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Serviço Social ·

Serviço Social 1

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István Mészáros Para além do capital Rumo a uma teoria da transição Tradução Paulo Cezar Castanheira Sérgio Lessa NOTA DA EDIÇÃO ELETRÔNICA Para aprimorar a experiência da leitura digital optamos por extrair desta versão ele trônica as páginas em branco que intercalavam os capítulos índices etc na versão impressa do livro Por este motivo é possível que o leitor perceba saltos na numeração das páginas O conteúdo original do livro se mantém integralmente reproduzido Para Donatella Copyright da tradução Boitempo Editorial 2002 Copyright István Mészáros 2002 Coordenação editorial Ivana Jinkings Tradução Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa Assistência editorial Livia Campos Preparação Maria Orlanda Pinassi Revisão Maria Fernanda Alvares Maurício Balthazar Leal Sandra Regina de Souza e Túlio Kawata Capa Grafikz Andrei Polessi sobre foto dos escombros do World Trade Center NY 1192001 Foto AP Diagramação Setup Time Artes Gráficas Coordenação de produção Ana Lotufo Valverde e Marcel Iha CIPBRASILCATALOGAÇÃONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ M55p Mészáros István 1930 Para além do capital rumo a uma teoria da transição István Mészarós tradução Paulo Cezar Castanheira Sérgio Lessa 1ed revista São Paulo Boitempo 2011 Mundo do trabalho Tradução de Beyond capital towards a theory of transition Contém dados biográficos Inclui índice ISBN 9788575591451 1 Economia marxista 2 Materialismo dialético 3 Pósmodernismo I Título II Série 110335 CDD 335412 CDU 33085 180111 210111 024009 Esta edição contou com o apoio do Instituto de Estudos e Pesquisas Vale de Acaraú e da Prefeitura Municipal de Belém É vedada nos termos da lei a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora Este livro atende às normas do acordo ortográfico em vigor desde janeiro de 2009 1a edição maio de 2002 1a reimpressão outubro de 2002 2a reimpressão maio de 2006 3a reimpressão julho de 2009 1ª edição revista maio de 2011 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda Rua Pereira Leite 373 Sumarezinho 05442000 São Paulo SP Telfax 11 38757250 38757285 editorboitempoeditorialcombr wwwboitempoeditorialcombr 267 A ativação dos limites absolutos do capital os indivíduos o que pela primeira vez permitirá um planejamento verdadeiro É isso que oferece uma perspectiva em que a ciência e a tecnologia ainda a serem produzidas sejam partes de uma solução emancipadora viável advertindonos a não confundir uma potencialidade abstrata que pode permanecer para sempre uma potencialidade não realizada sem uma boa reorientação qualitativa do estilo de vida e das práticas produtivas da sociedade com uma realidade já dada quando faltam até mesmo as condições de transformar a potencialidade abstrata em concreta nos terrenos relevantes Neste contexto devemos também lembrar que não temos um cronograma folgado para a necessária transformação da potencialidade em realidade Isto deve acontecer com a agravante de uma enorme urgência Outrora os defensores do sistema do capital podiam louvar com certa justi ficativa seu poder de destruição produtiva inseparável da dinâmica positiva do progresso Esta visão estava muito bem alinhada com o constante aumento da escala de operações do capital verdadeiramente uma forma de destruição produtiva A invasão pelo capital de tudo o que poderia ser invadido ou usurpado ou seja antes que o sistema tivesse de superar a si mesmo da maneira que já examinamos deu sustentação à ideia da destruição produtiva ainda que sempre mais problemática conforme aumentava a escala A destruição envolvida poderia ser generosamente lançada como parte inevitável dos custos da produção e da reprodução ampliada se a constante ampliação da escala das operações do capital trouxesse o benefício adicional do deslocamento das contradições do sistema No entanto as coisas fica ram muito piores com a consumação da ascensão histórica do capital e a ativação dos limites absolutos do sistema Sem outras possibilidades de invasão na escala requerida o fator destrutivo dos custos totais da produção a ser enfrentado den tro de limites progressivamente restritivos tornase cada vez mais desproporcional e em última análise proibitivo Historicamente passamos da prática de destruição produtiva da reprodução do capital para uma fase em que o aspecto predominante é o da produção destrutiva cada vez maior e mais irremediável Ainda que as personificações do capital não o admitam não é muito difícil perceber que nenhuma reprodução sociometabólica pode subsistir assim indefini damente 53 A liberação das mulheres a questão da igualdade substantiva 531 Como já vimos na seção 453 a regulamentação economicamente sustentável da reprodução biológica dos seres humanos é uma função mediadora primária do processo sociometabólico Portanto a articulação historicamente mutável dos relacionamentos humanos é da maior importância nessa questão Os processos reguladores que nos interessam aqui estão emaranhados em toda uma rede de relacionamentos dialéticos Inevitavelmente sua expressão em formas historicamente específicas e institucionalmente reforçadas de intercâmbio humano são profundamente afetadas pelas características estruturais fundamentais de todo o complexo social e por sua vez também afetam profundamente a articulação ininterrupta de todo o processo sociometabólico Portanto se os imperativos alie nantes do sistema estabelecido da reprodução econômica exigem um controle social 268 A sombra da incontrolabilidade discriminatório e hierárquico afinado com o princípio antagonista estruturador da sociedade e o correspondente modo de administrar o processo do trabalho o ma crocosmo abrangente desse tipo encontrará seu equivalente em todos os níveis do intercâmbio humano até mesmo nas menores microestruturas ou microcosmos da reprodução e do consumo habitualmente teorizados sob o nome de família Inversamente enquanto o relacionamento vital entre homens e mulheres não estiver livre e espontaneamente regulado pelos próprios indivíduos em seu microcosmo autônomo mas de maneira alguma independente da sociedade do universo histórico interpessoal dado com base numa igualdade significativa entre as pessoas envolvidas ou seja sem a imposição dos ditames socioeconômicos da ordem sociometabólica sobre eles não se pode sequer pensar na emancipação da sociedade da influência paralisante que evita a autorrealização dos indivíduos como seres sociais particulares Marx afirmou em um de seus primeiros textos O relacionamento direto natural e necessário de pessoa a pessoa é a relação do homem com a mulher Portanto desse relacionamento se pode avaliar o nível de desenvolvimento do homem Nesse relacionamento também se revela a extensão em que a necessidade do homem se tornou uma necessidade humana portanto a outra pessoa tornou se para ele uma necessidade a extensão em que em sua existência individual ele é ao mesmo tempo um ser social54 A julgar pela maneira como poderiam ser caracterizadas as formas conhecidas do relacionamento interpessoal socialmente estabelecido entre mulheres e homens utilizando o critério da livre determinação humanamente realizadora de suas vidas por pessoas autônomas interagindo sobre a base da verdadeira igualdade todo o nível do desenvolvimento realizado no decorrer da história não é hoje muito mais alto do que foi alguns milhares de anos atrás apesar de todo o avanço na produtividade Os ganhos obtidos no demorado período da ascensão do capital não ultrapassaram o nível da igualdade formal Na seção 532 veremos que além da polêmica enérgica contra as exigências de verdadeira igualdade eliminadas peremptoriamente por terem supostamente cometido o maior pecado da lógica e violado as exigências peculiares da própria racionalidade também as vitórias relativas na ampliação do alcance da igualdade formal que as práticas produtivas de extração do excedente do trabalho livre tornaram necessárias no quadro de uma igualdade contratual estavam presentes já nas teorias de grandes filósofos como Kant e Hegel e não apenas nas dos insensíveis apologistas do capital como Hayek e respectivos seguidores Seria um milagre se o microcosmo do sistema do capital fosse ordenado segun do o princípio da igualdade real Em seu conjunto este sistema não pode se manter sem reproduzir com sucesso e de maneira constante as relações de poder historica mente específicas pelas quais a função de controle se encontra radicalmente separada da e de maneira autoritária imposta sobre a força de trabalho pelas personificações do capital mesmo nas variedades póscapitalistas do sistema Os complexos sociais sempre funcionam com base em reciprocidades dialéticas Entretanto todas essas reciprocidades têm seu übergreifendes Moment objetivamente predominante o que não se pode ignorar nem modificar de modo artificial para agradar às conveniências 54 Marx Economic and Philosophic Manuscripts of 1844 pp 1001 269 A ativação dos limites absolutos do capital da apologética social Neste importante sentido de um übergreifendes Moment dialeti camente predominante a estrutura de comando do capital sempre muito hierárquica ainda que historicamente mutável em sua forma é a consequência inevitável da determinação incorrigível do sistema do capital como um sistema de relações de poder antagônicas em que o poder de controle está inteiramente separado dos produtores e cruelmente imposto sobre eles As variedades existentes de hierarquia discriminatória não são a causa original do funcionamento do sistema do capital como exercício de relações antagônicas de poder na forma da subordinação autoritária da produção a um controle alienado o que constitui a determinação transhistórica de todas as metamorfoses concebíveis do controle sociometabólico na base material do capital apesar de toda a conversa sobre democracia Se a iníqua estrutura de comando fosse especificamente a causa dos antagonismos estruturais eles poderiam em princípio ser resolvidos com uma alteração esclarecida dessa mesma estrutura mantendose todo o seu quadro de reprodução Não poderia haver violação mais absurda da lógica do que a inversão das relações causais existentes para se visualizar a capacidade do sistema de introduzir todos os aperfeiçoamentos desejáveis nesse macrocosmo com a premissa inalterável da manutenção das relações de poder material da subordina ção estrutural do trabalho ao capital sempre reforçadas pela estrutura de comando inevitavelmente hierárquica e portanto impossível de ser reformada em qualquer sentido Mas é precisamente isto o que encontramos em todas as reivindicações de igualdade tanto nas já estabelecidas como nas que estão a ponto de ser instituídas inclusive o apelo ritual à ideia de igualdade de oportunidades e postuladas pelos defensores do sistema do capital em suas idealizações da sociedade industrial mo derna e da sociedade de mercado com preocupações sociais Pelas mesmas razões não é menos problemático pensar na articulação e no funcionamento interno sustentável do microcosmo do sistema do capital baseados na existência de uma igualdade verdadeira Isto exigiria a existência de um macrocos mo socioeconômico abrangente totalmente diferente e harmonioso ou postular a misteriosa transformação das microestruturas hipostatizada verdadeiramente igualitárias num conjunto antagônico Na verdade isto implicaria a complicação adicional de se ter de explicar como é possível assegurar a reprodução simultânea desse todo antagônico e das partes livres de antagonismos que o constituem Pares isolados podem ser capazes de ordenar o que certamente fazem seus relacionamentos pessoais em verdadeira igualdade Na sociedade contemporânea existem até mesmo enclaves utópicos de grupos de pessoas que interagem comunitariamente e podem se afirmar engajados em relações interpessoais não hierárquicas humanamente satisfatórias e em formas de criar os filhos muito diferentes da família nuclear e suas fragmentações Não obstante nenhum desses dois tipos de relação pessoal pode se tornar historicamente dominante no quadro do controle sociometabólico capitalista Sob as circunstâncias prevalecentes o übergreifendes Moment determina que os microcosmos da reprodução devem ser capazes de se aglomerar num conjunto abrangente que não pode de forma alguma funcionar numa base de verdadeira igualdade O menor de todos os mi crocosmos da reprodução deve sempre proporcionar sua participação no exercício global das funções sociometabólicas que não incluem apenas a reprodução biológica da espécie e a transmissão ordenada da propriedade de uma geração à outra Nesse 270 A sombra da incontrolabilidade aspecto não é menos importante seu papel essencial na reprodução do sistema de valores da ordem estabelecida da reprodução social totalmente oposto como não poderia deixar de ser ao princípio da verdadeira igualdade Ao se concentrar demais no aspecto da transmissão da propriedade na família e no sistema legal associado a ele até Engels tende a pintar um quadro excessivamente idealizado do lar proletário descobrindo nele uma igualdade inexistente O amor sexual no relacionamento com uma mulher tornase e só pode se tornar uma regra entre as classes oprimidas ou seja em nossos dias entre o proletariado seja este relacionamento oficialmente sancionado ou não Mas aqui estão afastadas todas as fundações da monogamia típica Aqui não há propriedade para cuja preservação e herança foram estabelecidas a monogamia e a supremacia masculina portanto não há incentivo para tornar eficaz esta supremacia masculina Além disso também não há meios de realizálo A lei burguesa que protege esta supremacia só existe para a classe possuidora e suas relações com os proletários A lei custa dinheiro e por causa da pobreza ela não tem validade na relação do trabalhador com sua mulher Aqui são outras condições pessoais e sociais muito diferentes que decidem Agora que a grande indústria tirou a esposa de casa levandoa para o mercado de trabalho e para a fábrica muitas vezes fazendo dela o ganhapão da família o lar proletário não tem mais nenhuma base para a supremacia masculina a não ser talvez certa brutalidade contra as mulheres que se disseminou depois da introdução da monogamia A família proletária não é mais monógama no sentido rigoroso mesmo onde há o amor apaixonado e a mais firme lealdade de parte a parte ou as bênçãos da autoridade civil e da religiosa Aqui portanto os eternos praticantes da monogamia do concubinato e do adultério têm um papel quase nulo A esposa de fato reconquistou o direito de dissolver o casamento se duas pessoas não conseguem viver juntas preferem separarse Resumindo o casamento proletário é monógamo no sentido etimológico da palavra mas absolutamente não o é em seu sentido histórico55 O problema é que muitas das inúmeras características aqui atribuídas por Engels à família proletária poderiam ser estendidas aos tipos de família de outras classes sociais como aconteceu no decorrer do século XX e assim isso não elimi na a natureza extremamente problemática da própria família nuclear constituída sob a regra do capital Além do mais a família proletária está longe de encarnar o ideal de relações igualitárias entre os pais ou no que diz respeito à educação dos filhos e sua orientação em relação a valores Depois da Segunda Guerra Mundial intelectuais alemães expatriados para os Estados Unidos tentaram mostrar sua gratidão ao país anfitrião explicando a personalidade autoritária e a ascensão de Hitler em termos da atitude subserviente da família alemã para com a autori dade política O problema real do autoritarismo era bem mais complexo do que isto e consequentemente sua solução não estava na adoção dos padrões mais ou menos idealizados da família anglosaxã Toda a questão deveria ter sido relacio nada à atitude pouco questionadora dos indivíduos educados nos tipos de família estabelecidos para a autoridade do capital não apenas para uma das específicas formas de controle político do capital 55 Engels The Origin of Family p 135 271 A ativação dos limites absolutos do capital O aspecto mais importante da família na manutenção do domínio do capital sobre a sociedade é a perpetuação e a internalização do sistema de valores profun damente iníquo que não permite contestar a autoridade do capital que determina o que pode ser considerado um rumo aceitável de ação dos indivíduos que querem ser aceitos como normais em vez de desqualificados por comportamento não con formista É por isso que encontramos por toda parte a síndrome da subserviência internalizada do conheçomeulugarnasociedade nos países anglosaxônicos na Alemanha na antiga Rússia soviética tanto em famílias proletárias como nas da burguesia e da pequena burguesia A existência de um tipo de família que permitisse à geração mais jovem pensar em seu papel futuro na vida em termos de um sistema de valores alternativo realmente igualitário cultivando o espírito de rebeldia potencial em relação às formas existentes de subordinação seria uma completa infâmia do ponto de vista do capital Assim dadas as condições estabelecidas de hierarquia e dominação a causa histórica da emancipação das mulheres não pode ser atingida sem se afirmar a demanda pela igualdade verdadeira que desafia diretamente a autoridade do capital prevalecente no macrocosmo abrangente da sociedade e igualmente no microcos mo da família nuclear No fundo esta não deixa de ser profundamente autoritária devido às funções que lhe são atribuídas num sistema de controle metabólico dominado pelo capital que determina a orientação de indivíduos particulares por meio de seu sistema incontestável de valores Este autoritarismo não é mera questão de relacionamentos pessoais mais ou menos hierárquicos entre os membros de famílias específicas Mais do que isso diz respeito ao imperativo absoluto de proporcionar o que se espera do tipo de família historicamente evoluído imposto pela indispensável subordinação do microcosmo específico de reprodução às exigências tirânicas de todo o processo reprodutivo A verdadeira igualdade dentro da família só seria viável se pudesse reverberar por todo o macrocosmo social o que evidentemente não é possível Esta é a razão fundamental pela qual o tipo de família dominante deve estar estruturado de maneira apropriadamente autoritária e hierárquica Deixando de se adaptar aos imperativos estruturais gerais do modo de controle estabelecido conseguindo afirmarse nos ubíquos microcosmos da sociedade na validade e no poder de autorrealização dos intercâmbios huma nos baseados na verdadeira igualdade a família estaria em direta contradição ao ethos e as exigências humanas e materiais necessárias para assegurar a estabilidade do sistema hierárquico de produção e de reprodução social do capital prejudicando as condições de sua própria sobrevivência Na causa da emancipação das mulheres podemse avaliar as implicações de longo alcance do questionamento direto à autoridade do capital quando se tem em mente o fato de não se conceber que o sistema de valor estabelecido prevalecesse nas condições do presente e menos ainda pudesse ser transmitido e internalizado por sucessivas gerações de indivíduos sem o envolvimento ativo da família nuclear hierárquica articulada em plena sintonia com o princípio antagônico que estrutura o sistema do capital A família está entrelaçada às outras instituições a serviço da reprodução do sistema dominante de valores ocupando uma posição essencial em relação a elas entre as quais estão as igrejas e as instituições de educação formal da 272 A sombra da incontrolabilidade sociedade Tanto isso é verdade que quando há grandes dificuldades e perturba ções no processo de reprodução manifesta de maneira dramática também no nível do sistema geral de valores como a crescente onda de crimes por exemplo os portavozes do capital na política e no mundo empresarial procuram lançar sobre a família o peso da responsabilidade pelas falhas e disfunções cada vez mais fre quentes pregando de todos os púlpitos disponíveis a necessidade de retornar aos valores da família tradicional e aos valores básicos Às vezes tentam encerrar essa necessidade até mesmo na forma de leis quixotescas procurando jogar nos ombros dos pais na forma de sanções financeiras punitivas a responsabilidade pelo comportamento antissocial dos filhos Mais um exemplo característico da tentativa de se resolver problemas brincando com os efeitos e consequências por jamais conseguir tratar das causas subjacentes Tudo isso indica uma profunda crise que afeta todo o processo de reprodu ção do sistema de valores do capital prenunciando conflitos e batalhas estando entre estes a luta pela emancipação das mulheres e sua demanda de igualdade significativa um elemento de crucial importância Como o modo de funciona mento do capital em todos os terrenos e todos os níveis do intercâmbio societário é absolutamente incompatível com a necessária afirmação prática da igualdade substantiva a causa da emancipação das mulheres tende a permanecer não integrável e no fundo irresistível não importa quantas derrotas temporárias ainda tenha de sofrer quem luta por ela 532 A entrada em massa das mulheres na força de trabalho durante o século XX em extensão tão significativa que hoje elas já chegam a constituir maioria nos países de capitalismo avançado não resultou em sua emancipação Em vez disso apareceu a tendência de generalizar para toda a força de trabalho a imposição dos salários mais baixos a que as mulheres sempre tiveram de se submeter exatamente como a concessão legislativa às mulheres no caso da exigência de tratamento igual em relação à idade da aposentadoria resultou na elevação da sua idade de aposentadoria para 65 anos em vez da redução da idade masculina para 60 anos como acontecia com as mulheres Discutemse as recentes tendências do desenvolvimento que Em todos os países da OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico os trabalhos de baixos salários são realizados por mulheres minorias e imigrantes Objetiva e intencionalmente isso está reduzindo o nível salarial geral em todas essas economias O aumento do número de mulheres na força de trabalho ocorreu em paralelo com o aumento do trabalho no setor de serviços da economia Entre 60 e 85 por cento das mulheres empregadas nos estados da OCDE estão ocupadas em serviços Conforme aumentava a inflação e os salários reais começavam a cair duas pessoas passaram a manter o rendimento familiar e o aumento do crédito a sustentar o consumo em quase um quinto além do rendimento Nos Estados Unidos a porcentagem de mulheres na força de trabalho dominante saltou de 365 por cento em 1960 para 54 por cento em 1985 o principal aumento ocorreu na faixa de mulheres casadas entre os 25 e 34 anos cuja participação passou de 28 por cento para 65 por cento Em mais de 50 por cento das famílias com filhos pai e 273 A ativação dos limites absolutos do capital 56 Joyce Kolko Restructuring the World Economy Nova York Pantheon Books 1988 p 315 Outro estudo recente mostrou que ao longo dos últimos vinte anos muitas empresas americanas transferiram para o exterior os empregos em manufatura A criação desta linha de montagem global tornouse um componente crucial da estratégia corporativa de redução de custos Nos novos locais essas empresas contrataram mulheres por salários mínimos tanto no Terceiro Mundo como em países como a Irlanda Apesar dos baixos salários esses empregos atraíram milhares de mulheres que estavam se mudando de aldeias rurais empobrecidas para as cidades em busca de uma vida melhor para suas famílias Mas nos Estados Unidos milhões de trabalhadores perderam o emprego em resultado da fuga do capital ou do processo de downsizing empresarial O processo pelo qual os trabalhadores perdem o emprego porque sua fábrica foi fechada ou transferida ou seu cargo ou turno abolido é chamado de deslocamento do empregado Mais de 5 milhões de trabalhadores foram deslocados entre 1979 e 1983 e outros 4 milhões entre 1985 e 1989 Nos dois períodos as mulheres tiveram uma probabilidade ligeiramente inferior de perder o emprego do que a dos homens do mesmo grupo racialétnico O resultado global foi que as mulheres perderam emprego em razão de downsizing ou deslocamento a uma taxa inferior à dos homens Na verdade a participação feminina no trabalho manufatureiro aumentou entre 1979 e 1990 Em outras palavras as mulheres assumiram uma participação crescente num bolo que estava encolhendo Teresa Amott Caught in the Crisis Women and the US Economy Today Nova York Monthly Review Press 1993 pp 5860 mãe trabalham inclusive quase todas as mulheres com filhos abaixo dos 6 anos A diferença entre os salários de homens e mulheres diminuiu mas a origem dessa mudança foi a queda nos salários dos homens No entanto apesar de mais de um ganhapão o poder de compra familiar caiu nos anos 80 em 1986 estava abaixo do que havia sido em 1979 e continuou a cair em 1987 Na Europa as novas indústrias de tecnologia sofisticada e de serviços passaram a utilizar mais trabalhadores em meio período mulheres e imigrantes Essa tendência se tornou seu recurso para reestruturar a economia e aumentar o emprego56 Assim até mesmo as relativas conquistas do passado possibilitadas pela expan são dinâmica do capital no momento de sua ascensão histórica têm de sofrer um recuo significativo quando o processo da acumulação encontra dificuldades maiores Portanto é inevitável que também a esperada melhoria na condição das mulheres dentro das margens da ordem estabelecida se torne irrealizável com o encolhimento da margem de manobra do capital Nessas condições tornamse mais pronunciadas as dissensões no próprio movimento feminista em relação aos anos 60 e 70 o que é muito compreensível pois devido à redução das margens muita coisa depende de as estratégias defendidas para assegurar o avanço da emancipação das mulheres se dispuserem ou não a questionar os limites estruturais impostos pelos parâmetros do próprio sistema do capital Em outras palavras é preciso enfrentar a questão do tipo de igualdade viável para os indivíduos em geral e para as mulheres em particu lar na base material de uma ordem de reprodução sociometabólica controlada pelo capital em vez de se discutir como se poderiam redistribuir os recursos disponíveis nas presentes circunstâncias dentro das margens que se encolhem Os limites estruturais de qualquer sistema de reprodução geralmente também determinam seus princípios e seu modo de distribuição Baran e Sweezy enfatizaram esse aspecto O igualitarismo da ideologia capitalista é uma de suas forças que não se deve descartar levianamente Desde a mais tenra infância as pessoas aprendem por todos os meios concebíveis que todos têm oportunidades iguais e que as desigualdades com que se deparam não são o resultado de instituições injustas mas de seus dotes naturais superiores ou 274 A sombra da incontrolabilidade inferiores57 Portanto assegurar a manutenção da gritante desigualdade e dos privilégios na educação por exemplo é algo que se deve buscar indiretamente garantindo amplos recursos para a subsistência da parte do sistema que atende à oligarquia deixando ao mesmo tempo faminta a parte que atende às classes baixas e aos trabalhadores Isto garante a desigualdade na educação tão vitalmente necessária para apoiar a desigualdade geral que é o coração e a essência de todo o sistema58 Assim é possível sustentar a mitologia da igualdade pelo menos na forma da proclamada igualdade de oportunidades e perpetuar seu oposto diametral na ordem vigente sob o domínio do capital Embora tenha havido uma grande mudança na racionalização ideológica e na legitimação da ordem estabelecida no decorrer de sua plena articulação e consolida ção o que no final resultou na prática de homenagens cínicas e falsas aos ideais de liberdade e igualdade inicialmente anunciados e nem isso para a fraternidade a atitude contraditória em relação ao princípio da igualdade vem de um tempo muito distante no passado Kant um dos maiores filósofos do Iluminismo burguês o admitiu sem precisar de qualquer camuflagem cínica A igualdade geral dos homens como súditos de um Estado coexiste muito de perto com a maior desigualdade nos graus das posses dos homens Por isso a igualdade geral dos homens também coexiste com a grande desigualdade de direitos específicos dos quais talvez existam muitos Disso decorre que o bemestar de um homem poderá depender em grande extensão da vontade de outro homem assim como os pobres dependem dos ricos e o que depende deve obedecer ao outro como um filho obedece aos pais a esposa ao marido ou mais uma vez como um homem tem domínio sobre outro como um homem serve e outro paga etc No entanto todos os súditos são iguais diante da lei que como pronunciamento da vontade geral só pode ser uma Essa lei diz respeito à forma e não à matéria do objeto em relação ao qual eu talvez tenha algum direito Nenhum homem pode coagir outro sob o governo constitucional a não ser sob a lei publicamente conhecida e por meio de seu executor o chefe de Estado e por essa mesma lei todo homem poderá resistir no mesmo grau em outras palavras ninguém pode fazer um acordo ou qualquer outra transação legal que não lhe dê direitos mas apenas deveres Por um contrato desse gênero ele se privaria do direito de fazer um contrato e assim o contrato se anularia59 Essas palavras foram escritas depois da Revolução Francesa em 1793 a abordagem de Kant reflete a maneira como a burguesia fugia das implicações revolucionárias de sua convicção inicial Os direitos tinham de ser definidos em termos rigorosamente formais o direito de fazer um contrato tornouse absolu to ao mesmo tempo em que igualmente tornavase absoluta outra consideração 57 Baran e Sweezy Monopoly Capital p 171 58 Id ibid 59 Kant Theory and Practice Concerning the Common Saying This May Be True in Theory But Does Not Apply to Practice em The Philosophy of Kant Immanuel Kant Moral and Political Writings ed por Carl J Friedrich Nova York The Modern Library Random House 1949 pp 4178 275 A ativação dos limites absolutos do capital que nada tinha de formal a aceitação da ordem estabelecida do Estado com o argumento de que qualquer instigação à rebeldia é o pior crime na comunidade e deve ser punida A proibição à rebeldia é absoluta60 Da mesma forma a iníqua ordem de dominação e dependência também tinha de ser absoluta em substância ou matéria apesar de toda a conversa de restringir o discurso à igualdade formal Os privilégios feudais tinham de ser rejeitados em nome da mesma so ciedade contratual livre da burguesia antes que a inexorável tendência para a concentração e a centralização do capital se tornasse inegável pelos entusiásticos defensores do sistema com a alegação de que os descendentes dos grandes pro prietários permaneceriam sempre grandes proprietários sob o feudalismo sem que houvesse qualquer possibilidade de que as propriedades fossem vendidas ou divididas por herança e assim se tornassem úteis para mais pessoas61 Ao mesmo tempo os privilégios reais da dominação exploradora que acompanhavam a propriedade privada contratualmente adquirida e ampliada tinham de ser defendidos sem muitas exigências sendo idealizados pela troca da argumentação que saía do terreno das relações da essência material para o da política formal justificando as perversas relações de poder com o postulado de que no terreno da política artesãos e grandes ou pequenos proprietários são todos iguais em virtude do fato de que cada um tem direito a apenas um voto62 Dentro desse quadro de racionalização e legitimação ideológica da ordem burguesa em que as mulheres assim como as crianças não poderiam se qualificar para a cidadania e o direito de votar porque não são senhoras de si63 tudo ti nha de ser definido tendenciosamente O fio que orienta as definições devia caber nos requisitos de um sistema que funciona com base na igualdade reduzida ao direito de vender por meio de um contrato livre a sua propriedade em que 60 Id ibid p 423 61 Id ibid p 421 62 Id ibid p 420 No sistema do capital realmente existente o papel do voto parlamentar muda de acordo com as mudanças das circunstâncias históricas Apesar das ilusões originais do Iluminismo associadas ao poder positivo todo poderoso de uma pessoa um voto houve e ainda há muitas formas de alienar as massas trabalhadoras sem lhes tirar o direito de voto uma vez concedido De qualquer forma também é possível manipular o sistema formal de votação quando as restrições materiais do modo estabelecido de reprodução sociometabólica assim o determinarem O princípio constitucional democrático há muito estabelecido de uma pessoa um voto está sendo questionado de muitas formas em países diferentes sob pressão crescente da base material do capital Assim por exemplo Lee Kuan Yew velho estadista de Singapura está em campanha para alterar o princípio de uma pessoa um voto e dar aos pais de família maior peso nas eleições De acordo com o plano do exprimeiroministro pessoas casadas e com filhos entre 35 e 60 anos teriam um voto adicional Segundo ele a proposta visa dar mais peso nas eleições àqueles com responsabilidades maiores Na sua opinião esta mudança radical seria necessária dentro de 15 ou 20 anos porque a população de Singapura está envelhecendo e um enorme exército de idosos poderia ser tentado a pressionar por seguro social Em 2030 um quarto da população deverá ter mais de 60 anos de idade comparado com uma proporção de 10 hoje em dia Agora oito trabalhadores sustentam um idoso e naquela época esta relação terá chegado a 221 Kenneth Whitting Lee wants extra vote for parents The Times 28 de julho 1994 p 14 63 Kant op cit 276 A sombra da incontrolabilidade podemos incluir qualquer arte ofício ou ciência64 Assim como Rousseau Kant estava convencido de que na ordem econômica justa todos teriam alguma coisa e ninguém teria demais65 e por isso aprovava a venda ou a divisão por herança das grandes propriedades Como essa alguma coisa à venda pela esmagadora maioria das pessoas era apenas sua força de trabalho que se contrapunha ao poder de explo ração e repressão obtido da imensa riqueza possuída pelos poucos esta contradição teria de ser enfrentada de alguma forma Ela foi esclarecida por Kant e suas almas gêmeas ideológicas por meio da separação radical da forma da lei de sua matéria de modo que em nome da racionalidade apriorística possa sustentar que a igualdade geral dos homens de jure ou seja como questão de direito e justiça indiscutíveis pode muito bem coexistir ao lado da maior desigualdade nos graus das posses dos homens Assim segundo essa visão altamente tendenciosa quem quer que ousasse levantar a questão da igualdade com referência às diferenças existentes na riqueza material e no poder correspondente teria ele próprio sido automaticamente banido para não dizer ela própria do campo do discurso racional E não era só isso Os interesses ideológicos afirmados por Kant e por outros depois dele pela separação dualista explícita entre forma da lei e sua matéria foram ainda mais reforçados por outro dualismo anunciado em nome da racionalidade apriorística opondo a lei como tal às aspirações do ser humano à felicidade insistindo em que tudo isso é assim determinado pela pura razão legislativa apriorística que não tem nenhuma relação com objetivos empíricos como os compreendidos sob o nome geral de felicidade66 Sob ameaça de excomunhão do terreno da razão a igualdade e a justiça tinham portanto de ser separadas da substância matéria e da felicidade em conformidade às exigências da legalidade burguesa a serviço das relações de poder material do sistema do capital eliminandose assim a possibilidade de pedir uma justificativa racional para as injustiças contra as pessoas na ponta receptora da hierarquia estrutural existente Hegel que criticou Kant em muitos aspectos também não hesitou em relegar todos os que tentaram levantar a questão da igualdade em termos substantivos ao reino inferior do simples entendimento Verstand excluindoos com desdém do campo da razão Vernunft como vimos acima Em geral a tradição filosófica burguesa somente poderia visar o tipo de reformas e melhorias que se adaptasse aos limites do formalismo legal preconcebido em favor da ordem dominante Como é característico as mesmas ponderações sobre a legalidade vazia que regulava a igualdade contratual do trabalho foram também aplicadas às queixas das mulheres Engels as enfatizou 64 Id ibid 65 Rousseau The Social Contract Everyman Edition p 19 Mas na mesma frase Rousseau também afirmou evidentemente antes da Revolução Francesa com radicalismo agressivo que sob a ordem existente a igualdade é apenas aparente e ilusória serve somente para manter na pobreza o pobre e o rico na posição que usurpou Kant ao contrário torna o pobre dependente do rico sem se perguntar como surgiu essa dependência e como ela poderia ser desfeita O fato de na realidade os pobres produzirem a riqueza dos ricos e assim a dependência em discussão estar representada ao contrário não pode ser aceito nem mesmo na mais iluminada das justificações filosóficas do universo burguês 66 Kant op cit p 416 277 A ativação dos limites absolutos do capital Naturalmente os nossos juristas acreditam que o progresso na legislação está deixando as mulheres sem mais nenhuma base para reclamações Os modernos sistemas civilizados da lei cada vez mais admitem em primeiro lugar que para um casamento ser legal deve ser firmado um contrato em que as duas partes entram espontaneamente e segundo também que no estado de casados os dois parceiros devem ter as mesmas condições de direitos e deveres iguais Se essas duas exigências forem solidamente cumpridas dizem os juristas as mulheres têm tudo o que possam pedir Esse método tipicamente legalista de argumentação é exatamente o mesmo usado pelo burguês republicano radical para colocar o proletário em seu lugar O contrato de trabalho deve ser firmado espontaneamente entre os dois parceiros Não obstante considerase firmado espontaneamente enquanto a lei considera as duas partes iguais no papel O poder conferido a uma das partes pela diferença de posição de classe a pressão que esta produz sobre a outra parte a posição econômica real de ambas nada têm a ver com a lei Enquanto perdura o contrato de trabalho as duas partes terão direitos iguais desde que uma ou outra não renuncie expressamente a eles O fato de que as relações econômicas obriguem o trabalhador a renunciar até à mais ínfima semelhança do que sejam direitos iguais aqui mais uma vez nada tem a ver com a lei67 Essa determinação estipuladora dos termos em que os remédios poderiam ser buscados dentro dos limites do sistema profundamente iníquo estabelecido teria de frustrar a luta pela emancipação em todos os campos Verdade seja dita ainda que mantidos dentro dos limites bem demarcados das concessões puramente formaislegais nos séculos XIX e XX fizeramse avanços na questão da emancipação das mulheres em relação à época de Kant como a celebrada vitória das sufragistas ou a eliminação de parte da legislação discriminatória contra as mulheres Entretanto essas mudanças não afetaram significativamente as relações de poder material da desigualdade estrutural assim como a eleição de governos socialdemocratas e trabalhistas em nada emancipou o trabalho do domínio do capital 533 Na solução de Kant para o problema de como regular a posição das mulheres na sociedade não havia apenas uma afirmação aberta ainda assim honesta do pa triarcado confiante mas uma coerência perversa Ele negava status igual às mulheres não devido a alguma aversão pessoal mórbida em relação a elas No plano kantiano das coisas as mulheres recebiam uma posição subordinada porque era impossível conceberse a satisfação das exigências de uma verdadeira emancipação da mulher por meio de concessões legalistas formais Para terem algum significado as concessões adotadas e as mudanças consequentes teriam de ser substantivas Mas a estrutura de comando do capital sempre foi e para sempre será totalmente incompatível com a ideia de conceder a qualquer pessoa igualdade substantiva na tomada de decisões até mesmo às personificações do capital que devem operar rigorosamente sob seus ditames materiais Neste sentido quer as mulheres tenham quer deixem de 67 Engels op cit pp 1356 278 A sombra da incontrolabilidade ter o direito de votar elas devem ser excluídas do verdadeiro poder de decisão por causa de seu papel decisivo na reprodução da família que terá de se alinhar com os imperativos absolutos e os ditames autoritários do capital E isto deve acontecer porque a família por sua vez ocupa uma posição de importância essencial na reprodução do próprio sistema do capital ela é seu microcosmo insubstituível de reprodução e consumo Da mesma maneira é inconcebível a ideia de que o trabalho venha a adquirir igualdade significativa nem mesmo se os membros trabalhistas e os socialdemocratas do parlamento aprendessem a ficar sempre de pontacabeça no que fizeram grandes progressos pena que não tenham feito progresso em mais nada devido à absoluta necessidade de manter o trabalho em permanente subordinação estrutural ao capital como Senhor no sentido kantiano da ordem sociometabólica dada Kant expõe essa visão com uma consistência interessada mas não obstante perversamente sustentável as pessoas não podem julgar em termos legais a maneira como se deve administrar a constituição Quando se pressupõe que elas têm esse poder de julgamento e o exerceram em contradição com o do verdadeiro chefe de Estado quem decidirá qual das partes está certa Ninguém pode fazêlo pois será juiz em causa própria Portanto deveria haver um chefe acima do chefe de Estado para decidir entre as pessoas e o chefe de Estado o que em si é uma contradição68 Partilhar uma posição de igualdade com o capital e ao mesmo tempo manter a necessária subordinação do trabalho no processo da reprodução socioeconômica é uma evidente contradição Para resolvêla realmente e não apenas em termos legais e políticos fictícios seria preciso um controle e uma organização radicalmente diferentes do processo sociometabólico Contudo é claro que assim toda a questão da igualdade com o capital ou parceria igual entre governo empresa e trabalho nas pretensões mistificadoras dos governos socialdemocratas e seus suspeitos parceiros se tornaria uma preocupação totalmente redundante Naturalmente Kant não poderia imaginar uma ordem socioeconômica al ternativa organizada e controlada com base no compartilhamento cooperativo de tarefas embora fosse contemporâneo de François Babeuf um revolucionário decapitado em 1797 precisamente por defender essa causa O axioma de Kant tinha de ser este o Senhor comanda e os súditos obedecem coerente em todas as formações tornadas inevitáveis e possíveis pela sociabilidade asocial da humanidade69 desde o lar da família até o Estado político que tudo abrange Em sua visão do que poderia ser considerada uma tomada de decisão viável tudo deveria adaptarse a uma hierarquia rigorosa com alguém claramente identificável em seu ápice O poder de decisão na economia onde um homem manda no outro teria de estar nas mãos do possuidor de uma propriedade privada fosse esta grande ou pequena na família o Senhor seria a parte masculina no Estado constitucional o totalmente inquestionável chefe de Estado Não importando o quanto fosse questionável em termos substantivos essa maneira de tratar dos pro 68 Kant op cit pp 4234 69 Kant Idea for a Universal History with Cosmopolitan Intent p 120 no volume citado na nota 59 279 A ativação dos limites absolutos do capital blemas era muito mais consistente que os esforços posteriores dos utilitaristas que se exauriam em pronunciamentos vazios e muitas vezes até ofensivos para com as massas do povo como o pretensioso princípio da felicidade de John Stuart Mill segundo o qual era melhor um Sócrates descontente do que um porco satisfeito com o que ele procurou justificar contradizendo diretamente a Kant a proposta alocação de votos múltiplos às pessoas intelectualmente superiores ou como as teorias chauvinistas machistas e aristocráticoracistas de Edgeworth a respeito da iníqua distribuição de utilidades e felicidade para ele correta e adequada como vimos na seção 321 Kant pensou que o princípio da igualdade diante da lei com o que queria dizer abolição dos privilégios feudais fixados politicamente uma proposição verda deiramente radical para sua época resolveria os problemas remanescentes Além do mais ele foi honesto o bastante para admitir que a regulamentação burguesa das relações de propriedade a que aderia poderia causar uma enorme desigualdade de riqueza entre os membros da comunidade70 Por um lado Kant saiu dessa dificuldade graças à sua plena confiança na força benevolente do mercado que ele compartilhava com Adam Smith de quem até tomou emprestada e por outro lado transferindo as reflexões sobre felicidade a outro reino mostrando que as coisas materiais não dizem respeito à personalidade e podem ser adquiridas como a propriedade e descar tadas71 ao contrário das propriedades de terra que estavam totalmente atadas a seus proprietários pelos privilégios feudais denunciados Separando a forma da lei de seu conteúdo e de acordo com esta mesma abordagem atribuindo um reino dife rente à preocupação com a felicidade para ele justificadamente fora do alcance da razão legislativa Kant também proporcionava o modelo para a fundamentação da igualdade numa justiça formallegal amplamente imaginária que poderia ser materialmente anulada Racionalizações posteriores sobre a ordem sociometabólica do capital em especial no século XX perderam até a relativa justificativa das ilusões kantianas que no século XVIII se sustentavam devido ao fato de que o sistema do capital estava bem longe do pleno desenvolvimento Entretanto com o passar do tempo o mercado não correspondeu às expectativas a ele atribuídas por Adam Smith e Kant que o viam como instituição benevolente que a longo prazo atuava na direção de uma ordem social justa e mais equitativa por meio da tendência potencialmente equalizadora que como se viu não aconteceu da vendabilidade universal Ao mesmo tempo até a postulada igualdade diante da lei mostrouse falsa graças ao poder da grande riqueza exploradora de na prática comprar serviços preferenciais inclusive os da lei Acumulando riqueza as personificações do capital podiam tomar para si e da maneira mais iníqua imaginável utilidade e felicidade Na verdade com frequência até exagerada elas conseguem até assassinar com literal impunidade graças à sua posição protegida e institucionalmente privilegiada mesmo não sendo do tipo feudal anacrônico demonstrando de forma cabal 70 Kant Theory and Practice op cit p 419 71 Id ibid 280 A sombra da incontrolabilidade que somente na ficção legal se pode separar a forma da lei de seu conteúdo a serviço dessa universalização supostamente equalizadora Com esse histórico dolorosamente irrefutável só os mais descarados defensores do capital poderiam defender a ordem estabelecida em nome do idealizado Domínio da Lei utili zando as ilusões sinceras do Iluminismo sobre igualdade formal para justificar as mais gritantes desigualdades do presente como se não tivesse havido oposição eficaz a essas ilusões durante os últimos duzentos anos Portanto é compreensível que onde as preocupações verdadeiramente humanitárias deram o tom no século XVIII ainda que misturadas com as ilusões da época hoje encontremos a hipocrisia descarada à beira do cinismo A esse respeito um exemplo particularmente notável é o do cavaleiro de honra de Margaret Thatcher Friedrich von Hayek Sua argumentação se caracteriza por decla rações e premissas arbitrárias como a defesa da imparcialidade do Estado72 ao lado de tautologias que mereceram o prêmio Nobel Em seu sucesso editorial Road to Serfdom A estrada para a servidão ele nos conta que foi a submissão dos ho mens às forças impessoais do mercado que tornou possível no passado o surgimento de uma civilização que sem isto não poderia terse desenvolvido73 E Hayek também declara que o Domínio da Lei no sentido de domínio da lei formal é a única salvaguarda contra o governo arbitrário Depois de pressupor com arbitrariedade apologética classista o relacionamento inevitável entre o domínio da lei formal e o governo não arbitrário excluindo assim por antecipação a verdadeira justiça do terreno da razão legisladora algumas linhas abaixo Hayek conclui com uma declaração igualmente arbitrária e inteiramente tautológica que um verdadeiro ideal de justiça distributiva deve levar ao fim do Domínio da Lei74 Da mesma maneira a concepção ideológica apriorística de Hayek apresenta os axiomas in sustentáveis de que o planejamento leva à ditadura75 e quanto mais o Estado planeja mais difícil o planejamento se torna para o indivíduo76 Mais adiante no livro ele contradiz seu próprio lamento sobre as dificuldades do planejamento individual adotando satisfeito a ideia de que uma civilização complexa como a nossa inevitavelmente se baseia na adaptação do indivíduo às mudanças cuja causa e natureza ele não pode compreender77 Assim não apenas ficamos com uma gritante contradição entre a idealização do planejamento individual sob o capitalismo e sua negação pelo mercado mas também com uma grotesca noção do que supostamente deve aceitar o indivíduo submisso como a última conquista de nossa civilização complexa Curiosamente em nome da liberdade ele também nos diz que a maior virtude é a submissão inquestionada de todos os indivíduos à tirania do mercado 72 Hayek The Road to Serfdom p 57 73 Id ibid pp 1512 74 Id ibid p 59 75 Id ibid p 52 76 Id ibid p 57 77 Id ibid p 151 281 A ativação dos limites absolutos do capital a menos que se queira eliminar essa complexa sociedade a única alternativa para a submissão às forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado é a submissão a um poder igualmente incontrolável e portanto arbitrário de outros homens78 Está óbvio que Hayek não consegue admitir a possibilidade e a legitimidade de se contemplar uma alternativa para o domínio do capital a que em sua visão todos devem se submeter menos ainda se isto significar que os indivíduos assumirão o controle sobre as atividades de suas próprias vidas por meio de formas cons cientemente organizadas ou seja realmente planejadas de intercâmbio social produtivo administrado a partir de suas próprias decisões em vez dos ditames materiais preexistentes para ele incompreensíveis Nessa abordagem Hayek não desfaz um grande mistério por que alguém preferiria o tipo de incontrolabilidade e submissão de Hayek ao que este demagogicamente projeta como única alternativa Só porque o que ele recomenda é impessoal e aparentemente irracional Afinal de contas ao caracterizar o sistema nestes termos tudo é apresentado de cabeça para baixo O sistema do capital não é apenas aparentemente irracional mas completa e irremediavelmente irracional além disso não é impessoal em sua natureza real mas apenas aparentemente impessoal Ou seja ele é impessoal apenas devido ao fetichismo da mercadoria historicamente prevalecente que faz com que um tipo de relação entre os homens sob o modo de controle sociometabólico do capital assuma a seus olhos a forma fantástica de um relacionamento entre coisas para que sua própria ação social assuma a forma de ação de objetos que dominam os produtores em vez de serem por eles dominados79 A questão é que a força restritiva dessa forma fantástica a que se supõe que estaremos submetidos para sempre na prática pode ser desafiada expondose e combatendose as rela ções estabelecidas de dominação de classes e de subordinação estrutural baseadas na impessoalidade mistificadora do fetichismo da mercadoria que Hayek está ansioso por confundir em seus escritos falaciosos em defesa do capital Mais uma vez aqui o contraste com Kant não poderia ser maior O grande filósofo alemão confessou sua simpatia pela utopia filosófica que tem a esperança de um Estado de paz perpétua baseada numa liga de povos como uma república mundial e pela utopia teológica com sua expectativa de uma completa regeneração moral de toda a raça humana80 O próprio Kant deu sua contribuição a ambas em suas reflexões sobre A paz perpétua e sobre A religião apenas nos limites da Razão para que não fossem universalmente ridicularizadas como fantasias81 Todavia para Hayek esses esforços devem ser realmente condenados como devaneios ociosos se não coisa bem pior Nós já vivemos no melhor dos mundos Assim a questão de melhorar a ordem existente cuja natureza não conseguimos entender não pode surgir com legitimidade O dever de homens e mulheres segundo ele é submeterse alegremente aos ditames de nossa complexa civilização e lutar com unhas e dentes contra os que se recusam a aceitar a necessidade da submissão como condição humana permanente 78 Id ibid p 152 79 Marx Capital vol 1 pp 72 e 75 80 Kant Religion within the Limits of Reason Alone p 382 no volume citado na nota 59 81 Id ibid 282 A sombra da incontrolabilidade 534 E assim testemunhamos a completa degradação de uma interpretação que era bastante problemática e já questionada até na época das ilusões parcialmente perdoáveis do Iluminismo Ela não foi questionada apenas por Babeuf que acreditava tão apaixonadamente numa ideia radicalmente diferente de igualdade e justiça que estava preparado para morrer por ela mas também antes dele por Diderot que já vimos na seção 422 insistia se o trabalhador é miserável a nação é miserável Por mais problemáticas que fossem as ideias de Kant sobre o relacionamento entre igualdade felicidade e personalidade ele jamais tentou fingir que os beneficiários da desigualdade material não fossem considerados privilegiados mesmo que com certeza não tivessem vantagens morais A negação vergonhosa até da ligação mais palpavelmente inegável entre o privilégio e a desigualdade material só ganhou proeminência num quadro conceitual em que as relações verdadeiras tinham de ser apresentadas de pernas para o ar alterando deliberadamente a base dos argumentos em nome da mais grosseira forma de propaganda antissocialista fantasiada de teoria Para tomarmos um exemplo típico Hayek exclui categoricamente todas as ponderações de verdadeira igualdade e verdadeira justiça do campo da dis cussão legítima oferecendo como único tipo adequado de lei a obrigação geral de dirigir do lado esquerdo ou do direito da estrada desde que todos façam a mesma coisa mesmo se sentirmos que é injusto82 Por que diabos alguém sentiria que esse tipo de lei administrativa formal pudesse ser injusta quando ela se aplica a todos num terreno racionalmente incontestado e incontestável Esse é outro grande mistério Mas está bem clara a intenção apologética que há por trás O objetivo de Hayek é camuflar a lei substantiva repressora decretada e imposta sem a menor cerimônia como dimensão política do domínio tirânico do capital como se ela pertencesse à mesma categoria das regras administrativas formais aplicadas por coerção mas de fato racionalmente incontestadas mesmo quando na prática são violadas por alguns indivíduos Algumas linhas abaixo na mesma página e em oposição ao que Hayek consideraria uma inação totalmente censurável do Estado o exemplo dado para ilustrar a sua legítima ação coercitiva é a interven ção contra os piquetes de greve uma ação que nem a imaginação mais pobre poderia incluir na categoria das regras administrativas formais não contestadas e legitimamente incontestáveis Dessa maneira ao revelar a intenção ideológica apologética classista culta por trás desse gênero de teorização que neste caso afeta diretamente o trabalho organizado a qualificação que entra em jogo graças a um truque do autor é que a coerção do Estado é correta e adequada mesmo quando as pessoas sentem que ela é injusta O principal argumento de Hayek sobre privilégio e desigualdade não é menos problemático O conflito entre a justiça formal e a igualdade formal diante da lei por um lado e por outro as tentativas de realizar os diversos ideais da verdadeira justiça e igualdade também são responsáveis pela confusão generalizada sobre o conceito do privilégio e seu consequente abuso Para mencionar apenas o maior exemplo deste abuso a 82 Hayek The Road to Serfdom p 60 283 A ativação dos limites absolutos do capital aplicação da palavra privilégio à propriedade Seria realmente um privilégio se por exemplo como acontecia no passado a propriedade da terra estivesse reservada aos membros da nobreza No entanto chamar de privilégio a propriedade privada que todos podem adquirir sob as mesmas regras porque só alguns conseguem adquirila é tirar da palavra privilégio o seu significado83 Neste mundo em que vivemos o privilégio não existe existe apenas o privilégio entre aspas Os que sustentam o contrário participam da confusão generalizada violando o conceito de privilégio que pertence ao passado feudal o pior é que estes também abusam da razão acima de tudo porque ousam questionar o poder discri minatório do privilégio substantivo material que emana da dominância estrutural da propriedade capitalista privada A razão estipulada para que se excluam do discurso racional as incontáveis pessoas confusas que abusam da razão é que os excluídos da propriedade privada uma questão das relações materiais existentes podem adquirila sob as mesmas regras ainda que não o consigam Naturalmente mais uma vez encontramos oculta embaixo desse argumento racional a habitual tautologia apologética classista de Hayek Ele afirma arbitra riamente que levantar a questão de justiça e igualdade substantivas é manifestação de confusão generalizada e deve ser condenada porque as considerações acerca de igualdade e justiça devem ser confinadas rigorosamente às regras formais e assim o autor conclui logicamente que em virtude das mesmas regras formais sob as quais a propriedade privada pode ser adquirida por todos em princípio tudo está correto e adequado neste nosso mundo em que não há lugar para o privilégio graças ao funcionamento ideal das regras formais do Estado que aliás também são uma com pleta ficção mesmo que no presente contexto isso tenha importância secundária A questão vital saber se sob o sistema vigente do capital o pode invocado por Hayek é real ou inteiramente oco84 deve permanecer a seus olhos um tabu absoluto 83 Id ibid 84 Uma medida do total vazio do pode constantemente proclamado e nunca realizado mesmo que em mínima escala é a ampliação da lacuna entre ricos e pobres que se afirma apesar de todas as promessas do liberalismo e da socialdemocracia tradicional Podese encontrar uma breve história e crítica desses desenvolvimentos desde Bernstein até as idealizações do Estado de bemestar social posteriores à Segunda Guerra Mundial no capítulo 8 de The Power of Ideology Dados recentes reafirmam o absurdo de se esperar soluções por meio de melhoramentos graduais da estrutura do sistema do capital quando na verdade tudo aponta na direção da intensificação da desigualdade Nem mesmo a falsificação usual de números politicamente indesejáveis pelos governos consegue ocultar esta verdade desconcertante A lacuna entre ricos e pobres aumentou na GrãBretanha sob o governo conservador quando de acordo com números oficiais foi atingido o pico de uma pessoa em três abaixo da linha de pobreza definida em Bruxelas A renda dos 10 mais pobres da população caiu 17 entre 1979 e 1991 enquanto a renda dos 10 mais ricos aumentou 62 Estes números apresentados no último relatório Households Below Average Income mostram que o número de pessoas que vivem abaixo da linha europeia da pobreza ou seja com renda inferior à metade da média aumentou de 5 milhões em 1979 para 139 milhões em 199192 Outras 400000 pessoas passaram para baixo da linha de pobreza desde o relatório anterior 200000 das quais eram crianças Em 1979 14 milhão de crianças viviam abaixo da linha de pobreza passando a 39 milhões em 199091 e 41 milhões um ano depois Em dinheiro a renda média dos 10 mais pobres caiu de 74 para 61 ou seja 91 por semana Estes números se baseiam em dados da Pesquisa sobre Despesa Familiar do governo Jill Sherman Child poverty trebles in 12 years while rich get richer The Times 15 de julho 1994 p 4 284 A sombra da incontrolabilidade Os temerários que ousassem levantar essa questão seriam banidos do reino do dis curso racional pelo autor de A estrada para a servidão com a peremptória decisão da mesma tautologia que ele utiliza aqui contra os que supostamente abusam da razão culpados de tirar o significado da palavra privilégio Típico dessas defesas do sistema do capital é a fuga em causa própria da questão das relações de poder material Por meio dessa evasão até as formas mais substantivas de domínio e subordinação exploradora podem ser equivocadamente apresentadas como estando plenamente de acordo com as exigências do Domínio da Lei e a ausência de arbitrariedade Dizemnos que não é a fonte do poder mas sua limitação que evita que ele seja arbitrário85 Nesse postulado tanto a fonte como a limitação do poder legislador do Estado estão ficticiamente isoladas da base material e dos interesses a que servem como se o idealizado poder político não arbitrário se autossustentasse e autolimitasse Evidentemente o poder político das formações estatais do capital não é arbitrário mas rigorosamente dominado pelas determina ções estruturais materiais do sistema estabelecido de controle sociometabólico Em parte essa arbitrariedade diz respeito à irracionalidade do processo de realização basicamente incontrolável que afeta até as mais privilegiadas personificações do capital e em parte à sujeição implacável de grandes massas de pessoas aos impera tivos de um modo fetichista e tirânico de reprodução socioeconômica para o qual não há alternativa Em outras palavras o arbitrário em relação aos indivíduos é a categórica exclusão de alternativas aos ditames materiais absolutos do sistema do capital e não a tradução desses ditames em regras fixas de legislação historica mente específica do Estado Afirmar que o Domínio da Lei é a encarnação legal da liberdade86 sobre a base fictícia de que ele se restringe adequadamente ao tipo de regras gerais conhecidas como regras formais87 é uma deturpação completa não apenas do relacionamento entre a legislação do Estado e a base material do capital a força limitadora não formal mas muito real das práticas legisladoras políticas e executivas mas também da natureza das próprias leis e regras da política As apologeticamente idealizadas regras conhecidas do jogo88 que se diz garantirem a liberdade do indivíduo não são apenas gerais e formais e aplicadas segundo o aprovado princípio formal de igualdade para qualquer pessoa particular no espírito dos exemplos ilustrativos preferidos de Hayek tomados do Código de Trânsito e da adoção geral de pesos e medidas Elas também são substantivas e discrimi nadoras Nesta última qualidade não são dirigidas meramente contra os interesses de um número limitado de indivíduos específicos segundo as referências ritualistas de Hayek à natureza ideal do credo liberal89 num contraste vazio com a orientação explícita do credo coletivista mas contra as classes das pessoas em desvantagem estrutural como por exemplo a substantiva e repressiva legislação antissindicalista claramente contra os piquetes grevistas 85 Hayek op cit p 53 86 Id ibid p 61 87 Id ibid p 62 88 Id ibid p 54 89 Id ibid p 52 285 A ativação dos limites absolutos do capital Esse tipo de raciocínio típico da defesa empedernida da desigualdade ma terial sob a pretensão de fazêlo em nome do Domínio da Lei funciona com a afirmação arbitrária de uma série de equações falsas Dizse que o Domínio da Lei é igual à regra da lei formal ambos equivalem à ausência de privilégios e os três juntos são iguais e protegem a igualdade diante da lei que é o oposto do governo arbitrário90 Como acabamos de ver nenhum elemento desta série de equações explicativas é sustentável muito menos se poderia considerar que importem na única posição racionalmente justificável Na verdade o objetivo de todo o exercício é fazer as pessoas aceitarem duas proposições totalmente injustificáveis Primei ro toda a preocupação com a igualdade deveria estar rigorosamente confinada à questão da igualdade diante da lei Em segundo lugar diante do fato de que não se pode avançar para a verdadeira igualdade no quadro das restrições dogmáticas da primeira proposição também se deve aceitar que ela é verdadeira e adequada ou seja racional e plenamente justificável e que realmente deveria permanecer assim para sempre em nossa visão a menos que desejemos ser responsáveis pela vergonha de favorecer um governo arbitrário e o fim da encarnação legal da liberdade e que absolutamente ninguém deveria agir para mudar as relações prevalecentes de desigualdade substantiva Segundo Hayek a igualdade formal diante da lei está em conflito e é de fato incompatível com qualquer atividade do governo que vise deliberadamente a igualdade material ou verdadeira de pessoas diferentes 91 Na verdade a questão há muito discutida da igualdade e da emancipação não pode ser seriamente tratada sem resolvermos as suas duas dimensões substantivas A primeira está ligada a problemas da lei substantiva e aos obstáculos legislativos diretos ou indiretos erigidos no curso da história contra a potencial realização da igualdade substantiva a segunda diz respeito ao que deve ir muito além dos poderes da com pensação legal direta As teorias formalistas dos defensores do capital são formuladas para negar o inegável ou seja que existem ou se conceberia que existissem esses obstáculos legislativos substantivos no quadro do Estado liberal Contudo esta não é sua função mais importante Sua interpretação diz respeito primordialmente à incapacidade axiomática daquilo que não se adapte aos limites de sua ordem material e legal preferencial O ponto principal de sua defesa do Domínio da Lei e do planejado confinamento deste a regras formais é circunscrever o campo da ação legítima a fim de tornála totalmente irrealizável aplicandose os critérios formais estipulados tanto à emancipação das mulheres como à verdadeira igualdade material dos trabalhadores em termos de seus poderes potenciais de tomada de decisão Em primeiro lugar eles restringem a possibilidade de progresso no ato de votar e assim até isso eliminam anulando convenientemente o resultado emancipador potencial do próprio voto Mesmo que todas as pessoas interessadas dessem pelo voto o poder a um governo cujo mandato instituísse a verdadeira igualdade e a emancipação real não a formal 90 Id ibid p 59 91 Id ibid 286 A sombra da incontrolabilidade legal materialmente impotente tal governo não teria permissão para violar o tabu da verdadeira desigualdade como vimos no penúltimo parágrafo Entretanto os obstáculos diante da igualdade e da emancipação não ter minam aqui Há uma preocupação ainda maior precisamente com o que está na base material de todas as práticas legislativas relativas a isso As forças contrárias à exigência de igualdade substantiva conseguiram se reafirmar apesar de todos os progressos no domínio legal no que tange à causa da emancipação das mulheres sob todas as formações conhecidas do Estado moderno inclusive suas variedades póscapitalistas 535 Na história a demanda pela verdadeira igualdade vinha à tona com especial intensi dade em períodos de crise estrutural quando por um lado a ordem estabelecida se rompia sob a pressão de suas contradições internas e deixava de corresponder a suas funções sociometabólicas essenciais e por outro a nova ordem do domínio da classe destinada a tomar o lugar da antiga ainda estava longe de plenamente articulada Nem o velho sistema nem a alternativa emergente tinham poder para eliminar com a autoridade internalizada de axioma opressor a possibilidade de realizar a antiga aspiração de livrar os intercâmbios humanos da tirania da ubíqua hierarquia estru tural Significativamente surgiram incontáveis sistemas de convicções igualitárias sob as condições desse vácuo social relativo entre dois mundos que chegavam a assumir a forma de lutas organizadas entre as quais estão as revoltas de escravos os levantes camponeses as muitas rebeliões esporádicas dos anabatistas a conspiração da sociedade dos iguais de Babeuf a militância extremista e o sacrifício do movimento inicial da classe trabalhadora em condições de externa inferioridade na primeira metade do século XIX Geralmente no curso da história os movimentos igualitários militantes eram sufocados em sangue pelas forças da exploração e da opressão que sempre estavam prontas para atacar o que não diminui sua importância A cada ataque esses movimentos mostravam a impossibilidade de se erradicar uma ideia quaisquer que fossem as forças contrárias cujo momento a história muitas vezes pressagiou mesmo que ainda não tenha chegado A exigência da emancipação das mulheres conferiu uma nova dimensão a esses an tigos enfrentamentos históricos que faziam pressão em prol da verdadeira igualdade As mulheres tiveram de compartilhar uma posição subordinada em todas as classes sociais sem exceção o que tornava inegável até pelas forças conservadoras mais extremadas que sua demanda pela igualdade não poderia ser atribuída a uma particular inveja de classe e assim descartada Esta circunstância também deixou óbvio que o poder nas mãos das mulheres em qualquer sentido dessa expressão seria inconcebível se o quadro estrutural de dominação e hierarquia de classes se mantivesse como princípio organizador da ordem sociometabólica Mesmo que todas as posições de comando nas empresas e na política do capitalismo fossem reservadas por lei para as mulheres naturalmente isto não poderia acontecer por uma série de razões incluindose em lugar proeminente a estrutura existente da família de onde a hipocritamente exagerada admissão de minorias um número incomparavelmente maior de irmãs continuaria em abjeta subordinação e impotência Não se poderia encontrar nenhum espaço es 287 A ativação dos limites absolutos do capital pecial para a emancipação das mulheres no referencial dessa ordem socioeconômica Por isso o poder nas mãos das mulheres teria de significar poder nas mãos de todos os seres humanos ou nada exigindo o estabelecimento de uma ordem de produção e reprodução sociometabólica alternativa radicalmente diferente que abrangesse todo o quadro de referências e as microestruturas que constituem a sociedade Com isso era inevitável que a irrefreável exigência de emancipação das mulheres também concentrasse a atenção na promessa inicial e na definição do movimento socialista e mais tarde em seu trágico descarrilar Esse descarrilamento assumiu a forma de uma mudança fatal pela administração póscapitalista do Estado e o reformismo socialdemocrata nas sociedades de socialismo realmente existente da estratégia de instituirse uma alternativa para a ordem social do capital para a aceitação de melhorias parciais de vida curta que poderiam ser conciliadas pelo próprio sistema do capital Nesse aspecto o contraste em relação à visão marxista se torna claro quando nos lembramos de que referindose ao proletariado Marx falava de formação de uma classe com cadeias radicais uma classe na sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil um estamento que é a dissolução de todos os estamentos uma esfera que tem uma natureza universal por seu sofrimento universal e que não reivindica nenhum direito particular porque nenhum agravo em particular mas o agravo gene ralizado é perpetrado contra ela ela não permanece em nenhuma antítese unilateral em relação às consequências mas às premissas do estamento é uma esfera que não pode se emancipar sem emancipar todas as outras esferas da sociedade92 Marx não via a classe trabalhadora como classe no sentido tradicional Para ele as classes tradicionais que visavam alguma forma de domínio de classe eram classes da sociedade civil pois podiam satisfazer seus próprios objetivos egoístas na sociedade civil hierárquica vigente Em compensação a classe do trabalho não conseguia realizar suas metas na forma de interesses particularistas além de ser inconcebível que se tornasse uma classe privilegiada acima e contra uma classe produtora ou seja ela própria Não obstante não se poderia excluir a possibilidade de que as organizações econômicas e políticas trabalhistas historicamente estabelecida se emaranhassem na perseguição a interesses particularistas e descarrilassem a emancipação do trabalho Em primeiro lugar porque a classe do trabalho ao contrário das mulheres que integram todas as classes ocupava um determinado espaço no espectro social oposto à classe adversária o capital e suas personificações mutantes Neste sentido como classe contra classe o trabalho tinha aspirações e queixas historicamente específicas que poderiam ser tratadas em termos relativos em cima do modelo da aquisição de um pedaço quantitativamente maior do bolo por meio do aumento na produtividade ainda que de modo algum uma fatia proporcionalmente maior do bolo disponível em relação à parcela apropriada pelo capital As ilusões e mistificações do reformismo poderiam muito bem basearse nessa ambiguidade fundamental que mais uma vez não teria nenhum equivalente no terreno da emancipação das mulheres a qual por sua própria natureza exige uma ordem social qualitativamente diferente Adotando essa ambiguidade como estratégia o reformismo socialdemo 92 MECW vol 3 p 186 Tradução modificada 288 A sombra da incontrolabilidade crata podia falsamente prometer a realização dos objetivos socialistas por meio da gradual ampliação de melhorias quantitativas no padrão de vida dos trabalhadores por meio do autoengano e jamais mesmo sob governos trabalhistas ou social democratas tentando consistentemente a taxação progressiva quando na reali dade o capital sempre permaneceu com o controle total do processo da reprodução social e da distribuição da riqueza da nação produzida pelo trabalho Em segundo lugar por um período histórico relativamente longo as circuns tâncias socioeconômicas não foram muito favoráveis à realização das perspectivas defendidas e antecipadas por Marx Enquanto a ascensão histórica do capital pu desse continuar sem perturbações no terreno global também haveria espaço em termos mate riais efetivos para a busca de interesses particularistas nos movimentos trabalhistas dos países relativamente privilegiados Ainda que os objetivos estraté gicos originais dos socialistas fossem postos de lado enquanto estivessem atrás desses interesses limitados a longo prazo insustentáveis até em sua escala limitada seria possível obter da margem de lucro em expansão do capital alguns ganhos mensurá veis para as seções de liderança das classes trabalhadoras nos países economicamente mais dinâmicos os imperialistas modificando assim a máxima anteriormente válida do Manifesto comunista os proletários só tinham a perder as suas correntes O momento histórico da socialdemocracia reformista surgira a partir desses fatos Já na época da Crítica ao programa de Gotha de Marx e bem mais pelo final do século XIX sob o slogan do Socialismo evolucionista de Bernstein o movimento socialdemocrata adotou a estratégia de lutar por privilégios no quadro da repro dução do capital Dessa maneira ele contribuía ativamente para a revitalização do adversário capitalista em vez de defender sua própria causa em favor de uma ordem social alternativa Inevitavelmente a aceitação de melhorias parciais concedidas pelo adversário retiradas de suas margens de operação na expansão lucrativa do capital impunha um altíssimo preço ao trabalho Significava a aceitação dócil da autoridade do capital na determinação das reivindicações que seriam ou não consideradas legítimas e na participação adequada do trabalho na riqueza social disponível Assim não espantava que no discurso socialdemocrata a questão da verdadeira igualdade humana se diluísse a ponto de perder o sentido ritualmente reiterada nas convenções partidárias na forma da retórica vazia e autocontradi tória de justiça de todas as coisas diante do capital pedindo no novo jargão dos líderes trabalhistas até o salário mínimo numa medida sensata a um ritmo sensato e igualdade de oportunidades devida e subservientemente contraposta à igualdade de resultados Essa forma de tratar a demanda por verdadeira igualdade que voltava teimosa mente à tona era vazia e contraditória porque nem como projeto afetava o edifício estrutural da sociedade de classes exploradora para não mencionar sua efetiva reali zação Uma vez considerado inquestionável o sistema socioeconômico estabelecido como quadro indispensável de reivindicações e aspirações legítimas tudo teria de ser realisticamente avaliado com base nas premissas da permanência da viabilidade e da reformabilidade do capital gratuitamente aceitas durante quase um século de devaneios socialdemocratas Desse modo a ideia de igualdade passou a estar rigoro samente subordinada a considerações de imparcialidade e justiça adotando como 289 A ativação dos limites absolutos do capital devida medida de imparcialidade e justiça o que quer que o capital pudesse e desejasse conceder de suas margens flutuantes de lucratividade A racionalidade deste tipo de discurso postulando a realização de igualdade e imparcialidade para não mencionar o socialismo com a premissa indiscutível da inalterabilidade da ordem social hierárquica e exploradora do capital só poderia ser caracterizada com a frase condenatória de Kant ex pumice acquam ou seja fazer água da pedrapomes O fato de com a consumação global da ascendência histórica do capital em nossos dias o movimento socialdemocrata ter abandonado até suas metas reformistas limitadas e adotado sem reservas a economia dinâmica de mercado do capital transformandose mais ou menos abertamente numa versão do liberalismo burguês aponta o fim de uma estrada que constituía desde o início um beco sem saída para as aspirações emancipatórias Nesse aspecto é agradável e tranquilizador para o futuro que a descarrilada retórica da imparcialidade que no passado invariavelmente significava bater em portas que não poderiam ser abertas não tenha qualquer papel especial no discurso sobre a emancipação das mulheres Como veremos mais adiante aqui a questão do que deve ser feito com as relações de poder existentes não pode ser evitada quando se levanta a questão da igualdade nem pode ser diluída na vaga noção de igualdade de oportunidades dada a sua evidente negação pela ordem social estabelecida Implorar a um sistema de reprodução sociometabólica profundamente perverso baseado na perniciosa divisão hierárquica do trabalho a concessão de oportunidades iguais para as mulheres ou para o trabalhador quando ele é estruturalmente incapaz de fazer isso é transformar em zombaria a própria ideia da emancipação A condição prévia essencial da verdadeira igualdade é enfrentar com uma crítica radical a questão do modo inevitável de funcionamento do sistema estabelecido e sua correspondente estrutura de comando que a priori exclui quaisquer expectativas de uma verdadeira igualdade Devese excluir categoricamente a igualdade substantiva devido à forma como já há muito tempo a divisão social do trabalho está constituída na ordem existente É isto que deve ser invertido Marx apresenta assim essa ideia A divisão do trabalho em que todas essas contradições estão implícitas e que por sua vez se baseia na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais opostas entre si implica simultaneamente a distribuição uma distribuição qualitativa e quantitativamente desigual do trabalho e seus produtos e daí a propriedade seu núcleo cuja primeira forma está na família onde esposa e filhos são escravos do marido Essa escravidão latente na família embora ainda bastante grosseira é a primeira forma da propriedade mas até mesmo nesta etapa ela corresponde perfeitamente à definição dos economistas modernos que a chamam de poder de dispor da força de trabalho dos outros93 Aqui o problema aparentemente intratável é que todas as transformações inter nas da família na história ocorreram na ampla estrutura da divisão hierárquicosocial inevitavelmente iníqua do trabalho e teve de incorporar as suas exigências gerais em qualquer nível de civilização As relações prevalecentes de poder tinham de ser 93 Ibid vol 5 p 46 290 A sombra da incontrolabilidade reconstituídas constantemente em toda parte inclusive no núcleo sob a forma da distribuição quantitativa e qualitativamente desigual das forças produtivas sociais historicamente estabelecidas e seus produtos e de maneira tal que as menores células constituintes e suas ligações mais abrangentes deveriam permanecer sempre estrutu ralmente emaranhadas e inextricavelmente entrelaçadas entre si como estruturas de produção e reprodução reciprocamente condicionantes Somente dessa maneira foi possível manter a dominância e a continuidade da ordem existente assegurando não apenas a reprodução de cada membro da sociedade mas de toda a própria estrutura em que ocorrem todas as funções reprodutivas ou seja no sistema estabelecido de divisão do trabalho Neste contexto devemos nos lembrar do papel decisivo atribuído à família na perpetuação das relações discriminatórias da propriedade e o correspon dente sistema de valores da ordem social dominante de um lado do divisor social orgulhosamente dominante e do outro devidamente submisso Nem mesmo as formas historicamente mais recentes e sofisticadas do núcleo de reprodução e distribuição da sociedade localizadas na família poderiam evitar não importa quão esclarecida e igualitária seja a intenção da atitude pessoal de seus membros individuais entre si a imperiosa necessidade desumanizadora da subserviência consciente ou inconsciente em relação aos valores que emanam da divisão estrutu ralhierárquica do trabalho garantindo seu tranquilo funcionamento Por isso os princípios fundamentais constitutivos e as relações efetivas de poder material desta última teriam de ser diretamente enfrentados para que a causa histórica da eman cipação das mulheres pudesse chegar além da frustrante mentira da igualdade de oportunidades que não leva a absolutamente lugar algum 536 A crítica das relações estabelecidas de poder material não poderia se contentar com a denúncia das gritantes iniquidades da exploração e da dominação do capitalismo privado Os anais das sociedades póscapitalistas estão longe de ser promissores nesse aspecto Margaret Randall o enfatizou num livro impressionante Na verdade nem as sociedades capitalistas que tão falsamente prometem igualdade nem as sociedades socialistas que prometeram igualdade e até mais adotaram a bandeira do feminismo Sabemos como o capitalismo coopta qualquer conceito libertador transformandoo em slogan utilizado para nos vender o que não carecemos onde as ilusões de liberdade substituem a realidade Agora me pergunto se a incapacidade do socialismo de abrir espaço para a agenda feminista para realmente adotar esta agenda à medida que emerge naturalmente em cada história e cada cultura seria uma das razões pelas quais o socialismo não poderia sobreviver como sistema94 O mesmo refrão soou por todo o mundo socialista uma vez obtida a igualdade econômica o resto viria Este resto raramente foi designado se é que chegou a receber algum nome Quando se exigia espaço para uma discussão do feminismo ou se estimulava uma análise baseada na recuperação da história da cultura e da experiência 94 Margaret Randall Gathering Rage The Failure of Twentieth Century Revolution to Develop a Feminist Agenda Nova York Monthly Review Press 1992 p 37 291 A ativação dos limites absolutos do capital das mulheres era muito provável que se recebesse o apelido de feminista burguesa divisionista ou pior contrarrevolucionária95 A falha das sociedades póscapitalistas com relação à emancipação das mulheres é ainda mais notável quando se sabe que em algum ponto de sua história elas prometiam consertar as sérias iniquidades admitidas No final as relações de poder existentes que afetam diretamente as mulheres não foram muito alteradas em vez disso tentaram em vão mascarar sua falha com versões póscapitalistas da falsa admissão das minorias A mesma autora diz o seguinte O poder continua sendo um grande problema Quando ano após ano apenas uma insignificante meia dúzia de mulheres consegue ser eleita para postos de poder político o socialismo parece anular seu objetivo de criar uma sociedade mais justa para todos O processo de chegada das mulheres ao poder político na União Soviética e em boa parte do Leste europeu foi especialmente lento e lento a ponto do absurdo foi mais bemsucedido no Vietnã na Nicarágua e em Cuba Contudo nenhum lugar do mundo socialista tem mulheres nos postos representativos mais elevados além dos simples direitos adquiridos pela falsa admissão mais precisamente as posições de poder são sistematicamente negadas a mulheres com visão feminista96 O registro de promoção de mulheres a postos importantes de tomada de decisão política nas sociedades póscapitalistas é lamentável mesmo em relação a países capitalistas Nestes há um número não desprezível de mulheres autorizadas a ocupar o mais alto posto político o de primeiroministro Indhira Gandhi Mar garet Thatcher e a sra Bandaranaik e para mencionar apenas algumas Ao contrário os países póscapitalistas não tiveram nenhuma até nos Politburos do partido no poder as mulheres eram tão raras quanto os corvos brancos na natureza apesar da oficialmente anunciada política da plena igualdade Naturalmente isto não significou que nos países capitalistas a conquista do posto mais elevado por algumas mulheres importasse em algo mais do que uma falsa admissão E nisso as diferenças eram apenas manifestação de tipos e usos diferentes dessa falsa admissão Além do mais ainda que por algum milagre todas as posições mais altas do poder político fossem ocupadas por mulheres nas sociedades póscapitalistas isto não tornaria essas sociedades mais socialistas nem as pessoas inclusive as mulheres estariam nelas mais emancipadas As impressionantes diferenças na ocupação de um alto posto político que tes temunhamos no século XX podem ser explicadas em termos da diferença bastante significativa com que o trabalho excedente é extraído nos dois sistemas No capita lismo privado seja ele avançado ou subdesenvolvido enquanto prevalecer a bemsucedida extração econômica do trabalho excedente na forma capitalista de apropriação e acumulação da maisvalia atribuirá aos políticos e à tomada de decisão política direta funções muito diferentes das existentes nas variedades póscapitalistas do sistema do capital Nestas o controle da extração do trabalho excedente está no terreno da política para o bem ou para o mal e o tipo soviético das personificações do capital não cumpre suas funções sem envolverse diretamente nas formas altamente 95 Id ibid p 134 96 Id ibid pp 1689 292 A sombra da incontrolabilidade centralizadas de tomada de decisão política em que sempre há muito em jogo e cujas consequências têm longo alcance Diferentemente disso nos sistemas de capitalismo privado o papel essencial da política é o de facilitadora e em seu devido momento também o de codificadora legal de mudanças que se desdobram espontaneamente e não o de sua iniciadora As pessoas encarregadas dos diversos órgãos políticos capita listas convenientemente se recusam a assumir a responsabilidade pelas mudanças que ocorrem e por aquelas defendidas pelos adversários utilizando as sentenças comumente ouvidas de que o papel do governo é apenas criar um clima favorável para os negócios ou de que os governos não podem fazer isso ou aquilo Com a extração do trabalho excedente economicamente garantida e o cor respondente modo de tomada de decisão política sob a ordem sociometabólica de reprodução do capitalismo privado este não deixa espaço para a agenda feminista de verdadeira igualdade que exigiria uma reestruturação radical tanto das células constituintes como do quadro estrutural de todo o sistema estabelecido Ninguém em perfeito estado mental poderia sequer sonhar em instituir essas mudanças por meio da máquina política da ordem capitalista qualquer que seja a importância do posto ocupado sem se expor ao risco de ser chamado de Dom Quixote femi nista Não há risco de introduzir a agenda feminista nem de surpresa nos sistemas capitalistas já que não pode haver absolutamente nenhum espaço para ela na estrutura rigorosamente circunscrita da tomada de decisão política destinada ao papel de facilitar a extração mais eficiente possível do trabalho excedente Não é por acaso que as Indhira Gandhis as Margaret Thatchers e as madames Banda ranaikes desse mundo e esta última apesar de suas credenciais originárias da esquerda radical não avançaram em nada a causa da emancipação das mulheres no mínimo aconteceu o contrário A situação é muito diferente nos sistemas póscapitalistas de reprodução socio metabólica e de tomada de decisões políticas Em virtude de sua posição essencial na garantia da necessária continuidade da extração do trabalho excedente eles podem iniciar grandes mudanças no processo da reprodução em andamento por meio da in tervenção política direta Assim as determinações do pessoal político são aqui de uma ordem bastante diferente no sentido de que sua orientação potencial é em princípio bem mais aberta do que sob o capitalismo Pois apesar da mitologia da sociedade aberta propagandeada por seus inimigos autoritários como Hayek e Popper os objetivos e mecanismos da sociedade de mercado permanecem tabus intocáveis sob o capitalismo delineando rigorosamente o mandato e a incontestável orientação do pessoal político que não pode nem quer considerar seriamente a interferência com a extração econômica estabelecida do trabalho excedente nem mesmo na sua mani festação socialdemocrata Essa diferença na abertura potencial nos dois sistemas em princípio também cria espaço para a introdução de elementos dos projetos feministas como o atestam as curtas tentativas pósrevolucionárias na Rússia Entretanto essa abertura potencial não pode ser realizada em bases duradou ras sob o domínio do capital póscapitalista pois a administração hierarquizada da extração do trabalho excedente reafirmase como característica determinante decisiva do sociometabolismo também sob as circunstâncias alteradas Assim toda a questão do mandato político deve ser muito bem redefinida eliminando a possi 293 A ativação dos limites absolutos do capital bilidade de representação característica da estrutura parlamentar capitalista com o mandato completamente indiscutível dos representantes voltado para o modo eco nômico estabelecido de extração do trabalho excedente e acumulação do capital e delegação que caracterizou boa parte da literatura socialista sobre o assunto Uma autoridade política absolutamente incontestável e despersonalizada o Partido do Estadopartido deve ser superposta individualmente ao pessoal político sob o domínio do capital póscapitalista articulado na forma da estrutura de comando hierárquica mais rigorosa orientada para a extração máxima do trabalho excedente politicamente regulamentada É isso que exclui a priori qualquer possibilidade de se dar espaço para a agenda feminista O papel da política é bastante diferente nos dois sistemas sob o capitalismo as mulheres às vezes podem ocupar com segurança até o mais alto posto político ao passo que nas condições póscapitalistas elas são excluídas sem a menor cerimônia Sob o sistema póscapitalista devemse eliminar até as limitadas tentativas das mulheres de estabelecer um novo tipo de relação familiar em apoio a suas antigas aspirações que vieram espontaneamente à tona logo nos primeiros anos pósrevolucionários Enquanto a máxima extração do trabalho excedente politicamente garantida e protegida continua a ser o princípio orientador essencial do sociometabolismo com sua estrutura de comando necessariamente hierárquica a questão da emancipação das mulheres que exige igualdade substantiva e por im plicação uma reestruturação radical da ordem social estabelecida desde suas menores células até seus órgãos coordenadores mais abrangentes não pode ser considerada nem por um momento Qualquer tentativa de examinar criticamente as relações de poder estabelecidas do ponto de vista da emancipação das mulheres e visando re mediar as velhas perversões logo deve ser descartada A questão da igualdade deve ser confinada ao que é compatível com a divisão hierárquica do trabalho social prevalecente reforçando e perpetuando a subordinação do trabalho com todos os recursos políticos à disposição do sistema Nos termos desses critérios as mulheres podem se tornar membros plenamente iguais da força de trabalho conscientemente ampliada entrando por esta razão em alguns territórios antes proibidos No entanto sob nenhuma circunstância elas po derão questionar a divisão do trabalho estabelecida e seu próprio papel na estrutura familiar herdada Nas sociedades póscapitalistas as mulheres em geral realmente podem se emancipar a ponto de entrar em qualquer profissão Elas realmente o fazem e geralmente sob as mesmas condições de remuneração financeira de seus colegas do sexo masculino Além do mais sua situação de mães trabalhadoras pode até ser bastante melhorada com a instalação de creches e jardins de infância de modo que possam retornar mais fácil e rapidamente à força de trabalho em tempo integral O chamado com razão segundo turno das mulheres que se inicia ao chegarem em casa depois do trabalho serviu apenas para enfatizar a natureza problemática de todas essas realizações inclusive a estranha falsa admissão política praticada nesse tipo de sociedades que nada podia fazer para alterar as relações de força estabelecidas e o papel subordinado das mulheres na força de trabalho estruturalmente subordinada Ele só enfatizou o fato de que a causa histórica da emancipação das mulheres não poderia progredir sem questionar todas as formas de domínio do capital 294 A sombra da incontrolabilidade 537 É muito revelador que os intelectuais dos países de capitalismo avançado que se consideravam socialistas democráticos cantassem em uníssono com o autoritarismo soviético precisamente na questão da igualdade O socialista fabiano Bernard Shaw por exemplo falava com entusiasmo sobre a denúncia pública do líder do partido soviético dos políticos com quem Stalin perdeu a paciência quando os ridicularizou como mercadores da igualdade97 Shaw não se deteve aí mas continuou a justificar a ideologia stalinista e a prática da subordinação da força de trabalho a uma divisão hierárquica do trabalho implacavelmente opressora evocando a imagem de uma ordem natural fictícia na produção e na distribuição Ele queria que esta fosse controlada pelas chamadas pessoas pioneiras superiores que não poderiam nem deveriam ser questionadas pelas pessoas conservadoras medianas e pelas pessoas inferiores relativamente atrasadas da sociedade Shaw assim projetava uma ordem social supostamente em perfeita sintonia com a natureza humana e os ideais do socialismo democrático Em suas palavras Na URSS descobriuse que era impossível aumentar a produção ou sequer mantêla até que fossem estabelecidos o pagamento por resultados e por tarefa apesar dos Mercadores da Igualdade Quando o socialismo democrático tiver atingido a autossuficiência de recursos a igualdade de oportunidades e a intermatrimonialidade para todos com a produção mantida em sua ordem natural cobrindo desde artigos de necessidade até os de luxo e os tribunais não tiverem a distorção de advogados mercenários sua tarefa estará terminada ele continuará sendo a natureza humana com todos os seus empreendimentos ambições e emulações em plena atividade com suas pessoas pioneiras superiores pessoas medianas conservadoras e inferiores relativamente atrasadas em seus lugares naturais muito bem alimentadas educadas em sua máxima capacidade e intercasáveis A igualdade não pode ir mais longe98 À primeira vista é difícil acreditar que um homem com a inteligência de George Bernard Shaw pudesse mergulhar a esse nível de preconceito burro fantasiado com as vestes pseudodemocráticas do absurdo da eugenia Como se a hierarquia estru turalmente imposta do sistema do capital nada tivesse a ver com a anunciada base biológica do atraso das pessoas inferiores que poderia e deveria ser remediado mesmo que só para justificar e codificar a hierarquia socialista democrática e sua ordem natural em nome dos postulados conservadorismo eterno e atraso rela tivo irremediável das massas por meio da grotesca receita fabiana da eugenia pela possibilidade nacional de intercasamento Por mais triste que possa parecer o que dá certa credibilidade a esse tipo de ideias formuladas por intelectuais relativamente progressistas como Bernard Shaw é o fato de sua aversão à verdadeira igualdade ser partilhada com todos os que não podem imaginar uma alternativa para o sistema do capital e sua desumanizante divisão social do trabalho E como na prática as premissas do funcionamento da ordem vigente são consideradas inquestionáveis e até 97 George Bernard Shaw Everybodys Political Whats What Londres Constable and Company 1944 p 56 98 Id ibid p 57 295 A ativação dos limites absolutos do capital declaradas naturais na falaciosa igualdade entre os limites históricos específicos do capital e a inalterabilidade eterna e absoluta nada resta a ser milagrosamente espre mido da imutável hierarquia de facto e de jure do sistema além do mundo fantasioso da chamada igualdade de oportunidades Em vez da atuação autoemancipadora de uma intervenção social realista Bernard Shaw nos oferece em sua visão do socia lismo democrático apenas os empreendimentos ambições e emulações de uma natureza humana genérica ridiculamente personificada e esquizofrenicamente dividida em personalidades superiores e inferiores Sua atitude subserviente em relação ao ataque longe de apenas verbal de Stalin aos mercadores da igualdades severamente castigados demonstra que as mais variadas personificações do capital não apenas as do tipo descarada e conscientemente burguês mas também suas manifestações de tipo soviético e as democráticosocialistas fabianas encontram seu denominador comum justamente na rejeição categórica da verdadeira igualdade A defesa insincera da igualdade de oportunidades associada à imparcialida de e à justiça serve a um objetivo apologético pois ao se eliminar a verdadeira igualdade do rol das aspirações legítimas as hierarquias estruturais do sistema do capital são reforçadas e se tornam provedoras indispensáveis das vazias oportuni dades prometidas e ao mesmo tempo são aclamadas por sua imparcialidade e por sua justiça que tornam possível a igualdade de oportunidades O fato de o prodigioso avanço na produtividade ocorrido nesses últimos duzentos ou trezentos anos não ter conseguido transformar em realidade qualquer dessas promessas não preocupa os apologistas pois eles poderão sempre retorquir que as pessoas é que são culpadas por não saberem aproveitar as oportunidades As mulheres não têm nada do que se queixar dada a fartura de oportunidades iguais à sua disposição especialmente no século passado O obscurecimento do que realmente está em jogo é a arma proeminente no arsenal dos apologistas da desigualdade Um dos estratagemas prediletos é utilizar as diferenças nos talentos artísticos como justificativa hipócrita e com relação à natureza também a perpetuação da hierarquia social de exploração historicamente estabelecida Como se fosse impossível imaginar o gênio musical de Mozart sem as hierarquias sociais paralisantes e humilhantes a que ele estava sujeito e sob cujos sofrimentos acabou perecendo jovem e no auge de sua criatividade artística apesar de sua genialidade Outra tática apologética muito bem ensaiada é afirmar que a meta da verdadeira igualdade socialista significa nivelar por baixo o que nesta visão impossibilitaria o surgimento e a liberdade de ação dos Mozarts Como se a história do vitorioso sistema do capital nesses últimos séculos correspondesse ainda que muito remotamente a um nivelamento por cima para não mencionar a capacidade de demonstrar um perfeito non sequitur o relacionamento causal inevitável entre o florescimento da superioridade artística e o sistema em que as personificações do capital impõem por toda parte os imperativos materiais de sua ordem sociometabólica e para este fim devem dominar de uma ou outra maneira toda a atividade intelectual e artística Já seria lamentável pregar as virtudes de uma sociedade em que a igualdade de oportunidades fosse considerada mais do que hipocrisia mesmo que o registro das realizações efetivas não avançasse em vez de caminhar em direção à verdadeira 296 A sombra da incontrolabilidade igualdade único sentido possível de toda essa iniciativa para não dizer que se movesse na direção oposta Entretanto as estatísticas até de países do capitalismo mais avançado revelam um quadro muito deprimente Um relatório oficial do governo na Inglaterra que subestimava imensamente a gravidade da situação com a manipulação de números excluindo arbitrariamente do levantamento algumas categorias e calculando os números relativos ao desemprego de 33 maneiras refinadas e aperfeiçoadas ou seja tendenciosamente falsificadas teve de admitir que A lacuna entre ricos e pobres se ampliou A renda dos dez por cento mais pobres da população caiu 17 por cento entre 1979 e 1991 ao passo que a dos dez por cento mais ricos subiu 62 por cento Os números constantes do último relatório sobre Famílias abaixo da renda média mostram que o número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza europeia ou seja com um rendimento abaixo da metade da média passou de 5 milhões em 1979 para 139 milhões em 199192 Outras 400000 pessoas passaram para baixo da linha da pobreza desde o relatório anterior 200000 são crianças Em 1979 14 milhão de crianças vivia abaixo da linha da pobreza passando para 39 milhões em 199091 e 41 milhões um ano depois Em termos de dinheiro vivo o rendimento médio dos 10 por cento da população mais pobre passou de 110 dólares para 91 dólares por semana Esses números se baseiam em dados da Pesquisa dos gastos familiares do governo inglês99 Ao mesmo tempo o Instituto Adam Smith de Londres da direita radical publica um panfleto atrás do outro preocupado com a maneira mais rápida de banir para o passado as medidas de segurança social do Welfare State outrora anun ciadas em altos brados que não incluíam apenas benefícios para o desemprego e a invalidez mas até pensões para os velhos e o direito universal à assistência à saúde Como era esperado os manipuladores da opinião pública da imprensa burguesa com proeminência o Times de Londres rapidamente se juntaram aos colegas da extrema direita e começaram a passar sermões em editoriais de títulos sonoros como O racionamento racional100 sobre a necessidade da recomendação moral e intelectual do racionamento nos cuidados com a saúde até nas situações de risco de vida ou seja a eliminação discriminadora dos que não podem pagar um seguro privado Naturalmente essa racionalização e essa legitimação das bru tais restrições que emergem da crise estrutural do capital são apresentadas num pacote característico de untuosa hipocrisia adornado com expressões do tipo excelência flexibilidade e liberdade como bem ilustra esta citação do editorial mencionado Tratamentos complexos como a diálise renal ou cirurgias de emergência poderão ser negados a pessoas mais idosas As reformas desses últimos três anos no sistema da saúde tornaram mais transparente a cultura da prática clínica Nem todo paciente pode receber o tratamento que deseja este é um fato que agora devemos enfrentar 99 Child poverty trebles in 12 years while rich get richer The Times 15 de julho 1994 100 Rational Rationing The Times 29 de julho 1994 297 A ativação dos limites absolutos do capital É provável que apareçam orientações internacionais e locais a partir dessa difícil discussão No entanto a essência do racionamento deve continuar sendo a excelência profissional e a delegação da responsabilidade aos médicos Deveria haver maior investimento financeiro os clínicos gerais que já dispõem de financiamento deveriam ter maior flexibilidade Não se obterá um bom racionamento por meio da burocracia ou do excesso de legislação mas concedendose aos médicos a liberdade de tomarem decisões difíceis sem medo ou vergonha O cúmulo da hipocrisia típica do sistema é o fato de que as escolhas a serem feitas e isso já aconteceu da maneira mais autoritária que se possa imaginar são ocultas da fiscalização cobrindose a comida amarga com o molho doce e enjoativo do Generaltunken101 da transparência democrática inexistente e da fictícia dele gação de responsabilidade sem poder à pretensa liberdade individual sendo esta delegação imposta pelos burocratas administradores de área indicados pelo poder central e muito bem pagos e por seus amigos lotados no National Health Service Serviço Nacional de Saúde em franca deterioração e cuja excelência profissional tem sido duramente negada no interesse dos transparentes objetivos apologéticos do capital A questão não é a delegação da responsabilidade aos médicos para condenar à morte os velhos os de meiaidade e até mesmo os jovens negandolhes o tratamento existente que salvaria suas vidas nem a liberdade de fazêlo É a decisão tomada pelas personificações do capital na política e nas empresas em nome da expansão ininterrupta do capital relativa à alocação dos recursos materiais e intelectuais da sociedade negando legitimidade à necessidade literalmente vital que salva ou melhora a vida em benefício dos domínios des trutivos e perdulários em que ocorre a autorreprodução do capital claramente exemplificados pelas somas astronômicas investidas nos armamentos Em outras palavras a questão inabordável é a completa ausência de uma contabilidade social sob o domínio do capital que provoca a incontrolabilidade do sistema e o desvio misterioso da responsabilidade do setor adequado para os ombros de pessoas de samparadas neste caso os médicos que realmente não podem assumir o seu peso a avassaladora maioria protesta em vão Não é preciso grandes conhecimentos de matemática para calcular quantos milhares de vidas poderiam ser salvas utilizando para compra de máquinas de diálise renal parte dos bilhões de libras destinados a um único item totalmente destrutivo do orçamento militar o projeto do submarino nuclear Trident Exemplos desse tipo se multiplicam facilmente O sábio editorial explicativo sobre O racionamento racional do Times londrino foi apenas mais um artifício para desviar a atenção das escolhas reais verdadeiramente racionais mas sistematicamente frustradas e anuladas O objetivo é poder isentar as perso nificações do capital de sua evidente responsabilidade nessas questões e ordenar aos médicos que assumam a liberdade de fazer as escolhas difíceis Escolhas que jamais deveriam existir muito menos ser impostas por uma sociedade avançada a muitos milhares de membros que morrem desnecessariamente cuja igualdade de oportunidades não chega tão longe 101 O molho universal da cozinha sem gosto 298 A sombra da incontrolabilidade Na verdade nas circunstâncias atuais qualquer conversa sobre oportunidades iguais é zombaria Como já vimos o editorial do Times projetava no futuro uma dis cussão difícil da qual é provável que apareçam orientações locais e internacionais As tais orientações futuras até já haviam sido impostas pelo governo autoritário conservador da Inglaterra bem antes da publicação desse editorial que foi cúmplice depois do fato acontecido apesar de se apresentar como sabedor por antecipação Como se revelou recentemente sob instruções do governo já no inverno passado os médicos decidiram não vacinar contra a gripe muitos idosos em asilos um grande número dessas pessoas morreu quando o vírus atacou As mortes enfureceram o conselho de saúde da comunidade de Southampton Ken Woods o diretor declarou Quando se legitima a ideia de que é possível suspender o tratamento porque a qualidade de vida de uma pessoa não vale as 5 libras de uma vacina entramos num caminho perigoso São os médicos brincando de Deus102 A responsabilidade por brincar de Deus é do governo os médicos apenas obedecem às suas orientações No dia seguinte à revelação os críticos atacaram a política da eutanásia introduzida sem nenhuma discussão pública Tessa Jowell membro do comitê de saúde do Partido Trabalhista na Câmara dos Comuns a cha mou de fato sinistro Peggy Norris médica de clínica geral aposentada e presidente do Alert o grupo contra a eutanásia disse que suspender o tratamento com a vacina da gripe era uma discriminação escandalosa Enquanto os especialistas em cuidados de idosos se preparavam para selecionar os candidatos a receber o golpe esta semana o Departamento de Saúde emitia orientações que deixavam nas mãos dos médicos a decisão de quem deveria recebêla e se os parentes deveriam ser consultados103 É assim que a liberdade de fazer escolhas dolorosas deve ser exercida segundo orientações políticas há muito existentes Em relação ao ano seguinte O programa de vacinação de 335 milhões de libras proporciona doses suficientes para 55 milhões de crianças pequenas e adultos vulneráveis embora ainda existam pelo menos 10 milhões de idosos correndo o risco de um ataque fatal da doença Isto cria um problema moral intensamente sentido pelos psiquiatras e pelos médicos que tratam dos idosos104 Isto quer dizer que já no ano corrente bem mais de metade dos idosos a maioria deles pobres estarão privados da vacina contra a gripe assim muitos estão expostos a risco de vida Parece que é apenas uma questão de tempo não muito distante antes que no espírito do defendido racionamento racional os médicos sejam sobrecarregados com a chamada delegação de responsabilidade com flexibilidade ainda maior e uma liberdade que de modo muito conveniente visa administrar a eutanásia compulsória aos inocentes pobres No interesse de maior eficiência econômica eles serão instruídos a não consultar sequer os parentes mais próximos 102 Doctors let elderly die by denying flu vaccine The Sunday Times 9 de outubro 1994 103 Ibid 104 Ibid 299 A ativação dos limites absolutos do capital apresentando ao público essas políticas com a hipocrisia e o cinismo habituais como reconhecimento democrático da excelência profissional É assim que um lado da equação das oportunidades iguais está preparando o futuro da avassaladora maioria das pessoas Já velhos e deixando de ser membros diretamente explorados da força de trabalho suas vidas passam a valer muito menos conforme os receios do diretor do conselho de saúde de Southampton do que a vacina de 5 libras por unidade que teria de ser desperdiçada com eles O outro lado da equação das oportunidades iguais aparece no jornal num Relatório Insight publicado na mesma página do artigo mencionado acima Mé dicos deixam idosos morrer negando a vacina contra a gripe O relatório se refere a um homem que segundo o jornal fracassou três vezes no exame para tornar se contador mas mesmo assim tornouse misteriosamente multimilionário Esse homem é Mark Thatcher filho da Companion of Honors de Hayek a baronesa Margaret Thatcher O Relatório Insight tem o título Revelado o lucro secreto de Mark Thatcher com negócio de armas de 20 bilhões de libras e oferece uma leitura muito desagradável não apenas para a família Thatcher mas para todos os membros do Partido Conservador no governo O artigo faz com que eles se lembrem de que há uma norma rigorosa segundo a qual os ministros tomarão medidas para que não surja nem haja a aparência de que venha a surgir conflito algum entre seus interesses privados e seus deveres públicos Nenhum ministro ou servidor público deve aceitar presentes hospitalidade ou serviços que poderiam ou dar a aparência de colocálos sob alguma obrigação O mesmo princípio se aplica aos presentes oferecidos a um membro de sua família105 No entanto ape sar do chamado aviso da bruxa oferecido por Sir Clive Whitmore na época secretário Permanente do Ministério da Defesa e exsecretário particular de Margaret Thatcher sobre as consequências potencialmente desastrosas do envolvimento de seu filho como beneficiário nos lucrativos negócios das armas um aviso ig norado pela primeiraministra que se vangloriou de baterse pela Inglaterra Mark Thatcher ficou 12 milhões US18 milhões mais rico como recompensa por duvidosos serviços prestados O Relatório Insight diz o seguinte As transcrições de gravações de conversas e evidências comprovadoras de fontes próximas ao negócio resolvem o mistério de como Thatcher começou sua fortuna Jamais se explicou de modo satisfatório como o exaluno de uma escola particular três vezes reprovado no exame para se tornar contador e praticante de corrida de automóveis conseguiu passar rapidamente de seus modestos recursos no momento em que sua mãe se tornou primeiraministra em 1979 à condição de multimilionário poucos anos depois Para alguns funcionários ingleses o envolvimento de Thatcher foi eticamente incorreto Thatcher foi um oportunista que entrou no trem da alegria agarrando todo o dinheiro possível desses negócios disse um antigo executivo do programa 105 Marie Colvil e Adrian Levy Revealed Mark Thatchers secret profit from 20 bilhões arms deal The Sunday Times 9 de outubro 1994 300 A sombra da incontrolabilidade aeroespacial britânico que desempenhou um papel importante Ele se valeu de seu nome e de sua posição em relação a Margaret Thatcher106 Este é o quinhão de um Mark Thatcher no estoque disponível das oportuni dades iguais Apesar de absurdo e de na visão que acabamos de citar eticamente incorreto talvez não devêssemos ser tão duros com um pobre multimilionário três vezes reprovado como contador Ele compartilha a desagradável situação de obter muito por nada com todos aqueles que em virtude de sua posição ou mesmo da posição de seus pais ou suas mães na estrutura de comando do capital não rece bem apenas uma passagem vitalícia mas em países capitalistas até uma passagem hereditária para viagens grátis no trem da alegria O fato de que Margaret Thatcher na Lista de Honra de sua renúncia tenha dado a seu marido um título hereditário de nobreza reservando para si um simples título vitalício deve ser examinado sob a luz devida Deus nos livre de pensar que tal feito se devesse a algo mais do que a preocupação altruísta de uma avó comum de assegurar apenas uma oportunidade igual para o futuro de seu neto Mas é estranho que numa pesquisa de opinião pública de outubro de 1994 61 por cento dos ingleses inclusive boa parte dos eleitores conservadores estivessem convencidos de que o Partido Conservador no poder se caracteriza por sujeira e corrupção Para nós o sentido dos exemplos acima é óbvio Eles são bastante contrastantes Aparecem na mesma página do mesmo jornal num mesmo dia em que outros jornais da Inglaterra apresentam muitos outros exemplos para não mencionar o número incontável de casos dignos de nota não registrados ou apenas justificados com elegância Em quaisquer desses casos os nossos exemplos também mostram como são estreitas as margens de onde se deve tirar espaço para a emancipação das mulheres limitandoa aos esforços de uma luta morro acima contra os azares da igualdade 106 Id ibid O jornal também lembrou aos leitores que em 15 de janeiro de 1984 enquanto os funcionários faziam os últimos acertos no contrato de venda de armas no valor de 20 bilhões para a Arábia Saudita o jornal Observer publicou a história de como Mark Thatcher três anos antes tinha conseguido um contrato em Oman para a Cementation International durante uma visita de sua mãe Esta foi outra ocasião em que a Companion of Honor de Hayek bateuse pela GrãBretanha The Economist também se juntou à controvérsia recente Citando As táticas usadas pelo sr Thatcher para reunir sua fortuna têm causado alarme em Whitehall por mais de uma década Em pelo menos duas ocasiões durante os anos 80 funcionários graduados protestaram junto à sra Thatcher avisandoa de que as atividades de seu filho poderiam causar grandes embaraços ao seu governo Em 1984 o próprio sr Thatcher foi censurado pelos mesmos funcionários por causa dos perigos de transacionar em nome de sua mãe Pouco depois o sr Thatcher se mudou para os Estados Unidos e estabeleceu ali sua base de operações Apesar do exílio o estilo de vida extravagante do sr Thatcher que possui casas em Dallas e em Londres e um mordomo que o acompanha em viagens continuou a atrair atenções Membros do partido tendem a arrancar os cabelos desesperados ante o que consideram cegueira de mãe Em 1991 o falecido Sir Y K Pao um armador magnata de Hong Kong ficou assustado ao receber do filho da exprimeiraministra um pedido de fundos em nome da recémfundada Fundação Thatcher criada pela mãe Consta que o magnata atordoado teria sido informado de que é hora de ajudar a Mamãe Mumsies boy The Economist 1521 de outubro 1994 p 32 Lembrar a um armador magnata de Hong Kong elevado a cavaleiro o valor em dinheiro do apoio político de um membro proeminente da família Thatcher durante o período da sra Thatcher no poder foi evidentemente a forma que Mark Thatcher encontrou de se bater pela GrãBretanha mostrando mais uma vez a verdade do antigo provérbio inglês segundo o qual a caridade começa em casa 301 A ativação dos limites absolutos do capital de oportunidades sempre anulada Um outro relatório este das Nações Unidas revelou no dia 17 de outubro de 1994 dia em que se deveria abrir o ano da erra dicação da pobreza no mundo realmente uma perspectiva muito provável que as mulheres representam nada menos do que 70 por cento dos pobres do mundo Seria milagre se fosse diferente diante da igualdade de oportunidades que preva lece na prática Sob o domínio do capital em qualquer de suas variedades e não apenas hoje mas enquanto os imperativos desse sistema continuarem a determinar as formas e os limites da reprodução sociometabólica a igualdade das mulheres não passa de simples falsa admissão 538 Como a promessa de oportunidades iguais é utilizada como desvio mistificador pela ideologia dominante permanecendo para os que aspiram a uma oportunidade tão impalpável como um sonho impossível é grande a tentação de virar as costas para toda essa questão da igualdade e procurar vantagens relativas para porções mais ou menos limitadas de homens ou mulheres em posição estruturalmente subordinada É justamente isso que o artifício ideológico oco da igualdade de oportunidades ten ciona obter prometendo um avanço em direção a uma condição cuja realização está negando e ao mesmo tempo excluindo a possibilidade de uma ordem social equitativa No entanto com todas essas mistificações não é absolutamente por indiferença ou por atribuirlhe uma importância menor que a ordem dominante não conse gue firmar seu domínio sobre as massas hierarquicamente submissas sem recorrer constantemente à falsa promessa de todo tipo de igualdade ainda que na forma abastardada e esvaziada da igualdade de oportunidades É inconcebível que se mantivesse a autolegitimação do sistema do capital baseada na ideia de contratos livremente firmados entre partes iguais sem o que a própria ideia de contrato seria nula e vazia se as personificações do capital declarassem abertamente que têm de negar e que realmente negam igualdade às massas estruturalmente subordinadas de mulheres e homens em qualquer sentido significativo do termo Além do mais a autoexpansão do capital torna necessário trazer progressiva mente ao processo de trabalho grupos antes marginalizados ou não participantes e potencialmente toda a população inclusive é claro virtualmente todas as mulheres Esse tipo de mudança no processo do trabalho importa de algum modo extensão significativa do círculo consumidor ainda que por uma série de razões inegavelmente iníquas alterando também no sentido correspondente a estrutura familiar assim como o papel e relativa importância das gerações mais jovens e das mais velhas no processo geral da reprodução socioeconômica e na realização do capital Assim a ilusão antes mencionada do nivelamento por cima politicamente estimulada pe los partidos liberais e socialdemocratas postulada com base no bolo crescente ilusão essa cultivada enquanto o bolo cresce e até mesmo depois apesar da clara evidência permanente de que a fatia proporcional do bolo concedida ao trabalho não está crescendo mas encolhendo fica ainda mais complicada com as mudanças no processo do trabalho diretamente associado à extensão do círculo consumidor Ainda que a causa da equalização estrutural não tenha avançado sequer um centí metro com a relativa ampliação do círculo consumidor e ainda que existam grandes 302 A sombra da incontrolabilidade desigualdades nos benefícios agora oferecidos ao trabalhador em diferentes países conforme sua posição na estrutura global e na ordem hierárquica do capital como veremos nos capítulos 15 e 16 apesar de tudo o processo subjacente traz consigo a melhoria do padrão de vida para importantes seções da força de trabalho na fase expansionista do desenvolvimento histórico do capital Naturalmente este é um processo cheio de contradições como acontece em todos os lugares nos quais os imperativos do sistema do capital impõem seu domínio Essas contradições não se manifestam apenas nas enormes diferenças entre os grupos de trabalhadores de qualquer país em particular ou globalmente também é importante que o próprio sistema do capital dependa da expansão do círculo consumidor o que não pode ser indefinidamente sustentado e assim no devido momento ativará uma contradição potencialmente mais explosiva entre capital e trabalho Ainda que não seja possível o nivelamento por cima o que modificaria a estrutura do sistema do capital decididamente há um nivelamento por baixo que afeta diretamente a força de trabalho até nos países em que o capitalismo é mais avançado Esse fato é indiscutivelmente concomitante com o aparecimento de grandes perturbações no processo de expansão e acumulação do capital das últimas duas décadas que assumiu a forma de uma perigosa tendência ao nivelamento do índice diferencial da exploração já mencionado Outra dimensão de importância essencial do problema que nos preocupa é a piora da posição das mulheres como resultado das mudanças na estrutura familiar resultantes dos imperativos do capital e diretamente associadas à indispensável am pliação do círculo consumidor As contradições também estão claras nesse terreno por um lado o processo ininterrupto de reprodução do capital precisa seriamente das mudanças ocorridas no consumo que parecem continuar com a mesma intensidade mas por outro lado o sistema está ao mesmo tempo exposto aos riscos e perturbações que surgem da crescente instabilidade da família nuclear Em outras palavras o capital depende da continuidade dessas mudanças e tende a ser por elas enfraqueci do Neste aspecto é significativo que segundo um relatório intitulado Variados arranjos de vida das crianças do departamento do censo norteamericano em 1991 uma pequena fração a mais do que a metade das crianças nos Estados Unidos vivia em famílias nucleares 508 por cento para sermos precisos Esse número hoje deve estar bem abaixo da metade se a tendência citada no relatório se manteve entre 1991 e 1994 Em 1991 quase a metade das crianças norteamericanas fora da família nuclear vivia em alguma espécie de arranjo familiar pais solteiros pais adotivos meioirmãos e assim por diante É uma grande mudança Há não muito tempo um censo oficial encontrou em estudo separado que o número de crianças em famílias nucleares era de 57 por cento em 1980 Em 1970 já havia sido de 66 por cento107 Naturalmente a parte do leão nos problemas e complicações gerados por essas mudanças é colocada em cima dos ombros das mulheres A carga imposta pelo siste ma do capital sobre as mulheres para manter a família nuclear está se tornando cada vez mais pesada e a situação delas no espectro da pobreza está sempre mudan 107 Nuclear fission The Economist 3 de setembro 1994 p 42 303 A ativação dos limites absolutos do capital do para pior em vez de ser aliviada como pretenderia a retórica da oportunidade igual para as mulheres e da eliminação de qualquer discriminação de gênero O fato preocupante apontado pelas Nações Unidas de que em 1994 as mulheres constituíam 70 por cento dos pobres do mundo não é em absoluto surpreendente Devido às determinações causais por trás desses números a situação das mulheres tende a piorar no futuro previsível Com base nas tendências atuais o número es pantoso enfatizado pelas Nações Unidas tem a probabilidade de atingir os 75 por cento dentro de uma década o que significa uma proporção de 3 por 1 em relação aos homens que estão entre os pobres do mundo Tudo isso sublinha claramente o que não deveria mas precisa ser enfatizado devido aos artifícios da ideologia dominante e às amplamente difundidas mistificações de oportunidades iguais ou seja sem mudanças fundamentais no modo de reprodução social não se poderão dar sequer os primeiros passos em direção à verdadeira eman cipação das mulheres muito além da retórica da ideologia dominante e de gestos da legislação que permanecem sem a sustentação de processos e remédios materiais adequados Sem o estabelecimento e a consolidação de um modo de reprodução sociometabólica baseado na verdadeira igualdade até os esforços legais mais sinceros voltados para a emancipação das mulheres ficam desprovidos das mais elementares ga rantias materiais portanto na melhor das hipóteses não passam de simples declaração de fé Jamais se enfatizará o bastante que somente uma forma comunitária de produção e troca social pode arrancar as mulheres de sua posição subordinada e proporcionar a base material da verdadeira igualdade Podese avaliar a magnitude das dificuldades a serem superadas ao nos lembrarmos da maneira como o processo de produção foi sendo constituído durante um período muito longo bem antes da emergência e do triunfo do capitalismo A transformação radical necessária para o bom funcionamento de um processo sociometabólico basea do numa verdadeira igualdade envolve a superação da força negativa das estruturas hierárquicas discriminatórias e das correspondentes relações interpessoais da economia individual iniciada há milhares de anos O sistema do capital se constituiu sobre os alicerces de estruturas discrimina tórias alienantes e mediações de segunda ordem da economia individual há muito estabelecidas e naturalmente forçosamente as adaptou a seus próprios objetivos e a suas exigências de reprodução Paralelamente a esses fatos em parte antes e em par te durante o avanço do sistema do capital levantouse repetidamente a questão de como superar de maneira radical a divisão do trabalho alienante e desumanizadora inseparável do processo de reprodução da economia individual e também da pro priedade privada A formulação de visões alternativas de organização dos intercâmbios reprodutivos dos indivíduos na sociedade vem de um passado muito distante como testemunham incontáveis projetos utópicos Entretanto os objetivos dessas negações críticas extremadas da economia individual casada com a propriedade privada não poderiam ser bemsucedidos antes que o próprio sistema do capital se desenvolvesse completamente devido às condições materiais precárias a que estava associada sua crítica da ordem estabelecida Marx assim expôs a questão Em todos os períodos anteriores a abolição Aufhebung da economia individual que é inseparável da abolição da propriedade privada era impossível pela simples 304 A sombra da incontrolabilidade razão de que as condições materiais necessárias não existiam A implantação de uma economia comunitária nacional pressupunha o desenvolvimento de maquinário o uso de forças naturais e de muitas outras forças produtivas como por exemplo o suprimento de água a iluminação a gás o aquecimento a vapor etc a supressão Aufhebung da cidade e do campo Sem essas condições uma economia comunitária em si não formaria uma nova força produtiva ela não teria a base material e estaria fundamentada apenas em teorias em outras palavras seria mera excentricidade e não passaria de uma economia monástica É óbvio que a superação da economia individual é inseparável da superação da família108 A maneira como essas questões relativas à economia individual e às uni dades básicas do consumo da sociedade a família nuclear contemporânea estão entrelaçadas sob as condições existentes constitui um círculo vicioso Como sempre o sistema do capital aqui também se afirma na forma de contradições insolúveis Por um lado os processos econômicos da industrialização capitalista trazem ao alcance da vista mas devido à própria natureza do capital completamente fora do alcance as condições materiais de uma economia comunitária sustentável e com isso pelo me nos em princípio antecipam um aspecto da correlação entre a economia individual e a família por meio do desenvolvimento de um modo de produção concentrado e bastante centralizado No entanto o capital não consegue sequer arranhar a superfície da outra condição prévia essencial para um sociometabolismo verdadeiramente plau sível o aspecto relacionado à necessária reestruturação das unidades de consumo da sociedade numa direção comunitária que tornaria viável a progressiva eliminação do imenso desperdício característico do sistema atual Não se pode dar sequer um passo experimental para este fim dentro dos limites do modo estabelecido de produção e reprodução sociometabólicas O capital tem interesses especiais exatamente opostos ao que seria necessário Ele tem de fragmentar ao extremo as unidades de consumo e modificar de maneira correspondente a estrutura da família em nome da manuten ção a qualquer custo de seu processo de realização cada vez mais perdulário ainda que este custo tenda a tornarse absolutamente proibitivo a longo prazo Durante o desenvolvimento histórico do capital também são ativadas algumas potencialidades positivas para a emancipação das mulheres apenas para serem mais uma vez anuladas sob o peso das contradições do sistema É da maior importância que o relacionamento do capital com as mulheres também se caracterize pela extralimitação no que se refere à mulher É o mesmo que já vimos nas seções 51 e 52 sobre a contradição entre o capital transnacional em desenvolvi mento global e os Estados nacionais por um lado e por outro os imperativos que emanam da lógica objetiva do capital e levam à destruição das condições básicas da reprodução sociometabólica Esta extralimitação do capital por si mesmo em relação às mulheres traz para a força de trabalho um número cada vez maior delas sob o inexorável impulso expan sionista do sistema uma alteração que não pode se completar sem que se levante a questão da igualdade das mulheres eliminando no processo alguns tabus e barreiras 108 MECW vol 5 pp 756 305 A ativação dos limites absolutos do capital anteriormente existentes Este movimento que surge do indispensável impulso do capital para a expansão lucrativa e não da mais leve inclinação a uma esclarecida preocupação emancipadora em relação às mulheres erra o tiro no momento opor tuno Não apenas porque as mulheres têm de aceitar uma parcela desproporcional das ocupações mais inseguras e mais mal pagas no mercado de trabalho e estejam na péssima situação de representar 70 por cento dos pobres do mundo O movimento também erra o tiro porque em virtude de seu papel decisivo na família nuclear as exigências que são e continuarão a ser jogadas em cima das mulheres são cada vez mais difíceis de satisfazer no cenário social mais amplo contribuindo para que qualquer disfunção social seja associada à crescente instabilidade da família como as preocupações do relatório do departamento do censo norteamericano sobre a fissão nuclear da sociedade a difusão aparentemente incontrolável de uma cultura de drogas a taxa de criminalidade juvenil que se acentua etc Do ponto de vista da estabilidade social do sistema do capital o pior é estarmos diante de um círculo vicioso Quanto maiores as disfunções sociais maiores a carga e as exigências impostas às mulheres como eixo da família nuclear quanto maiores esses pesos menores as suas condições de lidar com eles além de seu papel de ganha pão do segundo turno depois do trabalho e afins Outro aspecto importante da extralimitação do capital relacionado com as mulheres é a fragmentação e a redução da família nuclear a seu âmago mais interior comprovadas pelos índices crescentes do divórcio que na qualidade de microcosmo e unidade consumidora básica da sociedade tende a contribuir para a maior instabilidade da própria família sob enormes pressões num momento de crise estrutural cada vez mais profunda e por sua vez tem sérias repercussões negativas para todo o sistema 539 Toda a conversa sobre imparcialidade e justiça como base da igualdade co loca o carro na frente dos bois mesmo quando seja sincera e não uma camuflagem cínica para a negação das mais elementares condições de igualdade A definição das questões em jogo em termos de igualdade de oportunidades está nas mãos dos que anseiam por evitar qualquer mudança nas relações de poder prevalecentes e nas cor respondentes hierarquias estruturalmente impostas oferecendo a promessa irrealizável de oportunidade igual diante dos críticos da desigualdade social como a cenoura inalcançável na frente do burro A promessa de imparcialidade e justiça em um mundo dominado pelo capital só pode ser o álibi mistificador para a permanência da desigualdade substantiva A condição preliminar do movimento na direção de uma ordem social jus tificável é mudar a ordem invertida que hoje predomina entre justiça e igualdade A única maneira possível de realmente dar uma base à própria justiça retirandoa do reino da mistificação ideológica e da manipulação cínica é fazer com que a igualdade substantiva se torne o princípio eficaz de regulamentação de todas as relações humanas Não há outra maneira ainda que os legisladores ideais que tentariam instituir a imparcialidade da oportunidade igual enrubescessem diante da pressão de suas boas intenções acumuladas Em outras palavras somente a igualdade substantiva pode ser a base de uma justiça significativa mas nenhuma 306 A sombra da incontrolabilidade justiça legalmente decretada criaria uma igualdade legítima ainda que isso pudesse acontecer e este naturalmente não é o caso Por sua própria natureza o relacionamento entre capital e trabalho é a mani festação tangível da hierarquia estrutural insuperável e da desigualdade substantiva Assim em sua própria constituição o sistema do capital indiscutivelmente não pode ser mais do que a perpetuação da injustiça fundamental Portanto quaisquer tentativas de conciliar este sistema com os princípios da justiça e da igualdade são inevitavelmente absurdas elas só podem importar no que uma expressão húngara chama de forjar rodas de ferro da madeira de lenha Para criar a visão de suas rodas de ferro forjado os praticantes dessa arte devem atuar por decreto estipu lando que somente os critérios puramente formais são relevantes eliminando assim a priori todas as considerações substantivas inclusive as diferenças materiais entre a madeira e o ferro de modo que possam afirmar no final que uma igualdade de resultado ou seja uma igualdade significativa não tem importância alguma sob qualquer aspecto Eles desejam manter a igualdade formal por duas razões Em pri meiro lugar porque ela é essencial para a misteriosa ou melhor convenientemente mistificadora arte de forjar rodas de ferro da madeira de lenha ao mesmo tempo em que exclui por decreto a possibilidade de se questionar sob pena de se expor a acusações de irracionalidade e erro categórico a incurável iniquidade do próprio relacionamento entre capital e trabalho que se admite pertencer à cate goria da contingência material mesmo se numa forma praticamente eternizada Em segundo lugar porque a igualdade formal legalmente válida tem seus usos na regulamentação de alguns aspectos do relacionamento entre unidades particulares do capital sem entrar em conflito com os processos substantivos de concentração e centralização do capital Em sua eficácia ideológica a igualdade de oportunidades irrealizável contraposta à igualdade de resultados é certamente o produto mais importante da venerável arte de extrair rodas de ferro forjado da lenha reduzindo a substância à forma pura e transformando a hierarquia discriminatória estrutu ralmente imposta com todas as suas óbvias desigualdades em imparcialidade e justiça A Comissão de Justiça do Partido Trabalhista inglês utiliza essa mesma arte mágica para produzir da lenha capitalista infestada de vermes as rodas de ferro forjado da imparcialidade e justiça socialista modernizada baseada nesta hipótese o seguro social pode ser inteiramente esvaziado por um futuro governo trabalhista em nome da meta justa e realista dos pobres merecedores Contudo os socialistas havia muito sabiam que em todos os relacionamentos que envolvem a questão da desigualdade inclusive os das mulheres os verdadeiros cacifes sempre são definidos em termos das necessidades e dos recursos existentes Babeuf no meio do turbilhão que se seguiu à Revolução Francesa havia formu lado os critérios pelos quais essas questões deveriam ser avaliadas refutando ao mesmo tempo o elitismo utilitarista e a quantificação mecanicista com os termos da avaliação que adotou A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e a necessidade do consumidor não pela intensidade do trabalho e a quantidade das mercadorias con sumidas Ao levantar um peso de dez quilos um homem dotado de certo grau de força trabalha tanto quanto um homem com força cinco vezes maior que levanta um 307 A ativação dos limites absolutos do capital 109 Ver Philippe Buonarroti Conspiration pour légalité dite de Babeuf 1828 p 297 110 H G Wells The Work Wealth and Happiness of Mankind Londres Heinemann 1932 p 557 111 Id ibid p 558 peso de cinquenta quilos Quem satisfaz uma sede ardente engolindo uma jarra de água não goza prazer maior do que seu camarada que estando com uma leve sede engole apenas um copo A meta do comunismo em questão é a igualdade nas dores e nos prazeres não no consumo das coisas e nas tarefas do trabalhador109 Ninguém que esteja seriamente preocupado com a questão da igualdade poderia fazer objeções a esses critérios que também colocam em perspectiva a conexão entre imparcialidade e justiça insistindo na redefinição e na refundamentação destas por meio da admissão da prioridade da verdadeira igualdade que emana diretamente da real necessidade humana Neste aspecto é significativo que estando a liberação das mulheres centrada na questão da igualdade substantiva uma grande causa histórica entra em movimento sem encontrar saídas para sua realização dentro dos limites do sistema do capital A causa da emancipação e da igualdade das mulheres envolve os processos e instituições mais importantes de toda a ordem sociometabólica Também é significativo que desde o momento em que apareceram as formas mais militantes do movimento pela igualdade das mulheres a resposta até dos inte lectuais burgueses mais progressistas em perfeita sintonia com a atitude dos defensores do sistema foi procurar restringir suas reivindicações e avaliar as realizações viáveis em termos dos critérios formais na boa tradição de fazer rodas de ferro forjado de madeira Foi assim que o socialista fabiano H G Wells que até se fantasiava como defensor da liberação das mulheres usou o seguinte argumento numa obra famosa Nos animados dias da emancipação feminina próximo ao encerramento do século passado falavase muito das mudanças e maravilhas que aconteceriam quando este deixasse de ser um mundo feito pelos homens As mulheres seriam independentes e tudo estaria melhor Na realidade a alforria das mulheres a abertura a elas de qualquer profissão imaginável uma legislação como a Lei da Desqualificação eliminação do Sexo de 1919 significou que as mulheres não estavam assumindo a posse do próprio nariz mas que estavam apenas renunciando a si mesmas ou se preferível fugindo de si mesmas110 O nível da realização feminina em geral é elevado mais elevado do que o de homens de segunda classe mas em nenhum dos campos abertos a não ser na ficção doméstica podese dizer que alguma delas já tenha apresentado qualidades e iniciativas que as colocassem no mesmo nível dos melhores homens Na literatura nas artes no laboratório científico elas tiveram um bom campo e foram bastante favorecidas Elas não sofrem de deficiência alguma No entanto até agora nenhuma apresentou força ou fôlego estrutural profundidade e firmeza de concepção comparáveis às melhores obras dos homens Elas não produziram nenhuma generalização científica esclarecedora111 Wells não se contenta em minimizar as realizações das mulheres em relação a todas as condições discriminatórias reais usando como base de seu julgamento os critérios formais de que as mulheres foram alforriadas e com a eliminação da Incapacitação do Sexo por uma Lei do Parlamento de 1919 qualquer profissão 308 A sombra da incontrolabilidade imaginável estava aberta para elas Depois de demonstrar com essa indulgência cega sua total incompreensão do é que necessário para tornar possível a verdadeira igualdade reservando presunçosamente para os homens o domínio das realizações de primeira grandeza e usando a melhor obra isolada em arte ou na ciência como critério legitimador para negar a igualdade em relação aos homens a mais da metade da humanidade Wells oferece a perspectiva de eterna condição ancilar às mulhe res enfeitada com a retórica do serviço prestado honrada e espontaneamente repetindo o modelo antigo e aparentemente insuperável da fala de Menenius Agripa às massas rebeldes nas colinas em torno de Roma O sermão de Wells proclamava o seguinte As mulheres têm desempenhado o papel de argamassa social Elas parecem capazes de aceitar mais prontamente com maior simplicidade e de manterem maior lealdade Na sociedade mundial do futuro moralizada com maior sutileza com educação superior e governo científico esta sociedade mundial que será a única alternativa para o desastre da humanidade uma função matricial como essa será ainda mais vitalmente necessária Este mais do que o papel de estrelas talvez seja o destino geral das mulheres no futuro Elas continuarão a ser mães enfermeiras continuarão a prestar assistência a proteger confortar recompensar e manter a humanidade unida Até aqui o papel da mulher foi decorativo ou ancilar Hoje parece continuar decorativo e ancilar Suas recentes conquistas em liberdade ampliaram as opções em relação ao que ela poderá usar como adorno ou para servir mas não libertaram nenhuma nova iniciativa nas questões humanas Talvez isso não seja agradável para a feminista entusiasta da nova escola findesiècle mas estes são os fatos Num mundo em que a causa do serviço parece destinado a se tornar a causa social dominante nada há de deplorável a qualquer mulher no que apresentamos aqui112 O que foi curiosa e convenientemente esquecido nessa idealização da arga massa social como destino geral das mulheres é que por sua própria natureza e função ancilar a argamassa se destina a ser espremida entre pedras e tijolos Ela continuará sempre ignorada e esquecida a não ser que a chuva ou qualquer problema cause uma erosão quando surge alguma emergência Então a atenção é novamente concentrada na argamassa mas somente enquanto durar a emergência quando os blocos de construção que para H G Wells mesmo não sendo mais luminosos do que pedras ou tijolos desempenham com todo o direito o papel de estrelas são recuperados e devidamente repintados pela brigada ancilar Há uma linda e comovente balada folclórica húngara do início do século XVIII que nos diz o que entender da argamassa social como permanente destino das mulheres Seu título é Kömíves Kelemenné 113 É a narrativa da trágica história da senhora Kelemen a esposa do mestrepedreiro Kelemen Seu marido e outros onze pedreiros encantados pelo rico pagamento em alqueires de prata e ouro são contratados para erigir a grande fortaleza de Déva mas não conseguem porque 112 Id ibid pp 5612 113 Kömíves Kelemenné em Hét évszázad magyar versei Budapeste Szépirodalmi Könyvkiadó 1954 pp 268 309 A ativação dos limites absolutos do capital o que eles constroem até o meiodia desmorona no fim da tarde o que eles constroem até o final da tarde cai pela manhã Para resolver o problema eles fazem uma lei a que solenemente todos decidem se submeter a primeira esposa a chegar será queimada e suas cinzas serão misturadas à cal para obtenção de uma argamassa indestrutível com a qual erguer a grande fortaleza Acontece que a senhora Kelemen é a primeira a partir para Déva em sua finíssima carruagem puxada por quatro lindos cavalos baios A meio caminho o cocheiro lhe implora para deixálo voltar dizendo que em sonho tivera uma premonição e vira o filhinho dela cair e morrer no fundo do poço que havia no meio do pátio de sua casa A senhora o faz calar com palavras a que ele não poderia replicar segue cocheiro a carruagem não é tua os cavalos não são teus apressaos Ao aproximaremse de Déva o mestrepedreiro os reconhece de longe pedindo a Deus para detêlos com um raio na estrada bem diante da carruagem para que os cavalos se assustem e deem a volta ou se isto não funcionar para quebrar as pernas dos quatro cavalos de modo que não conseguissem chegar Tudo em vão A senhora Kelemen chega e os doze pedreiros lhe contam com palavras muito suaves o destino cruel a que não poderia escapar Ela os chama de doze assassinos inclusive seu próprio marido e pede que esperem que vá até sua casa e volte para despedirse de minhas amigas e do meu lindo filhinho Ao voltar os homens a queimam e utilizam suas cinzas para fazer a argamassa forte e conseguem erguer a altíssima fortaleza de Déva recebendo o prometido rico pagamento em alqueires de prata e ouro Quando a fortaleza fica pronta e o mestre pedreiro Kelemen volta para casa o filho não para de perguntar pela mãe ausente Depois de usar muitas evasivas no final o pai tem de contar ao menino que sua mãe está enterrada entre as pedras da fortaleza de Déva Em desespero o filho vai até a fortaleza no alto da montanha e grita três vezes Mãe doce mãe fala comigo outra vez A mãe responde e a balada termina assim Não posso falar contigo O peso das pedras me cala Estou emparedada e enterrada nessas pedras tão pesadas O coração dela então se partiu e com isso a terra se abriu o menino caiu no fundo e ali foi enterrado A balada folclórica sobre a triste história da mulherargamassa tem algumas lições a ensinar de forma muito diferente mas infinitamente mais realista do que a do indulgente conto de fadas romântico de H G Wells escrito no espírito comum a todos os que usam a desculpa da igualdade formal para negar a igualdade substan tiva As lições estão implícitas tanto no sofrimento da senhora Kelemen cruelmente imposto a ela com a participação como colegislador de seu marido como no trágico destino de mãe e filho que não nos fala apenas do destino geral das mulheres mas do destino longe de tranquilizador de toda a humanidade se essas lições não forem aprendidas No entanto não há a menor esperança de que as personificações do capital sejam homens ou mulheres deem a elas a mínima atenção como demonstra o papel desempenhado sob o domínio do capital até pelo mestrepedreiro Kelemen que apesar de amar sua mulher deve obedecer ao fundamento de qualquer lei formal ou 310 A sombra da incontrolabilidade explícita decretada pelo sistema ou seja a lei última de ser dirigido pela necessidade de alqueires de ouro e prata 54 O desemprego crônico o significado real da explosão populacional 541 A duvidosa distinção de criar o pânico em relação à explosão populacional per tence ao reverendo T R Malthus apesar de ele mesmo não ter usado este termo Entretanto no seu Ensaio sobre o princípio da população e como ele afeta os desenvol vimentos futuros da humanidade com observações sobre especulações de Mr Goodwin M Condorcet e outros autores publicado anonimamente pela primeira vez em 1798 e posteriormente em edições grandemente ampliadas ele lançou os alicerces de uma forma extremamente conservadora e alarmista de abordar o problema do aumento da população No interesse da apologética classista ele separou as tendências correntes de desenvolvimento de suas determinantes sociais na tentativa de tratar questões inerentemente históricas sobre por que e como as populações mudam sob uma lei natural mecânica profetizadora de catástrofes Assim não poderia ser maior o contraste com a avaliação socialista das questões pertinentes Marx caracterizou assim a abordagem malthusiana Malthus vê a superpopulação como se fosse sempre do mesmo tipo em todas as fases históricas do desenvolvimento como não entende as diferenças específicas entre elas ele reduz essas relações complicadas e variáveis a uma única relação duas equações em que a reprodução natural da humanidade aparece de um lado e a reprodução natural das plantas comestíveis ou meios de subsistência do outro como duas séries naturais sendo a primeira uma progressão geométrica e a segunda aritmética Desta forma ele transforma a relação historicamente distinta numa relação numérica abstrata que ele pescou do nada e que não se apoia em leis naturais nem históricas Supostamente existe uma diferença natural entre a reprodução da humanidade e a dos grãos por exemplo Assim esse babuíno indica que o crescimento da humanidade é um processo puramente natural que exige restrições externas para não crescer geometricamente Ele transforma em barreiras externas os limites imanentes e historicamente variáveis do processo de reprodução humana e as barreiras externas à reprodução natural em limites imanentes ou leis naturais da reprodução114 A transubstanciação malthusiana do historicamente específico numa deter minação atemporal e pseudonatural acabou por inverter completamente a relação entre limites imanentes e barreiras externas Isto atendeu ao objetivo ideológico de eximir o sistema socioeconômico historicamente estabelecido e portanto em princípio historicamente variável de qualquer culpa imaginável na questão que levou o próprio reverendo anônimo a soar o alarme Ao mesmo tempo ele pro pôs soluções corretivas em nome de uma falsa lei natural que não somente atenderiam à conveniência da ordem existente de reprodução sociometabólica mas 114 Marx Grundrisse pp 6057