow erful idea proposed by Abdias Nascimento Besides the study exposes how quilombismo has differ ent meanings according to the location occupied by the one who employs it so that a marked con ceptual difference is present in its use from the perspective of the white colonizer and from the black population In the wake of these reflections the essay takes quilombismo in its mobilizing ideo logical value and proceeds to analyze poems written by Henrique Cunha Carlos Assumpção and Eduardo de Oliveira Theoretical support to this research is provided by historians and theorists who have extensively researched maroonage in Brasil such as Abdias Nascimento and Beatriz Nascimento KEYWORDS AfroBrazilian literature Palmares maroon Poem Maroonage Zumbi Referências ASSUMPÇÃO Carlos Minha luta In Cadernos Negros 7 poemas São Paulo Edição dos Auto res 1984 CORDILHEIRA dos Andes Wikipédia 2016 Disponível em httpsptwikipediaorg wikicordilheiradosandes Acesso em 21 abr 2016 CUNHA Henrique Quilombo In Cadernos Negros 3 poesia São Paulo Edição dos Autores 1980 DUARTE Eduardo de Assis Carlos de Assumpção In Literatura e afrodescen dência no Brasil antologia crítica Org Belo Horizonte UFMG 2011 V 1 Precur sores Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos 135 Fólio Revista de Letras Vitória da Conquista v 8 n 1 p 119136 janjun 2016 FERRETE Wikipédia 2016 Disponível em httpsptwikipediaorgwikiFerrete Acesso em 21 abr 2016 GOMES Flávio Mocambos em quilombos uma história do campesinato negro no Bra sil São Paulo Companhia das Letras 2015 Disponível emhttpsplaygooglecom booksreaderidoE1CwAAQBAJprintsecfrontcoveroutputreaderhl pt BRpgGBSPP1 Acesso em 16 mar 2016 HENRIQUE Cunha Jr Dados biográficos Literafro Disponível em http1501641 00248Literafro Acesso em 21 abr 2016 NASCIMENTO Abdias O quilombismo documentos de uma militância pan africanista Petrópolis Vozes 1980 NASCIMENTO Abdias Quilombismo um conceito emergente do processo históri cocultural da população afrobrasileira In NASCIMENTO Elisa Larkin Org Afrocentricidade uma abordagem epistemológica inovadora São Paulo Selo Negro 2009 p 197 218 Sankofa matrizes africanas da cultura brasileira vol 4 NASCIMENTO Beatriz O conceito de quilombo e a resistência cultural negra In RATTS Alex Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento São Paulo Instituto Kuanza Imprensa oficial 2006 p 117125 NASCIMENTO Maria Beatriz Textos e narração de Ori Transcrição mimeo sl sn 1989 In RATTS Alex Org Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Bea triz Nascimento São Paulo Instituto Kuanza Imprensa Oficial 2006 OLIVEIRA Eduardo de Zumbi dos Palmares In Cadernos Negros 1 São Paulo JORNEGRO 1978 PERSONALIDADES Eduardo de Oliveira Ipeafro Insituto de Pesquisas e Estu dos AfroBrasilieros Rio de Janeiro sd Disponível em httpipeafroorgbr personalidadeseduardodeoliveira Acesso em 21 abr 2016 RATTS Alex Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento São Paulo Insitituto Kuanza Imprensa Oficial 2006 Recebido em 28042016 Aprovado em 17052016 RELATO DE EXPERIÊNCIA GARAMOND FONTE 13 CENTRALIZADO ESPAÇAMENTO ENTRELINHAS SIMPLES EM CAIXA ALTA E EM NEGRITO Autor Nome e sobrenome Instituição Email xxx Coautor Nome e sobrenome Instituição Email xxx Agência de Fomento xxxx caso houver Eixo temático XXXXXX SUBTÍTULO DA SEÇÃO EM CAIXA ALTA NEGRITO FONTE GARAMOND TAMANHO 12 JUSTIFICADO ESPAÇAMENTO ENTRELINHA SIMPLES O trabalho deverá ter no mínimo 3 e no máximo 7 páginas a seu critério pode ou não conter seções de texto dividido por etapas ou texto direto e pode ou não incluir citações e referências O texto precisa estar formatado com a fonte GARAMOND tamanho 12 justificado com espaçamento entrelinhas de 15cm e recuo de parágrafo de 15cm nas primeiras linhas Caso inclua citações diretas longas utilize o padrão abaixo Citações com mais de 3 linhas deslocadas 4 cm para a direita Fonte GARAMOND tamanho 11 justificada com espaçamentos entrelinhas simples seguindo referências de acordo com as normas vigentes da ABNT Citações com mais de 3 linhas deslocadas 4 cm para a direita Fonte GARAMOND tamanho 11 justificada com espaçamentos entrelinhas simples seguindo referências de acordo com as normas vigentes da ABNT Citações com mais de 3 linhas deslocadas 4 cm para a direita Fonte GARAMOND tamanho 11 justificada com espaçamentos entrelinhas simples seguindo referências de acordo com as normas vigentes da ABNT Esta modalidade de trabalho inclui Relatos de Experiências Sua experiência no dia a dia da sala de aula é valiosa Compartilhe os momentos que fizeram seu coração vibrar os desafios que superou e as estratégias que experimentou Detalhe suas práticas pedagógicas com riqueza inspirando outras professoras a explorar abordagens criativas e eficazes Queremos que você mergulhe nas suas reflexões mais profundas sobre o mundo da educação Contenos sobre suas descobertas seus questionamentos e suas epifanias enquanto conduz o processo de aprendizado Sua jornada pessoal como educadora é uma história que merece ser contada Compartilhe seus altos e baixos suas conquistas e suas lições aprendidas ao longo do caminho Mantenha este espaço em branco SE FOR MANTER OUTRAS SEÇÕES MANTENHA ESTE PADRÃO O trabalho deverá ter no mínimo 3 e no máximo 7 páginas Caso queira incluir figuras utilize o exemplo abaixo para formatação Figura 1 Legenda em GARAMOND tamanho 10 e referenciada no texto como figura 1 sem negrito Fonte Imagem centralizada alinhada com o texto Texto Mantenha este espaço em branco REFERÊNCIAS O item Referências deverá conter todos os autores mencionados na escrita do trabalho Usar Fonte GARAMOND Tamanho da fonte12 Alinhamento à esquerda Espaçamento simples Sem parágrafo com espaço simples entre as referências Sua elaboração é de responsabilidade dos autores e deverá seguir as normas vigentes da ABNT NBR 60232018 NBR 105202023 disponíveis em httpsdocsgooglecomdocumentd1ipkGiAUnArYBTrpFJpnud3aa4llBsROpBdkUfw91L 0edit a Livro de um só autor SOBRENOME Nome por extenso Título em negrito Edição Local de edição Editora ano de edição b Livro de dois autores SOBRENOME Nome por extenso SOBRENOME Nome por extenso Título em negrito Edição Local de edição Editora ano de edição c Livro de três autores SOBRENOME Nome por extenso SOBRENOME Nome por extenso SOBRENOME Nome por extenso Título em negrito Edição Local de edição Editora ano de edição d Livro de mais de três autores SOBRENOME Nome et al Título em negrito Edição Local de edição Editora ano de edição e Capítulo em livro SOBRENOME Nome por extenso Título do capítulo In SOBRENOME Nome por extenso EdOrg Título do livro em negrito Edição Local de edição Editora ano de edição f Artigos em periódicos científicos SOBRENOME Nome por extenso Título do artigo sem aspas ou itálico Nome da Revista em negrito volume número páginas data mês e ano g Dissertações e Teses SOBRENOME Nome por extenso Título da dissertação ou tese em negrito Ano da defesa Número de folhas DissertaçãoTese MestradoDoutorado em área Nome da Instituição Faculdade Universidade local ano da publicação h Artigos em jornais SOBRENOME Nome por extenso Título do artigo sem aspas ou itálico Nome do jornal em negrito Local data CadernoSeção páginas i Publicação em meio eletrônico SOBRENOME Nome por extenso Título da matéria ou artigo Título da publicação site revista local número data mês e ano Disponível em endereço eletrônico Acesso em XX nov XXXX ORIENTAÇÕES 1O presente Template tem como propósito auxiliar os autores na formatação e envio dos trabalhos para o evento 2Utilize este Template como base e escreva sobre cada parágrafo pois assim estará efetivamente cumprindo as normas de apresentação do texto ATENÇÃO não altere este Template 3 Enviar dois Arquivos do trabalho sendo um sem identificação no formato PDF e outro com identificação no formato WORD Nomear os arquivos seguindo essas orientações CPF do autorprincipalModalidadesemautoria Exemplos 23424561231pesquisassemautoria PDF 23424561231pesquisascomautoria WORD 13665658861projetosemautoria PDF 13665658861projetocomautoria WORD 25687654391relatosemautoria PDF 25687654391relatocomautoria WORD 4 Os trabalhos devem ser submetidos exclusivamente pelo email nupecientificofctunespbr Serão aceitos no máximo três autoresas por texto Ressaltase que tanto os autores quanto os coautores devem participar de todas as fases de produção do artigo 5 Os artigos deverão ser originais e inéditos 6 Os trabalhos recebidos serão submetidos à apreciação de pareceristas que irão emitir pareceres sobre o artigo 7 O arquivo submetido em PDF não deverá apresentar identificação dos autores para permitir um processo de avaliação imparcial As informações sobre os autores sua filiação institucional eou trajetória acadêmica endereço eletrônico e endereço postal entre outras deverão ser inseridas exclusivamente no arquivo em WORD 8 Quanto à estrutura ter extensão mínima de 03 e máxima de 07 laudas incluindo tabelas gráficos figuras e referências bibliográficas 9 Os textos devem ser digitados em Word no formato doc configurados para impressão em papel A4 com 3 cm de margens superior inferior direita e esquerda e páginas não numeradas Escritos com fonte Garamond tamanho 12 com espaçamento entrelinhas de 15cm corpo do texto justificado e recuo especial de 15cm nas primeiras linhas de cada parágrafo 10 Na primeira página do texto deverá constar o título do trabalho em português com fonte tamanho 13 negrito centralizados e espaçamento entrelinhas simples e com letra maiuscula 11 A identificação do autor e coautores Agência de Fomento e Eixo temático devem ser escritos em Fonte Garamond Tamanho da fonte12 Alinhamento à direita Espaçamento simples Sem parágrafo 12 As citações diretas com mais de três linhas deverão ter fonte tamanho 11 justificadas em espaçamento simples com recuo esquerdo de 4cm separadas do restante do texto por uma linha em branco acima e abaixo 13 Notas de rodapé deverão ser evitadas ao máximo porém quando imprescindíveis deverão possuir a fonte do texto e com tamanho 10 estarem justificadas com espaçamento simples entrelinhas 14 Palavras ou frases grifadas deverão ser evitadas porém quando imprescindíveis ou indicarem palavras em língua estrangeira deverão ser apresentadas em itálico 15 Tabelas gráficos e quadros devem ser elaborados em Excel no formato xls e enviados também em arquivos separados além de estarem inseridos no corpo do texto que deverão ser apresentadas com formatação centralizada 16 Figuras fotos e mapas devem ser elaborados em formato jpeg ou tiff não comprimido com resolução mínima de 300dpi e dimensões máximas 20cm de altura e 13cm de largura As ilustrações também deverão ser enviadas separadamente além de serem inseridas no corpo do texto com formatação centralizada 17 As citações títulos das tabelas gráficos quadros figuras fotos e mapas deverão seguir a normalização vigente da ABNT 18 As referências bibliográficas devem ser completas e precisas segundo normalização da ABNT alinhadas à esquerda com espaçamento simples entre linhas e inferior de 12 pts RESISTÊNCIA QUILOMBOLA NO VALE DO RIBEIRA HISTÓRIA ORGANIZAÇÃO E SUSTENTABILIDADE EM IVAPORUNDUVA Autor Nome e sobrenome Instituição Email xxx Coautor Nome e sobrenome Instituição Email xxx Agência de Fomento xxxx caso houver Eixo temático XXXXXX RESUMO O presente artigo explora a organização os desafios e a resistência da comunidade Quilombola de Ivaporunduva no Vale do Ribeira São Paulo Com base em entrevistas com líderes locais a pesquisa examina a formação histórica da comunidade sua luta contínua por direitos territoriais e culturais e as adversidades enfrentadas frente às pressões do sistema capitalista A metodologia utilizada inclui entrevistas e pesquisa documental Os resultados parciais mostram a importância da agricultura orgânica e do turismo de base comunitária como fontes de renda além de destacar a atuação política da comunidade A luta pela terra somada à resistência cultural permanece central na trajetória de Ivaporunduva PALAVRASCHAVE Quilombos Ivaporunduva Resistência Agricultura orgânica Direitos quilombolas QUILOMBOLA RESISTANCE IN THE VALE DO RIBEIRA HISTORY ORGANIZATION AND SUSTAINABILITY IN IVAPORUNDUVA ABSTRACT This article explores the organization challenges and resistance of the Quilombola community of Ivaporunduva in the Vale do Ribeira São Paulo Based on interviews with local leaders the research examines the historical formation of the community its ongoing struggle for territorial and cultural rights and the adversities faced in response to capitalist pressures The methodology includes interviews and documentary research Preliminary results highlight the importance of organic agriculture and communitybased tourism as sources of income while also emphasizing the communitys political engagement The fight for land combined with cultural resistance remains central to Ivaporunduvas history COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS KEYWORDS Quilombos Ivaporunduva Resistance Organic agriculture Quilombola rights RESISTENCIA QUILOMBOLA EN EL VALE DO RIBEIRA HISTORIA ORGANIZACIÓN Y SOSTENIBILIDAD EN IVAPORUNDUVA RESUMEN Este artículo explora la organización los desafíos y la resistencia de la comunidad Quilombola de Ivaporunduva en el Vale do Ribeira São Paulo Basado en entrevistas con líderes locales la investigación examina la formación histórica de la comunidad su lucha continua por los derechos territoriales y culturales y las adversidades enfrentadas ante las presiones del sistema capitalista La metodología utilizada incluye entrevistas y investigación documental Los resultados parciales destacan la importancia de la agricultura orgánica y el turismo comunitario como fuentes de ingresos además de subrayar la actuación política de la comunidad La lucha por la tierra sumada a la resistencia cultural sigue siendo central en la trayectoria de Ivaporunduva PALABRAS CLAVE Quilombos Ivaporunduva Resistencia Agricultura orgánica Derechos quilombolas INTRODUÇÃO A pesquisa sobre a comunidade Quilombola de Ivaporunduva localizada no Vale do Ribeira São Paulo oferece uma oportunidade de entender as dinâmicas sociais culturais e econômicas que permeiam a organização dessas comunidades As comunidades quilombolas representam não apenas a resistência histórica à escravidão mas também a contínua luta por direitos territoriais preservação cultural e sustentabilidade econômica O Quilombo de Ivaporunduva é um exemplo vivo dessa resistência sendo uma das comunidades mais antigas da região e um símbolo de luta por autonomia e reconhecimento A justificativa desta pesquisa reside na importância de dar visibilidade às comunidades quilombolas que historicamente foram marginalizadas e cujas vozes muitas vezes não têm espaço no debate público Ao examinar a organização interna da comunidade suas práticas de sustentabilidade e os desafios que enfrentam diante das pressões do sistema capitalista a pesquisa contribui para o entendimento das estratégias de resistência e sobrevivência dessas populações COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS Os principais objetivos deste trabalho são i compreender a formação histórica do Quilombo de Ivaporunduva ii analisar sua organização social e econômica atual com foco nas práticas de agricultura orgânica e turismo de base comunitária e iii identificar os principais desafios enfrentados pela comunidade em relação à preservação de seu território e cultura A estrutura do texto está dividida em quatro seções principais A primeira seção apresenta o contexto histórico do Quilombo de Ivaporunduva seguido por uma análise de sua organização e práticas comunitárias na segunda seção A terceira seção discute os desafios contemporâneos enfrentados pela comunidade especialmente relacionados às questões econômicas e políticas Por fim a última seção traz as considerações parciais sobre os resultados da pesquisa destacando a importância da continuidade da luta quilombola METODOLOGIA Este estudo caracterizase como uma pesquisa qualitativa exploratória e descritiva com o objetivo de analisar a organização social econômica e cultural da comunidade Quilombola de Ivaporunduva A escolha por uma abordagem qualitativa permite uma compreensão mais profunda das experiências vividas pelos membros da comunidade bem como de seus processos de resistência e adaptação frente aos desafios contemporâneos Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram entrevistas semiestruturadas e pesquisa documental As entrevistas foram realizadas com líderes comunitários e membros da comunidade de Ivaporunduva buscando captar suas percepções sobre a história da comunidade suas práticas econômicas e sociais e os desafios enfrentados em relação à preservação de seu território e cultura Foram selecionados cinco entrevistados incluindo o presidente da associação quilombola local agricultores e guias de turismo comunitário A seleção dos sujeitos ocorreu com base na sua relevância dentro da comunidade e na sua participação ativa em atividades políticas e econômicas locais A pesquisa documental incluiu a análise de documentos históricos legislação sobre direitos quilombolas estudos prévios sobre a comunidade e relatórios de organizações não governamentais que atuam no Vale do Ribeira Esses documentos COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS permitiram contextualizar as falas dos entrevistados e compreender o cenário legal e político em que a comunidade se insere Os procedimentos de coleta de dados seguiram uma abordagem de observação participante permitindo maior imersão no cotidiano da comunidade e uma compreensão mais direta das práticas de sustentabilidade como a agricultura orgânica e o turismo de base comunitária O contato direto com a comunidade também possibilitou captar nuances culturais e práticas de resistência que muitas vezes não aparecem em documentos escritos Para a análise dos dados utilizouse a técnica de análise de conteúdo organizada em três etapas i leitura flutuante dos depoimentos e documentos buscando identificar temas recorrentes ii categorização dos dados com base em eixos temáticos como resistência cultural práticas sustentáveis e desafios territoriais e iii análise interpretativa confrontando as falas dos entrevistados com o referencial teórico sobre quilombos resistência e sustentabilidade Esta metodologia permitiu uma abordagem integrada da pesquisa garantindo que as vozes da comunidade fossem ouvidas e que as análises fossem contextualizadas dentro da realidade local de Ivaporunduva FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Os Quilombolas Conforme o art 2º do Decreto nº 4887 de 20 de novembro de 2003 consideramse remanescentes das comunidades dos quilombos para os fins deste Decreto os grupos étnicoraciais segundo critérios de autoatribuição com trajetória histórica própria dotados de relações territoriais específicas com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida São de modo geral comunidades oriundas daquelas que resistiram à brutalidade do regime escravocrata e se rebelaram frente a quem acreditava serem eles sua propriedade Brasil 2023 As comunidades remanescentes de quilombo se adaptaram a viver em regiões por vezes hostis Porém mantendo suas tradições culturais aprenderam a tirar seu COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS sustento dos recursos naturais disponíveis ao mesmo tempo em que se tornaram diretamente responsáveis por sua preservação interagindo com outros povos e comunidades tradicionais tanto quanto com a sociedade envolvente Seus membros são agricultores seringueiros pescadores extrativistas e dentre outras desenvolvem atividades de turismo de base comunitária em seus territórios pelos quais continuam a lutar Brasil 2018 Embora a maioria esmagadora encontremse na zona rural também existem quilombos em áreas urbanas e periurbanas Em algumas regiões do país as comunidades quilombolas mesmo aquelas já certificadas são conhecidas e se autodefinem de outras maneiras como terras de preto terras de santo comunidade negra rural ou ainda pelo nome da própria comunidade Gorutubanos Kalunga Negros do Riacho etc De todo modo temos que comunidade remanescente de quilombo é um conceito políticojurídico que tenta dar conta de uma realidade extremamente complexa e diversa que implica na valorização de nossa memória e no reconhecimento da dívida histórica e presente que o Estado brasileiro tem com a população negra Segundo o Censo Demográfico de 2022 há 1330186 quilombolas no Brasil espalhados por diversos estados incluindo Amazonas Bahia Maranhão Minas Gerais e São Paulo A Bahia e o Maranhão concentram mais da metade dessa população com 397502 e 269168 quilombolas respectivamente Brasil 2023 Os quilombos formados por pessoas escravizadas que resistiram à escravidão surgiram de diversas formas como fugas para terras livres heranças e doações A resistência e a busca por autonomia caracterizam a formação dessas comunidades Os quilombos continuam a existir após a abolição da escravidão em 1888 e são uma realidade em vários países da América Latina onde seus direitos territoriais são reconhecidos pela legislação A identidade étnica das comunidades quilombolas é fundamental para sua organização social e política Apenas em 1988 a Constituição brasileira reconheceu oficialmente os direitos dessas comunidades assegurandolhes a propriedade coletiva de suas terras Contudo a efetivação desse direito ainda enfrenta muitos desafios com a primeira titulação de terras ocorrendo somente em 1995 quando o Quilombo Boa Vista se tornou proprietário de seu território COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS O ensaio de Denise Almeida Silva e Tani Gobbi dos Reis propõe uma análise da ressignificação da figura de Zumbi e do conceito de quilombo em poemas afro brasileiros contemporâneos enfatizando seu valor simbólico e mobilizador Silva Reis 2016 A origem do conceito de quilombo que remonta às sociedades africanas bantos é discutida revelando sua evolução de um espaço de acolhimento para escravos fugitivos a um símbolo de resistência Nascimento 2006 Os quilombos frequentemente vistos como perigos para o Império serviram como locais de sobrevivência e resistência onde os negros buscavam não apenas escapar do cativeiro mas também recuperar sua identidade e cultura Nascimento 2009 Abdias Nascimento argumenta que o quilombo não é meramente um refúgio mas uma reunião fraterna e livre um espaço de solidariedade e comunhão Nascimento 1980 A busca por identidade e resistência dos descendentes africanos é fundamental para entender o impacto do quilombismo O conceito transcende a mera sobrevivência física representando uma luta por dignidade e reconhecimento conforme enfatizado por Beatriz Nascimento Nascimento 2006 Essa ideia de quilombismo como ideiaforça mobilizadora inspira não apenas a literatura mas também a luta social e política dos afrobrasileiros evidenciando a continuidade da resistência diante da opressão Nascimento 1980 A transformação do quilombo de uma instituição a um símbolo de resistência é também uma crítica às narrativas históricas que marginalizam a experiência negra no Brasil Essa revisão histórica impulsionou o movimento negro e resultou em conquistas significativas como a proposta de reconhecer o dia 20 de novembro como um marco de resistência Nascimento 2006 Em conclusão o estudo de Silva e Reis destaca a relevância do quilombismo na literatura e na luta pela valorização da identidade afrobrasileira O quilombismo representa um modelo de organização e resistência que ainda se faz presente servindo como uma plataforma para a busca de direitos e cidadania no Brasil contemporâneo Nascimento 1980 Assim a reflexão sobre a mística quilombola se torna um poderoso instrumento de autoafirmação e resistência contra a desigualdade social permitindo que a história dos afrobrasileiros seja recontada sob uma nova luz COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS Histórico do Quilombo de Ivaporunduva O Quilombo de Ivaporunduva possui uma rica e complexa história que remonta ao século XVI Segundo registros uma antiga proprietária de terras e escravos dona Maria Joana faleceu enquanto se tratava no exterior Sem herdeiros suas terras foram deixadas para os escravos o que estimulou a vinda de escravos fugitivos que resistiram à captura dos capitães do mato formando o quilombo por volta de 1690 QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 O livro de tombo da paróquia de Xiririca datado de 1813 destaca Ivaporunduva como a mais antiga comunidade do vale do Ribeira surgindo como povoado no século XVII impulsionada pela mineração de ouro que atraía mineradores e seus escravos como Domingos e Antonio Rodrigues Cunha QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 A história da Ivaporunduva remonta ao século XVI quando a região foi explorada por Martin Afonso de Souza em uma expedição que margeou o litoral brasileiro É importante ressaltar que ao chegarem aqui os colonizadores encontraram povos originários já estabelecidos que utilizavam o território há gerações O processo de colonização não foi portanto uma descoberta mas sim uma série de invasões e expropriações Em 1531 Martin Afonso reportou à Coroa Portuguesa sobre as riquezas potenciais da região Essa informação atraiu mais expedições e contribuiu para o surgimento dos primeiros povoados e fazendas que formaram a base da economia local predominantemente ligada à exploração de recursos naturais como o ouro A partir desse contexto surgem também as primeiras famílias quilombolas A figura de Maria Joana uma portuguesa que chegou à região no século XVII é central para a história de Ivaporunduva Ela trouxe consigo um grupo de africanos escravizados para explorar os recursos da região principalmente o ouro Os registros históricos indicam que mais de 400 arrobas de ouro foram extraídas aqui evidenciando a riqueza mineral da área A construção da igreja de Nossa Senhora do Rosário no coração da comunidade é um símbolo de resistência Erguida por mãos africanas escravizadas a igreja representa tanto a opressão sofrida quanto a resiliência dos nossos ancestrais Ao longo dos anos essa construção se tornou um espaço de acolhimento e resistência cultural onde práticas religiosas variadas coexistem refletindo um sincretismo único COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS Com a crise da exploração do ouro os mineradores abandonaram a região em busca de oportunidades em Minas Gerais Os escravos que permaneceram passaram a cultivar a terra dedicandose ao cultivo de arroz feijão milho mandioca entre outros QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 As casas eram construídas utilizando técnicas tradicionais como o pauapique com barro madeira e cipós disponíveis na própria localidade Para caçar a comunidade utilizava laços e armadilhas QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 O vestuário era simples e prático e as trocas comerciais eram realizadas com fazendeiros de café onde parte da produção era trocada por produtos essenciais para o dia a dia QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 Nos anos seguintes após a abolição formal da escravidão em 1888 muitos negros libertos encontraram dificuldades para se estabelecer em novas terras enfrentando a exclusão territorial A Constituição Federal de 1988 com o artigo 68 garantiu o reconhecimento dos quilombos mas a luta pela valorização da cultura e história quilombola continua A Fundação Cultural Palmares criada em 1989 foi um marco na luta pelo reconhecimento das comunidades quilombolas e na promoção de políticas públicas que visam à valorização cultural e social desse povo Em 1994 Ivaporunduva foi oficialmente reconhecida como comunidade quilombola um passo significativo na nossa busca por justiça e dignidade Os primeiros núcleos familiares de Ivaporunduva foram formados por Francisco Marinho e Salvador Pupo Esses pioneiros organizavam mutirões para a roça construção de casas e manutenção dos caminhos da comunidade QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 Além disso celebravam festas tradicionais como a do Divino Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e São Sebastião QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 A luta pela terra e a resistência contra as barragens planejadas para o Rio Ribeira contribuíram para fortalecer a organização da comunidade levando à fundação da Associação Quilombo de Ivaporunduva em 1994 QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 Esses eventos históricos não apenas refletem a resistência e a adaptação da comunidade quilombola mas também evidenciam a importância da preservação da cultura e da identidade dos povos que por gerações lutaram por seus direitos e por sua terra QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS A Resistência Cultural e a Luta por Direitos na Comunidade Quilombola de Ivaporunduva No Vale do Ribeira a comunidade quilombola de Ivaporunduva se destaca pela resistência cultural e pela luta por direitos desde a época da colonização Este artigo busca narrar a formação histórica desse quilombo destacar a importância da organização comunitária e analisar os desafios enfrentados pela comunidade na contemporaneidade A origem de Ivaporunduva remonta ao século XVI quando um grupo de escravos que fugiu da brutalidade do regime escravocrata formou a comunidade De acordo com relatos a antiga proprietária de terras e escravos dona Maria Joana deixou suas terras para os escravos ao falecer incentivando a formação do quilombo por volta de 1690 QUILOMBOS DO RIBEIRA 2024 Desde então os habitantes de Ivaporunduva têm se organizado em associações e conselhos que promovem a luta pelos direitos quilombolas Essas instituições desempenham um papel crucial na defesa da terra e na promoção da cultura atuando como intermediárias entre a comunidade e o poder público OLIVEIRA BORGES 2024 A organização social e política da comunidade de Ivaporunduva é fundamentada em princípios de cooperação e solidariedade As associações quilombolas se tornaram espaços de discussão e ação onde a comunidade se reúne para debater questões importantes como a preservação de suas tradições e a luta por políticas públicas que atendam suas necessidades ALMEIDA 2024 A criação da Associação Quilombo de Ivaporunduva em 1994 exemplifica esse esforço organizacional que visa não apenas a reivindicação de direitos mas também a valorização da identidade cultural quilombola Atualmente a comunidade enfrenta desafios significativos incluindo questões ambientais e a pressão de práticas capitalistas nas áreas de agricultura e turismo A expansão do agronegócio e a exploração de recursos naturais na região têm ameaçado a terra e os modos de vida tradicionais gerando tensões e conflitos e exigindo uma mobilização constante para a defesa do território SILVA REIS sd As mudanças climáticas por sua vez afetam diretamente a vida da comunidade comprometendo a agricultura e a segurança alimentar Os efeitos das secas e das inundações são sentidos COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS na produção rural o que impõe um desafio adicional à luta por direitos e à preservação cultural A ascensão de políticas negacionistas como as implementadas durante o governo Bolsonaro exacerbou a vulnerabilidade da população dificultando o acesso a recursos e a implementação de políticas públicas eficazes ALMEIDA 2024 Essa situação é especialmente crítica pois muitos quilombolas ainda enfrentam barreiras no reconhecimento de suas terras o que coloca em risco sua sobrevivência e autonomia A educação desempenha um papel fundamental na resistência quilombola Em Ivaporunduva a transmissão de saberes tradicionais e acadêmicos é vital para a continuidade da luta pela preservação do território e da cultura quilombola A comunidade tem buscado integrar saberes locais com conhecimentos acadêmicos fortalecendo sua identidade e empoderamento OLIVEIRA BORGES 2024 Essa educação comunitária não apenas preserva as tradições mas também capacita os jovens a se tornarem agentes de mudança capazes de articular suas demandas e se posicionar diante das adversidades A resistência quilombola em Ivaporunduva é uma expressão de luta pela autonomia e pela preservação da cultura Apesar dos desafios contemporâneos a organização comunitária e a educação se mostram fundamentais para garantir a continuidade dessa luta A história de Ivaporunduva nos ensina que a resistência é um caminho de construção coletiva e afirmação de identidade A História da Comunidade de Ivaporunduva pela perspectiva de um residente A entrevista realizada com membros da comunidade Quilombola de Ivaporunduva fornece um olhar aprofundado sobre a organização os desafios e a resistência dessa comunidade contra o sistema capitalista A seguir destacamse as falas de dois importantes líderes locais Elson historiador e coordenador da comunidade e Laudessandro Marinho da Silva coordenador geral do grupo de agricultura orgânica Figura 01 Foto retirada no momento da entrevista COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS Elson começa sua fala apresentando sua atuação tanto localmente quanto em esferas estaduais e nacionais Ele menciona seu envolvimento com a Coordenação Nacional de Quilombos CONAQ e a Comissão Nacional de Educação Escolar Quilombola além de seu papel como membro do Conselho Nacional de Educação onde discute currículos das ciências humanas Nós éramos excluídos desses programas O CONAF abriu as portas do Banco do Brasil aqui na região em 2002 a fundação do Instituto Terras de São Paulo nós não tínhamos acesso Passamos a ter acessos após os nossos terem acesso à universidade e voltarem Nós fortalecemos o conhecimento da Academia com o conhecimento prático nosso do dia a dia e passamos a dizer não Em sua explicação Elson destaca a história da comunidade Ivaporunduva localizada no Vale do Ribeira no município de Eldorado São Paulo a mais antiga da região e seu papel como um símbolo de resistência Figura 02 Foto retirada no momento da entrevista COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS A história da comunidade é narrada desde o período colonial com a chegada de Martin Afonso de Souza à região no século XVI e a posterior exploração do ouro Segundo Elson registros indicam que mais de 400 arrobas de ouro foram extraídas da região liderados pela portuguesa Maria Joana que utilizou mão de obra africana escravizada Durante este período foi construída a Igreja de Nossa Senhora do Rosário que ainda existe como um marco da história quilombola e é um símbolo da resistência à imposição do catolicismo A igreja erguida pelos escravizados é hoje tombada como patrimônio cultural e recebe visitas Elson também explica a transição de Ivaporunduva após o abandono da fazendeira Maria Joana quando os africanos escravizados que ali estavam começaram a se organizar e formar as primeiras famílias quilombolas Ele critica as leis abolicionistas brasileiras chamandoas de falsas leis abolicionistas argumentando que as leis como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários não ofereciam reais condições de liberdade e dignidade aos negros escravizados Laudessandro Marinho da Silva por sua vez explica como a comunidade se organiza atualmente Meu nome é Laudessandro Marinho da Silva tenho 40 anos formação técnica em agricultura e Barachel em Administração de empresas Hoje sou coordenador geral do grupo de agricultura orgânica Trabalho no COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS processo de controle gerenciamento prestação de contas e entregas dos alimentos que saem da comunidade para a alimentação escolar Hoje nós entregamos para as escolas estaduais pelo projeto PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar que é um projeto estadual Então entregamos para a região centro centrosul e Mogi das Cruzes E esse processo de prestação de contas emissão de nota fiscal e controle das entregas é a minha função e também participar dos eventos e reuniões dentro do território quilombola Ele é responsável pelo controle e gerenciamento da produção agrícola orgânica além da prestação de contas e da emissão de notas fiscais dos alimentos que saem da comunidade para o Programa Nacional de Alimentação Escolar PNAE O PNAE permite que a comunidade quilombola forneça alimentos para as escolas da região centrosul de São Paulo incluindo Mogi das Cruzes Laudessandro destaca que a agricultura orgânica é uma das principais fontes de renda da comunidade junto com a venda de banana turismo e artesanato Em relação à resistência ao sistema capitalista Laudessandro aponta o desafio de manter a agricultura orgânica frente às pressões do mercado convencional O maior desafio é trabalhar contra o sistema capital O nosso trabalho aqui é mais de proteção do ambiente natureza e nós fazemos parte dela e a dificuldade é que o sistema é contrário a isso Sempre quer buscar o lucro Aqui para a valorização da cultura quilombola às vezes a gente tem que contrapor esse sistema Basicamente a produção do agronegócio não é para a alimentação de pessoas é para suprir outras coisas E a gente contrapõe isso por isso falamos agricultura de subsistência A comunidade busca se organizar de forma coletiva promovendo o compartilhamento de renda entre todas as famílias que somam cerca de 110 Ele também menciona o impacto negativo do governo Bolsonaro para as políticas quilombolas citando a ausência de certificações e registros de território durante os quatro anos de sua gestão além da repressão política A entrevista revela não só a resiliência da comunidade Quilombola de Ivaporunduva mas também a importância da preservação de seu território e suas tradições mesmo diante dos desafios socioeconômicos e ambientais A luta pela terra e pelo reconhecimento pleno de seus direitos permanece uma constante sendo um dos principais eixos da resistência quilombola COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A análise dos dados coletados na pesquisa revela uma complexa rede de resistência e resiliência da comunidade Quilombola de Ivaporunduva que se expressa por meio de práticas sustentáveis e uma forte mobilização política Os depoimentos dos entrevistados destacam a importância da agricultura orgânica e do turismo de base comunitária como estratégias de sustento além de serem formas de resistência cultural e territorial frente à pressão do sistema capitalista Os agricultores locais mencionam a agricultura orgânica não apenas como uma alternativa econômica mas também como uma prática que reforça sua identidade cultural e promove a preservação do meio ambiente A escolha por métodos de cultivo sustentáveis está diretamente ligada à valorização de conhecimentos ancestrais e ao desejo de manter a autonomia sobre suas terras Esta prática não só gera renda mas também fortalece a coesão social da comunidade ao envolver diversos membros em atividades coletivas como feiras e oficinas de capacitação Além disso o turismo de base comunitária se apresenta como uma estratégia fundamental para a geração de renda e a promoção da cultura local Os guias entrevistados relataram que o turismo não apenas proporciona uma nova fonte de renda mas também promove o reconhecimento da identidade quilombola Através de experiências culturais como danças culinária e artesanato a comunidade consegue compartilhar sua história e fortalecer os laços com visitantes o que por sua vez fomenta uma maior consciência sobre os direitos dos povos quilombolas e suas lutas Entretanto os desafios enfrentados pela comunidade são evidentes Os entrevistados destacaram a constante ameaça de exploração econômica e a pressão por parte de empresas que buscam expandir suas atividades na região muitas vezes ignorando os direitos territoriais da comunidade Essa realidade traz à tona a luta contínua por reconhecimento e proteção dos direitos quilombolas que conforme evidenciado pela legislação brasileira ainda enfrenta barreiras significativas para a efetivação A análise dos dados também revela uma forte consciência política entre os membros da comunidade A mobilização em torno de direitos territoriais e culturais tem sido uma constante na trajetória de Ivaporunduva Os líderes comunitários ressaltaram a importância da articulação com organizações externas e movimentos sociais para COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS fortalecer suas reivindicações e buscar apoio na defesa de seus direitos Esse aspecto da pesquisa corrobora a literatura sobre movimentos sociais que enfatiza a relevância da organização coletiva e da solidariedade como fatores essenciais para a luta por justiça social Em suma os resultados da pesquisa evidenciam que a comunidade Quilombola de Ivaporunduva apesar dos desafios enfrentados mantém uma trajetória de resistência que se expressa através de práticas sustentáveis mobilização política e uma forte identidade cultural Essa discussão não apenas contribui para a compreensão das dinâmicas sociais e econômicas da comunidade mas também destaca a importância da valorização dos saberes tradicionais e da autonomia dos povos quilombolas na construção de um futuro sustentável e justo CONCLUSÕESOU CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa realizada sobre a comunidade Quilombola de Ivaporunduva localizada no Vale do Ribeira trouxe à luz aspectos cruciais sobre a resistência organização e sustentabilidade dessa população Os objetivos propostos foram plenamente alcançados revelando como a comunidade tem se articulado para enfrentar os desafios impostos pelo sistema capitalista ao mesmo tempo em que preserva sua identidade cultural e territorial Os dados obtidos por meio das entrevistas com líderes e membros da comunidade evidenciam que a agricultura orgânica e o turismo de base comunitária não são apenas fontes de renda mas também práticas que fortalecem a coesão social e promovem a autonomia da população Essas iniciativas permitem que os integrantes da comunidade garantam sua subsistência resgatem saberes ancestrais e promovam a valorização da cultura local contribuindo significativamente para a resistência cultural em face das adversidades contemporâneas A pesquisa destacou a importância da mobilização política e da articulação com movimentos sociais e organizações externas A luta pela terra e pelos direitos culturais se configura como um elemento central na trajetória de Ivaporunduva e a consciência política manifestada pelos líderes e membros da comunidade é fundamental na busca por reconhecimento e proteção dos direitos quilombolas COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS Entretanto os desafios enfrentados pela comunidade são significativos especialmente diante das pressões externas e da exploração econômica que ameaçam sua integridade territorial É imperativo que as políticas públicas sejam mais efetivas na proteção dos direitos dos povos quilombolas assegurando a implementação de legislações que respeitem e reconheçam suas reivindicações históricas A resistência Quilombola em Ivaporunduva representa uma luta por dignidade e direitos refletindo a necessidade de um olhar atento e respeitoso para as práticas e saberes de comunidades historicamente marginalizadas O fortalecimento das vozes quilombolas e a valorização de suas contribuições são passos essenciais para a construção de uma sociedade mais justa inclusiva e sustentável A continuidade da pesquisa e do apoio às iniciativas locais são fundamentais para garantir que a história e as lutas dessas comunidades sejam reconhecidas e respeitadas contribuindo assim para um futuro em que a diversidade cultural e a justiça social sejam pilares inegociáveis REFERÊNCIAS ALMEIDA Mariléa de Território de afetos práticas femininas antirracistas nos quilombos contemporâneos do Rio de Janeiro Núcleo de Pesquisa da Mandata Quilombola Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo São Paulo Brasil Disponível em httpsdoiorg1051880hav24121209 Acesso em 09 out 2024 BRASIL Comunidades Quilombolas Disponível em httpswwwgovbrmdhptbrnavegueportemasigualdadeetnicoracialacoese programasdegestoesanterioresartigosigualdaderacialcomunidadesquilombolas Acesso em 18 abr 2018 BRASIL Informações Quilombolas Disponível em httpswwwgovbrpalmarespt brdepartamentosprotecaopreservacaoearticulacaoinformacoesquilombolas Acesso em 09 out 2024 NASCIMENTO Beatriz O conceito de quilombo e a resistência cultural negra inserir o nome da revista ou livro se disponível sl sd OLIVEIRA Samuel Silva Rodrigues de BORGES Roberto Carlos da Silva Ruth Pinheiro trajetória de vida e movimento negro contemporâneo no Rio de Janeiro 1948 1988 Revista do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul v inserir volume n inserir número p inserir páginas ano Disponível em httpsseerufrgsbranos90 Acesso em 09 out 2024 QUILOMBOS DO RIBEIRA Ivaporunduva Disponível em httpswwwquilombosdoribeiraorgbrivaporunduvahistoricotextSurge20como COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS 20povoado20no20sC3A9culoum20grupo20de201020escravos Acesso em 09 out 2024 SILVA Denise Almeida REIS Tani Gobbi dos Um outro Zumbi de Palmares o quilombismo como valor simbólico em poemas afrobrasileiros contemporâneos COMISSÃO CIENTÍFICA IV FESTIVAL OCUPAÇÃO PRETA A HISTÓRIA DE UM É A NARRATIVA DE TODOS