·

Serviço Social ·

Serviço Social 1

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Preview text

Sergio Lessa ABAIXO A FAMÍLIA MONOGÂMICA Creative Commons CC BYNCND 30 Diagramação Enio Francisco Rosa Revisão Luciano Accioly Lemos Moreira e Estevam Alves Moreira Neto Capa Marcos Brado Rodrigues ISBN XXXXXXXXXXXXX 1 XXX 2 XXX 3XXX 4 XXX Esta obra foi licenciada com uma licença Creative Commons Atribuição NãoComercial SemDerivados 30 Brasil Para ver uma cópia desta licença visite creativecommonsorg licensesbyncnd30br ou envie um pedido por escrito para Cre ative Commons 171 2nd Street Suite 300 San Francisco California 94105 USA Esta licença permite a cópia parcial ou total distribuição e transmis são desde que 1 deem crédito ao autor 2 não altere transforme ou crie em cima desta obra e 3 não façam uso comercial dela 1ª edição agosto de 2012 INSTITUTO LUKÁCS Rua XXXXXX XXXX CEP XXXX São PauloSP Telefax XX XXXXXXXX contatoinstitutolukacscombr wwwinstitutolukacscombr Sergio Lessa ABAIXO A FAMÍLIA MONOGÂMICA 1a edição Instituto Lukács São Paulo 2012 Em tempos em que covardia passa por sabedoria em que rendição se pretende realismo político algumas bravas luta doras mostraram como se en frenta o capital no enclave da Aracruz no Rio Grande do Sul A elas este livro é dedicado Sumário Introdução7 Parte I A origem da família monogâmica Capítulo I A sociedade primitiva e a família comunal15 Capítulo II A revolução neolítica e as classes21 Capítulo III O masculino e o feminino29 Parte II A crise da família monogâmica Capítulo IV O desenvolvimento da humanidade43 Capítulo V O amor individual sexuado51 Capítulo VI A crise da sociedade de classes amor e tragédia59 Capítulo VII A família burguesa69 Conclusão 101 Bibliografia 109 Career and technical education at Havre High School is available in the following cluster areas Ag Food Nat Resources Business Mgmt Adm Construction Environmental Science and Power Generation Educ Training Health Science Human Services Marketing Science Technology Engineering Mathematics Transportation Distribution Logistics 7 Sergio Lessa Introdução Os comunistas são desde o século 19 acusados de ser contrários à propriedade privada ao Estado à religião e à família Nós co munistas somos de fato a favor de uma sociedade sem classes sem Estado sem propriedade privada Uma sociedade na qual a abun dância torne desnecessárias as religiões esse consolo ideológico que supera a miséria terrena por meio de um paraíso espiritual E o que sobretudo nos interessa somos também contrários à família monogâmica Sobre este último ponto criouse uma enorme confu são que deve ser desfeita esta a razão deste pequeno livro Muitas coisas na vida nós tomamos como seguras e garantidas como se fossem tão inevitáveis quanto a chuva cair das nuvens e o sol nascer a leste Após milhares de anos de história parecenos im possível uma sociedade que se autorregule sem Estado Civilização e a ordem imposta pelo Estado não raramente são tratados como sinônimos Uma vida na qual apenas tenhamos de trabalhar poucas horas por mês algo já possível com o atual desenvolvimento das forças produtivas nos parece algo tão irreal quanto seres humanos dotados de asas Que nossas necessidades possam ser satisfeitas sem precisarmos de dinheiro é alguma coisa que não tem lugar em nossa imaginação após tantos e tantos milênios de comércio Do mesmo modo assemelhase a uma loucura completa a possibilidade de que homens e mulheres possam criar educar filhos e se amar fora de uma unidade familiar apartada da sociedade e composta por um pai uma mãe e os filhos E todavia também é um lugarcomum que as famílias que co nhecemos e nas quais vivemos e fomos educados são para dizer o mínimo problemáticas Casamento é quase sinônimo de conflitos dores sofrimentos dos mais variados Frustrações tristeza e melan 8 Abaixo a família monogâmica colia são elementos que estão presentes em todas as famílias em algum grau e em alguma medida por vezes de modo muito forte Nossos jovens quando vão constituir família o fazem com frequên cia na esperança de que com eles a história será diferente da dos seus pais e familiares mais próximos São raros os casamentos que per duram a maioria termina em quase sempre doloridos complicados sofridos processos de separação para os adultos e para os filhos As alternativas que nos oferece a vida são todas também insa tisfatórias Pessoas que optam por relacionamentos mais superfi ciais passageiros e que preferem não constituir família ou mesmo aqueles que decidem constituir família sem passar pelo cerimonial do casamento e seus atributos legais enfrentam problemas muito parecidos A infelicidade e a insatisfação de carências não atendidas ao longo de toda uma vida vão deixando suas marcas nas perso nalidades de todos nós Mesmo nas alternativas o outro além de amadoa também cumpre a função social de limite ao desenvolvi mento doa companheiroa e há profundas razões históricas para que isso seja assim Com o nosso padrão familiar ocorre o mesmo que com nossa forma de vida social É cada vez mais insatisfatório e por outro lado não somos capazes enquanto indivíduos e enquanto huma nidade de encontrar as alternativas para uma vida mais feliz Toda vez que na história a humanidade viveu um impasse ao qual não tinha ainda encontrado alternativa fortalecese a busca pessoal qua se sempre desesperada por vezes mágica ou mística de alternativas rigorosamente individualistas O sucesso dos livros de autoajuda é um bom exemplo desse fenômeno Quando se trata de nossos amo res e desamores algo muito semelhante ocorre avaliamos que os problemas do nosso casamento não se repetirão no próximo re lacionamento Ou então achamos que são tão únicos que não se repetirão com os outros casais Infelizmente as coisas são mais complexas Infelizmente porque fossem de fato problemas singulares e que ocorrem apenas conos co poderiam ser solucionados por uma nova postura individual por novas opções pessoais As soluções seriam muito mais simples e rápidas A incrível generalização do sofrimento individual oriundo das atuais relações familiares indica exatamente o oposto o pro blema muito mais que pessoal e singular diz respeito ao que todas as famílias ao que todos os nossos amores desamores encontros e desencontros têm em comum Nossa infelicidade coletiva nessa esfera tem também raízes coletivas gerais universais São raízes causas que se articulam com toda a história da humanidade desde 9 Sergio Lessa sua origem até nossos dias São problemas que requerem soluções complexas e radicais complexas porque se referem à totalidade do modo pelo qual organizamos a nossa sociedade radicais porque não aceitam soluções parciais ou efêmeras Se os revolucionários do século 19 sobretudo Marx e Engels e se na esteira deles Lukács Mészáros e Leacock estiverem certos há hoje uma profunda contradição entre a nossa forma de organiza ção da vida familiar a família monogâmica e as nossas necessidades e possibilidades de desenvolvimento mais autênticas dos indivíduos também do ponto de vista afetivo É nesta contradição que lança riam suas raízes os males desamores tristezas e sofrimentos co muns das nossas vidas familiares Discutir a família é sempre uma questão muito difícil Em pri meiro lugar porque não é algo fácil tomar consciência de que o que somos enquanto maridos e esposas enquanto pais mães filhos e filhas não são as únicas possibilidades abertas para a humanidade É afetivamente complicado darse conta de que o que hoje somos como homens e mulheres pais e filhos está tão permeado pelas relações sociais predominantes que terminamos sendo algo mui to diferente do que gostaríamos de ser Não é fácil compreender como em que extensão profundidade e intensidade as alienações que brotam da propriedade privada atuam sobre nossos sentimen tos e emoções mais íntimas pessoais Uma avaliação sensata dessa esfera necessariamente tem alguma influência na avaliação pessoal que fazemos de nossas famílias de nossos papéis enquanto pais e mães filhos e filhas de nossos próprios pais e parentes Parte pelo menos do que consideramos o mais querido e íntimo o mais pesso al e próximo será alterado ao compreendermos as raízes históricas desse nosso modo de viver Nem sempre é algo fácil compreender que nossos amores e relações afetivas mais intensos e íntimos são também determinados pelo desenvolvimento histórico Que o que hoje somos enquanto membros de nossas famílias é um fenômeno social em tudo diferente da inevitabilidade natural de o sol nascer a leste ou a chuva cair das nuvens A ilusão de que nossa forma de organização da vida familiar é a única possível leva a uma concepção superficial e precária do que é a monogamia Ela seria a obrigação moral de pessoas não traírem seus amados E esta traição tem sempre o mesmo conteúdo amar ou ter relações sexuais com outras pessoas A monogamia se redu ziria a um preceito a ser seguido na relação honesta entre duas pessoas que se amam Duas pessoas que se amam reza a moral devem constituir um núcleo familiar por isso família nuclear 10 Abaixo a família monogâmica separado da vida comunitária comum E a fidelidade mútua dos cônjuges é um elemento indispensável para a sobrevivência desse núcleo familiar Veremos que isso é apenas meia verdade a metade menos im portante da verdade Pois esta concepção tão comum nem sequer questiona por que nos organizamos em famílias nucleares Não deixa espaço ao menos para perguntarmos se na história já hou ve outra forma de organização da vida familiar Como veremos a monogamia é muito mais do que mero preceito moral da vida co tidiana ela é na verdade um aspecto decisivo da organização da sociedade de classes Ainda segundo o moralismo predominante se a família monogâ mica é a única possível então questionar a monogamia apenas pode significar duas coisas ou se é contra a família ou se é a favor do descompromisso afetivo dos relacionamentos abertos É isso quase sempre o que se compreende por poligamia Este digamos senso comum é muito fortalecido porque coincide com as concep ções mais conservadoras Elas tendem a reduzir todas as propostas de superação da atual forma de organização familiar em particular as propostas que se baseiam no pensamento de Marx e Engels a um retorno à animalidade apenas os impulsos biológicos animais deveriam reger nossa vida afetiva Como veremos a poligamia é em sua essência muito parecida com a monogamia ambas são apenas formas diferentes de organi zação da vida familiar ao redor do poder do marido São apenas ex pressões diferentes do mesmo patriarcalismo Por isso a crítica dos comunistas à família monogâmica é também a crítica da poligamia que ainda existe de modo residual mórmons em Utah nos EUA haréns na Arábia Saudita etc Por outro lado uma sociedade sem família não pode existir O cuidado das crianças a preparação dos alimentos a moradia e a vesti menta etc requerem alguma forma de família Mas quem pode pro var que a única forma de organização familiar é a família burguesa O que os comunistas propõem é uma nova forma de organização da vida social uma sociedade emancipada da exploração do homem pelo homem a sociedade comunista E para que esta sociedade co munista seja possível é imprescindível superar também a atual forma de família pois como vemos a monogamia é a expressão na vida familiar da exploração do homem pelo homem Somos favoráveis a uma organização familiar que não seja ordenada pela propriedade privada O que significa que somos favoráveis à liberdade mais com 11 Sergio Lessa pleta para que as pessoas possam viver seus amores com a maior in tensidade e a maior autenticidade Superar o casamento monogâmico é decisivo para a constituição de uma sociedade que possibilite o desenvolvimento universal e pleno Marx denominava de desenvol vimento omnilateral isto é por todos os lados dos indivíduos E para tanto é imprescindível superar a sociedade capitalista A superação do casamento monogâmico pela qual lutam os co munistas é a passagem para a mais livre e plena realização afetiva das pessoas analogamente a como a superação da propriedade privada abrirá as portas a um desenvolvimento muito superior da sociedade A organização familiar comunista será um meio para o desenvolvimento superior das pessoas Os comunistas não propõem a poligamia do mesmo modo como não defendem a monogamia Não defendemos o descompromisso afetivo e pessoal que carac teriza algumas propostas de amor livre assim como recusamos o moralismo monogâmico hoje predominante Estamos propondo que as relações amorosas devam ser pautadas apenas e tão somen te pelas decisões livres emancipadas das pessoas Para isso como veremos é preciso superar a sociedade de classes com tudo o que ela implica o Estado a violência a miséria a exploração do homem pelo homem as guerras a propriedade privada a destruição ecoló gica e o patriarcalismo Algo muito distinto do que os conservadores querem fazer crer que os comunistas propõem Alguns indispensáveis agradecimentos A José Paulo Netto e Carlos Nelson Coutinho que nos chamaram a atenção para a dis tinção entre casamento e família monogâmicos A Cristina Paniago e Artur Bispo por suas observações Lucas Morais revisou o texto Cecília Toledo teve a paciência de ler todo o manuscrito e fazer sugestões muito interessantes muitas das quais foram incorporadas no texto final nosso muito obrigado Ivo Tonet verdadeiro coautor por tudo o que discutimos e as incontáveis sugestões oferecidas Por fim aos militantes do MST da Via Campesina e demais movi mentos sociais que generosamente nos enviaram sugestões que em muito ajudaram a diminuir as debilidades e imprecisões da primeira versão deste texto 21st CENTURY COMMUNITY LEARNING CENTER Adventure Club Grades K6 4 6 pm Monday Friday Childcare Offered before school in the Adventure Kids Room 7 8 am Monday Friday 3547073 COMMUNITY EDUCATION Opportunities for all ages 2656743 junior Achievements USA PROGRAM Handson Junior Achievement lessons and activities will be provided each week to 4th graders The program emphasizes K12 workreadiness entrepreneurship and financial literacy skills through experiential learning Parte I A origem da família monogâmica Put your computer skills to work Register by calling 2656743 at Havre High School on Nov 27 28 or 30 Looking for a job Would like to update your resume or learn how to use a computer in your job search Comprehensive Job Search Workshop Tuesdays Thursdays Fridays 122 pm January 20 February 19 Room 216 Havre High School Provided by Havre Job Service and Havre High School this interactive workshop is designed for job seekers to gain skills and knowledge necessary to successfully find and maintain employment This is a nocost resource open to all with priority given to Job Service customers Questions Call 2656743 15 Sergio Lessa Capítulo I A sociedade primitiva e a família comunal Os nossos antepassados biológicos sobreviveram à seleção natural graças ao desenvolvimento do gregarismo Viver em bandos potenciali za a força individual e aumenta a capacidade de adaptação às novas situ ações Por isso mesmo antes de serem humanos os Homo sapiens viviam em pequenos bandos Foi no interior desta vida gregária que surgiu um novo modo de tirar da natureza o necessário à vida o trabalho1 O que o trabalho tem de tão especial é que antes de transformar a natureza antecipamos em nossa consciência o que será feito Com isso ao agirmos sobre o mundo produzimos não apenas novos objetos mas também novos conhecimentos e habilidades ao atuar sobre a natureza externa a ele e ao modificála ele o ser humano modifica ao mesmo tempo sua própria natureza Marx 1983149 Com o trabalho os indivíduos se transformam as sociedades evoluem O trabalho marcou a gênese do ser social do mundo dos homens2 Desde então ao lado da história da natureza inorgânica a evolução do 1 Ao que tudo indica um processo semelhante teria ocorrido também com os descendentes biológicos do Homo erectus na Ilha das Flores o Homo floresiensis Mas isso não é ainda um consenso entre os cientistas Wong 2005 2 Para uma introdução ao estudo do trabalho e suas consequências para a his tória cf Lessa S e Tonet I Introdução à filosofia de Marx Expressão Popular 2011 Um estudo mais aprofundado com base em G Lukács pode ser encon trado em Lessa S Mundo dos homens Instituto Lukács 2012 Os clássicos do marxismo produziram textos fundamentais de Marx Manuscritos de 1844 1993 e o Volume I de O Capital em especial os capítulos V e XIV mas não apenas De Marx e Engels A ideologia alemã 2009 Engels redigiu A origem da família do Estado e da propriedade privada 2010 que continua sendo o seu texto mais im portante De Lukács os escritos essenciais estão em sua Para uma ontologia do ser social 19761981 muito especialmente os capítulos dedicados a Hegel Marx e os capítulos O trabalho e A Reprodução 16 Abaixo a família monogâmica universo e da história das plantas e dos animais temos também a história das sociedades isto é a história de como os seres humanos se organizam ao longo do tempo para retirar da natureza o que precisam A história humana não é a evolução biológica do Homo sapiens é a história de como as relações sociais se desenvolveram para com um esforço cada vez menor transformar a natureza na quilo de que se necessita Esse desenvolvimento é articuladamente o desenvolvimento dos indivíduos e das sociedades Como não há sociedade sem indivíduos nem indivíduos fora de sociedades tam bém não há desenvolvimento social que não interfira no desenvol vimento dos indivíduos E analogamente não há desenvolvimento dos indivíduos que não tenha algum impacto sobre o desenvolvi mento social As primeiras sociedades eram muito semelhantes na forma à vida gregária dos nossos antepassados bandos de alguns poucos indiví duos que viviam da coleta e da caça eventual de pequenos animais A coleta que era o trabalho daquela época vai aos poucos se desenvol vendo Os bandos vão conhecendo melhor a natureza e percebem por exemplo que quando chove muito em uma época do ano vai haver peixe em tal local em um determinado mês não vai dar frutas em tal vale as abelhas vão produzir mais mel em tal lugar e assim sucessivamente De geração a geração um melhor conhecimento da natureza e relações sociais novas como por exemplo as histórias que os mais velhos contavam aos jovens para ensinálos como pro duzir as pinturas e esculturas que perpetuaram os grandes eventos da vida coletiva o desenvolvimento da linguagem e das festas etc foram melhorando a coleta Aos poucos os homens se afastavam de seu ponto de partida original Marx chamou esse processo de afas tamento das barreiras naturais3 A produção vai se tornando cada vez mais eficiente aumenta a produção de alimentos o bando pode se tornar um pouco maior e uma primitiva distribuição de tarefas vai surgindo os humanos estão conhecendo um desenvolvimento so cial isto é uma evolução que não é fundada pelo desenvolvimento biológico Os eventos da natureza jogarão um papel cada vez menor na nossa história a humanidade está em marcha mesmo que se tra te ainda de seus primeiros passos4 3 Afastamento e não desaparecimento ou eliminação das barreiras naturais porque o aumento das capacidades humanas diminui correspondentemente nossa dependência para com a natureza sem contudo eliminar o fato de que sem a reprodução biológica natural não há sociedade humana possível 4 Sobre a vida nas sociedades primitivas a ciência tem feito descobertas impres 17 Sergio Lessa Em que pese essa evolução o fato de viverem da coleta impunha aos humanos intensas restrições Eram forçados ao nomadismo pois a coleta esgotava os recursos consumidos mais rapidamente do que a capacidade da natureza para produzilos Tinham de viver em sociedades formadas por poucos indivíduos já que não havia ali mento suficiente para muitos Como se locomoviam quase cotidia namente não podiam carregar seus instrumentos de trabalho Por isso as ferramentas tinham de ser primitivas fáceis de ser fabricadas as ferramentas de pedra lascada Em tal situação a disputa com os outros animais pelos alimen tos abrigos água etc fazia com que a cooperação fosse a condição indispensável para a sobrevida de todos e de cada um A vida ou era comunitária ou não seria possível Não havia outra forma de sobre viver Sozinho ou lutando todos contra todos como ocorre hoje a sobrevivência seria impossível Por isso as formas de vida comunitá ria predominavam independentemente de qual sociedade primitiva estejamos falando nas tribos africanas na Austrália na Ásia ou nas Américas em todas as sociedades primitivas a colaboração e a união dos esforços eram a chave para a sobrevivência A vida em comum comunitária foi predominante durante todo o período primitivo Se um indivíduo era mais capaz do que outro para encontrar ali mentos todos comeriam mais se outro era melhor para encontrar a rota ideal para a migração daquele dia todos andariam menos se ainda uma pessoa era excepcionalmente capaz de descobrir ninhos de passarinhos melhor pois todos comeriam mais ovos e assim sucessivamente Isso não significa que não houvesse violência A luta pelos re cursos escassos incluía também a violência Um indivíduo mais for te tendia a se alimentar melhor que outro mais fraco etc Todavia mesmo o mais forte dependia da comunidade para sobreviver e por isso a violência daquela época tinha características diferentes da guerra que hoje conhecemos Era uma violência de indivíduo contra indivíduo não de classe contra classe e tinha limites muito fortes que se relacionavam ao fato de que a sobrevivência de cada um sionantes nas últimas três ou quatro décadas Não apenas novos sítios arqueo lógicos foram descobertos e explorados como também novas técnicas de da tação dos fósseis utensílios pinturas etc têm possibilitado um conhecimento muito superior deste período histórico Uma bibliografia acessível ao leitor não especializado raramente tem sido traduzida em nosso país Além dos textos de Leakey do mesmo autor cf ainda A origem da espécie humana Ed Record Um belo texto introdutório disponível apenas em inglês é Early Humans do British Museum Dr Publishing 2005 18 Abaixo a família monogâmica mesmo do mais forte dependia da sobrevivência da comunidade Nas sociedades que viviam da coleta a taxa de fertilidade a quantidade de bebês em relação ao total de pessoas dependia di retamente da quantidade de mulheres capazes de procriar Como apenas era possível criar um determinado número bastante pequeno de bebês por ano era preciso regular da melhor forma possível a quantidade de mulheres adultas de homens adultos e portanto de crianças e bebês de cada um dos sexos Se fosse necessário aumentar a proporção de homens os bebês femininos eram abandonados e viceversa E também como a morte de um homem adulto não alterava a quantidade de bebês que o bando poderia ter a vida das mulheres era mais protegida e na divisão das tarefas não cabia a elas na maior parte dos casos as mais perigosas A criação das crianças não podia ficar na dependência de um pai ou de uma mãe como é hoje a morte de um adulto seria ainda pior para a comunidade se o esforço já dedicado à criação de algumas crianças fosse também perdido Por isso a tarefa de criar os filhos era uma tarefa tão coletiva como qualquer outra os pais eram todos os homens da tribo os primos e primas eram todas as crianças que não eram irmãos e irmãs e apenas as mães eram individualizadas pelo nascimento Mesmo neste caso a morte de uma mulher não deixava uma criança órfã ela não raramente passava a ser filho ou filha de uma irmã da falecida ou algo semelhante Nenhuma criança era abandonada pelo fato de ter falecido sua mãe5 Tal como a vida de cada indivíduo estava intimamente associa da à sobrevivência de todos a vida de cada criança era protegida por todos não havia nada semelhante à figura da mãe e do pai que hoje conhecemos Nem as tarefas de criação dos filhos preparação dos alimentos etc eram femininas ou masculinas eram atividades coletivas que envolviam pessoas de ambos os sexos e de todas as idades Pouquíssimas tarefas eram atividades divididas segundo o 5 Dos estudos contemporâneos sobre as formas de vida comunitária do modo de produção primitivo o conjunto mais impressionante de que temos notícia é a obra de Eleanor Leacock Antropóloga estadunidense falecida na década de 1980 Leacock lançou mão das descobertas mais recentes da antropologia e da arqueologia para desmascarar o conteúdo ideológico conservador de muitas das teorias contemporâneas Suas polêmicas com as principais correntes da antro pologia da arqueologia e da com perdão da expressão sociologia de gêneros são úteis para compreendermos a gênese e os limites da família monogâmica Sua principal obra Miths of Male Dominance Mitos da dominação masculina conti nua infelizmente inédita entre nós 19 Sergio Lessa sexo e quando o eram era frequente caber aos homens atividades que hoje são tidas por femininas E além disso a divisão das tarefas não implicava uma hierarquia de poder nem cancelava a autonomia de cada pessoa Pelo contrário o exercício da autonomia pressupunha a divisão de tarefas e esta pressupunha a autonomia de cada indi víduo para executálas Leacock 198121 As relações sexuais e afetivas eram como veremos muito menos humanamente desenvolvidas do que as de hoje e todavia eram consensuais e livres Nenhuma instituição semelhante ao Estado ou ao Direito regulava ou impunha limites a tais relações que não fossem as obrigações de todos para com a sobrevivência da comunidade A proibição de relações sexuais entre parentes era um desses casos 1 Uma sociedade muito diferente Estamos tratando claro está de uma sociedade muito diferente da nossa nela predominava a colaboração e não a concorrência Mas isso não acontecia porque os selvagens eram bons e nós os civilizados somos maus nem porque os indivíduos primitivos eram moralmente mais elevados Explorar outro indivíduo significa que o explorador deve dedicar seu tempo a vigiar e a controlar a quem explora Se a produtividade é baixa ao final do dia o tempo que o explorador gastou para con trolar a quem explora rende tão pouco que ele irá comer menos do que se procurasse sua comida pessoalmente A baixíssima produti vidade do trabalho nas sociedades primitivas fazia da exploração do homem pelo homem uma impossibilidade histórica Por causa dis so as sociedades primitivas não conheciam nem as classes sociais nem o Estado nem a política o exercício do poder que brota da propriedade privada nem o Direito nem o dinheiro Eram sociedades que também desconheciam a alienada divisão social do trabalho a distribuição de tarefas entre as pessoas não correspondia a uma divisão do poder não tinha por pressuposto nem a exploração do homem pelo homem nem qualquer hierarquia fundada pela propriedade privada Algumas tarefas ainda eram di vididas segundo fatores biológicos naturais e muito pouco sociais como a idade das pessoas a força física o sexo etc Não havia co mércio e as trocas tinham um valor ideológico solidificar laços de amizade etc muito mais que econômico Na execução das tarefas de cada um exercese a mais completa autonomia a ninguém cabe o controle ou a vigilância sobre as pessoas Repetimos a total inter 20 Abaixo a família monogâmica dependência era inseparável de uma real autonomia Leacock 198121 Nestas sociedades a relação direta entre produção e consumo era intimamente articulada com a dispersão da autoridade Leaco ck 1981139 As pessoas não recebiam salários não eram punidas se não trabalhassem não havia o poder que fazia de alguns indi víduos presidentes governadores patrões delegados torturadores padres juízes professores e de outros indivíduos cidadãos em pregados prisioneiros torturados fiéis réus alunos etc As pessoas não viviam para enriquecer E foi esta sociedade sem a concorrência desenfreada de todos contra todos que lançou a humanidade no processo de desenvolvimento que nos conduziu até ao presente A humanidade pôde se desenvolver como a história o demonstra sem as relações de concorrência que hoje transformaram a todos nós em lobos de nós próprios A cooperação e não a concorrência já foi a forma básica da vida social e nem por isso o desenvolvimen to das forças produtivas deixou de acontecer Com a palavra Engels comentando a vida entre os iroqueses Admirável essa constituição da gens com toda a sua ingênua simplicidade Sem soldados policiais nobreza reis governadores prefeitos ou juízes sem cárceres ou processos tudo caminha com regularidade Todas as querelas to dos os conflitos são dirimidos pela coletividade a que concernem pela gens ou pela tribo ou ainda pelas gens entre si Só como último recurso raras vezes empregado aparece a vingança da qual a nossa pena de morte é apenas uma forma civilizada com as vantagens e os inconvenientes da civilização Apesar de haver muito mais questões em comum do que no presente a economia doméstica é feita em comum por uma série de famílias e de modo comunista a terra é propriedade da tribo e os lares só dispõem e temporariamente de pe quenas hortas ainda assim não é necessária nem sequer uma parte mínima da nossa vasta e complicada máquina administrativa São os próprios interes sados que resolvem as questões e na maioria dos casos costumes seculares já tudo regulam Não pode haver pobres nem necessitados a família comunista e a gens têm consciência das suas obrigações para com os anciãos os enfer mos e os inválidos de guerra Todos são iguais e livres inclusive as mulheres Ainda não há lugar para escravos e como regra geral não se subjugam tribos estrangeiras Quando os iroqueses venceram em 1651 os érios e as nações neutras propuseramlhes que entrassem na confederação com iguais direi tos somente depois de terem os vencidos recusado a proposta é que foram expulsos de seu território Que homens e que mulheres produziu semelhante sociedade é o que podemos ver na admiração de todos os brancos que lidaram com índios não degenerados diante da dignidade pessoal da retidão da ener gia de caráter e da intrepidez desses bárbaros Engels 20101245 21 Sergio Lessa Capítulo II A revolução neolítica e as classes Tal como não foi uma escolha moral dos indivíduos que fez com que a sociedade primitiva fosse marcada pela cooperação também não foi qualquer escolha pessoal ou moral que levou a humanidade para os modos de produção fundados na exploração do homem pelo homem Da mesma forma como o trabalho de coleta fundou o modo de produção primitivo também será um novo modo de in tercâmbio material com a natureza o trabalho alienado o trabalho explorado que fundará a sociedade de classes Por isso a gênese do trabalho explorado é também a gênese das classes sociais O desenvolvimento de qualquer sociedade se expressa de modo condensado na cada vez maior capacidade em tirar da natureza os seus meios de produção e de subsistência O mesmo se deu com a sociedade primitiva Com o passar do tempo a transformação da natureza foi transformando a própria natureza social dos ho mens Marx 1983149 até que há aproximadamente 10 mil anos o trabalho passou por uma transformação qualitativa no dizer de Lukács conheceu um salto ontológico Descobriuse a semente e com ela a agricultura e a pecuária Pela primeira vez os indivíduos que trabalham produzem mais do que necessitam para sobreviver A capacidade de trabalho das pessoas se desenvolveu a tal ponto que elas não mais precisam trabalhar todo o tempo Está agora so brando capacidade de trabalho isso é o trabalho excedente O trabalho excedente não existia na sociedade primitiva é algo inteiramente novo o modo de produção primitivo não conheceu nada sequer parecido Se nas sociedades primitivas o tempo gasto com a vigilância e o controle dos trabalhadores resultava em menos do que o indivíduo produziria diretamente agora a atividade de con trole e vigilância necessários para realizar a exploração das pessoas 22 Abaixo a família monogâmica resulta em uma riqueza maior do que aquela que seria obtida direta mente pelo trabalho do indivíduo Isto é o que torna uma possibilidade a exploração do homem pelo homem Todavia se o trabalho excedente torna possível o surgimento da exploração do homem pelo homem não faz da exploração algo histo ricamente necessário6 Sua necessidade decorre da carência isto é da situação histórica na qual a produção não é suficiente para atender às necessidades de todos os indivíduos Ou seja o indivíduo que trabalhava produzia mais do que ele individualmente precisava mas como uma parte da socieda de não produz crianças grávidas velhos doentes etc esse a mais não era ainda o suficiente para atender todos os indivíduos e a todas as necessidades Ao lado do trabalho excedente as sociedades daquela época conheciam também a carência pois o total da produção não era suficiente para atender às necessidades Com a carência uma distribui ção igualitária do produzido faria com que tudo fosse consumido não restando nada para desenvolver as forças produtivas Na sociedade de classes este problema é superado Uma sociedade de classes é aquela em que uma parte da sociedade a classe dominante explora a outra e majoritária parte da sociedade Como a classe do minante concentra uma riqueza que não consegue inteiramente con sumir sobra para investir no desenvolvimento dos seus negócios E desenvolver os negócios significa também a construção de portos de estradas a concentração de trabalhadores o desenvolvimento de novas tecnologias etc Temos assim nestas sociedades um desenvolvimento mais acelerado das forças produtivas do que nas sociedades primitivas Esta é a vantagem da sociedade de classes que faz com que ao en trar em contato com uma sociedade primitiva igualitária a tendência seja a primeira conquistar e destruir a segunda fazendo das ruínas da sociedade igualitária fonte de lucro para a classe dominante pense mos na conquista dos bárbaros pelos romanos Esse processo de destruição do modo de produção primitivo pelas sociedades de classe está hoje em seus estágios finais as derradeiras sociedades primitivas do planeta na Amazônia e no Ártico estão sendo destruídas pelo ca pitalismo A articulação entre o trabalho excedente e a carência não apenas 6 Algumas sociedades desenvolveram a agricultura e a pecuária mas mantiveram o caráter igualitário da divisão das riquezas Tais sociedades foram sendo com o tempo destruídas pelas sociedades de classe Um exemplo muito citado é a da tri bo Kung que a partir do desenvolvimento das forças produtivas em lugar do au mento da produção promoveu o aumento do tempo livre de lazer Leakey1988 23 Sergio Lessa tornou possível mas também tornou necessária a exploração do homem pelo homem a sociedade de classes desenvolve suas for ças produtivas muito mais rapidamente que as primitivas e tende a substituílas ao longo da história Essa situação apenas será alterada na passagem do século 18 ao 19 com a Revolução Industrial quan do a carência foi substituída pela abundância como veremos no Ca pítulo VI Até lá as classes sociais permaneceram uma necessidade para o mais rápido desenvolvimento das forças produtivas E até lá a família monogâmica também será uma insuperável necessidade histórica 1 A propriedade privada o Estado e o trabalho alienado O surgimento da propriedade privada não é a gênese de uma coisa mas de uma nova relação social de uma nova forma de os homens organizarem a vida coletiva A propriedade privada é fundada por uma nova forma de trabalho o trabalho alienado ex plorado a transformação da natureza nos meios de produção e de subsistência será realizada agora por meio da exploração do ho mem pelo homem Foram vários os processos de transição das sociedades primitivas às sociedades de classe A transição não foi a mesma no norte e no centro da Europa na Ásia houve diferenças importantes entre a Ín dia e a China entre o Japão e o Sudeste Asiático Na África também não foi idêntica em todo o continente e mais perto de nós entre os maias astecas e incas há distinções significativas Com todas as di ferenças e descompassos um conjunto de elementos esteve sempre presente tratase em todos os lugares da passagem do modo de produção primitivo aos modos de produção fundados na explora ção do homem pelo homem É esse conjunto de elementos comuns que nos interessa O primeiro desses elementos é a transformação da relação dos indivíduos com o trabalho Alguns indivíduos a minoria da socie dade passam a exercer as atividades de controle e de vigilância so bre aqueles que transformam a natureza nos meios de produção e de subsistência Essa vigilância e controle são fundamentais para a exploração do trabalho O núcleo deste controle e desta vigilância é historicamente preciso só a violência é capaz de fazer com que um indivíduo entregue o produto do seu trabalho para a classe domi nante De um modo essencialmente distinto do passado a violência e 24 Abaixo a família monogâmica não a cooperação é decisiva para a reprodução das sociedades de classe Os indivíduos da classe dominante já não mais trabalham não transformam a natureza realizam o trabalho intelectual isto é a atividade de controle e de organização da aplicação da violência7 Os escravos servos e proletários serão os que forçados pela violência da classe dominante transformarão a natureza produ zindo o conteúdo material da riqueza social Marx 198346 Tal riqueza por sua vez será utilizada para explorar esses mesmos tra balhadores O poder da classe dominante é a riqueza produzida pe los trabalhadores e que deles é expropriada pela violência tal rique za alienada8 dos trabalhadores é a propriedade privada E o trabalho que produz a propriedade privada e não o que é necessário para atender às necessidades humanas é o trabalho alienado A propriedade privada é assim a terra e os escravos do senhor romano o feudo do senhor feudal o capital do burguês Não por que essas coisas tenham em si mesmas qualquer poder especial já que elas são expressões da relação de exploração e apenas no interior das relações de exploração essas coisas possuem o poder 7 Estamos agora entrando em contato com uma dificuldade que é muito comum para aqueles que se iniciam no estudo de Marx e Engels O trabalho para os dois pensadores é sempre o intercâmbio material do homem com a natureza por isso é sempre manual cf por ex Marx 1983149 É a categoria fundante da história dos homens Todavia ambos os pensadores empregam expressões como trabalho intelectual trabalho abstrato trabalho produtivo e improdutivo e nessas expressões a palavra trabalho comparece com um conteúdo distinto não é mais necessariamente a transformação da natureza Assim por exemplo o trabalho intelectual a atividade de controle da classe dominante sobre os trabalhadores não é nem pode ser a transformação da natureza nos meios de produção e de subsistência pois esta é a função social da classe explorada Outro exemplo o trabalho abstrato é o trabalho assalariado que pode ou não transformar a natureza nos meios de produção e de subsistência Esse emprego diferenciado da palavra trabalho por Marx e Engels por vezes gera confusões mas elas são facilmente superadas se nos dermos conta do pro cesso de elaboração teórica desses pensadores apoderaramse criticamente da ciência de seu tempo e ao fazerem isso incorporaram com novos conteúdos as categorias então empregadas pela economia política pela historiografia etc de então Eles se apoderaram das categorias da melhor ciência burguesa e as transformaram ao conferir a elas novos conteúdos ao desvelar as reais funções sociais que exercem na reprodução da sociedade Por isso nas expressões tra balho intelectual trabalho abstrato produtivo e improdutivo etc é preciso ter em mente que eles não se referem sempre e necessariamente ao intercâmbio material com a natureza Tratamos disso com mais vagar em Lessa 2011 e 2012 e também em Lessa 2012a 8 Alienação como tradução de Enfremdung a desumanidade socialmente posta 25 Sergio Lessa de oprimir as pessoas Por isso a propriedade privada as classes so ciais e a violência cotidiana são no dizer de Marx determinações reflexivas uma não existe sem as outras elementos que são de uma mesma totalidade a sociedade de classes Repetimos a passagem da sociedade primitiva à sociedade de classes ocorreu de muitas e variadas formas Sem desconsiderar es sas diferenças que são importantíssimas para a análise de cada modo de produção de cada sociedade etc todas as sociedades de classe se distinguem essencialmente das primitivas porque são fundadas por uma nova modalidade de trabalho o trabalho explo rado alienado Este requer a organização e a aplicação da violência pela classe dominante sobre os trabalhadores e a separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual Em poucas palavras é imprescindível a gênese das classes sociais O instrumento especial criado pela classe dominante para organi zar e aplicar cotidianamente a violência é o Estado Este novo com plexo social que nem em germe existia nas sociedades primitivas é composto pelo Direito as leis escritas os juízes magistrados tortu radores prisões etc pelas forças armadas exército polícia vigilan tes milícias etc a parcela da sociedade que tem legitimidade para usar a violência em nome do Estado isto é das classes dominantes e pela burocracia Os indivíduos que são empregados nesse novo com plexo social são assalariados pela classe dominante e têm a função social de auxiliar na organização e aplicação da violência sem a qual a vigilância e o controle dos trabalhadores não seriam possíveis Sem esse conjunto de assalariados o trabalho alienado não poderia existir Entre a classe dominante e os que produzem o conteúdo material da riqueza Marx 198146 ao transformarem a natureza sempre encontraremos um corpo de assalariados que funciona como auxiliar da classe dominante na exploração dos trabalhadores Em resumo propriedade privada classes sociais exploração do homem pelo homem e Estado são imprescindíveis para a nova for ma de organização da vida social que é a sociedade de classes Podemos agora entrar em nosso tema a família monogâmica 2 A origem da família monogâmica A origem da família monogâmica se situa na transição para a sociedade de classes Para que a resistência contra a exploração seja controlável é fundamental que os escravos servos proletários etc busquem a sua sobrevivência de modo individual não coletivo Era 26 Abaixo a família monogâmica para isso necessária a destruição dos laços primitivos que faziam da sobrevivência de cada indivíduo a condição necessária para a sobre vivência de toda a comunidade Ao mesmo tempo os membros da classe dominante perseguem as suas sobrevivências com o individualismo que caracteriza a pro priedade privada e mesmo quando articulam ações conjuntas para a defesa de seus interesses de classe cada um almeja apenas o enri quecimento pessoal Ninguém quer pagar os custos da alimentação da educação da criação dos filhos dos outros Por isso quando a ex ploração do homem pelo homem se instaura e a concorrência passa a predominar na vida social não mais é possível que a criação e a educação das crianças que a preparação dos alimentos e da mora dia etc permaneçam como atividades coletivas Terão de ser agora atividades privadas que se destacam da vida social tal como o in divíduo agora também passa a ter uma vida privada que se destaca de sua vida coletiva É assim que a família se descola do coletivo e se constitui em núcleo privado essa nova forma de organização de família é a família monogâmica ou família nuclear Sem exceção em todas as sociedades fundadas em uma das mo dalidades de trabalho alienado as sociedades escravista feudal ca pitalista ou asiática isto é em todas as sociedades de classe a explo ração do homem pelo homem impôs a família monogâmica como substituta da antiga família comunal E em todas elas novamente sem nenhuma exceção essa alteração se deu pela conversão de co letivas a privadas das tarefas mais imediatamente relacionadas com a reprodução biológica Ao tratarmos da passagem da sociedade primitiva à sociedade de classes logo acima mencionamos que houve muitas diferenças históricas dependendo do lugar e da época O mesmo ocorre com a constituição da família monogâmica a partir dos escombros das sociedades primitivas Na Ásia entre a China o Japão e a Índia há peculiaridades importantes entre a África e a Europa há enormes descompassos e desigualdades mesmo entre Atenas e Esparta na Grécia clássica há importantes diferenças Também não é nosso objetivo agora discutir essas diferenças apenas nos interessa o que em todos esses distintos processos encontramos em comum as ar ticulações históricas mais universais que estão presentes na gênese e no desenvolvimento da família monogâmica O primeiro traço comum a todos esses processos é o fato de que a destruição das sociedades primitivas e a imposição da exploração do homem pelo homem apenas pôde ocorrer com a aplicação da 27 Sergio Lessa violência É nesse momento histórico que a guerra surge como um complexo social que fará parte da humanidade até os nossos dias Lukács 1981241 e ss Como será da guerra que virão os escra vos e já que a guerra é uma atividade predominantemente mascu lina9 a riqueza que será expropriada dos trabalhadores será então convertida em propriedade privada dos indivíduos masculinos da classe dominante Caberão assim aos homens da classe dominante as atividades fundamentais para a reprodução da sociedade10 acima de tudo a exploração do trabalhador A economia o Direito a po lítica a religião a guerra o comércio as artes a filosofia a ciência a exploração e a conquista de novos territórios surgem já como ati vidades masculinas A vida dos indivíduos masculinos está na nova sociedade diretamente articulada aos destinos coletivos todas as grandes questões sociais tudo o que diz respeito ao destino da classe à história do período estará a cargo dos indivíduos masculi nos serão agora tarefas que cabem aos homens As questões que dizem respeito à totalidade da sociedade ao destino comum serão masculinas as mulheres estarão delas excluídas Isto por um lado Por outro lado sem a reprodução biológica dos indivíduos ne nhuma sociedade poderia existir E como já vimos nas sociedades de classe é impossível que a criação das crianças a preparação dos alimentos da moradia etc continuem como atividades coletivas Nenhum senhor de escravo senhor feudal ou burguês criará ou pa gará a alimentação dos filhos de seus concorrentes do mesmo modo que não cuidam dos filhos dos trabalhadores que exploram Como tais atividades ainda que fundamentais para a vida social não geram propriedade privada elas serão agora exercidas pelas mulhe res enquanto parte da vida privada isto é não coletiva de cada pro 9 Já vimos a razão desse fato como nas sociedades primitivas a quantidade de bebês dependia diretamente da quantidade de mulheres a preservação da vida delas era muito mais importante do que a dos homens Assim na divisão das tarefas as mais perigosas tenderão a ficar sob responsabilidade masculina Des de o início a guerra foi uma atividade predominantemente masculina ainda que não apenas masculina Há relatos e lendas acerca da bravura e ferocidade das mulheres em combate nessa época de transição 10 O que não significa que sejam eles que exercem a categoria fundante de qualquer sociedade isto é o trabalho Sem a atividade da classe dominante nenhuma so ciedade de classes pode existir isto todavia não cancela o fato igualmente in questionável de que os trabalhadores ao transformarem a natureza produzem toda a riqueza social e portanto fundam a sociedade em questão Como vimos no capítulo I ao tratarmos do trabalho alienado é no intercâmbio orgânico com a natureza que se produz toda a riqueza a ser expropriada pela classe dominante qualquer que seja a forma social desta riqueza Marx 198146 28 Abaixo a família monogâmica prietário Caberá aos homens prover suas mulheres estas devem servir aos seus senhores A antiga relação consensual e igualitária é substituída por uma relação de poder Aos indivíduos masculinos cabe o poder da propriedade privada serão eles os maridos Às mu lheres cabem as atividades que não geram a riqueza privada serão esposas ou prostitutas o trabalho doméstico das mulheres perdia agora sua importância comparado ao trabalho produtivo do homem este trabalho passou a ser tudo aquele uma insignificante contribuição Engels 2010204 Na família monogâmica a relação entre os homens e as mulheres entre os pais e os filhos entre as irmãs e os irmãos entre as crian ças de diferentes famílias é inteiramente distinta qualitativamente distinta ontologicamente distinta das relações que encontramos nas sociedades igualitárias primitivas Tal como nas sociedades pri mitivas não encontramos sequer um átomo do Estado das classes sociais da propriedade privada e do trabalho excedente também não encontramos nelas nada que se assemelhe ao marido à esposa e à prostituta As relações primitivas entre os homens e as mulheres entre os adultos e as crianças as formas de parentesco etc por mais distintas ao longo do tempo e entre diferentes civilizações não exibem traço algum das relações de poder11 que são a essência do ca samento monogâmico A entrada na história da família monogâmica representou a gênese de uma nova relação social de um novo com plexo social que é fundado pela passagem do trabalho de coleta ao trabalho alienado explorado Em todos os casos sem exceção12 11 O poder advém da propriedade privada Esta é como vimos a riqueza ex propriada dos trabalhadores e que se volta contra eles sob a forma do poder econômico político e militar dos senhores 12 Há vários estudos muito interessantes a esse respeito Desde os das décadas de 195060 em que Gordon Child Child 1957 ocupa um lugar importante até os mais recentes de Eleanor B Leacock Leacock 2010 29 Sergio Lessa Capítulo III O masculino e o feminino Vimos que a transição da sociedade primitiva para a de classes é também a passagem a um patamar superior mais acelerado de desenvolvimento das forças produtivas A riqueza expropriada dos trabalhadores possibilita que a classe dominante tenha recursos para desenvolver suas atividades econômicas o que com frequência leva ao incremento das forças produtivas Por meio da exploração do homem pelo homem é que a humanidade foi capaz de se elevar do seu estágio primitivo O Parthenon em Atenas a ciência e a filosofia da Grécia clássica que sucederam à Babilônia ao Império Egípcio com as pirâmides e à Esfinge e à magnificência da arte assíria tudo isso para dar lugar depois de Cartago a Roma com suas inigualá veis arquitetura e escultura e ainda depois às catedrais e aos caste los medievais todos esses avanços da humanidade foram possíveis como realizações da sociedade de classes Esse desenvolvimento continuaria ainda mais intensamente com o advento da burguesia É obra histórica dos burgueses o Renascimento Dante Maquia vel Michelangelo Petrarca Boccaccio ao lado de Torricelli Gali leu Giordano Bruno e figuras femininas geniais como Verônica Franco de Veneza ao final da qual Cervantes Shakespeare Bach e Vivaldi explicitaram com suas obrasprimas emoções e sentimen tos que ainda hoje nos encantam Uma segunda explosão entre o sé culo 18 e o início do 19 com o Iluminismo Mozart e Beethoven o desenvolvimento da literatura Stendhal Goethe e a seguir Balzac Zola Flaubert e um pouco mais adiante Tchekhov Dostoiévski e Tolstói Isso tudo sustentado pelas grandes navegações que nos séculos 15 e 16 articularam em um único mercado isto é tornaram participantes de uma mesma história todos os homens do planeta Como se ainda não bastasse a burguesia em seus últimos momen tos de classe revolucionária legou para a humanidade a Revolução 30 Abaixo a família monogâmica Industrial 17761830 e a Revolução Francesa 17891815 Tudo isso e muito mais foi resultado do desenvolvimento sem prece dentes das forças produtivas possibilitado pela passagem da socie dade primitiva à sociedade de classes13 Esse desenvolvimento espetacular todavia apenas foi possível pela divisão da sociedade em classes isto é numa sociedade cuja reprodução requer a destruição de uma parte de seus membros Nenhum maniqueísmo14 é capaz aqui de abarcar a riqueza do problema de que estamos tratando Por serem resultantes do traba lho alienado os avanços históricos não foram menos significativos ou importantes as obras de arte não se tornaram menos belas nem as descobertas científicas menos decisivas O fato de terem na barbárie da exploração do homem pelo homem seu fundamento histórico não diminui a importância desses avanços para a evolução da humanidade Seu caráter bárbaro apenas foi se evidenciar em escala social quando o desenvolvimento das forças produtivas trazido pela Revolução Indus trial tornou a propriedade privada o grande obstáculo ao desenvol vimento humano e então a sociedade de classes exibiu toda a sua barbárie As revoluções de 1848 são o marco do início desse segundo período no qual vivemos a contradição antagônica entre o pleno de senvolvimento humano e o trabalho alienado Lukács 1981a Esse antagonismo entre as relações de produção capitalista e o desenvolvimento da humanidade será examinado no Capítulo VI O que agora nos interessa é assinalar que algo análogo ocorreu com a família monogâmica Por um lado ela representa uma forma especí fica das alienações dos homens mulheres e crianças na organização familiar Por outro lado é o solo histórico que possibilitou o desen volvimento dos indivíduos masculinos e femininos até o que hoje somos com nossas grandezas e misérias Vejamos essa questão em maiores detalhes 1 Ser homem versus ser mulher 13 Não estamos aqui propondo nenhuma linearidade nesse processo Pelo contrá rio a desigualdade no desenvolvimento do gênero humano é uma necessidade ontológica também ela fundada pelo trabalho Lukács em Os princípios onto lógicos fundamentais de Marx 1979 e também em A Reprodução capítulo de sua Ontologia fez um exame muito cuidadoso e esclarecedor desta necessária desigualdade na história e sua relação enquanto fundada com o trabalho 14 Maniqueísmo é a concepção de que o mundo seria composto pelo confronto de duas partes o absolutamente bom e o absolutamente mal sem meiotermo entre eles 31 Sergio Lessa Não há dimensão da personalidade das pessoas que não tenha sido alterada pelo surgimento da família monogâmica Em sua origem a palavra família não significa o ideal mistura de sentimenta lismo e dissensões domésticas do filisteu de nossa época a princípio entre os romanos não se aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus filhos mas so mente aos escravos Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem Nos tempos de Gaio a família id est patrimonium isto é herança era transmitida por testamento A expres são foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher os filhos e certo número de escravos com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles A palavra não é pois mais antiga que o férreo sistema familiar das tribos latinas que nasceu ao introduziremse a agricultura e a escravidão legal depois da ci são entre os gregos e latinos arianos E Marx acrescenta A família moderna encerra em miniatura todos os antagonismos que se desenvolvem mais adiante na sociedade e em seu Estado Engels 201078 itálicos no original A família tal como hoje a conhecemos não surge como resulta do do amor entre os indivíduos Surge como a propriedade patriar cal de tudo o que é doméstico Para começarmos pelo mais básico a substituição do consenso pela dominação na relação entre os homens e as mulheres intro duziu um novo conteúdo no próprio ato sexual De uma relação entre pessoas autônomas porque interdependentes na bela frase de Leacock Leacock 198121 a relação sexual passou a ocorrer en tre maridos e esposas ou entre senhores e prostitutas No primeiro caso a finalidade é um herdeiro que possa perpetuar a acumulação de riqueza da família Esta por sua vez tem seu status na sociedade a partir da propriedade que possui A garantia de que o filho será mes mo do marido é a virgindade da esposa por isso cabe ao primo gênito masculino a herança A virgindade passa a ser imprescindível para a mulher destinada a esposa com o que o desenvolvimento de sua sexualidade fica comprometido pela repressão que acompanha esta situação Ser atraente para o sexo oposto implica para a mu lher destinada à esposa limitar seu desenvolvimento às atividades domésticas locais a cozinhar a bordar etc a suportar com resignação a repressão do desenvolvimento de sua personalidade o que inclui o da sua sexualidade Ao mesmo tempo o fato de os homens serem o polo domi nante não significa que escapem das consequências alienantes do casamento monogâmico Toda alienação é uma relação social e por isso implica a alienação dos dois lados da relação Aos homens cabe agora o desenvolvimento de sua sexualidade dissociada de qualquer 32 Abaixo a família monogâmica relação afetiva a experiência sexual a ser adquirida entre as prostitu tas resulta no rebaixamento do padrão afetivo a um nível animal15 Ele agora deverá ter iniciativa seu desempenho deve correspon der a um dado padrão ele deverá ser dominante na relação Na mes ma proporção em que à mulher é negado o direito ao prazer aos homens é requerida uma volúpia incontrolável As mulheres diz a ideologia patriarcal podem viver sem sexo os homens jamais Essa deformação no desenvolvimento das pessoas é potenciali zada por um fato que já mencionamos mas que ainda não explo ramos suficientemente A divisão social do trabalho impõe a opo sição como inimigos mortais Marx 1979b105 entre o trabalho intelectual e o trabalho manual16 Aos senhores cabem as atividades de controle por meio da violência aos trabalhadores manuais cabe transformar a natureza no conteúdo material da riqueza dos seus opressores Tal oposição como inimigos mortais entre o trabalho manual e o intelectual por sua vez apenas pode ocorrer em uma sociedade na qual aos homens correspondem as atividades relacio nadas com a produção da riqueza social e às mulheres as atividades domésticas privadas diretamente ligadas à reprodução biológica Esta divisão de trabalho entre homens e mulheres tal como a opo sição entre o trabalho intelectual e o manual é manifestação da potência dominante do homem proprietário privado Por isso esta alienação é a manifestação da potência histórica do homem que é proprietário privado membro da classe dominante Com a mulher ocorre precisamente o inverso A sua alienação que a converte em esposa ou prostituta é a negação de sua potên cia histórica o rebaixamento do seu patamar de humanidade Por isso o mesmo processo de alienação será muito mais confortável ao homem que à mulher e é isto a base daquelas ilusões segundo as quais o problema poderia ser superado por um rearranjo da relação da mulher com o homem sem que fosse preciso a superação da sociedade de classes Mais à frente no Capítulo VII voltaremos a 15 Ao tratar do trabalho alienado isto é explorado nos Manuscritos de 1844 comenta Marx que Chegase ao resultado de que o homem o operário já só se sente li vremente ativo nas suas funções animais comer beber e procriar quando muito ainda habitação adorno etc e já só como animal nas suas funções humanas O animal tornase humano e o humano tornase animal Marx 199365 16 No muito discutido segundo parágrafo do Capítulo 14 do livro I de O Capital Marx caracteriza a relação entre o trabalho manual e o intelectual como zum fein dlichen Gegensatz Boa parte das melhores traduções verte o alemão para como inimigos Na tradução ao inglês supervisionada por Engels foi escolhida uma forma mais dura deadly foes inimigos mortais que aqui adotamos 33 Sergio Lessa tratar dessas ilusões Esta divisão de trabalho entre os sexos retirou a mulher da vida coletiva e a isolou no interior do lar As suas relações sociais se limi tam agora aos mais próximos empregados e escravos domésticos filhos esposo Sua razão de viver perdeu a sociedade por horizonte e se resumiu às relações mais imediatas locais A vida coletiva já não mais lhe diz respeito17 A qualidade das relações sociais que as mulheres podem agora estabelecer nem de longe se compara com a das relações dos homens Ser masculino e ser feminino incorporam agora essa nova determinação aos homens cabe pensar os grandes problemas e decidir o destino da humanidade às mulheres está re servado o pobre horizonte de cuidar dos filhos dos alimentos e da casa18 Por essa razão nas sociedades de classe os homens têm sido quase sempre mediações mais apropriadas do que as mulheres para as realizações que marcaram o desenvolvimento humano Não apenas homens e mulheres foram impactados de modo de cisivo pela família monogâmica as crianças também o foram Vós não tendes o menor juízo dizia no século 19 para um francês um membro da tribo MontagnaisNaskapi do Canadá Vocês france ses amam apenas seus próprios filhos mas nós amamos todas as crianças de nossa tribo Leacock 198138 Entre essa situação e a que vivemos hoje na qual todos os adul tos exceto os pais são ameaças à prole e na qual as crianças desde cedo são preparadas para a competição de todos contra todos há evidentemente uma monstruosa diferença Em primeiro lugar as sociedades sem classe possibilitavam mesmo às crianças menores 17 O gineceu o cômodo que em Atenas cabia às mulheres era o único que não tinha aberturas para fora da casa 18 Em Eurípides a mulher é designada como oikurema isto é algo destinado a cuidar da casa a palavra é neutra e além da procriação dos filhos não passava de criada principal para o ateniense O homem tinha seus exercícios ginásticos e suas discussões públicas coisas de que a mulher estava excluída costumava ter escravas à sua disposição e dispunha na época florescente de Atenas de uma prostituição bastante extensa e em todo caso protegida pelo Estado Aliás foi precisamente com base nessa prostituição que se desenvolveram aquelas mu lheres gregas que se destacaram do nível geral da mulher do Mundo Antigo por seu talento e gosto artístico da mesma forma que as espartanas sobressaíram por seu caráter Mas o fato de que para se converter realmente em mulher fos se preciso antes ser hetaira sacerdotisas que em troca de doações ao templo mantinham relações sexuais com os doadores Elas possuíam o poder de veto podendo recusar alguns homens e ter orgasmo o que fazia da relação sexual algo muito especial divino para a época constitui a mais severa condena ção à família ateniense Engels 201086 o texto entre colchetes é nosso SL 34 Abaixo a família monogâmica uma vida coletiva Elas nunca estavam sozinhas crianças brincavam com crianças por todo o dia O desenvolvimento afetivo e motor propiciado pelas brincadeiras e pelo convívio coletivo ainda hoje são evidentes para qualquer um que seja pai ou mãe Com a pas sagem ao casamento monogâmico a vida infantil veio a conhecer um isolamento que é brutalmente inédito Vivem no isolamento da relação com a mãe e mais frequentemente de irmãos mais velhos ou babás Na sociedade brasileira de nossos dias com a entrada nas creches o que significa superar o período de solidão que é a marca dos primeiros anos de vida de uma criança que apenas convive com os pais irmãos e se for o caso babás a explosão de felicidade e o crescimento da personalidade são evidentes Além disso a passagem à sociedade de classes é para as crianças a passagem para a educação baseada na violência Não é sem razão que um jesuíta dedicado à catequese dos MontagnaisNaskapi no Canadá Paulo Le Jeune tenha escrito aos seus superiores no sé culo 17 que era imprescindível separar as crianças das suas tribos pois Os selvagens impedem a instrução das crianças eles não toleram o castigo de suas crianças façam elas o que fizerem eles concedem no máximo apenas uma simples reprimenda E para obter as crianças continua nosso jesuíta o grande obstáculo é o amor excessivo que os selvagens dedicam às suas crianças esses bárbaros não suportam ter suas crianças punidas nem mesmo ralhadas pois não são capazes de negar nada a uma criança choran do Eles levam isto a tal ponto que sob o menor pretexto as retira riam de nós antes que tenham sido educadas Leacock 198146 7 A violência que adentra a relação entre homens e mulheres não poderia ficar de fora da relação dos pais com seus filhos Apanhar passa a ser uma dimensão tão comum na vida infantil quanto o é a concorrência na vida coletiva Há ainda outro aspecto a ser considerado Se as crianças perten cerem às classes dominantes muitas vezes mesmo antes de apren derem a se relacionar com outras crianças convivem com empre gados babás e subalternos de todas as espécies Começa assim a introjeção nas suas personalidades do papel social de ser classe dominante Isoladas de seus pares desde muito cedo as crianças da família monogâmica são mais facilmente educadas para serem esposas prostitutas ou maridos e ainda trabalhadores e traba lhadoras ou parasitas das classes dominantes Sem a vida coletiva de brincadeiras que envolvia a todas as crianças desde muito cedo vamos sendo adestrados para o papel feminino e o papel masculino para o papel de membros da classe dominante ou dos trabalhadores 35 Sergio Lessa E também por isso portanto não apenas a família monogâmica é imprescindível à sociedade de classes 2 Esposas prostitutas e maridos Todos os processos alienantes que brotam da propriedade pri vada têm em comum o fato de obrigar os indivíduos a reagirem em face deles eles de algum modo19 O impacto sobre os indivíduos é sempre brutal mesmo quando ainda são historicamente insuperá veis como ocorria por exemplo com os complexos do Estado das classes sociais da propriedade privada e da família monogâmi ca entre a Revolução Neolítica e a Revolução Industrial Isso vale tanto para os dominadores como para os dominados tanto para os maridos como para as esposas e as prostitutas Toda alienação do tipo de que estamos tratando isto é fundada na exploração do homem pelo homem20 é acompanhada ao longo da história da reação dos que são alienados com todas as mediações cabíveis caso a caso indivíduo a indivíduo Do mesmo modo como os escravos resistiram à exploração ainda que não contassem com as condições históricas para superar revolucionariamente o modo de produção escravista as esposas e as prostitutas também reagiram por vezes se rebelaram contra a degradação da função social da mulher Todavia enquanto os es 19 Alcântara N 2005 tem o estudo mais detalhado da categoria da alienação tal como investigada por Lukács em sua Ontologia Em breve teremos um livro de sua autoria Lukács em várias passagens discutiu aspectos decisivos desse problema como por exemplo Lukács 1981 5902 5612 5699 578 608 75861 7612 764 7679 7889 78890 e 8024 20 Há aqui uma viva polêmica Alguns estudiosos de Marx entre eles vários lukacsianos José Paulo Netto Ivo Tonet etc defendem que a alienação é um fenômeno específico da sociedade de classes vinculado à propriedade privada e portanto que não teria havido alienações antes da propriedade nem as tería mos no comunismo Pareceme que a argumentação de Lukács na Ontologia é mais pertinente para Marx as alienações seriam as desumanidades socialmente postas ou seja os obstáculos criados pelos próprios seres humanos ao seu desenvolvimento posterior Ainda que os fenômenos alienantes tenham adqui rido uma nova qualidade com a entrada na história da exploração do homem pelo homem nem todos os obstáculos que o ser humano cria ao seu próprio desenvolvimento têm seu fundamento na propriedade privada Nesse sentido haveria alienações antes e depois da propriedade privada Longamente estudada por Lukács no capítulo final da Ontologia a religião a alienação que é a alma do mundo sem alma Marx 2005 é um exemplo de processos alienantes que an tecedem a exploração do homem pelo homem Mas como dissemos estamos aqui em uma polêmica em andamento 36 Abaixo a família monogâmica cravos por serem uma classe social e realizarem a função fundante da sociedade o trabalho foram capazes de revoltas e rebeliões as mulheres reduzidas a prestar serviços a seus senhores contavam com meios muito mais limitados de reação Lendas como as do Rei Artur e a Távola Redonda das Amazonas situações históricas como a presença das mulheres na vida social de Esparta e Roma peças de teatro como a Revolta de Lisístrata ou a greve do sexo Aristófanes são indicações de que a retirada das mulheres da vida coletiva não se deu nem voluntariamente nem de forma tranquila A literatura científica contemporânea relata casos na América do Norte na Groenlândia na América Latina na África e na Ásia nos quais a degradação da função da mulher na vida social apenas pôde ocorrer com a corre lativa degradação da totalidade da vida coletiva das tribos primitivas pela introdução do comércio pelos europeus Leacock1981129 Uma vez historicamente estabelecida a superioridade das socie dades de classe ante o modo de produção primitivo o espaço de reação e resistência para as mulheres diminuiu mas jamais desapa receu por completo E ao longo dos séculos que unem Penélope na Grécia tecendo seu infindável manto para não se submeter às leis vigentes até Julieta de Romeu na Inglaterra do século 17 passando por Heloísa de Abelardo no século 12 as mulheres foram resistindo como foi possível Uma das formas mais universais dessa resistência foi a conver são dos lares em territórios nos quais a mulher pode afirmar a sua identidade o que na sociedade de classe equivale a afirmar o seu poder O senhor deve ser recebido no seu lar com toda a pompa e circunstância e por essa mesma razão a administração domés tica deveria ficar aos cuidados de uma esposa que a fim de evitar exaurir seu senhor chama para si parte do poder patriarcal para a organização da vida familiar O poder tirânico do provedor do lar tem sua contrapartida no poder tirânico da esposa no espaço do méstico sobre os serviçais e sobre as crianças o poder patriarcal se afirma pela mediação da esposa Se considerada de uma longa perspectiva histórica a tirania feminina no lar é exercida em nome do poder patriarcal poder esse que possibilita ao patriarca receber da família aquilo que lhe cabe enquanto guardião da propriedade o temeroso respeito dos filhos e dos serviçais O ser esposa vem acompanhado do lar um território feminino desde que esse fe minino seja também a submissão da mulher ao patriarca E por tal via uma vez empossada desse poder delegado a esposa pode servir de contrapeso ao poder do senhor as esposas ocupam o posto in termediário entre o pai os criados e as crianças A riqueza afetiva 37 Sergio Lessa da relação dos filhos com os pais é rebaixada na mesma proporção em que é hipertrofiada a relação das esposas com as crianças Com a alienação de todos os envolvidos Aos maridos por sua vez cabe a alienação simétrica Encarrega dos das tarefas que dizem respeito à reprodução da riqueza material têm em seus lares mais uma das manifestações do poder que brota da propriedade privada Recebem dos filhos e das esposas apenas aquilo que a sua propriedade privada lhes possibilita receber respeito ao po der e não à pessoa temor e não solidariedade Sua casa se torna um terreno inóspito e estranho21 eles lá habitam não pelas relações pes soais que estabeleceram ao longo da vida mas predominantemente pelas relações que a esposa e os filhos estabelecem com a propriedade privada da qual são guardiões Sua capacidade de desenvolverse afeti vamente se reduz enormemente ser marido ser homem ser pai passa a ser quase sinônimo de ser bruto selvagem insensível É assim que ao longo dos séculos maridos e esposas senhores e prostitutas pais e mães filhos e filhas vão se formando enquanto os indivíduos masculinos e femininos que hoje conhecemos A pa ternidade ou maternidade ser filho ou filha fazem parte agora de um limitado círculo de relações sociais restrito ao vínculo familiar fundado pela propriedade privada do indivíduo masculino Excluí das da participação na vida social com sua existência reduzida ao estreito horizonte do lar patriarcal as mulheres vão se convertendo no feminino que predominou ao longo de milênios pessoas depen dentes débeis frágeis ignorantes bonitas para os homens aos quais devem servir dóceis compreensivas Enfim pessoas moldadas para a vida submissa e subalterna que lhes cabe na sociedade de classes Dos maridos é requerido o inverso dedicados ao exercício do po der advindo da propriedade privada personificam as qualidades indi viduais necessárias para exercer o papel de guardiões das mercadorias 21 Por vezes em nosso país encontramos a tendência a traduzirse o termo que Marx e Lukács empregam para nomear a alienação Entfremdung por estra nhamento O equívoco fundamental dessa tradução é sua raiz hegeliana o estranhamento apenas pode ser um estado sendo uma sensação que necessita da mediação da consciência A alienação para Marx e Lukács é uma relação so cial objetiva entre os humanos relação na qual o indivíduo pode se encontrar estranhado ou aconchegado Não é rara a situação em que o indivíduo se encontra perfeitamente confortável subjetivamente na relação com os proces sos alienantes Por isso em se tratando de Marx e Lukács é mais adequada a tradução de Entfremdung por alienação Isto para dizer que aqui nesta passagem do texto nos referimos não à alienação mas ao fato de que o patriarca se sente se percebe uma figura estranha no lar 38 Abaixo a família monogâmica Devem ser bravos inteligentes corajosos destemidos individualis tas mesquinhos egoístas cruéis devem saber se fazer obedecer e exercer a violência São os senhores que dão e recebem ordens e apli cam a violência São machos Filhos maridos e esposas estão agora encerrados em um círculo de ferro de relações privadas que apenas pode se manter pela violência que é a propriedade privada Émile Zola com a palavra Vejamos a pequena Marie e o pequeno Pierre Até os seis ou sete anos dei xamnos brincar juntos Suas mães são amigas eles se tratam com intimidade trocam palmadas fraternais entre si rolam pelos cantos sem qualquer ver gonha Mas aos sete anos a sociedade separaos e toma conta deles Pierre internado num colégio onde se esforçam para encherlhe o crânio com o re sumo de todos os conhecimentos humanos mais tarde ingressa em escolas especiais escolhe uma carreira tornase um homem Entregue a si mesmo largado entre o bem e o mal durante esse longo aprendizado da existência ele bordejou as vilezas provou dores e alegrias teve sua experiência das coisas e dos homens Marie ao contrário passou todo esse tempo enclausurada no apartamento de sua mãe ensinaramlhe o que uma moça bemeducada deve saber a literatura e a história expurgadas a geografia a aritmética o catecismo além disso ela sabe tocar piano dançar desenhar paisagens com dois lápis Assim Marie ignora o mundo que viu somente pela janela e mesmo assim fecharamlhe a janela quando a vida passava barulhenta demais pela rua Ja mais se arriscou sozinha pela calçada Guardaramna cuidadosamente qual uma planta de estufa administrandolhe o ar e o dia desenvolvendoa num meio artificial longe de todo contato E agora imagino que uns dez ou doze anos mais tarde Pierre e Marie voltam a se encontrar Tornaramse estranhos o reencontro é fatalmente cheio de constrangimentos Já não se tratam com intimidade não se empurram mais nos cantos para rir Ela ruborizada per manece inquieta diante do desconhecido que ele traz consigo Ele entre os dois sente a torrente da vida as verdades cruéis das quais não ousa falar alto Que poderiam dizer um ao outro Possuem uma língua diferente não são mais criaturas semelhantes Estão reduzidos à banalidade das conversas comuns cada um se mantendo na defensiva quase inimigos já mentindo um ao outro Claro não pretendo que nossos filhos e nossas filhas devam ser criados juntos como as ervas selvagens de nossos jardins A questão desta dupla educação é grande demais para um simples observador Contentome em dizer o que se passa nossos filhos sabem tudo nossas filhas não sabem nada Um dos meus amigos me contou várias vezes a estranha sensação que experimentou em sua juventude ao sentir pouco a pouco que suas irmãs iam se tornando estranhas para ele Quando voltava do colégio a cada ano sentia o fosso mais profundo a frieza cada vez maior Um dia enfim não tinha mais nada para dizer a elas E depois de abraçálas com todo afeto só lhe restava pegar seu chapéu e ir embo ra O que acontecerá então no caso bem mais importante do casamento Ai os dois mundos se encontram num choque inevitável e o embate ameaça sempre vergar a mulher ou o homem Pierre esposa Marie sem poder conhecêla sem poder se fazer conhecer por ela pois não se permite uma tentativa mútua A família da jovem noiva em geral estava feliz por casála finalmente Entregaa ao noivo pedindolhe para reparar que ela está sendo entregue em bom estado 39 Sergio Lessa intacta tal como deve ser uma noiva Agora o homem irá cuidar de sua mu lher E eis Marie atirada bruscamente ao amor à vida a segredos escondidos há tanto tempo De um minuto para o outro o desconhecido se revela Até as melhores esposas guardam às vezes um longo abalo Mas o pior é que o antagonismo das duas educações persiste Se o marido não refaz sua mulher a sua imagem ela permanecerá para sempre uma estranha para ele com suas crenças a inclinação de sua natureza a estupidez incurável de sua instrução Que estranho sistema dividir a humanidade em dois campos os homens de um lado as mulheres do outro assim depois de ter armado os dois campos um contra o outro unilos dizendolhes Vivam em paz Zola 19981215 Hoje a situação não é idêntica à descrita por Zola Todavia ainda em nossos dias ao chegarem à idade adulta as pessoas masculinas e femininas se encontram de tal forma marcada pelos processos alienantes que apenas em parte estamos descrevendo que a re lação mais íntima entre elas o amor individual sexuado Engels se expressa pelo ato de rendição da mulher que é por sua vez possuída pelo homem Mesmo a relação afetiva mais íntima ter mina marcada indelevelmente pela concorrência pela propriedade privada e como poderia ser diferente A relação do senhor com a prostituta é uma manifestação do poder da propriedade privada ainda mais evidente e por isso pode mos economizar algumas linhas Apenas assinalaremos que a prosti tuição é uma decorrência tão necessária do casamento monogâmico quanto a esposa são apenas mediações diferentes para a afirmação do mesmo poder patriarcal que brota da propriedade privada A monogamia no sentido antropológico de se possuir apenas um parceiro sexual vale portanto apenas para as esposas A existência da escravidão junto à monogamia a presença de jovens e belas cati vas que pertencem de corpo e alma ao homem é o que imprime desde a origem um caráter específico à monogamia que é monogamia só para a mulher e não para o homem E na atualidade conservase esse caráter Engels 201084 A família monogâmica se constitui portanto por um homem e uma ou várias mulheres em uma relação de opressão nem con sensual nem autônoma A violência por mais que seja condenada e condenável é inevitável em aspectos decisivos por vezes na totali dade da relação o outro se converte em obstáculo ao pleno desen volvimento afetivo de cada um já que personaliza e encarna uma relação que é sempre e necessariamente alienada Não é mero acaso que a violência no casamento seja algo tão frequente Vandana Saraswati is an internationally recognized yoga teacher spiritual guide and author who has been teaching yoga since 1998 She has a deep knowledge of yogic philosophy and the science of anatomy and physiology Having studied with master yoga teachers in India and abroad Vandana has developed a unique style of authentic yoga that combines the wisdom of the ancient teachings with the science of modern medicine resulting in a practice and teaching methodology that is practical for todays lifestyle Parte II A crise da família monogâmica Yoganis chanting yoga and meditation trainings have been recognised around the globe and regularly support students and teachers with their own practices Yoganis deep teachings come from decades of experience and a blending of multiple yogic traditions supporting practitioners physical and mental health and spiritual growth His courses and workshops cover everything from beginner yoga practices to advanced breathwork and meditation techniques 43 Sergio Lessa Capítulo IV O desenvolvimento da humanidade Vimos que a família monogâmica é a organização familiar pecu liar às sociedades de classe é a expressão da propriedade privada nas relações familiares Por um longo período desde a Revolução Neo lítica até a Revolução Industrial tanto a sociedade de classes como a família monogâmica bem como o Estado e a propriedade priva da foram as mediações adequadas ao desenvolvimento acelerado das forças produtivas Vimos ainda como a família monogâmica foi importante na configuração das individualidades ao contribuir decisivamente para que nos tornássemos as pessoas masculinas e femininas que hoje somos Vamos examinar agora como e por que a família monogâmica entrou em uma crise insuperável e com ela como o que somos hoje enquanto pessoas masculinas e femininas está em contradição com nossas necessidades e possibilidades históricas Considerado em sua totalidade portanto desconsiderando mo mentos históricos e particularidades muito importantes o desen volvimento histórico da humanidade apresenta três grandes tendên cias Lukács 1981 em especial no capítulo A reprodução A primeira delas é que o desenvolvimento das capacidades hu manas em retirar da natureza o que necessita significa que cada vez mais a humanidade precisa dedicar menos horas de trabalho para produzir os seus meios de produção e de subsistência Em outras palavras tendencialmente uma parte cada vez menor dos indivídu os se ocupará da transformação da natureza com o que são libera das porções cada vez maiores de força de trabalho e de indivíduos para realizar outras atividades que não transformam a natureza Este é o fundamento último da gênese e desenvolvimento da alie nada divisão social do trabalho que lembremos por se fundar na 44 Abaixo a família monogâmica exploração do homem pelo homem é muito diferente da divisão de tarefas que existia nas sociedades primitivas sem classes e que haverá no comunismo se lá chegarmos O fato de o intercâmbio com a natureza ocupar uma posição cada vez menor da humanida de significa apenas que o trabalho está se tornando cada vez mais produtivo e não que o trabalho está deixando de ser a categoria fundante da sociedade A segunda delas é que com o desenvolvimento das forças pro dutivas os eventos naturais exercem uma interferência menor no desenvolvimento da humanidade A sobrevivência da humanidade depende da sua reprodução biológica todavia esta tende a incorpo rar de modo crescente determinações sociais Uma grande seca ou um grande incêndio que na sociedade primitiva poderiam significar o desaparecimento de um bando ou de uma civilização hoje em dia não causam maiores perturbações na economia mundial A natureza e a reprodução biológica permanecerão para sempre a base natural de qualquer sociedade todavia a interferência que tal base exerce no desenvolvimento social tende a ser cada vez menor Mesmo a destruição do planeta pelo capitalismo a possibilidade de uma enor me crise ecológica é um terrível pois alienado exemplo de como as barreiras naturais tendem a ser afastadas com o aumento das ca pacidades humanas isto é com o desenvolvimento das forças pro dutivas A segunda das três grandes tendências do desenvolvimento da humanidade é portanto o afastamento das barreiras naturais nunca o desaparecimento ou a eliminação da natureza A terceira e última grande tendência do desenvolvimento huma no é uma aparente mas apenas aparente contradição Quando as sociedades eram mais primitivas quando as relações sociais eram menos complexas os indivíduos eram mais parecidos entre si A humanidade vivia em pequenos bandos e tribos que raramente esta beleciam contatos O que ocorria na China não afetava a África ou a América Sociedades internamente mais homogêneas correspon diam a um momento histórico no qual a humanidade era composta por agrupamento que mantinham pouco ou nenhum contato entre si o isolamento das civilizações correspondia a um momento mais primitivo da vida humana no qual as sociedades eram internamente muito mais homogêneas O desenvolvimento da humanidade foi revertendo essa situação O desenvolvimento das forças produtivas possibilitou que uma par cela crescente da população fosse deslocada da transformação da natureza para outras atividades impulsionando a divisão social do trabalho As profissões foram se especializando as atividades foram 45 Sergio Lessa se diferenciando surgiram novos complexos sociais como as classes o Estado a família monogâmica etc As sociedades vão se tornan do cada vez maiores cada vez mais heterogêneas cada vez mais complexas Para que possam viver em uma sociedade cada vez mais complexa os indivíduos devem ser capazes de um comportamento também cada vez mais evoluído Precisam de um vocabulário mais rico que corresponda ao conhecimento maior do mundo em que vivem precisam ser capazes de se relacionar com as pessoas em situações a cada dia mais heterogêneas Os indivíduos foram se dife renciando enquanto marceneiros oleiros padeiros maridos espo sas prostitutas membros da classe dominante versus trabalhadores juízes poetas literatos filósofos políticos policiais etc Numa so ciedade mais complexa e heterogênea os indivíduos também devem se tornar cada vez mais complexos22 Esse processo de desenvolvimento das sociedades e dos indiví duos conduz a um intercâmbio cada vez maior entre as sociedades Hoje vivemos em um mundo unificado por uma mesma economia por um mesmo mercado somos todos participantes de uma mesma história universal De um gênero biológico mas que não tinha ainda rompido o isolamento das tribos e civilizações entre si passamos a um autêntico gênero no sentido social da palavra Criamos relações sociais tão abrangentes e universais que hoje todos os humanos par ticipam de uma mesma história Sinal inequívoco desse fato é que os problemas decisivos que a humanidade hoje enfrenta apenas podem ser resolvidos em escala mundial planetária Aqui a aparente contradição a que nos referíamos sociedades primitivas internamente muito mais homogêneas correspondiam a uma humanidade muito mais heterogênea os grupos e civilizações pouca ou nenhuma interação exerciam entre si Por outro lado so ciedades internamente mais heterogêneas complexas apenas podem existir com a unificação de toda a humanidade em um uma mesma história universal Sociedades mais primitivas e homogêneas signi ficam uma humanidade que ainda deve se unificar historicamente sociedades internamente mais heterogêneas e indivíduos mais com plexos correspondem ao momento em que o gênero humano se unificou socialmente em um mesmo e único processo histórico Temos portanto três tendências históricas de fundo 1 o de senvolvimento das forças produtivas requer cada vez mais menos 22 Há um belo romance de fundo histórico que retrata essas transformações na préhistória da Escócia O povo das Montanhas Negras de Raymond Williams 1991 Ver também Lukács 1981 em especial o capítulo A reprodução 46 Abaixo a família monogâmica trabalho para a produção dos meios de produção e de subsistência 2 a menor interferência dos eventos naturais na história isto é o afastamento das barreiras naturais à medida que se desenvolvem as forças produtivas e 3 de sociedades pequenas e homogêneas evoluímos para relações sociais capazes de articular os destinos de todos os indivíduos em uma mesma e única história universal o que apenas é possível pelo desenvolvimento das forças produtivas e do correspondente desenvolvimento social que tornam as forma ções sociais cada vez mais heterogêneas e seus indivíduos cada vez mais complexos Essas três tendências históricas serão decisivas para compreen dermos como se articulou ao longo da história a atual crise da famí lia monogâmica 1 O individualismo progressista23 Predomina hoje a ideia de que enquanto pessoas seríamos com postos por dois compartimentos estanques De um lado teríamos o lado racional frio calculista e do outro as emoções as sensações os sentimentos Nada mais falso A aparência de verdade dessas teses equivoca das advém do fato de que a nossa sociedade ao oprimir o humano em nome do capital contrapõe a racionalidade deste último às au tênticas necessidades dos humanos Querendo ou não desejando ou não devemos seguir a razão burguesa cuja pedra de toque é a reprodução do capital devemos fazer das nossas vidas o que é ade quado a uma vida cotidiana que tem no dinheiro sua mediação mais universal e a isso com frequência nos submetemos com um ele vado sofrimento subjetivo É isso fundamentalmente24 que produz a ilusão de um abismo entre razão as demandas sociais e emoção as necessidades autênticas dos humanos De fato na vida na história esse a bismo não existe A individualidade que pensa é a mesma individualidade que sente Raciocínio e emoção razão e sen 23 Leo Kofler 1997 caracteriza os primeiros momentos do absolutismo moder no que servia de avanço para o capitalismo nascente como absolutismo pro gressista para diferenciar do papel reacionário do absolutismo nos séculos seguintes Estamos aqui ao tratarmos do individualismo adotando essa carac terização na esperança de que ela nos auxilie na exposição da mudança histórica do papel do individualismo burguês desde a sua origem até os nossos dias 24 Pois aqui com outras mediações também operam os complexos alienantes que se relacionam à cisão entre citoyen e bourgeois que veremos no item 1 do Capítulo VI 47 Sergio Lessa timento são dimensões da mesma pessoa Nossos raciocínios são fontes de emoção tal como os sentimentos provocam raciocínios Processamos nossas emoções também ao nomeálas e quando as elaborarmos racionalmente Entre razão e emoção há muito mais conexões racionais e afetivas do que o mito da dicotomia pensa mentoemoção possibilita perceber25 Para a análise do casamento monogâmico é importante o fato de que a evolução das capacidades humanas como resultado do desen volvimento das forças produtivas é o desenvolvimento também da sensibilidade da capacidade sensível dos indivíduos O afastamento das barreiras naturais o desenvolvimento humano a patamares su periores da sociabilidade não é como dizem a maioria das religiões e quase todas as filosofias ide alistas um simples desenvolvimento das assim ditas faculdades superiores dos homens o pensamento etc em prejuízo da inferior sensibilidade mas ao contrário deve se expressar no conjunto do complexo do ser do homem e portanto também na sensibilidade Lukács 198157326 Já os primeiros momentos do capitalismo possibilitaram um de senvolvimento tão acelerado das forças produtivas e abriram tantas novas possibilidades ao desenvolvimento social que acarretaram riquíssimas repercussões no desenvolvimento da sensibilidade hu mana Na arte a presença das novas emoções explodiu a perspec tiva na pintura Da Vinci Rafael e Rembrandt em seguida e séculos depois Van Gogh e Monet as novas notações musicais de Bach que com Vivaldi impulsionaram um movimento ascendente que explodiu com Mozart e Beethoven na passagem ao capitalismo desenvolvido a forma romance apropriada para cantar a epopeia burguesa Lukács 1981b evolui de Cervantes a Tolstói Dostoi évski e Thomas Mann passando por Stendhal Balzac Flaubert 25 A causa mais profunda desse caráter unitário das pessoas reside no fato de que o mundo é uma totalidade Para agirmos nesse mundo de tal modo a desenvolver ao fim e ao cabo as forças produtivas é preciso que haja uma continuidade en tre nossos atos para que predominantemente o alcançado por um ato não seja destruído pelo ato subsequente E para isso é indispensável que as pessoas in corporem em suas ações pelas mais variadas mediações a lógica do próprio mundo A unitariedade última do mundo é a causa fundante da unitariedade última da personalidade humana Lukács discute essa questão em A reprodu ção capítulo de sua Ontologia Cf Lessa 1995 e 2006 26 Lukács em A reprodução tratou dessas questões em várias passagens Lukács 1981570 por exemplo E em nosso país há uma pequena porém rica bibliogra fia disponível Costa 2007 Moraes 2007 e 2008 Duarte 1993 Silveira 1989 48 Abaixo a família monogâmica Zola Edith Wharton Machado de Assis etc A humanidade passa a ouvir o que não escutava antes a enxergar o que não via antes Ou seja adquire a capacidade de sentir o que não podia sentir no passa do pelo mesmo processo histórico mediante o qual pode pensar e raciocinar sobre o que não podia antes No preciso sentido de que A formação Bildung dos cinco sen tidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje Marx 199398 as novas possibilidades históricas trazidas pela sociedade burguesa abriram horizontes inéditos para o desenvolvimento hu mano A produção de mercadorias o mercado mundial os Estados Nacionais etc romperam vários limites que as formações préca pitalistas impunham à humanidade Para o que aqui nos interessa o casamento monogâmico um novo horizonte se abriu ao de senvolvimento do indivíduo pela profunda mudança na sua relação com a comunidade No escravismo e no feudalismo a propriedade privada do indiví duo apenas existia e se reproduzia como parte do desenvolvimento da comunidade imediata da qual se era membro e por isso a comu nidade era mediação imediata e direta da existência do indivíduo Sócrates nem sequer tinha sobrenome era Sócrates de Atenas A vida individual mantinha uma relação de dependência para com a vida coletiva No capitalismo essa relação será subvertida Como a nova forma de propriedade privada o capital vale aproximadamente o mesmo em qualquer parte do planeta a identidade social do indivíduo está agora na sua carteira ou para o trabalhador na falta dela Um ban queiro como a casa Rothschild por exemplo pode deixar Portugal para a Holanda em 1506 depois migrar para Londres quando esta se tornar centro do capitalismo mundial e bem depois já no século 20 deslocarse para Nova Iorque A propriedade privada burgue sa o capital diferentemente da propriedade privada feudal ou da escravista não mais depende de sua conexão direta imediata com a comunidade para se reproduzir O indivíduo burguês pode até mesmo fazer da derrocada do seu país ou de sua comunidade um bom negócio Em uma situação inteiramente diversa da do passado o burguês tem por sua pátria o mercado mundial e se converte em cidadão do mundo essa é a base social da ilusão de que sua identidade reside em si mesmo e por extensão de que o indivíduo é fundante da sociabilidade As necessidades de cada indivíduo passam a ser mais legítimas verdadeiras e autênticas do que as necessidades coletivas 49 Sergio Lessa A individualidade está se libertando dos constrangimentos que a limitaram durante milênios Explicitase com toda sua potência his tórica o individualismo burguês de Descartes a Kant de Locke a Rousseau de Adam Smith a Hegel ainda que neste último tenha mos avanços significativos27 Uma mudança tão profunda necessariamente é repleta de avan ços e recuos o que torna qualquer generalização muito problemá tica Ainda assim não seria uma completa impropriedade afirmar que no século 17 os europeus gastavam mais tempo e recursos em atividades antes inexistentes ou quase inexistentes O teatro se tor nou uma atividade econômica lucrativa o Teatro Globe de Shakes peare é inaugurado em 1599 A imprensa se desenvolveu com o crescente mercado literário A música ganhou uma nova dimensão com o violino na passagem do século 16 ao 17 o primeiro ins trumento a rivalizar em beleza com a voz humana O crescimento das necessidades afetivas humanas estimulou a expansão das artes Algo análogo ocorreu com as ciências e a filosofia principalmente a filosofia política O seu público aumentava à medida que as novas possibilidades históricas as revoluções burguesas iam se fazen do mais concretas nos impasses e contradições da vida cotidiana A dita opinião pública fez sua entrada na vida social A economia política aos poucos desvelava os segredos do capital para os pró prios burgueses e as leis de mercado iam deixando de ser misterio sas apesar de não perderem por isso sua aparente inevitabilidade A ruptura da submissão direta do indivíduo à sua comunidade realizada pelo capitalismo nascente foi um gigantesco avanço na história do gênero humano Pela primeira vez os indivíduos aden travam na reprodução social como portadores de necessidades e possibilidades próprias portanto como uma força ativa da his tória e assim o eram reconhecidos em escala social Algo muito diverso do indivíduo que nos modos de produção précapitalistas sofriapadecia passivamente uma história a ele imposta pelos deuses ou pelo destino Maquiavel em O Príncipe referese explicitamente às circunstâncias e ao poder ativo do indivíduo de aproveitálas ou não Vico 16681744 reconhece que a diferença entre a natureza e a história humana é que fizemos a última e não a primeira A en 27 O texto mais interessante é aqui o único capítulo de sua Ontologia que Lukács deixou pronto para publicação A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel Lukács 1978 Textos também fundamentais são Machperson 1970 e Kofler 1997 Um livro de Agnes Heller muito citado no passado hoje já não nos parece assim tão interessante El hombre del Renacimiento 1980 50 Abaixo a família monogâmica trada do indivíduo na história foi uma enorme e gigantesca obra da burguesia Veremos mais à frente que esse avanço possui a marca de sua gênese surge e se desenvolve como parte do capitalismo E quando a burguesia conquistar o poder e o capitalismo adentrar na sua forma madura esse mesmo individualismo passará a cumprir outro papel histórico revelando toda a sua debilidade ao isolar os indivíduos uns dos outros o individualismo burguês termina ne gando por outras vias o poder de os indivíduos fazerem a história Convertese então de progressista em reacionário Mas isso nós veremos um pouco adiante Interessanos por ora explorar como a fase progressista do individualismo burguês influenciou o desenvol vimento do casamento monogâmico em particular a evolução do feminino e do masculino que somos hoje 51 Sergio Lessa Capítulo V O amor individual sexuado 1 Heloísa e Julieta Até ao redor do século 17 todos os grandes amores não eram grandes amores O amor de Páris e Helena era tão pouco pessoal e tão social que Atenas e Troia foram à guerra Seria hoje sequer ima ginável a guerra entre nações pelo amor de dois de seus cidadãos Agostinho não titubeia em abandonar pelo emprego de funcionário público em Hippo o sentimento que tem por sua concubina com a qual conviveu por 15 anos e cujo nome nem sequer é conhecido Brown 1969 Em Tristão e Isolda o amor é decorrente de poções mágicas e de circunstâncias sociais ainda não explicitado plenamen te Com Heloísa e Abelardo nos defrontamos com o fato de que não se ama na Idade Média28 Dulcineia e o amor que a ela dedica Qui xote são tão impossíveis quanto a grandeza do cavaleiro andante em uma Espanha dominada pela mediocridade dos Torquemada29 Em todos esses casos o desenrolar natural da necessidade afetiva foi a 28 Tristão se apaixona ao cair na artimanha armada por Isolda e tomar uma poção mágica ainda que tenhamos o papel ativo da mulher Isolda escolhe Tristão foi Gorete Maria da Escola Nacional Florestan Fernandes quem nos chamou atenção para este aspecto estamos longe ainda do amor dos nossos dias Abe lardo não ama entregase à luxúria Heloísa é tomada pela paixão Pela mediação da luxúria Abelardo toma Heloísa que envolta pela paixão se en trega Se a belíssima análise de Etienne Gilson estiver correta muito mais que Abelardo será Heloísa quem manifestou o germe do que depois de alguns séculos virá a ser socialmente reconhecido como o amor individual sexuado na definição de Engels o amor como em Romeu e Julieta 29 Torquemada 14201498 foi o mais famoso e terrível torturador da Inquisição espanhola 52 Abaixo a família monogâmica impossibilidade de sua realização os vínculos comunitários locais Marx précapitalistas atuavam ainda com tal intensidade que tais necessidades afetivas não podiam predominar na vida das pesso as Se e quando tais necessidades compareciam o faziam de modo germinal e não podiam se desenvolver porque não contavam com as imprescindíveis mediações históricas Não possuíam legitimidade social nem eram vividas pelos indivíduos como elementos funda mentais de suas existências e como no caso de Heloísa se são vividas como demandas fundamentais apenas podem se expressar por relações sociais que são sua negação cabal a entrada de Heloísa para o convento em Argenteuil Romeu e Julieta traz a marca da virada Não porque nesta peça tenhamos o hoje tão frequente happy end Demorará quase 500 anos e dependerá de mais de um século da decadência ideológica da burguesia Lukács 1981a para que a autêntica substância huma na da tragédia venha a ser substituída pela banalidade irrisória do final feliz hollywoodiano Mas porque pela primeira vez é afirmada e reconhecida em escala social a necessidade afetiva dos indivíduos como algo existencialmente fundamental Melhor morrer que não realizar o amor Romeu e Julieta importante detalhe não sozinhos mas com a ajuda do Frei Lourenço conspiram contra a opressão das relações familiares contra a tradição e os costumes Em tudo opostos a Sócrates o ateniense que não hesitou em sacrificar sua vida pela comunidade Romeu e Julieta traem todos os seus laços sociais em nome do amor que vivem E são os heróis da trama Nosso amor sexual difere essencialmente do simples desejo sexual do eros dos antigos Em primeiro lugar porque supõe reciprocidade no ser amado igua lando nesse particular a mulher e o homem ao passo que no eros antigo se fica longe de consultála sempre Em segundo lugar o amor sexual atinge um grau de intensidade e de duração que transforma em grande desventura talvez a maior de todas para os amantes a falta de relações íntimas ou a separação para que se possuam não recuam diante de coisa alguma e arriscam mesmo suas vidas o que não acontecia na Antiguidade senão em caso de adultério E por fim surge um novo critério moral para julgar as relações sexuais Já não se pergunta apenas São legítimas ou ilegítimas perguntase também São filhas do amor e de um afeto recíproco Engels 2010101 O amor individual sexuado de que fala Engels faz sua entrada ma jestosa na história pelo palco do Theatre em Shoreditch30 Os humanos descobrem que a relação afetiva pode ter uma dimensão uma riqueza 30 Foi nesse teatro construído fora da jurisdição da Prefeitura de Londres para escapar dos seus regulamentos que estreou Romeu e Julieta 53 Sergio Lessa uma intensidade um prazer uma densidade uma capacidade de abar car toda a existência que a faz de modo inédito na história um dos elementos imprescindíveis da vida individual A epopeia burguesa cantada na forma romance que então está surgindo terá na necessi dade pelo amor sexuado para continuarmos com Engels um dos seus elementos fundamentais A dimensão amorosa fará a partir de agora parte da vida humana quase esse quase é importante como se uma existência carente de amor não fosse digna de ser vivida Qual grande obra literária teatral qual grande ópera pode abrir mão dessa nova dimensão da existência Como seria possível os indi víduos se reconhecerem nas obras de arte se elas ignorassem a gran de motivação afetiva que se apoderou dos europeus naquela quadra histórica Como fazer uma biografia sem ao menos mencionar a vida afetivoamorosa de seu biografado Goethe Balzac Flaubert Zola Jane Austen Ibsen e em um contexto um pouco diferente mas ainda assim Tchekhov Dostoiévski Tolstói no Ocidente Thomas Mann e ainda mutatis mutandis Edith Wharton Henry James e Virginia Woolf seriam possíveis sem os séculos preparatórios do desenvolvimento da individualidade burguesa compreendidos entre o final da Idade Mé dia e o século 19 Lukács 1981150 E após a decadência ideológica da burguesia nos termos postos por Lukács em seu clássico ensaio já citado com os elementos de irracionalismo a ela inerentes ainda as sim a expressão de tal necessidade afetiva íntima das pessoas também não se faz presente mesmo que de forma rebaixada e esteticamente muito mais pobre Para ficarmos apenas com um evidente exemplo desta permanência na decadente concepção de mundo burguesa o que dizer do ingenuamente sublime Hair e do movimento pacifista de meados do século passado ao redor da palavra de ordem Paz e Amor A entrada do amor sexuado na história pelo palco do Theatre não foi apenas triunfal também foi definitiva não haverá mais história sem a sua presença A personalidade dos indivíduos sua maior ou menor capacidade afetiva terá nos seus amores experiências da maior importância E a estruturação de nossas personalidades pelas mais diferentes media ções termina também interferindo nas escolhas que fazemos no dia a dia e por esse meio interfere na evolução da própria sociedade31 31 Não temos aqui espaço para demonstrar essa relação entre as escolhas cotidia nas sempre orientadas por processos valorativos que são por sua vez histori camente determinados e o conteúdo dos processos de objetivação e exteriori zação Entäusserung Sobre isso conferir Lukács 198163 69707458283 93 94516893912430 Costa 1999 Lessa 2012a 54 Abaixo a família monogâmica O individualismo burguês no seu período progressista cumpriu esse gigantesco papel no que diz respeito ao peso da afetividade humana na reprodução social tornounos capazes de amar de modo e em uma qualidade inéditos na história Nossa relação com a totalida de social se alterou para incorporar essa maior capacidade afetiva dos indivíduos Nunca antes a reprodução social contara com in dividualidades portadoras das possibilidades e das necessidades de desenvolvimento subjetivas afetivas trazidas pelo amor sexuado individual Todavia tudo isso é apenas parte da questão Pois este fantástico desenvolvimento dos indivíduos com suas não menos fantásticas consequências para a reprodução da sociedade ocorreu em meio à família monogâmica burguesa e como parte do desenvolvimento da nova forma de exploração do homem pelo homem que é o capi tal O amor do período burguês foi por isso portador também das alienações32 inerentes à nova situação 2 O amor na sociedade burguesa Como tudo que a burguesia trouxe de revolucionário para a his tória também o amor sexuado individual padece do drama típico das suas mais legítimas criações Ao impulsionar de forma revolucionária o desenvolvimento da humanidade concomitantemente e quase sempre pelos mesmos atos a burguesia lançou os fundamentos do que seriam os novos obstáculos ao desenvolvimento histórico uma vez alcançada a sociedade capitalista madura Nesta as desumanidades que brotam do capital penetraram em quase33 todas as relações sociais tanto na totalidade social quanto nos indivíduos Vimos nos capítulos precedentes que o amor sexuado individual encontrou no desenvolvimento da burguesia do comércio mundial das cidades e dos Estados Nacionais as condições históricas impres cindíveis ao seu surgimento e desenvolvimento E ao mesmo tempo desde muito cedo o amor recémsurgido se confrontou com o fato de que impulsionado pelo capitalismo em expansão o amor sexuado in dividual apenas pôde se explicitar como parte do desenvolvimento da família burguesa a forma moderna do casamento monogâmico A so ciedade burguesa nascente que possibilita a gênese do amor sexuado 32 No sentido de Entfremdung das desumanidades criadas pelos próprios homens 33 Esse quase é decisivo pois não há uma identidade entre as alienações e a totalidade social mas sim uma relação como bem diz o conceito de alienação 55 Sergio Lessa individual a Acumulação Primitiva é também o único solo histórico para os seus primeiros passos o amor entrou na história como parte da família monogâmica burguesa Este é o limite histórico que o marca desde a sua gênese Se Romeu e Julieta é uma celebração ingênua do novo mundo de emoções o final trágico é apresentado como uma sequência infeliz de acasos em Madame Bovary Flaubert As três irmãs Tchekhov Casa de bonecas Ibsen Ana Kariênina Tolstói A era da inocência Wharton etc encontramos a constatação de ser a tragédia inerente à família mono gâmica burguesa Entre os séculos 16 e 18 enquanto as classes sociais e a família monogâmica eram indispensáveis ao desenvolvimento mais rápido das forças produtivas as contradições entre as novas necessidades afeti voamorosas do amor sexuado individual e as possibilidades limita das de sua realização na família monogâmica burguesa se equilibravam com o aumento da propriedade familiar e em num plano mais geral com o desenvolvimento histórico da humanidade então impulsiona do pelo capital O sofrimento dos indivíduos era então suportável porque tinha propósito e se justificava mesmo que fosse o propósito alienado do enriquecimento familiar e mesmo que fosse a justificativa não menos alienada da conquista burguesa do planeta É nesta fase que em contraste com as sociedades précapitalistas nas quais o mer cado ainda não ordenava a totalidade da vida social34 o matrimônio começou a depender inteiramente de considerações econômi cas Na prática e desde o princípio se havia alguma coisa inconcebível para as classes dominantes era que a inclinação mútua dos interessados pudesse ser a razão por excelência do matrimônio Isto só se passava nos romances ou entre as classes oprimidas que não contavam para nada Engels 2010103 As pessoas aceitavam que os bons casamentos eram acima de tudo aqueles que fossem bons negócios se havia ou não amor entre as pes soas era um pequeno detalhe a ser administrado ao longo do tempo35 34 Referimonos aqui à conhecida contraposição por Marx entre a emancipação política obra histórica da burguesia que liberta o mercado do controle estatal e a emancipação humana das alienações que brotam da propriedade privada isto é da exploração do homem pelo homem Cf Glosas críticas de Karl Marx recentemente lançado pela Expressão Popular Marx 2010 com um precioso prefácio de Ivo Tonet e também deste último autor Tonet 1999 e 2005 35 E levam uma vida bem feliz Têm sorte de não ter filhos filhos iriam pertur bálos O comércio deles prospera a pequena loja cresce as vitrines se enchem de joias e pêndulos Toda sua existência transcorre na preocupação cons 56 Abaixo a família monogâmica As necessidades afetivas conseguiam se expressar em peças de teatro na literatura e na música podiam ser retratadas em pinturas e em monumentos Reconheciamse nessas obras de arte porque eram as expressões possíveis dos seres humanos que as pessoas eram impe didas de ser Os grandes amores retratados nas obras de arte por sua vez tinham também lá seus limites marcados pela mesma determinação histórica mais geral a tragédia de cada um se justapõe à concepção de que a felicidade seria a junção do autêntico amor com o casamen to monogâmico burguês Uma utopia no sentido de não ter lugar na história equivalente a um Estado como realização da liberdade Tanto na vida real quanto nas obras de arte a humanidade ainda não sabia e não poderia ainda aprender a amar fora do casamento monogâmico Pela sensata razão de que ainda não estava posta a possibilidade cotidiana de uma outra organização familiar que supe rasse historicamente a família monogâmica burguesa Em contraste com as famílias do escravismo e do feudalismo a família monogâmica burguesa desde o seu surgimento já está a gestar as condições de sua crise futura A mulher continua apartada da vida social submissa seu domínio social continua a ser o lar cabendolhe a mediação entre o pai os filhos e os serviçais e no entanto essas funções sociais vão se tornando cada vez mais difíceis de ser realizadas no dia a dia à medida que as forças produ tivas vão se desenvolvendo O homem continua sendo o marido o masculino provedor e dominante responsável por manter em seu lar uma ordem cada vez mais difícil agora que o crescimento das cidades facilita a infidelidade da esposa agora que a sexualidade vai penetrando com mais força na vida cotidiana e no contexto da Revolução Industrial em que a força de trabalho das mulheres vai se tornando uma gigantesca fonte de lucro36 A violência continua a ser fundamental para manter a família monogâmica nos eixos agora burgueses A Constituição napoleônica de 1806 a primeira tante com o comércio a mulher desapareceu resta apenas uma caixeira ativa e astuciosa sem sexo incapaz de um descuido Zola 199850 36 Tal era a situação com que se encontrou a produção capitalista quando a partir da era dos descobrimentos geográficos se pôs a conquistar o domínio do mundo através do comércio universal e da indústria manufatureira É de se supor que este modo de matrimônio o casamento monogâmico lhe conviesse excepcionalmente e isso era realmente verdade E entretanto a ironia da história do mundo é insondável seria precisamente o capitalismo que abriria nesse modo de matrimônio a brecha decisiva Engels 2010103 colchetes nossos SL 57 Sergio Lessa modernamente burguesa pune com a morte a infidelidade femi nina e legaliza a poligamia masculina estabelecendo o direito de o homem ter tantas amantes quanto queira desde que a cada uma dê uma casa separada A prostituição consequência necessária do casa mento monogâmico como já vimos se expande ao ser organizada em negócio Nela também a tragédia dos grandes amores e grandes paixões se fará presente lembremos de A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Todavia nos primeiros momentos enquanto a burguesia é a classe que expande as possibilidades históricas da humanidade tal contradição não atinge sua maturidade e não tem a força explosiva que terá a partir do século 19 Entre o período histórico no qual o casamento monogâmico burguês era uma necessidade histórica e poderia servir ainda que de modo problemático e limitado ao de senvolvimento do amor sexuado individual e o período subsequen te em que a família monogâmica se converteu em obstáculo puro e simples ao seu desenvolvimento há algumas riquíssimas décadas de história Tendo como pano de fundo a transição do trabalho servil para o trabalho proletário são décadas que conheceram Marat Dan ton Robespierre Herbert Saint Simon Babeuf em seguida Kant Fichte Schelling e Hegel Mozart Beethoven Schiller e Goethe na Economia Política tivemos Ricardo a humanidade passou do Ancien Régime para a sociedade burguesa e para a sequência de revoluções entre 1820 e 1848 que lhe deu sua primeira versão mais estável Apenas poderemos compreender toda a dimensão trágica da fa mília burguesa se formos capazes de entender o quanto a burguesia revolucionou ao seu tempo a humanidade The Light of Yoga A Guide to Personal Transformation through the Yogic Path Experience timetested techniques to cultivate physical strength mental clarity and spiritual awakening Explore the integration of breath posture and meditation to achieve a balanced and harmonious state of being Join our community to enhance your practice and deepen your understanding of yoga philosophy and lifestyle 59 Sergio Lessa Capítulo VI A crise da sociedade de classes o cenário trágico do amor Com vimos no Capítulo II a Revolução Neolítica ao dar ori gem ao trabalho excedente em uma situação histórica na qual ainda predominava a carência fez com que as classes sociais fossem im prescindíveis ao rápido desenvolvimento das forças produtivas O Estado a propriedade privada e o casamento monogâmico surgiram porque eram por sua vez imprescindíveis à reprodução das socie dades de classe E ainda no mesmo Capítulo II mencionamos que a Revolução Industrial subverteria essa necessidade histórica conver tendo as classes sociais o Estado a propriedade privada e a família monogâmica em obstáculos ao pleno desenvolvimento das forças produtivas Devemos agora esclarecer como isso ocorreu O que aparen temente nos conduzirá a questões afastadas do nosso tema Mera aparência contudo tenha paciência caro leitor que ao final tudo fará sentido pelo menos assim esperamos A Revolução Industrial é resultante da convergência de dois gi gantescos movimentos históricos De um lado a criação do mer cado mundial abriu à burguesia europeia uma fonte formidável de matériasprimas ao lado de um mercado consumidor que para a escala daquela época era infinito Em poucas décadas o mercado europeu e assim mesmo apenas de uma parte da Europa pois a Europa Oriental tinha uma participação muito marginal confron tase com mercados como a China o Japão a Índia com fontes de metais preciosos como o México o Peru depois o Brasil e ainda com fontes de escravos e matériasprimas as mais variadas O comércio e o saque este último mais significativo nos momentos iniciais garantiram à burguesia europeia gigantescos lucros e uma 60 Abaixo a família monogâmica acumulação de capital em escala nunca vista antes Esse é o primei ro dos movimentos históricos que estão na origem da Revolução Industrial o mercado mundial e a Acumulação Primitiva de capital Marx que ele propiciou O segundo grande movimento tem lugar na produção e é causado pela concorrência dos mercados ultramarinos e pelas necessidades de aumento expressivo da quantidade e qualidade das mercadorias Das guildas medievais passase à manufatura e depois à manufatura complexa37 E nos locais em que o capital já tem poder suficiente a estrutura produtiva é rompida no campo para dar lugar a uma pro dução voltada ao comércio mundial quase sempre com a expulsão dos camponeses da terra Esse processo ocorre em vários locais da Europa mas onde ele é mais significativo e mais importante para nosso tema é na Inglaterra país que não conheceu um feudalismo típico e no qual a propriedade da terra nunca foi fonte de um poder semelhante à da nobreza francesa Por isso a Inglaterra conseguiu mais rapidamente que outras nações introduzir as relações capitalis tas no campo Vastas áreas foram convertidas da agricultura para a criação de carneiros que fornecia lã às manufaturas inglesas e o que para nós é agora importante expulsou da terra milhares de camponeses que foram obrigados a migrar para as cidades forman do uma reserva de força de trabalho numerosa e barata Milhares de miseráveis forçados a vender sua força de trabalho por um salário muito baixo ao lado de uma burguesia que havia acu mulado muita riqueza com o saque e o comércio do mundo e tudo isso somado a um mercado consumidor agora planetário e que pa recia não ter limites temos aqui a receita da Revolução Industrial A burguesia se apoderou das tecnologias já existentes e adaptou o motor a vapor para mover ferramentas as máquinasferramentas de que nos fala Marx e com isso ela conseguiu três grandes feitos 1 Em primeiro lugar pôde controlar o trabalho de um modo mais eficiente ao transformar o trabalhador em apêndice da 37 Guildas são a forma típica do trabalho dos artesãos no feudalismo Ela será superada pela manufatura o primeiro momento em que o desenvolvimento comercial possui um impacto decisivo sobre a produção A manufatura com plexa incorpora uma divisão social do trabalho ainda maior e mais intensa É a antessala da Revolução Industrial Ao leitor interessado o já sexagenário livro de Leo Huberman História da Riqueza do Homem continua muito útil em que pese a evidente desatualização dos seus últimos capítulos O conhecido capítulo de O Capital A Acumulação Primitiva é outro texto a ser lido Uma grande obra sobre a relação entre o desenvolvimento da ciência da tecnologia e da Revolução Industrial é Ciência na História de Bernal 1954 61 Sergio Lessa máquina Com esse melhor controle do trabalho a extração de maisvalia é significativamente ampliada 2 Em segundo lugar enquanto o músculo humano movia a fer ramenta era impensável uma prensa de 10 toneladas ou uma máquina de fiar com vários atiradores38 Agora tudo isso é possível os limites do corpo humano não são mais os limites da produção 3 Em terceiro lugar com o aumento do consumo das matérias primas a Inglaterra pelas enormes compras passa a espe cializar partes do mundo na produção do que lhe interessa A Argentina vai produzir lã e couro a Índia algodão assim como o Maranhão no Brasil e o sul dos Estados Unidos já as Antilhas produzirão açúcar e rum etc Tem início a divisão internacional de trabalho O resultado é tão espetacular que pela primeira vez na história a produção tende a ser o suficiente para satisfazer a todas as necessi dades de todos os indivíduos no planeta Terra e ainda desenvolver as forças produtivas Transitamos assim ao período histórico da abundância superamos a carência que fazia parte da história da hu manidade desde o seu início A questão é que abundância e classes sociais são historicamente incompatíveis 1 Abundância e classes sociais Ainda que apenas seja verdade considerandose a universalida de desse processo ou seja desconsiderando particularidades neste caso importantes desde o escravismo até o capitalismo o desen volvimento das forças produtivas foi também o desenvolvimento do mercado De um mercado limitado ao Oriente Próximo Babilônia Pérsia passamos a um mercado mediterrâneo no Império Romano e ao mercado mundial com a burguesia Em outras palavras e de uma maneira muito geral o desenvolvimento das forças produtivas teve por mediação a crescente capacidade de se produzir para um mercado também em expansão A produção de mercadorias isto é bens para serem comercializados foi se tornando cada vez mais im portante As relações comerciais se generalizaram tornandose cada vez mais presentes na vida cotidiana Com a Revolução Industrial 38 Atirador é uma peça da máquina de fiar que trança o fio de modo a que o tecido seja produzido 62 Abaixo a família monogâmica a humanidade passa à situação na qual o fundamental da produção é realizado para ser vendido e por isso o fundamental da econo mia tem no mercado uma mediação decisiva se não for vendida a mercadoria não tem valor de mercado valor de troca e resulta em prejuízo ao seu proprietário Enquanto existia a carência a oferta tendia a ser menor que a procura fazendo com que os preços permanecessem acima do cus to de produção das mercadorias Nesta circunstância eram excep cionais e locais os momentos em que a oferta era maior que a pro cura e havia prejuízo O exato oposto ocorre com a abundância A oferta tende a ser muito maior do que a procura e os preços tendem a cair a um nível que inviabiliza a reprodução do capital Para enfrentar essa situação cada capitalista busca explorar cada vez mais intensamente seus tra balhadores quer com investimentos em novas tecnologias que lhe possibilitem conseguir mais com o mesmo salário quer aumentando a vigilância e o controle sobre a produção Quando um burguês con segue explorar mais seus trabalhadores que seus concorrentes fica momentaneamente numa posição vantajosa e começa a roubar mercado dos outros burgueses Estes para não falirem adotam o que deu certo na fábrica daquele burguês e dão um passo à frente buscando a vantagem que estava com o seu concorrente E assim o ciclo se inicia novamente novos investimentos e maior exploração dos trabalhadores Por isso a produção tende a ser cada vez maior com investi mentos cada vez maiores e com uma quantidade cada vez menor de trabalhadores Em linhas exageradamente simplificadas isso é o que Marx denominou de queda tendencial da taxa de lucro39 investimentos cada vez maiores são necessários para aumentos na produtividade do trabalho proporcionalmente cada vez menores As consequências 1 uma abundância ainda mais pronunciada já que a produção conhece um aumento caótico e descontrolado 2 a cres cente abundância torna o sistema do capital cada vez mais instável Neste contexto o capitalismo deve buscar o aumento do con sumo isto é uma questão de vida ou morte Já na época de Marx e Engels eram identificáveis vários dos mecanismos pelos quais se buscava um maior consumo quer pelo estímulo a guerras quer pelo 39 Isto é uma enorme simplificação há diferenças importantes quando se trata da extração da maisvalia absoluta e da relativa Aqui nos interessa apenas o mais fundamental dessa situação histórica para esclarecermos o que ocorre com o casamento monogâmico 63 Sergio Lessa consumo supérfluo Mas foi no século 20 que a intensificação da abundância gerou a produção destrutiva40 produzse de tal modo a destruir os produtos no menor tempo possível para ativar nova mente o circuito de produçãodestruição O complexo industrial militar é o melhor exemplo desta situação Os EUA produziram bombas atômicas suficientes para destruir o mundo 66 vezes a ex URSS para destruir o mundo outras 33 vezes Do ponto de vista militar isto é um contrassenso Como a vitória militar deve ser ob tida ao menor custo possível não há sentido em produzir bombas em quantidade suficiente para destruir o planeta 99 vezes Basta destruílo uma única vez O arsenal nuclear não foi produzido para ser empregado em uma guerra pelo contrário foi construído por que era uma fonte de lucros quase perfeita o Estado era o compra dor seguro porque dominado pelas mesmas forças econômicas que também controlam as indústrias de armas e o lucro era realizado no momento da venda as armas nem sequer têm de ser consumidas pelo Estado para gerarem lucros41 O mesmo pode ser constatado em toda a economia das roupas aos alimentos da energia às nossas casas dos carros ao lazer dos remédios às novas doenças tudo está voltado ao consumo mais rápido possível para gerar uma nova demanda que justifique uma nova rodada de produção De preferência que o produto não seja inteiramente consumido a perdulariedade é a lei geral do sistema do capital na era da abundância Esse círculo vicioso por sua vez traz o desemprego crescente a ampliação da extração da maisvalia requer tecnologias que reduzem a necessidade por força de trabalho A produção destrutiva também pela mediação do desemprego é a destruição das pessoas E não há como ser diferente sendo o trabalho a categoria fundante do mundo dos homens a produção destrutiva implica necessariamente a destruição dos produtos e dos produtores E por extensão a des truição do equilíbrio ecológico do planeta42 40 Mészáros 2002 em especial o Capítulo 15 e Paniago 2012 41 A melhor análise sobre o papel histórico do complexoindustrial militar incluindo sua decisiva influência para a gênese do Estado de BemEstar está em Mészáros 2002 A expressão produção destrutiva como já assinalamos é também desse autor Sobre o arsenal nuclear dados importantes sobre sua origem os recursos empregados pelos EUA o envolvimento de universidades e cientistas estão em The bomb de DeGroot 2005 Há ainda um texto imprescindível sobre a influência da guerra na história do século 20 Century of War de Gabriel Kolko 1994 42 Há um texto muito interessante sobre a relação necessária entre o modo de pro 64 Abaixo a família monogâmica Ainda que apenas em suas linhas mais gerais e de modo muito simplificado esse é o significado histórico da tese de Marx reto mada por Lukács e Mészáros segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas entrou em uma contradição antagônica com a propriedade privada Isso não significa que a sociedade regida pelo capital perdeu sua capacidade de desenvolver a técnica ou aumentar a produção43 mas sim que isso apenas é possível pelo desenvolvi mento das capacidades produtivas do capital isto é de seu crescente poder de nos alienar de destruir as condições de sobrevivência não apenas dos trabalhadores mas da própria humanidade Se no passa do o desenvolvimento da capacidade produtiva do capital em parte coincidia com o desenvolvimento das capacidades humanas hoje esse mesmo desenvolvimento se converteu no desenvolvimento das desumanidades socialmente postas isto é das alienações É a pro dução destrutiva de que nos fala Mészáros a negação cotidiana da capacidade de a humanidade fazer a história com um conteúdo autenticamente humano Essa situação tem um enorme impacto na família monogâmica ao interferir sobre a essência do que somos enquanto pessoas hu manas enquanto indivíduos como veremos imediatamente abaixo 2 Guardião de mercadorias A articulação mais rica e mais autêntica dos indivíduos com a so ciedade são aquelas atividades articuladas ao redor da produção de meios de produção e de subsistência pela transformação da natureza o trabalho Nelas se expressam as necessidades e as possibilida des de desenvolvimento as mais universais de cada sociedade e por extensão do gênero humano Por isso na sociedade comunista o trabalho deixará de ser um fardo para se tornar a primeira neces sidade Marx dos indivíduos nele serão encontradas as maiores possibilidades os estímulos mais ricos para o que agora nos inte ressa o desenvolvimento das pessoas Por tal razão como vimos acima no Capítulo III item 1 a reti rada das mulheres da vida coletiva e a conversão das suas atividades em serviços privados esposas ou prostitutas dos homens tiveram dução capitalista e a destruição da natureza Limites do desenvolvimento sustentável de G Foladori 2001 43 Há uma rica tradição no interior da tradição marxista contrária à redução das forças produtivas ao desenvolvimento tecnológico ou ao aumento da produção Tratamos disso em Lessa 2011 253 e ss 65 Sergio Lessa tão forte impacto na constituição da personalidade típica feminina e como vimos também da masculina ainda que por outras vias A negação da participação na vida coletiva implica imediatamen te horizontes muito rebaixados das necessidades e possibilidades presentes na vida cotidiana e isto conduz a individuações muito pobres e carentes de substância social O casamento monogâmico tem um fortíssimo impacto sobre o desenvolvimento dos processos femininos de individuação acima de tudo porque relega às mulheres atividades que foram reduzidas a serviços privados para os senhores do lar ou do prostíbulo Vimos que uma alienação simétrica se instaura então entre a porção masculina da humanidade Os impactos da produção destrutiva sobre os processos de in dividuação têm resultado em uma análoga restrição do horizonte histórico da vida cotidiana No capitalismo maduro praticamente todas as relações sociais passam a ter por mediação o dinheiro a humanidade está enfeiti çada por ele As pessoas se convertem em guardiãs de mercado rias isto é suas existências equivalem à mercadoria que as conecta com a sociedade É o fetichismo da mercadoria de que nos fala Marx 198179 e ss O burguês é burguês pela posse do capital o trabalhador é trabalhador por ter na força de trabalho sua única propriedade privada O que eles são pessoalmente a substância de suas personalidades não tem nenhuma importância ou lugar nessa relação e por extensão na sociedade capitalista como um todo Reduzidos a proprietários privados de capital ou de força de trabalho os indivíduos tornaramse cada vez mais individualistas e coletivamente reproduzem uma forma de sociedade que ao se desenvolver intensifica o nosso isolamento Hoje em dia qualquer desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos apenas pode aden trar nos processos de individuação pela mediação do individualismo burguês na luta de todos contra todos o coletivo tão só tem lugar pela concorrência As necessidades e possibilidades autenticamente humanas simplesmente não têm lugar não cabem na sociedade re gida pela produção destrutiva e nem sequer podem ser reconhecidas em escala social Por isso os apelos à solidariedade e à ética hoje tão comuns não passam de palavras vazias a essência da nossa socieda de não comporta a ética44 Essa conexão entre o indivíduo e as necessidades e possibilida des mais universais por meio da concorrência generalizada através do 44 Sobre a relação entre ética e capitalismo em Lukács cf Lessa 2007 66 Abaixo a família monogâmica mercado já era conhecida na época de Marx e Engels Em 1844 em A questão judaica Marx demonstrou como o homem burguês aquele que vive sob a regência do capital tem tipicamente sua personalidade cin dida em duas porções entre si opostas Por um lado temos o indivíduo do mercado e da propriedade privada É o indivíduo real que participa da história com seus atos cotidianos marcados pelo individualismo e mesquinharia típicos do burguês Em se tratando do casamento mo nogâmico é o indivíduo que casa em nome de um bom negócio Esse mesmo indivíduo por outro lado possui uma vida coletiva política marcada pela sua relação com o Estado burguês e os regulamentos políticos que dele emanam Nesta relação ele deixa idealmente de ser o burguês para se converter em cidadão altruísta preocupado com os interesses coletivos Entre o ideal e as relações objetivas as últimas se impõem Na vida cotidiana a porção citoyen é predominantemente subsumida à porção burguesa é a contradição entre o bourgeois e o citoyen Aqui é que tem suas raízes o que Marx denominará da inevitável hipocrisia da vida burguesa Marx 2009 1987 Com a produção destrutiva todas essas alienações se intensificam e o isolamento coletivo dos indivíduos se fortalece pela intensificação de seus individualismos Tipicamente queremos esquecer do mundo em que vivemos e criar um refúgio ainda que momentâneo e falso das gigantescas pressões da vida cotidiana Desemprego violência uma vida crescentemente acelerada pela concorrência vertiginosa de todos contra todos os centros urbanos em colapso a vida ameaçada em to dos os lugares e ainda um planeta que está sendo destruído a uma velocidade que pode ser constatada a olhos vistos tudo isso e muito mais tem conduzido os indivíduos a buscarem saídas individuais pes soais para problemas que são na sua essência e em muito do que têm de secundário rigorosamente universais A saída individualista está sempre fadada ao fracasso E sempre no curto prazo as consequên cias negativas da busca de uma saída individual se apresentam muito rapidamente Assim por exemplo no caso do desemprego considerase que a alternativa real possível está na qualificação profissional ou em se transformar em seu próprio patrão abrindo um negócio Nada disso funciona porque tais ações tomam por causas o que não passa das consequências Mas esse é apenas um exemplo entre outros tantos a proteção contra a violência que gera lucros exorbitantes pela especu lação imobiliária na construção dos condomínios tanto para os abas tados quanto para os trabalhadores a ilusão de que os lucros absurdos que os bancos retiram das previdências privadas poderão garantir uma velhice tranquila para aqueles que sabiamente investiram na juven 67 Sergio Lessa tude a crença de que os planos de saúde irão garantir o atendimento médico necessário ao converter nossas enfermidades em negócio a ilusão de que uma boa educação para os nossos filhos poderá ser com prada por uma mensalidade escolar mais cara a esperança de que um lazer humanamente compensador pode ser comprado em pacotes de turismo que nada mais fazem senão impor uma desumana e mecânica rotina turística que gera altíssimos lucros a ilusão de que é possível a sobrevivência individual com a humanidade cotidianamente realizan do o necessário para o seu desaparecimento do planeta etc Se e quando a classe operária adentrar na luta de classes como o antagonista do capital colocará uma real alternativa coletiva aos nos sos graves problemas Isto terá o efeito de catalisar e superar muitas dessas inúteis buscas de soluções individualistas aos problemas que são essencialmente coletivos Antes disso o individualismo continuará a encontrar o solo histórico para sua existência e as pessoas conti nuarão em um desespero crescente como um pião girando sobre si próprias debatendose atabalhoadamente contra tudo e contra todos na esperança de conseguirem o impossível uma vida humanamente digna minimamente feliz nesse como se diz mundinho de Deus Há outras mediações importantes no impacto sobre os indivíduos da crise contemporânea que não temos aqui espaço sequer para men cionar Para a nossa análise do casamento monogâmico contudo o decisivo é que o fato de vivermos historicamente as etapas finais do modo de produção regido pelo capital45 retira do casamento monogâ mico burguês a sua legitimidade histórica Como a crise final do capi talismo é também a crise final do período histórico no qual as classes sociais a propriedade privada e o Estado serviram de mediações para o mais rápido desenvolvimento das forças produtivas ela retira não ape nas da forma burguesa mas de toda e qualquer modalidade da família monogâmica seu fundamento histórico Agora ser marido esposa ou prostituta ou filhos e filhas no interior dessas relações é uma condi ção social insuportável afetivamente no mesmo grau que tais relações sociais se converteram em obstáculos ao desenvolvimento dos indiví duos converteramse em obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas em alienações É aqui que reside a raiz mais profunda da crise contemporânea da família monogâmica que hoje vivenciamos 45 Sem nenhum ufanismo a destruição da humanidade e não o comunismo pode bem ser o final do capital repetimos ESTOP Emergency Stop 69 Sergio Lessa Capítulo VII A família burguesa O casamento burguês atingiu sua maturidade na Europa vito riana46 Patriarcal a família burguesa exibe todas as características da família monogâmica É fundada pela propriedade privada se ca racteriza pela retirada das mulheres da vida coletiva e pela redução de suas atividades ao serviço privado de seu senhor Contrapõe o homem enquanto marido a ser servido à esposa que domina tirani camente o espaço doméstico para melhor atender a seu provedor reduz a riqueza e densidade das relações afetivas abertas à paternida de na mesma proporção com que sobrecarrega a maternidade com a função de mediação entre o senhor a prole e os serviçais Outra das suas características importantes é negar às crianças o convívio com outras crianças isolandoas muitas vezes até chegarem à ado lescência como ocorria com as famílias mais abastadas no século 19 e início do século 20 Vimos acima em especial no item 1 do Capítulo IV como o de senvolvimento das forças produtivas é também o desenvolvimento da sensibilidade dos indivíduos com todos os descompassos aliena ções etc que se fizeram presentes na história Esse fenômeno pode também ser observado na Europa do século 19 A sociedade que surgiu da Revolução Industrial trouxe enormes possibilidades e ne cessidades ao desenvolvimento dos indivíduos tanto material quan to afetivamente tanto racional quanto no tocante à sua sensibilida de A industrialização requer o crescimento das cidades a ampliação dos mercados a produção de novas mercadorias e pela primeira vez na história a administração da abundância para que suas potenciali dades destrutivas para o capital as crises de superprodução fiquem 46 Após o reinado da Rainha Vitória da Inglaterra entre 1837 e 1901 que cor respondeu ao apogeu do Império Britânico 70 Abaixo a família monogâmica sob algum controle A manipulação do mercado consumidor passa a ser uma das formas importantes de tal controle e para a indústria têxtil a primeira que se industrializou e com um peso econômico mais significativo então do que hoje a indústria química e mesmo a metalurgia um dos novos e promissores mercados é a moda Dos homens e mulheres de então a personalidade feminina se mostrou muito mais manipulável para a compra dos novos produtos do que a masculina Novos tecidos novos processos de tingimento novas cores a generalização do espartilho e depois do salto alto jogam um papel econômico significativo Kunzle 2004 296 e ss Mas para que o consumo das novas mercadorias se intensifique é preciso que a reprodução de uma personalidade feminina necessite desse consumo das novas mercadorias e que tal necessidade se generalize por todo o corpo social47 Para isso é preciso desenvolver o gosto isto é a sensibilidade de homens e mulheres o que será alcançado com o mecanismo de fazer o consumo dos novos produtos adentrar nos processos de individuação como afirmação dos papéis de mari do esposa prostituta filho e filha da era vitoriana Isso que ocorre na moda pode com as devidas mediações tam bém ser verificado na literatura no teatro na ópera na música e na arquitetura há uma explosão do consumo das novas mercadorias culturais E nesse contexto o desenvolvimento do amor sexua do individual encontra novos impulsos novas possibilidades e gera necessidades qualitativamente novas As pessoas que são maridos e esposas tipicamente cabem cada vez menos em seus respectivos papéis sociais e a prostituição para os homens e os amantes para as mulheres convertemse em mediações pelas quais tais necessida des vão também se expressar em escala social crescente A era vitoriana enfrentou esse aumento do antagonismo entre a família monogâmica e as necessidades afetivas dos indivíduos inten sificando a repressão e ao mesmo tempo intensificando a conhe cida hipocrisia burguesa48 Por um lado o crescente moralismo e a 47 Há uma rica bibliografia que trata das razões históricas que levaram à diferen ciação entre os trajes masculinos e os femininos como hoje conhecemos Pa rece ser um consenso entre os especialistas que foi no século 19 que o homem burguês ou proletário preferirá o terno que se impõem como um unifor me enquanto as mulheres burguesas ou trabalhadoras manterão a variedade nas formas cores e tecidos Foi no século 19 que se enfeitar tornouse um atributo exclusivamente feminino Nesse contexto a expansão da capacidade industrial gerou novas possibilidades de adornos que tenderão a ser absorvidas predominantemente pelo vestuário feminino 48 Cf Capítulo VI item 1 acima 71 Sergio Lessa rigidez dos costumes puniam com severidade qualquer transgressão da ordem Daí provém a rigidez vitoriana Por outro lado nas cir cunstâncias certas fechavamse os olhos para as transgressões se estas fossem digamos corretamente encaminhadas Entre uma parte da nobreza da burguesia e entre os intelectuais as orgias o sadomasoquismo e a homossexualidade notadamente masculina eram tachados de corrupção moral e ainda assim eram hipocri tamente49 tolerados O dandismo e as mulheres que se vestiam de homens como George Sand Armandine Dupin eram cultivados em certos círculos Mas desafios abertos à moral como Oscar Wil de eram rigidamente punidos notadamente se envolviam pessoas que não pertenciam às classes dominantes A intensificação dos mecanismos de controle social a rigidez moral e o fortalecimento da hipocrisia são as contrapartidas neces sárias à intensificação do antagonismo entre as necessidades afetivas dos indivíduos e o casamento monogâmico no século 19 A cisão entre a porção citoyen e a porção bourgeois do indivíduo vai se tornan do mais intensa As personalidades dos indivíduos são submetidas a tensões e contradições qualitativamente maiores que no passado Não é mero acaso que Freud descobriu o inconsciente na passagem do século 19 para o 20 as individualidades burguesas convivem com forças tensões impulsos sensações e desejos que não podem ser elevados à consciência não podem sequer ser reconhecidos sob pena do colapso de suas individualidades As mulheres conhecem uma nova doença a histeria Os homens por seu turno vão se bru talizando o sexo é a uma necessidade socialmente reconhecida do macho afetos são coisas de mulher A família monogâmica burguesa vai crescentemente dissociando amor e sexualidade Ao lado desses fatores somemse as crescentes dificuldades para impor a fidelidade feminina em uma sociedade que está se urbani zando na qual os contatos sociais vão se tornando cada vez mais frequentes e na qual ainda a abundância possibilita e requer o de senvolvimento afetivo e racional lembremos das pessoas Como diz Engels ao lado da própria monogamia desenvolvese uma segunda contradição Junto do marido que amenizava a existência com o heterismo50 achase a esposa ne 49 Hipocritamente porque eram a expressão prática de uma rigorosa oposição entre discurso e comportamento 50 Heterismo é sinônimo de prostituição literalmente amor livre nas mulheres às vezes também concubinato 72 Abaixo a família monogâmica gligenciada E não pode haver um termo de uma contradição sem que lhe corresponda o outro como não se pode ter nas mãos uma maçã inteira de pois de se ter comido sua metade Esta no entanto parece ter sido a opinião dos homens até que as mulheres lhes puseram outra coisa na cabeça Com a monogamia apareceram duas figuras sociais constantes e características até então desconhecidas o inevitável amante da mulher casada e o marido corne ado Os homens haviam conseguido vencer as mulheres mas as vencidas se encarregaram generosamente de coroar os vencedores O adultério proibido e punido rigorosamente mas irreprimível chegou a ser uma instituição social inevitável junto à monogamia e ao heterismo No melhor dos casos a certeza da paternidade baseavase agora como antes no convencimento moral e para resolver a contradição insolúvel o Código de Napoleão dispôs em seu artigo 312 Lenfant conçu pendant le mariage a pour père le mari O filho concebido durante o matrimônio tem por pai o marido É este o resultado final de três mil anos de monogamia Engels 201089 Ser marido e ser marido corneado passam a ser quase sinôni mos Correspondentemente os mecanismos de controle sobre as mulheres têm de ser intensificados Ganha expressão social nesse contexto uma nova teoria científica como as mulheres não eja culariam elas não teriam orgasmo Por isso os homens seriam mais fogosos mais carentes de relações e prazer sexual que as mulhe res Estas seriam muito mais afetivas e muito menos sexuadas o ato sexual para elas seria carinho para os homens luxúria e prazer É possível reza a nova teoria científica conter a carência das mu lheres por sexo bastando uma boa educação e uma saudável dispo sição de espírito para a mulher manterse fiel a seu marido por mais monstruoso que este fosse por mais insatisfatória a relação entre eles Aos homens todavia seria não apenas impossível conterse como ainda seria a causa de várias doenças não atender plenamente a seus impulsos sexuais Ter várias mulheres e uma vida sexual ativa seria para o marido uma necessidade biológica tal como se alimentar e beber água Às mulheres é negado até mesmo que tenham orgas mo quanto mais a necessidade de prazer Isso foi dito repetido pre gado demonstrado pela medicina pela sociologia pela biologia até bem entrado o século 20 Eram frequentes as mulheres que na década de 1950 nunca haviam experimentado nenhum orgasmo Tal valorização do orgasmo masculino em contraposição à fan tasia da impossibilidade do orgasmo nas mulheres é reveladora de muito da essência da concepção de mundo da burguesia em sua etapa contrarrevolucionária Infelizmente não podemos por uma questão de espaço nos estender sobre esse aspecto Do ponto de vista da família monogâmica muito importante é que a disjunção entre sexo e afeto sexo é algo que diz respeito aos homens o afeto uma necessidade feminina portanto menor já que as mulheres são 73 Sergio Lessa menos que os homens é o contraponto exato ao amor indivi dual sexuado uma das criações mais incríveis da própria burguesia em seus primeiros e revolucionários passos lembremos de Romeu e Julieta O amor sexuado individual está em tal contradição com o modo de produção capitalista desenvolvido que se tornou necessá rio ideologicamente operar uma separação entre sexo e afeto o exato inverso do amor individual sexuado Tal retrocesso por sua vez é o reflexo na consciência de uma situação social objetiva no casamento monogâmico burguês plenamente desenvolvido o mari do faz sexo para ter herdeiros e a esposa tem a obrigação de so frer sexo para procriar Tudo o que eles querem são terras bois e uma cadela submissa que lhes faça comida51 Nenhum afeto ou satisfação afetiva poderia aqui existir para as mulheres decentes nem sequer o orgasmo era admissível Fora do casamento o marido recorre a prostitutas para atender à sua necessidade biológica tida por incontrolável Novamente qual o afeto possível A síntese de amor e sexualidade essencial ao amor individual sexuado de que nos fala Engels uma das mais maravilhosas conse quências do individualismo burguês em seu período progressista é frontalmente negada pela família burguesa madura Acima mencionamos como as mais revolucionárias contribui ções históricas da burguesia pelos mesmos processos históricos de sua gênese também fundavam as relações sociais que no futuro res tringiriam a limites medíocres o desenvolvimento humano Com a era vitoriana a família monogâmica em sua forma burguesa atingiu seu apogeu histórico e afirmou de modo a ser reconhecida em es cala social a sua incompatibilidade com o amor individual sexuado Uma Julieta não poderia ter lugar algum entre as mulheres respeitá veis Apenas no palco como ideal da impossibilidade objetiva co tidiana do amor sexuado individual Julieta podia significar na vida das pessoas A maior repressão potencializou as alienações que atuam sobre a esposa A relação das esposas das classes dominantes com seus serviçais domésticos incorporou facetas do que ocorria com a ve lha aristocracia destruída pela burguesia52 Entre outras coisas um 51 Lorca F G A casa de Bernarda Alba Adaptação de Juliana Galdino São Paulo 2009 52 Os tempos mudaram e as coisas não são exatamente iguais Todavia terá a impressão de que as coisas não mudaram tanto assim quem se lembrar da cena de A revolução não será televisionada na qual as senhoras burguesas são advertidas do perigo dentro de suas casas que representam suas domésticas 74 Abaixo a família monogâmica padrão de indumentária que impossibilitava o trabalho manualdo méstico e salientava o papel de puro comando que exercia no lar as saias longas pesadas os saltos altos e o espartilho Entre os ho mens da classe dominante a rigidez na vestimenta cumpre a mesma função de designar com clareza quem está no comando a casaca e a cartola impediam as atividades manuais ao mesmo tempo que sapa tos mais confortáveis e as calças possibilitavam o deslocamento e a agilidade necessários aos negócios Pela primeira vez na história as pessoas masculinas se apresentam à sociedade uniformizadas as va riações entre as casacas e as cartolas são mínimas enquanto para as mulheres a completa originalidade na vestimenta passa a ser obriga tória Os processos alienantes passam a ter e isso se estenderá por todo o século 20 e nada indica que está para se alterar no século 21 nas vestimentas um veículo de sua expressão como em nenhum outro período na história humana A moda deixa de ser algo secun dário para ocupar uma parte importante não apenas da economia mas da vida cotidiana de todos nós tenhamos ou não consciência desse fato E claro o fetichismo da mercadoria tem nessa esfera um enorme campo não apenas para se explicitar mas também para reforçar seu poder sobre as relações sociais e o comportamento dos indivíduos A nova doença tipicamente vitoriana a histeria é indício de que o casamento monogâmico apenas consegue conter as pessoas femininas destruindo suas individualidades é indício de que a família monogâmica conduz a um desequilíbrio afetivo tão intenso que gera reações espontâneas e incontroláveis e contudo perfeitamente compreensíveis do ponto de vista histórico Todavia o fato de que tais fenômenos foram tomados como doenças como desvios que deviam ser tratados tão somente como problemas individuais é um indício a mais da incapacidade de o casamento burguês servir ao pleno desenvolvimento dos indivíduos em nosso período histórico Aos homens os processos alienantes atingiramnos com igual intensidade ainda que por outras mediações Ser marido e prove dor tornase um fardo cada vez mais pesado e para dar conta do recado os homens se embrutecem isolamse de suas esposas e de seus filhos e às suas identidades incorporam mais intensamente a mercadoria da qual são guardiãos Na esfera afetiva se à mulher é negado o orgasmo ao homem se atribui um infindável e incontrolá vel apetite e a masculinidade passa a ser também avaliada pela quan tidade de relações sexuais que o indivíduo mantém Se à mulher é atribuído o dever da entrega da rendição do marido é requeri da a conquista o domínio Se as mulheres adotaram os esparti 75 Sergio Lessa lhos saias longas e salto alto os homens uniformizaramse a casaca e depois terno e gravata tornaram a figura masculina ineditamente homogênea A pouca profundidade afetiva das personalidades mas culinas a sua sensibilidade apenas epidérmica não requer para sua expressão social mais do que uma vestimenta padrão que esconda até mesmo suas diferenças físicas o terno com suas ombreiras e corte reto dota todos os homens do mesmo perfil Ser masculino no novo contexto é incorporar o embrutecimento que significa ser guardião de mercadoria é cultivar a supremacia da razão do capital sentimentos são atributos afeminados e femininos Como se a histeria feminina tivesse sua contrapartida nas bebedeiras e vio lentas explosões masculinas Como imaginar que o amor individual sexuado de que nos fala Engels e que adentrou na história pelo palco do Theatre pudesse ter nessas relações algo além do que o seu grande obstáculo Ainda que por algumas outras mediações entre as classes tra balhadoras a situação não era inteiramente diversa A história não confirmou a esperança de Marx e de Engels de que entre as classes trabalhadoras haveria espaço para o desenvolvimento do autêntico amor sexuado individual É verdade que a dissolução do matrimônio é mais fácil quando a única propriedade que se possui é a força de trabalho todavia não porque os trabalhadores se emanciparam da propriedade privada mas porque se submetem a ela pela mediação da miséria Nesse contexto o matrimônio mais facilmente desfeito é manifestação antes da pobreza material do que da superação das alienações fundadas pela exploração do homem pelo homem Tam bém é verdade que entre as classes trabalhadoras era uma situação normal as mulheres trabalharem fora de casa coisa que não aconte cia entre as famílias burguesas Ainda assim esse fato por si só não significa que as tarefas domésticas e de criação dos filhos deixaram de ser serviço privado a ser prestado pelas mulheres aos seus mari dos a dupla jornada de trabalho Ao chegarmos à Primeira Guerra Mundial 19141918 as con tradições entre as necessidades e possibilidades de desenvolvimento das pessoas entre as possibilidades e necessidades do desenvolvi mento do amor individual sexuado por um lado e por outro o casamento monogâmico burguês atingem um primeiro ponto de ruptura Os sinais de seu esgotamento histórico já vinham como vimos desde o século 19 O dandismo a homossexualidade que ganhava expressão social cada vez mais visível o movimento su fragista das mulheres etc o crescimento da socialdemocracia eu ropeia com expressiva base operária e a literatura revolucionária 76 Abaixo a família monogâmica que produziu a explosão no consumo de romances peças teatrais óperas etc ajudavam a levar à consciência em escala social a con tradição entre as relações sociais predominantes e o amor sexuado individual Do ponto de vista mais imediato 19 milhões de mortos e mais duas vezes esse número de aleijados e doentes mentais em sua maioria homens em idade produtiva isto é maridos deixaram uma enorme quantidade de famílias desprotegidas nas quais a mulher teve de ocupar o lugar de provedor Parte significativa das mu lheres ainda substituiu nas fábricas seus maridos que haviam sido convocados Ao final do conflito de 191418 instaurouse uma gi gantesca crise dos padrões familiares Como nunca antes as mulhe res passaram a ocupar o posto do chefe da família Gabriel Kolko em um livro que já citamos Century of War descreve em minúcias as profundas consequências dessa situação A eclosão do movimento revolucionário na Rússia seguido pela vitória bolchevique na Guerra Civil 191821 e pela Revolução Alemã os primeiros momentos da organização de um movimen to comunista mundial abriram entre muitos outros horizontes novas possibilidades ao desenvolvimento do amor sexuado in dividual Clara Zetkin Rosa Luxemburgo Alexandra Kollontai na teoria Isadora Duncan e Nijinsky na dança o surgimento de uma geração de mulheres de intelectuais escritoras poetisas jornalistas etc que não mais se encaixava no modelo esposaprostituta53 além de alargar o espaço para as individuações femininas também tor nam o padrão vitoriano de marido em parte obsoleto Esse avanço todavia foi seguido por um recuo A crise de 1929 o fortalecimento do casamento monogâmico tanto na URSS de Stálin como também do patriarcalismo no interior da III Internacional o crescimento do peso do campesinato e das revoluções de libertação nacional no movimento revolucionário o fortalecimento da ideologia burguesa e portanto da família monogâmica pela ação do Estado de Bem Estar nos países capitalistas centrais favoreceram a perda de mui tos dos avanços parciais conseguidos contra o casamento burguês nos anos que se seguiram à I Grande Guerra Wilson 1977 Uma história do casamento burguês terá de dar conta desses avanços e recuos Para a nossa aproximação o decisivo é que esse re cuo que se seguiu às derrotas dos movimentos revolucionários deu origem ao tom que predominaria no movimento feminista a partir dos anos de 1960 As lutas e as conquistas possíveis teriam como 53 Muito elucidativa para esse aspecto do problema é a autobiografia de Edith Wharton Backward glance 1962 77 Sergio Lessa eixo a luta pela igualdade das mulheres na sociedade burguesa e no mercado de trabalho O que era a luta contra a família monogâmica se transformou nesses tempos em uma luta pela igualdade de ho mens e mulheres no interior do casamento monogâmico Tal como o socia lismo não é resultante de um processo infinito de democratização da democracia pelo contrário é a superação dos fundamentos sociais que requerem a organização da sociedade em democracia a luta pela libertação das mulheres não é o estabelecimento da igual dade entre maridos e esposasprostitutas mas sim a superação dos fundamentos sociais que converteram em serviço privado a criação das crianças e as atividades de cuidado da comida da moradia etc ou o intercurso sexual Pouco importa aqui se marido e mulher compartem de modo rigorosamente igual as tarefas domésticas e de criação dos filhos o decisivo é que tais atividades são realizadas na esfera privada apartadas da vida coletiva e das tarefas comuns e portanto alienam quem as executa as esposas e quem delas tira proveito os maridos Não importa também o sexo do marido ou da esposa como evidencia a permanência dessas alienações nos casamentos homossexuais E ainda tampouco importa a gêne se da prostituição masculina O decisivo é que amor e sexualidade estão agora antagonicamente articulados Estamos com isso nos aproximando do fundamental da crise contemporânea da família monogâmica 1 A crise contemporânea e a família monogâmica Do ponto de vista mais geral entre as décadas de 1970 e o início do século 21 assistimos a uma vitória sem precedentes da burguesia sobre o proletariado Este foi derrotado em todos os seus embates decisivos nenhuma revolução de alcance mundial ocorreu e o neo liberalismo conseguiu impor uma taxa de extração de maisvalia que só é comparável ao apogeu do Estado de BemEstar Social Dumé nil e Lévy 2004 A lucratividade do sistema foi elevadíssima Raras vezes na história a burguesia esteve tão desimpedida da ação do seu inimigo mortal Marx 1985105 o proletariado As nossas der rotas foram de tal monta que nos países capitalistas mais importan tes os operários terminaram reduzidos à base eleitoral dos partidos neoliberais Do ponto de vista do nosso tema o significativo é que este perío do de derrotas proletárias fez com que a humanidade se confrontas se com a possibilidade de o sistema do capital ser de fato o seu úni co futuro E isto é aterrador em todas as dimensões Generalizase a 78 Abaixo a família monogâmica concepção de que no futuro a vida será ainda pior A humanidade tem alguma consciência de que estamos preparando uma enorme tragédia futura quem sabe mesmo a nossa própria destruição Um forte indício deste estado de espírito são os filmes de ficção científi ca todos eles projetam um futuro no qual são brincadeiras de crian ça as piores ditaduras e as maiores violências que já conhecemos A montagem de um Estado vigilante como imaginava George Orwell em 1984 não é o resultado da generalização do stalinismo a todo o planeta mas do democrático desenvolvimento das democracias burguesas mais clássicas como a inglesa a francesa a estaduniden se a sueca a italiana etc54 Livre das pressões das lutas operárias o capital acumulou e cumpriu seu papel histórico aprofundou as desumanidades intensificou os mecanismos de controle e opressão ampliou a produção da abundância e nos conduziu ao aguçamento da crise estrutural do capital O medo passa a ser um traço comum dos processos de indivi duação Os indivíduos sem a possibilidade de romper o sistema do capital recorrem ao único mecanismo de defesa que encontram o aprofundamento do individualismo O pósmodernismo e as for mulações políticas neoliberais como a de um Giddens ou liberais 54 Kate Millet uma feminista histórica dos Estados Unidos em 1994 em seu livro Politics of Cruelty já havia dado uma descrição dramática da articulação entre o Estado de BemEstar e o renascimento e desenvolvimento da tortura Todavia Darius Rijali com o seu Torture and Democracy 2007 trouxe à luz por um enor me estudo sistemático acerca da tortura do século 20 mais de 800 páginas 250 delas de citações de documentos e depoimentos que em suas palavras a democracia tortura as democracias têm uma história diferente da tortura do que os países que ele chama de ditatoriais não uma ausência de história Democracias torturam mas elas torturam diferentemente favorecem a tortu ra mais limpa para evitar escândalos e favorecer sua legitimidade A história da democracia moderna é parte da história da tortura que não deixa marcas stealth torture Rijali 2007405 A adaptação legal jurídica para legitimar um Estado que controla seus cidadãos mais eficientemente que o Grande Ir mão de Orwell é um processo a que assistimos em nossos dias nos países mais democráticos que a democracia produziu Estados Unidos Inglaterra França etc A democracia como demonstra a história é o reinado do capital sempre violento e fundado na desigualdade jamais o império da liberdade Hoje nos EUA discutese a necessidade de um mandado de tortura uma autorização judicial para a tortura tal como temos o mandado de busca e apreensão e o mandado de prisão E mesmo autores ditos de esquerda O problema aqui é o de uma pressuposição ética fundamental evidentemente podese legitimar a tortura em temos de ganho no curto prazo salvar centenas de vidas mas e as consequências de longo termo para o nosso universo simbólico Zizek 2002104 Em que termos alguém de esquerda pode imaginar possível qualquer legitimidade da tortura de longo ou de curto prazo 79 Sergio Lessa como as de um Habermas da Teoria do Agir Comunicativo com todas as diferenças entre eles que não podem nem devem ser despreza das em uma análise mais cuidadosa são expressões do fortaleci mento objetivo nas relações sociais do individualismo burguês em tempos de produção destrutiva Num momento histórico em que as soluções para as ameaças que pesam sobre os indivíduos requerem a ação coordenada de grande parte se não da maioria da huma nidade sem a presença da luta operária a única proteção que os in divíduos encontram disponível é a intensificação de seu isolamento Chegamos a um trágico paradoxo no momento histórico em que o desenvolvimento científico é capaz de produzir um conhecimento gigantesco em que somos capazes de entender da origem do uni verso à origem da humanidade os indivíduos tendem a se afastar e se isolar do mundo e perdem qualquer interesse pela história e pela ciência E desesperados e isolados encontram na fantasia e na religiosidade o consolo para esse mundo sem coração Marx 2005145 Os misticismos as novas religiões e seitas a magia e mes mo a feitiçaria voltam ao nosso cotidiano como um consolo de que as pessoas precisam para suportar o peso que é viver atualmente sob o sistema do capital A situação histórica jamais demandou com tal urgência uma ação coletiva e os indivíduos nunca foram tão incapazes de realizála Essa é uma situação muito instável e não deverá perdurar To davia teve um enorme impacto no desenvolvimento da crise do casamento monogâmico no último século Na primeira década do século 21 pela primeira vez a maioria das famílias estadunidenses não é mais a família burguesa típica o marido como provedor a esposa e as crianças com a prostituição como apêndice Variações da organização familiar vão se tornando cada vez mais frequentes casais homossexuais famílias em que a esposa é provedora e bem atrás nas estatísticas famílias compostas somente pelo pai e pelos filhos Uma quantidade crescente de casais hetero ou homossexuais opta por não ter filhos E desde pelo menos a Segunda Grande Guerra mas possivelmente antes a famí lia vai deixando de ser a unidade econômica decisiva até mesmo na agricultura um processo que tem seu fundamento na concentração de capitais inerente ao modo de produção capitalista Esta quebra da forma clássica vitoriana da família burguesa já anunciada entre as duas Guerras Mundiais se aprofundou nos anos de 1960 a crítica dos costumes o desafio aos padrões morais esta belecidos o amor livre a libertação da libido feminina e a recusa 80 Abaixo a família monogâmica furiosamente justa das teorias patriarcais sobre a sexualidade ou a falta de das mulheres Tudo isso foi acompanhado pela tentativa de se criar uma nova forma de organização da vida doméstica na qual as atividades de criação dos filhos da alimentação e da organi zação da moradia passassem a ser tarefas comuns as comunidades hippies Por mais importantes que tenham sido tais tentativas foram derrotadas pois não atacaram o fundamental e centraramse no se cundário não passaram da busca inglória de alternativas à família monogâmica no interior da sociedade de classes Com a derrota dessas tentativas as décadas de 198090 presenciaram um retorno ao conservadorismo anterior à geração do Paz e Amor revalori zouse o casamento mesmo o religioso e a virgindade os ternos e gravatas tomaram conta dos jovens como nos anos pósSegunda Guerra Mundial as religiões ganharam novos fiéis muitos deles jo vens e a postura belicosa e rebelde foi substituída pelos yuppies e pelas patricinhas de Beverly Hills 9½ Semanas de Amor é o hit erótico todos os clichês do macho dominante e da entrega feminina estão lá sem remissão Esse fortalecimento do casamento monogâmico todavia não pode superar a situação objetiva pela qual simplesmente não é mais possível viver sob ele Se casadas as pessoas se separam com uma rapidez e facilidades inéditas na história outras simplesmente não casam Mesmo quando elogiam e prestigiam o casamento cada vez mais se recusam a adotálo No dizer de Lipovetsky 1997 troca mos de esposas tal como trocamos de roupa E assinala ele troca mos de roupa hoje numa velocidade muitíssimo maior que há pou cas décadas55 A família monogâmica está em uma crise de seus fundamentos também nesse aspecto vivemos um período de transição A crise contudo ainda não atingiu o patamar em que o futuro se expressa através de novas tendências históricas que se elevam às nossas cons ciências e em escala social Em outras palavras a crise é de tal mon ta vivemos tamanho impasse que algo tem de ser tentado Contudo como a revolução a única solução viável não se anuncia na vida cotidiana resta o reino das fantasias O final do século passado foi 55 Lipovtsky 1997 é um autor pósmoderno que considera o desenvolvimento da democracia o ápice do desenvolvimento humano possível e concebe a demo cracia como o reino da frivolidade para ele algo positivo Suas concepções não passam do típico elogio pósmoderno do mundo neoliberal contudo tal elogio por ser sincero e competente revela detalhes interessantes de como a reprodu ção econômica e ideológica da burguesia promove hoje o frívolo e o efêmero 81 Sergio Lessa pleno delas Lessa 2004 o fim do trabalho o comunismo que bro ta dos interstícios do capital Negri 1991XXXIV e 199420 267 e ss 4078 a superação do capital pela constituição de feudinhos solidários que transformariam toda a sociedade Campanha contra a fome do Betinho economia solidária cooperativismo enclosures tipo Terceira Itália etc o fim do trabalho manual pela introdução dos robôs o fim das classes sociais pelo desenvolvimento da sociedade da informação as imposturas intelectuais da pósmodernidade deliciosamente denunciadas por Bricmond e Sokal 1999 anjos da guarda energias misteriosas tratamentos de saúde milagrosos a força do pensamento positivo A lista é quase infinita O mesmo ocorreu no terreno da afetividade deixouse a história de lado e uma fantasiosa concepção dos gêneros substituiu as classes A luta contra a família monogâmica e contra o patriarcalismo cedeu lugar a fantasias de que a libertação das mulheres poderia ocorrer sem a superação da propriedade privada A derrota das tentativas de superar o patriarcalismo sem superar a propriedade privada era inevitável porque o objetivo era inviável impraticável Por outro lado 2 Os limites e as virtudes do feminismo Por outro lado nunca assistimos a uma reação das mulheres ao patriarcalismo como nas últimas décadas O feminismo foi e de algum modo ainda permanece um vasto movimento que se esparramou por quase todo o globo e que nesta forma tem existi do já por meio século Qualquer generalização acerca dele incorre certamente em injustiças e avaliações parciais e as considerações que se seguem certamente não estão isentas de tais equívocos Para tornálas mais problemáticas não há ainda uma história do conjun to desse movimento e as avaliações que dele fazem seus próprios integrantes estão longe de ser convergentes Mesmo assim é possível que o tempo não converta em falsida de a afirmação de que a concepção que predominou no conjunto do movimento feminista foi marcada pela redução da contradição entre o casamento monogâmico e o pleno desenvolvimento das pessoas masculinas e femininas a uma empobrecida questão de gênero entre homens e mulheres Gonçalves 2009 Da constata ção verdadeira de que a opressão das mulheres se faz presente em todas as classes sociais e da constatação falsa porque identificava ao socialismo a URSS a China Cuba etc de que no socialismo o problema não seria menos grave adotouse a tese da total autonomia 82 Abaixo a família monogâmica da questão feminina em relação às classes sociais ao Estado e à propriedade privada56 Uma vez realizada a disjunção entre a questão do gênero e a propriedade privada a sociedade de classes e o Estado o gravíssimo problema histórico da alienação do ser humano em individualidades masculinas e femininas tal como vimos no Capítulo III é reduzido a uma questão de mulher que diria respeito apenas e tão somen te às diferenças de oportunidade na sociedade A superação das alienações que moldam as personalidades de todos nós em maridos versus esposasprostitutas e impõem o isolamento social das crianças na primeira infância com tudo o que isso implica e significa todos esses gigantescos problemas são deixados de lado e varridos para debaixo do tapete E a questão que passa a ser central é a igualdade formal principalmente no mercado de trabalho e no mercado da política o Estado O conteúdo histórico do que seria a tal condi ção feminina sofre então uma brutal redução não mais seria uma expressão das alienações que brotam da propriedade privada isto é da exploração do homem pelo homem mas expressão do desequi líbrio relativo do local ocupado pelos homens e pelas mulheres na sociedade contemporânea Nossa sociedade deixa de ser carac terizada como uma sociedade de classes e passa a ser denominada como uma sociedade assimétrica Corrigidos tais desequilíbrios a questão estaria resolvida como diz um socialista espanhol muito conhecido aquele que não sabe contra quem luta não pode vencer a batalha aquelas feministas que clas 56 Mesmo autoras tão importantes como Simone de Beauvoir defenderam teses por vezes pueris e ingênuas outras vezes de uma ignorância funesta Em O se gundo sexo sua recusa das teses de Engels apenas revela a total ignorância destas Pretender por exemplo que Engels deduziria o casamento monogâmico do machado de ferro Beauvoir 2009 p 87 e ss ou que identificasse a eman cipação das mulheres com sua igualdade jurídica pp 889 é para dizer o mínimo ignorância somada à má vontade e arrogância A confusa e eclética fusão de fundamentos filosóficos não apenas distintos mas antagônicos como a associação de Marx e Heidegger cobra de Beauvoir um elevado preço Sua crítica ao patriarcalismo termina no terreno mais conservador Elas são mu lheres devido à sua estrutura fisiológica por mais longe que se remonte na história sempre estiveram subordinadas aos homens sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução ela não aconteceu p 19 Verdade que a autora francesa não leva esse seu argumento às últimas conse quências ao postular que a natureza como a realidade histórica não é um fato imutável p 19 Todavia como seria possível alterar a natureza biológica e fisiológica das mulheres de tal modo a superar o patriarcalismo Essa questão decisiva permanece sem resposta 83 Sergio Lessa sificam o problema da mulher na sociedade moderna como um problema de gênero e buscam desesperadamente traçar políticas que busquem a igualdade de gênero não sabem contra quem lutam Toledo 200814 Uma das consequências mais graves desta perda de perspectiva histórica é que a concorrência e o individualismo típicos da socie dade burguesa adquirem agora um novo reforço na luta pelas mu lheres para ocupar o lugar dos homens O patriarcalismo passa a ser atacado de um ponto de vista tão limitado e tão pobre que tal contestação é facilmente absorvida pela sociedade burguesa As políticas afirmativas dos governos neoliberais são soluções mais do que adequadas a tão empobrecido horizonte E não raro luta doras voluntariamente se colocam a serviço de governos conser vadores neoliberais Cancelado o fundamento histórico da família monogâmica re duzido o seu conteúdo histórico à questão de gênero nos termos acima as teorias mais conservadoras ganham um vasto espaço Se a condição feminina pode ser resolvida com uma maior entrada das mulheres no mercado de trabalho e pela igualdade formal jurídica toda a luta das mulheres fica restrita ao horizonte da democrati zação da democracia e do Estado Sem remissão a luta está agora embaralhada com pressupostos liberais e com as fantasias acerca da neutralidade de classe do Estado O eurocomunismo da década de 1980 a concepção do último Poulantzas57 e depois a de alguns gramscianos contribuem para essa involução o Estado seria a ex pressão da correlação política de forças entre os grupos em conflito ele tanto serviria como um instrumento para a emancipação das mulheres quanto para o fortalecimento do patriarcalismo a depen der da correlação de forças poderia historicamente servir tanto aos propósitos de libertação dos oprimidos quanto aos interesses opressores dos dominantes Foi nesse contexto teórico e ideológico mais geral que surgiu o modismo de teorizações movimentos literatura programas de TV etc que assumem como axioma58 a possibilidade da igualdade entre homens e mulheres na socieda de capitalista estamos em plena era das tentativas de solucionar a questão do gênero com as ações afirmativas Do ponto de vista prático a luta pela emancipação feminina ficou atolada no pântano 57 Sobre a evolução da concepção do Estado em Poulantzas conferir Codato 2008 58 Axioma é uma afirmação cuja veracidade é tão evidente que não requer de monstração 84 Abaixo a família monogâmica democrático Isso do ponto de vista político Em se tratando de teoria as coi sas foram ainda piores Se o patriarcalismo não tem sua origem na sociedade de classes por que as mulheres são inferiores aos ho mens Qual a origem da opressão feminina O que precisamente seria o gênero feminino Se for uma determinação biológica a su peração do patriarcalismo e a mais autêntica igualdade entre homens e mulheres seriam algo tão impossível quanto uma humanidade composta por pessoas de quatro pernas Se for determinação social e portanto passível de alterações pela transformação da sociedade de onde se originaria o gênero feminino Qual o fundamento úl timo da humanidade bipartida em um gênero masculino que oprime um gênero feminino Entre o fundamento biológico e a propriedade privada em se tratando da gênese do patriarcado não há meiotermo possível nem prático nem teórico E muitas vezes foi por buscar esse meio termo que o feminismo mais típico não pôde ir além da utopia no sentido pejorativo de não ter lugar na história da igualdade na so ciedade de classes Não foi pela mesma razão por buscar solucionar uma situação histórica sem superar seus fundamentos históricos que os movimentos dos anos de 1960 as comunidades hippies etc não atingiram nem poderiam atingir os objetivos a que se propu nham Foram os que poderiam ser nem mais nem menos os re sultados da redução à questão de gênero das alienações que se concentram na família monogâmica o capital teve toda liberdade para impor as modificações que sua crise estrutural tornou neces sárias Mesmo levandose em consideração a enorme disparidade entre países e continentes ampliouse enormemente a exploração das mulheres no mercado de trabalho o que delas exigiu proces sos de individuação que vão para muito além do modelo vitoriano Correlativamente as individuações masculinas também tiveram de romper com muito do padrão tradicional A organização familiar não tem mais no padrão vitoriano sua única possibilidade ainda que continue sendo a mais legitimada Houve uma efetiva muito significativa reaproximação entre sexo e afetividade para ambos os sexos em escala social A infidelidade feminina ainda é menos desculpável que a masculina mas a situação está longe da de há poucas décadas Todos esses avanços provocados pelas necessidades inerentes ao desenvolvimento histórico do sistema do capital Mészáros não 85 Sergio Lessa alteraram nem poderiam alterar fundamentalmente a essência do patriarcalismo A reprodução da sociedade burguesa como todas as sociedades de classe requer a disjunção entre as atividades de criação dos filhos as tarefas domésticas mais imediatamente vincu ladas à reprodução biológica das atividades genéricas socialmente decisivas Independentemente de serem homens ou mulheres os responsáveis pelas tarefas domésticas tais responsáveis continuam sendo portadores de possibilidades limitadas rebaixadas de cres cimento das suas pessoas as alienações E por isso nem a ma ternidade nem a paternidade nem a condição de filhos podem ser mediações para o pleno desenvolvimento dos indivíduos indepen dentemente de como as mulheres adentram ou saem do mercado de trabalho e de uma maior ou menor equidade na divisão das tarefas domésticas e de criação dos filhos pelos membros da família ir mãos mais velhos inclusive Tais novidades quase imediatamente se convertem em renovados obstáculos ao desenvolvimento dos in divíduos as relações intrafamiliares espontaneamente reproduzem e reforçam a concorrência e o individualismo a cotidiana violência doméstica se mantém continua o abuso sexual de crianças e adoles centes principalmente por parentes intensificase a dupla jornada de trabalho por obra e graça da reestruturação produtiva Hirata 2002 numa lista que poderia prosseguir por muito mais Nessas circunstâncias o máximo a que se poderá chegar é bem próximo das atuais sociedades capitalistas mais desenvolvidas uma igualdade jurídicoformal entre homens e mulheres o direito ao aborto cada vez mais generalizado Tudo isso não toca contudo no essencial nem na essência do indivíduo burguês guardião de mercadorias nem na essência da degradação das tarefas de criação dos filhos e das tarefas domésticas a uma conexão rebaixada com o gênero humano Também no casamento monogâmico chegamos ao impasse que hoje vivemos em todos os outros complexos sociais mesmo que avanços pontuais importantes tenham sido alcançados mesmo que a situação não seja a mesma do passado ainda assim estão tão in viabilizadas quanto antes as possibilidades de realização plena dos indivíduos Isto é aquela realização que tem por solo a ação coletiva fundada pelo trabalho associado59 que é voltado ao atendimento 59 Trabalho associado na precisa acepção de Marx o trabalho não mais alienado pelo capital que tem em seu centro não a produção de mercadorias mas as necessidades humanas mais autênticas O trabalho que funda o comunismo a livre organização dos produtores associados Nenhuma proximidade por 86 Abaixo a família monogâmica de todas as necessidades de todos os indivíduos E pelas mesmas ra zões que no passado o antagonismo entre a propriedade privada e o desenvolvimento autêntico dos indivíduos e da humanidade Entre a racionalidade do capital e as necessidades humanas há um anta gonismo histórico Como Shakespeare dizia séculos atrás a razão e o amor não se misturam nestes dias Shakespeare sd Abriuse nas novas condições históricas cujos traços mais ge rais descrevemos acima uma gigantesca crise afetiva a angústia e a tristeza se converteram em traços tão generalizados das pessoas contemporâneas que se elevam à condição de epidêmicas doenças da alma como a depressão Do ponto de vista especificamente feminino as pessoas podem ser literalmente estraçalhadas pela pres são social Ser profissional no mercado de trabalho cidadã na esfera da política esposa do lar amante de quem ama mãe para os filhos Como uma pessoa poderia se desenvolver de modo íntegro sob tais demandas60 Como diz a personagem Rê Bordosa de Angeli assis timos à liberação feminina afogada em uma banheira de culpas A alienação a depressão o estresse é tão aguda que altera o metabolismo humano sendo causa de doenças com frequência cres cente61 As relações sociais estão de tal forma desumanizadas que os indivíduos coletivamente se isolam pois a vida em comum é cada tanto com autores que nos nossos dias entendem que o trabalho associado existiria nas cooperativas ou outras formas de associação de trabalhadores que jogados no desemprego se organizam para lutar por um lugar no mercado Cf por exemplo Vieitez C G Dal Ri N M 2001 Sobre o trabalho associado de fundamental importância são os livros de Tonet 1999 2005 e 2010 60 Há um livro quase de autoajuda Perfect Madness na qual a autora Judith Warner 2005 comenta as dificuldades das mulheres nos dias de hoje e como superálas claro através de uma nova postura individual Para além da enorme injustiça de fazer de uma postura individual de cada mulher a causa última de seus males a descrição da loucura madness de se ser hoje mulher é muito interessante 61 Aumentam os indícios de como as situações históricas pela mediação da afe tividade dos indivíduos podem alterar de modo profundo por vezes mesmo inviabilizar processos biológicometabólicos mais basilares Michel Odent por exemplo tem demonstrado com inúmeros argumentos como um processo tão aparentemente biológico como o parto sofre influências históricas que podem alterar profundamente o seu andamento no limite até mesmo inviabilizandoo E como da interação entre a formação do feto no útero o processo biológico do parto e as determinações históricas resultam consequências muito importantes para a constituição biológicoafetiva de todos nós enquanto indivíduos humanos Como a maior parte das investigações científicas de ponta também esta precisa partir do já conhecido e por isso nem sempre as generalizações de ordem filosó fica soam convincentes mas os dados são significativos Odent 2000 87 Sergio Lessa vez mais destrutiva As alienações contemporâneas estão cobrando um elevadíssimo preço afetivo levando os humanos mesmo aque les das classes dominantes a sofrimentos antes inimagináveis E isso tem obviamente forte impacto sobre o nosso tema a família monogâmica Entre o século 17 e os nossos dias o amor sexuado individual que adentrou na historia pelo palco do Theatre em Shoreditch com Romeu e Julieta se desenvolveu articulado às forças produtivas Tor nouse um sentimento com necessidades carências e possibilidades muito mais ricas complexas moduladas e mediadas do que o amor retratado em Romeu e Julieta Um reflexo dessa situação pode ser en contrado na literatura As personagens femininas dos romances do final do século 19 para cá são muito mais densas e ricas suas emo ções e sua capacidade de sentir são muito mais mediadas desenvol vidas humanamente articuladas do que nas peças de Shakespeare Entre Nora a personagem central de Casa de bonecas de Ibsen e Ju lieta a distância é enorme A disparidade entre as necessidades por afeto por sensações por emoções por uma vida amorosa plena e as relações sociais predominantes se elevaram de contradições a antagonismo A tragédia em Romeu e Julieta pode ser o resultado de infelizes acontecimentos fortuitos o mensageiro não encontrou Romeu para lhe dar ciência da trama etc em Ibsen a tragédia não é casual mas inevitável Na vida cotidiana o fato de os indivíduos não poderem reali zar o que necessitam de serem impedidos de explorar as mais ge nerosas possibilidades aos seus desenvolvimentos pessoais abertas pela abundância objetiva material se expressa pela situação con creta de que nós não podemos amar fora da família monogâmica Após milhares de anos sob a propriedade privada e o casamento monogâmico formados pelos processos de individuação típicos das sociedades de classe com nossas personalidades centradas no indi vidualismo e na concorrência com nosso ser social articulado ao redor da propriedade privada somos do ponto de vista histórico incapazes de amar fora do casamento monogâmico fora do patriar calismo mesmo que sua forma vitoriana esteja sendo aos poucos deixada para trás As mediações com que contamos para expressar nossas emoções as formas de exteriorização62 de nossas sexuali dades as emoções que tais exteriorizações e tais mediações possi 62 Como tradução de Entäusserung 88 Abaixo a família monogâmica bilitam que se elevem às nossas consciências todas essas e outra mediações63 fazem com que não sejamos historicamente capazes de desenvolver relações sociais que sejam portadoras do amor mais au têntico do qual todavia experimentamos cotidianamente a neces sidade Como as relações sociais predominantes são antagônicas ao pleno desenvolvimento do amor sexuado individual os indivíduos que se reproduzem no interior dessas relações também não contam com a possibilidade histórica de desenvolver suas personalidades de modo a realizarem plenamente suas relações afetivoamorosas A crise é enorme e enormemente dolorosa o sofrimento huma no incomensurável Sua superação requer novos processos de individuação que pos sibilitem pessoas com novas capacidades e novas habilidades Para tanto é indispensável superar o modo de produção atual e para essa superação é imprescindível alterar o essencial precisamos passar do trabalho proletário ao trabalho emancipado do trabalho abstrato explorado pela burguesia para a livre organização dos produtores associados o trabalho associado Talvez em se tratando desse complexo de problemas e possibili dades o primeiro passo em direção ao futuro venha a ser o abando no de ilusões e o enfrentamento do problema com todos os desafios que a história colocou em nossas mãos Para isso como em tantas e tantas outras esferas autores contemporâneos como Leacock são importantes sendo a contribuição de Mészáros fundamental 3 Mészáros a mulher e os limites absolutos do capital 63 São muitos os complexos ideológicos que aqui exercem funções mediadoras a linguagem os costumes o Direito a arte a filosofia etc cada um a seu modo interfere nesse processo A forma como Abelardo e Heloísa consegui ram expressar o que sentiam reciprocamente por exemplo é algo que revela tanto os limites como as possibilidades de complexos como a linguagem e os costumes servirem como expressões das relações amorosas naquele momento Sobre esse aspecto interessantíssimo é o texto de Gilson já citado Idem para o famoso diálogo do balcão em Romeu e Julieta a rosa teria outro perfume se não tivesse outro nome A essência de Romeu estaria em seu sobrenome ou na sua individualidade concebida da perspectiva da burguesia nascente como algo que se apoiaria em si mesmo que seria o seu próprio fundamento No século 16 o amor pôde ser nomeado e tornado consciente de um modo que não era possível no século 12 E por fim tantos séculos após o diálogo entre Olenska e Newland Archer em A era da inocência no qual o amor entre eles é reconhecido como real e ao mesmo tempo impossível É apenas um exemplo mais desenvolvido mais explícito da insuperável dimensão trágica dimensão essa presente também na linguagem nos costumes nos gestos no Direito etc 89 Sergio Lessa Como em toda obra clássica Para além do capital também é um texto cuja compreensão adequada apenas pode ocorrer a partir das suas teses centrais São elas que possibilitam a compreensão das questões particulares a totalidade é o momento predominante na determinação precisa de suas categorias Talvez esta seja uma das razões para que parte ponderável dos comentários até agora pu blicada entre nós se revele equivocada pois carece de uma maior aproximação ao todo da obra Isso coloca para nós uma dupla di ficuldade Não contamos ainda com qualquer estudo sistemático da totalidade dessa obra64 e pessoalmente não sou um estudioso de Mészáros Meu contato com Para além do capital está longe de ser suficientemente sistemático Por isso as linhas que se seguem ainda mais que o restante deste texto possuem um caráter de aproxima ção e logo deverão ser inutilizadas pelo avanço das investigações Ainda assim seria uma enorme e imperdoável lacuna não chamar mos a atenção para a importância de Mészáros quanto à análise da família monogâmica contemporânea Mészáros é o primeiro grande e sistemático pensador que pôde tirar as consequências históricas da tragédia soviética chinesa viet namita etc ou como ele diz das sociedades pósrevolucionárias Lukács fez parte da geração anterior e compartilhou da ilusão de que seria possível o socialismo em um só país Quando faleceu em 1971 ainda mantinha sua concepção de que da URSS resulta ria a transição para o comunismo65 Mészáros aluno e assistente de Lukács desenvolveu os pressupostos e as investigações ontológicas de seu mestre É dele a primeira crítica sistemática da totalidade da história do século 20 tanto em sua vertente burguesa tradicio nal quanto no que de particular ocorreu nas sociedades que conhe ceram processos revolucionários E ainda mais pôde demonstrar como a particularidade da trajetória das sociedades burguesas típicas 64 O primeiro estudo sistemático de Para além do capital a ser publicado é o de Cris tina Paniago 2007 65 José Paulo Netto e Carlos Nelson Coutinho organizaram muito recentemente três volumes de textos de Lukács 2009a 2009b 2009c que são da maior im portância para o conhecimento do filósofo húngaro No primeiro volume desta coletânea há talvez o texto mais representativo da avaliação que Lukács fazia da URSS e das potencialidades históricas dos países do bloco soviético Socialismo e democratização A crítica que Mészáros faz a este texto está no Capítulo 10 de Para além do capital já a posição de José Paulo Netto se expressa na apresentação deste volume da coletânea esta nota é um convite para o leitor entrar em conta to com a viva polêmica envolvendo o Lukács de maturidade que está ganhando corpo entre os pesquisadores 90 Abaixo a família monogâmica e as particularidades das sociedades pósrevolucionárias se articu laram em uma mesma totalidade o sistema do capital As contribuições de Mészáros são gigantescas e decisivas E em se tratando da família monogâmica suas contribuições não são me nos significativas Mészáros traz para o debate acerca da família monogâmica dois elementos que não foram analisados por Marx Engels e Lukács Em primeiro lugar a análise do problema a partir não apenas da sociedade burguesa mas também das condições particulares em que se afirmou a família monogâmica na antiga URSS bem como nos partidos e nas organizações comunistas Em segundo lugar pôde analisar os avanços e vitórias pontuais das lutas de gênero66 para demonstrar com muitíssimos exemplos como foram absorvidas pelo sistema do capital e desse modo terminaram funcionando como legitimadoras ideológicas da totalidade do sistema ao não irem além de críticas parciais a este O ponto de partida da análise de Mészáros é o mesmo que já encontramos em Marx e Lukács não há reprodução social sem a reprodução biológica ou em suas palavras a regulamentação eco nomicamente sustentável da reprodução biológica da humanidade é uma crucial função mediadora primária do processo sociometabóli co Mészáros 2002187 Devido ao aprofundamento das contradições do sistema como um todo e à abertura da crise estrutural a produção destrutiva foi preciso adaptar e modificar a estrutura familiar às necessidades imediatas do sistema do capital acima de tudo a necessidade de in corporação ao mercado de uma força de trabalho feminina cada vez maior Isso traz à tona naturalmente a questão da igualdade entre homens e mulheres A maior participação de mulheres nos postos de poder o direito ao voto as leis contra a violência doméstica e muito mais são modificações originadas das próprias necessidades do ca pital Contudo os imperativos materiais do sistema são tão avassa ladoramente predominantes que por esses ganhos as mulheres não se aproximam de um estágio emancipado Pelo contrário veem suas condições objetivas de vida em processo de degradação Elas têm de aceitar uma parcela desproporcional das ocupações mais inseguras mais mal pagas no mercado de trabalho e se encontram na péssima situação de representar 70 por cento dos pobres do mundo as exigências que são e continuarão sendo alocadas às mulheres são cada vez mais difíceis de ser 66 Isto é daquela concepção que dissocia o patriarcalismo da propriedade privada 91 Sergio Lessa atendidas o que contribui para o desaparecimento crescente da forma vitoriana da família burguesa Quanto mais a família burguesa entra em crise maiores as demandas que o sistema coloca sobre ela principalmente para as mulheres como eixo da família nuclear acelerando sua dis solução com sérias repercussões negativas para todo o sistema do capital Mészáros 2002219 A dissolução em curso da forma vitoriana de família monogâmi ca contudo não significa que os processos de individuação adqui riram uma nova qualidade e que agora possibilitam aos indivíduos colocar sob controle os processos alienantes que brotam da proprie dade privada O oposto aconteceu perdida a ancoragem histórica no patriarcalismo típico as pessoas buscam alternativas da maneira como a sociabilidade burguesa em crise lhes possibilita isto é pelo fortalecimento do seu individualismo e pelo processo de coletivo isolamento de que tratamos acima Suas personalidades continu am cindidas não harmônicas e muito pouco íntegras Os aparentes avanços do gênero são antes manifestação do aprofundamento da crise e da intensificação das alienações do que passos emanci patórios dos homens e das mulheres Isso tanto do ponto de vista pessoal individual quanto do ponto de vista coletivo Do ponto de vista mais geral histórico em se tratando da situação da mulher não vão além do nível da igualdade formal Mészáros 2002188 tendo ou não as mulheres o direito de votar elas devem ser excluídas do real poder de tomar decisões devido ao seu papel crucial na reprodução da família que deve ser compatibilizada com os ditames absolutos e autoritários do capital do mesmo modo pelo qual a entrada no Estado de partidos tra balhistas e socialdemocratas não pode significar a igualdade subs tantiva para o trabalho Mészáros 2002196 E ironicamente acrescenta Mészáros mesmo que todos os cargos de direção nos negócios e na política fossem por lei reservados para as mulheres isso ainda deixaria um número incomparavelmente maior de ir mãs numa posição abjeta de subordinação e impotência Mészáros 2002202 Analogamente a como ocorreu na URSS e ainda ocor re nas sociedades pósrevolucionárias as mulheres podem ter a igualdade formal de fazer parte da força de trabalho sob as mesmas condições de remuneração que seus colegas masculinos Além disso suas condições como mães trabalhadoras podem ser consideravelmente 92 Abaixo a família monogâmica melhoradas com berçários e facilidades para as crianças menores de tal modo que elas possam mais fácil e rapidamente retornar à força de trabalho fulltime Mészáros 2002210 Tudo isso contudo são concessões absorvíveis pelo sistema do capital O que não pode ser questionado é a divisão de trabalho es tabelecida e o papel das mulheres na estrutura familiar herdada do passado Mészáros 2002209 Mesmo que avanços pessoais ou por pequenos grupos possam ocorrer e ocorrem ainda assim não podem se tornar historicamente dominantes na moldura ge ral framework do controle sociometabólico do capital Mészáros 2002189 A razão decisiva dessa situação para Mészáros está em que en quanto a relação vital entre homens e mulheres for determinada pela propriedade privada e nesse sentido não for livremente e es pontaneamente regulada pelos próprios indivíduos isto é não for regulada a partir das necessidades autenticamente originadas de seu universo interpessoal historicamente dado com base na igualdade substantiva entre as pessoas envolvidas não há qualquer possibilidade de emancipar a sociedade dos impactos deforma dores da alienação que impedem a autorealização dos indivíduos como seres sociais particulares Mészáros 200218788 O sistema do capital irá sempre impor sobre as pessoas envol vidas os seus ditamos socioeconômicos fazendo com que os microcosmos das relações interpessoais tenham de se moldar à propriedade privada com o que qualquer autonomia que seja ex pressão da particularidade social dos indivíduos tem de se submeter às necessidades do próprio capital Mészáros 2002 1878 A autor re alização dos indivíduos nessas circunstâncias não existe sequer como possibilidade apenas como necessidade 4 Monogamia sem família monogâmica Depois de tudo o que vimos não soará estranho ao leitor que para Engels O matrimônio só se realizará com toda liberdade quando suprimidas a produção capitalista e as condições de propriedade criadas por ela forem re movidas todas as considerações econômicas acessórias que ainda exercem uma influência tão poderosa na escolha dos esposos Então o matrimônio já não terá outra causa determinante que não a inclinação recíproca Engels 2010106 93 Sergio Lessa Depois de demonstrar como a monogamia surge com a socieda de de classes e dela faz parte de uma forma necessária depois de demonstrar que desde sua origem o caráter específico da mo nogamia é que ela é só para a mulher e não para o homem E na atualidade conservase esse caráter Engels 201084 e ainda mais após argumentar como as diferentes formas de família poligâmica os haréns do Oriente as famílias mórmons etc nada mais são que a institucionalização da mesma monogamia já que também nessas formas poligâmicas temos um único parceiro para a mulher e várias mulheres para um só homem enfim depois de demonstrar cabal mente que monogamia e patriarcalismo são inseparáveis o que pode ríamos esperar da continuidade da argumentação de Engels é que o comunismo fosse a superação da monogamia tal como será a supe ração do Estado da propriedade privada e das classes sociais Não é esta todavia a sua posição Para ele liberta das alienações oriundas da propriedade privada da exploração do homem pelo homem a mono gamia encontraria a base histórica para o seu desenvolvimento mais pleno Em suas palavras o que sem sombra de dúvida vai desaparecer da monogamia é o conjunto dos caracteres que lhe foram impressos pelas relações de propriedade a que deve sua origem Esses caracteres são em primeiro lugar a preponderância do homem e depois a indissolubilidade do matrimônio Engels 2010107 Liberto da propriedade privada o amor sexuado individual alcan çaria sua plenitude histórica A preponderância do homem no matrimônio é consequência evidentemente de sua preponderância econômica e desaparecerá por si mesma com esta última A indissolubilidade do matrimônio é consequência em parte das condições econômicas que engendraram a monogamia e em parte uma tradição da época em que mal compreendida ainda a vinculação dessas condições econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião Atualmente já está fendida por mil lados Se o matrimônio baseado no amor é o único moral só pode ser moral o matrimônio onde o amor persiste Engels 2010107 Por que o comunismo superaria o Estado e as classes sociais mas manteria a monogamia que tal como o Estado e as classes é fundada pela propriedade privada Em outras palavras se a monogamia é o re flexo da propriedade privada da exploração do homem pelo homem na esfera da organização familiar se a monogamia é fonte de profun das alienações no que somos enquanto homens e mulheres por que a monogamia não desapareceria junto com a propriedade privada Essa incongruência ou ao menos tensão no texto de Engels tem 94 Abaixo a família monogâmica seu fundamento na concepção de qual seria a essência do amor sexu ado individual desde que o amor sexual é por sua própria natureza exclusivista embora em nossos dias esse exclusivismo só se realize plenamente sobre a mulher o matrimônio baseado no amor sexual será por sua própria natureza monogâmi co Engels 2010106 Ou seja para Engels o amor sexuado individual seria exclusivis ta Tanto quanto conseguimos entender seria por essa razão que no comunismo o amor exclusivista liberado de todas as aliena ções fundadas pela propriedade privada faria com que a monoga mia agora baseada no livre consentimento dos envolvidos alcan çasse o seu pleno desenvolvimento Portanto para Engels a sociedade comunista que superaria a família monogâmica não superaria a monogamia A monogamia fruto da propriedade privada parte essencial da sociedade de clas ses uma alienação profunda das relações entre homens e mulheres converterseia na relação afetiva mais plena rica densa desenvolvi da em uma palavra emancipada entre dois indivíduos humanos O que explicaria essa posição de Engels é sua concepção de que o amor sexuado individual seria em sua essência exclusivista O argumento de Engels possui um duplo aspecto O primeiro que o amor sexuado individual teria uma essência exclusivista com o que estaria excluída qualquer possibilidade de coincidência de dois grandes amores O segundo que liberto da propriedade pri vada e do patriarcalismo o caráter exclusivista do amor sexuado conduziria a um tipo superior mais elevado de monogamia agora resultante apenas da livre escolha do consenso da livre inclinação das pessoas que se amam No comunismo portanto não teríamos mais o patriarcalismo mas sim a autêntica monogamia decorrente do exclusivismo essencial ao amor sexuado Será isso de fato verdade Se um dos critérios que seguimos neste exame da família mono gâmica a saber que as obras de arte são uma fonte confiável quan do se trata da investigação dos processos afetivos típicos vividos pelos indivíduos em escala social os indícios parecem se contrapor a esta tese do exclusivismo de A origem da família Os dramas exis tenciais as dores afetivas os sofrimentos individuais as concessões que os indivíduos precisam fazer nas situações em que dois grandes amores são vividos ao mesmo tempo são tão frequentes na litera tura que seria razoável postularmos que hoje os indivíduos revelam 95 Sergio Lessa a capacidade de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo E isto vale para as mulheres e para os homens não é uma consequência imediata do patriarcalismo como é a prostituição As opções e as dolorosas escolhas a que são forçadas as pessoas que na confluência de dois grandes amores têm de abandonar um deles pelo outro é uma experiência muito mais generalizada do que reconhecida se as obras de arte continuam sendo um reflexo adequado do típico socialmente vivido Tal como em A era da inocência de Edith Whar ton a tragédia aqui é a dolorosa escolha imposta aos que amam dos dois grandes amores um dos dois deve ser vivido sob a forma de ser deixado para trás e a seguir o fato de que tal escolha não pode deixar de ter consequências negativas para o desenvolvimento do amor que se decidiu preservar se não por outro motivo pela simples razão de promover o embrutecimento um rebaixamento do desenvolvimento afetivo daquele a quem coube a dolorosa escolha Dois grandes amores tal como dois fachos de luz não se anulam reciprocamente Talvez uma sociedade que possibilite aos indivídu os amarem tanto quanto forem capazes faça com que dois amores concomitantes potencializemse mutuamente E que por essa me diação amores concomitantes tornem não apenas mais rica cada re lação amorosa como também mais ricos capazes de emoções mais elevadas os indivíduos neles envolvidos Pareceme razoável postular que o exclusivismo que Engels lo calizou no amor sexuado individual seja antes produto do fato de tal amor ter surgido na sociedade burguesa do que uma sua caracte rística essencial possivelmente decorra do fato de ter se desenvol vido como parte de individualidades burguesas cuja vida cotidiana é marcada pela concorrência e pelo conflito e que por isso gera pessoas que não conseguem viver e expressar seus amores sem con corrência e conflito Hoje com a crise mais profunda da sociedade e da família burguesas possivelmente tenha se explicitado uma capa cidade de os indivíduos viverem grandes amores concomitantes em uma intensidade e amplitude desconhecidas por Engels Além do exclusivismo o amor sexuado individual teria ainda uma outra característica que Engels coloca nestes termos a duração do acesso de amor sexual é muito variável segundo os indi víduos particularmente entre os homens em virtude disso quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo amor apaixonado o divórcio será um benefício tanto para ambas as partes como para a sociedade Apenas de verá pouparse ao casal o ter de passar pelo lodaçal inútil de um processo de divórcio Engels 2010107 96 Abaixo a família monogâmica Que a duração do amor sexual seja variável entre os indivíduos parece ser algo que a história confirma Mas que entre os homens essa tendência à variação é maior que entre as mulheres é algo que já não podemos afirmar com a mesma segurança Não podemos tomar os homens e mulheres criados em milhares de anos de ca samento monogâmico como modelos para os homens e mulheres de uma sociedade emancipada Já vimos como a repressão sexual das mulheres tem no estímulo artificial ao apetite sexual entre os homens o seu corolário necessário Talvez isso mais do que tudo é o que tenha levado Engels a tal afirmação E é também questionável imaginar que as pessoas continuarão casando e se divorciando tal vez as coisas não ocorram assim A tentativa de Engels de imputar à monogamia um novo conte údo como parte da sociedade emancipada é tão contraditória como postular que o Estado poderia ser o espaço da emancipação huma na desde que entendêssemos por Estado a organização coletiva que buscasse o bem comum Se já foi demonstrado que na história o Estado apenas existe como instrumento especial de repressão dos trabalhadores pelas classes parasitárias ou que a monogamia é uma alienação oriunda da propriedade privada não tem sentido algum postular ter o Estado ou a monogamia um conteúdo inteiramente distinto na sociedade comunista Mais coerente é afirmar a sua supe ração histórica por uma forma superior de organização da sociedade e da família Chamar de monogamia a opressão feminina e a forma mais livre de relação afetiva amorosa só pode ser fonte de enormes confusões que debilitam não apenas o impacto crítico das teses de Engels como ainda abrem a porta para o pensamento conservador que pretende a todo custo salvar a família monogâmica Sendo inteira e radicalmente no sentido de ir à raiz coerente com os próprios pressupostos de Engels a monogamia desaparece rá junto com a propriedade privada já que é a expressão na organi zação familiar da opressão patriarcal Isso contudo é apenas parte do problema O seu outro aspecto reside em que se o desenvolvimento contemporâneo parece tornar razoável questionar tanto o exclusivismo como a maior variabi lidade entre os homens do amor sexuado nada no mundo atual parece indicar que a superficialidade de muitos relacionamentos ins tantâneos seja adequada ao mais rico desenvolvimento afetivo dos indivíduos As necessidades e possibilidades afetivas que enquanto pessoas historicamente determinadas vivemos cotidianamente de Romeu e Julieta até Por quem os sinos dobram de Hemingway indi cam que os grandes amores possuem elevada força de permanência 97 Sergio Lessa na vida dos indivíduos quer uma permanência no sentido de que a relação amorosa perdura por muitos anos quer no sentido de que é uma emoção que compõe a substância afetiva que o indivíduo carre gará até o final de sua vida Também porque de forma muito direta contribuem para frear sempre parcialmente é verdade as aliena ções predominantes As relações instantâneas superficiais ao con trário parecem não possuir a força e a potência afetiva para elevar os indivíduos a novos e mais elevados patamares de individuação de elevar a capacidade de os indivíduos manterem com a sociedade e consigo próprios um patamar mais rico e socialmente mais avançado de interações de deterem ainda que apenas em parte os impulsos alienantes cotidianos Se isso for correto as teses acerca do amor livre a tese do copo dágua de Kollontai por exemplo que com frequência circu lam pela nossa esquerda são insuficientes para nossas necessidades e nossas possibilidades afetivas De um lado porque são de um in dividualismo a toda prova as necessidades mais individualistas são as que presidem o desenvolvimento da relação Enquanto interessar o indivíduo se envolve No momento em que não for mais assim desaparece de preferência sem deixar traços Em segundo lugar porque é de uma irresponsabilidade também a toda prova pouco se importa com as consequências para a pessoa como também para o parceiro seria demais denominar de amante O hedonismo de tais teses e relações é tamanho que quase vale se perguntar amor livre de quê Como se o amor pudesse verdadeiramente surgir e se desenvolver sem intensas e ricas relações sociais e afetivas que ao invés descompromissar os indivíduos os tornam muito mais inten samente responsáveis e solidários com oa amadoa E ainda mais que tais sentimentos apenas podem se desenvolver em indivíduos que são capazes de uma rica conexão com o mundo mesmo no in tenso patamar de alienações em que hoje vivemos O amor livre assim posto é inteiramente compatível com a concepção de mundo fetichizada e banal do pósmodernismo Mas sobre isso agora não temos espaço senão para essa rápida menção Em franca oposição às teses do amor livre relações afetivas mais duradouras mais densas e profundas que envolvem mais in tensamente a totalidade das personalidades das pessoas envolvidas parecem ser as mais adequadas para atender às necessidades e pos sibilidades afetivas dos indivíduos que hoje somos e a possibilidade de superposição de dois grandes amores não parece se contrapor à tendência histórica que faz de relações mais profundas e duradouras as mais adequadas para nosso desenvolvimento O contrário parece 98 Abaixo a família monogâmica ser o mais correto vivemos um momento histórico no qual a neces sidade por relações duradouras e profundas não elimina a possibili dade da superposição de grandes e autênticos amores Um segundo aspecto equivocado da tese de Engels acerca da per manência da monogamia no comunismo é que excluiria o amor ho mossexual Nosso autor estava convencido de que o homossexualismo seria feio vício e repugnante prática consequência da contaminação dos homens pela decadência das mulheres trazida pela família mo nogâmica Hoje quase século e meio depois sabemos não ser assim A crescente dissociação entre sexualidade e reprodução biológica que por exemplo possibilitou a generalização dos métodos anti conceptivos faz com que a sexualidade seja uma mediação afetiva cada vez mais importante sem jamais perder totalmente é claro sua função biológicoreprodutiva O fato de que a individualidade de cada um de nós se encontre hoje cada vez mais desenvolvida e ao mesmo tempo enfrente crescentes dificuldades para realizar o que necessita para sua reprodução o fato de que o antagonismo entre o capital e a humanidade penetre também no ser mais íntimo de cada um de nós tais fatores e mediações fazem com que o amor homos sexual não possa ser avaliado pelos padrões empregados por Engels A sexualidade dos indivíduos também por essas mediações incor pora determinações afetivas que são em parte novas e em parte se apresentam com novas intensidades se comparadas ao passado Nada é menor no amor homossexual em face do amor hete rossexual nem as possibilidades de sua expressão nem as impossi bilidades para o seu desenvolvimento que brotam da propriedade privada Nem as possibilidades que oferece ao desenvolvimento dos indivíduos nem os impasses que gera ao se confrontar com a socie dade de classes Se continuar a tendência à crescente autonomia da sexualidade ante a reprodução biológica e nada indica que será o oposto é razoável antecipar que superada a propriedade privada a forma homossexual de amor será incorporada à sociedade como uma das possíveis maneiras de as pessoas se amarem Em suma é mais coerente com os próprios pressupostos de En gels postular que seriam decorrentes do momento histórico em que ele viveu da moral vitoriana e das determinações particulares àquele período as suas teses sobre a permanência da monogamia fundada no exclusivismo do amor sexuado individual da sua maior varia bilidade entre os homens bem como de que a homossexualidade seria uma alienação fundada pela propriedade privada 99 Sergio Lessa Hoje depois de tantas e tantas décadas de crise da família mo nogâmica burguesa podemos postular que não haverá monogamia no comunismo porque nele não haverá patriarcalismo Superada a propriedade privada a máxima realização afetiva dos indivíduos implicará relações livres entre iguais sem a possibilidade de sobre vivência de qualquer traço do patriarcalismo do qual a monogamia é irmã siamesa E possivelmente liberta dos constrangimentos da sociedade de classes a homossexualidade será apenas mais uma for ma de os humanos se amarem Tal como a burguesia não dava um tostão furado pelas opiniões dos sábios medievais que ela superara com suas incríveis realizações o mercado mundial a revolução industrial a passagem da carência para a abundância etc as gerações que se criarem sob o comu nismo não darão um vintém por tudo o que nós hoje pensamos que elas deveriam fazer Em uma nova sociedade fundada pelo trabalho associado emancipado do capital com uma vida cotidiana não mais permeada pelo fetichismo da mercadoria e pautada pela cooperação de todos com todos pela produção necessária a todos as novas gerações estabelecerão suas próprias normas de conduta e não darão um vintém pelo que nós imaginamos que elas deve riam fazer E ponto final É provável que Engels tenha se equivocado em relação à perma nência da monogamia e quanto à maior inconstância dos homens é certo que ele se equivocou na avaliação do amor homossexual É muito provável que esses aspectos sejam reflexos da moral en tão dominante parte da determinação histórica de que todos nós somos portadores de modo análogo a como no futuro isso que hoje nos parece razoável se tornará problemático e insustentável diante dos novos desenvolvimentos históricos Tais equívocos pon tuais não alteram contudo o essencial da sua precisa crítica à famí lia monogâmica é o reflexo nas relações familiares da propriedade privada da sociedade de classes e do Estado EMERGENCY STOP 101 Sergio Lessa Conclusão Desde o século 19 faz parte da tradição revolucionária a tese segundo a qual a transição para o modo de produção comunista é a passagem da sociedade fundada pelo trabalho proletário à sociedade fundada pelo trabalho associado e que esta passagem requer como condição histórica imprescindível que a humanidade tenha transitado da carência para a abundância Ainda mais que na sociedade comu nista o fato de a produção estar voltada ao atendimento das neces sidades humanas determina como será a produção a cooperação de todos e como será a distribuição o pleno atendimento das diferencia das necessidades de cada um Por isso Marx na Crítica ao Programa de Gotha lembra que no comunismo a regra geral da reprodução social será De cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo as suas necessidades 197420 Não se trata de dar a mesma quan tidade de riqueza para cada um mas sim de atender plenamente às necessidades de todos os indivíduos e como os indivíduos são ne cessariamente diferentes entre si diferentes serão também as necessi dades de cada um a serem atendidas O que é o mesmo para todos os indivíduos é que as necessidades deverão ser satisfeitas plenamente todas as necessidades são humanas e por isso devem ser plenamente atendidas Na sociedade comunista não haverá nem a exploração do homem pelo homem nem as classes sociais A propriedade privada será uma peça de museu tal como o machado de bronze parafraseando En gels A vida cotidiana fundada pela cooperação deixará de ser a con corrência de todos contra todos que brota da propriedade privada para se converter na cooperação de todos com todos Se no modo de produção capitalista o fetichismo da mercadoria predomina nas rela 102 Abaixo a família monogâmica ções cotidianas no comunismo o que ocupará este lugar será a ética67 Como todavia será a sociedade comunista Como ocorrerá a or ganização desse novo modo de produção Como será a vida cotidia na quando não for preciso que cada um dedique mais que algumas poucas horas por mês ao intercâmbio material com a natureza ao trabalho Como será o desenvolvimento dos indivíduos em uma sociedade cuja reprodução tenha se emancipado da propriedade pri vada Como será o amor entre as pessoas Como se organizarão as atividades de criação dos filhos e a preparação dos alimentos e das moradias Como será a família Responder a tais perguntas traz sempre duas grandes dificulda des De um lado somos o resultado histórico da sociedade de classes e portanto qualquer formação social que não seja fundada na pro priedade privada nos parece impossível Esquecemos com enorme facilidade depois de tantos anos de dominação de classe e de pa triarcalismo que a humanidade já viveu de um modo inteiramente diverso e por muito mais tempo do que vivemos sob a propriedade privada O senso comum dos nossos dias incorporou como uma evi dência que não requer maiores demonstrações a concepção segundo a qual a civilização decorre da busca individual pela riqueza e pelo poder e que em especial para a realização do indivíduo masculino é fundamental a conquista do poder No interior dessa concepção as mulheres são necessariamente subordinadas aos homens o feminino e o masculino em que nos transformamos Leacock 1981268 Nem sempre foi assim Nas sociedades primitivas Leacock comenta Não há obrigações sociais e econômicas que forcem as mulheres a serem mais sensíveis às necessidades e sentimentos masculinos que vice e versa Isto era verdadeiro mesmo para sociedades caçadoras nas quais as mulheres não for neciam uma porção importante da comida Leacock 19811401 As brigas e disputas eram entre iguais e muitas vezes as mulheres simplesmente abandonavam seus maridos e retornavam à casa de seus parentes Outro aspecto também necessita ser salientado tais disputas não são como podem parecer à primeira vista estruturalmente do mesmo patamar que as disputas na nossa própria sociedade Em nosso caso reciprocidade em direi tos e deveres conjugais são definidos nos termos de uma ordem social na qual a subsistência é obtida através do trabalho assalariado enquanto as mulheres 67 Tratamos da relação entre e ética e a vida cotidiana no capitalismo e no comu nismo em Lessa 2007 103 Sergio Lessa fornecem serviços essenciais porém não remunerados no lar Uma dicoto mia entre o trabalho público e serviços domésticos privados mascara a es cravidão doméstica das mulheres Esta é uma situação inteiramente diversa daquela na qual o que tem sido chamado de economia doméstica era a totalidade da economia Leacock 1981 1445 E mais à frente O ponto a ser realçado é que nas sociedades primitivas esta era uma admi nistração doméstica de uma ordem inteiramente distinta da administração da família nuclear nas sociedades patriarcais Nas últimas as mulheres podem bajular manipular ou amedrontar os homens mas sempre por trás da fachada no caso anterior a administração doméstica era nela própria a administração de toda a economia pública Leacock 1981153 Um modo de produção no qual a cooperação de todos é es sencial para a sobrevivência de cada um não poderia se reproduzir na presença da família monogâmica pela mesma razão por que a natureza dispersa das tomadas de decisões nas sociedades préclasse é a cha ve para se entender como tais sociedades funcionavam enquanto coletividades Leacock 198120 Tal como já foram distintas as relações entre os homens e as mulheres também o foram as relações dos homens com as crianças A paternidade pode ter um conteúdo muito distinto daquele a que estamos acostumados Le Jeune um jesuíta enviado para catequizar os indígenas canadenses no sé culo 17 comenta muitas vezes em seu diário sobre a indulgência dos Montag nais para com suas crianças Nenhum dos selvagens desse lugar consegue castigar uma criança nem ver uma ser castigada Ele acrescenta Quanto problema isso nos trará para levarmos adiante nossos planos de educar os jovens O jesuíta se maravilhou com a facilidade e a boa vontade com que os caçadores Montagnais da Península do Labrador vivam com 15 a 20 pessoas compartilhando o mesmo abrigo Ele também observou a caracterís tica agradável das relações entre homens e mulheres que ele entendeu como baseada na autonomia da tomada de decisões em relação à divisão sexual do trabalho Os selvagens são muito pacientes escreveu ele mas a ordem que eles mantêm em suas ocupações os auxilia a preservar a paz em suas casas As mulheres sabem o que elas devem fazer e os homens também e um nunca se intromete no trabalho do outro Leacock 19812235 Outro jesuíta comenta que Eles amam a justiça e odeiam a violência e o roubo uma coisa de fato espan tosa em homens que não têm nem lei nem magistrados pois entre eles cada homem é seu próprio senhor e protetor Eles têm Sagamores isto é líderes na 104 Abaixo a família monogâmica guerra mas a autoridade deles é a mais precária se de fato podemos chamar autoridade à qual a obediência não é de modo algum obrigatória Continua Leacock Le Jeune registrou seguidas vezes seus elogios da disposição à cooperação e irrestrita generosidade do povo Todavia ele se chocou e desaprovou o que se segue a atitude banal sem temor para com os deuses o puro amor de viver comemorar conversar cantar a liberdade sexual das mulheres que para os homens o bom jesuíta aparentemente considerava garantida68 e a falta de preocupação quanto à legitimidade dos herdeiros as constantes brincadeiras e gozações com frequência intoleravelmente lascivas para os ouvidos do mis sionário que envolvem tanto as mulheres quanto os homens Uma página adiante Entre os Montagnais com os quais eu Leacock trabalhei notei como os pais participavam do cuidado e da socialização das crianças com uma facilidade e espontaneidade ditas femininas em nossa cultura Um dia um pai carregava em seus braços uma criança choramingosa e doente e falou baixinho com ela por horas a fio enquanto sua mãe defumava uma pele de veado Em um acampamento Montagnais crianças vagueiam por todos os lados casualmente observadas por crianças mais velhas ou adultos que por acaso estejam por perto e elas gradualmente se afastam de suas próprias tendas Bebês são car regadas em berço ou nos braços e aquele pai assumiu a responsabilidade de carregar sua criança doente em vez de passála para uma amiga mulher ou para uma parente A seguinte descrição de um pai cuidando de uma criança é típica de outras nas minhas anotações de campo Um casal e seu pequeno menino saíram do bosque Nós os convidamos a entrar O pequeno menino sentouse muito calmo e quieto enquanto na nossa tenda voltouse ao seu pai quando a atenção caiu sobre ele O pai meio que o tomou em seu colo de um modo tão gentil e complacente que quase o tomou no colo antes lhe ofereceu proteção Os homens são pacientes com as interrupções das crianças mesmo quando envolvidos com tarefas importantes essenciais para o grupo Um homem es tava aplainando tábuas para a canoa quando seu neto pequeno engatinhou para ele O senhor puxou a criança para si com a gentil tentativa que traduz a atitude Montagnais de não forçar ninguém a uma decisão nem mesmo uma criança Ele mostrou à criança como manejar a plaina e deixou a criança brin car com ela até a criança se encher e preferir se afastar Esta paciência vinha prontamente pois se baseava na realidade da estrutura sócioeconômica As crianças ensinadas pelos adultos se tornariam adultos que cuidariam dos mais 68 Que nos seja permitido repetir a citação Le Jeune censurou um índio por permitir à sua mulher tal liberdade sexual que ele não podia ter certeza que o filho fosse dele ao que o indígena retrucou que Vós não tendes qualquer sensatez Vocês os franceses amam apenas suas próprias crianças mas nós amamos todas as crianças de nossas tribos Leacock 1981228 105 Sergio Lessa velhos Leacock 19812278 Em face da desumanidade das nossas vidas dos constantes con flitos e brutalidades infelicidades e raivas reprimidas tão comuns em nossas vidas familiares um quadro desses pode parecer o ideal idílico a ser perseguido Não são poucos os que com uma legítima revolta contra as desumanidades presentes descobrem nas formas précapitalistas de produção indígenas comunidades campone sas etc valores que deveriam ser reproduzidos em uma sociedade emancipada Tomar o passado como saída para as contradições do presente contudo nunca foi e não é hoje uma alternativa Em pri meiro lugar aqui o motivo menos importante porque as avalia ções idealistas das relações précapitalistas sempre perdem de vista a totalidade da sociedade em que tais relações se desenvolveram Tomam sempre a parte pelo todo E ao fazerem não são capazes de oferecer senão uma avaliação pouco realista das relações sociais que adotam como modelo Como diz Leacock a vida dos caçadores nos bosques austrais da América do Norte não era utópica Havia invernos difíceis em que se enfrentava morte pela fome e o medo de uma tal maldição se expressava culturalmente pela witigo um mons tro canibal algumas vezes imaginado como o espírito de uma pessoa que morreu de fome Estes eram tempos nos quais os doentes e os velhos tinham de ser abandonados conforme os mais fortes e jovens continuavam avante na perseguição de uma caça Leacock 1981224 Em segundo lugar e aqui a razão decisiva porque a história não caminha para trás Não é possível uma involução das forças pro dutivas de tal modo que voltemos a ter o mesmo padrão de inter câmbio orgânico com a natureza dos camponeses ou dos indígenas de outrora A importância em recordarmos que a humanidade já foi dife rente está em demonstrar como o patriarcalismo que acompanha as sociedades de classe não é nem precisa ser o único futuro aberto à humanidade A família monogâmica e a propriedade privada não são traços insuperáveis da vida humana afinal de contas já fomos diferentes E se já fomos diferentes poderemos também no futuro não ser burgueses Esse é o primeiro conjunto de graves problemas ao imaginarmos como seria a sociedade comunista como somos burgueses69 porque 69 Somos todos burgueses no sentido preciso de que somos parte da sociedade burguesa Isso não significa desconhecer que a sociedade burguesa seja com 106 Abaixo a família monogâmica criados sob o capital nossa antecipação do futuro está necessaria mente marcada por essa determinação histórica O segundo conjunto de problemas para anteciparmos o que seria o comunismo decorre do fato de que ele é a passagem de um longo período marcado pela propriedade privada a outro período histó rico a um novo patamar da vida humana a sociedade sem classes Enquanto a transição do feudalismo ao capitalismo foi a transição de uma sociedade de classe a feudal à outra a passagem ao comu nismo significará a ruptura com a exploração do homem pelo ho mem Se tivermos isso em mente perceberemos que seria mais fácil a um servo na Idade Média dizer como seria São Paulo no século 21 do que qualquer um de nós dizer como será a futura sociedade co munista As possibilidades e as necessidades abertas e atendidas no dia a dia serão qualitativa e historicamente tão distintas das nossas que não podemos dizer muito do como as coisas serão O máximo que se pode afirmar é o que as coisas não poderão ser É preciso dar tempo à história para respondermos a essas e ou tras questões O que é certo é que se e quando chegarmos ao comu nismo as gerações de homens e mulheres libertarão o amor sexuado individual dos entraves da família monogâmica possibilitando um desenvolvimento dos indivíduos de suas racionalidades e de suas dimensões afetivas e um desenvolvimento das relações sociais que farão parte do reino da liberdade E então as pessoas olharão para nós com a admiração com que hoje miramos nosso passado quando se tratar dos grandes avanços da humanidade ou com comiseração quanto se tratar por exemplo dos milhões que assas sinamos em guerras e agarrarão o presente com a paixão de quem constrói conscientemente um futuro ainda melhor Será o amor en tão uma relação monogâmica autêntica como imaginava Engels A homossexualidade será uma prática tão estabelecida quanto a hete rossexualidade Haverá mesmo tal distinção As pessoas amarão várias outras pessoas ao mesmo tempo ou o amor se revelará ex clusivista Difícil se não impossível afirmar com certeza Como bem diz Engels em uma das mais belas passagens de A origem da família como nos amaremos no futuro comunismo posta de classes e que entre o proletariado e a burguesia haja uma contradição antagônica Referimonos aqui à diferenciação histórica entre os homens cria dos sob o capitalismo sob o feudalismo sob o escravismo etc Somos todos burgueses no mesmo sentido em que podemos falar do homem feudal ou do homem escravista 107 Sergio Lessa se verá quando uma nova geração tenha crescido uma geração de homens que nunca se tenham encontrado em situação de comprar à custa de dinheiro nem com a ajuda de qualquer outra força social a conquista de uma mulher e uma geração de mulheres que nunca se tenham visto em situação de se entre gar a um homem em virtude de outras considerações que não as de um amor real nem de se recusar a seus amados com receio das consequências econô micas que isso lhes pudesse trazer E quando essas gerações aparecerem não darão um vintém por tudo o que nós hoje pensamos que elas deveriam fazer Estabelecerão suas próprias normas de conduta e em consonância com elas criarão uma opinião pública para julgar a conduta de cada um E ponto final Engels 20101078 Tão certo quanto o Sol nascer a leste é que sem a superação da família monogâmica não haverá comunismo do mesmo modo que não pode ser comunista a sociedade que se reproduza pela explora ção do homem pelo homem que se mantenha pelo Estado e que se divida em classes sociais Por isso hoje como no passado é preciso ter como parte da pla taforma estratégica comunista a palavra de ordem Abaixo a família monogâmica EMERGENCY STOP 109 Sergio Lessa Bibliografia Alcântara N 2005 A categoria da alienação na Ontologia de G Lukács mímeo Doutorado em Serviço Social UFRJ Rio de Ja neiro Beauvoir S 2009 O segundo sexo Nova Fronteira São Paulo Bernal J 1954 D Science in History Cameron Associates Nova Iorque Bricmond J e Sokal A 1999 Imposturas Intelectuais Ed Record São Paulo Child G 1957 The dawn of European civilization Vintage Books Handon House Nova Iorque Codato A 2008 Poulantzas o Estado e a Revolução Revista Crítica Marxista n 27 Ed Revan Rio de Janeiro Costa G 1999 Trabalho e Serviço Social debate sobre as concepções de Serviço Social como processo de trabalho com base na Ontologia de G Lukács Mestrado em Serviço Social UFPE Costa G 2007 Indivíduo e sociedade sobre a teoria da personalidade em Georg Lukács Edufal Maceió Alagoas DeGroot G 2005 The bomb a history of hell on Earth Pimlico Randon House Londres Duarte N 1993 A individualidade parasi Ed Autores Associa dos Campinas São Paulo Duménil G e Lévy D 2004 O imperialismo na era neolibe ral Revista Crítica Marxista Ed Revan Rio de Janeiro Engels F 2010 A origem da família da propriedade privada e do Es tado Ed Expressão Popular Foladori G 2001 Limites do desenvolvimento sustentável Ed Uni 110 Abaixo a família monogâmica camp Campinas São Paulo Gilson E 2007 Heloisa e Abelardo Edusp São Paulo Gonçalves R 2009 Sem pão e sem rosas do marxismo mar xista impulsionado pelo Maio de 68 ao academicismo de gênero Lutas Sociais NEILS PUCSão Paulo Heller A 1980 El hombre del Renacimiento Ed Península Barce lona Espanha Hirata H 2002 Nova divisão social do trabalho Boitempo São Paulo Hollander A 1988 Seeing through clothes Penguin Nova Iorque Kofler L 1997 Contribuición a la historia de la sociedad burguesa Ed Amorrutu Buenos Aires Kolko G 1994 Century of War The New Press Nova Iorque Leacock E 2010 Posfácio in Engels F A origem da família da propriedade privada e do Estado Ed Expressão Popular São Paulo Leacock E B 1981 Myths of male dominance Monthly Review Press Londres e Nova Iorque Leakey R 1988 O povo do lago São Paulo Lessa S 1995 Sociabilidade e Individuação Edufal Maceió Lessa S 2004 Uma praga de fantasias Rev Praia Vermelha vol 10 PósGraduação em Serviço Social UFRJ Lessa S 2006 Trabalho sociabilidade e individuação Revista Trabalho Educação e Saúde v4 Fio Cruz Rio de Janeiro Lessa S 2007 Lukács ética e política Ed Argos Chapecó Lessa S 2011 Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo 2a edição Ed Cortez São Paulo Lessa S 2012 Serviço Social e Trabalho porque o Serviço Social não é trabalho 2a edição Instituto Lukács São Paulo Lessa S 2012a Mundo dos Homens 3a edição Instituto Lukács São Paulo Lipovetsky G 1997 O império do efêmero a moda e seus destinos nas sociedades modernas Cia das Letras Lukács G 1979 Os princípios ontológicos fundamentais de Marx S Paulo Ciências Humanas Lukács G 1981a Marx y el problema de la decadencia ideologica Siglo XXI Ed México Lukács G 1981b Nota sobre o romance In Lukács sociólogo Paulo Netto J org Ed Ática São Paulo 111 Sergio Lessa Lukács G 2009a Arte e sociedade escritos estéticos 19321967 Or ganização introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto Ed UFRJ Rio de Janeiro Lukács G 2009b O jovem Marx e outros escritos de filosofia Or ganização introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto Ed UFRJ Rio de Janeiro Lukács G 2009c Socialismo e democratização escritos políticos 1956 1971 Organização introdução e tradução de Carlos Nelson Couti nho e José Paulo Netto Ed UFRJ Rio de Janeiro Lukács G Vol I 1976 Vol II 1981 Per una Ontologia dellEssere Sociale Ed Rinuti Roma MacPherson C B 1970 La Teoria Politica del Individualismo Pose sivo Barcelona Marx K 1974Crítica do programa de Gotha in Marx K e Engels F Critica dos programas socialistas de Gotha e Effurt Porto Por tugal s editora Marx K 1979b Capital Vol I International Publishers New York Marx K 1983 Tomo I 1985 Tomo II O Capital Vol I Ed Abril Cultural São Paulo Marx K 1993 Manuscritos de 1844 Ed Avante Portugal Marx K 2010 Glosas Críticas marginais ao artigo O rei da Prússia e a reforma social de um prussiano Introdução de Ivo Tonet Ed Ex pressão Popular São Paulo Marx K 2005 Introdução à Crítica do Direito de Hegel in Crí tica da Filosofia do Direito de Hegel Boitempo São Paulo Marx K 2009 Para a questão judaica Ed Expressão Popular São Paulo Marx K e Engels F 2009 A ideologia alemã Ed Expressão Po pular São Paulo Millett K 1994 Politics of Cruelty Norton N Iorque Moraes B M de 2007 As bases ontológicas da individualidade hu mana e o processo de individuação na sociabilidade capitalista um estudo a partir do Livro Primeiro de O Capital de Karl Marx Tese Doutorado Programa de PósGraduação em Educação Brasileira Faculdade de Educação Universidade Federal do Ceará Fortaleza Moraes B M de 2008 A individualidade humana na obra mar xiana O Capital primeiras aproximaçõesIn JIMENEZ Susana OLIVEIRA Jorge Luís de SANTOS Deribaldo Org Marxismo educação e luta de classes teses e conferências do II Encontro Regional Trabalho 112 Abaixo a família monogâmica Educação e Formação Humana Fortaleza EdUECEIMOSINTSEF Negri A 1991 Marx Beyond Marx EUAInglaterra Autonome diaPluto Press Negri A 1994 El Poder Constituyente Ed Libertarias Prodhufi SA Madrid Odent M 2000 A cientificação do amor Terceira Margem São Paulo Paniago C 2012 Mészáros e a incontrolabilidade do capital 2a edi ção Instituto Lukács São Paulo Rijali D 2007 Torture and democracy Princeton University Press New Jersey EUA Saffioti H 2009 mímeo Ontogênese e filogênese do gênero a ordem patriarcal de gênero e a violência contra as mulheres Shakespeare W sd A midsummer nights dream Penguin Popular Classics Londres Silveira P 1989 Da alienação ao fetichismo formas de subje tivação e objetivação in Silveira P e Doray B horas Elementos para uma teoria marxista da subjetividade Ed Revista dos Tribunais São Paulo Tonet I 2005 Educação cidadania e emancipação humana Ed Uni juí Ijuí R G do Sul Tonet I 2010 Os descaminhos da esquerda da centralidade do trabalho à centralidade da política EdAlfaômega São Paulo Tonet I1999 Liberdade ou democracia Edufal Maceió Vieitez C G Dal Ri N M 2001 Trabalho associado cooperativas e empresas de autogestão DPA Editora Rio de Janeiro Wharton E 1962 A backward glance Charles Scribeners Son N Iorque Williams R 1991 O povo das Montanhas Negras Cia das Letras São Paulo Wilson E 1977 Women and the Welfare State J W Arrowsmith Bristol Inglaterra Wong K 2005 O menor dos humanos Scientific American Brasil Ano 3 n 34 pp 5259 março Zizek S 2002 Welcome to the desert of the real Ed Verso Nova Iorque e Londres Zola E 1998 Como se casa como se morre Editora 34 São Paulo