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HISTÓRIA DA FILOSOFIA p o l í t i c a FOR EN SE UNIVERSITÁRIA A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à sua edição aí compreendidas a impressão e a apresentação a fim de possibilitar ao consumidor bem manuseálo e lêlo Os vícios relacionados à atualização da obra aos conceitos doutrinários às concepções ideológicas e referências indevidas são de responsabilidade do autor eou atualizador As reclamações devem ser feitas até noventa dias a partir da compra e venda com nota fiscal interpre tação do art 26 da Lei n 8078 de 11091990 Traduzido de HISTORY OF POtrnCAL PHILOSOPHY THIRD EDITION Licensed br lhe Univctsit of Chicago Pless Chicago Dlinoia USA 19631972 br Joseph Cropsejr and Miriam Stnuiss 1987 hr lhe Unhrersity of Chicago Allrightsieserved ISBN 9780979303609 Histórn da Filosofia Política ISBN 9788521804789 Direitos exclusivos para o Brasil na língua portuguesa Copyright 2013 by FORENSE UNIVERSITÁRIA um selo da EDITORA FORENSE LTDA Uma editora intrante do GN Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor 1 1 6 andar 20040040 Rio de Janeiro RJ Tel 0XX21 35430770 Fax 0XX21 35430896 bilacpintogrupogencombr wwwgrupogencombr I O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida divulgada ou de qualquer forma utilizada po derá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação sem prejuízo da indenização cabível art 102 da Lei n 9610 de 19021998 Quem vender expuser à venda ocultar adquirir distribuir tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude com a finalidade de vender obter ganho vantagem proveito lucro direto ou indireto para si ou para outrem será solidariamente responsável com o contraíâtor nos termos dos anigos precedentes respondendo como contrafiitores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior art 104 da Lei n 961098 1 edição brasileira 2013 Tradução Heloisa Gonçalves Barbosa Revisão Técnica Manoel Barros da Motta CIP Brasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ S893h Sttauss Leo História da filosofia poIíticaLeo Strauss e Joseph Cropsey tradução de Heloisa Gonçalves Barbosa revisão técnica Manoel Barros da Motta Rio de Janeiro Forense 2013 Tradução de Christianisme history of political philosophy Inclui índice ISBN 9788521804789 1 Ciência política História 2 Ciência política Filosofia I Cropsey Joseph II Título 128340 CDD 32009 CDU 3209 Z in ít a m jia íjiá v e í J iS íie te c a Sumário Prrfdcio da Terceira Edição VII Prefácio da Segunda Edição IX Prefácio da Primeira Edição XI INTRODUÇÃO 1 TUCÍDIDES por David Bolotin 6 PLATÃO por Leo Strauss 31 XENOFONTE por Christopher Bruell 82 ARISTÓTELES por Carnes Lotd 109 MARCO TÚUO CÍCERO por James E Holton 142 SANTO AGOSTINHO por Ernest L Fortin 161 ALFARÃBIporMuhsinMahdi 188 MOISÉS MAIMÔNIDES por Ralph Lemer 207 SÃO TOMÃS DE AQUINO por Ernest L Fortin 225 MARSÍUO DE PÃDUA por Leo Strauss 249 NICOLAUMAQUIAVEL por Leo Strauss 267 MARTINHO LUTERO e JOÃO CALVINO por Duncan B Forrester 285 RICHARD HOOKER por Duncan B Forrester 319 FRANCIS BACON por Howard B White 328 HUGO GRÓCIO por Richard H Cox 346 THOMAS HOBBES por Laurence Berns 355 RENÉ DESCARTES por Richard Kennington 377 JOHN MILTON por Walter Berns 394 BARUCH SPINOZA por Stanley Rosen 409 JOHN LOCKE por Robert A Goldwin 427 MONTESQUIEU por David Lowenthal 459 DAVIDHUMEporRobertSHUl 479 JEANJACQUES ROUSSEAU por Allan Bloom 500 IMMANUELKANTporPierreHassner 519 WILLIAM BLACKSTONE por Herbert J Storing 554 ADAM SMITH por Joseph Cropsey 566 THE FEDERALISTpor Martin Diamond 587 THOMAS PAINE por Francis Canavan S J 606 EDMUND BURKE por Harvey Mamfield Jr 613 JEREMY BENTHAM e JAMES MILL por Timothy FuUer 635 GEORG W F HEGEL por Pierre Hassner traduzido por Allan Bloom 655 ALEXIS DE TOCQUEVILLE por Marvin Zetterbaum 681 JOHN STUART MILL por Henry M M d 701 KARLMARX por Joseph Cropsey 717 FRIEDRICH NIETZSCHE por Werner J Dannhauser 741 JOHN DEWEY por RobertHorwitz 761 EDMUND HUSSERL por RichardVelkley 778 MARTIN HEIDEGGER por Michael GÜlespie 795 EPÍLOGO Leo Strauss e a História da Filosofia Política por Nathan Tarcov e Ihomas L Pangle 812 ÍN DICE 842 V I H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y P refácio da I rceira E dição A segunda edição deste livro foi publicada em 1972 um ano antes da morte de Leo Sttauss Nesse meiotempo uma nova geração chegou próximo da maturidade ou a atingiu e a decisão de publicar uma nova edição ofereceu a oportunidade de incluir seu trabalho neste volume e simultaneamente ampliar a abrangência do livro em relevantes aspeaos Estão presentes pela primeira vez capítulos sobre Tucídides e Xenofonte para os quais nenhuma explicação se 6z necessária Estão presentes também capítulos sobre Husserl e Heideer para os quais pode ser necessária alguma explicação e um relato acerca de Leo Strauss para o qual pode ser necessária grande explicação Quando no ptefício à primeira edição nos referimos à inclusão de capítulos sobre os muçulmanos e judeus medievais e Descartes como uma questão em aberto tínhamos em mente é claro o fato de que esses pensadores não são primordialmente filósofos políticos De Husserl e Heidegger será dito o mesmo como se dirá da fenomenologia e do existencialismo que não são filosofia política No entanto basta pensar em 1960 e no radicalismo da época para trazer à memória o impacto que teve o existencialismo não importa com que transformações sobre a consciência do público Também não se pode esquecer que a filosofia de Heideer permitiu preparou ou provocou ainda é uma questão de controvérsia a sua participação longa ou breve em uma política execrável Talvez sempre talvez com ênfase nos nossos tem pos a política de forma pouco original e vacilante reaja à contemplação humana dos poderes horizontes e metas da humanidade e com hesitação põe em efeito as visões emergentes por meio das instituições de govemo Acredito que um conhecimento da obra de Husserl e Heideer auxiliará a aprofundar a com preensão do aluno não só da política do século XX mas das possibilidades políticas em princípio Os capítulos sobre Aristóteles Burke Bentham e James Mill são novos nesta edição As substi tuições foram resultado ou da retirada do capítulo original por seu autor ou de um desejo de ampliar o número de autores que contribuíram para o volume por meio da inclusão da obra de estudiosos que vêm despontando ou que já se afirmaram A indusão do Epílt sobre Leo Strauss um ensaio sobre um dos editores do livro além disso falecido realmente exige uma explicação Demandei esse acréscimo ao volume porque está iora bastan te claro que Strauss assumiu seu lugar como pensador na tradição da filosofia poUtica em um plano que r a não se pode descortinar mas de suficiente elevação para terlhe tomado instante e controverso em muitos locais Estou confiante que o ensaio será valioso para aqueles que buscam uma introdução cuidadosa e escrupulosa de uma obra difícil e amplamente estudada uma apresentação que não é neutra mas no entanto é objetiva Não posso saber ou alegar que qualquer uma das decisões que produziram as diferenças entre esta e a edição anterior teriam sido aprovadas pelo editor sênior Espero que esta edição seja recebida como uma continuação da intenção das versões que foram bem recebidas no passado JOSEPH CROPSEY Chicago 1986 COLEÇÃO EPISTEME POLÍTICA HISTÓRIA CLÍNICA COORDENADOR MANOEL BARROS DA MOTTA Obras a serem publicadas Cristianismo Dicionário dos Tempos dos Lugares e das Figuras André Vauchez Filosofia do Odor Chantal Jaquet A Democracia Internet Dominique Cardon A Loucura ManíacoDepressiva Emil Kraepelin A Razão e os Remédios François Dagognet O Corpo François Dagognet Estudos de História e de Filosofia das Ciências Georges Canguilhem O Conhecimento da Vida Georges Canguilhem M ichel Foucault Uma Trajetória Filosófica Hubert Dreyfiis e Paul Rabinow Realizarse ou se Superar Ensaio sobre o Esporte Contemporâneo Isabelle Queval Filosofia das Ciências Jean Cavaillès História da Filosofia Política Leo Straus e Joseph Cropsey Ditos e Escritos volumes la X Michel Foucault História do Egito Antigo Nicolas Grimal Introdução à Europa Medieval 3001550 Peter Hoppenbrouwers Wim Blockmans PREFÁao DA Segunda E dição O constante interesse pela abordagem ao ensino da filosofia política que é apresentada neste volu me propiciou a ocasião para publicar uma sínda edição O presente texto difere do anterior por conter um capítulo sobre Kant novos capítulos sobre Agostinho Tomás de Aquino e Maquiavel e pela revisão de detalhes importantes nos capítulos sobre Descartes e Locke Foram fisitas alterações em auns outros pontos mas mínimos LEO STRAUSS JOSEPH CROPSEY P refácio da P rimeira E dição A principal meta deste livro é apresentar a filosofia política aos estudantes universitários da área de ciência política Os autores e editores esforçaramse para tratar a filosofia política de maneira judiciosa to mando como pressuposto a cada passo que a importância dos ensinamentos dos grandes filósofos políticos reside não somente em seu aspeao histórico enquanto fenômenos a respeito dos quais precisamos apren der se quisermos compreender as sociedades do presente e do passado mas também por serem fenômenos cujos ensinamentos precisamos absorver se desejarmos compreender essas sociedades Acreditamos que as questões debatidas pelos filósofos políticos do passado perduram em nossa própria sociedade ainda que apenas da maneira como pode persistir qualquer questão que na sua essência é respondida tácita ou inadvertidamente Realizamos esta obra ainda com a crença de que para entender qualquer sociedade para analisála em profimdidade o analista deve ele próprio ser exposto a essas imortedouras peiguntas e ser arrebatado por elas Este livro dedicase àqueles que por qualquer razão acreditam que os estudantes de ciência polí tica precisam ter uma boa compreensão do tratamento filosófico das permanentes questões e àqueles que não acreditam que a ciência política seja tão científica quanto a química e a física disciplinas das quais se exclui sua própria história Consideramos que o fiito de a grande maioria dos integrantes da profissão concordar com a visão segundo a qual a história da filosofia política é uma porção válida da ciência polí tica será comprovado pela prática muito comum de oferecer cursos sobre o assunto Oferecemos este livro ao público com plena consciência de que não é um estudo histórico perfeito Tampouco se trata de um livrotexto perfeito É imperfeito como exemplar de sua categoria o que reco nhecemos espontaneamente porque por um lado não é obra de uma só mão Se pudesse ser encontrada a mão que é movida pela mente única que possui o necessário domínio da literatura da área essa mão escreveria se encontrasse tempo um livro mais coerente mais uniforme e sem dúvida um livro mais abrangente que adotaríamos assim que aparecesse Por outro lado entendese que em certa medida o leitor de um trabalho colaborativo vê essas deficiências compensadas pela variedade de pontos de vista talentos e experiências que compõem as partes do volume Estamos convencidos de que mesmo um livrotexto da maior excelência poderá atender somente a um objetivo limitado Quando um estudante tiver dominado o melhor relato secundário dos ensinamen tos de um autor possuirá uma opinião acerca daqueles ensinamentos conhecerá o que se diz a respeito em vez de ter um conhecimento verdadeiro do assunto Se o que se diz Ibr acurado então o estudante terá a opinião correta caso contrário terá a opinião errada mas em nenhum dos casos terá um conhe cimento que transcenda a opinião Nosso delírio seria dos mais profundos se nada paradoxal víssemos em inculcar opiniões sobre algo que almeja transcender a opinião Não acreditamos que este livrotexto ou qualquer outro possa ser mais do que um auxílio ou um guia para esmdantes que quando o leem são ao mesmo tempo enfaticamente direcionados para os textos originais Tivemos de tomar a decisão de incluir cenos autores e assuntos e omitir outros Ao fiizêlo não tivemos intenção de ptejulgar a questão relativa a qual ramo da filosofia política está vivo ou merece estar vivo Certamente seria possível argumentar a fiivor da inclusão de Dante Bodin Ihomas More e Har rington e a fitvor da exclusão dos muçulmanos e judeus medievais e de Descartes por exemplo Também poderia ser questionada a quantidade de espaço dedicado a cada autor tal como nossa abstenção da práti ca de mencionar nomes de autores com o único objetivo de colocálos diante dos olhos do estudante Não aborreceremos o leitor repetindo a oração do antologista para a remissão dos pecados Todos sabem que não pode haver um livro como este sem decisões e não pode haver uma decisão sem dúvidas quanto à sua correção O máximo que afirmaremos é que acreditamos que somos capazes de defender nossos atos LEO STRAUSS JOSEPH CROPSEY Nota No final da maioria dos capítulos dáse uma sugestão de leituras dividida em duas partes A parte designada como A contém as obras ou as seleções que em nossa opinião são indispensáveis para a com preensão do estudante enquanto a lista intitulada B contém material adicional importante que pode ser examinado se o tempo permitir XII H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y Introdução o termo filosofia política hoje tornouse quase sinônimo de ideologia para não dizer mito Seguramente é entendido por contraste a ciência política A distin ção entre filosofia política e ciência política é conseqüência da distinção fundamental entre filosofia e ciência No entanto até mesmo essa diferenciação basilar é de origem bastante recente Pela tradição a filosofia e a ciência eram indistintas as ciências na turais eram um dos segmentos mais importantes da filosofia A grande revolução inte lectual do século XVII que inaugurou as ciências naturais modernas foi a revolução deílirada por uma nova filosofia ou ciência contra a filosofia ou ciência tradicionais mormente as aristotélicas Mas a nova filosofia ou ciência teve sucesso apenas parcial Sua porção de maior êxito foram as novas ciências naturais Em virtude de seu triunfo as novas ciências naturais adquiriram independência cada vez maior da filosofia pelo menos na aparência vindo até mesmo por assim dizer a tornarse uma autoridade para a filosofia Desta forma obteve aceitação geral a distinção entre filosofia e ciên cia e consequentemente também se acatou a distinção entre filosofia política e ciência política como uma espécie de ciências naturais das coisas políticas Pela tradição no entanto não havia identidade entre filosofia política e ciência política Filosofia política não é o mesmo que pensamento político em geral O pensa mento político é contemporâneo da vida política A filosofia política entretanto sur giu dentro de uma vida política específica na Grécia naquele passado do qual temos registros escritos Segundo a concepção tradicional foi o ateniense Sócrates 469399 aC quem fundou a filosofia política Sócrates foi o mestre de Platão que por sua vez foi o mestre de Aristóteles Os escritos políticos de Platão e Aristóteles são as mais antigas obras dedicadas à filosofia política a chegarem até nós O tipo de filosofia polí tica que se originou com Sócrates denominase filosofia política clássica A filoso fia política clássica era a filosofia política predominante até o surgimento da filosofia política moderna nos séculos XVI e XVII A moderna filosofia política emergiu de uma ruptura consciente com os princípios socráticos Da mesma forma a filosofia política clássica não se limita aos ensinamentos políticos de Platão e Aristóteles e de suas escolas mas inclui também os ensinamentos políticos dos estoicos bem como os ensinamentos políticos dos pais da igreja e dos escolásticos na medida em que estes não se baseiem unicamente na revelação divina A percepção tradicional segundo a qual Sócrates fundou a filosofia política requer algumas especificações ou melhor explicações mas é menos equivocada do que qualquer outra Decerto Sócrates não foi o primeiro filósofo Isso significa que a filosofia precedeu a filosofia política Aristóteles caracteriza os primeiros filósofos como aqueles que dis cursam sobre a natureza e os distingue daqueles que discursam sobre os deuses O principal tema da filosofia é portanto a natureza O que é natureza O primeiro gre go cuja obra chegou até nós o próprio Homero menciona a natureza somente uma vez esta primeira menção de natureza nos dá uma indicação muito importante sobre o que os filósofos gregos entendiam por natureza No décimo livro da Odisséia Ulis ses fida sobre o que lhe aconteceu na ilha de Circe a deusa feiticeira que transformara muitos de seus companheiros em porcos e os trancara em chiqueiros Em seu caminho para a casa da feiticeira a fim de salvar seus pobres camaradas Ulisses encontrase com o deus Hermes que deseja preserválo e lhe promete uma extraordinária erva que o tor nará imune às artes maléficas de Circe Hermes arrancou uma erva da terra e revelou me sua natureza Negra na raiz era ela como o leite suas flores e os deuses a chamam mólio Árduo é escavála para reles mortais mas os deuses tudo podem No entanto a capacidade dos deuses de obter cilmente a erva não seria de nenhum proveito se não conhecessem a natureza da erva sua aparência e sua energia em primeiro lugar Os deuses portanto são onipotentes porque não são oniscientes na verdade mas conhe cem a natureza das coisas naturezas que não criaram Natureza significa aqui o cará ter de uma coisa ou de um tipo de coisa a aparência de uma coisa e o modo como esta coisa e e a coisa ou o tipo de coisa é considerada como não tendo sido criada pelos deuses ou pelos homens Se tivéssemos o direito de tornar literal uma expressão poética poderíamos dizer que reconhecidamente o primeiro homem a felar da natureza foi o astuto Ulisses que vira as cidades de muitos homens e assim passara a saber o quanto os pensamentos dos homens diferem de uma cidade para outra ou de tribo para tribo O significado primordial da palavra grega para natureza iphysis parece ser cresci mento e portanto também aquilo em que uma coisa se transforma quando cresce a duração do crescimento o caráter que tem uma coisa quando conclui seu crescimento quando é capaz de fazer aquilo que só a coisa totalmente crescida de seu tipo é capaz de fazer ou fazer bem Coisas como sapatos ou cadeiras não crescem porém não são por natureza mas por arte Por outro lado há coisas que são por natureza sem ter crescido e mesmo sem ter começado a ser de alguma forma Dizse que são por natureza porque não foram feitas e porque são as coisas primordiais das quais ou através das quais todas as outras coisas naturais vêm a ser Os átomos onde o filósofo Demócrito encontrou a origem de tudo são por natureza no sentido mais estrito A Natureza no entanto como quer que seja entendida não é conhecida por na tureza A Natureza tinha de ser descoberta A Bíblia hebraica por exemplo não possui uma palavra para natureza O equivalente de natureza em hebraico bíblico é algo como modo ou costume Antes da descoberta da natureza os homens sabiam que cada coisa ou tipo de coisa tem o seu modo ou costume sua forma de compor tamento normal Existe um modo ou costume do fogo dos cães das mulheres dos loucos dos seres humanos o fogo arde os cães ladram e abanam o rabo as mulheres 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y ovulam os loucos deliram os seres humanos têm a capacidade de falar No entanto há também os modos e costumes das várias tribos humanas egípcios persas esparta nos moabitas amalequitas e assim por diante Por meio da descoberta da natureza a diferença radical entre esses dois tipos de modos ou costumes ganhou o centro das atenções A descoberta da natureza levou à divisáo de modo ou costume em natureza jhysis por um lado e convenção ou lei nomos por outro Por exem plo o fato de que os seres humanos têm a capacidade de falar é natural mas que esta tribo em particular utilize esta determinada língua é devido à convenção A distinção implica que o natural é anterior ao convencional A separação entre natureza e con venção é fundamental para a íilosoíia política clássica e até mesmo para a maior parte da filosofia política moderna como pode ser visto de maneira mais simples a partir da diferenciação entre direito natural e direito positivo Uma vez descoberta a natureza e entendida primordialmente em contraste com a lei ou a convenção tornouse possível e necessário íãzer a pergunta Será que as coisas políticas são naturais e se forem em que medida A própria pergunta implicava que as leis não são naturais Mas em geral a obediência às leis era considerada como justi ça Por conseguinte surgiu a necessidade de indicar se a justiça é meramente conven cional ou se há coisas que são por natureza justas Seriam mesmo as leis meramente convencionais ou teriam suas raízes na natureza As leis não deveriam ser feitas de acordo com a natureza e especialmente de acordo com a natureza do homem se devem ser boas As leis são os alicerces ou a obra da comunidade política a comunida de política é por natureza Em tentativas de responder a essas perguntas partiuse do pressuposto de que há coisas que por natureza são boas para o homem como homem A pergunta exata portanto diz respeito à relação do que é por natureza bom para o homem por um lado para a justiça ou o direito do outro A alternativa é simples todo direito é convencional ou existe algum direito natural As respostas diametralmente opostas foram oferecidas e desenvolvidas antes de Sócrates Por várias razões não será proveitoso apresentar aqui um resumo do que é possível saber a respeito dessas dou trinas présocráticas Vamos proporcionar alguma noção da visão convencionalista a concepção de que todo direito é convencional quando nos voltarmos para a República de Platão que contém um resumo desta tese Quanto à posição oposta deve ser sufi ciente dizer aqui que Sócrates e a filosofia política clássica em geral desenvolveramna muito além dos pontos de vista anteriores Qual seria então o significado da afirmação de que Sócrates fundou a filosofia política Sócrates não escreveu nenhum livro De acordo com os mais antigos relatos afastouse do estudo das coisas divinas ou naturais e voltou suas indagações inteiramen te para as coisas humanas ou seja as coisas justas as coisas nobres e as coisas boas para o homem como homem sempre conversava sobre o que é piedoso o que é ímpio o que é nobre o que é ignóbil o que é justo o que é injusto o que é a sobriedade o que é a loucura o que é a coragem o que é a covardia o que é a cidade o que é o estadista o que é o domínio sobre o homem o que é o homem capaz de governar os homens e I n t r o d u ç ã o 3 coisas similares Parece que Sócrates foi induzido a afiistarse do estudo das coisas di vinas ou naturais por sua devoção Os deuses não aprovam que o homem tente buscar o que não desejam revelar em particular as coisas nos céus e por baixo da terra Um homem piedoso portanto investigará apenas as coisas permitidas para a investigação dos homens isto é as coisas humanas Sócrates realizava suas investigações por meio de conversas Isso significa que partia das opiniões consensuais Dentre essas opiniões consensuais as mais impositivas são aquelas sancionadas pela cidade e suas leis pela convenção mais solene Todavia as opiniões consensuais se contradizem umas às ou tras Assim tornase necessário transcender toda a esfera das opiniões consensuais ou da opinião per se para seguir na direção do conhecimento Uma vez que mesmo as opi niões mais confiáveis são apenas opiniões até Sócrates foi obrigado a seguir o caminho que ia da convenção ou lei para a natureza a ascender da lei para a natureza Agora no entanto mostrase mais claramente do que nunca que a opinião a convenção ou a lei contêm a verdade ou não são arbitrárias ou são em certo sentido naturais Podese dizer que desta forma a lei a lei humana demonstra apontar para uma lei divina ou natural como sua origem Isso implica porém que a lei humana precisamente porque não é idêntica à lei divina ou natural não é irrestritamente verdadeira ou justa somen te o direito natural a própria justiça a ideia ou forma da justiça é irrestritamente justa No entanto a lei humana a lei da cidade é irrestritamente obrigatória para os homens sujeitos a ela desde que tenham o direito de emigrar com a sua propriedade ou seja desde que a sua sujeição às leis da sua cidade seja voluntária A razão exata pela qual Sócrates se tornou o fundador da filosofia política emerge quando se considera o caráter das questões com as quais lidava em seus diálogos O filósofo fez a indagação O que é a respeito de tudo Essa pergunta destinase a trazer à luz a natureza do tipo de objeto em questão ou seja a forma ou o caráter do objeto Sócrates pressupunha que o conhecimento do todo é acima de tudo o conhe cimento do caráter da forma do caráter essencial de cada parte do todo tão distinto do conhecimento daquilo do qual ou por meio do qual o todo pode ter vindo a ser Se o todo consiste em partes essencialmente diferentes é pelo menos possível que as coisas políticas ou as coisas humanas sejam essencialmente diferentes das coisas não políticas que as coisas políticas constituam uma classe em si e portanto possam ser estudadas por si mesmas Sócrates ao que parece tomou o significado primeiro de natureza mais a sério do que qualquer um dos seus antecessores percebeu que a natureza é sobretudo forma ou ideia Se isso for verdade não se limitou a se afastar do estudo das coisas naturais mas deu origem a um novo tipo de estudo das coisas naturais uma espécie de estudo em que por exemplo a natureza ou a ideia de justiça ou direito natural e certamente a natureza da alma humana ou do homem é mais importante do que por exemplo a natureza do sol 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 1 Xenofbnte Memorahilia I 1 1116 2 Platáo Crtífo SI Não se pode compreender a natureza do homem se não se compreende a natu reza da sociedade humana Sócrates assim como Platão e Aristóteles assumiu que a forma mais perfeita da sociedade humana é a polis Hoje frequentemente se toma a polis como a cidadeestado grega Mas para os filósofos políticos clássicos era por mero acaso que a polis era mais comum entre os gregos do que entre os não gregos É preciso então dizer que o tema da filosofia política clássica não era a cidadeestado grega mas a cidadeestado Isso pressupõe no entanto que a cidadeestado é uma forma particular do Estado Pressupõe portanto que o conceito de estado engloba a cidadeestado dentre outras formas de Estado Todavia fidtava à filosofia política clássica o conceito de Estado Quando se fala hoje do Estado habitualmente se subentende Estado em oposição a sociedade Esta distinção é alheia à filosofia política clássica Não é suficiente dizer que poUs a cidade compreende tanto o Esudo quanto a sociedade pois o conceito de cidade antecede a distinção entre estado e sociedade portanto não se subtende a cidade ao se dizer que a cidade abraie o estado e a sociedade O equivalente moderno da cidade no nível de entendimento do cidadão é o país Pois quando um homem diz por exemplo que o país está em perigo tampouco fez ele uma distinção entre Estado e sociedade A razão pela qual os filósofos políticos clássicos preocupavamse sobretudo com a cidade não era por ignorarem outras formas de sociedade em geral e de sociedade política em par ticular Conheciam a tribo a nação bem como estruturas tais como o Império Persa Preocupavamse predominantemente com a cidade porque preferiam a cidade às ou tras formas de sociedade política Podese dizer que os motivos dessa preferência foram estes as tribos não são capazes de uma elevada civilização e sociedades muito grandes não podem ser sociedades livres Lembremonos de que os autores dos Federalist Papers ainda estavam sob a compulsão de provar que é possível que uma grande sociedade seja republicana ou livre Rccordemonos também de que os autores dos Federalist Papers assinavamse Publius o republicanismo aponta de volta para a antiguidade clássica e portanto também para a filosofia política clássica I n t r o d u ç Ao 5 TtrCÍDIDES c 460 c 400 aC Tucídides é autor de um único livro A Guerra do Peloponeso e os atenienses De modo geral náo é tido como filósofo político e as razões para isso sáo óbvias e graves Não apenas jamais usa o termo filosofia política como também náo se detém pelo menos náo de maneira explícita nas suas questões universais Embora nos diga qual regime ateniense avaliou como o melhor durante sua vida nunca fala do melhor re gime pura e simplesmente e embora elogie vários homens por sua excelência nunca discute a melhor maneira de viver ou o mais excelente modo de vida em si Além disso apresenta os resultados de sua busca pela verdade I 203 sob a forma do relato de um único evento político a guerra de 27 anos por meio da qual os espartanos e seus aliados derrubaram o império ateniense Por esses motivos ficase inclinado a dassificá lo como historiador Contudo ao contrário de seu antecessor Heródoto Tucídides jamais utiliza a palavra história Tampouco na verdade limita seu tema a uma guerra em particular afirma que seu estudo será útil para aqueles que buscam clareza náo só acerca da guerra mas de modo mais geral sobre o passado e até mesmo sobre o futuro o qual em sua opiniáo novamente se parecerá com o passado que ele desvendou Des ta forma atrevese a chamar seu trabalho de um patrimônio para sempre I 224 Uma vez que portanto encara seu tema como um evento especial que revela a verdade compreensiva e permanente pelo menos no que concerne às relações humanas lançar 1 A não ser que indicado de outra íbrma todas as referências são a esta obra As traduções do gro para o inglês são de minha autoria É grande meu débito a dois anigos de Christopher Bruell Thucydides View of Athenian Imperia lism American Political Science Review LXVIII n 1 march 1974 1117 e Thucydides and Perikles St Johris Review XXXII n 3 summer 1981 2429 2 VIII 972 IV 812 VI 545 VII 865 VIII 681 3 NT As traduções do texto g r são baseadas em TUCÍDIDES História da Guerra do Peloponeso Preíacio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Univetsidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 4 Idem O foco sobre aquele evento específico não nos autoriza a concebêlo apenas como um historiador Todavia ainda é dificil pensar em um homem que diz muito pouco sobre não está no texto universais que aliás nem sequer discute a sua própria reivindicação de relevância universal para sua obra seja como filósofo ou filósofo político Talvez seja melhor nesse caso em vez de tentar classificar seu pensamento voltar um olhar mais atento às características mais destacadas do livro A frase de abertura de Tucídides nos diz que começou a escrever sobre a Guerra do Peloponeso desde seu início já que esperava que fosse uma grande guerra e a mais no tável que já houvera Acrescenta que a guerra demonstrou ser o maior movimento ou mudança que jamais ocorrera pelo menos entre os gregos Para apoiar sua afirmação observa que os antonistas estavam em um pico de riqueza e poder e também que a guerra foi inigualável pelos sofrimentos que causou I 112 2312 Mas Tucídides não se limita a esses argumentos iniciais para nos convencer da grandeza ou importân cia da guerra Mais imediatamente convincente é o impacto da obra como um todo com sua narrativa austera porém vivida que nos faz testemunhar as ações e os sofri mentos que registra Percebemos a grandeza da guerra porque sentimos a sua presença Esse sentimento é reforçado ainda mais pelo fato de Tucídides incluir fãlas políticas em discurso direto pelos próprios participantes Parece que ouvimos os oradores enquanto argumentam em nome da justiça ou invocam os deuses enquanto apelam para o amor pela liberdade ou pela glória imperial e enquanto alertam para as terríveis conseqüên cias de políticas equivocadas De fato esses discursos fazem a guerra parecer presente para nós Mas ainda mais importante apelam a nossas próprias preocupações morais e políticas e nos conclamam a reagir à guerra como fizeram os próprios antagonistas à sua luz A ordem da narrativa que a acompanha e sua escolha de ênfases também foram calculadas para despertar essas inquietações E é principalmente deste modo ao suscitar nossas próprias preocupações morais e políticas que Tucídides nos torna recep tivos a suas asserções quanto à grandeza da guerra e seu significado universal Os discursos no livro de Tucídides com sua seriedade morai e sua premência exortamnos a tomar partido a fiivor ou contra eles mas todavia todo leitor se emo ciona com o contraste entre a ousadia desses discursos e a própria reticência de Tucí dides que com certeza explicita algumas opiniões Mas na maior parte das vezes não nos diz o que desejaria que pensássemos das cidades em guerra e de seus dirigentes ou dos muitos discursos e ações que relata Ora esse silêncio não significa que Tucídides seja indiferente ou que não mais reaja aos homens e eventos como nos encoraja a fàzer com a aprovação e desaprovação Mostra sim que é um hábil educador político Pois a gravidade moral que provoca em nós permanece imatura não é suficiente para nos ajudar a fomentar o bemestar de nossas comunidades o que ele necessariamente quer ocasionar a menos que seja guiada pela sabedoria política ou nela culmine E uma vez que a sabedoria política consiste primordialmente no bom julgamento de situações particulares e inéditas não vem a ser tanto um assunto a ser ensinado como T u c íd id e s 7 5 Idem ibidem uma habilidade a ser desenvolvida por meio da prátíca Por conseqüência em vez de nos dizer se aprova ou não uma determinada política Tucídides nos pede para julgar mos nós mesmos e em seguida submeter nosso julgamento aos testes que a guerra proporciona Assim ensejanos ouvir discursos nas assembléias tanto a favor como contra alguma linha de ação e como aqueles reunidos na assembleia temos de assumir um posicionamento próprio de uma forma ou de outra sem orientações expressas Só posteriormente e por etapas como na própria vida política é que ficamos sabendo das decorrências das atitudes que foram de fiito tomadas mas mesmo assim é a nós primordialmente que cabe ponderar a sua real influência e fàzer as devidas inferências quanto à sua sabedoria Com certeza a seleção e ordenação dos detalhes narrativos por Tucídides juntamente com os seus juízos explícitos cujo peso é tão maior pela sua raridade ajudam a nos posicionar nessas reflexões a tal ponto que Hobbes seu tradu tor pode dizer que a narração em si secretamente instrui o leitor e mais eficazmente do que jamais se poderia fàzer por preceito Mas esses auxílios só frutificam quando aceitamos o desafio do livro para assumir nossas próprias posições e aprender com nossos próprios erros De fiito uma declaração introdutória como essa seria mais do que inútil se transmitisse a impressão de ser um modo de poupar esse esforço Ora é verdade como já observamos que a reticência de Tucídides não se esten de apenas a questões particulares tais como as relativas a políticas mas também e sobretudo às universais e isso apesar do fato de que os oradores em seu livro fàzem muitas e contraditórias alegações sobre as mais importantes dessas questões Entre tanto também aqui como veremos sua reserva não é um sinal de indiferença mas ao contrário um elemento importante em sua forma de educar seus leitores Porque posições equivocadas no que diz respeito a questões universais podem resultar em um padrão de decisões erradas específicas e a narrativa de Tucídides ajuda seus leitores atentos a perceber e assim a superar algumas dessas arraigadas fontes de erro Além disso os próprios argumentos com os quais os vários oradores sustentam suas ale gações universais muitas vezes contêm inconsistências que revelam dificuldades nas suas próprias posições Se analisarmos todas essas dificuldades como a nossa própria preocupação com os assuntos em questão nos compele a fàzer elas apontam na direção de uma compreensão mais adequada Em certas ocasiões Tucídides indica as suas pró prias respostas a essas induções universais em parte ao criticar a opinião equivocada de alguns dos líderes na guerra Mesmo nesses casos porém quando explicitamente orienta nosso raciocínio primeiro nos encoraja a tomar as nossas posições as quais po dem muito bem diferir da sua e abordar suas perspectivas por meio de nossa própria experiência com o livro Além disso os seus juízos explícitos são sempre incompletos e levantam dúvidas maiores que temos de sanar por nós mesmos Após seu breve relato introdutório da origem e desenvolvimento da civilização grega Tucídides principia sua narrativa da guerra em si pelo exame de suas causas Em sua opinião a mais verdadeira causa embora a menos manifesta no discurso foi que 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a s L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Richard Schlatter Ed Hobbes Thucydides New Brunswick Ruers Univeisity Press 1975 p 18 os atenienses ao se tornarem grandes e assim despertarem o medo compeliram os es partanos a entrarem em guerra Acrescenta todavia que também registrará as causas ou melhor como também podemos traduzir a mesma palavra grega as acusações que foram abertamente mencionadas I 2356 cf I 88 De fato Tucídides parece dedicar muito mais atençáo a essas causas citadas abertamente do que àquela que considera como mais verdadeira Essa impressão é um tanto enganosa porém uma vez que essas acusações diretas diziam respeito às instâncias do próprio crescimento do poder ateniense que Tucídides considerava como a mais verdadeira causa da guerra No entanto a principal justificativa para o seu procedimento é que nos ajuda a sentir o impacto dos primórdios da guerra como de fato se revelaram abertamente e em público Se essas aparências podem enganar como aliás Tucídides diz que ocorreu a sua apresentação nos encoraja a confirmar nós mesmos este fiito ao invés de simples mente aceitálo devido à sua autoridade Além disso só começando por essas aparên cias mais simples é que podemos apreciar devidamente o tema principal do estudo da guerra por Tucídides ou seja a justiça ou a justiça em sua relação com a compulsão A primeira acusação da guerra foi uma acusação contra Atenas por Corinto uma potência naval como a própria Atenas e um importante membro da Aliança Espartana ou do Peloponeso Os coríntios fizeram a acusação de que Atenas por auxiliar a colô nia coríntia de Córcira em uma batalha naval contra eles violou a trégua que ligava as alianças espartanas e atenienses I 552 cf I 44 Os atenienses tinham recentemente estabelecido uma aliança defensiva com Córcira que foi ameaçada pela guerra com Corinto apesar dos avisos dos coríntios de que isso provocaria uma guerra geral pois acreditavam que a guerra estava chegando em qualquer caso e não desejavam permitir que Córcira com sua grande marinha ficasse sob controle de Corinto A localização de Córcira na rota costeira para a Itália e a Sicília também foi um fator na decisão dos atenienses embora não nos seja dito se isso os preocupava mais de um ponto de vista de fensivo ou ofensivo Logo após esse primeiro embate com Corinto surgiu a ocasião de um segundo ataque de Corinto contra Atenas ao qual os atenienses responderam com um contraataque próprio A batalha naval contra Córcira terminara de modo decep cionante para Corinto e os atenienses temiam que os coríntios retaliassem persuadin do Potideia uma cidade que tinham colonizado mas que era íora aliada de Atenas a revoltarse contra a Aliança Ateniense Assim Atenas ordenou aos potideus que derru bassem uma de suas muralhas entregassemlhes reféns e expulsassem seus ministrados coríntios Os potideus no entanto recusaramse a atender a essas exigências o que os levou a ao contrário efetuar a revolta que os coríntios de fato encorajavam e que Esparta também estimulara ao prometer invadir o território ateniense se Atenas os atacasse Os coríntios enviaram um exército para ajudar na defesa de Potideia e quan do os atenienses por sua vez despacharam uma grande força de ataque travouse outra batalha em que atenienses e coríntios apesar da trégua geral combateram entre si Quando os atenienses que saíram vitoriosos dessa batalha deram início ao cerco de Potideia Corinto acusou Atenas de sitiar sua colônia com tropas coríntias dentro dela Os atenienses por sua vez acusaram Corinto de ter causado a revolta de um dos seus aliados tributários e de ter lutado abertamente de seu lado I 66 T u c íd id e s 9 Logo após ter começado o cerco a Potideia os coríntios convocaram seus aliados a Esparta onde acusaram os atenienses de ter violado a trégua e de fazer injustiça ao Peloponeso Os próprios espartanos convidaram os aliados a apresentar suas alegações de injustiça ateniense diante de uma assembleia de Esparta e ficamos sabendo que cer to número de cidades tinha acusações próprias contra Atenas O discurso de Corinto nessa assembleia que Tucídides apresenta em sua totalidade argumenta que as ações atenienses em Córcira e Potideia sáo apenas os exemplos mais recentes de uma longa e continuada política destinada a escravizar toda a Grécia Muitas cidades dizem os coríntios já haviam sido escravizadas por Atenas e ora conspirase até contra os aliados de Esparta que estão sendo privados de sua liberdade Para ajudar a transmi tir uma sensação de perigo para a Grécia os coríntios fazem uma descrição do caráter ousado habilidoso e aquisitivo dos atenienses uma descrição que resumem dizendo que os atenienses por natureza nem a si mesmos nem aos outros eles deixam ter tranqüilidade I 709 Os coríntios concluem instando os espartanos a invadirem a Ática antes que seja tarde demais para ajudar Potideia e as outras cidades Mais tarde o último orador nessa assembleia um éforo espartano também exorta seus concida dãos a não traírem seus aliados para os agressores atenienses A assembleia espartana em seguida resolve de forma irrefutável que os atenienses haviam violado a trégua e estavam cometendo uma injustiça e se preparam para pedir aos aliados que declarem guerra contra eles em comum I 8724 Parece então que a causa da guerra foram as injustiças atenienses e a ameaça de injustiças futuras contra os gregos e em parti cular contra os aliados de Esparta E essa impressão foi compartilhada informanos Tucídides pela grande preponderância do mundo grego cujas simpatias no início da guerra se inclinavam para Esparta especialmente porque esta alegava travar uma guerra de libertação II 845 Até mesmo o deus em Delfos prometeu aos espartanos que os ajudaria quer fosse chamado ou não assim sugerindo que o esforço de guerra espartano estaria a serviço de punir a injustiça ateniense I 1183 cf II 5445 Tucídides já nos disse no entanto que a decisão de Esparta de entrar em guerra e tentar esmagar o poder ateniense foi motivada menos por acusações dos aliados de Atenas do que por seu próprio receio Além disso sua narrativa do intervalo de 50 anos entre as guerras Persa e do Peloponeso tende a corroborar essa alegação pelo me nos na medida em que desvela a incapacidade de Esparta de se opor verdadeiramente à insuuração e ao rápido crescimento do império ateniense I 8911182 De acordo com isso o discurso de Corinto em Esparta é tanto uma queixa sobre a indiferença espartana quanto uma acusação contra Atenas e os coríntios até ameaçam abandonar 1 0 H is t ó r ia d a F iix is o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y NT As traduções do texto grego são baseadas em TUCÍDIDES História da Guerra do Peloponeso Prefécio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 Idem a aliança se Espana permanecer inativa Especialmente à luz dessa ameaça parece ser mais o temor de perder aliados do que o desejo de protegêlos quanto mais salvar o resto da Grécia da tirania ateniense que causa a transformação da habitual relutância espartana de travar a guerra E essa impressão será confirmada pelo comportamento posterior de Esparta durante a guerra em particular por seu tratamento de Platéia e seu acordo com Atenas para aceitar a Paz de Nícias Entretanto não importa a ausên cia de generosidade que possa ter havido nos motivos de Esparta para declarar guerra a agressão ateniense ainda parece ter sido responsável por sua eclosão A tese contra Atenas é mais fraca do que parece no entanto em pelo menos um aspecto Embora os coríntios e os espartanos acusassem os atenienses de ter violado a trégua entre eles esse aspecto de seu argumento parece ter sido um tanto espúrio A aliança defensiva ateniense com Córcira embora perturbadora não era nitidamente proibida de acordo com os termos do armistício e nem mesmo os coríntios alegaram que a truculência ateniense para com Potideia estivesse em desacordo com a trégua Além disso os atenienses ofereciam em conformidade com seus termos submeter to das as controvérsias a arbitragem o que os espartanos não ofereceram nem aceitaram Em grande parte Péricles o líder ateniense contou com esses fatos para convencer os atenienses a não cederem aos ultimatos tardios dos espartanos I 784 1402 1442 Mesmo o rei espartano Arquídamo que se opôs à guerra na assembleia de Esparta reconheceu que era ilegal entrar em guerra contra uma cidade que ofereceu arbitragem e advertiu que Esparta se declarasse uma guerra seria considerada responsável por tê la começado Mais tarde na verdade quando a peleja corria mal para eles os próprios espartanos passaram a acreditar que por sua recusa da arbitragem e outros delitos semelhantes tinham sido culpados de primeiro romper a trqa e assim deflsrar a guerra 1815 VII 182 cf IV 202 Tucídides entretanto não endossa essa crença espartana em sua própria cul pa nem a exoneração de Atenas que implica Segundo ele lembramos os atenienses compeliram os espartanos a entrar em guerra por causa do temor que seu crescente poder inspirava neles Embora o mais verdadeiro motivo dos espartanos para travar a guerra não mereça nossos elogios tampouco podem ser acusados de terem violado a trégua já que foram obrigados a isso cf IV 9856 Seu medo de Atenas debtouos sem alternativa cabível ou pelo menos era nisso que tinham fortes motivos para crer O que portanto nos leva de volta à nossa primeira impressão de que Atenas e não Esparta era a culpada de ter desencadeado a guerra Talvez o foco recaia ainda mais intensamente sobre a culpabilidade de Atenas devido ao modo como os atenienses responderam às acusações contra eles Por exem plo alguns atenienses que por coincidência estavam em Esparta por conta de outros assuntos públicos quando ouviram fàlar das acusações dos coríntios e dos demais contra Atenas solicitaram e receberam permissão para fàlar à assembleia em fàvor de sua cidade Manifestaramse não para se defender contra as acusações dos aliados como se os espartanos fossem juizes em um tribunal de justiça mas para dissuadir os espartanos de tomarem uma decisão precipitada de entrar em guerra O cerne de T u c íd id e s 11 sua aimentação potém era a alação de que seu império náo merecia tanta ani mosidade mas que talvez náo fosse sem razão ou sem direito que o odiassem Para fundamentar essa afirmação aipunentaram terem sido obrados a íimdar e oqiandir o império em primeiro l i pelo temor e depois também pela honra e mais tarde ainda por interesse compulsões que depois mencionam juntas como as maiores coisas Contudo se as ações empreendidas em prol da honra e do interesse bem como aquelas realizadas por temor podem ser consideradas compulsórias e escusadas por esse motivo existe algo que seja proibido Desta forma então a defesa do seu império pelos atenienses de Êito não constitui defesa uma vez que ataca o próprio pressuposto de todas as acusações ou seja de que haja delito voluntário Os atenienses acrescentam não serem os primeiros a ceder à tentação do império mas ao contrário sempre esteve implícito que os mais fracos fossem governados pelos mais fortes e aquele que tem a possibilidade de conquistar algo pela força jamais até então fora dissuadido por con siderações de justiça Esses atenienses parecem ter acreditado que a espantosa rudeza de sua defesa intimidaria os espartanos visto que apenas uma cidade poderosa ousaria pronunciarse dessa forma e que assim dissuadiriam Esparta da guerra Em seguida porém afirmam governar de uma forma mais justa do que seu poder exige ou do que outros fariam em seu liar e também alertam os espartanos pata que não violem o ar mistício mas resolvam suas diferenças por meio de arbitnm Ora como essas v concessões à justiça talvez insinuem o poder dos atenienses não era tão grande que lhes permitisse forçar Esparta a tolerar seu império bem como mdo o que feziam para aumentálo somente por temor desse poder ainda assim admitiram abertamente que a justiça jamais refrearia sua busca por tal poder no foturo Não é de admirar então que esse discurso não tenha conseguido evitar a guerra pois revela nitidamente quais aspectos de Atenas tanto irritavam e amedrontavam a aliança espartana I 7278 O arrazoado oferecido em Esparta pelos atenienses em favor do império viuse repetido em várias ocasiões durante a guerra pelos portavozes de Atenas Péricles cuja liderança conduziu os atenienses na peleja dizlhes mais tarde quando prin cipiam a se cansar do combate que o seu império é como a tirania cuja imposição é injusta mas cujo abandono é perigoso II 6323 Péricles também lhes oferece a expectativa de vantagens sem limites proporcionadas pelo império e os exorta a defendêlo apesar do ódio que desperta em nome da honra que lhes traz e especial mente por causa da sempre lembrada glória no futuro II 6213 6436 Muito mais tarde na guerra essa tese imperialista é repetida pelos embaixadores atenienses de uma força armada que já está presente na pequena e independente ilha de Meios ao tentar 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 NT As traduções do texto g r sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefacio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de Sáo Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 10 Idem 11 Idem persuadir seus líderes a se submeterem voluntariamente a seu domínio Esses embaixa dores nem sequer simulam justificar o império de Atenas ou a sua decisão de subjugar Meios porque como afirmam saber a justiça não tem lugar no julgamento humano a menos que um poder igual assim obrigue ambos os lados V 89 E quando os líderes de Meios persistem em sua recusa de capitulação fimdamentada em sua confiança de que os sustentará a boa fortuna derivada da vontade divina pois são homens pios enfíentando homens injustos os atenienses replicam assim Quanto à benevolência divina esperamos que também nâo nos ÊJte Realmente em nossas ações náo nos estamos afiistando da reverência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no trato com elas Dos deuses nós supomos e dos homens sabemos que por uma imposição de sua própria natureza sempre que podem eles mandam Em nosso caso portanto não impusemos esta lei nem bmos os primeiros a aplicar os seus preceitos encontramola vigente e ela vigorará para sempre depois de nós pomola em prática então convencidos de que vós e os outros se detentores da mesma força nossa agiríeis da mesma íbrma V 10512 Esse diálogo entre os embaixadores de Atenas e os líderes de Meios é a mais co nhecida passem em Tucídides Todavia as declarações dos atenienses em Meios são apenas uma revelação e esclarecimento mais amplos daquilo que por muito tempo fora o pensamento central do imperialismo ateniense e como tal oferecem o mais poderoso incentívo para vermos a guerra como uma batalha contra a injustiça ateniense Se examinarmos a guerra a partir dessa perspectiva antiateniense estaremos pre parados para perceber e nos emocionar com as duas justaposições mais dramáticas na obra de Tucídides bem como para perceber o tema unificado que percorre a obra A Oração Fúnebre de Péricles na qual celebra a beleza do poder ateniense e ainda se vangloria de que em toda parte plantaram monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizeram é imediatamente seguida por uma terrível e devastadora peste em Atenas II 3454 E o Diálogo Mélio que comove ainda mais porque os ate nienses não tendo conseguido convencer os mélios posteriormente massacraram seus homens adultos e escravizaram suas mulheres e crianças é imediatamente seguido pela expedição à Sicília na qual a ambição ateniense finalmente foi longe demais e terminou em um desastre que praticamente selou a condenação final de Atenas Desta forma Tucídides nos convida a pensar tanto sobre a peste como sobre o desastre da Sicília juntamente com a derrota final de Atenas na guerra como os fadados castigos por sua insolência e injustiça cf 1 2336 O próprio Tucídides entretanto parece não ter compartilhado desta interpretação da guerra como um castigo divino ou cósmico de Atenas Embora se recuse a especular sobre as causas da peste diznos que esta também se disseminou na África e na Ásia T u c íd id e s 1 3 12 Idem Ibidem 13 Idem Ibidem 14 Idem Ibidem antes de chegar a Atenas e praticamente ridiculariza a credulidade daqueles que presu miam ter sido a peste profetizada por um antigo oráculo II48 5413 cf V 2634 Quanto à expedição à Sicília Tucídides diz que esta apesar de seu descomedimento poderia ter obtido êxito com uma liderança melhor e mais apoio doméstico para o exér cito II 6511 cf VI 1534 Além disso uma vez que a narrativa se interrompe cerca de seis anos antes do íinal da guerra com os atenienses tendo recentemente estabelecido um r m e superior e acabado de lograr uma importante vitória naval a qual restaurou sua confiança de que ainda poderiam prevalecer contra Esparta somos levados a inda gar se há qualquer sentido em supor predestinado o resultado final da guerra Contudo mesmo sem considerar a questão acerca do que causou os padecimen tos atenienses quanto mais se lê Tucídides menos se julga que o sofrimento de Atenas fosse justo ou merecido Ainda de modo mais geral a nossa primeira reação ao livro como um todo não é a satisfrção de ver feita justiça mas é muito mais provável que seja um sentimento de tristeza Esta consternação surge em grande medida pelo me nos de um sentimento envolvente de que a derrota de Atenas não é a vitória da justiça mas que a própria justiça está entre as principais vítimas da guerra Quer estejamos ou não atentos ao to de que a derrota de Atenas veio tarde demais para salvar os mélios e as demais vítimas indefesas do poder ateniense não podemos deixar de notar que os espartanos vitoriosos se tornaram se é que não o foram sempre pelo menos tão opres sores quanto os atenienses Por exemplo foram os espartanos e seus aliados que ataca ram Platéia a despeito do juramento que fizeram em homenagem ao heroísmo dos plateus na Guerra Persa de proteger a independência de Platéia apesar de a cidade ter sido coída a aliarse a Atenas pela própria indiferença de Esparta à ameaça da vizinha Tebas Ainda depois de sitiar a cidade os espartanos mataram todos os plateus que se renderam não porque acreditassem nas selvagens acusações feitas contra eles pelos tebanos mas quase totalmente como diz Tucídides a fim de iradar aos tebanos os quais consideravam vantajosos na presente guerra III 68 cf II 7174 III 551 Mais tarde a fim de recuperar apenas três centenas de prisioneiros incluindo uma centena ou mais de membros de suas famílias imediatas os espartanos concordaram com a chamada Paz de Nícias em que traíram entre muitas outras as cidades que haviam contado com as generosas promessas do líder espanano Brasidas para a revolta contra Atenas Porém esses são apenas dois dos muitos exemplos que confirmam o que os embaixadores atenienses em Meios disseram sobre os espartanos que em suas relações com os outros eles do modo mais ostensivo sustentam que tudo o que é vantajoso é justo e que tudo o que é agradável é nobre V 1054Todavia não são apenas os es 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 CompareseV 1858 e 321 com IV861 11434 1203 Ver também IV 81210867117e V 143151 16 NT As traduções do texto grego são baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefócio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Pãulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 partanos e os atenienses cujo comportamento fornece indícios da debilidade da justiça na guerra Para citar apenas um exemplo revelador em seu extenso catálogo das muitas cidades e nações que lutaram contra a Sicília ou em fiivor dela diz Tucídides de todas elas em geral que não tomaram partido por causa da justiça ou de parentesco tanto quanto por causa de vantíens ou por compulsão VII 571 ss Os homens desconsideraram por outro lado o aparente poder de restrição da lei ou da justiça mesmo quando tal comportamento não atendia a interesses próprios exceto talvez para satisfazer a uma paixão imediata É possível compreender tal ati tude pelo menos durante a peste em Atenas quando a iminência da morte libertou os homens de todas as restrições provenientes do temor dos deuses ou de qualquer lei humana e as pessoas tampouco nada viam de errado em colher rápido os seus lucros e com vistas ao prazer pois consideravam efêmeros tanto suas vidas quanto seus bens II 53 É mais difícil entender porém os sanguinários mercenários trácios que mas sacraram ao retornar de Atenas para casa os homens as mulheres as crianças e até mesmo os animais na pequena cidade de Micálessos Foi esta uma calamidade diznos Tucídides tão digna de ser lamentada dadas suas proporções quanto tudo que ocor reu na guerra VII 2945 303 E o mais horrível de tudo é o relato de Tucídides sobre a guerra civil em Córcira e das guerras civis que em seguida convulsionaram toda a Grécia A causa dessas revoltas foi o desejo de dominar enraizado na ganância e no amor pela glória mas após algum tempo a violência pareceu ter adquirido vida própria A vingança valia mais do que não ter padecido pessoalmente e seu alcance não via limites na justiça e nas vantagens para a cidade mas apenas no prazer imediato de qualquer facção que tivesse a supremacia Os cidadãos que se mantiveram neutros aliás foram mortos pelos partidários de ambos os lados quer porque não se juntaram a eles quer pela inveja de que pudessem sobreviver III 82 Este espetáculo triste da impotência da justiça em face do egoísmo e da violência não é apenas uma característica da Guerra do Peloponeso Tucídides mostra por meio de seu relato dos tempos antigos tanto na Grécia como na Sicília e por sua descrição das potências emergentes na Macedônia e na Trácia que o destino da justiça nessa guerra já fora seu destino antes e o mesmo se dava em outras partes 1217 II 9799 VI 25 Acima de tudo nos diz que episódios atrozes como os que ocorreram nas cidades durante as guerras civis haviam acontecido antes e irão sempre suceder no futuro enquanto permanecer igual a natureza do ser humano III 822 Essa afirma ção intransigente sobre a natureza humana é o mais claro eco da promessa feita por Tucídides em sua abertura de revelar a verdade completa e inalterável sobre os assun tos humanos E de fato a lição mais inequívoca da obra como um todo tanto para estadistas como para outros é a inquietação de que enquanto perdurar nossa espécie teremos de conceber uma natureza humana que vezes sem conta sempre que lhe for dada a oportunidade suplantará as frágeis restrições da lei e da justiça Tucídides não afirma no entanto que todos se perverteram de igual maneira como resultado das T u c íd id e s 15 17 Idem Ibidem guerras civis E é verdade que os espartanos por exemplo ao contrário dos atenienses não haviam explorado a sua supremacia na Grécia para instituir um império e que se tornaram nas palavras de Tucídides prósperos e moderados ao mesmo tempo tal como os habitantes de Quios Mas também é verdade que como Tucídides nos diz mais tarde espartanos e quianos superaram todas as outras cidades em número de escravos VIII 244402 Em outras palavras a moderação dos espartanos qualquer que fosse ela nos assuntos externos enraizase em seu receio de uma revolta dos escravos Seu comportamento não contradiz a regra geral da impotência da lei e da justiça em si mas por isso pouco fez para aliviar a tristeza com que primeiro resumos à obra de Tucídides como um todo Para os atenienses no entanto os quais afirmaram antes do início da guerra que nunca ninguém fora dissuadido da ambição por considerações de justiça o que chamamos imprecisamente de debilidade da justiça na guerra teria sido menos uma causa para tristeza do que ulterior confirmação de sua tese fimdamental de que o mais forte deve sempre subjugar o mais fraco Os atenienses apoiaram essa tese e assim rejeitaram a dedicação à virtude tal como tradicionalmente entendida II 632 V 101 alegando ser tal virtude incompatível com os desejos naturais e uigentes do homem por alguma segurança pela glória c por vantagens Ora podemos pensar que os atenienses absolveram com demasiada rapidez o comportamento passado dos po derosos bem como o seu próprio em termos de compulsão natural pois mesmo se aqueles que têm poder de conquistar ou dominar sempre o fizeram não se s e daí que tenham sido compelidos a isso Mas os atenienses não dependiam desses indí cios inadequados para sua aipunentação Para ver isso de modo mais claro temos de examinar de novo o que expuseram os embaixadores atenienses no Diálogo Mélio no qual a grande superioridade de suas forças encorajouos a grande franqueza Os atenienses tencionavam incorporar Meios a seu império e disseram aos dirigentes mélios que não deveriam ter esperança de dissuadilos ao utilizar o aiumento de que não cometeram qualquer injustiça contra Atenas Pois conforme sustentam os ate nienses os próprios líderes mélios também sabem que a justiça se decide no discurso ou avaliação humanos fimdamentada em um poder igual de compelir à medida que os superiores fezem o que podem ou o que for possível e os fiacos cedem V 89 Os mélios entendem como indicam na sua resposta que estão sendo proibidos de felar de justiça e comandados a limitarse a considerações de interesse se desejam que os atenienses os ouçam Todavia os mélios compreendem mal os atenienses que querem dizer ao contrário que não existe justiça e portanto nenhuma possibilidade de íàlar realmente dela e que não há necessidade de proibir tal discurso em qualquer situação em que o bem de uma pane for incompatível com o da outra Pois não somos todos obrados se formos sensatos a buscar o nosso próprio bem Afinal não reconhece o próprio aigjumento da justiça que este bem tem o poder de compelir ao alegar que é do nosso próprio interesse pelo menos em longo prazo ou no sentido mais verdadei ro ser sempre justo Os mélios de qualquer modo mais tarde no diálogo quando acusam os atenienses de não serem justos também alertam que Atenas não conseguirá 1 6 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoifncA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y subjugálos uma vez que eles que sáo livres do pecado serão auxiliados pela fortu na dos deuses bem como por seus parentes os espartanos V 104 Com efeito a alegação de que a justiça atende sempre aos nossos próprios interesses está contida na própria noção de justiça uma vez que pensamos em justiça como o bem comum e o bem comum deveria incluir o nosso próprio Os próprios mélios na verdade em sua primeira tentativa de contestar com base no interesse e não na justiça também usam como argumento pelo menos implicitamente essa noção de justiça Pois de fato afirmam ser útil para os atenienses que podem eles mesmos estar em perigo algum dia não invalidar o bem comum mas dentar a equidade e a justiça ficarem a serviço daquele que está em perigo e permitir que se beneficie ao menos em parte de ideias não totalmente precisas V 90 Os atenienses no entanto são capazes de demonstrar que não é de seu próprio interesse permitir que os mélios permaneçam independentes Mais genericamente a tese ateniense reconhece que um bem comum ou melhor uma coincidência de interesses nem sempre pode ser encontrado em todas as situações entre os homens Além disso estipula que nos casos em que essa coincidência não pode ser encontrada somos obrigados uma vez que entendemos a situação a buscar o nosso próprio bem enquanto distinto daquele de outrem porque é oneroso para nós não fazêlo e mesmo o contraargumento em nome da justiça deve no final das con tas admitir que a verdadeira justiça não se poderia opor à força de nosso desejo natural por nosso bem Além disso se formos compelidos pelas razões indicadas a buscar o nosso próprio bem também seremos compelidos a buscar tudo o que acreditamos ser o nosso próprio bem embora na verdade nos seja custoso avaliar mal o que seja este realmente Ora os atenienses acreditavam ser bom para eles conquistar e expandir seu império mesmo correndo o risco de guerra com Esparta e em última análise é por esta razão apenas que não assumiam qualquer culpa por fazêlo Somos tentados a rejeitar esse argumento ateniense em sua totalidade em espe cial porque à sua enunciação pelos embaixadores em Meios seguese o massacre dos cidadãos mélios Mas essa reação seria inadequada e não simplesmente porque os assassinatos e não meramente as ameaças dessas mortes pelos próprios embaixadores se os mélios recusassem a submissão não eram conseqüências necessárias ou apropria das do próprio argumento Pode muito bem ser verdade que o argumento ateniense contribuiu para a sua disposição de conquistar e manter um império Mas o mesmo é também verdadeiro a respeito dos atenienses ou pelo menos dos melhores entre os seus líderes que demonstraram extraordinária preocupação em ser dignos de seu domínio imperial e em serem nobres Com efeito apesar das evidências em contrário T u c íd id e s 1 7 18 NT As traduções do texto gro sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefacio de Helio Jaguaribe Trad do gro de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de Sáo Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 19 Considerese V 253 Contrastese porém com VII 571 sua tese imperialista em si em grande medida é o resultado de sua preocupação com a justiça e com a nobreza pois são estas as preocupações que lhes impuseram a con fiança em si mesmos na defesa do império defesa esta sem as hipocrisias de costume Além disso pareceu aos atenienses que aceitar a sua defesa do império e do egoísmo não era necessariamente o mesmo que repudiar o que é verdadeiramente mais sublime ou mais nobre Pode muito bem então tornarse uma questão de imenso interesse para nós verificar por que razão os atenienses acreditavam ser nobres ou de modo mais amplo superiores e examinar se é verdadeira sua concepção de si mesmos Os atenienses falam de várias formas acerca de sua superioridade e em especial de sua superioridade como indivíduos sobre os cidadãos de outras cidades Os ate nienses em Esparta na defesa de seu império unificam o argumento da compulsão que escusaria igualmente qualquer outro poder dominante com a alegação de que eles em particular são dignos de dominar em grande parte com base ao que parece em sua inteligência e zelo superiores Os oradores atenienses não simulam natural mente que essas excelências que contribuíram tanto para a vitória grega na Guerra Persa estejam ainda a serviço da liberdade da Grécia se é que alguma vez o estiveram Contudo não deixam de tratálas como algo que lhes assegura o direito a seu império ou pelo menos como fundamento para merecer menos ódio por causa dele I 732 744 751 762 O que apregoam os atenienses em Esparta é desenvolvido por Pé ricles na sua Oração Fúnebre na qual fala do povo ateniense como amantes da beleza e da sabedoria Além disso elogiaos por seu ânimo para a bravura em combate sem necessidade de recorrerem a longo e árduo treinamento e de modo mais amplo por sua participação ativa na vida política uma vida que não demanda em Atenas que se negligenciem interesses privados mas ao contrário completa o desenvolvimento gracioso dos mais elevados poderes multifacetados do indivíduo De acordo com Pé ricles o poder ateniense consiste nas realizações de cidadãos tão extraordinários que somente Atenas não dá espaço a suas cidades subalternas para a acusação de que não são governadas por homens dignos II 3741 Que os atenienses escolheram livremente empregar sua inteligência e seus outros dons em fàvor da cidade como também que estejam prontos a arriscar suas vidas por ela é um aspecto crucial da sua visão de si mesmos como nobres Péricles pode desper tar o seu zelo patriótico ao pedirlhes que não considerem só pela argúcia as tão conhe cidas vantíens que resultam da resistência aos inimigos mas sim que contemplem o poder da cidade e se tornem amantes dela e estejam preparados como seus amantes a imitar os soldados caídos que lhe fizeram a oferta mais nobre sua virtude II 431 Péricles emprega as palavras nobre ou belo em referência às mortes dos soldados 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 NT As traduções do texto grego são baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefacio de Helio Juaribe Trad do gregp de Mário da Gama Kuiy 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 porque respeita a sua dedicação para com Atenas considerando que ela transcende a mera astúcia ou o egoísmo Da mesma forma quando afirma implicitamente que a própria Atenas é tão bela e nobre que inspira o amor erótico Péricles o faz não ape nas em razão do seu poder mas também por causa do que percebe como a sua supe rioridade mesmo em relações internacionais à astúcia egoísta Isso não significa que creia que a política ateniense seja guiada por questões de justiça para repetir Péricles se vangloria de que Atenas plantou em toda parte monumentos imorredouros de males assim como de bens Mas Péricles afirma que os atenienses são os únicos que fa zem o bem a outros mais por uma confiança sem medo na sua própria liberalidade do que por cálculos de vantagens II 405 414 E mesmo quando íàla de monumentos imorredouros de males e bens tem em mente os males que Atenas sofreu bem como o mal que fez a outros É precisamente a ausência de limites para as mais fundamentais ambições de Atenas e sua disposição para sofrer enormemente para os fins mais subli mes que constituem para Péricles uma prova de sua nobre superioridade a simples cálculos de ganhos e perdas Especialmente como indivíduos em sua relação com a cidade mas mesmo como uma cidade em relação a outros ou pelo menos assim pa recia aos seus próprios olhos os atenienses deram livremente de si para fins nobres e sublimes E nesse contexto não devemos esquecer que os embaixadores atenienses em Esparta falaram da laudável moderação de sua cidade no uso de seu poder sobre seus súditos moderação que Atenas praticara muito embora assim parecesse incentivar queixas e desta forma tornando mais difícil governar I 763775 Porque se consideravam nobres e dignos de governar os atenienses também conce biam a honra ou glória que previam a partir de seu império não apenas como um grande bem para si mesmos mas também como algo maior Péricles havialhes dito que fora sensato almejar um império sem limites apesar do ódio que isso despertou alegando que o ódio seria de curta duração enquanto o brilho do império e sua glória futura ficariam na memória para sempre Mas Péricles vai adiante acrescentando que essa glória seria algo nobre com o que quis dizer em parte um reflexo de sua nobre superioridade em relação a um oísmo estreito ou simplesmente calculista II 6456 Em harmonia com a postura dos atenienses para com a honra e a glória quando os seus embaixadores em Esparta discorreram sobre as maiores coisas que os compeliram a conquistar e expandir seu império mencionavam a honra como distinta de e aparentemente irredu tível a meras vantagens I 753 762 É verdade que mais tarde Alcibíades felou de seu desejo de honra como um aspecto do seu desejo por vantagens Mas mesmo no seu caso como Tucídides deixa claro o general procurou a honra não apenas como a maior ou mais agradável vantagem mas como sua nobre recompensa para nobres feitos por feitos que a seus olhos traziam tanto uma grandeza intrínseca quanto vantagem para a cidade como um todo VI 1613 1656 cf VI 152 Que os atenienses fossem excepcionalmente nobres ou admiráveis não era apenas a sua reivindicação sobre si mesmos Mesmo os hostis coríntios a fim de alertar os seus T u c íd id e s 1 9 21 Idem Ihidem parceiros espartanos quanto ao perigo de Atenas tiveram de elogiar a maneira atenien se e disseram entre outras coisas que os atenienses usam seus corpos que lhes são por demais estranhos para o bem da cidade e sua inteligência que lhes é mais própria a fim de fàzer algo em seu fevor I 706 Ora é verdade que os coríntios tinham um incentivo para exagerar o grau de zelo dos atenienses tal como Péricles e os demais ora dores atenienses tinham seus próprios incentivos para o exíero no elogio da beleza e da glória de Atenas Mas a verdade sobre os atenienses como fica evidente em seus feitos é de certa forma ainda mais bela do que os esplêndidos mas claramente presunçosos discursos de Péricles nos levariam a crer Logo no início da guerra por exemplo duas das vitórias navais de Fórmion contra firotas do Peloponeso imensamente maiores no Golfo de Corinto deram brilhante testemunho de sua ousada e inteligente liderança e da iniciativa zelosa dos marinheiros atenienses II 8392 Mais tarde vemos uma manifestação do melhor da democracia quando Demóstenes num momento em que nem sequer era ainda oficial corajosamente propôs fortalecer Pilos na porção conti nental do Peloponeso e persuadiu as tropas atenienses a fàzêlo simplesmente porque não queriam permanecer ociosos enquanto esperavam por ventos fiivoráveis Essa ação que foi seguida por mais instâncias da habilidade de Demóstenes e do valor ateniense conduziu à inédita rendição de 300 espartanos e assim permitiu que Atenas encerrasse a primeira fese da guerra em condições fiivoráveis IV 2452 cf IV 641 O aspecto mais admirável da democracia ateniense fica também evidente no desenlace de uma rebelião em Mitilene que Atenas esmagara após um longo cerco Embora os atenienses tivessem inicialmente decidido pela pena de morte para todos os cidadãos do sexo masculino e até mesmo enviado no dia seguinte um navio para comunicar essas ordens mudaram de ideia Ponderaram que fora um decreto cruel e poderoso ou seja excessivo destruir a cidade inteira e não somente os responsáveis pela rebelião Consequentemente realizaram uma segunda assembleia naquele mesmo dia na qual decidiram não matar a grande maioria dos mitilênios Um segundo navio íbi enviado de imediato e em parte graças ao entusiasmo de seus remadores e à relutância dos que estavam no primeiro navio as novas ordens chiaram a tempo de salw Mitile ne da aniquilação A mudança de ideia dos atenienses nessa ocasião é um exemplo sem precedentes pelo menos durante a guerra de um povo inteiro demonstrando brandura de caráten A aigúcia dos atenienses não lhes permitiria crer no argumento proposto por Clêon na assembleia de que a justíça e x a punição de toda Mitilene A mesma sensi bilidade à justiça e à nobreza que impulsionou os atenienses a defenderem seu império e a íàzêlo com tal ausência de hipocrisia também estava na raiz de seu comportamento eminentemente moderado e relativamente decente para com Mitilene III3649 No entanto o exemplo mais esplêndido da nobreza ateniense é aquele em que Atenas se mostrou mais descomedida ou seja a expedição contra a Sicília Incorporar a Sicília a seu império sempre foi um sonho ateniense um sonho que Péricles mesmo havia nutrido ao fàlar aos atenienses de todas as infinitas possibilidades de sua supre 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 2 Idem Ibidem macia sobre o mar Todavia Péricles alertou também contra a tentativa de expandir o império durante a guerra com Esparta e teria presumivelmente se oposto à expedição contra a Sicília se tivesse vivido como açodadamente prematura A concepção que Péricles tinha de Atenas era de uma cidade que amava a nobreza mas com parcimônia ou economia enquanto a expedição contra a Sicília seria um esbanjamento dispen dioso e constituía um risco sem precedentes Ainda assim o próprio Péricles teria de admitir que havia algo especialmente belo mesmo que náo a beleza da saúde nesta mesma munificência Todos os atenienses de acordo com Tucídides apaixonaramse pela expedição contra a Sicília O amor erótico que Péricles apenas solicitara da comu nidade ateniense apoderouse dela de fato na véspera da campanha da Sicília E os homens no auge da vida foram guiados não por um desejo de riqueza ou poder ou mesmo de glória mas por um anseio pela visão distante e contemplação VI 243 Tampouco devemos desconsiderar inteiramente como mera simulação as declarações dos atenienses de que seu objetivo na Sicília era ajudar os seus irmãos de raça os le ontinos e seus aliados egesteus VI 61 1812 191 Além disso quando a expedição inicial se deparou com graves reveses e os peloponesos também causavam sofrimento em casa pela ocupação de um forte próximo a Atenas os atenienses não só persevera ram na Sicília mas enviaram uma segunda frota quase tão grande quanto a primeira Ninguém diznos Tucídides poderia ter acreditado de antemão que tal tenacidade fosse mesmo possível E mesmo após a terrível derrota de Atenas na Sicília a cidade demonstrou uma obstinação em travar a guerra com Esparta que surpreendeu todo o mundo grego A prosperidade de Esparta era de fato mais moderada do que a de Atenas Mas nenhuma outra cidade sequer rivalizava com Atenas como se vê acima de tudo na campanha da Sicília e no período que se seguiu pela magnificência de sua ambição e por seu vigor na adversidade A campanha da Sicília terminou em fracasso Péricles entretanto assegurara aos atenienses anos antes que seriam famosos no futuro por terem dominado o maior dos impérios gregos muito embora falhassem em seus objetivos imediatos na guer ra O insucesso asseverou ele fora sempre possível pois como disse ainda todas as coisas por natureza também decaem II 643 Na verdade a consciência iluminada de Péricles de que tudo deve ao fim e ao cabo entrar em declínio parece ter ajudado a alimentar sua crença de que os atenienses estariam agindo de maneira sensata ao buscar a glória imorredoura como o maior bem II 6456 e contexto Lembramos também que Péricles construiu monumentos imorredouros até mesmo dos insucessos atenienses Todavia é difícil comemorar a derrota de Atenas na campanha da Sicília T u c íd id e s 21 23 VI 243 cf I 14351441 II 622 657 e também 401 24 NT As traduções do texto grego sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefácio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 25 V III12 245 cf VII 283 e 422 muito embora este fosse o mais memorável e de certa forma o mais nobre dos fra cassos de Atenas e náo se pode deixar de observar que aqui pelo menos a busca da glória imperial foi imprudente e não valeu seu terrível preço Pois não só percebemos a magnitude do sofrimento do exército mas também divisamos uma fealdade em Ate nas que emerge como a causa da sua derrota Apesar da surpreendente perseverança de Atenas em uma campanha ousada que o próprio Tucídides considerava exeqüível todo o exército na Sicília foi destruído por causa da busca míope de interesses particu lares ou que pareciam ser interesses privados em detrimento do público Em seu elogio a Péricles Tucídides atribui a derrota ateniense na guerra e na Sicília especificamente às ambições particulares de honra e de ganho ambições que não se refrearam mais após a morte de Péricles pela orientação inteligente e cheia de espírito público do cidadão preponderante II 65712 Náo mais existia a harmonia entre as ambições privadas dos líderes e o bem público que tinha sido a característica da Atenas de Péricles Essa análise íàz lembrar uma das acusações de Nícias em sua tentativa de dissuadir os atenienses da campanha siciliana de que seu c o l coman dante Alcibíades exortavaa por motivos totalmente egoístas VI 122 Ora podese dizer em defesa de Alcibíades que sua ambição privada pelas honras e riquezas deri vadas da expedição à Sicília estava em plena harmonia com os desejos da assembleia ateniense Mas é preciso acrescentar que a vontade do povo tal como expressa na assembleia não era a verdadeira medida dos interesses da cidade e não apenas porque os homens reunidos desconheciam esses interesses Que mesmo o povo ateniense subordinasse o bem público a uma espécie de in teresse privado tornase evidente sobretudo em sua selvagem reação às mutilações das estátuas de Hermes que ocorreram quando estava sendo oianizada a partida para a Sicília Os atenienses acreditavam que essas mutilações eram um mau presságio para a expedição e também embora pouco plausível que foram realizadas como parte de uma conspiração contra o povo VI 27 Alguns dos atenienses podem ter acreditado que mereciam fracassar na Sicília ou que indivíduos tirânicos conspirassem contra eles como um castigo por serem tuna cidade tirânica Em todos os casos seu medo mór bido de conspirações oligárquicas ou tirânicas alimentava algo que foi para eles uma paixão incomum pela vingança de ofensas contra os deuses Prenderam muitos homens respeitáveis e até mataram alguns deles somente por terem sido acusados Chegaram a trazer de volta Alcibíades de seu comando na Sicília para enfrentar a acusação capital de ter profanado os mistérios isso também alegaram relacionado a uma conspira ção contra o povo VI 53 601611 Ora havia motivos com certeza para suspeitar Alcibíades de ter ambições tirânicas e o general traiu Atenas para Esparta depois de ter fugido da acusação No entanto era o mais competente general de Atenas e sua destituição do comando ateniense juntamente com os hábeis conselhos que deu a Esparta foram a causa direta do fiacasso de Atenas na Sicília O povo ateniense ou mais precisamente a classe de atenienses em sua maioria pobres que se considerata toda a comunidade estava tão ansiosa para conquistar a Sicília que os seus concida dãos que se opuseram à campanha temiam erguer as mãos contra a campanha E esses 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y atenienses não se dissuadiram da expedição pelo que eles próprios consideravam um mau presságio Todavia esses mesmos atenienses zelavam tão pouco pela segurança do exército ou até mesmo pela sobrevivência da cidade na guerra em comparação com seu próprio domínio dentro dos muros da cidade que tentaram condenar à morte seu general mais capaz por uma impiedade que ele pode ou não ter cometido Quanto ao perigo de que o sucesso na Sicília pudesse auxiliar Alcibíades a se tornar um tirano no futuro este é um risco que a democracia ateniense teria de aceitar como um preço pela conquista da Sicília Além disso Tucídides indica em uma aparente digressão que os tiranos atenienses anteriores tinham praticado virtude e inteligência durante a maior parte de seu domínio e que respeitaram a maioria das leis costumeiras incluindo espe cialmente as observâncias sagradas VI 5446 cf VI 244 Esse comportamento está em contraste gritante daro ao do povo em geral que estava então tomado por um partidarismo ingênuo e cujas ações eram ainda mais insensatas porque aparentemente acreditavam que a sua principal inquietação dizia respeito a toda a cidade e aos deuses De acordo com tudo isso Tucídides conclui que não era Alcibíades mas ao contrário muitos entre os atenienses cada um dos quais privadamente irritado com suas práticas que provocaram a queda da cidade VI 1534 cf 11 65810 ós Alcibíades ser dispensado da Sicília um dos dois generais atenienses restan tes era Nícias um homem moderado e piedoso que se havia oposto à expedição mas em cuja lealdade de qualquer forma os atenienses acreditavam poder confiar Tucídi des revela sua própria simpatia por Nícias comentando por ocasião de sua rendição e morte nas mãos dos siracusanos que era ele quem menos merecia entre os gregos durante o meu tempo chegar a esse grau de infortúnio por causa de sua completa devoção à virtude tal como estabelecido pelo costume VII 865 Esta observação no entanto pode surpreender alguns leitores uma vez que o relato de Tucídides já indicou que as próprias fiquezas de caráter e julgamento de Nícias desempenharam um papel relevante na derrota de Atenas Vejamos então algumas das maneiras pelas quais Nícias contribuiu para o fiacasso de Atenas e então estaremos numa posição melhor para explicar a aparente incoerência entre a narrativa de Tucídides e seu julga mento explícito A esperança infundada de Nícias de que pudesse impedir a expedi ção sobre a qual os atenienses já haviam decidido junto com seu desejo de navar com a maior segurança possível se fosse obrigado a partir levouo a aconselhar os atenienses a enviarem uma força muito maior do que pretendiam Sua tátíca não con suiu impedir a expedição mas teve sucesso em persuadir os atenienses a enviarem um exército maior Na verdade foi só após os conselhos de Nícias teremlhes infun dido certeza na segurança da expedição que se apaixonaram por ela A preocupação T u c íd id e s 2 3 26 NT As traduções do texto grego sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefácio de Helio Jsuaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Esrado de Sáo Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 do relutante Nícias com a segurança e com a sirança de sua reputação como um general bemsucedido foi assim diretamente responsável pelo tamanho do investi mento ateniense na Sicília bem como pelo seu entusiasmo VI 1922426 Todavia o mais grave e mais revelador dos erros de Nícias ocorreu muito mais tarde na campa nha quando mesmo com os reforços de Demóstenes os atenienses não conseguiram capturar Siracusa Os navios e suas tripulações deterioravamse de forma constante o inimigo ganhava força e era inequívoco que os atenienses deveriam voltar para casa imediatamente enquanto sua superioridade naval ainda o permitisse Mas Nícias não estava disposto a regressar a Atenas sem ordens de casa em razão como disse de que os atenienses incluindo a maioria dos soldados que naquela altura clamavam para retornar condenariam os generais por terem sido subornados pelo inimigo Conhe cendo a natureza ele disse dos atenienses preferiu arriscarse a perecer se necessário nas mãos de seus inimigos e em particular ao invés de perecer sob uma acusação ver gonhosa e injusta nas mãos dos atenienses VII 484 Nícias tinha bons motivos dada a suspeição da democracia quanto a seus próprios líderes de temer o banimento e talvez até mesmo a morte se tivesse retornado para casa com o exército Todavia permanece o feto de que sua opção por morrer de modo privado na Sicília acarretou diretamente a ruína do exército e custou a vida de milhares de seus soldados Podese dizer em defesa parcial de Nícias que ainda acreditava haver possibilidade de capturar Siracusa mas quando o aparecimento de tropas inimigas descansadas persuadiramno de seu erro aquiesceu em conduzir o exército para casa Entretanto quando um eclip se lunar de tal forma inquietou a maioria dos atenienses que eles exortaram rogaram ou ordenaram aos generais que adiassem a partida Nícias afirmou que nem sequer contemplaria uma deliberação sobre como efetuar a retirada até que se tivessem passa do três vezes nove dias segundo as prescrições dos adivinhos Pois se dedicava com certo exagero observa Tucídides a adivinhações e práticas similares VII 504 Nícias pode muito bem ter acreditado que a maior probabilidade de segurança para a frota e não apenas para si mesmo consistia em permanecer em Siracusa durante o período estipulado mas é dificil perdoar um general por ceder a temores e esperanças fundados na superstição Por causa desse louco atraso o exército ateniense perdeu sua última oportunidade de retornar para casa a salvo Após a derrota final no mar em sua tentativa desesperada de evadirse do porto de Siracusa os atenienses de tal forma se viram dominados pelas proporções de seus males presentes que nem sequer lhes ocorreu nem sequer ao piedoso Nícias requerer a devolução dos corpos de seus companheiros mortos Em lágrimas e com muita autocensura os atenienses em fuga também abandonaram seus companheiros feridos mas nem assim o exército foi ca paz de salvar a si mesmo À luz dessa narrativa ficamos preparados para compreender que quando Tucídides afirma a respeito de Nícias que sua desgraça foi tão imerecida 2 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 27 Idem Ibidem 28 Idem Ibidem 29 VII 722 cf VII 753 e contrastese com IV 4456 diz que isso se deveu a sua devoção à virtude conforme estabelecida pelo costume ou seja à virtude convencional distinta da virtude simplesmente Embora a devoção de Nícias à virtude convencional o tenha ajudado a se tornar um homem de grande dig nidade e alguém em quem os atenienses podiam confiar na maioria das circunstâncias normais tanto ele como também a virtude conforme a entendia não estavam à altura da prova extremada que foi a campanha da Sicília Nícias era inteiramente devotado à virtude convencional em todo caso jamais causou voluntariamente qualquer dano à sua pátria Todavia não é confiável a virtude convencional pois depende e em parte é orientada por esperanças que não têm outra sustentação além da crença na virtude convencional em si A devoção de Nícias à virtude convencional estava na raiz da sua esperança confiante de que ele ou pelo menos o seu bom nome podiam usufruir da segurança que essa mesma devoção o levou a crer que mereciam cf V 161 E no entanto essa esperança cega de segurança pessoal foi responsável em grande parte como sabemos por sua própria morte e pela desgraça para sua cidade A campanha siciliana foi um erro grave A expectativa ateniense de êxito ou mesmo do retorno seguro do exército dependiam de sua capacidade de conciliar in teresses privados e públicos mas no entanto a expedição demandou da cidade um empenho que excedia em muito os limites dessa capacidade Reconhecidamente os atenienses poderiam ter triunfedo na Sicília se sua sorte fosse melhor por exemplo se não tivesse ocorrido a mutilação das estátuas de Hermes Mas a tentativa foi no entanto desmedida e irrefletida E mais importante os enormes custos da expedição juntamente com a desarmonia citadina que trouxe tão claramente à luz pode ajudar nos a ter uma visão mais sóbria do imperialismo ateniense como um todo Porque se não tivéssemos nós mesmos sido enganados pelo encanto que iludiu os atenienses já teríamos compreendido que seu imperialismo era felho desde o início devido a uma completa ausência de sensatez Os atenienses e os melhores entre os seus líde res dedicaramse à construção de um grande e nobre império Como no entanto acreditavam ser dotados de nobreza não podiam deixar de sentir o quanto lhes pesa vam as acusações por pretenderem governar a outros contra a vontade deles Conse quentemente sentiamse obrigados a defender seu império contra essas acusações e o fizeram com a argumentação de que eles como todos os homens eram compelidos pela natureza a serem oístas ou a colocarem o seu próprio bem antes de todas as outras preocupações Por outro lado uma vez que pensavam em seu império e em si mesmos como nobres aceitavam determinados riscos e dificuldades em relação a seu domínio que aparentavam estar em desacordo com os seus próprios interesses Ora deve terlhes inquietado íir assim pois em vista de seu próprio argumento em fevor do império esses riscos e dificuldades adicionais parecem ter sido sacrifícios desatinados Mas aparentemente os atenienses os entendiam menos como sacrifí cios do que como um preço que valia a pena pagar pelo simples motivo de que todos os seus arrazoados em conexão com a busca do império seriam mais do que compen sados pela recompensa da glória eterna Todavia por assim pensarem equivocavamse Pois o que vivenciaram no que se refere à glória ou no que tange à perspectiva de T u c íd id e s 2 5 glória no futuro tingiase com sua crença de que a glória nâo era apenas um bem mas também algo nobre ou seja um reconhecimento de sua superioridade ao mero inte resse próprio e da sua disposição em certos momentos para o sacrificio Em outras palavras não enfientaram diretamente seu próprio argumento em defesa do império pois este argumento não deixa espaço para a superação do interesse próprio ou para qualquer coisa mais importante do que o benefício próprio E se tivessem realmente aceitado esse argumento não teriam sido impelidos ou não da mesma maneira pela perspectiva de glória e dificilmente teriam sentido que seus arrazoados em sua busca seriam recompensados de forma tão suficiente e duradoura Muito antes do desastre na Sicília portanto os atenienses e os seus melhores líderes foram desencaminhados por sua má compreensão de si mesmos e do objeto de seu desejo O argumento ateniense corretamente entendido ensina que não pode haver no breza que supere o interesse próprio Por conseguinte podese ser tentado a chegar à inquietante conclusão de que os mais sábios de todos os atenienses no relato de Tucí dides são seus embaixadores em Meios cuja apologia da regra do mais forte menos se tingiu por qualquer preocupação contínua ou explícita com a nobreza No entanto seria fãlsa essa conclusão e não apenas porque a brutal tentativa dos embaixadores de destruir a inocência dos mélios fez com que adquirissem determinação ainda maior de não se submeter ao domínio ateniense Porque há um orador ateniense que demons tra uma compreensão muito mais profunda do aijumento ateniense Este ateniense é Diôdotos um homem notável a respeito de quem não há outras fontes e que só aparece uma vez na narrativa de Tucídides Embora não pareça ter sido um homem político foi de grande habilidade a sua única intervenção na vida política de Atenas Teve sucesso em auxiliar Atenas a manter seu império e a mantêlo por meio do tratamento relativa mente humano de um súdito aliado Além disso seu discurso é caracterizado por uma suavidade e até mesmo uma serenidade que não encontram comparação na obra de Tucídides e que parecem ser um espelho dessas qualidades do próprio Tucídides Diôdotos dirigiuse à assembleia à qual já nos referimos onde os atenienses reconsideravam seu decreto para matar todos os homens de Mitilene e lhes exortou a rescindir o decreto Sua tarefa era árdua muito embora a assembleia tivesse sido convocada em resposta a uma mudança de atitude do povo pois Clêon que na época tinha de longe a maior influência sobre eles falara antes de Diôdotos e se opusera a qualquer mudança Clêon argumentou fortemente que tanto a justiça como os inte resses dos atenienses exigiam o castigo mais severo aos rebeldes mitilênios No entanto a preocupação mais imediata para Diôdotos era Clêon ter atacado os hábitos atenien ses de com firequência reconsiderar suas próprias decisões Clêon atribuíra esse hábito não tanto a uma preocupação com o bem público mas principalmente ao desejo dos oradores de parecerem mais sábios do que as leis e de exibir sua inteligência em relação aos assuntos públicos uma vez que estes são tidos como as mais preeminentes ques tões Qualquer um afirmou Clêon que falasse contra o decreto do dia anterior estaria sendo incitado a fezêlo por sua vaidade como orador ou talvez também por suborno III 3823 3734 Diante desses ataques Diôdotos principia como de praxe pela 26 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y defesa da congruência de deliberações freqüentes sobre assuntos da cidade que tam bém chama de grandes coisas E os acautela em especial em relação ao fato de que a cidade é prejudicada quando oradores se acusam mutuamente de serem corrompidos pelo dinheiro pois o temor em seguida a priva de seus conselheiros Seria melhor para a cidade propõe não conceder ao tipo de cidadãos que fizeram tais acusações a autorização para falar E na cidade moderada continua ele um orador que falha jamais seria desonrado e muito menos acusado de injustiça e punido Em tal cidade moderada aparentemente todos aqueles que se dirigissem à assembleia seriam tão inteiramente livres da ambição privada que não se sentiriam desonrados por fracassar em sua persuasão Todavia Diôdotos sabe muito bem que a democracia ateniense como qualquer cidade real necessariamente suspeita dos motivos particulares de seus oradores e que o interesse da cidade por vezes chega mesmo a requerer vigilância Por compreender esses frtos da vida política Diôdotos não leva em consideração sua utópica cidade moderada e tenta desonrar Clêon a quem acusa ou de ser ignorante ou de manifestarse por algum motivo particular próprio Todavia é tal a desconfiança ateniense especialmente na esteira das acusações de Clêon que Diôdotos deve ir ainda mais longe a fim de conquistar a audiência com sua argumentação Pois os atenienses diz ele com ousadia são tão invejosos que rejeitariam até mesmo aqueles que fossem manifestamente os melhores conselhos para a cidade se suspeitassem que o orador ofereceria esses bons conselhos motivado pelo ganho Portanto o orador que queira liderar a cidade para o bem dela deve primeiro neutralizar as suspeitas acerca de si mesmo tarefa que aparentemente é impossível pela via direta apenas Pois Diôdotos conclui que mesmo um orador que deseje apontar o que é melhor deve mentir para a multidão a fim de merecer sua confiança e que é impossível beneficiar a cidade e apenas a cidade sem enganála III 4243 Com notável franqueza Diôdotos in forma os atenienses de que vai enganálos E essa admissão nos debca com as seguintes perguntas Por que é impossível ganhar a confiança da cidade sem mentir para ela E de que forma exatamente mente Diôdotos A mentira de Diôdotos parece estar em sua afirmação de que não vai sequer examinar a questão da justiça ou seja se os mitilênios foram injustos mas quer saber apenas se é do interesse de Atenas matálos todos É verdade que a maior parte de seu argumento contra essas mortes é uma análise intransigente em termos do interesse próprio ateniense todavia percebese que sua crueldade não é tão simples simples mente sem coração quanto aparenta Além disso como veremos Diôdotos não igno ra totalmente as questões de justiça Sua fala principia com a afirmação de que mesmo as mais rigorosas punições não são capazes de evitar todas as rebeliões e que portanto T u c íd id e s 2 7 30 NTi As traduções do texto grego são baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefócio de Helio J arib e Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 Atenas deve estar preparada para tentar sufocar com o menor custo possível qualquer revolta que ocorra Atenas pode fàzêlo diz pela manipulação da divisão de classes entre os rebeldes e por oferecer à multidão uma perspectiva de complacência para com eles se de bom grado entregarem a cidade como o fizera a multidão dentro de Mitilene até certo ponto após receberem armamento pesado Mas então de modo surpreendente Diôdotos acrescenta que agora seria injusto trucidar a multidão en quanto distinta dos oligarcas em Mitilene pois tinham sido eles os benfeitores dos atenienses Assim apesar de sua afirmação original Diôdotos na verdade argumen ta explicitamente em termos de justiça Além disso muitos elementos em seu discurso vêm conduzidos de forma sutil a esse argumento do ponto de vista da justiça Pois a fim de demonstrar que é impossível evitar rebeliões Diôdotos assevera que todos os homens por natureza tanto privada como publicamente cometem transgressões e que nenhuma lei ou ameaça de punição vai impedilos disso Em outras palavras todos nós somos compelidos por nossas paixões naturais juntamente com nossas es peranças a tentar conquistar os objetos de nossos mais intensos desejos III45 E já que somos compelidos a isso não imporu até que ponto sejam vãs nossas esperanças de êxito nossos erros ou transgressões são involuntários e até mesmo Clêon admitira que os crimes involuntários merecem perdão Ora Diôdotos por boas razões não chega explicitamente à conclusão de que todos os criminosos merecem perdão entre outras coisas não se opõe a levar a julgamento os líderes presumíveis da rebelião Mas ao falar do caráter compulsório da transgressão desperta nos atenienses um estado de ânimo clemente e reacende e até aprofunda o humor brando com que se iniciara a assembleia daquele dia Desta forma tornaos receptivos à sua afirmação de que seria injusto eliminar o povo mitilênio Se o engodo de Diôdotos porém consiste em simular desdém pela justiça cabe indagar por que não declarou de modo mais franco que tanto a justiça ou a hu manidade como o interesse próprio dos atenienses exigiam que não se massacrasse o povo mitilênio Mas o feto é que teria sido imprudente da parte dele afirmar isso Em particular porque o discurso de Clêon tanto irritara o humor dos atenienses que um argumento escancarado contra a justiça dessas mortes lhes teria angustiado e os teria feito suspeitar de alguma fraqueza na tese de Diôdotos devida a uma busca de vantíens E mais importante teriam suspeitado que ele conscientemente traía os interesses da cidade sob o pretexto de justiça ou de humanidade mas na verdade tal como denunciara Clêon por causa de seus interesses privados Como a cidade descon fia tão excessivamente dos cidadãos que lhe dirigem a palavra Diôdotos deve tentar ganhar a sua confiança e o fez por meio da aparência de total desprezo pela justiça pelo menos na medida em que se trata de uma noção diversa do interesse da cidade De acordo com isso assevera também várias vezes que as preocupações da cidade e em particular a sua liberdade e seu domínio sobre os outros são as maiores coisas 2 8 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 31 Comparese III 473 e 4656 com III44 32 III 421434456 cf III 374 e 403 Quando exprime uma apreciação pelos interesses da cidade ou sua liberdade e seu império por serem infinitamente mais importantes do que a justiça e de fato como a mais importante de todas as preocupações Diôdotos é bemsucedido em mostrarse confiável E seu êxito depende é claro da mentira e do engodo Mas o embuste de Diôdotos vai ainda mais longe do que já admitimos pois nos levou a pensar que sua preocupação oculta é principalmente uma inquietação para com a justiça Para perceber que é este o caso temos de examinar de novo sua declara ção daquilo que denominamos o argumento ateniense em favor do império Diôdotos afirmara que todos os homens tanto privada como publicamente são de tal natureza que transgridem e que nenhuma lei jamais os refireará da transgressão Contudo uma vez que Diôdotos conhece tal fiito sobre nossa natureza nem a lei nem a justiça podem constituir sua principal apreensão nem mesmo naquelas circunstâncias em que é útil manter acordos em matéria de justiça Diôdotos indica no entanto qual é a sua prin cipal inquietação ao aplicar de modo explícito o argumento ateniense aos homens em particular ou aos indivíduos algo que nenhum outro orador em Tucídides faz Em outras palavras ele é o único orador que indica claramente que o primado do bem é de fiito o primado do bem do indivíduo distinto do bem da cidade Assim como não há nada maior ou seja mais importante do que o bem não há nada mais importante para o indivíduo do que aquilo que é bom ou ruim para si mesmo As suspeitas dos atenienses então de que seus oradores são impulsionados principalmente pelo inte resse próprio revelamse bem fimdamentadas pelo menos no caso de Diôdotos Ora é verdade que o interesse privado de Diôdotos enquanto ateniense e até mesmo a sua humanidade polida ambos o levarão a tentar ser útil para Atenas persuadindoa a rescindir um decreto cruel e mal orientado Mas os atenienses não o teriam honrado com sua aprovação se tivessem compreendido seus motivos Quer por medo da tirania quer como sugeriu o próprio Diôdotos simplesmente por inveja do bem maior de ou trem os atenienses não teriam aceitado o seu útil conselho a menos que ele os tivesse convencido de que as preocupações de sua cidade eram para ele as maiores coisas E uma vez que ele não acredita que sejam as maiores coisas é compelido a mentir Embora Diôdotos indique claramente que o bem supremo é o bem do indiví duo distinto do bem da cidade pouco mais diz sobre sua natureza Dada a sua crítica no entanto da alegação da cidade de que suas preocupações são as maiores coisas não parece possível que ficasse satisfeito apenas com as recompensas da vida política Realmente o próprio fato de que sabemos muito pouco sobre esse talentoso político poderia sugerir que não considerava o domínio sobre os outros ou seus frutos como o bem supremo do indivíduo Mas afora sua declaração sobre a necessidade de delibera ção antes da ação Diôdotos esconde seus pensamentos positivos sobre esse bem A este respeito como em outros Diôdotos é semelhante ao próprio Tucídides pois Tucídides também como vimos é omisso sobre a questão da melhor forma de vida Ou seria mesmo Não nos conduziria ao contrário toda a obra de Tucídides em direção a seu próprio modo de vida acima de tudo a sua busca pela verdade e a sua obra como um patrimônio para sempre I 203 224 como a melhor vida para o homem T u c íd id e s 2 9 A única menção de filosofia na obra de Tucídides está na Oração Fúnebre de Péricles Péricles elogia os atenienses por filosofar sem brandura pelo que aparentemente quis dizer sem se afiistarem da vida política E fàla também enfaticamente da supe rior dignidade da vida ativa ou política em relação à vida de lazer Mas Péricles não é capaz de entender que o filosofar dos atenienses caminha junto com uma espécie de suavidade própria Pois os homens ou pelo menos os homens mais hábeis são compe lidos pela própria gravidade de suas preocupações morais e políticas a questionar a ve racidade das suas convicções mais gratas e finalmente a voltarse para a filosofia como seu bem supremo Foi Tucídides quem teve a força mental necessária para aceitar essa compulsão e refletir sobre ela até entendêla claramente E a partir desse entendimen to ganhou força ainda maior Pois somente a partir da perspectiva que assim obteve é que poderia continuar a olhar para a vida política incluindo tanto os seus grandes horrores como suas belezas com clareza tão tranqüila e ao mesmo tempo colocála em prática por meio de sua escrita com tanto equilíbrio e humanidade L e it u r a Tuddides A Guerra do Peloponeso e os atenienses 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 33 II 4014026323 6445 cf II 414 PlATÂO ij 427347 aC Trinta e cinco diálogos e 13 cartas chegaram até nós como escritos platônicos mas nem todos são hoje considerados autênticos Alguns estudiosos chegam a duvidar de que nenhuma das cartas seja genuína A hm de não trazer à nossa apresentação o peso da polêmica as cartas serão completamente deixadas de lado É preciso dizer então que Platão não nos fala em seu próprio nome pois em seus diálogos só falam seus personagens A rigor portanto não há ensinamentos platônicos no máximo existem os ensinamentos daqueles que são os personagens principais em seus diálogos Não é fácil explicar por que Platão procedeu dessa forma Talvez duvidasse de que pudesse haver um ensino filosófico propriamente dito Talvez também acreditasse como seu mestre Sócrates que a filosofia é em última análise o conhecimento da ignorância De fato Sócrates é o personem principal da maior parte dos diálogos platônicos Podese dizer que os diálogos de Platão como um todo constituam não tanto uma apresentação de ensinamentos quanto um monumento à vida de Sócrates ao núcleo de sua vida todos eles mostram como Sócrates dedicouse à sua tarefa mais importante à conscientização dos homens e à tentativa de orientálos para a vida boa que ele próprio vivia Ainda assim Sócrates nem sempre é o personagem principal nos diálogos de Platão em alguns pouco mais fez além de escutar quando outros fàlam e em um dos diálogos as Leis sequer está presente Mencionamos esses fatos curiosos porque nos mostram como é difícil discorrer sobre os ensinamentos de Platão Todos os diálogos platônicos se referem de modo mais ou menos direto à ques tão política No entanto existem apenas três diálogos cujos títulos indicam claramente que se dedicam à filosofia política a República o Político e as Leis É principalmente por meio dessas três obras que temos acesso aos ensinamentos políticos de Platão A R e p ú b l ic a Na República Sócrates discute a natureza da justiça com um número bastante grande de pessoas A conversa sobre esse tema geral ocorre como é natural em um cenário específico em um determinado lugar num momento dado com homens que possuem cada um sua idade caráter habilidades posição na sociedade e aparência particulares Embora o local da conversa nos seja deixado bastante claro náo ocorre o mesmo com o tempo ou seja o ano Assim faltanos certo conhecimento das cir cunstâncias políticas em que se realiza essa conversa sobre os princípios da política Podemos supor no entanto que tem lugar em uma época de decadência política de Atenas que de qualquer modo Sócrates e os principais interlocutores os irmãos Glauco e Adimanto muito se preocupavam com tal decadência e cogitavam sobre o restabelecimento da saúde política Certo é que Sócrates íàz propostas muito radicais de reforma sem encontrar grande resistência Mas há também algumas indicações na República no sentido de que a almejada reforma provavelmente não terá êxito no plano político ou que a única reforma possível é a do indivíduo A conversação principia com Sócrates que fez uma pergunta para o homem mais velho presente Céfalo que é respeitado por conta de sua piedade bem como de sua riqueza A pergunta de Sócrates é um modelo de decoro Dá a Céfalo a oportunidade de felar de tudo de bom que possui de exibir sua felicidade por assim dizer e é relativa ao único assunto acerca do qual Sócrates pode aprender alguma coisa com ele sobre a sensação de ser muito idoso No decurso de sua resposta Céfelo feia de injustiça e de justiça Parece sugerir que justiça é o mesmo que dizer a verdade e devolver o que se recebeu de alguém Sócrates mostralhe que nem sempre é justo dizer a verdade e devolver a propriedade de outro homem Neste momento Polemarco íilho e herdeiro de Céfalo erguendose em defesa da opinião de seu pai assume seu lugar na conversa Mas a opinião que defende não é exatamente a mesma de seu pai se é que podemos utilizar uma piada de Sócrates Polemarco herda apenas a metade e talvez até menos da metade da propriedade intelectual de seu pai Polemarco não mais alega que dizer a verdade é essencial à justiça Sem saber estabelece assim um dos princípios da Re pública Como aparece mais tarde na obra em uma sociedade bemordenada é neces sário que se digam inverdades de certo tipo para crianças e até mesmo para adultos Este exemplo revela o caráter da discussão que ocorre no primeiro livro da República no qual Sócrates refuta uma série de opiniões falsas sobre a justiça No entanto esta obra negativa ou destrutiva contém em si as asserções construtivas da maior parte da República Consideremos a partir deste ponto de vista as três opiniões em matéria de justiça discutida no livro seguinte A opinião de Céfelo tal como retomada por Polemarco após seu pai sair para realizar um ato piedoso repousa no sentido de que a justiça consiste em devolver depósitos Expressando de modo mais genérico Céfelo defende que a justiça consiste em devolver legar ou dar a todos o que lhes pertence Mas ele também afirma que a justiça é boa ou seja salutar não só para o doador mas também para o receptor Ora é óbvio que em alguns casos dar a um homem o que lhe pertence é prejudicial a ele Nem todos os homens fazem um uso bom ou sábio do que lhes pertence de seus bens Se julgarmos de forma muito rigorosa poderemos ser levados a dizer que muito pou cas pessoas fezem um uso sábio de seus bens Se a justiça deve ser salutar podemos ser 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Platáo SepúbÜca 377 ss 389 414415 459 compelidos a exigir que todos possuam apenas o que é adequado para eles o que é bom para eles e somente enquanto for bom para eles Em poucas palavras poderemos ser compelidos a exigir a abolição da propriedade privada ou a introdução do comu nismo Na medida em que há uma conexão entre a propriedade privada e a família seriamos compelidos até mesmo a exigir a abolição da família ou a introdução do comunismo absoluto ou seja do comunismo não só em matéria de propriedades mas em relação às mulheres e crianças também Acima de tudo muitíssimo poucas pessoas serão capazes de determinar com sabedoria que coisas e que quantidade delas seriam satisfatórias para o uso de cada indivíduo ou pelo menos para cada indivíduo que é realmente levado em conta somente os homens de excepcional sabedoria é que são capazes disso Seriamos compelidos então a exigir que a sociedade seja governada por homens de simples sabedoria por filósofos no sentido estrito que exerceriam um po der absoluto Assim a refutação da opinião de Céfalo acerca da justiça contém a prova da necessidade do comunismo absoluto no sentido definido bem como do absoluto domínio dos filósofos Esta prova desnecessário dizer baseiase na indiferença a ou na abstração de uma série de aspectos da maior relevância é abstrata ao extremo Se quisermos compreender a República temos de determinar quais são esses aspectos negligenciados e a razão por que são ignorados A própria República lida atentamente fornece as respostas a essas perguntas Antes de prosseguir devemos descartar um equívoco que é muito comum hoje As teses da República resumidas nos dois parágrafos anteriores mostram claramente que Platão ou pelo menos Sócrates não era um democrata liberal São suficientes também para evidenciar que Platão não era comunista no sentido de Marx ou fascis ta o comunismo marxista e o fascismo são incompatíveis com o papel dos filósofos enquanto o regime da República continua de pé ou cai pelo governo dos filósofos Mas voltemos rápido à República Enquanto o primeiro parecer sobre a justiça foi apenas insinuado por Céfalo e explicitado por Sócrates a segunda opinião é elucidada por Polemarco embora não sem a ajuda de Sócrates Além disso a opinião de Céfalo está ligada em sua mente à visão de que a injustiça é ruim porque é punida pelos deuses após a morte Este ponto de vista não faz parte da opinião de Polemarco que é confrontado com a contradição entre as duas opiniões segundo as quais a justiça deve ser salutar para o receptor e a justiça consiste em dar a cada um aquilo que lhe pertence Polemarco supera esta contradição ao abandonar a segunda opinião Também modifica a primeira A justiça diz ele consiste em ajudar os amigos e prejudicar os inimigos Assim entendida a justiça parece ser irrestritamente boa para o doador e para aqueles receptores que são bons para o doador Surge no entanto uma dificuldade se consideramos justiça como dar a outros aquilo que lhes pertence a única coisa que o homem justo precisa saber é o que pertence àqueles com quem efetua qualquer transação este conhecimento é fornecido pela lei que em princípio pode facilmente tornarse conhecida pela mera audição Mas se o homem justo deve dar a seus amigos o que é bom para eles precisa julgar ele mesmo ele próprio deve ser capaz de distinguir corretamente os amigos dos P latão 3 3 inimigos ele próprio deve saber o que é bom para cada um de seus amigos A justiça de ve incluir o conhecimento de uma ordem elevada Para dizer o mínimo a justiça deve ser uma arte comparável à medicina a arte que conhece e produz o que é bom para o corpo humano Polemarco é incapaz de identificar o conhecimento ou a arte que acompanha a justiça ou que é a justiça Portanto é incapaz de demonstrar como a justiça pode ser salutar A discussão aponta para a visão de que a justiça é a arte que dá a cada homem o que é bom para sua alma ou seja que a justiça seja idêntica a ou pelo menos inseparável da filosofia a medicina da alma Aponta para a concepção de que não pode haver justiça entre os homens a não ser que os filósofos governem Mas Sócrates ainda não expõe essa visão Ao contrário deixa claro para Polemarco que o homem justo ajudará os homens justos ao contrário de seus amigos e não prejudi cará ninguém Não afirma que o homem justo ajudará a todos Talvez queira dizer que há seres humanos a quem não pode beneficiar Mas certamente também quer dizer algo mais Podese entender que a tese de Polemarco reflete uma opinião mais potente em relação à justiça a opinião segundo a qual justiça significa espírito público de dicação integral à própria cidade como uma determinada sociedade que como tal é o inimigo em potencial de outras cidades A justiça assim entendida é patriotismo e consiste na verdade em ajudar os próprios amigos ou seja os concidadãos e prejudi car os inimigos ou seja os estrangeiros A justiça assim compreendida não pode ser totalmente distribuída em cidade alguma por mais justa que seja pois mesmo a cida de mais justa é uma cidade uma sociedade privada ou fechada ou exclusiva Portanto o próprio Sócrates exige mais tarde no diálogo que os guardiões da cidade sejam por natureza amistosos para com seu próprio povo e rigorosos ou rudes para com estran geiros Também exige que os cidadãos da cidade justa deixem de considerar todos os seres humanos como seus irmãos e restrinjam os sentimentos e ações de fraternidade apenas aos seus concidadãos Compreendida de modo correto a opinião de Polemarco é a única entre as concepções gerais de justiça discutidas no primeiro livro da República que é inteiramente preservada na parte positiva ou construtiva da República Esta opi nião para repetir tem o sentido de que a justiça seja plena dedicação ao bem comum exige que o homem nada n e de si mesmo para sua cidade exige portanto por si só isto é se abstrairmos todas as outras considerações comunismo absoluto A terceira e última opinião discutida no primeiro livro da RepiAlka é a única ex pressa por Trasímaco Tratase do único orador nesta obra que manifesu raiva e se com porta de forma descortês e até selvagem Trasímaco está muito indignado com o resul tado da conversa de Sócrates com Polemarco e parece estar particularmente chocado com a alegação de Sócrates de que não é bom para si mesmo prejudicar quem quer que seja ou que a justiça nunca é prejudicial a ninguém É muito importante tanto para a compreensão da República quanto de modo geral que não nos comportemos para com Trasímaco do modo como Trasímaco se comporta isto é com raiva fenatismo ou 3 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 Ihidyi9y7f 3 IbidA selvageria Se então examinarmos a indação de Trasímaco sem indignação devere mos admitir que a sua reação violenta é até certo ponto uma revolta do senso comum Como a cidade é uma sociedade que de tempos em tempos deve travar uma guerra e a guerra é inseparável do prejuízo a pessoas inocentes uma cabal condenação a lesar seres humanos seria equivalente a condenar até mesmo a cidade mais justa Além disso parece ser inteiramente apropriado que o mais violento homem presente deva sustentar a tese mais feroz acerca da justiça Trasímaco declara que a justiça é a vantagem do mais forte Ainda assim essa tese demonstra ser apenas a conseqüência de uma opinião que não é apenas manifestamente brutal mas é até mesmo merecedora de grande respeito Segundo essa opinião o justo é idêntico ao lícito ou ao lal ou seja àquilo que os costumes ou as leis da cidade determinam No entanto essa opinião implica que não há nada superior às leis do homem ou às convenções a que se possa apelar Esta é a opinião hoje conhecida pelo nome positivismo jurídico mas na sua origem não é meramente especulati é a opinião na qual tendem a se basear as ações de todas as sociedades políticas Se o justo é idêntico ao lal a fonte da justiça é a vontade do legislador O legislador em cada ci dade é o regime o homem ou grupo de homens que governa a cidade o tirano o povo comum os homens de excelênda e assim por diante De acordo com Trasímaco cada rime estabelece as leis com vistas à sua própria preservação e bemestar numa palavra em proveito próprio e nada mais Daí se segue que a obediência às leis ou à justiça não é necessariamente vantajosa para os governados e pode até ser ruim para eles E no que tange aos governantes a justiça simplesmente não existe é preocupandose exclusiva mente com seu próprio beneficio que estabelecem as leis Admitamos por um momento que esteja correta a visão da lei por parte de Trasímaco e dos governantes Decerto os governantes podem cometer erros Podem comandar ações que de íàto são desvantajosas para si mesmos e vantajosas para os governados Nesse caso com efeito os indivíduos justos ou cumpridores da lei fiirão o que é desvantajoso para os governantes e vantajoso para os governados Quando essa dificuldade lhe é apontada por Sócrates Trasímaco declara após alguma hesitação que os governantes não são governantes se e quando cometem erros o governante no sentido estrito é infiJível do mesmo modo que o artesão no sentido estrito é infalí vel É esta noção de Trasímaco a respeito do artesão no sentido estrito que Sócrates usa com grande felicidade contra ele Pois o artesão no sentido estrito revelase preo cupado não com sua própria vantagem mas com a vantiem dos outros a quem ser ve o sapateiro fãz sapatos para os outros e só acidentalmente para si mesmo o médico receita para seus pacientes tendo em vista a vantagem deles desta forma se governar é como Trasímaco admitiu semelhante a uma arte o governo atende os governados ou seja um governo em beneficio dos governados O artesão em sentido estrito é infa lível ou seja fez bem seu trabalho e só está preocupado com o bemestar dos outros Isso porém significa que a arte entendida estritamente é justiça justiça em atos e não apenas na intenção como no cumprimento da lei Arte é justiça essa pro P latAo 3 5 4 Ibid 4 7 1 posição reflete a afirmação socrática de que a virtude é conhecimento A siestão que emerge do debate de Sócrates com Trasímaco leva à conclusão de que a cidade justa será uma associação em que todos são artesãos no sentido estrito uma cidade dos artesãos ou artífices dos homens e mulheres cada um dos quais tem um único trabalho que faz bem e com dedicação integral ou seja sem se importar com sua própria vantagem e só para o bem de outrem ou para o bem comum Essa conclusão permeia todos os ensinamentos da República A cidade lá construída como modelo baseiase no princípio de um homem um trabalho Os soldados dela são artífices da liberdade da cidade os filósofos dela são artífices de toda a virtude comum existe um anífice do céu até Deus é apresentado como um artesão como o próprio artífice das ideias eternas É por ser a cidadania na cidade justa um artesanato de um tipo ou outro e porque a sede do artesanato ou da arte está na alma e não no corpo que a diferença entre os dois sexos perde sua importância ou é estabelecida a igualdade dos dois sexos Trasímaco poderia ter evitado a sua queda se tivesse deixado a questão no nível do senso comum segundo o qual os governantes são naturalmente íãlíveis ou se tivesse afirmado que todas as leis são forjadas pelos governantes com vistas à sua aparente e não necessariamente verdadeira vantem Como Trasímaco não é nobre temos o di reito de suspeitar que escolheu a alternativa que se revelou fatal para si tendo em vista a sua própria vantem pois era um famoso professor de retórica a arte da persuasão Por conseguinte aliás é o único possuidor de uma arte a falar na República A arte da persuasão é necessária para convencer os governantes e particularmente as assembléias legislativas pelo menos aparentemente de sua verdadeira vantagem Mesmo os pró prios governantes necessitam da arte da persuasão para convencer seus subordinados de que as leis que são engendradas tendo em vista exclusivamente os benefícios para os governantes atendem ao benefício dos subordinados A própria arte de Trasímaco resiste ou tomba devido à visão de que a prudência é de extrema importância para o governo A mais clara expressão dessa visão é a proposição de que o governante que comete erros não é mais um governante A ruína de Trasímaco é causada não por uma rigorosa refutação da sua visão da justiça nem por um deslize acidental de sua parte mas pelo conflito entre sua depre ciação da justiça ou sua indiferença para com a justiça e as implicações de sua arte há alguma verdade na visão de que a arte é justiça Podese dizer e Trasímaco de fato o diz que a conclusão de Sócrates a saber que nenhum governante ou outro artesão jamais considera a sua própria vantagem é muito simplória Sócrates parece ser uma criança de colo No que diz respeito aos próprios artesãos estes naturalmente consi deram a remuneração que recebem por seu trabalho Pode ser verdade que na medida em que o médico esteja preocupado com os que são caracteristicamente denomina dos seus honorários ele não exerce a arte da medicina mas a arte de fazer dinheiro porém uma vez que o que é verdade para o médico é verdadeiro para o sapateiro e 36 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 5 Ihid 395 500 530 507 597 6 Aírf454455cf452 também para qualquer outro artesão seria preciso dizer que a única arte universal a arte que acompanha todas as artes a arte das artes é a arte de fazer dinheiro é preci so portanto dizer ainda que servir a outros ou ser justo tornase bom para o artesão somente através de sua prática da arte de fazer dinheiro ou que ninguém é justo por uma questão de justiça ou que ninguém gosta de justiça como tal Contudo o argu mento mais devastador contra o raciocínio de Sócrates é fornecido pelas artes que se preocupam manifestamente com a mais impiedosa e calculista exploração dos gover nados pelos governantes Tal arte é a arte do pastor a arte sabiamente escolhida por Trasímaco a fim de arrasar o argumento de Sócrates especialmente porque desde os tempos mais remotos reis e outros governantes são comparados a pastores O pastor certamente se preocupa com o bemestar de seu rebanho para que as ovelhas forne çam aos homens as mais suculentas costeletas de cordeiro Na concepção de Trasíma co os pastores preocupamse somente com o bem dos proprietários e com o próprio Entretanto há obviamente uma diferença entre os proprietários e os pastores as mais saborosas costeletas de cordeiro são para o proprietário e não para o pastor a menos que o pastor seja desonesto Ora a posição de Trasímaco ou de qualquer homem de seu tipo em relação tanto aos governantes como aos governados é precisamente a do pastor no que diz respeito tanto aos proprietários quanto às ovelhas Trasímaco poderá beneficiarse com segurança do apoio que dá aos governantes independentemente de serem tiranos pessoas comuns ou homens de excelência somente se lhes for fiel se fizer bem o seu trabalho para eles se mantiver a sua parte no acordo se for justo Contrariamente à sua afirmação deve concordar que a justiça de um homem é salu tar não só para os outros e especialmente para os governantes mas também para si mesmo É em parte porque tem consciência dessa necessidade que Trasímaco muda tanto suas maneiras na última parte do primeiro livro O que é verdadeiro para os ajudantes dos governantes é verdade dos próprios governantes e de todos os outros seres humanos inclusive tiranos e bandidos que precisam da ajuda de outros homens em seus empreendimentos mesmo que sejam injustos nenhuma associação perdurará se os seus membros não praticarem a justiça entre si mesmos Isso porém eqüivale a uma admissão de que a justiça pode ser simplesmente um meio embora um meio indispensável para a injustiça para a exploração de estranhos Acima de tudo não elimina a possibilidade de que a cidade seja uma comunidade unida pelo egoísmo co letivo e nada mais ou que não haja diferença fundamental entre a cidade e um bando de ladrões Essas e outras dificuldades explicam por que Sócrates considera insuficiente sua refutação de Trasímaco o filósofo declara em sua conclusão que tentou mostrar que a justiça é boa sem ter esclarecido o que é justiça A defesa adequada ou elogio da justiça pressupõem não só o conhecimento do que é justiça mas também um ataque adequado à justiça No início do segundo livro Glauco tenta apresentar tal ataque alega reafirmar a tese de Trasímaco na qual não P latão 3 7 Ibid 3 4 3 Ibid 3 5 1 3 5 2 acredita com maior empenho do que Trasímaco utilizara Glauco também tem como pressuposto que o justo é o mesmo que legal ou convencional mas tenta mostrar como a convenção emerge da natureza Por natureza cada homem se preocupa apenas com seu próprio bem e não tem qualquer preocupação com o bem de outro homem a tal ponto que nada hesiu em prejudicar seus companheiros Uma vez que todos agem em conformidade com isso todos ocasionam uma situação que é insuportável para a maioria deles a maioria ou seja os fracos descobre que cada um deles estaria em me lhores condições se todos concordassem quanto ao que cada um deles poderia ou não fezer O acordo que fàzem não é explicitado por Glauco mas podese adivinhar fecil mente uma parte dele concordarão que ninguém pode atentar contra a vida e a inte gridade física a honra a liberdade e a propriedade de qualquer dos associados ou seja dos concidadãos e que todos devem dar o melhor de si para proter os associados contra estranhos Nem a abstenção de tais transgressões nem os serviços de proteção são de forma alguma desejáveis por si mesmos mas apenas males necessários toda via males menores do que a insegurança universal No entanto o que é verdade para a maioria não é verdadeiro do homem real que pode cuidar de si mesmo e que estará em situação melhor se não se submeter às leis ou às convenções Contudo mesmo os outros violentam suas naturezas ao se submeterem à lei e à justiça submetemse a elas apenas por medo das conseqüências de não aquiescerem ou seja por medo de um tipo ou outro de punição não por vontade própria nem com al ia Portanto todo homem preferiria a injustiça à justiça se pudesse ter certeza de que não seria fli d o a justiça é preferível à injustiça somente quando se vislumbra a possibilidade de detec ção de se tornar conhecido como justo para com os outros isto é à boa reputação ou outras recompensas Assim uma vez que como espera Glauco a justiça é uma escolha sábia por si mesma ele exige de Sócrates umà prova de que a vida do homem justo é preferível à do homem injusto mesmo que o homem justo seja considerado injusto ao extremo e sofra todos os tipos de punição ou esteja em profundo sofrimento e o homem injusto seja considerado justo ao extremo e receba todos os tipos de recom pensa ou esteja no aie da felicidade o ápice da injustiça isto é da conduta de acordo com a natureza é a exploração tácita das leis ou das convenções somente em benefício próprio o conflito do tirano sumamente astuto e viril Na discussão com Trasímaco a questão se turvara pela sugestão de que existe um parentesco entre a justiça e a ane Glauco põe a questão em evidência ao comparar o homem perfeitamente injusto com o perfeito artesão enquanto concebe o homem perfeitamente justo como um homem simples que não tem outra qualidade além da justiça Examinando os ensinamentos da República como um todo somos tentados a dizer que Glauco compreende a pura jus tiça à luz da pura fortaleza seu homem perfeitamente justo nos fez lembrar o soldado desconhecido que se submete à morte mais dolorosa e mais humilhante sem qualquer outra finalidade exceto morrer corajosamente e sem qualquer perspectiva de que sua nobre ação venha a ser conhecida A demanda de Glauco sobre Sócrates é fortemente apoiada por Adimanto Fica evidente pelo discurso deste último que a opinião de Glauco segundo a qual a justiça 38 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y é uma escolha sábia inteiramente por si mesma é totalmente inovadora pois na visão tradicional a justiça era considerada uma escolha sábia principalmente se não exclusi vamente por causa das recompensas divinas para a justiça e pelos castígos divinos para a injustíça e várias outras conseqüências O longo discurso de Adimanto difere do de Glauco porque traz à tona o feto de que se a justiça é uma escolha sábia por si mesma deve ser fócil ou sradável As demandas de Glauco e Adimanto estabelecem o padrão pelo qual se deve julgar o elogio de Sócrates à justíça pois nos forçam a investigar se e em que medida Sócrates provou na RepúbUca que a justíça é uma escolha sábia ou agradável por si mesma ou até mesmo por si só suficiente para tornar um homem perfeitamente feliz no meio do que é de forma geral considerada a mais extrema infelicidade A fim de defender a causa da justiça Sócrates voltase para a fimdação juntamen te com Glauco e Adimanto de uma cidade no discurso A razão pela qual esse pro cedimento é necessário pode ser expressa como segue Acreditase que a justiça seja a obediência às leis ou a firme vontade de dar a cada um o que lhe pertence isto é o que lhe pertence de acordo com a lei mas também se acredita que a justíça seja boa ou sa lutar mas obedecer às leis ou conceder a todos o que lhes pertence de acordo com a lei não é irrestritamente salutar já que as leis podem ser más a justiça será simplesmente salutar somente quando as leis forem boas e isso exige que seja bom o regime a partir do qual emanam as leis a justíça só será totalmente salutar em uma boa cidade O procedimento de Sócrates implica além disso que não conhece nenhuma cidade real que seja boa este é o motivo pelo qual é compelido a fundar uma boa cidade Só crates justifica o feto de recorrer à cidade pela consideração de que a justiça pode ser detectada mais facilmente na cidade do que no indivíduo humano porque a primeira é maior do que o último indica portanto que existe um paralelismo entre a cidade e o indivíduo humano ou mais precisamente entre a cidade e a alma do indivíduo humano Isso significa que o paralelismo entre a cidade e o indivíduo humano baseia se em certa abstração do corpo humano Na medida em que existe um paralelismo entre a cidade e o indivíduo humano ou sua alma a cidade é no mínimo semelhante a um ser natural No entanto esse paralelismo não está completo Enquanto a cidade e o indivíduo parecem igualmente capazes de serem justos não é certo que possam ser igualmente felizes cf o início do quarto livro A distinção entre a justiça do indivíduo e sua felicidade foi elaborada pela exigência de Glauco a Sócrates de que a justiça deve ser elogiada independentemente de ter ou não quaisquer atrações extrínsecas Foi ela borada também a partir da opinião comum segundo a qual a justiça exige a dedicação integral do indivíduo para o bem comum A fundação da boa cidade acontece em três etapas a cidade salutar ou a cidade dos porcos a cidade purificada ou a cidade do acampamento armado e a Cidade da Beleza ou a cidade governada por filósofos P latão 3 9 Cf ibid 364 365 com 357 e 358 A fundação da cidade é precedida pela observação de que a cidade tem sua ori gem na necessidade humana cada ser humano justo ou injusto precisa de muitas coisas e pelo menos por esta razão precisa de outros seres humanos A cidade salutar satisfez de modo adequado às necessidades primárias às necessidades do corpo A sa tisfação adequada requer que cada homem exerça apenas uma arte Isso significa que todos fezem quase todo o seu trabalho para outros mas também que outros trabalhem para eles Todos trocam uns com os outros seus próprios produtos como seus próprios produtos haverá propriedade privada ao trabalhar em benefício dos outros todos tra balham em vanuem própria A razão pela qual todos exercerão apenas uma arte é que os homens diferem uns dos outros por natureza isto é cada homem tem o dom para uma arte diferente Uma vez que cada um exercerá a arte para a qual é por natureza mais bemdotado a carga será mais leve para todos A cidade saudável é uma cidade feliz não conhece pobreza nem coerção ou governo nem guerra não se alimenta de animais É de tal forma feliz que cada um de seus membros é feliz não precisa de governo porque há uma harmonia perfeita entre o trabalho de cada um e sua recom pensa ninguém transgride contra ninguém Não precisa de governo porque cada um escolhe por si mesmo a arte para a qual é mais bemdotado não há desarmonia entre dons naturais e preferências Também não há desarmonia entre o que é bom para o indivíduo sua escolha da arte para a qual é mais bem dotado por natureza e o que é bom para a cidade a natureza organizou as coisas de tal forma que não há excedente de ferreiros ou déficit de sapateiros A cidade saudável é feliz porque é justa e é justa porque é feliz na cidade saudável a justiça é fácil ou agradável e livre de qualquer tintura de autossacrifício É justa sem que ninguém se preocupe com a sua justiça é justa por natureza No entanto é considerada deficiente É impossível pelo mesmo motivo por que o anarquismo em geral é impossível O anarquismo seria possível se os homens pudessem permanecer inocentes mas é parte essencial da inocência que seja perdida com facilidade e os homens não são capazes de adquirir conhecimento sem esforço e sem antonismo Dito de outra forma enquanto a cidade saudável é justa em um sentido feltamlhe a virtude ou a excelência a justiça tal qual a que possui não é vinude A virtude é impossível sem trabalho duro esforço ou a repressão do mal em si mesmo A cidade sautfevel é uma cidade em que o mal existe apenas em estado latente A morte só é mencionada quando já se iniciou a transição da cidade saudável para a próxima fese A cidade saudável é chamada de cidade de porcos não por Só crates mas por Glauco que não sabe bem o que diz Falando literalmente a cidade saudável é uma cidade sem porcos Antes que a cidade purificada possa surgir ou melhor ser estabelecida a cidade salutar deve ter deteriorado Sua decadência é provocada pela emancipação do desejo por coisas desnecessárias ou seja pelas coisas que não são necessárias para o bemestar ou para a saúde do corpo Assim emerge a cidade de luxo ou efervescente a cidade 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid 372 11 370 373 caraaerízada pelo empenho na aquisição ilimitada da riqueza Podese esperar que em tal cidade os indivíduos deixarão de exercer a ane única para a qual cada um é designado pela natureza mas exercerão qualquer arte ou combinação de artes que seja mais lucrativa ou que não haverá mais uma estrita correspondência entre o trabalho e a recompensa desta forma haverá insatisfação e conflitos e portanto necessidade de um governo que restaurará a justiça desta forma haverá necessidade de algo mais que também esteve completamente ausente da cidade saudável ou seja a educação pelo menos dos governantes e mais particularmente a educação para a justiça Certamente haverá necessidade de mais territórios e consequentemente haverá guerra a guerra de agressão Com base no princípio um homem uma arte Sócrates exige que o exército seja composto por homens que não tenham nenhuma outra arte além da de guerrear Fica a impressão de que a arte dos guerreiros ou dos guardiões é de longe superior às outras artes Até agora era como se todas as artes fossem de igual valor e a única arte universal ou a única arte que acompanha todas as artes fosse a arte de fezer dinhei ro Agora temos o primeiro vislumbre da verdadeira ordem das artes Essa ordem é hierárquica a arte universal é a arte mais elevada a arte que dirige todas as outras artes e como tal não pode ser exercida por aqueles que se ocupam de outras artes além da mais elevada Essa arte das artes se revelará como a filosofia Por enquanto somos informados apenas de que o guerreiro deve ter uma natureza semelhante à natureza da besta que filosofe o cão Pois os guerreiros devem ser espirituosos e portanto irascí veis e duros por um lado e gentis por outro uma vez que devem ser duros em relação a estranhos e gentis para com seus concidadãos Devem gostar desinteressadamente de seus concidadãos e nutrir uma antipatia desinteressada pelos estrangeiros Os homens que possuem essas naturezas especiais necessitam além de tudo de uma educação espe cial Com vistas ao seu trabalho necessitam de treinamento na arte da guerra Mas essa não é a educação com que Sócrates mais se preocupa Serão por natureza os melhores lutadores e os únicos armados e treinados em armas serão inevitavelmente os únicos possuidores do poder político Além disso tendo terminado a idade da inocência o mal prevalece na cidade e portanto também nos guerreiros A educação de que os guerreiros precisam mais do que quaisquer outros é acima de mdo uma educação em virtude cívica Essa educação é a educação musical uma educação realizada es pecialmente por meio da poesia e da música Nem toda poesia e música são capazes de transformar os homens em bons cidadãos em geral e em bons guerreiros ou guardiões em particular Portanto a poesia e a música que não contribuem para tais fins morais e políticos devem ser banidas da cidade Sócrates está muito longe de exigir que Homero e Sófocles sejam substituídos pelos fabricantes de lixo edificante a poesia que exige para a boa cidade deve ser genuinamente poética Sócrates exige particularmente que os deuses sejam apresentados como modelos de excelência humana isto é do tipo de excelência humana a que os guardiões podem e devem aspirar Os governantes serão selecionados dentre a elite dos guardiões No entanto a educação prescrita por mais P l a iã o 4 1 12 Ibid 342 346 que seja excelente e eficaz náo é suficiente se náo for sustentada pelo tipo certo de ins tituições quer dizer pelo comunismo absoluto ou pela mais completa abolição possível da vida privada todos têm direito a entrar na moradia de todos os outros à vontade Como recompensa por seus serviços para os artesãos propriamente ditos os guardiões não recebem dinheiro de qualquer espécie mas apenas uma quantidade suficiente de alimentos e podemos supor das outras necessidades Vamos ver de que forma a boa cidade descrita até aqui revela que a justiça é boa ou mesmo atraente por si mesma Que a justiça ou a observação da justa proporção entre o trabalho e a recompensa entre trabalhar para outros e em vantiem própria é necessária foi demonstrado na discussão com Trasímaco pelo exemplo do bando de ladrões A educação dos guardiões tal como acordado entre Sócrates e Adimanto não é a educação para a justiça É a educação para a coragem e a moderação A educação musical em particular distinta da educação para o ginasta é a educação para a mode ração o que significa amar o belo isto é aquilo que é por natureza atraente por si só Podese dizer que a justiça no sentido estrito e rigoroso flui da moderação ou a partir da combinação adequada de moderação e de condem Sócrates assim tacitamente esclarece a diferença entre o bando de ladrões e a boa cidade a diferença essencial consiste no fato de que a parte armada e dominante da cidade é vitalizada pelo amor do belo pelo amor de tudo o que é louvável e gracioso A diferença não deve ser procurada no fato de que a boa cidade é guiada em suas relações com outras cidades gregas ou bárbaras por considerações de justiça o tamanho do território da boa cida de é determinado pelas próprias necessidades moderadas da cidade e por nada mais Talvez a dificuldade se revele de modo mais claro a partir do que diz Sócrates quando fida dos governantes Além das outras qualidades requeridas os governantes devem ter a qualidade de zelar pela cidade ou amar a cidade mas o homem terá maior pro babilidade de amar aqueles cujos interesses acredita serem idênticos aos seus próprios ou cuja felicidade acredite ser condição para a sua própria O amor aqui mencionado não é obviamente desinteressado no sentido em que o governante ama a cidade ou seu serviço para a cidade por si mesmos Isso pode explicar por que Sócrates exige que os governantes sejam honrados tanto enquanto vivem como após sua mone De qualquer modo o mais elevado grau de zelo pela cidade e de um para com o outro não ocorrerá a menos que todos sejam levados a crer na mentira de que todos os concida dãos e somente eles são irmãos Para dizer o mínimo a harmonia entre o interesse próprio e o interesse da cidade que foi perdida com a decadência da cidade saudável ainda não foi restaurada Não é de admirar portanto que no início do quarto livro Adimanto expresse sua insatisfação com a situação dos soldados na cidade do acampa mento armado Lida dentro do contexto de todo o argumento a resposta de Sócrates 4 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ibid 392 14 Ibid 423 cf também 398 e 422 15 óé414465466c f 346ss 16 IbidA5 repousa neste sentido somente como membro de uma cidade feliz é que um homem pode ser feliz apenas dentro desses limites pode um homem ou qualquer outra parte da cidade ser feliz compleu dedicação à cidade feliz é justiça Resta saber se a com pleta dedicação à cidade feliz é ou pode ser a felicidade do indivíduo Após estar concluída a maior parte da fundação da boa cidade Sócrates e seus amigos passam a procurar onde estão nela a justiça e a injustiça e procuram saber se para ser feliz o homem deve possuir justiça ou injustiça Examinam primeiro as três outras virtudes além da justiça sabedoria corsm e moderação Na cidade fundada de acordo com a natureza a sabedoria reside nos governantes e somente nos governan tes pois os homens sábios são por natureza a menor parte de qualquer cidade e não seria bom para a cidade se não fossem os únicos ao leme Na boa cidade a corjem reside na classe guerreira pois a condem política diferentemente do destemor brutal surge somente por meio da educação naqueles por natureza dotados para isso A moderação por outro lado pode ser encontrada em todas as partes da boa cidade No presente contexto moderação não significa exatamente o que significava quando foi discutida a educação dos guerreiros mas sim o controle do que é melhor por nature za aquele controle por meio do qual o todo está em harmonia Em outras palavras a moderação é o acordo dos naturalmente superiores e inferiores quanto a qual dos dois deve governar a cidade Uma vez que há diferença entre controlar e ser contro lado devese assumir que a moderação dos governantes não é idêntica à moderação dos governados Enquanto Sócrates e Glauco tiveram facilidade em encontrar as três virtudes mencionadas na boa cidade é difícil encontrar nela a justiça porque como diz Sócrates a justiça é tão evidente nela A justiça consiste em cada um fezer em prol da cidade aquilo para o que sua natureza é mais adequada ou simplesmente em cada um cuidar de seus próprios negócios é em virtude da justiça assim entendida que as outras três virtudes são virtudes Mais precisamente uma cidade é justa se cada uma das suas três partes os que fezem dinheiro os guerreiros e os governantes reali zam o seu próprio trabalho e somente o seu próprio trabalhoA justiça é portanto semelhante à moderação e diversa da sabedoria e da condem não o reduto de uma única parte mas exigida de todas as partes Desta forma a justiça como a modera ção tem um caráter diferente em cada uma das três classes Devese pressupor por exemplo que a justiça dos governantes sábios é afetada por sua sabedoria e a justiça dos fezedores de dinheiro é afetada por sua feita de sabedoria pois se até mesmo a coragem dos guerreiros é apenas a coragem política ou cívica e não a condem pura e simples é lógico que a sua justiça também para não falar da justiça dos fazedores de dinheiro não será justiça pura e simples A fim de descobrir a justiça pura e simples tornase então necessário considerar a justiça no indivíduo Essa consideração seria P latAo 4 3 17 Ibid 427 18 Ibid 433 19 Ibid 434 20 Ibid 430 cf Fidon 82 mais fócil se a justiça no indivíduo fosse idêntica à justiça na cidade isso exigiria que o indivíduo ou melhor sua alma consistisse nos mesmos três tipos de natureza que a cidade Um exame muito provisório da alma parece estabelecer este requisito a alma contém desejo ímpeto ou raiva e razão tal como a cidade consiste em fózedores de dinheiro guerreiros e governantes Assim podemos concluir que um homem é justo se cada uma dessas três partes de sua alma realiza o seu próprio trabalho e somente o seu próprio trabalho ou seja se sua alma está em estado de saúde Mas se a justiça é a saúde da alma e inversamente a injustiça é a doença da alma é óbvio que a justiça é boa e a injustiça é ruim independentemente do fóto de alguém ser conhecido por ser justo ou injusto Um homem é justo se sua parte racional é sábia e domina e se a parte impetuosa sendo o sujeito e aliado da parte racional auxilia no controle da mul tidão de desejos que quase inevitavelmente se tornam desejos de mais dinheiro e ainda mais dinheiro Isso significa no entanto que apenas o homem em quem a sabedoria domina as outras duas partes ou seja somente o homem sábio pode ser verdadeira mente justo Não é de admirar então que o homem justo afinal se revele idêntico ao filósofo Os fózedores de dinheiro e os guerreiros não são verdadeiramente justos mesmo na cidade justa porque sua justiça deriva exclusivamente de um hábito de um tipo ou outro distinto da filosofia portanto no mais profundo de suas almas anseiam pela tirania ou seja pela completa injustiça Vemos então como Sócrates estava certo quando esperava encontrar injustiça na boa cidade Isso não significa negar é claro que como membros da boa cidade os não filósofos agirão de modo muito mais justo do que agiriam se fossem membros de cidades inferiores A justiça dos que não são sábios aparece sob luz diferente quando está sendo considerada a justiça na cidade por um lado e do outro a justiça na alma Esse fóto mostra que é fólho o paralelismo entre a cidade e a alma Esse paralelismo exige que assim como na cidade os guerreiros ocupem um posto mais elevado do que os fózedores de dinheiro assim na alma o ímpeto ocupa um posto mais elevado do que o desejo É muito plausível que aqueles que defendem a cidade contra os inimigos estrangeiros e domésticos e que receberam uma educação musical mereçam respeito maior do que aqueles que não têm responsabilidade pública nem educação musical Mas é muito menos plausível que o ímpeto como tal devesse merecer maior respeito de que o desejo como tal É verdade que o ímpeto inclui uma grande variedade de fe nômenos que vão desde a mais nobre indignação com a injustiça torpeza e maldade e até a raiva de uma criança mimada que se ressente de ser privada de qualquer coisa que deseja não importando se é ruim Mas o mesmo também é verdadeiro do desejo 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 21 Repúblka 441 22 IbidóWM 23 Ibid 441 24 C fító442 25 Ibid 580583 26 Ibid 619 27 Ibid A17 um tipo de desejo é eros que se estende em suas formas saudáveis desde o desejo de imortalidade por meio da descendência até o desejo de imortalidade por meio da fema imortal ao desejo de imortalidade por meio da participação pelo conhecimento das coisas que são imutáveis em todos os aspeaos É questionável então a afirmação de que o ímpao é mais elevado na hierarquia do que desejo como tal Nunca nos es queçamos de que embora exista um eros filosófico não existe ímpeto filosófico ou em outras palavras que visivelmente Trasímaco é muito mais o ímpeto encarnado do que o desejo encarnado A afirmação em causa baseiase em uma abstração deliberada de eros uma abstração caraaerística da República Essa abstração se mostra mais impressionante em dois fàtos quando Sócrates menciona as necessidades fundamentais que dão origem à sociedade humana é omis so quanto à necessidade de procriação e quando descreve o tirano a Injustiça encar nada apresentao como eros encarnado Na discussão temática da respectiva posição hierárquica de ímpeto e desejo Sócrates se cala a respeito de eros Parece haver uma tensão entre eros e a cidade e consequentemente entre eros e a justiça só através da depreciação de eros é que a cidade pode assumir sua existência Bros obedece às suas próprias leis não às leis da cidade não importa que esta seja boa ou não na boa cida de eros está apenas sujeito ao que a cidade exige A boa cidade exige que todo amor próprio todo amor espontâneo pelos próprios pais os próprios filhos os próprios amigos e seres queridos seja sacrificado ao amor comum pelo comum Na medida do possível o amorpróprio deve ser abolido exceto enquanto significar o amor pela cidade esta cidade em particular como a própria cidade Na medida do possível o patriotismo toma o Itar de eros e o patriotismo tem um parentesco mais estreito com o ímpeto a disposição para a luta a irascibilidade a ira e a indignação do que eros Embora seja prejudicial para a alma agarrar Platão pela garganta por não ser um democrata liberal também é ruim encobrir a diferença entre o platonismo e a democracia liberal pois as premissas Platão é admirável e a democracia liberal é admirável não levam genuinamente à conclusão de que Platão seja um democrata liberal A fundação da boa cidade teve início a partir do fato de que os homens são por natureza diferentes o que revelou significar que os homens ocupam por natureza lugares desiguais na hierarquia São desiguais em particular no que diz respeito à sua capacidade de adquirir a virtude A desigualdade que é devida à natureza é aumentada e aprofundada pelos diferentes tipos de educação ou de habituação e pelos diferentes estilos de vida comunistas ou não comunistas de que desfrutam as diferentes partes da boa cidade Como resultado a boa cidade se assemelha a uma sociedade de castas Um relato da boa cidade da República faz com que um personagem platônico que o ouve se recorde do sistema de castas estabelecido no antigo Egito embora seja bastan P latAo 4 5 28 Cf ibid 366 29 Ibid 573 574575 30 Cf ibid 439 te evidente que no t o os governantes eram sacerdotes e não filósofos Decerto na boa cidade da República não é a descendência mas em primeiro lugar os dons naturais de cada um que determinam a classe a que se pertence Mas isso traz uma dificuldade Os membros da classe superior que vive comunisticamente não devem saber quem são seus pais biológicos pois devem reputar como seus pais todos os ho mens e mulheres pertencentes à geração mais velha Por outro lado as crianças bem dotadas da classe inferior não comunista devem ser transferidas para a classe superior e viceversa uma vez que seus dons superiores não são necessariamente reconhecidos no momento do nascimento são susceptíveis de conhecer seus pais biológicos e até mesmo de vincularse a eles o que pareceria incapacitálos para a transferência para a classe superior Há duas maneiras de solucionar essa dificuldade A primeira é expandir o comunismo absoluto até a classe inferior e considerando a relação entre estilo de vida e educação também expandir a educação musical para aquela dasse Segundo Aristóteles Sócrates não definiu se na boa cidade o comunismo absoluto é limitado à classe superior ou se abarca também a classe inferior Deixar essa questão em aberto estaria de acordo com a má opinião professada por Sócrates quanto à importância da classe inferior Ainda assim não há grande dúvida de que Sócrates pretendia limitar tanto o comunismo como a educação musical à classe superior Portanto a fim de eliminar a dificuldade mencionada Sócrates dificilmente poderá evitar que seja here ditária a participação de um indivíduo na classe superior ou inferior e assim violar um dos princípios mais elementares da justiça Além disso podese perguntar se é possível traçar uma linha perfeitamente distinta entre os bemdotados e os sem talento para a profissão de guerreiro e portanto se é possível uma designação perfeitamente justa de indivíduos para a classe superior ou inferior e portanto se a boa cidade pode ser perfeitamente justa Mas seja como for se o comunismo se limita à classe supe rior haverá privacidade tanto na classe dos que fàzem dinheiro e entre os filósofos en quanto filósofos pois pode muito bem haver apenas um único filósofo na cidade mas decerto jamais um rebanho os guerreiros são a única classe que é totalmente política ou pública ou completamente dedicada à cidade desta forma só os guerreiros consti tuem o caso mais evidente da vida justa em um certo sentido da palavra justa É necessário entender a razão pela qual o comunismo se limita à classe superior ou qual é o obstáculo natural para o comunismo Aquilo que é por natureza privado ou próprio do homem é o corpo e somente o corpo As necessidades ou desejos do cor po induzem os homens a ampliarem tanto quanto possível a esfera do privado do que é próprio de cada homem Esse empenho tão grande é contrariado pela educação 46 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoifncA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 31 7íotí24 32 República 401 421422 460 543 33 PoUtica 1264 1317 34 República 421 434 35 óirf415431456 36 Reconsiderar ibid 427 37 tó464cfIí739 musical que engendra a moderação ou seja um treinamento mais rigoroso da alma do qual ao que parece apenas uma minoria dos homens é capaz No entanto esse tipo de educação não extirpa o desejo natural de cada um por suas próprias coisas ou seres humanos os guerreiros não aceitarão o comunismo absoluto se não estiverem sujeitos aos filósofos Assim fica claro que o esforço em proveito próprio em última análise é contrabalançado somente pela filosofia pela busca da vercbde que como tal não pode ser propriedade privada de niiém Ao passo que o privado é por excelência o corpo o comum por excelência é a mente a mente pura ao contrário da alma em geral A superioridade do comunismo em relação ao não comunismo tal como ensinada na República só é inteligível como um reflexo da superioridade da filosofia sobre a não fi losofia o que contradiz visivelmente o resultado do parrafo anterior Essa contradição pode e deve ser resolvida pela distinção entre os dois sentidos de justiça Essa distinção não pode ser esclarecida antes de se ter compreendido os ensinamentos da República acerca da relação entre a filosofia e a cidade Devemos portanto começar de novo No final do quarto livro temse a impressão de que Sócrates completara a tare fe que Glauco e Adimanto lhe impuseram pois Sócrates demonstrara que a justiça enquanto saúde da alma é desejável não só por causa de suas conseqüências mas sobretudo por si mesma Mas então no início do quinto livro somos repentinamen te confrontados por um novo começo pela repetição de uma cena que ocorrera no início Tanto no começo quanto no início do quinto livro e em nenhum outro lugar os companheiros de Sócrates tomam uma decisão ou melhor fezem uma voação e Sócrates que não teve qualquer participação na decisão obedece Os companheiros de Sócrates comportamse em ambos os casos como uma cidade uma assembleia de cidadãos embora a menor cidade possível Mas há uma diferença decisiva entre as duas cenas enquanto Trasímaco esuva ausente da primeira cena passou a ser um membro da cidade na segunda Poderia parecer que a fundação da boa cidade exige que Trasímaco seja convertido em um de seus cidadãos No início do quinto livro os companheiros de Sócrates forçamno a abordar o assunto do comunismo em relação às mulheres e às crianças Não se opõem à proposta em si da maneira como Adimanto se opusera ao comunismo em relação à propriedade no início do quarto livro pois nem Adimanto é mais o mesmo homem que era naque le momento Só desejam saber de modo preciso como será conduzido o comunismo em relação às mulheres e às crianças Sócrates substitui essa pergunta por essas questões mais incisivas 1 Esse comunismo é possível 2 É desejável Parece que o comunis mo em relação às mulheres é a conseqüência ou pressuposto da igualdade entre os dois sexos em relação ao trabalho que devem realizar a cidade não pode excluir metade de sua população adulta de sua força de trabalho e de combate e não há diferença essen cial entre homens e mulheres em relação aos dons naturais para as diversas artes A exi gência de igualdade entre os dois sexos requer uma reviravolta completa dos costumes P latAo 4 7 38 CfííWci449450com327328 39 Cf ibid 369 uma revolução que é aqui apresentada menos como chocante de que como ridícula a demanda é justificada pelo fato de que somente o útil é justo ou nobre e que somente o que é ruim ou seja contra a natureza é risível a diferença de conduta entre os dois sexos de acordo com o costume é rejeitada por ser contra a natureza e a transformação revolucionária tem como intuito produzir a ordem de acordo com a natureza Pois a justiça exige que cada ser humano pratique a arte para a qual ele ou ela foi equipado pela natureza independentemente do que ditem o costume ou convenção Sócrates demonstra primeiro que é possível a igualdade entre os dois sexos isto é de acordo com a natureza dos dois sexos tal como a sua natureza se revela quando examinada no que diz respeito à aptidão para a prátíca das várias artes e em seguida demonstra que tal igualdade é desejável Ao provar essa possibilidade Sócrates explicitamente abstrai a diferença entre os dois sexos no que diz respeito à procriação Isso significa que o argumento da República como um todo segundo o qual a cidade é uma comunidade de artesãos do sexo masculino e feminino abstrai no mais alto grau possível a mais elevada atividade essencial para a cidade que ocorre por natureza e não pela arte Sócrates então voltase para o comunismo em relação às mulheres e às crianças e demonstra que é desejável porque tornará a cidade mais una e portanto mais per feita do que seria uma cidade composta por famílias individuais a cidade deve ser o mais semelhante possível a um único ser humano ou a um único organismo vivo isto é a um ser natural A essa altura entendemos um pouco melhor por que Sócrates iniciou sua discussão da justiça com a pressuposição de um importante paralelismo entre a cidade e o indivíduo preocupavase antecipadamente com a maior unidade possível da cidade A abolição da família não significa naturalmente a introdução de licenciosidade ou promiscuidade significa uma regulamentação extremamente rígida das relações sexuais a partir do ponto de vista do que é útil para a cidade ou do que é necessário para o bem comum A deferência ao útil podese dizer substitui a defe rência pelo santificado ou sagrado machos e fêmeas humanos devem ser acasalados exclusivamente em função da produção da melhor prole dentro do espírito em que procedem os criadores de cães aves e cavalos as reivindicações de eros são simples mente silenciadas Obviamente a nova ordem afeta as proibições habituais contra o incesto as regras mais sagradas da justiça costumeira No novo regime ninguém saberá mais quem são seus pais filhos irmãos e irmãs biológicos mas todos terão em conta todos os indivíduos da geração mais velha como seus pais e mães os de sua pró pria geração como seus irmãos e irmãs e os da geração mais jovem como seus filhos Isso significa porém que a cidade construída de acordo com a natureza vive em um 48 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 40 Ibid 455 456 41 Ibid 455 42 Ibid 462 464 43 Cf ibid 458 44 Cf ibid 461 45 Ibid 463 aspecto de suma importância mais de acordo com a convenção do que de acordo com a natureza Por essa razão ficamos decepcionados ao ver que apesar de lidar com a questão de saber se é possível o comunismo em relação às mulheres e as crianças Sócrates a abandona de pronto Uma vez que a instituição em causa é indispensável para a boa cidade Sócrates deixa em aberto a questão da possibilidade da boa cidade ou seja da cidade justa como tal E isso acontece com seus ouvintes e com os leitores da República após terem feito os maiores sacrifícios tal como o sacrifício de eros bem como da família para o bem da cidade justa Não se permite por muito tempo que Sócrates se furte de seu terrível dever de responder à pergunta sobre a possibilidade da cidade justa O viril Glauco obrigao a enfrentar essa questão Talvez devêssemos dizer que aparentemente fugindo ao tema da guerra assunto mais fácil em si e mais atraente para Glauco do que o comunismo de mulheres e crianças todavia tratando o assunto de acordo com as inflexíveis exi gências da justiça e assim privandoo de grande parte de sua atração Sócrates obriga Glauco a forçálo a voltar à questão fundamental Seja como for a questão para a qual Sócrates e Glauco se voltam não é a mesma que abandonaram A questão que deixa ram de lado foi a possibilidade da boa cidade no sentido de ela estar de acordo com a natureza humana A questão a que retornam é se a boa cidade é possível no sentido de poder ser criada pela transformação de uma cidade real Podese pensar que a última questão pressuponha uma resposta afirmativa à primeira pergunta o que não é total mente correto Ficamos sabendo agora que nosso esforço conjunto para descobrir o que é justiça para que fôssemos capazes de perceber como esta se relaciona à felici dade foi a busca pela própria justiça como um modelo Ao procurar pela justiça como um modelo deixávamos implícito que o homem justo e a cidade justa não serão perfeitamente justos mas decerto a própria justiça se aproxima de si mesma com particular contiguidade somente a justiça em si é perfeitamente justa Isso implica que nem mesmo as instituições características da cidade o comunismo absoluto a igualdade dos sexos e o governo dos filósofos são simplesmente justos Ora a própria justiça não é possível no sentido de que é capaz de vir a ser porque é sempre sem poder sofier qualquer alteração que seja A justiça é uma ideia ou forma uma das muitas ideias As ideias são as únicas coisas que a rigor são ou seja são sem qualquer mistura de não ser porque estão acima de qualquer vir a ser e tudo o que vem a ser está entre ser e não ser Uma vez que as ideias são as únicas coisas que estão acima de qualquer mudança são em certo sentido a causa de todas as mudanças e de todas as coisas mutáveis Por exemplo a ideia de justiça é a causa de qualquer coisa os seres humanos cidades leis mandamentos ações tornarse justa São seres autos subsistentes que subsistem sempre Têm esplendor máximo Por exemplo a ideia de P la t ã o 49 46 Ibid 466 47 Ibid 473 48 Ibid 472 49 óí479cf538ss justiça é perfeitamente justa Mas seu esplendor escapa aos olhos do corpo As ideias sáo visíveis apenas para o olho da mente e a mente enquanto mente nada percebe além de ideias No entanto como os fatos indicam que existem muitas ideias e que a mente que percebe as ideias é radicalmente diferente das ideias em si deve haver algo maior do que as ideias o bem ou a ideia do bem que é em certo sentido a causa de todas as ideias assim como da mente percebêlas É apenas por meio da percepção do bem por parte dos seres humanos que são por natureza dotados para percebêla que a boa cidade pode emergir e subsistir por algum tempo É muito difícil entender a doutrina das ideias que Sócrates expõe para Glauco para começar é absolutamente incrível sem mencionar que parece ser fimtástica Até agora foinos apontado que a justiça é flmdamentalmente um determinado caráter da alma humana ou da cidade ou seja algo que não é autossubsistente ora pede se a nós que acreditemos que é autossubsistente estando em casa como se estivesse em um lugar totalmente diferente dos seres humanos e tudo o mais que participa da justiça Ninguém jamais conseguiu dar uma explicação satisfíitória ou clara dessa doutrina das ideias É possível no entanto definir de maneira bastante precisa a di ficuldade central Ideia significa sobretudo a aparência ou a forma de uma coisa significa portanto um tipo ou classe de coisas unidas pelo fato de todas possuírem a mesma aparência ou seja o mesmo caráter e potência ou a mesma natureza em vista disso significa a classecaráter ou a natureza das coisas pertencentes à ciasse em questão a ideia de uma coisa é o que queremos dizer ao tentar descobrir o quê ou a natureza de uma coisa ou uma classe de coisas ver a Introdução A conexão entre ideia e natureza transparece na República dos fetos de que a ideia de justi ça é denominada o que é justo por natureza e de que as ideias em contradistinção com as coisas que não são ideias ou com as coisas que são percebidas sensoriamente são consideradas estando na natureza Isso não explica contudo por que as ideias são apresentadas como distintas das coisas que são o que são por participar de uma ideia ou em outras palavras por que a canidade o caráterclasse dos cães deve ser o cão verdadeiro Parece que dois tipos de fenômenos apoiam a afirmação de Sócrates Em primeiro liar as coisas matemáticas como tal nunca podem ser encontradas entre as coisas sensórias nenhuma linha desenhada na areia ou no papel é uma linha tal como definida pelo matemático Em segundo e acima de tudo o que entendemos por justiça e coisas afins não é como tal na sua pureza e perfeição necessariamente encontrável em seres humanos ou sociedades ao contrário parece que o que se enten de por justiça transcende tudo o que os homens jamais poderão alcançar exatamente os mais justos dos homens eram e são os que têm maior consciência das deficiências de sua justiça Sócrates parece dizer que o que é evidentemente verdadeiro das coisas matemáticas e das virtudes é universalmente verdadeiro há uma ideia da cama ou da 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 50 Ibid 517 51 Cf ibid 509510 52 Ibid 501 597 mesa tal como do círculo e da justiça Ora quando é obviamente razoável dizer que um círculo perfeito ou a perfeita justiça transcendem tudo o que jamais poderá ser visto é difícil dizer que a cama perfeita é algo em que homem algum jamais poderá descansar No entanto Glauco e Adimanto aceitam essa doutrina de ideias com relati va facilidade com facilidade maior do que o comunismo absoluto Esse fàto paradoxal não nos atiie com força suficiente porque de alguma forma acreditamos que esses jovens capazes estudam filosofia sob a orientação do professor Sócrates e ouviramno expor a doutrina das ideias em inúmeras ocasiões caso não acreditemos que a Repú blica seja um tratado filosófico dirigido a leitores fiuniliarizados com diálogos mais elementares ou anteriores Todavia Platão só se dirige aos leitores da RepMica por meio da conversa de Sócrates com Glauco e os outros interlocutores da República e Platão como o autor da República não siere que Glauco sem falar em Adimanto e nos demais estudou profundamente a doutrina das ideias Porém enquanto não se pode crer que Glauco e Adimanto tenham uma verdadeira compreensão da doutri na das ideias eles já ouviram dizer e de certa forma sabem que não sáo deuses como Dike ou Direito e Nike ou Vitória que não é esta ou aquela vitória ou esta ou aquela estátua de Nike mas um ser autossubsistente que é a causa de cada vitória e que é de um esplendor inacreditável De modo mais geral sabem que existem deuses seres autossubsistentes que são as causas de tudo o que é bom que são de esplendor ina creditável e que não podem ser apreendidos pelos sentidos pois nunca mudam sua forma Mas isso não significa nar que há uma profunda diferença entre os deuses tal como entendidos na teologia da República e as ideias ou que na República os deuses sejam de alguma forma substituídos pelas idéias Tratase apenas de afirmar que aqueles que aceitam essa teologia e tiram todas as conclusões a partir dela prova velmente chegarão à doutrina das ideias Devemos agora retornar à questão da possibilidade da cidade justa Aprende mos que a própria justiça não é possível no sentido de que qualquer coisa que venha a ser jamais pode ser perfeitamente justa Aprendemos logo depois que não só a pró pria justiça mas também a cidade justa não é possível no sentido indicado Isso não significa que a cidade justa tal como definida e esboçada na República seja uma ideia como a própria justiça e menos ainda que seja um ideal ideal não é um termo platônico A cidade justa não é apenas um ser autossubsistente como a ideia de justiça situada por assim dizer em um liar ultracelestial Seu status é semelhante ao de uma pintura de um ser humano perfeitamente belo ou seja a pintura é apenas em virtude do ato de pintar do pintor mais precisamente a cidade justa é somente no discurso é apenas em virtude de ter sido compreendida com vistas à própria justiça ou ao que é correto por natureza por um lado e o humano demasiado humano por outro P latão 51 53 Cf ibid 507 com 596 c 532 contrastar com Fédon 65 e 74 54 República 536 cf 487 55 Cfírf379e380ss 56 Ibid 379 Embora a cidade justa esteja decididamente em localização mais baixa na hierarquia do que a própria justiça até mesmo a cidade justa como um modelo não é capaz de vir a ser como foi projetada só se podem esperar aproximações dela nas cidades que são de fato e não apenas no discurso Mas não está claro o que isso significa Signifi caria que a melhor solução viável seria uma conciliação de tal modo que nos devemos reconciliar com um certo grau de propriedade privada p cx devemos permitir que cada guerreiro tenha seus próprios sapatos e afins enquanto viver e um certo grau de desigualdade entre os sexos p ex certas funções militares c administrativas continu arão sendo prerrogativa dos guerreiros do sexo masculino Não há qualquer motivo para supor que foi isso que Sócrates quis dizer À luz do trecho seguinte da conversa parece mais plausível a sugestão que se segue A asserção segundo a qual a cidade justa não pode vir a ser tal como projetada é provisória ou abre caminho para a asserção de que a cidade justa embora capaz de vir a ser tem pouca probabilidade de vir a ser De qualquer forma imediatamente após ter declarado que só é razoável esperar uma apro ximação da boa cidade Sócrates suscita a indagação que mudança viável nas cidades reais será a condição necessária e suficiente para sua transformação em cidades boas Sua resposta é a coincidência entre poder político e filosofia os filósofos devem go vernar como reis ou os reis devem verdadeira e adequadamente filosofar Como mos tramos em nosso resumo do primeiro livro da RepúbUca essa resposta não é de todo surpreendente Se justiça significa menos dar ou conceder a cada um o que a lei atribui a ele do que dar ou conceder a cada um o que é bom para sua alma mas o que é bom para sua alma são as virtudes seguese que não pode ser verdadeiramente justo quem não conhece as virtudes em si ou em geral as ideias ou quem náo é filósofo Ao responder à pergunta de como seria possível a boa cidade Sócrates apresenta a filosofia como um tema da República Isso significa que na República a filosofia não é apresentada como a finalidade do homem o fim pelo qual o homem deve viver mas como um meio para a realização da cidade justa a cidade como acampamento armado que se caracteriza pelo comunismo e igualdade absolutos dos sexos na classe alta a classe dos guerreiros Uma vez que o governo dos filósofos náo é apresentado como um ingrediente da cidade justa mas apenas como um meio para a sua realiza ção Aristóteles está justificado em desconsiderar esta instituição em sua análise crítica da República Política II De qualquer forma Sócrates consegue reduzir a questão da possibilidade da cidade justa à questão da possibilidade da coincidência entre filosofia e poder político Supor que tal coincidência seja possível é para começar demasiado incrível todos podem ver que os filósofos são inúteis ou mesmo prejudiciais na políti ca Sócrates que teve suas próprias experiências com a cidade de Atenas experiências que viriam a ser coroadas com a pena capital considera esta acusação dos filósofos como bem fundamentada embora necessitando de aprofundamento Sócrates traça o antagonismo das cidades para com os filósofos primordialmente até as cidades as cidades atuais isto é as cidades não governadas por filósofos são como assembléias 52 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 57 Ibid 472473 cf 500501 com 484 e 592 de loucos que corrompem a maioria daqueles aptos a se tornarem filósofos e contra quem aqueles que conseguiram apesar de todas as adversidades se tornar filósofos voltamlhes as costas com justificada repugnância Mas Sócrates está longe de absolver completamente os filósofos Somente uma mudança radical por parte tanto das cidades como dos filósofos poderia produzir a harmonia entre eles para a qual parecem ter sido destinados pela natureza A mudança consiste precisamente disto que as cidades dei xem de relutar em serem governadas por filósofos e os filósofos debcem de relutar em governar as cidades Tal coincidência entre filosofia e poder político é muito difícil de conseguir muito improvável mas não impossível Para dar origem à mudança neces sária por parte da cidade dos não filósofos ou da multidão o tipo certo de persuasão é necessário e suficiente O tipo certo de persuasão é fornecido pela arte da persuasão a arte de Trasímaco dirigida pelo filósofo e ao serviço da filosofia Não é de admirar que em nosso contexto Sócrates declare que ele e Trasímaco acabam de se tornar amigos A multidão dos não filósofos é de boa índole e portanto persuasível pelos filósofos Mas se assim é por que os filósofos da Antiguidade para não fidar do próprio Sócrates não conseguiram convencer a multidão quanto à supremacia da filosofia e dos filósofos e assim engendrar o governo dos filósofos e com ele a salvação e a felicidade de suas cidades Por mais estranho que possa parecer nesta parte do argumento parece ser mais fácil convencer a multidão a aceitar o governo dos filósofos do que convencer os filósofos a governarem a multidão os filósofos não podem ser persuadidos só podem ser compelidos a governar as cidades Somente os não filósofos poderiam obrigar os filósofos a cuidarem das cidades Mas dado o preconceito contra os filósofos essa com pulsão não se concretizará se em primeiro lugar os filósofos não persuadirem os não filósofos a compelirem os filósofos a governálos e esta persuasão não se concretizará dada a relutância dos filósofos em governar Chegamos então à conclusão de que a cidade justa não é possível devido à relutância dos filósofos em governar Por que os filósofos relutam em governar Sendo dominados pelo desejo do saber como a única coisa necessária ou sabendo que a filosofia é o bem mais agradável e mais abençoado os filósofos não dispõem de lazer para examinar os assuntos huma nos muito menos para cuidar deles Os filósofos creem que ainda em vida já estarão firmemente estabelecidos longe de suas cidades nas Ilhas dos Abençoados Assim só a coerção poderia induzilos a tomar parte na vida política da cidade justa ou seja da cidade que considera a educação adequada dos filósofos como sua tarefa mais im portante Por terem apreendido o verdadeiramente grandioso os assuntos humanos parecem insignificantes aos filósofos A justiça própria dos filósofos a sua abstenção de ofender seus semelhantes emerge do desprezo pelas coisas pelas quais os não filó P latão 5 3 58 Ibid 498 502 59 Ibid 499 500 520 521 539 60 Ibid455QV5l7 61 Ibid 519 sofos ativamente competem Sabem que a vida náo dedicada à filosofia e portanto em particular a vida política é como a vida em uma caverna tanto que a cidade pode ser identificada com a Cavema Os habitantes da caverna ou seja os náo filóso fos enxergam apenas as sombras de artefiitos Ou seja o que quer que percebam compreendemno à luz de suas opiniões santificadas pela sanção dos legisladores ou seja considerando as coisas justas e nobres isto é as opiniões convencionais e não sabem que suas mais caras convicções não possuem status mais elevado do que meras opiniões Pois se até a melhor cidade se ergue ou cai por uma íàlsidade fundamental embora uma fidsidade nobre podese esperar que as opiniões sobre as quais se apoia a cidade imperfeita ou nas quais acredita não serão verdadeiras São exatamente os melhores dos não filósofos os bons cidadãos que se prendem com paixão a essas opi niões e que portanto são violentamente contrários à filosofia que é a tenutiva de transcender a opinião em direção ao conhecimento a multidão não é tão persuasível pelos filósofos quanto julgamos com esperança em uma rodada anterior do argumen to Esta é a verdadeira razão pela qual a coincidência entre filosofia e poder poUtico é para dizer o mínimo extremamente improvável a filosofia e a cidade tendem a distanciarse uma da outra em direções opostas A dificuldade de superar a tensão natural entre a cidade e os filósofos é apontada por Sócrates que se desvia da questão de saber se a cidade só é possível no sentido de ser algo que se conforma à natureza humana para a questão de saber se a cidade só é possível no sentido de poder ser criada pela transformação de uma cidade real Quanto à primeira questão entendida em contradistinção à segunda vemos que aponta para a questão de saber se a cidade justa não poderia passar a existir por meio de um assentamento conjunto de homens que estiveram totalmente dissociados antes É a essa pergunta que Sócrates tacitamente dá uma resposta negativa ao se voltar para a questão de saber se a cidade justa poderia ser criada pela transformação de uma cidade real A boa cidade não pode ser criada a partir de seres humanos que ainda não tenham sido submetidos a alguma disciplina humana dos primitivos ou animais estúpidos ou selvíens gentis ou cruéis seus membros em potencial já devem ter adquirido os rudimentos da vida civilizada O longo processo por meio do qual os homens pri mitivos se tornam homens civilizados não pode ser obra do fundador ou do legislador da boa cidade mas é pressuposto por ele Mas por outro lado se a boa cidade em potencial deve ser uma cidade antiga os seus cidacfeos terão sido completamente mol dados pelas leis ou costumes imperfeitos da sua cidade santificados pela idade avança da e estarão apaixonadamente presos a eles Sócrates é portanto compelido a rever a sua proposta original segundo a qual o governo dos filósofos é a condição necessária 5 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 62 Ibid 486 63 Ibid 539 64 Ibid 514515 65 Ibid 517 66 Cf ibid 376 e suficiente para a criação da cidade justa Considerando que sugerira originalmente que a boa cidade passará a existir se os filósofos se tornarem reis Sócrates finalmente opina que a boa cidade passará a existir se quando os filósofos tiverem se tornado reis expulsarem da cidade todos com idade superior a 10 anos ou seja se separarem as crianças completamente dos hábitos de seus pais e parentes e trouxeremnas para os hábitos inteiramente novos da boa cidade Quando assumem uma cidade os filóso fos procuram assegurar que seus súditos não sejam selvagens ao expulsar todos com mais de 10 anos garantem que seus súditos não sejam escravizados pela civilidade tradicional A solução é primorosa Mas nos íaz peiuntar como os filósofos podem compelir todos com mais de 10 anos a obedecer submissos o decreto de expulsão uma vez que ainda não podem ter treinado uma classe de guerreiros absolutamente obediente a eles Isso não é negar que Sócrates poderia convencer grande parte dos melhores jovens e mesmo alguns dos mais velhos a acreditar que a multidão poderia ser não compelida na verdade mas persuadida pelos filósofos a deixar sua cidade e seus filhos e viver nos campos para que a justiça seja feita A parte da República que trata da filosofia é a mais importante do livro Assim oferece a resposta para a pergunta sobre a justiça até o ponto em que tal resposta é oferecida na República A resposta explícita à questão do que é justiça fora bastante vaga a justiça consiste em cada parte da cidade ou da alma fiizer o trabalho para o qual é por natureza mais dotada ou uma espécie de fiizer esse trabalho uma parte é justa se fez o seu trabalho ou se preocupa com seus próprios negócios de uma cer ta maneira A imprecisão será removida se a substituirmos de uma certa maneira por da maneira melhor ou bem a justiça consiste em cada parte fezer bem o seu trabalho Por conseguinte o homem justo é o homem em quem cada parte da alma fez bem seu trabalho Uma vez que a parte mais elevada da alma é a razão e uma vez que esta parte não pode fazer bem o seu trabalho se as outras duas partes também não fizerem bem o seu somente o filósofo pode ser verdadeiramente justo Mas o trabalho que o filósofo realiza bem é intrinsecamente atraente e é de fato o trabalho mais agradável totalmente independente de suas conseqüências Portanto é apenas na filosofia que a justiça e a felicidade coincidem Em outras palavras o filósofo é o único indivíduo que é justo no sentido em que a boa cidade é justa o filósofo é au tossuficiente verdadeiramente livre ou sua vida é tão pouco dedicada ao serviço de outras pessoas quanto a vida da cidade é dedicada ao serviço de outras cidades Mas o filósofo na boa cidade é justo também no sentido de que serve aos seus semelhantes a seus concidadãos à sua cidade ou que obedece à lei Ou seja o filósofo é justo tam bém no sentido de que todos os membros da cidade jusu e de certa forma de todos os membros justos de qualquer cidade independentemente de serem filósofos ou não filósofos são justos Todavia a justiça neste segundo sentido não é intrinsecamente P latAo 5 5 67 Ibid 54054l cf 499 501 68 Ibid 433 e 443 cf Aristóteles Ética a Nicômaco 1098 712 69 República 583 atraente ou uma escolha sábia por si mesma mas é boa somente tendo em vista as suas conseqüências ou náo é nobre mas necessária o filósofo serve à sua cidade até mesmo à boa cidade náo em busca da verdade por inclinação natural por eros mas sob compulsão É desnecessário acrescentar que a compulsão não deixa de ser com pulsão se é autocompulsão De acordo com uma noção de justiça que é mais comum do que a sugerida pela definição de Sócrates a justiça consiste em não prejudicar os outros assim entendida a justiça se revela no caso mais elevado como um mero concomitante da grandeza de alma do filósofo Mas se a justiça é tomada no sentido mais amplo segundo o qual consiste em dar a cada um o que é bom para sua alma é preciso distinguir entre os casos em que esta doação é intrinsecamente atraente para o doador estes serão os casos dos filósofos potenciais e aqueles em que é apenas um dever ou compulsão Esta distinção contudo subjaz à diferença entre as conversas voluntárias de Sócrates as conversas que espontaneamente procura e as compulsórias as que não consegue evitar com dignidade Esta distinção clara entre a justiça que é uma escolha sábia por si mesma totalmente independente de suas conseqüências e idêntica à filosofia e a justiça que é meramente necessária e idêntica no caso mais elevado à atividade política do filósofo é possibilitada pela abstração de eros que é característica da República Pois se pode muito bem dizer que não há nenhuma razão para que o filósofo não se envolva em atividades políticas devido ao tipo de amor por si mesmo que é o patriotismo Ao chegar ao final do sétimo livro a justiça foi completamente desvendada Só crates de fato cumpriu o dever que lhe impuseram Glauco e Adimanto demonstrar que a justiça bem compreendida é uma escolha sábia por si mesma independente mente de suas conseqüências e portanto que a justiça é sem limitações preferível à injustiça No entanto a conversa continua pois parece que a nossa compreensão clara de justiça não inclui uma compreensão clara da injustiça mas deve ser complementa da por uma compreensão clara da cidade totalmente injusta e do homem totalmente injusto só após vermos a cidade totalmente injusta e o homem totalmente injusto com a mesma clareza com que vimos a cidade inteiramente justa e o homem intei ramente justo é que seremos capazes de julgar se devemos seguir Trasímaco o amigo de Sócrates que escolhe a injustiça ou o próprio Sócrates que escolhe a justiça Tal escolha por sua vez exige que seja mantida a ficção da possibilidade da cidade justa Na realidade a República nunca abandona a ficção de que seja possível a cidade jus ta como uma sociedade de seres humanos distinta de uma sociedade de deuses ou filhos dos deuses Quando Sócrates se volta para o estudo da injustiça tornase até necessário que reafirme esta ficção com mais ênfase do que nunca A cidade injusta será mais feia e mais condenável na proporção em que a cidade justa seja mais possível 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 70 Ibid 519520 540 71 Considerar Apologia de Sócrates 30 72 República 545 cf 498 73 Leis7ò9 Mas a possibilidade da cidade justa permanecerá duvidosa se a cidade justa nunca for real Assim Sócrates afirma agora que a cidade justa foi um dia real Mais precisa mente Sócrates fàz com que as Musas o afirmem ou melhor que o deixem implícito A asserção de que a cidade justa foi um dia real é por assim dizer uma afirmação mítica que combina com a premissa mítica de que o melhor é o mais antigo Sócrates afirma então pela boca das Musas que a boa cidade era real no início antes do suipmento dos tipos inferiores de cidades as cidades inferiores são formas decadentes da boa cidade fragmentos conspurcados da cidade pura que foi completa portanto quanto mais próxima no tempo uma espécie de cidade inferior estiver da cidade justa melhor ou viceversa É mais adequado felar dos regimes bons e inferiores do que das cidades boas e inferiores observemos a transição de cidades para regimes em 543544 Regime é nossa tradução do grego politeia O livro que denominamos República é in titulado Politeia em grego O termo politeia é comumente traduzido por constituição e designa a forma de governo entendida como a forma da cidade ou seja como aquilo que dá à cidade o seu caráter por determinar a meta que a cidade em questão persegue ou que encara como a mais elevada e simultaneamente o tipo de homens que gover nam a cidade Por exemplo a oligarquia é o tipo de regime em que os ricos governam e portanto a admiração pela riqueza e pela aquisição de riqueza vitaliza a cidade como um todo e a democracia é o tipo de regime em que todos os homens livres governam e portanto a liberdade é a meta que a cidade busca De acordo com Sócrates há cinco tipos de regime 1 reino ou aristocracia o governo do melhor homem ou dos melhores homens que é direcionado para o bem ou a virtude o regime da cidade 2 timocra cia o governo dos amantes da honra ou dos homens ambiciosos que é voltado para a superioridade ou a vitória 3 oligarquia ou governo dos ricos em que a riqueza recebe a maior apreciação 4 democracia o governo dos homens livres em que a liberdade é objeto da maior apreciação 5 tirania o governo do homem em que impera a injustiça mais completa e mais desavergonhada A ordem decrescente dos cinco tipos de regime foi emulada da ordenação decrescente de Hesíodo das cinco raças de homens as raças de ouro prata bronze a raça divina de heróis a raça de ferro Notamos de imediato que o equivalente platônico de raça divina de heróis de Hesíodo é a democracia Logo veremos o motivo dessa correspondência de aparência peculiar A República baseiase no pressuposto de que existe um paralelismo estrito entre a cidade e a alma Por conseqüência Sócrates afirma que assim como existem cinco ti pos de regime da mesma forma existem cinco tipos de caráter dos homens o homem timocrata por exemplo corresponde à timocracia A distinção que por pouco tempo foi popular na atual ciência política entre as personalidades autoritárias e as demo cráticas como correspondentes à distinção entre as sociedades autoritárias e as de mocráticas era um pálido e grosseiro reflexo da distinção socrática entre o real ou aristocrático o timocrático o oligárquico o democrático e a alma ou o homem tirâ P latAo 5 7 74 Cf República 547 75 C f ibid 546547a e Hesíodo Os Trabalhos e os Dias 106 1 nico correspondentes aos regimes aristocráticos timocrático oligárquico democráti co e tirânico Neste contexto convém mencionar que ao descrever os regimes Sócra tes nâo fala em ideologias que lhes pertençam está preocupado com o caráter de cada tipo de regime e com a meta que manifesta e explicitamente busca bem como com a justificação política da meta em questão em contradistinção com qualquer justificação transpolítica decorrente da cosmologia teologia metafísica filosofia da história mito e assim por diante Em seu estudo dos regimes infisriores Sócrates ana lisa em cada caso primeiro o regime e em seguida o indivíduo ou a alma correspon dentes Sócrates apresenta o regime e o indivíduo correspondente como tendo emer gido do precedente Vamos considerar aqui apenas sua descrição da democracia tanto por este assunto ser mais relevante para os cidadãos de uma democracia como por sua importância intrínseca A democracia emerge da oligarquia que por sua vez emergiu da timocracia o governo dos guerreiros insuficientemente musicais que se caracteri zam pela supremacia do espírito cívico A oligarquia é o primeiro regime em que o desejo é supremo Na oligarquia o desejo dominante é pela riqueza ou dinheiro ou ganância ilimitada O homem oligárquico é frugal e laborioso controla todos os seus desejos que não sejam o desejo pelo dinheiro não tem educação e possui uma hones tidade superficial derivada do autointeresse mais conspícuo A oligarquia deve dar a cada um o direito absoluto de dispor de seus bens como lhe aprouver Assim torna inevitável o surgimento de zangões ou seja de membros da classe dominante que se veem sobrecarregados por dívidas ou já falidos e portanto desprovidos de direitos de mendigos que sentem uma fidta desesperada de sua fortuna desperdiçada e têm esperança de recuperar sua fortuna e poder político por meio de uma mudança de re gime existências catilinárias Além disso os próprios oligarcas corretos sendo tanto ricos como despreocupados com a virtude e a honra engordam a si mesmos e especialmente a seus filhos mimados e molengas Assim passam a ser desprezados pelos pobres magros e resistentes A democracia surge quando os pobres tomando consciência de sua superioridade sobre os ricos e talvez liderados por alguns zangões que sem como traidores de sua classe e possuem competências que normalmente apenas os membros da classe dominante possuem tornamse num momento oportu no mestres da cidade por derrotar os ricos matar e exilar uma parte deles e permitir que os demais vivam com eles na posse de plenos direitos de cidadania A própria de mocracia é caracterizada pela liberdade que inclui o direito de dizer e fiizer tudo o que se deseja todos podem adotar o modo de vida que mais lhes agrade Por conseguinte a democracia é o regime que promove a maior variedade possível todos os modos de vida todos os regimes podem ser encontrados nela Por conseguinte devemos acrescentar 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 76 NT Quase todos os gênios conhecem como uma hise de seu desenvolvimento a existência catili nária sentimento do ódio de vingança e de rebelião contra mdo o que já existe contra tudo o que está se fazendo Catilina e forma preexistente do todo César In Nietzsche Friedrich Wilhelm O crepúsculo dos ídolos Tradução Edson Bini revisão Márcio Pugliesi Do orjnal alemão Gõtzen Dãmmerung Curitiba Hemus 2001 n 45 p 88 a democracia é o único regime além do melhor em que o filósofo pode viver seu pe culiar modo de vida sem ser incomodado é por esta razão que com algum exsero podese comparar a democracia com a idade da raça divina dos heróis de Hesíodo a qual se assemelha mais do que qualquer outra à idade de ouro Certamente em uma democracia o cidadão que é filósofo não tem nenhuma obrigação de participar da vida política ou de ocupar algum cargo Assim somos levados a perguntar por que Sócrates não atribuiu à democracia o posto mais elevado entre os regimes inferiores ou melhor o posto mais elevado simplesmente uma vez que o melhor regime não é possível Poderíamos dizer que demonstrou sua preferência pela democracia por seus atos por passar toda a sua vida na Atenas democrática lutando por ela em suas guer ras e por morrer em obediência a suas leis Por mais que tenha sido este o caso Sócra tes certamente não preferiu a democracia em detrimento de todos os outros regimes no discurso O motivo é que sendo ele um homem justo pensou no bemestar não só dos filósofos mas dos não filósofos também e afirmava que a democracia não tem como intuito induzir os não filósofos a tentarem tornarse tão bons quanto lhes seja possível pois a meta da democracia não é a virtude mas a liberdade ou seja a liber dade de viver de maneira nobre ou vil de acordo com a preferência de cada um Por tanto Sócrates atribui à democracia uma posição ainda mais baixa do que a oligarquia uma vez que a oligarquia requer algum tipo de restrição e a democracia tal como ele a apresenta abomina qualquer tipo de restrição Poderíamos dizer que ao se adaptar a seu assunto Sócrates abandona toda restrição quando se trata do regime que detesta restrições Em uma democracia afirma ele ninguém é obrigado a governar ou a ser governado se não aceita isso pode viver em paz embora sua cidade esteja em guerra a pena capital não tem a menor conseqüência para o condenado que não é sequer en carcerado a ordem entre governantes e governados é completamente invertida o pai se comporta como se fosse um menino e o filho não tem nem respeito nem medo do pai o professor teme os seus alunos e os alunos não prestam atenção ao professor e há total igualdade entre os sexos nem mesmo os cavalos e burros abrem caminho quando se deparam com seres humanos Platão escreve como se a democracia ateniense não tivesse levado a efeito a execução de Sócrates e Sócrates fàla como se a democracia ateniense não se houvesse envolvido em uma orgia de perseguição sangrenta tanto de culpados como de inocentes quando as estátuas de Hermes foram mutiladas no início da expedição siciliana O exagero que fiiz Sócrates da branda licenciosidade da demo cracia é equiparado por um exíero quase tão forte da intemperança do homem de mocrático Certamente não lhe seria possível evitar este último exagero se não dese jasse desviarse no caso da democracia do processo que sue em sua discussão dos regimes inferiores Esse procedimento consiste na compreensão do homem que corres ponde a um regime inferior como o filho de um pai que corresponde ao regime ante rior Por conseguinte o homem democrático teve de ser apresentado como o filho de P ia t Ao 5 9 77 Repúblka 557 78 Ver Tucídides VI 2729 e 5361 um pai oligárquico como o degenerado filho de um pai rico que com nada se preocu pa além de ganhar dinheiro o homem democrático é o zangão o playboy gordo flá cido e pródigo o lotófago que atribuindo um tipo de igualdade a coisas iguais e desi guais vive um dia em entrega total a seus desejos mais baixos e o seguinte de modo ascético ou que de acordo com o ideal de Karl Marx caça pela manhã pesca de tarde cria gado à noite dedicase à filosofia depois do jantar ou seja faz a cada mo mento o que lhe apraz naquele momento o homem democrático não é o artesão magro resistente e econômico ou o camponês que tem um único ofício7 A culpa deliberadamente exagerada que Sócrates atribui à democracia tornase inteligível em certa medida uma vez que se considera o seu destinatário imediato o austero Adi manto que não é amigo do riso e que tinha sido o destinatário da austera discussão sobre poesia na seção sobre a educação dos guerreiros ao culpar com exíro a demo cracia Sócrates põe em palavras o sonho de democracia de Adimanto Não se pode tampouco esquecer que é necessário corrigir o vivido relato da multidão que foi provi soriamente necessário a fim de provar a harmonia entre a cidade e a filosofia a culpa exíerada da democracia nos lembra com uma força maior do que jamais fii empre gada da desarmonia entre a filosofia e o povo Após Sócrates ter trazido à luz o regime totalmente injusto e o homem totalmente injusto e em seguida comparado a vida do homem totalmente injusto com a do ho mem perfeitamente justo ficou claro sem qualquer sombra de dúvida que a justiça é preferível à injustiça No entanto a conversa continua Sócrates de repente retorna à questão da poesia a uma pergunta que já havia sido respondida em detalhes quando discutiu a educação dos guerreiros Devemos tentar compreender esse retorno aparen temente repentino Numa digressão explícita a partir da discussão da tirania Sócrates observara que os poetas louvam os tiranos e são homenageados pelos tiranos e tam bém pela democracia ao passo que não são honrados pelos três melhores regimes A tirania e a democracia são caracterizadas pela rendição aos desejos sensuais incluindo aqueles mais contrários às leis O tirano é eros encarnado e os poetas cantam o louvor de eros Prestam grande atenção e fezem homenagem precisamente a esse fenômeno do qual Sócrates se abstrai na República utilizando toda a sua competência Os poetas por conseguinte promovem a injustiça Assim fez Trasímaco Mas tal como Sócrates não obstante pode ser amigo de Trasímaco não há razão para que não pudesse ser amigo dos poetas e especialmente de Homero Talvez Sócrates precise dos poetas a fim de restaurar em outra ocasião a dignidade de eros o Banquete o único diálogo de Platão em que Sócrates aparece conversando com os poetas é totalmente dedicado a eros As bases para o retorno à poesia foram lançadas logo no início do debate sobre os regimes inferiores e as almas inferiores A transição do melhor regime para os regimes 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 79 Cf República 564565 e 575 80 C f ibid 563 com 389 81 C f ibid 577 com 428 e 422 82 Ibid 568 inferiores foi expressamente atribuída ao discurso trágico das Musas e a transição do melhor homem para o homem inferior tem de certa forma um toque cômico a poesia assume a liderança quando começa a descida do mais elevado tema a justiça entendida como íilosoíia O retorno à poesia que é precedido pelo relato dos regimes inferiores e das almas inferiores é suido por uma discussão da maior recompensa para a virtude isto é as recompensas não inerentes à justiça ou à própria filosofia O retor no à poesia constitui o centro da parte da República em que a conversa se afiista do tema mais elevado O que não pode ser surpreendente pois a filosofia como busca da verdade é a mais elevada atividade do homem e a poesia não está preocupada com a verdade Na primeira discussão da poesia que precedeu por longo tempo a introdução da filosofia como tema a despreocupação da poesia com a verdade era sua principal recomendação pois naquela época era da inverdade que se necessitava Os poetas mais proeminentes foram expulsos da cidade justa não porque ensinassem a inverdade mas porque ensinavam o tipo errado de inverdade Mas entrementes ficou claro que somente a vida do homem filosofimte na medida em que sobre o que filosofe é a vida justa e que essa vida longe de precisar da inverdade rejeitaa por completo O pro gresso da cidade mesmo a melhor cidade em direção ao filósofo exige ao que parece um progresso da aceitação qualificada da poesia para a sua rejeição incondicional À luz da filosofia a poesia revelase como a imitação de imitações da verdade isto é das ideias A contemplação das ideias é a atividade do filósofo a imitação das ideias é a atividade do artesão comum e a imitação das obras de artesãos é a atividade de poetas e de outros artesãos imitativos Para começar Sócrates apresenta a ordem declassificação nos seguintes termos o criador das ideias p ex da ideia da cama é Deus o criador da imitação da cama que pode ser usada é o artesão e o criador da imitação da imitação da pintura de uma cama é o artesão imitativo Mais tarde Sócrates reafirma a ordem de classificação nos seguintes termos primeiro o usuário então o artesão e finalmente o artesão imitativo A ideia da cama tem origem no usuário que determina a forma da cama com vistas à finalidade para a qual será utilizada Assim o usuário é o único que possui o conhecimento mais elevado ou mais autorizado o conhecimento mais elevado que não é de modo algum possuído por qualquer artesão como tal o poeta que se encontra no polo oposto ao do usuário não possui qualquer conhecimento nem mesmo uma opinião correta Para compre ender essa acusação aparentemente ultrajante da poesia é preciso primeiro identificar o artesão cujo trabalho o poeta imita Os temas dos poetas são acima de tudo as coisas humanas referentes a virtude e vício os poetas veem as coisas humanas à luz da virtude mas a virtude para a qual olham é uma imagem imperfeita e até mesmo P latão 6 1 83 Ibid 545 549 84 Ibid 608 614 85 Ibid yiT 86 Ibid 485 87 Ibid 601602 distorcida da virtude O artesão a quem o poeta imita é o legislador nâo filosófico que é um imitador imperfeito da própria virtude Em particular a justiça tal como entendida pela cidade é necessariamente o trabalho do legislador pois o justo tal como entendido pela cidade é o legal Ninguém expressou a sugestão de Sócrates mais claramente do que Nietzsche que afirmou os poetas sempre foram os criados de alguma moralidade Mas segundo o provérbio francês ninguém é herói para seu criado de quarto Não estariam os artistas e em particular os poetas cientes da fraqueza secreta de seus heróis De acordo com Sócrates este é certamente o caso Os poetas trazem à luz por exemplo toda a força do pesar que um homem sente pela perda de um ente querido a força de um sentimento que o homem de respeito não expressaria de modo adequado exceto quando estivesse sozinho porque sua expressão adequada na presença de outros não é apropriada e legal os poetas trazem à luz aqui lo que em nossa natureza a lei reprime à força Se assim é se os poetas são talvez os homens que melhor compreendem a natureza das paixões que a lei coíbe estão muito longe de serem meramente os servos dos legisladores são também os homens com quem o legislador prudente aprenderá A verdadeira contenda entre filosofia e poesia diz respeito do ponto de vista do filósofo não ao valor da poesia como tal mas à ordem de classificação da filosofia e da poesia Segundo Sócrates a poesia só é legítima como instrumental para o usuário por excelência para o rei que é o filósofo e não enquanto autônoma Pois a poesia autônoma apresenta a vida humana como au tônoma ou seja não dirigida para a vida filosófica e portanto nunca apresenta a vida filosófica em si exceto em sua distorção cômica por conseguinte a poesia autônoma é necessariamente ou tragédia ou comédia pois a vida não filosófica entendida como autônoma ou não tem como escapar de sua dificuldade fundamental ou tem apenas uma saída inadequada Mas a poesia instrumental apresenta a vida não filosófica como instrumental para a vida filosófica e portanto acima de tudo apresenta a vida filosó fica em si O maior exemplo da poesia instrumental é o diálogo platônico A República se encerra com uma discussão sobre as maiores recompensas pela justiça e as maiores punições para a injustiça A discussão consiste em três partes 1 a prova da imortalidade da alma 2 as recompensas e punições divinas e humanas para os homens enquanto vivos 3 as recompensas e punições após a morte A parte cen tral se cala a respeito dos filósofos recompensas pela justiça e punições para a injustiça ao longo da vida são necessárias para os não filósofos cuja justiça não tem os atrativos intrínsecos que a justiça dos filósofos tem O relato acerca das recompensas e punições após a morte é feito sob a forma de um mito O mito não é infundado pois se baseia 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 88 Ibid 598 599 600 89 Cf ibid 501 90 A Gaia Ciência n 1 91 NTi II ny a pas de hérospour son valet de chambre 92 República 603604 606 607 93 Ibid 607 94 Cf ibid 604 na prova da imortalidade das almas A alma não pode ser imortal se for composta de muitas coisas a menos que a composição seja muito perfeita Mas a alma tal como a conhecemos a partir da nossa experiência não tem perfeita harmonia A fim de des cobrir a verdade seria necessário recuperar por meio do raciocínio a natureza original ou verdadeira da alma Este raciodnio não é atingido na República Ou seja Sócrates prova a imortalidade da alma sem ter trazido à luz a natureza da alma A situação no final da República corresponde precisamente à situação no final do primeiro livro da República onde Sócrates deixa claro que provou que a justiça é salutar sem saber o quê ou a natureza da justiça O debate que se segue ao primeiro livro traz à luz a na tureza da justiça como a ordem correta da alma mas como se pode conhecer a ordem correta da alma se não se conhece a natureza da alma Lembremos aqui também o fiito de que o paralelismo entre a alma e a cidade que é a premissa da doutrina da alma expressa na República é evidentemente questionável e mesmo insustentável A República não pode trazer à luz a natureza da alma porque abstrai eros e o corpo Se estivermos realmente interessados em descobrir exatamente o que é justiça é pre ciso trilhar um caminho mais longo no estudo da alma do que aquele percorrido na República Isso não significa que o que aprendemos sobre a justiça na República não seja verdadeiro ou seja completamente provisório Os ensinamentos da República em matéria de justiça embora não sejam completos podem ainda ser verdadeiros na medida em que a natureza da justiça depende decisivamente da natureza da cidade pois até mesmo o transpolítico não pode ser entendido como tal exceto se a cidade for entendida e a cidade é cabalmente compreensível pois seus limites podem ser perfeitamente manifestos para ver estes limites não é preciso ter respondido à questão sobre o todo é suficiente se ter feito a pergunta a respeito ao todo A República então de fiito deixa claro o que é justiça No entanto como observou Cícero a República não traz à luz o melhor regime possível mas sim a natureza das coisas políticas a natureza da cidade Sócrates deixa claro na República qual caráter a cidade teria de ter a fim de satisfiizer as mais elevadas necessidades do homem Ao nos permitir ver que a cidade construída em conformidade com este requisito não é possível permite nos divisar os limites essenciais a natureza da cidade O PoLtnco O Político é precedido pelo Sota que por sua vez é precedido por Teeteto O Tee teto apresenta uma conversa entre Sócrates e o jovem matemático Teeteto a qual tem lugar na presença de Teodoro matemático maduro e de renome bem como do jovem companheiro de Teeteto denominado Sócrates que se destina a esclarecer o que é o conhecimento ou ciência A conversa não leva a um resuludo positivo Sócrates por si P latAo 6 3 95 611612 96 Ibid 504 506 97 Cícero República 1152 mesmo só sabe que nâo sabe e Teeteto náo é como Glauco ou Adimanto que podem ser auxiliados por Sócrates ou podem auxiliálo a produzir um ensinamento positi vo No dia seguinte à conversa de Sócrates com Teeteto Sócrates reúnese novamente com Teodoro o jovem Sócrates e Teeteto mas desta feita está presente também um filósofo anônimo designado apenas como um forasteiro de Eleia Sócrates pergunta ao forasteiro se seus companheiros consideram o sofista o político e o filósofo como um só único ou se como dois ou três Poderia parecer que a questão acerca da identidade ou não identidade do sofista do político e do filósofo toma o lugar ou é uma versão mais articulada da questão o que é o conhecimento O estranho responde que os seus companheiros consideram o sofista o político ou rei e o filósofo como diferentes um do outro O fato de que o filósofo não é idêntico ao rei foi reconhecido na tese centrai da República segundo a qual a coincidência entre a filosofia e a monarquia é a condição para a salvação das cidades e também da raça humana as coisas idênticas não têm de coincidir Mas a República não esclareceu suficientemente o status cogni tivo da monarquia ou do político A partir da República podemos facilmente receber a impressão de que o conhecimento necessário do reifilósofo consiste em duas partes heterogêneas o conhecimento puramente filosófico das ideias que culmina com a visão da ideia do bem por um lado e a experiência meramente política que não tem nenhum status de conhecimento mas que permite encontrar o caminho na Caverna e discernir as sombras em suas paredes por outro Mas o suplemento indispensável ao conhecimento filosófico também parecia ser um tipo de arte ou ciência O forasteiro eleata parece assumir a segunda e superior opinião da consciência náo filosófica pe culiar ao político Todavia nos diálogos Sofista e Político ele deixa clara a natureza do sofista e do político ou seja a diferença entre o sofista e o político sem deixar clara a diferença entre o político e filósofo Temos a promessa de Teodoro de que o forasteiro eleata também explanará em uma seqüência do Político o que é o filósofo mas Platão não cumpre sua promessa a Teodoro Devemos então entender o que é o filósofo uma vez que tivermos entendido o que são o sofista e o político Não é a política tal como transpareceu a partir da República um mero suplemento para a filosofia mas um ingrediente da filosofia Ou seja seria a política a arte ou o conhecimento peculiar ao político longe de ser meramente a consciência necessária para encontrar um caminho na caverna e longe de ser ela mesma independente da visão da ideia do bem uma condição ou melhor um ingrediente de uma visão da ideia do bem Se fosse assim então a política seria muito mais importante de acordo com o Político do que seria de acordo com a República Certamente a conversa sobre o rei ou políti co ocorre quando Sócrates já foi acusado de um crime capital pelo qual foi logo em seguida condenado e executado veja o final do Teeteto a cidade parece estar presente de forma muito mais poderosa no Político do que na República na qual o antagonista de Sócrates Trasímaco só representa a cidade Por outro lado no entanto enquanto na República Sócrates funda uma cidade embora apenas no discurso com a ajuda de 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 98 Cf Platáo República 484 e 539 cxim 501 dois irmãos que se preocupam apaixonadamente com a justiça e com a cidade no Po lítico Sócrates escuta em silêncio a um forasteiro sem nome um homem a quem íàlta responsabilidade política que traz à luz o que é o político na atmosfera rarefeita da ma temática a preocupação em descobrir o que é o político parece ser filosófica e não po lítica O Político parece ser muito mais sóbrio do que a República Podemos dizer que o Político é mais científico do que a República Por ciência Platão entende a mais elevada forma de conhecimento ou melhor o único tipo de consciência que merece ser chamado conhecimento A essa forma de conhecimento denomina dialética Dialética significa primordialmente a arte da conversa e em seguida a forma suprema daquela arte uma arte praticada por Sócrates a arte da conversa que pretende trazer à luz o o que é das coisas ou as ideias A dialética é então o conhecimento das ideias um conhecimento que não fàz qualquer uso da experiência sensível movese de uma ideia para outra até que tenha esgotado todo o reino das ideias pois cada ideia é uma parte e portanto aponta para outras ideias Na sua forma completa a dialética descenderia da mais elevada ideia a ideia que do mina o reino das ideias passo a passo até as ideias mais inferiores O movimento se processa passo a passo ou seja sue a articulação a divisão natural das ideias O Político bem como o Sofista apresenta uma imitação da dialética assim entendida ambos servem para dar uma breve noção da dialética assim entendida a imitação que apresentam é jocosa No entanto o jogo não é mero jogo Se deve ser impossível o movimento de ideia para ideia sem recorrer à experiência dos sentidos se em outras palavras a República deve ser utópica não só no que afirma sobre a cidade no seu me lhor mas também no que diz sobre a filosofia ou dialética no seu melhor a dialética no seu melhor não sendo possível não será séria A dialética que é possível continuará a depender da experiência Há uma conexão entre esse aspecto do Político e o fato de que as ideias de que trata o Político são classes ou incluem todos os indivíduos que participam da ideia em questão e portanto não subsistem independentemente dos indivíduos ou além deles No entanto no Político o forasteiro eleata tenta trazer à luz a natureza do político ao descer da arte ou conhecimento passo a passo para a arte do político ou por dividir a arte passo a passo até chegar à arte do político Por uma série de razões nâo podemos acompanhar aqui o seu procedimento metódico Pouco depois do início da conversa o forasteiro eleata fàz o jovem Sócrates con cordar com o que se pode denominar a abolição da distinção entre o público e o pri vado Alcança esse resultado em duas etapas Uma vez que a política ou monarquia são essencialmente um tipo de conhecimento não tem qualquer importância se o homem que possui esse conhecimento envei as vestes de um alto cargo em virtude de ter sido eleito por exemplo ou se vive em uma condição privada Em segundo lugar não há diferença essencial entre a cidade e a família e por conseguinte entre o político ou rei PiATto 6 5 99 Cf Político 285 100 República 511 531533 537 101 Cf Político 264 por um lado e o chefe de fiunília ou mestre ou seja o mestre dos escravos por outro Direito e liberdade os fenômenos caracteristicamente políticos que são inseparáveis entre si são eliminados logo no início porque a política é entendida como um tipo de conhecimento ou arte ou porque se abstrai daquilo que distingue a política das artes O forasteiro eleata abstrai aqui do feto de que a pura força física é um ingrediente necessário do domínio dos homens sobre os homens Essa abstração é em parte justi ficada pelo feto de que a política ou monarquia é uma arte cognitiva ao contrário de manual ou braquial No entanto não é apenas cognitiva como a aritmética é uma arte que dá comandos a seres humanos Mas todas as artes que dão comandos fezem no por causa do nascimento de algo Algumas dessas artes dão comandos em prol do nascimento de seres vivos ou animais ou seja preocupamse com a reprodução e cria ção de animais A arte régia é um tipo desse gênero de arte Para o bom entendimento da arte régia não é suficiente dividir o gênero animal nas espécies feras e homens Esta distinção é tão arbitrária quanto a divisão da raça humana em gregos e bárbaros distinta da diferenciação entre homens e mulheres não é uma distinção natural mas uma distinção que tem origem no orgulho O treinamento que o forasteiro dá ao jovem Sócrates na dialética ou na arte de dividir os tipos ou ideias em classes ou anda de mãos dadas com o treinamento na modéstia ou na moderação De acordo com a divisão que o forasteiro realiza das espécies de animais o parente mais próximo do ho mem é ainda mais inferior do que se apresenta conforme a doutrina de Darwin sobre a origem das espécies Mas o que Darwin expressou de modo sério e literal o forasteiro diz jocosamente O homem deve aprender a enxergar a humildade de seu estado a fim de passar do humano para o divino isto é para ser verdadeiramente humano A divisão de arte leva à conclusão de que a arte do político é a arte que se preocupa com a reprodução e criação ou com o cuidado pelos rebanhos do tipo de animal chamado homem Esse resultado é manifestamente insuficiente pois há mui tas artes p ex a medicina e a atividade do casamenteiro que reivindicam com a mesma justiça a preocupação com o cuidado pelos rebanhos humanos tal como fez a arte política O erro deveuse ao feto de que o rebanho humano era tido como um rebanho da mesma natureza que os rebanhos de outros animais Mas rebanhos hu manos são um tipo muito especial de rebanho a bipartição de animal em feras e homens não se origina apenas no orgulho O erro é retificado por um mito Segundo o mito agora pela primeira vez narrado em toda a sua plenitude houve uma época a idade de Cronos quando o deus guiava o todo e em seguida um tempo a idade de Zeus quando o deus permitia que o todo se movesse por seu próprio modo Na era de Cronos o deus governava e cuidava dos animais designando as diferentes espécies de animais ao comando e aos cuidados de deuses diferentes que agiam como pastores e assim asseguravam a paz universal e a fertura não havia sociedades políticas nem propriedade privada nem famílias Isso não significa necessariamente que os homens 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 102 262263 266 103 Cf ibid 271 272 vivessem felizes na era de Cronos somente se usassem a paz e a fertura então reinantes para filosofar é que se pode dizer que vivessem felizes De qualquer forma na presente época o deus não cuida do homem na idade atual não há providência divina os ho mens devem cuidar de si mesmos Privado do cuidado divino o mundo está repleto de desordem e injustiça os homens devem estabelecer a ordem e a justiça tão bem quanto puderem com o entendimento de que nesta época de escassez o comunismo e por conseguinte também o comunismo absoluto é impossível Podese dizer que o Político trouxe à tona o que a República deixara velado a saber a impossibilidade do melhor regime apresentado na República O mito do Político tenciona explicar o erro cometido pelo forasteiro eleata e pelo jovem Sócrates na definição inicial do Político ao procurar por uma arte única de cui dar de rebanhos humanos inadvertidamente voltaramse para a era de Cronos ou em direção aos cuidados divinos com o desaparecimento do cuidado divino isto é de um cuidado por seres que aos olhos de todos são superiores aos homens tornouse inevi tável que toda a arte ou todo homem deve crer em si para que tenha o mesmo direito de governar que qualquer outra arte ou qualquer outro homem ou que pelo menos muitas artes devem tomarse concorrentes da arte régia A primeira e inevitável con seqüência da transição da era de Cronos para a de Zeus é a ilusão de que todas as artes e todos os homens são iguais O erro consistia em assumir que a ane r a é dedicada ao completo cuidado pelos rebanhos humanos um cuidado total incluiria a alimenta ção e acasalamento dos governados e não um cuidado parcial ou limitado Em outras palavras o erro consistiu na desconsideração do fiito de que no caso de todas as artes do pastoreio diferentes da arte humana de pastorear seres humanos o pastor pertence a uma espécie diferente dos membros do rebanho Temos então de dividir todo o cui dar de rebanhos em duas partes cuidar de rebanhos em que o pastor pertence à mesma espécie que os membros do rebanho e cuidar de rebanhos em que o pastor pertence a uma espécie diferente dos membros do rebanho pastores humanos de feras e pastores divinos de seres humanos Em seguida temos de dividir o primeiro desses dois tipos em partes para que possamos descobrir que o pastoreio parcial de rebanhos em que o pastor pertence à mesma espécie que os membros do rebanho é a arte iia Vamos su por que o cuidado parcial procurado seja governar cidades O ato de governar cidades é naturalmente dividido em governar sem a aquiescência do governado decisão pela força e governar por decisão do governado o primeiro é tirânico o último réo Aqui vislumbramos pela primeira vez a liberdade como tema especificamente político Mas exatamente no momento em que o forasteiro fãz alusão a essa dificuldade afàstase dela Considera insatisfatório todo o procedimento anterior O método que se revela útil onde falharam tanto a divisão de classes e em classes assim como o mito é o uso de um exemplo O forasteiro ilustra a utilidade dos exem plos por meio de um exemplo O exemplo tem como fim ilustrar a situação do homem em relação ao conhecimento ao fenômeno que é o fio condutor da trilogia Teeteto P la t ã o 67 104 Ibid 274275 SofistaPoUtico O exemplo escolhido é o conhecimento de leitura pelas crianças A partir do conhecimento das letras os elementos elas avançam passo a passo para o conhecimento das sílabas mais curtas e mais fóceis a combinação de elementos e depois para o conhecimento das longas e difíceis O conhecimento do todo não é possível se não for semelhante à arte de ler deve estar disponível o conhecimento dos elementos o número de elementos deve ser bastante pequeno e nem todos os elemen tos devem ser combináveis Mas seria possível dizer que possuímos o conhecimento dos elementos do todo ou que poderíamos começar a partir de um início absoluto Será que nós no Político começamos a partir de uma compreensão adequada da arte ou do conhecimento Não é verdade que enquanto necessariamente ansiamos pelo conhecimento do todo estamos condenados a fícar satisfeitos com o conhecimento parcial de partes do todo e por conseguinte nunca verdadeiramente transcender a esfera da opinião Não seria portanto a filosofia e por conseguinte a vida humana ne cessariamente sisífica Poderia ser este o motivo pelo qual a procura pela liberdade não é tão evidentemente sólida quanto creem muitos amantes atuais da liberdade com base em pensamentos muito similares Talvez isso nos pudesse induzir a considerar o Gran de Inquisidor de Dostoiévski em função do Político de Platão Após nos ter compelido a lettar estas e outras questões afins o forasteiro retoma seu exemplo que se destina a esclarecer não o conhecimento em geral ou a filosofia como tal mas a arte régia O exemplo escolhido por ele é a arte de tecer ilustra a arte política por meio de uma arte enfiiticamente doméstica e não por essas artes que envolvem uma saída como o pas toreio e a pilotagem ilustra a arte mais viril por meio de uma arte caracteristicamente feminina A fim de descobrir o que é a tecelagem devese dividir a arte mas dividila de forma diferente da que fora utilizada em um primeiro momento A análise da arte da tecelíem que é feita com base na nova divisão permite que o forasteiro elucide a arte em geral e a arte r a em particular antes que aplique explicitamente o resultado dessa análise à arte régia Talvez a assertiva mais importante neste contexto seja a distinção entre dois tipos de arte de medição um tipo que considera o maior e o menor em rela ção a um outro e outro tipo que considera o maior e o menor ora entendido como excesso e defeito em relação à média ou digamos o apropriado ou algo similar Todas as artes e especialmente a arte régia fazem as suas medições tendo em vista a média correta ou a apropriada ou seja não são matemáticas Ao aplicar explicitamente à arte régia os resultados de sua análise da arte da tecelíem o forasteiro se permite esclarecer a relação entre a arte real e todas as ou tras artes e especialmente com aquelas artes que alegam com alguma aparência de justiça competir com a arte régia pelo governo da cidade Os concorrentes mais bem sucedidos e inteligentes são os notórios sofistas que pretendem possuir a arte régia e estes são os governantes das cidades ou seja governantes que não possuem a arte régia ou política ou praticamente todos os líderes políticos que já foram são e serão Há três categorias desse tipo de regime político o governo de um o governo de poucos e 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 0 5 C f 252 o governo de muitos mas cada um desses três tipos é dividido em duas partes tendo em vista a diferença entre violência e voluntariedade ou entre legalidade e ilega lidade assim a monarquia se distingue da tirania e a aristocracia da oligarquia enquanto o nome democracia é aplicado ao governo da massa independentemente de se a massa dos pobres governa sobre os ricos com o consentimento dos ricos e em estrita obediência às leis ou com violência e mais ou menos sem leis A distinção entre os regimes esboçada pelo forasteiro é quase idêntica à distinção desenvolvi da por Aristóteles no terceiro livro de sua Política mas observemos as diferenças Nenhum desses regimes baseia suas reivindicações no conhecimento ou na arte dos governantes isto é na única alegação que é irrestritamente legítima Daí resulta que são duvidosas as reivindicações com base na vontade dos sujeitos no consentimen to ou na liberdade e na legalidade Esse julgamento é defendido com referência ao exemplo das outras artes e especialmente da medicina O médico é médico quer nos cure por nossa vontade quer contra a nossa vontade quer nos corte quei me quer nos inflija qualquer outra dor e quer aja de acordo com normas escritas quer sem elas é médico se sua decisão redundar em benefício para nossos corpos Correspondentemente o único regime que é correto ou o que é verdadeiramen te um regime é aquele em que os possuidores da arte régia governam sem levar em consideração se governam segundo a lei ou sem leis e quer os governados con sintam com seu governo quer não com a condição de que seu governo redunde em benefício para o corpo político não fàz qualquer diferença se atingem este fim por matar alguns ou por banilos e assim reduzir a população da cidade ou por importar cidadãos de outros países e assim aumentar as dimensões da cidade O jovem Sócrates que não fica chocado com o que diz o forasteiro a respeito de matar e banir chocase um pouco com a sugestão de que o governo sem leis governo absoluto pode ser legítimo Para entender plenamente a resposta do jovem Sócrates devese atentar para o fàto de que o forasteiro não fez uma distinção entre as leis hu manas e as leis naturais O forasteiro volta a indignação incipiente do jovem Sócrates para um desejo de discussão por parte deste último O governo pela lei é inferior ao governo da inteligência viva porque as leis devido à sua generalicfede não são capazes de determinar com sabedoria o que é correto e adequado em todas as circunstâncias dada a infinita variedade de circunstâncias somente o homem sábio in situ poderia decidir corretamente o que é certo e adequado às circunstâncias Apesar disso as leis são necessárias Os poucos homens sábios não podem se sentar ao lado de cada um dos muitos homens não sábios e lhes dizer exatamente o que é apropriado que feçam Os poucos homens sábios estão quase sempre desatentos dos inumeráveis homens não sábios Todas as leis escritas ou não são maus substitutos mas substitutos in dispensáveis para as decisões individuais pelos homens sábios São princípios básicos grosseiros suficientes para a grande maioria dos casos tratam os seres humanos como se fossem membros de um rebanho O engessamento dos princípios básicos grosseiros em prescrições sagradas invioláveis imutáveis que seriam rejeitadas por todos como ridículas se isso fosse feito no campo das ciências e das artes é uma necessidade na ordenação dos assuntos humanos essa necessidade é a causa imediata da diferença P latAo 6 9 inextirpável entre as esferas política e suprapolítica Mas a principal objeção às leis não é que não sejam suscetíveis de ser individualizadas mas que se presume que se jam obrigatórias para o homem sábio o homem que possui a arte régia Todavia mesmo essa objeção não é totalmente válida Como o forasteiro explica por meio de imagens o homem sábio é sujeito às leis cuja justiça e sabedoria são inferiores às suas porque os homens não sábios não podem deixar de desconfiar do homem sábio e essa desconfiança não é totalmente indefensável dado o fato de que não conseguem entendêlo Os homens não sábios não são capazes de acreditar que um homem sábio que mereceria governar como um verdadeiro rei sem leis estaria disposto e apto a governálos A razão fimdamental para a sua incredulidade é o fato de que nenhum ser humano tem essa superioridade manifesta em primeiro lugar em relação ao corpo e em seguida em relação à alma o que induziria todos a se submetetem a seu governo sem qualquer hesitação e sem qualquer reserva Os homens não sábios não podem evitar serem eles mesmos os juizes do homem sábio Não é de admirar então que os sábios não estejam dispostos a governálos O homem não sábio deve até exigir do homem sábio que considere a lei apenas como impositiva ou seja que nem sequer duvide de que as leis estabelecidas sejam perfeitamente justas e sábias se não o fizer será culpado de corromper os jovens uma ofensa capital devem proibir a livre inves tigação acerca dos assuntos mais importantes Todas essas implicações do governo das leis devem ser aceitas uma vez que a única alternativa viável é o governo sem lei dos homens egoístas O homem sábio deve curvarse à lei que é inferior a ele em sabedoria e justiça não só em obras mas no discurso também Aqui não podemos deixar de perguntar se não há limites à sujeição do sábio às leis As ilustrações platônicas são essas Sócrates obedeceu sem vacilar à lei que lhe ordenou morrer por causa de sua su posta corrupção dos jovens todavia ele não teria obedecido a uma lei que o proibisse formalmente de exercer a filosofia Leiamos a Apolo de Sócrates juntamente com o Criton O gpverno da lei é preferível ao governo sem lei dos homens não sábios desde que as leis mesmo que ruins sejam de uma forma ou de outra o resultado de algum raciocínio Essa observação permite a classificação dos rimes incorretos isto é de todos os outros regimes diferentes do governo absoluto do rei verdadeiro ou político A democracia cumpridora da lei é inferior ao governo que cumpre a lei de poucos a aristocracia e ao govemo que respeita a lei de um monarquia mas a democracia sem lei é superior ao governo sem lei de poucos oligarquia e ao governo sem lei de um a tirania A ausência de leis não significa aqui a completa ausência de leis ou costu mes Significa o habitual desrespeito das leis por parte do governo e especialmente daquelas leis que são destinadas a restringir o poder do governo um governo que pode mudar qualquer lei ou é soberano é sem lei A partir da seqüência parece que de acordo com o forasteiro mesmo na cidade governada pelo rei verdadeiro haverá leis o 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 106 PoUtico 295 107 7ói297ss 108 7Ó301 verdadeiro rei é o verdadeiro legislador mas que o verdadeiro rei em contradistinção a todos os outros governantes pode mudar as leis com justiça ou iir contra as leis Na ausência do verdadeiro rei o forasteiro provavelmente ficaria satisfeito se a cidade fosse governada por um código de leis composto por um homem sábio um código que pode ser alterado pelos governantes não sábios somente em casos extremos Após a verdadeira arte régia ter sido separada de todas as outras artes resta ao fo rasteiro determinar o trabalho peculiar do rei Aqui o exemplo da arte da tecelagem as sume importância decisiva O trabalho do rei se assemelha a uma teia De acordo com a visão popular todas as partes da virtude estão simplesmente em harmonia umas com as outras De íàto porém há uma tensão entre elas Acima de tudo há uma tensão entre a condem ou virilidade e a moderação gentileza ou preocupação com o decoro Essa ten são explica a tensão e até mesmo a hostilidade entre os preponderantemente viris e os seres humanos predominantemente gentis A tarefii do verdadeiro rei é entretecer esses tipos opostos de seres humanos pois as pessoas na cidade que são completamente in capazes de se tornar ou viris ou moderadas não podem jamais tornarse cidadãos Uma parte importante do entretecer do rei consiste em promover o casamento entre as crian ças de famílias predominantemente viris e as de fómílias preponderantemente gentis O rei humano deve então aproximarse do pastor divino ao ampliar a arte de governar as cidades estritamente entendida de modo a incluir nela a arte do acasalamento ou de promover casamentos A atividade de casamenteiro praticada pelo rei é semelhante à atividade de casamenteiro praticada por Sócrates o que significa que não é idêntica a esta última Se conseguíssemos entender a identidade entre a atividade de casamenteiro do rei e a atividade de casamenteiro de Sócrates teríamos feito algum progresso no sentido de compreender a identidade entre o rei e o filósofo Esta afirmação pode ser feita com segurança apesar de ser possível e até necessário fàlar do rebanho humano ao tentar definir o rei o filósofo nada tem a ver com o rebanho O Político pertence a uma trilogia cujo tema é o conhecimento Para Platão o conhecimento ou o esforço para adquirir o conhecimento em si é a filosofia A filosofia se esforça para ter conhecimento do todo para a contemplação do todo O conjunto é constituído de partes o conhecimento do todo é o conhecimento de todas as partes do todo enquanto partes de um todo A filosofia é a mais elevada atividade humana e o homem é uma parte excelente talvez a parte mais excelente do todo O todo não é um todo sem o homem sem o homem ser inteiro ou completo Mas o homem se torna inteiro não sem esforço próprio e esse esforço pressupõe conhecimento de um tipo particular o conhecimento que não é contemplativo ou teórico mas prescritivo ou impositivo ou prático O Político se apresenta como uma discussão teórica do conhecimento prático Em contraste com o Político a República parte da vida prática ou política e chega à filosofia à vida teórica a República apresenta uma discussão prá tica da teoria mostra aos homens preocupados com a solução do problema humano P latão 7 1 109 Cf Teeteto ISl 110 Político 160 que esta solução consiste na vida teórica o conhecimento que a República expõe é prescritivo ou impositivo A discussão teórica do mais elevado conhecimento prático a arte régia no Político simplesmente por expor o caráter da arte régia assume um caráter impositivo expõe o que o governante deve fezer Embora seja necessária uma distinção entre conhecimento teórico e prático sua separação é impossível Conside remos a partir deste ponto de vista a descrição da vida teórica no Teeteto 173177 A arte régia é uma das artes diretamente preocupadas em tornar os homens completos ou inteiros A indicação mais óbvia da incompletude de cada ser humano e ao mesmo tempo da maneira como pode ser completado é a separação da raça humana em dois sexos assim como a união de homens e mulheres a meta principal de eros torna o homem autossuficiente para a perpetuação para não dizer sempiternidade da espé cie humana todos os outros tipos de incompletude a serem encontrados nos homens sáo concluídos na espécie na ideia de homem A raça humana inteira e não qual quer parte dela é autossuficiente como uma parte do todo e não como o mestre ou o conquistador do todo É talvez por esse motivo que o Político termina com um elogio de um certo tipo de atividade de casamenteiro A s L e is A República e o Político transcendem a cidade de maneiras diferentes porém afins Mostram primeiro como a cidade teria de se transformar se desejasse manter sua pretensão de supremacia diante da filosofia Demonstram em seguida que a cida de é incapaz de passar por essa transformação A República indica tacitamente que a cidade comum ou seja a cidade que não é comunista e que é a associação dos pais em vez dos artesãos é a única cidade que é possível O Político aponta explicitamen te a necessidade do governo pelas leis A República e o Político revelam cada um à sua própria maneira a limitação essencial e com isso o caráter essencial da cidade Assim deitam as bases para responder à pergunta sobre a melhor ordem política a melhor ordem da cidade compatível com a natureza do homem Mas não determinam a melhor ordem possível Esta tarefe é deixada para as leis Podemos então dizer que Leis é a única obra realmente política de Platão É o único diálogo platônico do qual Sócrates está ausente Os personens das Leis são velhos de longa experiência política um ateniense desconhecido sem nome Clínias o cretense e Megilo o espartano O desconhecido ateniense ocupa o lugar habitualmente ocupado nos diálogos platônicos por Sócrates A conversa tem lugar longe de Atenas na ilha de Creta enquanto os três velhos caminham a pé da antiga cidade de Cnossos para a caverna de Zeus Nossa primeira impressão é de que o ateniense desconhecido foi a Creta a fim de descobrir a verdade sobre as leis gregas que sob determinado aspecto eram as mais renomadas pois se acreditava que as leis cretenses seriam originárias de Zeus o deus supremo As leis de Creta eram semelhantes às de Esparta que eram ainda mais re nomadas do que as de Creta e cuja origem remontavam à Apoio Por sugestão do ateniense os três homens conversam sobre leis e regimes O ateniense fica sabendo Ti H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y pelo cretense que o legislador cretense compôs todas as suas leis tendo em vista a guerra por natureza cada cidade está sempre cm um estado de guerra náo declarada com todas as outras cidades a vitória na guerra e por conseguinte a guerra é a con dição para todas as bênçãos Com facilidade o ateniense convence o cretense de que as leis de Creta visam a um fim errado a meta não é a guerra mas a paz Pois se a vitória na guerra é a condição de todas as bênçãos a guerra não é a meta as próprias bênçãos pertencem à paz Por conseguinte a virtude da guerra a coragem é a porção mais baixa da virtude inferior à moderação e acima de tudo à justiça e à sabedoria Uma vez que percebemos a ordem natural das virtudes conhecemos o mais elevado princípio da legislação pois que a legislação deve preocuparse com a virtude com a excelência da alma humana ao contrário de com quaisquer outros bens é facilmente admitido por Clínias o cavalheiro cretense a quem o ateniense assegura que a posse da virtude é necessariamente seguida pela posse de saúde beleza força e riqueza Parece que tanto os legisladores espartanos como os cretenses estando convencidos de que a finalidade da cidade é a guerra e não a paz cuidaram bem da educação de seus súditos ou companheiros para a coragem para o autocontrole em relação às dores e medos por meio de fazerlhes experimentar as maiores dores e medos mas não toma ram qualquer providência quanto à educação para a moderação o autocontrole sobre os prazeres por meio de fazerlhes experimentar os maiores prazeres Na verdade se podemos confiar em Megilo pelo menos o legislador espartano desencorajava total mente o gozar dos prazeres Os legisladores espartanos e cretenses decerto proibiam os prazeres da bebida prazeres livremente usufruídos pelos atenienses O ateniense afirma que beber e até mesmo a embriaguez praticada de modo correto é propí cio para a moderação a virtude gêmea da coragem A fim de ser praticado de forma correta o consumo de bebidas deve ser realizado em comum ou seja em certo senti do em público para que possa ser supervisionado Beber até mesmo a embriaguez será salutar se os bebedores forem dirigidos pelo tipo certo de homem Para que um homem seja o comandante de um navio não basta que possua a arte ou ciência de navegar tampouco pode sofrer de enjoo no mar Do mesmo modo nem a arte nem o conhecimento são suficientes para orquestrar um banquete A arte não é suficiente para dirigir qualquer associação e em particular a cidade O banquete é uma metáfora mais adequada da cidade do que o navio o navio do Estado pois assim como os comensais do banquete estão bêbados por causa do vinho os cidadãos estão bêbados por causa de seus medos esperanças desejos e aversões e portanto têm necessidade de serem governados por um homem que esteja sóbrio Uma vez que os banquetes são ilegais em Esparta e Creta mas legais em Atenas o ateniense é compelido a justificar uma instituição ateniense A justificativa é um longo discurso e os longos discursos eram atenienses e não espartanos ou cretenses O ateniense é portanto obrigado a P latAo 7 3 111 ZííT 631 cf 829 112 Ibidò 113 Ibidm justificar uma instituição ateniense no estilo ateniense É obrigado a transformar seus interlocutores não atenienses até certo ponto em atenienses Somente dessa maneira é capaz de corrigir seus pontos de vista equivocados sobre as leis e com isso even tualmente as suas próprias leis Por meio disso passamos a compreender melhor o caráter das leis como um todo Na República os regimes espartanos e cretenses fo ram usados como exemplos de timocracia o tipo de regime inferior apenas ao melhor regime mas de longe superior à democracia ou seja o tipo de regime que prevaleceu em Atenas durante a maior parte da vida de Sócrates e Platão Nas Leis o ateniense desconhecido tenta corrigir a timocracia isto é transformála no melhor regime pos sível que está de algum modo entre a timocracia e o melhor regime da República Este melhor regime possível demonstrará ser muito semelhante ao regime ancestral o regime prédemocrático de Atenas As leis de Creta e Esparta foram consideradas íalhas porque não permitiam que seus súditos experimentassem os maiores prazeres Mas seria possível afirmar que a be bida proporciona os maiores prazeres ou mesmo os maiores prazeres sensuais Todavia o ateniense tinha em mente aqueles maiores prazeres que podem ser desímtados em público e aos quais se deve ser exposto a fim de se aprender a controlálos Os prazeres dos banquetes são beber e cantar Desta forma a fim de justificar os banquetes devese discutir também o canto a música e por conseguinte a educação como um todo os prazeres da música são os maiores prazeres que as pessoas podem desíhitar em público os quais deve aprender a controlar por meio da exposição a eles As leis espartanas e cretenses padecem portanto do grande defeito de não exporem seus súditos de forma alguma ou pelo menos não o suficiente aos prazeres da música O motivo para isso é que essas duas sociedades não são cidades mas acampamentos armados um tipo de rebanho em Esparta e Creta mesmo os jovens que são por natureza aptos a se rem educados como indivíduos por professores particulares são criados apenas como membros de um rebanho Em outras palavras espartanos e cretenses só sabem cantar em coro não conhecem a música mais bela a mais nobre Na República a cidade do acampamento armado uma Esparta muito melhorada foi transcendida pela Cidade da Beleza a cidade em que a filosofia a mais elevada Musa é devidamente honrada Nas Leis em que é apresentado o melhor regime possível essa transcendência não tem lugar A cidade das Leis no entanto não é em qualquer sentido uma cidade do acam pamento armado Todavia essa cidade tem algumas características em comum com a cidade do acampamento armado da República Tal como na RepúbUca a educação musical demonstra ser a educação para a moderação e esta educação demonstra exigir que músicos e poetas sejam supervisionados pelo verdadeiro estadista ou legislador Todavia enquanto na República a educação para a moderação demonstra culminar 7 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 114 República 115 LeisA2 116 C íibid67y 117 Ib id m 66r no amor pelo belo nas Leis pelo contrário a moderação assume as cores do sentimen to de vergonha ou de reverência A educação é certamente a educação para a virtude a virtude do cidadão ou a virtude do homem A virtude do homem é primordialmente a postura adequada diante dos prazeres e dotes ou o controle adequado dos prazeres e dores o controle adequado é o controle efetuado pelo raciocínio correto Se o resultado do raciocínio for adotado pela cidade esse resultado tornase lei a lei que merece este nome é o ditame do raciocínio correto principalmente a respeito de prazeres e dores O parentesco mas não a identidade entre o raciocínio correto e as boas leis corresponde ao parentesco mas não à identidade en tre o homem bom e o bom cidadão A fim de aprender a controlar os prazeres e as dores comuns os cidadãos devem ser expostos desde a infância a prazeres proporcionados pela poesia e pelas demais artes imitativas que por sua vez devem ser controladas por leis boas ou sábias por leis que portanto jamús devem ser mudadas o desejo de ino vação tão natural à poesia e às outras artes imitativas deve ser suprimido tanto quanto possível os meios para atingir esse objetivo é a consagração do correto depois que este veio à luz O lslador perfeito persuadirá ou compelirá os poetas a ensinarem que a justiça combina com o prazer e que a injustiça combina com a dor O legislador perfeito exigirá que essa doutrina manifestamente salutar seja ensinada mesmo que não seja verdadeira Essa doutrina ocupa o lugar da teologia do suido livro da República Para a República o ensino salutar sobre a relação entre justiça e prazer ou felicidade não poderia ser discutida no contexto da educação dos não filósofos porque a República não pressupõe como fàzem as Leis que os interlocutores do personagem principal sai bam o que é justiça A conversa toda relativa à educação e com isso também acerca das finalidades ou dos princípios da lslação é subsuntida pelo ateniense desconheci do sob o tema vinho e até em briez porque o aperfeiçoamento das leis antigas só pode ser confiado com srança a velhos de boa educação que como tais são avessos a qualquer mudança e que para se disporem a mudar as leis antigas devem ser subme tidos a um rejuvenescimento tal como o produzido pelo consumo de vinho Só depois de ter determinado as metas que a vida política deve atender educa ção e virtude é que o estranho se volta para o início da vida política ou a gênese da cidade a fim de descobrir a causa das mudanças políticas e em especial das mudanças de regime Muitos têm sido os primórdios da vida política porque têm ocorrido mui tas destruições de quase todos os homens devido a inundações pnas e calamidades semelhantes que trazem consigo a destruição de todas as artes e ferramentas apenas alguns seres humanos sobreviveram no topo de montanhas ou em outros lugares pri vilegiados passaramse muitas gerações até que se atrevessem a descer para a planície e durante essas gerações a última lembrança das artes desapareceu A condição de que emeiiram todas as cidades e rimes todas as artes e leis todos os vícios e virtudes 118 fó 643 659 653 119 éíí 660664 120 RepúbUca092 P latão 7 5 surgiram é a falta de todas essas coisas nos homens o local de onde algo emerge é um tipo de causa da coisa em questão a falta primária daquilo que podemos denominar civilização parece ser a causa de todas as mudanças políticas Se o homem tivesse tido um começo perfeito não haveria causa alguma para a mudança e a imperfeição de seu início certamente teria efeitos em todas as íàses por mais que perfeitas de sua civilização O desconhecido mostra que esse é o caso ao se acompanhar as mudanças pelas quais a vida humana passou desde seus primórdios quando os homens eram aparentemente virtuosos porque não eram de fato sábios mas simplórios ou ino centes apesar disso de fato selvagens até a destruição do povoado original de Esparta e suas cidades irmãs Messene e Argos Faz referência de modo delicado apenas à su jeição despótica dos messênios pelos espartanos O desconhecido sintetiza o resultado de sua averiguação pela enumeração dos direitos geralmente aceitos e eficazes para governar É a contradição entre os direitos ou reivindicações que explica a mudança de regimes O direito de governar com base na sabedoria conquanto o mais elevado seria apenas um entre sete Entre os outros encontramos o direito ou reivindicação do mestre para mandar em seus escravos do mais forte para dominar o mais fraco e daqueles escolhidos pelo destino para decidir sobre os que não o foram A sabedoria não constitui direito suficiente um regime viável pressupõe um amálgama de reivindi cações baseadas na sabedoria com reivindicações baseadas em outros tipos de superio ridade talvez a fusão adequada ou sábia de alguns dos outros direitos possa substituir o direito decorrente da sabedoria O ateniense desconhecido não abstrai como o faz o forasteiro eleata a força física como um ingrediente necessário do domínio do ho mem sobre o homem O regime viável deve ser misto O regime de Esparta é misto Mas seria mesclado com sabedoria Para responder a essa pergunta é preciso primeiro examinar de forma isolada os ingredientes da mistura certa São estes a monarquia da qual a Pérsia oferece o exemplo por excelência e a democracia da qual Atenas oferece o mais destacado exemplo A monarquia por si só representa o domínio absoluto do homem sábio ou do mestre a democracia representa a liberdade A mistura certa é a de sabedoria com liberdade de sabedoria com consentimento do governo por leis sábias elaboradas por um legislador sábio com a administração pelos melhores mem bros da cidade e com o governo do povo comum Após terem sido esclarecidos o final e as características gerais do melhor regime possível Clínias revela o que a presente conversa tem de utilidade direta para ele Os cretenses planejam fundar uma colônia e confiaram a ele juntamente com alguns outros a elaboração do projeto e em particular a composição de leis para a colônia como melhor entendessem poderiam até mesmo selecionar leis estrangeiras se lhes parecessem superiores às leis de Creta As pessoas a serem estabelecidas ali viriam de Creta e do Peloponeso não viriam todas de uma só cidade Se fossem da mesma 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 121 Leis 676 678 122 Ihidiy 123 Ibid m cidade com a mesma língua e as mesmas leis e os mesmos ritos sagrados e crenças náo poderiam ser facilmente persuadidas a aceitar instituições diferentes das de sua cidade natal Por outro lado a heterogeneidade da população de uma cidade do futu ro causa dissensões No presente caso a heterogeneidade parece ser suficiente para possibilitar consideráveis mudanças para o melhor ou seja a instalação do melhor regime possível mas não tão grandes que impeçam a fusão Temos aqui a alternativa viável para a expulsão de todos com idade superior a 10 anos que seria necessária para o estabelecimento do melhor regime da República As tradições que os vários grupos de colonos trazem com eles serão modificadas ao contrário de erradicadas Graças à boa sorte que propiciou a presença do desconhecido ateniense em Creta no momento mesmo em que está em preparação o envio dos colonos há uma possibilidade razoável de que as tradições sejam modificadas com sabedoria Os maiores cuidados devem ser tomados para que a nova ordem estabelecida sob a orientação dos homens sábios não seja alterada posteriormente por homens menos sábios esta nova ordem deve ser exposta às alterações tão pouco quanto possível pois qualquer alteração de uma ordem sábia parece ser uma mudança para pior De qualquer forma sem a presença fortuita do ateniense desconhecido em Creta não haveria esperança de uma legislação sábia para a nova cidade Esta conclusão nos fiiz entender a afirmação do desconhecido de que não são os seres humanos mas é o acaso que legisla a maioria das leis é por assim dizer ditada por calamidades Contudo ainda há espaço para a arte legislativa Ou inversamente o possuidor da arte legislativa será impotente se não tiver sorte pelo que só pode rezar As circunstâncias mais favoráveis pelas quais o legislador deve pedir é que a cidade para a qual deve formular as leis seja governada por um tirano jovem cuja natureza seja em alguns aspectos idêntica à do filósofo exceto que aquele não tem de ser gracioso ou espirituoso amante da verdade e justo sua falta de justiça o fiito de que é incentivado apenas pelo desejo de seu próprio poder e glória não causará dano se estiver disposto a ouvir o sábio legislador Dada essa condição dada uma coincidência do maior poder com sabedoria por meio da cooperação do tirano com o legislador sábio o legislador realizará a mais rápida e profunda transformação para melhor nos hábitos dos cidadãos Mas uma vez que a cidade a ser fundada será subme tida à menor alteração possível talvez seja mais importante compreender que o regime mais difícil de mudar é a oligarquia o regime que ocupa o lugar central na ordem dos regimes apresentados na República Decerto a cidade a ser fundada não pode ser governada pela tirania O melhor regime é aquele em que um deus ou demônio gover na tal como na era de Cronos a idade de ouro A imitação mais próxima do divino é o governo das leis Mas por sua vez as leis dependem do homem ou homens que podem ditar e fazer cumprir as leis ou seja o regime monarquia tirania oligarquia democracia aristocracia No caso de cada um desses regimes uma parte da cidade governa o resto e portanto governa a cidade com vistas a um interesse parcial não P latAo 7 7 124 Ibid 707708 125 Cf ibid 708712 com República 487 em termos dos interesses comuns Já conhecemos a solução para essa dificuldade o regime deve ser misto tal como foi de certo modo em Esparta e Creta e deve adotar um código elaborado por um legislador sábio O legislador sábio não se limitará a emitir ordens simples acompanhadas de san ções ou seja ameaças de punição Esta é a maneira de orientar escravos não homens livres O legislador sábio prefiiciará as leis com preâmbulos ou prelúdios que apontem os motivos das leis Todavia diferentes tipos de motivos são necessários para persua dir diferentes tipos de homens e a multiplicidade de razões pode confundir e assim comprometer a simplicidade da obediência O legislador deve então ser dotado da arte de dizer ao mesmo tempo coisas diferentes para diferentes tipos de cidadãos de tal forma que o discurso do legislador atingirá em todos os casos o mesmo resultado simples a obediência a suas leis Serão os poetas de grande valia para a aquisição dessa arte Deve ser dupla a dimensão das leis as leis devem consistir na lei não misturada a afirmação categórica do que deve ser feito ou evitado sob pena de con seqüências ou seja a prescrição tirânica e o prelúdio para a lei que gentilmente persuade apelando para a razão A mistura adequada de coerção e persuasão de tirania e democracia de sabedoria e de consentimento revelase em toda parte como a natureza dos arranjos políticos sábios As leis exigem um prólogo geral uma exortação para honrar os vários seres que merecem ser honrados em sua própria ordem Uma vez que o governo das leis é uma imitação do domínio divino devese honrar primeiro e acima de tudo os deuses ao lado de outros seres sobrehumanos em seguida os ancestrais depois o próprio pai e mãe Todos também devem honrar sua alma mas depois dos deuses A ordem de clas sificação entre honrar a própria alma e honrar os pais não fica inteiramente esclarecida Honrar a própria alma significa adquirir as várias virtudes sem as quais ninguém pode ser um bom cidadão A exortação geral culmina com a prova de que a vida virtuosa é mais radável do que uma vida de vícios Antes que o fundador da nova colônia possa começar com a lislação em si deve tomar duas medidas da maior importância Em primeiro lugar deve efetuar uma espécie de purgação dos cidadãos em potencial somente o tipo certo de colono deve ser admitido na nova colônia Em segundo as terras devem ser distribuídas entre os aceitos para a cidadania Não haverá então comunismo Quaisquer que sejam as vantagens que o comunismo possa oferecer não será viável se o legislador não quiser exercer governo tirânico ele mesmo enquanto no caso em apreço nem sequer é contemplada a cooperação do legislador com um tirano No entanto a terra deve continuar a ser propriedade de toda a cidade nenhum cidadão será o proprietário absoluto da terra atribuída a ele A terra será dividida em 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 126 Leis 713715 127 Ibid 7X2 128 Ibid 719720 129 Ibid 722723 cf 808 130 Cf Aristóteles PolitUa 1266 13 131 Ie739740 lotes que nunca devem ser alterados pela venda compra ou de qualquer outra forma o que será realizado se cada proprietário for obrigado a legar todo o seu lote para um único filho os outros filhos devem tentar casarse com herdeiras para evitar o excesso de população do sexo masculino para além do número de loteamentos estabelecido originalmente seria necessário recorrer ao controle da natalidade e em casos extremos à expulsão das colônias Não deve haver ouro e prata na cidade e a menor quantidade possível de ganho de dinheiro É impossível que haja igualdade de propriedade mas deveria haver um limite superior do que um cidadão possa possuir o mais rico cidadão deve ser autorizado a possuir não mais que quatro vezes o que os cidadãos mais pobres têm ou seja o lote de terra incluindo a casa e os escravos É impossível ignorar a desi gualdade de bens na distribuição do poder político O corpo de cidadãos será dividido em quatro classes de acordo com a quantidade de bens possuídos A terra atribuída a cada cidadão deve ser suficiente para capadtarlhe a servir a cidade na guerra como cavaleiro ou como hoplita Em outras palavras a cidadania é limitada aos cavaleiros e aos hoplitas O regime parece ser o que Aristóteles denomina comunidade política uma democracia limitada por uma considerável qualificação por propriedade Mas isso não é correto como transparece particularmente nas leis acerca da participação no Conselho e eleição para o Conselho O Conselho é o que poderíamos chamar a parte executiva do governo cada duodécimo do Conselho deverá governar por um mês O Conselho é composto por quatro grupos de mesmo tamanho o primeiro a ser escolhido entre a classe com as maiores propriedades o segundo a ser escolhido a partir da classe com as smdas maiores propriedades e assim por diante Todos os cidadãos têm o mesmo poder de voto mas enquanto todos os cidadãos são obrigados a votar nos conselheiros da classe de maiores propriedades só os cidadãos das duas classes com as maiores propriedades são obrigados a votar nos conselheiros da classe de menores propriedades Obviamente esse modo de agir tinha o intuito de íavorecer os ricos o rime se destina a ser uma média entre a monarquia e a democracia ou mais precisamente uma média entre o mais oligárquico ou aristocrático do que uma comunidade política Privilios semelhantes são concedidos aos ricos também no que diz respeito ao poder na Assembleia e à ocupação dos cargos mais honrosos No en tanto não é a riqueza como riqueza que é fevorecida nenhum artesão ou comerciante conquanto rico pode ser cidadão Só podem ser cidadãos aqueles que têm o tempo livre para se dedicar à prática da virtude dos cidadãos A parte mais visível da legislação em si diz respeito à impiedade que é naturalmen te tratada dentro do contexto da lei penal A impiedade fundamental é o ateísmo ou a negação da existência de deuses Uma vez que uma boa lei não só pune os crimes ou apela para o medo mas também apela à razão o ateniense desconhecido é obrigado a demonstrar a existência dos deuses e uma vez que os deuses que não se importam com a justiça dos homens que não recompensam os justos nem punem os injustos PiAtóo 79 132 NT Na Grécia antiga soldado de infantaria pesada cuja armadura eia composta de elmo couraça escudo grevas espada e lança 133 Ibid75e não são suficientes para a cidade precisa também demonstrar a providência divina Leis é a única obra platônica que contém tal demonstração É a única obra platônica que começa com um deus Seria possível dizer que é a obra mais piedosa de Platão e que é por essa razão que nela é atacada a raiz da impiedade ou seja a opinião de que não há deuses O ateniense desconhecido retoma a questão a respeito dos deuses embora náo tenha sido sequer levantada em Creta ou em Esparta mas foi no entanto cogitada em Atenas Clínias favorece fortemente a demonstração recomendada pelo ateniense com o fundamento de que constituiria o mais excelente e melhor prelúdio para todo o código O ateniense não pode refutar os ateus antes de expressar suas afirmações Eles parecem afirmar que o corpo é anterior à alma ou à mente ou que a alma ou mente é derivada do corpo e consequentemente de que nada é por natureza justo ou injusto ou que todo o direito se origina na convenção A refutação disso consiste em uma prova de que a alma é anterior ao corpo prova esta que implica que existe um direito natural As punições para a impiedade diferem de acordo com os diferentes tipos de impiedade Não fica claro que punição se houver será infligida ao ateu que é um homem justo decerto será punido menos severamente do que por exemplo o homem que pratica a retórica forense com vistas ao ganho Mesmo nos casos de outros tipos de impiedade a pena capital será extremamente rara Mencionamos esses fatos porque considerálos de modo insuficiente pode induzir as pessoas ignorantes a censurar Platão por sua su posta fiJta de liberalismo Não descrevemos aqui essas pessoas como ignorantes porque creem que o liberalismo exige tolerância incondicional do ensino de todas as opiniões não importa se perigosas ou degradantes Nós as chamamos de ignorantes porque não percebem até que ponto Platão é extremamente liberal de acordo com os seus próprios padrões que não podem de forma alguma ser absolutos Os padrões geralmente reconhecidos no tempo de Platão são mais bem ilustrados pela prática de Atenas uma cidade muito conhecida por sua liberalidade e delicadeza Em Atenas Sócrates foi pu nido com a morte porque se dizia que não acreditava na existência dos deuses cultua dos pela cidade de Atenas de deuses cuja existência era conhecida apenas por ouvir dizer Na cidade das Leis a crença em deuses é exigida somente até na medida em que é sustentada pela demonstração além disso aqueles que não forem convencidos pela demonstração mas são homens justos não serão condenados à morte Parece estar garantida a estabilidade da ordem descrita pelo ateniense desconhe cido tanto quanto se pode garantir a estabilidade de qualquer ordem política é garan tida pela obediência por parte da grande maioria dos cidadãos às leis sábias que são tão imutáveis quanto possível por uma obediência que resulta principalmente da educa ção para a virtude da formação do caráter Ainda assim as leis são apenas a segunda melhor opção nenhuma lei pode ser tão sábia quanto a decisão que toma na hora um homem verdadeiramente sábio Por conseguinte devemse tomar providências para por assim dizer alcançar um progresso infinito no aperfeiçoamento da legislação no interesse do crescente aperfeiçoamento da ordem política bem como para neutralizar 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 134 tó 886 cf 891 a deterioração das leis Desta forma a lslação será um processo interminável a cada momento deve haver legisladores em vida As leis só devem ser alteradas com a máxima cautela apenas no caso de necessidade universalmente admitida Os últimos legislado res devem ter em vista a mesma meta de comando que o legislador original a excelência das almas dos membros da cidade Para evitar a mudança das leis as relações dos cidadãos com os estrangeiros devem ser supervisionadas de perto Nenhum cidadão poderá ir para o estrangeiro para fins privados Mas os cidadãos de elevada reputação e de mais de 50 anos que desejarem ver como vivem os outros homens e especialmente conversar com homens notáveis de quem podem aprender algo sobre o aperfeiçoamen to das leis são encorajados a íàzêloTodavia todas essas e outras medidas similares não são suficientes para a salvação das leis e do regime fiJta ainda uma base firme Tal base firme só pode ser fi3rnecida por um Conselho Noturno composto pelos cidadãos idosos mais proeminentes e cidadãos mais jovens de 30 anos ou mais para isso selecio nados O Conselho Noturno deve ser para a cidade o que a mente é para o indivíduo humano Para exercer sua função os seus membros devem possuir acima de tudo o conhecimento mais adequado possível da finalidade única para qual toda a ação política direta ou indiretamente mira Este alvo é a virtude A virtude deveria ser uma mas é também muitas existem quatro tipos de virtude e pelo menos dois deles sabedoria e coragem ou ímpeto são radicalmente diferentes um do outro Como então pode haver uma única meta da cidade O Conselho Noturno não pode desempenhar sua função se não puder responder a essa questão ou de modo mais genérico e talvez expresso de modo mais preciso devem fàzer parte do Conselho Noturno pelo menos alguns homens que saibam o que são as virtudes em si ou que conheçam as ideias das várias virtudes da mesma forma como sabem o que as une de modo que todas em conjunto possam ser chamadas com justiça de virtude no singular seria a virtude o fim único da cidade uma ou um todo ou ambos ou algo diferente Também devem saber tanto quanto é humanamente possível a verdade sobre os deuses Uma sólida reverência aos deuses sui apenas a partir do conhecimento da alma bem como dos movimentos das estrelas Somente os homens que combinam esse conhecimento com as virtudes populares ou vulgares podem ser governantes adequados da cidade se viesse a existir a cidade deveria ser entregue ao Conselho Noturno para ser governada Aos poucos Platão aproxima o regime das Leis ao regime da RepúblicaP Tendo chegado ao fim das Leis devemos voltar ao início da República P latão 81 L e it u r a s A Platão República B Platão Leis 135 tí769771772875 136 Ibid 949 ss 137 Ibid ò 138 Aristóteles Política 1265 14 X enofonte C 430 c 354 aC Dos companheiros de Sócrates que escreveram sobre ele só Platáo e Xenofonte deixaram obras que chegaram até nós mais ou menos intactas Mas enquanto os es critos de Platâo são por assim dizer inteiramente socráticos as quatro obras socráticas de Xenofonte Memorabilia Econômico Simpósio e ApologUt de Sócrates preenchem apenas um dos cinco volumes da edição completa de suas obras Assim o leitor se vê diante da tarefa sem contrapartida no estudo de Platão de compreender o lugar dos escritos socráticos de Xenofonte no contexto mais amplo de sua obra como um todo De longe a obra mais longa de Xenofonte a Ciropédia Educação de Ciro é uma narrativa sobre a educação e a carreira do fundador do império persa que tal como apresentado por Xenofonte é um praticante exemplar da arte régia de governar Sua segunda obra mais longa Helênica Assuntos Gregos é dedicada a destacar os feitos políticos e militares dos gregos durante a vida de Xenofonte Começando aproxima damente onde termina a história de Tucídides em suas porçóes iniciais são às vezes consideradas como uma continuação e conclusão dessa narrativa KAnábase Marcha de Ciro para o Interior é em grande parte um relato do mais destacado evento da carreira política do próprio Xenofonte que liderou de volta à Grécia e à segurança a maior parte dos dez mil mercenários gregos que acompanharam o jovem Ciro ao coração do império persa em apoio à sua tentativa de derrubar seu irmão o rei persa Os gregos haviam se isolado lá após Ciro ter sido morto em combate e suas demais tropas terem debandado para o rei As outras obras não socráticas tradicionalmente atribuídas a Xenofonte consistem em escritos mais curtos Compreendem um elogio de Agesilau rei de Esparta conhecido pessoalmente por Xenofonte um diálogo sobre a tirania entre o tirano Hiero e o poeta Simônides e tratados sobre as constituições de Esparta e Atenas sobre a receita ateniense e sobre as artes do comandante da cavalaria da equitação e da caça com cães Xenofonte que viveu ele mesmo durante algum tempo como senhor de uma propriedade rural diznos algo sobre os gostos e opiniões de um cavalheiro grego 1 Andbase V 3713 por exemplo sua admiração pela arte régia de governar por um lado e pelo republi canismo ao estilo espartano por outro bem como sobre o interior ou a base rural de muitas das atividades do cavalheiro com sua pesada demanda pelo uso de cavalos e cães É tentador concluir que os seus escritos como um todo não apenas refletem esse gosto mas acima de tudo têm a intenção de mostrálo atraente Esta tentação pode ser reforçada quando observamos como somos obrigados a íãzer outra diferença entre os escritos de Xenofonte e Platão Os tons solenes comoventes quase trágicos dos diálogos platônicos dificilmente serão encontrados em Xenofonte Em seu lugar en contramos uma simplicidade de aparente leveza muitas vezes animada e adornada pelo humor Xenofonte é um escritor capaz de apresentar o problema da justiça sob a forma da história de dois meninos um deles grande trajando um casaco pequeno e outro pe queno com um casaco grande Aparenta terse esquivado da grave seriedade com tanta ânsia quanto e muito mais sucesso do que Bertie Wooster aquele dândi moderno in ventado por P G Wodehouse ao fugir de envolvimentos com mulheres meiulhadas até a garganta em sérias intenções e empenhadas em melhorar seu intelecto Pode haver considerável verdade nessa primeira impressão daquilo que inspirou Xenofonte e do público a quem desejava dirigirse Mas não esclarece o contexto em que devem ser entendidos seus escritos socráticos De fato não deixa lugar para esses escritos Pois como Xenofonte demonstra em sua abordagem mais extensa da vida e do caráter cavalheirescos o cavalheiro como tal não tem interesse em Sócrates ao passo que Xenofonte se preocupa com ele Tal preocupação é demonstrada não só em seus escritos socráticos propriamente ditos mas também pelo aparecimento de Sócra tes e temas correlatos em cada uma de suas outras obras principais Chegamos mais perto em seguida de fiizer justiça a ambos os aspectos das obras socráticas e não socráticas de Xenofonte e de trazer à luz a sua possível unidade ao sugerir que o au tor possa ter sido alguém que se devotou à pergunta socrática acerca do melhor modo de vida sem jamais ter aceitado completamente a resposta socrática de que esse mo do de vida é o filosófico Essa sugestão angaria algum apoio ao considerarmos que Xenofonte ao mesmo tempo que frequentemente chama a atenção para sua própria relação com Sócrates em nítido contraste com Platão chegando ao ponto de chamar o principal de seus escritos X e n o f o n t e 8 3 2 Econômico 21 10 44 135 3 Memorabilia III 51516 O testemunho é do filho do grande Péricles autor da política antiespar tana de Atenas 4 Econômico Se W 5 Ciwpédia 1 3 1617 6 O Econômico inclui o relato de uma longa conversa entre Sócrates e um perfeito cavalheiro a qual culmina na comparação entre seus dois modos de vida A conversa é desencadeada por Sócrates e todas as peiguntas que a animam são provenientes dele e atendem a seu desejo de obter informa ções sobre o cavalheiro 7 Anábase III 148 Helênica I 715 e contexto Gmpaiemos com Memorabilia I 11718 e IV 412 Ciropidia 1 63134 III 114 e 13840 VII 21525 socráticos de Memorabilia ou Lembranças suas memórias de Sócrates nos dois únicos episódios que escolhe para relatar sua amizade dá mais provas de resistência aos ensinamentos e conselhos de Sócrates do que de aceitação deles Se a volubilidade de Xenofonte prejudica que os acatemos fazendo com que perguntemos se alguém que escreveu como ele poderia estar preocupado com a questão da melhor forma de vida po demos recordar as indicações do próprio Platão de que é questionável o gosto pela tné dia à qual estava muito mais disposto a sucumbir do que Xenofonte Mas mesmo que nossa proposta tenha de ser revista ou qualificada com base em nosso estudo das obras de Xenofonte tem o mérito de permitir que iniciemos este estudo ajudandonos a discernir a ordem em que as mais importantes delas se posicionam em relação uma à outra Na Ciropédia Xenofonte apresenta suas ideias sobre o caráter do governante perfeito e sobre o modo de vida político em seu auge Os escritos socráticos liderados pot Memorabilia são dedicados ao filósofo por excelência e ao modo de vida filosófico tal como Xenofonte os observara em primeira mão nas realizações de Sócrates Ciro e Sócrates aparentemente representam as duas alternativas que mais o impressio naram constituindo os polos entre os quais acreditava encontraremse todas as outras possibilidades humanas p ex a Adda quase pública do cavalheiro por referência às quais devem ser compreendidos Em Anábase os dois polos se aproximam quando Xenofonte o aluno de Sócrates deixao indo contra os conselhos deste último para participar de uma campanha que está sendo organizada por um novo Ciro C ir o p é d ia Os feitos de Ciro o velho foram em parte devidos a seu nascimento família em parte à sua natureza e em parte à sua educação Se não fosse dotado de uma certa natureza excelentes capacidades naturais acompanhadas pela tendência a usá las de uma certa forma não poderia ter concebido seus grandes planos ou têlos executado Se não fosse fruto de duas linhas reais seu pai foi rei da Pérsia o pai de sua mãe rei da Média suas oportunidades teriam sido limitadas de tal forma que afetariam a natureza de suas realizações Mas deixando essas questões de lado por enquanto vamos começar a partir de uma análise de sua educação tal como o título de Xenofonte nos convida a fazer 8 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 8 Memorabilia I 3813 Andbase I I I 148 9 Ver por exemplo Leis 65824 e Mênon 7637 Ver Characteristics I 167 e 309 de Shaftesbury Indianapolis BobbsMerrill 1964 para a opinião de alguém que preferia Xenofonte a Platão a este respeito 10 Ciropédia 116 11 121 313 424 12 A comparativa brandura deste governo dependia em parte da reivindicação de legitimidade de Ciro o velho devida a seu nascimento e que sempre lutou para manter Consideremos especial mente VIII 51720 526 528 e VII 537 ss Foi educado nas leis persas O relato de Xenofonte náo pretende seriamente ser histórico De acordo com ele a Pérsia em que Ciro foi criado a Pérsia cujos exércitos liderou na conquista da Ásia e em cujo nome fundou um império era uma república bastante pequena ou o que poderíamos chamar de monarquia constitucional Era além disso uma república modelo de acordo com as ordenadas espartanas uma Esparta me lhorada Se Xenofonte admirava Esparta deve ter admirado ainda mais esta Pérsia Educando seus jovens publicamente como fez Esparta incutindolhes a continência e a obediência bem como habilidades militares a Pérsia suprimiu a educação espartana pata o roubo em fóvor de uma educação para a justiça Como as cidades eltiadas por Platão e Aristóteles a Pérsia de Xenofonte considerava como a tarefa mais importante de suas leis a formação do caráter de seus cidadãos desejava moldálos de tal forma que nem sequer teriam vontade de cometer qualquer ato perverso ou vergonhoso E tal como outras cidades tidas em alta estima era uma aristocracia uma vez que a fidelidade do país aos elevados propósitos de suas leis dependia de que a autoridade política per manecesse firme nas mãos daqueles e somente daqueles que tivessem concluído o curso da educação planejada para obter esse efeito Em outras palavras com a quase exceção de sua brincalhona proposta de que os regimes políticos almejáveis não são meros ob jetos de orações ou desejos futuros mas realmente existiram em algum momento no passado a apresentação da Pérsia por Xenofonte s e as linhas mais familiares para nós em Platão e Aristóteles E na medida em que o sucesso de Ciro e de seus persas foi de vido à formação que receberam das leis persas a Ciropédia como um todo representa uma espécie de homenem a essas leis e ao regime persa que os manteve A educação de Ciro entretanto no sentido amplo do termo teve lugar não ape nas na Pérsia mas também na Média na corte de seu avô um déspota oriental típico que governava um país de estilo muito diverso do da Pérsia Em consonância com isso o sucesso de Ciro equivaleu à transformação política de fato transformação em grande escala da Pérsia O império persa que fundou tinha pouco em comum com a antiga Pérsia que efetivamente substituiu relegandoa ao status de uma província um tanto pequena por mais que por sólidas razões políticas Ciro desejasse ressaltar a semelhança entre a antiga e a nova ordem em vez de suas diferenças E Xenofonte pa rece apresentar a transformação da Pérsia por Ciro de modo não menos simpático do que apresentou a antiga Pérsia que Ciro transformou Além disso as mudanças ope radas por Ciro dificilmente poderiam ter ocorrido ou ser defendidas por ele se não houvesse falhas graves na antiga Pérsia Ao apresentar a carreira de Ciro Xenofonte não podia debtar de chamar a atenção para esses defeitos Isso significa porém que foi X e n o f o n t e 8 5 13 Ibid 126 ss comparemos com Constituição de Esparta 26 ss bem com Andbase IV 614 14 Ciropédia I 223 15 Ibidl 16 Consideremos entre outros trechos ibid I 16 22 31 5713 II 13 III 35055 370 IV 23846 514 554 V 21520 VII 570 VIII 815 17 Comparemos com ibid I 22 com 31 3131841 425 e 51 18 Aid VII 585 forçado a salientar o que Platão e Aristóteles se permitiram apenas insinuan os defeitos do republicanismo clássico na sua forma mais elevada ou mais exaltada assim deu um passo importante em direção à crítica muito menos simpática de Maquiavel um favor que Maquiavel reconheceu em muitas observações cheias de apreço Para retornar à educação de Ciro na Média vemos que passou de seu 13 até o 15 ou 16 ano na corte de seu avô encontrando ali aspectos tanto de que gostar como de que não gostar Por exemplo iradavalhe o estilo de vestuário e de adorno da Média que muito suplantava o persa em riqueza e esplendor e deleitavase ao extremo em aprender equitação Mas não apreciava a paixão dos medas por comidas elaboradas o que tornava o processo de saciar a fome desnecessariamente complica do e demorado e por bebidas embrisantes até porque íàziam com que o próprio rei assim como seus agregados esquecessem o respeito que lhe deviam Embora Ciro criticasse duramente o comportamento dos monarcas medas pelo menos em retrospecto mesmo quando menino pode ter tido alguma consciência de que a mo narquia absoluta não deixa de ter suas vantiens E naquele momento ou mais tarde formou a opinião de que os seus companheiros na Pérsia seriam atraídos como ele pelas oportunidades médias de riqueza e distinção indisponíveis para eles na república persa incomparavelmente mais austera Quando Ciro estava provavelmente ainda nos seus vinte e poucos a vinte e tantos anos mas já considerado na Pérsia um homem maduro uma combinação de forças reunidas e lideradas pelo rei da Assíria trouxe ameaças para a Média ora go vernada por Ciro sob Ciáxares A ameaça à Média era ao mesmo tempo uma ameaça para a Pérsia pois a aliança com sua vizinha fora certamente uma das rochas sobre as quais a independência persa se mantivera até aquele momento O governo persa deci diu portanto em resposta a um pedido de Ciáxares enviar uma força de 31 mil persas para ajudar a defender sua aliada Também consentiram na vontade de Ciáxares quan to à seleção de Ciro que ainda possuía muitos amigos na Média desde sua estada lá 10 anos ou mais antes para comandar essa força Ciro conforme respondeu não era contrário a aceitar a atribuição Esta foi a abertura pela qual provavelmente esperava Mas para discernir a previdência ousadia e inventividade a paciência determinação e perseverança que estão entre os atores que compõem a grande liderança política basta apenas considerar a distância entre o que Ciro foi autorizado a fezer por esta comissão e aquilo que pretendia fezer e entre os recursos que lhe proporcionou e aqueles que seu projeto maior exigia 86 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 19 Com referência à Ciropidia em particular ver O príncipe 14 e 16 e Discursos I I 13 III2022 e 39 20 Ciropidia I 323 comparemos com VIII 14041 e 3114 21 Ibid I 33 315445 comparemos com IV 3 e VIII 316 e 325 22 Ibid I 34 comparemos com I 512 IV 1ÒBA7 517 V 21421 33435 VI 22529 mas também VIII 217 23 Ibid I 31011 comparemos com VIII 4915 24 Ibid 168 comparemos com 318 25 Consideremos ibid I 31618 com VIII 122 e Aristóteles PoUtica 12698121286916 Ciro era de feto o herdeiro do trono persa mas mesmo como rei náo teria ne nhuma autoridade independente além de poder realizar sacrifícios em fevor do país Sua autoridade legal constituía naquela altura apenas no comando militar para o qual tinha sido designado Ou seja dependia totalmente da decisão revogável do governo persa Ora dado o tamanho e a natureza da força que lhe foi confiada e a ocasião para seu envio aquele governo deve ter tido em mente o seu envolvimento em nada mais do que uma guerra limitada e defensiva só essa guerra teria sido verdadeiramente compatível com o desejo de manter o modo de vida único da Pérsia que demandava atenta supervisão mútua por parte de cidadãos fiuniliarizados uns com os outros por meio do contato diário Teria sido muito difícil para não dizer impossível manter tal modo de vida em uma Pérsia maior que poderia resultar da tentativa de absorver as conquistas estrangeiras e que teria sido quase tão ameaçada pelas múltiplas e pro longadas ausências da Pérsia que a administração dos territórios conquisudos como províncias subjugadas teria exigido No entanto Ciro não pretendia apenas ajudar a aliada da Pérsia e assim contribuir para sua defesa mas conquistar todos os países que se opunham à Pérsia e incorporálos juntamente com outros na Pérsia maior que imaginava Náo tinha intenção além disso de entregar essas conquistas ao governo persa cujo trono limitado um dia ocuparia Ao contrário esuva determinado desde o início isto é ainda durante a vida de seu pai a governar ele mesmo como monarca absoluto sem as limiuções de uma constituição Enquanto tomava as medidas necessárias pau essas realizações Ciro teria de norar a vontade e talvez mesmo as ordens do govemo persa até que lhe pudesse oferecer ou uma tenução irresistíveP ou um feto consumado ou uma combinação dos dois Apenas pau atingir seus objetivos militares seria necessário um grande exér cito do qual sua força original persa poderia constimir no máximo o núcleo mesmo assim somente se pudesse obter o consentimento do exército pau projetos que não tinha o direito de obrigálos a empreender Ciro também teria de garantir sua aquies cência para uma reorganização muito substancial destinada a compensar a deficiência em número pelo aumento da capacidade bélica Seria preciso granjear aliados além dos medas que estivessem dispostos quer de maneira consciente ou inconsciente a empenharse e assumir riscos em prol de uma supremacia persa e de sua própria sub missão por sua vez os próprios medas sem mencionar Ciro sob Ciáxares teriam de ser convencidos a reconhecer a supremacia de um aliado até então igual ou até mesmo inferior Finalmente os próprios companheiros de armas de Ciro dos quais muitos eram seus iguais em termos políticos coletivamente na verdade seus superiores te riam de ser persuadidos a reconhecer a conveniência ou a necessidade de concederlhe X e n o f o n t e 8 7 26 Ciropédia VIII 5 comparemos com 1318 27 Ibid 1235 28 Consideremosífóíf VI 14 29 Ibid 1 235 30 IbidVm 5 uma autoridade irrefreada de se curvar a ele como os persas jamais haviam se curvado diante de outro ser humano O exército confiado a Ciro consistia em um milhar de pares do reino isto é aqueles nobres que concluíam a educação persa e consequentemente recebiam ple nos direitos de cidadania e 30 mil plebeus Isto em um total de 120 mil persas O significado estritamente militar desta proporção reside no fato de que somente os nobres eram equipados e preparados para o combate próximo Este era o tipo de bata lha em que em geral se sobressaíam os gregos em vez dos não gregos e que permitia que exércitos numericamente inferiores derrotassem outros muito maiores preparados apenas para escaramuças ou para o combate a distância Mas havia também um signifi cado político na divisão no exército de Ciro Em casa na Pérsia toda a classe daqueles denominados nobres era pequena em número mas ainda assim dominava os plebeus muito mais numerosos que nâo tinham qualquer participação nos direitos cívicos Presumivelmente o monopólio dos nobres sobre o tipo mais eficaz de combate con tribuía para a fiicilidade com que eram capazes de manter sua ascendência e podemos supor portanto que no envio de um exército para fora da Pérsia as autoridades domés ticas tivessem o cuidado de manter tanto no exército quanto aos persas que ficassem em casa uma relação numérica entre as classes considerada politicamente segura Mesmo assim devem ter avaliado que o exército confiado a Ciro estivesse à altura da tarefa de fensiva a ele atribuída Ou se tinham qualquer dúvida acerca desse ponto tomaram a decisão política de correr um risco um pouco maior nas mãos de seus inimigos estran geiros em vez de colocar armas perigosas nas mãos de potenciais inimigos internos Ciro avaliou a situação do exército de modo um pouco diferente Não se pre ocupava para dizer o mínimo em preservar o equilíbrio político quer no exército ou em casa mas se preocupava muito com o fato de que as pequenas dimensões do ramo mais eficaz do exército tornavamno inadequado para as tarefas que planejava A solução militar óbvia era dar armas pesadas para os plebeus armas a serem pagas pelo amedrontado Ciáxares e induzilos com a promessa de igualdade de tratamento no futuro a se juntarem às fileiras dos habilitados para o combate próximo Era possível prever que os plebeus aproveitariam sem hesitar a oportunidade de melhorar seu status e condição de vida mas era de se esperar oposição dos nobres no exército Ao contrá rio das autoridades domésticas os nobres estavam no locai e teriam de ser informados imediatamente e até mesmo consultados a respeito de tais mudanças e não estariam alheios às suas implicações políticas domésticas Desta forma antes mesmo de abordar 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 31 Comparemos ibid I 318 com VII 537 ss VIII 115 e em especial 31314 comparemos com Andbase III 213 32 Ciropédia 1215 33 Ibid II 13 34 Consideremos o fàto de que o contingente adicional enviado a Ciro pelas autoridades persas quan do decidiram atender a seu pedido de reforços era composto por 40 mil plebeus e nenhum nobre V53 35 Ciropédia II 1210 o tema do fornecimento de armas aos plebeus Ciro dirigiuse aos nobres que haviam sido indicados para acompanhálo Neste o primeiro de seus muitos discursos políticos fida dos costumes herda dos de seus antepassados e de sua própria situação De acordo com Ciro estão agora em uma situação que lhes permite evitar o erro de seus ancestrais de náo colocar em prática esses meritórios costumes Observo que nossos antepassados não eram piores que nós também perseveraram na realização daqueles atos que são reconhecidos como virtuosos Mas que bem obtiveram por serem homens deste tipo tanto para a comuni dade persa como para si próprios isto já não sou capaz de perceber Ciro tacitamente encara a preservação do regime persa e do modo de vida persa como inútil As coisas boas que tem em mente são precisamente aquelas que a Pérsia não fornece muita ri queza muita felicidade e grande honra para si e para seu país Esta é a razão pela qual a guerra que era tida pelas autoridades persas apenas como uma ameaça a ser sufocada o mais rápido possível é vista por Ciro como uma oportunidade uma oportunidade para utilizar as qualidades por tanto tempo cultivadas pelos persas que os moldam fisicamente e os preparam na alma para a supremacia militar Já que sabemos por nós mesmos que desde a inância praticamos atos nobres e bons marchemos contra os inimigos os quais sei com certeza serem não mais que amadores em uma disputa contra nós Vamos então agir com coragem também porque está longe de nós a reputação de injustamente desejar coisas que pertencem a outros Pois são os inimigos que ora avançam e desferem golpes injustos enquanto nossos amigos recorrem a nós como aliados O que é mais justo do que se defender ou mais nobre do que ajudar os amigos Xenofonte não precisa indicar aqui a reação dos nobres que ouviram este dis curso todo o resto do livro o revela Os nobres talvez com uma ocasional exceção concordaram não só com o rearmamento dos plebeus proposto por Ciro mas com muitas outras de suas medidas e o fizeram apesar das graves conseqüências políticas de cada etapa por si só e todas em conjunto O motivo não é serem tão tolos que não tivessem consciência dessas implicações reside no efeito que teve sobre eles o discurso de Ciro Seus corações e portanto também suas mentes já não estavam voltados para um regresso a casa ao seu modo de vida ancestral mas almejavam partilhar das gran des empreitadas para as quais as palavras de Ciro lhes abriram os olhos O rearmamento dos plebeus ocorreu logo em seguida Tendo prevenido os no bres com antecedência da maneira mostrada Ciro teve apenas de lhes apontar a sensa tez de tal passo do ponto de vista estritamente militar Embora seja mais difícil com X e n o f o n t e 8 9 36 Ibid I 5714 37 Consideremos as observações de Aglaitada um homem sobre quem nada mais sabemos em II 21116 38 Ciropédia II 11012 precnder o modo como apresentou a proposta aos plebeus devemos retornar a uma passagem anterior na qual Xenofonte lança luz sobre todo o regime dos persas Ocorre que nenhum dos persas é excluído por lei da partilha de honras e cargos ou do que denominamos direitos civis ao contrário todos estão autorizados a mandar seus filhos para escolas públicas da justiça Mas somente os pais que se podem dar ao luxo de sustentar seus filhos sem obrigálos a trabalhar de íàto os enviam E só os homens que foram educados nas escolas públicas e galgaram com sucesso os outros estágios de formação estes também excluindo a participação nas ocupações lucrati vas completandoos são autorizados a participar de honras e cargos O que nos diz esta situação de igualdade jurídica e desigualckde de fiito é que a distinção entre as classes aristocráticas na Pérsia repousava sobre uma base que os próprios aristocratas não estavam dispostos a defender abertamente como tal ou seja a riqueza herdada Quanto aos plebeus podemos ter certeza de que consideravam sua exclusão da igual dade política e sua dura sorte em geral como imerecidas Ciro portanto dirigiuse a eles da seguinte forma Homens da Pérsia fostes todos nascidos e criados no mesmo país que nós nobies ten des corpos não piores que os nossos e vos condiz não terdes almas piores que as nossas No entanto se sois homens desse tipo na nossa pátria não partilhardes igualmente co nosco excluídos não por nós mas pela necessidade de encontrar vossas provisões diárias ora por outro lado será a minha preocupação com os deuses que vós as tenhais mas se desejardes podereis usar armas tal como as que usamos correr os mesmos riscos que nós e se a de nobre e de bom disto advir ser considerados nos de recompensas compatíveis Assim 30 mil homens foram alçados à condição de nobres reputando sua elevação como devida a Ciro apenas ou acima de tudo com todas as implicações disso tanto para as relações de Ciro com os antigos nobres recémameaçados dentro do exército como para a perspectiva de o exército passar a ser um dia reabsorvido pela antiga Pérsia A reforma do exército foi então completada por duas outras etapas Primeiro com consentimento geral orquestrado por Ciro adotouse o princípio de recompen sar incluindo promoções é claro de acordo com o mérito sendo Ciro o juiz desse mérito Tal foi necessário não só por uma questão de revigorar o exército por meio de incentivos mas também para constituir uma nova base para a distinção e a hierarquia em substituição às antigas e desgastadas já que a hierarquia seria tão necessária na 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 39 Deveuse à sugestão de um nobie atencioso apaientemente sndo de modo próprio o lãto de que o próprio Ciro foi quem apresentou as armas aos plebeus II 112 14 Este foi o primeiro de muitos auxílios deste tipo que Ciro recebeu durante o transcorrer de sua ascensão Nem é preciso dizer que aqueles que demonstraram tal iniciativa não foram esquecidos ver V III411 e contexto 40 Ciropétüa I 1215 41 Consideremos ibid II 119 comparemos com VII 567 42 Ibid5ss 43 Ibid II 217213116 nova ordem cxmo na antíga Além disso com sua própria autoridade Ciro ordenou que os que fossem expulsos das fileiras por indignos fossem substituídos pelos melho res seres humanos disponíveis quer fossem ou náo concidadãos tal como no caso dos cairos preferemse os melhores e não os da pátria Escusado será dizer Ciro dedicouse às tarefiis de ampliar seu exército com alia dos e de preparar a subordinação dos aliados aos persas e a ele pessoalmente bem como às tarefas militares propriamente ditas com a mesma energia e habilidade que revelou na reorganização de seu exército Além disso muito foi auxiliado em aproxi mar seres humanos de si por sua óbvia decência e consideração justiça e generosidade lealdade e confiabilidade Essas qualidades unidas à sua grande habilidade militar que lhe renderam de imediato grande renome tão logo teve oportunidade de exibilas em ação genmun uma mistura de poderosa atração Porém vamos passar ao largo de todas essas atividades apesar de tão agradável sua leitura no relato de Xenofonte para continuar nosso exame das sementes políticas plantadas por Ciro em sua reoianiza ção do exército persa e o que delas frutificou no império por ele fundado Já se pode discernir agora que seus esforços baseavamse em uma profunda compreensão ou pelo menos em uma extraordinária percepção intuitiva das limita ções da Pérsia isto é da aristocracia clássica Sabia por exemplo que a lealdade que exigia tal como no caso de qualquer sociedade particular não universal repousava sobre uma divisão arbitrária da humanidade em concidadãos amigos e estrangeiros inimigos reais ou potenciais Comparemos com a análise de Platão na RepMica dos defeitos da justiça entendida como ajudar amigos e prejudicar inimigos Ciro estava ciente também de que a hierarquia de classes sem a qual na condição pré moderna de escassez material o inusitado sistema persa de educação pública não poderia ter se sustentado apoiavase não no mérito ou na capacidade natural mas no critério indefensável da riqueza herdada Na República Platão foi capaz de remover essa mancha da aristocracia clássica somente graças ao expediente extremo da abolição da fiunília Esses defeitos da velha ordem deveriam ser removidos na nova pela criação de um império universal e portanto que tudo incluía e por tornar as condições de riqueza honra e responsabilidade dentro dela decorrentes apenas do mérito Acima de tudo Ciro conhecia ou percebia a fraqueza daquela estima pela virtude e ações virtuosas como fins em si que a antiga educação persa se orgulhava em produzir um apego do qual dependiam a antiga Pérsia e seu modo de vida Falando agora ape nas do apego em si e não da virtude que era seu objeto tal apego não era realmente X e n o f o n t e 91 44 Ibid II 226 comparemos com 62734 43 Ao fàlar das evidentes qualidades de Cito não temos intenção de nar aquilo que Maquiavel se deleita em assinalar que o emprego judicioso de qualidades de um tipo diverso foi quase igual mente necessário ao sucesso de Ciro Ver nota 19 Xenofonte também é claro nos deba ver essas outras qualidades e sua importância para Ciro embora apenas de modo consistente com o prind pio que enuncia em Andbase V 826 de que é nobre bem como justo e piedoso e mais radável lembrar ou mencionar as coisas boas e náo as más Quer dizer náo se privou totalmente do prazer de mencionar as coisas más o resultado da educação no sentido estrito da palavra Ao contrário fora inculcado à força nos nobres persas tanto literal como figurativamente através do louvor e da culpa E um apego assim produzido é vulnerável à tentação Comparemos com o que propõe Platão no mito de Er que conclui a República com sua história sobre a escolha de vidas Ainda assim ao fornecer aquela tentação ao sugerir aos nobres que não perseverassem naquilo que consideravam como a virtude por si mesma mas ao contrário por suas recompensas Ciro parece ser mais um corruptor que um reforma dor Observamos de passagem que este pode ser o único quesito em que se asseme lha ao outro herói de Xenofonte o alegado corruptor dos jovens E por apresentar de modo favorável a revolução de Ciro Xenofonte parece estender sua solidariedade para com a corrupção dos nobres A questão de como de fato Xenofonte encarava aquela corrupção é uma parte talvez a mais importante da questão de seu julgamento final sobre a nova ordem de Ciro como um todo Naquilo que constitui um prefácio para a obra Xenofonte nos diz que voltou sua atenção para Ciro após refletir sobre a fiequência com que as democracias monar quias oligarquias e acima de tudo as tiranias são derrubadas e chegar à conclusão de que é extremamente difícil para não dizer impossível que seres humanos governem com êxito a outros seres humanos Esta conclusão parece ser refutada pela carreira de Ciro que demonstrou que não é difícil nem impossível governar seres humanos desde que se saiba como fàzêlo Ciro parece ter resolvido o problema político Toda via em sua conclusão para a Ciropédia Xenofonte admite e mesmo enfatiza que o império de Ciro foi vítima de conflitos e entrou em decadência imediatamente após sua morte Os motivos não foram apenas que seus sucessores a quem faltavam suas grandes qualidades não fossem capazes de manter as instituições que Ciro estabelece ra Tais motivos se devem também às falhas das próprias instituições Deixemos de lado o fato de que a nova fundação de Ciro constituía em grande medida apenas um reembaralhamento das cartas com as tribos outrora dominantes íora reduzidas à escravidão no serviço aos novos senhores que a má vontade resultan te tornou necessária a manutenção de um imenso aparato militar e uma grande guarda pessoal para Ciro uma rede de espioníem interna praticamente onipresente embo ra informal e além disso o emprego de vários feitiços para manter impressionados bem como intimidados os governados que o mérito individual tão generosamente recompensado por Ciro algumas vezes mal se distinguia da lealdade a ele e da vontade 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 46 Ciropédia I 267 31617 47 Ibid 1212 620 48 Ibid 1 1 49 iVIII 8 50 IbidVl 168 51 Ibid VII 55870 52 IbidY íll 21012 53 IbidV m 14042 3124 de servir a seus objetivos meramente pessoais e que as recompensas assim recebidas eram revogáveis a qualquer momento ao belprazer de Ciro É mais importante para nossos fins agora destacar que Ciro julgava provir exatamente dos mesmos amigos a quem mais recompensara o maior perigo para o seu trono Podese discernir a relevância dessa constatação no fato de que a maior parte desses amigos era os mes mos nobres a cuja ganância em todos os seus aspeaos Ciro dera asas ao sugerir que substituíssem a busca da virtude por si mesma por sua busca pelas suas recompensas De modo mais geral a que o amálgama que Ciro tentou criar entre a educação persa e a continência por um lado e as vestimentas e o luxo medas por outro embora temporariamente revigorante foi a longo prazo e até mesmo a curto prazo destrutiva das qualidades instituídas pela lei dos hábitos mentais dos quais dependiam não só a capacidade militar de Ciro mas também a capacidade de se defender da qual qualquer país deve em parte depender Por conseguinte aumentou a deterioração progressiva na qualidade do exército de Ciro até mesmo no que concerne ao seu tamanho e à sua capacidade militar global Nem poderia a educação da nova nobreza instituída por Ciro às portas de seu palácio fornecer a emoção a dedicação à virtude por si mesma que faltavam as quais Ciro extirpara da antiga educação persa em que pese sua se melhança superficial com aquela e apesar de seu sucesso na produção de uma ordem e respeito mútuo ilusórios Com base nessas e em outras considerações similares dificilmente podemos evitar a conclusão de Xenofonte acreditar que a tese sobre Ciro apresentada em seu prefácio viuse refutada e não sustentada por sua narração da carreira de Ciro Xeno fonte deve afinal ter considerado toda a Ciropédia como um endosso das leis e regi me persas antigos em vez de sua transformação por Ciro embora haja um endosso adequadamente qualificado tendo em conta os defeitos da velha ordem revelados pela obra Mas por que nesse caso Xenofonte apresentou a transformação de Ciro de tal forma a tornálo atraente para nós pelo menos à primeira vista e até mesmo ao ser examinado mais a fundo Desejava simplesmente livrarnos de uma perigosa tentação após ter primeiro induzido uma afinidade nossa para com ela Ou será que estamos íora correndo o risco de repetir nosso erro desta vez indo longe demais na direção contrária à nossa visão anterior equivocada Estaria a verdade sobre Ciro a X e n o f o n t e 9 3 54 7óí VIII 4354912 55 Ibid VIII 11620 e 21519 56 Ibid VIII 14548 22628 43 comparemos com V 2712 57 7ÓÍ7 VIII 815 58 Comparemos ibid III 35155 com I 5710 59 Isto se revela em especial pela crescente dependência de inovações técnicas e da transformação do papel dos oficiais de retaguarda Comparemos III 34142 com VI 327 e vejamos VI 12730 15055 e VII 13335 60 Ibid VII 58586 VIII 11012 11633 Dos produtos desta educação diz Xenofonte Con templandoos aqui nos portões do palácio seria possível pensar que de feto vivem almejando o que é nobre própria opinião de Xenofonte sobre Ciro em algum ponto entre esses dois extremos Auxilianos a responder a esta pergunta ou pelo menos a entender a posição de onde Xenofonte fàz a sua avaliação íinal um exame de duas conversas que apresenta entre o jovem Ciro e seus pais Ciro jamais consultou seus pais sobre seu maior projeto e é bastante seguro afir mar que nenhum dos dois o teria aprovado se consultado com antecedência o que não é a mesma coisa que se conformar graciosamente a posteriori ou aceitar da melhor forma possível um fóto consumado Mas a julgar pelo menos a partir das conversas mencionadas os motivos para a desaprovação teriam sido diferentes nos dois casos Ciro e a mãe conversaram na Média quando ele era ainda menino sobre a diferença entre a justiça meda e a persa Sua mãe fóla em tons que deixam bem clara sua opi nião quanto à superioridade da última uma preferência da qual Ciro demonstraria não compartilhar Ciro conversou com o pai quando estava de partida novamente para a Média desta vez para assumir seu fódado comando Seu pai fóla da própria si tuação de Ciro levantando a questão do significado de se responsabilizar pelo governo de outros seres humanos Tereis esquecido filho das conclusões a que chegamos na avaliação que certa feita fize mos de que constitui um ato suficiente e nobre para um homem ser capaz de exercer tais cuidados para que ele próprio atinja uma nobreza e bondade maduras e que forneça para si e sua família as provisões necessárias para o dia a dia Mas sendo esta uma tarefa grande suficiente saber como liderar outros seres humanos para que tenham todas as provisões diariamente em abundância e de forma que todos sejam como deveriam ser isso nos pareceu então algo espantoso Sim por Zeus pai lembrome de dizerdes isso e para mim também parecia uma tarefo de monstruosa grandeza governar com nobreza E mesmo agora tenho a mesma opinião quando analiso o assunto examinando o próprio governar Contudo sempre que olhando para os outros seres humanos reconheço que ripo é capaz de continuar a governar e que tipo de concorrentes teremos pareceme demasiado veinhoso se acovardarem diante de seres desse tipo e não estarem dispostos a entrar na competição contra eles Mas obsert meu filho há momentos em que a concorrência não é com os seres humanos mas com as próprias obrigações sobre as quais não é focil estabelecer uma superioridade definida Aparentemente Ciro ao contrário do pai não considerava tornarse nobre e bom enquanto diferente de governar outros como uma grande tarefó Sua ânsia para governar outros também implica a crença de que já tinha alcançado esta meta ou pelo menos já sabia muito bem o que significa ser nobre e bom Seu pai cujas ob servações ao longo da conversa nos fazem lembrar de Sócrates claramente não tinha tanta certeza Portanto em fóvor de Ciro o pai hesitava mais do que este mesmo sobre a conveniência de Ciro assumir a responsabilidade política ou militar E resta a nós 9 4 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 61 Ciropédia VIII 52228 comparemos com V I 14 62 Ibid 1318 e contexto 63 Comparemos com ibid VIII 524 64 Ibid 1 679 e contexto saber se algumas indicações posteriores de Xenofonte quanto à pobreza interior em um contexto de política externa de esplendor e sucesso sem limites da vida de Ciro como rei não têm como finalidade sugerir as conseqüências de sua desconsideração dos conselhos paternos Decerto Xenofonte jamais diz de seu Ciro como disse uma vez de Sócrates Ele me pareceu ser abençoadamente feliz Podemos agora voltarnos mais uma vez à questão de como Xenofonte percebia a corrupção dos nobres por Ciro Já observamos mesmo que apenas por meio de um gracejo que o fato de Ciro ser um corruptor lhe propicia algo em comum com Só crates Estamos prontos agora para discernir que havia uma pitada de verdade nessa observação Pois a crítica implícita que o pai faz de Ciro poderia ter sido feita a respeito de praticamente qualquer um dos nobres educados na antiga Pérsia Estes acreditavam que sua formação era suficiente para tornálos bons e assim acreditando voltavam sua atenção para a idade adequada em seu próprio desenvolvimento para dedicar se aos assuntos públicos tal como Ciro deveria fazer Na verdade eram inferiores a Ciro na medida em que este tinha consciência um pouco maior do que eles de ser insuficiente o que consideravam como virtude Vistos sob esta luz a corrupção dos nobres por Ciro e seu questionamento de sua virtude podem ser considerados como uma libertação E dada a proibição na Pérsia antiga do ensino à maneira socrática pode ter sido o único tipo de libertação ali possível No entanto era uma libertação certamente incompleta até mesmo abortiva como era fadado a ser um esforço pú blico deste tipo A simpatia que angaria é devida apenas a ser um pálido reflexo da corrupção socrática de alguns poucos jovens atenienses e estrangeiros Ou seja serve para nos lembrar da pergunta em que consiste uma educação socrática Xenofonte levounos a suspeitar de que feltava ao próprio Ciro uma educação desse tipo mais elevado Porém se ao contrário de nossas expectativas anteriores o que é mais importante saber sobre Ciro não é a educação que recebeu mas a que lhe faltava o que pretendia Xenofonte sugerir com seu título Ciropédia Educação de Ciro Ou não passa este de um companheiro apropriado para Ciranábase Ascensão de Ciro que remete para a ascensão ou jornada pelo interior do país que o jovem Ciro náo concluiu Ciropédia seria portanto uma referência à educação que Ciro o velho não completou ou chamaria a atenção para o ponto em que tal educação cessou X e n o f o n t e 9 5 65 Xenofonte pouco diz a respeito da vida de Ciro após este ter completado suas conquistas ver VIII 61972 Seria possível comparar aqui com o tipo de jantares que ocorriam em torno de Ciro VIII 4 com o tipo que ocorria em torno de Sócrates todo o Simpósio de Xenofonte Seria possí vel também analisar a proeminência que a Ciropidia dá ao tema de eros e das duas almas isto é à questão daquilo que constitui a harmonia ou a saúde da alma ver V 1218 VI 13151 33437 4211 VII 1151812932 e 3216 comparemos com VIII 22021 e 76 66 Memorabilia 1614 67 Ciropédia I 215 comparemos com 25 68 Ibid I 63133 comparemos com Memorabilia IV 21120 M e m o r a b il ia Como já foi aludido há uma série de indícios relativos a Sócrates na Ciropédia bem como aos escritos socráticos de Xenofonte A conversa entre Ciro e seu pai que entre outras coisas inclui a menção de um professor que ensinava justiça à maneira socrática é um deles Mais adiante é referido o assassinato pelo rei armênio do professor de seu filho um sofista a quem o pai acusou de corromper seu filho ou seja de desvirtuar sua afeição ou admiração pelo pai Ouvimos também a respeito das relações de Creso com o oráculo de Delfos e Apoio um deus cujo desagrado Creso alcançou por duvidar de sua veracidade O convite ou instrução mais terna para que comparemos Ciro e Sócrates são as histórias paralelas de Panteia e Teodota Quando o amigo a quem a confiara encorajou Ciro a contemplar Panteia uma bela rainha cativa Ciro recusouse por medo de que sua beleza lhe despertasse um desejo tão grande de continuar a admirála que o levasse a negligenciar seus deveres Quando Sócrates por outro lado foi informado da presença na cidade de Teodota uma mulher cuja beleza segundo o informante de Sócrates era grande demais para descrever em pala vras Sócrates respondeu Então temos de ir dar uma olhada pois não é possível para aqueles que apenas ouvem saber o que é grande demais para descrever em palavras Não havia perigo de que Sócrates fosse afastado de suas atividades diárias pelo desejo de continuar a contemplar Teodota A diferença mais óbvia entre Ciro e Sócrates é que Sócrates nunca procurou ou preencheu cargos políticos elevados À primeira vista essa diferença pode não parecer muito significativa A razão é que Sócrates como ele admitiu e até mesmo reivindi cava era professor de política Para citar apenas algumas provas foi como professor de política de acordo com a Memorabilia que seus dois mais famosos alunos Crítias e Alcibíades procuraram Sócrates e com ele conviveram e como se apresentou ao indivíduo cuja educação em suas mãos recebe a maior atenção no livro além disso outra porção considerável do livro é dedicada a conversas de Sócrates com atuais ou futuros líderes políticos ou militares Um crítico ou rival de Sócrates desejando roubar seus alunos perguntoulhe uma vez se sua suposta crença de que capacitava outros a atuar na política não era desacreditada por sua própria abstenção da política uma abstenção que mal condizia com a alegação de sabedoria ou conhecimento Em sua resposta Sócrates recusouse a admitir que se abstinha da política Será que eu participaria mais da política por mim mesmo ou por assegurar que o maior número 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 69 Ciropédia I I I 114 e 13840 comparemos com Memorabilia I 24955 70 Ciropédia VII 21529 comparemos com A polo de Sócrates 1415 bem como Platão Apolo de Sócrates 2Vò2 71 GrapáaV 128 ss 72 M emorahilialW Wl s 73 Ibid 121248 74 7óIV217 75 Ibid III 17 possível de indivíduos seja capaz de fózêlo Talvez então Sócrates simplesmente buscasse por outros meios o mesmo tipo de meta que Ciro ou seja objetivos igual mente públicos Mas será que Sócrates compartilhava do pressuposto de seu crítico de que todo aquele que compreende política gostaria de colocar em prática esse conhe cimento pelo envolvimento na política E será que a educação por meio da qual pode ter tornado alguns mais capazes de se engajar na política também os levaria a optar ou lhes permitiria continuar a desejar fezêlo Segundo Xenofonte Sócrates queria que seus companheiros chegassem a aceitar o que ele aprovava o que teria sido perfeitamente possível somente no caso de seus melhores alunos Um dos sinais por meio dos quais Sócrates pensava que poderia re conhecer os jovens com as melhores naturezas com quem mais desejava conviver era seu desejo de aprender todo o necessário para dirigir uma comunidade política com nobreza É somente na seção da Memorabilia dedicada às conversas de Sócrates com líderes políticos e militares reais ou futuros que Xenofonte menciona Platão a quem de modo implícito porém claro identifica no contexto como o aluno por quem Sócrates mais se interessava Xenofonte diznos também que Sócrates abordou dife rentes tipos de jovens de diferentes maneiras que adaptax sua aborthem para o tipo de natureza com que lidava É provável portanto que seu tratamento daqueles com as melhores naturezas levasse em conta sua nobre ambição e isso por si só teria sido mo tivo suficiente para a educação socrática se apresentar a eles como uma educação para a política Desta forma continua a ser pertinente indagar que distância percorriam desde o ponto de partida político Qual é a conseqüência da educação socrática da educação que ele mesmo adquiriu e que forneceu a alguns outros ou os preparou para adquirir Xenofonte apresenta a educação socrática mais plenamente no último livro da Memorabilia É verdade que a apresenta tal como Sócrates a adaptara para beneficiar Eutidemo um jovem de natureza extremamente promissora No entanto ao permi tir isso ao analisar o que mesmo os melhores alunos têm em comum com Eutidemo podemos aprender algo com esta apresentação do ensino de Sócrates e talvez espe cialmente a partir da apresentação de seu início Os melhores alunos têm em comum com Eutidemo em primeiro lugar um anseio pela virtude por meio da qual os seres humanos tornamse capazes de se engajar na política e capazes de governar ou seja pela mais nobre virtude e a maior arte que é denominada arte régia Em se gundo uma vez que sua ambição é nobre que partilham com ele a convicção de que não se pode praticar o bem nesses contextos sem ser justo Aparentemente Sócrates começaria seus graves ensinamentos com um apelo a esta ambição ou desejo e esta X e n o f o n t e 9 7 76 161561 77 Ibid 128 78 IbidW l 79 A III 61 80 IbidN ò 81 Etidemo penence à mais tola das classes descritas em IV 1 82 Memorabilia IV 211 comparemos com IV 12 convicção Daqui resulta que o conhecimento da justiça é um prérequisito de fun damental importância para o entendimento político e para a ação política Mas será que os jovens a quem se dirige possuem esse conhecimento É improvável que as me lhores naturezas compartilhem o pressuposto tolerante de Eutidemo quanto a ser uma questão simples saber o que é justiça ou portanto tenham uma parcela sequer de sua confiança ingênua de que o sabe Mas estarão esses indivíduos totalmente isentos da crença de que sabem o que é justiça E será que suas opiniões sobre o que é justiça seriam mais capazes de suportar as críticas de Sócrates do que as de Eutidemo Uma vez atingido este ponto em uma conversa com Sócrates está claro para seus melhores alunos que nada seria mais importante do que investigar o que é justiça e fazêlo com a ajuda de alguém que já prestou o inestimável serviço de revelar a sempre presente mas até então ignorada necessidade de tal investigação Toda ideia de se dedicarem à atividade política deve ser adiada até que aquela tarefa seja realizada Mas será realizada em um período de tempo finito É quase desnecessário dizer que não é inteiramente satisfiitório o relato de justiça feito por Sócrates no contexto da educação de Eutidemo Mas seria totalmente satisfatório qualquer outro relato socrático em Xenofonte ou Platão O Sócrates de Xenofonte assim como o de Platão era fa moso por jamais cessar ou seja por nunca terminar sua investigação sobre o que é jus tiça A conseqüência é que a atividade investigatória que deveria ser apenas preliminar ao envolvimento na política passa a substituíla O que pretendia ser uma educação para a política um meio passa a ser o fim O relato que acabamos de esboçar sobre o que poderia ter induzido Sócrates ou alguns de seus alunos a abandonarem uma vida política pela vida filosófica decerto sus cita mais perguntas do que fornece respostas Seria possível até achar que constitui um ajumento tanto contra a filosofia como a favor dela Pois se a investigação filosófica é incapaz de fornecer uma resposta para a questão do que é justiça por que alguém que sente em seus ossos a necessidade profunda e até mesmo urgente de uma resposta estaria disposto a gastar sua vida nessa investigação Entretanto talvez a resposta à per gunta socrática esteja disponível mas não expressa abertamente e talvez nessa respos ta e nas respostas às perguntas aparentemente relacionadas com o autoconhecimento e o bem se encontre a mais ampla exposição dos motivos para a superioridade se é que existe da vida filosófica sobre a vida política Para beneficiar Eutidemo que nun ca se opôs a um argumento inadequado ou imperfeito Sócrates achou por bem apre sentar uma versão adequadamente simplificada ou uma aproximação de seus pontos de vista não nos é dito por Xenofonte o que Sócrates fez nesta fase no caso das 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 83 Consideremos íótt IV 21220 84 Ibid IV4 comparemos em especial com I 24046 85 Simpósio 41 comparemos com Memorabilia 1 116 IV 45 84 86 Ver o Clitófòn como um todo também República 354 e 36843 435815 e contexto e 611106126 87 Memorabilia IV 22136 comparemos com os tópicos discutidos em III 9 88 Ibid IV 240 ss comparemos com IV 61315 melhores naturezas Não sabemos portanto se não era parte de seu tratamento com o intuito de despertálos para certos dilemas fundamentais que se recusava a resolver por eles colocar algumas perguntas que deixava a seu cargo responder O que sabemos o apoio que nos resta em nossa perplexidade é apenas isto que um obstáculo que pode ser chamado de problema da justiça impede o caminho para uma satisfeção razoável ou nobre com a vida política pelo menos temporariamente e que na tentativa de removêlo como devemos de modo quase inevitável entramos em contato com uma outra vida que pretende ser superior à vida política Como resultado nossa tarefa pas sa a ser não só descobrir o que é justiça mas descobrir o que é filosofia e verificar sua pretensão de constituir a melhor resposta para a pergunta como viver A Memorabilia Lembranças como um todo é o relato de Xenofonte de sua exposição a esse outro modo de vida na pessoa de Sócrates As lembranças foram redi gidas e publicadas como que sob uma nuvem Seu herói fora sentenciado à morte por seus concidadãos atenienses após ser condenado sob a dupla acusação de impiedade e corrupção dos jovens Para começar a ver como esse fato pode ter influenciado a ma neira pela qual Xenofonte os descreve é preciso fazer um esforço para nos libertarmos pelo menos por um momento da situação de hoje quando quase ninguém considera Sócrates como culpado de um crime capital Sócrates acreditase amplamente hoje era inocente do que foi acusado ou mesmo que não fosse totalmente inocente os fetos de que foi acusado não são e não deveriam ter sido tratados como crimes Devemos fezer esse esforço apesar do feto de que o próprio Xenofonte na medi da em que era um defensor da inocência de Sócrates é em parte responsável por nossa situação Quando Xenofonte escreveu é possível que a opinião geral sobre a questão da inocência ou culpa de Sócrates ainda não fosse consensual Se a maioria dos desti natários imediatos de sua obra aqueles mais interessados em Sócrates era susceptível de ser convencida de sua inocência quase certamente teriam amigos ou parentes que não o seriam Tampouco estariam os primeiros destinatários necessariamente na pos se de argumentos com os quais pudessem satisfezer os céticos e portanto defender a respeitabilidade do seu próprio interesse em Sócrates Foi Xenofonte portanto quem forneceu tais argumentos não só em proveito próprio mas também para outros socrá ticos reais ou potenciais Foi necessário para suas lembranças como para os diálogos de Platão assumir a forma de uma defesa de Sócrates Ora sempre houve alguns para quem o depoimento de Xenofonte tem mais peso que o de Platão de acordo com Thomas Jefferson por exemplo De Sócrates nada temos de genuíno a não ser na Memorabilia de Xenofonte Xenofonte deve assim compartilhar com Platão o cré dito ou responsabilidade pelo grande sucesso que tais defesas tiveram um sucesso que ajudou a consolidar a opinião atual X e n o f o n t e 9 9 89 Comparemos com ibid III 1114 e contexto e II 628 90 Carta a William Short em The Lifi and SeUcted Writinff o f Thomas Jeffirson New York Modern Libtaiy 1944 694 A menos que façamos o esforço mencionado abordaremos esta obra sob a influ ência desta visáo por conseguinte de uma forma determinada Tomamos como pres suposto sua tese sobre a inocência de Sócrates e portanto não damos especial atenção à organização e ao uso de argumentos e exemplos por meio dos quais Xenofonte se esforça por defender essa tese Nossa cegueira para com a astúcia subjacente à sua dis cussão aparentemente simples se deve a não termos mais consciência como até mesmo os partidários de Sócrates teriam na época de Xenofonte da força das acusações contra Sócrates Como resultado não prestamos atenção suficiente nos indícios que Xeno fonte nos fornece sobre os sacrifícios que teve de fazer ao refutar as acusações e sobre as distorções que teve de inserir em seu relato de Sócrates a fim de que prevalecesse a visão que é hoje aceita como verdade Por exemplo no longo segundo capítulo da obra que se ocupa da acusação de corrupção Xenofonte cita uma série de alegações específicas feitas contra Sócrates por seu acusador Em cada caso o ataque é seguido pela defesa de Sócrates por Xenofon te na questão em pauta Uma vez que a defesa tem a clara intenção de desacreditar o ataque dá a impressão de que essas alegações específicas eram totalmente infundadas Porém como Xenofonte decerto sabia suas respostas nem sempre encaravam de frente os ataques nem os aniquilavam em sua totalidade Segundo a primeira dessas acusações Sócrates induzia seus companheiros a des prezar as leis vigentes e o regime democrático estabelecido por meio de observações tais como a sua crítica do sorteio como um método de seleção para a ocupação de cargos e tornava violentos seus companheiros Ao duplo ataque Xenofonte responde que com certeza Sócrates não tornava violentos seus companheiros Até mesmo esta afirmação parece ser posta em dúvida pelo fato mencionado em seguida pelo acusador de que Crítias e Alcibíades notoriamente violentos estavam entre aqueles ligados a Sócrates Xenofonte não pretende defender os atos de Crítias e Alcibíades nem negar sua ligação com Sócrates Afirma simplesmente que Sócrates com algum sucesso fez o que pôde para que se moderassem enquanto estiveram sob sua influência e que se iram mal depois Sócrates não deve ter maior responsabilidade por isso do que digamos um pai digno cujo filho age mal depois de sair de casa Não há do que discordar mas essa afirmação não é capaz de responder à questão crucial sobre se dada precisamente sua influência limitada sobre seu caráter cujas tendências futuras não eram invisíveis Sócrates deveria ter fornecido ferramentas a Crítias e Alcibíades sob a forma de uma educação política De acordo com a terceira alegação do acusador Sócrates ensinava desrespeito aos pais tanto por convencer seus companheiros de que os faria mais sábios do que seus pais como por meio de um argumento no sentido de que seria legítimo que a pessoa mais ignorante fosse presa pela mais sábia A refutação de Xenofonte voltase apenas para o ponto relativo à prisão A quarta alegação portanto repete a acusação 1 0 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 91 Memorabilia I 29 212 249 25152 256 e 258 quanto ao efeito de Sócrates sobre o respeito aos pais e se estende a parentes em geral e amigos Aqui até mesmo Xenofonte admite no decurso da sua resposta que Só crates realmente disse as coisas que é acusado de ter afirmado sobre os pais e outros fiuniliares bem como amigos uma certa perda de respeito por parentes e até amigos em si parece ser a conseqüência inevitável do elevado respeito para com aqueles que conhecem as coisas necessárias e são capazes de explicálas A alegação final do acusa dor declara que Sócrates fez um uso pernicioso de determinados trechos dos poetas de mais alto renome interpretando por exemplo uma linha de Hesíodo como se significasse que ninguém se deve abster de qualquer ação injusta ou vergonhosa mas cometer até mesmo essas ações por amor ao ganho A resposta de Xenofonte alude ao padrão estabelecido por Sócrates para o benéfico ou bom mas nada diz sobre a sua opinião acerca do nobre e justo Uma vez que temos consciência do modo como foi escrita a Memorahilia somos obrigados a indicar como essa maneira de escrever pode ter afetado a im m que apresenta do filosofar socrático como um todo À primeira vista Xenofonte parece negar que Sócrates tenha se envolvido no que podemos chamar de filosofia natural Nem conversava ele da forma como a maioria dos outros conversava sobre a natu reza de todas as coisas investigando o estado do que é chamado pelos sofistas de cos mos e por quais necessidades cada um dos seres celestiais vem a ser Ao contrário conversa sempre sobre as coisas humanas investigando o que é piedoso o impiedoso o que é nobre o vil o que é justo o injusto o que é a moderação a loucura o que é a coKem a covardia o que é o estado o estadista o que é o governo de seres humanos o governante apto de seres humanos e sobre as demais coisas tais quais considerava nobres e bons aqueles que as conhecessem e aqueles que as ignorassem eram justa mente chamados de escravos Contudo há outras indicações tanto oã Memorabilia em si como em outros dos escritos socráticos de que Sócrates de fato ocupouse da filosofia natural Em certa ocasião referese à sua reputação como filósofo natural sem fiizer objeção a ela Sócrates parece ter identificado sabedoria a qual denominou o maior bem com a ciência de todos os seres E jamais deixou de investigar o que cada um dos seres é em parte talvez por meio da leitura e do estudo das obras dos antigos sábios Não há nada que sugira que os seres em questão não incluíam os seres celestiais ou as obras dos chamados filósofos présocráticos Na verdade Xenofonte indica claramente que Sócrates conhecia as doutrinas desses filósofos tendo citado Anaxágoras em especial pelo nome Mesmo os trechos que fundamentaram nossa X e n o f o n t e 101 92 Comparemos com Platão Hiparco bem como MemombiUa 1 254 93 Mtmorahitia I 111 para o uso do termo filosofia namral comparemos com investação a respeito da natureza Platão Fidon 968 94 Mttmrabiüa 95 Econômico 113 comparemos com Simpósio 667A 96 MemombiliaTV 5667 97 A irV 61 1614 98 Aid 1114 IV 757 primeira impressão demonstram ao serem reexaminados ser mais qualificados do que pareciam de início Sócrates não conversava sobre a natureza de todas as coisas da forma como a maioria dos outros conversava pode têlo feito de maneira diferente Sempre conversava sobre as coisas humanas e as outras coisas cujo conhecimento considerava essencial para a nobreza e a bondade cavalheirismo o conhecimento de outras coisas além das coisas humanas é evidentemente essencial para o cavalheirismo no sentido socrático Essas duas passsens ocorrem no primeiro capítulo da Memo rabilia o capítulo em que Xenofonte confronta a acusação de impiedade Talvez sua defesa de Sócrates contra essa acusação exigisse que negasse de alguma forma que Sócrates se ocupara da filosofia natural Para perceber tão claramente quanto possível por que tal possa ter ocorrido devemos considerar o que significa ocuparse da filosofia natural tanto para o pró prio Sócrates como para os présocráticos de cuja forma de abordar o assunto Sócrates desviouse e criticou Xenofonte nos conduz a esta constatação ao relatar as críticas feitas por Sócrates a seus antecessores Sócrates criticava as doutrinas de seus predecessores sobre a natureza de todas as coisas devido à sua implausibilidade alguns têm a opinião de que o ser é sozinho outros de que os seres são ilimitados na multitude alguns de que tudo está sempre em movimento outros de que nada jamais se move alguns de que tudo vem a ser e perece outros de que nada jamais vem a ser ou perece Além disso Sócrates con siderava os assuntos que tentavam elucidar como não apreensíveis pelos seres huma nos Não pode ter querido dizer com isso que a razão é incapaz de lançar qualquer luz sobre os assuntos em questão as próprias doutrinas da implausibilidade apontam para as plausíveis o meio entre os extremos opostos Ao contrário deve ter tido em mente que estar de posse até mesmo de doutrinas muito plausíveis não significa ainda ter conhecimento desses assuntos A própria atividade filosófica de Sócrates seria en tão distinta pelo menos das de muitos de seus antecessores ao ser orientada por uma maior consciência de seus limites Este fato já está implícito na descrição que fãz Xenofonte da atividade como a tentativa de descobrir o que é cada um dos seres O aspecto da natureza ao qual temos mais acesso é o quê perceptível de cada um dos seres ao invés de suas causas imu táveis causas que nem vêm a ser nem perecem A natureza perceptível de cada ser é sempre a natureza de um grupo ou classe de seres Como tal é mais visível no dis curso Na verdade a classificação a separação das coisas em classes ou tipos subjaz à nossa fida nossa capacidade de falar Segundo Sócrates o dialogar tò dialégesthat 1 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 99 Consideremos ibid IV 76 e Simpósio 668 bem como Platão Leis 96649678 e Apologia de Sócrates 1863 100 Memorabilia 1 114 comparemos com IV 767 101 Ibidl 113 eW 76 102 Ibid IV 6 103 Ibid IV 511 e Econômico 96 segs recebeu este nome devido à prática daqueles que se reúnem para deliberar em comum por meio da separação tò dialégeirí das questões segundo sua espécie Podemos ser tentados a pensar que o conhecimento de classes ou tipos ou espécies imutáveis pode ria simplesmente tomar o lugar do conhecimento das causas imutáveis Mas isso seria o mesmo que ignorar a manifesta dependência de classes de seres da existência desses seres individuais O Sócrates de Xenofonte nunca feia de ideias com existência distinta as classes ou tipos não são distintos de seus membros as naturezas são sempre as naturezas das coisas que as possuem É verdade que as naturezas são as causas das coisas definindo limites para elas Entretanto compartilham essa responsabilidade com algo diferente delas algo pelo qual não são responsáveis e cuja existência e natu reza não lhes são garantidas por elas nem por qualquer outra coisa que conhecemos Sócrates pode apontar para essa responsabilidade compartilhada quando chama a atenção para o comportamento diversificado de coisas que possuem a mesma natureza perceptível Como resultado não podemos saber embora possamos suspeitálo que algumas classes são permanentes A mais profunda implicação da crítica de Sócrates a seus predecessores filosóficos fica clara somente quando examinamos mais de perto o que tentavam fazer os pré socráticos Haviam tentado descobrir não apenas o estado do cosmos mas as necessi dades em virtude das quais cada uma das coisas celestiais passa a ser ou a forma como o deus inventa cada uma das coisas celestiais entendidas como o modo como as idealiza Escusado será dizer que entendiam que o reino da necessidade se estendia a assuntos terrenos também A prudência e a loucura humanas assim como o acaso derivam da necessidade fundamental e são por ela limitados Sua afirmação mais bá sica a inspiração das doutrinas por meio das quais tentavam elaborar e justificar essa afirmação era que não é tudo que pode passar a ser ou acontecer mas apenas o que se harmoniza ou é permitido pela natureza da causa ou causas fundamentais Porém se é impossível discernir as causas fundamentais não se deveria considerar essa afirmação como meramente plausível Todavia poderia Sócrates como filósofo ou como ser humano deixar em aberto a peipmta se qualquer coisa pode acontecer Para explanálo mais detidamente Sócrates pode não ter conhecido qualquer indício que apoiasse tal opinião que desafiasse a alegação básica dos filósofos Pelo contrário a alegação pode ter sido sustentada por todas as evidências disponíveis a ele Contudo apesar de Sócrates poder com razão atribuir um peso considerável a esse fato ainda teria de levar em conta as afirmações daqueles que têm a pretensão de conhecer indícios em contrário O uso da adivinhação por exemplo implica a afirmação de que pode existir uma importante ligação entre dois eventos um espirro e a futura salvação de um exército para tomar um exemplo entre muitos oa Anábase de Xenofonte que não decorrem dos eventos em si da ação deliberada de seres humanos X e n o f o n t e 1 0 3 104 Memorabilia IV 512 105 Simpósio 74 106 Memorabilia 1 111 e IV76 OU do acaso Ou mencionar a punição divina por determinados atos errôneos como faz Xenofonte com muita ênfase no meio de sua Helênica significa sugerir que esses atos tiveram conseqüências que não decorrem de modo natural por assim dizer dos próprios atos Em particular significa negar a validade da sugestão que parece ser transmitida no início e no fim da Helênica que as relações humanas só são retiradas de sua habitual confusão quando e somente enquanto são dirigidas pela prudência humana sob a forma de um líder competente ao leme Seja qual for seu próprio en tendimento dessa questão Xenofonte estava certamente ciente da dificuldade com que se defrontava Sócrates Para repetir Sócrates pode não ter conhecido nenhum indício que lançasse dúvida sobre a afirmação ou premissa básica distinta de doutrinas particulares de seus predecessores filosóficos Teria sido incapaz portanto de aceitar reivindicações de que tais indícios existissem contrariando o que era capaz de ver e de sentir Entretanto tampouco era capaz de provar a falsidade de tais alegações Como então procedeu Sócrates nesta situação O que foi exposto anteriormen te terá demonstrado esperamos por que era necessário que Xenofonte abordasse a questão Todavia permanece obscura a resposta Seria talvez a parte mais recôndita de seu relato nos escritos socráticos da vida filosófica representada por Sócrates A n á ba se Já mencionamos o fato de ter sido Sócrates e não Ciro a quem Xenofonte qua lificou como possuidor de suprema felicidade Seu relato da vida de Sócrates na Me morabilia e nos outros escritos socráticos é portanto um relato da efetivação das mais elevadas possibilidades humanas conhecidas por ele Apesar disso como vimos também o próprio Xenofonte não seguiu o exemplo de Sócrates pelo menos náo em todos os aspectos Abandonou Sócrates para integrar a expedição organizada pelo jovem Ciro E como deixa bem claro e até mesmo salienta fez isso contrariando os conselhos de Sócrates Este abandono de Sócrates e do caminho socrático porém não revela necessariamente que haja um desacordo profundo Talvez não assinale nada além do feto de Xenofonte não se sentir plenamente capaz de seguir o exemplo de Sócrates ao pé da letra Ao invés de tentar o impossível e portanto ser forçado a se contentar com uma imitação artificialmente exata e portanto um tanto ridícula pode ter optado por seguir ou imitar Sócrates mais livremente de maneira adaptada às suas próprias inclinações e habilidades Como fica claro a partir de uma leitura de seus atos e discursos na Anábase as inclinações de Xenofonte eram em grande parte para a política e sua habilidade política era de uma ordem muito elevada 1 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 107 Anábase III 29 comparemos com Memorabilia 1 134 IV 710 1 169 119 108 Helênica V 41 comparemos com Andbase II 62129 109 Helênica I 1115 VII 52627 110 Consideremos o retrato de Antístenes pintado por Xenofonte no Simpósio Contudo isso não implicaria em uma aceitação por parte de Xenofonte de um modo de vida que sob a forma em que fora buscada por seu representante por exce lência Ciro o velho claramente rejeitava É tentador procurar contornar essa difi culdade sierindo que Xenofonte chegou a essa sua crítica de Ciro o velho só após e talvez como resultado de sua associação com o mais novo e de sua própria experiência da vida política Porém essa sugestão é descartada pela constatação de que seu papel de cisivo na crítica a Ciro a uazida à baila na conversa de Ciro com o pai foi fornecida a Xenofonte com antecedência não por suas reflexões sobre Ciro ou sobre a política pro priamente dita mas pela educação socrática que recebera já antes de entrar na política Somos forçados a nos peipmtar portanto se Xenofonte não percebia e exercia a vida política de um modo um pouco diverso do de Ciro o velho ou se não existe um meio termo entre Sócrates e Ciro que seria perfeitamente adequado para se trilhar K Aná base parece ter sido dada a tarefa de demonstrar que este é o caso A base que fornece para a compreensão das diferenças entre Xenofonte e Ciro o velho é o jovem Ciro Xenofonte chama a atenção para a semelhança chegando quase a identidade entre os dois Ciros fazendo com que seu Sócrates os trate certa feita de modo brincalhão como a mesma pessoa De acordo tanto com a Anábase quanto com o Econômico o jo vem Ciro foi a figura política mais capaz de emergir na Pérsia desde Ciro o velho No entanto diferiam em vários aspectos Primeiro o jovem Ciro era um homem erótico De qualquer forma tinha duas amantes das quais uma se diz ter sido tão sábia quanto bela e Ciro afirmou em certa ocasião ter tido relações sexuais com uma rainha em visita Nenhum assunto deste tipo é jamais mencionado em relação a Ciro o velho que estava disposto a renunciar à visão da bela Panteia casouse de modo extremamente sensato do ponto de vista político talvez com uma tía idosa e foi descrito por seu companheiro persa mais próximo como um rei frio Pode haver uma conexão entre essa diferença e outra Ao passo que Ciro o velho uma vez atingida a maturidade nunca correu riscos que não fossem de certa forma exigidos pela sua busca pelo império o jovem Ciro ao avistar seu irmão o rei em meio à sua batalha decisiva descontrolouse e imediatamen te o atacou embora sua própria guarda fosse então dispersa um ato que lhe custou ao mesmo tempo a vida e a vitória que já estava praticamente assegurada Podese comparar este feto especificamente com a frieza e cautela de Ciro o velho em relação à captura da Babilônia e do assassinato de seu principal inimigo o rei da Assíria É verdade que ao contrário de auns de seus principais aliados Ciro o velho não sofre rá pessoalmente qualquer injustiça nas mãos dos assírios enquanto o jovem Ciro fora gravemente injustiçado por seu irmão Contudo esta observação não só auxilia na X e n o f o n t e 1 0 5 111 Econômico 4á 6S 112 Andbase I 91 Econômico 418 113 Andbase Q2Ò22 114 CiropédiaW 1218 VIII 528 422 115 Anábase 22 116 Ciropédia VII 52034 117 Anábase 1 114 comparemos com Ciropédia IV 62 s V 227 f 435 f eliminação da diferença entre os dois que discutimos quanto serve para indicar aquela que pode ser sua causa subjacente Assim como era mais erótico do que Ciro o velho Ciro o jovem também pode ter sido mais impulsionado por questões de justiça Foi necessária uma injustiça para forçálo a ar de acordo com a ambição que sem dúvida partilhava com o mais velho o que muito difere de encontrar justificativas ou pretextos para atos já tencionados por motivos inteiramente diversos Uma vez que Xenofonte conhecia o jovem Ciro em parte por experiência pessoal podese dizer que foi ele o material a partir do qual Xenofonte criou o seu Ciro o Ciro da Ciropédia O Ciro ancião é uma versão idealizada ou aperfeiçoada do mais jovem De acordo com isso as diferenças entre os dois primeiros surgem como defeitos do mais novo pelo menos do ponto de vista político Se são sempre defeitos mesmo a partir deste ponto de vista só poderá ser determinado de maneira taxativa quando se examinar a alternativa representada por Xenofonte Xenofonte compartilhava as características que distinguiam o jovem Ciro de seu antecessor mais ilustre Tal como ele e também como seu Sócrates era um homem erótico E não se preocupava menos com a justiça pelo menos a julgar pela atenção que seus escritos dão a esta questão Mas faltavamlhe a impetuosidade ou defeitos de raciocínio do jovem Ciro Em particular jamais permitiu que o zelo na vingança por um erro superasse sua prudência nem por um instante Para expressar esse ponto de maneira mais tucidiana do que xenofontiana Xenofonte estava ciente de que a existência de uma injustiça não garante que terá sucesso a tentativa de proporcionar a devida retaliação que nossa situação pode ser tal que nos obrigue simplesmente a suportar um malefício sem obter vingança Na época em que Xenofonte liderava de volta à Grécia a força grega que pertencera ao jovem Ciro e na verdade duran te a maior parte de sua vida adulta tais injustiças teriam sido mais provavelmente cometidas por mãos espartanas Pois a derrota de Atenas por Esparta na Guerra do Peloponeso que durou 27 anos substituíra o equilíbrio de poder entre as duas gran des potências o qual prevalecera na Grécia por mais de 75 anos por um predomínio indiscutível de Esparta E como Xenofonte descreve tanto na Anábase como na Helênica sem se afastar de sua costumeira moderação mas com perfeita clareza 1 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 118 Comparemos com Ciropédia I 5713 VII 57273 e 57677 119 Andbase A 120 Andbase VII 320 V 310 Memorabilia I 3815 comparemos com Simpósio 82 bem como Memorabilia II 628 121 Tucídides A Gtierra do Peloponeso IV 624 comparemos cora Andbase V 115 e II 62129 à luz de V 826 comparemos com Ciropédia V 435 122 Supostamente Esparta travara a guerra para libertar as cidades gregas da escravizaçáo real ou iminente pelo império ateniense Ver p ex Tucídides A Guerra do Peloponeso II 84 No início de Helênica Xenofonte nos diz que após a derrota final de Atenas suas longas muralhas foram derrubadas pela música de meninas flautistas e com a expectativa geral de que aquele dia traria o início da liberdade para a Grécia II 223 O restante da Helênica mostra o quanto tal esperança era infundada o domínio espanano de modo geral nâo se disdnguiu nem pela sabedoria nem pela brandura Como líder político Xenofonte foi forçado a se adaptar a essa situação e a induzir aqueles que comandava a fàzêlo Entre as passagens mais impressionantes da Anábase estão os discursos em que instrui seus companheiros gros sobre a necessidade de ceder a determinadas exigências espartanas que estavam longe de serem justas ou razoáveis e em geral sobre a necessidade de se acomodarem a aqueles que agora do minam a Grécia Os leitores que se sensibilizam em qualquer medida com a crueza que a necessidade política pode atingir ocasionalmente também podem encontrar em Xenofonte o escritor em seu tratamento dos espartanos um modelo de como proceder em circunstâncias semelhantes Xenofonte aplaudia e portanto encorajava o que era bom embora salientasse sem rancor ou amaira o que era mau na medida em que era prudente e útil fózêlo Para voltar àquilo que o distinguia dos Ciros o velho e o jovem as elevadas qualidades que no caso dos dois persas ou seja bárbaros só lhes impediriam de causar danos políticos se suprimidas ou extirpadas da alma seguramen te poderiam prosperar em Xenofonte que tivera o benefício de uma educação socrática uma educação que essas qualidades entre outras o tornaram apto a receber O resultado não foi apenas a sua capacidade de equipararse a Ciro o velho no plano do frio cálculo político sem ser prejudicado pelo eros que não possuía nem pelo zelo equivocado que lhe fóltava mas também a graça e dignidade que toda a sua pos tura política extraía de uma liberdade interior que Ciro não compartilhava Xenofonte também era ambicioso foi tentado pela perspectiva de se tornar comandante único do exército grego de Ciro e aspirava se tornar o fundador de uma nova cidade grega na costa do Mar Negro Mas enquanto Ciro queria que seus louvores fossem cantados por todos os seres humanos Xenofonte preocupavase primordialmente com o apreço de seus amigos Ao contrário de Ciro não ansiava tanto pelos elogios de juizes in competentes quanto pelos dos competentes Esta diferença nos ajuda a compreender sua serenidade em fàce dos mais variados reveses políticos por exemplo a dignidade e a sagacidade com que se defendeu quando confrontado com ingratidão e hostilidade infundadas por parte de homens cuja vida salvara Ajudanos também a entender sua capacidade de deixar a vida política para voltar a uma vida privada Quando havia algum bem a ser feito pela sua liderança tanto para si como para outros ou alguma necessidade premente agia com suprema determinação e engenhosidade para realizar a tarefà ou atender à necessidade Quando nada mais havia a ser feito pelo menos por ele ou seja quando não havia nada de útil a fózer afàstavase Por outro lado sua educação não o debtara totalmente despreparado para levar uma vida privada A apo sentadoria no campo enquanto lhe fóltavam os desafios imediatos para o coração e a mente apresentados pela política em seu auge teria seus atrativos para ele por deixar X e n o f o n t e 1 0 7 123 Andbase VI 6816 e VII 12531 compaicmos com III 237 e VI 12628 124 Ibid VI 11921V 61516 comparemos com VI 418 125 Ciropédia III IÒV AndbaseVl 120 126 Andbase VII 611 segs comparemos com V 75 ss e 82 segs mais tempo livre para a contemplação e a escrita especialmente porque a contem plação poderia abarcar suas próprias experiências políticas entre outras coisas como verificamos ao ler a Anábase que o fez Para um homem como Xenofonte o reviver contemplativo de experiências seria decerto um aprofundamento deles Poderia assim ser aguardado como a promessa de um prazer mais profundo do que as experiências originais em si e menos emaranhado com o sofrimento 1 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y L eitu ra s Xenofonte Ciropédia e Memorabilia Xenofonte Anábase A ristóteles 384322 aC Aristóteles nasceu na cidade de Estsra na península Calcítüca no norte da Gré cia Seu pai era o médico pessoal do rei Amintas III da Macedônia e esta ligação tão próxima com a casa real macedônica e seus destinos políticos moldaria tanto a carreira de Aristóteles quanto a história da escola filosófica que fimdou Quando jovem Aristóteles foi enviado a Atenas para aperfeiçoar sua educação Ali encontrou Platão e permaneceu como membro da Academia até o final da vida do filósofo Depois de um período duran te o qual dizse embora a história possa ser apócrifii atuou como tutor de Alexandre o Grande Aristóteles retornou a Atenas e fimdou sua própria escola o Liceu dedicado à pesquisa e ao ensino em todas as áreas do conhecimento humano Após a morte de Ale xandre e da subsequente rebelião das cidades gregas contra a hegemonia da Macedônia Aristóteles foi forçado a deixar Atenas mais uma vez e consta que observou para que os atenienses não pequem uma segunda vez contra a filosofia Morreu pouco depois Do grande número de obras atribuídas a Aristóteles na Antiguidade apenas uma parte sobrevive até hoje Seguindo o exemplo de seu mestre Aristóteles aparentemente compôs diálogos destinados a um público geral muitos deles sobre temas políticos com exceção de algumas citações frmentadas nada resta deles As obras que chega ram até nós são via de regra tratados que se pensa terem sido elaborados em conexão com a pesquisa de Aristóteles e suas atividades de ensino Os ensinamentos políticos de Aristótdes estão disponíveis para nós sobretudo na Política e na Ética a Nicômaco Dois outros tratados a Ética a Eudemo e a Magna Moralia Grande Moral cobrem em grande parte o mesmo tema que a Ética a Nicômaco mas oferecem menor inte resse permanece muito incerta a relação entre essas três obras Deve ser mencionada também a Retórica que contém uma discussão única de psicologia política bem como importantes reflexões sobre a relação entre a retórica e a política e a Constituição de Atenas único exemplo existente de uma compilação da história constitucional das cidades gregas realizada por Aristóteles e seus discípulos Em geral os escritos de Aristóteles tendem a ser abordados como tentativas dire tas de apresentar uma explicação apenas científica ou teórica de seu assunto Todavia longe está de ser evidente que seja seguro examinar os tratados éticos e políticos sob essa luz Aristóteles indica que há uma diferença fundamental entre as ciências teóricas que sáo estudadas cxm vistas ao conhecimento e as ciências práticas que sáo es tudadas mormente por causa dos benefícios que se obtêm delas A política é para Aristóteles a ciência prática por excelência É necessário já de início compreender o alcance e a intenção da ciência prática ou política tal como Aristóteles a concebe tanto para apreciar de modo correto o caráter literário de seus escritos éticos e políticos como para entender o papel problemático no pensamento aristotélico da filosofia política como tal T e o r ia e PnÁ ncA Embora a distinção entre ciência teórica e prática não seja desenvolvida de modo sistemático por Aristóteles em texto algum a diferença fundamental entre tais mo dalidades de conhecimento residiria em seu método e nas faculdades intelectuais que empregam bem como no que se refere a seus objetos e finalidade Os objetos da ciên cia teórica são as coisas não sujeitas a mudança ou coisas cujo princípio de mudança reside em si mesmas seu método é a análise dos princípios ou causas dessas coisas seu objetivo é o conhecimento demonstrativo e sua faculdade é a porção científica ou racional da alma As ciências teóricas reconhecidas por Aristóteles incluem a metafísi ca ou teologia a matemática a física a biologia e a psicologia A ciência prática em contraste preocupase apenas com o homem ou com o homem em sua capacidade como um ser autoconsciente ou uma fonte de ação práxis pois na medida em que depende da vontade humana a ação humana é essencialmente sujeita a mudanças A finalidade da ciência prática não é o conhecimento mas o aprimoramento da ação sua fiiculdade apropriada é o segmento racional ou prático da alma ou o que Aristó teles denomina sabedoria prática ou prudência phronêsis Quanto ao método das ciências práticas Aristóteles parece entendêlo como uma modalidade de análise con cebida menos para descobrir os princípios ou causas do que para articular os fenôme nos da ação humana em grande parte por meio de um exame dialético e refinamen to das opiniões dos homens a respeito desses fenômenos O feto de que Aristóteles recorra com frequência em seus escritos políticos à ar gumentação dialética isto é a um modo quase coloquial de investigação que começa a partir de premissas incorporadas no senso comum revela uma afinidade de espírito se não de forma com o diálogo platônico Assim como Platão e o Sócrates platônico Aristóteles localiza o ponto de partida adequado para a filosofia política na língua e opiniões dos homens comuns Não progride pela dedução de princípios imutáveis da natureza humana nem tenta estabelecer um vocabulário técnico rigoroso do ponto de vista lógico que seja distante da vida política real Parte do motivo pata isso reside na 1 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Metafisica 110251828 Tópicos 661451518 Ética a Nicômaco doravante EN 62 113926b441140123 2 EN 1310941127 41095 3013 71098268 Ética a Eudemo doravante 1561216 111718 insistência de Aristóteles de que não se deve procurar a mesma precisão na esfera práti ca ou política que se busca nas ciências teóricas As coisas humanas são inerentemente variáveis e abordálas dentro do espírito do físico ou do matemático que procuram descobrir leis universais é distorcer a essência dos fenômenos relevantes O tipo de raciocínio adequado para lidar com assuntos políticos está mais próximo do raciocínio prático ou prudente do cidadão comum pois se enraíza nos detalhes da experiência cotidiana do que do raciocínio dedutivo do cientista ou do filósofo Essas considera ções podese acrescentar de certo modo auxiliam a refutar a visão comumente aceita hoje de que a ciência política de Aristóteles é invalidada por sua associação com uma ciência natural teleológica ou metafísica ultrapassada Entretanto a maneira de proceder de Aristóteles também reflete sua compreen são da finalidade da ciência prática É por estar a serviço da ação que a preocupação central da ciência prática deve ser a apresentação de seu assunto de uma forma que mobilize as opiniões e afete o comportamento dos homens políticos comuns A ciên cia prática de Aristóteles dirigese não aos filósofos ou estudantes de filosofia ou não primordialmente a eles mas aos homens políticos De modo mais preciso voltase a homens políticos educados que são detentores do poder político real ou potencial ou na melhor das hipóteses ao legislador que cria a estrutura constitucional dentro da qual ocorre toda a ação política Isso não quer dizer que a ciência prática de Aristóteles seja no total alheia à sua ciência teórica Em vários trechos Aristóteles indica que a filosofia teórica ocupará um lugar em seus escritos políticos onde quer que seja intrínseca à investigação e fàz uso freqüente de pressupostos oriundos da psicologia teórica em particular Contudo fica evidente também a relutância de Aristóteles em estabelecer uma base teórica dis cernível para a ciência prática Isso se deve ao menos em parte à sua percepção de que é excessiva a influência que sofrem os homens políticos dos argumentos teóricos sobre a política apresentados por intelectuais Aristóteles parece pensar sobretudo nos sofis tas que carecem de qualquer compreensão ou capacidade prática 16121716 Na medida em que a prudência dos homens políticos é ameaçada de modo constante por argumentos ou opiniões teóricas infundadas a ciência prática teria alguma neces sidade da ciência teórica mas este fato em si destaca a importância de salvaguardar a autonomia da esfera prática Na única ocasião em que emprega o termo filosofia política Aristóteles o fàz de maneira a sugerir que é externa à investigação que empreende nos escritos éticos e políticos existentes Aristóteles parece entender a investigação da Política e da Ética a Nicômaco como uma forma de experiência política ou ciência política politike Mas significaria isso que Aristóteles reconhece a filosofia política como uma discipli na distinta independente da ciência política A r is t ó t e l e s 111 3 Ver em particular E N 109 4 Consideremos em particular EE 111214914 5 Política doravante P 3121282l423 À primeira vista somos tentados a supor que vÃristóteles nega cabalmente a pos sibilidade de uma filosofia política teórica dada a sua visáo da variabilidade das coi sas humanas e a impossibilidade de exatidáo ao estudálas Por outro lado é óbvia a incorreção de perceber na abordagem de Aristóteles um prenúncio da distinção moderna entre natureza como o reino da necessidade e assuntos humanos como o reino da história ou da liberdade É verdade que Aristóteles distingue entre o natural e as coisas humanas Contudo na teoria em si essa distinção é imprecisa porque o homem continua a ser para Aristóteles com proeminência uma parte da natureza ou porque possui uma natureza que exibe regularidades significativas em meio ao fluxo das coisas humanas Daí parece resultar que os princípios ou causas da ação humana são passíveis de tratamento teórico no mesmo sentido Assim devese ao menos con siderar a possibilidade de que os escritos políticos de Aristóteles sejam de sua própria maneira de ironia tão radical quanto os de Platão que propositalmente subtraiam as reflexões finais ou mais fundamentais de Aristóteles sobre o homem Uma abordem mais profunda do alcance da ciência prática ou política apare ce no sexto livro da Ética a Nicômaco Ali Aristóteles indica que a ciência prática é em certo sentido coextensiva tanto com a ciência política como com a prudência A ciência prática ou política neste sentido amplo tem três ramos a ética ou a ciência do caráter a economia ou a ciência da administração do lar e a ciência política no seu sentido mais restrito e familiar a ciência de governar a comunidade política É de fundamental importância reconhecer que a ética é parte integrante da ciência política em sentido amplo e que os escritos éticos de Aristóteles foram é inegável concebidos não como tratados independentes mas como prolegômenos para um estudo da polí tica Qualquer discussão da ciência política aristotélica seria portanto incompleta se não devotasse grande atenção aos ensinamentos dos tratados éticos e da relação desses ensinamentos com a política Fe l ic id a d e V ir t u d e e C avalheirism o Toda arte e toda investigação assim como toda ação e toda escolha têm em mira um bem qualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem A primeiríssima frase da Ética a Nicômaco de Aristóteles reflete a preocupação de estabelecer o âmbito e a dignidade da ciência política Tal como todas as nossas ações visam em última análise a um fim determinado que é desejado por si próprio e não por causa de algo além de si mesmo assim as várias artes e ciências podem ser consideradas como em última análise subordinadas a uma ciência mestra única que engloba o bem humano integral Mas esta ciência mestra é distintamente a sabedoria política ou ciência política ipolitike Pois a sabedoria 1 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Consideremos E7V109 118115 7 NTi Esta e as demais citações de Ética a Nicômaco sáo de Aristóteles Ética a Nicômaco Traduçáo Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão iiesa de W D Ross Sáo Paulo Editora Abril 1984 Coleção Os Pensadores v 2 política determina quais ciências devem ser estudadas num Estado quais sáo as que cada cidadão deve aprender e até que ponto e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço como a estratégia a economia e a retórica estão sujeitas a ela Ora como a política utiliza as demais ciências e por outro lado legisla sobre o que devemos fazer e não devemos fazer a finalidade dessa ciência deve abranger a finalidade das outras de maneira que essa finalidade será o bem humano EN 121094287 A dignidade da sabedoria política se reflete tanto na autoridade que exerce sobre todas as formas de conhecimento humano ao que parece como em seu papel na legislação Aristóteles toma como pressuposto inicial ser inevitável que uma preocupação com o bem huma no envolva considerações de legislação e do Estado mesmo que o bem do indivíduo e o bem do Estado sejam os mesmos o do Estado é evidentemente maior mais nobre ou mais completo Tais são por conseguinte os fins visados pela nossa investigação pois que esta pertence portanto à ciência política numa das acepções do termo EN 12109471 1 O bem ou a vida boa para os homens como indivíduos e para a co munidade política constitui o arco temático da ciência política aristotélica Aristóteles começa sua investigação pela questão da natureza do bem humano in tegral Pequena é sua dificuldade em identificar este bem com o bemestar ou felicida de eudaimonia Quando se trata de especificar o conteúdo da felicidade no entanto parece que há discordância tanto entre as pessoas comuns quanto entre as pessoas comuns e os sábios intelectuais ou filósofos na verdade há pessoas que identificam a felicidade com coisas diversas em momentos diversos de acordo com a sua preo cupação do momento Todavia Aristóteles não chega à conclusão característica do pensamento liberal moderno de que a felicidade enquanto distinta dos instrumentos ou das condições para a felicidade seja portanto subjetiva em sua base ou resistente a uma definição politicamente útil Aristóteles está convencido de que existe de fato uma grande medida de concordância quanto à natureza da felicidade e que as diver gências a respeito são reflexos não arbitrários de aspectos fundamentais da condição humana Para Aristóteles existem basicamente três formas de vida à disposição dos seres humanos a vida de prazer a vida política e a vida teórica ou filosófica Uma vida centrada nos prazeres do corpo é a vida vivida pela maioria dos homens por muitos dos favorecidos pela fortuna bem como por pessoas comuns Homens de um tipo mais refinado por outro lado consideram a honra como a finalidade da vida e a bus cam por meio da exibição de sua virtude na ação política Por fim alguns homens buscam os prazeres decorrentes da pura atividade intelectual NE 1410951426 Ao contrário do que se poderia esperar Aristóteles não se responsabiliza por julgar essa contenda Apenas rejeita a alegação em favor da vida de prazeres e passa a elaborar uma definição de felicidade que parece propositalmente destinada a escamotear a dife rença entre a vida política e a teórica Esse modo de proceder é muito característico da abordagem de Aristóteles um pouco antes indicara que o seu bom ouvinte é uma pessoa bemeducada em seus hábitos e nâo dominada pela paixão NE 131095211 Com efeito Aristóteles adota a perspectiva de homens políticos ou práticos ou de homens deste tipo que são mais refinados como resultado de sua criação e educação A r is t ó t e l e s 1 1 3 Seria um erro concluir que a aborcüem é portanto fechada ou circular ou que Aristóteles meramente se identifica com a perspectiva dos gros educados ou da classe mais alta Afora a siestáo clara de ser provável que seu ouvinte esteja mais preocu pado com a honra a ser conquistada na vida política do que com a virtude que a fez merecida Aristóteles de modo algum ignora as alternativas do prazer e da filosofia que surgem como temas principais nos livros finais do tratado Na verdade podese dizer que a estrutura da Ética a Nicômaco como um todo tem o caráter de uma ascensão a partir da perspectiva de homens políticos ou práticos comuns até uma perspectiva in formada pela íilosoíia que é apresentada no Livro X como um exercício visivelmente superior às atividades da vida prática NE 1079 Na busca de uma definição de felicidade que obtenha um amplo consenso Aristó teles dá momentaneamente um passo para trás em relação às opiniões comuns manifes tadas sobre felicidade voltandose para a questão mais geral e toSrica da natureza do ho mem e de seu trabalho ou função próprios ergprí O que distíngue o homem é sua alma racional sob a ferma dupla de um elemento que possui razão ou pensa e um elemento que obedece à razão A verdadeira íimção do homem é portanto o pôremfimciona mento ou atividade energeia da alma de acordo com a razão ou melhor a ftirma mais superior de tal atividade A felicidade ou o bem humano podem ser definidos então como a atividade da alma em conformidade com a excelência ou a virtude arete e se há várias virtudes de acordo com a melhor e mais perfeita V 161097229818 Aristóteles nega com ênfese que haja um conflito entre a felicidade assim defi nida e o prazer aqueles que por hábito realizam ações virtuosas ou nobres têm prazer em fezêlo pois tais ações são prazerosas por natureza No entanto a ligação entre a virtude e a felicidade é qualificada em vários aspectos importantes Aristóteles admite que seja dificil ou impossível agir de modo virtuoso ou alcançar a felicidade sem um mínimo de bens exteriores Estes incluem não só uma determinada quantidade de riqueza amigos e poder político mas também os filhos um bom berço e até mesmo a boa aparência o homem de muito feia aparência ou malnascido ou solitário e sem filhos não tem muitas probabilidades de ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus ou se a morte lhe houvesse rouba do bons filhos ou bons amigos EN 18109936 Aristóteles alongase no embate com a questão de saber se um homem bom exposto ao sofrimento extremo pode em qualquer sentido ser considerado feliz e reconhece a visão comum de que em última análise a felicidade é um joguete do destino ou uma dádiva dos deuses EN 19 1099911009 Embora rejeite essas ideias é nítido o modo como Aristóteles está atento aos aspectos da situação humana que necessariamente limitam qualquer esforço individual ou coletivo para garantir a felicidade Parece não encontrar nenhum mérito em uma alternativa que se concentrasse em garantir as condições materiais de felicidade em vez de promover as virtudes que são constitutivas da felicidade tal como a entende Pelo menos parte do motivo para isso parece residir na convicção de Aris tóteles partilhada por todos os pensadores políticos da Antiguidade clássica de que a riqueza é menos importante como uma condição exterior para a felicidade do que as 1 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y relações humanas que dependem decisivamente da virtude Essa convicção por sua vez reflete a visão fundamental de Aristóteles de que o homem é por natureza um animal social ou político Tal como a alma humana é dividida entre um elemento racional e um elemento capaz de obedecer à razão assim a virtude ou excelência é dupla Pertencem à porção racional da alma as virtudes intelectuais que são adquiridas na medida em que forem adquiridas principalmente por meio do discurso ou do ensino Pertencem à porção irracional a parte da alma que é o locus da pabtão ou emoção as virtudes morais ou éticas as virtudes associadas ao caráter fÃÃoí Segundo Aristóteles as virtudes morais não emergem nos homens nem pela natureza nem contra a natureza os homens têm um potencial natural para desenvolvêlas mas na verdade fezêlo requer a formação de hábitos As virtudes morais são semelhantes às artes no modo como são adquiridas pois os homens aprendem a se tornar bons pela realização de boas ações assim como o carpinteiro aprende seu oficio pela prática NE 11321 Como será visto a exigência do hábito nas ações virtuosas fez com que aos olhos de Aristóteles seja atribuída gran de importância à educação e à sua gestão adequada pelas autoridades políticas Não é possível acompanhar aqui em detalhes a complexa apresentação feita por Aristóteles das características e tipos de virtude moral mas vários pontos devem ser destacados em especial Em primeiro lugar apesar de se poder dizer que a virtude moral envolve a razão não se trata de algo essencialmente racional É ao contrário uma atitude ou disposição característica das emoções e das ações que delas emanam De acordo com a definição formal de Aristóteles a virtude é uma disposição que envolve uma escolha intencional e é voltada para a observância de um meiotermo entre extremos viciosos Não se pode definir este meiotermo com precisão de modo abstrato mas determinálo pela razão de acordo com as circunstâncias específicas do caso O papel da razão na ação moral é portanto em grande parte se não o for so mente instrumental Embora a ação moral a fim de ser verdadeiramente moral deva ser resultado de uma escolha não se assume que a escolha em questão envolva um pro cesso de cálculo racional das vantagens e riscos de agir de modo moral Pelo contrário como Aristóteles enfetiza repetidas vezes é da essência do comportamento moral que as ações virtuosas sejam realizadas por si mesmas e não por suas conseqüências É por tanto um erro fundamental atribuir a Aristóteles aquela que seria hoje denominada uma concepção utilitarista da moralidade O homem bom não é guiado em todas as suas ações por um cálculo de que a honestidade seja a melhor política ou de que toda ação virtuosa contribua para a sua própria felicidade A visão geral de Aristóteles é bem exemplificada por seu tratamento da virtude da coragem EN 369 que põe a prova qualquer compreensão utilitarista da mora lidade O homem corajoso é aquele que habitualmente escolhe o meiotermo entre a covardia e a temeridade em especial nas situações que envolvam risco de morte súbita em batalha Aristóteles distingue com cuidado no entanto entre o homem que realiza feitos corajosos por si mesmos e aquele que o fez apenas por deferência para com as opiniões de seus concidadãos isto é por um sentimento de vergonha e um desejo A r i s t ó t e l e s 115 de honras uma cornem deste tipo é apenas coragem política nâo a corsem pura e simples Aristóteles também se nega a reconhecer como genuína coragem as ações de um homem motivado primordialmente pela ira ou por um temperamento fogoso O mais impressionante porém é que Aristóteles nem sequer faz alusão no decurso da sua análise à exigência da preservação da cidade ou à motivação do patriotismo Nada revela tão bem podese acrescentar a diferença fundamental entre a concepção aristotélica da virtude cívica e a tradição do republicanismo moderno A intenção de Aristóteles se manifesta com particular clareza em uma passagem na Ética a Eudemo Nesta obra o filósofo não distingue entre dois tipos de homens virtuosos o homem bom agathos que age de modo virtuoso com o intuito de ob ter as coisas naturalmente boas da vida ou seja antes de tudo a riqueza e as honras e o homem nobre e bom kahskagathos que realiza os atos virtuosos por si mesmos ou porque são nobres À primeira categoria ao que parece pertencem os espartanos os exemplos mais evidentes de virtude para a maioria dos gregos EE 8112488 4917 Em uma passagem anterior da mesma obra Aristóteles indica que a maioria dos homens políticos é composta por homens bons neste sentido enquanto nega seu direito de serem assim chamados pois o homem político é aquele que opta por realizar boas ações por si mesmas mas a maioria deles assume este tipo de vida pelo lucro e o engrandecimento pessoal EE 1512162327 Pareceria que a concepção aristotélica de virtude moral longe de apenas ratificar opiniões contemporâneas tem como finalidade até certo ponto serlhes um desafio proposital O termo empregado por Aristóteles para designar o homem de virtude moral e política em sentido estrito foi tomado emprestado do discurso político contemporâ neo no qual portava um forte sabor aristocrático sua melhor tradução para o inglês seria provavelmente gentleman cavalheiro Aristóteles não emprega o termo em sentido político estrito mas a realidade política a que remete tem grande relevância para uma compreensão adequada da estratégia retórica assim como grande parte da argumentação específica dos tratados éticos e políticos Nada revela de modo tão nítido a visão de Aristóteles sobre os pontos fortes e as limitações da moralidade aristocrática como sua incomparável descrição no Livro IV da Ética a Nicômaco das virtudes da magnificência megaloprepeià e magnanimidade megalopsychid as virtudes que tratam respectivamente da grande riqueza e das grandes honras EN Alò Apesar da presumida raridade de seu tipo o homem mnânimo é um elementochave na análise global de Aristóteles tanto por causa de seu potencial papel político como pelo que revela sobre a natureza da simples virtude moral Do ponto de vista da cidade o homem magnânimo tem valor inestimável pelo fato de ser capaz de prestar os maiores serviços todavia se compraz em ver a sua virmde recompensada apenas pela honra sem mencionar que afinal desdenha um pouco a honra que a cidade tem poder de conferir Por razões semelhantes no entanto tais homens tendem a nutrir um descon fortável desapego da cidade e em determinadas circunstâncias podem até tornarse uma ameaça para ela como os exemplos de Aquiles e Alcibíades demonstram de sobra Do ponto de vista da moralidade parece que a magnanimidade em certo sentido 1 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y engloba todas as virtudes o homem m iânimo realiza as ações das virtudes na pleni tude de seu orgulho ou porque desdenha os bens ou prazeres em nome dos quais os homens agem de modo vil A magnanimidade conclui Aristóteles é portanto por assim dizer o coroamento das virtudes engrandeceas e não pode existir sem elas pressupõe assim ao mesmo tempo que aperfeiçoa a qualidade do cavalheirismo J u stiç a e A m iz a d e Se é possível afirmar que a msanimidade constitui o auge da força moral do ponto de vista do indivíduo a justiça constitui o auge da força moral do ponto de vista da cidade Em seu sentido mais geral a justiça é aquilo que produz e preserva a felicidade para a comunidade política e por conseguinte é praticamente idêntica ao cumprimento da lei já que as leis visam garantir o bem comum da cidade oferecendo verediaos sobre todas as esferas da vida humana Porque ou na medida em que as leis impõem a reali zação de todas as virtudes a justiça é a virtude compleu ou perfeiu na medida em que a virtude é exercida em relação a outros homens EÃ5111293301 Se como parece a mianimidade é uma qualidade que até certo ponto confli ta com as necessidades da cidade a justiça na apresentação de Aristóteles não satisfaz de forma óbvia as necessidades do indivíduo Em nítido contraste com o procedimen to de Platão na República Aristóteles não expiou os pontos firacos no entendimento comum de justiça nem tenu demonstrar que a justiça a qual como admite entre todas as virtudes é o bem de um outro ÊÍV51113034 é na verdade digna de ser escolhida por si mesma Contudo da mesma forma a decisão de Aristóteles quan to a respeitar as ambigüidades em torno do entendimento comum de justiça envolve ao mesmo tempo uma depreciação da justiça como motivo para a ação política e um elemento de análise política Se a justiça em seu sentido mais geral nada mais é que a disposição para realizar os atos virtuosos em obediência às leis da cidade a justiça em seu sentido exato ou parcial é a disposição de dar ou tomar apenas uma parcela justa ou igual isori das coisas boas Aristóteles distingue entre vários sentidos de justiça assim entendida EN 525 O primeiro tipo de justiça é aquele exercido na distribuição de honras riqueza ou o que quer que possa ser dividido pelos membros de uma comunidade política A justiça deste tipo não é baseada na igualdade aritmética mas em uma igualdade de proporções entre pessoas e bens a justa distribuição envolve a concessão de partes iguais para pessoas iguais e de partes desiguais para pessoas desiguais Como indica Aristóteles porém a justiça distributiva é essencialmente controversa porque a discri minação entre as pessoas com base no mérito é uma questão política com diferentes regimes dando maior peso às alegações de mérito dos ricos dos virtuosos e dos ho mens livres Aristóteles não fez qualquer esforço para resolver aqui essas controvérsias fundamentais o assunto será abordado na Política O segundo tipo de justiça é aquele que envolve transações que Aristóteles de nomina corretivas Neste sentido a justiça abstrai os indivíduos e aplica uma igual A r is t ó t e l e s 1 1 7 dade aritmética simples aos indivíduos e bens em questão estendese não apenas às transações voluntárias tais como contratos mas a atos involuntários ou criminosos como roubo ou assassinato De um modo geral no entanto a justiça corretiva envolve também uma quantidade importante de discernimento o papel desempenhado por um juiz ou júri nos processos legais Aristóteles também se alonga na discussão de um terceiro tipo de justiça que denomina reciprocidade to antipeponthos Kpstvqa neste sentido parece abranger tanto a simples retaliação por danos sofridos como a permuta de benefícios ou bens Embora seja obscura sua relação precisa com a justiça corretiva a justiça recíproca parece ser concebida por Aristóteles como uma forma mais primitiva de justiça que não requer a discriminação prudente de um íúncionário político ou de um juiz na verdade a reciprocidade parece ser a forma de justiça original ou primária que sustenta todo tipo de associação humana Aristóteles deixa claro porém que a justiça no sentido mais amplo só existe em uma comunidade de homens relativamente livres e iguais cujas relações são reguladas por lei A virtude da justiça é algo característico do Estado e o tribunal é uma insti tuição que pertence e em certo sentido define o Estado É com isso em mente que devemos abordar a discussão notoriamente controversa de justiça natural ou direito natural tophysei dikaiort realizada no Livro V da Ética a Nicômaco JW 57113418 355 Segundo Aristóteles a justiça política dividese em o que é justo por natureza e o que o é apenas por lei ou convenção nomos Aristóteles registra a sua discordância com a visão sofistica de que uma vez que todas as coisas justas estão sujeitas a varia ção ou mudança a justiça só existe por convenção em sua opinião embora seja de feto verdade que as coisas justas assim como todas as coisas humanas estão sujeitas a alterações há contudo coisas justas por natureza Infelizmente Aristóteles não dá um único exemplo de algo justo por natureza Contudo fornece algumas pistas im portantes Uma distinção semelhante afirma adaptase bem a outras questões por natureza a mão direita é mais forte porém é possível que qualquer pessoa possa vir a se tornar ambidestra E compara o convencionado como justo a medidas de grãos que variam de Estado para Estado observando que tais coisas não sáo mais iguais em todos os lugares do que o são os regimes políticos mas só há uma constituição que é por natureza a melhor em todos os lugares A interpretação desse trecho tem sofrido forte influência da tentativa por To más de Aquino e pensadores cristãos posteriores de assimilar a visão de Aristóteles à doutrina da lei natural Todavia Aristóteles pouco incentiva a noção de que existem primeiros princípios imutáveis de justiça que servem embora de maneira remota como guia para a prática real Parece sim que Aristóteles concebe a justiça natural menos como um teto do que como um piso menos como uma aspiração do que como uma base a partir da qual almejar A justiça natural parece relacionarse com a melhor 1 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 8 EN 5611342318 f P 1212532939 ordem política do mesmo modo que a destreza se contrapõe à ambidestria ambas sáo condições necessárias porém não suficientes para a excelência O padrão de excelên cia para a sociedade é fornecido de preferência pela constimição que é por natureza a melhor em todos os lugares constituição esta porém que não pode e não deve ser implementada em todos os lugares por causa da variação irredutível das coisas huma nas Aristóteles parece indicar que ao contrário devese buscar a justiça natural nas mais elementares embora igualmente variáveis necessidades do Estado a preservação de seu regime e a observância de suas leis Os comentários seguintes de Aristóteles sobre a relação entre justiça e retidão EN 510 confirmam de certa maneira esta linha de interpretação A justiça sob a forma do que é legalmente justo é insuficiente como diretriz para a prática porque a lei como tal tem uma generalidade que assegura sua insuficiência em vàiias ocorrências A retidão é a virtude que corrige a generalidade defeituosa da lei por meio de cuidadosa atenção às indicações que é evidente afetam de maneira decisiva a justiça do resultado das ações individuais Aristóteles deixa claro que nada disso constitui um argumento contra a necessidade da lei Todavia é certo que leta a questão sobre a justiça sim ples da lei e da obediência às leis O que mais impressiona porém é Aristóteles não fimdamentar a retidão em uma noção de lei maior ou em princípios de justiça natural O exercício da retidão é ao que parece análogo à prudência dos homens políticos ou cidadãos que atuam em um caso específico ou mesmo um aspeao dela Contudo é impossível compreender a extensão total da depreciação da justiça por Aristóteles sem levar em conta a sua atitude em relação à amizade A discussão da amizade nos livros VIII e DC da Ética a Nicômaco é a mais longa elaboração de uma única questão em toda a obra e é uma das caraaerísticas mais distintii dos ensinamentos éticos de Aristóteles Na linguagem de Aristóteles e de seus contemporâneos amizade philid referese a uma gama de fenômenos mais ampla do que os termos equivalentes hoje En globa não só o a p a amigos mas o amor entre marido e esposa o afeto de pais e filhos e o sentimento de solidariedade entre pessoas pertencentes a uma variedade de associações privadas os cidadãos da mesma cidade e em certas circunstâncias seres humanos sim plesmente Aristóteles pode portanto aigumentar de modo plausível que a amizade parece manter unidos os Estados e dirseia que os legisladores têm mais amor à amizade do que à justiça pois aquilo que visam acima de tudo é à unanimidade que tem pontos de semelhança com a amizade e repelem o fàcciosismo como se fbsse o seu maior ini m E quando os homens são amigos não necessitam de justiça ao passo que os justos necessitam também da amizade e considerase que a mais genuína brma de justiça é uma espécie de amizade 08111552228 O significado político da amizade consiste fundamentalmente na atenuação do apego dos homens a seus interesses particulares em favor de uma partilha espontânea dos bens externos com os outros As possessões dos amigos são comuns segundo o provérbio grego Desta forma a amizade passa a ser um potente reforço da comunhão de interesses que constitui a base de todas as associações humanas A r is t ó t e l e s 1 1 9 Contudo suipreende um pouco constatar que a análise de Aristóteles preocupase menos com a amizade em suas formas mais diretamente políticas do que com a amizade em seu sentido mais eleido Para Aristóteles em geral é possível diferenciar a amiza de de acordo com sua principal m otít o a utilidade o prazer ou a virtude A mais perfeita forma de amizade é a amizade entre homens bons baseada na virtude Neste sentido a amizade que engloba o prazer bem como a utilidade alcança a mais perfei ta identificação entre o próprio bem e o bem dos amigos Aristóteles admite que tais amizades são relativamente raras Mas a relevância do fenômeno emeige de uma análise mais ampla de seu argumento Podese dizer que a amizade soludona na medida em que pode ser resolvida no plano da ação política moral a antinomia entre a moralidade entendida como a perfeição da virtude individual e a moralidade entendida como justí ça A respeito do homem magnânimo Aristóteles afirma que deve ser incapaz de íãzer com que sua vida gire em torno de um outro a não ser de um amigo ENAò 112431 251 A amizade proporciona ao homem magnânimo a satisfação de sua necessidade de honra e comunidade sem comprometer seu apo à virtude Dito de outra forma isso demonstra que o modo de vida do cavalheiro não é afinal inerentemente trico P r u d ê n c ia P o l ít ic a e C iê n c ia P o l ít ic a A discussão sobre a justiça no Livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles se encerra com uma exposição acerca da virtude moral propriamente dita Podese dizer que os livros que se seguem são dedicados a vários aspectos da questão da relação entre virtude moral e conhecimento No Livro VI Aristóteles voltase para uma reflexão so bre as virtudes intelectuais sobretudo a prudência ou sabedoria prática No Livro VII recomeçando retoma o problema da ausência de autocontrole ou fiíiqueza moral akrasut ou seja a incapacidade de agir em conformidade com o próprio conheci mento ou a própria escolha moral devido à interferência da paixão Ambas as discus sões complicam retrospectivamente a análise da virtude moral nos livros anteriores e assinalam a insuficiência da virtude moral em si isto é a disposição habitual para a virtude moral como responsável pelo comportamento moral na sociedade A prudência ou sabedoria prática phronèsis é para Aristóteles a virtude própria da porção deliberativa ou calculadora da parte racional da alma Embora a prudência seja uma virtude intelectual é ao mesmo tempo um aspecto integral da ação moral e não pode existir sem a virtude moral Não se deve confundir a prudência com mera esperteza ou astúcia A tarefe da prudência não é assegurar o bem próprio em si mas ao contrário criar meios adequados para assegurar os fins postulados pelas virtudes morais Isso também implica que a prudência não lida apenas ou mesmo primordial mente com universais a principal preocupação da prudência é adaptar os universais refletidos nas virtudes morais às circunstâncias particulares em que a ação moral deve ocorrer Por conseguinte a prudência depende em alto grau da experiência Por essa razão observa Aristóteles os jovens podem tornarse especialistas em matemática ou geometria mas necessariamente feltalhes prudência como resultado de sua limitada experiência de vida EN6578 13 1 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o ii n c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y A discussão de Aristóteles sobre a relação entre a prudência e a experiência política ou sabedoria política é fundamental para nossos fins Apesar de admitir que esteja em parte correta a visão comum de que a prudência se preocupa com o bem do indivíduo Aristóteles afirma que a experiência poiítica é uma forma de prudência Indica que a pru dência do homem político ou estadista tem duas variedades distintas uma prudência ar quitetônica legislativa e uma prudência prática e deliberativa que se preocupa com os detalhes da política do dia a dia esta prudência política assume duas formas delibe rativa e judicial EN6811412333 Assim Aristóteles deixa implícito que o estadista no sentido verdadeiro é aquele que combina a virtude moral com a inteligência prática experiência e conhecimento das caraaerísticas particulares da sua cidade ou povo Entretanto não haveria também um componente mais estritamente intelectual da experiência política Aristóteles retorna a essa questão no final da Ética a Nicômaco Há ao que parece dois tipos de pretendentes ao conhecimento das coisas políticas os verdadeiros praticantes da política e os sofistas que alegam ensinar a arte política To davia os profissionais da política não fidam nem escrevem sobre essas questões e pa recem incapazes de tornar seus próprios filhos ou amigos especialistas em política por conseguinte seu sucesso seria devido a uma capacidade natural e à experiência e não ao conhecimento Os sofistas por sua vez na maior parte nem sabem do que se trata a sabedoria política ou de que assuntos trata pois em caso contrário não a teriam considerado idêntica ou mesmo inferior à retórica nem imaginado ser fácil legislar por meio de colecionar as leis mais famosas EN 1091180288119 Um pouco antes Aristóteles apontara que os discursos que exortam à virtude são por si mesmos in suficientes para induzir os homens ao cavalheirismo somente a combinação da razão e da compulsão representada pela lei pode fornecer uma estrutura adequada para a habituação à ação virtuosa que exige não só na juventude mas ao longo da vida EN 109 117948022 Ao que parece os sofistas superestimam o poder do discurso ou da razão por si sós de alterar o comportamento dos homens O mesmo erro fimda mental se reflete na sua abordagem da legislação Os sofistas acreditam que legislar é fácil porque pensam que a força da lei reside na sua racionalidade ou que as boas leis são adequadas para qualquer cidade do mesmo modo Para Aristóteles pelo contrário a lei só consegue compelir à obediência pelo hábito e o costume só se estabelece de pois de um tempo 72812692022 Mas isso significa que a questão fundamental não são as leis de uma cidade tanto quanto sua cultura ou caráter político duradouros ou acima de tudo a sua composição sociopolítica e a forma de governo ou o que Aristóteles denomina seu regime ou governo civil politeia Consequentemente prossegue Aristóteles nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislação Por isso talvez convenha estudálo nós mesmos assim como a questão da constituição em geral EN 10911811214 A principal contribuição que a ciência política aristotélica pode dar para a prática da política reside portanto na área da legislação É necessário compreender todo o alcance dessa afirmação pois é de fundamental importância para a compreensão da especificidade da Política de Aristóteles O termo legislação não é usado de modo A r is t ó t e l e s 121 impreciso apenas como sinônimo de política Como indicado pela distinção que faz Aristóteles no Livro VI entre prudência legislativa e política a sabedoria política ou experiência política naquele que pode ser denominado seu sentido operacional exige o conhecimento de uma gama de assuntos de relevância política prátíca Em uma passagem da Retórica Aristóteles identifica cinco áreaschave da deliberação política re ceitas e despesas guerra e paz defesa nacional importações e exportações e legislação A respeito da última delas fez a seguinte observação é nas leis que está a salvação da cidade Portanto é indispensável saber quantas são as formas de governo o que convém a cada uma e por que causas próprias de uma forma de governo ou contrárias a ela se corrompem O estadisu precisa ter alguma íàmíliaridade com substituindo as expressões de Aristóteles pela terminologia moderna o comércio as finanças a defesa e a política externa mas em sua essência essa femiliaridade poderia ser adquirida pela experiência Nâo se trata de uma verdade evidente ou não no mesmo grau no caso da legislação ou de modo mais geral das instituições e práticas legais e costumeiras que definem o regime de uma cidade Como a própria Política vai confirmar de modo am plo a ciência política aristotélica é acima de tudo a ciência dos regimes Não fica daro de imediato o motivo por que deve ser assim mas pdo menos é sugerida uma resposta provisória Em primeiro lugar e talvez com mais premência o es tadista é necessariamente uma criatura de um determinado tempo e lugar não importa a extensão de seu conhecimento de outras cidades e outras formas de organização política é ptovávd que este conhecimento seja incompleto e de segunda mão O estadista tende a tomar como pressuposta a namralidade e permanência do regime que existe aqui e agora e não tem sensibilidade suficiente a acontecimentos aparentemente insignificantes que ao longo do tempo possam afetar de modo drástico a composição política de uma cidade e assim sua forma de governo Além disso é provável que o estadista possua ligações não para com sua cidade e r m e quer dizer a um determinado partido ou classe governante que não sejam totalmente racionais A própria ciência política de Aristóteles pressupõe em contrapartida um esmdo comparativo sistemático dos regimes e de sua evolução ao longo do tempo E Aristóteles ocupa uma posição vantajosa que em essência transcende o partidarismo da vida política Em tudo isso podese acrescentar o que parece ser uma deficiência inerente da filosofia o seu distanciamento da cidade é convertido na base para reivindicar a gratidão da cidade A justificação implícita da filosofia por Aristóteles diante do tribunal da cidade lembra a apologia explícita à filosofia empreendida por Platão ou pelo Sócrates pla tônico Tem sido observado com frequência que a afirmação de Aristóteles de que nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislação obviamente não abre uma exceção para o antecessor e mestre de Aristóteles Na verdade a ob servação parece distorcida a menos que se tenha em mente o significado preciso que Aristóteles atribuí ao termo legislação Na breve crítica que fez às Leis de Platão na 1 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Retórica 14 1359n923 10 Consideremos P 571307119 813072938 Política Aristóteles observa que as Leis pouco têm a dizer sobre o caráter real do regime que apresenta como a mais prática ordem política P 26126442651 A questão da natureza e dos tipos de regime está decerto maciçamente presente na República de Platão Mas a preocupação da República é um regime melhor cuja realização Platão admite ser muito improvável ou mesmo impossível enquanto as Leis cuja atenção se volta mais para o que é possível mal tentam analisar as várias cidades e regimes Qualquer que seja o ponto de vista íinal de Aristóteles sobre a íilosoíia política platô nica parece considerála inadequada por não fornecer de forma acessível em geral os conhecimentos mais necessários para a prática do estadista A diferença essencial entre a ciência política aristotélica e a íilosoíia política pla tônica transparece melhor do que em quaisquer outros nos dois primeiros livros da Política É no Livro I que Aristóteles retoma as questões mais íimdamentais ou teóricas sobre a natureza da cidade e do homem no Livro II dispõese a expor as insuficiências de descrições teóricas anteriores do melhor regime entre eles o tratamento platônico do assunto bem como as limitações dos regimes existentes em geral considerados os melhores Aristóteles fez isso porém não para dar maior clareza teórica a essas ques tões mas a fim de remover os mais intransponíveis obstáculos intelectuais para a com preensão adequada dos requisitos da prática política A C id a d e e o H o m e m O início da Political constitui um paralelo muito próximo ao começo da Ética a Nicômaco Visto que toda cidade é um tipo de associação e que toda associação se bima tendo em vista algum bem porque todos os homens sempre agem tendo em vista al que lhes pa rece ser um bem resulta claramente que se todas as associações visam a um certo bem aquela que é a mais alta de todas e engloba todas as demais é precisamente a que visa ao bem mais alto de todos ela é denominada cidade póltíi ou comunidade política A cidade ipólis é uma espécie de parceria associação ou comunidade koinõnid isto é um grupo de pessoas que partilham ou possuem determinadas coisas em co mum Com base na discussão que abre a Ética a Nicômaco Aristóteles parte do princí pio da existência de um único tipo de parceria que tem mais autoridade do que outros e abraça seus fins ou objetivos particulares pois é a identidade do bem autoritário que caraaeriza a parceria política Devese distinguir a visão de Aristóteles da conhecida opinião de que o Estado age como um mero instrumento das várias associações privadas que constituem a sociedade Seria equivocado supor entretanto que para Aristóteles a sociedade em suas diversas manifestações fosse portanto apenas uma A r is t ó t e l e s 1 2 3 11 NT Sempre que possível não contrariando o texto em Inglês as citações da Política são de Aristóteles Política Texto integral Tradução Pedro Ginstantin Toleno 3 ed São Paulo Martins Claret 2001 serva do Estado A própria distinção entre Estado e sociedade é alheia ao modo de pensar aristotélico a cidade não pode ser identificada com o Estado ou uma forma do Estado e a qualidade de autoridade que Aristóteles lhe atribui nada tem a ver com a soberania jurídica que é essencial para a concepção moderna de Estado Pelo con trário tal qualidade deriva no todo da circunstância de que a cidade e só a cidade se preocupa universalmente com o bem humano integral A não identidade entre a cidade e o Estado é ainda mais evidente no que se se gue de imediato Aristóteles passa a criticar a visão desenvolvida nos escritos tanto de Platão como de Xenofonte de que o poder político ou a sabedoria política são essencialmente o mesmo que a sabedoria que está em jogo na monarquia na economia doméstica e no poder de um mestre sobre os escravos A cidade como uma forma de associação humana difere essencialmente não só das associações subpolíticas de pes soas na família mas também do governo de um rei sobre uma tribo ou povo ethnos Aristóteles demonstra pouco interesse em analisar as organizações políticas contem porâneas de sociedades tribais ou impérios ou em distinguilas do governo monár quico entendido como um regime da pólis mas é importante ter em mente a sua exclusão proposital da PoUtica A cidade se distingue da monarquia propriamente dita sobretudo pelo fato de que a cidade é ou tende a ser uma sociedade de seres humanos que são livres e iguais e diferem em espécie isto é caracterizamse por um elevado grau de especialização econômica P 22126122 34 Esta combinação de liberdade política e das artes é a essência da cidade tal como Aristóteles a concebe A confusão que fàz de Platão entre o governo político e outras formas de governo está intimamente relacionada com o que Aristóteles considera outro erro fundamen tal a defesa do comunismo oferecido por Sócrates na República P 225 ambos re velam uma felha em apreciar a diferenciação das pessoas que é característica da cidade À primeira vista uma cidade cujos cidadãos partilham todas as coisas ou as coisas que normalmente causam divisão entre eles parece superior a uma cidade caracterizada por formas menos completas de partilha Todavia argumenta Aristóteles alcançar a unidade por meio da abolição do casamento e da propriedade comum dos bens é ao mesmo tempo impossível e indesejável Longe de reforçar a amizade entre os cidadãos a abolição do casamento seria diluíla eliminando as ligações primárias da família e a comunização da propriedade destruiria o prazer legítimo que os homens sentem pelo que possuem bem como a virtude da liberalidade sem de modo algum eliminar as causas dos conflitos sobre os bens materiais A cidade não pode e não deve procurar replicar a unidade de interesses que caracteriza as relações entre os membros da família e os amigos Ao contrário a cidade em sua diversidade irredutível deve ser feita uma e comum por meio da educação ou por meio da influência combinada de hábitos filosofia e leis P 2512633540 É o cúmulo da ironia da abordagem que fez Aristóteles de Platão que repreenda o autor da República por negligenciar a filo sofia Mas esta observação é ao mesmo tempo jocosa e muito reveladora da intenção 1 2 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 12 Consideremos também a este respeito P 77 de Aristóteles como será mostrado adiante o que está em jogo é algo completamente diverso da filosofia no sentido estrito do termo Na tentativa de elucidar o caráter específico da cidade Aristóteles voltase para uma análise dos elementos que compõem a cidade e do modo como se desenvolvem 12 1252255339 Existem duas formas de associação que compõem a família a relação entre marido e mulher e aquela entre senhores e escravos refletindo respec tivamente as necessidades naturais de reprodução e preservação Que a escravidão representa uma relação natural entre governante e governado é aqui declarado por Aristóteles este ponto de vista será reafirmado em breve de modo mais aprofunda do e devidamente qualificado A família em geral é uma parceria que atende às necessidades da vida diária A primeira forma de parceria que surge para a satisfação de necessidades não diárias é a aldeia o resultado de uma união de várias famílias A cidade é a parceria completa ou perfeita que emerge da união de várias aldeias e a primeira a atingir a autossuficiéncia Embora o impulso que dá origem à cidade não seja aparentemente em sua essência diferente do que leva à formação da família e da aldeia a cidade se mostra fundamentalmente diferente destas parcerias conforme diz Aristóteles embora passe a existir tendo como meta viver existe tendo como meta viver bem Uma vez que as primeiras parcerias são naturais porém a cidade também seria natural e o homem seria por natureza um animal político O famoso dito de Aristóteles de que o homem é por natureza um animal político deve ser entendido no contexto mais amplo de sua defesa da naturalidade da cidade Aristóteles não quer dizer que os homens se engajam continuamente na atividade política ou que gostariam de fiizêlo Pelo contrário enfatiza em outro momento a inclinação que tem a maioria dos homens para atender a seus assuntos particulares P 641318627 e reconhece que em um sentido importante o homem é por natureza um animal mais conjial do que político na medida em que a família é anterior à cidade e mais necessária do que esta e a reprodução é comum ao homem e aos animais O homem é um animal político em primeira instância no sentido de que os seres humanos tal como certos tipos de animais congregamse em toda parte em grupos maiores do que a família e mesmo quando os homens náo precisam de ajuda mútua ainda assim têm o desejo de viver juntos P3612781920 Em outro sentido no entanto o homem é um animal político em um grau muito mais elevado que as abelhas e os outros animais que vivem reunidos pois somente o homem entre os animais possui fala ou razão Como explica Aristóteles a fida ou razão lógos nos dá a capacidade de distinguir o bem do mal o útil do prejudicial o justo do injusto o homem apenas entre os animais é capaz de discernir o bem e o mal o justo e o injusto e outros sentimentos dessa ordem Ora é precisamente a comunicação desses sentimentos o que engendra a família e a cidade P 121253818 É um erro con siderar a cidade como constituída apenas pelo fato de seus membros compartilharem os bens externos a cidade é uma parceria constituída em seu aspecto decisivo pelo Aristóteles 125 13 PV81211621619 cf EE 12422126 compartilhar de determinada percepção do modo certo ou errado de vida O homem é o animal político por excelência porque é um animal racional e moral Aristóteles contrasta a sua visão da natureza da cidade com uma compreensão alter nativa que de modo surpreendente se assemelha à teoria do liberalismo moderno De acordo com esse entendimento a cidade é uma espécie de aliança entre os seus membros para impedir a injustiça e fecilitar a troca econômica sendo as leis uma mera conven ção e em uma frase que Aristóteles atribui ao sofista Licóforo uma garantia de justiça de uns para outros Para Aristóteles por outro lado quem quer que se preocupe com o bom funcionamento de uma cidade deve dar importância devida à virmde e ao vício qualquer cidade merecedora desse nome deve atentar quanto às virtudes de seus cida dãos Para repetir devese entender que a cidade existe para a vida mas náo para que se viva bem com nobreza ou com felicidade P 39128024816 É somente na cidade portanto que o homem realiza seu potencial para a felici dade compreendida como uma vida de ações em conformidade com a virtude e como a cidade é essencial para a realização do potencial namral do homem a própria cidade é eminentemente natural É preciso ser cauteloso porém ao atribuir a Aristóteles qualquer noção ingênua a respeito da cidade como um organismo natural Há em todos os homens uma tendência natural a tal associação observa Aristóteles todavia aquele que a fundou no princípio foi o maior dos benfeitores As cidades náo cres cem simplesmente sáo fundadas por atos descontínuos de homens específicos Isto é assim porque há aspectos da humanidade que resistem à cidade e seus fins Pois o homem quando atinge esse grau de perfeição é o melhor dos animais mas quando está separado da lei e da justiça ele é o pior dentre todos A injustiça armada é a mais perigosa o homem está provido por natureza de armas que devem servir à prudência e à virtude as quais todavia ele pode usar para fins opostos P 1212532937 Como sugere sua referência neste contexto ao potencial único do homem para o canibalismo e o incesto Aristóteles tem plena consciência da capacidade do homem para o mal isto é para violar as restrições sagradas que são reconhecidas como tal Pelo mesmo motivo Aristóteles está atento para a fragilidade da lei e a necessidade de uma mistura de força ou compulsão em toda cidade A defesa que fiiz Aristóteles da naturalidade da cidade deve ser encarada como uma resposta a uma forte opinião contemporânea segundo a qual a cidade é con trária à natureza e repousa em última análise sobre a força Este argumento sofista conhecido acima de tudo pela República e pelo Górgias de Platão encontra seu mais estranho apoio no fenômeno da escravidão Desta forma Aristóteles demonstra particular interesse em combater a ideia de que a escravidão é cabalmente contrária à natureza Em geral seus intérpretes têm dado atenção insuficiente à finalidade retórica da discussão de Aristóteles sobre a escravidão P 157 e às ambigüidades intencionais de seu aimento Aristóteles reconhece que existe tal coisa como a escravidão con vencional ou seja a escravidão originária de conquistas de guerra Quando define o escravo por natureza como alguém tão diferente dos outros homens quanto a alma do corpo ou o homem do animal como alguém que é capaz apenas de trabalho físico e 126 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y que compartilha da razão somente até o ponto necessário para percebêla e obedecer a ela podese apenas concluir com lógica que Aristóteles quer demonstrar que o escravo natural é inferior a um ser humano normal e por conseguinte que a escra vidão como instituição social é em sua essência convencionada Parece confirmar isso a vontade expressa por Aristóteles de que todos os escravos de seu melhor regime tenham a promessa de liberdade como recompensa pelo comportamento cooperativo bem como por sua observação de que a virtude exigida dos escravos é maior do que a requerida de trabalhadores livres Podese acrescentar que o aparente interesse de Aristóteles em fundamentar a escravidão em uma superioridade da virtude do mestre em vez da simples força fàz total sentido como uma estratégia para a humanização das práticas escravistas contemporâneas A C id a d a n ia e o R e g im e No início do Livro III da Política Aristóteles aborda o argumento de nova ma neira e retoma a questão fundamental da natureza dos regimes Principia com uma discussão acerca da natureza da cidadania prosseguindo a partir daí com uma discus são sobre os tipos básicos de regimes as diferenças entre eles e suas diversas reivindica ções à justiça política O tratamento da monarquia e das leis que se segue de imediato aprofunda o tema amplo da natureza do governo político Aristóteles introduz a questão da cidadania como uma forma de compreender a relação entre a cidade e o rm e A identidade da cidade derivase de modo mais óbvio daqueles que são reconhecidos como os seus cidadãos ipoUtat Todavia não fica realmente claro o que qualifica alguém para a cidadania As definições políticas improvisadas em uso corrente tendem a se fundamentar na cidadania dos pais ou dos antepassados de um indivíduo mas tais definições são é óbvio insuficientes quando um grande número de pessoas é acrescentado ou expulso do grupo de cidadãos em tempos de revolução De um modo geral podese definir o cidadão como aquele que toma parte na tomada de decisões ou no governo seja por de fiito ocupar caigos seja por desfrutar do direito de voto em assembléias públicas ou júris Em última análise a cidadania é uma função do regime aqueles que são cidadãos em uma democracia não o são necessariamente em uma oligarquia Desta forma a identidade da cidade é no final das contas determinada pelo tipo de regime que tem e não por fàtores como a geografia ou a nacionalidade Em seguida Aristóteles aborda a questão da relação entre o bom cidadão e o homem bom P 34 A função básica do bom cidadão é a preservação da parceria política contudo uma vez que é o regime que afinal constitui esta parceria a virtude do cidadão é necessariamente relativa ao regime Além disso uma vez que a cidade é constinuda por pessoas que diferem quanto à natureza de suas ocupações a virtude A r i s t ó t e l e s 127 14 71013303133113125b33607 náo é igual para todos os cidadãos Haveria então algum caso em que a virtude do cidadão coincidisse com a virtude do homem cuja bondade não tem restrições A hi pótese considerada é a do bom cidadão que é ao mesmo tempo um governante pois apenas o governante possui a prudência que é necessária à virtude em seu sentido ple no A fim de evitar malentendidos Aristóteles debca claro que os regimes ou tipos de governo que pertencem à cidade são caraaerizados por uma diluição da diferença entre governantes e governados o governo político propriamente dito consiste em cidadãos governarem e serem governados por sua vez e as virtudes necessárias para o governo na cidade em geral são adquiridas por meio da experiência de ser governado Este não é o caso no entanto da virtude da prudência a única virtude inerente ao governante O argumento de Aristóteles parece implicar a existência de uma classe ou tipo de homens políticos que governam em um sentido mais forte ou mais preciso que o cidadão comum e corpo que governa portanto exigem uma formação em prudência que vai além do que está disponível por meio da experiência da vida política comum Um regime é o ordenamento de uma cidade com relação a seus ofícios espe cialmente aquele que tem autoridade em todas as questões P 361278812 Con forme explicita Aristóteles desde o início de sua discussão embora o regime seja em primeira instância uma organização institucional não pode ser entendido de modo correto apenas em termos institucionais O regime reflete realidades políticas mais fundamentais o que tem autoridade na cidade é em toda parte o corpo governante o corpo que governa é o regime Embora esta não seja de forma alguma a palavra final de Aristóteles sobre o tema da relação entre instituições e grupos ou classes é o ponto de partida indispensável para uma compreensão adequada de sua análise e revela uma afinidade importante entre o pensamento de Aristóteles e o marxismo bem como com a sociologia política moderna A análise dos regimes de Aristóteles é apresentada de início de forma esquemáti ca e como fica logo evidente demasiado simplificada Todos os regimes têm como go vernantes uma poucas ou muitas pessoas e seu objetivo é ou o bem comum da cidade como um todo ou o benefício privado dos governantes Há então seis tipos básicos de regime A monarquia é a forma correta de governo de um homem ou monárquica sendo a tirania aquela que se desvia do padrão o governo de poucos assume o feitio ou de aristocracia assim chamada porque governam uns poucos os melhores homens visando ao bem comum ou de oligarquia e o governo dos muitos em seu formato que desvia do padrão é a democracia enquanto a configuração correta é chamada pelo termo comum a todos os regimes governo civil politeia P Aristóteles deixa claro de imediato porém que a base para a distinção entre os regimes não são apenas os números A diferença essencial entre democracia e oligarquia 1 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 NT Dentre as muitas traduções possíveis para o termo optei aqui por governo civil apoUteia entendida como uma forma de governo temperada pela aristocracia e pela democracia levou ao significado de governo civil e civilidade significa higiene limpeza respeito e educação Mantive a mesma tradução sempre com o termo politeia entre parênteses ao lado não é o tamanho do grupo que governa mas ao contrário a riqueza ou a sua ausência a oligarquia é o governo dos ricos que são em geral poucos e a democracia é o governo dos pobres que são em geral a maioria A distinção é fundamental porque se baseia em modos de vida e concepções de justiça política que divergem em sua essência Oligarcas e democratas concordam com o princípio da justiça distributiva que pessoas iguais devem receber coisas iguais mas discordam quanto ao que constitui a igualdade das pessoas Os primeiros acreditam que a desualdade de riqueza justifica o tratamento desigual para todos os últimos que a igualdade na liberdade exe um tratamento igual em todos os aspeaos Notese que os muitos não baseiam sua reivindicação à justiça política apenas em seu status de seres humanos ou homens livres a igualdade embuti da na reivindicação dos democratas reflae uma igualdade de risco na defesa da cidade contra seus inimigos Esta reivindicação à justiça em nome da virtude militar fica particularmente clara no caso do governo civil em que o direito de portar armamento pesado é praticamente o que define o corpo do governo P 37127914 Na verdade seriam acima de tudo as exigências militares da cidade que explicariam a sua tendência a ser uma parceria entre pessoas livres e iguais e explicariam pelo menos em parte sua tendência a se desenvolver no sentido do governo popular P 4131297228 Aristóteles nos lembra que as reivindicações de justiça política por parte dos gru pos que compõem a cidade são julgadas de modo mais apropriado em termos de sua respectiva contribuição para os fins da cidade A dificuldade é que os grupos que de têm maior poder político na cidade os muitos e os poucos ricos têm direitos muito mais fortes pela contribuição para os meios de atingir a felicidade ou a virtude do que para a felicidade ou a virtude em si Significaria isso então que a autoridade da cidade poderia ser reivindicada com justiça pelo elemento respeitável quer dizer por ca valheiros que são criados para a virtude Aristóteles não nega a força da reivindicação desses homens apenas afirma que o governo exclusivo por parte deles privaria todos os demais reclamantes das honras e prerrogativas que consideram serlhes devidas Desta forma Aristóteles parece sugerir que a participação no governo pelos demais recla mantes é uma questão de conveniência e não um direito Logo em seguida no entan to explicita mais detidamente os argumentos a favor da reivindicação dos muitos e com isso demonstra que há um sentido importante em que os muitos são capazes de contestar as reivindicações dos cavalheiros a partir de seus próprios argumentos Ape sar de nenhum dos muitos como indivíduos ser capaz de atingir a total excelência argumenta Aristóteles pode acontecer que a soma das virtudes de espírito e caráter presentes em muitos indivíduos compense a virtude coletiva de uns poucos homens excelentes assim como um jantar para o qual muitos contribuem pode ser melhor do que aquele preparado por uma única pessoa ou obras musicais e poéticas poderem ser julgadas de forma mais confiável por muitos do que por poucos Os exemplos sugerem o caráter incipiente desta defesa e Aristóteles explicita que o argumento não se aplica a toda espécie de multidão ou a participação nos mais altos cargos em que a virtude individual é tão escassa No entanto Aristóteles se esforça para refutar a depreciação caraaerística do platonismo da competência política dos muitos por meio de uma A r is t ó t e l e s 1 2 9 analogia com as artes os muitos são competentes para julgar os efeitos das políticas elaboradas por outros da mesma forma que o usuário de uma casa pode até pretender ser capaz de julgála melhor do que o arquiteto P 311 A defesa circunscrita da democracia ou governo do povo por Aristóteles deve ser entendida no contexto da sua abordagem do problema geral da justiça política Todos os grupos que tipicamente disputam o poder na cidade têm reivindicações à justiça política que são válidas em certa medida todavia porque os homens são maus juizes em causa própria são constantemente tentados a tornar absolutas essas reivindicações em prejuízo das de outros À primeira vista parece não haver maneira fácil de resolver esse conflito entre reivindicações que parecem ser fundamentalmente incomensuráveis No entanto ocorre que podem ser vistas como comensuráveis de determinada maneira Embora pos sa ser impossível decidir se e até que ponto as contribuições da riqueza ou da virtude sáo mais necessárias para a cidade é possível comparar a riqueza dos oligarcas com a riqueza dos cavalheiros os muitos ou um único indivíduo assim como a virtude do cavalheiro pode ser justaposta à virtude dos muitos ou de um homem excepcional Mas o próprio ato de se contemplar a justiça política nesta perspectiva induz à moderação nas reivindi cações de cada grupo pois pode muito bem acontecer que um determinado grupo seja superado em termos de sua própria reivindicação por um outro grupo tomado como um todo ou por vários grupos tomados de forma coletiva ou esteja sujeito a contestação plausível por um de seus próprios membros P 31213 Não se pode afirmar que Aristóteles forneça uma solução teórica para o problema da justiça distributiva De fato não há razão para duvidar que considere o proble ma como algo que seja suscetível de solução no nível teórico Os diversos grupos que constituem a cidade cumprem funções que são igualmente necessárias no sentido de que é impossível atribuir uma prioridade abstrata para um ou outro deles A cidade não pode existir de forma alguma sem corpos para sair em sua defesa náo pode exis tir como uma comunidade civilizada sem o lazer que cria a riqueza e nâo pode existir como uma cidade em sentido pleno sem virtude Nesse sentido todos os gruposchave da cidade têm de feto uma reivindicação absoluta à justiça política Aristóteles procura náo julgar tais reivindicações mas incentivar uma acomodação prática entre elas com base no reconhecimento do valor de reivindicações concorrentes e grupos rivais Uma das características marcantes da análise de Aristóteles sobre a justiça política é a sua ênfese no indivíduo excepcional ou o melhor homem que em importância política parece de feto equivalente a um grupo ou classe Em virtude da sua preocupação de atenuar o conflito entre reivindicações concorrentes ao governo é surpreendente que Aristóteles demonstre simpatia para com a prática democrática do ostracismo político de indivíduos poderosos na verdade chega mesmo a afirmar que o ostracismo nos regimes derivantes atende náo só os interesses privados do governo como também é justo P 31312842325 Embora Aristóteles não o afirme expressamente o motivo parece ser que esses homens representam uma ameaça fundamental para o governo político como tal O que torna ainda mais desconcertante portanto que Aristóteles abra uma exceção para o indivíduo que se destaca na virtude ou cuja virtude é completamente despro 1 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y porcional em relação à contribuição dos demais cidadãos a única justiça para todos é obedecer a esse homem e fãzer dele o rei permanente em sua cidade Após essa observação Aristóteles voltase para uma análise sistemática do assun to da monarquia P 31417 Grande parte dessa discussão é dedicada a um exame da questão de saber se é mais vantajoso ser governado pelo melhor homem ou pelas melhores leis Aristóteles dá um peso total como em seu tratamento de equidade na Ética a Nicômaco à particularidade deficiente da lei O que decide a questão em favor do governo pelas leis no entanto é serem isentas de paixão Poderseia pensar que o melhor homem é por definição alguém em quem a paixão é controlada pela virtude mas não é este a rigor o caso pois as paixões thymos são como bestas e pervertem os governantes ainda que eles sejam os melhores homens observa Aristóteles ecoando um relevante tema platônico 31612873031 Até mesmo os homens de virtude excepcional são falhos como parece devido à influência nociva de uma paixão ou complexo de paixões que aem ao mesmo tempo como uma fonte vital de apoio para a sua virtude Aristóteles assinala mais uma vez embora de modo discreto a relação problemática entre o cavalheirismo em sua forma mais elevada e as necessidades da cidade Parece ser este o pensamento que explica a guinada inesperada que fez afinal o argumento de Aristóteles a alternativa para a monarquia é afinal não tanto o gover no das leis como o governo de vários homens excelentes que no coletivo são menos vulneráveis aos destemperos da paixão quer dizer a aristocracia Embora Aristóteles esteja disposto a reconhecer a monarquia como um regime adequado para determina dos tipos de sociedades estipula que a realeza pertence às eras mais remotas da cidade Quanto à sua hesitação sobre o assunto do ostracismo podese arriscar a sugestão de que reflete a relutância de Aristóteles em validar o princípio de que a excelência moral ou nobreza deve ser inteiramente subordinada às exigências da justiça política As M v ried ad es d e R eg im es A mais completa exposição do programa subjacente à detalhada análise de Aris tóteles das variedades de regimes no restante da Política ocorre no início do Livro IV Aristóteles começa por comparar a ciência de regimes à arte do instrutor de ginásti ca que precisa preocuparse não só com o tipo de treinamento que é melhor para o melhor tipo de compleição física mas também com os tipos que são os melhores ou aceitáveis para uma vasta gama de compleições físicas imperfeitas Da mesma forma é próprio à ciência dos regimes náo só conceber o regime absolutamente melhor mas identificar quais tipos de regimes são melhores para determinados tipos de cidades e o tipo que é ao mesmo tempo o melhor e o mais adequado ou aceitável para a maioria das cidades Afirma Aristóteles que a maioria dos que manifestam opiniões sobre o regime comete um erro ao menosprezar o que é de feto útil o estudo dos regimes me nos perfeitos porém mais acessíveis e concentrar a sua atenção quer em um melhor regime que está além do alcance da maioria das cidades quer em um r m e como o de Esparta que embora mais acessível dificilmente constitui um exemplo típico dos A r is t ó t e l e s 131 regimes existentes Ao contrário quando se propõe alguma constituição devese fazé lo de modo que seja facilmente adotada a partir da que já se encontra estabelecida bem como tenha aplicação geral visto que reformar uma constituição não dá menos trabalho que estabelecer uma desde o início P 41128914 Atentar para a centra lidade do interesse de Aristóteles pela reforma dos regimes existentes é fundamental para compreender sua abordagem global Ao contrário de uma visão comum de que a análise dos regimes existentes na Política IVVI seja motivada por um interesse em classificação científica e seja em seus fundamentos indiferente às questões de hierar quia ou de valor entre os regimes a análise é guiada desde o início pela ideia de que a concretização do melhor regime ou do melhor regime possível embora na verdade deva ser ambicionada com devoção provavelmente ocorrerá por meio de mudanças incrementais na estrutura das leis e ideias políticas existentes e náo por meio da pro mulgação de esquemas utópicos radicais Há um determinado número de regimes lembranos Aristóteles porque há vá rias partes em qualquer cidade As partes mais importantes e universais são a maioria das pessoas e alguns ricos em conseqüência dizse não raro que existem de fato apenas dois tipos de regime democracia e oligarquia Além de ricos e pobres no en tanto algumas cidades possuem um elemento mediano politicamente significativo isto é uma classe média Além disso ricos e pobres estão longe de serem uniformes em sua composição os pobres podem incluir agricultores artesãos e trabalhadores e dentro destes grupos ocupações em particular podem predominar cada um com um estilo de vida muito diverso em suas implicações políticas e divergências semelhantes caracterizam os ricos e os cavalheiros As diferenças no tamanho ou exclusividade do governo o papel atribuído a outros elementos da cidade e a importância relativa das leis em oposição ao governo pessoal também contribuem para a formação de distintos subtipos de regimes Por exemplo Aristóteles reconhece um subtipo da oligarquia ao qual denomina governo dos poderosos dynasteid um regime que se caracteriza pelo governo pessoal de um pequeno número de pessoas abastadas e faz a distinção entre as formas de democracia que repousam sobre o poder político da classe agrícola e do governo das leis e a democracia radical característica de Atenas em sua fase clássica em que as classes trabalhadoras urbanas apoiadas por receitas do Estado governam sem levar em consideração as leis Não somente são de extrema importância política as diferenças entre tais subtipos de regime elas são por vezes maiores em aspectoschave do que as diferenças que separam os próprios tipos de regimes Assim uma democra cia moderada pode ter mais em comum por exemplo com uma oligarquia moderada do que com uma democracia radical Quando se examinam os subtipos de regime as variedades de regime aparecem mais como pontos em uma só seqüência contínua do que como tipos política ou ideologicamente exclusivos Esta é na verdade a intenção central de Aristóteles um pouco de apagamento das fronteiras entre regimes é essen cial para que uma estratégia de reforma incrementai do regime seja bemsucedida Podese reputar Aristóteles com justiça como o criador da noção de regime mis to que viria a exercer uma poderosa influência sobre o pensamento e prática política 1 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y já bem dentro dos tempos modernos É comum discutir a noçáo aristotélica de regime misto no contexto de seu exame do regime a que denomina governo civil politeid A rigor porém o regime misto na Política é menos um tipo de regime específico do que um reflexo da estratégia que informa a abordagem de Aristóteles para a construção e preservação dos regimes em geral A tarefa prática central a que Aristóteles se propõe na Política é temperar se nâo eliminar o conflito político entre ricos e pobres O governo civil politeid que Aristóteles descreve inicialmente como uma mistura de oligarquia e democracia fornece um tipo de solução para este conflito Mas Aristóteles também experimenta com as possibilidades de reforma no âmbito da estrutura da oligarquia ou democracia como tais além disso trata como uma forma de regime misto nâo apenas o governo civil politeid mas a aristocracia em um sentido fraco do termo um regime no qual a virtude é honrada e os cavalheiros desempenham um papel politicamente significativo mas partilham o poder com os ricos e o povo 471293l20 A descrição do governo civil politeiá por Aristóteles como uma mistura de oli garquia e democracia tem como fim alterar o relato inicial do Livro III em que o go verno civil politeid é apresentado simplesmente como a forma correta ou de espírito público da democracia Os governos civis politeia podem tender tanto em direção à democracia quanto em direção à oligarquia os do último tipo sáo em geral denomi nados aristocracias devido a uma confusão comum do modo de vida dos ricos com o modo de vida dos cavalheiros Em todo caso é a característica de um governo civil politeia de boa mistura que se pode falar dele indiferentemente como democracia ou oligarquia assim como o regime espartano é muitas vezes descrito como uma demo cracia tanto como uma oligarquia ou aristocracia e que conta com a lealdade não apenas de uma maioria mas de todos os grupos da cidade P 489 Uma característica dos ensinamentos políticos de Aristóteles e que é de grande interesse do ponto de vista da atual análise política é o papel que atribuem ao ele mento mediano da cidade na intermediação do conflito entre ricos e pobres Náo basta identificar o regime misto em geral como o regime que é melhor ou mais acei tável para a maioria das cidades Dado que o regime é em última análise não apenas uma determinada organização de cargos públicos mas um modo de vida para a cidade como um todo os regimes que tentassem conciliar os interesses de grupos poderosos e dispersos somente pelos meios institucionais seriam é forçoso em algum sentido construtos artificiais e portanto constantemente sujeitos à instabilidade política Po rém e se fosse possível erigir tal regime em torno de um grupo que agiria ele mesmo para superar as diferenças sociopolíticas e ideológicas que alimentam a instabilidade Esta parece ser a concepção subjacente ao notável e inesperado elogio de Aristó teles à classe média e seu potencial papel político P 411 Parece haver uma ligação entre a virtude entendida como o meio entre os extremos e uma condição medíocre ou média em relação às possessões Aqueles que possuem uma quantidade moderada de propriedades tendem mais a se comportar de modo razoável do que os extremamente ricos ou os extremamente pobres os primeiros tendem à insolência e perversidade enquanto os segundos tendem a mesquinharias e maldades os crimes são originados A r is t ó t e l e s 1 3 3 pela insolência e maldade O elemento mediano tende menos tanto a fúrtarse a go vernar quanto a desejar governar sendo ambas as atitudes prejudiciais para as cidades ao mesmo tempo está bem equipado tanto para governar como para ser governado Em contrapartida aqueles que sáo criados no luxo nunca se habituam a serem gover nados enquanto os pobres tendem a ser humildes ou servis em excesso Assim surge uma cidade não de homens livres mas de senhores e escravos uns são invejosos outros prepotentes e nada pode ser mais fetal à amizade e vida comunitária na cidade Tal relação entre ricos e pobres gera um conflito de fecções e impulsiona o regime tanto na direção da oligarquia estrita quanto dada a incompetência dos próprios pobres em governar da tirania Quando é forte o elemento mediano por outro lado o conflito entre facções é reduzido ao mínimo e o regime é mais estável e duradouro É importante examinar esse argumento em sua devida perspectiva Aristóteles admite que a classe média seja pequena em muitas cidades que o seu papel político é muitas vezes circunscrito em vez de reforçado pela luta entre ricos e pobres e que as circunstâncias internacionais em particular a rivalidade entre Atenas e Esparta tendem a desencorajar ainda mais tal papel Além disso seria incorreto supor que Aristóteles encara a classe média como fonte confiável de apoio para a virtude política O filósofo indica de forma clara que o regime que busca não pressupõe a virtude do tipo que está além do alcance dos indivíduos ou a educação que a incutiria o elemento mediano é caracterizado não tanto pela posse da virtude como pela ausên cia de vícios e por circunstâncias externas fevoráveis à aquisição da virtude Parte do motivo para o aparente entusiasmo de Aristóteles pela classe média por outro lado pode muito bem ser o fato de que a considera terreno fértil para um tipo de virtude ou cavalheirismo que é menos ambíguo para o serviço da cidade do que a virtude ou o cavalheirismo do tipo aristocrático convencional O restante do Livro IV e os dois livros seguintes são preenchidos por um exame mais profundo das instituições políticas das causas do conflito entre as fecções stasis e da mudança política ou revolução metabole e os métodos para instituir e preservar regimes Em seu realismo gritante e domínio seguro das preocupações da política do dia a dia essas páginas encontram poucos paralelos na literatura da teoria política ao mesmo tempo enriquecem e aprofundam a análise dos tipos de regime delineados nos livros anteriores De particular interesse é a disposição de Aristóteles para dar conselhos sobre a preservação dos regimes existentes nâo só para os políticos das democracias e oligarquias imperfeitas mas até mesmo para os tiranos P 51011 É testemunho da flexibilidade singular do filósofo da modéstia de suas expectativas da política e de sua confiança nas possibilidades de reforma Embora em nada indique que os sujeitos de um tirano tenham a obrigação moral ou legal de obedecêlo ou de se abster de tentar derrubálo Aristóteles parece aceitar que existem circunstâncias em que não é viável a mudança em regimes deste tipo por conseguinte qualquer suavização dos rigores do govemo do tira no deve depender de convencêlo de que a preservação de seu r m e o exige Também de grande interesse é o esclarecimento que esse material lança sobre a visão aristotélica acerca da psicologia dos homens políticos Apesar da ênfase que dá 1 3 4 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y à base classista dos conflitos políticos é surpreendente que Aristóteles atribua pouca importância ao papel dos motivos econômicos na poUtica Insiste repetidas vezes que a luta entre ricos e pobres é no fundo náo uma disputa sobre a propriedade como tal mas sobre concepções rivais de justiça e tem bastante a dizer sobre o papel muitas ve zes decisivo desempenhado nos conflitos entre as fiicções nas revoluções pelas paixões como a raiva a arrogância o medo o desprezo o amor e a honra Seu tratamento é particularmente revelador da psicologia das elites aristocráticas e oligárquicas e ilustra de modo convincente as conseqüências políticas náo raro dramáticas que podem re sultar da virtude individual ou de sua ausência O M e l h o r R e g im e A análise de regimes empreendida por Aristóteles compreende como se viu náo só uma variedade de regimes imperfeitos mas também o regime que é simplesmente o melhor para o homem Mas que lugar pode ocupar tal r m e em uma ciência cuja ênfiise recai sobre a prática da política Náo seria afinal como muitos supõem a discussão de Aristóteles sobre o melhor regime nos dois últimos livros da Política um tipo de vestígio da sua herança platônica com pouca ligação orgânica aos argumentos dos livros mais práticos da Política ou mesmo da obra como um todo A primeira resposta para a questão da utilidade do melhor regime é que o melhor regime representa nada mais do que uma tentativa de tornar explícitos os pressupostos e escolhas que subjazem a qualquer reforma dos regimes existentes É irrelevante o fato de que o melhor regime pressupõe uma combinação de circunstâncias ou na verdade algo que pode nunca ter de feto existido a única exigência é que respeite as limitações que são inerentes à condição humana O melhor regime assim entendido prevê na verdade não os critérios para julgar a legitimidade dos regimes existentes mas um modelo ou meta para todas as mudanças políticas A dificuldade com essa explicação é que ainda existe em Aristóteles uma disjun ção de modo algum tão acentuada quanto no caso da República de Platão mas ainda assim significativa entre o melhor regime e praticamente todos os outros regimes contemporâneos O melhor regime de Aristóteles baseiase em uma forma de organi zação social e econômica que no mundo grego parece só ter existido em Esparta e em poucos outros liares um rime que compreende uma única classe de cidadãos que desfíntam de completo lazer para a atividade política e militar e uma classe não livre ou semilivre de trabalhadores sícolas Quando Aristóteles aborda a questão geral da justiça política e suas implicações para a reforma do regime porém parece assumir como norma para as cidades um conjunto alentado de cidadãos livres engajados em atividades econômicas Não somente o melhor regime não parece funcionar como modelo para tais cidades podese argumentar que na verdade funciona no sentido inverso questionando a legitimidade da reivindicação política do elemento popular e assim estimulando a negação de seus direitos de cidacia Apesar do feto de que o melhor r m e não é discutido em conexão explícita com a análise esquemática anterior de tipos de rjme testa pouca dúvida de que o melhor A r i s t ó t e l e s 135 regime é entendido por Aristóteles como uma forma de aristocracia Tratase da aris tocracia no sentido forte do termo o gpvemo sem atenuações de um órgão que é de público dedicado à busca da virtude Se parece estranho o silêncio de Aristóteles acerca da organização política do melhor rm e isto ocorre exatamente porque o melhor regi me não se defronta com os conflitos políticos normais que caraaerizam os rimes que consistem em grupos hetercneos de cidadãos livres O problema central do melhor r m e não é ajustar à justiça política reivindicações parciais e incompatíveis mas sim a educação para a virtude que é o que sustenta sua maior reivindicação à justiça política Podese dizer que a discussão sobre o melhor regime nos livros finais da Política atende a dois fins práticos específicos Em primeiro lugar Aristóteles está atento a exemplo de Platão nas Leis às possibilidades oferecidas pela fimdação de novas cida des em áreas remotas do mundo grego É neste contexto que se deve apreciar o exame detalhado que efetua P 7412 de questões como o tamanho da cidade sua situação e planta e as qualidades de seus habitantes Em segundo a análise que faz Aristóteles da educação e do modo de vida dos cidadãos do melhor regime destinase a fornecer orientações práticas para aristocratas ociosos ou aristocratas potenciais nas cidades já existentes No Livro II Aristóteles desdobrase em detalhes para apontar os defeitos do modo de vida das classes aristocráticas nas cidades destacando Esparta e Cartío que têm a reputação de terem o melhor governo O melhor regime dos livros finais da Política destinase acima de tudo a oferecer um modelo alternativo para o estilo de vida aristocrático para aqueles cujas ideias políticas se formaram pelos exemplos dessas sociedades impressionantes porém falhas Um defeito crítico enfatizado por Aristóteles em sua análise de Espana e Cartago é a preocupação de suas classes governantes com a riqueza Em Esparta a riqueza é secretamente desejada apesar do rigor das leis que entre outras coisas proibiam a exploração de ouro e prata por indivíduos em pane porque as próprias leis inad vertidamente promovem grandes diferenças de riqueza devido a acordos imperfeitos relativos à herança de terras em parte por causa de um viés utilitarista na educação espartana Em Cartago por outro lado com suas tradições comerciais a riqueza é aplaudida abertamente e considerada um prérequisito para a ocupação de cargos pú blicos Aristóteles insiste ao contrário que onde a virtude não está no primeiro lugar tal aristocracia não pode ser firmemente estabelecida P21112734ll Contudo a solução proposta por Aristóteles não é apenas uma variação da austeridade espartana Aristóteles decerto rejeita a alternativa empregada em Cartago de uma nobreza cuja fonuna se baseia no comércio em favor de uma nobreza latifundiária do tipo espar tano Como se verifica sobretudo a partir do prolongado exame do ganhar dinheiro ou nócios chrèmatistike no Livro I Aristóteles está convencido de que a eman cipação da atividade econômica das limitações naturais de um modo agrícola de vida ocasionará um perigoso ímpeto aos anseios dos homens por bens externos Ao mesmo tempo porém não vê qualquer mérito na promoção deliberada de pobreza privada ou pública e reconhece plenamente a necessidade do comércio e do dinheiro Apesar de não ser desejável que a melhor cidade seja ela mesma um porto Aristóteles defende 136 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y uma localização próxima ao mar isto não só fiicilita o comércio mas permite o de senvolvimento do poder naval P76 Entretanto qualquer cidade capaz de sustentar uma frota exige sólidos rendimentos Quanto ao papel da riqueza privada Aristóteles indica ser mais desejável uma quantidade moderada de posses enquanto os males associados à riqueza devem ser atenuados pelo incentivo ao uso comum da riqueza por meio da instituição de refeições comuns da reserva de terras para apoio ao erário público e de uma educação para as virtudes da moderação e da liberalidade O breve exame da questão do tamanho da melhor cidade P 74 revela um aspecto característico dos ensinamentos de Aristóteles Na visão comum a melhor cidade é a maior cidade uma visão que parece íundamentarse na preocupação de que a cidade seja do ponto de vista militar o mais forte possível Aristóteles rejeita tal ideia alegando que é impossível que uma cidade grande seja bem governada Tal ocorre em primeiro lugar simplesmente porque é difícil controlar um grande número de pessoas Pois quem poderá ser o dirigente de uma multidão tão vasta e quem será o seu arauto a não ser que seja um Stêntor O mais fundamental porém é que reflete um comprometimento de funções políticas vitais que resulta de uma falta de conhecimento pessoal dos indivíduos tanto o julgamento quanto a distribuição de cargos de acordo com o mérito exigem que os cidadãos estejam familiarizados com as qualidades uns dos outros Aristóteles conclui que o tamanho ideal da cidade pode ser definido como o maior número possível com vistas à autossuficiência e que ao mesmo tempo esteja contida em um único olhar Devido à importância assumida por essa questão na ruptura com a filosofia políti ca clássica iniciada por Maquiavel é essencial que a posição de Aristóteles não seja mal interpretada Como foi visto Aristóteles não é de forma alguma insensível à necessidade fundamentai de segurança para a cidade Mas nega que a segurança possa ser garantida em última análise somente pela expansão os exemplos de Atenas e Esparta são suficien tes para mostrar que é tão provável que o império cause a ruína de uma cidade quanto a fiJta de recursos militares cf P 7141333425 Em todo caso não faltam a uma pequena cidade estratégias eficazes para sua defesa Aristóteles sugere quatro estratégias que muitas vezes podem ser acionadas ao mesmo tempo e que se reforçam mutuamente treinamento excelente de tropas em coragem e habilidades militares fortificações poder naval ostensivo e alianças Estas últimas são partícularmente dignas de nota pois Aris tóteles de fato mantém aberta a possibilidade de que a melhor cidade pode decidir ou ser forçada a assumir um papel hegemônico e político em relação a outras cidades à maneira de Atenas e Esparta em sua fãse préimperial Todavia Aristóteles reluta em atribuir demasiada ênfiise a essa possibilicUde Como será visto adiante isso reflete a consciência da importância central da orientação externa ou política externa da melhor cidade quanto ao modo de vida da cidade como um todo A r is t ó t e l e s 1 3 7 16 NT Stêntor ou Estentor Vocábulo já dicionarizado em português como estentor Sténtor Estentor arauto grego cuja voz valia por cinqüenta pessoa que tem voz muito forte voz muito forte 17 P 7 6 1327406 cf 14133336342 1 38 H ist ó r ia d a F il o so fia Po lít ic a L eo S tra u ss e J o se p h C ro psey E d u c a ç ã o C u lt u r a e o M e l h o r M o d o d e V id a No início do livro VII ao introduzir o tema do melhor regime Aristóteles desvia se para examinar longamente a questão da melhor forma de vida dos indivíduos e das cidades Esta passagem é de fundamental importância para a compreensão não só das finalidades e significado da discussão sobre educação e cultura que conclui a Política tal como a conhecemos mas do caráter político dos ensinamentos de Aristóteles em geral Não fica evidente de imediato o motivo pelo qual Aristóteles regressa a uma questão que se poderia reputar resolvida nos escritos éticos O filósofo começa por reiterar o seu argumento de que a felicidade deve ser identificada com a vida virtuosa ou mais precisamente de virtude e prudência e ação de acordo com estas e afirma que o que é verdadeiro das pessoas também deve ser verdade para a cidade como um todo Parece no entanto que se pode indagar se a felicidade ou virtude da cidade e do indivíduo são idênticas Pois nos diz Aristóteles até mesmo os que pensam que o melhor modo de vida se baseia na virtude sáo forçados a lidar com uma questão a de se a vida em meio aos negócios e assuntos políticos é ou não é mais adequada do que uma vida inteiramente independente de bens externos ou seja de que uma vida contemplativa a qual é defendida por alguns como o único modo digno de existência a de um filósofo e a de um político parecem ter sido preferidas por aqueles que se dedicaram com maior afinco à busca da viitude tanto em nossos dias quanto em outros momentos históricos P7213242532 Há duas questões que exigem atenção neste contexto se o melhor modo de vida é uma participação ativa na vida política da cidade ou ao contrário aquele característico do estrangeiro e qual regime e qual orienução diathesis da cidade devem ser conside rados os melhores Mas é a última pergunta a questão da política externa do melhor regime que ocupa o primeiro plano da discussão de Aristóteles Segundo ele Há quem acredite que embora o despotismo seja a pior das injustiças o simples exercício de um governo constitucional sobre os cidadãos ainda que justo é um grande impedi mento para o bemestar do indivíduo Outros têm uma visão oposta eles acreditam que a verdadeira vida do homem é a vida prática e política e que todas as virtudes podem ser praticadas tão bem pelos políticos e governantes quanto pelos indivíduos Há também aqueles que são da opinião de que um governo arbitrário e tirânico é a única forma de se alcançar a felicidade de íàto em algumas cidades o objetivo de todas as leis e da consti tuição é dar a alguns homens o domínio sobre os seus vizinhos P 721324364 Aristóteles explicita que tem em mente Esparta em especial como o paradigma da cidade voltada para a guerra a conquista e a dominação dos estrangeiros Parece haver duas alternativas para a orientação espartana o não envolvimento nos assuntos de outras cidades ou uma orientação ativa e política envolvendo no extremo um papel de liderança ou político sobre as cidades aliadas Os modos alternativos de participação na vida política por parte dos indivíduos são intimamente paralelos Os indivíduos podem afestarse da política como o estrangeiro ou o filósofo participar da política de forma política por governar e ser governado alternadamente ou tentar exercer o domínio ou um papel tirânico sobre os seus concidadãos Na verdade porém esse paralelismo é um pouco enganador e a discrepância indi ca o problema com o qual Aristóteles mais se preocupa Ninguém considera o domínio ou tirania um modo de vida respeitável dos indivíduos dentro da cidade Mas parece que a maioria das pessoas supóe que não há diferença entre domínio e papel político quando se trata de estrangeiros e aquilo que os homens afirmam ser injusto e incorreto em relação a si mesmos eles não se enveinham de praticar em relação aos demais Esu parece ser a opinião até mesmo daqueles ou de alguns daqueles que acreditam que o modo de vida ativo e político é o único para um homem isto é para o homem que está interessado em realizar ações nobres e ganhar honra Em outras palavras não parece haver uma instabilidade inerente à ideia de governo em si de tal forma que até mesmo os homens respeitáveis tendem a entender que ter autoridade sobre todos é o melhor O impulso para governar desta maneira como é natural procura um escape na dominação de estrangeiros mas também é um perigo sempre presente dentro da própria cidade e atender ao impulso no exterior poderá ter repercussões em casa como demonstra mais uma vez o exemplo de Esparta P 71413332636 A fim de apreciar a lógica de aparência tortuosa do aimento tal como Aristóte les o desenvolve não devemos nos deixar enganar por seu apelo para a vida filosófica A intenção da discussão não é julgar as respeaivas reivindicações dos modos de vida políticos e filosóficos para o indivíduo No décimo livro da Ética a Nicômaco Aristó teles debta claro que o caminho filosófico de vida é superior para aqueles que são ca pazes dele mas não dá qualquer indicação de que esse feto por si só tenha conse qüências políticas No presente contexto Aristóteles está interessado na vida filosófica somente como modelo ou analogia para fenômenos de grande significado político Em particular oferece a alternativa do não envolvimento na vida política por parte dos indivíduos apenas ou principalmente porque esta alternativa é aquela que goza de determinada reputação política Assim como alguns aristocratas fevoreciam uma vida de atividade política outros sustentando que há mais espaço para a ação por parte dos indivíduos em realizar ações virtuosas mantinhamse aíãstados de qualquer envolvimento na política uma postura em especial apreciada entre os aristocratas que viviam em regimes democráticos como Atenas onde demogos competiam pelo apoio popular e era real a ameaça de expropriação judicial É possível imaginar que essas pessoas estivessem bem representadas entre a platéia imediata de Aristóteles Que solução propõe Aristóteles para esse dilema Porque não está disposto a tolerar o afestamento de homens virtuosos da política Aristóteles conclui de maneira formal que o melhor modo de vida tanto para a cidade como para os indivíduos é a vida prática ou ativa Contudo porque tem preocupação igual em moderar a tendên cia inerente na vida política ou nos homens políticos de buscar o governo por si ou A r i s t ó t e l e s 139 18 P 7213244lb2í 0108117968 sem limites comprometese a redefinir a vida prática ou ativa de tal maneira a alte rar em suas bases a orientação da melhor cidade O estilo de vida ativa argumenta agora não é necessariamente em relação a ouuos assim como os pensamentos não são ativos apenas quando são por causa de algum outro resultado pois antes disso uma vida ativa é feita de especulação e contemplação desde que sejam independentes e completos em si mesmos Na verdade também não se deve dizer que as cidades que se acham isoladas das demais e escolham viver assim sejam inativas pelo menos tanto quanto os indivíduos pois de outro modo o deus e o universo inteiro não poderiam estar em boas condições pois eles não tém ações externas para além das que são pró prias de si mesmos 77313251629 Em um momento posterior no Livro VII Aristóteles retorna a esses temas e os refina Os cidadãos do melhor regime devem ser capazes de desincumbirse dos assuntos políticos e ir para a guerra mas é mais importante que sejam capazes de permanecer em paz e usufruir do lazer Pois assim como a guerra existe para o bem da paz assim a ocupação tem como finalidade o lazer o necessário ou útil por bem do nobre Não mais do que a atividade econômica é atividade política ou militar por si só a finalidade da melhor vida os homens se envolvem em política em última análise pela mesma razão pela qual se envolvem em outras atividades práticas a fim de garantir o lazer e as coisas que são usufruídas no lazer A felicidade no verdadeiro sentido não pertence à ocupação mas ao lazer cf EN 1071177415 Assim o melhor rime depende da presença de uma variedade de virtudes Coragem e perseverança são ne cessárias em apoio das atividades da política e da guerra a moderação e a justiça são necessárias tanto na ocupação como no lazer embora sejam particularmente úteis para os momentos de paz e de lazer já que a guerra compele os homens a serem justos e temperantes ao passo que o desfiutar da boa sorte e do lazer que vem com a paz tende a tornálos insolentes Mas como é evidente essas virtudes não são suficientes pois Aristóteles acrescenta que o melhor regime também vai exigir tendo em vista apenas o lazer a filosofia 771513441134 Será que Aristóteles então afinal devolve o regime para citando sua própria crítica das Leis de Platão o governo dos reisfilósofos como esboçado na República de Platão Não é possível sustentar tal conclusão Aristóteles enceta prodigiosos esforços para demonstrar que o melhor modo de vida para os homens em geral é a vida prá tica ou política e não há nada na educação elaborada nos livros finais da PoUtica que possa sugerir que Aristóteles pressuponha uma capacidade para a filosofia no corpo de cidadãos do melhor regime ou de alguma parte dele Na verdade Aristóteles parece ter defendido que não apenas a filosofia não é necessária mas também constitui um impedimento positivo para os reis governantes ao contrário de uma abertura para os conselhos e a persuasão daqueles que genuinamente filosoíãm Não existe qualquer razão para crer que Aristóteles considerasse o governo dos filósofos como uma real pos 140 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 19 Consideremos P 71413332730 20 Aristóteles fr 647 Rose citado em Temístio Omtio 8128 Dindorf sibilidade política Portanto quando fida de filosofia neste contexto o que parece ter em mente náo é a filosofia no sentido de especulação teórica mas em um sentido mais amplo do termo para o qual cultura é uma aproximação aceitável Quando no Livro II Aristóteles critica Platão por confiar em um sistema institucionalizado de comunismo para assegurar a unidade e a felicidade do regime da República e não na educação o que vem a ser hábito filosofia e leis P 2512633740 não esquece que o próprio Platão se baseara na filosofia e não nas instituições em si O que Aris tóteles quer sugerir é que Platão deveria ter confiado menos na filosofia no sentido estrito do que na filosofia em sentido lato A filosofia neste último sentido consiste sobretudo no cultivo da música e da poesia que é característico do lazer Não é possível examinar de modo adequado aqui a complexa e é evidente in completa discussão de educação e cultura de que se ocupa o restante da Política Para entender essa discussão é essencial apreciar o dilema retórico que Aristóteles enfrenta va na tentativa de tornar palatável para seus orgulhosos e intransigentes interlocutores um argumento que poderia parecer meramente sentimental ou pior complacente Ao apresentar a finição ociosa da literatura e das artes como a finalidade da melhor vida Aristóteles tem o cuidado de apelar para as autoridades tradicionais e ressaltar o caráter não utilitarista da atividade em pauta Em uma inspeção mais minuciosa no entanto fica evidente que Aristóteles também quer argumentar a favor de a educação moral ou intelectual não ser totalmente um assunto para os jovens ou de que a fruição culta de homens maduros deve servir ao mesmo tempo como uma espécie de educação para a virtude Seria possível crer que a necessidade de uma educação desse tipo para os aristocratas do melhor regime fosse excluída por definição No entanto nem mesmo os homens miânimos como nos lembra Aristóteles neste contexto iP 77 132878 são plenamente imunes a paixões destrutivas associadas à parte animada da alma e Aristóteles nos dá a entender que a educação para a forma supe rior de virtude a qual denomina prudência pode ter exigências específicas próprias Não é possível fiizer mais do que adudir às indicações que fornece Aristóteles de que o principal veículo da educação assim entendida é uma poesia trágica concebida para efetuar uma catarse das paixões da alma P 8713421015 Neste como em outros aspectos Aristóteles tenta aperfeiçoar os ensinamentos de Platão somente para melhor realizar sua intenção fundamental L e it u r a s A Aristóteles Ética a Nicômaco Livros I IIIV X Aristóteles PoUtica Livros IIV VIL B Aristóteles Ética a Nicômaco Livros II VIDC Aristóteles PoUtica Livros VVI VIII A r i s t ó t e l e s 141 M arco H jlio C ícero 10643 aC Poucos dos que procuraram apresentar um relato sistemático do desenvolvimento da filosofia política atribuíram grande importância ao pensamento político de Cícero Pela tradição é contemplado como membro do grupo dos pensadores gregos e roma nos menos inspirados e menos estimulantes que trilharam a senda de Platão e Aris tóteles Reputado um diletante ao contrário de um verdadeiro estudioso de filosofia em geral seu pensamento é julgado eclético e tido como nâo caracterizado por grande coerência doutrinária ou profundidade de discernimento Suas obras especificamente políticas Da República e Tratado das Leis têm sido avaliadas como pouco mais do que tentativas ambiciosas de justificar os ideais e as práticas de uma ordem aristocrá tica moribunda Acreditase que seu valor para os estudiosos posteriores resida menos no que ele próprio tem a dizer sobre graves questões da filosofia política do que no relato detalhado que oferece das doutrinas das várias escolas filosóficas gregas atuantes em sua própria época e da adaptação dessas doutrinas para o ambiente político e in telectual radicalmente diferente de Roma Supõese que seu talento especial residiu na habilidade com que sintetizou os ensinamentos divergentes e muitas vezes conflitantes dessas escolas assim divulgandoos sob forma agradável ao gosto romano e adequada para satisfazer às demandas da mentalidade prática romana Há um pouco de verdade nessa avaliação Seu equívoco porém está em não dar a devida importância ao método de Cícero ou a seus objetivos quando abordou assuntos filosóficos do modo como o fez sem falar na substância de seu pensamento Assim sendo este julgamento de Cícero não chega a atingir o tipo de compreensão que é essencial para uma análise adequada Como estadista e autêntico estudioso de filosofia Cícero buscou em seus escri tos pôr o seu considerável talento e experiência como professor de retórica a serviço da filosofia a serviço daquilo que sugeriu ser a mais rica mais generosa e mais gloriosa 1 NA Da Repúblka De republica Tratado das Leis De Legibus dádiva dos deuses imortais para a humanidade Sua tarefa tal como a concebia era a introdução da filosofia em Roma Por filosofia não entendia os ensinamentos dog máticos desta ou daquela escola em particular mas um modo de vida Não era tarefa simples A filosofia é sempre vista com desconfiança e desagrado pela maioria dos homens em especial por aqueles cujo gosto tende mais para o prático do que para o especulativo É mais suspeita ainda quando se acreditam estrangeiras suas origens As dificuldades normais que residem em introduzir algo que em todos os momen tos é contrário ao gosto e ao pensamento popular eram agravadas para Cícero pelo fato de serem esses ensinamentos de origem grega Não podemos ignorar que Cícero necessitava agir de modo cauteloso diante das sensibilidades romanas e fornecer uma justificativa convincente para a existência da filosofia em Roma se desejamos avaliar o grau de prudência com que se sentiu compelido a realizar essa tarefa Ao longo de suas obras Cícero declara pertencer ao Ceticismo Acadêmico ser membro da escola filosófica cuja origem reside na Academia Platônica mas que em sua própria época ressaltava como sua tese fundamental a impossibilidade do conhe cimento absoluto O homem enquanto homem afirmavam os Céticos é limitado a opiniões sobre que é mais ou menos provável Embora o homem possa tentar atingir um grau mais elevado de probabilidade por meio da análise tal como fez Sócrates dos méritos relativos de todas as opiniões nunca em qualquer ponto de sua investigação estará seguro da certeza absoluta O homem deve agir se escolher a ação com o enten dimento de que são problemáticos os princípios que regem a sua ação Embora o ceticismo e a suspensão do julgamento final que implica possam ser defendidos pela filosofia se essas opiniões forem levadas a sério e desenvolvidas até suas últimas conseqüências lógicas pela massa dos homens o resultado poderá muito bem ser desastroso do ponto de vista político É possível que não cause grande pertur bação ao teórico a ideia por exemplo de que falta e faltará sempre uma base com pletamente racional ou defensável ao padrão em geral aceito do que vem a ser justo ou injusto No entanto se tal ideia for incutida de modo nítido na mente das massas de tal forma abalará a confiança popular na validade de tal padrão que parecerá insensata uma fiel adesão a ele ou a qualquer tipo de padrão que repouse sobre uma base tão frágil e fundamentos tão arbitrários Tal entendimento pode induzir a um amplo ques tionamento da verdade e mesmo daqueles princípios que são talvez essenciais para a existência da ordem política por exemplo que o bem comum deve ser preferido pelos cidadãos ao invés de seu bem particular M a r c o T ú u o C íc e r o 143 2 Reproduzido com permissão dos editores de The Loeb Classical Library Marcus Tullius Cicero Laws trans C W Keyes Cambridge Mass Harvard University Press 1928 I p 58 Tusculan Disputations trans J E King Loeb Classical Library Cambridge Mass Harvard University Press 1927 I p 18 3 Tusculan Disputations I 15 II 4 IV 56 4 As doutrinas desta escola sâo examinadas em detalhes em E Zeller The Stoics Epicureans and Scep tics London Longmans Green 1870 e Edwyn Bevan Stoics andSceptics Cambridge W Heffer and Sons 1959 Cícero tínha bastante consciência do potencial para efeitos perturbadores que o ceticismo e talvez a própria íilosoíia teriam sobre a cidade ou seja a comunidade política A verdade nua e crua a verdade filosófica poderia abalar os alicerces de uma determinada ordem política Ao contrário de alguns dos membros menos perspicazes de sua escola Cícero não era capaz de encarar de modo tranqüilo esta possibilidade tinha consciência da fundamental dependência da filosofia por parte da cidade e por tanto da necessidade de que a filosofia se desejasse sobreviver se preocupasse com o desenvolvimento de uma ordem política saudável Só dentro de tal ordem é que poderia existir a filosofia O filósofo sendo isso verdadeiro deve ser guiado por uma compreensão das necessidades da cidade e das conseqüências práticas de seus ensina mentos Não deve arriscar o caos que poderia desencadear um exame público siste mático e implacável dos princípios fundamentais e subjacentes a uma determinada ordem até mesmo uma ordem cujos defeitos lhe parecessem tão radicais sem ter refletido um pouco sobre as alternativas Um governo imperfeito um governo que está longe dos melhores pode ser melhor do que a ausência de governo O filósofo deve começar então pela compreensão do que é possível bem como do que é desejável e direcionar seus esforços por sua vez para a melhoria da saúde de uma determinada ordem política e não para sua destruição A decisão de Cícero por utilizar o diálogo como veículo para seus ensinamentos emerge em parte desta reflexão sobre a relação da filosofia com a cidade e em parte de sua preferência como cético e admirador de Platão o homem mais sábio e mais sábio que a Grécia produziu pelo método socrático A decisão foi ditada afir ma em Disputas Tusculanas por um desejo de esconder suas próprias opiniões de poupar os outros do erro e em cada disputa procurar a solução mais provável O diálogo é uma forma que permite a apresentação e análise de opiniões conflitantes Permite que o escritor foque a atenção sobre os méritos relativos das posições a serem analisadas e ao mesmo tempo sugira em vez de revelar o conteúdo e o sentido de seu próprio pensamento A forma do diálogo permite que o escritor oriente a discussão mas impõe ao leitor o ônus de acompanhar a argumentação até o final Cícero também percebeu como Platão antes dele as possibilidades do diálogo como obra de arte uma obra construída de modo a que cada elemento por exemplo o lugar o tempo as ações e feias dos personagens tenha um papel a desempenhar no avan ço da investigação Somente os leitores cuidadosos serão capazes de detectar a relevância desses toques adicionais e por sua vez serão conduzidos a perceber que os ensinamentos salutares que se encontram na superfície e são compreendidos com facilidade até mesmo pelo leitor desatento não são todo o conteúdo dos ensinamentos que são na melhor das hipóteses verdades parciais Por meio do diálogo Cícero busca enfetizar o que é 1 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 Laws II p 39 6 NT Disputas Tusculanas Tusculanae disputationes 1 Tusculan Disputations V 11 8 Paul Friedlander PlatoAn Introduction London Roudedge and Kegan Paul 1958 p 154170 salutar na política enquanto ao mesmo tempo esconde dos olhos de todos exceto dos estudantes mais aplicados aquelas verdades mais abrangentes que podem tornar difícil ou impossível a vida política para a maioria dos homens Procura desta forma cumprir a sua tareíà tanto para com a íilosoíia quanto para com a ordem política A substância dos ensinamentos políticos específicos de Cícero está contida em dois diálogos Da República e Tratado das Leis Cada diálogo pretende registrar uma conversa anterior entre romanos sobre temas políticos Em Da República a conversa que Cícero afirma relatar teria ocorrido durante um feriado romano no ano 129 aC cerca de 70 anos antes de o diálogo ser escrito A conversa tem a duração de três dias e ocorre entre os homens pertencentes ao Círculo de Cipiáo um grupo cujos membros combinavam realizações como estadistas romanos e seu interesse pela filosofia A obra Da República é constituída por seis livros dois dedicados às conversas de cada dia Cícero aparece e portanto fala em seu próprio nome apenas como o autor dos pre fácios anexados aos livros um três e cinco O Tratado das Leis serve como registro de uma conversa muito mais recente com um só dia de duração entre Cícero Quinto seu irmão e Ático um amigo epicurista Acreditase em geral que o Tratado das Leis também contivesse ou deveria conter seis livros mas apenas a parte maior dos três primeiros livros subsistiu tendose perdido o restante do manuscrito O tempo não foi menos cruel com o manuscrito de Da República Com exceção da parte dedicada ao sonho de Cipiáo e várias citações dispersas pelas obras de autores que conheciam o original por exemplo Agostinho o texto de Da República esteve perdido por mais de sete séculos Restavam apenas fragmentos talvez um terço da obra completa quando uma cópia do manuscrito foi descoberta na Biblioteca do Vaticano em 1820 Em vista do caráter fragmentário dos textos tanto de Da República como de Tratado das Leis e em particular do primeiro aspectos relevantes de qual quer relato do pensamento político de Cícero permanecerão provisórios A questão fundamental que Cícero aborda nestas duas obras é aquela que serviu como fio condutor para a filosofia política clássica como um todo Qual é a melhor or dem política Da República o mais filosófico dos dois diálogos dedicase a responder a esta pergunta o Tratado das Leis a esboçar o quadro jurídico e institucional de tal regime A resposta à questão central por óbvio pressupõe algumas ponderações sobre uma série de questões afins embora as reflexões em si possam não estar incluídas nas obras mais populares e consequentemente menos exaustivas Uma das questões relacionadas a do direito do homem à vida é debatida na in trodução do primeiro livro de Da República A pergunta é Qual é a vida superior a ativa ou seja a vida prática ou política a vida do estadista ou a vida contemplativa ou seja a vida filosófica O interesse de Cícero por esta questão não é apenas teórico mas incentivado pela crescente tendência estimulada entre os romanos por alguns filósofos em especial os epicuristas a denegrir a esfera política e se furtar da participa ção em questões políticas Temos de nos libertar argumentara Epicuro da prisão dos negócios e da política A preocupação de Cícero com os destinos da comunidade política ditava que sua introdução para Da República fosse dirigida à meta prática da M a r c o TÚ U O C fcE R o 145 defesa da vida política Com este fim analisa os argumentos comuns a favor da omis são e admitindolhes um grau de verdade sugere que pouco peso pode serlhes atribu ído quando vistos à luz da responsabilidade do indivíduo tanto para com esta cidade e a sua própria natureza e à luz das glórias a serem conquistadas na esfera pública Além disso argumenta é absurdo supor que a virtude possa existir no vácuo a existência da virtude depende inteiramente de seu uso e seu uso mais nobre é o governo do Estado e a realização de feto náo em palavras daquelas coisas com que os filósofos de seus cantos continuamente atordoam nossos ouvidos O homem que ao mesmo tempo descobriu os princípios da virtude e compeliu outros a viver de acordo com eles isto é o estadista deve ser considerado muito su perior mesmo em sabedoria àqueles que talvez especulem sobre tais questões mas se abstenham de qualquer participação direta nos assuntos políticos A posição de Cí cero neste momento parece inequívoca a vida prática é preferível à vida contempla tiva Contudo apesar do fervor com que Cícero expõe esta opinião existem algumas indicações de que não considera o assunto encerrado Seu louvor no prólogo não foi sem reservas a vida do estadista embora digna de louvor e propícia para a íàma não é totalmente feliz nem é escolhida apenas por si mesma Fica logo evidente que a necessidade e um sentimento de dever são o que motivam esta opção O caráter provisório desta primeira opinião é enfatizado pelo fiito de que a ques tão é reaberta de imediato tão logo começa o diálogo em si Solicitado na cena de abertura a dar seu parecer sobre o relato de que um segundo sol tem sido divisado nos céus Cipião o principal personagem do diálogo manifesta sua preferência pelo que denomina a posição socrática em relação a tais assuntos uma posição que evita per guntas especulativas no pressuposto de que são superiores à razão humana ou então sem importância alguma para a vida do homem Em pouco tempo no entanto Cipião é convencido a abandonar essa atitude Reconhece náo só seu próprio interesse em estudos especulativos bem como a relevância imediata talvez mesmo a necessi dade de tais conhecimentos para o homem de ação mas chega a admitir a completa inadequação de sua ênfase anterior em considerações práticas ou mundanas Quem na verdade se poderá julgar mais rico que aquele a quem nada feita do que sua natureza exige ou mais poderoso do que aquele que obtém tudo pelo que se esforça ou mais feliz do que aquele que é liberado de todas as permrbações da mente ou mais segu ro de sua riqueza do que aquele que possui apenas o que como diz o ditado pode levar consigo ao salvarse de um naufrágio Que poder mais ainda que cargo público que reino pode ser preferível ao estado de alguém que despreza todas as possessões humanas consideraas inferiores à sabedoria e jamais medita sobre qualquer assunto que não seja eterno e divino 146 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Reproduzido com permissão dos editores de The Loeb Classical Library Cicero Repuhlic trans C W Keyes Cambridge Mass Harvard University Press 1928 I p 2 10 Ibid I p 15 11 Ibid pl Tanto aqui como ao narrar seu sonho com o qual se encerra a obra Da República Cipião parece deixar poucas dúvidas de sua preferência pela vida filosófica e não pela vida ativa como a vida da excelência humana A vida política indica o sonho é um dever a ser cumprido pelo homem enquanto vive na Terra Poder e glória as recom pensas terrenas que se derramam sobre o estadista as recompensas de que Cícero fãla em termos tão inflamados no prólogo do primeiro livro são vistas como efêmeras e em última análise sem sentido A verdadeira recompensa para os sacrifícios do estadis ta é a recompensa celestial isto é a vida eterna de felicidade e contemplação que lhe é concedida após a morte Mas ainda há outra posição a ser considerada A vida mais desejável sugere Ci pião em outro ponto de Da pública não é nem apenas contemplativa nem apenas ativa mas aquela que representa uma união de experiência na gestão de grandes ne gócios com o estudo e domínio das outras artes ou seja a vida de um estadista cujos horizontes foram ampliados pela filosofia Embora Cícero não deixe de ser ambíguo ao tratar de toda essa questão não há motivo para duvidar de que essa posição inter mediária constitua sua opinião final pois sugerira antes a incompatibilidade potencial entre as duas opçóes A história da Grécia e de Roma fornece alguns exemplos da queles que de fato combinaram as duas com algum grau de sucesso Por que então Cícero introduz esta terceira possibilidade Sua tarefa iniciai é o restabelecimento da primazia da esfera política Esta restau ração é orientada no entanto por uma consciência das limitações da vida política ou ativa Cícero procura transmitir alguma ideia dessas limitações para aqueles entre seus leitores que são filósofos em potencial e assim revelarlhes a supremacia fundamental da vida filosófica Ao mesmo tempo tenta alertálos de que o filósofo apesar dessas limitações deve preocuparse de modo direto ou indireto com o destino da comu nidade política O que é superior do ponto de vista teórico sugere pode ter de ceder algumas vezes ao que é necessário ao que é uma preocupação imediata e urgente para a maioria dos homens Pois na verdade o nosso país náo nos deu berço e educação sem a expectativa de receber de nós em troca algum sustento por assim dizer nem foi apenas para atender à nossa conveniência que nosso país nos concedeu para nosso lazer um refugio seguro e para nossos momentos de repouso um calmo abrigo O filósofo deve estar preparado em certos momentos para abandonar sua pre ocupação com assuntos eternos e divinos e para devotar seus talentos especiais ao serviço da comunidade política A terceira possibilidade é introduzida não apenas para enfatizar essa dupla responsabilidade mas para oferecer um modelo para os muitos cujos talentos ou inclinações não se voltam na direção da vida filosófica mas que no entanto assumirão importantes funções políticas Tais homens fariam bem em procu M a r c o Túuo C í c e r o 147 12 Ibid III p 46 13 Ibid I p 8 rar a vida que mais se assemelha à melhor embora fique necessariamente aquém dela a vida de ação iluminada pela filosofia Somente depois de lançar alguma luz sobre a questão do direito à vida para o homem é que é dada permissão a Laélio um participante que acredita ser o conheci mento teórico impossível ou pelo menos irrelevante para a situação humana para que introduza a questão do melhor regime A discussão subsequente transcorre ao longo de dois ebcos 1 uma tentativa de resolver a questão no discurso isto é investigar a natureza das coisas políticas e portanto a natureza do melhor regime no plano teórico e 2 uma tentativa de ilustrar pela ação usando como exemplo empírico a república romana tal como existira alguns anos antes de seu próprio tempo o que o discurso ou seja a razão vem tentando esclarecer Por vezes a ênfese colocada sobre essa dualidade ensejou a acusação de que a obra de Cícero é pouco mais que uma racionalização de um regime romano anterior Tal entendimento deixa de lado de início sua afirmação explícita de que a investi gação é dirigida à descoberta de princípios políticos de validade universal princípios destinados a promover um inabalável alicerce para os Estados o fortalecimento das cidades e a cura dos males dos povos Elaboramos leis não para o povo roma no em particular afirma em Tratado das Leis mas para todas as nações virtuosas e estáveis A presença ou ausência de um exemplo empírico não afeta a possibilidade de tal investigação Quanto a usar nosso próprio Estado como padtáo fiz assim náo como auxílio para de finir a melhor constituição o que poderia ser feito sem o uso de qualquer padrão mas para demonstrar por meio de exemplos da história real do maior de todos os Estados aquilo que a razão e o discurso se esforçavam para explicitar Aqueles que acusam Cícero de buscar apenas restaurar a constituição republicana de uma era anterior também ignoram a siestão implícita tanto em Da República como no Tratado das Leis de que mesmo quando estava em seu auge a república romana o modelo ficou aquém do ideal revelado no discurso O código de leis de lineado por Cícero no Tratado das Leis o código do melhor Estado revelado no dis curso não é idêntico ao da república romana em qualquer época da sua história Os participantes do Tratado das Leis enfatiza Quinto não estão apenas ensaiando as leis atuais de Roma mas restaurando antigas leis que se perderam ou criando novas Os desvios específicos daquilo que ocorreu na história são os ditados pela razão o modelo supremo para a lei e a justiça A mescla de antigo e novo que daí resulta representa sua tentativa de fàzer uma ponte entre a tendência popular ou préfilosófica de identificar o bom com o antigo isto é o ancestral ou tradicional e a identificação filosófica do 1 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Laws I p 37 15 Laws II p 05 16 Republic II p 66 17 Law sllçò7 bem com o natural ou seja o que é ditado pela razão Ao aplicar a razão sobre o có digo existente em vez de começar de novo Cícero visa preservar um sentido essencial de continuidade com o passado e portanto o sentido de respeito pelo tradicional que via de regra existe na comunidade política Há é claro determinadas razões práticas para o uso de um modelo empírico À investigação de Cícero que é grega tanto em método quanto em conclusões devia ser dado um caráter romano se pretendia ser agradável ao paladar romano Assim sua tarefa fica simplificada e sua demonstração mais convincente se ao invés da sombria comunidade política imaginária com a qual se diz que Platão lidou pode ilustrar a sua compreensão da natureza das coisas políticas com um exemplo concreto e não apenas qualquer exemplo mas o exemplo romano A investigação propriamente dita começa com a enunciação por Cipião das características essenciais de uma comunidade política A comunidade política é assunto do povo Mas um povo não é uma coleção de seres humanos reunidos ao acaso mas um conjunto de grande número de pessoas que estão de acordo no que diz respeito à justiça e a uma parceria para o bem comum Esta associação deixa de ser uma comunidade política quando deixa de ser guia da pelos fins a justiça e o bem comum para os quais existe Cipião afirma que a comunidade política é natural na medida em que é essencial para a concretização de uma vida feliz e virtuosa A comunidade política emerge não como alguns filósofos sugerem por causa de qualquer debilidade da natureza humana mas por causa de um certo espírito social que a natureza implantou no homem Assim não deve o homem atribuirse como virtude sua sociabilidade que é nele intuitiva O homem não é uma criatura solitária ou isolada mas é impulsionado por sua própria natureza a procurar a companhia de seus camaradas O governo da comunidade política não é menos natural pois sem tal organização a existência é impossível para uma família uma cidade uma comunidade política toda a raça humana a natureza e o próprio universo Quando devidamente constituído tal governo será um reflexo do princí pio hierárquico coextensivo com toda a natureza o ser inferior subordinado em cada caso àquele que lhe é superior O caráter da comunidade política é fundamentalmente determinado pelo re gime em relação aos magistrados ou seja pela forma de governo As três formas simples são a monarquia a aristocracia e a democracia A primeira delas o governo de um é caracterizada pela afeição o título de rei é como o de pai para nós a segunda M a r c o T ú l io C íc e r o 1 4 9 18 Republiclp52 19 Ibid I p 39 20 Ibid 21 Laws III p 3 22 Ibid III p 5 23 Republic I p 54 o governo dos melhores pela deliberação ou pela sabedoria a terceira o governo de todos pela liberdade Embora a monarquia seja julgada como a melhor e a democracia a pior das formas simples cada uma das três pode oferecer um governo honrado e até mesmo estável enquanto a injustiça e a ganância não destruírem o vínculo original da associação Infelizmente cada uma das formas mais simples contém dentro de si não só alguns defeitos mas até mesmo ás sementes da sua própria destruição Nas monarquias os súditos têm uma panidpaçáo muito pequena na administração da justiça e na deliberação nas aristocracias as massas dificilmente podem ter sua parcela de liberdade uma vez que são completamente excluídas das deliberações para o bem co mum e do poder e quando todo o poder está nas mãos do povo muito embora o exerça com justiça e moderação todavia a igualdade que daí resulta é injusta em si uma vez que não permite distinções em hierarquia Diante de cada um se dispõe sua contrapartida deturpada a tirania a oligarquia o governo da multidão desorganizada e a história serve como registro da tendência inevitável de cada um deles degenerar transformandose em seu oposto e este por sua vez ser substituído em algum momento futuro por ainda uma outra forma Assim o poder legislativo do Estado como uma bola é arrancado dos reis pelos tiranos dos tiranos pelos aristocratas ou pelo povo e deste novamente por uma facção oligárqui ca ou um tirano de modo que nenhuma forma de governo singular jamais se mantém por muito tempo Embora seja duvidoso que nem mesmo o estadista iluminado possa interrom per este movimento natural e curso circular de forma permanente é possível que consiga ao menos atrasar esse movimento Tal possibilidade reside na criação de um regime moderado e equilibrado um regime que incorpore uma mistura judiciosa das instituições e dos princípios de cada um dos regimes simples e apresente por sua vez um equilíbrio de direitos deveres e funções O pensamento de Cícero a respeito desta questão fora previsto por vários autores anteriores inclusive Platão e Aristóteles mas seu guia mais próximo na questão do regime misto foi o historiador grego Políbio 205123 aC Este buscando uma explicação para a expansão extremamente rápida quase sem precedentes do poder romano sugeriu que a explicação estava no caráter misto da constituição romana uma mistura tão bemsucedida que seria impossível até mesmo para um nativo determinar com certeza se o sistema como um todo era aristocrático democrático ou monárquico 1 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 24 Ibid I p 43 25 Ibid I p 68 26 Ibid I p 69 II p 5769 27 Polybius The Histories trans W R Paton Loeb Classical Libraiy Cambrice Mass Harvard University Press 1927 VI IIII Pois se fixássemos os olhos sobre o poder dos cônsules a constituição pareceria total mente monárquica e real se sobre o do Senado pareceria novamente ser aristocrática e quando voltássemos os olhos para o poder das massas pareceria nitidamente ser uma democracia A constituição mista tornou possível evitar os defeitos inerentes a cada uma das formas simples Impedia uma concentração excessiva de poder e fornecia um sistema de freios e contrapesos Dentro desse quadro sugeriu Cícero os magistrados têm poder suficiente os conselhos de cidadãos eminentes bastante influência e o povo liberdade suficiente Se analisado com cuidado no entanto o regime misto revela ser em seus aspec tos mais importantes uma aristocracia A organização é planejada de modo a garantir que a aristocracia e portanto o elemento de sabedoria ou deliberação assuma o papel decisório Embora certo poder deva ser atribuído ao povo esperase que a verdadeira autoridade permaneça com o Senado pois a liberdade deve ser concedida de tal ma neira que as pessoas sejam induzidas por muitos dispositivos excelentes a cederem diante da autoridade dos nobres O sucesso desta constituição equilibrada e har moniosa repousa em grande medida sobre a existência de uma aristocracia que possua as qualidades particulares descritas por Cícero no Tratado das Leis A aristocracia suge re ali deve ser livre de desonra e um modelo para os demais cidadãos O exemplo oferecido por esta ordem é decisivo para a saúde total da comunidade política Pois não é tão pernicioso que os homens de elevada posição íãçam o mal embora isso seja ruim suficiente por si só tal como terem tais homens tantos imitadores Pois se voltarmos nossos pensamentos para os primórdios de nossa história veremos que o ca ráter de nossos homens mais proeminentes se reproduziu em todo o Estado qualquer mudança que ocorreu na vida dos homens proeminentes também ocorreu na de todo o povo Se for permitido que degenere a qualidade da aristocracia será extremamente im provável que o regime sobreviva por longo tempo Decerto se revelará incapaz dada tal deterioração de alcançar o fim para o qual existe o cultivo da virtude dos cidadãos Esta exposição dos princípios teóricos subjacentes ao regime misto é seguida pelo relato de Cipião sobre o desenvolvimento e composição interna da república romana antiga o exemplo prático que prometera antes Fica armado o palco para este tratamento histórico por meio da referência feita por Cipião no início do debate a uma declaração feita uma vez por Catão Este último notável estadista romano de M a r c o Túuo Q c e r o 1 51 28 Ib id Y lp n n 29 RepubUc II p 5758 30 Lam II p 30 III p 2425 2838 31 Ibid III p 25 32 Ibid m p 30 33 Ibidm pò uma era anterior atribuíra a superioridade da república ao fato de ser esta baseada no gênio nâo de um homem mas de muitos fundada náo em uma geração mas em um período longo de vários séculos e muitas eras humanas Repousava na sabedoria e experiência coletivas de muitas gerações de homens Suas instituições e práticas de monstraram seu valor passando pela mais rigorosa prova prática o teste do tempo De imediato a tese de Catão remete àquela proposta em data muito posterior pelo estadista inglês Edmund Burke A superioridade da Constituição Britânica a l i mentaria Burke reside no fato de não ser o produto de preparação ou planejamento consciente Nâo se formou a partir de um plano regular ou com qualquer unidade de projeto mas se desenvolveu durante um grande período de tempo e por uma grande variedade de acidentes as partes gradualmente quase imperceptivelmente acomodaramse umas às outras Sua perfeição representa o culminar de um processo natural um processo de crescimento lento contínuo e quase inconsciente A interpretação de Burke representa um afestamento radical da posição dos pen sadores clássicos Esses últimos tomavam como certo que o melhor regime seria o pro duto da razão e do planejamento consciente Há evidências de que o próprio Cícero esteja mais próximo dos clássicos do que de Burke neste assunto A diferença básica entre Cícero e os pensadores gregos anteriores não parece brotar de uma discordância em relação ao princípio a superioridade do planejamento sobre o acaso mas de uma discordância em relação à questão de saber se é mais provável que o melhor plano resulte dos esforços de um único homem sábio ou de uma série de homens sábios Cícero não se limitou a rejeitar a possibilidade de que o melhor Estado poderia ser o produto da sabedoria de um único fundador Concorda com Políbio quanto às reali zações de Licurgo legislador espartano e é neste tom que conclui seu relato sobre as contribuições de Rômulo para o desenvolvimento da ordem romana madura Não percebeis pois que pela sabedoria de um só homem um novo povo não foi sim plesmente trazido à vida e depois desamparado como um bebê chorando no berço mas foi abandonado já adulto e quase na maturidade da idade adulta Mas são raros os homens de tão eminente sabedoria É mais sensato fazer planos tomando por base o que é mais provável É mais provável que haja uma série de ho mens de relativa capacidade podendose esperar que cada um deles aplique algumas das lições da experiência na tarefe de aprimorar o regime passo a passo O relato histórico em si merece exame cuidadoso pois não parece isento de ironia A história asseguranos Cícero em Tratado das Leis distinguese da poesia por suas referências à verdade em vez de à fantasia Há várias sugestões em todo o Da Re pública de que o relato de Cipião sobre as origens romanas fique aquém desse padrão 1 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 34 Republic II p 2 35 The Works o f Edmund Burke London Bohns Standard Dbrary II p 554 V p 25354 36 Ibid II p 307308 37 Republic II p 21 Somos agraciados em determinado ponto com a narrativa da deificação de Rômulo e somos assegurados de que a narrativa deve ser verdadeira porque foi aceita como tal pelos homens do tempo de Rômulo uma época somos informados de cultura e conhecimento quando os homens eram rápidos no escarnecer e rejeitavam com des prezo aquilo que jamais poderia ter acontecido Em apoio a esta última afirmação Cícero apresenta alguns exemplos dos píncaros intelectuais atingidos pelos homens desta era de cultura e conhecimento Contudo os exemplos referemse apenas ao estado dos conhecimentos na Grécia não são oferecidos exemplos que permitam ao leitor avaliar a presença ou ausência de uma cultura similar em Roma Somos obri gados a tirar nossas próprias conclusões Mais adiante como se para orientar nosso julgamento Cipião referese a esses antepassados supostamente cultos e sábios como simples camponeses e somos informados de que longe de serem céticos acerca de tais lendas estavam dispostos a aceitar a de Rômulo apoiados na autoridade de um cam ponês sem instrução Além disso quando o assunto é abordado por motivo diverso em Tratado das Leis Cícero não hesita em rotular a narrativa como uma fiibula A apresentação de Cipião não pretende ser uma simples narrativa mas almeja proporcionar uma imagem idealizada do passado romano uma mistura judiciosa de fiito e fimtasia Teve como intuito demonstrar aos cidadãos a sabedoria e a justiça das origens romanas para mostrarlhes as bases firmes sobre as quais repousa este exemplo romano do melhor regime A apresentação é em sua essência um exemplo proposital da nobre mentira platônica Embora esteja necessariamente aquém da verdade filo sófica um relato tão salutar da fundação da comunidade política pode ser essencial para a coesão e a própria existência da sociedade política A tarefa do estadista como Cícero gostaria que a compreendêssemos repousa não na completa destruição desses mitos tradicionais embora não filosóficos mas em colocar a verdade parcial que po dem conter a serviço das políticas que a razão lhe informa que favorecem o bem da comunidade política O relato histórico de Cipião também serve para sugerir o sentido provisório em que o regime misto é realmente o melhor regime Seu relato indica que o declínio romano começou de fato com a transformação da monarquia em tirania O regime misto só foi introduzido algum tempo após principiar esse declínio Para Cícero bem como para o pensamento clássico em geral o melhor regime sem restrições é aquele em que a sabedoria tem o direito absoluto de governar o govemo absoluto dos sábios a verdadeira aristocracia e afinal o governo absoluto de um só homem preeminente em sabedoria e virmde a verdadeira monarquia é a forma mais desejável de governo O governo da e pela sabedoria foi possível sob os reis romanos mais antigos mas só foi verdadeiro enquanto a monarquia preservou seu caráter distintivo Seu caráter por sua vez depende da existência de uma sucessão de reis bons e sábios e assim do acaso em vez do planejamento Em vista disso a monarquia na prática demonstra ser o menos estável dos regimes simples aquele que primeiro e mais certamente entrará M a r c o T ú u o C í c e r o 153 38 Ibid II p 19 em decadência e essa forma de governo é a mais exposta a mudanças e transtornos porque os vícios de um só podem bastar para precipitála num funesto abismo e de feto bastariam como enfetiza Cícero apenas os excessos de um único rei Tarquínio para tornar o próprio tímlo de rei odioso para o povo romano O relato de Cipião indica que a constituição excelente estabelecida por Rô mulo e mantida pelos romanos por mais de 200 anos entrou em decadência com essa transformação da monarquia em tirania A história romana subsequente é traçada em termos de uma série de tentativas mais ou menos bemsucedidas de controlar as forças desencadeadas por essa transformação O regime misto aparece como uma das tentati vas feitas para satisfezer a sede popular de liberdade ao mesmo tempo que reconquista um espaço para a sabedoria e a virtude características da realeza Cícero advertenos em Tratado das Leis que a tarefe do estadista é determinar não apenas o que é me lhor mas também o que é necessário Uma prova de sua habilidade política é a medida em que compreende os ditames da necessidade e tem sucesso em funcionar dentro da gama de possibilidades que a necessidade lhe permite Onde é impossível o governo absoluto dos sábios o regime misto permite que estadistas tentem garantir o consentimento popular para o governo da sabedoria e portanto aproximemse da quele melhor que é concebível para a maioria das sociedades O regime misto incorpo ra os atributos daquilo que hoje denominamos Estado de Direito Busca incorporar os preceitos do fundador sábio às leis fundamentais do Estado e em seguida garantir que a subsequente administração ou finalização dessas leis será posta nas mãos daque les que menos provavelmente se desviarão delas e mais provavelmente as executarão de acordo com o espírito que as permeia Em Tratado das Leis Cícero esboça em detalhes os elementos essenciais desse código básico e os atributos da classe governante A força particular de tal regime está em sua relativa estabilidade todavia na me dida em que visa construir uma ponte sobre o abismo entre a sabedoria e a aprovação popular repousa sobre uma base precária Esse regime nem sempre é fecil de alcançar e uma vez alcançado é difícil de manter por muito tempo Mesmo esta sqnda op ção esta tentativa de chegar perto dos que são simplesmente melhores pode não ser possível para todos os povos ou em todos os momentos A partir desta análise do melhor regime a discussão se desloca para um exame da afirmação de que é a injustiça e não a justiça que necessariamente subjaz à condução bemsucedida dos assuntos de qualquer Estado Embora negue crer nesses argumen tos Filão outro Cético Acadêmico consente em apresentar a tese em fevor da injus tiça tal como fora apresentada por Caméades 214129 aC um Acadêmico Cético anterior Sua exposição parte de duas premissas principais 1 a justiça é convencional e não natural 2 a justiça é tolice 154 H i s t ó r i a d a F iijO s o fia P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 39 Ibid I p 65 40 Ibid II p 52 41 Laws III p 26 Se a justiça fosse natural sugere no início de seu argumento então tal como a percepção do homem do que é quente ou frio seria igual para todos os homens sempre e em toda parte Na verdade a concepção do homem do que a justiça implica não só varia de nação para nação mas até mesmo de uma época para outra dentro de uma única cidade A justiça não é natural mas sim o produto da sociedade humana e mais especificamente o produto desta ou daquela sociedade humana Não repousa sobre a natureza mas na utilidade não é desejada por si própria mas apenas com base na ponderação Não tem nenhuma estabilidade seu conteúdo depende apenas das circunstâncias Nasce em grande medida do medo do homem de que sem esses mecanismos ele em sua fraqueza seria sempre exposto às depredações de outros especialmente daqueles mais fortes do que ele A segunda e mais fundamental vertente do argumento apresentado por Filão começa com a aceitação provisória da premissa negada anteriormente existe de feto um entendimento comum entre os homens acerca dos ditames básicos da justiça Observálos fielmente porém é contrário à natureza humana pois é raro serem os ditames da justiça idênticos aos da sabedoria e do interesse próprio A sabedoria nos instiga a aumentar os nossos recursos a multiplicar nossa riqueza am pliar nossos limites a governar sobre tantos súditos quanto possível a desfhitar praze res a enriquecermos a sermos governantes e mestres a justiça por outro lado nos ensina a poupar todos os homens a considerar os interesses de toda a raça humana a dar a cada um o que lhes é devido e náo tocar em propriedades siradas ou públicas ou naquilo que pertence a outros Se isso for verdade a justiça não pode ser simplesmente natural pois não se pode esperar de modo racional que o homem ou a comunidade política escolham um curso de ação que apesar de justo seja ao mesmo tempo o cúmulo da tolice Se Roma decla ra Filão tivesse cumprido as exigências estritas da justiça em cada caso não seria agora um império mas ainda uma aldeia miserável A sabedoria aconselha que é a aparência em vez da substância da justiça que deve ser procurada pois assim tornase possível beneficiarse das vantagens decorrentes de uma reputação de justiça evitando as desgra ças que podem acompanhar um cumprimento demasiado rigoroso de suas exigências A defesa da justiça foi confiada a Laélio o mais velho e mais conservador do grupo Infelizmente só restam fragmentos do pronunciamento de Laélio O mais im portante deles é aquele no qual descreve sua concepção ou seja a concepção estoica da lei natural A verdadeira lei é a razão correta de acordo com a natureza é de aplicação universal imutável e eterna chama ao dever por seus comandos e afesta o delito por suas proibi ções E não impõe em vão seus comandos ou proibições sobre os homens bons embora náo tenha qualquer efeito sobre os ímpios É um pecado tentar alterar esta lei nem é ad missível a tentativa de revogar qualquer parte dela e é impossível abolila integralmente M a r c o T ú u o C íc e r o 1 5 5 42 Republic III p 24 Náo podemos ser libertos de suas obrigações pelo senado ou pelo povo e não precisamos procurar além de nós mesmos por um comentador ou intérprete dela E náo haverá leis diferentes em Roma e em Atenas ou leis diferentes agora e no futuro mas uma lei eterna e imutável será válida para todas as nações e em todos os tempos e haverá um mestre e governante isto é Deus sobre todos nós pois Ele é o autor dessa lei o seu propdor e seu juiz executor Embora essa lei náo seja aplicável ou estritamente exeqüível por qualquer agente humano seus comandos nâo podem ser impunemente ignorados O indivíduo que se desvia deles nega o que há de melhor na sua própria namreza e sofre por sua vez o tormento mental que decorre do autodesprezo e da consciência Tal falha por parte da comunidade política sugere Laélio acabará por resultar em sua ruína À afirmativa de Filão de que os caminhos da justiça e da sabedoria necessariamente divergem Laélio contrapõe a afirmação de que fazer o que é justo será sempre a linha de ação mais sábia e mais compensadora Embora em geral se acredite que a posição defendida por Laélio seja também a de Cícero não há razão para crer que este julgue tanto o moralismo estrito de Laélio quanto aquilo que somos tentados a denominar o maquiavelismo de Filão como fun damentalmente inadequados Apesar de ser muito melhor na prática que o Estado procure ser guiado por rigorosas demandas de justiça e não pela concepção de que tais padrões são arbitrários e sem sentido pode ser impossível até para o melhor dos Estados fazer mais do que se assemelhar aos padrões de perfeita justiça Esta é uma das lições que Cipião buscou ensinar ao oferecer um relato do passado romano no segundo livro de Da República Até mesmo o passado deste regime o regime que Ci pião apresenta como o melhor não era livre de injustiças até mesmo os romanos os mais justos dos homens de acordo com Filão não se furtaram a cometer pilhiens e assassinatos A conclusão de Cícero é basicamente a mesma de Platão é provável que o regime perfeitamente justo esteja fora do alcance das possibilidades humanas Suas exigências são demasiado rigorosas O estadista sábio embora procure ser guiado por tais normas em sua prática começará com o entendimento de que é pouco provável dada a namreza do homem e da comunidade política que possam ou venham a ser totalmente atendidas em qualquer Estado Esta concepção de limitações intrínsecas à vida política percorre grande parte do pensamento de Cícero É mais perceptível em particular nas seções de Tratado das Leis em que explora desta vez em seu próprio nome a questão da justiça e a questão do status e do caráter da lei natural A investigação em Tratado das Leis é estimulada pelo desejo de preparar um código adequado para o regime misto o regime do qual falara em Da República A elaboração da legislação positiva que constituirá tal código pressupõe contudo uma investigação muito mais completa essencialmente filosófica de uma série de outras questões 1 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 43 Ibid III p 33 Porque temos de explicar a natureza da Justiça a qual deve ser procurada na natureza do homem também devemos levar em consideração as leis pelas quais tais Estados devem ser governados então temos de lidar com os atos normativos e decretos de nações que já foram formulados e lastrados por escrito e entre todos estes o direito civil como o chamamos do povo romano não deixará de encontrar um liar O primeiro livro de Tratado das Leis é dedicado a essa investigação que produz pratica mente o mesmo entendimento estoico do homem e do universo que subjaz à posição de Laélio em Da República O homem a criatura natural que possui uma alma racional e partilha a feculdade divina da razão com os deuses existe em um universo racional e ordenado Em virtude desta possessão única a razão é capaz de discernir e adaptarse à ordem racional abrangente Na medida em que conseguir isso enquanto a razão lhe servir de guia e governo o homem realiza a sua natureza no mais alto grau e compartilha tanto a lei como a justiça com os deuses Uma vez que a razão é uma possessão comum a todos os homens esta vida mais elevada a vida de acordo com a natureza é acessível pelo menos em teoria a todos os homens não há nenhum ser humano de qualquer raça que se encontrar um guia não poderá atingir a virtude Os ensinamentos de Cícero em Tratado das Leis portanto parecem estar em harmonia com a posição estoica desenvolvida por Laélio em Da República Permanece uma questão em aberto porém se isso ocorre de fato Os comentários de Cícero sobre a lei natural por exemplo são precedidos em Tratado das Leis pela afirmação de que este não está seguro da sua veracidade embora lhe pareçam normal e geralmente corretas Em outro momento Cícero pede aos membros da sua própria escola os Céticos Acadêmicos que não examinem seu argumento muito de perto pois se ataca rem o que pensamos ter construído tão bem devastáloiam por demais Cícero tem bons motivos pata sua preocupação pois os ensinamentos fundamentalmente estoicos que postula como seus em Tratado das Leis repousam em parte em uma compreensão da providência divina e em uma teleologia antropocêntrica que ele próprio analisara e rejeitara em duas outras obras Da natureza dos deuses e Sobre a adivinhação É razoável sierir que essa aparente incoerência tem raízes no feto de que os ensinamentos em Tratado das Leis dirigemse não aos filósofos mas primordialmente a todos os homens decentes e honrados A tarefe imediata é uma questão prática pro mover um inabalável alicerce para os Estados o fortalecimento das cidades e a cura dos males dos povos M a r c o T ú u o C íc e r o 1 5 7 44 Laws I p 17 45 Para detalhes acerca dos ensinamentos estoicos ver E Vemon Arnold Roman Stoicism Cambrid ge Cambridge University Press 1911 46 Im w s I p 30 47 Ibid I p 19 48 Ibid I p 39 49 NT Da natureza dos deuses De Natura Deorum Sobre a adivinhação De Divinatione 50 Ibid I p 37 Por esse motivo desejo ter especial cuidado para não estabelecer princípios fundamentais que não tenham sido analisados com sabedoria e investigados em profundidade É claro que não posso ter esperança de que sejam universalmente aceitos pois tal é impossível mas procuro a aprovação de todos os que creem que tudo o que é correto e honrado deve ser almejado por si mesmo e que nada se estima como um bem a menos que seja louvável em si mesmo ou pelo menos que nada deve ser concebido como um grande bem se não puder ser devidamente elogiado por si mesmo Os argumentos oferecidos em apoio a esses princípios e em grande medida os próprios princípios sáo selecionados tendo em vista o apelo que teriam para tais homens não apenas ou primordialmente com vistas à certeza teórica Se temos em mente as finalidades de Cícero então passa a ser possível compreender a aceitação sem reservas por parte de Ático em Tratado das Leis dos ensinamentos sobre a teologia e a primazia da religião no Estado É perfeita a correção de Ático na qualidade de ci dadão romano ao consentir com esses ensinamentos politicamente salutares embora como filósofo epicurista não pudesse admitir sua solidez teórica Ático e Cícero com partilham sua visão da importância de tais ensinamentos para um inabalável alicerce para os Estados Os princípios estoicos muito embora insuficientes no plano teórico são de magistral adequação para que se concretize este importante objetivo Um outro indício da posição de Cícero e das graves restrições com que adota a dos estoicos refletese no modo como trata a lei natural Laélio ao defender a tese em favor da justiça não teve dificuldade em conciliar as práticas do passado romano com as rigorosas exigências de justiça incorporadas na lei natural além disso não duvidava de que os preceitos da lei natural fossem plenamente acessíveis a todos O relato histó rico de Cipião deixa poucas dúvidas de que Cícero não partilhava desta visão otimista do passado romano nem como fora sugerido antes aceitava a premissa essencial de tal visão ou seja que as rigorosas exigências da justiça admitem perfeita compatibili dade com as da sociedade civil Enfim não tinha total certeza de que todos sejam de modo igual aptos a atingir uma compreensão total da lei natural e do mesmo modo aptos a serem por ela guiados Embora todos os homens possam em princípio adqui rir a sabedoria e a virtude necessárias para a vida de excelência humana a vida segundo a natureza a vida guiada pela razão plenamente desenvolvida poucos de feto o fazem Poucos encontram o guia de quem Cícero falara antes a maioria sucumbe com facili dade aos maus hábitos e falsas crenças às atrações do prazer e do vício Se assim for então é muito possível que as demandas totais da lei natural sejam incompatíveis com as necessidades e reivindicações da sociedade humana tal como a conhecemos Em Da República por exemplo Cícero sugere que a lei dos sábios ou seja as leis naturais absolutas atribuiriam direitos de propriedade apenas com base na habilidade de usar bem a propriedade Seria impossível implementar tal princípio na sociedade civil tal 51 Ibid 52 A II p 1569 53 Ibid I p 2934 47 54 Republic I p 27 1 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y como ã conhecemos A lição é clara a lei natural absoluta e pura pode não ser aplicável à situação humana normal A lei natural à qual as atividades dos homens e dos Estados em geral se submetem deve ser uma versão diluída desta lei verdadeira uma versão cujos padrões serão necessariamente inferiores Visão semelhante está presente na discussão de Cícero sobre as regras de conduta ou ação pessoal em De Officiis Logo fica claro que o padrão discutido ali é aquele que deve reger a conduta dos não sábios e não do homem sábio Embora adequado para guiar a vida da maioria dos homens é inferior àquele padrão mais elevado o padrão da própria natureza que orienta as ações do homem sábio A definição de lei natural proposta por Cícero em vários pontos de Tratado das Leis também possui este caráter duplo No segundo livro por exemplo fala da lei natural no seguinte tom Observo que é a opinião dos homens mais sábios que as leis não são um produto do pensamento humano nem um decreto dos povos mas algo eterno que governa todo o universo por sua sabedoria em comandar e proibir Assim estão acostumados a dizer que as leis são a mente primordial e última de Deus cuja razão dirige todas as coisas quer por compulsão quer por contenção Por conseguinte as leis que os deuses outorgaram à raça humana foram elogiadas com justiça pois são a razão e a mente de um Itlador sábio aplicadas ao comando e à contenção A lei eterna que rege o universo e existe na mente primordial e última de Deus a lei a que tanto Cícero como Laélio se referiram noutro local como a maior razão inerente à natureza não é simples ou necessariamente idêntica à segunda e inferior forma das leis a razão e a mente de um legislador sábio aplicadas ao comando e à con tenção A última deriva da anterior e nela se baseia mas reflete uma compreensão das normas inferiores que são uma parte necessária da vida política A natureza essencial da comunidade política muitas vezes derrota a razão O legislador e estadista sábio irá assim temperar as exigências da justiça pura e da razão pura como fãz Cícero na composição do código adequado ao seu melhor Estado em Tratado das Leis para que se tornem compatíveis com as exigências da sociedade civil Observese naturalmente que esse entendimento não obriga Cícero a abraçar a posição defendida por Filão que a justiça porquanto suas demandas específicas e substanciais não são sempre e em toda parte as mesmas é arbitrária em seus fundamentos que não é natural mas convencio nal A substância da justiça humana apesar de preocupada com o particular e com o dependente de uma variedade de circunstâncias aleatórias não é para Cícero apenas arbitrária Os padrões permanecem embora sua completa realização dada a natureza do homem e a natureza da sociedade política seja extremamente improvável Conti M a r c o T ú u o C íc e r o 1 5 9 55 NT Dos Deveres De Officiis 56 De Officiis I p 78 III p 1117 57 Laws II p 8 58 Republic III p 33 Laws I p 18 59 RepublU II p 57 nuam a servir como guias para a ação humana e devemos sempre procurar chegar o mais próximo possível delas O Tratado das Leis esclarece a questão do status da vida ativa ou política com que se iniciou a investigação em Da República A investigação de Cícero nesses dois livros é voltada para a compreensão da natureza das coisas políticas Procurou como Pla tão antes dele realizar esta investigação mais ampla pela apresentação da natureza da melhor ordem política Um produto da investigação é a compreensão das limitações intrínsecas à vida política Tanto a razão como a justiça devem de algum modo ser diluídas para atender às necessidades da vida prática ou política Aqueles que estão em posição de optar por um dos dois modos de vida a ativa e a contemplativa devem estar cientes deste fato 1 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y L eitu ra s A Cícero Livros I VI Cícero Tratado das Leis De Legibus Livro I B Cícero Da República De republica Cícero Tratado das Leis De Legibus Cícero Dos Deveres e Officiis Livros I III St A gostinho 354430 Santo Tostinho é o primeiro autor a lidar de forma mais ou menos abrangente com o tema da sociedade civil à luz da nova conjuntura gerada pelo surgimento da re ligião revelada e seu embate com a íilosoíia no mundo grecoromano Qmo romano Agostinho herdou e reformulou para sua época a íilosoíia política inaugurada por Platão e adaptada ao mundo latino por Cícero e como cristão modificou essa filosofia para adequála às exigências da fé Desta forma revelase se não como o criador pelo menos como o mais importante expoente na Antiguidade de uma nova tradição de pensamento político caracterizada por sua tentativa de unificar ou conciliar elementos derivados de duas fontes independentes em sua origem e até então desvinculados a Bíblia e a filosofia dássíca Agostinho escreve em primeiro lugar como teólogo não como filósofo É raro que se refira a si mesmo como filósofo e nunca empreendeu uma abordagem metódica dos fenômenos políticos à luz somente da razão e da experiência Seus princípios mais elevados sáo extraídos não da razão mas da Sagrada Escritura cuja autoridade jamais questiona e que considera como a fonte definitiva da verdade a respeito do homem em geral e do homem político em particular No entanto na medida em que a escolha de sua posição reside em uma análise prévia da alternativa mais relevante essa postura pressupõe uma compreensão da filosofia política ou das coisas políticas tal como se revelam para a razão humana desassistida Quase desde o inicio na investigação de tais questões filosóficas os cristãos ha viam desíhitado de um maior grau de liberdade que seus equivalentes judeus ou mais tarde muçulmanos pois ao contrário tanto do judaísmo quanto do islã as outras duas grandes religiões do mundo ocidental o cristianismo não rejeita a filosofia como algo estranho ou apenas a tolera mas procurou desde cedo angariar seu apoio abrin do espaço para a filosofia dentro dos muros da cristandade onde aquela continuou a prosperar com diferentes graus de aprovação e supervisão eclesiásticas Assim Agos tinho reconhece no homem uma capacidade de conhecimento que precede a fé Esse conhecimento obtido sem o auxílio da revelação divina é a invenção e o reduto cor reto dos filósofos p o s Desde então tal conhecimento foi substituído pela fé como norma suprema e guia da vida a qual no entanto não o anulou ou tornou supérfluo Mesmo após a manifestação final da verdade divina na época do Novo Testamento Deus o autor da Revelação Apocalipse não só não proíbe mas categoricamente impõe o uso da razão para adquirir o conhecimento humano Seria tolice pensar que Deus odeia em nós a própria qualidade com a qual nos elevou acima dos animais O conhecimento obtido dessa forma permanece insuficiente mas é válido em si mesmo e é em última análise determinado por Deus como um auxílio para a fé ostinho comparao aos objetos de ouro e prata sorrateiramente apreendidos e reivindicados como posse legítima pelos israelitas no momento de sua saída do Egito De modo mais específico a filosofia serve à fé tanto em si como na sua relação com os incrédulos A fé complementa a revelação divina por fornecer conhecimento e orientação em áreas nas quais a Revelação Apocalipse se cala ou é incompleta Mesmo em assuntos sobre os quais a Revelação Apocalipse realmente fala a filosofia pode ser utilizada como ferramenta para obter uma compreensão maior da verdade divinamente inspirada assim como o conhecimento humano necessariamente imper feito aponta para a fé como sua concretização assim também a fé busca uma compre ensão mais perfeita de seus próprios princípios por meio do uso da razão Além disso embora o Novo Testamento se preocupe primordialmente com o destino eterno do homem tem muito a dizer sobre a condição de governantes e súditos e em geral sobre o modo como se pede que os homens vivam na cidade pois é por suas ações nesta vida que o homem se torna digno da bemaventurança da vida eterna Uma vez que as esferas do espiritual e do temporal constantemente se cruzam e se chocam uma com a outra tornase necessário correlacionálas e qualquer tentativa de fezêlo pressupõe um conhecimento não só da Revelação Apocalipse mas também da filosofia Afinal uma vez que lida com verdades que sáo em princípio acessíveis a todos os homens a filosofia proporciona um denominador comum que engloba fiéis e infiéis Somente por meio da filosofia é o cristão capaz de tornar a sua posição inteligível para os de fora e se necessário combater com suas próprias armas as objeções que levantam contra ela Assim todas essas objeções são feitas para atender a uma finalidade útil na medida em que incentivam um maior esforço em nome da fé e ajudam a afestar a complacên cia engendrada pela posse tranqüila de uma verdade revelada por Deus Não é de admirar portanto descobrir que apesar de seu declarado caráter teoló gico a obra de Agostinho inclui inúmeras considerações de estrita natureza filosófica Ao se retirar essas considerações de seu contexto natural seria possível reconstruir e explanar de modo metódico aquilo que poderia ser adequadamente considerado como a filosofia política de Agostinho No entanto uma vez que o próprio Agostinho ao contrário de Aquino não encara a filosofia como uma disciplina fechada e em seu próprio domínio independente ou uma vez que não lida de fato com a filosofia e 162 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a s L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Epist 120 p 1 3 cf Sermo 433 p 4 2 DeDoctr Christ II p 6061 cf DeDiv Quaest 83 Qu 532 ConfissóesVU p 9 15 3 Sobre 0 LivreArbítrio I p 2 4 I p 3 6 II p 2 6 Sermo 437 p 9 4 Cf Epist 120 p 1 4 De Gen adLitt I p 41 a teologia cxmo ciências separadas parece preferível respeitar a unidade de seu pen samento e apresentar suas opiniões sobre questões políticas como um todo único e coerente governado por princípios teológicos Agostinho é pelo menos tendo como base os textos existentes o escritor mais co pioso do mundo antigo Seu trabalho mais extenso e sua mais importante obra política é A Cidade de Deus Esta no entanto náo se limita à política nem abarca todos os pen samentos mais pertinentes de Agostinho sobre o assunto Para encontrar uma discussão temática da justiça e do direito é preciso voltarmonos acima de tudo para o tratado Sobre o LivreArbitrio e querendo examinar sua posição sobre a polêmica questão do uso do poder secular a fim de reprimir a heresia para as obras contra os donatistas Devemse também especificar as cartas 91 e 138 dirigidas ao pagão Nectário e a Marcelino res peaivamente que oferecem uma defesa lúcida dos pontos de vista de ystinho sobre o patriotismo e a cidadania Há escusado será dizer inúmeras outras obras em que consi derações de ordem política desempenham um papel significativo embora secundário A natureza em grande parte polêmica dessas obras com raras exceções ditadas pelas circunstâncias de uma controvérsia em andamento com os pagãos e os hereges especialmente maniqueus donatistas e pelagianos por vezes torna difícil sua in terpretação Além disso há evidências de que Agostinho compartilhava com seus antecessores tanto psos como cristãos a visão de que toda a verdade em matéria de momento supremo só pode ser salvaguardada se sua investigação for acompanhada de uma reserva prudente na expressão daquela verdade A dificuldade inerente às mais elevadas verdades impede que possam ser tornadas de fócil acesso a todos de modo indiscriminado Não apenas o erro mas a própria verdade pode ser prejudicial na medida em que nem todos os homens têm disposição igual em relação a ela ou preparação suficiente para recebêla A experiência já ensinara que se a filosofia pu desse ser usada para fortalecer a fé talvez em circunstâncias menos fevoráveis cons tituísse um verdadeiro obstáculo a ela Muitas das principais heresias dos primeiros séculos poderiam ser atribuídas ao feto de os autores heterodoxos terem recorrido de modo bemintencionado porém equivocado às doutrinas filosóficas e havia sempre a possibilidade de que ao reafirmar sua pretensão à supremacia a filosofia mais uma vez se transformasse em um inimigo e um rival da fé A simples presença da filosofia no interior do rebanho constituía uma ameaça latente porém constante à ortodoxia cristã e servia como alerta contra a exposição prematura de mentes jovens ou tolas a seus ensinamentos Quem se atreve a lançarse precipiuda e desordenadamente sobre o estudo dessas questões observa Agostinho não se tornará um estudioso mas um curioso não sábio mas crédulo não prudente mas incrédulo Agostinho tenta evitar esses perigos quando escreve de tal forma que satisfeça à curiosidade legítima do estudante mais digno e mais exigente sem prejuízo para a St A g o s t i n h o 163 Cf A Cidade de Deus VIII p 4 Contm Acad II p 4 10 II p 10 24 III p 7 14 III p 17 38 III p 20 43 Epist 1183 p 16 e 20 1184 p 33 De Ordine II p 5 17 cf ibid I p 1131 fé do leitor menos bem informado ou menos perspicaz para quem uma apresentação não científica do dogma é tudo o que é necessário ou possívelA maior parte de suas principais obras dirigese aos cristãos que buscam um conhecimento mais profimdo da verdade revelada por Deus e aos pagãos interessados que possam encontrar nelas um in centivo adicional para abraçar a fé Podese dizer que essas obras constituem ao mesmo tempo uma defesa filosófica da fé cujo aspecto racional enfetiza e uma defesa teológica da filosofia para a qual fornecem uma justificativa com base na Sagrada Escritura Essas obras exploram as semelhanças e diferenças entre a filosofia e a verdade revelada com a finalidade expressa de estabelecer uma harmonia substancial entre os dois bem como a superioridade final da segunda sobre a primeira Têm como intuito fezer com que o aluno que já avançou no conhecimento da fé adquira maior consciência das implica ções de suas crenças e ao mesmo tempo pelejam para remover qualquer obstáculo que poderia restar no caminho de uma aceitação inteligente da verckde revelada por parte do descrente Em conseqüência discutem abertamente os pontos de concordância real ou potencial entre a filosofia e a Revelação Apocalipse e muitas vezes dão apenas uma pequena indicação daqueles pontos em que a reconciliação é francamente impossível Com este fim fezem uso do que o próprio Agostinho denomina a arte de esconder a verdade Para obter compreensão total exigem que se levem em conta não só as de clarações explícitas do autor sobre determinado assunto mas também as questões que estas declarações suscitam de modo tácito ou implícito Devese acrescentar que en quanto alguns dos primeiros Pais da Igreja como Clemente de Alexandria e Orígenes defenderam o emprego de mentiras nobres no interesse comum Agostinho denuncia todas as mentiras saudáveis ou náo como intrinsecamente más e seguindo um pre cedente que alega ter sido estabelecido por Cristo admite apenas formas indiretas de dissimulaçáo tais como omissões e concisáo no discurso Como é muito cuidadoso ao apontar em seu tratado Contra as Mentiras Ocultar a verdade náo é o mesmo que contar uma mentira Todo mentiroso escreve para esconder a verdade mas nem todo aquele que esconde a verdade é mentiroso pois mui tas vezes escondemos a verdade não só por mentir mas por permanecermos calados É pois admissível que um orador e um expositor ou pregador de verdades eternas ou mes mo quem discute ou opina sobre assimtos temporais referentes à edificação da telião e da piedade ocultem a em um momento opormno que possa parecer aconselhável esconder mas nunca é admissível mentir e portanto ocultar por meio de mentiras Agostinho considerava Platáo como o maior dos filósofos pagáos e como o filóso fo cujo pensamento mais se aproxima do cristianismo Vai ainda mais longe ao falar dele como o filósofo que se teria tornado cristáo se tivesse vivido na era cristá No 1 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 7 Cf DeDoctr Christ IV 9 23 Epist 1371 3 e 5 18 Epist 1181 1 etpassim 8 Épút 11 9 Contra Mend X 23 cf De Mend X 17 10 CACidadedeDeusVmAVm5Vll9 11 Comparar De Vera Relig IV 67 e Contra Acad III 17 37 entanto sua principal fonte de informações sobre a filosofia política de Platão não é o próprio Platão a cujos diálogos tinha apenas acesso limitado mas a versão romana e estoicizada de Cícero daquela filosofia tal como se encontra em suas obras Da Repú blica e Tratado das Leis e em menor medida em algumas outras tais como os tratados Da natureza dos deuses e Sobre a adivinhação Na forma em que se apresenta o pensa mento político de ostinho é portanto mais diretamente ciceroniano do que platô nico em conteúdo e expressão Infelizmente tanto Da República como Tratado das Leis de Cícero chegaram até nós em estado mutilado Dos seis livros que originalmente os compunham menos da metade sobrevive em cada caso Não obstante as dificuldades causadas por esta lacuna é evidente que o pensamento de ostinho difere do de seu mestre pagão em três pontos importantes e intimamente relacionados as noções de virtude de monoteísmo e a dicotomia entre religião e política A N a tu re z a d a S o cie d a d e C iv il V irtu d e C r is tã Versus Pagá O núcleo da doutrina política de Agostinho pode ser considerado como formado por seus ensinamentos sobre a virtude ensinamentos que têm suas raízes tanto na tradi ção filosófica quanto bíblica O homem é por natureza um animal social o único dotado de fàla por meio da qual é capaz de se comunicar com outros homens e participar de diversos tipos de relações com eles É só por meio da associação com seus semelhantes e formando com eles uma comunidade política que o homem atinge a perfeição Mesmo no estado de inocência os homens procurariam a companhia um do outro e cuidariam juntos da meta final da existência humana A virtude que caraaeriza o cidadão como ci dadão e comanda todos os cidadãos para a meta ou bem comum da cidade é a justiça A justiça é a pedra angular da sociedade civil É dela que dependem a unidade e a nobreza de qualquer sociedade humana Ao rular as relações entre os homens preserva a paz o bem comum intrínseco à sociedade e a precondição para todos os outros benefícios que a sociedade proporciona Sem paz a tranqüilidade na ordem nenhuma sociedade pode prosperar nem mesmo sobreviver Citando Cícero com aprovação Agostinho defi ne a sociedade civil ou nação como um conjunto de homens associado por um reco nhecimento comum do direito e por uma comunidade de interesses Explica direito como justiça ao invés de lei e insiste em que nenhuma nação pode ser administrada sem justiça pois onde não há justiça não há direito e viceversa Em tudo isso ostinho segue de perto a tradição clássica e enfàtiza a sua vigo rosa concordância com a Sagrada Escritura Sua principal objeção às preocupações dos filósofos piãos referese não tanto à sua doutrina da naturalidade da sociedade civil e da necessidade de justiça dentro dela quanto à sua incapacidade de produzir uma sociedade justa Os filósofos são os primeiros a admitir que seu modelo da melhor e mais desejável cidade é aquele que tem a sua existência no discurso e nas discussões St A g o s t i n h o 165 12 A Cidade de Deus XIX 13 13 A í X IX 21cfII21 privadas e não apenas aquele que pode ser realizado na ação Indicam a justiça como o estado saudável das cidades mas lhes falta a capacidade de garantir sua consecução É impossível negar que as propostas feitas pelos filósofos pelo bem da sociedade e para o seu aperfeiçoamento merecem os maiores elogios mas como medidas concretas suas propostas fracassam redondamente na medida em que a maldade óbvia e inevitável da maioria dos homens se opõe à implementação dessas propostas na comunidade política em geral O lócus por excelência da justiça é a cidade mas é raro e talvez im possível encontrarse nela a justiça Como admitem os próprios filósofos as cidades reais se caracterizam pela injustiça e não pela justiça A fim de reivindicarlhes o título de cidades no verdadeiro sentido da palavra seria necessário omitir da definição de Cícero qualquer referência à justiça ou à virtude As cidades que existem são conjun tos de seres racionais ligados não por um reconhecimento comum do direito mas por um acordo quanto aos objetos de seu amor independentemente da qualidade desse amor ou da bondade ou maldade de seus objetos Todo o argumento pode ser resumido com precisão da seguinte maneira ao insistir que é eminentemente desejável a justiça humana perfeita e ao mesmo tempo que é impossível na prática a filosofia revela suas próprias limitações inerentes proclama desta forma pelo menos de modo implícito a necessidade de complementar a justiça humana por uma forma superior e mais genuína de justiça É importante observar que a tese contrária à filosofia política nâo procede de premissas reveladas as quais os descrentes teriam toda a liberdade de rejeitar ou de fato de premissas estranhas ao esquema clássico Sua força deriva por inteiro do fato de que recorre diretamente a um princípio inerente ao pensamento dos adversários de Agostinho o qual foram obrigados a aceitar muito embora questionas sem a conclusão que este pretendia tirar dele A crítica que fez Agostinho da tradição clássica assemelhase em muitos aspec tos à dos pensadores políticos do início da era moderna a começar por Maquiavel que também discordava dessa tradição com base em sua ineficácia e impraticabilidade Mas em contraste com Maquiavel e seus seguidores Agostinho não pretende aumen tar a eficácia de seus ensinamentos por meio de uma redução das metas e padrões da atividade humana Na verdade suas próprias demandas são ainda mais rigorosas do que as mais rigorosas exigências dos filósofos pios A filosofia política clássica firacas sou não porque por sua teimosa recusa em levar em conta a natureza tão deplora velmente humana do comportamento do homem exija demais da natureza humana mas porque não conhecia e portanto não poderia aplicar o remédio adequado para a fraqueza congênita do homem Adotando um procedimento que é mais típico de Platão que de Aristóteles que em geral prefere lidar com questões morais em seu próprio nível e sem referências explícitas a seus pressupostos metafísicos Agostinho tenta deduzir as normas do com portamento humano de princípios teóricos ou prémorais Sua ordem moral se enraíza 1 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Cf AÍÍÍ 9134 15 A Cidade de Deus XDC 24 explicitamente em uma ordem natural estabelecida pela razão especulativa A justiça no sentido mais elevado prescreve a ordem correta de todas as coisas de acordo com a razão Essa ordem exige a universal e completa subordinação do menor ao maior tan to dentro do homem como fora dele Existe quando o corpo é governado pela alma quando os apetites inferiores são governados pela razão e quando a própria razão é go vernada por Deus A mesma hierarquia é ou deve ser observada na sociedade como um todo e é encontrada quando os indivíduos virtuosos obedecem a governantes sábios cujas mentes são por sua vez sujeitas à lei divina Essa é a harmonia que teria pre valecido se o homem tivesse perseverado no estado de justiça original Nesse estado os homens se beneficiariam de todas as vantagens da sociedade sem nenhum de seus inconvenientes Não teriam sido submetidos a outros homens contra sua vontade e ao invés de disputar entre si pela posse de bens terrenos partilhariam todas as coisas de forma equitativa em perfeita amizade e liberdade A Sagrada Escritura ensina que essa harmonia foi conturbada pelo pecado Por meio do pecado foram despertados a cobiça e o desejo soberbo do homem de afirmar seu domínio sobre seus semelhantes A economia atual é marcada pela anarquia dos apetites mais baixos do homem e por uma invencível tendência para colocar o interes se próprio egoísta acima do bem comum da sociedade É um estado de permanente re volta que tem sua origem na revolta inicial do homem contra Deus O protótipo dessa revolta é o pecado original o pecado cometido por Adão e transmitido de maneira misteriosa a todos os seus descendentes Como resultado a liberdade que o homem um dia usufruiu na busca do bem deu lugar à opressão e à coerção A coerção é visível na maioria das instituições típicas da sociedade civil tais como a propriedade privada a escravidão e o próprio governo que todos se fiizem necessários e são explicados pela incapacidade atual do homem de viver de acordo com os ditames da razãoA própria existência dessas instimiçóes constitui uma conseqüência e um permanente lembrete da situação caída do homem Nenhuma delas fazia parte do plano original da criação e todas são desejáveis apenas como um meio de inibir a propensão do homem para o mal A posse privada dos bens temporais tanto gratifica como refreia a ganância inata e insaciável do homem Ao excluir os outros homens da posse dos mesmos bens re move as condições externas para aquisição ilimitada e por conseguinte a possibilidade dela mas não cura o desejo interior por ela O mesmo é verdadeiro sobre a escravidão e todas as outras formas de dominação do homem pelo homem Mesmo a sociedade civil tal como a conhecemos é uma punição para o pecado Se pode ser considerada namral o é somente em referência à natureza caída do homem Tal como a proprie dade privada também é determinada por Deus como mais uma forma de controlar seu insaciável desejo de dominação Todo governo é inseparável da coerção e portan to despótico O conjunto da sociedade política tornase punitivo e corretivo em sua natureza e finalidade Seu papel é essencialmente negativo castigar os malfeitores e restringir o mal entre os homens pelo uso da força St A g o s t i n h o 1 6 7 16 Cf A Cidade de Deus XDC 21 Contra Faust Man XXII 27 17 Cf A Cidade de Deus XDC 15 A justíça não é nem a tarefe nem o destino comum do homem caído Mesmo o bem que é proporcional à sua natureza racional lhe escapa em sua maior parte O remédio para essa situação não está entre os recursos próprios da natureza humana A salvação do homem inclusive sua salvação política advém a ele não da filosofia como indicara Platão mas de Deus A graça divina e não a justíça humana constitui o laço entre a sociedade e a verdadeira fonte da felicidade Entretanto por definição essa graça é concedida de forma imerecida pode ser recebida pelo homem mas não é merecida por ele pois os méritos do homem são o próprio efeito e não o princípio da graça concedida No estado atual da humanidade a tarefe de garantir a boa vida recai especificamente sobre a Igreja como instrumento de instituição divina e visível da graça de Deus É extrema a limitação do âmbito da sociedade civil em comparação com o que lhe é atribuído pela filosofia clássica Na melhor das hipóteses a sociedade civil pode por sua ação repressiva manter uma relativa paz entre os homens e desta forma assjurar as condições mínimas em que a Igreja é capaz de exercer a sua missão de ensino e de salvação Por si só é incapaz de conduzir à virtude O veredicto de Agostinho sobre o caráter fimdamentalmente imperfeito da jus tíça humana é corroborado e esclarecido por sua análise das leis no Livro I do tratado Sobre o LivreArbítrio Agostinho começa por distinguir nitidamente entre a lei eterna que é a norma suprema da justiça e a lei temporal ou humana que adapta os princí pios comuns da lei eterna às várias necessidades de cada sociedade em particular A lei eterna é definida de fijrma muito geral como a lei em virtude da qual é justo que todas as coisas sejam perfeitamente ordenadas e se identifica com a vontade ou a sabedoria de Deus que direciona todas as coisas a seu fim apropriado Constitui a fonte univer sal de justiça e retidão e dela se origina o que é justo ou bom em outras leis O próprio Deus imprimiu essa lei na mente humana Todos são capazes de conhecêla e devem obedecêla em todos os momentos É também por força da lei eterna que os bons são recompensados e os maus punidos Finalmente a lei eterna é a mesma sempre e em toda parte e não é sujeita a exceções Ao contrário da lei eterna que é totalmente imutável a lei temporal pode sem injustiça variar de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar Como uma lei é promulgada para o bem comum e é necessariamente uma lei justa pois uma lei que não é justa não é uma lei No entanto uma lei temporal pode diferir das outras leis temporais e até mesmo ser contrária a elas Se por exemplo a maioria dos cidadãos de uma determinada cidade fosse virtuosa e dedicada ao bem público a democracia seria uma exigência da justiça e uma lei que impusesse a escolha dos magistrados dessa cidade pelo povo seria uma lei justa Da mesma forma em uma cidade corrupta seria também uma lei justa aquela que estipulasse que apenas o homem virtuoso e capaz 168 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 18 Epist 137517 19 Sobre o LivreArbitrio I 6 15 20 Ibid 5òcS De Vera Relig XXX 58 21 Sobre o LivreArbítrio I 511 de liderar os demais para a virtude fosse nomeado para os cargos públicos Embora se excluam mutuamente ambas as leis derivam sua justiça da lei eterna segundo a qual é sempre bom que as honras sejam distribuídas para os homens virtuosos e não para os homens ímpios pois nem a compulsão nem o acaso nem qualquer emergência jamais tornarão injusta a distribuição equitativa dos bens dentro da cidade Esta lei tempo ral variável é exatamente o que distingue uma cidade de outra e dá a cada uma a sua unidade e especificidade As cidades e os povos nada mais são do que uma associação de seres hiunanos ligados e vivendo sob uma única lei temporal Se a lei temporal é uma lei justa é também em muitos aspectos uma lei imper feita Sua existência tem por fim primordialmente os virtuosos que por sua própria iniciativa aspiram aos bens eternos e estão sujeitos somente à lei eterna mas visa os imperfeitos que ambicionam os bens temporais e sem com justiça somente quando compelidos a fazêlo por uma lei humana Na medida em que leva em conta como deve as necessidades e reivindicações de homens moralmente inferiores a lei temporal representa um ajuste entre o que é mais desejável em si mesmo e que é possível em qualquer momento dado permitindo males menores com a finalidade única de evitar os males maiores e mais flagrantes Sua eficácia tem origem direta no apego do ho mem aos bens terrenos É apenas porque os homens são escravos desses bens terrenos que a lei tem qualquer poder sobre eles Assim de acordo com a justiça estrita só o homem que usa a riqueza de modo justo tem direito à sua posse No interesse da paz e como uma concessão à fraqueza humana porém as leis temporais sancionam a pro priedade privada dos bens materiais não importa o modo como sejam empregados por seu proprietário Ao mesmo tempo por ameaçar privar os homens injustos dos bens que já possuem como punição por suas transgressões as leis temporais agem co mo um impedimento para mais injustiças e asseguram o que pode ser considerado como uma aproximação à atribuição equitativa dos bens temporais O máximo que se pode dizer em nome da lei temporal é que astutamente se aproveita da perversidade do homem para promover e manter uma justiça limitada na sociedade Basta este motivo para tornála indispensável mas a justiça que personifica não passa de uma imagem ou uma diluição da justiça perfeita Mesmo dentro da sua própria esfera e apesar de seus objetivos limitados a lei temporal muitas vezes não consegue alcançar os fins para os quais foi instituída Em primeiro lugar não é ilógico supor que os homens cometam muitas injustiças que não são detectadas e que portanto ficam impunes Digamos que alguém confiou uma grande quantia de dinheiro a um amigo e faleceu de repente sem ter tido a chance de recuperar seu depósito Partindo do princípio de que ninguém está a par da transação St A g o s t in h o 1 6 9 22 Ibid I 61415 23 Ibid 1716 24 Ibid I 512 25 Ibid I 512 26 Ibid I 15 32 cf Epist 1536 26 Sermo 5024 o que impediria que o depositário se assim o desejasse se apropriasse do dinheiro em vez de devolvêlo ao legítimo herdeiro Em segundo mesmo quando se sabe que foi cometido um crime é freqüente a impossibilidade de identificar o criminoso Sábios e bons juizes com facilidade cometem erros Apesar de todas as suas precauções para garantir uma administração correta da justiça inadvertidamente sentenciam homens inocentes à morte Na esperança de apurar a verdade por vezes recorrem à tortura entretanto é freqüente que a tortura pouco mais faça do que causar sofrimento a pessoas inocentes sem fiivorecer a descoberta dos culpados De maneira dramática também revela até que ponto a justiça humana está envolta em trevas Por último e mais importante a lei temporal apenas prescreve e proíbe atos externos Não se esten de aos motivos ocultos desses atos e se preocupa ainda menos com os atos puramente internos tais como o desejo de cometer homicídio ou adultério Por esse motivo se não por outros não se pode afirmar que inspire a virtude A genuína virtude exige não apenas que se executem atos justos mas que sejam realizados pelo motivo certo Isso implica por parte do praticante um desejo para o bem imposto pela lei Deste modo portanto pressupõe que se tenha renunciado ao fluir desmedido dos bens terrenos e ordenado as paixões de acordo com o bem da razão O mero cumprimento da lei temporal não é garantia de bondade moral pois é possível cumprir a lei e ainda assim r por motivos inteiramente egoístas e utilitários A lei permite por exemplo que se mate um agressor injusto em legítima defesa Por assim fezer tem como meta o bem comum e em si é totalmente isenta de paixão Porém o homem que se aproveita da liberdade que lhe é assim conferida poderia fiicilmente estar satisfazendo um desejo egpísta de viiança pessoal neste caso o seu ato embora externamente justo seria moralmente condenável É verdade que ao exigir atos justos de todos a lei temporal predispõe os homens para a aquisição da virtude Contudo pode ir mais longe Ne cessita desu forma ser complementada por uma lei maior e mais secreta ou seja a lei etema que abrange todos os atos do homem incluindo seus atos internos e que por si só é capaz de produzir a virtude e não apenas o que assim parece Até agora o tratamento que ostinho aplica a toda essa questão é análogo ao do Tratado das Leis de Cícero e possui até muitas semelhanças textuais com ele A pare cença termina no momento em que chegamos à questão da providência divina a qual na mente de Agostinho está intrinsecamente ligada à noção de uma lei eterna A dis tância que separa os dois autores neste aspecto manifestase em parte pela divergência na terminologia que empregam Tanto Cícero como Agostinho distinguem a lei eterna ou natural a partir da lei temporal ou humana contudo enquanto Cícero feia habi tualmente da primeira como a lei natural Agostinho deixa transparecer uma nítida preferência pela expressão lei eterna Esta lei eterna não só indica o que os homens 1 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 27 Cf EninPsaL 572 28 Cf A CidadeáeDeusy3ÍL 6 29 Sobre o Livre Arbítrio I 3 8 30 Ibid I 5 13 devem fezer ou evitar se quiserem ser felizes ou bons mas emite ordens e proibições Deve portanto ser acompanhada de sanções adequadas pois caso contrário seria ine ficaz tanto mais que abarca os atos internos da vontade da qual os outros seres huma nos náo são juizes competentes Como é óbvio a partir da experiência que homens inocentes sofrem muitas vezes de forma injusta e que os crimes dos ímpios nem sempre sâo punidos aqui na Terra não se pode conceber a lei eterna sem uma vida futura na qual são corrigidas as injustiças e é restaurada a perfeita ordem da justiça Fica implícita a existência de um Deus justo previdente e onisciente que recompensa e pune cada um de acordo com seu justo merecimento Sendo eterno e perfeito Deus não está sujeito a mudanças nem no seu ser nem em suas ações Não pode adquirir novos conhecimentos e deve saber com antecedência por assim dizer todas as ações a serem realizadas pelos homens através dos tempos c até mesmo seus mais recônditos pensamentos Esta doutrina de sanções divinas estava eivada desde o início de grandes difi culdades teóricas Se assumirmos que Deus sabe todas as coisas antes que venham a existir seguese necessariamente que os homens agem sempre em conformidade com o conhecimento divino mas nessas condições é difícil compreender como se pode pensar que permaneçam livres Estaríamos portanto defronte de duas alternativas nenhuma delas aceitável do ponto de vista da sociedade política Podese afirmar que os homens sejam livres e negar que Deus tenha qualquer conhecimento dos crimes cometidos contra a lei eterna ou dos atos justos efetuados de acordo com ela porém sendo assim a lei eterna fica sem fiador e portanto privada de qualquer meio pelo qual pudesse efetivamente reprimir potenciais infratores e promover hábitos virtuosos Ou então podese insistir na presciência divina e negar o livrearbítrio mas nesse caso os homens não podem mais ser responsabilizados por seus atos as leis perdem sua razão de ser a exortação passa a ser inútil o enaltecimento e a culpa se revelam in significantes e deixa de haver qualquer justíça na distribuição das recompensas para os bons e castigos para os maus enfim é subvertida toda a economia da vida humana Segundo a interpretação de Agostinho Cícero tentou escapar deste dilema ao professar de público e reservadamente negar a doutrina da presciência divina Na muito pública discussão efetuada no tratado Da natureza dos deuses toma partido do piedoso Lucílio Balbo que defende os deuses contra o ateu Cota que os ataca mas em sua obra menos popular Da adivinhação afirma com aprovação e explana em seu próprio nome a teoria que simula rejeitar no tratado anterior Por meio deste sub terfúgio com habilidade evita minar a crença salutar da multidão em recompensas e castigos divinos sem se comprometer com ensinamentos que os instruídos acreditam serem incompatíveis com a liberdade humana e que em todo caso podem dispensar com facilidade pois não precisam de tais incentívos para com justiça Assim con clui ostínho ao tentar fiizer os homens livres ele os torna sacrílegos St A g o s t in h o 171 31 Cf A Cidade de Deus V 9 e 10 32 IbidVS Ao contrário de Cícero Agostinho insiste tanto que Deus sabe todas as coisas an tes que ocorram quanto que os homens fazem por seu livrearbítrio tudo o que sabem e percebem que é feito por eles só porque esta é sua vontade Longe de anular o livre arbítrio o conhecimento de Deus na verdade o institui A resposta à pergunta sobre como reconciliar essas duas perfeiçóes reside na eficácia suprema da vontade divina Deus sabe todas as coisas porque conhece suas causas e conhece suas causas porque sua vontade se estende a todas elas conferindo a cada uma a capacidade não apenas de agir mas de agir em conformidade com a circunstância adequada As causas naturais exercem uma causalidade necessária e as causas voluntárias uma causalidade livre Assim como não existe poder nas causas naturais que não esteja contido em Deus o autor da natureza e não seja concedido por Ele do mesmo modo não há nada na vontade do homem que não seja encontrado em Deus o criador dessa vontade e não possa ser conhecido por Ele Caso contrário seria necessário postular a existência nas criaturas de determinadas perfeiçóes que estão ausentes em Deus a fonte universal de toda a perfeição O que é verdadeiro das causas naturais e voluntárias é também ver dadeiro das causas fortuitas ou acaso Acaso não é apenas um nome para a ausência de uma causa O que os homens denominam acaso é na verdade para Agostinho uma causa latente atribuível a Deus ou às substâncias distintas Ainda poderia ser suscitado um problema em relação ao mal que não pode ser atribuído a Deus como sua causa Mas o fato de que Deus não causa o pecado de modo algum reduz a sua perfeição pois um ato pecaminoso como algo pecaminoso é uma imperfeição explicável apenas em termos de causalidade deficiente Tampouco pressupõe que Deus deva permanecer na ignorância dos pecados que os homens cometem Se Deus sabe o que o homem pode e vai fazer também sabe o que deve ou não fazer É verdade claro que as ações dos homens são realizadas no tempo e assim pertencem ao passado ao presente ou ao futuro Contudo nem isso impede Deus de conhecêlos imutavelmente Uma vez que está acima do tempo e fora dele Deus sabe tudo por toda a eternidade por meio de um conhecimento que não é medido pelas coisas mas é em si mesmo a medida de todas as coisas e de sua perfeição Tendo dito isso Agostinho tem plena consciência da obscuridade que continua a cercar nosso conhecimento da essência divina e de suas operações Sua explicação pode deixar muitas perguntas sem resposta mas por motivos puramente racionais conside ra a sua não mais difícil de aceitar que a de Cícero e tem diante dos olhos a vantagem de tornar possível que os homens não apenas vivam bem mas creiam bem As opiniões de Agostinho sobre a justiça humana e o direito fundeiam e motivam seu julgamento sobre as sociedades do passado e acima de mdo seu julgamento de Roma o último dos grandes impérios e epítome das mais brilhantes conquistas políticas do mundo p o Mais uma vez as bases para sua longa discussão deste assunto foram 1 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 33 Cf ibU XII 68 34 IbidV6 35 C f ibid V 12 lançadas em parte por Cícero Em vez de fimdar uma cidade perfeita no discurso como fizera Platáo Cícero procurou reavivar o interesse pela vida política ao se voltar para o exemplo da antiga república romana De acordo com esta abordem mais tradicional e mais prática foi conduzido a engrandecer as glórias passadas de seus conterrâneos Agostinho por outro lado se propóe a desvendar seus vícios Em lugar algum tais vícios sáo tão evidentes como nas relações de Roma com outras nações Uma vez que nâo há justiça interna na cidade nâo há justiça externa tampouco pois uma cidade que náo está em paz consigo mesma não pode estar em paz com seus vizinhos Os chamados reinos deste mundo são pouco mais que gigantescos latrocínios Diferem das gangues de assaltantes não pela eliminação da cobiça mas pela magnitude de seus crimes e pela impunidade com que os cometem Do ponto de vista essencial da justiça o que fez Ale xandre em grande escala e com uma enorme frota não é melhor do que o feito por um pirata em escala muito menor e com um só navio Mesmo a Roma republicana pela qual Agostinho professa um respeito muito maior do que pela Roma da época imperial está incluída na condenação comum que abarca todas as cidades terrestres Roma nunca foi uma república porque jamais tiveram lugar nela a verdadeira justiça e o direito A seção correspondente de A Cidade de Deus apresentase como uma tentativa de restaurar contrariamente ao embelezamento pelos filósofos e historiadores romanos o que Agos tinho considera como uma imagem verdadeira e fiel da Roma antiga Para diagnosticar o caráter de um povo basta consultar o objeto de seu amor Os antigos romanos não eram justos e sua cidade não era uma verdadeira cidade pois o objeto de sua paixão não era a virtude Sem dúvida os romanos eram mais dignos de admiração do que qualquer uma das nações que subjugaram De modo algum era vil a meta pela qual se empenhavam Enaltecia a coragem e colocava o autossacrifício e a devoção ao país acima de todas as comodidades de uma vida tranqüila e confortá vel Mas mesmo assim tratavase de um objetivo meramente terreno Os esforços despendidos nessa ocupação tinham a marca da grandeza mas não da virtude Roma ela própria a senhora do mundo foi dominada pela ânsia da conquista Seus grandes homens eram na melhor das hipóteses cidadãos proeminentes de uma cidade ruim A maioria deles nem sequer possuía virtudes genuinamente políticas Sua determinação em distinguirse não se alimentava pelo desejo de servir a seus compatriotas mas pela sede de glória pessoal Praticadas por um motivo que era afinal egoísta suas virtudes supostamente heróicas eram na verdade pouco mais do que vícios resplandecentes Na medida em que os romanos renunciaram ao prazer e à satisfeção de seus apetites mais baixos tinham direito a alguma recompensa Deus lhes concedeu essa recom pensa quando permitiu que Roma consolidasse sua supremacia sobre todas as outras St A g o s t i n h o 173 36 Ibid IV 4 37 lbid2 38 7 tó X IX 2 4 c fII2 1 39 Ibid V 13 e 14 40 Ibid V 12 cf XIX 25 nações Assim estendendo suas conquistas aos limites do mundo civilizado Roma foi capaz de satisfazer às suas aspirações mais profundas e atingir a meta implícita em todas as ambições terrenas a dominação universal Mas aqui se encerra a argumen tação Em oposição a uma longa e na altura ainda poderosa tradição cristã apologé tica Tostinho não estaria disposto a admitir que foi atribuído um papel especial ao império romano na economia da salvação e que ao agregar o mundo inteiro em uma comunhão de governo e de leis teria ainda que de longe aberto caminho para o cris tianismo a única religião verdadeira e universal A polêmica de iostinho contra Roma surpreende ainda mais por ser ele alguém que está obviamente impressionado com o espetáculo da antiga grandeza de Roma O relato que fez Tito Lívio dos feitos gloriosos dos Cévolas e Cipiões de Régulo e Fabrício ainda despertava sua iminação e é grande seu deleite em narrar suas faça nhas Embora possam ser reputadas admiráveis por outros padrões essas feçanhas pertencem a um passado irrecuperável cuja memória desperta certa tristeza na mente do espectador mas que o cristianismo condenou para sempre Cristo o sol da justiça eclipsou o brilho dos mais luminosos feróis do mundo antigo Seu advento destruiu para sempre o palco no qual se movia o herói pagão O verdadeiro heroísmo é o cris tão mas já não é mais o mesmo tipo de heroísmo Sua renovação é evidenciada pelo fato de que nossos heróis são chamados de mártires ou testemunhas em vez de heróis Desde então as conquistas dos romanos mais nobres só têm duas finalida des revelam juntamente com as profundezas da ganância humana o caráter efêmero e afinal autoaniquilante de qualquer realização meramente humana e lembram aos cristãos que se os romanos estavam dispostos a se submeter a tais sofrimentos pelos ganhos terrenos eles próprios deveriam estar preparados para fazer ainda mais sacrifí cios em prol de uma recompensa eterna Por seu ataque devastador à virtude p Agostinho mais do que qualquer ou tro é responsável pela depreciação de Roma que se tornou a marca registrada de qual quer discussão sobre a política romana em todo o mundo cristão A melhor maneira de exprimir a mnitude de sua realização talvez seja enfatizar que quase sozinho Agostinho criou uma nova imagem de Roma a qual a partir daquele momento to mou o liar nas mentes de estadistas e escritores políticos da imem elaborada por historiadores romanos e em especial por Tito Lívio o arauto da eterna grandeza de Roma Foi só no Renascimento que se encontrou uma nova tentativa de recuperar o espírito da Roma pagã e seu modo de vida peculiar que jazia sob a pesada e inexorável acusação de A Cidade de Deus 1 7 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a 5 L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 41 IbidW5 42 Ibid XVIII 22 43 Cf ibid II 29 44 7 tó X 21cfV 14 45 Cf ibid V 1618 Epist 138317 O M o n o t e ís m o e o P r o b l e m a d a R e l ig iã o C iv il De acordo com Agostinho o verdadeiro motivo pelo qual o esquema clássico é incapaz de tornar os homens virtuosos e é condenado por suas próprias normas náo é ser irreligioso mas estar intrinsecamente ligado a uma falsa concepção da divindade Esta falsidade é revelada de modo mais evidente no politeísmo pagão Grande parte do que Agostinho escreveu sobre o tema da sociedade civil inclusive toda a primeira parte de A Cidade de Deus é na verdade pouco mais do que uma longa e detalhada crítica da mitologia pa Seguindo Varrão Agostinho divide toda a teologia pa em três formas básicas mítica namral ou filosófica e civil ou política A teologia mítica é a teologia dos po etas Apela diretamente para a multidão e seus vários deuses e deusas são reverenciados por causa dos bens temporais ou vancens materiais que os homens esperam obter de les nesta vida A teologia natural é a teologia dos filósofos e é monoteísta Repousa sobre uma noção verdadeira de Deus e como tal é muito superior tanto à teologia mítica quanto à civil mas permanece inacessível para todos exceto alguns poucos indivíduos excepcionalmente dotados e eruditos e portanto é incapaz de exercer uma influência benéfica sobre a sociedade como um todo A teologia civil como seu nome indica é a teologia oficial da cidade Difere da teologia namral por ser politeísta e da teologia mítica por prescrever a adoração dos deuses pios por conta da vida após a morte e não desta vida É a teologia que todos os cidadãos e em particular os sacerdotes são obrigados a conhecer e administrar Ensina que deus ou deuses cada homem pode ado rar de modo apropriado e que ritos e sacriflícios sagrados lhes são compatíveis Embora a teologia civil imponha o culto de felsos deuses é no entanto mais tolerável do que a teologia mítica pois se preocupa com o bem da alma e não com o do corpo e aspira tornar os homens melhores por favorecer o desenvolvimento das virmdes políticas O mais abalizado expoente da teologia civil romana é Varrão a quem ostinho citando Cícero se refere invariavelmente como um homem de grande perspicácia e erudição O método de ostinho consiste em usar contra si mesmo o testemunho de Varrão a fim de provar a imperfeição da teologia civil Varrão defendeu esta teologia não porque fosse verdadeira mas por ser útil Ele próprio não a aceitava e não levava a sério seus deuses Davao a entender pelo fato de distinguir nitidamente entre a teologia civil e a teologia natural A mesma conclusão é corroborada por uma análise de sua obra Antiguidades na qual o tratamento dos assuntos humanos precede o dos assuntos divi nos Ao adaptar esse sistema Varrão dá a entender que os deuses da cidade não existem independentemente do homem mas são eles próprios os produtos da mente humana É este afirma yostinho o segredo de seu livro Dessa maneira sutil Varrão assinalou St A g o s t i n h o 1 7 5 46 A Cidade de Deus VI 5 cf ibid IV 27 47 Ibid IV 1 rV 31 VI 2 VI 6 VI 8 VI 9 VII 28 48 NT Marco Terêncio Varrão Marcus Terentius Varro 116 aC TI aC Antiquitates rerum humanarum et divinarum sua relutância em dar prioridade ao erro sobre a verdade Se estivesse lidando com o verdadeiramente divino ou com a namreza divina em sua totalidade a qual considerava superior à natureza humana não teria hesitado em inverter essa ordem Sendo assim apenas expressou uma louvável preferência pelos homens em lugar das instimiçóes dos homens ou em suas próprias palavras pelo pintor em lugar da pintura As opiniões de Varrão quanto a este assunto em nada diferiam das de outros filó sofos pagãos e em particular das de Sêneca Porque a filosofia o libertara Sêneca não se abstinha de atacar a teologia civil em seus escritos entretanto tal como Varrão conti nuou a fingir respeitar seus ritos e dogmas sarados Ao se conformar em atos embora nem sempre em palavras com as prescrições daquela teologia demonstrou estar plena mente consciente do fato de estar fiizendo o que a lei determina e não o que agrzda aos deuses Sêneca também não menos que Varrão foi forçado a assumir uma incômoda posição em que devia realizar o que condenava ou devia cultuar o que censurava O próprio Varrão foi mais cauteloso em seu discurso do que Sêneca Por uma nobre consideração pela firaqueza das mentes inferiores não se atreveu a censurar di retamente a teologia civil mas se contentava em revelar seu caráter censurável ao de nunciar sua semelhança com a teologia mítica Sua discussão da teologia civil é em si mesma civil ou política Leva em consideração mais do que Sêneca a necessidade prática de se acomodar às opiniões e aos preconceitos da multidão ou o que dá no mesmo à impossibilidade prática de estabelecer uma ordem política baseada inteira mente na razão ou na natureza Caso Varrão tivesse podido fiandar uma nova cidade teria escrito de acordo com a natureza porém como abordava uma cidade já existente só podia seguir seus costumes Como resultado de um meiotermo entre natureza e convenção podese dizer que sua teologia civil ocupa uma posição intermediária entre a teologia mística que exige muito pouco da maioria dos homens e a teologia natural que exige demais deles Seu nível é o do cidadão como cidadão e representa o único meio viável para que a maioria dos cidadãos obtenha o mais alto grau de virtude de que são capazes sem a graça divina Se por um lado Varrão sentiuse obrigado por razões práticas ou políticas a respeitar em aparência a teologia civil de Roma por outro não tinha tais escrúpulos quando se tratava de sua teologia mítica ou fabulosa na qual encontrava falhas abun dantes e que rejeitava tanto por ser indigna da natureza divina como por ser incom patível com a dignidade humana Ao propagar mentiras sobre os deuses e descrever sua conduta como indecorosa e vil não só os poetas cometem uma injustiça para com eles encorajam a mesma imoralidade entre os homens e contribuem mais do que quais 1 7 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 49 IbidV lA 50 IbidW Q 51 7ó VI 7 VI 8 VI 10 52 Ibid III 4 VI 2 VIL 17 VIL 23 53 Ibid VI 4 cf IV 31 e VI 2 54 Ibid VI 6 quer outros para a corrupção de seus costumes O próprio Varrâo estava de pleno acordo com os filósofos ao demandar a expulsão dos poetas de qualquer cidade bem ordenada Infelizmente a cidade com a qual se preocupava estava longe de ser perfeita Tolerava esta não só a presença dos poetas em seu meio mas na verdade dependia de les para sua sobrevivência Os poetas são ao mesmo tempo um produto da sociedade civil e seus criadores A moral que professam não é idêntica à moralidade antiga nem totalmente diferente dela Na medida em que sua mitologia se sobrepõe à teologia civil deve ser considerada como parte integrante da cidade Em última análise guarda com zelo e perpetua as mesmas fidsidades O paradoxo está em que não raro a teologia mítica demonstra ser tão útil para a cidade quando esta se afasta de suas crenças tradicionais quanto no momento em que os reflete com fidelidade Os poetas divertem o público e são mestres em fazêlos crer na excelência de seu bom gosto O objeto de suas fóbulas é na maior parte o agradável em oposição ao útil ou o nobre Assim sendo suas obras pertencem ao reino do lúdico e não ao dos assuntos sérios O prazer privado e vicário que a maioria dos homens usufrui de seus espetáculos auxilia a compensar as inevitáveis desvantagens da vida política e proporciona uma liberação salutar das tensões que gera Não obstante aparentar o contrário os poetas não são revolucionários Sua ação é no fundo conser vadora a tal ponto que até mesmo suas inovações contribuem de forma indireta para a estabilidade da sociedade civil O simples fato de a cidade não poder prescindir de tais serviços pode ser tomado como mais uma prova de suas próprias limitações e de sua total incapacidade de resolver seus problemas apenas por meios humanos A teologia civil não é apenas semelhante à teologia mítica na medida em que compartilha da razão também se aproxima da teologia natural Muitos de seus en sinamentos podem ser considerados como uma expressão popular ou préfilosófica de uma verdade genuinamente filosófica Muitas vezes podem ser justificados em termos de natureza e de fato foram explicados nesses termos pelos filósofos pos Por exemplo não há nada que impeça alguém de contemplar Júpiter o soberano dos deuses como sinônimo poético de justiça a rainha das virtudes sociais Mas há limites óbvios para tais interpretações A mitologia pagã mesmo em sua forma oficial jamais poderá ser plenamente racionalizada Por esse motivo sua influência sobre as mentes das pessoas é enfraquecida pelo progresso da ciência e pela inevitável embora nem sempre salutar difusão do conhecimento Uma vez que repousa sobre uma base de mentiras plausíveis não pode manterse para sempre Examinado desta perspectiva o politeísmo revelase ao mesmo tempo necessário à sociedade civil e incompatível com o seu desenvolvimento mais elevado Seria possível colocar o argumento em termos um tanto diferentes afirmando que o valor de qualquer sociedade é medido por sua capacidade de promover o bem do intelecto mas na medida em que tem sucesso em 55 Ibid VI 7 56 Ibid VI 8 57 IbidW lcfEpist95 St A gostinho 177 alcançar esse objetivo tende a solapar as próprias bases Nisto reside a falácia do siste ma pagão Por uma necessidade interior e independentemente da influência externa do cristianismo o politeísmo grosseiro da cidade paã deve mais cedo ou mais tarde purificarse por meio da transformação no monoteísmo Não se deve inferir a partir do que foi exposto que Agostinho aceite sem quais quer reservas a doutrina monoteísta dos teólogos naturais Antes de mais nada nem todos os filósofos pagãos compartilham a mesma concepção de divindade Alguns deles inclusive Varrão identificam a alma humana ou sua parte racional com a na tureza divina assim transformando o homem em um deus em lugar de fazer dele um servo de Deus Tal doutrina confunde a criatura com seu criador e é muito questio nável do ponto de vista racional na mesma medida em que a mutabilidade da mente humana não pode ser conciliada com a absoluta perfeição do ser supremo Somente aqueles filósofos que distinguem com clareza entre Deus e a alma ou entre o criador e a sua criação alcançaram a verdade a respeito de Deus O mais eminente entre eles é Platão Permanece sem resposta a indagação acerca do modo como Platão chegou a esse conhecimento Agostinho abandona a questão afirmando que o próprio S Paulo apregoa a possibilidade de que os pagãos passem a ter um conhecimento genuíno de Deus Todavia excetuandose o fato de que por vezes os filósofos erram em seus ensinamentos a respeito de Deus ainda há um elemento crucial que os separa do cris tianismo que é a sua recusa em aceitar Cristo como mediador e redentor Como aque le que busca o conhecimento independente o filósofo é em essência orgulhoso e se recusa a dever sua salvação a quem quer que seja mas tão só a si mesmo Todos os seus esforços são motivados no final das contas pelo autoelogio e pela autoadmiração Com base nisso talvez seja correto dizer que o filósofo é o homem que mais se aproxi ma do cristianismo e ao mesmo tempo aquele que permanece mais longe dele As D ua s C id a d e s e a D ic o t o m ia e n t r e R e u g iá o e P o iít ic a O ataque de Agostinho contra a religião pagã culmina naquela que pode ser considerada como sua contribuição mais singular para o problema da sociedade civil a doutrina das duas cidades A humanidade como sabemos dividese em muitas cida des e nações sendo cada uma delas claramente diferenciada de todas as outras por suas leis seus costumes seus ritos sua língua e seu estilo de vida em geral Porém de modo mais fundamental a Sagrada Escritura distingue apenas dois tipos de sociedades às quais pertencem todos os homens de todos os tempos a cidade de Deus e a cidade terrena É apenas por analogia no entanto que essas sociedades são denominadas 1 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 58 A Cidade de Deus IV 31 VIL 5 VII 6 VIII 1 VIII 5 59 VIII 4 VIII 1012 60 Ibid VIII 12 cf XVIII 41 in fine 61 Ibid V 20 cf Epist 1551 2 62 A Cidade de Deus XIV 1 XIV 4 cidades A cidade de Deus náo é uma cidade independente mas coexiste com outras ci dades e é fundamentada na lei divina tal como a teocracia judaica ou a basileia terre na de Constantino e seus seguidores Tanto a cidade de Deus quanto a cidade terrena se estendem para além das fronteiras de cidades individuais e nenhuma delas deve ser identificada com qualquer cidade ou reino em particular A distinção entre elas corresponde à distinção entre a virtude e o vício com a implicação de que a verdadeira virtude é a virtude cristã O que define um indivíduo como membro de uma ou outra dessas duas cidades não é a raça ou nação que possa reivindicar como sua mas as me tas que busca e que em última análise subordinam todas as suas ações A cidade de Deus não é outra senão a comunidade dos seguidores de Cristo e dos que adoram o Deus verdadeiro É composta inteiramente de homens de Deus e toda a sua vida pode ser descrita como de piedosa aquiescência na palavra de Deus Nela e somente ne la será encontrada a verdadeira justiça Porque o seu padrão é definido no céu e porque o seu perfeito estado só é alcançado na vida após a morte a cidade de Deus é às vezes denominada a cidade celestial mas na medida em que ao unirse a Cristo os homens têm tora a possibilidade de levar uma vida verdadeiramente virtuosa tal cidade já existe aqui na Terra Pela mesma razão não deve ser confundida com a cidade ideal de Platão que não tem existência a não ser no pensamento e na palavra Em contraste com a cidade celestial a cidade terrena é guiada pelo amorpróprio e vive de acordo com o que a Escritura denomina a carne O termo carne no pre sente contexto não deve ser tomado em seu sentido estrito como referência apenas ao corpo e aos prazeres do corpo Em seu uso bíblico é sinônimo de homem natural e abarca todas as ações e desejos do homem na medida em que não são dirigidos a Deus como sua finalidade suprema Isso se aplica não só ao voluptuoso que instala no prazer seu bem mais elevado mas a todos aqueles que se entregam aos vícios e até mesmo ao sábio na medida em que sua busca pela sabedoria é impulsionada por um falso amor a si mesmo e não pelo amor à verdade Em seu sentido mais amplo e abrangente a cidade terrena é caracterizada por sua simulação de total independência e autossuficiência e se apresenta como a antítese da vida de obediência a mãe e guardiã das virtudes e de reverência a Deus Seu predecessor é o impenitente e não remido Caim e sua rebelião contra Deus renova à sua maneira o pecado da desobe diência que Adão cometeu quando transgrediu o comando divino St A gostinho 179 63 NT Basileia palavra empregada no Novo Testamento para indicar o reino do Messias É usada 162 vezes no Novo Testamento onde parece ser sempre traduzida por reino 64 Ó7XVIII2XX 11 65 Ibid XIV 28 cf De Gen odLitt XI 15 66 Cf A Cidade de Deus XIV 2 e 4 67 IbidYSNòe5 68 Ibid XIV 12 69 Ibid XIV 14 Embora iostinho por vezes equacione a cidade de Deus com a Igreja algumas outras declarações suas debtam perceber que nem todos os que sáo membros oficiais da Igreja visível a ela pertencem e inversamente muitas pessoas que náo professam a fé cristã são sem o saber membros de uma mesma cidade sagrada Na verdade quem quer que se dedique à busca da verdade e da virtude pode ser considerado implicita mente um cidadão da cidade de Deus e quem abandona a virtude em íàvor do vício está ipso facto excluído dela Além disso qualquer tentativa humana de discriminar exceto de modo abstrato entre as duas cidades tornase precária pelo fiito de ser im possível saber com alguma objetividade se um homem é ou não de íato vinuoso Podese observar e narrar as ações de outra pessoa mas não se pode atingir o núcleo de onde provêm Mesmo aquele que realiza atos virtuosos não é capaz de determinar com total certeza até que ponto está agindo por virtude na medida em que é fócil enganarse quanto à natureza de seus motivos Estes motivos nâo dizem respeito ape nas ao segredo do coração humano que se poderia revelar caso isso fosse desejado mas à intenção secreta do coração que permanece obscura para todos inclusive o próprio agente Nesta vida portanto para todos os efeitos as duas cidades estão inextrica velmente misturadas como o trigo e o joio da parábola que podem crescer juntos e devem aguardar a época da colheita antes que possam ser separados O feto é que é apenas como membro da cidade de Deus e em virtude da relação com uma ordem que transcende a esfera política que se tem a possibilidade de alcan çar a paz e a felicidade a que aspiram todos os homens mesmo os mais perversos Isso não significa que a cidade de Deus aboliu a necessidade da sociedade civil Sua finalidade não é substituir a sociedade civil mas completála por meio do forneci mento além dos benefícios por ela conferidos dos meios de atingir uma meta que é mais elevada do que qualquer outra a que a sociedade civil possa conduzir A própria sociedade civil continua a ser indispensável na medida em que obtém e administra os bens temporais ou materiais de que os homens precisam aqui na Terra e que podem ser utilizados como instrumentos para promover o bem da alma Assim a cidadania na cidade de Deus não anula mas preserva e complementa a cidadania em uma so ciedade temporal O que é típico da postura de ostinho é muito precisamente a dupla cidadania pela qual um indivíduo é inscrito como membro da cidade de Deus sem deixar de organizar sua vida temporal no âmbito da sociedade civil e de acordo com suas normas Na medida em que este posicionamento retira uma parte essencial da vida do homem da jurisdição da cidade e a reserva para uma autoridade superior tal posição representa um afastamento da tradição clássica mas na medida em que alega 1 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o St r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 70 Eg A Cidade de Deus VIII 24 XIII 16 XVI 2 71 Cf De Ordine II 1029 72 A C idadedeD eusy2L áihidò5yi UyNlW 49 Ad Donat post ColLYl l Contm Duas Epist Petii II 2146 73 Cf A Cidade de Deus XDC 12 74 IbidyjX 7 fornecer a solução para o problema da vida humana procurada em vão pelos filósofos pagãos pode ser vista como um prolongamento e realização daquela tradição A nítida distinção que faz Agostinho entre as esferas da autoridade eclesiástica e civil suscita a questão geral de sua relação e de imediato sugere a possibilidade de um conflito entre elas Na melhor das hipóteses o conflito é resolvido pela coincidência entre sabedoria cristã e poder político É esta a situação que prevalece quando um cristão ocupa um cargo e exerce a sua autoridade em conformidade com os princípios cristãos e para o bem comum de seus súditos Tal é previsto expressamente por Tosti nho no Livro V capítulo 24 de A Cidade de Deus que pode ser lido como um espelho dos príncipes cristãos Tal situação conduz a uma restauração da unidade da cidade no plano do cristianismo e é muitíssimo desejável do ponto de vista do bemestar espi ritual e temporal do homem porém não há qualquer garantia de que prevalecerá ou se vier a ocorrer de que irá perdurar por longo tempo Nada há na obra de Agostinho que indique que previu o triunfo permanente da cidade de Deus na Terra por meio de uma reconciliação definitiva entre os poderes espiritual e temporal Além das afirmações sem reservas que distinguiram e definiram os domínios do espiritual e do temporal e suas respectivas jurisdições não se encontra em ostinho uma teoria detalhada da Igreja e do Estado semelhante às elaboradas supostamente com base em seus princípios durante os séculos que se seguiram Dadas as circunstân cias tão contingentes e imprevisíveis da existência da Igreja no mundo é pouco prová vel que Agostinho tenha de fato contemplado a possibilidade de articular a natureza das relações entre estas duas sociedades de uma forma que não fosse apenas muito geral Há no entanto um aspecto a respeito do qual foi forçado a assumir uma posição definitiva e que merece ser mencionado ainda que apenas por sua importância histó rica a saber o recurso ao chamado braço secular para reprimir os hereges e cismáticos A ocasião foi a controvérsia donatista cujas raízes remontavam ao século III e que paralisou a Igreja no norte da África durante a maior parte do século IV Agostinho começou por defender a persuasão como meio adequado para assegurar o retorno dos dissidentes ao rebanho católico mas opunhase com firmeza a qualquer intervenção por parte da autoridade temporal em um assunto que poderia ser considerado já de início como exclusivamente eclesiástico Os acontecimentos logo evidenciaram que medidas mais drásticas seriam necessárias para que fosse restaurada a ordem em particular porque o cisma assumira na época a aparência de um movimento naciona lista cujo rápido crescimento foi alimentado pelo perene ressentimento que nutria a população nativa na Áfirica contra a supremacia romana A intratabilidade peculiar dos donatistas sua constante agitação e os métodos terroristas a que com fiequência recor riam fizeram deles uma ameaça persistente não só para a unidade religiosa mas para a estabilidade social das províncias do Norte Africano Com relutância e somente de pois de ter esgotado todos os recursos Tostinho concordou em entregar o assunto às St A g o s t i n h o 1 81 75 Ver também A Cidade de Deus V 19 autoridades civis locais Sua decisão de sancionar o uso da força parece ter sido ditada em grande medida pela natureza política da situação e não por argumentos teológicos Ao tomar esta decisão Agostinho expressava sua convicção de que ninguém deve ser constrangido a aceitar a fé contra sua própria vontade Distinguiu com cuidado entre os donatistas que abraçaram o cisma de modo voluntário e aqueles que buscavam a verdade de boafé e eram donatistas apenas por terem nascido de pais donatistas Advertiu também contra a excessiva severidade na punição dos infratores e estipulou que as penalidades deveriam ser mitigadas em favor de todos aqueles que pudessem ser persuadidos a abjurar seus erros Infelizmente seu gesto estabeleceu um precedente cujas conseqüências ultrapassaram em muito quaisquer efeitos que ele mesmo pudes se prever O que era para ele uma mera concessão à necessidade ou no máximo uma medida de emergência destinada a lidar com uma situação específica foi mais tarde invocado como um princípio geral para justificar as represálias da Igreja contra os hereges e apóstatas Sendo este o caso Agostinho pode ser culpado em parte pela per seguição religiosa da Idade Média que veio a ser encarada como um excelente exemplo da desumanidade promovida pela indevida exaltação de padrões morais e se tornou objeto de uma das principais críticas feitas à Igreja durante o período moderno C r is t ia n is m o e Pa t r io t is m o Por motivos exclusivamente políticos a solução de Agostinho para o problema da sociedade civil ficou exposta a uma objeção importante da qual ele próprio ti nha plena consciência e a qual foi repetidas vezes forçado a enfrentar O cristianismo reivindicara seus direitos à superioridade por sua capacidade de tornar os homens melhores e aos olhos dos incrédulos podese dizer que resistiria ou cairia por conta dessa reivindicação Para o observador imparcial no entanto não era de forma algu ma evidente que o cristianismo tivera sucesso onde falhara a filosofia política pagã ou que a sua difusão fosse seguida por uma acentuada melhoria nas relações humanas De fato os distúrbios sociais e políticos que há muito flielavam Roma tanto interna como externamente pareciam ter aumentado e não diminuído apesar de o cristianis mo outrora perseguido e enfim tolerado terse tornado a religião oficial do império sob Teodósio Não é verdade pergunta Agostinho que desde a vinda de Cristo o estado das coisas humanas tem sido pior do que era antes e que os assuntos humanos eram muito mais auspiciosos do que agora Um confronto aberto entre cristãos e pagãos já ocorrera em 382 quando Graciano ordenou que o Altar da Vitória fosse removido do Senado contrariando a oposição da facção pagã liderada por Símaco que sustentava que mais cedo ou mais tarde qualquer desvio significativo dos cultos e práticas tradicionais de Roma revelarseia prejudicial ao império A queda de Roma nas mãos de Alarico e dos godos em 410 acrescentou um clímax dramático à situação 1 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 76 Contra Duas Epist PetiL II 83 184 Epist 431 1 77 En in Psal 1369 Os cristãos foram logo responsabilizados pelo desastre e a antiga acusação de que o cristianismo era hostil ao bemestar da sociedade alastrouse entre a população pagá Foi mesmo para responder a essa acusação que ostinho comprometeuse a escrever A Cidade de DeusJ Roma argumentavase devia sua grandeza ao fevorecimento de seus deuses Ao abandonar esses deuses por uma nova religião incorrera em sua ira e se privou de sua proteção Assim grosso modo o argumento poderia ser combatido ao se mostrar que toda a história romana desde seus primórdios fora marcada por intermináveis guerras e conflitos civis e que uma vez que estes males sociais eram anteriores ao cristianismo a lógica não permitia que fossem atribuídos a ele É óbvio porém que essa popular controvérsia contra o cristianismo apenas em parte desvendava o verdadeiro proble ma cujo caráter era político e não religioso Por trás da crença comum em divindades tutelares jazia a acusação mais grave de que o cristianismo acarretara um declínio na virtude cívica e poderia com toda a aparência de boa razão ser considerado ao me nos indiretamente responsável pela deterioração da fortuna política do império Ao recrutar homens para o serviço de um país maior e mais nobre dividiu a cidade e enfraqueceu sua reivindicação incondicional da lealdade dos seus cidadãos Inevitavel mente a dupla cidadania que impôs a seus seguidores promoveu uma desvalorização de toda a ordem política e tornou mais difícil senão impossível a plena dedicação à cidade e a seu regime Como observa o próprio Agostinho no que concerne à vida dos mortais que se exaure e termina em poucos dias que importa sob cujo domínio morrerá um homem desde que aqueles que governam não o forcem à impiedade e à iniqüidade Pior ainda muitos dos mais característicos ensinamentos da nova fé pareciam entrar em conflito aberto com os sagrados deveres e direitos da cidadania Sua doutrina da fraternidade de todos os homens e de sua igualdade diante de Deus bem como seus preceitos que impóem o amor pelos inimigos e o perdão das ofensas tendiam todos à primeira vista a solapar a força militar da cidade e a subtrair sua for ma mais poderosa de defesa contra inimigos externos Na mente dos contemporâneos de Agostinho o perigo estava longe de ser ilusório Confrontados com a aparente e quase tiica impossibilidade de conciliar o cristianismo com a lealdade a seu país al guns dos próprios amigos de Agostinho por muitos anos recusaram o batismo mesmo depois de terem sido instruídos na fé Podese claro apontar para uma depreciação semelhante do puramente político na filosofia clássica a qual colocou a felicidade ou o bem mais elevado do homem na vida teórica ou filosófica e náo em uma vida de zelosa cidadania Contudo a fi losofia se dirigia a uma elite natural e não a todos os homens Por sua própria essên cia destinavase a permanecer como o reduto de um pequeno número de naturezas St A gostinho 1 8 3 78 Cf Retmctationes II 43 1A Cidade de Deus I 1 79 Epist 911 80 A Cidade de Deus V 17 81 Cf 15114 e 1362 bemnascidas e bemeducadas Por conseguinte pouco perigo havia de que viesse a se tornar uma força política no mesmo sentido que o cristianismo ou de ter o mesmo impacto direto e imediato na vida da cidade De modo típico a resposta de Agostinho a essa objeçáo geral funde argumentos retirados de fontes bíblicas e filosóficas Consiste em dizer em substância que o cristia nismo náo destrói o patriotismo mas o reforça fezendo dele um dever religioso Tan to os profetas do Antigo Testamento como os autores do Novo Testamento ordenam a obediência à autoridade civil e às leis da cidade Resistir a essas leis é desafiar os pró prios mandamentos de Deus na medida em que o próprio Deus reputa como a fina lidade da sociedade civil ser um remédio para o mal e a utiliza como um instrumento de misericórdia em meio a um mundo pecaminoso como ensina S Paulo no capítulo 13 da Carta aos Romanos a qual ostinho menciona diversas vezes neste contexto Assim sendo náo é legítimo alegar o serviço de Deus como motivo para eximirse de responsabilidades cívicas ou recusar a submeterse a governantes temporais Com efeito o cristianismo deve ser entendido acima de tudo como uma fé e nâo como uma lei divinamente revelada que rege todas as nossas ações e opiniões e convocada para substituir as leis humanas de acordo com as quais vivem os homens É compatível com qualquer regime político e em questões temporais não impõe um modo de vida próprio diferente daquele de outros cidadãos da mesma cidade Sua universalidade é tal que pode conviver sem dificuldades com as mais diversas práticas costumeiras As únicas práticas a que se opõe são aquelas que a própria razão denuncia como ma lévolas ou imorais Na verdade por censurar essas práticas e exortar seus seguidores a se absterem delas atende aos mais propícios interesses da cidade O julgamento que faz a respeito das limitações essenciais da sociedade civil não implica não mais que o dos filósofos pagãos um repúdio dessa sociedade Apesar de todas as suas imperfeições manifestas a sociedade civil ainda é o maior bem de seu tipo que os homens possuem Seu objetivo é ou deveria ser a paz terrena a qual buscam também os cristãos Na procura desse objetivo comum cristãos e não cristãos podem unirse e viver juntos como cidadãos da mesma cidade Além disso qualquer desvalorização da pátria se é que se pode mesmo falar de uma depreciação é compensada pelo fato de que o cristianismo exige e muitas vezes obtém de seus seguidores um grau mais elevado de moralidade e virtude Desta forma ajuda a combater o vício e a corrupção que são as verdadeiras causas da fraqueza e do declínio das cidades e nações Por conseguinte deixemos aqueles que dizem ser a doutrina de Cristo incompatível com o bemestar da nação darnos um exército de soldados tais como a doutrina de Cristo exige que sejam que nos deem súditos maridos e esposas pais e filhos mestres e servos reis juizes in fine até mesmo contribuintes e arrecadadores de impostos tais como a religião cristã ensina que os homens deveriam ser e então deixemos que se atrevam a dizer que é 184 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 82 A Cidade de Deus XIX 17 XV 4 prejudicial ao bemestar da nação Ao contrário não lhes permitamos hesitar em admitir que tal doutrina se íbsse obedecida seria a salvação da nação Finalmente é injusto afirmar sem mais reservas que o cristianismo provoca um desprezo pela bravura militar O Novo Testamento náo ordena que os soldados entre guem as suas armas mas ao contrário elogia sua retidão e virtude A imposição de retribuir o mal com o bem não diz respeito tanto às ações externas quanto à disposição interior com que essas ações devem ser executadas Procura assegurar que a guerra se precisa ser travada seja realizada com um fim benevolente e sem crueldade excessiva Os homens são compelidos a todo momento a fàzer o que mais provavelmente be neficiará seus semelhantes Em alguns casos atingese a paz e a punição dos transgres sores com mais fàcilidade e maior perfeição por meio do perdão do que pelo castigo severo enquanto em outros casos dar rédeas à injustiça e permitir que os crimes fiquem impunes seria o mesmo que consentir que os maus persistissem em seu mau caminho O que o cristianismo censura não é a guerra mas os males da guerra tal como o amor pela violência a crueldade vingativa o ódio feroz e implacável a resis tência selviem e o desejo de poder Ao sucumbir a esses males os homens perdem um bem que é muito mais precioso que qualquer um dos bens terrenos que um inimigo pudesse lhes tomar Ao invés de aumentar o contingente dos bons limitamse a expan dir a multidão dos maus Assim sendo são admissíveis as guerras justas que devem ser travadas somente por necessidade e em prol da paz A decisão de empreender uma guerra cabe ao monarca ou governante a quem é confiado o bemestar da nação como um todo Quanto ao soldado raso seu dever é obedecer a ordens Ele próprio não é responsável pelos crimes que possam ser cometidos em casos em que não está claro se as ordens são justas ou injustas Embora concorde que haveria menos conflitos entre os homens se todos compar tilhassem a mesma fé Agostinho jamais concebeu a paz universal como uma meta que pode ser alcançada nesta vida nem tampouco tirou desse monoteísmo a con clusão de que todos os homens devem unirse politicamente de modo a formar uma sociedade mundial única O único trecho em que o problema é retomado de modo explícito apresenta a situação mais feliz da humanidade e a mais propícia à virtude tal como aquela em que as cidades pequenas ou pequenos reinos existem lado a lado em vizinhança harmoniosa Mesmo tal situação porém jamais será concretizada de modo pleno ou definitivo Quer os homens gostem ou não a guerra é inevitável Os maus travam guerras contra os justos apenas porque assim o querem e os justos St A gostinho 1 8 5 83 Epist 138215 cf Epist 1375 20 e Epist 913 84 Epist 1894 Contra Faust Man XXII 75 85 Cf EHÍ 13821314 86 Cf Contra Faust Man XXII 74 Epist 1382 12 87 Contra Faust Man XXII 75 88 Epist 1895 89 A Cidade de Deus W 5 guerreiam cxintra os ímpios pmque precisam fiizêlo Em ambos os casos as cidades independentes e pequenos reinos afinal acabam por dar lugar a grandes reinos estabe lecidos por meio da conquista dos mais fracos pelos mais fortes O melhor que se pode esperar na prática é que a causa dos justos triunfe sobre a dos injustos pois nada é mais prejudicial para todos inclusive os próprios malfeitores que a prosperidade des ses últimos que a usarão para oprimir os bons As observações de Agostinho nesse sentido não se dirigem tanto contra seus críti cos p o s quanto a seus correligionários e em alguns casos seus próprios discípulos Vários autores cristãos proeminentes desse período Eusébio Ambrósio Prudêncio e Orósio entre eles interpretaram em sentido literal ou temporal determinadas pro fecias do Velho Testamento relacionadas às bênçãos da era messiânica e previram uma era de paz e prosperidade sem precedentes sob os auspícios do cristianismo e como resultado direto de seu florescimento como religião mundial que une todos os ho mens no culto ao verdadeiro Deus Alguns desses autores chegaram a comparar as perseguições cristãs cujo número fora de modo um tanto arbitrário calculado em dez às dez pragas do Egito e deduziram desse paralelo que a Igreja não teria mais de suportar tantas dificuldades até a grande perseguição do final dos tempos anunciada pela Sagrada Escritura Para o cristão foi prometido o melhor dos dois mundos pois de acordo com a interpretação proposta não só o cristianismo oferecia a expectativa da bemaventurança eterna no céu como também fornecia a resposta ao problema mais urgente do homem aqui na Terra Agostinho descarta todas essas interpretações por serem ardilosas mas não terem fundamento na Escritura e serem contrárias a seus ensinamentos Não nega que a arte e a indústria humanas realizaram maravilhosos e espantosos avanços no decorrer do tempo mas acrescenta em seguida que este progresso material e intelectual não se faz necessariamente acompanhar por um aumento correspondente da bondade moral pois se essas invenções beneficiam o homem podem também ser usadas para destruí lo Também rejeita de imediato a visão de que os males desaparecerão ou mesmo diminuirão com a passiem do tempo Deus sendo todopoderoso poderia decerto extirpar todo o mal mas não sem a perda de um bem maior para a humanidade De maneira particular os males que Deus permite contribuem para o avanço espiritual do homem Servem como prova para os justos e castigo para os maus Da mesma forma assaram que Deus será amado por Si mesmo e não apenas pelas vannens materiais que revertem para os homens como conseqüência de suas boas ações e a imposição ao homem da necessidade de superar esses males tanto dentro como fora de si permite Ihe atingir um nível cada vez mais elevado de virtude e perfeição moral 186 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 90 Ibid IV 3 XIX 7 91 Aídí XVIII 52 92 Ibid XXII 24 93 Ibid I 29 XXII 22 e 23 De modo mais geral os males da existência humana sáo eles mesmos parte de um plano global que Deus executa entre os homens Nesta medida podese dizer que sáo ra cionais mas sua racionalidade supera a razão humana Além do simples fato registrado pela Sagrada Escritura de que a história s e seu curso não em cidos mas ao longo de uma linha reta que aça por etapas sucessivas para atingir um objetivo preestabele cido e que com a vinda de Cristo entrou na sua fese final há muito pouco ou nada que revde o significado interno ou os propósitos dos acontecimentos humanos Para o observador na Terra esses eventos conservam sua obscuridade fimdamental mesmo após terem ocorrido Apreciada em sua totalidade a vida das sociedades terrenas se revela não como uma progressão ordenada procursus em direção a um fim determinado mas como um processo simples excursus pdo qual as duas cidades cumprem sua existência terrena com sua mistura característica de sucessos e fiacassos mas sem garantia de salva ção neste mundo pois só no paraíso foi prometido o que na Terra buscamos O cristianismo como o entende Agostinho de fato fornece uma solução para o problema da sociedade humana mas não uma solução alcançada ou alcançável por meio da sociedade humana Tal como a dos filósofos clássicos embora de maneira diversa esta solução continua a ser transpolítica em sua essência L e it u r a s A St Augustine The City of God Trans Marcus Dods New York Modem Library 1950 Bk XIX St Augustine ZeOm91 e 138 ViSáaSeàASelectlÀbmryofdjeNiceneandPostNiceneFatherstfthe Christian Church v I The Confessios and Letters fSt Augustine Grand Rapids Eetdmans 1956 B St Augustine The City of God Viss 11 2122 IVVIIIXrV 14 1115 28 St Augustine On Free Will Tians John H S Burleigh The Library of Christian Classics v VI Augus tine Earlier Writin Philadelphia The Westminstet Press 1953 Bk I St Agostinho 187 94 Cf ite XII 1121 95 Cf De Catech Rud XXII 39 DeGen contra Man I 2324 A Cidade de Deus XXII 30 in fine 96 Ver a carta de j stin h o a Firmo C Lambot ed Retnie Berudictine 51 1939 p 212 Também A Cidade de Deus XV 21 XDC 5 Retractationes II 432 97 En in Psal 486 A lfarábi A circa 870950 Alfarábi alFãrãbi foi o primeiro filósofo que tentou confrontar relacionar e tanto quanto possível harmonizar a filosofia política clássica com o islá uma religião revelada por um profeta legislador Maomé sob a forma de lei divina que organiza seus seguidores em uma comunidade política e determina suas crenças bem como estabelece princípios e normas detalhados para sua conduta Ao contrário de Cícero teve de enfrentar e resolver o problema da introdução da filosofia política clássica em um ambiente cultural radicalmente diferente ao contrário de Agostinho não dispu nha de uma esfera relativamente livre nesta vida terrena em cuja organização a filosofia política clássica pudesse aplicarse inconteste mas precisava enfirentar e resolver o pro blema do conflito entre as reivindicações da filosofia política e da religião por todos os aspectos da vida do homem A relevância da posição que ocupa Alfiuábi na história da filosofia política con siste em sua recuperação da tradição clássica e em tornála inteligível dentro do novo contexto fornecido pelas religiões reveladas Seus escritos mais conhecidos são as obras políticas preocupadas com os rimes políticos e com a obtenção da felicidade por meio da vida política Essas obras apresentam o problema da harmonia entre a filosofia e o islã sob nova perspectiva a da relação entre o melhor regime em particular segun do o entendimento de Platão e da lei divina do islã Sua posição na filosofia islâmica corresponde à de Sócrates ou Platão na filosofia grega pois é possível afirmar que sua principal preocupação é a relação entre a filosofia e a cidade Alfiuábi instituiu uma tradição que dependia dele e através dele de Platão e Aristóteles para encontrar uma abordagem filosófica aplicável ao estudo e compreensão dos fenômenos políticos e religiosos Suas obras inspiraram homens como Avicena Averróis e Maimônides que o admiravam como seu segundo mestre depois de Aristóteles e foi o único pensador pósclássico cuja autoridade conquistou seu respeito lado a lado com os antigos C iê n c ia D iv in a e C iê n c ia P o l ít ic a Notáveis são as diversas semelhanças que existem entre algumas das característi cas fundamentais do islã e do bom regime conjeturado pela filosofia política clássica em geral e por Platão nas Leis em particular Ambos se iniciam com um deus como a causa primordial da legislação e consideram as crenças corretas sobre os seres divinos e o mundo da natureza como essenciais para a constituição de um bom regime político Em ambos essas crenças devem refletir uma imagem adequada do cosmos tornar acessível aos cidadãos em geral e de forma que possam compreender a verdade sobre as coisas divinas e sobre os mais elevados princípios do mundo ser propícias à ação virtuosa e fazer parte do aparato necessário para a obtenção da felicidade suprema Ambos consideram ser as funções do fimdador e legislador e após este de seus su cessores na liderança da comunidade de importância absolutamente central para sua organização e preservação Ambos se preocupam com a dádiva e a preservação das leis divinas Ambos se opõem à visão de que a mente ou alma é derivada do corpo ou é ela mesma corpórea uma visão que corrói a virtude humana e a vida comunitária e à piedade timorata que condena o homem a se desesperançar da possibilidade de algum dia compreender o significado racional das crenças que é convocado a aceitar ou das atividades que é chamado a realizar Ambos direcionam os olhos dos cidadãos para uma felicidade que está além das suas preocupações terrenas Finalmente ambos rele gam a arte do jurista e do teólogo apologético para a posição secundária de preservar a intenção do fundador e de sua lei e de construir um escudo contra ataques As relevantes obras políticas de Alfarábi A Cidade Virtuosa A Religião Virtuosa e O Repme Político constituem um ponto de encontro entre o islã e a filosofia política clássica em que essas afinidades e não as eventuais diferenças ou conflitos ocupam o primeiro plano Ao enfatizar tais afinidades e incentivar ou mesmo forçar tanto o islã como a filosofia a darem um passo cada um na direção do outro pretende evidenciar os elementos comuns em ambos e incentivar e orientar seu leitor muçulmano para que venha a entender os aspectos caraaerísticos da filosofia política clássica Tal se revela antes de tudo pelo próprio estilo dessas obras e pelo modo como foram engen dradas Estilisticamente assemelhamse tanto aos códigos legais quanto aos tratados filosóficos Consistem principalmente em proposições afirmativas sobre os atributos de Deus a ordem do mundo o liar do homem nele e a maneira como uma boa sociedade deve ser organizada e conduzida u padrão comum às Leis de Platão e ao Alcorão muitas dessas afirmações são antecedidas por prelúdios que abrem caminho para a promulgação de sólidas leis que regulam a conduta dos governantes e prescrevem as crenças e ações dos cidadãos Embora náo sejam tratados filosóficos ou políticos ou promulgação de leis específicas no sentido estrito essas obras contêm os resultados das investigações filosóficas e políticas apresentados de forma útil para a prática como base para a formulação de um plano para organizar um bom regime político São obras cuja forma e intenção podem ser compreendidas com facilidade por um leitor muçulmano comprometido com a aceitação de uma visão verdadeira do mundo em geral e com a obediência às leis que promovem a virtude e conduzem à A lfa rAb i 1 8 9 Alíãrabi The Enumeration ofthe Sciences ed Osman Amine 2 ed Cairo Dãr alFikr alArabi 1949 v The Virtueus ReUgion MS Leiden Cod Or No 1002 fbls 53v54v felicidade suprema Mas também estão em conformidade com a intenção da filosofia política clássica na medida em que têm por objetivo apresentar uma explicação racional e convincente do mundo expressa em termos compreensíveis para os cidadãos Cumprem uma tarefa prática importante na medida em que indicam com sua publicação a possi bilidade de uma compreensão racional que não destrói mas conserva e explica as crenças e ações prescritas pela lei revelada e realizam um trabalho preparatório na medida em que apontam uma direção em que se pode buscar essa compreensão racional As obras políticas de Alfiirábi constituem um novo gênero na literatura política islâmica Com habitual cautela com discrição o autor se abstém de citar diretamente interpretar ou mesmo referirse ao Alcorão a Maomé ou a questões religiosas espe cíficas do islã Todavia é inconfundível a primeira impressão que as obras de Alfarábi deixam em seus leitores o autor tem a intenção de permitir que seus correligionários e na verdade todos os que comungam das religiões reveladas percebam a vasta área de harmonia que existe entre sua lei divina e a intenção prática da filosofia política clás sica Esses leitores podem ora enxergar na sua lei divina uma realização prática das doutrinas dos mais proeminentes sábios da Antiguidade Podem dedicarse ao estudo desses filósofos não apenas com o intuito limitado de defender suas próprias crenças e práticas ou com o propósito negativo de assegurar a si mesmos que a compreensão racional é impotente perante a autoridade superior da revelação e da lei divina mas para elevarse acima do estado servil de crédulos cegos e para descortinar as intenções secretas da revelação e da lei divina para iluminarse por meio da compreensão da tradição mais respeitável da sabedoria humana a respeito da sabedoria da sua religião Alfarábi oferecelhes nessas obras a possibilidade de assumir uma nova atitude para o estudo das obras de Platão e Aristóteles Encorajaos a não mais considerar esses filósofos como os criadores de uma tradição estrangeira capaz de solapar suas crenças e virtudes sociais ou como uma tradição que deveriam estudar com o objetivo de refu tála e combatêla Faz com que compreendam que esta tradição pertence a eles tanto quanto aos gregos e que devem fazêla sua pois se interessa pelas questões mais caras a seus corações e mentes Dálhes a esperança de uma melhor compreensão de sua mais elevada questão política e religiosa os temas que constituem a essência da sua religião e seu modo de vida que os distinguem de seus ancestrais pagãos e lhes propiciam sua reivindicação exclusiva de superioridade sobre outras comunidades O R e g im e V ir t u o s o O tema central dos escritos políticos de Alfarábi é o regime virmoso a ordem política cujo princípio orientador é a realização da excelência humana ou virtude O autor concebe a ciência humana ou ciência política como a investigação sobre o ho mem na medida em que este se distingue de outros seres naturais e de seres divinos buscando compreender sua natureza específica o que constituí a sua perfeição e o modo como pode atingila Ao contrário de outros animais o homem não se torna perfeito apenas por meio dos princípios naturais presentes nele e ao contrário dos 1 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y seres divinos não é eternamente perfeito mas precisa atingir a perfeição por meio da atividade que provém da compreensão racional da deliberação e da escolha entre as diversas alternativas que lhe são sugeridas pela razão A presença inicial da capacidade para o conhecimento racional c da escolha a ele vinculada é a perfeição primeira ou natural do homem a perfeição com que nasce e não escolhe Para além daí a razão e a escolha estão presentes no homem a íim de que sejam usadas para atingir sua meta ou a maior perfeição possível à sua natureza Esta perfeição maior é idêntica à suprema felicidade à sua disposição A felicidade é um bem desejado por si mesmo nunca se deseja alcançála para conquistar algo mais por meio dela e não há nada maior além dela que o homem possa alcançar Todavia a felicidade não pode ser alcançada sem primeiro ser conhecida e sem a realização de determinadas atividades disciplinadas corporais e intelectuais úteis ou que conduzem à conquista da perfeição São estas as atividades nobres A distinção en tre as atividades nobres e vis é assim guiada pela distinção entre o que é útil e o que impede a perfeição e a felicidade Para realizar bem uma atividade com facilidade e de forma ordenada é necessária a formação do caráter e o desenvolvimento de hábitos que tornem possíveis tais atividades São as virtudes as formas e estados de caráter das quais emanam essas nobres atividades não são bens por si mesmas mas bens apenas em prol da felicidade A distinção entre virtude e vício pressupõe um conhecimento do que é a perfeição humana ou felicidade bem como a distinção entre as atividades nobres e vis O regime virtuoso pode ser definido como o regime em torno do qual se agregam e cooperam os homens com o objetivo de se tornarem virtuosos realizarem atividades nobres e alcançarem a felicidade Distinguese pela presença do conhecimento da per feição última do homem da distinção entre os nobres e os vis e entre as virtudes e os vícios e do esforço conjunto dos governantes e dos cidadãos para ensinar e aprender tais coisas e desenvolver as formas virtuosas ou estados de caráter dos quais emergem as atividades nobres que contribuem para alcançar a felicidade A conquista da felicidade significa a perfeição da potência da alma humana que é específica do homem de sua razão Esta por sua vez exige disciplinar os desejos infe riores para cooperarem e auxiliarem a razão na realização de sua atividade apropriada e também na aquisição das mais elevadas artes e ciências Tal disciplina e aprendizado podem ser conquistados apenas por aqueles raros que possuem os melhores dons natu rais e que têm também a sorte de viver em condições nas quais se podem desenvolver as virtudes necessárias e realizar as atividades nobres Os demais homens só podem alcançar certo grau desta perfeição e o ponto que conseguirão atingir no grau de per feição de que são capazes é influenciado de modo decisivo pelo tipo de regime político em que vivem e pela educação que recebem No entanto todos os cidadãos do regime virtuoso devem ter algumas noções em comum sobre o mundo o homem e a AÚda po A l f a r á b i 1 9 1 The Virtuous City ed Fr Dieterid Leiden Brill 1895 p 46 cf ThePoüHcdRepme Hydeiabad Dãirat alMaãrif alUthmânlyyah 1345 A H p 4245 48 Ytnmm City p 46 cf The Political Repme p 4344 lítica Contudo divergirão no que diz respeito ao caráter desse conhecimento e por tanto no que diz respeito à sua quota de perfeição ou de felicidade Podem dividirse em geral nas três classes seguintes 1 Os sábios ou filósofos que conhecem a natureza das coisas por meio de provas demonstrativas e por suas próprias percepções 2 Os seguidores daqueles que conhecem a natureza das coisas por meio das demonstrações apresentadas pelos filósofos e que confiam no discernimento e aceitam o julgamento dos filósofos 3 Os demais cidadãos os muitos que conhecem as coisas por meio de similitudes algumas mais outras menos adequadas dependendo de seu status como cidadãos Essas classes ou níveis devem ser ordenados pelo governante que deve tam bém ordenar a educação dos cidadãos atribuirlhes as suas funções especializadas instituir suas leis e comandálos na guerra Deve procurar pela persuasão e coerção desenvolver em cada um as virtudes de que é capaz e ordenar hierarquicamente os cidadãos para que cada classe possa alcançar a perfeição de que é capaz e ainda assim servir à classe acima dela É desta maneira que a cidade tornase um conjimto seme lhante ao cosmos e os seus membros cooperam para atingir a felicidade O regime virtuoso é um regime monárquico ou aristocrático não hereditário em que o melhor governo com os demais cidadãos divididos em grupos que dependendo de seu status são governados e por sua vez governam até chegarse ao grupo mais inferior que só é governado O único critério para a classificação de um cidadão é o caráter da virtude de que é capaz e que tem capacidade de desenvolver por meio de sua participação no regime e pela obediência a suas leis Como o próprio regime os seus cidadãos são virtuosos primeiro porque possuem ou seguem aqueles que possuem similitudes corretas do conhecimento dos seres divinos e naturais da perfeição humana ou da felicidade e dos princípios do regime concebido para auxiliar o homem a atingir esta felicidade e segundo porque agem de acordo com esse conhecimento pois seu caráter é formado com vistas à realização das atividades conducentes à felicidade Uma vez que estejam esclarecidas as principais características do rime virtu oso passam a ser relativamente simples a compreensão das principais características e a classificação de todos os outros regimes Alferábi divideos em três grandes tipos 1 Os regimes cujos cidadãos não tiveram a oportunidade de adquirir qualquer co nhecimento sobre os seres divinos e naturais ou sobre a perfeição e a felicidade Estes são os regimes ignorantes Seus cidadãos buscam metas inferiores boas ou más no completo olvido da verdadeira felicidade 2 Os regimes cujos cidadãos possuem o conhecimento dessas coisas mas não agem de acordo com suas exigências Estes são os regimes perversos ou imorais Seus cidadãos têm a mesma opinião que os do regime virtuoso todavia seus desejos não atendem à porção racional deles mas os desvia para a procura das metas inferiores buscadas nos regimes ignorantes 3 Os regimes cujos cidadãos adquiriram algumas opiniões sobre tais coisas mas opiniões falsas ou cor rompidas ou seja opiniões que alegam ser sobre os seres divinos e naturais e sobre a verdadeira felicidade quando na verdade não o são As similitudes apresentadas a tais cidadãos são portanto falsas e corruptas e assim são também as atividades prescritas para eles Estes são os regimes que foram desencaminhados ou os regimes equivocados 1 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o iin c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Os cidadãos desses regimes não possuem o verdadeiro conhecimento ou as similitudes corretas e buscam eles também as metas inferiores dos rimes ignorantes Os r mes equivocados podem ter sido fundados desfâ forma Este é o caso dos regimes cujo governante supremo é alguém que está sob a ilusão de ter recebido a revelação sem têlo feito e quanto à qual emprega deturpações enganos e ilusões Mas também podem ter sido regimes originalmente virtuosos que foram alterados pela introdução de pontos de vista e práticas felsos ou corrompidos Todos esses tipos de regimes se opõem ao regime virtuoso porque lhes fàlta seu prin cípio orientador que é o conhecimento e a virtude verdadeiros ou a formação do cará ter para as atividades conducentes com a verdadeira felicidade Ao contrário o caráter dos cidadãos é formado com vistas a alcançar uma ou mais das metas inferiores Tais metas são estimadas por Alfarábi como seis e cada um dos tipos gerais já menciona dos pode ser subdividido de acordo com a meta que nele predomina 1 O regime da necessidade ou o regime indispensável no qual o objetivo dos cidadãos limitase às necessidades básicas da vida 2 O regime vil oligarquia no qual o objetivo último dos cidadãos é a riqueza e a prosperidade por si mesmas 3 O regime ignóbil cujos ci dadãos têm como objetivo o gozo dos prazeres sensoriais ou imsinários 4 O r m e de honra timocracia cujos cidadãos visam ser honrados louvados e glorificados pelos demais 5 O regime de dominação tirania cujos cidadãos visam oprimir e sujeitar os demais 6 O regime de associação compartilhada democracia cujos cidadãos têm como objetivo principal serem livres para fazer o que bem entenderem O R e i F il ó s o f o e o L e g is l a d o r P r o f e t a Combinar a ciência divina e a ciência política é enfetizar a importância política de convicções sólidas sobre seres divinos e sobre os princípios do mundo Vimos que tanto o islã como a filosofia política clássica estão de acordo sobre esta questão Os muçulmanos acreditavam que a principal justificativa para sua existência como comu nidade distinta era a revelação da verdade sobre as coisas divinas a Maomé e que se este não tivesse vindo a eles com esta mensagem teriam continuado a viver na miséria e incerteza sobre seu bemestar neste mundo e no próximo Era também devido a tais considerações que Platão acreditava que os reis deveriam tornarse filósofos ou reis fi lósofos Uma vez que a procura pelo melhor rime atinge a necessidade de combinar ciência divina e ciência política tornase necessário que o governante combine a arte de governar com a da profecia ou da filosofia O governante profeta ou o governan te filósofo é o ser humano que oferece a solução para a questão da concretização do melhor regime e as funções do governante profeta e do governante filósofo sob este aspecto parecem ser idênticas Alfarábi 193 Virtuous City p 63 cf The Political Regime p 74 Alfiirábi começa sua discussão sobre o governante supremo dando énfàse à função comum do governante filósofo e do governante profeta como governantes que são o elo entre os seres divinos superiores e os cidadãos que não têm acesso direto ao conhe cimento desses seres Este governante supremo é o mestre e guia que dá a conhecer aos cidadãos o que é a felicidade que desperta neles a determinação de fàzer o que for necessário para atingila e que não precisa ser governado por um homem em coisa alguma Deve possuir conhecimento não precisar de nenhum outro homem para guiálo ter excelente compreensão de tudo o que deve ser feito ser excelente em guiar todos os outros naquilo que sabe ter a capacidade de fàzer os outros desempenharem as funções para as quais estão aptos e ter a capacidade de determinar e definir o tra balho a ser executado por outros e direcionar esse trabalho para a felicidade Evidente mente essas qualidades demandam não só os melhores dotes naturais mas também o pleno desenvolvimento da fiiculdade racional De acordo com a psicologia aristotélica tal como Alferábi a apresenta em suas obras políticas a perfeição da fàculdade racional consiste em sua correspondência ou união com o Intelecto Ativo O governante supremo deve ser um homem que põe em prática sua fàculdade racional ou que está em união com o Intelecto Ativo Este homem é o verdadeiro príncipe de acordo com os antigos é o único de quem se deve dizer que recebe a revelação Pois o homem recebe a revelação somente quando atinge esse status isto é quando já não há intermediário entre ele e o Intelecto Ativo Ora uma vez que o Intelecto Ativo emana do ser da Causa Primeira Deus podese dizer por esse motivo que é a Causa Primeira que pioduz a revelação para este homem por meio da mediação do Intelecto Ativo O governo deste homem é o governo supremo todos os demais governos humanos são iníêrioies a ele e dele derivam Esse governante supremo é a fonte de todo o poder e conhecimento no regime e é por meio dele que os cidadãos tomam conhecimento do que devem saber e fazer Assim como Deus ou a Causa Primeira do mundo dirige tudo o mais e como tudo o mais é direcionado para Ele deve ocorrer o mesmo na cidade virtuosa de forma or denada todas as suas partes deveriam em suas atividades seguir o exemplo das metas de seu governante supremo O governante supremo possui poderes ilimitados e não pode ser submetido a qualquer ser humano ou regime político ou leis Tem o poder de confirmar ou revogar leis divinas anteriores de promulgar novas e de alterar para ou tra uma lei que tivesse instituído em algum momento se julgar melhor assim fàzêlo Somente ele tem o poder de ordenar as classes de pessoas no regime e de atribuirlhes seus níveis E é ele quem lhes oferta o que precisam saber 194 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 5 The Potíticd Regime p 4849 6 Ibid p 4950 7 Virtuous City p 5657 cf Political Regime p 5354 8 Political Regime p 5051 Para a maioria das pessoas esse conhecimento tem de assumir a forma de uma representação imaginativa da verdade em vez de uma concepção racional dela Tal ocorre porque a maioria das pessoas não é dotada ou não pode ser treinada para conhecer as coisas divinas em si mas é capaz apenas de compreender suas imitações que devem ser adaptadas para caber em seu poder de compreensão e em suas condi ções e experiência específicas como membros de um determinado regime A religião é um desses conjimtos de representações imaginárias sob a forma de uma lei divina instituída para um determinado grupo de homens e necessária devido à incapacidade da maioria dos homens de conceber as coisas de forma racional e à sua necessidade de acreditar na imitação de seres divinos e da felicidade e da perfeição tal como lhes é apresentada pelo fundador de seu regime O fundador não deve portanto apresentar uma explicação racional ou conceituai de felicidade e dos princípios divinos só para os poucos mas também representar ou imitar adequadamente essas mesmas coisas para os muitos Todos os cidadãos devem aceitar e preservar aquilo que ele lhes confia os que persem a felicidade tal como a entendem e aceitam os princípios divinos tal como os conhecem são os sábios e aqueles em cujas almas se encontram estas coisas sob a forma de imagens e que as aceitam e as seguem como tais são os fíéis Até aqui Alferábi cria uma identificação entre o governante profeta e o gover nante filósofo Ambos são governantes supremos absolutos e ambos têm autoridade absoluta no que diz respeito a legislar sobre crenças e ações Ambos adquirem essa autoridade em virtude da perfeição de suas faculdades racionais e ambos recebem a revelação de Deus por meio da interferência do Intelecto Ativo De que maneira então o governante profeta difere do governante filósofo A primeira e principal qualificação que o governante do regime virtuoso deve possuir é um tipo especial de conhecimento das coisas divinas e humanas Ora o homem possui três faculdades para o conhecimento sensação imaginação e razão teórica e prática e estas se desenvolvem nele nessa ordem A imiginação tem três funções 1 Age como um reservatório de impressões sensíveis após o desaparecimento dos objetos sensórios 2 Combina impressões sensíveis para formar uma imagem sensível complexa 3 Produz imitações Tem a capacidade de imitar todas as coi sas não sensíveis desejos humanos temperamento paixões por meio das impressões sensíveis ou de determinadas combinações delas Mais tarde quando se desenvolve a feculdade racional e o homem começa a compreender o caráter a essência ou a forma dos seres naturais e divinos a feculdade da imaginação recebe e imita essas formas racionais também isto é representaas sob a forma de impressões sensíveis Neste aspecto a imsginação é subordinada à faculdade racional e depende dela para obter os originais que imita não tem acesso direto à essência dos seres naturais e divinos Além disso nem todas as imitações que febrica são cópias perfeitas algumas A lfa rXb i 1 9 5 9 Ibid p 56 10 NT Todas as citações nestas notas referemse aos textos em árabe algumas das obras mencionadas foram traduzidas para o inglês As traduções que reproduzem a paginação dos textos árabes são enumeradas na lista de Leituras no final deste capítulo As traduções para o inglês no correr do capítulo foram feitas pelo autor podem ser mais verdadeiras e mais próximas aos originais outras defeituosas em al guns aspectos e outras ainda extremamente íàlsas ou enganosas Finalmente apenas a íàculdade racional que apreende os próprios originais é que pode julgar o grau de veracidade dessas cópias e de sua semelhança com os originais A faculdade racional é a única feculdade que tem acesso ao conhecimento dos seres divinos ou espirituais e deve exercer um controle rigoroso para garantir que as cópias oferecidas pela facul dade imaginativa sejam imitações boas ou aceitáveis Pode acontecer em casos raros que esta faculdade imaginativa seja tão poderosa e perfeita que supere todas as outras faculdades e passe diretamente a receber ou formar imagens de seres divinos Este caso raro é o caso da profecia Nâo é impossível que o homem quando seu poder imaginativo atinge a perfeição máxi ma deva receber em suas horas de vigília do Inteleao Ativo as imitações de inteligíveis distintos imateriais e todos os outros seres nobres sagrados e os divise Em virtude dos inteligíveis que recebeu terá assim o poder de profecia sobre as coisas divinas Este então é o mais perfeito estico alcançado pelo poder da imaginação e mais perfeito estágio que o homem atinge em virtude de seu poder imaginatívo A descrição da natureza da profecia portanto conduz à distinção entre a facul dade da imiinação e a faculdade racional Explica a possibilidade da profecia como a perfeição da feculdade da iminação e essa imnação é por pouco capaz de dispen sar a faculdade racional e receber as imagens de seres divinos diretamente e sem a me diação desta última Há dois poderes por meio dos quais o homem pode comunicarse com o Intelecto Ativo sua imaginação e sua feculdade racional ou o seu intelecto Quando se comunica com o Intelecto Ativo por meio de sua imaginação é um pro feta que adverte sobre o que vai acontecer e que informa sobre o que está acontecendo agora enquanto quando se comunica com o Intelecto Ativo por meio de sua facul dade racional é um homem sábio um filósofo e tem inteligência completa Parece então que se pode dizer que tanto o governante profeta como o gover nante filósofo possuem a qualidade de conhecimentos necessária para serem o go vernante supremo da cidade virtuosa ou que são possíveis dois tipos de regimes igual mente virtuosos um governado por um profeta sem filosofia e o outro governado pelo filósofo sem profecia Todavia em seus escritos políticos Alfarábi nem sequer examina a possibilidade de um regime virtuoso governado por um profeta que não possua uma íàculdade racional desenvolvida A distinção entre a profecia e a filosofia é psicológica e é útil para a compreensão da natureza da profecia e da filosofia respec tivamente Mas ao discutir a qualidade dos conhecimentos exigidos pelo governante supremo Alfàrábi é explícito em exigir a perfeição de ambas as fàculdades o gover nante supremo não é chamado de profeta perfeito ou filósofo perfeito mas de ser humano perfeito Para começar com o filósofo até mesmo a filosofia ou a sabedoria 1 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Virtuous City p 52 12 Ibid p 5859 que busca permanecem incompletas enquanto náo dispõe da maestria perfeiu da imi ução do conhecimento racional ou teórico que possui a fim de transmitilo aos jovens ou apresentálo à multidão Esta falta tornase um defeito fundamental quando ele se depara com a tarefa de governar e educar uma cidade Seus próprios atributos como filósofo isto é como alguém que se dedica ao conhecimento teórico independente mente de seu emprego ou relação com a cidade desqualificamno como governante Não é possível ser governante filósofo sem o poder da imaginação do qual o profeu é o representante mais exímio Quanto ao profeu enquanto seu poder imiinativo parece tornálo particular mente apto para governar o funcionamento de sua imaginação não usufrui do bene fício do controle racional faltalhe a verificação constante do grau de veracidade ou verossimilhança das imitações produzidas por seu poder de imaginação uma função que somente a faculdade racional pode executar O melhor governante para a cidade virtuosa deve ser portanto um governante filósofo profeta Alfarábi não diz se o profe ta Maomé foi também filósofo mas exige a combinação da profecia e da filosofia ou o exercício da iminação e dos poderes racionais no governante supremo da cidade vir tuosa A filosofia ou sabedoria é indispensável pau governar unu cidade virtuosa Se acontecer a qualquer momento que a sabedoria não tenha qualquer participação no governo e a autoridade governante tiver preenchido todas as outras condições a ci dade virtuosa continua sem um príncipe o governante que cuida dos negócios desta cidade não será um príncipe e a cidade estará vulnerável à perdição Assim se não ocorrer que haja um homem sábio para associarse a ele então após algum tempo a cidade decerto perecerá L e i e S a b e d o r ia d e V id a A sabedoria ou filosofia é uma condição indispensável para a fundação e sobrevi vência da cidade virtuosa A profecia por outro lado é indispensável para a fundação de uma cidade virtuosa mas não para sua sobrevivência Ao enumerar as qualidades do governante supremo ou do fundador da cidade virtuosa Alfiirábi estipula a coinci dência de excelentes faculdades racionais e proféticas Esta exigência é imposta para a organização da cidade virtuosa como comunidade política isto é o fato de que deve ser composta por dois grandes grupos 1 os poucos que são filósofos ou a quem é possível dirigirse por meio da filosofia e a quem se pode ensinar as ciências teóricas e portanto o verdadeiro caráter dos seres divinos e naturais tal como são 2 os muitos que por lhes faltarem os dotes naturais necessários ou por não terem tempo suficien te para o treinamento não são filósofos que vivem pela opinião e persuasão e para quem o governante deve imitar tais seres por meio de similitudes e símbolos A l f a r á b i 1 9 7 1 3 Ibidp6 Enquanto é possível fezer com que os poucos entendam racionalmente o signi ficado da felicidade e da perfeição humanas e a base racional ou justificação das ativi dades virtuosas que conduzem o homem ao seu fim último os muitos são incapazes de tal entendimento e têm de ser ensinados a realizar essas atividades por persuasão e compulsão ou seja por explicações que poderiam ser entendidas por todos os cida dãos independentemente de sua capacidade racional e por recompensas e punições prescritas de um tipo tangível imediato O governante supremo ensina os poucos com sua autoridade de filósofo e apresenta similitudes e prescreve recompensas e punições para os muitos com sua autoridade de profeta Para serem acreditadas e praticadas por muitos essas similitudes e prescrições devem ser formuladas pelo profeta e aceitas pe los cidadãos como verdadeiras fixas e permanentes isto é os cidadãos devem esperar recompensas e punições definidas para a crença e a descrença e para a obediência e a desobediência A feculdade profética culmina então em promulgar leis relativas tanto às crenças quanto às práticas dos muitos e o profeta que assume esta função tornase um profeta legislador A feculdade racional em contrapartida culmina no ensino das ciências teóricas para os poucos Em seu resumo das Leis de Platão Alfiuãbi também entendeu afirmar Platão que esses poucos virtuosos não têm qualquer necessidade de práticas e leis fixas no entanto são muito felizes Leis e práticas fixas são necessárias somente para aqueles cuja moral é deturpada É somente do modo como são encaradas pelos sujeitos que as leis se tornam fixas e de autoridade divina inquestionável Vimos que o governante supremo do regime virtuoso é senhor e não servo da lei Não apenas homem algiun o governa como tam pouco é regido pela lei É a causa da lei que cria revoga e altera como bem entende Possui essa autoridade por causa de sua sabedoria e sua capacidade de decidir o que é melhor para o bem comum em determinadas condições e podem ocorrer situações nas quais alterações da lei não sejam apenas salutares mas imprescindíveis para a so brevivência do regime virtuoso Ao fezêlo o governante supremo deve ter extrema cautela para não perturbar a fé dos cidadãos em suas leis e deve levar em conta os efeitos adversos que têm as modificações ao serem incorporadas à lei Deve fazer uma cuidadosa avaliação das vantagens de mudar a lei contra as desvantagens de tais al terações Assim deve possuir não só a autoridade para modificar as leis sempre que necessário mas também a perícia de minimizar o risco das alterações para o bemestar do regime Porém uma vez que constata que é necessário alterar a lei e toma as devidas precauções não há dúvida quanto à sua autoridade para mudar a lei Portanto en quanto viver a íàculdade racional tem soberania e as leis são preservadas ou alteradas em função de seu julgamento como filósofo É esta coincidência de filosofia e profecia na pessoa do governante que garante a sobrevivência do regime virtuoso Enquanto os governantes que possuírem estas qua lidades se sucederem sem interrupção prevalecerá a mesma situação 1 9 8 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 14 Platds Laws ed Franciscus Gabrieli London Waibuig Instítute 1952 p 41 O sucessor será aquele que decidirá sobre o que seu antecessor deixou em abeno E não apenas isso Pode mudar grande parte do que seu antecessor legislara e tomar uma deci são diferente a respeito quando entender que é o melhor em seu tempo não porque seu antecessor tivesse cometido um erro mas porque decidira de acordo com o que era me lhor em seu próprio tempo e o sucessor decide de acordo com o que é melhor para um momento posterior Caso seu antecessor pudesse observar as novas condições também modificaria sua própria lei É muito rara a coincidência entre filosofia e profecia e o acaso nem sempre favo rece o regime virtuoso por tornar disponível um homem que possua todos os dons na turais necessários e cuja formação evidencie ser bemsucedida Assim surge a questão de saber se a cidade virtuosa pode sobreviver na ausência de um homem com todas as qualificações exigidas do governante supremo e em particular as da filosofia e da pro fecia Admitindo que a melhor configuração possível exija a existência de todas essas qualificações em um homem que deve governar seria possível o regime originado por tal governante sobreviver em sua ausência A única qualificação que Alferábi está dis posto a abandonar em4 Cidade Virtuosa é a profecia mas mesmo assim só se forem tomadas providências para a presença de substitutos adequados para a legislação profé tica Os substitutos consistem em 1 o conjunto de leis e costumes estabelecidos pelos verdadeiros príncipes e 2 uma combinação de novas qualidades no governante que o fazem dominar a arte da jurisprudência isto é o conhecimento das leis e costumes de seus antecessores a disposição de sua parte para obedecer a essas leis e costu mes ao invés de mudálos a capacidade de aplicálos às novas condições pela dedução de novas decisões a partir das leis e costumes consagrados ou a descoberta de novas aplicações para eles e a capacidade de reiir a cada nova situação para a qual não há decisões específicas disponíveis por meio da compreensão da intenção de legisladores anteriores e não pela promulgação de novas leis ou por uma alteração formal das an tigas No que concerne às leis este novo governante é um jurista legislador em lugar de um profeta legislador Deve porém possuir todas as outras qualidades incluindo a sabedoria ou filosofia que o capacitam a discernir e promover o bem comum de seu regime no período específico durante o qual governa No caso de não existir qualquer ser humano que possua todas essas qualificações então Alfiuábi sugere uma terceira possibilidade um filósofo e um outro homem que possua as demais qualidades com exceção da filosofia devem governar em conjunto Caso nem isso seja atingível sugere afinal um governo comum de um determinado número de homens que possuam essas qualificações em separado Contudo esse go verno comum não afeta a presença dos requisitos necessários mas apenas sua presença em um só homem Desta forma a única qualificação cuja própria presença pode ser dispensada é a profecia Os substitutos da profecia são a preservação das leis antigas e a capacidade de descobrir novas aplicações para as leis antigas Para promover o bem co mum e a preservação do regime sob novas condições à medida que surgem nem a coin A l f a r á b i 1 9 9 1 5 Virtuous ReUn fo i 5 4 r cidênciã entre a íilosoíia e a profecia no mesmo homem nem a coincidência da filosofia e da jurisprudência revelamse condições indispensáveis Basta a filosofia estar presen te na pessoa de um filósofo que governe em conjunto com outro homem ou grupo de homens que possuam entre outras coisas a capacidade de criar novas aplicações para as leis antigas Ao contrário da profecia não se pode prescindir da filosofia e nada po de tomar seu lugar Ao contrário da ausência da profecia a ausência da íilosoíia é fatal para a existência do regime de virtuoso Não existe substituto para a sabedoria de vida A G u e r r a e o s L im it e s d a L e i Além da filosofia e da profecia ou então a proficiência na arte de jurisprudência há uma terceira qualificação indispensável que deve estar presente no governante do regime virtuoso ou em um dos grupos que o governam em conjunto a saber ousadia e virtude guerreira Esta qualificação é necessária para o cumprimento da responsa bilidade do governante como educador supremo de todos os cidadãos ou seja para formar e aperfeiçoar seu caráter moral Uma vez que nem todos os homens podem ser convencidos ou incentivados a realizar atividades virtuosas por meio de discursos persuasivos e apaixonados não é suficiente o método da persuasão ou do consenti mento Tal como fãz o pai com seus filhos e o professor com os jovens na escola assim o governante tem de usar a força e a coerção para com aqueles que por natureza ou por hábito não podem ser educados ou persuadidos de forma espontânea a obedecer à lei Por conseguinte o governante precisa empregar dois grupos de educadores um grupo que educa os cidadãos pela persuasão e por meio de argumentos e um grupo de guerreiros para coagir os preguiçosos os ímpios e os incorrigíveis a obedecerem às leis pela força O governante supremo ou os governantes devem liderar dirigir e supervi sionar as atividades dos dois grupos Para comandar o segundo grupo devem possuir uma natureza ousada e sobressair na arte da guerra A natureza e a extensão da coação e força a serem aplicadas dentro de um deter minado regime depende do caráter dos cidadãos quanto mais virtuosos forem menos necessidade haverá de aplicar força Mas há casos em que o governante pode ter de con quistar toda uma cidade e fbrçála a aceitar sua lei divina ou virtuosa ou em que o uso da força poderia encurtar em muito o tempo necessário para estabelecer sua lei enquanto a questão da persuasão é demasiado incerta e as suas perspectivas demasiado longínquas A coerção é legítima dentro do regime no que diz respeito aos cidadãos cuja natureza é intratável ou que têm maus hábitos e com relação a uma cidade inteira como um prelúdio para a criação de uma nova lei divina onde esta esteja ausente A força física a opressão ou a guerra são um elemento fimdamental da lei e um dos prelúdios básicos para estabelecêla Alfarábi parece favorecer não apenas a guerra defensiva mas também a guerra ofensiva e fàla da guerra conduzida pelo governante do regime virtuoso como uma guerra justa e de seus propósitos bélicos como um objetivo virtuoso Ademais embora como Platão e Aristóteles Alfàrábi considere a cidade a pri meira ou menor unidade que constitui um todo político e em que o homem pode atingir 200 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey sua perfeição política ao contrário deles não parece considerar a cidade também como a maior unidade possível em que se pode esperar o florescimento do regime virtuoso Ao contrário fàla de três associações humanas perfeitas A de maiores dimensões é a asso ciação de todos os homens em todo o mundo habitado a intermediária é a associação de uma nação com uma parte do mundo habitado e a menor é a associação dos habitan tes de uma cidade em uma porção de terra habitada por uma nação Se combinarmos seus ensinamentos sobre a guerra e a conquista justas ou virmosas com a ideia de uma associação humana perfeita que se estende por todo o mundo habitado podemos ser levados a concluir que Alfarábi modificou deliberadamente os ensinamentos de Platão e Aristóteles no que se refere a luna questão importante com a intenção de fornecer uma justificativa racional pata o conceito islâmico de guerra santa cujo objetivo era propagar a lei divina em todos os cantos da Terra e que defendia uma guerra de civilização pela qual uma nação mais avançada justifica a conquista de nações mais atrasadas ou que pregai a ideia de um estado universal ou mundial Essas conclusões devem sra ser analisadas à luz das opiniões de Alfarábi acerca da guerra e do caráter da lei Alfarábi menciona duas visões extremas da guerra A primeira é a visão de que subjugar e dominar os outros é o estado natural do homem e de que a guerra é portan to a única conduta universalmente justa A segunda é de que o estado natural do ho mem é a paz universal e a coexistência pacífica é portanto a única conduta justa Esta última visão pode por sua vez ter o corolário de que somente na guerra defensiva na guerra forçada pela conduta anormal de um inimigo guerreiro existe uma causa justa para se pegar em armas Estas são segundo Alferábi as opiniões dos habitantes das cidades ignorantes e equivocadas que se opõem ao regime virtuoso Estas dão ori gem a dois tipos de regimes tiranias e regimes amantes da paz Estes últimos não são considerados suficientemente importantes e é evidente que sua opinião embora incorreta não é perigosa De qualquer forma Alferábi não os inclui na lista como uma subdivisão principal dos regimes que se opõem ao regime virtuoso o que se deve em parte ao feto de que ao contrário da guerra a paz não é uma das principais metas persqidas pelos homens mas um meio para outros fins como o prazer ou o ganho A guerra as conquistas a subjição e escravização de outros e a tirania sobre eles são em contrapartida uma das metas supremas perseguidas pelos homens Dão origem ao regime tirânico em que os homens se associam uns com os outros parti cipam de atividades bélicas elaboram suas leis e ordenam seu regime com o objetivo principal de escravizar um ao outro ou a outros regimes Náo escravizam e matam para atingir outros fins mas para atender a uma finalidade suprema comum a todos eles o amor pela tirania De fato os maus regimes ao buscar outras metas tais como a riqueza honra ou prazer em muitos casos são transformados em tiranias quando estes outros fins são alcançados A satisfeção desses desejos parece libertar os cidadãos de regimes maus para buscar o pior mal de rimes ignorantes e equivocados isto é a A l f a r á b i 2 0 1 16 Ver adiante p 289ÍF 17 Virtuous City p 7580 visáo dc que a tirania é o bem A guerra como um fim em si mesma é para Alfarábi o vício supremo que não pode ter lugar no regime cuja meta é a suprema virtude Tendo utilizado as vantigens da guerra e da compulsão para estabelecer sua lei di vina e refrear os maus e os incorrigíveis o governante do regime virtuoso deve voltarse para a promoção da amizade entre os cidadãos e à tarefe pacífica de persuasão e livre consentimento Para convencer a maioria dos cidadãos tem de produzir similitudes dos seres divinos e naturais e da virtude e da felicidade que sejam adequados em relação à sua proximidade com as formas originais dessas coisas mas que também sejam adequadas no que diz respeito àqueles que devem ser persuadidos por elas As similitudes devem ter alguma relação com a natureza a experiência passada e os há bitos dos cidadãos Ao contrário da atividade bélica a persuasão pacífica exige que o legislador feça concessões ao caráter dos governados ao seu grau de preparação para as leis virtuosas às diferenças entre eles e ao ponto até o qual os cidadãos podem ser aperfeiçoados Estas são as condições prélegais que o legislador não cria mas deve pressupor e que não pode mudar exceto de forma limitada e mesmo gradativa Além disso o legislador não pode produzir similitudes e utilizar métodos persu asivos projetados para atender à natureza peculiar e hábitos de cada cidadão individu almente a lei não pode tratar cada homem como um caso em si mesmo Devem ser prescritas crenças e práticas gerais para todos os cidadãos as quais devem corresponder ao seu caráter distintivo como um grupo Entretanto o que é adequado para um gru po e por conseguinte justo em relação a ele pode ser inadequado para outro grupo e por conseguinte injusto em relação a ele Legislar para todos os homens com respeito pela natureza humana ou pelo que têm em comum significa ser injusto para com a maioria se não para com todos os homens Ponanto se de feto o mundo habitado é dividido em nações e cidades e esta divisão não se baseia em distinções arbitrárias mas em distinções naturais ou distinções que são de alguma forma relacionadas com a natureza tais distinções poderiam estabelecer os limites dentro dos quais poderiam ser prescritas crenças e práticas gerais que sejam ao mesmo tempo eficazes e justas Alferábi qualifica sua declaração sobre as três associações perfeitas a cidade a nação e a associação de todos os homens em todo o mundo habitado com a obser vação de que a associação de todos os homens em todo o mundo habitado é dividida em nações As nações são distintas umas das outras por duas coisas naturais a con figuração natural e o caráter natural e por algo que é um composto é convencional mas tem uma base nas coisas naturais a saber a linguagem Essas distinções são o produto de diferenças geográficas entre as diversas partes da Terra temperatura alimentos e assim por diante que por sua vez influenciam o temperamento de seus habitantes Mas embora constituam a nação como uma unidade natural essas seme lhanças nacionais naturais não constituem uma ligação política suficiente em prol da qual os membros de uma nação deveriam gostar ims do outros ou não gostar de outras 2 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 8 lhe PoUticd Regime p 4 0 nações Os objetos próprios para os gostos e desgostos sáo as perfeiçóes ou as virtudes e estas náo são oferecidas pela natureza mas pelo Intelecto Ativo pela ciência e pela legislação A nação por sua vez dividese em cidades ou cidadesEstados que se dife renciam por seus regimes e leis Apenas a cidade é comparada por Alferábi ao corpo vivo perfeito Os órgãos do corpo vivo não apenas cooperam para um fim comum ocupam diferentes níveis dos quais cada um é perfeito quando executa sua fimção própria seja ela subordinada ou superior e todos são regidos pelo mais perfeito óio Aplicada à nação e à associação de todos os homens em todo o mundo habitado essa similitude exigiria a subordinação das cidades uma à outra e das nações entre si de acordo com seu grau de perfeição Todavia Alfiirábi jamais menciona a subordinação como legítima salvo dentro de uma só cidade e as cidades opostas à cidade virtuosa não são investigadas com vistas a serem subordinadas a uma cidade virtuosa mas a serem transformadas em tal cidade Uma nação virtuosa não é um grupo de cidades governado por uma cidade virtuosa ou perfeita mas a nação com a qual cooperam todas as suas cidades em relação às coisas por meio das quais a felicidade é alcançada e a associação de todos os homens em todo o mundo habitado é virtuosa somente quando as nações nele cooperam para alcançar a felicidade A comunidade virtuosa de todos os homens pressupõe nações virtuosas e a nação virtuosa por sua vez pressupõe cidades virtuosas Esse exame do caráter e da função específicos da faculdade profética e da lei di vina aponta para a conclusão de que a religião deveria ser particularmente sensível às limitações impostas pelas diferenças naturais e convencionais entre as nações e cidades Se uma religião ou lei divina não é espúria obscurantista ou fanática não favorece mas suprime e transcende as metas perseguidas em regimes ignorantes incluindo a tirania e as substitui pelas metas que podem ser procuradas somente por meio da crença em similitudes adequadas ou salutares de seres divinos e naturais e por meio de co mandos e proibições que promovam a virtude e a felicidade em um determinado grupo pronto para sua mensíem Deveria portanto abandonar a meta do regime tirânico cujo objetivo é a tirania absoluta e universal e restringir o uso da força àquele que for necessário para estabelecer um novo regime e conter os maus e os incorrigíveis desse regime Caso contrário será forçado a legislar crenças e práticas que possam ser aceitas e praticadas por todos os homens ou seja baixar seus padrões para se confor mar com a capacidade natural da esmsdora maioria dos homens em vez de defender aqueles que ajudam a cidade ou nação relativamente boa a alcançar a verdadeira virtu de ou felicidade O objetivo alternativo de promover a virtude ou a felicidade entre os melhores ou os eleitos em cada cidade e nação é eliminado porque esta não é a função própria da religião mas da filosofia Lembramos a distinção que faz Alfarábi entre as funções da profecia e da filosofia no regime virtuoso Aos poucos que são dotados de natureza rara e recebem treinamento adequado são oferecidas não similitudes mas o conhecimento teórico dos próprios seres divinos e naturais e da virtude e da felicida de enquanto as crenças e práticas legisladas na lei divina têm como alvo os muitos A u a r á b i 2 0 3 1 9 Virtuous City p 5 4 Ora as distinções naturais e quase naturais entre as cidades e as nações náo pre cisam erigirse em uma barreira contra a transmissão de conhecimentos teóricos Tal conhecimento pressupõe a presença de uma tradição de investigação teórica e de indi víduos raros mas uma vez que estas condições sejam atendidas pode ser livremente transplantado de uma cidade para outra e de uma nação para outra A comunidade universal dos homens superiores de cada cidade e nação ou dos reis sem coroa da humanidade não é uma comunidade dos que creem em um determinado conjunto de dogmas É a comunidade de amantes da única e verdadeira sabedoria Pela sua própria natureza de acordo com Alfarábi uma religião não pode servir de base para essa comunidade A religião surge por causa da incapacidade dos muitos de compre ender o verdadeiro caráter dos seres e da felicidade humana Remedia esta situação ao apresentarlhes similitudes que levam em conta as limitações de seu entendimento e suas características naturais e convencionais como um grupo distinto Da mesma forma porque são invariáveis os verdadeiros princípios da natureza e os verdadeiros princípios políticos são também inflexíveis e não podem eles mesmos ser ajustados para o grau de compreensão e o caráter particular de um grupo político distinto Si militudes em contraste podem ser adaptadas para essa finalidade pois podem estar mais próximas ou mais distantes da realidade Além disso pode haver uma grande quantidade de boas similitudes da mesma realidade Essas similitudes são todas boas ou virtuosas se conseguirem tornar bons ou virtuosos os membros do grupo político em particular para os quais foram projetadas Consequentemente pode haver várias nações virtuosas e várias cidades virtuosas cujas religiões sejam diferentes A aborda gem de Alfarábi para com a religião conduz a uma ciência filosófica das leis divinas Ao apresentar as leis divinas a jurisprudência e a teologia como partes da ciência política indica a possibilidade de uma discussão neutra de todas as religiões ou seitas e das características comuns a todas elas A D e m o c r a c ia e o R e g im e V ir t u o s o Dos seis regimes que se opõem ao regime virtuoso o primeiro e o último ou seja os regimes da necessidade e da democracia ocupam a posição privilegiada de fornecer o mais sólido e melhor ponto de partida para o estabelecimento do regime virtuoso e para o governo de homens virtuosos O regime da necessidade como contrapartida da cidade de suínos na República de Platão oferece a oportunidade para introduzir um regime virtuoso entre os cidadãos que ainda não estão corrompidos pelo amor ao dinheiro ou à honra pela entrega aos prazeres ou pelo desejo de glória Mas uma vez que todos esses existem na democracia não fica claro à primeira vista que contribui ção poderia dar a democracia ao regime virtuoso 2 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 The Political Regime p 56 Virtuous City p 70 21 Ver adiante p 278 Seguindo a descrição de Platão República VIII Álferábi estabelece o primeiro princípio da democracia isto é da democracia pura ou da democracia extrema as sim denominada por Aristóteles como a liberdade e chama o rime democrático também de regime livre A liberdade significa a capacidade de todos buscarem tudo o que desejam e terem liberdade para fàzer tudo o que achatem conveniente na busca da satisfação de seus desejos O segundo princípio é a igualdade a qual significa que nenhum homem é superior a outro em coisa alguma Estes dois princípios definem os alicerces da autoridade a relação entre o governante e o governado e a atitude dos cidadãos uns para com os outros A autoridade só se justifica com base na preservação e no incentivo à liberdade e à igualdade Quaisquer que sejam as realizações do gover nante ele governa somente pela vontade dos cidadãos não importando até que ponto sejam governante ou governados desprovidos de talento o governante deve atender os desejos dos governados e satisfàzer seus caprichos Os cidadãos respeitam apenas aqueles que os conduzem à liberdade e à realização do que quer que lhes permita a fruição de seus desejos aqueles que preservam esta liberdade e lhes possibilitam usu fruir seus desejos diferentes e conflitantes e que os defendem contra inimigos externos Se tais homens são capazes de executar essas funções e ainda se manterem satisfeitos eles próprios com as necessidades básicas da vida então são considerados virtuosos e são obedecidos Os demais governantes são funcionários que prestam serviços pelos quais recebem homenagens ou remunerações financeiras adequadas e os cidadãos que lhes pagam por esses serviços consideramse por isso superiores a esses governantes a quem apoiam Esse também é o caso daqueles a quem o público permite governar ou porque simpatizam com eles ou porque querem recompensálos por um serviço pres tado por seus antepassados Apesar dessas diferenças uma investigação mais profimda do regime democrático revela que em última análise de fiito não há governantes e go vernados há uma vontade suprema que é a dos cidadãos e os governantes são instru mentos a serviço dos desejos e anseios dos cidadãos Ao contrário dos outros cinco regimes não há um objetivo único ou domi nante cobiçado ou almejado pelos cidadãos do rime democrático Formam estes inumeráveis grupos similares e dissimilares de caráter diverso com uma variedade de interesses objetivos e desejos No que se refere às suas metas a democracia é um re gime composto vários grupos intentando metas que caracterizam os outros regimes existem lado a lado e adotam diferentes modos de vida formam uma conglomeração cujas partes diferentes se entrelaçam umas com as outras e são livres para cumprir suas finalidades distintas de forma independente ou em cooperação com outros Visto como o regime democrático torna possível preserva protege e promove todos os tipos de desejo todos os tipos de homens vêm a admirálo e considerálo como o estilo de vida feliz Passam a apreciar a democracia e a gostar de viver nela Um grande número migra para a democracia vindo de diferentes nações e residentes e estrangeiros se encontram se misturam e se casam O resultado é a maior diversidade possível entre os tipos de caráter natural criação formação e estilo de vida todavia to dos os tipos de homens são incentivados ou têm permissão para obter o que desejam A l f a r á b i 2 0 5 na medida em sua capacidade o admite Um regime democrático verdadeiramente desenvolvido apresenta um espetáculo colorido de infinita diversidade e luxo Mas isso significa que dentre todos os regimes que se opõem ao regime virtuoso o regime democrático contém a maior quantidade e variedade de coisas boas e más e quanto mais se expande e se aperfeiçoa mais bondade e maldade nele se encon tram Por conseguinte também abrange diversas partes da cidade virtuosa Alferábi menciona em especial a possibilidade do suipmento de homens virtuosos e da pre sença de homens sábios retóricos e poetas ou seja homens que lidam com a ciência demonstrativa a persuasão e a imitação em todos os tipos de coisas Se o regime da necessidade contribui com cidadãos incorruptos por desejos e prazeres não essenciais o regime democrático cujos cidadãos são na maioria corrompidos pelo luxo oferece as ciências e artes altamente desenvolvidas essenciais para o estabelecimento do regime virtuoso E na ausência do regime virtuoso em que essas ciências e artes têm a maior oportunidade de se desenvolverem na direção certa o regime democrático é o único regime que oferece ampla oportimidade para seu desenvolvimento e permite que o filósofo satisfeça seus desejos com relativa liberdade L e it u r a s A Alfarabi The Political Regime in Medieval Political Philosophy Ed Ralph Lerner and Muhsin Mahdi New York The Free Press 1963 Selection 2 p 3976 Alferabi The Enumeration of the Sciences in ibid Selection 1 chap v Alfàrábi PLttos Laws in ibid Seleaion 4 Introduction and Discourses III Alferabi The Attainment ofHappiness in Alfarabis Philosophy ofPlato andAristotle Trans Muhsin Mahdi New York The Free Press 1962 Part I Aliàrabi The Philosophy ofPlato in ibid part II 2 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y M oisés M aimônides 11351204 Uma discussão da filosofia política judaica medieval parece enfrentar uma dificul dade grave talvez intransponível Haveria sequer um motivo para supor que exista tal disciplina Há poucos elementos na atual literatura histórica que sugiram isso Quan do figuram nas atuais histórias se tanto os filósofos judeus medievais marcam sua presença sobretudo pela posição que ocupam na cronologia como elos na corrente de transmissão de ideias São negligenciados de modo ainda mais evidente nas histórias do pensamento político os autores judeus medievais parecem ser reputados irrelevan tes Não seria difícil encontrar um motivo plausível para este menosprezo um povo que por mais de um milênio foi incapaz de levar uma vida política autônoma e que em grande parte foi categoricamente excluído do governo e da administração pública não é uma fonte provável de reflexão política independente Todavia a despeito de sua grande plausibilidade esta hipótese é fiJsa a realidade é que são discutidos nas obras dos judeus medievais problemas reconhecíveis como inerentes ao campo da filosofia política A especulação acerca dos assuntos políticos nunca foi um terreno exclusivo dos estadistas e dos cidadãos de pleno direito Podemos ir mais longe na tentativa de entender por que os judeus medievais pre ocupavamse com a filosofia política Para começar a Diáspora ou dispersão dos israe litas foi considerada como uma situação anormal pelos próprios judeus já na época de Filão m 54 dC Em termos tradicionais não políticos o exílio era visto como uma punição divinamente ordenada para a iniqüidade do povo lao certo como a pecami nosidade acarretara a destruição da nação judaica assim também o arrependimento propiciaria sua restauração Ninguém seria capaz de prever quando chegaria ao fim essa situação anormal mas jamais houve dúvidas de que chegaria ao fim Deste ponto de vista pelo menos a reflexão sobre questões políticas não era considerada como um exercício absolutamente árido Um impulso mais forte para a especulação desse tipo seria encontrado nas preocupações de estudiosos judeus da Torá e do Talmude Ao contrário da escolástica cristã a filosofia política medieval judaica desenvolveuse no contexto de uma revelação divina que assumiu a forma de lei e não de dogma ou fé Esta lei como pode observar qualquer leitor do Pentateuco visa prescrever e regula mentar até o mais ínfimo detalhe a conduta e as crenças de toda mna comunidade O fator crucial não é apenas que os assuntos políticos tenham papel de destaque tanto na Torá como no Talmude ainda mais importante como estímulo à investigação política e como fator que determinou em parte o modo como foi conduzida tal investigação é a natureza legislativa dessas obras Pelo menos por essas razões os homens devotaram se a examinar questões políticas em um momento em que havia pouca coisa na vida cotidiana que indicasse serem úteis ou adequadas tais especulações No entanto outra dificuldade não menos desconcertante surge quando nos voltamos para as obras dos estudiosos judaicos medievais Não parecem ter escrito tratados políticos em si e náo existe de fato muito material caracterizado como um tratamento temático de fôlego acerca de assuntos políticos Via de regra a filosofia política judaica medieval advém de uma discussão de algum outro tema a interpreta ção da Bíblia as principais características da lei divina o significado de determinados termos bíblicos a reformulação sistemática da legislação talmúdica a defesa do juda ísmo Já foi apontado o motivo para isso as próprias circunstâncias mencionadas que entre outras impulsionaram alguns estudiosos judeus para a filosofia política também afetaram o modo como filosofaram ou como apresentaram seus ensinamentos A apre sentação não temática de sua filosofia política deriva em parte da necessidade dos filósofos judeus tal como seus contrapartes muçulmanos de justificar sua atividade filosófica perante o tribunal da lei revelada Nenhum deles teria ousado começar um trabalho com a pergunta que abre a Summa Theologica Se além das disciplinas filo sóficas ainda é necessária qualquer outra doutrina No judaísmo ainda mais que no islã a defesa da filosofia precisava ser feita e conquistada antes que se pudesse filosofar em público Dito de outra forma aquilo que vulgarmente se diz ser a principal preocupação da filosofia política medieval de monstrar a harmonia entre os ensinamentos revelados e os ensinamentos de Aristóteles pressupõe a legitimidade do filosofar Como ficou evidente a partir do capítulo sobre Alfarábi estabelecer a legitimidade da atividade filosófica requer argumentos que nâo derivam nem dos ensinamentos revelados nem dos ensinamentos aristotélicos A pri meira necessidade era entender a lei revelada de forma que permitisse e até mesmo demandasse a filosofia No que concerne ao judaísmo o esforço decisivo nesta tarefà foi realizado por Moisés ben Maimón Maimônides Sua predominância na filosofia judaica medieval é tal que se pode sem injustiça imerecida para com os outros con ceber seus ensinamentos como o núcleo e levar em conta outros pensadores judeus onde aprofundam ou se desviam de seus ensinamentos políticos em algum aspecto significativo Ao considerar seus ensinamentos políticos é bom lembrarse de que de modo algum a filosofia constitui o núcleo da religião judaica A filosofia surgiu muito tardiamente no judaísmo e jamais alcançou um status que lhe proporcionasse aceita ção irrestrita No entanto de acordo com o plano desta obra a presente discussão se limitará à filosofia política propriamente dita A fim de discutir os objetos e o caráter da lei devese partir de uma compreensão dos seres em prol dos quais são elaboradas as leis Assim fàz Maimônides em seu Guia dos Perplexos analisa a necessidade das leis antes de apresentar sua discussão temática 2 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y delas Dentre todas as espécies é o homem e o homem apenas que é estritamente um animal poUtico De fato há animais aos quais podemos corretamente denominar sociais mas nenhum outro animal além do homem necessita da reflexão ou da ptesdênda a fim de sobreviver Se fosse permitido que o homem levasse a vida dos animais pereceria de imediato isolado suas fiiculdades animais estariam muito aquém do que é necessário para sua sobrevivência É somente através de sua feculdade racional por meio da qual exerce o pensamento e a ptesdênda que o homem pode realizar o que é necessário para a autopreservação Alimento abrigo vestuário mdo isso exige o emprego de alguma arte sobre as matériasprimas da natureza a fim de preparálas para o uso do homem Uma vez que as artes por sua vez pressupõem o uso de ferramentas e a existência de ho mens capazes de utilizálas seguese que a sobrevivência do homem depende da divisão do trabalho e de uma organização social ordenada em que cada indivíduo pode dedicar se a uma tarefe em particular na certeza de que sua contribuição para a preservação de seus companheiros é correspondida pelas contribuições deles para sua preservação A necessidade dos homens de viver em uma sociedade organizada é reforçada pela variedade de grandeza única predominante entre eles pois a gama de diferenças de comportamento é tão extrema que dois indivíduos podem dar a impressão de per tencerem a duas espécies diferentes Diante de tal variedade os homens não seriam capazes de viver juntos sem a supervisão e o controle de alguém que reprimisse e moderasse os excessos individuais Assim como a natureza do homem parece exigir a sociedade assim a perfeição da sociedade exige um governante que meça as ações dos indivíduos aperfeiçoando o que é deficiente e reduzindo o que é excessivo e que pres creva ações e hábitos morais para que todos os pratiquem sempre da mesma forma até que a diversidade natural esteja oculta por muitos pontos de acordo convencionados e assim a sociedade tornase bemordenada Os meios pelos quais se fez desaparecer essa variedade natural é a lei Essa lei que Maimônides afirma ter uma base no que é natural embora não sendo natural deve ser examinada em mais detalhes As próprias circunstâncias que demandam uma legislação suscitam sua preocupa ção tanto com ações quanto com opiniões Mas há uma multiplicidade de leis humanas e divinas e este feto apenas sem mencionar seu caráter mutuamente exclusivo exige que sejamos capazes de distinguir um tipo de lei do outro Considerando os possíveis objetos de legislação Maimônides conclui que correspondem à dupla perfectibilidade dos seres humanos a perfeição do corpo e a perfeição da alma Uma lei pode preocupar se apenas com o estabelecimento da boa ordem na cidade Tentaria evitar maus procedi mentos por pane dos cidadãos pela restrição e direcionamento de suas ações procuraria abolir a injustiça e assegurar a tranqüilidade pública procuraria inculcar certas qualida des morais na população qualidades que fecilitam a vida social pacífica procuraria pos sibilitar que os homens alcançassem a felicidade ou mais precisamente que alcançassem o que o legislador imsna como felicidade O único objetivo dessa lei é o bemestar do M o is é s M a im ô n id e s 2 0 9 1 Moses Maimônides Guide ofthe Perplexed I 72 III 27 2 Ibid I I 40 corpo Sua preocupação total com a boa ordem da cidade é equilibrada por sua absoluta indiferença pelo tipo de opiniões dominantes na cidade desde que estas sejam compatí veis com a vida civil pacífica Maimônides chama essa lei de nomos Em contraste a lei pode procurar promover ambas as perfeições do homem tal como o nomos prescreveria as medidas necessárias para uma vida social decente per mitindo assim que os homens não apenas preservassem a si mesmos mas vivessem no melhor estado corpóreo possível Indo além disso pretenderia promover uma perfeição correspondente da alma inculcando opiniões corretas em cada um de acordo com sua capacidade individual Essa preocupação com o bemestar da alma assim como a do cor po esse esforço para desenvolver a compreensão de cada homem de mdo o que existe tanto quanto for possível é a característica distintiva de uma lei divinamente revelada Em suma Maimônides distingue entre um nomos cujo objeto é a felicidade imagi nária e uma lei divina cujo objeto é a verdadeira felicidade Mas a própria possibilidade de assegurar este objetivo mais nobre ou seja de aperfeiçoar as almas dos homens ajudandoos a adquirir opiniões corretas está condicionada à obtenção do bemestar do corpo Embora possam ser inferiores quanto à sua dignidade as necessidades do corpo e por extensão a ordem descendente da sociedade o que torna possível que tais necessidades sejam atendidas têm prioridade no tempo O bemestar político é a condição indispensável para a suprema perfeição do homem Para Maimônides a perfeição do homem está muito distante de qualquer preocu pação com o corpo Os assuntos que figuram com preeminência em todos os códigos le gislativos as ações humanas e as qualidades morais não fazem parte dela A perfeição do homem consiste ao contrário na sua obtenção de opiniões corretas opiniões às quais é conduzido pela especulação e que estabelece como verdadeiras por meio das ciências teóricas As leis ocupam uma posição de importância crucial pois suas prescrições or denam a vida dos homens de tal forma que lhes permite exercer sua perfeição máxima Uma vez que a vida social é tornada possível os homens podem devotarse à única atividade privada que lhes permitirá atingir sua finalidade correta Em certo sentido é verdade que as leis ou o estudo das leis é uma coisa pequena Mas em outro sentido é o grande bem que a divindade fez transbordar sobre o mundo Todas as ações prescritas pela lei divina sejam atos de culto ou úteis hábitos morais destinamse a regular as rela ções sociais dos homens Maimônides observa repetidas vezes que as prescrições deste tipo não partilham da dignidade da finalidade mais elevada do homem mas são apenas os preparativos ainda que necessários para a consecução desse fim De modo algum é reduzida a importância da lei por essa visão Na verdade poderíamos dizer que para Maimônides a mais elevada forma de revelação é a mais elevada em virtude da sua natureza jurídica Deus fez Sua vontade manifesta aos ho 2 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 Ibid I I 40 III 27 4 Ibid II 3940 III 27 5 Ibid III27 6 Ibid III 2728 54 Code Yesodei haTorah ivI3 mens tanto antes como depois de Moisés mas as profecias dos outros homens diferem radicalmente das de Moisés A diferença é tão grande um deles era tão superior aos demais que Maimônides declara que o termo profeta não pode ser aplicado a ambos com o mesmo significado A discussão detalhada sobre a superioridade da profecia de Moisés é reservada para as obras jurídicas de Maimônides o Comentário sobre a Mish náeo Código é apenas mencionada no Guia7 No entanto sua intenção no Guia leva Maimônides em pelo menos mais duas ocasiões a fazer uma distinção maior entre a profecia de Moisés e a dos outros profe tas Os profetas anteriores por exemplo Abraão ou Noé foram abordados por Deus no que diz respeito exclusivamente a seus assuntos particulares o fim em vista era a perfeição de si mesmos e de seus descendentes Enquanto Abraão de fiito dirigiuse a outros homens também o seu apelo a eles consistia em discursos eloqüentes e provas especulativas por meio das quais esperava instruir os homens na verdade que apreen dera Em suma o que Abraão recebeu de Deus não tinha a forma de lei seus esfor ços de persuasão não dispunham de meios para compelir O caráter essencialmente privado de todas as profecias anteriores a Moisés significa que não houve qualquer tentativa explícita por parte daqueles profetas para forjar ou aperfeiçoar uma ordem social e política A distinção fundamental entre as profecias mosaicas e prémosaicas é precisamente esta o que foi dado a Moisés tinha a forma de lei Nenhum de seus an tecessores conhecidos jamais se apresentou ao povo e declarou Deus me enviou a vós e me ordenou que vos dissesse tais e tais coisas Ele vos proibiu de fiizer isso e ordenou que fizésseis aquilo Embora os profetas anteriores a Moisés instruíssem o povo sua convocação para o povo não assumiu a forma de legislação divina os profetas que se seguiram a Moisés estavam preocupados principalmente em induzir o povo a obedecer à sua lei O que distingue Moisés e destaca sua superioridade em relação aos profetas que o precederam e sucederam consiste em ser ele o único profeta legislador Daí resulta que a lei mosaica é a única lei divina ou pelo menos a única lei divina perfeita embora alguns homens possam continuar a profetizar e apreender ver dades sobre Deus e os anjos Da mesma forma consequentemente para Maimônides essa lei divina de Moisés é imutável e inalterável Em seu caráter de lei não dá atenção ao caso isolado ou raro não pode preocuparse com o ser humano específico que sofre por causa da generalidade da lei De fato como já observamos é parte dos objetivos da lei obscurecer a diversidade natural dos homens pela imposição de uma espécie de harmonia convencionada que promove a paz cívica A lei deve ser absoluta e universal em suas prescrições e proibições muito embora o que a lei exige seja adequado somen te na maioria dos casos e apesar de mudarem os tempos e as circunstâncias Negar esse princípio e tentar moldar a legislação segundo o padrão da medicina na qual se toma em devida conta as características particulares do indivíduo implicaria a corrupção de toda a tessitura da lei M o is é s M a im ô n id e s 211 Guide II 35 Cf Commentary on the Mishmh Sanhedrin X Introduction anicle 7 and Code Yesodei haTorah vii6 Guide 163 II 39 Code Deoth i7 Ao contrário de Alíarábi a quem considerava inferior apenas a Aristóteles entre os filósofos Maimônides náo discute de modo explícito a possibilidade do governo da sabedoria de vida em lugar de leis escritas fixas Quando as circunstâncias o exigem os regulamentos precautórios podem ser fixados pelo Grande Tribunal de Justiça que representa o julgamento dos homens de saber de um determinado período tais regu lamentos assumem a forma de acréscimos permanentes à lei divina No caso extremo as prescrições ou proibições da lei divina podem ser temporariamente suspensas pelo Grande Tribunal de Justiça Mas afora essas exceções ninguém pode efetuar qualquer mudança na lei divina essa lei permanece intacta e inalterável o exemplo único e perfeito de seu tipo Essa conclusão de Maimônides é negada de modo peremptório por José Albo d 1444 Em seu Livro dos Princípios no qual distingue os vários tipos de lei e exami na os princípios da lei divina Albo verifica que tem havido uma série de leis divinas Cita como exemplos as leis de Adão Noé Abraão e Moisés com a clara implicação de que esta lista pode não ser exaustiva Pelos mesmos motivos por que um só nomos não seria adequado para todos os homens do mundo uma só lei divina seria tam bém inadequada para todos os homens em toda parte Os temperamentos humanos diferem cabalmente devido à hereditariedade e ao habitat e estas diferenças por sua vez implicam diferentes costumes e convenções Após análise as leis divinas revelarão determinados princípios fimdamentais compartilhados por todos eles indicativos da unidade do doador dessas leis e ao mesmo tempo grandes diferenças em suas prescrições detalhadas que refletem a heterogeneidade dos destinatários dessas leis As leis divinamente reveladas podem coexistir em qualquer momento dado embora difiram na abrangência e rigor de seus regulamentos A lei de Noé e a lei de Moisés por exemplo são igualmente divinas ambas conduzem à felicidade humana embora em graus diferentes O fato de uma lei divina ser suplantada por outra lei divina para um povo em particular náo revela nenhum defeito ou alteração no doador e nâo cons titui de forma alguma prova de que as opiniões mudam O que mudou foi o caráter dos destinatários Como um médico ou professor que sabe que aquilo que é bom em um determinado momento não será suficiente para sempre Deus dá uma lei divina apenas com vistas a preparar os homens para um sistema mais rígido A sucessão de leis divinas no mundo efemou grandes mudanças no que é permitido aos homens e o que é proibido a eles estas alterações têm sido feitas para se harmonizar com a mudança dos tempos e com a mudança do caráter humano Albo não vê motivo para pensar que tais alterações na lei divina não possam ocorrer de novo permitindo algumas coisas que agora são proibidas Não só nega que haja qualquer evidência para a alegação de Maimônides de que a imutabilidade é uma raiz da lei mosaica mas nega que haja qualquer prova ou qualquer necessidade de con siderar a lei divina em geral ou a lei mosaica em particular como fundamentalmente 2 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Guide II 3940 I I I 34 4146 10 Joseph Albo Book ofRoots I 4 25 III 1314 imunes a alterações ou revogação É seguro afirmar apenas que a crença na veracidade da missão de Moisés implica a crença de que a lei mosaica não será alterada ou suplan tada por outra lei divina apresentada por um outro profeta A filosofia política judaica como a do islã atribuía uma importância muito gran de à profecia Ao contrário de Tomás de Aquino cujas discussões da profecia não fazem qualquer menção à lislação Maimônides considera que o profeta exerce uma íimção política decisiva A crença na lei divina pressupõe uma crença incondicio nal na profecia pois se não há profeta não pode haver lei divina Podese afirmar isso de outra forma uma vez que a sobrevivência humana depende da existência da sociedade e como a sociedade se baseia numa harmonia que deve ser imposta sobre temperamentos humanos opostos a sabedoria divina dotou determinados indivíduos humanos com a faculdade de governar Incluídos nesta ordem de homens que têm a capacidade de governar outros estão determinadas ordens de profetas Em suas mani festações mais perfeitas a inspiração do profeta atende a fins públicos ou políticos ao contrário de uma finalidade privada Experimentalmente podese dizer que tais metas sejam o aperfeiçoamento da ordem social Após rever a definição de profecia de Mai mônides voltaremos a examinar a relação entre os objetos da lei divina e o objeto da mais elevada forma de profecia Os ensinamentos de Maimônides sobre a profecia são idênticos aos dos filósofos islâmicos em quase todos os aspectos relevantes O próprio Maimônides distingue três opiniões no que se refere à profecia que são iguais às daqueles que admitem a existência da deidade A primeira é a do vulgo sejam eles psos ou judeus Deus es colhe quem quer que deseje e o transforma em profeta Segundo essa visão as únicas precondições para a profecia são uma certa bondade e sólida moralidade A sunda opinião é identificada por Maimônides como a dos filósofos a profecia é o resultado natural de um indivíduo perceber em si a mais elevada perfeição que é potencial em toda a espécie humana Se um homem superior atingiu a perfeição em suas qualidades morais e racionais e em sua faculdade imaginativa e se foi submetido a preparação adequada deve necessariamente tornarse profeta A terceira é a opinião de nossa lei tal como a segunda opinião sustenta que o natural é que todos os que estão aptos por sua disposição natural e que treinam a si mesmos em sua educação e estudos tornarseão profetas Segundo Maimônides o equipamento e a formação naturais são condições necessárias mas não como o são de acordo com os filósofos suficien tes para a profecia um homem pode estar apto e preparado para a profecia porém milagrosamente não se tornar profeta A profecia é definida como um transbordamento de Deus para a faculdade racio nal do homem e mais tarde em direção à sua faculdade imaginativa Para receber essa emanação divina o homem deve ter atingido a máxima perfeição da razão da moral e M o is é s M a im ô n id e s 2 1 3 11 I I I 1416 cf 19 12 C f eg Summa contra Gentiles íii154 13 Guide II 37 40 III45 da imaginação que é possível para a espécie humana Seu intelecto é aperfeiçoado por meio do estudo das ciências especulativas deve ser aperfeiçoada a disposição natural original de sua imaginação não pode ser sanado um defeito natural desta sua mo ral é aperfeiçoada por meio de uma preocupação consciente e habitual com as coisas nobres e divinas e através da libertação de seus pensamentos de qualquer desejo de prazeres físicos e de dominação sobre os outros Aquele que atingiu essas perfeições é o homem de tipo mais elevado Não pode existir maior perfeição na espécie humana um profeta como tal é superior ao mais sábio filósofo Antes de passar à discussão da profecia por Maimônides é necessário traçar a rela ção entre esta perfeição tríplice e a função do profeta A crença na lei divina pressupõe a crença na profecia porque a revelação da lei ocorre por meio da instrumentalidade do profeta A lei divina como vimos visa assegurar dois grandes objetivos o bemestar do corpo e o bemestar da alma ou em outras palavras a ordenação decorosa da socie dade e a aquisição de opiniões corretas e verdadeiro conhecimento por meio da espe culação A lei divina é dirigida a um grande número de homens mas eles são desiguais nas suas capacidades de compreensão e de aperfeiçoamento a lei divina deve de alguma forma dirigirse a uma grande variedade de tipos humanos e deve de algu ma forma ser apropriada para uma grande variedade de situações humanas Essas dificuldades são resolvidas por meio das caraaerísticas do mensageiro di vino ou profeta que comunica a lei divina aos homens Por causa da perfeição de seu inteleao o profeta tem conhecimento direto de verdades especulativas Ao contrário dos filósofos não precisa recorrer a premissas e inferências a fim de compreender Mais do que isso o profeta é capaz de compreender direta e imediatamente o que os ho mens não proféticos só alcançam de maneira incompleta ou não são capazes de alcan çar O homem como homem é limitado ao conhecimento direto do mundo sensível ao seu redor Assim por exemplo enquanto os ensinamentos de Aristóteles a respeito deste mundo sublunar estão corretos em todos os aspectos seus ensinamentos sobre o mundo superior o mundo além da esfera lunar o mundo de Deus e dos anjos não é perfeitamente correto Aqui só o profeta tem conhecimento direto O profeta então é superior ao filósofo exatamente naquele aspecto em que o filósofo é superior a todos os homens não filosóficos A perfeição moral que Maimônides cita como outra condição da profecia está ligada de modo mais direto à superioridade intelectual do profeta pois enquanto o desejo de conhecimento especulativo e sua obtenção até certo ponto não dependem da perfeição moral a preocupação com os prazeres sensuais desvia os pensamentos do homem do mundo superior O profeta se distingue dos outros homens por sua com pleta devoção às coisas divinas Interessado apenas no conhecimento da deidade e na reflexão sobre Suas obras e sobre o que se deve crer com relação a isso um homem 2 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Ibid I I 32 36 cf 23 15 Ibid I I 22 38 cf I Introduction perfeito desse tipo verá somente Deus e Seus anjos Mais do que qualquer outro homem o profeta devotase totalmente à compreensão de tudo o que existe Em virmde da perfeição de seu intelecto o profeta é o mestre de todos os homens Mas não se podem ensinar todos os homens da mesma fornu eles não têm igual capa cidade de receber do profeta as verdades especulativas que este apreendeu a respeito de Deus e dos anjos De íato o conhecimento devastador que o proíèta atingiu confundiria e desnortearia a todos menos o inteleao mais perfeito Esse conhecimento ou pelo menos suas conclusões gerais deve ser apresentado aos homens em particular aos ho mens não filosóficos de maneira que possam entendêlo Por meio de sua imaginação perfeiu que por meio de seu inteleao recebeu uma emanação divina o profeta é capaz de representar essas verdades especulativas por metáforas Esta apresentação metafórica do conhecimento teórico deriva da compreensão prática do profeta Maimônides interpreta o versículo de Provérbios Como maçãs de ouro em sal vas de prata assim é a palavra dita a seu tempo à luz dessa análise da profecia Explica o versículo da seguinte forma uma frase pronunciada com vistas a dois significados é como uma maçã de ouro revestida de filigrana de prata com furos diminutos Seu significado externo deveria ser tão belo quanto a prata ao passo que seu significado interno deveria ser ainda mais belo sendo em comparação com o exterior como o ouro é para a prata Seu significado externo deveria fornecer algum indício do que se encontra por dentro embora o observador distraído vá confundilo com uma maçã de prata Se considerarmos as parábolas que abundam nos discursos dos profetas veremos que possuem tanto um significado externo como um sentido interno O significado externo contém a sabedoria que é útil em muitos aspectos entre os quais o bemestar das sociedades humanas Seu significado interno contém a sabedoria que é útil para as crenças relativas à verdade tal como ela é Essa perfeição inteleaual que qualifica o profeta para ser o mestre de todos os homens encontra correspondência naquela perfeição de sua imaginação que o qualifica para ser o líder dos homens O profeta é o homem que tem perfeita compreensão teórica e prática Essa doutrina pode ser expressa em outras palavras como resultado de seu in telecto perfeito e imaginação perfeita o profeta reúne em si os traços de homens que atingiram a perfeição em apenas uma ou outra faculdade A emanação divina afeta somente a feculdade racional no caso dos homens de ciência que estão envolvidos na especulação Afeta somente a feculdade imaginativa no caso da classe de homens que governam as comunidades políticas os legisladores os adivinhos e assim por diante Tal como a classe referida antes personifica o entendimento teórico assim esta última representa o entendimento prático Ao receber um transbordamento divino que afeta tanto seu perfeito intelecto como sua perfeita imsinação o profeta se torna a um só tempo filósofo e estadista bem como legislador e adivinho Mais exatamente a união de ambas as perfeiçóes permite que o profeta supere qualquer um dos homens não M o is é s M a im ô n id e s 2 1 5 16 Ibid I I 36 17 Ibid I Introduction III28 proféticos Como o emissário da lei divina o profeta se torna o mestre dos homens e por conseguinte também dos filósofos tornase o líder dos homens e por conseguin te também dos governantes das comunidades políticas É com o objetivo específico desta funçáo política da profecia que Maimônides fala da necessidade do profeta de ter altamente desenvolvidas as faculdades da coragem e da divinaçáo Sua ascensáo ao conhecimento das coisas divinas é seguida por uma descida com qualquer que seja o decreto do qual o profeta foi informado com vis tas a governar e ensinar o povo da Terra Em virtude da sua superioridade o profeta é obrigado a profetizar ou seja a instruir os homens em assuntos práticos ou em ma térias especulativas Incapaz de resistir ao transbordamento divino que os impele os profetas se veem expostos a graves perigos por parte dos injustos e dos desobedientes a quem dirigem seu apelo A coríem é portanto um prérequisito indispensável para todos os profetas Quando presente em sua forma mais desenvolvida o indivíduo solitário tendo apenas o seu cajado dirigiuse com ousadia ao grande rei para salvar uma comunidade religiosa da aflição da escravidão e não tinha medo ou temor por que foi dito a ele Eu estarei contigo Já mencionamos a discussão de Maimônides do homem como animal político Aquilo que exige a sociedade exige igualmente a lei para governar a sociedade Que certos indivíduos humanos possuem a faculdade de governar é um sinal da sabedoria divina na perpetuação da espécie No primeiro nível daqueles que Maimônides cita como possuidores desta faculdade está o profeta ou aquele que traz o nomos Estes homens proclamam a lei a aplicação da lei proclamada é a província do rei É assim que o profeta surge não só como mensageiro divino mas como legislador e fundador de uma sociedade política Para explorar melhor esse papel do profeta devemos nos voltar para a discussão de Maimônides da lei dada por esse indivíduo solitário Moisés Em uma declaração sobre a ciência política que ocorre em seu Tratado sobre a Arte da Lóca Maimônides após constatar que os filósofos escreveram muitos livros sobre ciência política afirma Nestes tempos tudo isso quero dizer os regimes e os nomoi foram dispensados e os homens são regidos por comandos divinos Ao dizer isso sugere que os ensinamentos práticos dos filósofos em questões que tenham a ver com política são agora supérfluos Maimônides não faz essa inferência com relação às obras dos filósofos sobre a ética e a filosofia política A mudança que tornou supérfluos os ensinamentos políticos práticos dos filósofos nestes tempos é a predominância da religião revelada Sua afirmação evidencia a importância política decisiva da lei divina A discussão de Maimônides da lei mosaica no Guia dos Perplexos apoia esta interpreta ção A lei divina visa garantir o bemestar tanto do corpo como da alma Ao visar a esses objetivos a lei mosaica trata de assuntos políticos de questões que têm a ver com o governo dos homens de modo extenso preciso e detalhado a Torá entretanto fàla apenas de forma resumida da matéria especulativa Em outras palavras uma vez que a 18 Ibidl5llò7ò45 19 Ibid I I 40 2 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Torá é o repositório de todas as informações necessárias que têm a ver com o governo da família e o governo da cidade nâo há necessidade aqui de se voltar para as obras dos filósofos em busca de orientação É apenas porque a Torá trata de forma concisa essas opiniões corretas através das quais os homens podem atingir a sua perfeição maior que os indivíduos que estão equipados para fàzêlo precisam direcionar sua atenção para as ciências teóricas A questão decisiva é que Maimônides considera a lei dada pelo mais eletdo profeta como sem dúvida superior à lei do filósofo A cidade fundada pelos filó sofos e governada sjmdo as suas leis é inferior à cidade fundada por um profeta e go vernada segundo as suas leis pois o filósofo legislador é inferior ao profeta legislador Anteriormente quando discutimos a relação entre os objetos da revelação e o objeto da profecia concluímos de modo experimental que a meta do profeta era aper feiçoar a ordem social Podese agora contemplar esta afirmação como insuficiente A lei divina destinase a conduzir os homens a opiniões corretas sobre Deus e os anjos mas fàz isso primordialmente pela apresentação de conclusões Seu principal esforço é voltado para estabelecer determinado tipo de comunidade política Se refletirmos sobre as ações dos Patriarcas e de Moisés fica claro que a meta de seus esforços durante sua vida foi produzir uma comunidade religiosa que conhecesse e adorasse a Deus O obje to da revelação o grande bem que Deus faz sobrevir ao mundo sublunar é a fundação de uma comunidade religiosa perfeita Este objetivo só pode ser alcançado se as mentes e as ações de todos os homens puderem ser alcançadas por essa revelação Se deve ser cumprido o propósito divino a revelação deve assumir a forma de lei uma lei perfei ta que funcione como a constituição por assim dizer da nação perfeita Além disso a revelação deve ser apresenuda de forma a que todas as pessoas inclusive os jovens e as mulheres possam compreendêla É por isso que a Torá feia de acordo com a língua dos filhos do homem É por isso que é necessário um homem da mais extrema perfei ção do intelecto e da imsinação pata proclamar a lei perfeita A mais elevada brma de profecia é a lislativa e Moisés é o maior profeta porque sua profecia é a única profecia legislativa genuína O maior profeta é o fundador e legislador da cidade perfeita É típico dos ensinamentos de Maimônides enfetizar mais as considerações po líticas que as explicações milirosas Esta tendência fica evidente não apenas em seus ensinamentos sobre a profecia mas também em suas discussões de dois temas rela cionados a monarquia e a era messiânica em seu Código legal O título hebraico do Código Mishnê Torá Repetição da Torá é a expressão tradicional que designa o quinto livro da Bíblia O livro do Deuteronômio reafirma e incrementa a legislação dos três livros precedentes preocupase com as necessidades de um povo que já não vaga pelo deserto e não mais é protegido e cuidado pela divina providência extraordi nária mas que ao contrário habita sua própria terra e se confronta com problemas decorrentes da agricultura dos conflitos internos e da agressão externa O Código de Maimônides tem caráter similar nele são retomadas as leis da Torá e do Talmude M o is é s M a im ô n id e s 2 1 7 20 Ibid III 2728 51 54 Treatiseon iheArtofLogfc xiv 21 Guide I 33 III 51 Code Yesodei haTorah ivl3 sem se limitar às leis aplicáveis à vida na Diáspora A Mishnê Torá de Maimônides tal como a de Moisés preocupase com as necessidades práticas de um Estado real isto é o Estado judeu antes da Diáspora e depois da vinda do Messias A monarquia é obrigatória em Israel é uma necessidade sancionada ou melhor comandada pela lei divina Segundo Maimônides o principal motivo para a nomeação de um rei é que ele faz julgamentos e trava a guerra A guerra está intimamente ligada à monarquia dos 23 mandamentos discutidos na seção do Código intitulada Leis Rela tivas aos Reis e suas Guerras apenas cinco não tratam de algum aspecto da lei militar enquanto todos os capítulos dedicados aos demais cinco mandamentos que regulam a escolha e o modo de vida do rei fazem alusão à guerra de modo mais ou menos franco Depois de subjugar as nações contra as quais a Bíblia obriga à guerra o rei tem liberdade para travar guerras permissivas contra as outras nações a fim de ampliar as fronteiras de Israel e para aumentar a sua grandeza e fama O rei tem também poder avassalador de julgamento ao contrário dos tribunais que são cerceados pelas garantias processuais em casos de pena capital Sempre que uma situação extrema o exigir o rei pode sentenciar à morte muitos infratores em um único dia e em seguida pendurálos para exibição durante o tempo que lhe aprouver para instilar o medo Não obstante essas prerrogativas do cargo o rei continua a ser subordinado ao cumprimento da lei e em vista disso subordinado ao legislador e aos intérpretes dessa lei Sua função é subsidiária à do profeta ou legislador o rei obriga o povo a observar a lei divina ou o nomos estabelecido por esses homens O medo e o temor que inspira e os fatores dissuasivos que tem à sua disposição estão a serviço dos juizes De diversas maneiras Maimônides sugere muito fortemente que o rei náo é de fato o primeiro ho mem da nação Afirma de modo explícito que o rei está sujeito à lei e por conseguinte aos tribunais de justiça Chama a atenção para a subserviência do rei à palavra proferida por Deus ao comando de Deus tal como expresso pelo profeta De fato até mesmo os maiores dos reis aqueles que como Davi e Salomão foram inspirados para fàlar de assuntos governamentais e divinos mesmo esses atingiram apenas os primeiros degraus que conduzem à profecia Os maiores reis estão abaixo dos profetas A análise feita por Maimônides da monarquia como instituição política e militar é bastante amenizada por Isaac Abravanel 14371508 Este de modo similar rejeita a visão de Maimônides do profeta como filósofo estadista Inspirandose na Nonagési ma Epístola de Sêneca Abravanel constrói seu argumento sobre premissas fundamen talmente antipolíticas Para ele a sociedade política como tal é uma artificialidade A fundação de cidades a instituição da propriedade privada a subdivisão da raça humana em nações são todas o produto da rebelião contra a ordem natural e divina No início os homens viviam em estado de inocência nos campos todos desfrutavam os bens da natureza em comum os homens viviam em um estado de liberdade e igual dade Abravanel encontra um paralelo com este estado natural na vida dos Filhos de 218 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 22 Guide II40 45 III 41 Code Mekkhim il 8 iii1710 ivlO vl Israel durante suas andanças pelo deserto quer dizer em uma vida marcada por uma contínua proteção milagrosa por Deus A vida política representa uma revolta contra Deus Não surpreende que Abravanel quase sozinho entre os comentaristas medievais judeus negue que a Bíblia em Deut 1714 s tenha feito a monarquia obrigatória em Israel Sustenta que a monarquia é uma transgressão que no próprio ato de investir um homem com um título real o povo abandona os comandos do Senhor o pecado jaz em sua rejeição do reino divino e na escolha pelo reino humano O melhor que se pode dizer sobre a monarquia é que a lei divina a permitiu reconhecendoa como um ato do instinto do mal no homem e levando em conta essa ífaqueza humana Apesar de seu julgamento adverso sobre a utilidade e conveniência da monar quia Abravanel afirma que o próprio governo da nação judaica culmina no governo monárquico Considera esse governo composto daquilo que na doutrina cristã é co nhecido como as duas espadas temporal e espiritual cada um desses governos por sua vez contém elementos democráticos aristocráticos e monárquicos No topo do regime temporal misto está um homem como Moisés Moisés foi o primeiro rei a reinar sobre Israel À frente do governo espiritual está um profeta Os elementos predominantes do Estado judeu no relato de Abravanel são os sacerdotes e os profe tas Embora o profeta seja um governante não é propriamente felando um político O maior profeta Moisés teve de aprender como oianizar a administração da justiça com um gentio que não era profeta Üetro Isso sugere que para Abravanel ao con trário de Maimônides o governo do profeta não é uma preocupação adequada para a filosofia política Para Abravanel a profecia sendo um dom divino é sobrenatural o profeu é suprapolítico Bebendo na fonte dos escritores cristãos escolásticos em particular daqueles cujos pontos de vista são papistas ao extremo Abuvanel chega a conclusões que estão em udical desacordo com as de Maimônides acerca da forma ideal de governo Em liar de um líder que incorpou os traços tanto do filósofo como do rei Abuvanel consideu que o governante idd um é o rei sacerdote A sobriedade dos ensinamentos de Maimônides a respeito do Messias contrasta de modo acentuado tanto com os temas lendários dos quais se ocupau a tudição ju daica anterior quanto com a especulação apaixonada sobre os milagres a serem realiza dos que caucteriza os escritos messiânicos de Abuvanel Vale ressaltar que a discussão temática do Messias está localizada nos capítulos finais da seção 14 e última do Código que tu u das leis que versam sobre os reis e as suas guerras A tese fimdamental de Maimônides é de que a eu messiânica se distingue do presente apenas pela mudança no status político do povo judeu Que não se imagine que nos dias do Messias qual quer coisa no mundo vá mudar a sua forma ou haverá qualquer tipo de inovação na criação O mundo permanecerá tal como é O caráter não miuculoso da eu mes siânica é enfetizado por Maimônides de diversas maneiras Nesta parte do Código o Messias parece ser em primeiro lugar um rei nem uma vez sequer é aqui mencionado como profeu Falando de Bar I h b a o líder da revolu juthdca contu os romanos M o is é s M a im ô n id e s 2 1 9 23 Comentário sobre Gen 111 ff Exod 1813 íF Deut 1714 f I Sam 86 ff I Reis 1 e 3 em 132 dC Maimônides o chama de o rei que foi considerado o Rei Messias Somente quando Bar Kochba foi morto é que os sábios judeus se deram conta de que tinham cometido um erro em assim considerálo Maimônides não menciona aqui qualquer reivindicação que Bar Kochba pudesse ter em razão da capacidade de profe tizar e nega cabalmente que qualquer ação milírosa seja necessária para autenticar o Messias A questão é ao contrário reduzida ao sucesso político e militar o Messias de Maimônides é um libertador bélico cuja principal tarefa é romper os grilhões de Israel e restaurar a antiga ordem política A tendência dos ensinamentos de Maimônides é oporse à noção tradicional do Messias como um profeta que realiza milagres e às especulações mais fantásticas sobre a era messiânica O ponto até onde vai Maimônides ao dar uma interpretação política sobre o destino futuro e passado do povo judeu pode ser descortinado em sua carta aos rabinos do sul da França a qual mostra por que os judeus perderam seu reino e foram em seguida dispersos Segundo a visão tradicional o exílio é um castigo infligido por Deus por um pecado Entendiase pecado como a idolatria ou na sua manifestação mais comum a astrologia Os judeus na época de seu reinado preocupavamse com a astrologia Erraram e foram atraídos por tais assuntos imaginando que fossem re nomada ciência e de grande utilidade Não se ocuparam com a arte da guerra ou com a conquista de terras mas imaginaram que esses estudos iriam ajudálos Portanto os profetas os chamaram de tolos e parvos E eram tolos de fato pois buscavam coisas confusas que não trazem proveito Maimônides não ensina aqui que a astrologia seja uma transgressão da lei divina a ser punida pela intervenção direta de Deus Sugere ao contrário que a parvoíce traz a sua própria punição Ao dedicar seu tempo e energia a uma confusão inútil os antigos judeus prepararam sua própria queda O relato de Maimônides da futura restauração do Estado judeu é modelado por esta análise de sua queda O libertador guerreiro que recebe o título de Rei Messias é conhecido por seus atos políticos e militares e confirmados por seus sucessos vitórias políticas e militares Em poucas palavras o Messias é um Bar Kochba bemsucedido ou mais exatamente um filho de Davi um general e náo um profeta O sucesso político no entanto não é um fim em si mesmo mas está a serviço de algo mais elevado Na proporção em que Maimônides considera o fim mais elevado como natural ou pertinente à capacidade humana atribui grande importância à razão e à política Os males que afligem esta vida emanam dos objetivos desejos opiniões e cren ças dos homens e todos estes derivam de alguma ignorância fundamental A visão de paz universal em Isaías 11 depende de um verdadeiro conhecimento de Deus Porque através da cognição da verdade a inimizade e o ódio são removidos Os dias do Mes sias serão diferentes do presente pelo fato de que os judeus voltarão à sua terra ancestral com o auxílio de lun líder militar vitorioso e os homens deixarão de ferir um ao outro por ignorância Essas duas mudanças estão relacionadas pois uma das tarefas do Messias conquistador é preparar o mundo inteiro para servir ao Senhor em harmonia O Mes sias mostra ao mundo o verdadeiro caminho mas não através de m ilhes ele trava as batalhas do Senhor e é vitorioso A era messiânica é de feto um objeto de esperança 220 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey mas a meta que então terá sido alcançada não é a finalidade mais elevada do homem mas sim o estabelecimento de certas precondiçóes políticas para este fim a ação política em geral está a serviço do mundo do porvir A restauração do governo político para Israel significa que podem voltar a ser respeitadas essas leis intimamente ligadas à vida do povo na Palestina livres da opressão tirânica os judeus podem devotarse ao estudo despreocupado da Torá e de sua sabedoria Como resultado está aberto o caminho para a recompensa total final o bem supremo a vida no mundo vindouro Aqui Maimô nides relaciona o mundo vindouro com a imortalidade da alma que busca como algo natural uma vida dedicada à aprendizagem e à piedade A possibilidade de alcançar o bem supremo aparece como uma conseqüência do sucesso político É digno de nota que a filosofia política judaica medieval pouco fala da lei natural se é que a menciona Mas o problema indicado pelo termo lei natural é tratado de modo geral sob a forma de pergunta Há leis racionais distintas da lei revelada O locus classicusyxáaico para esta distinção está no Livro de Doutrinas e Crenças de Saadia Gaon 892928 Saadia feia de início a respeito de uma classe de mandamentos divinos cuja necessidade é ditada pela razão Essas leis divinas racionais podem ser classificadas como impositivas do culto divino proibitivas da idolatria e proibitivas dos atos de injustiça A aprovação e desaprovação das açôes específicas que são o ob jeto dessas leis são implantadas em nossa razão desta forma a especulação fornece uma confirmação independente de sua necessidade Os ditames categóricos das leis reveladas por outro lado não têm essa verificação independente Aparentemente ao repetir sua discussão Saadia íala de leis racionais que são sugeridas pela sabedoria Este segundo debate apresenta um relato simplificado da utilidade social das leis racionais Essas leis são agora enumeradas como a prevenção dos homicídios a proibição do adultério a proibição do roubo e a imposição de falar a verdade A razão é neutra ou se cala a respeito de questões tais como festas religiosas ou a proibição de ingerir deter minados alimentos ou do casamento dentro de determinados graus de parentesco No entanto a maioria das leis reveladas tem alguma utilidade prática evidente De acordo com Saadia a revelação profética é necessária para estabelecer ambas as classes de leis as racionais e as reveladas Enquanto a razão por si só é suficiente para formular os mandamentos racionais é incapaz de estabelecer todos os pormenores concretos da legislação Assim por exemplo a razão considera correto que todos os crimes sejam punidos de acordo com sua medida mas não define a sua medida A revelação é ne cessária para resolver esses detalhes sem o que os homens jamais concordariam com coisa alguma além dos princípios gerais Em sua discussão desse problema Maimônides não só assume uma posição con trária aos ensinamentos de Saadia ou de uma parte deles mas também até certo ponto distanciase da visão tradicional ortodoxa Na carta já referida Maimônides de clara que no Guia ofereceu motivos claros para todos os mandamentos bíblicos Em M o is é s M a im ô n id e s 2 2 1 24 Guide I I I 11 Code Teshubah ix Melakhim xi 1 34 xii 1 4 Letter on Astrology 25 Saadya Gaon Book ofDoctrines and Beliefi III 23 silêncio rejeita a visáo ortodoxa de que é uma boa coisa que a Bíblia não indique as ra zões subjacentes a seus mandamentos a obediência total de acordo com a religião tra dicional exige a aceitação de um mandamento sem conhecer ou buscar o motivo pa ra ele Todavia ao sugerir que cada mandamento tem o seu motivo e que seu motivo está ao alcance do intelecto humano Maimônides está ainda muito longe de admitir a possibilidade de mandamentos racionais Observa que as proibições contra as ações que são em geral consideradas como más tal como o derramamento de sangue o roubo a ingratidão e o desrespeito para com os pais são chamadas de mandamentos pelos sábios judeus Alguns de nossos sábios posteriores tem em mente Saadia entre outros que sofreram da doença dos Mutakallimün teólogos muçulmanos dialéticos chamaramnos mandamentos racionais Qual é então o status dos princípios morais Em seu Tratado sobre a Arte da Ló gica Maimônides descreve como meramente convencionais ou aceitas em geral as afir mações de que descobrir as partes íntimas é vil e de que compensar um benfeitor com generosidade é nobre No Guia dos Perplexos afirma que apenas os dois primeiros man damentos do Decálogo aqueles que proclamam a existência e a unicidade de Deus são cognoscíveis pela especulação humana desassistida Os demais mandamentos não têm qualquer fundamento racional pertencem à classe de opiniões em geral aceitas e adotadas em virtude da tradição Em dado momento Maimônides declara que o que é inato no homem prescreve boas ações e condena as más o homem é recompensado ou punido de acordo independentemente dos comandos específicos de um profeta Mas isso não quer dizer que tais prescrições e proibições sejam racionais Por força de seu intelecto o homem só conhece a distinção entre verdade e falsidade A distinção entre o nobre e o vil princípio moral pertence à classe das coisas em geral aceitas como conhecidas mas não à classe de coisas conhecidas pelo intelecto São apenas as últimas que permanecem verdadeiras de modo imutável Os princípios da moralidade por outro lado são na melhor das hipóteses apenas prováveis Maimônides sugere que o status das virtudes morais é derivado de sua importância na manutenção da paz no mundo A virtude moral também é necessária para a perfeição última do homem isto é a compreensão teórica uma vez que a preocupação com os prazeres dos sentidos ou o desejo de dominação sobre os outros seriam um obstáculo a tal perfeição Mas é principalmente tendo em vista a sua função política que Maimônides compreende as virtudes morais Estigmatizar como enfermos aqueles que afirmaram a existência de mandamentos racionais e seus esforços estudados para apontar para a função política e de caráter convencional do princípio moral constitui uma negação tácita de que a lei natural seja estritamente falando racional Judá Halevi 10851141 é entre os escritores judeus talvez o crítico mais pro eminente dos filósofos Seus ensinamentos positivos baseiamse de forma global na revelação aqui porém a discussão limitase apenas ao que afirma acerca dos filósofos 2 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 26 Guide 12 II 33 36 III17 Lo viii Eight Chapten iv vi Cf Guide II40 III 2728 46 Em seu diálogo o Kuzari declara a existência de nomoi racionais porém o resultado final de seu argumento é algo muito diverso da lei natural de digamos Tomás de Aqui no Halevi designa pelo termo nomoi racionais tanto os códigos humanos dos p o s como por exemplo as Leis de Platáo quanto a estrutura indispensável de qualquer código elaborado pelo homem ou divino Para sermos mais exatos identifica por um lado a parte do código do filósofo que r a conduta social do filósofo para com os náo filósofos com aquele conjunto de normas que prescrevem a moralidade mínima neces sária até mesmo para a forma mais inferior de vida comunal pelo outro e denomina ambos nomoi racionais Por meio de sua identificação dos dois Halevi sugere que as porçóes governamentais do código do filósofo são apenas meios para o fim mais elevado da especulação e desta forma não devem ser compreendidas como normas categóricas mas ao contrário como normas de conduta prudentes que na sua maioria são válidas De modo semelhante sugere que íàltam validade e universalidade universais ao arca bouço indispensável a todo código ou poderseia dizer a toda lei natural Sugere ainda da mesma forma que uma lei natural ou código moral que se apliquem igual mente a filósofos que vivem na sociedade política e a um bando de ladrões não criam obrigatoriedade absoluta junto aos homens nem são verdadeiramente racionais A rejeição da noção de uma lei natural racional por Halevi e Maimônides é apre sentada com grande franqueza por José Albo Embora Albo fale inequivocamente de uma lei natural sua descrição dela é mais próxima da de Hobbes do que da de Aquino Em conteúdo a lei natural de Albo assemelhase à segunda formulação das leis racio nais incorpora aquele mínimo de controle social sem o qual os homens seriam incapa zes de viver juntos A lei natural de Albo preocupase com uma justiça rudimentar que impede os homens do roubo assalto e assassinato É uma lei que não se preocupa com o que é nobre e se cala sobre a adoração divina A lei natural de Albo corresponde de forma grosseira à segunda Tábua do Decálogo se não considerarmos o décimo man damento Tal como os nomoi racionais de Halevi voltase apenas para a perfeição do corpo Albo sugere que esta lei natural não é totalmente necessária para que o homem viva na sociedade política mais ainda sugere que a validade desta lei natural depende de sua instituição por um indivíduo humano Ao apontar a possibilidade de vida fora da cidade Albo lança dúvida sobre o caráter obrigatório da lei natural Ao distinguir mais ainda entre o objetivo desta lei natural e a perfeição que é própria do homem Albo com efeito nega que a lei natural seja estritamente falando natural Este pon to quanto ao qual concordavam os filósofos políticos medievais judeus foi reafirmado para o mundo cristão por Marsílio de Pádua M o is é s M a im ô n id e s 2 2 3 27 K uzari II 48 III7 IV 19 28 Roots 1 57 III726 2 2 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y L e it u r a s A Maimônides Moses Guide ofthe Perplexed in Medieval Political Philosophy Ed Ralph Lerner and Muhsin Mahdi New York The Free Press 1963 Selectíon 12 Part I diap 71 Part 11 chaps 32 364045 Part III chaps 2728 34 B Maimônides Moses Treatise on the An of Logic in ibid Selectíon II Chap xiv Maimônides Moses Letter on Astrology in ibid Selectíon 13 Alho Joseph Book ofRoots in ibid Selectíon 14 Bk I chaps 510 Abravanel Isaac Commentary on theBible in ibid Selectíon 15 Gen 1119 Exod 181327 Deut 171415 I Sam 847 I Reis 31012 s Tomás d e Aquino A 12251274 Tomás de Aquino ocupa uma posição única na história do pensamento político como o mais ilustre de todos os aristotélicos cristãos Sua carteira literária coincide em linhas gerais com o grande impaao da obra de Aristóteles no mundo ocidental e em alguns casos com o momento inicial de seu resgate Tanto a Política como o texto completo da Ética em particular foram os primeiros a ser traduzidos para o latim du rante sua vida Através de seus comentários detalhados sobre quase todos os principais traudos aristotélicos e da ampla utilização que fàz dos textos aristotélicos em sua obra teológica Aquino fez mais do que qualquer outro para estabelecer Aristóteles como a principal autoridade filosófica do Ocidente cristão Para melhor entender sua filosofia política própria convém apreciála como uma modificação da filosofia política de Aris tóteles à luz da revelação cristã ou de modo mais preciso como uma tentativa de inte grar Aristóteles a uma tradição anterior do pensamento político ocidental representada pelos Pais da Igreja e por seus seguidores medievais e composta na maior parte por elementos retirados da Bíblia da filosofia platônicoestoica e do direito romano O esforço de Aquino para reinterpretar Aristóteles com base na fé cristã e para reformar a teologia cristã em termos de filosofia aristotélica pode ser comparado ao dos filósofos islâmicos e judaicos da Idade Média que também consideravam Aristóteles como o maior dos filósofos pagãos e que de modo semelhante se defrontavam com o problema de harmonizar a filosofia grega e a religião revelada Aquino compartilhava a herança desses filósofos islâmicos e judeus que incluía o Organon a Metafísica e a Física juntamente com vários outros tratados de filosofia namral e a Ética a Nicômaco Como eles estava em dívida para com Aristóteles pela distinção entre ciência especu lativa e ciência prática bem como pela divisão da ciência prática em ética economia e política Mas enquanto a filosofia namral de Aquino sua ética e sua filosofia política foram todas inspiradas por Aristóteles a filosofia política do islã e das comunidades judaicas que viviam em países islâmicos baseavamse predominantemente na Repúbli ca e nas Leis de Platão Ambas essas obras haviam sido traduzidas para o árabe já no século X pelo menos mas só vieram a circular no Ocidente no século XV Alfarábi escreveu comentários sobre a República e as Leis e Averróis escreveu um comentário sobre a República Não se conhece nenhum comentário árabe ou judeu sobre a Política de Aristóteles produzido na Idade Média enquanto nada menos que sete comentários foram escritos sobre esta obra por autores cristãos desde o momento da primeira ver são latina do texto ca 1260 até o íinal do século XIII É possível e até provável que esta primeira e mais evidente diferença entre as tradições cristã e judaicoárabe devase a outros fatores além do mero acidente histórico da disponibilidade ou indisponibilidade das fontes literárias em causa seja no mundo latino ou no árabe As evidências disponíveis sugerem que a Política de Aristóteles fora traduzida para o árabe mais cedo mas seja como for seu conteúdo era conhecido pe los filósofos islâmicos e judeus através de excertos da obra bem como através da Ética a Nicômaco e de outras obras aristotélicas Da mesma forma a existência de parte da essência da República e das Leis era conhecida dos autores ocidentais por meio da Polí tica de Aristóteles e de adaptações romanas e cristãs anteriores ou de discussões sobre as obras de autores como Cícero e Agostinho No entanto ao contrário do que se fezia em geral em casos semelhantes nenhum dos dois grupos parece terse esforçado muito para obter cópias ou traduções dos textos que faltavam Baseandose nesses e outros indícios é razoável supor que o uso da Política pelos autores cristãos e da República e das Leis por filósofos árabes e judeus foi ao menos em parte resultado de uma escolha ponderada ditada pelas circunstâncias da vida poUtica nessas diferentes comunidades religiosas Sabemos por Alfarábi que suas próprias obras tinham como motivação um in teresse de apresentar a filosofia a uma sociedade da qual esta estava ausente ou de restaurála quando toldada ou destruída A situação específica para a qual essas obras se voltam requeriam uma defesa pública da filosofia ou sua justificação perante o tribu nal da opinião comumente aceita e da crença religiosa Impunha ou atraía uma abor dagem para o estudo da política que consegue conviver ou tenta superar a hostilidade inata das instituições políticas e religiosas para com qualquer ciência que questiona e ao fazêlo ameaça minar seus alicerces Assim apresentava um claro parentesco com a situação confrontada por Platão cuja íilosoíia desenvolveuse ela mesma dentro de um contexto predominantemente político Ao contrário de Alfarábi e seus sucessores raramente foi Aquino forçado a lidar com uma propensão antifilosófica por parte das autoridades eclesiásticas Para ele como cristão seria simples assumir a filosofia sem se envolver publicamente em qual quer argumento fevorável ou contrário a ela Não só a filosofia já era credenciada no Ocidente com a sanção oficial do Direito Canônico mas se exigia algum conhecimen to dela de todos os esmdantes de teologia É típico da sociedade cristã da Idade Média em contraste com as comunidades islâmica e judaica que seus clérigos fossem também escolásticos Nas obras de Aquino é a teologia que precisa de justificação diante do tribunal da razão ou da filosofia O primeiro artigo de sua obra mais conhecida a Sum ma Jheologiae não pergunta se o estudo da íilosoíia é admissível e desejável mas se além das disciplinas filosóficas é necessária outra ciência ou seja a doutrina sagrada 2 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Alfiuábi A Busca da Felicidade 63 Também esclarecedor do mesmo ponto de vista é o fato de que as razões que Maimôni des invocara para justificar a ocultação de verdades filosóficas da multidão puderam ser empregadas por Tomás de Aquino para mostrar ao contrário por que além de verda des sobrenaturais Deus escolheu revelar determinadas verdades naturais ou verdades que são acessíveis à razão humana e à experiência desassistidas7 Esta situação peculiar parece ter gerado uma preferência pela Política de Aristóteles o que pressupõe maior concordância entre a filosofia e a cidade e por conseguinte maior abertura para a filosofia por parte da cidade do que na República de Platão O estatuto canônico que a filosofia desfintava no mundo cristão ajuda a explicar ao mesmo tempo por que Aquino foi capaz de descartar como desnecessário ou irrelevante o esoterismo comum a grande parte da antiga tradição filosófica e propositalmente simulada por muitos dos Pais da Igreja com cujas obras estava fiuniliarizado É impossível no entanto explicar no todo o firme caráter platônico do pen samento político judeuárabe e o firme caráter aristotélico do pensamento político cristão pela simples menção do fato de que a filosofia era em geral aceita na sociedade cristã enquanto era muitas vezes desaprovada ou rejeitada pelas comunidades islâmi ca e judaica da Idade Média É preciso peipmtar ainda em primeiro lugar como a filosofia veio a ser recebida pelo cristianismo e por que o aristotelismo de Aquino e de seus discípulos veio a substituir o platonismo dos Pais da Igreja como a forma tradi cional da teologia cristã Em última análise a chave para este problema mais profundo deve ser procurada na diferença entre o cristianismo e o islamismo ou o judaísmo e as sociedades religiosas e políticas A caracterísdca mais marcante do islã e do judaísmo é que ambos se apresentam acima de tudo como Leis divinamente reveladas ou como ordens sociais de total abrangência que regulam todos os segmentos da vida pública e privada dos homens e inibem desde o início qualquer esfera de atividade em que a razão possa íir independentemente da lei divina O cristianismo por outro lado emerge como uma fé ou doutrina sagrada que exige o respeito a um conjunto de crenças fundamentais mas de resto debta seus seguidores livres para organizar sua vida social e política em conformidade com normas e princípios que não são espe cificamente religiosos Esta diferença básica está em sintonia com a diferença que se observa em relação à ordem das ciências siradas dentro de cada comunidade religiosa A mais elevada ciência do islã e do judaísmo era a jurisprudência fiqh sobre a qual recaía a tarefe vital da interpretação aplicação e adaptação das prescrições da lei divina e à qual a teologia dialética kalam sempre teve nítida subordinação No cristianis mo a mais elevada ciência era a teologia cujo enaltecimento em muito ultrapassava qualquer prestígio atribuído à especulação teológica nas tradições judaica e árabe A mesma diferença crucial acarretava a conseqüência de que a sociedade cristã e só ela s T o m á s d e A q u in o 227 2 Summa Contm Gentiles I 4 Summa Theoíogjuu I qu 1 a 1 III qu 99 a 2 ad 2 De Veritate qu 14 a 10 Maimônides Guia dos Perplexos I 34 3 In Lih de Divinis Nominibus Pioemium 2 Cf In Boethium de Trinitate qu 2 a 4 Summa Theo logfoe III qu 42 a 3 era governada por dois poderes distintos e dois códigos legais distintos um eclesiástico ou canônico e outro civil cada um com sua própria esfera de competência e em prin cípio cada um usufruindo relativa liberdade de interferência por parte do outro Ao primeiro cabia a tareia de orientar os homens para o seu fim sobrenatural ao segundo o de direcionálos para o seu fim terreno ou temporal Como resultado era possível em geral estudar os fenômenos políticos apenas à luz da razão sem direta contestação da autoridade religiosa estabelecida e sem correr o risco de um confronto aberto com ela Em decorrência disso questões específicas tais como a origem das leis divinas e humanas a relação entre as duas e a comunicação das leis divinas por meio de profecia ou revela ção que como observa Avicena sáo discutidos como temas políticos por Platão mas náo por Aristóteles náo eram mais consideradas tão pertinentes para os filósofos cristãos como tinham sido para seus contrapartes muçulmanos e judeus Em suma a própria es trutura da sociedade cristã com sua distinção clara entre as esferas espiritual e temporal ostentava uma grande afinidade com a maneira restrita e de relativa independência com que as questões políticas são tratadas na Política de Aristóteles As observações feitas até agora a respeito das características gerais da filosofia po lítica dentro das tradições judaicoárabe e cristã apontam para um problema final que era de suma importância para ambos os grupos a questão da relação entre filosofia e religião revelada A solução de Aquino para este problema se propõe a fazer justiça para com as reivindicações da razão bem como as da Revelação Difere daquela da maioria dos filósofos muçulmanos que apesar de aparentemente proclamarem a supremacia da Lei consideravam a filosofia como a ciência perfeita e o único juiz da verdade reve lada da mesma forma diverge da de Agostinho e de seus demais antecessores cristãos que tendem a discutir todos os problemas humanos à luz do fim último do homem tal como é dado a conhecer por meio da Revelação e em cujas obras as ciências ter renas na medida em que são cultivadas fazem parte de um conjunto integrado ou único de sabedoria iluminada pela fé Aquino começa por fazer uma clara distinção entre os domínios da fé e da razão ou entre a filosofia e a teologia cada uma delas sendo concebida como uma ciência completa e independente A primeira atua à luz dos princípios naturalmente conhecidos e autoevidentes e representa a perfeição da compreensão pelo homem da ordem natural do universo Culmina na metafísica ou filosofia primeira que reina suprema em seu próprio domínio e não é destronada pela teologia como a rainha das ciências humanas Mesmo sem a graça divina a natureza é completa em si mesma e possui sua própria perfeição intrínseca pelo fato de que tem dentro de si mesma aquilo por meio de que é capaz de atingir o seu fim ou voltar ao seu princípio A teologia por outro lado oferece uma explicação abrangente do início e fim de todas as coisas tal como aparecem à luz da Revelação divina Suas premissas são derivadas da fé e ela faz uso das doutrinas filosóficas que possam ser relevantes para seus propósitos não realmente como princípios mas como instrumentos em sua investigação metódica do conteúdo da Revelação 2 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Avicenna On the Divisions o f the Rational Sciences in R Lerner e M Mahdi eds Medieval Politi cal Philosophy a Sourcehook New York 1963 p 97 Summa Contra Gentiles II 4 Summa Theologiae I qu 1 a 67 Longe de destruir a natureza a graça divina a pressupõe e aperfeiçoa alçandoa para um fim que é mais elevado do que qualquer outro a que poderia aspirar pelos seus próprios meios Por conseguinte entre as verdades da Revelação e o conhecimento ad quirido pelo uso exclusivo da razão e da experiência há uma distinção mas não pode haver discordância fundamental A harmonia preestabelecida entre as duas ordens se fiindamenta teoricamente no pressuposto de que Deus o revelador da verdade divina é também o autor da natureza Qualquer discrepância entre a Bíblia e os ensinamentos dos filósofos remonta à imperfeição da mente humana que ou interpretou incorreta mente o que é dado pela Revelação ou errou em sua busca pela verdade natural A alma humana é a mais firaca das substâncias intelectuais Todos os conhecimentos do homem se originam com os sentidos e são obtidos por abstração das coisas sensíveis Como tais englobam uma multiplicidade de conceitos e apresentam necessariamente um caráter fragmentado e digressivo O que distingue o homem como ser inteligente é a razão distinta do inteleao ou do fato de que o homem não compreende a verdade de modo intuitivo e de uma só vez mas c h a ela aos poucos por meio de um complexo processo racional pelo qual a mente passa de forma ordenada do conhecido para o desconhe cido Por causa das diferenças individuais decorrentes da sua natureza corpórea nem todos os homens possuem os mesmos dons intelectuais nem têm disposição igual para a obtenção do conhecimento Também não há qualquer garantia de que o mais talentoso dentre eles de forma geral tenha à sua disposição o lazer ou os meios para se dedicar inteiramente à busca da verdade Além disso embora o mal moral ao qual o homem é sempre propenso não comprometa de imediato a sua faculdade de raciocínio ou dimi nua sua capacidade de aprender torna a aquisição da ciência extrinsecamente mais árdua pela desordem que provoca em seu apetite Dadas as limitações intrínsecas da mente humana e os obstáculos externos com os quais deve lutar na sua busca pelo conhecimen to não é de estranhar que até mesmo os filósofos caíssem em erro e discordassem entre si Na medida em que ficam aquém da verdade por vezes seus ensinamentos estão em desacordo com a fé mas a verdade é que nem a própria razão é capaz de demonstrar a impossibilidade da Revelação nem pode provar a sua real possibilidade O máximo que pode ser dito do ponto de vista de Aquino é que os argumentos fornecidos pelos filó sofos contra a Revelação divina como um todo ou qualquer parte dela jamais oferecem qualquer comprovação de que a mente seja forçada a concordar com eles Apesar de Aquino reputar a filosofia aristotélica como a mais perfeita expressão da verdade natural e como a filosofia mais congruente com a verdade do cristianismo só foi plenamente capaz de coordenar essa filosofia com a fé cristã ao transformála s T o m á s d e A q u in o 2 2 9 6 Summa Contra Gentiles I 7 De Veritate qu 14 a 10 ad 7 and ad 9 7 Summa Theoloae I qu 85 a 3 Summa Contra Gentiles II 98 Commentary on the Posterior Analytics Proemium n 4 8 Summa Jheologiae I qu 76 a 5 Quaest Disp de Anima a 8 De Maio qu 5 a 5 In II Sent Dist I qu 2 a 5 9 Summa Jheologiae III qu 85 12 10 Summa Contra Gentiles I 9 tanto em conteúdo como em espírito Para os fins do presente artigo o melhor modo de ilustrar a natureza exata dessa transformação talvez seja mencionar o íàto de que enquanto Aristóteles nunca menciona a lei natural mas fala apenas do direito natural Aquino em geral passou a ser considerado como o expoente clássico da teoria do direito namral no Ocidente C r is t ia n is m o e P o l ít ic a A N a t u r e z a d o R e g im e P o l ít ic o A pedra fimdamental da filosofia política de Aquino é a noção aristotélica de na mreza Mais do que todos os outros animais o homem é um ser político e social A sociedade civil é natural para ele não como algo dado por natureza mas como algo a que é propenso por namreza e que é necessário para a perfeição de sua namreza racio nal O homem o produto mais extraordinário da namreza é trazido ao mundo mais desamparado e carente do que qualquer outro animal descalço despido e desarma do Em vez disso a natureza forneceulhe a razão a fala e as mãos com os quais com o tempo é capaz de prover a sua subsistência e satisíàzer às suas necessidades na medida em que surjam Está além da capacidade do indivíduo no entanto obter tudo o que é necessário para seu sustento A fim de sobreviver durante os anos que precedem o desenvolvimento da razão e a aquisição de habilidades manuais bem como para viver de forma mais conveniente nos anos posteriores o homem depende necessariamente da ajuda que recebe de outros homens A primeira sociedade a que pertence e sem a qual não poderia viver muito menos viver bem é a família cujo objetivo específico é satisfazer às necessidades da vida e assim garantir tanto a preservação do indivíduo como a da espécie As várias associações que compreende a do homem e da mulher de pais e filhos do amo e do escravo são todas voltadas para o mesmo fim A ciência ou arte que tem como objeto a gestão adequada da família é a economia ou economia doméstica cujo principal objeto é a aquisição e administração dos gêneros alimentícios e mercadorias que são utilizados ou consumidos pelos membros do pregado familiar Mas a família sozinha não pode fornecer todos os bens materiais de que o ho mem necessita para o seu sustento e sua proteção nem é capaz de conduzir todos os seus membros à perfeição da virtude As injunções paternas que dependem para sua eficácia do amor natural entre pai e filho são em geral suficientes para assegurar que os jovens generosos de espírito se comportem de modo adequado mas são de uso limitado no caso das almas vis sobre as quais a persuasão tem pouco ou nenhum efeito e que precisam ser cosidas pelo medo da punição A associação humana de verdadeira au tossuficiência a única capaz de assegurar as condições de virtude e de satisfazer a todas 2 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 On Kinhip I 1 4 12 On Kingphip I 1 5 Summa Theologiae I qu 76 a 5 ad 4 13 Summa Theologiae III qu 95 a 1 Commentary on the Ethics I Lea 1 n 4 X Lect 14 n 213942 as necessidades terrenas do homem bem como às suas aspirações é a cidade A cidade é a obra mais perfeita da razão prática Apesar de ser menos natural que a iàmíliã do pon to de vista da sua forma tal como evidencia o feto de que sua estrutura apresenta uma variedade maior de uma sociedade para outra que a família é no entanto consíada a um fim mais elevado e mais abrangente Como uma sociedade perfeita engloba todas as outras associações que os seres humanos são capazes de constituir inclusive a femília cujo fim subordina ao seu próprio que é o bem humano completo Só no âmbito da sociedade civil é que o homem pode alcançar a plenitude da vida tanto que o homem que leva uma vida solitária longç da companhia de seus semelhantes ou fica aquém da perfeição humana tal como um animal ou já ultrapassou essa perfeição e alcançou um estado de autossuficiência semelhante ao de um deus Tal como o corpo humano ao qual tanto é comparada a cidade é composta de uma multiplicidade de partes heterogêneas cada uma das quais tendo sua própria ta refe ou função específicas Uma vez que a parte individual é muitas vezes movida por paixões e desejos que não coincidem com os de outras partes é essencial que em uma cidade haja uma autoridade única cuja tarefe adequada seja cuidar do bem comum e manter a ordem e unidade entre os seus vários componentes A autoridade política é o elemento determinante da cidade ou sua forma como Aristóteles a denominara por analogia com a doutrina da matéria e da forma como os princípios constitutivos dos seres naturais Uma cidade sem regime é como um corpo sem alma na medida em que não se pode sequer felar dela é uma cidade só no nome Assim se a cidade é natural a autoridade política que é indispensável para ela também é natural ao contrário da escravidão que para Aquino e para a tradição cristã antes dele não está enraizada na natureza do homem enquanto homem mas na natureza decaída do homem A auto ridade política dire da escravidão na medida em que constitui um governo de homens livres sobre homens livres e tem como seu objeto o bem de todos os cidadãos que como homens livres existem por si mesmos O escravo por outro lado existe por causa de outro e portanto não é governado para seu próprio bem mas para o bem de seu amo Decorre do que foi dito acima que a cidade é mais que a soma de suas partes e seu fim total mais do que a soma dos interesses particulares dos seus membros Com certe za essa meta não é diferente da meta do homem sozinho mas uma vez que o homem sozinho depende da cidade para o seu pleno desenvolvimento o fim da cidade assume a natureza de um bem comum isto é de um bem que embora numericamente uno é todavia partilhado por todos os cidadãos daquela cidade Assim como o todo é mais importante do que a parte e anterior a ela como aquilo a que a parte é ordenada e sem o que não poderia existir assim a cidade é anterior ao indivíduo na ordem de causalidade final e seu bem é maior em dignidade e mais divino que aquele de cada s T o m á s d e A q u in o 2 3 1 14 Summa Theologiae III qu 90 3 ad 3 15 Commentary on thePoIitics I Lea 1 n 39 Commentary on theEthia I Lea 1 n 4 16 Summa Theologiae I qu 96 34 qu 92 a 1 ad 2 On Kinphip I 1 910 17 In IVSent Dist 49 qu 1 a 1 qu 1 sol 1 ad homem tomado por si só É paradoxal à primeira vista mas não incoerente dizer como Aquino que o bem comum da cidade é em si o bem correto embora obvia mente não o bem privado do cidadão Como um bem correto é o objeto de uma propensão que é mais forte do que aquilo que impulsiona o cidadão a procurar o seu bem privado Assim no caso de um conflito entre o bem comum e o bem privado o primeiro como é natural tem precedência sobre o segundo Isso explica por que em casos de extrema necessidade um homem irá sacrificarse de modo espontâneo pela cidade da mesma forma que sacrificaria uma das mãos pelo bem de todo o corpo O bem comum e a finalidade da autoridade política são em primeira instância a paz ou a harmonia das diferentes partes que se combinam para formar a cidade A paz existe quando cada parte é ajustada ao todo e funciona com razoável tranqüilidade dentro dele Mas esta unidade fundamental juntamente com a capacidade de neutra lizar as forças que ameaçam destruíla representa apenas a condição mínima em que a cidade é capaz de subsistir É o objetivo menor e não o maior ao qual podem devotar se suas energias Acima e além da mera sobrevivência a cidade tem como finalidade a promoção da boa vida ou da virtude de seus cidadãos A experiência revela que individual e coletivamente os homens são atraídos por uma variedade de bens tais como a riqueza a honra a liberdade ou a virtude e alguns dos quais são sem dúvida mais nobres que outros O objetivo ou objetivos que uma determinada cidade de feto persegue são determinados primordialmente pelos homens que têm a última palavra nessa cidade e desta forma constituem o seu regime O regime nesse sentido nada mais é senão o modo de vida de uma cidade com especial referência à maneira como o poder político é distribuído dentro dela O que distingue uma cidade de outra e lhe confere sua nobreza ou grandeza específica é exatamente o regime pelo qual se rege O melhor regime ou a questão de quem deve governar a cidade desponta assim como o tema central da filosofia política Posto que os homens diferem entre si em muitos aspectos mas sobretudo com relação à sua capacidade de conhecimento e virtude e visto que por natureza o inferior é subordinado ao superior é lógico que o melhor homem deve governar os outros e que os cargos administrativos devem ser distribuídos de acordo com a virtude O regime mais desejável em si tanto por motivo da unidade como da nobreza das finalidades a que se propõe é a monarquia ou o governo incondicional de um único homem sábio para o bem da virtude Mas se a monarquia absoluta é teoricamente o melhor dos regimes é também o que está eivado dos maiores perigos Devido aos vas 2 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 18 Summa Contra Gentiles III 17 Cf Commentary on the Ethics I Lect 2 n 30 19 Summa Contra Gentiles III 24 Summa Theologiae IIII qu 47 a 10 ad 2 20 Summa Theologúte I qu 60 a 5 Quodlihetum I qu 4 a 8 21 On Kingship 12 17 Summa Theologiae I qu 103 a 3 Summa Contra Gentiles IV 764 Com mentary on the Ethics III Lect 8 n 474 22 On Kinhip II 3 106 II 4 1178 Commentary on the Ethics I Lect 1 n 4 23 Commentary on the Politics II Lect 6 n 226 Lect 17 n 341 24 Summa Theologme I qu 96 a 3 tos poderes conferidos a ele o rei a menos que seja um homem de excepcional virtu de pode corromperse e seu govemo pode com fecilidade denerar em tirania a qual em condições normais é o pior de todos os governos uma vez que por sua própria natureza é o que mais se distancia do bem comum7 Além disso náo é tão fácil que a maioria das pessoas reconheça a virtude em comparação com as qualidades mais evi dentes embora menos genuínas tais como a riqueza ou o nascimento nobre É uma questão de observação comum que os homens politicamente sábios e virtuosos nem sempre e talvez nem em geral sejam reconhecidos como tal por outros homens dos quais a maioria tem pouco conhecimento real da sabedoria ou da virtude Tampouco é admissível supor que seria facil persuadir a multidão insensata a aceitar um homem de perfeita virtude como seu único governante pois é presumível que os interesses em nome dos quais se esperaria que governasse contrariariam os interesses menos nobres da mesma multidão Se nada mais a unidade da cidade exige que as reivindicações conflitantes dos vários elementos dentro dela sejam levados em consideração e recon ciliados dentro dos limites do possível Em todos ou quase todos os casos as demandas da sabedoria e da excelência devem ser combinadas com as do consentimento Isso significa que para objetivos muito concretos o melhor regime é o chamado regime misto ou o regime que combina de forma harmoniosa as melhores características da monarquia da aristocracia e da organização política Em apoio a essa solução clássica dpica Aquino poderia apontar um precedente sarado o da organização política he braica antiga na qual a autoridade de Moisés e de seus sucessores era equilibrada pela de um grupo de anciãos escolhidos entre o povo em geral A estabilidade e a eficácia deste regime ou a propósito de qualquer regime são asseguradas da melhor forma pelo domínio da lei a qual se torna na maior parte do tempo uma necessidade prática devido à escassez habitual de homens sábios e aos abusos aos quais o governo por decreto é inerentemente exposto Uma vez que nunca são muito numerosos os homens sábios é mais ácil encontrar uns poucos que sejam capazes de elaborar boas leis do que encontrar muitos que sejam capazes de julgar em casos individuais Os legisladores também têm mais tempo para deliberar e estão em melhor posição para avaliar todas as diferentes fiicetas de um problema do que o homem que se depara com a necessidade constante de tomar decisões sumárias Final mente é menos provável que seu julgamento anuviese por seu envolvimento pessoal nas questões sobre as quais é obrigado a se manifestar na medida em que as leis são propostas universalmente e levam em conta os eventos futuros As leis são o instru mento privilegiado da política e sua posição em relação às obras do homem é como a de universais para particulares É através delas mais do que por qualquer outra inter ferência que o governante promove a justiça e a bondade moral entre os cidadãos A s Tomás d e Aquino 233 25 On íSngship I 23 Summa Theologjúte III qu 105 a 1 ad 2 26 Commentary on thePohtia II Lect 5 n 212 27 Summa Theologiae III qu 105 a 1 O Kinphip I 6 42 28 III qu 951 ad 2 vinude moral é adquirida precisamente pela repetição dos atos que a lei prescreve ou pela vida habitual e pela educação sob boas leis Daí a importância da legislação que assume um caráter arquitetônico e constitui o ato mais importante da arte política Permanece o feto de que as leis são promulgadas executadas e sempre que necessário alteradas pelos homens Em uma palavra são elas próprias os produtos do regime em que se originam Somos assim levados de volta para a noção de regime como fenô meno político fundamental e tema norteador da filosofia política Até aqui a filosofia política de Aquino parece harmonizarse de forma substan cial com a de Aristóteles da qual ostensivamente deriva Uma análise mais atenta no entanto revela que ao assumir a concepção de Aristóteles sobre a natureza política do homem e da vida humana Aquino modificoua profimdamente sob a influência do cristianismo e do estoicismo e como conseqüência do alto grau de clareza e de cer teza que ambas essas tradições atribuem à noção de Deus como legislador A excelência humana já não é definida ou circunscrita pelas condições da vida política Através do conhecimento da lei natural o homem concorda diretamente com a ordem comum da razão para além da ordem política à qual pertence como cidadão de uma determinada sociedade Ao compartilhar dessa lei descobrese junto com todos os outros seres in teligentes um membro de uma comunidade universal ou cosmopolis governada pela providência divina e cuja justiça é muito superior à de qualquer outro regime humano A dissociação implícita em tal ponto de vista entre o melhor regime humano e a ordem social perfeita é ainda mais acentuada pelos ensinamentos cristãos e tomistas segundo os quais toda ordem natural é por sua vez sujeita à ordem da graça ou lei divina Por conseguinte o melhor regime não é simplesmente como era para Aristóteles obra do homem ou da razão prática guiada pela filosofia É sinônimo do reino de Deus e é real ou obtenível em todos os tempos por meio da graça salvadora de Deus A sociedade civil deixa de ser a única responsável pela totalidade da Adrtude moral e é ela própria julgada por um padrão mais elevado com o qual as ações humanas devem estar em conformidade universal Tornase parte de um amplo conjunto que abarca todos os homens e todas as cidades e é por isso mesmo privada de seu status privilegiado como o único horizonte que limita o âmbito da atividade moral do homem define as metas a que pode aspirar e determina a ordem básica de suas prioridades O caráter transpolítico da doutrina tomista revelase entre outras coisas pelo modo como Aquino separa a moral e a ciência política O Comentário sobre a Ética fez grande esforço para destacar que a unidade da família ou da cidade não é uma unidade orgânica mas uma unidade de ordem apenas e por conseguinte que cada um dos membros dessas sociedades mantém uma esfera de ação que é diferente daquela do todo A partir desta observação Aquino chega à conclusão de que a ética a economia e 234 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 29 Commentary on theEthics X Lect 14 II Lect 1 n 251 Summa Theologjae III qu 92 a 1 30 Commentary on the Ethics VI Lect 7 n 1197 X Lect 16 n 2165 31 Summa Theologae III qu 72 4 Cf III qu 21 a 4 ad 3m qu 91 a 1 On Kinghip II 1 94 DePerfictione Vitae Spiritualis 13 a política não constituem uma ciência composta de tiês panes mas três ciências sepa radas e especificamente distintas com isso investindo tanto a ética como a economia com uma autonomia que não possuem no esquema aristotélico Esses ensinamentos encontram um paralelo significativo na discussão de Aquino sobre o direito natural que faz parte de seu tratado sobre a justiça particular e segue a tradição de Ulpiano e dos juristas romanos que trataram do direito natural como uma divisão do direito privado em vez da de Aristóteles na qual a questão do direito natural é abordada inteiramente dentro do contexto da justiça legal Ao discutir a disposição do cidadão virtuoso para dar sua vida por seu país Aquino observa que tal ato seria o objeto de uma inclinação natural se o homem fosse por natureza parte da sociedade pela qual se sacrifica É dado a entender por essa observação que o relacionamento do homem para com uma determinada sociedade civil enquanto distinta de outras sociedades ci vis não é natural apenas mas adquirida Apesar de Aquino concordar com Aristóteles que o homem que se isola da sociedade e dos negócios de seus semelhantes ou é sobre humano ou menos do que humano seu exemplo de pessoa superior cuja perfeição ex cede os limites da sociedade civil não é o do filósofo a quem é provável que Aristóteles tivesse em mente mas o de S Antônio um eremita do século III notório entre outras coisas por sua oposição à filosofia Finalmente para citar apenas mais um exemplo Aquino interpreta a afirmação de Aristóteles de que a turtude moral é relativa ao regi me como uma referência à relativa bondade do homem como cidadão não à sua bon dade absoluta enquanto homem Esta última é considerada inseparável da sabedoria prática cujos princípios fundamentais são naturalmente conhecidos e compreendidos por todos independentemente do regime político Nessas circunstâncias a noção de melhor regime como a condição básica e indispensável para a felicidade dos indivíduos e das cidades perde a sua suprema importância tal como a perde a filosofia política em si da qual o melhor regime depende para sua efetivação A V ir t u d e M o r a l e as L e is N a t u r a is Tanto a base teórica como as implicações práticas da posição tomista são bem discerníveis no tratamento que dá Aquino às virtudes morais Esse tratamento pode ser descrito como uma tentativa de definir como o homem deve agir em função daqui lo que é ou de sua natureza racional Como tal apela diretamente a princípios que não são inerentes à ciência moral mas foram tomados de empréstimo da ciência natural a s Tomás d e Aquino 235 32 Commentary on the Ethics I Lect 1 n 56 VI Lea 7 n 1200 Summa Theologúu IIII qu 47 a 11 s c 33 Summa Theologiae IIII qu 57 34 Summa Theologiae I qu 60 a 5 35 Commentary on the Politics I Lect 1 n 35 Athanasius Life ofAnthony 72ss 36 Commentary on the Politics I Lect 3 n 376 Cf Summa Theologiae III qu 92 a 1 corp e ad 4 lII qu 58 a 4 que devidamente pertencem Pressupõe assim por parte do leitor uma compreen são abalizada da natureza do homem e de sua finalidade natural tal como apreendidas pelo intelecto especulativo De modo geral apresenta um aspecto mais doutrinário ou mais estritamente dedutivo do que o de Aristóteles Em certa medida a diferença entre os dois autores já está evidente no Comentário sobre a Ética de Aquino Nos livros II a V da Ética Aristóteles apenas lista 11 virtudes morais sem indicação precisa quanto à razão para a ordem em que são apresentadas e pouco ou nenhum esforço fãz para relacionar essas virtudes à alma humana e a seus diferentes elementos Sua discussão fica apenas no plano da virtude moral e se limita a uma elucidação dos fenômenos morais tal como se revelam aos homens decentes e ho nestos distintos dos filósofos Seu destinatário típico é o cavalheiro ou o homem de bons hábitos morais e opiniões que pressupõe tacitamente a decência e não precisa ser convencido da superioridade intrínseca da vida moral sobre a vida imoral Seu objeti vo declarado é o de esclarecer e articular o que o homem bemnascido e bemeducado já sabe de maneira confusa e aceita com base em sua própria experiência e educação mas sem qualquer consciência de seus pressupostos teóricos Em conformidade com essa finalidade eminentemente prática abstémse de qualquer referência expressa às premissas especulativas sobre as quais em última análise se fundamenta a moral mas cujo conhecimento tem apenas remota utilidade para a pessoa que está mais preocu pada com a real prática da virtude do que com uma compreensão profunda de suas raízes na natureza humana Assim como se pode ser um bom carpinteiro sem ter estu dado a ciência da geometria do mesmo modo se pode ser um bom homem sem se ter engajado em um estudo científico dos atos humanos Em termos simples a questão que a discussão como um todo suscita é o que é um homem bom e não por que se deve ser um homem bom A resposta que fornece para essa pergunta extrai seu principal apoio do destaque que a moralidade alcança na mente do homem para quem a bondade moral tornouse por assim dizer uma segunda natureza e não do conheci mento que pode ser obtido por meio de uma investigação filosófica do homem como ser natural O relato culmina com uma descrição da magnanimidade e da justiça as duas virmdes gerais que resumem ou definem a perfeição do homem como indivíduo e como ser social respectivamente A interpretação de Aquino das seções correspondentes da Ética vai além do que está explícita ou implicitamente contido no texto por trazer à luz os motivos que se supõe justificarem o método de procedimento de Aristóteles Coragem e moderação têm como matéria adequada o que Aquino chama de pabtões primárias tais como a raiva e a luxúria Em seguida vêm as virtudes relacionadas com as paixões secundárias que podem ser relativas tanto a bens quanto a males externos ou a ações externas Ao primeiro grupo pertencem a liberalidade e a munificência que regulam a utilização da riqueza as virtudes relacionadas à honra das quais a principal é a magnanimidade e a moderação Ao segundo grupo pertencem a cordialidade a simplicidade e a perspicácia 236 H istória da Filosofia P o iítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 37 Cf Summa Theologiae I qu 60 a 5 cortês Estas por sua vez sáo seguidas pela justiça que tem como objeto as açóes ex ternas em si em oposição às paixões internas com a qual todas as virtudes anteriores se relacionam A ordem em que essas virtudes são examinadas por Aristóteles encontraria sua razão de ser no fato de que as paixões primárias por tratarem dos bens que têm relação direta com a preservação da vida ou dos males que ameaçam a sua destruição prevalecem sobre as paixões secundárias que se preocupam com bens menos vitais e também com o fato de que uma vez que as ações se originam nas paixões é compre ensível que o tratamento das últimas preceda o das primeiras Perguntase porém em que medida a explicação científica de Aquino independentemente de seus mé ritos intrínsecos respeita o teor do texto de Aristóteles Para começar a distinção que estabelece entre as paixões primárias e secundárias conduz a uma maior valorização da coríem e da moderação em detrimento de outras virtudes mais espetaculares porém menos necessárias e menos comuns tais como a munificência e a magnanimidade que podem ser consideradas como um dos focos principais da discussão de Aristóteles sobre a vida moral Além disso a interpretação proposta introduz na discussão um princípio analítico que é estranho se não ao pensamento de Aristóteles pelo menos à maneira peculiar em que as questões morais são abordadas na Ética Esta conclusão é confirmada de maneira ainda mais impressionante na Summa Theoloae o tratado de Aquino sobre a virtude moral em que a classificação aristotélica é totalmente abandonada em fevor de um arcabouço platônicoestoico modificado que reduz todas as virtudes morais às quatro chamadas virtudes cardeais da temperança coragem justiça e prudência Cada uma dessas virtudes é ligada a uma ou outra das potências da alma a qual determina e cujas operações aperfeiçoa A temperança tem como seu sujeito a parte apetitiva ou concupiscível na qual introduz a ordem da razão principalmente por meio da imposição das restrições adequadas sobre o desejo do ho mem para os prazeres associados aos sentidos do tato e do paladar A coragem é a virtude que purifica a parte impetuosa ou irascível e capacita o homem a superar os medos que poderiam impedilo de buscar o bem racional A justiça encontrase na vontade e rula todos os aspectos das relações do homem com outros homens Por todas estas três virtu des o homem é devidamente ordenado para seu fim natural ou para o bem ditado pela razão Mas além de voltarse para o fim correto o homem deve ser também capaz de deliberar escolher e prescrever os meios que conduzam a este fim Esse é o papel da pru dência que é uma virtude intelectual na medida em que tem a razão como seu sujeito mas que também está incluída entre as virtudes morais na medida em que seu exercício apropriado depende da purificação do apetite pelas três virmdes anteriores Todas as outras virtudes morais são agrupadas sob uma ou outra dessas quatro virtudes em geral quer como partes subjetivas partes em potencial ou partes inte grantes As partes subjetivas são as diversas espécies em que pode ser dividida uma de terminada virtude de acordo com a matéria de que trata A prudência do governante s Tomás de Aquino 237 38 Commentary on the Ethics III Lect 14 n 528 39 Cf Summa Theologiae III qu 61 por exemplo supera a do súdito simples e difere especificamente dela pelo feto de que se desdobra para o bem comum de toda a cidade ou reino todavia ambas estão de acordo com a definição de prudência da qual constituem duas formas distintas e completas As partes potenciais são as virtudes que lidam com algum ato ou matéria secundários da virtude principal e por conseguinte não contêm em si toda a essência ou o poder dessa virtude como é o caso por exemplo da liberalidade e da amizade cuja matéria embora não seja coextensiva com a da justiça recai dentro do mesmo campo uma vez que tem a ver com a ordenação correta das relações entre os homens As partes integrantes não são virtudes completas em si mesmas mas representam os vários elementos que contribuem para a formação de uma virtude completa Assim memória criatividade cautela circunspeção e afins são todos componentes necessá rios para um único ato perfeito de prudência Desta maneira constituise de modo gradual um catálogo de virtudes morais que é ao mesmo tempo completo e evidente mente enraizado em uma análise teórica da natureza e das partes da alma humana Compreenderemos o significado mais amplo do procedimento analítico de Aqui no se nos dedicarmos a uma reflexão sobre as dificuldades específicas suscitadas pela doutrina aristotélica da virtude moral como uma média entre dois extremos Como as ações humanas podem desviarse da norma da razão quer por excesso ou por defei to o comportamento virtuoso ou racional exige que ambos os extremos sejam evitados e que a média correta seja observada em todos os momentos Na maior parte das vezes a média em questão é relativa ao sujeito ou ao agente e pode ser verificada apenas com referência às circunstâncias específicas de uma determinada ação incluindo o próprio agente A razão diznos por exemplo que a comida e a bebida são necessárias para a vida mas não pode especificar a não ser da forma mais geral o quanto este ou aquele homem deve comer e beber O que é demais para um homem pode não ser suficiente para outro e viceversa o que é adequado em determinadas circunstâncias ou em um determinado momento pode ser inadequado e digno de condenação moral em outros momentos e em circunstâncias diferentes É fecil imaginar uma situação em que a própria virtude possa aconselhar que se aja de forma contrária às normas de conduta vigentes ou das que têm a aprovação geral Surge logo uma pergunta no entanto rela tiva ao princípio à luz do qual deve ser tomada uma decisão desse tipo É característico da abordem empírica de Aristóteles que a sua discussão deste problema não aluda a qualquer norma fora da esfera da moralidade ou a qualquer fim transmoral a que se poderia recorrer a fim de justificar ocasionais desvios do governo comum A Ética não declara expressamente que a média da razão é a média tal como um homem prudente que é por assim dizer uma lei em si mesma poderia determinála Mas embora essa solução possa ser considerada adequada para fins de ação obviamente deixa algo a 2 3 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 40 Summa Theologiae IIII qu 47 a 11 qu 48 a 1 qu 50 a 12 41 Summa Theologiae IIII qu 80 a 1 42 Summa Iheolopae IIII qu 49 43 Cf Aristóteles Ética II 6 desejar do ponto de vista teórico e de feto dá como comprovada a questão uma vez que pouco mais fez que sugerir que a média correta é a média conforme estabelecida por um homem prudente o qual é ele próprio definido como uma pessoa que habi tualmente escolhe a média correta A mesma dificuldade é encontrada quando se examina a doutrina aristotélica da verdade prática A verdade prática no sentido pleno da expressão ou referindose à ação em uma situação específica não é apenas uma questão de conhecimento Exige que se leve em conta não apenas a natureza de um determinado ato mas também as diversas circunstâncias que o rodeiam Mas essas circunstâncias sâo inúmeras e literal mente impossíveis de avaliar Se de modo a agir de forma virtuosa o homem fosse obrigado a conhecer todas as circunstâncias relevantes para suas ações nunca seria capaz de se mover ou de se abster de se mover Resulta então que um juízo prático ou prudente pode ser objetivamente incorreto e no entanto moralmente correto Uma pessoa que por engano e sem qualquer negligência da sua parte ministre o medica mento errado a um paciente realiza um ato moralmente bom embora possa acarretar graves danos Na verdade mesmo se fosse possível uma avaliação completa e rigorosa dos fetos objetivos de uma situação concreta ainda não seria suficiente para assegurar o caráter moral da ação pessoal A verdadeira virtude exige que se siga o bem de acordo com o modo do bem e não apenas de acordo com o modo de pensar Isso implica por parte do agente em um desejo habitual para o bem tal como se revela e é conhecido por ele As questões que solicitam a atenção de um homem de moral não são questões que possam ser levantadas de maneira objetiva e imparcial apenas são inseparáveis do autor da pergunta e as respostas resistem à análise apenas em termos de razão Em palavras um tanto diferentes a verdade do juízo prático é medida pela conformidade da mente com o apetite purificado em oposição à verdade do juízo especulativo que é medida pela conformidade da mente com o que é ou com o seu objeto Mas se é assim todo argumento como indica corretamente Aquino mais uma vez parece ser circular a verdade ou razão correta em questões práticas depende da concordância entre uma ação específica e o apetite purificado que é em si determinado pelo fato de estar de acordo com a razão correta Ao tentar resolver esse duplo problema Aquino mais uma vez explicita aquilo que na melhor das hipóteses Aristóteles deixara apenas implícito Apesar de esboçada no Comentário sobre a Ética sua proposta encontra sua expressão mais detalhada e completa no íamoso tratado sobre a lei da Summa Theologiae Sua originalidade é indicada pelo fato de não ter equivalente em Aristóteles e contar para a maior parte de sua substância com as teorias do direito natural anteriores de Cícero e de Agostinho Em suma consiste em mostrar que embora seja verdade que a escolha dos meios s Tomás d e Aquino 239 44 Aristóteles Ética 116 11071 45 Commentary on the Ethics VI Lect 2 n 1131 Cf Summa Theologiae I qu 1 a 6 ad 2 qu 14 a 16 Aristóteles Ética X 5 11764 segs 46 Summa Theologiae III qu 90108 para alcançar um determinado fim seja tareia da razão o fim que o homem persegue como ser moral já lhe é designado por natureza e précontido em seu desejo inato por esse fim A natureza deve ser entendida precisamente como o princípio intrínseco de uma propensão determinada e necessária ou como Aquino a define alhures um compartilhar da arte divina por meio da qual até os seres não racionais são forçados a agir conforme a razão Como o próprio homem é um ser natural existe nele antes de qualquer deliberação uma propensão de todo o seu ser para o fim ou fins a que como todos os outros seres naturais é ordenado de modo uniforme Assim como uma substância naturalmente procura a sua própria preservação como animal comparti lha com outros animais um desejo natural para a procriação e educação dos filhos e como ser racional é naturalmente propenso a bens humanos específicos tais como a vida política e o conhecimento da verdade Justamente porque é dotado de razão o homem participa da ordem da providên cia divina de modo mais perfeito que todos os outros seres naturais Através do conhe cimento que tem de seu fim e das propensóes naturais que revelam sua existência fica de imediato consciente dos princípios gerais que regem sua conduta Como ditames da razão prática esses princípios constituem uma lei promulgada pela própria natu reza que lhe permite distinguir entre o certo e o errado e serve como critério infalível da bondade ou maldade de suas ações Seus preceitos mais universais compõem o objeto de um hábito especial ao qual Aquino denomina consciência ou de modo mais correto sindérese que é paralela ao hábito das primeiras e autoevidentes premissas das quais provêm todas as manifestações na ordem especulativa O uso exclusivo das palavras consciência suneidêsis e sindérese que não ocorrem em Aristóteles mas sim na tradição grega posterior e na tradição cristã inicial através das quais foram transmitidas aos autores da Idade Média já é sintomático do sabor não aristotélico dos ensinamentos tomistas sobre este assunto Há mais porém Uma vez que são considerados leis no sentido estrito e próprio do termo os princípios morais em questão assumem um caráter obrigatório que não tinham para Aristóteles e para a tradição filosófica em geral Porque a lei natural não apenas recomenda ou desencoraja determinadas açóes como intrinsecamente nobres ou vis mas as comanda ou proíbe sob pena de represálias se não nesta vida pelo menos na próxima Assim é nítida a pressuposição tanto da imortalidade pessoal da alma humana como da exis tência de um Deus onisciente e onipotente que governa o mundo com sabedoria e equidade e em cujos olhos todas as ações humanas individuais são ou meritórias ou 2 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 47 Commentary on the Physics II Lect 1 e Lect 14 n 268 Commentary on the Ethics I Lect 1 n 11 Cf Commentary on the Metaphysics V Lect 5 48 Summa Theologiae III qu 94 2 49 Summa Theologiae III qu 91 2 50 Summa Theologiae I qu 79 a 1213 III qu 19 a 56 De Veritate qu 16 in IlSent Dist 24 qu 2 a 3 O emprego da palavra sindérese suntêresis literalmente conservação neste contexto pode deverse inicialmente a uma transcrição equivocada de suneidêsis consciência em um tre cho de ampla circulação do Comentário sobre Ezequiel 14 de S Jerônimo merecedoras de castigo Qualquer violaçáo de seus preceitos revela mais do que um afastamento da razão ou uma simples ausência do bom gosto pois traz a marca de uma ofensa contra Deus o doador e íiador da lei natural que além da perda desses bens internos como a felicidade e a virtude dos quais o pecador se priva inflige sanções externas de acordo com a gravidade do delito Dentro desse contexto toda a vida moral do homem adquire uma orientação completamente nova deixa de ser entendi da apenas em termos de plenitude ou realização humanas e passa a ser em última ins tância uma questão de cumprimento voluntário e grato de uma lei divina autorizada e incondicionalmente compulsória Devese acrescentar de pronto que a lei natural fornece apenas as normas mais gerais para o comportamento humano ou as fundações inabaláveis sobre as quais re pousa o conhecimento que tem o homem da ordem moral A lei representa o primei ro mas nem por isso suficiente governo da razão entre os homens Apenas seus mais elevados princípios são conhecidos por todos sem exceção e mesmo estes são em geral amplos demais para serem de uso imediato na orientação das ações de cada um Preci sa portanto ser complementada por outra lei a qual é formulada através do esforço e da dedicação humanos e por esse motivo é chamada lei humana Os preceitos da lei humana decorrem eles próprios do direito natural quer por meio de determinações específicas de uma regra geral quer de conclusões a partir de princípios indemonstrá veis A lei natural por exemplo prescreve que Deus deve ser honrado e adorado mas o culto divino implica a realização de determinados atos ou ritos que podem variar de acordo com o tempo e o lugar e que devem ser especificados pela razão humana Da mesma forma a partir do princípio geral de que se deve abster de ofender a outros a razão infere que não se deve matar roubar ou cometer adultério Escusado será dizer que nem todos esses princípios comportam as mesmas provas ou induzem à mesma necessidade Na maioria dos casos sua universalidade é limitada pela deformidade ou extrema contingência da matéria à qual se referem não menos do que pela imperfeição e pela instabilidade relativas da natureza humana As ações humanas sempre envolvem pormenores e sua moralidade pode ser afetada por qual quer uma das inúmeras circunstâncias pelas quais se fazem acompanhar Via de regra a justiça exige que um objeto emprestado ou depositado seja devolvido a seu proprie tário mas isso não quer dizer que alguém tenha a obrigação moral de entregar um carregamento de armas para uma pessoa que pretende trair seu país Além disso nem todos os homens são capazes do mesmo grau de virtude ou perfeição moral seja por motivo de idade disposição natural ou hábitos previamente adquiridos Um princípio moral que faz exigências impossíveis e portanto absurdas sobre um determinado súdito ou grupo de súditos deve ser alterado para se adequar à situação à qual é apli S Tomás de Aquino 241 51 Summa Theolopae III qu 18 a 9 qu 21 a 4 qu 96 a 4 qu 98 a 5 qu 99 a 1 e 5 qu 100 a 2 52 Summa Theologiae III qu 71 6 ad 5 Summa Contra Gentiles IV 140 53 Summa Theologiae III qu 9512 qu 91 a 2 ad 2 cado Quanto mais específico o princípio mais variável e menos infalível se torna Por esse motivo a ciência moral ao contrário das ciências naturais oferece pouca certeza e deve contentarse em apresentar a verdade em termos gerais e esquematizados A pergunta decisiva então e a real controvérsia entre Aquino e Aristóteles não é se os princípios morais estão sujeitos a alterações mas se há quaisquer princípios morais de que nunca é permitido desviarse e que conservam o seu caráter obrigatório mesmo nas mais extremas situações Enquanto Aristóteles diz apenas que todos os direitos naturais são variáveis Aquino distingue entre os preceitos comuns ou primá rios da lei natural os quais todos os homens devem respeitar em todos os momentos e seus preceitos adequados ou secundários que estão sujeitos às variações impostas pelas circunstâncias Os primeiros diferem dos últimos tanto pelo seu maior grau de cognoscibilidade como por sua maior proximidade ao fim natural do homem Tal é o caso das prescrições contra o assassinato o adultério e o roubo que não sofrem ne nhuma exceção humana e de que só Deus como o autor da lei natural pode dispensar em certos casos como fez quando ordenou que Abraão matasse seu filho Isaac A esta categoria de leis universais válidas pertencem todos os mandamentos do Decálogo inclusive as prescrições contra a idolatria e o uso do nome do Senhor em vão que ao contrário dos preceitos cerimoniais e judiciais do Antigo Testamento não foram revogados pela Nova Lei A mesma distinção entre os preceitos primários e secundários é tomada como pressuposto pelo tratamento que dá Aquino à controversa questão da justificabilidade ou inculpabilidade de ações imorais realizadas sob coação Aristóteles abandonou a questão ao dizer de modo um tanto inconcluso que há talvez alguns atos odiosos com os quais não se deve consentir mesmo ao preço da morte após os sofrimentos mais terríveis e encerrou sua discussão com a afirmação de igual ambigüidade de que o louvor e a culpa são concedidos àqueles que cedem à compulsão e àqueles que não o fazem Ao comentar esta passagem Averróis explica que a afirmação de Aristóteles está relacionada ao fato de que o homem que sucumbe à coerção pode ser responsabili zado em um lugar mas nâo em outro sugerindo que quando a tortura física ou moral extrapola os limites da resistência humana comum a distinção entre ações corretas e incorretas passa a ser de modo geral uma questão de mandamento positivo Aquino por outro lado interpreta a palavra talvez em seu sentido retórico e não literal Afir 2 4 2 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 54 Summa Theologiae III qu 94 a 4 qu 96 a 2 IIII qu 57 a 2 ad 1 55 Commentary on the Ethics I Lect 3 n 35 II Lect 2 n 2589 56 Aristóteles Ética v 71 13425 s 57 Summa Theologiae III qu 94 5 ad 2 qu 97 a 4 ad d qu 99 a 3 ad 2 e a 4 qu 100 a 8 ad 3 Suppl qu 65 a 1 Cf também III qu 100 a 1 e qu 104 a 1 ad 3 onde dizse que o dever de amar e hontar a Deus ou as injunções contra a idolatria e tomar o nome do Senhor em váo enquanto parte da lei natural devem sua certeza náo apenas à razáo humana mas à razáo humana instruída por Deus ou informada pela fé 58 Aristóteles Ética III 1 11102433 59 Averróis In Moralia Nicomachia Expositio Veneza 1562 p 3 1 1 ma com ênfase que determinadas ações devem ser totalmente condenadas e como corroboraçáo cita o exemplo de S Lxurenço que preferiu a morte pelo fogo em lugar de fàzer sacrifícios aos ídolos Assim interpreta a observação final de Aristóteles como se significasse não que a vítima da coação pode às vezes ser perdoada ou digna de piedade tal como estava implícito no texto aristotélico mas que jamais pode escapar da culpa ou da condenação Uma vez que a lei que proíbe tais ações representa as intenções do legislador assim como o bem comum da sociedade para a qual essa intenção em princípio se dirige nunca pode ser posta de lado pelo fiito de que o próprio legislador teria permi tido que fosse transgredida em nome de uma lei maior se tivesse tido consciência das circunstâncias imprevistas que tornam a sua observância indesejável em uma situação particular Os princípios mais gerais da lei natural são portanto diretamente aplicá veis à sociedade humana e não têm de ser diluídos para se operacionalizar É elimina da de uma vez por todas a possibilidade de que o bem comum ou a preservação da sociedade possam por vezes compelirnos a agir de forma contrária a esses princípios Entre as exigências da justiça e da sociedade civil existe uma harmonia fundamental e necessária A ordem social perfeita existe ou é capaz de existir de fato e não apenas no discurso A justiça civil não apenas aproxima da justiça no sentido absoluto mas de fàto coincide com ela Do mesmo modo a perfeição do homem como indivíduo acaba por ser idêntica à sua perfeição como cidadão Como conseqüência a justiça civil e a coragem as duas virtudes relacionadas de modo mais estreito com o bemestar da cidade adquirem um novo e mais nobre status A controvérsia entre a justiça e a nuanimidade é decidida em íàvor da justiça que emerge como a mais elevada das virtudes morais sem qualquer restrição Pelo mesmo motivo Aquino é capaz de remover a ambigüidade inerente no tratamento da coragem por Aristóteles e fidar de forma inequívoca da corjem como a virtude que se preocupa acima de tudo com a morte que se enfrenta na defesa do país A solução harmônica que propõe para o problema da sociedade civil também elimina a necessi dade de mentiras nobres tanto mais que a crença nos deuses da cidade equivocada porém salutar é substituída pela aceitação do Deus único e verdadeiro a qual se torna uma exigência da lei natural A sabedoria pode doravante governar sem recorrer à mentira A ausência antes observada de qualquer real esoterismo nos ensinamentos políticos de Aquino é explicada não só pela reabilitação da filosofia no mundo cristão mas de modo mais radical através da reconciliação que a posição tomista presume entre as exigências da justiça e da sociedade civil s Tomás de Aquino 243 60 Commentary on the Ethics III Lect 2 n 3957 61 Summa Theologiae III qu 100 a 8 62 Commentary on theEthia V Lea 11 n 1003 Summa Theologiae III qu 92 a 1 ad 3 63 Summa Theologiae III qu 66 a 4 IIII qu 58 a 12 64 Commentary on theEthia III Lea 14 n 537 Essa reconciliação encontra uma de suas mais claras ilustrações na reinterpretação que faz Aquino da doutrina aristotélica da escravidão legal De acordo com o direito romano e os princípios ào jus gentium Aquino defende não apenas a necessidade mas a justiça dessa prática que apresenta como benéfica tanto para o conquistador como para o conquistado uma vez que poupa a vida do último e garante para o primeiro os serviços de uma população subjugada Sobre este ponto seus ensinamentos estão mais uma vez em desacordo com os de Aristóteles que contempla a servidão dos homens que não são escravos por natureza como um mal necessário justificado pelas demandas superiores e mais prementes da sociedade como um todo e por conseguin te como mais uma indicação do caráter irremediavelmente defeituoso e autocontradi tório da justiça humana no plano da sociedade civil FÉ B íb u c a e F il o s o f ia A doutrina da lei natural de Aquino constitui exemplo primoroso do nível moral e político da síntese tomista entre a fé bíblica e a filosofia aristotélica Como uma lei da natureza a lei natural compartilha da razão e não pode ser reduzida apenas à von tade de Deus As ações que ordena ou proíbe são intrinsecamente boas ou más não são boas ou más somente por serem impostas ou proibidas por Deus Como lei no entanto também contém uma referência explícita à vontade de Deus da qual provém sua força motriz Assim fica a meio caminho entre a doutrina do direito natural da tradição filosófica não religiosa por um lado e do voluntarismo estrito da tradição religiosa não filosófica do outro Distinguese desta última por definir a lei como em essência um ato da razão e não da vontade e difere da primeira por conceber Deus não só como a causa final do universo ou o motor imóvel que move todas as coisas pela atração que exerce sobre elas mas como legislador e causa eficiente que produz o mundo do nada e por seus comandos ativamente direciona todas as criaturas para o seu fim designado O pontochave desta questão e em torno do qual parece revolver a disputa entre a filosofia e a religião revelada mostra ser em última análise a oposição entre a doutrina bíblica da criação e a doutrina filosófica da eternidade do mundo Aquino empenhase para preencher a lacuna entre uma posição e outra não por atribuir ao filósofo pagão a noção de criação divina como fizeram alguns dos comen taristas aristotélicos anteriores mas por sustentar que os motivos aventados por Aristó teles em favor da eternidade do mundo são na melhor das hipóteses apenas prováveis De modo geral seu argumento tende a acompanhar os Tópicos de Aristóteles em que a eternidade do mundo é apresentada como um problema dialético ou como pertencen te à classe dos problemas que a razão não pode resolver em vez do tratado Sobre o Céu que trata do mesmo problema de um ponto de vista científico e deixa pouca dúvida 244 H istória da Filosofia P o lítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 65 Commentary on the Politics I Lect 4 n 75 e 79 acerca da posição final de Aristóteles sobre o assunto Se a visão de que o mundo é eterno não pode ser provada nem refutada pela razão natural não se pode afirmar que os ensinamentos da Revelação estejam em contradição direta com os da filosofia O conflito entre os dois ensinamentos é atenuado ainda mais e em parte obscurecido pela rejeição de Aquino da disjunção entre a eternidade do mundo e sua criação por Deus pois segundo Aquino mesmo se o mundo fosse eterno ainda teria sua origem no livrearbítrio de Deus O que a doutrina da criação traz implícito em sua essên cia afinal não é o vir a ser do mundo e concomitantemente do próprio tempo em um dado momento no passado não importa se próximo ou remoto mas a contingên cia radical de todos os seres a não ser Deus e sua total dependência de Deus para sua existência Essa doutrina encontra sua expressão metafísica na doutrina tomista típica da distinção real entre essência e existência em todos os seres exceto Deus Contudo não é menos verdade que ao atribuir causalidade eficiente a Deus Aquino seja obrigado a preservar ou restabelecer a distinção entre o intelecto e a von tade de Deus Embora essa distinção deva ser considerada como uma distinção de razão e não de forma alguma uma distinção real ainda assim tem o efeito de dar maior destaque à vontade de Deus do que a doutrina aristotélica de Deus como puro intelecto ou como o pensamento que só pensa a si Esta conclusão é reforçada pelos motivos que Aquino alega para explicar por que assumindo a possibilidade teórica de uma criação eterna Deus produziu o mundo no tempo em vez de a partir de toda a eternidade a não eternidade do mimdo deixa mais evidente que todas as coisas devem sua origem a Deus dissipa quaisquer dúvidas que restem sobre o fato de que Deus não cria por necessidade mas por um ato de seu livrearbítrio e finalmente manifesta com abundante clareza o poder infinito de Deus na medida em que a criação implica um dom total do ser de que só Deus que possui a plenitude do ser é capaz O im pacto de longo alcance de tal doutrina pode ser vislumbrado embora de modo parcial e inadequado por meio da ênfase unilateral que foi colocada na vontade e no poder dentro do pensamento filosófico e político moderno Mesmo que se aceitasse a interpretação de Aquino e se admitisse que os ensi namentos de Aristóteles não são incompatíveis com o dogma cristão ainda poderia ser suscitada uma questão quanto a saber se ao inserir os pontos de vista morais e políticos de Aristóteles em um quadro teológico ou complementálos com ensinamen tos baseados na Revelação Aquino não alterou seu caráter original em profundidade A questão da diferença entre os dois autores não é eliminada de vez pela sugestão ocasional de Aquino de que Aristóteles lida primordialmente com a felicidade do ho mem nesta vida enquanto o cristianismo se preocupa sobretudo com a felicidade do s TomAs de Aquino 245 66 Summa Theohgfiie I qu 46 esp a 1 Summa Contra Gentiles II 3038 Aristóteles Tópicos 1 11 I0416 Sobre o Céu I 24 e 1012 III 2 67 Summa Theologfoe I qu 46 a 2 corp e ad l 68 Summa Theologiae I qu 3 a 4 Summa Contra Gentiles I 22 69 Summa Contra Gentiles II 38 15 homem na vida futura pelo simples motivo de que Aristóteles trata a felicidade desta vida como a única felicidade e guarda um silêncio ininterrupto sobre o tema crucial da imortalidade pessoal da alma A mudança de perspectiva efetuada pelo acréscimo de uma dimensão sobrenatural à especulação aristotélica não é menos importante por ser menos visível Para perceber esta mudança basta apenas refletir por exemplo sobre o que acontece com a magnanimidade quando combinada com a humildade uma vir tude não encontrada em Aristóteles ou sobre o que acontece com a coragem quando a vida na Terra é examinada dentro da perspectiva mais ampla do destino eterno do homem pois decerto o cristão que espera uma recompensa celestial em caso de mor te no campo de batalha não é inspirado por sentimentos idênticos aos do cidadão he roico que não tem essa certeza e percebe que ao pôr em perigo sua vida por uma causa nobre arriscase à perda definitiva e irreparável de tudo o que é caro aos homens Formulado em termos mais amplos o problema básico tem a ver não tanto com a concordância ou discordância entre o conteúdo da Revelação e os ensinamentos da filosofia quanto com o contraste entre a fé e a filosofia vistas como o motivo para modos de vida total e essencialmente divergentes Não se pode ser guiado a um só tempo por duas normas diversas e igualmente impositivas A aceitação da supremacia da vida de fé ou de devota resposta à palavra revelada por Deus implica necessariamente a destruição da filosofia em seu sentído original ou o que dá no mesmo a reposição da ordem na tural composta por filósofos e não filósofos por uma ordem sobrenatural baseada na dis tinção mais fundamental entre os verdadeiros crentes e não crentes Afinal o abismo que separa o erudito Tomás de Aquino do erudito Aristóteles é infinitamente maior do que aquele que separa o erudito Tomás de Aquino do simples mas piedoso Antônio A análise anterior apresenta a verdadeira natureza da revolução iniciada por Aquino na teologia cristã Contrário ao que muitas vezes é dito Aquino não batizou Aristóteles Na verdade declarou inválido o batismo conferido a ele por seus primeiros comentaristas e negoulhe admissão à plena cidadania na Cidade de Deus Ao con trário ao atribuir a sua filosofia um papel subserviente fez dele um servo ou escravo daquela Cidade À luz dos próprios princípios morais de Aquino esse tratamento não é injusto dado que em troca de sua contribuição para a teologia cristã Aristóteles recebeu se não o dom da graça pelo menos a graça de viver A prova é que enquanto foi afinal banido do islamismo e do judaísmo encontrou um lar permanente no Ocidente cristão O lugar de honra que passou a ocupar na tradição cristã como o representante por excelência dos feitos mais gloriosos da razão natural é testemunha eloqüente da inovação e arrojo do feito de Aquino O sucesso desse feito devese acrescentar nunca foi total ou inconteste Devido à sua ousadia Aquino entrou em conflito com os dois mais poderosos embora desi guais em número grupos no Ocidente Despertou o antagonismo dos teólogos tra dicionais que se ressentiam da intrusão de um pagão incorrigível no rebanho cristão 246 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 70 Commentary on the Ethics I Lect 4 n 4 III Lect 18 n 588590 Commentary on the Politics II Lect I n 170 Cf Summa Contra Gentiles III 48 e reprovavam Aquino por ter rompido a unidade da sabedoria cristã e provocou a ira dos filósofos recémemancipados os chamados averroístas latinos que se opunham à escravização da própria filosofia à qual poderiam dar o crédito por têlos libertado O delicado equilíbrio que foi capaz de estabelecer entre os extremos da fé e da razão foi desestabilizado menos de três séculos mais tarde por dois acontecimentos revolucioná rios os quais teria desaprovado mas que de modo longínquo preparou ou facilitou Um deles é o repúdio por Lutero da igreja aristotélica em nome de uma forma que supunha mais pura e menos mundana do cristianismo O outro é o repúdio por Maquiavel tanto de Aristóteles como da Igreja em nome de um ideal que não era nem clássico nem cristão mas enfaticamente moderno L e it u r a s Aquino jamais escreveu um tratado versando de forma exclusiva e abrangente sobre o tema da política Seus ensinamentos sobre esses assuntos e outros diretamente relacionados encontramse sobre tudo nas seções sobre a lei e sobre a virtude moral da Summa Jheologiae e em trechos paralelos da Summa Contra Gentiles e outras obras teológicas São expostos de modo metódico embora a partir de um ponto de vista limitado no breve tratado Sobre a Monarquia escrito a pedido do Rei de Chipre Finalmente podem ser recolhidos de forma um pouco mais incidental entre seus comentários sobre a Ética e sobre os dois primeiros livros e meio da Política de Aristóteles Devese observar que o restante dos comentários sobre a Política na tradição manuscrita e as edições impressas dessa obra foram escritas não pelo pióprio Tomás de Aquino mas por seu discípulo Pedro de Auveigne A Summa Iheologae ou Summa Theologica como é chamada às vezes não é um tratado no sen tido comum da palavra de acordo com a forma dos tratados aristotélicos digamos assim Porque o seu método de procedimento é em geral desconhecido para o leitor moderno podem ser necessárias algumas palavras de explicação em relação a ela O trabalho como um todo é dividido em trés partes A primeira parte tem como tema geral Deus e a criação A parte dois contém uma exposição da teologia moral de Tomás de Aquino e se divide em duas panes a primeira é dedicada a um tratamento do fim último do homem e dos princípios das ações humanas em geral quer intrínsecos as virtudes e vícios ou extrínsecos a lei a graça a segunda trata principalmente das virtudes e vícios em particular A pane trés trata no todo de Cristo e dos sacramentos ou do modo como na atual economia da salvação o homem retorna a Deus Cada uma dessas três panes se divide em uma série de perguntas e cada pergunta em uma série de artigos que seguem de modo uniforme o padrão da assim chamada questão disputada Os artigos individuais recebem um título sob a forma de uma peiunta que é seguido de imediato por uma enu meração das objeções mais imponantes ou mais relevantes para a tese defendida no artigo Em seguida Aquino coloca a sua própria posição com o apoio de uma autoridade reconhecida tal como uma citação das Escrimras dos Pais da Igreja de Aristóteles ou de Cícero e passa a demonstrar essa posição por meio de aiumentos teológicos ou filosóficos no corpo do artigo O artigo termina com uma resposta ponto por ponto às acusações feitas no início Os comentários de Aquino sobre Aristóteles penencem a um gênero literário conhecido na Idade Média como o commentarium ad litteram ou comentário literal distinto das paráfrases simples ou glosas comumente empregadas por seus antecessores latinos Caracterizamse pelo extremo cuidado bem como pela simpatia com que o texto de Aristóteles é escrutinado O tema de cada obra e o modo de procedi mento a ser adotado para lidar com ele é indicado quer em um preftcio ou no início do comentário em si Aquino em seguida divide e subdivide o texto de Aristóteles com o propósito de revelar sua estrutura global juntamente com a relação de cada parte do seu contexto imediato e para com o todo O comentá rio segue a ordem dos livros em que a tradição divide os tratados de Aristóteles e os quebra em sarnentos s Tomás de Aquino 247 menores de comprimento variável dos quais cada um constitui o objeto de uma única lectio ou liçáo Finalmente cada unidade de pensamento ou subdivisão final dentro desses sarnentos é explicada de forma breve ou com mais detalhes de acordo com o que as circunstâncias demandem O objetivo geral do comentário é interpretar o texto de Aristóteles de forma precisa e objetiva náo acrescentarlhe ou desenvolver a partir dele um ensinamento filosófico original Sempre que necessário o comentário esclarece o significado das palavras mais importantes e dá seus equivalentes latinos Indica em relação a cada ponto específico a natureza precisa do argumento utilizado por Aristóteles Em alguns casos fornece as razões que úndamentam tacitamente as suas declarações ou explicita o que estava apenas implícito no texto original Em raras ocasiões chama a atenção para a diferença entre os ensinamentos de Aristóteles e da Bíblia Quaisquer dificuldades ambigüidades ou aparentes contradições no texto são elucidadas por meio de hipóteses plausíveis baseadas em princípios que são os do próprio Aristóteles e que são retirados de preferência de uma mesma obra Em que medida as interpretações de Tomás permane cem fiéis em todos os momentos não só à letra mas ao espírito de Aristóteles é como se poderia esperar uma questão que tem suscitado debate entre os estudiosos Seja qual for a resposta para essa peigunta não se pode negar que tanto individual como coletivamente seus comentários revelam uma extraordinária compreensão e domínio de todo o corpus da obra de Aristóteles A Ihomas Aquinas On Kinhip to the King o f Cyprus Translated by Gerald B Phelan and revised by I Th Eschmwn Toronto The Pontificai Institute of Mediaeval Smdies 1949 Book I Thomas Aquinas Summa Theoloffca Dterally Translated by the Fathers of the English Dominican Province 3 v New York Benziger Brothers 1947 III qu 9097 qu 100 qu 105 a 1 ffom the tteatise on law IIII qu 47 and 50 from the treatise on pmdence IIII qu 5758 from the treatise on right and justice Thomas Aquinas On the Truth o f the Catholic Faith Summa Contra Gentiles Newly Translated with an Introduction by Anton C Pegis Garden City Image Books 1955 Book I Chaps 17 B Thomas Aquinas Commentary on the Nicomachean Ethics Translated by C I Litzinger Chico Henry Regnery Company 1964 Book I Lect 13 Book IV Lect 811 Book V Book VI Lect 7 BookX Lect 916 Thomas Aquinas Commentary on the Politics ofAristotle Proemium Book I Lect 1 Book III Lect 16 Medieval Political Philosophy A Sourcebook Edited by R Lerner and M Mahdi with the coUaboration of E L Fortin New York The Free Press 1963 p 298334 2 4 8 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey M arsíuo d e Pádua circa 12751342 Marsílio cuja principal obra intitulase Defensor da Paz 1324 foi um aristo télico cristão Porém são profundas as diferenças entre seu cristianismo e seu aristote lismo e as crenças do mais célebre aristotélico cristão Tomás de Aquino Marsílio por assim dizer vive em um mundo diferente de Tomás Em todo o Defensor menciona Tomás apenas uma vez mas mesmo assim quando afirma citálo na verdade cita apenas as palavras de um outro abalizado autor cristão inseridas por Tomás com o nome desse autor em uma compilação Tomás aceitara o tradicional governo eclesiás tico da Igreja Romana Marsílio admite que a classe sacerdotal cristã seja divinamente estabelecida independentemente do laicato cristão ambos sendo parte da ordem cris tã mas nega que a hierarquia eclesiástica seja divinamente estabelecida De acordo com ele em essência todos os sacerdotes cristãos são iguais em todos os aspectos no que se refere ao direito divino Também nega que qualquer sacerdote mesmo que seja bispo ou papa tenha por direito divino qualquer um dos seguintes poderes o poder de comandar ou de coagir o poder de decidir se e como será exercida a coação contra apóstatas e herdes sejam eles sujeitos ou príncipes e o poder de determinar de forma juridicamente vinculativa o que é ortodoxo e o que é herético Contudo não podemos examinar a doutrina da Igreja de Marsílio embora fosse esta da maior importância política em particular durante a Reforma pois tal doutrina pertence à te ologia política e não à íilosoíia política Ao acatarmos esta distinção não adulteramos os ensinamentos de Marsílio pois ele próprio distingue em toda a sua obra os ensina mentos políticos demonstrados por manifestação humana dos ensinamentos polí ticos revelados por Deus de modo imediato ou mediato de tal forma que são aceitos pela fé simples como distintos da razão Com isso não se n que o princípio da sua doutrina sobre o sacerdócio cristão forneça a chave para quase todas as dificuldades que abundam em sua obra pois esse princípio explica o seu único desvio explícito dos ensinamentos de Aristóteles Marsilius of Padua The D fender ofthe Peace trans with an introduction by Alan Gewirth New York Columbia University Press 1956 II 1324 169 parágrafo de Dictio II Ibid I 92 Quanto aos princípios da íilosoíia política Marsílio revelase um rigoroso segui dor de Aristóteles o filósofo divino ou o sábio pagão Concorda com Aristóteles de modo inequívoco a respeito da finalidade da nação a nação existe em prol da boa vida e a boa vida consiste em exercer as atividades adequadas para tornarse um ho mem livre ou seja consiste no exercício das virtudes da alma prática bem como as da alma especulativa Enquanto a felicidade prática ou cívica parece ser a meta dos atos humanos na verdade a atividade do metafísico é mais perfeita que a atividade do príncipe que é o homem ativo ou político por excelência Marsílio concorda com Aristóteles de maneira explícita quanto à questão de os objetivos da nação constitu írem o fundamento para os demais tipos de causas materiais formais e móveis da nação e de suas partes Expressa sua concordância com ele em vários outros aspectos Faz apenas uma ressalva contra Aristóteles ele não conhecia uma doença muito grave da sociedade civil um mal o inimigo comum da raça humana que deve ser erradi cado A falta deste conhecimento não desabona a suprema sabedoria de Aristóteles O filósofo não conhecia a pestilência em questão porque não poderia conhecêla já que era resultado acidental de um milíre que não poderia ter sido previsto sequer por um homem ainda mais sábio que o milagre Este milagre é a revelação cristã e a doença grave surgiu a partir de reivindicações da hierarquia cristã de modo algum apoiadas pelas Escrituras reivindicações que culminam na noção da plenitude do poder papal Marsílio declara que esta é a única doença política da qual se ocupará uma vez que as demais foram examinadas de forma adequada por Aristóteles Não se deveria por tanto sequer nutrir a esperança de encontrar uma apresentação completa da filosofia política no Defensor A obra surge como uma espécie de apêndice à porção da PolíHca de Aristóteles da qual se pode dizer que analisa as doenças da sociedade civil Todavia o desconhecimento por Aristóteles de uma única doença embora ex cepcionalmente grave da sociedade civil é apenas o avesso de seu erro fundamental ser pagão Esse erro porém afeta sua filosofia política de modo direto em apenas um ponto os ensinamentos a respeito do sacerdócio vristóteles não conhecia o verdadei ro sacerdócio cristão mas apenas os falsos sacerdócios pagãos Isso não significa que seus ensinamentos a respeito do sacerdócio sejam totalmente incorretos Pelo contrá rio dentro da filosofia política esses ensinamentos estão na maior parte corretos Discerniu com nitidez que o sacerdócio é um elemento necessário à nação e até mes mo uma parte nobre dela mas não pode ser uma parte dominante os sacerdotes não podem ter o poder de governar ou julgar Também descortinou com clareza que não se pode deixar de forma geral e global à escolha dos indivíduos tornaremse sacerdotes ou não o número de sacerdotes bem como suas qualificações e em es pecial a admissão de estrangeiros ao sacerdócio na nação estão sujeitos à decisão do 250 H istória d a Filosofia P o lítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 3 Ibid I 112 início e 1615 final 4 Ibid I 41 17 II 304 final cf I 69 primeiro parágrafo 5 AídíI 135 7 193 e 813 governo desta A revelação cristã não contradiz esses ensinamentos demonstrados já que a revelação está sem dúvida acima da razão mas não é contrária a ela E isso não é tudo Aristóteles de feto não conhecia o verdadeiro fundamento do sacerdócio que só pode ser a revelação divina Conmdo se não Aristóteles de qualquer modo outros filósofos que como filósofos não acreditam em outra vida elaboraram ou aceitaram leis supostamente divinas acompanhadas de sanções em outra vida porque acreditavam que tais sanções induziriam os não filósofos a evitar os vícios e cultivar as virtudes nesta vida O cristianismo é uma lei verdadeiramente divina e a fé cristã em castigos e recompensas depois da morte é a verdadeira fé com base na fé cristã pode se então de feto afirmar que a nação é guiada tanto para esta felicidade neste mundo como para a bemaventurança no outro Entretanto uma vez que o outro mundo não pode ser conhecido ou demonstrado a filosofia política deve concebêlo como um meio postulado para inspirar este mundo Além disso enquanto o cristianismo se pre ocupa exclusiva ou essencialmente com a outra vida também faz com que o destino dos homens no outro mundo dependa do modo como viveram neste mundo e tam bém defende que a crença em castigos e recompensas após a morte é salutar também do ponto de vista político O raciocínio dos filósofos pos é portanto verdadeiro e assim podese dizer que fez parte dos ensinamentos políticos demonstrados De qualquer forma esse raciocínio conduz ao conceito filosófico aceito por Marsílio da seita como sociedade constituída pela crença em uma lei divina singular ou por uma religião singular este conceito abrange do mesmo modo todas as leis que se supõem ser e que são de feto divinas pois a verdade da verdadeira religião escapa à íilosoíia como filosofia Este conceito de seita neutro do ponto de vista religioso é uma parte essencial da ciência política de Marsílio tal como fora da ciência política da Alfará bi Induz ao conceito racional de sacerdócio segundo o qual os sacerdotes são em essência professores e não governantes ou juizes a função essencial dos sacerdotes em qualquer lei divina é ensinar uma doutrina salutar relativa à vida após a morte ou de modo mais geral ensinar a lei divina na qual sua sociedade por acaso acredita Os sacerdotes são os únicos professores que como professores constituem uma parte da nação De acordo com a Política de Aristóteles os sacerdotes são na verdade uma das seis partes da nação mas sua função não consiste em ensinar A divergência entre Mar sílio e Aristóteles neste ponto no entanto não se baseia em um malentendido Marsílio afastase da letra e não do espírito de seu mestre Ao afirmar que o sacerdócio é a única parte da nação que se devota primordialmente ao ensino destaca o que é mais relevante o feto de que segundo Aristóteles os filósofos longe de serem a parte governante da melhor nação como seriam de acordo com Platão não são sequer M arsíuo d e pádua 231 6 Ibid I 51 1510 1912 final II 14 89 chiando no final 305 patágtaíb 2 7 óííí1434 511 103 8 Ibid I 52 3 13 103 II 84 final Mas cf o sentido pejorativo de seita em II 1617 Ver anteriormente p 224 9 Ibid I 512 194 102 22 ed PrevitéOrton e 5 início II 610 final 106 2013 Observese que Marsílio não cita Deut 3310 como tais uma parte de qualquer naçáo pois a meta da nação como nação não é a perfeição especulativa as cidades e os Estados não filosofam O fato de que os filósofos pagãos em geral e Aristóteles em particular apri moraram o ensino racional acerca do sacerdócio não significa que sejam verdadeiros todos os ensinamentos de Aristóteles sobre este assunto Segundo Aristóteles a ação do sacerdote é menos nobre ou perfeita que a ação do governante contudo na lei dos cristãos e só nessa lei a ação do sacerdote é a mais perfeita de todas Segundo Aristóteles só os idosos da classe superior deveriam ser sacerdotes outro pormenor que é negado pelo cristianismo Finalmente segundo Aristóteles os sacerdotes são apenas cidadãos porém uma vez que os sacerdotes cristãos deveriam imitar a Cristo e por conseguinte viver em pobreza e humildade evangélicas ficaria aparente que não deveriam ter nada a ver com as coisas que são de César As doenças da nação que Aristóteles discutira póem em perigo este ou aquele tipo de governo ou tornam impossível um bom governo Entretanto na opinião de Marsí lio a doença com a qual o Defensor se preocupa impossibilita qualquer governo pois destrói a unidade do governo e da ordem jurídica ou acarreta a anarquia permanente já que consiste na crença de que o cristão está sujeito neste mundo a dois governos o espiritual e o temporal que estão fadados a entrar em conflito Essa doença põe em perigo não só a boa vida ou os frutos da paz em prol dos quais existe a nação mas a própria vida ou a própria paz que são apenas a condição embora a condição neces sária para a realização do verdadeiro objetivo da nação Daí se vê como é oportuno o título da obra de Marsílio o livro é um defensor não da fé mas da paz e de nada mais além da paz não para repetir porque a paz é o bem maior ou o único bem político mas porque sendo um tratado destinado à sua época preocupase em essência com a doença da época É este o motivo pelo qual Marsílio deixa entrever que reduz suas expectativas Desta forma furtase da questão acerca do melhor regime sem de modo algum negar a sua importância qualquer regime é melhor que a anarquia Portanto preocupase mais com a lei apenas com a lei como lei do que com as boas leis ou as melhores leis e com o governo apenas do que com o melhor governo Assim satisfaz se apenas com o consentimento como critério para a legitimidade ao contrário do nível de consentimento Aristóteles por assim dizer precaverase contra a situação embaraçosa de Marsílio Quando este afirma com efeito que a lei como lei não pre cisa ser boa ou justa enquanto a lei perfeita deve ser justa está em total acordo com a observação de Aristóteles de que um governante não é menos governante porque governa de modo injusto ou com o uso lingüístico de Aristóteles ou mesmo do senso comum que nos autoriza a falar de leis más ou injustas sem mencionar o fato de que quando Aristóteles opõe a escravidão por natureza à escravidão pela lei decerto ao di zer lei não quer dizer uma lei justa Apesar de com frequência ou na maior parte das vezes esquivarse do fato de que a nação é ordenada para a virtude Marsílio e em total acordo com a advertência de Aristóteles de que quase todas as cidades não estão 252 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a s L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 10 Ibid I 5113 II 1314 241 final 304 parágrafo 1 final preocupadas com a virtude um comentário que não impede Aristóteles de chamar essas más cidades de cidades A única reserva de Marsílio contra Aristóteles subsistia quanto às conseqüências imediatas do fàto de Aristóteles ser pagão Só por acidente concernia à filosofia política ou à doutrina política racional Ainda assim segundo Aristóteles o melhor governo ci vil é o governo dos cavalheiros que governam sua cidade uma sociedade relativamente pequena e estão habilitados a fezêlo porque são homens de fortuna Como pode riam tais homens ser cogitados para serem governantes de uma sociedade cristã onde teriam de governar sacerdotes cristãos e portanto a Igreja Pois em uma sociedade cristã a atividade do sacerdote é mais nobre que a do governante Além disso a Igreja é universal Finalmente os melhores homens da cristandade ou seja os melhores cris tãos devem viver em pobreza evangélica Este foi o problema que Marsílio acreditava ter de resolver e ter resolvido A questão de como conciliar o princípio aristotélico os homens dedicados à atividade prática mais nobre deveriam governar por direito próprio com o princípio cristão a atividade do sacerdote é mais nobre do que a do cavalheiro parece ter sido resolvida da forma mais clara e simples pela doutrina da plenitude do poder papal Marsílio evita essa conclusão dentro dos limites da filosofia política ao ensinar que em cada nação a autoridade política fundamental não é o governo ou a parte governante mas o legislador humano e que o legislador humano é o povo todo o conjunto dos cidadãos Para expressar isso na linguagem de Rousseau Marsílio afirma que o único soberano legítimo é o povo mas que o soberano deve ser distinto do governo Assim consegue subordinar os sacerdotes cristãos ao laicato a aristocracia cristã ao populus ou demos cristão Mas ao tomar essas medidas parece desviarse de modo flagrante dos ensinamentos de seu venerado mestre o qual se pode dizer que identificava o soberano com o governo e acima de tudo preferia a soberania ou o governo dos cavalheiros aristocracia à soberania ou governo do povo democracia Marsílio não se livra da dificuldade pela aceitação das afirmações de Aristóteles segundo as quais a democracia ou governo do vulgo é um mau regime e os agricul tores artesãos e ganhadores de dinheiro que constituem o vulgo não são no sentido mais estrito parte da nação Ao contrário aumenta a dificuldade por atribuir a Aris tóteles o suinte ensinamento o poder legislativo deve estar inteiramente nas mãos do conjunto de cidadãos o governo deve ser eleito por todo o conjunto dos cidadãos e deve prestar contas a ele o governo deve governar na estrita observância das leis e se transgredir uma lei será passível de punição pelo conjunto de cidadãos Este ensi namento atribuído a Aristóteles é muito mais democrático do que o verdadeiro ensina mento de Aristóteles dentre todo o conjunto dos cidadãos como Marsílio o entende é o vulgo que deve desempenhar um papel muito grande para não dizer decisivo A argumentação a fàvor do vulgo com a qual Marsílio apoia o seu ensinamento é de M a k s íu o d e P á d u a 253 11 Ibid I 11 84 1045 151 17 II 45 89 28 final PoUtica 1255 1315 1276 13 1282 713 1324 79 1333b 5ss 01180 2435 fato quase idêntica ao argumento em favor da democracia que Aristóteles relatara e examinara no contexto de sua ascensão dos regimes defeituosos à aristocracia ou mo narquia Marsílio por sua vez não se cansa de fazer citações explícitas de Aristóteles quanto a este tema embora não sem equívocos peculiares Ainda mais peculiar é seu completo silêncio neste âmbito acerca da argumentação antidemocrática de Aris tóteles Marsílio relata ainda a argumentação antidemocrática mas omite qualquer referência a Aristóteles Cita apenas uma autoridade para a posição antipopulista as palavras do sábio rei Salomão segundo as quais é infinito o número dos tolos Marsí lio não citara nenhuma passem bíblica em seu raciocínio populista assim nos deixa perplexos por um momento fazendonos pensar que a Bíblia ou ao menos Salomão poderia fevorecer a aristocracia No entanto descarta essa possibilidade ao sugerir que ao dizer tolos o sábio quisesse mencionar talvez os infiéis que por mais sábios que sejam nas ciências do mundo são contudo de todo insensatos já que segundo Paulo a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus A partir disso seguese que o homem fiel e por conseguinte tanto mais a multidão dos fiéis é verdadeiramente sá bia e portanto perfeitamente competente para fazer leis e eleger reis e magistrados Há pelo menos uma outra observação de Marsílio que revela que sua crença na competência do povo em geral deu origem à sua preocupação não com a autoridade como tal mas com a autoridade na cristandade Afirma com efeito que a necessidade de dar à multidão o poder de legislar e de eleger magistrados é menos evidente que a ne cessidade de confiar à multidão o poder de eleger sacerdotes e removêlos de seus cargos sacerdotais pois o erro na eleição de um sacerdote pode levar à morte eterna e a grandes prejuízos nesta vida Tais danos consistem na sedução das mulheres durante as conver sas secretas em que confessam seus pecados ao sacerdote É óbvio que o mais simples cidadão e sem dúvida portanto a multidão fiel é capaz de julgar a confiabilidade de qualquer sacerdote individual em tais questões assim como o seriam os homens mais sábios do mesmo modo a multidão simples pode até estar mais bem informada acerca de tais assuntos que os eruditos Marsílio também sugere que é infalível o conjunto dos fiéis que é guiado em suas deliberações pelo Espírito Santo ao contrário do conjunto de cidadãos como meros cidadãos De longe o argumento mais importante a favor do governo popular no entanto é fornecido pelo exemplo da Igreja em sua forma mais pura na qual não havia ainda príncipes cristãos e a Igreja consistia com exclusividade em sacerdotes e na multidão de leigos que eram seus súditos Justamente naquela épo ca Igreja significava apenas todo o conjunto dos fiéis de forma que todos os cristãos eram eclesiásticos Donde a tradicional distinção entre o povo e o dero deve ser revista de modo radical em favor do povo De acordo com as práticas da Igreja primitiva a eleição para todos os cargos sacerdotais é província de toda a multidão dos fiéis Esse raciocínio não é enfraquecido mas reforçado pelo fato de que na própria Igreja pri mitiva a multidão era incivilizada e inexperiente se mesmo nessa época os bispos eram 254 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 12 Definder I 51 13 83 11 esp 116 1234 13134 II 171012 213 e 9 final PoUtica 1281 40 segs esp 1281 2325 muitas vezes eleitos pelo povo tal procedimento é ainda mais adequado após a fé ter lançado raízes tanto nos súditos quanto nos príncipes Voltemos ao âmbito da filosofia política e examinemos um pouco mais de perto a doutrina de Marsílio sobre o legislador humano Dois capítulos inteiros de um total de 52 são dedicados à exposição às provas e à defesa dessa doutrina São apresenta das três provas às quais se acrescenta uma quarta mas a quarta prova é nas palavras dele pouco mais que um resumo das três primeiras 1 O poder legislativo deveria pertencer àqueles de quem só as melhores leis podem nascer mas este é o conjunto de todos os cidadãos uma das razões para isso é que ninguém prejudica a si mesmo em sã consciência e portanto podemos acrescentar quando cada um pensa em seus interes ses não serão esquecidos os interesses de ninguém ou serão devidamente atendidos os interesses de todos 2 O poder legislativo deveria estar nas mãos apenas daquele que pode melhor garantir que serão observadas as leis promulgadas mas este é o conjunto de todos os cidadãos pois cada cidadão tem maior respeito pela lei que pareça ter sido imposta por ele mesmo ainda que nâo seja boa o motivo para isso é que cada cidadão nâo apenas é um homem livre ou seja não é sujeito a um mestre mas também deseja ser um homem livre Podemos observar que esse argumento acarreta uma dificuldade nunca discutida por Marsílio acerca da lei dada por Deus e que por conseguinte nem sequer em aparência pode ser considerada autoimposta 3 O que pode beneficiar e prejudicar a cada um e por conseguinte a todos deveria ser conhecido e ouvido por todos de forma que todos e cada um pudessem alcançar o benefício e repelir o mal A defesa da doutrina é expressa em três argumentos que são na sua maioria retirados do raciocínio populista relatado por Aristóteles Na segunda parte do último grupo de argumentos Marsílio ilustra o perigo de confiar o poder legislativo a poucos ou a um com uma referência ao caráter oligárquico ou tirânico do direito canônico Assim a tese populista de Marsílio parece derivar de seu anticlericalismo Marsílio atribui o poder político fundamental o poder do legislador humano não apenas ao conjunto de todos os cidadãos mas ao conjunto de todos os cidadãos ou a sua parte mais forte ou superior Pela parte mais forte ou superior decerto não quer dizer a maioria irrestrita A parte mais forte ou superior que por assim dizer substitui o conjunto de todos os cidadãos deve ser entendida tanto em termos de nú mero como de qualidade de modo que o vulgo não fique de todo à mercê das pessoas melhores nem as últimas inteiramente à mercê das primeiras O esquema esboçado por Marsílio poderia ser denominado governo civil uma média entre oligarquia e democracia se nâo fosse o fato de que o governo civil é uma forma de governo en quanto Marsílio fàla do soberano como sendo distinto do governo Além disso enquanto em uma democracia no sentido de Aristóteles as pessoas comuns partici pam plenamente da deliberação e da jurisdição Marsílio reserva essas funções para o governo ou o grupo governante distinto do conjunto de todos os cidadãos ou para a M arsílio d e Pádua 255 13 Drfender II 23 158 161 e 9 início 175 7810 283 17 14 Ibid 1 12131123913 início 2411 2619 2829 parte mais forte ou superior Acima de tudo como Marsílio já revela de modo explí cito nos capítulos dedicados à definição do legislador humano este pode delegar seu poder legislativo a um ou a vários homens Marsílio permite assim que a soberania do povo permaneça dormente por completo Ao mesmo tempo em que proclama a virtude transcendente de todos que têm participação efetiva na legislação descarta essa participação como irrelevante É preciso ir mais longe e dizer que desmente o próprio princípio da soberania popular Compara a posição da parte governante no organismo político à do coração no corpo humano tratase da parte que molda as outras partes do organismo político Mas se assim é a parte governante não deriva de um soberano preexistente o legislador humano ou o povo ou seja o conjunto constitmdo por to das as partes do organismo político em suas proporções corretas mas é ao contrário a causa para o suposto soberano De acordo com isso Marsílio compara a posição da parte governante na comunidade à do primeiro motor do universo isto é à do Deus aristotélico que com certeza náo está sujeito às leis elaboradas pelas outras partes do universo Em uma palavra Marsílio retorna à visáo aristotélica segundo a qual o legis lador humano o soberano é idêntico à parte governante o governo ou segundo a qual a parte mais forte ou superior é idêntica à parte governante pois em toda ordem política estável a parte governante quer se trate de um homem alguns ou muitos é por óbvio a parte mais forte ou superior Marsílio ainda identifica de modo explícito o governante com o legislador por exemplo ao chamar de legisladores os imperadores romanos Não encerra o argumento com a afirmação de que o legislador humano pode dar ao governante a plenitude do poder Chega a dizer que o governante deve a sua posição ao legislador humano ou a qualquer outra vontade humana o governante pode dever a sua posição à sua própria vontade Se a parte governante é o legislador não pode de forma simples ser sujeita à lei Mesmo em uma república onde o legislador náo é um indivíduo e por conseguin te nenhum indivíduo está de forma alguma acima da lei às vezes é necessário que um ministrado como indivíduo aja de modo ilegal a fim de salvar a república tal como fez Cícero ao sufocar a conspiração catilinária Quando Marsílio sugere que o governante está sujeito apenas à lei divina não devemos esquecer que segundo ele a lei divina como tal não é cognoscível pela razão humana nem como tal tem poder coercitivo neste mundo Além disso se a parte governante o governo é o legislador o soberano o governo não está sujeito a punição em caso de má conduta pelo mesmo motivo pelo qual o povo soberano na hipótese populista não está sujeito a punição Em suma apesar do seu tom dogmático os ensinamentos populistas de Marsílio se re velam embora de maneira diversa tão provisórios ou hesitantes quanto o argumento democrático na Política de Aristóteles 2 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 Ibid I 51 7 81 124 II 28 48 87 16 Ibid I 44 13 20 85 102 123 13 final 14 cabeçalho e final 1556 1621 179 II 54 149 porção inferior 86 212 304 485 1921 um dos dois parágrafos centrais do capítulo III 213 Defensor Minor cap 3 início Política 1296 1416 17 Defender I 143 154 2613 Cf II 315 e 306 A característica do Defensor da Paz visto como um tratado de filosofia política é que estabelece com muita ênfase e literalmente ao mesmo tempo contesta a doutrina da soberania popular Qual é o significado dessa extraordinária contradição sobre os próprios fundamentos da sociedade política Qual é o significado da vacilação de Mar sílio entre o populismo e o que se pode chamar de absolutismo monárquico Podese dizer que Marsílio fica do lado do povo quando se entende o povo em oposição ao clero e a nada mais e que toma o partido dos imperadores romanos antigos ou medie vais contra os papas Em outras palavras a contradição desaparece quando se supõe como têm feito alguns estudiosos que é apenas o anticlericalismo e nada mais que inspira o Defensor Para seu argumento anticlerical Marsílio necessitava de uma base populista pois teve de apelar ao Novo Testamento contra as opiniões arraigadas sobre a Igreja Se por um lado o Novo Testamento dá forte apoio à demanda de submissão por parte de monarcas absolutos ou déspotas não dá suporte à sugestão de Marsílio de que somente os governantes seculares cristãos distintos dos sacerdotes deveriam governar a Igreja em tudo o que afeta o destino dos homens neste mundo punição dos hereges e apóstatas excomunhão propriedade e assim por diante mas aparente mente o Novo Testamento dá algum suporte à visão de que as decisões quanto a tais assuntos repousam em todo o corpo dos fiéis distintos dos apenas sacerdotes Todo o conjunto dos cidadãos de Marsílio é apenas a contrapartida filosófica ou racional de todo o conjunto dos fiéis e tal contrapartida é necessária a fim de fornecer a seu anticlericalismo a mais ampla base possível tanto a razão como a revelação depõem contra o governo dos sacerdotes Esta explicação implica que a autocontradição fun damental que é característica do Defensor é resultado consciente de uma estratégia consciente São defensáveis tanto a explicação como suas implicações todavia não explicam determinadas características dos ensinamentos populistas de Marsílio nem o caráter essencial de estratégias tais como as com justiça atribuídas a Marsílio Não dão conta da segunda porque não são suficientes para conceber Marsílio como um político ou advogado de defesa talvez hábil mas um tanto inescrupuloso Para encontrarmos uma saída para essa dificuldade examinemos uma doutrina de Marsílio que não é afetada pela teologia política ou por preocupações antiteológi cas sua doutrina da monarquia Afirma ele que a monarquia seria talvez a melhor forma de governo mas fãz o que pode para scutir a questão de saber se é preferível a monarquia hereditária ou a eletiva Dedica a esse tema apenas um capítulo mas esse capítulo é mais longo que os dois capítulos tomados em conjunto que aparentemente destinamse a lançar as bases para a soberania popular Decide a fiivor da monarquia eletiva entendida de modo estrito ou seja de uma monarquia em que é eleito o mo narca e não um monarca e seus descendentes Esta decisão pode ter conquistado as boas graças do papa mas com maior probabilidade do imperador alemão que na quele momento travava uma dura batalha contra o papa e logo se tornou o protetor de Marsílio não lhe teria angariado as simpatias do rei francês por exemplo Ainda M arsílio d e PXdua 257 18 Ibid I 957 153 final 16 II 242 assim foi necessária para o sucesso de sua empreitada que tinha por objetivo a erra dicação da plenitude do poder papal e de tudo o que o recordasse para conquistar a boa vonude de todos os príncipes seculares Portanto podese supor que sua preferên cia pela monarquia eletiva sobre a monarquia hereditária pertence a seus ensinamentos políticos finais ou relevantes Certamente nunca contradiz essa preferência como con tradiz a doutrina da soberania popular Seu argumento a fiivor da monarquia eletiva pode ser reduzido a uma única consideração A qualidade mais importante do gover nante é a prudência pois a infinita variedade dos assuntos humanos não permite uma rulação adequada por meio das leis e a prudência náo se herda A prudência isto é a sabedoria prática em oposição à mera esperteza nâo é separável da virtude moral e viceversa A prudência é também e em especial necessária para a elaboração de leis boas e justas Embora a prudência seja portanto de extrema importância é rara a natureza gerou apenas uma parte da raça humana com capacidade para a prudência e menos homens ainda realizam essa potencialidade A consideração precedente não implica que seja ilegítima a monarquia hereditária significa apenas que a realeza hereditária é como tal inferior à monarquia eletiva A realeza hereditária pode até ser preferível à monarquia eletiva na maioria dos países em todos os momentos e em todos os países no início de sua vida política quando todos os homens são ainda inciviliza dos Pois na maioria dos países em todos os momentos e em todos os países em seus primórdios ou na sua decadência a prudência é por assim dizer o melhor reduto de uma única família e não há portanto eleitores prudentes A monarquia eletiva é su perior à monarquia hereditária porque a primeira é adequada para uma nação perfeita e civilizada enquanto a segunda é adequada para uma sociedade ainda imperfeita ou irremediavelmente incivilizada Ora essa mesma reflexão leva à conclusão de que para uma nação perfeita ou civilizada o governo de vários homens prudentes ou seja a aristocracia ainda é mais adequado até mesmo que a monarquia eletiva pois não há nenhuma razão por que se existe na nação uma quantidade de homens prudentes como é o caso em uma nação perfeita todos exceto um sejam sempre privados da maior honra aqueles que foram injustamente privados de seu quinhão no governo com justiça se envolveriam em sublevaçóes Marsílio dedica todo um capítulo para demonstrar que a unidade indis pensável do governo não é comprometida de forma alguma se o governo consistir em vários homens em vez de um só Não só a monarquia hereditária mas a monarquia como tal é adequada apenas em momentos e lugares onde haja uma extrema escassez de homens que estejam aptos a governar uma nação como por exemplo talvez em Roma no final da república A monarquia é o tipo adequado de governo na família e não na sociedade civil perfeita O fato de que a aristocracia distinta da monarquia só é possível sob as condições mais fiivoráveis e por conseguinte muito raramente em nada contradiz o fàto de que é o rime mais natural Se os sacerdotes fossem como deviam ser aipunenta Marsílio o conselho geral da Igreja poderia consistir apenas em 258 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 19 Ibid 1 71 94710 113 421415 142710 151 161124 esp 1617 sacerdotes pois o mais importante requisito para a participação em tal assembleia é um profundo conhecimento da lei divina ou seja a mais elevada forma de sabedoria mas os sacerdotes não são como deveriam ser Isso eqüivale a dizer que em princípio é preferível a aristocracia ou governo do sábio apenas porque a Igreja já não é mais uma aristocracia mas é agora uma oligarquia como Marsílio não se cansa de repetir necessita de correção pela melhor parte do laicato e o laicato é na Igreja o elemento popular Dentro de seu aiumento populista Marsílio indica que a elaboração e análise das leis é assunto próprio dos homens prudentes os demais membros da socie dade são de pouca utilidade nesta matéria e só seriam perturbados no exercício do seu trabalho essencial se fossem chamados a realizar mais do que efetuar uma ratificação formal das leis Essa ratificação popular das leis parece de fato ser desejável uma vez que é provável que torne a multidão mais propensa a obedecer às leis Podese dizer que a própria oscilação de Marsílio entre o populismo e a monar quia absoluta indica a aristocracia como a média correta entre estes dois extremos defei tuosos O que depõe a fevor do poder legislativo dos reis absolutos redunda também em benefício de um governo soberano que consiste nos homens prudentes de uma cidade dos quais cada um deve sua posição à cooptação por seus pares e não à eleição popular e o que depõe a favor do poder legislativo da parte mais forte ou superior do conjunto de todos os cidadãos redunda em benefício da que é na verdade a parte mais for te ou superior em toda cidade que não é ou demasiado jovem ou pequena demais ou então velha ou grande demais para a excelência política a saber os cidadãos mais prudentes e virtuosos Marsílio abstémse de argumentar em favor da monarquia enquanto argumenta com ênfase em fiivor da soberania popular o rime que favo rece é um pouco mais próximo não da democracia de feto mas do governo civil que da monarquia Ao mesmo tempo seu argumento populista aponta por meio de seus defeitos gritantes por exemplo do governo civil para uma aristocracia que seja aceitável para a multidão não só por causa das qualidades inerentes a uma verdadeira aristocracia como o governo dos cidadãos mais prudentes e virtuosos mas também porque respeita a suscetibilidade da multidão Marsílio apresentou o argumento em fevor da aristocracia da forma mais branda possível porque este argumento não for nece uma base ampla o bastante para a política anticlerical que considerava como de longe a tarefe mais uiente para a sua época Além disso o argumento em fevor da aristocracia teria redundado na opinião da maioria dos seus contemporâneos em be nefício do clero pois quando se demonstra que o poder político pertence por direito aos mais sábios parece decorrer daí que pertence menos aos versados em sabedoria humana que aos versados em sabedoria divina M a h s íu o d e P á d u a 259 20 NT Eclesiastes 115 The perverse are hard to be corrected and the number of fools is infinite O que é torto náo se pode endireitar o número de loucos é infinito 21 Ibid I 22 34 910 115 final 122 138 149 1619 2123 17 II 202 final e 1314 cf II 315 com 306 Gewirth loc cit I 254 O emprego de regnum sirido em I 2 íãz esperar uma tendência monarquista maior do que a que Marsílio tem de fato A estratégia que Marsílio empregou pode ser explicada pela impossibilidade po lítica que eqüivalia a uma impossibilidade física de ventilar a questão política fun damental Sua consciência poderia estar tranqüila por ter procedido como fez pois estava convencido de que era impossível ou indesejável um governo de sacerdotes Pois segundo ele o Novo Testamento não só não autoriza o governo pelos sacerdotes em particular nos assuntos seculares mas categoricamente o proíbe Na lei cristã e só na lei cristã a ação do sacerdote como sacerdote é a mais perfeita de todas Mas essa ação requer um espírito e um modo de vida que são incompatíveis com o governar pois exige o desprezo pelo mundo e a mais extrema humildade Cristo excluiu a si mesmo e aos apóstolos de todas as formas de governo do mundo Paulo proibiu todos os sacerdotes de se envolverem em qualquer questão secular que fosse pois ninguém pode servir a dois senhores O Novo Testamento reconhece nos mais fortes termos o dever de obediência ao governo humano pois este não traz debalde a espada não tanto para a defesa da pátria quanto é vingador para castigar o que faz o mal e o Novo Testamento atribui ao orgulho pecaminoso a opinião de que os maus governantes ou amos podem ser desobedecidos Os escravos cristãos não estão autorizados a exigir que lhes seja dada a liberdade após seis anos de servidão como sucedeu com os escravos hebreus pois a lei em questão no Velho Testamento adquire no cristianismo um significado puramente místico A humildade e o desprezo pelo mundo podem dessa forma associarse com perfeição à obediência sincera aos mestres do mundo Ainda assim dentro dos limites da filosofia política Marsílio deve dar ênfase a pontos um pouco diversos daqueles enfatizados pelas mais elevadas autoridades cristãs Chega quase ao ponto de defender os governantes pagãos contra a palavra de Cristo que diz serem os amos de seus súditos De acordo com Paulo apenas aqueles que sâo desprezíveis na Igreja ou seja aqueles que possuem a sabedoria das coisas que não são espirituais devem ser juizes em assuntos deste mundo As exigências do Sermão da Montanha não podem ser reconciliadas com o status e as funções dos governadores 260 H istória da Filosofia P olítica 5 Leo Strauss e Joseph Cropsey 22 NT Romanos 134 For he is the minister of God to thee for good But if thou do that which is evil be afraid for he beareth not the sword in vain for he is the minister of God a revenger to execute wrath upon him that doeth evil Porque ela é ministro de Deus para teu bem Mas se fizeres o mal teme pois náo traz debalde a espada porque é ministro de Deus e vingador para castigar o que faz o mal 23 NT Coríntios 124 Not that we lord it over your faith but we work with you for your joy be cause it is by faith you stand firm Náo é que sejamos os amos de vossa fé mas somos colaboradores para a vossa alegria porque é pela vossa fé que estais em pé 24 NT 1 Coríntios 12729 No God chose those who by human standards are fools to shame the wise he chose those who hy human standards are weak to shame the strong those who by human standards are common and contemptible indeed those who count for nothing to reduce to noth ing all those that do count for something so that no human being might feel boastflil before God Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo pata confundir as sábias e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes e Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as despre zíveis e as que náo sáo para aniquilar as que sáo para que nenhuma carne se glorie perante ele e de seus súditos laicos A comunidade cristá perfeita era a comunidade de Cristo e dos apóstolos em que havia comunháo de bens mas essa comunidade era imperfeita em outros aspectos uma vez que estava destinada a tornarse universal mas todavia náo foram tomadas providências para sua unidade no fúmro quando viria a se tornar uma grande sociedade poderia tornarse perfeita apenas por meio dos atos dos prínci pes cristãos Somos tentados a expressar o pensamento de Marsílio ao afirmar que foi a natureza que aperfeiçoou a graça ao invés de a graça que aperfeiçoou a natureza Vai ele ainda mais longe ao indicar que existe uma oposição entre o governo humano e a providência divina a primeira recompensando neste mundo os justos e os íàzedores de boas ações e a última infligindolhes sofirimento neste mundo Marsílio indica a peculiaridade da lei cristã ao afirmar que a crença no futuro julgamento de Deus isto é uma crença que o cristianismo compartilha com todas as outras religiões induzi ria os sacerdotes cristãos a não defraudarem os pobres enquanto a crença na religião cristá induziria os padres cristãos a viverem na pobreza A pobreza evangélica é de fato segundo ele o concomitante inevitável do desprezo radical por este mundo ou da humildade radical Dentro dos limites da razão humana porém a riqueza assim como a honra desponta como algo bom uma vez que é necessária para o exercício da virtude moral Porém de acordo com os ensinamentos cristãos a pobreza voluntária é tão necessária para a perfeição que aqueles que não vivem em pobreza voluntária são maus cristãos Apesar disso Marsílio pode queixarse de que os papas não demons tram a devida gratidão por terem sido elevados pelos imperadores romanos da extrema pobreza para uma abundância de bens temporais Parece pressupor que a moral cristã e a moralidade terrena do cavalheiro contradizemse uma à outra ou que a revelação não está apenas acima da razão mas contra a razão Este pode ser um motivo pelo qual considerava a lei do Novo Testamento como especialmente difícil de cumprir Marsílio tem sido por vezes celebrado como um defensor da liberdade religiosa Todavia não vai além de suscitar a questão de saber se é permitido cosir hereges ou infiéis enquanto indica no mesmo contexto que não deseja dizer que tal coerção é inapropriada N de fiito que tal coerção possa ser exercida neste mundo com base na lei divina Pois de acordo com Marsílio nenhuma lei divina como tal tem qualquer poder coercitivo neste mundo a não ser por força de uma lei humana que determina ser criminoso transgredir a lei divina em questão Além disso de acordo com a lei divina cristã que naturalmente condena a heresia e a infidelidade e reforça essa condenação pela ameaça de punição na outra vida um homem que crê por ser coagido não é um verdadeiro crente além disso sacerdotes cristãos não receberam qualquer poder coercitivo de Cristo Apesar disso o legislador cristão humano não M a r s íl i o d e PA dua 261 25 Ibid I 103 122 II 413 512 45 8 parrafo 1 910 12 112 7 2824 462 9 304 pairafo 1 íinal 26 Ibid II 46 1328 1778 221 inído 1516 244 272 426 parágrafo 2 Gewirth oc cit 1 81 27 Ibid I 63 6 1521 16 II 114 1316 23 final24 2612 inído como cristão mas como legislador humano pode usar a coerção contra os hereges e infiéis neste mundo Podese exemplificar esse direito com o seguinte paralelo a lei divina cristã proíbe a embriaez mas como tal nâo exige que essa coerção seja usada neste mundo contra os bêbados todavia não impede o legislador humano de proibir a embriaguez sob pena de punição neste mundo De modo semelhante o legislador humano pode exigir o cumprimento da sobriedade religiosa isto é a ortodoxia Se o fàz ou não depende de seu julgamento sobre a heresia por exemplo Pode ser guiado pela comparação bíblica da heresia com a fornicação e por conseguinte permitir a heresia da mesma forma que permite a fornicação embora a fornicação também seja proibida pela lei divina cristã Ou pode ser guiado pela comparação bíblica da heresia com a le pra e por conseguinte tomar medidas coercitivas contra os hereges em conformidade com os conselhos de peritos os sacerdotes assim como toma medidas coercivas contra os leprosos em conformidade com os conselhos de especialistas os médicos Também pode ser guiado pelos fàtos de que o Novo Testamento decerto permite a excomunhão e de que a excomunhão sem dúvida afetará o excomungado nesta vida Entretanto independentemente de qualquer preocupação teológica isto é de qualquer aspecto peculiar à lei divina cristã é claro que se a crença no julgamento divino no outro mundo é favorável à conduta virtuosa neste mundo como admitiram até mesmo os filósofos pagãos não é inadequado que o legislador humano proteja essa crença e seus corolários pela proibição de discursos que possam subverter essa crença Esta conclusão não é contrariada pelo ensinamento de Marsílio de que o governo hu mano se preocupa apenas com atos transitórios distintos dos atos imanentes De acordo com essa distinção que pode ter sido sugerida a Marsílio por uma passagem no Livro das Definições de Isaac Israeli sâo imanentes os atos de nossos poderes cog nitivo e apetitivo que como pensamentos e desejos permanecem dentro do isente e náo sáo realizados por meio de qualquer dos membros localmente movidos do corpo enquanto sáo transitórios os demais atos desses poderes Em outras palavras o governo humano preocupase apenas com atos cuja realização pode ser comprovada mesmo que aquele que cometeu o ato em questão negue têlo cometido Disso se segue que os discursos são atos transitórios Uma vez que discursos subversivos do tipo indicado podem fazer mal aos outros e à comunidade como um todo sua proibição de acordo com Marsílio é evidentemente competência do legislador humano Marsílio de certo não pregava uma desobrigação da religião Qualquer lei divina perderia muito do seu valor se todos a ela sujeitos fossem livres para entender as suas promessas e ameaças como lhes aprouvesse A lei divina cristã em particular com sua ênfese na fé como condição necessária para a salvação eterna teria sido dada em vão teria sido dada para a perdição eterna dos homens se Cristo não ti 262 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 28 Ibid I 1037 II 56 7 154 2326 e 157 28 61113 88 925 103 7 9 132 final 29 Ibid I 54 7 II 24 3 85 911 104 9 178 chegando ao final Gewirth loc cit I 284 Ver também anteriormente p 174 segs vesse cuidado para que o verdadeiro sificado de sua divina lei fosse acessível a todos os cristãos A unidade indispensável da fè é determinada de forma juridicamente vincu lativa pela Igreja universal ou católica isto é por todo o conjunto dos fiéis na medida em que é o fiel legislador humano que autoriza as assembléias gerais e outoi poder coercitivo às suas decisões Esta precaução não causa qualquer dificuldade quando há um único legislador humano da fè cristã cuja jurisdição se estende por todo o mundo Tal legislador de acordo com um ditame adotado por Marsílio era o povo romano ou alternativamente o imperador romano Marsílio tenta preservar essa dignidade para os imperadores romanos de sua época Entretanto não c o n s te esconder de si mesmo ou de seus leitores o fàto de que existiam em sua época diversos lsladores humanos fiéis que não reconheciam um superior ou que eram independentes um do outro Assim sendo não havia mais garantia da unidade da fè exceto dentro das fronteiras de cada um dos reinos ou nações independentes Por consiinte Marsílio considera aconselhável que os vários soberanos cristãos concordem em reconhecer o bispo de Roma como o pastor universal mas em sua opinião não são obrigados a fàzêlo No entanto ressalva um pastor universal ou bispo universal é menos necessá rio que um príncipe universal pois um príncipe universal é por óbvio mais capaz de manter os fiéis na unidade da fé que um bispo universal Como cristão Marsílio parece então ser compelido dadas suas premissas a exigir que a sociedade política seja universal no sentido estrito e não apenas de modo simulado ou por cortesia tal como fora o império romano mesmo no auge do seu poder para que possa cumprir suas obrigações para com a fé cristã Parece ser compelido ou seja parece abandonar os últimos vestígios de sua doutrina da soberania popular ou da preferência aristotélica pela aristocracia que essa doutrina em parte representa pois não são viáveis nem a democracia nem a aristocracia tal como entendidas por Marsílio e Aristóteles a não ser em sociedades muito pequenas Todavia apesar ou por causa de tudo isso Mar sílio nega que seja necessário um príncipe universal Pois a Escritura não demanda um império secular universal Ainda menos o fitz a razão a paz entre os homens tem garantias suficientes podemos entender que isso significa que a paz é assegurada da única maneira possível se existe unidade de gpverno dentro de determinadas nações ou reinos Em sua única discussão temática da questão acerca da conveniência de um estado do mundo Marsílio recusase a resolver o impasse Referese às dificuldades que obstruem o governo mundial causadas pela distância e pela fàlta de comunicação entre as várias partes do mundo bem como pelas diferenças entre idiomas e as extre mas variedades de costumes Referese à visão segundo a qual todas essas coisas que separam os homens podem ser devidas a uma causa celestial ou seja à natureza que incita os homens por meio desses fatores desregadores às guerras a fim de evitar a superpopulação Marsílio deixa claro que se não fosse pelas guerras e epidemias a superpopulação seria inevitável se a espécie humana não teve princípio e não terá fim M arsíuo de Pádua 263 30 1 1910 II 1328 172 188 parágrafos 12 e final 1913 2012 211113 226 810 249 12 2546 91518 2827 308 Defensor Minor caps 7 e 12 ou seja se existe uma geraçáo eterna ou se for eterno o universo visível A doutrina aristotélica da eternidade do universo visível é irreconciliável com a doutrina bíblica da criação do mundo A doutrina aristotélica da geração eterna é irreconciliável com a doutrina bíblica de que houve um primeiro homem uma doutrina que é a premissa das doutrinas bíblicas de que nossos pais caíram e de que portanto o homem precisa de redenção Marsílio não declara que é verdadeira a doutrina aristotélica Tampouco afirma que é falsa porque contraria as doutrinas mais fundamentais e mais manifestas da Bíblia Desta forma o leitor só pode conjeturar se Marsílio era crente ou incrédulo até que examine a discussão que apresenta no 38 capítulo do Defensor II 19 sobre questão relativa aos fundamentos da crença na verdade da Bíblia Dentro dos limites da filosofia política a oposição tácita de Marsílio a Tomás de Aquino revelase de modo mais evidente em seus ensinamentos a respeito da lei natural ou do direito natural Marsílio nega que haja tuna lei natural propriamente dita Pressu põe que a razão não conhece outro legislador além do homem e por conseguinte que todas as leis propriamente ditas são leis humanas a razão é de fato capaz de discernir o que é honroso o que é justo e o que é vantajoso para a sociedade Conmdo tais per cepções não são como tais leis Além disso não são acessíveis a todos os homens e por conseguinte não são admitidas por todos os Estados por esse motivo não podem ser denominadas naturais Há de fato determinadas regras a respeito do que é honroso ou justo que são admitidas em todas as regiões e além disso seu cumprimento é exigido em quase toda parte essas rras podem assim metaforicamente ser denominadas direitos namrais Apesar de serem admitidas de modo universal ou em geral não são naturais em essência pois não são ditadas pela razão correta O que é universalmente admitido não é racional e o que é racional não é universalmente aceito Entre as regras que podem ser denominadas metaforicamente direitos naturais Marsílio cita a regra de que a prole humana deve ser criada pelos pais até uma certa idade e pode ter considerado essa regra como racional sem restrições pois Aristóteles afirmara que não se deveriam criar crianças deformadas De modo mais amplo se as guerras são necessárias por natureza para evitar a superpopulação a distinção entre as guerras justas e injustas perde muito de sua força e esta momentosa ressalva às regras da justiça não pode deixar de comprometer a racio nalidade das rras de justiça que de modo universal ou em geral se admitem vigorar dentro da nação Em outras palavras as regras de direito universalmente admitidas não são racionais porque existe uma necessidade natural de transgredilas ou uma vez que o homem não tem liberdade de vontade na medida em que tanto a opinião popular como os ensinamentos da revelação o afirmam Podese melhor entender a negação de Marsílio da lei natural se principiarmos com o fato de que nega implicitamente a existência dos primeiros princípios da razão prática É obscuro na Ética de Aristóteles o estado cognitivo dos primeiros princípios de ação Um modo de remover esta obscuridade o preferido por Averróis e Dante é 264 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 31 Drfender 170 W 285 32 Ibid 1 1037 1223 144 156 final 1913 II 83 1278 entender que os melhores princípios da ação e portanto também da política são for necidos pela razão teórica ou ciência natural é a ciência natural que debta claro qual é o fim do homem Debcase que o fim do homem seja a perfeição de sua mente isto é o pensamento real do metafísico enquanto metafísico O indivíduo humano que é capaz de buscar esse fim então será capaz de deliberar como em sua situação pode alcançar este fim Esta deliberação um ato de razão prática em muitos pontos diferirá de indivíduo para indivíduo mas há determinadas regras universais de conduta que todos os homens devem cumprir se desejarem tornarse perfeitos como homens de especu lação Essas regras no entanto nâo são universais estritamente falando uma vez que apenas uma minoria de homens é por natureza capaz da vida contemplativa Entre tanto há também um fim que todos os homens são capazes de buscar a perfeição de seus corpos Esta perfeição inferior ou maior exige dentre outras coisas segurança na sociedade política e por meio dela Aqui se imiscui uma profimda ambigüidade a sociedade política é necessária embora de formas diferentes em prol tanto da maior perfeição do homem como de sua perfeição teórica máxima Seja como for a so ciedade política por sua vez exige uma variedade de partes agricultores artesãos homens de bens soldados padres governadores ou juizes e uma determinada ordem dessas partes Exige para seu bemestar que os legisladores e os governadores ou jui zes possuam prudência e se não todas pelo menos algumas das virtudes morais em particular a justiça Em concordância com o procedimento de Aristóteles na Política Marsílio deduz a necessidade dessas virtudes da finalidade da sociedade civil e deduz a necessidade dessa finalidade dos demais fins ou fim do homem Ou seja desviandose do procedimento que Aristóteles adotara em sua Ética por motivos educativos ou prá ticos Marsílio não toma essas virtudes como fundamentais como dignas de escolha por si mesmas É porque Marsílio trata a prudência e as virtudes morais menos como dignas de escolha por si mesmas que como subservientes aos dois fins naturais indica dos que sua ciência política é demonstrativa de modo mais óbvio e mais enfático que a ciência política de Aristóteles Marsílio comenta muito menos do que Aristóteles mesmo em sua Política o fim maior que é natural ao homem Pelos motivos anteriormente indicados moderou suas aspirações Sua doutrina da nação é uma reminiscência do que é sugerido na Re pública de Platão a respeito de a cidade de suínos ser a verdadeira cidade Sua doutrina do direito humano é uma reminiscência da sugestão de Maimônides conforme a qual a lei humana não atende a nenhum fim maior do que a perfeição do corpo do homem enquanto a lei divina ocasiona a perfeição do corpo e da mente Porém Maimôni des defendia que a lei divina é em sua essência racional e não como afirma Tomás suprarracional Podese dizer que Marsílio combina a visão de Maimônides da lei hu mana com a visão de Tomás da lei divina e desta forma chega dentro dos limites da filosofia política à conclusão de que a única lei propriamente dita é a lei humana que M a r s íl i o d e P á d u a 265 33 Ibid I 69 113 142 67 Dante De Monarchia I 14 34 República 372 67 Guia dos Perplexos II 40 e III 27 é voltada para o bemestar do corpo Até certo ponto Marsílio foi induzido a adotar essa visáo por seu anticlericalismo Quando a paixão antiteológica induziu um pen sador a dar o passo extremo de questionar a supremacia da contemplação a íilosoíia política rompeu com a tradição clássica e sobretudo com Aristóteles adquirindo um caráter inteiramente novo O pensador em questão foi Maquiavel L e it u r a s A Maisilius of Padua The D fender ofthe Peace Trans with an introduction by Alan Gewirth New York HarperTorch Books 1967 Discourse I chaps ixiii Discourse II chap xii secs 312 B Marsilius of Padua The D fender o f the Peace Discourse I chaps xivxix Discourse II chaps viii xii secs 121333 exix 266 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y N icoiau M aquiavel 14691527 Em geral íàlamos de virtude sem usar a palavra mencionando ao contrário a qualidade de vida ou a grande sociedade ou a ética ou mesmo a retidáo Mas sabemos o que é virtude Sócrates chegou à conclusão de que para um ser humano o maior bem é fazer discursos cotidianos sobre a virtude pelo que parece sem jamais encontrar uma definição que proporcionasse completa satisíação No entanto se bus carmos uma resposta mais elaborada e menos ambígua para esta questão de fiito vital devemos nos voltar para a Ética de Aristóteles Lemos ali entre outras coisas que existe uma virmde de primeira ordem denominada magnanimidade o hábito de reivindicar honras para si mesmo com o entendimento de que se é digno delas Também se lê que o sentimento de vergonha nâo é uma virmde o sentimento de vergonha é adequado para os jovens que devido à sua imaturidade não podem deixar de cometer erros mas não para homens maduros e bemeducados que apenas íàzem sempre o que é correto e adequado Por mais maravilhoso que seja tudo isso recebemos uma mensagem muito diferente vinda de um ponto muito diverso Quando o profeta Isaías recebeu a sua vocação foi acachapado pela percepção de sua indignidade Sou um homem de lábios impuros no meio de um povo de lábios impuros O que eqüivale a uma con denação implícita da magnanimidade e uma defesa implícita do sentimento de ver gonha O contexto fornece o motivo santo santo santo é o Senhor dos Exércitos Não há santo deus para Aristóteles e os gregos em geral Quem está certo os gregos ou os judeus Atenas ou Jerusalém E como fazer para descobrir quem está certo Não deveríamos admitir que a sabedoria humana seja incapaz de resolver esta questão e que toda resposta se baseia em um ato de fé Mas não constitui esta a mais completa e NT Isaías 65 TTien said I Woe is me for I am undone because I am a man of unclean lips and I dwell in Ae midst of a people of unclean lips for mine eyes have seen Ae King Ae Lord of hosts Então disse eu Ai de mim Pois estou perAdo porque sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios os meus oAos viram o Rei o Senhor dos Exércitos NT Isaías 6 18 Holy holy holy is Ae Lord of hosts The whole earA is foll of His glory Santo Santo Santo é o Senhor dos Exércitos toda a terra está cheia da sua gjória definitiva façanha de Atenas Pois uma filosofia baseada na fé já não é filosofia Talvez seja esse conflito não resolvido que vem impedindo o pensamento ocidental de ter descanso Talvez seja este conflito que está por trás de um tipo de pensamento que é filosófico mas na verdade já não é mais grego a filosofia moderna É na tentativa de entender a filosofia moderna que nos deparamos com Maquiavel Maquiavel é o único pensador político cujo nome está em uso corrente para desig nar um tipo de política que existe e continuará existindo independentemente de sua influência uma política guiada com exclusividade por questões de conveniência que usa todos os meios legais ou ilegais ferro ou veneno para atingir sua meta sendo esta o engrandecimento de um país ou pátria mas também usando a pátria a serviço do autoengrandecimento do político ou estadista ou partido de cada um Entretanto se esse fenômeno é tão antigo quanto a sociedade política em si por que leva o nome de Maquiavel que pensava ou escrevia há tão pouco tempo atrás cerca de 500 anos Ma quiavel foi o primeiro a defendêlo publicamente em livros com o seu nome nas pinas do título Maquiavel o fez publicamente defensável Isso significa que a sua realização detestável ou admirável não pode ser entendida em termos de política em si ou da his tória da política digamos em termos da Renascença italiana mas apenas em termos de pensamento político de filosofia política de história da filosofia política Maquiavel parece ter rompido com todos os filósofos políticos anteriores Há convincentes evidências que sustentam esta tese Todavia sua maior obra política tem a pretensão aparente de suscitar um ressurgimento da antiga República Romana longe de ser um inovador radical Maquiavel é um restaurador de algo velho e esquecido Para nos orientarmos vamos primeiro lançar um olhar sobre dois pensadores pósmaquiavélicos Hobbes e Spinoza Hobbes considerava totalmente nova sua filoso fia política Mais do que isso negava que existisse antes de sua obra qualquer filosofia política ou ciência política digna desse nome Consideravase o fundador da verdadei ra filosofia política o verdadeiro fundador da filosofia política Sabia é claro que já existia desde Sócrates uma doutrina política que reivindica ser verdadeira Mas essa doutrina era segundo Hobbes um sonho e náo ciência Considerava Sócrates e seus sucessores como anarquistas na medida em que permitiam uma apelação contra a lei da Terra o direito positivo a uma lei maior a lei natural assim promoviam uma de sordem em absoluto incompatível com a sociedade civil Segundo Hobbes por outro lado a lei maior a lei natural comanda por assim dizer uma coisa e apenas uma coisa a obediência incondicional ao poder soberano Náo seria difícil demonstrar que essa linha de raciocínio é contrariada pelos próprios ensinamentos de Hobbes de qualquer modo náo atinge as raízes da questão A grave objeção de Hobbes a toda a filosofia política anterior emerge de modo mais evidente nesta declaração Aqueles que escre veram sobre a justiça e a política em geral invadem uns aos outros e a si mesmos com a contradição Não há maneira de reduzir esta doutrina às regras e à infidibilidade da razão mas primeiro estabelecer esses princípios como fundação tais que a paixão não desconfiando não poderá procurar substituir e depois construir a partir disso a verda de dos casos na lei da natureza que até então tinha sido construída no ar de forma 268 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y gradual até que o todo seja inexpugnável A racionalidade dos ensinamentos políticos consiste em que sejam aceitáveis para a paixão em serem agradáveis à paixão A paixão que deve ser a base dos ensinamentos políticos racionais é o medo da morte violenta À primeira vista parece haver uma alternativa a ela a paixão da generosidade ou seja a glória ou oipilho de parecer não necessitar fiJtar com a palavra mas essa é uma generosidade muito raro encontrada para ser presumida em particular nos que bus cam a riqueza o mando ou o prazer sensual que são a maior parte da humanidade Hobbes tenta ediíicar sobre as bases mais comuns em um terreno que é reconhecida mente baixo mas tem a vantiem de ser sólido enquanto os ensinamentos tradicionais foram construídos no ar Com esta nova base portanto deve ser reduzido o status da moralidade a moralidade nada mais é do que o pacifismo inspirado pelo medo A lei moral ou lei natural é entendida como derivada do direito da natureza o direito de autopreservação o feto moral fundamental é um direito não um dever Esse no vo espírito tornouse o espírito da era moderna incluindo a nossa própria era Esse espírito foi preservado apesar das modificações importantes que sofreu a doutrina de Hobbes nas mãos de seus grandes sucessores Locke ampliou a autopreservação para a autopreservação confortável e assim lançou as bases teóricas para a sociedade aquisi tiva Contra a visão tradicional sqndo a qual uma sociedade justa é uma sociedade em que governam os homens justos afirma Kant Por mais dificil que possa parecer o problema do estabelecimento do Estado a ordem social justa é solúvel mesmo para uma nação de demônios desde que tenham juízo ou seja desde que sejam argutos calculistas Descortinamos esse pensamento dentro dos ensinamentos de Marx pois os proletários de quem tanto espera certamente não são anjos Ora apesar de a revolução encetada por Hobbes ter sido preparada de modo decisivo por Maquiavel Hobbes não fez referência a Maquiavel Esse feto exige uma análise mais aprofundada Hobbes é de certa forma um mestre de Spinoza No entanto Spinoza abre o seu Tratado Político com um ataque aos filósofos Os filósofos diz ele tratam as paixões como vícios Ao ridicularizar ou lamentar as paixões elogiam e revelam sua crença em uma natureza humana não existente concebem os homens não como são mas como gostariam que fossem Por conseguinte seus ensinamentos políticos são inteiramente inúteis Bem diferente é o caso dos politici que aprenderam com a experiência que haverá vícios enquanto houver seres humanos Por conseguinte são muito valiosos seus ensinamentos políticos e Spinoza constrói seus ensinamentos sobre os deles O maior desses politici é o mais arguto ílorentino Maquiavel É o ataque mais brando de Maquiavel sobre a filosofia política tradicional que Spinoza assume de modo integral e traduz para a linguagem menos reservada de Hobbes Quanto à frase haverá vícios enquanto houver seres humanos Spinoza tomoua emprestada de modo implícito de Tácito na boca de Spinoza eqüivale a uma rejeição incondicional da crença em uma era messiânica a vinda da era messiânica necessitaria da intervenção divina ou de um milíre mas de acordo com Spinoza os milces são impossíveis A introdução de Spinoza para o seu Tratado Político é obviamente inspirada no capítulo 15 do Príncipe de Maquiavel Ali diz Maquiavel N icolau Maquiavel 269 Como sei que muitos já escreveram a respeito sobre como os príncipes devem gover nar duvido náo ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto mormente quando disputarei essa matéria à orientação já por outros dada Mas sendo minha intenção escrever algo de útil para aquele que por isso se interessa pareceume mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fàtos e não à iminação deles pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como a terem realmente existido Há tão grande Astância entre como se vive e como se deveria viver que aquele que abandone o que se fez por aquilo que se deveria fezer acarretará antes sua ruína do que sua preservação pois o homem que queira em todos os seus atos fezer o bem perderseá em meio a tantos que não são bons Donde é necessário ao príncipe que queira manterse aprender a ser capaz de não ser bom e usar ou da bondade ou absterse dela sundo impõe a ocasião C h a reinos ou repúblicas imagjnados aquele que se orienta pela virtude para de preender como o homem deve viver Foi exatamente o que fizeram os filósofos clássicos Assim chegaram aos melhores rimes da República e da PoUtica Entretanto quando se íàla de reinos imnários Maquiavel pensa nâo só nos filósofos pensa também no reino de Deus que de seu ponto de vista é um conceito de visionários pois como afirmou seu discípulo Spinoza a justiça impera somente onde governam homens justos Mas para ficar com os filósofos estes consideravam a atualização do melhor rime possível mas extremamente improvável Segundo Platão sua efetivação depende de modo literal de uma coincidência uma coincidência muito improvável a coincidência da filosofia e do poder político A implementação do melhor reme depende do acaso ou Fortuna ou seja de algo que em essência está fora do controle humano De acordo com Maquiavel conmdo a Fortuna é uma mulher que como tal deve ser golpeada e espancada para ser refreada a Fortuna pode ser conquistada pelo tipo certo de homem Há uma conexão entre esta posmra quanto à Formna e a orientação segundo a qual tantos vivem redu zindo os padrões de excelência poUtica garantese a realização do único tipo de ordem poUtica que em princípio é possível No jaigão pósmaquiavélico o ideal do tipo certo tomase necessariamente real o ideal e o real necessariamente conveigem Este modo de pensar teve surpreendente sucesso se a ém afirma hoje que não há nenhuma garantia para a atualização do ideal teme ser chamado de cínico Maquiavel não está preocupado com a forma como os homens vivem apenas com o intuito de descrevêla sua intenção é antes com base no conhecimento de como os homens vivem ensinar os príncipes como devem governar e até mesmo como devem viver Desta maneira Maquiavel reescreve por assim dizer a Ética de Aristóteles Até certo ponto admite que é verdadeiro o ensino tradicional os homens são obrigados a viver de modo virtuoso no sentido aristotélico Mas n que a vida virtuosa seja feliz ou leve à felicidade A liberalidade se usada como se a deve usar prejudicao porque se usada virmosamente e como se deve usála o príncipe arruinarseá a si mesmo e será obrigado a governar seus súditos pela opressão a fim de obter o dinheiro necessário A avareza o oposto do liberalismo é um dos vícios que permitem a um príncipe governar Um príncipe deve ser liberal no entanto com a propriedade dos outros pois assim aumenta sua reputação Considerações semelhantes se aplicam à 270 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y compaixão e seu oposto a crueldade Desta forma Maquiavel é levado a indagar se é melhor para um príncipe ser amado do que ser temido ou viceversa É difícil ser amado e temido ao mesmo tempo Uma vez que é preciso portanto escolher devese escolher ser temido ao contrário de ser amado pois ser amado depende de outros enquanto ser temido depende de si mesmo Mas é preciso evitar ser odiado o príncipe evitará ser odiado ao se abster da propriedade e das mulheres de seus súditos em particular de sua propriedade por quem os homens têm tanto amor que se ressentem menos do assas sinato de seu pai que da perda de seu patrimônio Na guerra a reputação de crueldade não fàz mal algum O maior exemplo é Aníbal que sempre foi obedecido de modo tácito por seus soldados e nunca teve de lidar com motins depois das vitórias ou após as derrotas Isso não poderia resultar de outra coisa senão de sua desumana crueldade que aliada às suas infinitas virtudes o tomou sempre venerado e terrível no conceito de seus soldados sem aquela cmeldade as virtudes não lhe teriam bastado para surtir tal efeito Escritores nisso pouco ponderados admiram de um lado essa sua atuação e de outro condenam a principal causa dela Notamos que a cmeldade desumana é uma das virmdes de Aníbal Outro exemplo de cmeldade bem usada está na pacificação da Romanha por César Bóigia A fim de pacificar aquela província confiou seu coman do a Ramiro de Orco homem cmel e diligente e deulhe os mais amplos poderes Ramiro obteve sucesso em pouquíssimo tempo angariando grande reputação Porém em seguida César entendeu não ser mais necessário esse poder excessivo o qual podia reverterlhe em ódio sabia ter sido este o resultado das rigorosas medidas tomadas por Ramiro César desejava portanto demonstrar que se alguma cmeldade fora cometida não fora por ele mas como conseqüência da natureza implacável de seu subordinado Portanto fez com que o colocassem certa manhã cortado em dois pedaços na Piazza da cidade principal com um pedaço de pau e uma faca ensangüentada a seu lado A ferocidade desse espetáculo induziu na população um estado de satisfação e estupor Logo o novo dever de Maquiavel exige o uso criterioso e vigoroso tanto da virmde como do vício de acordo com as exigências das circunstâncias A alternância criteriosa entre a virmde e o vício é a virtude virtii em sua acepção da palavra Ele divertese e creio eu a alguns de seus leitores com o uso da palavra virmde tanto no sentido tradicional quanto em seu sentido próprio Por vezes distingue entre virtü e bontà Essa distinção foi de certa forma preparada por Cícero ao asseverar que os homens são chamados de bons por conta de sua modéstia temperança e acima de mdo justiça e manutenção da fé stintas de coragem e sabedoria A distinção que fàz Cícero entre as virmdes por sua vez nos faz lembrar da República de Platão em que a temperança e a justiça são apresentadas como as virmdes exigidas de todos enquanto a cotejem e a sabedoria são exigidas apenas de alguns A distinção de Maquiavel entre a bondade e outras virtudes tende a se tornar uma oposição entre a bondade e a virmde enquanto se exige a virtude de governantes e soldados a bondade é necessária ou ca racterística da multidão envolvida em ocupações pacíficas a bondade passa a signifi car algo como uma obediência ao governo gerada pelo medo ou mesmo uma vileza Em diversos trechos do Príncipe Maquiavel fida da moralidade do mesmo modo como os homens decentes têm fàlado acerca disso em todos os tempos Soluciona N ic o l a u M a q u ia v e l 2 7 1 a contradição no capítulo 19 em que discute os imperadores romanos que vieram depois do imperador filósofo Marco Aurélio chegando até Maximino O ponto alto é sua discussão sobre o imperador Severo Severo pertencia ao grupo dos imperadores que foram mais cruéis e rapaces Todavia tão grande era sua virtude que pôde sempre reinar com felicidade pois bem soube usar as figuras da raposa e do leão naturezas essas que um príncipe deve imitar Um príncipe novo num principado novo não pode emular as ações do bom imperador Marco Aurélio nem é necessário que copie as de Severo mas deve retirar de Severo aquelas parcelas que são necessárias para fundar seu Estado e de Marco aquelas que são apropriadas e gloriosas para a preservação de um Estado já estabelecido em bases firmes O tema principal do Príncipe é o príncipe totalmente novo em um Estado completamente novo isto é o fundador E o modelo para o fundador como fundador é Severo um criminoso de extrema inteligência Isto significa que a justiça não é exatamente como dissera ostinho o regnorum fundamentum o fundamento da justiça é a injustiça o fundamento da moralidade é a imoralidade o fundamento da legitimidade é a ilegitimidade ou a revolução o flmdamento da liberdade é a tirania No início não há Terror Harmonia ou Amor mas há decerto uma grande diferença entre o Terror por si mesmo em prol de sua perpetuação e o Terror que se limita a lançar as bases para o grau de humanidade e liberdade que é compatível com a condição humana Mas essa distinção é na melhor das hipóteses apenas sugerida no Príncipe A mensagem consoladora do Príncipe é transmitida no último capítulo que é uma exortação dirigida a um príncipe italiano Lourenço de Médici para tomar a Itá lia e libertála dos bárbaros isto é dos franceses espanhóis e alemães Maquiavel diz a Lourenço que não é muito difícil a libertação da Itália Uma das razões que oferece são acontecimentos extraordinários sem exemplo emanados de Deus o mar se abriu uma nuvem revelou o caminho a pedra verteu água choveu o maná Os aconteci mentos sem exemplo têm de fato um exemplo os milagres após a libertação de Israel da escravidão egípcia O que Maquiavel parece sugerir é que a Itália é a terra prometida para Lourenço Mas há uma dificuldade Moisés que conduziu Israel para fora da casa da servidão em direção à terra prometida não atingiu essa terra morreu às suas portas Maquiavel assim profetizou de modo ameaçador que Lorenzo não libertaria a Itália sendo um dos motivos disso o fiito de que lhe faltava a virtíi extraordinária necessária para conduzir essa grande obra até sua consumação Entretanto há mais nos aconte cimentos extraordinários sem exemplo embora nada se saiba além do que Maquiavel afirma sobre eles Todos esses eventos extraordinários ocorreram antes da revelação no Sinai O que profetiza Maquiavel portanto é a iminência de uma nova revelação a revelação de um novo Decálogo O portador dessa revelação é claro não é o medíocre Lourenço mas um novo Moisés Esse novo Moisés é o próprio Maquiavel e o novo Decálogo são os ensinamentos inteiramente novos sobre o príncipe inteiramente novo em um Estado inteiramente novo É verdade que Moisés era um profeta armado e que Maquiavel pertence aos desarmados que necessariamente se arruinam A fim de encontrar a solução para essa dificuldade é preciso voltarse para a outra grande obra de Maquiavel os Discursos sobre os primeiros dez livros de Tito Livio 272 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey Todavia se nos voltarmos do Príncipe para os Discursos a fim de encontrar a so lução para as dificuldades não resolvidas no Príncipe ficamos entre a cruz e a espada Pois os Discursos são de compreensão muito mais difícil que o Príncipe É impossível demonstrar isso sem primeiro induzir no leitor uma certa perplexidade mas esta é o começo da compreensão Vamos começar pelo início a Dedicatória Epistolar O Príncipe é dedicado ao pa trão de Maquiavel Lourenço de Médici Maquiavel que se apresenta como um homem da condição mais inferior vivendo em um lugar humilde fica tão estupefiito pela gran deza de seu mestre que considera o Príncipe embora este seja bem mais precioso como inno da presença de Lourenço Recomenda sua obra com a observação de que é um volume pequeno que o destinatário pode entender em um curto espaço de tempo em bora incorpore mdo o que o autor veio a saber e compreender em muitos e muitos anos e correndo grande perigo Os Discursos são dedicados a dois jovens amigos de Maquiavel que o instigaram a escrever o livro Ao mesmo tempo o livro é um gesto de gratidão de Maquiavel pelos benefícios que recebeu de seus dois am s Dedicara o Príncipe a seu mestre na esperança de receber fevores dele E não sabe se Lourenço dará qualquer atenção ao Príncipe ou se não ficaria mais satisfeito em receber um cavalo de excepcional beleza De acordo com mdo isso deprecia na Dedicatória Epistolar aos Discursos o cos tume que cumprira na Dedicatória Epistolar ao Príncipe o costume de dedicar os livros a príncipes os Discursos não são dedicados aos príncipes mas aos homens que merecem ser príncipes Se Lourenço merece ser príncipe é uma questão em aberto Essas diferenças entre os dois livros podem ser ilustradas pelo íato de que no Príncipe Maquiavel evita determinados termos que utiliza nos Discursos O Príncipe omite a menção à consciência ao bem comum aos tiranos isto é a distinção entre reis e tiranos e ao céu do mesmo modo no Príncipe nós nunca significa nós os cristãos Podese mencionar aqui que Maquiavel não se refere em nenhuma das duas obras à distinção entre este mundo e o outro ou entre esta vida e a próxima nem menciona nas duas obras o diabo ou o inferno acima de tudo nunca menciona em nenhuma das duas obras a alma Passemos agora ao texto dos Discursos Sobre o que versa Que tipo de livro é Não existe essa dificuldade quanto ao Príncipe O Príncipe é um espelho dos príncipes e os espelhos de príncipes eram um gênero tradicional Em conformidade com isso todos os títulos dos capítulos do Príncipe são escritos em latim Isso não é negar mas ao contrário salientar o fiito de que o Príncipe transmite ensinamentos revolucioná rios sob uma aparência tradicional Mas essa aparência tradicional está ausente dos Discursos Nenhum dos títulos de seus capítulos é escrito em latim embora a obra trate de um assunto remoto e tradicional a Roma antiga Além disso o Príncipe é razoavelmente fácil de entender porque tem uma organização de razoável clareza A organização dos Discursos no entanto é de extrema obscuridade tanto que somos tentados a perguntar se há de fato algum planejamento além disso os Discursos se apresentam como dedicados aos 10 primeiros livros de Tito Lívio Estes vão desde os primórdios de Roma ao momento imediatamente anterior à Primeira Guerra Púnica N i c o l a u M a q u ia v e l 273 ou seja até o ápice da República Romana incorrupta e antes das conquistas romanas fora da Itália continental Porém nos Discursos Maquiavel trata em certa medida do conjunto da história romana tal como abarcada pela obra de Tito Lívio o livro de Tito Lívio é composto de 142 livros e os Discursos consistem em 142 capítulos A obra de Tito Lívio conduz até a época do imperador Augusto isto é os primórdios do cristianismo De qualquer forma os Discursos mais de quatro vezes mais extensos que o Príncipe parecem ser muito mais abrangentes do que o Príncipe De modo ex plícito Maquiavel exclui apenas um assunto dos Discursos Como é perigoso íàzer de si o cabeça de algo novo que a muitos concerne e como é difícil empenharse nisso e realizálo e após seu término mantêlo seria discutir um assunto por demais longo e exaltado reserváloei portanto para um local mais apropriado Todavia é preci samente este longo e exaltado assunto que Maquiavel discute de modo explícito no Príncipe Devese considerar náo haver coisa mais difícil para cuidar nem mais du vidosa a conseguir nem mais perigosa de manejar que se tornar chefe e introduzir novas ordens É verdade que Maquiavel não fida aqui em manter Tal manutenção como aprendemos nos Discursos é mais bemfeita pelo povo enquanto a introdução de novos modos e ordens é mais bemfeita pelos príncipes A partir daí podese tirar a conclusão de que o tema característico dos Discursos diferentemente do que ocorre no Príncipe é o povo uma conclusão de forma alguma absurda mas nitidamente insuficiente para que ao menos se comece a entender a obra O caráter dos Discursos pode ser ilustrado com dois exemplos de outro tipo de dificuldade Em II 13 Maquiavel afirma e de certo modo prova que a elevação do indivíduo de uma posição baixa ou abjeta até outra superior ocorre por meio da frau de e não da força Foi isso o que fez a República Romana em seus primórdios Antes de fàlar da República Romana porém Maquiavel fida de quatro príncipes que se elevaram de uma posição inferior ou abjeta para outra superior Fala mais longamente de Ciro o fundador do império persa cujo exemplo é o mais relevante Ciro subiu ao poder por ter ludibriado o rei da Média seu tio Porém se era para começar o sobrinho do rei da Média como se pode dizer que se elevou a partir de uma posição inferior ou abjeta Para ressaltar este ponto Maquiavel menciona em seguida Gian Galeazzo que por meio de fraude tomou o Estado e o poder de seu tio Barnabé Visconti Galeazzo era também de início o sobrinho de um príncipe reinante náo sendo possível afirmar que se elevou a partir de uma posição inferior ou abjeta O que deseja então Maquiavel assinalar quan do se expressa de forma tão enigmática Em III 48 quando se vê um inimigo cometer um grande erro é preciso acreditar que existe fiaude por trás diz o título do capítulo no corpo do texto Maquiavel vai além e salienta que sempre haverá fraude por trás No entanto logo depois no exemplo principal Maquiavel aponta que os romanos certa feita cometeram um grande erro por desespero isto é de forma não fraudulenta Como é possível lidar com as dificuldades que enfrentamos nos Discursosi Volte mos ao título Discursos sobre os primeiros dez livros de Tito Lívio O título não é correto no sentido literal mas é seguro dizer que a obra consiste basicamente em Discursos so bre os 10 primeiros livros de Tito Lívio Observamos ainda que os discursos não têm 274 H istória da Filosofia P o iítica Leo Strauss e Joseph Cropsey um plano claro talvez o plano se revele quando levarmos a sério o fiito de que a obra é dedicada a Tito Lívio talvez Maquiavel acompanhe Tito Lívio ao acatar a ordem liviana Mais uma vez isto nâo é apenas verdadeiro mas é verdade se for entendido de forma inteligente o uso e o nâo uso de Tito Lívio por Maquiavel é a chave para a compreensão da obra Maquiavel usa Tito Lívio de várias maneiras às vezes emprega de modo tácito uma história liviana às vezes se refere a este texto às vezes menciona Tito Lívio pelo nome às vezes o cita em latim mencionando ou não mencionando seu nome O uso e o não uso de Tito Lívio por Maquiavel pode ser ilustrado pelo fato de que não cita Tito Lívio nos 10 primeiros capítulos que o cita nos cinco capítulos seguintes e novamente não o cita nos 24 capítulos finais Compreender as razões por trás desses fatos é a chave para a compreensão dos Discursos Não é possível tratar essa questão dentro do espaço de que disponho mas vou abordála por meio da seleção de cinco capítulos ou quase capítulos proémío I proê mio II II 1 1 26 e II 5 No proêmio ao capítulo I Maquiavel nos informa que descobriu novos modos e ordens que trilhou uma estrada que jamais fora percorrida antes Compara sua reali zação à descoberta de mares e terras desconhecidos apresentase como o Colombo do mundo moral e político O que o impulsionou foi o desejo natural que sempre tivera de fazer aquelas coisas que em sua opinião trouxessem benefício a todos Portanto é com coragem que enfienta os perigos que o aguardam Quais são esses perigos No caso da descoberta de mares e terras desconhecidos o perigo consiste em procurá los uma vez que se tenha encontrado as terras desconhecidas e voltado para casa encontrase a segurança No caso da descoberta de novos modos e ordens contudo o perigo consiste em encontrálos isto é em revelálos de público Pois como nos diz Maquiavel é perigoso ser o cabeça de algo novo que afete muitos Para nossa grande surpresa logo em seguida Maquiavel identifica os novos mo dos e ordens com os da Antiguidade sua descoberta é apenas uma redescoberta Men ciona a preocupação contemporânea com frtmentos de estátuas antigas que são tidos em grande honra e usados como modelos para escultores contemporâneos É ainda mais surpreendente que ninguém pense em imitar as mais virtuosas ações de antigos reinos e repúblicas com o resultado lamentável de que não resta qualquer vestígio da antiga virtude Os advogados dos dias atuais aprendem seu ofício com os antigos advogados Os médicos nos dias de hoje baseiam suas decisões na experiência dos antigos médicos Portanto é ainda mais surpreendente que em assuntos políticos e militares os príncipes e as repúblicas atuais não recorram aos exemplos dos antigos Isso resulta não tanto da firaqueza à qual a religião de hoje impeliu o mundo ou do mal que fez o lazer ambicioso a tantos países e cidades cristãos como de uma compreensão insuficiente das histórias e em especial a de Tito Lívio Em conseqüência os con temporâneos de Maquiavel acreditam que a imitação dos antigos não é apenas difícil mas impossível Tratase porém de evidente absurdo a ordem natural incluindo a natureza do homem é a mesma da Antiguidade N i c o l a u M a q u ia v e l 275 Entendemos agora por que é perigosa a descoberta de novos modos e ordens que é apenas a redescoberta dos antigos modos e ordens Essa redescoberta que acarreta as demandas de que a virtude dos antigos seja imitada pelos homens de hoje é contrária à religião de hoje é esta religião que ensina que a imitação das antigas virtudes é im possível que é moralmente impossível pois as virtudes dos pagãos são apenas vícios resplandecentes O que Maquiavel terá de realizar nos Discursos não é apenas a apre sentação mas a reabilitação da antiga virtude diante da crítica cristã Entretanto com isso não fica resolvida a dificuldade causada pelo fato de que a descoberta de novos modos e ordens é apenas a redescoberta dos antigos modos e ordens Esse aspecto porém é claro Maquiavel não pode tomar como ponto pacífico a superioridade dos antigos é preciso comprovála Assim sendo deve primeiro encon trar um território comum aos admiradores e detratores da Antiguidade Esse território comum é a veneração da Antiguidade seja bíblica ou pã Maquiavel parte da premis sa tácita de que o bom é o velho e por conseguinte de que o melhor é o mais velho Desta forma é conduzido primeiro ao antigo Egito que floresceu na mais remota An tiguidade Contudo tal atitude não é muito produtiva já que pouco se sabe do antigo Egito Maquiavel se conforma portanto com o mais antigo que é bastante conhecido e ao mesmo tempo propriamente seu a Roma antiga Todavia não há evidências de que a Roma antiga seja digna de admiração em todos os aspectos importantes Há for te argumentação a ser apresentada e que já o fora quanto à superioridade de Esparta sobre Roma Desta forma Maquiavel precisa comprovar a autoridade da Roma antiga O modo como o faz lembra a maneira pela qual os teólogos anteriormente determina vam a autoridade da Bíblia contra os incrédulos Contudo a Roma antiga não é um livro como a Bíblia Todavia ao determinar a autoridade da antiga Roma Maquiavel firma a autoridade de seu historiador chefe Tito Lívio e com isso do livro A história de Tito Lívio é a Bíblia de Maquiavel Daí se segue que Maquiavel não pode dar início a seu uso de Tito Lívio antes de demonstrar a autoridade de Roma Maquiavel começa a citar Tito Lívio na seção sobre a religião romana I 1115 No capítulo anterior contrastara César como o fundador de uma tirania com Rômu lo como fundador de uma cidade livre A glória de César se deve aos escritores que o celebraram porque seu julgamento estava corrompido por seu extraordinário sucesso a fundação do governo dos imperadores os imperadores não permitiam que os escri tores falassem de César com liberdade Todavia os escritores livres sabiam como con tornar essa limitação culpavam Catilina a infeliz prefiguraçâo de César e celebravam Bruto inimigo de César Porém nem todos os imperadores eram ruins O período dos imperadores Nerva até Marco Aurélio foram tempos áureos em que todos podiam nutrir e defender qualquer opinião que quisessem áureos são os tempos em que o pensamento e a expressão do pensamento não são limitados pela autoridade Essas observações constituem com efeito a abertura do tratamento da religião romana por Maquiavel Ali trata a religião pagã pelo menos como igual à religião bíblica enquanto religião O princípio de toda religião é a autoridade ou seja exatamente aquilo que Maquiavel questionara pouco antes Entretanto para a classe governante da Roma 276 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y antiga a religião não era uma autoridade utilizavam a religião para fins políticos e o faziam do modo mais admirável O elogio da religião da Roma antiga subtende para além de uma simples insinuação uma crítica da religião da Roma moderna Maquiavel elogia a religião da Roma antiga pela mesma razão por que os escritores livres sujeitos à autoridade dos césares elogiaram Bruto não podia culpar abertamente a autoridade do cristianismo à qual estava sujeito Assim se a história de Tito Lívio é a Bíblia de Maquiavel é também sua antiBíblia Depois de comprovar a autoridade da Roma antiga e demonstrar sua superio ridade aos modernos por meio de muitos exemplos Maquiavel começa a aludir aos defeitos de que sofreu Somente a partir deste ponto é que Tito Lívio ou seja um livro se distingue de Roma como sua autoridade exclusiva Entretanto pouco antes do final do Livro I Maquiavel questiona abertamente a opinião de todos os escritores inclusive Tito Lívio sobre um assunto da maior importância Conduznos assim passo a passo até o entendimento do motivo por que são novos os modos e ordens antigos que redescobriu 1 Os modos e ordens da Roma antiga foram estabelecidos sob a pressão das circunstâncias por tentativa e erro sem um plano coerente sem a compreensão de seus motivos Maquiavel fornece esses motivos e por isso é capaz de corrigir alguns dos antigos modos e ordens 2 O espírito que dinamizava os velhos modos e ordens era a veneração da tradição da autoridade o espírito de piedade enquanto Maquiavel é galvanizado por um espírito inteiramente diverso O progresso da aigumentação é indicado com grande clareza no L íaito I Enquanto começa com os maiores elogios à Antiguidade mais remota o Livro I termina com a expressão muito jovem muitos romanos comemoraram seus triunfos sànàa ovanissimi Estamos assim prontos para compreender o proêmio do Livro II Ali Maquia vel questiona com franqueza o preconceito em favor dos tempos antigos os homens sempre elogiam os tempos antigos e acusam o presente mas nem sempre com razão Na verdade o mundo sempre foi o mesmo a quantidade de bem e de mal é sempre a mesma O que muda são os diferentes países e nações que têm tempos de virtude e tempos de degenerescência Na Antiguidade a virtude residiu primeiro na Assíria e afinal em Roma Após a destruição do Império Romano a virtude renasceu ape nas em algumas partes dele em particular na Turquia Desta forma alguém que nasceu em nosso tempo na Grécia e que não se tornou turco com sensatez culpa o presente e elogia a Antiguidade Em conseqüência Maquiavel tem total justificativa para louvar os tempos dos antigos romanos e culpar seu próprio tempo não resta qualquer traço da antiga virtude em Roma e na Itália Portanto exorta os jovens a imitar os antigos romanos sempre que a fortuna lhes der a oportimidade de fazêlo isto é realizar o que fora impedido de efetuar pela perversidade dos tempos e da fortuna A mensagem do proêmio ao Livro II poderia parecer muito insignificante pelo menos quando comparada com a do proêmio ao livro I Tal se deve ao fato de que o proêmio ao Livro I é a introdução a toda a obra enquanto o proêmio ao Livro II é apenas a introdução ao Livro II e em particular aos primeiros capítulos do Livro II Ali Maquiavel primeiro diverge de uma opinião de Plutarco a quem chama de um N ic o l a u M a q u ia v e l 2 7 7 autor de peso nunca aplica esse epíteto a Tito Lívio uma opinião compartilhada por Tito Lívio e até mesmo pelo próprio povo romano a opinião de que os romanos adquiriram seu império por meio da fortuna e não por meio da virtude Antes da con quista romana toda a Europa era habitada por três povos que defendiam sua liberdade de modo obstinado e que se governavam com liberdade ou seja como repúblicas Por conseguinte Roma necessitou de excessiva virtude para conquistálos Como então se explica que nos tempos antigos esses povos amavam a lib e r te mais do que hoje De acordo com Maquiavel tal se deve em última análise à diferença entre a a n t relião e nossa relido Nossa religião considera como o bem maior a humildade a abjeção e o menosprezo pelas coisas humanas enquanto para a antiga religião o bem mais eledo estava na grandeza de espírito na força do corpo e em todas as outras coisas propensas a fortalecer os homens Contudo o desarmamento do mundo e do próprio céu se deve em última análise à destruição do Império Romano de toda a vida republicana Além de sua excessiva virtude o sundo motivo para a grandeza de Roma era sua liberal ad missão de estrangeiros como cidadãos Todavia essa política expõe o Estado a grandes perigos como sabiam os atenienses e em particular os espartanos que temiam que a agregação de novos habitantes corrompesse os antigos costumes Devido à política ro mana muitos homens que jamais conheceram a vida republicana e não se importavam com ela ou seja muitos orientais tornaramse cidadãos romanos Assim a conquista romana do Oriente concluiu o que a conquista do Ocidente começara E assim sucedeu que a República romana era por um lado o extremo oposto à república cristá e por outro a causa da república cristã e até mesmo seu modelo O Livro III nâo tem proêmio mas seu primeiro capítulo tem função de proê mio Por meio desta ligeira irregularidade Maquiavel salienta o feto de que o número de capítulos dos Discursos é ual ao número de livros na história de Tito Lívio e a história de U to Lívio como mencionamos antes estendese desde a origem de Roma até a época do suipmento do cristianismo O título do primeiro capítulo do Livro III tem o seguinte teor Se alguém deseja que vivam por muito tempo uma seita ou uma república é preciso trazêlas muitas vezes de volta a seu início Embora o título só fale de seitas e repúblicas o capítulo em si trata de repúblicas seitas e reinos as seitas quer dizer as religiões ocupam posição central Há um limite imposto pelo céu para o curso de todas as coisas do mundo No entanto atingem esse limite apenas se forem mantidas em ordem e isso significa que são muitas vezes trazidas de volta às suas ori gens pois em suas origens devem ter tido algo de bom caso contrário não teriam an gariado sua reputação em primeiro lugar nem crescido Maquiavel prova sua tese no que concerne às repúblicas primeiro pelo exemplo de Roma que recuperou uma nova vida e nova virtude depois de sua derrota pelos gauleses Roma em seguida retomou a prática da religião e da justiça isto é as antigas ordens em particular as da religião devido a cuja negligência adviera o desastre A recuperação da antiga virtude consiste na reimposição do terror e do medo que no início fizeram bons os homens Maquia vel portanto explica o significado fundamental de seu interesse pela recuperação de antigos modos e ordens os homens eram bons no início não por causa da inocência 278 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey mas porque foram tomados pelo terror e pelo medo pelo terror e medo inicial e radical no começo não há Amor mas Terror os ensinamentos inteiramente novos de Maquiavel se baseiam nessa suposta percepção que antecipa a doutrina de Hobbes do estado da natureza Maquiavel voltase em seguida para a discussão das seitas ilustra sua tese com o exemplo da nossa religião Se nossa religião não tivesse si do levada de volu às suas origens ou princípios por S Francisco e S Domingos teria sido completamente extinta pois pela pobreza e pelo exemplo de Cristo trouxeram essa religião de volta à mente dos homens onde já estava extinta e essas novas ordens eram tão potentes que são elas o motivo pelo qual a imoralidade dos prelados e dos chefes da religião não arruinam nossa religião pois os franciscanos e os dominicanos vivem ainda na pobreza e têm crédito tão grande com os povos por causa da confissão e das pregações que convencem as pessoas de que o mal é fàlar mal do mal e que é bom viver em obediência aos prelados e se os prelados pecam deixar que Deus os puna Assim os prelados fàzem tanto mal quanto podem pois não temem a punição que não veem e na qual não acreditam Essa inovação portanto manteve e mantém essa religião Aqui o retorno ao início foi obtido por meio da introdução de novas ordens sem dúvida Maquiavel o afirma porque não acreditava que as reformas franciscanas e dominicanas eqüivalessem a uma simples restauração do cristianismo primitivo pois essas reformas deixaram intacta a hierarquia cristã Contudo é necessária a introdução de novas ordens também nas repúblicas como saliena Maquiavel no capítulo final dos Discursos a restauração dos modos e ordens antigos eqüivale em todos os casos incluindo o do próprio Maquiavel à introdução de novos modos e ordens No entan to existe uma grande diferença entre a renovação fnmciscana e dominicana e as reno vações republicanas estas últimas sujeitam toda a república incluindo o protagonista ao terror e ao medo iniciais exatamente porque resistem ao mal porque punem o mal de forma visível e por conseguinte com credibilidade O comando ou conselho cristão para que não se resista ao mal se baseia na premissa de que o começo ou o princípio é o amor Esse comando ou conselho só pode levar à desordem extrema ou ainda à evasão A premissa no entanto se transforma no seu extremo oposto Vimos que o número de capítulos dos Discursos é significativo e foi escolhido a propósito Assim podemos ser induzidos a perguntar se não é também significativo o número de capítulos do Príncipe O Príncipe é composto por 26 capítulos Vinte e seis é o valor numérico das letras do nome ssrado de Deus em hebraico do Tetragrama Mas será que Maquiavel sabia disso Não sei Vinte e seis é igual a duas vezes 13 Hoje e há bastante tempo o número 13 é considerado aziago mas nos tempos antigos era tido ao mesmo tempo e até mais como um número de sorte Assim 13 vezes pode significar tanto boa sorte como má sorte e portanto tudo junto sorte fortuna Podese argumentar a fàvor da visão de que a teologia de Maquiavel pode ser expressa pela fórmula Deus sive fortuna distinta de Deus sive natura de Spinoza ou seja que Deus é a fortuna que deveria estar sujeita à influência humana imprecação Entretan to comprovar isso exigiria um argumento demasiado longo e exaltado para a presen te ocasião Vejamos portanto se não podemos conseguir alguma ajuda de um exame N icolau Maquiavel 279 do capítulo 26 dos Discursos O título do capítulo é o seguinte Um novo príncipe em uma cidade ou um país tomado por ele deve fazer tudo de novo O tema do ca pítulo é então o novo príncipe em um novo Estado ou seja o tema mais elevado do Príncipe No final do capítulo anterior Maquiavel dissera aquele que pretende estabe lecer um poder absoluto que os autores chamam tirania deve renovar tudo O tema de nosso capítulo é portanto a tirania mas o termo tirania jamais ocorre nesse capí tulo a tirania é evitada no capítulo 26 dos Discursos do mesmo modo como é evitada no Príncipe que consiste em 26 capítulos A lição do capítulo em si é essa um novo príncipe que pretende estabelecer o poder absoluto em seu Estado deve fàzer tudo de novo deve estabelecer magistraturas novas com novos nomes novas autoridades e homens novos deve fàzer os ricos pobres e os pobres ricos como fez Davi quando se tornou rei qui esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes Em suma o novo príncipe não deve dekar nada intocado em seu país e não deve haver qualquer status ou riqueza que seus possuidores não reconheçam como devidos ao príncipe Os modos que deve empregar são os mais cruéis e hostis não só a toda a vida cristã mas até mes mo a toda vida humana de modo que todos devem preferir viver como um homem comum e não como um rei com uma tão grande ruína de seres humanos A citação la tina que ocorre neste capítulo é assim traduzida na versão revista Ele encheu de bens os fàmintos e despediu vazios os ricos A citação fàz parte do Magnificat a oração de agradecimento da Yitgem Maria depois de ter ouvido do anjo Gabriel que daria à luz um filho a ser chamado de Jesus aquele que encheu de bens os fàmintos e despediu vazios os ricos não é outro senão o próprio Deus No contexto deste capítulo isso significa que Deus é um tirano e que o rei Davi que fez os ricos pobres e os pobres ricos era um rei piedoso um rei que sqia os caminhos do Senhor porque procedeu de maneira tirânica Devese notar que esta é a única citação do Novo Testamento que ocorre nos Discursos ou no Príncipe E esta única citação do Novo Testamento é usada para expressar uma terrível blasfêmia Podese dizer em defesa de Maquiavel que a blasfêmia não é pronunciada de modo expresso mas apenas insinuada No entanto esta defesa longe de ajudar Maquiavel piora a situação e por este motivo quando um homem pronuncia abertamente ou vomita uma blasfêmia todos os homens de bem tremem e se afàstam dele ou o castigam de acordo com seus merecimentos o pecado é seu por completo Mas uma blasfêmia oculta é por demais insidiosa não somente porque protege o blasfemo contra o castigo por meio do devido processo da lei mas acima de tudo porque praticamente obriga o ouvinte ou leitor a pensar a blasfêmia por si mesmo e assim tornarse cúmplice do blasfemador Maquiavel portanto esta belece uma espécie de intimidade com seus leitores por excelência a quem chama de os jovens induzindoos a pensar em coisas proibidas ou criminosas Tal intimidade parece também ser estabelecida por todo procurador ou juiz que a fim de condenar o criminoso deve pensar pensamentos criminosos mas essa intimidade é abominada pelo criminoso Maquiavel como sempre intentao e o deseja Esta é uma parte im portante de sua educação dos mais jovens ou para usar a expressão consagrada pelo tempo de sua corrupção dos jovens 2 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Se o espaço permitisse poderíamos analisar com proveito outros capítulos dos Discursos cujos números são múltiplos de 13 Vou examinar apenas um deles Livro II capítulo 5 O título deste capítulo é o seguinte Que a mudança de seitas e linguens juntamente com as inundações e prsas destrói a lembrança das coisas Maquiavel começa este capítulo discordando de certos filósofos expondo uma objeção a suas te ses Os filósofos em questão afirmam que o mundo é eterno Maquiavel acredita ser possível redarguirlhes da seguinte forma se o mundo fosse tão velho como alegam seria razoável que houvesse lembranças de mais de cinco mil anos isto é a memória que temos graças à Bíblia Maquiavel se opõe a Aristóteles em nome da Bíblia Mas continua seria possível íàzer uma réplica se não se percebesse que as lembranças dos tempos são destruídas por causas diversas em parte originadas por seres humanos em parte originadas no céu Maquiavel reíutou em seguida uma suposta contestação de Aristóteles ao mais conhecido argumento antibíblico dos aristotélicos Prossegue da siinte maneira as causas originárias de seres humanos são as mudanças das seitas e da linguagem Pois quando emerge uma nova seita isto é uma nova religião sua pri meira preocupação é a fim de angariar respeito extinguir a antiga religião e quando aqueles que estabelecem as ordens das novas seitas têm um idioma diferente destroem com facilidade a antiga seita Percebese isso ao se avaliar o procedimento usado pela seita cristã contra a seita dos gentios a primeira arruinou todas as ordens todas as ce rimônias dos gentios e destruiu toda a memória daquela antiga teologia É verdade que não conseguiu destruir de todo o conhecimento dos feitos realizadas pelos homens de excelência no meio dos gentios e isso se deveu ao fato de que preservou a língua lati na que os cristãos foram forçados a usar para escrever a sua nova lei Pois se tivessem sido capazes de escrever essa lei em uma nova língua não restaria qualquer registro das coisas do passado Basta ler as atas de S Gregório e dos outros líderes da religião cristã para perceber a grande obstinação com que perseguiram todas as antigas lembranças queimando as obras dos poetas e dos historiadores arruinando as imagens e danifi cando todos os outros sinais da Antiguidade se tivessem unido a essa perseguição uma nova língua mdo teria sido esquecido em curtíssimo tempo Por meio desses extra ordinários exageros Maquiavel delineia o contexto de sua própria obra em especial a sua recuperação de seu estimado Uto Lívio de cuja história a maior parte se perdeu devido à maldade dos tempos 12 Além disso aqui contrastam em silêncio a con duta dos cristãos e a dos muçulmanos cuja nova lei foi escrita em uma nova língua A diferença entre os cristãos e os muçulmanos não é que os cristãos tivessem um maior respeito pela Antiguidade p s que os muçulmanos mas que os cristãos não conquis taram o Império Romano do Ocidente tal como os muçulmanos conquistaram o do Oriente pelo que foram forçados a adotar a língua latina e assim em certa medida a preservar a literatura da Roma pa desta forma preservando seu inimigo mortal Pouco depois Maquiavel afirma que essas seitas mudaram duas ou três vezes em cinco ou seis mil anos Assim determina o tempo de vida do cristianismo o máximo seria de três mil anos o mínimo de 1666 anos Isso significa que o cristianismo poderia chegar ao fim cerca de 150 anos após os Discursos terem sido escritos Maquiavel não N ic o ia u M a q u ia v e l 2 8 1 foi o primeiro a se envolver em especulações deste ripo cf Gemisto Pletão que era muito mais confiante ou perspicaz que Maquiavel Contudo o ponto mais importante atestado por Maquiavel com essa declaração é que todas as religiões incluindo o cristianismo têm origem humana não celeste As alterações de origem celeste que destroem a memória das coisas são as pnas a fome e as inundações o celeste é o natural o supranatural é humano Não é original a essência do que diz ou siere Maquiavel a respeito da religião Como indica seu uso do termo seita para referirse à relido Maquiavel segue o cami nho do averrofemo isto é daqueles aristotélicos medievais que como filósofis se recusa ram a íãzer quaisquer concessões à religião revelada Embora não seja original a essência dos ensinamentos religiosos de Maquiavel é muito engenhosa sua maneira de colocálos Não reconhece de fiito nenhuma teolc além da teo lc civil a teologia a serviço do Estado e a ser utilizada ou não utilizada pelo Estado conforme sirirem as circunstân cias Indica que podem ser dispensadas as religiões se houver um monarca fisrte e capaz Essa afirmativa implica de fato que a religião é indispensável nas repúblicas Os ensinamentos moraispolíticos dos discursos são em essência os mesmos do Príncipe mas com uma diferença importante os Discursos apresentam de modo potente a tese em fàvor das repúblicas ao mesmo tempo que instruem tiranos em potencial sobre como destruir a vida republicana Todavia testam poucas dúvidas de que Maquiavel preferia as repúblicas às monarquias tirânicas ou nâo Odiava a opressão que não está a serviço do bemestar do povo e por consuinte de um governo eficaz em particular de uma justiça punitiva imparcial e insuscetível Era um homem generoso embora sabendo muito bem que o que passa por generosidade na vida política é na maior parte do tem po nada mais que saz maquinação que como tal merece ser elogiada Nos Discursos manifestou de modo mais daro sua preferência por meio de seus louvores a M Fúrio Camilo Camilo fora muito elogiado por Tito Lívio como o sundo Rômulo o segun do fundador de Roma um praticante por demais consciente das observâncias religiosas c h mesmo a fidar dele como o maior de todos os imperatores mas provavelmente com isso quer dizer o maior de todos os comandantes até o tempo de Camilo Maquia vel no entanto chama Camilo de o mais prudente de todos os capitães romanos fàz o elogio tanto por sua bondade quanto por sua virtude sua humanidade e integridade como boas e sábias resumindo como um homem de grande excelência Tem em mente sobretudo sua serenidade o feto de que mantinha o mesmo estado de espírito na boa e na má fortuna quando salvou Roma dos gauleses e assim mereceu glória imortal e quando foi condenado ao exílio Maquiavel atribui o modo como Camilo se mantinha acima dos caprichos da fortuna a seu excepcional conhecimento do mundo Apesar de seus méritos extraordinários Camilo foi condenado ao exílio Em um capítulo especial III 23 Maquiavel discute os motivos para tal condenação Com base em Uto Lívio enumera três motivos Porém se não me engano Tito Lívio jamais mencionou esses três motivos juntos como causas do exílio de Camilo Aqui na verdade Maquiavel não s e Uto Lívio mas Plutarco Entretanto fez uma alteração característica atribui a posição central ao feto de que em seu triunfo Camilo teve seu carro triunfei puxado por quatro 2 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y cavalos brancos desta forma comentou o povo que por oigulho tivera a intenção de igualarse ao deus sol ou como afirma Plutarco Júpiter Tito Lívio diz Júpiter et sot Acredito que este chocante ato de superbia constituiu aos olhos de Maquiavel um sinal da nunanimidade de Camilo O extremo orgulho de Camilo revela como Maquiavel decerto sabia que existe uma grandeza além da grandeza de Camilo Afinal de contas Camilo não era um fun dador ou descobridor de novos modos e ordens Para dizer isso de modo um pouco diferente Camilo era um romano da mais alta dignidade e como Maquiavel demons trou de modo mais evidente em sua comédia La Mandragola a vida humana também requer leveza Nesta elogia o Magnífico Lourenço de Médici por ter juntado gravida de e leveza em uma combinação quase impossível combinação esta que Maquiavel estimava louvável porque ao mudar da gravidade para a leveza e viceversa imitase a natureza que é mutável Não é possível deixar de incU como se deve julgar de modo razoável os en sinamentos de Maquiavel como um todo A maneira mais simples de responder a essa pergunta parece ser a seguinte O escritor a quem Maquiavel se refere e a quem reverencia com maior frequência com a óbvia exceção de Tito Lívio é Xenofonte No entanto referese a apenas dois dos escritos de Xenofonte A Educação de Ciro e Hiero Não se detém em seus escritos socráticos ou seja o outro polo do universo moral de Xenofonte Sócrates Na opinião de Xenofonte Maquiavel suprime a melhor parte Podese dizer com sjurança que não há nenhum fenômeno moral ou político que Maquiavel soubesse ou por cuja descoberta fosse famoso que não fosse plenamente conhecida por Xenofonte para não felar de Platão e Aristóteles É verdade que em Maquiavel tudo aparece sob uma nova luz mas isso se deve não a um alargamento do horizonte mas a um estreitamento dele Muitas descobertas modernas sobre o homem têm a mesma natureza Maquiavel tem sido muitas vezes comparado aos sofistas Maquiavel nada diz a respeito dos sofistas e dos homens comumente conhecidos como sofistas No entanto diz algo sobre esse assunto embora de modo indireto em sua Vida de Castruccio Cas tracani uma obra diminuta e encantadora contendo uma descrição idealizada de um condottiero ou tirano do século XIV Ao final dessa obra registra uma série de ditos espirituosos proferidos ou ouvidos por Castruccio Quase todos esses ditos foram to mados de empréstimo por Maquiavel da obra Vidas dos filósofos famosos de Diógenes Laércio Maquiavel muda os ditos em alguns casos a fim de tornálos adequados a Castruccio Em Diógenes está registrado que um filósofo antigo afirmou que gostaria de morrer como Sócrates Maquiavel apropria esse dito para Castruccio embora este preferisse morrer como César A maioria das declarações registradas no Castruccio tem origem em Aristipo e Diógenes o Cínico As referências a Aristipo e Diógenes não considerados sofistas poderiam guiarnos de modo proveitoso se estivéssemos inte ressados na questão daquilo que os estudiosos denominam as fontes de Maquiavel Perto do final da Ética a Nicômaco Aristóteles feia do que se pode chamar da filosofia política dos sofistas Sua principal asserção é de que os sofistas identificavam N ic o l a u M a q u ia v e l 2 8 3 ou quase identificavam a política com a retórica Em outras palavras os sofistas acre ditavam ou tendiam a acreditar na onipotência do discurso Maquiavel decerto não pode ser acusado desse erro Xenofonte fala de seu amigo Proxenos que comandou um contingente na expedição de Ciro contra o rei da Pérsia e que era aluno do mais famoso retórico Górgias Xenofonte afirma que Proxenos era um homem honesto e capaz de comandar cavalheiros mas não foi capaz de instilar medo nos seus soldados foi incapaz de punir aqueles que não eram cavalheiros ou até mesmo de repreendêlos Porém Xe nofonte que foi discípulo de Sócrates mostrouse um comandante de grande sucesso exatamente porque sabia controlar tanto os cavalheiros como os não cavalheiros Xeno fonte o discípulo de Sócrates não tinha ilusões quanto ao rigor e a aridez da política quanto aos ingredientes da política que transcendem o discurso Neste aspecto impor tante Maquiavel e Sócrates constituem uma frente única contra os sofistas L eitu ra s A Maquiavel Nicolau O príncipe B Maquiavel Nicolau Discursos sobre os dez primeiros livros de Tito Lívio 284 H istória da Filosofia P olítica a Leo Strauss e Joseph Cropsey M artinho L utero 14831546 JoÂo C alvino 15091564 Os grandes reformadores Martinho Lutero e João Calvino não se viam como fi lósofos ou políticos mas em essência como teólogos e estudiosos da Palavra de Deus Desta forma não devemos esperar que apresentem uma filosofia política abrangente ou uma teoria geral da política pois não consideravam esta como a tarefa para a qual foram chamados No entanto a Reforma da Igreja exigia a formulação de uma posição teológica geral o que inelutavelmente incluiria algumas afirmações centrais sobre política c filosofia política Assim ainda que a contrsosto os dois reformadores fo ram convocados a dar muitos conselhos políticos concretos em situações práticas e até mesmo a envolverse em atividades políticas nas quais as suas opiniões políticas foram desenvolvidas e postas à prova Concebem suas afirmações políticas como diretamente decorrentes das suas premissas teológicas e como derivadas da mesma fonte as Síra das Escrituras Seus ensinamentos políticos só podem ser entendidos de modo correto à luz de sua teologia pois não foram elaborados para serem vistos de forma isolada Abreviações Weimarer Ausgabe das Obras de Martinho Lutero P E Philadelphia Edition of The Works o f Martin Luther 6 v in English Philadelphia A J Hol man Company 19151932 AEAmerican Edition ofLuthers Works Ed Jaroslav Pelikan and HelmutT Lehman Cinqüenta e cinco volumes em processo de publicação pela Concordia Publishing House St Louis e Muhlen beig Press Philadelphia CR Corpus Refbrmatorum no qual as obras de Calvino editadas por Baum Cunitz e Reuss com preendem 59 volumes Brunswick 18631900 Ins Calvin Institutes ofthe Christian Religion As citações em iiês a nâo ser que iníbnnado em contrário sâo da tradução de Henry Beveridge London James Clarke Co 1949 Sua principal preocupação com a política é definir sua esfera adequada e situála em relação a seu contexto Mas é impossível determinar a fronteira entre teologia e filosofia política sem dizer muito sobre ambos e apesar de Lutero e Calvino tomarem a teologia bíblica como seu ponto de partida é inevitável que estejam envolvidos em dizer muito sobre a natureza e a função da política Discutem temas como o lugar do governo secular em relação ao esquema da salvação divina a conexão entre o pe cado e a autoridade temporal as relações entre lei divina lei natural e lei positiva as numerosas implicações da doutrina cristã do homem a Igreja e o Estado os limites do poder político os deveres mútuos de governante e súditos e assim por diante Em suma a maior parte das grandes questões da filosofia política é pelo menos aventada muito embora algumas vezes apenas para indicar quais ferramentas razão tradição experiência consciência ou as Sagradas Escrituras sáo adequadas para o tratamento de um determinado problema Lutero e Calvino estão em polos opostos no que se refere a seu temperamento e modo de expressão Lutero é extravagante vivo impulsivo muito agradável de ler mui tas vezes exerando a sua verdadeira posição ou contrariando o que dissera em outro liar a fim de apresentar um aspeao com maior força Não escreveu uma exposição abrangente de sua teologia e seus ensinamentos políticos precisam ser recolhidos a partir de tratados para os tempos tratados teológicos comentários sermões e até mesmo hi nos Apesar de algumas gritantes contradições e exageros na superfiície há uma profunda unidade básica e coerência em seu pensamento sua teologia política é engendrada com grande cuidado e em geral é consistente mesmo que por vezes ardculada de modo enganoso Calvino é mais contido seco lúcido e sistemático em seus escritos Sua obra Institutos da Religião Cristã que escreveu pela primeira vez quando tinha apenas 25 anos mas revisou e expandiu em sucessivas edições até 1559 é uma das maiores e mais influen tes obras de teologia sistemática de todos os tempos Em sua forma final é a expressão definitiva de sua teologia embora muitos detalhes possam ser acrescentados a partir de seus volumosos sermões palestras comentários e correspondências Apesar de algumas significativas divergências teológicas e políticas Lutero e Cal vino concordam entre si de modo amplo e geral Acatam as mesmas autoridades adotam quase o mesmo método e a estrutura e a maior parte das conclusões de seu pensamento são semelhantes o bastante para nos autorizar a tratálos em conjunto apontando as diferenças na medida em que ocorrerem A A B a se pa ra u m a T e o l o g ia d a P o u t ic a 1 Justificação pela Fé A raiz e núcleo de toda a teologia reformada é a doutrina da justificação pela fé apenas Tudo o que é característico dos ensinamentos de Lutero e da Reforma pode ser rastreado até uma convicção da perversidade radicai do homem e de sua total aliena ção de Deus por causa da imensidão de seu pecado junto com a rejeição das soluções 286 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y correntemente aceitas para o problema do perdão e da reconciliação Os reformadores foram muitíssimo além da simples denúncia dos abusos mais óbvios do sistema de indulgências e naram os próprios termos em que eram colocados o problema do pecado e da redenção pela Igreja Romana Tanto Lutero como Calvino acreditam na total depravação do homem Com isso não querem dizer que nada que o homem faça possa ser bom no sentido cor rente do termo mas que mesmo aquelas que o homem percebe como boas obras são inadequadas de modo total e comovente quando avaliadas pelo padrão de retidão que Deus exige de Seus servos O mal que fiizemos é a expressão normal da nossa natureza humana corrompida e nossa própria responsabilidade mas qualquer bem que possamos fezer é Deus saindo através de nós um dom da livre graça de Deus pelo qual não podemos reivindicar mérito É ridículo pensar em invocar as nossas boas obras diante de Deus Onipotente pois é desesperançada a trivialidade desse ato em virtude da condenação de nosso pecado que exige a justiça divina essas mesmas obras são sem exceção conspurcadas por nossa corrupção e maldade e além disso se são boas é porque a bondade reside em Deus e não em nós Todos os homens estão igualmente sob a condenação de Deus Nem mesmo os santos escreveu Calvino são capazes de realizar uma obra que se julgada por seus méritos não seja merecedora de condenação O perdão e a paz com Deus não podem ser obtidos ou ganhos pelo homem ou pelo que quer que feça por si mesmo Os reformadores rompem com a tradição medieval não só por sua colocação mais radical do problema do pecado e da condição caída do homem mas também pela solução que apresentam Somos justificados diante de Deus alegam não pelas obras ou pelos méritos dos santos distribuídos por meio das indulgências mas sola fide somente pela fé a fé é uma dádiva divina e não algo que o homem possa criar para si mesmo Não significa apenas que o homem deve aceitar determinadas afirma ções doutrinárias mas ao contrário que seu único recurso diante do julgamento de Deus é admitir sua total impotência e a total jusdça de sua condenação e em seguida entregar todos os seus pecados a Cristo e confiar na Sua obra para acercarse do trono da Graça revestido da santidade alienígena extraterrena do próprio Cristo Nossa justificação é uma dádiva imerecida gratuita para a qual todas as nossas próprias rea lizações são simplesmente irrelevantes A única retidão dos homens que não se dissolve na presença de Deus é a retidão passiva que é dada livremente por Deus com a fé 2 A Autoridade das Escrituras Ao assim aipunentar Lutero e Calvino retomam aos ensinamentos de S Paulo e S Agostinho e rejeitam quase toda a teologia medieval como pelsana ou seja aquela que acredita que o homem pode de alguma forma obter a sua salvação por M a b t in h o L u t e r o e J o Ao C a lv in o 2 8 7 2 John Calvin Ins III xiv 9 3 Martin LuAer Commentary on Galatians ed P S Watson London James Clarke Co 1953 p 39 etc seus próprios esforços Esta ruptura com a escolástica sobre a questão da justificação é o ponto de partida da reflexão teológica da Reforma Lutero diverge de toda a tradição teológica medieval quando já em 1517 escreve É fãlso afirmar que a vontade pode por natureza conformarse para corrigir o preceito É preciso reconhecer que a von tade não é livre para empenharse por tudo o que for declarado bom O homem por natureza não é capaz de querer que Deus seja Deus Na verdade ele próprio quer ser Deus e não quer que Deus seja Deus Tais considerações o levam direto a uma questão mais acadêmica Praticamente toda a Ética de Aristóteles é o pior inimigo da Graça Nenhuma forma silogística é válida quando aplicada a termos divinos Todo o Aristóteles está para a teologia como a escuridão para a luz A incapacidade de tratar a condição caída do homem com adequada seriedade argumentou Lutero levara os teólogos a depositar exjerada confiança na razão A ver dadeira distinção e contraste entre revelação e razão teologia e filosofia fora perdida por exemplo na síntese tomista A razão fora considerada pelo menos em algumas de suas operações como isenta dos efeitos da Queda a natureza e a Graça foram tornadas complementares assim evitando o problema de que a única natureza que podemos co nhecer é a natureza caída a natureza em constante rebelião contra a Graça A redenção da natureza requer o restabelecimento de sua condição incorrupta não sua concreti zação pela adição de uma sobrenatureza Lutero exibe uma substancial concordância com a relação entre a razão e a revelação de Occam e dos nominalistas mas afinal os rejeita também como os pelianos que não só obscureceram o Evangelho mas o afastaram de todo e nas profundezas enterraram a Cristo como resultado de uma visão das potencialidades do homem que está em desacordo com as Escrituras Se a razão não pode fornecer uma ferramenta adequada para o tratamento das questões da divindade o que resta da teologia Deveria a Rainha das Ciências desapa recer deixando para trás de si nada além de um sentimento disforme de piedade A resposta dos reformadores foi inequívoca o único critério da verdade teológica deve ser a Palavra revelada de Deus tal como expressa nas Sagradas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos Só assim pode a teologia escapar da exagerada confiança na nam reza caída ou na razão corrompida Nem a tradição da Igreja nem o filosofar humano devem ser contra as Escrituras A teologia reformada é a teologia bíblica em essência nada mais do que uma exposição dos ensinamentos claros das Escrituras Calvino por exemplo disse de suas Institutos que estavam destinadas a serem apenas a soma do que achamos que Deus quer nos ensinar em Sua Palavra A autoridade das Escrituras é autoautenticadora pois apresentam evidência tão clara de sua verdade como as coisas brancas e pretas o fazem de sua cor ou coisas doces e amargas o fazem do seu 2 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 Luther Disputation against Scholastic Theology Clauses 6 10 17 AE XXXI 4 segs 5 Ibid Clauses 41 47 50 6 Luther Galatians p 130 7 Calvin Prefacio à edição francesa de Institutes sabor e essa autoridade é ainda garantida ao íiel pela obra do Espírito Santo em seu coração É o claro sentido das Escrituras evidente para qualquer homem imparcial ao contrário de qualquer interpretação alegórica ou espiritualizada que é a regra suprema da vida e da doutrina Os reformadores acusam seus adversários não só da introdução de autoridades estranhas na teologia além das Escrituras e de subordinar a Palavra de Deus ao julgamento da Igreja mas também de se recusarem a se sujeitar a seu sentido simples mas ao contrário de tratar a Bíblia como se fosse um nariz de cera que pode ser puxado à vontade Entendida de modo correto afirmam os reformadores toda a Bíblia apresentase como uma unidade de testemunho da revelação de Deus em Cristo livre de obscuridades e ambigüidades Há uma distinção entre Lutero e Calvino em sua doutrina das Escrituras mas está longe de ser formulada de modo explícito e só pode ser apreendida em termos gerais a partir de suas diferentes abordagens da exegese Quando Lutero procura encontrar uma regra de vida nas Escrituras seu entendimento tende a ser negativo as Escrituras definem os limites dentro dos quais se deve buscar a orientação positiva na razão na tradição ou na história A principal preocupação das Escrituras é chamar os homens à salvação em Cristo mas no que concerne à vida neste mundo atuam primordialmen te de modo negativo e exigem que sejam complementadas a fim de que se obtenha luna ética adequada Calvino por outro lado busca nas Escrituras um padrão de vida e ação que seja de inequívoca positividade Enquanto Lutero entende que as Escrituras apontam para uma relação com Cristo que pode ser expressa em muitos modos de vida Calvino tende a procurar a regra única e imutável da obediência cristã Esta dis tinção na doutrina das Escrituras porém está longe de ser absoluta e não deve ser de masiado enfatizada A mesma diferença é expressa com maior clareza no modo diverso como os dois reformadores abordam a questão dos usos da Lei qv No entanto é provável que essa discordância seja uma das fontes do maior radicalismo da preo cupação de Calvino com a forma e o funcionamento da Igreja e do Estado e da maior deferência com que Lutero trata a razão e a tradição ao discutir essas questões Ao menos pelo motivo de que a Bíblia contém uma infinidade de passíens que se preocupam com a política é evidente que Lutero e Calvino como teólogos bíblicos devem ter uma doutrina política em que comentem os ensinamentos das Escrituras sobre o governo a obediência e assim por diante e a relacionem aos problemas da épo ca Nem Lutero nem Calvino alegam ser pensadores originais Pensam em si mesmos apenas como testemunhas da verdade que está disponível para todos os homens nas Sagradas Escrituras Em seu entendimento sua função é somente tomar as passiens relevantes para qualquer assunto e interpretálas correlacionálas e comentálas diante das necessidades do momento Em matéria de política e governo da Igreja a necessi M a s t in h o L u t e r o e J o ã o C a l v in o 2 8 9 8 Calvin Ins I vii 2 9 Luther PE I 367 10 Luther The Bondage ofthe Will trans J I Parker e D R Johnston London James Clarke Co 1957 p 7074 dade mais urgente é a recuperação das ordenações antigas verdadeiras e apostólicas e para isso a Bíblia é o único guia 3 Justificação e Ética Tem sido argumentado com frequência que a doutrina da justificação pela fé apenas com sua negação da validade diante de Deus dos juízos de valor humanos tor na impossível qualquer contemplação séria da ética e da política Se em última análise ou seja na presença de Deus as boas obras não podem ter mérito por que ser bom Teria sido toda a base da moralidade de feto destruída Não se trata disso muito pelo contrário é a resposta dos reformadores Quando um homem se sabe justificado pela fé apenas a sua fé necessariamente tornase ativa no amor a seu vizinho Não nos tornamos bons por fazer boas ações mas por termos sido feitos bons praticamos o bem Os reformadores nunca entendem a fé como mero assentimento passivo a uma série de proposições Portanto quando dizem que as boas obras sáo proibidas quando pregamos a fé apenas é como se eu Assesse a um homem doente Se você tivesse saúde você teria o uso de todos os seus membros mas sem saúde as obras de todos os seus membros náo sáo nada e ele quisesse inferir daí que eu houvesse proibido o trabalho de todos os seus membros enquanto pelo contrário isso significa que deve primeiramente ter saúde que fará fun cionar todas as obras de todos os seus membros Assim também a fé deve estar em todas as obras do artesão mestre ou capitão ou náo são nada As obras do homem fiel têm um valor especial porque são desinteressadas ele serve a Deus e ao próximo por eles mesmos não porque espera assim obter a salvação para si as normas éticas não são revogadas mbora sejam irrelevantes para a questão da salvação são no entanto dadas e estabelecidas por Deus com um objetivo e há uma outra esfera o mundo em que a sua validade adequada permanece totalmente intacta A retidão dos que são justificados nas palavras de Lutero a retidão passiva é algo com que somos dotados mas não podemos adquirir Mas há também uma retidão ativa não menos necessária e ordenada por Deus mas limitada por assim dizer à esfera do mundo O homem justificado é aceito por Deus em Cristo como um homem que age com retidão mas é importante lembrar que isso não o torna sem pecado ou moralmente perfeito aos olhos dos homens embora a justificação com certeza sempre se esforce para expressarse em atos de amor O cristão e o estadista cristão vive em dois reinos e em ambos deve servir a Deus muito embora de formas diferentes Devemos nos voltar ora para uma reflexão mais ampla acerca dos ensi namentos dos reformadores sobre estes dois reinos pois é de importância cabal para seu pensamento político 2 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 LuAer Disputation against Scholastic Theology Clause 40 AE XXXI 4 segs 12 LuAer A Treatise o f Good Works PE I 199 B Os D o is R e in o s 1 A Dupla Cidadania do Homem O homem é súdito de dois reinos dc acordo com Calvino e Lutero Observemos que no homem o governo é duplo um espiritual por meio do qual a consciência é formada para a piedade e a adoração divina o outro civil pelo qual o indi víduo é instruído nos deveres que como homens e cidadãos somos obrigados a cumprir Estas duas formas comumente recebem os nomes adequados de jurisdição espiritual e temporal sugerindo que o tipo anterior referese à vida da alma enquanto o segundo diz respeito às questões da vida presente não apenas alimentação e vestuário mas a pro mulgação de leis que exigem que o homem viva entre seus semelhantes de maneira pura honrosa e moderada O primeiro tem sua sede dentro da alma o último somente regula a conduta externa Denominamos a um o reino espiritual ao outro o reino temporal Em suma o homem pertence tanto à terra como ao céu ao temporal e ao eterno é sujeito à lei secular e recebedor do Evangelho eterno um ser capaz tanto de razão como de fé No reino espiritual é totalmente livre no reino temporal encontrase em total sujeição É ao mesmo tempo membro da Igreja o Corpo eterno de Cristo e sujeito à autoridade temporal dos magistrados e leis seculares É instruído no reino temporal em grande parte pela razão a tradição e a autoridade das grandes mentes do passado e no reino espiritual pela Palavra de Deus tal como registrada nas Sagradas Escrituras A clara distinção entre essas duas esferas é uma das principais e contínuas tarefas da teologia mas está longe de ser fócil Os dois reinos não são apenas a Igreja e o Esta do como sugeriram muitos pensadores medievais Não efetuar a distinção ou colocar uma divisão incorreta leva a confusão e desgraça em ambos os reinos como veremos adiante com maiores detalhes Aquele então que é capaz de julgar de modo correto entre a lei e o Evangelho que dê graças a Deus e saiba que é de fóto divino 2 A Relação entre os Dois Reinos Embora se devam distinguir de modo daro os dois reinos não devemos pensar que não têm qualquer relação um com o outro ou sejam totalmente independentes e autossuficientes Assim como a Escócia e a Inglaterra estiveram entre 1603 e 1707 com exceção do período de Cromwell unidas na pessoa da coroa ao mesmo tempo que mantinham seus governos distintos assim os reinos espiritual e temporal em bora distintos entre si têm o mesmo soberano Ambos são reinos de Deus ambos expressões de seu cuidado e preocupação para com os homens Em certo sentido poderíamos dizer que são complementares embora devamos ter o cuidado de mostrar o que queremos dizer com isso a fim de evitar confusão com ideias medievais que os reformadores renegaram Deus nos dá Suas boas dádivas tanto por intermédio do M a r t i n h o L u t e r o e Jo A o C a lv in o 291 13 Calvin Ins III xfac 15 14 Luther Galatians p 122 príncipe como do pregador e cada um de sua própria maneira aponta para o céu O governo espiritual nos leva a amar a Deus o governo temporal nos conduz a servir os nossos vizinhos Mas o amor a Deus e o serviço ao próximo sáo em última análise táo unidos que é impossível fazer uma coisa sem ao mesmo tempo fezer também a outra Tanto a lei como o Evangelho a razão e a fé o Estado e a Igreja a filosofia e as Escrituras são necessários para a vida neste mundo Apesar daquilo que muitas vezes parece ser conflito e desarmonia sabemos que os dois reinos caminham juntos e são complemen tares Mas essa união só será plenamente realizada na consumação de todas as coisas quando os dois se tomarão lun só e enquanto isso a distinção deve ser mantida com cuidado para que se evite peiosa confusão Ora esses dois tal como os dividimos de vem sempre ser examinados em separado Quando avaliamos um deles devemos trancar nossas mentes e não permitir que pensem no outro A fronteira entre os dois reinos é uma divisão dentro de cada homem Analisados de modo correto os dois governos operam na maior parte em diferentes territórios por meios diferentes e para diferentes fins e em conseqüência a questão da superioridade de um sobre o outro não pode ser discutida com sensatez Os dois devem colaborar e o fezem é verdade mas apenas de tal forma que não confúndam a sua separação e igualdade perante Deus Mas está longe de ser fecil manter a distinção correta pois o diabo não para de tramar e entretecer esses dois reinos em um só a fim de trazer o caos e o desastre para a Terra Sua ação se dá por meio da presunção humana ou do idealismo humano Por um lado o poder secular pode procurar controlar a Igreja e ditar o que deve ser crido e ensinado ou o papa pode procurar afirmar que toda autoridade terrena flui por meio dele Tais pessoas observa Lutero querem ser o próprio Deus e não serviLo ou subordinarse a Ele A Lei e o Evangelho podem ser confundidos quer por bandos de camponeses assassinos e ladrões que minam a autoridade legal em si quer pelo papa que não apenas mistura a lei com o Evangelho mas que do Evangelho fez simples leis sim e tais são apenas cerimoniais O papa também confunde e mistura questões políticas e eclesiásticas o que é uma confusão infernal e diabólica Por outro lado há cristãos ingênuos e idealistas que tentam introduzir o Evangelho em esferas em que só a lei é adequada os entusiastas e fenáticos religiosos com destaque para os anabatistas que não podem ver a mão generosa de Deus no mundo temporal e assim tentam integrar o secular ao espiritual pelas mais louváveis razões Também eles estão enganados e embora involuntariamente são tentes da confusão do diabo Um homem que se aventurasse a governar uma comunidade inteira ou o mundo com o Evangelho seria como um pastor que deve colocar juntos em um rebanho lobos leões águias e carneiros e dizer Sirvamse e sejam bons e pacíficos entre vós o rebanho está 2 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 Calvinr IV XX 2 16 Ibid III xix 15 17 Luther Commentary on Psalm 101 AE XIII 194 18 Ibid p 195 19 Luther Gaktiam p 123 abeno há comida em abundância não tenham medo de cães ou porretes As ovelhas decerto manteriam a paz e permitiriam que fossem alimentadas e governadas em paz mas não viveriam muito tempo Agindo por meio dos presunçosos e dos ingênuos o diabo consegue o que quer O povo os bispos e todo o papado deveriam cuidar do Evangelho e das almas Mas ao contrário governam nos assuntos mundanos travam a guerra e buscam a riqueza tem poral o que em sua astúcia deleitamse em íàzer Igualmente os monarcas seculares de veriam cuidar de seu governo mas ao invés Asso comparecem à Igreja ouvem a Missa e são de todo espirituais Assim neste exato momento estão imiscuídos em questões do Evangelho e seguindo o exemplo do papa estão proibindo o que Deus ordenou como por exemplo ambos os tipos no Sacramento a liberdade cristã e o casamento Em geral os resultados dessa virtude sâo evidentes também nas dietas imperiais desta forma os assuntos essenciais são adiados ou muitas vezes simplesmente omitidos É preciso no entanto acrescentar que Lutero certas vezes transgride suas pró prias convicções como quando argumenta que se cada homem tivesse fé náo haveria necessidade de mais leis desta forma de modo ilegítimo transferindo a doutrina do Evangelho relativa à liberdade espiritual para a ordem civil com o pretexto de que o homem de fé pode ter total independência do governo secular neste mundo 3 A Igreja e o Estada Os dois reinos não são idênticos à Igreja e ao Estado mas o governo político per tence por completo ao domínio temporal e é criado apenas para os fins da presente vida transitória Embora possa mostrar ao homem sua necessidade de perdão não pode mediar a justificação como pode a Igreja No entanto é uma instituição neces sária em um mundo caído criado por Deus como um instrumento de Sua vontade e que extrai sua autoridade diretamente dEle não por meio do papa da Igreja ou do homem Neste aspecto os reformadores concordam com os teóricos antipapistas medievais tais como Wyclif e com Marsílio e Occam exceto na medida em que esses pensadores falavam da soberania popular O governo temporal para os reformadores bem como para os antipapistas medievais tem uma dignidade muito real Lutero considera que com esta ênfese está restaurando algo há muito perdido por causa da confusão medieval entre os dois reinos de modo que pode escrever Poderia vanglo M a r t in h o L u t e r o e J o ã o C a lv in o 2 9 3 20 LuAer Secular Authority to what extent it should be obeyed PE III 237 21 LuAer Psalm 101 AE XIII 174 22 LuAer O f Good Works PE I 199 Calvin Ins III xix 15 23 O termo o Estado é usado aqui e em todo este capítulo simplesmente como sinônimo de go verno civil 24 Calvin Sermon I Tim 61316 CR LIII 618 riarme de que desde o tempo dos Apóstolos a espada temporal e o governo temporal nunca foram de forma táo clara descritos ou tâo enaltecidos como por mim O termo Igreja é um tanto ambíguo Pode ser usado para se referir à Igreja Vi sível isto é o corpo empiricamente discernível dos batizados organizado em conjunto para a adoração instrução e irmandade e subordinado às autoridades religiosas um gru po que contém muitos que não estão de feto entre os Eleitos de Deus e que pode até mesmo excluir de sua companhia alguns dos Eleitos um corpo que é manifestamente imperfeito e mutável Ou pode referirse à Igreja Invisível o Corpo de Cristo eterno ao qual pertencem só os Eleitos aqueles que são justificados pela fé cuja verdadeira compo sição é conhecida somente por Deus A Igreja Invisível é incorruptível eterna e idêntica à da comunhão dos santos Ambos os reformadores seguiram Xdif e Marsílio ao negar que a Igreja deve ser pensada como a hierarquia eclesiástica ou a classe sacerdotal Todos os cristãos pertencem ao estado espiritual e o ministério ou classe sacerdotal é apenas uma íimção específica dentro do sacerdócio corporativo de todo o corpo de fiéis Embora tanto Lutero como Calvino insistissem energicamente na independên cia mútua entre Igreja e Estado é importante perceber que com isso querem dizer coisas bastante diferentes Lutero como Wyclif e Hus antes dele enfatiza muito a invisibilidade da Igreja e não se preocupa demais com a sua independência terrena exceto com relação à doutrina à pregação e aos sacramentos O governo secular pode organizar a comunidade política externa da Igreja como lhe parecer mais conveniente pode fazer o que bem quiser com os bens da Igreja e as autoridades temporais se cristãs podem até ser reconhecidas como bispos com autoridade sobre os assuntos externos da Igreja visível afora os três aspectos supramencionados Calvino por outro lado insiste muito mais na visibilidade da Igreja Para ele a verdadeira forma de organização da Igreja bem como a doutrina verdadeira encontramse nas Escrituras que também dão orientação positiva para o comporta mento exterior dos homens cristãos O controle sobre a moralidade externa não pode ser entregue de todo ao Estado a Igreja também deve exercer sua disciplina com suas próprias sanções peculiares sobre seus membros destacandose a excomunhão e mesmo que sejam governadores ou governantes na esfera secular como cristãos estão sujeitos à disciplina da Igreja Disciplina e comunidade política são para Calvino as fontes primordiais da Igreja e pertencem à essência da fé Tanto Igreja como Estado preocupamse com a manutenção da moralidade externa mas procedem de diferentes formas adequadas às suas diferentes naturezas Para Lutero disciplina e comunidade política sáo indiferentes no que tange o reino da salvação 294 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 25 Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 35 26 Wyclif Select English Works ed Amold III 447 Tractatus de Ecclesia ed Loserthnífw Calvin Prefatory Address ofthe Institutes to the King ofFrance sec 6 etc Luther To the Christian Nobility of the German Nation PE II 61 segs 27 Luther To the Christian NohiUiy o f the German Nation p 68 28 Calvin Ins IV i 7 29 Ibid xi 1 3 xii Vemos então que tanto Lutero como Calvino insistem na independência entre Igreja e Estado mas traçam a linha divisória entre essas duas hierarquias em pontos muito diferentes O território em disputa cobre a maior parte do funcionamento ter reno da Igreja e noudamente a forma de oianização externa da Igreja Para Lutero poucas orientações de caráter vinculatório quanto ao governo da Igreja são encontra das nas Escrituras o que o predispõe a aceitar grande parte do que é tradicional ou parece ser vantajoso nas circunstâncias Para Calvino a comunidade política da Igreja deve conformarse às Escrituras e nem a tradição nem o governo temporal devem ter permissão para exercer autoridade nessa área Ora se essa área controversa for entregue ao Estado como quer Lutero tornase cada vez mais difícil para a Igreja manter a sua própria autonomia ou melhor teonomia mesmo dentro do que Lutero reconhecia como a esfera própria da Igreja E se for concedida a esu última como quer Calvino a Igreja será constantemente tentada a ampliar a esfera da disciplina de modo a afir mar sua superioridade e autoridade sobre o Estado Em tese embora nem sempre na prática ambas as tentações são rejeitadas pelos reformadores Embora divirjam na delimitação das duas esferas concordam que são se paradas e não devem ser confundidas Mas isso não significa que a Igreja e o Estado não devam cooperar Cada um é auxiliado em seu trabalho correto pela existência e apoio do outro A ordem civil é necessária para o bemestar da Igreja escreveu Calvino como título do capítulo sobre o governo dvil na primeira edição das Institutos e por outro lado a existência de uma Igreja pura é itajosa para o Estado pois todos confessam que nenhum Estado pode ser estabelecido com êxito a menos que a piedade seja sua primeira preocupação Igreja e Estado são como os gêmeos de Hipócrates quando um deles está doente o outro adoece também e só juntos é que podem ter saúde Podemos preencher alguns dos detalhes da cooperação entre Igreja e Estado ao contemplar as funções que Lutero e Calvino atribuem aos poderes espirituais e tem porais respectivamente Para ambos reformadores o governo temporal preocupase não apenas com a manutenção da vida social e da moral externa mas também tem responsabilidade pela manutenção da verdadeira adoração e serviço de Deus O Es tado tem o direito e de fiito a obrigação se for necessário de purificar e reformar a Igreja de acordo com a Palavra de Deus restaurandolhe a forma da verdadeira Igreja uma parte essencial da qual devemos lembrar é a independência da Igreja e sua dis tinção do poder secular Esta afirmativa pode parecer negar a separação entre Igreja e Estado mas dois aspectos devem ser observados em primeiro liar a ingerência do poder secular no reino próprio da Igreja não importa como se define esse reino é uma ação emergencial e não uma característica regular e em segundo lugar a autoridade temporal está habilitada a intervir apenas para restaurar para a Igreja o Cristianismo do Novo Testamento O príncipe piedoso é obrigado a restaurar a forma e a função que a Igreja tem nas Síradas Escrituras caso contrário sua intervenção é totalmente M a r t in h o L u t e r o e J oAo C a l v in o 2 9 5 30 Ibid XX 9 31 GJvin HomiUes on I Samuel 38 CR XXDC 659 íltim a A relação adequada e normal entre Igreja e Estado é o apoio e encorajamen to mútuos entre dois iguais O Estado portanto tem uma dupla função Tem deveres tanto para com a co munidade civil como para com a Igreja Tanto Lutero como Calvino veem o governo primordialmente como um dique contra o pecado ou um remédio para os vícios Lutero reluta um pouco como teólogo em dizer muito sobre como o Estado deve re primir o mal exceto nos termos mais gerais mas Calvino náo hesita em entrar em de talhes precisos o governo temporal existe para adaptar nossa conduta à sociedade hu mana para adequar nossos costumes à justiça civil para conciliarnos uns aos outros para acalentar a paz e a tranqüilidade geral Deve cuidar dos pobres deve erguer escolas e pagar os professores deve cuidar das universidades e assim por diante Com relação à Igreja visível o Estado deve fornecer apoio material para os pastores e o culto da comunidade cristã deve promover e manter o culto extemo de Deus de fender a sã doutrina e a condição da Igreja Deve cuidar para que nenhuma idolatria nenhuma blasfêmia contra o nome de Deus nenhuma adúnia contra a Sua verdade nem outras ofensas à religião brotem e sejam disseminadas entre o povo em suma que uma forma pública de relão possa existir entre os homens Mas o Estado não tem poder de arbítrio ou o direito de decidir o que é a sã doutrina ou a verdadeira Igreja Em tais assuntos deve aterse ao ensino claro da Palavra de Deus Contudo mesmo que os ensinamentos das Sagradas Escrituras sejam tão inequívocos como acredita Calvino é difícil aiumentar que no nível prático cons manter a distinção entre Igreja e Estado de modo tão claro quanto deveria de acordo com suas próprias premissas Sempre foi difícil separar com clareza as esferas da Igreja e do Estado e Lutero e Calvino como vimos não concordam inteiramente no que se refere a esta questão Ambos porém restringem a Igreja de modo muito mais rigoroso que o padrão medie val e o fàzem com o fundamento de que só assim pode a Igreja ser a Igreja e o Esudo ter a dignidade e autoridade que são corretamente os seus Não desejam ser ligados à doutrina das duas espadas ou a qualquer tipo de cesaropapismo Só pode haver uma espada e esta pertence apenas ao governo secular O governo espiritual nega sua pró pria natureza quando usurpa a função própria do governo secular e o inverso também é verdadeiro Em um sentido mais profundo Igreja e Estado juntos formam uma uni dade na medida em que ambos são expressões da soberania de Deus mas é um erro desastroso tentar concretizar essa unidade de modo prematuro Igreja e Esudo devem colaborar é verdade mas apenas como servos de Deus sepaudos porém iguais 4 Teologia e Política A teologia e o ensino laico como a Igreja e o Esudo devem restringirse às suas esferas adequadas Nem a teologia nem a filosofia são agora a Rainha das Ciências 2 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 32 Calvin Ins IV xx 2 33 Calvin Letter to the King ofEngland CR XTV 40 34 Calvin Commentary on Isaiah CR XXXVII 211 Ins IV xx 2 3 mas cada uma delas é uma rainha dentro dos limites de seu próprio terreno O teólo go náo pode pretender ser uma autoridade em tudo deve reconhecer as limitações de sua competência Por que deveria eu ensinar um alfaiate a fàzer um terno pergunta Lutero Ele sabe fazêlo por contra própria Vou apenas dizerlhe como fàzer bem o seu trabalho de maneira cristã O mesmo acontece com o príncipe Vou apenas dizer Ihe que deve agir como cristão A teologia ocupase de questões de fé e sua autoridade são as Sagradas Escrituras que em sentido algum se propõem ser um livro didático para os políticos como não o são para o alfàiate Nos escritos apostólicos não devemos procurar uma exposição diferente dessas questões pois seu objetivo não é estabelecer uma comunidade políti ca mas fundar o reino espiritual de Cristo No entanto é preciso que o teólogo diga ao político que deve agir como cristão e as Sagradas Escrituras têm muito a dizer sobre o comportamento dos governantes Nem Lutero nem Calvino hesitavam muito em aconselhar e repreender governantes muitas vezes em termos muito francos A limitação que colocam sobre a teologia pa rece ser esta a teologia não pode oferecer orientação infelível para todos os dilemas da vida política nenhum modelo universalmente válido de sociedade ideal e o teólogo como tal não tem nenhuma qualificação específica para o exercício do poder político Tais questões não podem ser mais do que periféricas à teologia A teologia não pode substituir a arte ou a ciência da política A filosofia política não pode ser absorvida pela teologia tal como o Estado não pode ser absorvido pela Igreja Deveria porém haver uma espécie de diálogo mesmo que apenas para garantir que nenhum dos dois ultra passasse os limites Que a filosofia política jamais sugira que pode penetrar no reino celestial de Deus nem a teologia que pode governar o reino deste mundo Se a orientação política a ser recebida pela teologia e pela Sirada Escritura é necessariamente limitada e insuficiente a quem devemos recorrer para obter orienta ção A atividade política dizemnos é baseada na razão e não na revelação Conforme explica Lutero Deus fez o governo secular sujeito à razão porque não terá jurisdição sobre o bemestar das almas ou questões de valor eterno mas apenas sobre os bens corporais e temporais que Deus colocou sob o domínio do homem Por esse motivo nada é ensinado no Evan gelho sobre como deve ser mantido e regulado o governo secular exceto que o Evangelho ordena que o povo honreo e não se lhe oponha Portanto os infiéis podem fàlar sobre tais assuntos e ensinálos muito bem como já o fizeram E para dizer a verdade são muito mais hábeis em tais assuntos que os cristãos Quem quiser aprender e tomarse sábio no governo secular que leia os livros e escritos pagãos M a r t in h o L u t e r o e J oAo C a l v in o 2 9 7 35 Luther m lOiü 38010 36 Calvin Ins TV xx 12 37 Luther Psam lOI AE XIII 198 Se desejarmos orientação na política devemos nos voltar não tanto para as Escri turas como para a experiência para a razão que generaliza a história sagrada e profana a tradição e a íilosoíia O próprio Aristóteles a quem Lutero rotulou como esse pagão maldito vaidoso embusteiro quando avaliou sua influência sobre a teologia torna se uma autoridade de grande reputação quando é político o assunto em debate Estou convencido de que Deus deu e preservou livros pãos tais como os dos poetas e historiadores como Homero Demóstenes Cícero Tito Lívio e mais tarde os melhores juristas de antanho para que os pagãos e ateus também possam ter seus profetas apóstolos e teólogos ou pastores para seu gpverno secular Assim tinham eles Homero Aristóteles Cícero Ulpiano e outros tal como o povo de Deus tivera seus Moisés Elias Isaías e outros e seus imperadores reis e príncipes como Alexandre Augusto etc foram seus Davis e Salomóes Mas a capacidade de governar bem não é apenas o resultado do estudo dos livros e exemplos corretos A razão e o juízo político não foram distribuídos igualmente entre os homens Governar é uma arte especializada para as quais são necessários extraor dinários dotes pois não é apenas uma questão de seguir regras e princípios Mujto poucos são os inovadores políticos verdadeiramente originais os viri heroici o político médio é obrigado apenas a remendar e cerzir e ajudar a si mesmo com leis provérbios e exemplos dos heróis tal como registrados nos livros C O Q u e é o H o m e m 1 Corrupção O homem como já vimos é um ser caído Criado originalmente à imsem de Deus rebelouse contra seu Criador e pela Queda esta imagem sofreu radical distor ção tornandose impossível de reconhecer O homem a criatura de Deus que estava destinada a desfrutar da comunhão permanente com o seu Criador tornouse distante e alienado Onde deveria haver ordem encontrase ora a desordem onde estaria a harmonia a contenda Desde a Queda o homem pertence a dois reinos e não um e em ambos se vislumbram as conseqüências deletérias da corrupção e do pecado Por nutrirem tais opiniões os reformadores com justíça suspeitam da grande escuridão dos filósofos que procuraram um edifício em uma ruína e instalaram a organização na desordem Uma teoria da natureza humana derivada da observação empírica não pode deixar de projetar uma imagem radicalmente falsa que se baseia no homem caído que pela namreza corrompida não tem nem preceitos corretos 2 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 38 LuAer To the Christian Nobility ofthe German Nation PE II 146 39 LuAer Psalm 101 AE XIII 199 40 Ibid p 164 41 Calvin Ins I xv 8 nem boa vontade Uma doutrina racional a priori da natureza humana por outro lado não estaria em melhor situação pois estaria envolvida na corrupção e limitação da razão humana A razão e a observação podem revelarnos muitos fetos interessantes e úteis mas são totalmente incapazes de construir uma teleologia válida Por si só não podem dizernos nada de valor sobre a origem e o destino do homem Podem descrever a ruína e até mesmo instruirnos sobre como mantêla e conservála e esta é uma função importante e útil mas somente a revelação pode descrever o edifício concluído e supervisionar sua restauração Mas o que queremos dizer quando dizemos que a razão foi corrompida Calvino entra em uma polêmica com os filósofos que diz ele em geral afirmam que a razão habita na mente como uma lâmpada que lança luz sobre todos os seus conselhos e como uma rainha rege a vontade que é tão imptnada de luz divina que se torna capaz de prestar consultoria para os melhores e tão dotada de vigor que é capaz de comandar de modo períèito e pelo contrário o juízo é embotado e míope rastejando entre os objetos inferiores e nunca atingindo a verdadeira visão que os apetites quando obedecem a razão e não se deixam sujeitar pelo juízo são transportados para o esmdo da virmde mantêm uma rota constante transfbrmamse em vontade mas quando escravizados pelo juízo são corrompidos e depravados de modo que deneram em luxúria Essa posição deve ser rejeitada por dois motivos ambos em grande parte basea dos na imitem detalhada da depravação humana percebida pela experiência cristã Por um lado embora a razão seja muitas vezes correta em afirmações genéricas via de regra é pervertida de modo sutil pelo orgulho e egoísmo nos conselhos particulares que dá e por outro lado existe no homem caído uma batalha constante entre a razão e a von tade O bem que eu queria que não feço mas o mal que não quero esse feço A vontade é escravizada e está em inimizade com a razão correta a razão tem objetivos elevados mas rápido se desvia para a futilidade Rejeitando assim o dogma comum de que o homem foi corrompido somente na parte sensual da sua natureza que a razão permaneceu inteira e pouco foi prejudicada Calvino retorna à doutrina das Escrituras e aos ensinamentos de S Agostinho No entanto acusar o intelecto de permanente cegueira de modo a nâo atribuir Ihe qualquer inteligência de qualquer tipo é repugnante não só para a Palavra de Deus mas para a experiência comum Embora a razão humana não seja confiável em teologia e seja um guia inadequado na esfera da salvação e em tais assuntos fra casse antes de atingir seu objetivo caindo de imediato na vaidade ainda tem seu liar correto e produz resultados importantes quando preocupada com objetos infe M a r t in h o L u t e r o e J o Ao C a l v in o 2 9 9 42 Luther Disputation against Scholastic TheoUgy Clause 34 AE XXXI 4 segs 43 Calvin Ins II ii 2 44 Ibid 4 45 Ibid 12 46 Ibid riores isto é os assuntos da esfera secular Como exemplos Calvino aponta questões de política e economia todas as artes mecânicas e as artes liberais Calvino em seguida faz a afirmação um tanto surpreendente de que uma vez que o homem é por natureza um animal social é disposto pelo instinto natural a valorizar e preservar a sociedade e portanto vemos que as mentes de todos os homens têm impressões de ordem civil e honestidade Desta forma Calvino parece argu mentar que os instintos sociáveis são um dos vestígios da imagem de Deus a verda deira natureza do homem que lhe é legada A total depravaçâo do homem diante do trono de Deus não significa que Deus lhe tirou todos os recursos para a vida no reino temporal No entanto náo se pode confiar que o homem caído use de modo correto sequer as quantidades de razão e instinto sociável que lhe foram legadas 2 Coerção Uma vez que o homem é alienado de Deus e hostil a Ele é preciso que seja co ibido para que seja possível a vida neste mundo O orgulho e o egoísmo do homem que o separam de Deus são ao mesmo tempo as raízes do conflito da hostilidade e da alienação entre os homens Fossem suficientes a razão a consciência a educação a harmonia e a iluminação do homem e não haveria necessidade de coerção Porém uma vez que o homem caído pouco sabe sobre Deus justiça ou bondade e uma vez que se recusa até mesmo a suir a luz que lhe resta a coerção precisa ser a base neces sária da vida social Todos os homens mesmo os homens justificados são pecadores que no reino terrestre têm de ser forçados a obedecer A obediência à autoridade é em si como veremos em detalhe um bem e é o único fundamento sobre o qual pode ser construída uma vida política e social estável O homem na sua inocência original não precisava de governo mas o homem caído deve ser subordinado e forçado a uma conformidade exterior com as regras necessárias da vida social pois se não é gover nado supera em ferocidade de longe todos os animais selvagens A coerção é ao mesmo tempo um fireio sobre o pecado um lembrete constante da natureza divina da lei moral e o meio pelo qual Deus em Sua misericórdia oferece ao homem a grande bênção da vida social pacífica D A A u t o r id a d e e s e u s L im it e s 1 O Estado como Servo de Deus Lutero e Calvino lutam em três frentes na tentativa de delimitar e descrever o governo secular Em primeiro lugar devem oporse aos fimáticos tal como os ana batistas que negam que haja lugar para o governo civil e emancipam os cristãos de 3 0 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ín c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 47 Ibid 13 48 Ibid Cf Luther Galatians p 490 49 Calvin CR XXX 487 qualquer tipo de obrigação para com o poder secular Em segundo devem refutar as reivindicações do papado para a absorção do poder secular pela Igreja Finalmente precisam refrear as pretensões dos governantes a quem Deus TodoPoderoso enlou queceu Acreditam que de fato têm o poder de comandar que seus súditos façam o que ordenarem presunçosamente puseramse no lugar de Deus assenhorandose da consciência dos homens e da fé e mandando o Espírito Santo para a escola de acordo com seus cérebros loucos Contra a opinião anabatista Calvino e Lutero provam teologicamente a neces sidade de governo civil como vimos Contra o papa têm de provar a autonomia do Estado sob Deus E contra os príncipes presunçosos precisam demonstrar a autono mia da Igreja sob Deus Já vimos um pouco dos argumentos dos dois reformadores em favor da neces sidade os limites e a independência do governo temporal A soberania de Deus no mundo é total A necessidade de governo temporal é correlativa à necessidade de que a vontade de Deus seja observada entre os homens pecadores seus limites são defini dos pelo fato de que a autoridade política é uma autoridade delegada subordinada e dependente da soberania de Deus sua autonomia terrena emerge de sua dependência direta da Vontade de Deus Em suma todo o poder político emana de Deus para servi Lo não há autoridade que não venha de Deus e as que existem foram ordenadas por Deus Ele o governante é o ministro de Deus Romanos 1314 Temos de estabelecer firmemente a lei secular e a espada para que ninguém duvide de que está no mundo pela vontade e ordem de Deus A origem do governo secular reside na vontade misericordiosa de Deus em proteger o homem de todas as conseqüências de sua desobediência e não na necessidade humana Sua autoridade é uma autoridade delegada por Deus e não pelo povo No pensamento de Lutero e Calvino não há absolutamente nenhum espaço para qualquer tipo de contrato social ou noção de soberania popular O governo secular é um comando de Deus para o bemestar dos homens em um mundo caído Nunca em caso algum deve ser entendido como um artefato de governo humano ou como sendo baseado no consentimento Deve sem pre responder a Deus pelo uso de seu poder e nunca apenas ao povo O Estado então é servo e operário de Deus na Terra É ali colocado para expressar o cuidado de Deus para com os homens para punir os maus e proteger os bons e para o bemestar da Igreja A coerção e o controle não são em si a razão de ser total nem o fim último do governo temporal Este existe para permitir ao homem uma maior aproximação à vida boa que é possível em um mundo caído Podemos dizer que serve o homem mas seria demasiado enganoso dizer que é o servo do homem Do ponto de vista do homem tem direito a todo o respeito pois ao lado do ofício da M artinho Lutero e J o ã o Calvino 3 0 1 50 Luther On Secular Authority PE III 230 51 Ibidp2ò 52 Calvin Commentary on Romam Edinburgh Calvin Translation Society 1844 1849 on 134 53 Luther On Secular Authority PE III 245 Calvin Ins IV xx 2 3 pregação é o mais elevado serviço de Deus e o mais útil ofício sobre a Terra Pode até mesmo ser chamado divino pois os governantes sugerem Lutero e Calvino sáo até algumas vezes chamados de deuses nas Escrituras p ex no Salmo 82 2 Formas de Governo A questão da forma e estrutura que o governo secular deve assumir como servo de Deus encontrase na fronteira delicada entre teologia e íilosoíia política e tanto Calvino como Lutero mostram sinais de malestar quando se sentem obrigados a íãlar sobre o assunto Obviamente algumas ideias teológicas e bíblicas são relevantes e mesmo necessárias para o tratamento desta questão mas é óbvio também que outros critérios além das Escrituras são adequados do ponto de vista funcional A clareza da divisão entre teologia e filosofia se turva pela tensão entre a negação dos reformadores de sua competência como teólogos nesta área e sua clara convicção de que mais uma vez como teólogos têm uma contribuição indispensável a dar para a discussão A legitimidade de sequer perguntar qual é a melhor forma de governo preocu pava Calvino em particular As autoridades sob as quais vivemos são servas de Deus ordenadas por Ele e isso torna presunçoso suscitar a questão de seu direito O fato de que existem é prova de que Deus as instalou no poder e portanto têm direito ao respeito e à obediência É bastante impróprio para o cidadão comum suscitar ques tões abstratas de direito E o empirismo astuto de ambos os reformadores se revela de modo nítido quando questionam o valor da especulação racional sobre esta ques tão A resposta depende das circunstâncias E embora o governo como tal seja um bem indispensável as várias formas de governo têm dentro de si tantas possibilidades para o bem e o mal que é praticamente impossível discernir qual é a melhor Este assunto é de fato periférico para os reformadores É essencial algum tipo de governo para a vida social e um bom governo pode trazer muitas bênçãos tem porais para os homens Contudo mesmo a mais cruel das tiranias pagãs é impotente para extinguir a chama da fé No entanto ambos os reformadores vão além de dar conselhos aos governantes sobre o modo como devem comportarse como cristãos e aportam percepções teológicas pertinentes ao problema de qual é a melhor forma de Estado Param antes de construir um estado ideal em parte porque não veem isso como a função do teólogo ou do cidadão privado em parte porque suspeitam que um projeto como este seja presunçoso e tenda a uma glorificação do Estado em si e a uma desconsideração de sua função transitória e limitada A doutrina da perversidade do homem é a principal contribuição da teologia neste campo e atua como um freio sobre qualquer tipo de utopia Entretanto são radicalmente diferentes as conseqüên cias detalhadas a que chegam Lutero e Calvino a partir deste princípio 3 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 54 Luther Commentary on Psalm 82 AE XIII 51 Cf Ins IV xx 25 55 Calvin Ins IV xx 8 Romans 1313 Commentary on I Peter Edinburgh Calvin Ttanslation Society 1855 on 21314 Luther A TreatiseofGoodWorks PE I 263264 Lutero percebe a corrupção da natureza humana como inevitavelmente ampliada em uma coletividade e por conseguinte como um argumento poderoso em fàvor do governo monárquico Se é preciso sofrer injustiça é melhor sofrêla dos governantes de que os governantes sofreremna de seus súditos Pois a multidão não tem moderação e não a conhece e a cada indivíduo aderem mais de cinco tiranos Ora é melhor sofrer a injustiça de um tira no isto é a partir do governante do que de inúmeros tiranos ou seja da multidão Lutero náo distingue de fàto entre a democracia e o governo da multidão que enxerga como a negação de todo governo ordenado A multidão não pode jamais ser ou cristã ou verdadeiramente razoável A fé a justiça e a razão podem pertencer a indivíduos mas nunca à multidão que em tudo se excede A monarquia permite a possibilidade de que governe um príncipe cristão justo e razoável porém mesmo a tirania e a irracional selvageria de um mau príncipe não pode ser tão ruim quanto o domínio da multidão O respeito e a obediência para com a autoridade secular é um prérequisito da vida social estável mas não pode sobreviver no ambiente da democra cia A monarquia é a melhor forma de governo mas não necessariamente a monarquia absoluta pois Lutero não hesita em colocar limites morais e religiosos sobre o exercício do poder político e está disposto a reconhecer o valor das travas constitucionais tais como as da Dieta Imperial visàvis o Imperador sobre o monarca A partir do princípio da depravaçâo do homem Calvino chega a sua primeira conclusão que os governantes devem ser governados ou em outras palavras que de veria haver algum sistema de freios e contrapesos Assim embora admita que todas as formas de governo têm pontos fracos e susceptíveis de perversão dá preferência a algum tipo de governo aristocrático quer com base na chancela popular ou não por que devido aos vícios ou defeitos dos homens é mais seguro e mais tolerável quando vários governam para que possam assim mutuamente resistir instruir e admoestar uns aos outros e se alguém estiver disposto a ir longe demais os demais serão os cen sores e mestres que refrearão seu excesso Calvino não crê que freios e contrapesos no exercício do poder político agindo dentro do governo sejam capazes de de alguma forma enfraquecer a soberania de Deus na verdade são um freio constante para ten dência inerente aos governantes de presunção contra Deus e tirania sobre os homens A liberdade e uma constituição republicana são grandes bens Mas são dádivas de Deus e não podemos exigilas ou definilas ou tentar obtêlas por nós mesmos O cristão não deve ser um revolucionário utópico Calvino valoriza a eleição popular com salvardas contra o excesso A eleição é uma característica da Igreja devidamen te ordenada e também um grande privilégio e responsabilidade quando é ampliada para a esfera do governo secular Mas em nenhum dos dois casos Calvino idolatra M artinho Lutero e J oAo Calvino 3 0 3 56 Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 45 57 Ibid p 4548 50 On Secular Authority PE III 237 Psalm 101 AE XIII 16061 58 Calvin Ins IV xx 8 Cf Sermons on Deuteronomy CR XXVII 45360 a democracia e não vê utilidade nas noções de soberania popular Na Igreja uma eleição conduzida de modo adequado pode ir além de reconhecer o chamado anterior de Deus sobre um indivíduo para um ministério específico e no Estado o processo eleitoral é da mesma maneira o simples reconhecimento de que Deus elevou uma pessoa adequada para um determinado cargo O poder e a autoridade emanam de Deus e não dos eleitores e um m estrado eleito tem direito a obediência e respeito em nada inferiores ao de um soberano hereditário A liberdade e o direito de eleger seus próprios governantes são bons mas não de importância máxima pois como Calvino insiste em nos lembrar Não importa qual sua condição entre os homens nem sob que leis vive já que neles o Reino de Cristo não existe 3 Que Toda Alma Esteja Sujeita às Autoridades Superiores Uma vez que a autoridade política é serva e representante de Deus por lhe ser mos obedientes estamos sendo obedientes ao próprio Deus Os homens deveriam obedecer aos governantes como Seus ministros e sujeitarse a eles com todo o temor e reverência como diante do próprio Deus Um mau magistrado até mesmo um tirano deve ser obedecido O direito do príncipe à obediência nâo está condicionado a seu cumprimento de seus deveres para com seus súditos tal como em Occam e Marsílio nem mesmo depende de sua situação diante de Deus cujo procurador é tal como em Wyclif Devemos a nossos governantes não apenas nossa obediência mas também nossas preces e notese nossa crítica franca caso seja necessária Este dever de obediência é formulado de modo claro nas Escrituras Sagradas como em Roma nos 13 Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores Por isso quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação Pelo que é necessário que lhe estejais sujeitos não somente por causa da ira mas também por causa da consciência Este comando claro e inequívoco de Deus expresso nas Escrituras Sagradas é concebido em si mesmo como um motivo plenamente adequado para a obrigação da obediência Entretanto muitos motivos subordinados são citados por Lutero e Calvino para mostrar que aqui a vontade de Deus coincide com o bem do homem Nenhum governo pode ser de todo ruim e qualquer governo conquanto corrupto é melhor do que nenhum governo A forma de governo civil independente da defor midade e da corrupção que possa ter é sempre melhor que a ausência de autoridade principesca Assim como o mau comportamento de uma das partes em uma deter minada situação não justifica a ruptura do instituto do casamento assim o mau com portamento do príncipe não justifica a rebelião que é interpretada como um ataque 3 0 4 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 59 Calvin Ins IV iii 1315 60 Ibid XX 1 61 Luther Psalm 82 AE XIII 44 62 LuAer WA LII 189 Calvin Commentary on Psalm 82 on vs 2 63 Calvin Commentary on 1 Peter on 214 ao governo como tal Em segundo lugar cada povo recebe o governo que merece um bom governante manifesta a graça de Deus um tirano Sua ira Devemos ser gratos por um bom governo mas nenhuma tirania pode expressar um juízo maior do que merecem nossos pecados Em terceiro sofrer a injustiça náo destrói a alma de ninguém ao contrário melhora a alma embora cause perda sobre o corpo e a propriedade mas cometer injustiça por exemplo resistir isso destrói a alma embora se possam obter todas as riquezas do mundo Pois o poder temporal náo pode causar nenhum dano pois nada tem a ver com a pregação e a fé e os três primeiros Mandamentos A obediência a um governante injusto pode ser uma cruz que devemos carregar neste mundo Retribuir o mal com o mal seria para o cidadão comum desobedecer a Deus e prejudicar sua própria alma A resistência envolve a usurpação desautorizada do poder de julgamento e condenação de Deus e é portanto ilegítima cf seção F23 adiante Finalmente na obediência reside o fundamento necessário para toda a vida social estável Lutero não se envergonha de pintar até os tártaros e os persas como exemplos de quanto contribuem para a construção de sociedades fortes e saudáveis os hábitos de obediência profundamente arraigados Porém apesar de tudo o cristão pode rir na cara do tirano no momento exato em que o obedece pois sabemos que se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer temos de Deus um edifício uma casa não feita por mãos eterna nos céus II Coríntios 51 ou como proclamou Lutero em um de seus grandes hinos Sim que a Palavra vencerá Sabemos com certeza E nada nos assustará Com Cristo por defesa Se temos de deixar Parentes bens e lar Embora a vida vá Por nós Jesus está E darnosá Seu reino 4 Devemos Obedecer a Deus e não aos Homens Não se deve entender a doutrina de obediência dos reformadores apenas como uma interpretação de Romanos 13 para atingir um equilíbrio e evitar distorcer o testemunho das Escrituras devemos atentar também para trechos como as palavras de Pedro perante o conselho Importa antes obedecer a Deus que aos homens Atos 529 É relevante determinar quando se pode ou deve desobedecer as autoridades M a r h n h o L u t e r o e J oAo C a lv in o 3 0 5 64 Luther A Treatise o f Good Works PE I 263 65 Luther Eirifeste Burg trans Thomas Carlyle 66 NT Hindrio Adventista do Sétimo Dia Tatuí SP Casa Publicadora Brasileira 6 ed 2009 superiores uma vez que a desobediência às autoridades constituídas não é uma ques tão superficial como vimos A decisão não pode ser deixada nas mãos de caprichos individuais nem ao indivíduo oísta A injustiça a tirania e a opressão em si não constituem desculpas para a desobediência Também não estamos autorizados a deso bedecer porque a obediência nos causará sofrimento No entanto somos sujeitos aos homens que nos governam mas somente no Senhor Se comandarem algo contrário a Ele não Úies daremos a menor atenção Não se justifica violar o daro mandamento de Deus a fim de obedecer aos homens Na elaboração das implicações deste posicionamento é importante não esquecer a distinção entre os dois reinos Um magistrado que se recusasse a condenar um cri minoso alegando que Cristo disse Não julgueis para que não sejais julgados não es taria obedecendo a Deus e nem aos homens estaria apenas confimdindo o Evangelho com a lei Estaria na verdade desobedecendo a lei divina do amor expressa de forma adequada a sua situação Mas Lutero dá dois exemplos específicos de situações em que seria permitida a desobediência A primeira é quando somos chamados a cometer um ato de clara injustiça contra outros Assim se um príncipe desejasse entrar em guerra e sua motivação fosse manifestamente injusta não deveríamos suilo nem auxiliálo uma vez que Deus ordenou que não devemos matar nosso próximo nem cometer injustiça contra ele Da mesma brma se nos ordenasse dar felso testemunho roubar mentir ou enganar e assim por diante Aqui devemos desistir de bens honras corpo e vida para que prevaleçam os mandamentos de Deus Devemos sofirer a injustiça sem reclamar mas em hipótese alguma nos tornar mos parceiros dela e a norma a ser aplicada para determinar o que é justo é a lei divina e natural apresentada de modo perfeito nas Escrituras e aplicada pela razão e pela cons ciência a situações específicas O segundo caso de desobediência justificável é quando os poderes seculares extrapolam sua esfera própria e ousam prescrever em questões de crença e culto contrariamente à Palavra de Deus assim assenhorandose da consciên cia dos homens e da fé e mandando o Espírito Santo para a escola de acordo com seus cérebros loucos Neste caso não lhes daremos a menor atenção E mais uma vez devese nour que o critério para a desobediência justificável não é apenas a consciência pessoal do indivíduo nem seus sentimentos piedosos nos quais não se deve confiar a menos que sejam enraizados na Palavra de Deus Contudo enquanto a desobediência é permissível e de fato obrigatória em tais situações a resistência violenta nunca é Resistir à espada seria confundir os dois reinos presumindo que o reino espiritual encontre justificativa em assumir a espada que devidamente só pertence ao reino temporal Na ausência de qualquer teoria de 3 0 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph C ropsey 67 Calvin Ins IV xx 32 Italics supplied 68 LuAer OfGood Works PE I 271 69 LuAer On Secular Authority PE III 230 contrato social soberania popular ou governo por consentimento não há íimdamen tos para os súditos tentarem mudar o governo por meio da violência Os comandos do governante temporal que forem claramente contrários à Palavra de Deus serão em si mesmos ilegítimos mas nem mesmo uma concatenação de tais atos destrói a autoridade do governo como tal ou justifica a rebelião ou mesmo a ameaça da força como Calvino sempre assinalou de modo categórico em suas cartas aos protestantes franceses perseguidos A desobediência referese a comandos específicos a resistência visa a derrubada da autoridade O que então deve fazer o cristão quando confrontado por um governo que constantemente tenta obrigálo a desobedecer a Palavra de Deus e o persegue por seus escrúpulos Três possibilidades lhe estão abertas Em primeiro lugar se a desobediência envolve grande sofrimento pode ser possível fugir para outro estado menos tirâni co obedecendo a determinação de Mateus 1023 Quando porém vos perseguirem numa cidade frigi para outra Em segundo se a fuga é por uma razão ou outra desa conselhável ou impossível devese simplesmente sofrer recusandose tanto a obedecer os comandos ilegítimos como a desobedecer a Deus por resistir com violência à auto ridade secular Em terceiro tanto Lutero como Calvino debtam uma pequena brecha que parece apresentar uma justificação condicional para a resistência em determinadas circunstâncias bem definidas Lutero ao menos no fim da vida estava preparado para admitir que o direito positivo imperial possibilitou conceber a resistência legítima ao imperador por parte dos príncipes eleitores em um determinado número de casos Calvino por sua vez argumenta no mesmo sentido Ora se houver alguém que hoje for eleito magistrado nomeado para moderar a licen ciosidade dos príncipes como os éforos que um dia puseramse contra os reis esparta nos ou os tribunos do povo contra os cônsules romanos ou os arcontes contra o Sena do ateniense e possivelmente é o mesmo poder que os Três Estados empregam hoje em todos os reinos sempre que se reúnem como uma assembleia de notáveis então longe mim de proibirlhes suportar em sua função oficial a feroz licenciosidade dos Príncipes que se conspirarem indefesos na opressão do Príncipe e tormento dos cidadãos mais humildes eu os declararia culpados de violação criminosa da fê porque enganosamente traem a liberdade do povo do qual se sabem os guardiões desados por Deus preciso entender bem esta breve passagem que viria a ter conseqüências fu nestas para o desenvolvimento posterior do pensamento político calvinista Os ms trados subordinados fezem parte do governo civil mas mesmo se eleitos não são de modo algum os representantes da soberania popular Sua autoridade como a do prín cipe vem de Deus e deixar de usála para a sua finalidade pretendida de assegurar o bem comum mesmo quando implicar uma resistência ao monarca é ser desobediente a Deus e atrair seu julgamento Sequer é feita a pergunta se o povo em geral tem direito M a r t i n h o L u t e r o e J o ã o C a lv in o 3 0 7 70 NTi Dêmarchos Archontes ou Arcontes do povo 71 Calvin Ins IV xx 31 trans D E a apoiar pela força os magistrados subordinados ou a assembleia política contra a monarquia Calvino consideraria esta uma questão muito difícil de responder Aqueles que sofrem com paciência sob um tirano injusto devem lembrarse de que Deus é seu juiz e que este não pode escapar da condenação de Deus O modo como este julgamento é expresso será apresentado na seção F 5 Tolerância É impossível descobrir nos escritos de Lutero uma abordagem coerente para a questão da tolerância e da liberdade religiosa Mesmo se pudéssemos com justiça asseverar que seu pensamento se desenvolve em geral a partir de uma tolerância razo ável da dissidência em seu período inicial chegando a uma veemente adesão à perse guição na parte final de sua vida ainda sobejam contradições e é impossível interpretar a maioria de suas afirmações sobre esta questão como algo além de reações impulsivas e muitas vezes impensadas a situações particulares Lutero nega aos papistas o direito de perseguilo e ao mesmo tempo se regozija em ser perseguido pois esta é uma marca necessária da verdadeira Igreja Não tenho medo porque muitos dos grandes perseguemme e me odeiam Pelo contrário sou consolado e fortalecido já que em todas as Escrituras perseguidores e inimigos em ge ral estão errados e perseguidos certos A maioria sempre apoia a mentira e a minoria a verdade Todavia mais tarde quando a maioria o apoiava este princípio foi des cartado e Lutero não hesitou em defender com as palavras mais duras a perseguição de indivíduos dissidentes como Carlstadt e Münzer ou grupos como os camponeses anabatistas rebeldes e os judeus No período inicial falou muito da necessidade de deixar a Palavra livre para realizar sua própria obra e da impossibilidade da fé imposta e por este motivo defendeu a tolerância geral com a convicção de que prevaleceria a verdade A tolerância da heresia acreditava poderia avivar ao invés de enfiaquecer a fé O Espírito escreveu que os jebuseus e cananeus deveriam ser deixados na terra prometida para dar aos israelitas prática na guerra Isso se refere aos hereges E a tolerância deve ser concedida até mesmo aos judeus 3 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 72 As atitudes dos reformadores quanto à tolerância sáo apresentadas e discutidas com grande discer nimento e equilíbrio nas obras de R H Bainton em particular em seu artigo a respeito do de senvolvimento e a coerência da atimde de Lutero quanto à liberdade religiosa The Oevelopment and Consistency of Luthers Attitude to Religious Dberty The Harvard Theological Review v XXII n 2 na introdução de sua edição da obra de Castellio Conceming Heretics New York Co lumbia University Press 1935 bem como em seus livros The Tmvail o f Religious Liberty London Lutterworth Press 1953 e Hunted Heretic The Life and Death ofM ichael Servetus 15111553 Boston Beacon Press 1953 Os parágrafos que se seguem dependem muito dessas obras das quais são feitas muitas citações 73 WA 7317 1521 74 m 1624 f 1518 75 WA 2336 1523 Sua atitude para com os judeus seguidores de Roma e seitas dissidentes enrije ceuse com rapidez e suas justificativas da perseguição assumem várias formas muitas vezes contraditórias Em Sermão das boas obras 1520 estabelece que um príncipe é um exemplo para o povo pois o povo simples crerá como ele É portanto seu dever crer e manter a verdadeira religião e o príncipe não tem poder para decidir qual é a verdadeira religião No Comentário sobre o Salmo 86 1530 discute quais hereges devem ser perseguidos e conclui que o poder secular deveria punir aqueles que por motivos religiosos negam a dignidade e a autoridade do governo civil e também aque les que negam as doutrinas que se encontram evidentes nas Escrituras e são aceitas em toda a cristandade pois se trata de uma blasfêmia Ao falar do conflito entre luteranos e católicos romanos Lutero convida o governante secular a julgar entre eles com base nas Escrituras e a ordenar que o partido não bíblico simplesmente mantenha silêncio Entretanto por vezes Lutero é muito mais abrangente e sanguinário em suas exigên cias para a punição de seus adversários Certas vezes íàla sobre a pena de morte para os papistas e os anabatistas outras defende que é suficiente o banimento De qualquer forma porém a Palavra deve ser apoiada pela espada do magistrado civil Algumas das afirmações de Lutero podem ser descartadas como óbvios exageros retóricos porém seria bastante difícil argumentar que nesta matéria Lutero não cria uma confusão infernal entre os dois reinos que distingue de modo tão claro em outros lugares A posição de Calvino é muito mais estável que a de Lutero É dever do mstrado cristão agir contra a heresia mesmo que não seja abertamente sediciosa ou blasfema O magistrado é o tenente ou representante de Deus e portanto deve manter a honra de Deus por todos os meios a seu alcance Pois a heresia é em si é um delito contra a so ciedade cristã e como um ataque direto sobre a honra de Deus é mais abominável que o pior crime cometido por um homem contra outro Erradicar a heresia é uma exigência não só do direito natural como uma tentativa de minar a sociedade como do direito romano especificamente nas medidas contra donatistas e maniqueístas incluídas no Có digo de Justiniano mas é um requisito específico das Soadas Escrituras pois Deus deixa daro que o fàlso profeta deve ser apedrejado sem piedade Devemos esmsar sob o nosso calcanhar todas as paixões da natureza quando está em questão Sua hoiun A partir da perseguição dos santos nas mãos dos governantes ímpios nem Cal vino nem Lutero chegaram à condusão de que um príncipe piedoso devesse tolerar todo tipo de opinião Em seu pensamento não há qualquer vestígio de relativismo ou indiferença que é muitas vezes a base para a tolerância Tampouco é a sua doutrina dos dois reinos outra maneira de afirmar o moderno conceito de separação entre Igreja e Estado A verdade é conhecida e sua preservação contra as agressões do ceticismo é uma questão de vida ou morte com a qual tanto a Igreja como o Estado cada um de sua própria maneira deve preocuparse Nenhuma concessão é possível quando a própria verdade está em jogo M a r t in h o L u t e r o e J o ã o C a l v in o 3 0 9 76 PE I 265 1520 77 AE XIII 61 segs 78 Calvin Commentary on Deuteronomy cap xiii E A L e i Lutero e Calvino reconhecem três tipos de lei a lei divina dada diretamente por Deus na revelação a lei natural que está disponível para e vincula todos os homens e a lei positiva devidamente promulgada e aplicada pela autoridade secular competente Vamos discutir cada uma por sua vez 1 A Lei de Deus A lei divina é eterna imutável e absoluta É a norma suprema e objetiva peran te a qual todas as açóes humanas devem ser julgadas expressa de modo conciso no Decálogo e elaborada em outros pontos das Sagradas Escrituras É dada por Deus de acordo com Lutero com dois objetivos conhecidos tecnicamente como os usos da lei e a estes Calvino acrescenta um terceiro Em primeiro lugar como revela a justiça de Deus e Suas exigências sobre o homem condena pelo pecado e aponta para a necessidade de perdão A lei neste seu uso teológico funciona como uma espécie de espelho mostrando cada homem em si como de feto é em sua depravaçâo e peca minosidade e eliminando a falsa autocompreensão baseada no orgulho Em segimdo a lei serve para impedir que os pecadores cometam o mal escancarado e adquiram a retidão forçada e exortada necessária para o bem da sociedade Em terceiro e aqui Calvino e Lutero divergem para os fiéis é o melhor instrumento a permitirlhes que diariamente aprendam com a maior verdade e certeza que é a vontade do Senhor que aspiram seguir e para confirmálos neste conhecimento Deveriam todas as prescrições legais encontradas nas Escrituras ser consideradas leis divinas obrigatórias para o homem Lutero e Calvino como a maioria dos demais pensadores cristãos mas em oposição a determinados sectários extremistas distinguem entre leis restritas pelo tempo e a eterna lei divina Lutero e Calvino não hesitam em declarar que a lei cerimonial e a maior parte da detalhada legislação econômica e social encontrada no Antigo Testamento pertencem à primeira categoria e portanto sâo ob soletas A lei cerimonial e ritual foi revogada pela Obra de Cristo tal como argumenta a Epístola aos Hebreus e não há nenhuma obrigação para que tentemos reproduzir nos tempos modernos a comunidade política ou código jurídico da antiga Israel São elas decerto úteis e instrutivas como exemplos de organizações políticas íradáveis a Deus mas são condicionadas pelo tempo e pelo meio ambiente e simplesmente não são aplicáveis agora Temos aqui um caso especial de sistema social e econômico do qual muito se pode aprender mas que nunca foi feito para ser servilmente copiado Deve ser considerado tal como grande parte do restante da Bíblia uma espécie de comentário sobre o Decálogo A orientação geral sobre assuntos como a relação entre a Igreja e o Estado pode ser encontrada tanto no Antigo como no Novo Testamento e neste sentido a Bíblia é a fonte da velha ordem que deve ser recuperada E quanto 310 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 79 Luther Galatians p 297 s Calvin Ins II vii 812 à forma extrema da Igreja onde Lutero encontra a estrutura da Igreja do Novo Tes tamento pelo menos em grande parte limitada pelo tempo Calvino encara a Igreja Apostólica tal como descrita na Bíblia como um modelo detalhado da verdadeira forma da Igreja Obviamente nestas questões estâo sendo aplicados critérios externos às Escrituras a fim de decidir o que é limitado pelo tempo e o que é absoluto Ambos os reformadores rejeitam de modo enfetico qualquer concepção do di reito de padrão duplo do tipo aceito na Igreja medieval Não existem diversas regras de vida mas uma só rra perpétua e inflexível Todos os homens são chamados para a perfeição e todos os homens estão sob o julgamento da lei deixada de lado a velha distinção entre leis que são obrigatórias para todos os homens ou todos os cristãos e os conselhos de perfeição que guiam o religioso os adetas do Espírito O convite para a perfeição está no cerne da lei mas ao longo dos séculos fora obscurecido prin cipalmente por uma má compreensão da justificação a qual assumia que a salvação era possível simplesmente pela obediência a uma série de regulamentos externos Dessa forma Cristo é visto como o melhor expositor da lei divina pois restituiu sua integri dade mantendoa e purificandoa quando obscurecida pela fidsidade e contaminada pela levedura dos fariseus Contudo afirmar a unidade e a universalidade da lei não é negar que as obrigações particulares variem em relação à função muitas vezes a confusão emerge da tentativa de universalizar padrões que são na verdade adequados somente no exercício de uma função específica na sociedade As mesmas obrigações específicas não são vinculatórias para o homem em todas as suas várias funções oficiais e particulares Como estadista ou carrasco um homem pode ser chamado a realizar atos que seriam errados e impróprios quando agisse como pai ou cidadão comum A doutrina moral de Jesus de modo geral lida com a moralidade privada e não foi con cebida para ser aplicada de outra forma Entretanto os padrões funcionais variáveis por meio dos quais é expressa a lei de Deus só estão em conflito na aparência pois o amor é a rainha e senhora de todas as leis e em situações específicas toda lei deve ser testada pela regra da caridade pois este é o cerne de toda a lei verdadeira A lei divina é um convite para a perfeição e santidade mas a perfeição não é inatingível pelo homem caído e portanto a lei deve apontar além de si mesma para o perdão e expiação oferecidos no Evangelho 2 A Lei da Natureza A lei natural é em última análise tanto para Lutero como para Calvino idêntica à lei divina Ao contrário de Aquino e da maioria dos escolásticos os reformadores não falam do direito natural como aperfeiçoado ou completado por uma lei sobrenatu ral Existe apenas uma lei mesmo que possa ser contemplada de diversos pontos de vista A lei tem um uso racional condenar o pecado e apontar para o Evangelho e M artinho Lutero e J oAo Calvino 311 80 Calvin Ins II vii 13 81 Ibid viii 7 um uso civil coibir a imoralidade pública e para Calvino também um terceiro uso entre os redimidos mas a lei em si é sempre única e inalterável Porém a relaçáo entre a lei divina e a lei da natureza tal como a conhecemos não é uma simples identidade É importante observar que com o termo natureza neste contexto entendese a natureza incorrupta e ordenada do homem e do mundo antes da Queda Objetivamente considerada a lei da natureza é a lei de Deus absoluta in condicional e obrigatória para todos os homens Ao contrário da lei revelada de Deus que foi dada a um povo em particular a lei da natureza é em princípio cognoscível por todos os homens É a regra verdadeira e eterna da retidão apresentada aos homens de todas as nações e todos os tempos que pautam suas vidas em conformidade com a Vontade de Deus Pois embora os gentios náo tenham recebido a lei escrita de Moisés todavia receberam a lei espiritual que está estampada em todos tanto judeus como gentios e para com a qual também todos estão obrigados Entretanto uma vez que a corrupção se estende não só à vontade do homem mas também a sua razão e consciência é prejudicado seu entendimento da lei natural Assim há uma diferença e até mesmo algumas vezes um conflito entre a lei divina e a lei natural compreendida e interpretada pelo homem caído O pecado e a corrupção revelamse em constantes tentativas do homem de revisar e alterar a lei da natureza a fim de tornála menos adversa a sua vontade e desejos caídos O pecado obscurece e tolda sua compreensão da lei da natureza de tal modo que a lei divina é revelada para remover as evasões introduzidas pela natureza caída do homem Isso é válido para as duas tábuas da lei Com relação à primeira tábua a medida da lei natural disponível para o homem caído ensinalhe apenas que deveria adorar e servir a Deus mas o que isso envolve como deve servir a Deus e quem é o verdadeiro Deus só pode agora encontrar na lei divina revelada No que diz respeito à segunda tábua um bom exemplo do modo como a lei divina expande esclarece e purifica a lei natural adulterada ou atrofiada é fornecido pela questão da obediência Todo homem perceptivo considera por demais absurdo submeterse a uma dominação injusta e tirânica com a condição de que de algum modo possa ser derrubada e só existe uma opinião predominante entre os homens que é o papel de uma mente abjeta e servil suportála com paciência o papel de uma mente nobre e arrojada revoltarse contra ela Na verdade a vingança por injustiças nâo é considerada pelos filósofos como um vício Porém o Senhor que condena esse espírito demasiado soberbo prescreve a seu povo aquela paciência que a humanidade considera deplorável 3 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 82 ééIVxx 15 83 Luther Romerhrirf 3715 84 Calvin Ins II ii 24 O orgulho perverteu a lei natural subjetiva de modo que a lei divina promulgada pela autoridade tornouse o meio necessário para a restauração da lei objetiva e abso luta da natureza Como descobrir a lei da natureza e aplicála em situações específicas A lei não é inata no homem como tal mas é um padrão externo objetivo estabelecido por Deus passível de ser descoberta pelo menos em parte pelo uso da razão ou em Calvino razão e consciência em colaboração Alguns homens podem ser mais razoáveis do que outros mas nunca é fiicíl encontrar a lei natural Sua descoberta exige cuidadosa reflexão e ponderação de todos os problemas pois a nobre gema denominada direito natural e razão é rara entre os filhos do homem 3 A Lei do Estado A lei do Estado tem como finalidade apenas a manutenção da conformidade exterior com a moral e a disciplina necessárias para a vida social Está relacionada é verdade com a lei divina natural mas não é dedutível diretamente dela A lei divino natural por assim dizer estabelece os limites dentro dos quais o estadista pode de cretar as leis que lhe pareçam mais adequadas à luz das circunstâncias e necessidades políticas A razão a razão caída deve produzir a legislação que as condições parecem exigir sem entrar em conflito com a lei de Deus Entretanto se é verdade que cada nação tem liberdade de promulgar as leis que julga serem benéficas ainda assim estas devem sempre ser testadas pela lei do amor de modo que embora variem quanto à forma sigam o mesmo princípio A lei positiva deve ser obedecida mesmo quando está evidentemente longe de ser perfeita salvo em situações extremas como as discutidas na secção D 4 Lutero em bora defenda esta obrigação de obediência tem um desprezo viril pela lei meramente positiva é a lei doente contra a lei saudável da natureza Sua rigidez inelutável torna inadequada a lei civil Tudo o que é feito com o poder da natureza resulta muito bem sem qualquer lei po sitiva na verdade esta se sobrepõe a todas as leis Contudo se a natureza felhar e for preciso ar de acordo com as leis isso eqüivale apenas a menAgar e remendar nada mais é alcançado além do que é inerente à natureza doente É como se eu criasse uma legra gçral de que como refeição devese comer dois páezinhos e beber um copo pequeno de vinho Se um homem saudável sentase à mesa pode mmto bem consumir quatro ou seis páezinhos e heber uma jarra ou duas de vinho desta forma esse homem necessita de mais do que a lei estipula Entretanto se uma pessoa doente sentase à mesa comerá meio pãozinho e beberá três colheres de vinho Desse modo não cumprirá esta lei além do que permite sua condição enferma ou morrerá se tiver de respeitar esta lei M artinho Lutero e João Calvino 3 1 3 85 Luther Psalm 101 AE XIII 161 86 Calvin Ins IV xx 16 87 LuAer Psalm 101 AE XIII 163 Legislar é tarefa complicada e insatisfatória e muito poucos sáo aqueles que estão devidamente equipados para legislar de tal forma que Aqui é preciso remendar e cer zir e lançar mão das leis ditos e exemplos dos heróis tal como registrados nos livros Assim devemos continuar a ser discípulos daqueles mestres silenciosos a que denomi namos livros Todavia nunca agimos tão bem quanto lá está registrado rastejamos e nos sarramos a eles como a um banco ou uma bengala Seguese que a legislação é uma arte especializada que exige habilidade e em cujos detalhes o teólogo como tal não tem competência relevante Este princípio juntamente com a rejeição do Direito Canônico pelos reformadores traz algumas conseqüências radicais em Lutero Qual é o procedimento correto para nós hoje em matéria de casamento e divórcio Afirmei que este assunto deveria ser deixado para os advogados e estar sujeito ao governo secular Pois o casamento é um fàto bastante secular e exterior tendo a ver com esposa e filhos casa e lar e com outros assuntos que penencem à esfera do governo todos os quais fòram totalmente submetidos à razáo Gênesis 128 Portanto náo devemos interferir com o que decidem e prescrevem o governo e os homens sábios com base nas leis e lu razão Cristo náo age aqui Mateus 53132 como advogado ou governador para pro mulgar ou impor qualquer rulamentação para a conduta exterior F P o l ít ic a c o m o V o ca çã o 1 O Homem e seu Chamado Todos os homens recebem dois tipos de chamados de Deus Por um lado todos os homens apesar de pecadores são chamados à salvação ao reino eterno de Deus Quanto à salvação todos os homens são iguais todos igualmente exigindo o livre per dão de Deus Porém no que diz respeito à vida neste mundo a igualdade desaparece e é substituída por hierarquia e status e os homens encontramse em diversos postos ou vocações onde são obrigados a servir a Deus por meio do serviço ao próximo Tanto Lutero como Calvino rejeitam qualquer possibilidade de uma vocação reli giosa em que o serviço de Deus possa ser isolado do serviço aos semelhantes Cada homem tem diversas fiinçóes diferentes na sociedade que devem ser entendidas como vocações divinas Um homem por exemplo pode ter vocações de marido pai agri cultor e cidadão cada uma com seus deveres e obrigações específicos Em cada um a vocação age como uma trava sobre o egoísmo do homem obrigandoo a olhar para fora e cuidar de seus semelhantes assim como de si mesmo O cuidado de Deus para com a humanidade é expresso basicamente por meio de Sua colocação dos ho mens em vocações em cada uma das quais são instigados a cuidar de seus semelhantes e se tornam de forma consciente ou não máscaras ou véus do próprio Deus os instrumentos de Seu amor 3 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 88 Ibid p 164 89 Luther Commentary on the Sermon on the Mount AE XXI 93 Ora enquanto as vocações sâo boas em si mesmas os homens podem abusar de suas vocações e muitas vezes o àzem ao nâo cumprir os deveres correspondentes ou ao íàzêlo de modo inadequado Mais uma vez grande confusão e desordem são causadas se as vocações não forem mantidas separadas e distintas Seria totalmente errado por exemplo que um mestrado fosse tão rígido e rigoroso em suas relações particulares quanto é forçado a ser quando age na sua íimção judicial Nem devemos impulsionados pela ambição ou pabcão pelas novidades abandonar a vocação em que nos encontramos em prol de outra Isto seria presunção e é só por nossa conta e risco que negligenciamos os deveres que Deus colocou em nossas mãos a fim de procurar algo diferente Este en sinamento salvaguarda a estabilidade da sociedade e reduz a ambição pecaminosa mas não se deve permitir que entre em conflito com o fiito de que muitas vezes o próprio Deus chama os homens para novas funções e Seu chamado nunca deve ser desprezado Em tudo o chamado do Senhor é a fundação e o início da ação correta A vocação do estadista é um chamado divino que deve ser honrado de modo especial pelos homens Como qualquer outro homem na sua vocação o estadista é a máscara ou véu de Deus mas tem direito a singular honra porque é em sentido particular o procurador de Deus No que se refere aos homens na vida política são representantes de Deus Ora é verdade que cada homem é obrigado a obedecer às injunções da lei Mas Deus cuja natureza é amor não é obrigado por esta lei e muitas vezes Seu amor se expressa de maneiras que parecem ser contrárias à lei a que são obrigados os indivídu os Por meio da vocação Deus com frequência obriga os homens a realizar ações que parecem ser contrárias à lei mas na verdade em um nível diferente são expressões da lei do amor Isso fica muito evidente na vocação para a política onde o estadista é obrigado em certas ocasiões em aparente contradição tanto com a lei e com o Evan gelho a recorrer à força coerção e violência Porém A mão que empunha a espada e mata com ela não é mais então a mão do homem mas a mão de Deus que enforca tortura decapita trucida e luta Todas essas são Suas obras e Seus julgamentos E A Lei do Senhor piofbe tnatan mas paia que o assassinato não fique impune o pióprio Lislador põe a espada nas mãos de Seus ministros Por isso é íãdl concluir que nesta matéria não estão sujeitos à lei comum pdo que embota o Senhor ate as mãos de todos os homens ainda assim Ele não ata sua justiça que exerce pelas mãos dos magistrados tal como quando um príndpe proíbe todos os seus súditos de espancarem ou ferirem quem quer que seja ele no entanto não proíbe seus íundonários de executarem a justiça que tenha especialmente confiado a eles M artinho Lutero e Joâo G uvino 315 90 Calvin Ins III x 6 Cf Commentary on the Harmony o f the GospeU Edinburgh Calvin Transla tion Society 184546 under Matt 2221 and Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 34 Commentary on the Sermon on the Mount AE XXI 23 91 Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 36 92 Calvin Ins IV xx 10 A partir da palavra Therefore no texto em inglês esta citação só é en contrada na edição francesa de 1541 É importante ressaltar que esta distinção entre a moralidade privada e a voca cional não implica que não sejam intimamente relacionadas e conexas O estadista não é emancipado de todo o rigor da chamada para a perfeição no que se refere a sua vida privada nem lhe é dada carta branca para suas ações oficiais A ambas embora por vezes de maneiras diferentes e aparentemente discordantes deve expressar o amor e a justiça de Deus 2 O Julgamento de Deus O estadista embora possa ser um deus no campo da política no que tange aos outros homens com direito a obediência respeito e honra aos olhos de Deus é apenas mais um pecador Sua autoridade e sua dignidade são emprestadas e de íàto não pertencem a ele mas a Deus Sua posição lhe traz a especial tentação de supor que os dons que lhe foram confiados são seus para serem utilizados como lhe aprouver e tem dificuldade em aceitar sua dependência e submissão a Deus Porém caso venha a tornarse presunçoso nâo será digno de comparação a um piolho ou uma larva ou qualquer outro verme pois os piolhos ainda são criaturas de Deus enquanto ele é um vilão que foi designado por Deus Seu tenente mas sempre zomba e se esquece do Senhor seu soberano Como se expressa o julgamento de Deus sobre o presunçoso e isso significa no que se refere aos homens governantes injustos e tirânicos Embora seja certo que será julgado na eternidade é verdade também que o juízo de Deus é expresso na história Lutero de modo característico simplifica demais sua verdadeira posição quando ar gumenta que sempre se passa e sempre se passou que aqueles que começam a guerra sem necessidade são derrotados pois admite em outro lugar que o julgamento de Deus nâo se expressa em termos tão simples Todavia a recompensa está no bojo da história e por exemplo tiranos correm o risco de que por decreto de Deus seus súdi tos podem sublevarse e assassinálos ou expulsálos Esse fiito não deve ser enten dido como de alguma maneira justificativa para a resistência Aqueles que se rebelam são portanto culpados diante de Deus Mas a instrumentalidade dos ímpios pode ser em prda por Deus enquanto Ele continua livre de toda mácula Se todos os seus súditos fossem cristãos fiéis o governante não precisaria temer uma insurreição mas já que é impossível que seja assim é prudente acautelarse da ira de Deus expressa pela violência dos ímpios As obras da providência de Deus não dependem da fideli dade dos homens Ou talvez Deus possa incitar nações e governantes estrangeiros a subjugar o príncipe injusto 316 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 93 CR XLI 395 94 LuAer Whether Soldiers too can be Saved PE V 37 95 Ibid p 48 96 Calvin Cabeçalho de Ins I xviii Assim Ele domou o poder de Tiro pelos egípcios a insolência dos egípcios pelos assírios a ferocidade dos assírios pelos caldeus a confiança da Babilônia pelos medos e persas Ciro já tendo antes conquistado os medos enquanto subjugou e puniu a ingratidão dos reis de Judá e de Israel e sua ímpia contumácia após toda sua bondade uma vez pelos assírios outra pelos babilônios Ou Deus pode cercear o tirano pelos magistrados subordinados como vimos ou por um Herói 3 O Herói A política segundo Lutero é normalmente uma questáo de remendar e cerzir Como se pode bem entender mais cedo ou mais tarde a vestimenta se desgasta e precisa de renovação A última eapa de decadência é em geral insuportável tirania e opressão e o agente de renovação o destruidor da velha vestimenta e alfeiate da nova é denominado Wündennann ou vir heroicm Embora seja presimçoso que indivíduos tentem derrubar a autoridade estabelecida ou reconfigurar o Estado Deus coníia a determinados indivídu os em certos momentos essa vocação especial Exemplos de homens que receberam este chamado são Sansão Davi Jeheoiada Ciro Temístocles Alexandre o Grande Augusto e Naamã todos eles o que talvez seja significativo não cristãos O herói recebe seu comando direto de Deus que o instrui e orienta de modo constante Quando Davi queria vencer Golias queriam ensinálo puseramlhe a armadura e o equiparam Sim senhor Mas Davi náo podia usar esa armadura Tmha em mente ou tro mestre e matou Golias antes que pudesse saber como o realizar Pois náo era um aprendiz tampouco treinado que era nesta arte era um mestre treinado para isso pelo próprio Deus O herói não está sujeito às leis e regras que são obrigatórias para os homens co muns ou mesmo os governantes comuns Tem o poder de liderar uma rebelião e o povo pode seguirlhe com justiça É dotado de raros dons de razão e compartilha do co nhecimento de Deus para que possa até mesmo prevalecer sobre a lei ou pelo menos aperfeiçoála pois é ele mesmo a lei viva Sob o seu regime a tirania é destruída tudo melhora e uma nova era se inaira Mas não serve de modelo para as pessoas comuns e ai do homem que sem um chamado especial de Deus tenta imitar o herói O herói de Lutero não pode com justiça compararse ao superhomem de Niet zsche nem tampouco ao herói de Carlyle O fato de ser isento da lei e de que seu po der de inovação e de restauração emanam não de si mesmo mas de ter sido escolhido por Deus e de sua dependência direta de Deus A glória o navio de guerra o poder e a soberania pertencem a Deus e não a ele Seus dons preeminentes são de fato dádivas M a r t i n h o L u t e r o e J oAo C a lv in o 3 1 7 97 Ibid IV XX 30 98 Luther Psalm 101 AE XIII 156 e não devem sugerir uma isenção da mácula do pecado original Como prova disso Lutero aponta que a maioria dos heróis tendo realizado sua obra acaba por terminar mal finalmente cedendo ao pecado da presunção Calvino recusandose a assumir uma visão tão sombria quanto a de Lutero a respeito das potencialidades do governo secular vê o herói apenas como um Provi dencial Libertador da opressão A renovação não é sua função primordial pois este é um aspecto perfeitamente normal da atividade política Uma vez que a política não é somente uma questão de remendar e cerzir não é necessário um alfaiate especial enviado por Deus para a confecção de uma roupa nova L e it u r a s A Luther Martin Commentary on Psalm 101 v XIII p 146 segs áa American Edition o f Luther s Works Ed Jaroslav Pelikan e Helmut T Lehmann St Louis Concordia Publishing House e Philadel phia Muhlenbuig Press 1956 Calvin John Institutes o f tie Christian Religion Ed J T McNeill Trans F L Batdes Library o f Christian CÁurici Philadelphia Westminster Press 1959 II ii 14 1216 2224 III xk 15 IV xx B Luther Martin The Open Letter to the Christian Nobility ofthe German Nation The Works o f Martin Luther 6 v Philadelphia A J Holman Company 191532 v II p 61 segs Luther Martin Secular Authority To what Extent it Should be Obeyed in ibid v III p 223 segss Luther Martin Whether Soldiers too can be Saved in ibid v V p 32 s s Calvin John Institutes I xv 4 68 IV x 112 xi Calvin John Commentary on Romans Edinburgh Calvin Translation Society 1844 1849 On Ro mans 1315 Calvin John Commentary on the Harmony o f the Gospels Edinburgh Calvin Translation Society 184546 On Matt 531 Matt 265256 3 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y R ichard H ooker 15531600 A grande obra de Hooker Ofthe Laws of Ecclesiastical Polity As Leis da Política Edesiástíca foi concebida como um amplo ataque à posição dos calvinistas puritanos da época Conmdo devemos observar que esta posição puritana de diversas maneiras um tanto inconsistentes divergiam da posição do próprio Calvino Os puritanos na Inglater ra os huguenotes na França e Knox e seus seguidores na Escócia alegavam ser discípulos de Calvino e atribmam grande autoridade a seus escritos Entretanto na verdade altera ram grande parte do sistema doutrinário de seu mestre em particular seus ensinamentos políticos e ao enfatizar determinados aspeaos negligenciar outros e introduzir conceitos alheios produziram uma teologia política distinta e muito menos coerente O cerne de suas inovações está em um completo menosprezo pela validade da razão humana mesmo nas esferas que Calvino reconhecera como próprias dela junta mente com a afirmação da autoridade exclusiva e da total adequação das Siradas Es crituras como guia em todas as coisas John Knox por exemplo não demonstrou em seu The First Blast ofthe Trumpet against the Monstrous Regiment ofWomen A Primeira Rajada da Trombeta contra o Monstruoso Regimento das Mulheres 1558 qual quer desconforto em defender quase inteiramente com argumentos bíblicos a estrita proposição política e jurídica de que mulher alguma pode assumir o poder político Os puritanos ingleses por sua vez sugeriram como um princípio para a orientação do Parlamento que nada fosse feito nesta ou em qualquer outra matéria mas aquilo para o que temos a garantia expressa da Palavra de Deus Tais declarações retiram todos os limites da autoridade das Escrituras e deixam a razão autônoma sem lugar ou função Como resultado dessa inovação sofre uma mudança o entendimento do que são as Escrituras Já não são mais apenas um registro dos poderosos atos de Deus aos quais se prende a fé a matériaprima do dogma o guia para a imitação de Cristo o arauto da salvação o vaso de barro no qual se encontra o tesouro de Deus São 1 Na edição de Laing das obras de Hooker Edinburgh 1846 v IV 2 The First Admonition to ParUament in Puritan Manipstoes ed Frere and Doilas London 1907 Citado por A P DEntreves The Medieval Contribution to Political Thout Oxford Oxford Uni versity Press 1939 p 104 entendidas agora como um compêndio de total infalibilidade e adequação para a orientação moral e política um livro texto em que o estadista aprende como governar o filósofo como escapar das ilusões da razão corrompida Quase desaparece o elevado grau de perspicácia crítica com o qual Lutero e Calvino abordaram as Escrituras que é substituído por um novo tipo de bibliolatria Tal mudança tornou quase inevitáveis as declarações teocráticas A Igreja é a guardiã da Palavra de Deus e é dever de seus ministros pregála Ainda uma vez que esta Palavra é o único guia seguro na política como em tudo mais os reis e os magis trados devem submeterse à orientação da Igreja e de seus ministros em todas as coisas Thomas Cartwright o clérigo puritano contra cujas obras se volta uma porção consi derável At As Leis da Política Eclesiástica estava mais distante do que se dava conta dos ensinamentos de seu mestre Calvino quando escreveu que os reis deveriam lançar de si suas coroas diante da Igreja e lamber a poeira de seus pés Mas foi a questão da resistência que desvelou o conflito entre Calvino e seus suces sores A siestão de Calvino longe de inequívoca de que os magistrados subordinados podem limitar o poder dos reis embora baseada mais no direito constitucional do que na autoridade das Escrituras veio a ser a bandeira que os calvinistas radicais pregaram em seu mastro O Vindiciae contra Tyrannos escrito por um huguenote francês desco nhecido no último quarto do século XVI afirmava que mesmo que apenas um magis trado estivesse preparado para resistir a um daqueles reis que jogam com o pobre povo como se fossem bolas de tênis era dever de todos os súditos cristãos pegar em armas para derrubar o tirano Em defesa do direito e na verdade da obrigação de resistência o autor do Vindiciae argumenta que o Antigo Testamento mostra que a sociedade política se baseia em dois convênios ou contratos o que existe entre Deus o rei e o povo cons tituindo um Povo de Deus o outro entre o rei e o povo segundo cujos termos o povo promete obedecer e o rei governar com justiça A Bíblia afirma o Vindiciae mostra que a soberania é conferida por Deus ao povo e somente delegada por eles ao monarca e magis trados Com base em premissas semelhantes Knox escrevendo a seus seguidores na Es cócia afirmara enfaticamente o direito de revolta contra um príncipe ímpio e apelou até para os comuns para o repúdio ao tirano Velhas ideias filosóficas tais como a soberania popular e o contrato que eram corriqueiras na Idade Média mas foram rejeitadas pelos reformadores reapareciam ora em uma nova roupem aparentemente bíblica As Sagradas Escrituras e Calvino eram ainda as autoridades declaradas mas agora o tom e a terminologia eram muitas vezes bem diversos Os piedosos eram ora chamados não tanto ao sofrimento e à obediência passiva quanto à criação em toda parte de nações cristãs na Terra apesar de todas as dificuldades e oposição Foi contra tal radicalismo bíblico que Hooker lançou seu poderoso contraata que Poderia ter apelado para Calvino contra os calvinistas o que de fato fez algu 3 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 EmsenReplyeto anAnstvere57ò 4 Calvin Institutes IV xx 31 mas vezes mas náo era calvinista e não estava interessado apenas em ganhar pontos no debate Para ele não era definitiva a autoridade de Calvino Nem poderia ele entrar em polêmicas com base em um entendimento comum da autoridade das Escrituras pois não podia admitir que nas Escrimras todas as coisas que precisam ser feitas devem necessariamente estar contidas Grande parte do que queria dizer referiase a assuntos em que alegava as Escrituras não eram segundo ele a única autoridade Em matéria de governo eclesiástico e civil por exemplo deve haver um apelo à razão pois não existe ainda nenhum método conhecido para determinar aspeaos contenciosos sem o uso da razão natural e até mesmo Cristo empregava Sua razão ao aipimentar Na esfera na tural pelo menos a razão e os grandes arrazoadores do passado devem ter autoridade adequada Assim Hooker vêse capaz de invocar livremente contra seus opositores as autoridades da Antiguidade destacandose os Pais e os escolásticos sobremdo Aquino Uma vez que os puritanos optaram por argumentar não podiam escapar da razão por meio da invocação da autoridade absoluta das Escrituras ou da fé As Leis da Política Eclesiástica é uma obra longa constituída por oito livros que cobrem uma área imensa Os cinco primeiros livros foram publicados durante a vida de Hooker mas os três restantes tiveram de esperar pela publicação até a metade do século seguinte Não há dúvida hoje sobre a autenticidade desses três livros embora o Livro VI tal como o conhecemos seja apenas um fiagmento Do ponto de vista do estilo a Política Eclesiástica é uma obra em prosa e é proravelmente a primeira grande obra de filosofia e teologia a ter sido escrita em inglês Embora polêmica sua intenção original todavia classificase como uma importante obra de filosofia política pois se eleva acima dos conflitos imediatos alcançando permanentes questões de princípios No Livro I Hooker tomando como base principal a autoridade de Tomás de Aquino expõe os fundamentos metafísicos de seu pensamento Não é enganoso su gerir que coloca a metafísica no liar que os reformadores deram à dogmática em seu pensamento político O mundo assevera é um cosmos ordenado em que tudo funciona em prol de uma finalidade adequada a ele Todo fim é em si um meio para algum outro fim exceto o fim último o summum bonum Deus quem é o bem em si mesmo e não pode ser um meio para qualquer outro bem Este cosmo é regido pela lei que se define como uma regra diretiva para a bondade de operação dada por um superior Mas o ser de Deus é uma espécie de lei em Sua obra pois aquela perfeição que Deus é dá perfeição àquilo que Ele fàz A lei estabelecida por Deus R ic h a r d H o o k e r 3 2 1 5 Eg Richard Hooker The Lam tfEcclesiastical PoUty Prefàce iii 4 6 T m w s II viü 5 Cf III vii 2 7 Ibid III viü 17 8 Ibid II iv 7 vii 4 9 Sobre a autenticidade dos livros VIVIII ver R A Houk Hookers Ecclesiasticd Polity Book VIII New York Columbia University Press 1931 eC J Sisson The Judicious Marriage ofMr Hooker and the Birth ofthe Im w s ofEcclesiastical Polity Cambridge Cambridge University Press 1940 10 laws I viü 4 11 Ibid ú l por Si mesmo e todas as outras coisas é a lei eterna e dela emanam todas as outras leis Esta lei eterna nâo é uma expressão de uma vontade arbitrária de Deus mas é razoável pois a razão é inerente à Divindade Assim Hooker rejeita já de início o voluntarismo dos nominalistas e reformadores A razão está no cerne das coisas e é sempre dirigida para o bem pois a bondade é a essência de Deus Os atos e decretos de Deus são sempre bons e razoáveis e esta bondade razoável de Deus se expressa através das várias leis que vinculam todas as coisas criadas e são derivadas da lei eterna Essas leis assumem formas diferentes em relação aos seres e às operações sobre as quais vigoram A lei natural liga todas as coisas da criação A lei celeste referese aos anjos A lei da razão obriga todas as criaturas racionais que são também vinculadas pela lei di vina que se faz conhecida através da revelação A lei humana é a lei promulgada pelos homens e derivada da lei racional ou divina Todas essas leis derivadas juntas formam uma Segunda Lei Eterna Algumas podem ser transgredidas e daí nasce o mal que no entanto não pode transformar o cosmos em caos pois o mal e o pecado são no mínimo permitidos por Deus e podese dizer que são abrangidos pela primeira lei eterna o imutável propósito de Deus O homem tal como todas as outras coisas da criação busca necessariamente sua perfeição Todos os homens buscam a bondade pois o mal não pode ser desejado como tal A perfeição que o homem procura assume uma forma tripla sensual ou física intelectual e espiritual Cada modo de perfeição é naturalmente desejado pelo homem mas a perfeição espiritual a visão beatífica que é a coroa do esforço do homem é atin gível apenas por meios sobrenaturais providenciado por Deus para corrigir os danos causados pela Queda A natureza e a sobrenatureza são duas ordens complementares a que o homem pertence Desta forma sua perfeição deve ser natural e sobrenatural Como sabe o homem qual é a sua perfeição O bem é conhecido por meio da razão ou aceitação geral isto é a razão de muitos Ao seguirmos a razão estamos de fato seguindo os mandamentos de Deus É a vontade e não a razão do homem que é corrompida pelo pecado pois a razão aponta claramente para uma perfeição que o ho mem caído se acha incapaz de alcançar por si mesmo A natureza pode leválo até a certo ponto mas a ajuda sobrenatural será necessária para que atinja a verdadeira felicidade O homem portanto é refieado por várias leis diferentes Como um organismo físico ou sensual funciona de acordo com o mesmo tipo de lei que obriga todas as coisas da criação como um ser inteligente é obrigado pela lei da razão como uma 3 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 12 Ibid 4 6 iii 4 13 Ibid ii 4 5 iii 4 14 Ibid ii 4 xi 2 15 Ibid iii 1 16 viii 1 vii 6 17 Ibid xi 4 18 Ibid xii 1 3 XV 2 19 Ibidviii 1 20 Ibid vii 3 alma eterna é obrigado pela lei sobrenatural E dentro deste esquema básico Hooker percebe muitas subdivisões e modos mistos de lei As muitas funções do homem têm cada uma sua própria lei e há muitas autoridades diferentes que podem impor leis em várias esferas Há a lei sobrenatural a lei moral a lei política a lei eclesiástica e a lei das nações cada uma produzida por um legislador diferente Todas essas leis são fundamentalmente as leis de Deus e derivam da lei eterna mas a autoridade para promulgar algumas delas é delegada por Deus aos homens ou às sociedades enquanto em outras o próprio Deus é não só o legislador como o fiscal Dentro desse sistema de leis é preciso distinguir o mutável do imutável A lei eterna é imutável e é a expressão direta da razão e da vontade de Deus Mais uma vez são eternas as leis que são as formulações das grandes verdades dogmáticas da fé cristã Se quisermos saber se uma lei pode ser alterada devemos examinar em cada caso a finalidade que atende A lei judaica cerimonial é revogada por exemplo porque a finalidade do sistema de sacrifícios foi cumprida com a vinda de Cristo Assim são mutáveis até mesmo al gumas leis estabelecidas por Deus Alguns assuntos são indiferentes e estão sujeitos inteiramente aos legisladores humanos outros estão sujeitos à imutável lei divina ou às leis naturais No que tange às leis feitas pelos homens a mudança é sempre possível seja para aumentar sua eficácia em alcançar um fim desejado ou para abandonálas quando uma meta específica é alcançada ou não mais desejada Mas a mudança da lei é sempre perigosa e inquietante e deve ser abordada com cautela mesmo que às vezes seja neces sária Tanto no fazer como na modificação das leis a lei eterna deve ser o guia A vantagem imediata e controversa dessa análise da lei é sua crítica à posição puritana extrema de que só há uma lei verdadeira a de Deus que se encontra clara mente nas Escrituras e que rege toda a vida do homem Desta tese dependiam todas as radicais reivindicações puritanas que ofendiam o conservadorismo de Hooker O propósito fundamental das Escrituras segundo ele é ensinar deveres sobrenaturais e para este fim são perfeitamente suficientes Mas a ordem natural e a sobrenatural se complementam A conquista da felicidade depende do cumprimento tanto dos deve res naturais como dos deveres sobrenaturais Os primeiros são descobertos em prin cípio pela razão mas os últimos como resultado da Queda estão além do alcance da razão Assim a razão natural e as Escrituras ambas em conjunto e não isoladamente nenhuma das duas é tão completa que para a felicidade eterna não precisemos do co nhecimento de mais nada Não se nega assim que há muitas coisas nas Escrituras que de fato referemse aos deveres naturais e não aos sobrenaturais nem ainda que R ic h a r d H o o k e r 3 2 3 21 Ibid xvi 5 22 7óí7 11 X 4 I XV 1 23 Ibid IV xiv 1 24 Ibid I xvi 2 IV xiv 1 2 V vii 1 25 7íi7IxivI llv iii5 26 Ibid I xiv 5 as Escrituras possam muitas vezes corrigir raciocínios fiJhos mas aíirmase apenas categoricamente que a posse das Escrituras náo nos livra do árduo processo de racio cínio para descobrir os nossos deveres em matéria de política e moral A perfeição das Escrituras é relativa a sua finalidade sobrenatural e é enganoso procurar só nelas um ideal absoluto político eclesiástico ou moral ou tratálas como a autoridade final em cada decisão trivial Tal procedimento na verdade degrada as Escrituras e cega o homem a seu sentido correto As Escrituras pressupõem ao contrário de substituir as leis naturais e racionais Os homens são por natureza livres e iguais mas uma vida que não é social é uma existência embrutecida em que o homem não pode avançar rumo à perfeição Desta forma os homens têm uma inclinação natural para a sociedade A vida social é fundada sobre essa inclinação e em um contrato social uma ordem expressa ou secre tamente acordada referindose ao modo de sua união ao viverem juntos A manuten ção da sociedade exige o governo cuja função é coibir as disputas restringir o mal e harmonizar os interesses conflitantes dos homens Mas o governo tem como objetivo não apenas a manutenção da vida social por meio da coerção também se preocupa com a busca pelo mmmum bonum Assim Hooker divisa a organização política não apenas como remédio para os pecados humanos uma conseqüência da Queda mas também como uma condição para a perfeição humana no sentido cristão e não aristotélico Sobre esta questão firmase tanto na tradição clássica como na cristã Tanto o conhecimento que tem a razão da natureza do homem e o conhecimento de sua depravaçâo decorrentes da revelação revelam a necessidade do Estado O gover no como a sociedade é baseado em um contrato e o mais legítimo poder político emerge do consentimento embora este possa assumir diversas formas Um homem pode consentir de modo pessoal e explícito pode dar o seu consentimento por meio de representantes devidamente nomeados ou o consentimento pode ser pressuposto em função do uso tradicional Entretanto apesar de o consentimento ser a melhor base para o poder político nem todo o poder político precisa ser enraizado no con sentimento Um conquistador por exemplo tem poder sobre aqueles que subjugou limitado apenas pela lei de Deus e a lei das nações E há homens que são especialmente chamados por Deus e exercem o poder por puro direito divino Mas o poder que no início baseavase na conquista ou na lei divina pode no decorrer do tempo vir a ser livremente aceito de tal forma que na realidade se não em origem tomase governo 324 H istória da Filosofia Poiítica Leo Strauss e J oseph C ropsey 27 Ibid xiií 2 II viü 5 28 Ibid I XV 4 II viü 6 29 Ibid I X 1 30 IbidtVl ii 18 31 Ibid VIII ü 18 32 Ibid I X 3 33 Ibid 8 VIII ii 9 vi 8 34 W VIII ü 5 por consentimento Seja qual for a origem do poder político os que governam sáo tenentes de Deus e sua autoridade mesmo que delegada pelo povo é dEle Normalmente entáo o poder político pertence ao povo e é confiado ao governo por contrato e consentimento Esta é de longe a melhor forma de poder Tal poder é limitado pelos termos do pacto de submissão original ou se estes não forem co nhecidos ou tenham caído em desuso simplesmente pelo que se tornou aceitável pela tradução da sociedade Os atos legítimos das autoridades civis são os atos de toda a comunidade e expressam o que poderíamos estar inclinados a chamar de vontade universal Não compete aos cidadãos ou facções buscar isenção daquelas que são de fato suas próprias ações Sendo a natureza humana o que é buscando a perfeição mas no entanto cor rupta e cega pelo pecado algum tipo de governo é necessário Mas há muitos tipos de governo e a natureza deixa a escolha como uma coisa arbitrária O profundo respeito de Hooker pelo que quer que seja estabelecido e tradicional tem o efeito de impedir que fale muito sobre a melhor forma de governo O melhor dificilmente será alcançado e tentativas precipitadas para alcançálo muitas vezes fazem mais mal do que bem Não é uma coisa trivial mexer com a ordem estabelecida Hooker decerto tem suas preferências em geral está satisfeito com o Acordo Isabelino tanto do ponto de vista da política como da religião Acreditava que uma monarquia devidamente limitada aliada a uma Igreja governada por bispos ambos governando por consenti mento seria a melhor organização possível mas hesitava em sugerir que tal organiza ção fosse aplicada em outros lugares ou em circunstâncias diferentes Grande parte da Política Eclesiástica é dedicada a uma importante discussão das relações entre Igreja e Estado Os princípios de governo eclesiástico como aqueles da sociedade civil devem ser descobertos pela razão Contra a alegação de Cartwright de que a disciplina da Igreja de Cristo que é necessária para todos os tempos é entregue por Cristo e estabelecida nas Escrituras Sagradas deve ser obtida a partir daí e daí apenas E aquilo que repousa sobre outras fundações deve ser considerado ilegal e falsificado Hooker afirma categoricamente que os assuntos de política da Igreja ao contrário de questões de dogma devem ser decididos pela simples razão guiada é ver dade pela lei da natureza e sem infringir as proibições bíblicas As Escrituras permitem R ic h a r d H o o k e r 3 2 5 35 IbidU 36 Ibid 6 37 Ibid 5 9 I x 3 38 fó7VIII ii 11 39 Ibid Preface v 2 40 óIx 5cfIIIii 1 41 Ibid V ix 12 IV xiv 12 V vii 1 3 42 Ibid III xi 16 43 Thomas Cartwright e outros A Directory o f Church Government sentenças de abertura um grande campo de variação e são completamente inadequadas se encaradas como um guia em questões específicas de governo civil Igreja e Estado não podem ter separação rígida acreditava Hooker A religião auxilia e incentiva tanto os súditos como os governantes no exercício de suas respecti vas funções É a fonte da justiça e da harmonia A religião praticamente qualquer religião é útil na política mas não é adequado pensar na religião como um simples dispositivo político ou sugerir com Maquiavel que a melhor religião é aquela que é mais útil para a concretização de determinadas metas políticas No entanto a religião cristã é ao mesmo tempo a religião verdadeira e também em última análise a mais útil na política pois cerceia as ambições egoístas dos estadistas e as inquietações rebel des dos súditos Dado que o Estado é uma condição para que o homem alcance sua perfeição e essa perfeição culmina com o sobrenatural em todas as nações as coisas espirituais acima das temporais devem ser providenciadas Nas nações onde os cris tãos são uma minoria a Igreja é inevitavelmente separada do Estado pois a cidadania não implica pertencimento a uma igreja Porém em comunidades cristãs Igreja e Estado têm a mesma substância o mesmo conjunto de pessoas mas devem ser vistos como diferentes acidentes ou funções A Igreja e o Estado mantêm entre si uma relação muito semelhante a que existe entre fé e razão A Igreja complementa o Estado e juntos guiam o homem em direção ao seu destino sobrenatural O Estado está pre ocupado com a vida boa do homem mas isso implica necessariamente que o Estado deveria ter uma preocupação para com a Igreja e para com a verdadeira religião Neste ponto cessa a concordância com Aquino Tanto na Igreja como no Estado argumenta Hooker a soberania em todos os assuntos que não são matéria da revelação divina direta pertence a todo o conjunto de membros É tão enfiitíco quanto Wyclif ou Lutero ao negar que a autoridade na Igreja pertence apenas por direito divino ao papa ou à hierarquia O poder sobre assuntos religiosos externos é confiado a todo o corpo dos fiéis embora possa também ser delegado por eles a um homem ou a alguns homens Na Igreja como no Estado o governo é por consentimento Em uma nação cristã o contrato social pelo qual o poder é confiado às autoridades políticas é também entendido de modo religioso de tal forma que é comum e bastante natural que o poder supremo em questões eclesiásticas tanto quanto em questões civis seja concedido à mesma pessoa ou pessoas As Saradas Escrituras não condenam tal arranjo como pensavam os puritanos e Calvino A ideia de uma nação cristã é desconhecida do Novo Testamento enquanto no Velho encontramos os poderes eclesiástico e civil unidos em Israel 3 2 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph C ropsey 44 Laws III ix 12 45 IbidV l 46 Ibid ii 34 47 Ibid VIII i 4 iii 2 V Ixxvi 4 48 Ib id y illi5 49 Ibid i 8 50 Ibid 1 514 18 iii 2 6 iv 9 Os ensinamentos de Hooker sobre a relaçáo entre a Igreja e o Estado suscitam a questão da tolerância de forma peculiarmente embaraçosa Sua concepção da Igreja visível é abrangente e ele não está disposto a afirmar que os hereges e os seguidores de Roma estejam mesmo que enganados fora da Igreja em um sentído final As questões absolutamente essenciais para a salvação são na sua maior pane quase auto evidentes e a maioria das disputas entre os cristãos dizem respeito a doutrinas que são em maior ou menor medida indiferentes à salvação Mas o Estado como vimos não pode ficar alheio a questões de religião embora sua preocupação principal seja inevi tavelmente a obsercia externa e a profissão de fé Não se pode tornar realidade por decreto uma doutrina que era fidsa antes embora possa criar um dever que não existia antes As leis humanas não podem obrigar um homem a crer mas podem e obrigam os homens a iirem como se cressem As leis humanas obrigam apenas exteriormente mas em muitas circunstâncias é inconveniente para a unidade pública que determina das opiniões sejam expressas ou postas em prática As autoridades civis devem cuidar da manutenção da verdadeira religião mas não têm o direito de decidir o que é a religião pura e em qualquer caso não é possível fezer cumprir as opiniões religiosas Dentro da Igreja portanto um considerável grau de diversidade doutrinária é inevitável e deve ser tolerado Contudo por outro lado as autoridades civis são encarrdas da manuten ção de uma ordem social estável da harmonia e da unidade da Igreja e do Estado Não podem tolerar ações que subvertam essas coisas litígios que dividam a sociedade em facções beligerantes ou a expressão de opiniões que são susceptíveis de incitar as pessoas a açóes ilegais ou antissociais Opiniões e sentimentos privados não podem ser controla dos e portanto devem ser tolerados Porém na medida em que opiniões e sentimentos são expressos de público ou dão orem a ação caem dentro do âmbito apropriado da lei humana e a tolerância deve ser limitada em consideração pelo bem comum O ponderado Hooker era contrário a todas as persqiçóes religiosas mas a tolerância incondicional lhe parecia uma impossibilidade política e teológica L e it u r a s A Hooker Richard The Lam ofEcclesiastical Polity in Hookers Works Ed John Keble Rev R W Church and Francis P s 7th ed 3 v Oxford Oxford University Press 1888 Bk I chaps iiv viü xxii xvxvi bk V chaps iii bk VIII chaps iiii B Hooker Richard The Lam ofEcclesiastical Polity Prefàce bks I II chaps viivüi bk VIII Richard H ooker 3 2 7 51 Ibid III i 1011 Sermon on Justification 52 Lam Prelàce üi 2 53 Ibid VIII vi 5 V bdi 15 Ixviii 7 F rancis Bacon 15611626 Para Francis Bacon barão de Verulam visconde de Saint Alban nada no inundo era mais importante ou de maior valia investigar que o problema da íilosoíia política a natureza do melhor Estado ou modelo de nação Para ser mais exato o que de mais precioso há na Terra resulta da reunião da mente do homem com a natureza das coisas Essa reunião teria lugar de fato quando a mente do homem pudesse subjugar a natureza de modo a forçar a natureza a produzir o artefato humano mais próximo da perfeição a comunidade que Bacon delineou em New Atlantis Nova Atlântida Embora Nova Atlântida seja a obra política mais importante de Bacon só podemos discernir sua importância se percebermos que os assuntos políticos significavam muito mais para ele do que normalmente se admite Para nos convencermos disso devemos entender a prática expressa de Bacon de utilizar antigas palavras e expressões para descrever coisas novas Bacon nega por exemplo que exista uma quinta essência Quinta essência é a denominação dada a um elemento das estrelas e das regiões celestiais diferente dos quatro elementos conhecidos água terra ar e fogo Este modo de encarar o firma mento que pode ser atribuído a Aristóteles é tratado com grande desprezo por Bacon que chama o céu de Aristóteles de um céu fantástico No entanto em um diálogo intitulado Advertisement touching an Holy War um dos personagens de Bacon sugere que o Sócrates do diálogo um homem chamado Eupólis pode ser a quinta essência Eupólis significa a boa cidade ou talvez de modo mais claro o país bem gover nado O que Bacon nega aos céus um quinto elemento ou essência parece conceder ao país bem governado Sua verdadeira rixa com Aristóteles então não é que Aristó teles tenha sugerido algo fantástico mas que procurou o fentástico no lugar errado 1 Cf abertura de Francis Bacon Instaurado Magna com New Atlantis Ed A B Gough Oxford Blackwell 1915 p 13 2 Advancement ofLeaming IIvii2 paragrafeçâo de acordo com a 5 edição de Oxford Ed W A Wright Oxford Oxford University Press 1900 O verdadeiramente fantástico encontrase de feto no mundo político do homem o mundo criado pelo homem Há uma outra expressão antiga causa final que Bacon utiliza para descrever algo novo A causa final é a finalidade para a qual as coisas existem e Bacon afirma que a busca por causas finais corrompera a filosofia natural Trata esta busca de modo tão desdenhoso quanto trata a busca pela quinta essência Todavia náo é com me nosprezo que Bacon admite que a busca por causas finais pode ser legítima quando se trata de coisas humanas Uma compreensão total desta busca conduz à noção de que homem é aquilo em torno do que se concentra o mundo no que diz respeito às causas finais Decerto discutir as causas finais como sendo compreensíveis apenas nas coisas humanas presumivelmente as coisas feitas pelo homem é mudar de modo ra dical o sentido das causas finais A causa final aquela pela qual todas as coisas existem são as coisas que o homem cria e a melhor coisa que o homem pode criar é a melhor nação a nação da Nova Atlântida a terra feliz a terra de todas as coisas terrenas mais dignas de conhecimento Tal coisa porém nâo existe exceto na mente de Bacon e em princípio foi construída por ele Resta para a humanidade construíla na prática O feto de que as coisas mais elevadas dependem da construção humana é um sinal da elevação do que é feito pelo homem o artificial sobre o natural A filosofia natural de Bacon era materialista e era semelhante àquele materialismo antigo em especial o mate rialismo de Demócrito que reconhecia como sua herança intelectual Poucos dos que o seguiram no entanto perceberam seu próprio reconhecimento exceto Shaftesbury Embora os ensinamentos materialistas e ateus de Demócrito conduzissem de modo natural a uma n ção da produtividade de qualquer busca por causas finais por si sós não eram capazes de conduzir à criação de causas finais humanas ou políticas Como ma terialismo o de Bacon é totalmente inovador na medida em que define uma finalidade humana suprema possível embora uma finalidade afetada pelo que hoje chamamos de utopismo A formulação de Bacon embora nova era influenciada pela obra de dois filósofos políticos que o precederam Maquiavel e Giordano Bruno Bacon parece aceitar a formulação de Maquiavel de que a filosofia política deve concentrarse no que os homens fezem e nâo no que deveriam fezer Como Maquiavel tomou como ponto de partida a situação extrema Bacon acreditava que a natureza era mais verdadeira e intelvel quando importunada e torturada por meio de expe rimentos tal como Maquiavel via a origem da boa ordem política nos extremos na violência e no crime Os homens sáo feitos de desejos e desses desejos se originam os Francis Bacon 3 2 9 Descriptio Glohi InteUectualU in Works Ed J Spedding R L Ellis and D D Heath Boston Little Brown 1861 VII 313 Holy War Works XIII 191 íF Novum Organum 148 e II2 Redargutio Works VII 52 esp Prometheus in De Sapientia Vete rum A Sabedoria dos Antigos Works XIII 44 ff Ver especialmente Cogitationes de Natura Rerum e Principiis atque Originibus Works V 203 ff e 289 ff Ver também as fábulas Cupid e Coelum in De Sap Vet Cf Shaftesbury Characteristics Miscellany II2 1732 ed III 69 Estados e as nações O homem possui uma mente e com essa mente pode dominar a namreza mas apenas por meio da submissão a ela e por tentar entendêla em sua íbrma mais irregular nas maravilhas e nos milses A submissão à natureza permite ao homem conquistar a natureza O próprio homem não tem um objetivo ou fim natural o cosmos é estranho e incompreensível O guia para todas as coisas está no apetite que está em todas as coisas para acolher e para expulsar Como Maquiavel Bacon foi um hedonista mas um hedonista que rejeitava as conclusões apolíticas do hedonismo dássico Quando Maquiavel fala em concentrarse no que os homens íàzem e não no que devem fàzer no entanto compara o seu próprio procedimento com o dos criadores de nações imaginárias Bacon conquanto elogie essa afirmação de Maquiavel criou ele mesmo uma nação imiinária A importância deste fàto surge quando percebe mos que assim como Bacon devia a Maquiavel seu ponto de partida a trajetória que assumiu seu pensamento político era completamente diversa O fato de que as obras políticas mais importantes de Bacon não são nem obras sobre a natureza do príncipe nem discursos sobre a história antiga mas que uma delas Sabedoria dos Antigos é uma análise dos mitos antigos e a outra Nova Atlântida uma refutação do mito platôni co revda algo sobre a diferença entre Bacon e Maquiavel Antes de examinarmos a im portância desses mitos porém devemos reconhecer que no ponto exato de seu início no próprio arcabouço do plano de Bacon há uma divergência quanto a Maquiavel A importância da fàma ou glória o fim pelo qual o egoísu realiza atos altruístas é para Maquiavel avassaladora Bacon porém parece oscilar entre o amor pela fàma ou pela sabedoria como a mais elevada paixão e fiuna ou a sabedoria como o bem maior Essa hesiução é apenas aparente no entanto pois aqueles que desejam a verdadeira fàma atingemna somente como amantes da sabedoria É como se Bacon dissesse a Maquiavel que as coisas pelas quais os homens são mais gratos não são os feitos dos heróis nem mesmo os atos dos fundadores de nações As coisas pelas quais os homens são gratos são as que mais aliviam a condição do ho mem uma finse baconiana ou seja as invenções É verdade que nos ensaios popula res Bacon referese aos fundadores de Estados e nações como os primeiros marechais da honra soberana porém em escritos mais recônditos aponta que os antigos fizeram deuses dos inventores enquanto fizeram dos heróis apenas semideuses Além disso se nem sempre se prestou tal honra é porque tem havido muito poucos inventores e seu trabalho tem sido na maior parte acidental Neste respeito os animais fizeram me lhor do que os homens Não admira que Bacon tomasse emprestado da antiga religião do Egito grande parte do simbolismo da Nova Atlântida sugerindo pelo menos algo que mais franco Bruno afirmara abertamente embora talvez de modo menos eficaz O Egito que para os cristãos representava a escuridão do mundo material era objeto de grande admiração um local onde as feras que criavam as invenções recebiam o que 3 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Works II 254 III 31 45 77 VI 327 DC 211 XII 119 213 275 318 XIII 124 222 Ver também a fíbula Sphinx in De Sap Vet mereciam Na própria utopia de Bacon além disso as estátuas são para os inventores não para os heróis Um dos objetivos práticos dos ensinamentos de Bacon é promover as invenções A antiga suspeita quanto ao progresso tecnológico é substituída por algo semelhante à fé no progresso tecnológico Teria esta como resultado as invenções cuja criação exe um novo método o método Novum Organum Novo Método de Bacon que é em princípio o método da ciência natural moderna Do ponto de vista político era necessário um verdadeiro Novo Exército Modelar dos seguidores de Bacon que estavam preparados para experimentar e tinham fé náo apenas em seus resultados científicos mas também nos benefícios políticos desses resultados Os ensinamentos de Bacon exigiam seguidores do mesmo modo que os de Maquiavel porém de um tipo diverso Nâo se tratava de um exército de estadistas mas de um exército de inven tores Náo havia uma razão determinante para acreditar que os seguidores de Bacon entenderiam seus ensinamentos Nem sequer era necessário que o fizessem A velha distinção entre filósofos e náo filósofos seria substituída por uma nova tripla distinção entre filósofos especialistas e o público Ensinamentos que resultam em invenções de mandam um grande conjunto de especialistas ou técnicos indivíduos que por causa da experiência compartilhada e do que hoje é chamado de pesquisa coletiva podem ajudar a melhorar muito a condição do homem Essas pessoas não têm de saber a ver dade sobre o cosmos ou sobre o homem Realmente não teriam de entender a filosofia política de Bacon mas apenas os métodos por meio dos quais as invenções poderiam ser realizadas É daro teriam de ser subordinadas àqudes que entendem que as in venções realmente contribuiriam para o alívio da condição do homem uma vez que as invenções também podem ser destrutit Bacon tinha suas próprias técnicas para impedir que as invenções destrutivas triunfassem sobre as construtivas O feto de que essas técnicas de proteção não existem hoje em dia não precisa ofuscar o julgamento superior de Bacon ao adotálas Os próprios inventores tinham de ser especializados no método Portanto a ênfese de Bacon sobre o método marca seu afestamento da fi losofia política de Maquiavel Sem negar a sublimidade do estadista Bacon sugere que os métodos que apresenta podem tornarse métodos para todas as invenções humanas incluindo as invenções políticas Embora Bacon não diga que a diplomacia será mais fócil quando auxiliada pela invenção moderna a conclusão decorre da certeza de que o método da Novum Organum pode ser aplicado a todo o conhecimento humano A fim de que as invenções se multipliquem Bacon teve de convencer os pode rosos de que as invenções eram politicamente inocentes Fez uma distinção entre o conhecimento puro da natureza e o conhecimento orgulhoso do bem e do mal e Francis Bacon 3 3 1 8 Essitys 33 Honour and Reputadon Todos os ensaios são numerados de acordo com a última edi ção editada por Bacon pessoalmente Bacon alterou a numeração de edições anteriores Ver também Works VI 143 Prometheus in De Sap Vet New AiLtnüs passim Novum Organum 1129 9 Alfted N Whitehead Science in the Modem World New York Macmillan 1925 p 60 IF 10 Novum Organum I 79 80 120 IF New Atlantis passim tentou proteger seu próprio conhecimento não só das conseqüências da doutrina da Queda mas também da perseguição Todavia está claro que se há uma passagem do método científico de Bacon para todo o conhecimento humano em todos os seus ramos deve haver invenções que não são politicamente inocentes Em última análise o conhecimento puro da natureza afeta e deve influenciar o conhecimento orgulhoso do bem e do mal Todavia quando pedidos são feitos a reis e patronos os candidatos devem expressarse com grande cuidado para que os reis e patronos não percebam o caráter revolucionário de suas propostas O próprio fato de que Bacon considerava que seus ensinamentos resultariam em invenções significava que tais ensinamentos deve riam ter um grande número de seguidores e que esses seguidores deveriam ter grande aprovação do público Não tanto para proteger a si mesmo como para proteger seus ensinamentos Bacon hesitou em enunciar de modo claro a sua filosofia política Até certo ponto não podia explicitála pois embora houvesse algumas coisas que consi derava resolvidas tais como a correção de seu método havia outros aspectos que não poderiam ser conhecidos até que as invenções que estavam para ser feitas realmente tivessem êxito em aliviar a condição do homem Por exemplo Bacon tinha grandes es peranças no futuro da medicina não só para a saúde mas também para a longevidade Se a vida humana pudesse ser libertada da morte natural e Bacon certamente sugeriu essa possibilidade as conseqüências difíceis de prever dessa liberdade obrigariam a algumas reservas quanto a quaisquer ensinamentos políticos definitivos Havia determinados aspectos relativos aos ensinamentos políticos finais que Ba con de fato afirmava conhecer Um deles é que o método científico resultando em invenções obrigava a uma visão da história bastante diferente daquela de Maquiavel Desse ponto de vista Bacon parece estar em dívida com Giordano Bruno filósofo que raramente menciona O feito que traz fama ao herói é limitado pelo tempo náo importa o que se possa dizer da fama em si O herói ajuda a seu país e o país pode ter ascensão e queda As invenções ao contrário pertencem à humanidade e permanecem com a humanidade Transcendem o que foi chamado de eterno retorno e Bacon se guindo Bruno considerava seu dever refutar a afirmação de eterno retorno A doutrina do eterno retorno referiase ao ciclo de nascimento crescimento decadência e morte e se referia a esse ciclo nas plantas e nas estações do ano tal como na vida humana e nos Estados e nações Todas as coisas humanas eram consideradas transitórias e essa visão que observa o ir e vir do verde na primavera era tida como natural por Bacon Embora fosse natural estava errada Era a principal fonte de desespero para o homem em relação ao futuro Entre os motivos de esperança para o futuro Bacon enumera com particular ênfiise o abandono da aceitação natural da recorrência pelo homem 3 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Ver Advancement ofLeaming I 12 Ver especialmente Historia Vitae etMortis Works III 331502 Os ciclos náo seguem seu curso e a grande era da modernidade a própria era de Ba con é mais grandiosa que a grande era da Antiguidade A ideia de que a grandeza da modernidade deve desafiar os ciclos que têm domi nado o pensamento histórico é uma ideia da qual Giordano Bruno estava consciente e a qual aparentemente lhe deu alento durante seus dias de perseguição Bruno falava sobre os fiutos da ciência moderna e acreditava que sua descoberta do universo infinito seria uma ajuda substancial na colheita desses frutos Em uma célebre fábula os homens cegos pela inépcia humana na compreensão o divino são curados da cegueira e adqui rem uma clarividência maior que a anterior em relação às mudanças humanas O bem e o mal podem ainda alternarse mas por causa da nova ciência de Bruno cada bem será um pouco melhor do que o último bem e cada mal um pouco menor do que o mal anterior Assim Bruno contrapõe seus próprios ensinamentos que trazem a tolerância em matéria de opinião justamente porque trazem unidade em matéria de ciência com as façanhas de Colombo e seus seguidores que insistem em impor suas próprias crenças aos outros Bruno esperava encontrar uma saída para a força inelutá vel da mudança humana Na busca dessa saída Bacon foi seu discípulo Enquanto Bruno acreditava porém que para transcender as mudanças recor rentes nas coisas humanas seria necessário chocar os homens e destruir o poder dos aristotélicos cristãos que dominavam a escolas Bacon acreditava que a paz civil so zinha poderia trazer o progresso científico e portanto o progresso político Assim comparavase a certo moleiro que rezava pela paz entre os salgueiros pois quando o moinho de vento labora o moinho dua labuta menos O moinho de vento na metáfora de Bacon a controvérsia religiosa era mais barato e mais fácil de operar que o moinho dágua que representava o avanço da ciência Bacon entendia que o progresso necessitava da experiência conjunta e da pesquisa coletiva que por sua vez exigiam instituições de ensino bem fornidas as quais por sua vez exigiam a paz civil Para promovêla ensinou o que pode ser chamado de uma filosofia política provisória Não usa o termo moral provisória usado mais tarde por Descartes mas defende um caminho moral e político que é certamente calculado para servir aos homens até chegarem à ilha utópica da Nova Atlântida Esse caminho político é provisório tanto na prática como na teoria No aspecto anterior é claro nâo há nada de novo nele Os filósofos políticos sempre perceberam F r a n c is B a c o n 3 3 3 13 Ver Bruno On the Infinite Universe and Worlds uma tradução foi reproduzida em DoroAea W Sii er Giordano Bruno His Life and Ihought pSIew York Henry Schuman 1950 p 24345 283285 ff OpereItahane Ed G Gentile Bari Laterza 192527 I 24 íF II 23 86 Eroici Furori na edi ção de Michel com tradução francesa DesFureursHérotques Paris 1954 1142057 311 Bacon Novum Organum I 84 92 14 Sobre os nove homens cos ver Eroiá Furori p 415 íF para o trecho sobre Colombo ver Certa de la Ceneri in Opere Italiane I 24 15 Paz entre os salgueiros vem da carta de Bacon de 10 de oumbro de 1609 paraToby MatAew a quem Bacon enviara parte de Instaurado Magna É concebível que a carta feça referência à intenção da obra A carta pode ser encontrada em diversas coleções dos escritos de Bacon que os homens tinham de viver em suas próprias sociedades que podem não ser as me lhores sociedades possíveis A visáo de Bacon era nova porque negava a possibilidade de imaginar a melhor ordem política antes que grandes progressos fossem atingidos na conquista da natureza Esse progresso permitiria que os homens soubessem o que poderiam desejar ou seja iria revelarlhes até onde poderiam chegar na previsão do bem para o homem Bacon situandose à frente da revolução científica precisava portanto professar ignorância do bem final para o homem Alegava saber o sufi ciente no entanto a partir do caráter alienígena do cosmos e da possibilidade de conquistar a natureza por meio de seu método aperfeiçoado para ter certeza de que os homens poderiam aprender o que desejassem e que isso de maneira geral seria bom Embora tivesse alguma percepção de sua própria utopia grande parte de seu trabalho preocupase com o Estado ou a nação que conduziriam o homem a esta utopia Sa bendo o quanto o conflito civil e religioso perturbaria a ciência Bacon procurou unir a liberdade aos costumes ou tradição Seus ensinamentos provisórios podem desta for ma ser caracterizados como conservadores e resultando na manutenção e ampliação de três instituições Coroa Igreja c Império No que se refere às duas primeiras pouco precisa ser dito Bacon era monarquista porque havia monarquia porque esta propiciava tempo para que cidadãos privados se dedicassem à política à filosofia e à ciência e porque era conveniente escrever sob um monarca para quem os escritos de Bacon se assemelhavam à paz de Deus excediam todo o entendimento O que se passa por entendimento se configura também como censura e se um monarca não é mais perspicaz que James I a monarquia pode muito bem associarse à liberdade Náo há certeza se Bacon era de fato monarquista que tivesse a prerrogativa em táo alta conta quanto alegava No que se refere a seu anglica nismo Bacon tinha consciência de que a Igreja Anglicana era a dos politiques na Grã Bretanha as pessoas que queriam derrubar as controvérsias religiosas e unir as nações Percebia sua liderança como menos intolerante que a dos puritanos ou católicos de tal forma que afirmava que essa igreja resolvera as controvérsias religiosas para sempre Há é claro um motivo mais profundo para a sua adesão Obviamente alguém que entende as causas finais e as quinta essências como relacionadas apenas com as coisas que o homem cria deve perceber seus próprios ensinamentos como divorciados da teologia A própria alegação de Bacon de que o conhecimento da natureza pode contornar a Queda pois não é o conhecimento da natureza que foi condenado pela Queda mas o conhecimento orgulhoso do bem e do mal iria afastálo naturalmente das controvérsias religiosas A Igreja que permitisse a separação entre filosofia e teo logia seria considerada por Bacon como a Igreja cristã que estaria mais próxima da verdadeira Igreja Bacon percebia esta separação na Igreja Anglicana e nâo na Igreja Romana pois acreditava ele era muito grande o poder dos escolásticos de dominar o conhecimento Também tentou porém fazer mais tolerante a Igreja da Inglaterra Foi 3 3 4 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 16 Provavelmente as mais fortes expressões de nossa ignorância do que desejamos está em Redargutio Works VIL Ver t a m b é m Organum I 70117 12022 poupado da necessidade de se juntar à queixa de Bruno de que o conhecimento era do minado pelo vulgo pois acreditava que na Inglaterra o problema fora resolvido O imperialismo de Bacon é um pouco mais complexo Embora tanto seu mo narquismo como seu anglicanismo possam ser considerados prudentes seu imperia lismo era ousado É talvez a única prova em seus ensinamentos provisórios para sua própria afirmação maquiavélica de que o caminho do meio útil em todas as outras atividades é funesto em política Para Bacon era um dever ampliar os limites do im pério um dever que fora negligenciado na filosofia política anterior à sua Não é difícil imaginar o que causa tal concepção de dever aos tradicionais princípios políticos Um dever de imperialismo implica que as melhores sociedades não são cidades pequenas mas grandes impérios Atribui valores à grandeza não só em termos de poder mas também em termos de tamanho Naçóes com populações em crescimento como a GrãBretanha tiveram melhores oportunidades para a grandeza do que países com populações pequenas populações que não puderam manter seus impérios como a Espanha O cumprimento de tal dever exige uma conduta mais agressiva que justa e a coragem em si passaria a ser a virtude da guerra independente da justiça da guerra Na verdade a busca da guerra justa um problema tão significativo para os escolásticos e para Grócio contemporâneo de Bacon assume um sentido completamente diverso em Bacon quando caracteriza uma guerra apreensiva ou o que é popularmente cha mado de guerra preventiva como uma guerra defensiva e justa Qualquer guerra contra qualquer nação que se empenha em conquista como a Turquia ou a Espanha seria então uma guerra justa porque seria uma disputa acerca de uma apreensão de guerra Em outras palavras se uma nação A cumprir seu dever ampliando seu impé rio a nação B observando tal ampliação estará cumprindo seu dever ao entrar em guerra contra a nação A Talvez seja essa a forma baconiana da doutrina do estado da natureza entre soberanos e em um estado de natureza a ação é egoísta e a solução imperialista O próprio conceito de guerra justa parece entrar em colapso diante da solução imperialista para o problema Quando Bacon afirma que o problema da extensão do império é negligenciado na filosofia política podemos perguntar com justiça por que parece ele não levar em conta o modo como Maquiavel trata da questão Maquiavel aprovava ações belicosas e metas imperialistas e os precedentes históricos que mais enfaticamente apresenta para a emulação dos fundadores dos modos e ordens é a Roma guerreira e imperial Toda via Bacon considerava o estudo e a discussão do dever de expandir o império como um estudo a que não se dava a devida atenção Não é de todo fiicil entender por quê F r a n c is B a c o n 3 3 5 17 VercspecialmenreEifígif317 8Advancement fLeam ingW O yáotASpeáàsagLifiand Letters o f Lord Bacon reproduz o Advertisement touching the Establishment o f the Church o f England que Bacon náo publicou I 74 ff Ver também cartas em I 48 III 4850 V 373 18 Ver Essay 29 e True Greatness ofthe Kingdom ofBritain Works XIII 231 ff Quanto ao imperia lismo como um dever ver a traduçáo latina do Essay 29 in De Augmentis Scientiarum Works III 120 ver também o texto sobre a Guerra Espanhola em Life and Letters VIII 483 Holy War está em Works XIII 191 ff A declataçáo acerca do caminho do meio é de ZV Sap Vet Icarus A única diferença clara entre o imperialismo de Bacon e o de Maquiavel diz respeito à importância do poderio naval O imperialismo de Bacon é enfaticamente um imperia lismo naval o que o de Maquiavel náo é A diferença parece ser muito pequena mal justificando a alegaçáo de Bacon de ter sido o primeiro a considerar o imperialismo como um dever cívico Devemos nos lembrar entretanto que o tipo de pessoas que poderia promover um imperialismo naval de sucesso tratavase por volta de 1600 de homens novos Eram estes o tipo de pessoa que poderia seguir os conselhos que Ba con espalhara de modo táo liberal em seu Advancement ofLeaming a fim de aprender a conviver no mundo praticar as artes da retórica e da gestão de negócios e a arte do cortesão Eram aqueles que poderiam trazer as comodidades e luxos dos cantos mais remotos da Terra para as lojas de Londres Eram homens que não se envergonhavam da usura que Bacon defendeu Eram aqueles que podiam pensar no imperialismo em termos de ganho econômico ao contrário de em termos de um poder despótico Eram os verdadeiros representantes do espírito do capitalismo para o qual contribuiu Bacon pelo menos tanto quanto Calvino e talvez mais O imperialismo de Bacon era de certa forma uma ligação entre os seus ensi namentos provisórios e definitivos porque sozinho dentre os sustentáculos de seus ensinairientos provisórios era o que abria caminho para o novo homem Dirigiase menos a reis príncipes e clérigos que aos comerciantes A sociedade agressiva de Bacon era uma sociedade povoada por aqueles que aceitavam ser guiados por sua arquitetura da fortuna por recomendações sobre como se dar bem no mundo um estudo que acreditava ter sido esquecido pelos escritos políticos anteriores Essas pessoas deveriam ser os baluartes do novo imperialismo naval Eram para o homem a nau que trans portaria a humanidade para a Nova Atlântida Essa nau seria primordialmente uma nau britânica e Bacon concebia a realização de sua utopia principalmente como uma conquista britânica A GrãBretanha estava madura para a guerra justa Possuía a raça mais guerreira dos homens O reino dos céus era como um grão de mostarda uma pequena semente da qual cresceria uma grande árvore A ideia de imperialismo foi uma das que Bacon comparou com a semente de mostarda A partir da pequena semente que era a GrãBretanha germinaria um grande império Não íàríamos total justiça a Bacon no entanto se imíinássemos que seu im perialismo fosse um objetivo estreito para uma nação Sua qualidade agressiva fora concebida com uma finalidade muito mais importante que o imperialismo britânico a saber para o domínio da humanidade sobre a natureza Essa qualidade pode muito bem ter sido o elo entre os ensinamentos provisórios e definitivos Esses ensinamen tos definitivos só foram concluídos em parte nos próprios escritos de Bacon mas esperavase que transcendessem tanto o tempo como o lugar A transcendência nos leva de volta para o problema dos velhos mitos A Sabedoria dos Antigos De Sapientia Veterum é uma coleção de fábulas antigas com interpretações do próprio Bacon Que 3 3 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 19 Ver em geral a discussão sobre a arquitetura da fortuna em Advancement o f Leaming II xxiii Ver também Essays 34 36 41 e as citações no n 18 Bacon a considerava como uma obra muito importante é indicado por sua declaração no Prefacio de que mesmo em seu próprio tempo quem quer que tivesse uma nova verdade a apresentar teria de apresentála exatamente dessa maneira Embora fingindo interpretar velhos mitos ou fábulas Bacon na verdade apresenta seus próprios ensi namentos tanto quanto a estrutura do mito permite a invenção As fábulas antigas são consideradas como uma permuta entre a mais remota antiguidade que está enterrada no esquecimento exceto pelo que nos diz a Bíblia e os assuntos históricos Esta liga ção entre as coisas históricas e as primeiras coisas constitui porém algo mais pois como indica a comparação bíblica tratase de um elo entre as coisas divinas e as coisas humanas Como porém a única divindade que pode ser compreendida é a divindade criada pelo homem as fábulas antigas são apresentadas como o caminho para a divin dade por meio do estudo e da conquista da natureza Na verdade não importa se os autores préhoméricos das fábulas pensavam ne las do mesmo modo que Bacon se viam por exemplo a corte a Juno como a busca do conhecimento político a procura de Eurídice como a busca pela filosófica ou os enigmas da Esfinge como a fonte da distinção baconiana entre o reino da natureza e o reino do homem Ao contrário dos relatos bíblicos esses contos representam um modo mais natural de encarar o homem e o mundo e sugerem que se não fosse por Aristóteles e pelo cristianismo talvez não fosse necessário esperar por Bacon até que o homem pudesse criar a sociedade que conquistou a natureza Bacon segue Bruno quando afirma que a época atual é a Antiguidade a era antiga do mundo quando os homens sabem mais que aqueles que eram chamados os antigos Todavia o mito de maior importância para Bacon é por um lado de sua própria criação por outro uma refiitação do mito platônico e se encontra na Nova Atlântida Esta obra é uma descrição de uma utópica ilha no Pacífico e formalmente é incom pleta Termina de modo abrupto no final de uma descrição da instituição denomi nada Casa de Salomão a mais importante e poderosa do território uma academia de cientistas Alguns autores concluíram que Bacon se cansou da obra e não se preocupou em terminála Deuse ao trabalho porém de traduzila para o latim em benefício de outras terras e embora essa tarefe não fosse tão momentosa para Bacon como o seria para outros ele a teria realizado somente se acreditasse que a obra tinha algum mérito Bacon deixou incompleta uma série de obras inéditas A Nova Atlântida não é uma delas A obra aliás pretende ser uma refutação de um diálogo platônico o Critias que também é formalmente incompleto Quando entendermos por que a Nova Atlântida é formalmente inacabada teremos dado um passo em direção a sua compreensão A Nova Atlântida difere de forma radical de algumas das ilhas utópicas que a precederam como a Utopia de Thomas More Diziase que a descoberta desta última dependia do acaso e não se podia revelar onde encontrála Os que rumavam para a Nova Atlântida também dependiam do acaso mas uma vez que avistassem a ilha seu F r a n c is B a c o n 3 3 7 20 De Sap Vet Works XII 427 IF e XIII 1 ff acesso era facil e a terra era divisada de manhã à noite tal como os filhos de Israel per ceberam à noite que o Senhor os conduzira para fora do ito e na manhã seguinte veriam a glória do Senhor É muito claro que Bacon tencionava que a Nova Atlântida representasse a Terra Prometida Dálhe o nome de terra feliz terra abençoada uma terra de anjos Afirma que na língua dos nativos é chamada de Bensalem o que significa o Filho Perfeito As imagens marítimas de Bacon além disso represen tam o triunfo da navegação e por conseguinte da ciência Ao contrário de A Tempes tade ou Péricles de Shakespeare em que as imagens marítimas mais importantes são caracterizadas por tempestades na Nova Atlântida os viajantes singram para a ilha em mar calmo A imagística é comparável ao sugerido pela frase a paz entre os salgueiros Assim exigia a utopia moderna A história da Atlântida uma ilha em algum lugar no Ocidente tal como chega a nós através de Platão é a história de um paraíso tecnológico O povo de Adântida corrompido pelo luxo lutou contra uma velha Atenas com nove mil anos de idade quando se supõe que Sólon contou sua história foram derrotados e seus exércitos não retornaram Mais tarde a ilha foi punida por Zeus com o extermínio e se tor nou um banco de areia que impossibilitava a navegação Ao contrário da Adântida que foi destruída por um terremoto para nunca reviver a velha Atenas pereceu em um dilúvio sobrevivendo o povo das montanhas que mais tarde construiu uma nova Atenas Bacon deliberadamente vira de cabeça para baixo o mito de Platão Admite que foi destruída a antiga Atlântida mas por um dilúvio sugerindo que lá também o povo da montanha sobreviveu e mais tarde construiu as civilizações inca e asteca A Nova Adântida como a antiga Atenas derrotou um exército adântico mas lhe deu um tratamento mais humano que os atenienses e lhes permitiu retornar para casa A Nova Atlântida além disso sobreviveu a um dilúvio Possuía algo que a antiga Atenas não possuía um meio de sobreviver aos dilúvios Possuía a ciência baconiana e com o auxílio dela foi capaz de transcender as vicissitudes do tempo Ao dizer vicissitu des Bacon referiase tanto às catástrofes naturais como à decadência política A Nova Adântida é um regime transhistórico e Bacon utílizao para negar a visão comparti lhada até mesmo por Maquiavel de que as sociedades vão e vêm Bensalem não vai e vem Sua própria idade contraria a visão cristã da idade do mundo que prevalecia na época de Bacon ou seja menos de seis mil anos Ao chegarem à ilha os viajantes são primeiramente advertidos embora se apro ximem de Bensalem doentes e na penúria de que não devem aportar Depois de uma breve inquisição sobre seus costumes porém são autorizados a desembarcar e permanecer em terra São apresentados à estranha ilha por um sacerdote cristão que é o Governador da Casa dos Estrangeiros Este discute o milagre que levou a Bíblia a Bensalem e as maneiras como Bensalem desconhecida da Europa sabe a respeito da Europa Por meio de expedições secretas Bensalem aprende as coisas da Europa que lhes parecem valer a pena conhecer as invenções e o progresso das ciências O governador conta também aos viajantes sobre o passado quando o famoso monarca de Bensalem o rei Solomona fimdou a instituição denominada Casa de Salomão Os 338 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a 5 L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y viajantes ficam conhecendo um comerciante judeu chamado Joabin que ocupa po sição claramente superior na hierarquia de Bensalem em relação ao sacerdote cristão Joabin explicalhes o mais importante festival de Bensalem chamado a festa deTirsan ou pai de fiunília e contrasta favoravelmente os costumes nupciais de Bensalem com os da Europa Apresentalhes um funcionário ainda mais importante um dos Pais da Casa de Salomão Este funcionário porta trajes dignos do sumo sacerdote do Antigo Testamento locomovese com uma esplêndida carruem e abençoa o povo de ma neira que lembra Cristo ou o papa Também consente em falar com um dos viajantes e o próprio narrador do conto é escolhido para esta honra O funcionário descreve a organização e as funções da Casa de Salomão obviamente o corpo dirigente da ilha e dá ao narrador permissão para divulgar em prol de outros Não fidta dramaticidade à história de Bensalem A ilha pouco é afetada pelo que fazem os viajantes mas estes no decorrer da narrativa sofrem grande transformação Chegam a uma ilha abençoada porém inóspita que os salva mas não os acolhe Não sabem se verão a Europa de novo mas quando recebem permissão para ficar e quan do ficam sabendo da conversão de Bensalem ao cristianismo querem aí permanecer Todavia não estão prontos para ficar e a discussão dos festivais do papel e do governo da Casa de Salomão representa uma espécie de iniciação São enrijecidos para a vida na utopia No decorrer da aclimatação dos viajantes ou o que pode ser chamado mais propriamente de sua conversão a liderança passa do capitão de seu navio ou homem principal do grupo para o narrador que é visivelmente o homem mais culto a bordo Sua noção de governo deve aproximarse da que prevalece na própria Bensalem antes que os viajantes estejam prontos para se tornarem cidadãos de Bensalem A mudança parece ser o processo pelo qual a sociedade ocidental e cristã é transformada em so ciedade universal Os nomes as imsens de Bensalem são extraídos de uma variedade de fontes Enquanto a viagem em si é uma viagem para o ocidente as imagens são predominantemente orientais e são provenientes da Palestina Egito Pérsia Ao sugerir que se pode ir para leste viajando para oeste Bacon aponta que as vicissitudes do espaço bem como do tempo podem ser transcendidas pelo regime bem governado A autenticidade do milagre que levou a Bíblia para a cidade de Ren flxsa da natureza das ovelhas em Bensalem antes de ser levada para o Ocidente é atestada por um membro da Casa de Salomão Sua reivindicação do poder de julgar baseiase em seu conhecimento da filosofia natural e os ensinamentos bíblicos são aceitos apenas na medida em que estão de acordo com os ensinamentos universais da filosofia natural O que se segue politicamente é o poder quase absoluto da fraternida de científica da academia da Casa de Salomão O exercício do poder colegiado necessitava porém do apoio de um aliado A Casa de Salomão poderia decidir que invenções podem ser oferecidas ao Estado e quais não o podem Sabemos bem hoje como previu Bacon que uma ciência que procura imitar o raio deve ter alguma proteção contra seu uso e abuso A própria sociedade F r a n c is B a c o n 3 3 9 21 A frase vem de Redargutio Works VII 93 teria de instituir determinadas salvaguardas Sáo estas de dois tipos a salvíuarda do poder colegiado que ao decidir que invenções podem ser reveladas limita o conheci mento público e a salvaguarda do poder paternal que reforça a virtude Poderíamos denominálas a salvaguarda da ignorância pública e a salvaguarda do espírito público Quanto a este último a Nova Atlântida de Bacon parece sierir uma determinada religião civil um de cujos festivais é a festa de Tirsan Tirsan é um pai de íàmília que possui 30 descendentes vivos com idade superior a três anos Sua festa é uma mistura de festas pagãs mas difere da celebração comum da abundância pois é uma recom pensa para a longevidade bem como para a fertilidade Seus símbolos lembram Osíris e ísis divindades egípcias Propicia a união entre a piedade ou reverência para com a idade e a natureza ou reverência para com a fertilidade e abundância O próprio Tir san recebe não só honras mas também poderes Bacon coloca grande êníàse no caráter monogâmico de Bensalem chamandoa a Virgem do Mundo outrora a designação de ísis mas incompreensível numa utopia femosa pela fertilidade Sua importância reside no caráter grave da festa de Tirsan bem como dos demais festivais de Bensalem Em outros lugares Bacon distingue entre os sentimentos que são naturais a todos os homens e os sentimentos perturbados que é como chama as paixões Uma vez que a festa de Tirsan glorifica os sentimentos imperturbáveis é uma celebração náo apenas da idade e da fertilidade mas também da virtude Suas recompensas são recompensas ofertadas pelos verdadeiros governantes de Bensalem os Confrades da Casa de Salo mão para aqueles cujos prazeres são íiéis e simples A importância política da íèsta de Tirsan reside na união do antigo poder patriar cal com a nova e vigorosa ciência A religião civil acrescentando devoção à ciência torna seguro o governo da ciência ao mesmo tempo os governantes precisam assegu rar a religião civil por meio das obras da ciência O progresso convenceria os homens do valor da virtude Se todos os homens são guiados por afeições mas as afeições que contribuem para a vida boa são aquelas que livram a mente das perturbações então a melhor vida é a vida filosófica a vida mais livre de perturbações e em especial da mais poderosa fonte de perturbação ou seja a superstição Nessa visão Bacon seguia Lu crécio mas foi mais longe na tentativa de construir uma sociedade na qual os cidadãos cm geral pudessem ser relativamente livres de perturbações Sua liberdade porém dependeria não do conhecimento mas da ilusão Enquanto Bacon afirmava que sua ciência muito íária para nivelar as mentes dos homens também deixava claro que só poderia ser entendido por todos em termos de obras A totalidade dos homens jamais compreenderia realmente a ciência baconiana Enquanto o poder paterno é definitivamente subordinado ao poder coliado sur ge para substituir o poder real É o Estado não o rei que dá aos viajantes permissão para permanecer em Bensalem e Elizabeth I opunhase à utilização da palavra Estado Os reis são mencionados na Nova Atlântida mas o governo dos reis fenece Aqueles que 340 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 22 Cf Novum Organum I 122 com I 128 governam alcançam ou se aproximam das formas de imortalidade reconhecidas como possíveis por Bacon Tirsan alcança a imortalidade que acompanha a reneraçáo e se aproxima da imortalidade corpórea que transcende a morte Os Confrades da Casa de Salomão podem alcançar a imortalidade que vem da fiuna Estes últimos compõem um conjunto muito restrito que representa uma pequena finção da população Quando os viajantes são informados de que um dos Pais da Casa de Salomão visitará a cidade onde estão hospedados são informados também de que há 12 anos a população da cidade não vê um desses pais Embora o recrutamento náo seja feito de acordo com o nascimento e a participação no grupo dominante seja nesse sentido democrática é enorme a dis tância entre o governante e o cidadão Há aparentemente 36 pais e confrades Bacon tinha tanta certeza do acordo entre os confrades quanto à verdade científica e sua utili dade apropriada que não propôs que a casa tivesse um número ímpar de membros nem tentou fàzer com que sempre fosse possível a maioria O que impediria um membro do grupo dominante de tentar tomar o poder de oferecer ao Estado invenções perigosas O que impediria as pessoas de exigilas numa crise nacional Bacon pouco nos diz a respeito Há um elemento de fé na construção de sua utopia como há em geral no pensamento utópico moderno uma fé de que pode ser preservada uma tripla distinção entre filósofos especialistas e o público em geral A preservação dessa distinção pressupõe que os especialistas respeitem os filóso fos e sejam guiados por eles ou que o conhecimento permanecerá subordinado à sabe doria Sob tais condições os homens nâo insensibilizariam seus cérebros para propagar o comunismo ou dividir o átomo para destruir mundos pois o conhecimento seria mantido a serviço do bem do homem Conhecer o bem do homem pode exigir maior conhecimento dos sentimentos do que possuía Bacon mas este afirmou conhecer pelo menos os modos de vida que a sociedade de Bensalem protegeria e asseguraria Devemos agora compreender mais claramente a tentativa de refutação de Platão O Crítias termina abruptamente quando Zeus reúne os deuses para lhes falar de um lugar de onde poderiam ver todo o mundo do devir Conclamaraos para punir a Adântida e presumivelmente seu discurso não escrito lidaria com esse castigo e com a destruição da Adântida A obra de Bacon também termina com um discurso mas o discurso é pro ferido Não é sobre a destruição de algo que vem a ser e termina mas sobre como evitar a destruição Náo é enunciado por Zeus mas é quase divino o homem que o profere Abençoa o povo de forma semelhante à de Cristo ou de um papa sua confraria tem o poder da adivinhação natural e ele olha para a humanidade com compaixão Com seus antecessores criou uma nação de onde também divisam porém transcendem o mundo do devir Conhece os segredos de Zeus e pode revelálos Omite porém algumas coisas porque não pode enunciálas pois a filosofia natural só pode resultar totalmente na filo sofia política quando o homem descobrir como imitar o raio Os meios pelos quais os Confrades da Casa de Salomão veem o mundo do devir se apresentam sob a forma de liberdade de viajar Bensalem é na verdade uma socie dade fechada São adotadas restrições de viagem que correspondem bem de perto às encontradas nas Leis de Platão As viagens por Capricho tão necessárias para alcançar Francis Bacon 341 a Nova Atlântida são proibidas nessa sociedade uma vez que se chega a ela Tal como nas Leis o contacto com a imperfeição poderia corromper até mesmo Bensalem As viagens entâo sáo restritas aos mais elevados e aos mais sábios neste caso chamados de Mercadores da Luz Enquanto os viajantes platônicos procuram os homens divi namente guiados que podem ser criados em países corruptos bem como nos incor ruptos os viajantes baconianos buscam a luz Isso sugere é claro que a ciência euro peia uma ciência que para Bacon dependia do acaso pode ter algo a ensinar a uma ciência que depende de um domínio sistemático sobre a natureza Só os mais sábios entretanto percebem e escolhem os benefícios da ciência acidental Como Bensalem tende a se tornar uma sociedade universal a ciência deliberada irá retirar tudo o que puder da ciência acidental e serão eliminados os perigos da corrupção externa O que aconteceria então com o espírito mercantil e imperialista dos ensinamen tos provisórios de Bacon Embora Bensalem seja opulenta é uma sociedade hospita leira que mantém um ritmo bastante descansado Através da mistura de ciência jovem e sociedade antiga é capaz de temperar seu luxo com simplicidade e obediência Tal sociedade não é aquela que costumamos associar com a supremacia do comércio e tem pouca semelhança com a GrãBretanha faminta comercial Parece que o espírito do comércio e na verdade o espírito do imperialismo já não são necessários para a frui ção da ciência baconiana A ciência iria fornecer o luxo associado ao comércio e a uni versalidade de Bensalem tornaria desnecessário o espírito agressivo do imperialismo Bensalem é uma sociedade pacífica Enquanto Bacon certamente não tivesse su perstições finge não copiar a Roma guerreira como fez Maquiavel mas uma religião civil mais pacífica a do p d o Osíris Além disso Bensalem aparentemente não trava guerras há muitos anos uma vez que parece conhecer o resto do mundo apenas através de seus Mercadores da Luz O rei cujas forças certa vez derrotaram a antiga Adântida chamavase Altabin o que sugçre em sua origem latina que era duas vezes elevado Esse rei permitiu que seus inimigos voltassem para casa com a promessa de não lutar novamente contra a Nova Atlântida uma promessa que Maquiavel teria considerado louca c que Bacon parece ter considerado tola pelo menos O rei era eleo por suas qualidades de estadista e por sua humanidade Após Altabin e com a criação da Casa de Salomão os governantes que emergiram eram três vezes sublimes o que é sugerido pela figura mítica de Hermes Trismegisto três vezes elevado Eram elevados também por sua sabedoria Sob seu governo os armamentos de Bensalem prosperaram incluindo até mesmo incêndios que nunca se apagam canhões mais violentos imitações do voo dos pássaros e navios que se movem debaixo da água O que quer que já tenha sido feito com esses instrumentos terríveis não há nenhuma indicação de que os governantes de Bensalem os tenham usado Possuíamnos porque Bensalem com a sua estranha religião civil e sua utopia hedonista teria necessitado de poderosas defesas em um mundo hostil Mas Bensalem parece não ter travado guerra alguma desde Altabin É possível entender melhor o que acontece com o espírito quando examinamos dois outros tratamentos do problema Um deles se encontra na discussão de Bacon a respeito do mito de Perseu em Sabedoria dos Antigos Supostamente a fiibula trata 342 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey da guerra mas o tratamento de Bacon dedicase na íntegra a uma cruzada e nada diz sobre a guerra defensiva apenas Na verdade a interpretação da fábula parece ser a descrição de uma cruzada cristã e de uma contracruzada ou guerra defensiva pelos opositores do cristianismo A guerra é menos uma guerra real que uma campanha de proselitismo terminando com uma vitória sobre as mentes dos homens É provável que mais importante que o tratamento desta íábula seja o diálogo sobre a Guerra Santa que é como a Nova Adântida formalmente incompleto O diálogo começa com uma discussão sobre a guerra contra os infiéis e se essa guerra é uma guerra jus ta e termina com recomendações para a guerra contra o não natural O cético do diálogo um cortesão denominado Polião sugere que se os interlocutores realmente querem travar uma guerra santa devem organizála como uma cruzada e encontrar um papa chamado Urbano para conduzila já que um Urbano realizou a Primeira Cruzada O nome Urbano referese à palavra latina para cidade mas passou a signi ficar não apenas qualquer cidade mas a melhor cidade Roma O nome do Sócrates do diálogo Eupólis referese também à melhor cidade mas grega não romana A cruzada que Bacon defendia a única guerra santa que poderia de fato apoiar era a cruzada conduzida pela melhor cidade ou país bem governado quer seja denominada Eupólis ou Bensalem Náo é eliminada a possibilidade de que essa guerra santa possa ser realmente um conflito armado mas a guerra santa é em princípio uma cruzada para a emancipação do mundo das tradições obscurantistas A guerra santa além disso resolve o problema várias vezes suscitado na Sabedoria dosAntiffs o problema da relação entre íilosoíia natural e íilosoíia política Orfeu viajou para o inferno para recuperar sua esposa Eurídice Salvoua mas olhoua prematura mente quando a conduzia para a luz Então voltouse para os animais e as pedras evi tando a companhia das mulheres e subjiou a floresta com sua lira Foi bemsucedido nisso até que as mulheres da Trácia abaíáram sua música com o seu ruído revoltado e o mataram Orfeu diz Bacon era um homem maravilhoso e totalmente divino Era um filósofo completo A filosofia completa significava para Bacon a filosofia natural e a filosofia política Os poderes das trevas representavam a natureza e não fosse por sua impaciência Orfeu teria dominado a natureza e resgatado Eurídice que representa as coisas com as quais se preocupa a filosofia Sua incapacidade de fazêlo trouxe me lancolia um sentimento não adequado à filosofia Mesmo em sua melancoUa porém Orfeu subjugou outras forças estranhas animais e pedras tal como os homens fimdam Estados e nações Essa subjugação porém era temporária como devem ser temporários os Estados íundados sem a inteireza da filosofia natural O ruído das mulheres da Trácia era forte demais para Orfeu As mulheres da Trácia eram seguidoras de Dionísio e não representavam apenas o delírio mas principalmente o delírio religioso Era esta a mais violenta das paixões e a mais propensa a destruir a nação O que teria acontecido se Orfeu não tivesse sido impaciente Teria conservado Eurídice mas teria ainda subjugado os animais e as pedras E teria necessitado competir com as mulheres da Trácia Na íábula existem três forças estranhas que representam a natureza os poderes infernais o homem animais e pedras e os ritos religiosos que os Francis Bacon 343 homens cxiatam as mulheres daTiáda As duas primeiras podem ser subjugadas a ter ceira teria de ser destruída Eurídice no entanto a quem o filósofo ama também deve representar a humanidade A estrada que Orfeu toma conduz por meio da contempla ção aos mais obscuros e mais recônditos stedos da natureza Em seguida conduz de volta para a luz levando consigo a humanidade Há certa ambigüidade na siestão de que há duas imitações da humanidade na fiibula mas Bacon não inventou a fábula e teve de utilizála tal como a encontrou Sem dúvida se Eurídice representa as coisas com as quais a filosofia se preocupa como diz Bacon então representa as causas finais e estas nos ensinamentos de Bacon só podem ser relacionadas à humanidade A ciência da política diz Bacon em outro lugar é uma ciência secreta não só porque é dificil conhecêla mas porque não é digna de ser proferida Isso significa que enquanto o conhecimento é apenas difícil o ensino é também em certo sentido ver gonhoso A razão pela qual o conhecimento político é vergonhoso é que pode destruir grande parte daquilo que os homens prezam se não for transmitido com cuidado e prudência Assim em outra fábula Bacon íàla da nudez no sentido de segredos políti cos e na Nova Atlântida a nudez dos futuros noivos pode ser entendida como relativa à vergonha da política Aqui Bacon se refere aos cuidados de Orfeu para com sua própria esposa Com seu retomo ele conquistaria ou governaria a humanidade Não seria então possível que as flautas das mulheres da Trácia abafassem sua lira Em outras palavras uma vez que o domínio da natureza uma meta universal tivesse sido alcan çado poderia ser criada a sociedade universal e o homem poderia ter a sua utopia No entanto a melancolia de Orfisu não é necessariamente apenas o resultado de seu desespero Somos informados de que os olhos do Pai da Casa de Salomão de monstravam que tinha compaixão pelo homem Ainda em outra obra Refutation of Philosophies o filósofo fálando diante de um congresso internacional também tinha olhos de compaixão para com o homem Por que seria isso necessário dentro da utopia Bacon parece ter notado algo que nem todos os seus sucessores observaram A humanidade pode acreditava ele livrarse das velhas superstições religiosas Mas novas instituições civis teriam de ser colocadas em seu lugar e apenas uns poucos homens seriam realmente livres porque muito poucos homens poderiam ser verdadeiramente sábios A universalidade dos sentimentos humanos por meio da qual a filosofia deve orientar seu curso não conduz no pensamento de Bacon à inferência da igualdade natural Pode haver grande valor em aliviar a condição do homem em minimizar a pobreza e a doença Todavia ainda se deve ter compaixão pelo homem cujo destino é miserável pois há algo mais importante que o homem não pode ter talvez a felicidade talvez a sabedoria talvez Deus L e it u r a s A Bacon Francis Nova Atlântida 344 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph C ropsey 23 WorksYl59 F r a n c i s B a c o n 345 Bacon Francis Sdedoria dos Antigas Preíacio Fábulas 11 Orpheus 16 Junos Suitor 26 Pro metheus Bacon Francis Essay 29 O f the True Greatness of Kingdoms and Estates B Bacon Francis Sabedoria dos Antigos Fábulas 1 Cassandra 5 Styx 7 Perseus 10 Acteon and Pentheus 6 Pan 12 Coelum 22 Nemesis 24 Dionysus 28 Sphinx Bacon Francis History ofthe Reign ofHenry VII Bacon Francis Advertisement touching an Holy War Bacon Francis Ofthe True Greatness ofBritain Bacon Francis Essays 6 Simulation and Dissimulation 10 Love 11 O f Great Place 13 Good ness and Goodness of Nature 14 Nobility 16 Atheism 17 Superstition 19 Empire 41 Usury 51 Factions 55 Honour and Reputation 58 Vicissitude of Ihings Bacon frssrás Advancement fLeam ing in SelectedWritin New York Modem Library 1955 Bkll p 34578 seçáo sobre Civil Knovdedge H ugo Grócio 15831645 Hugo Grócio era cidadão holandês Um verdadeiro prodígio de aprendizagem bem como homem de ação foi diplomata advogado ministrado estudioso e profes sor mas em essência tratavase de um jurista Considerava sua maior obra o De Jure Belli ac Pacis 1625 ou Das Leis da Guerra e Paz como um tratado jurídico não como um tratado de teoria política e distinguiu explicitamente suas intenções como jurista das intenções de Aristóteles na Política como as de um cientista político A obra de Grócio não é porém apenas um tratado sobre o direito positivo Nem se limita a despeito de seu título ao tratamento da lei da guerra e da paz quer dizer o direito internacional tal como o conhecemos hoje Vem a ser pelo contrário como indica seu subtítulo um tratado geral sobre as leis da natureza e das nações jus rutturae et gentiuni e sobre os principais aspectos do direito público jus publicuni Embora seja verdade que Grócio enfoque a lei da guerra e da paz sempre coloca este ramo específico da jurisprudência dentro do âmbito de uma análise jurídica geral do direito e do governo No que se refere à história da teoria política portanto a obra de Grócio é rele vante porque em primeiro lugar é um excelente exemplo de ensinamentos jurídicos em oposição a ensinamentos especificamente filosóficos ou teológicos a respeito da po lítica em segundo é um exemplo magnífico dos numerosos tratados de direito públi co natural escritos por juristas e teólogos da Europa Ocidental a partir do século XVI e ao longo do século XVIII Outros exemplos importantes de tais obras são Tractatus de legibus ac Deo Legislatore Tratado sobre as leis e Deus como Legislador 1612 do jesuíta espanhol Francisco Suárez De jure naturae et gentium Sobre o direito da natureza e das nações 1672 do jurista alemão Samuel Pufendorf e Jus Gentium O direito das nações 1758 do diplomata suíço Emmerich de Vattel A importância prática de tais obras pode ser aquilatada pelo fato de que Grócio Pufendorf Vattel e outros se constituíram em autoridades para estadistas e advogados inclusive os pais íundadores dos Estados Unidos 1 Hugo Grotius The Law ofWar andPeace Prolegomena 57 IIix8 A ideia de que o homem é por natureza um animal racional e social é o princí pio central do tratado de Grócio A obra começa com uma reafirmação da luta secular entre o convencionalismo clássico e o direito natural clássico Grócio atribui a tareia de defender a tese do convencionalismo a Carnéades que foi líder da Academia tardia em Atenas Grócio faz com que Carnéades argumente que os homens têm imposto leis a si mesmos por motivos de conveniência e autoproteção que tais leis necessariamente variam de lugar para lugar que não existe uma lei natural estritamente falando por que todos os homens são impelidos por seus desejos naturais para fins que em última análise só são vantajosos para si mesmos e que consequentemente não há justiça que seja natural ao homem A esta doutrina que também era aceita pelos epicuristas Gró cio contrapõe o que é basicamente uma doutrina estoica Ou seja principia por aceitar a tese de que os homens são no início de sua vida impelidos pelo desejo natural ape nas para a preservação de seu próprio ser o que se distingue de serem impelidos pelo prazer ou pela dor Entretanto nega que esse desejo constitui a qualidade que define o homem Realmente para Grócio o desejo original de preservar a própria constituição natural é de íàto uma tentativa instintiva ou inconsciente de se realizar plenamente a própria natureza crescer e se desenvolver como um ser racional A faculdade racional que define o homem porque o distingue decisivamente de todos os outros animais é mais nobre e mais natural que qualquer um dos desejos naturais originais E é a faculdade racional por sua vez que percebe que a justiça é uma virtude um bem em si e por si independentemente de quaisquer considerações de interesse próprio ou conveniência Assim os homens são naturalmente impelidos a buscar a sociedade com seus semelhantes por natureza vêm a possuir o discurso e a razão e se inclinam por natureza a se comportar de forma justa muito embora seja verdade que de feto muitos homens nem sempre sigam sua verdadeira natureza É a partir deste conceito central do homem como animal racional e social que Grócio compreende o direito e a sociedade política O direito jus em seu sentido pri mário é o que é justo O direito assim entendido tem segundo Grócio um sentido negativo em vez de positivo é o que não é injusto O que é injusto é qualquer coisa que esteja em conflito com a natureza da sociedade entre os seres dotados de razão Assim para Grócio que fez referência a Cícero e Sêneca para sustentar sua afirmação os homens agem com justiça somente quando agem em conformidade com a sua atra ção e desejo naturais pela sociedade Por exemplo uma vez que roubar o que pertence aos outros destrói toda a confiança e portanto destrói a sociedade roubar é contra a ordem natural à qual pertence o homem Um segundo significado de direito é uma qualidade das pessoas ou pertencente a elas e que em geral referese ao poder legítimo de possuir ou fezer alguma coisa Tipos de direitos são a liberdade ou o poder sobre si mesmo o poder de um senhor sobre o escravo o poder de um pai sobre seu filho e o poder sobre a propriedade Os direitos em cada caso são de feto leis objetivas que definem como pode ser exercido H u g o G r ó c i o 347 Ibid Prolcmena 3101630 Iii50 o poder em questão e em alguns casos a própria lei da natureza especifica o direito Por exemplo a lei da natureza permite que uma pessoa mate um ladrão que esteja fugindo com bens roubados se náo for possível recuperálos de outra forma Mas é importante apontar que ao fazer com que esse segundo sentido de direito seja rela tivo especificamente à pessoa abstrata personà Grócio para muitos juristas seus contemporâneos afastouse significativamente do sentido tradicional ou romano do termo direito ijus Além disso temse defendido nos últimos anos que essa se gunda definição de direito por Grócio é precursora da característica ideia moderna de direitos subjetivos a qual sustenta que a pessoa possui direitos intrínsecos simples mente como ser humano e não por incorporar determinadas qualidades objetivas tais como as do governante do pai ou do proprietário Mesmo assim entretanto devese dizer também que Grócio só percorre uma curta distância em direção à ideia completa de direitos subjetivos a afirmação especificamente filosófica dessa ideia e portanto do individualismo tal como o conhecemos na idade moderna começa com Thomas Ho bbes cuja primeira grande obra De Cive Do cidadão foi publicada menos de duas décadas depois da obra de Grócio O terceiro significado de direito é lei isto é regras para a ação que obrigam ao que é correto e que trazem consigo alguma sanção Tendo definido três sentidos áejus ou direito Grócio em seguida divide o direi to no sentido de lei em dois tipos natural e volitiva O primeiro tipo a lei natural jus naturalè é definido em relação à natureza essencial do homem como um ditame da justa razão que indica que um ato estando ou não em conformidade com a natureza racional tem em si uma qualidade de baixeza moral ou necessidade moral e que em conseqüência tal ato ou é proibido ou imposto pelo autor da natureza Deus Con tudo para que náo pensemos por causa da última cláusula que a própria lei natural depende apenas da vontade de Deus Grócio afirma nos Prolegomena que a lei natu ral seria válida mesmo que não houvesse Deus ou se os assuntos dos homens não fossem de nenhum interesse para Ele Esta afirmação que Grócio notese bem de pronto re conhece como blasfêmia constitui um indício de que é concebível para Grócio uma dessacralização da lei natural sem que isso necessariamente destrua sua validade essen cial como regra da razão para as criaturas racionais Entretanto mesmo esta declaração cautelosa por sugerir a possibilidade da independência da lei natural tanto da teologia revelada como da teologia natural foi interpretada por vários dos contemporâneos de Grócio como sinal decisivo de uma ruptura com as doutrinas medieval e clássica Em essência o aspecto com que nos preocupamos aqui é que a sugestão de Grócio sobre a possibilidade de uma lei natural secularizada ainda ser totalmente vinculatória sobre o homem era no início do século XVII multo controversa embora náo excepcional A doutrina que o homem e a ordem política dependiam da ordem divina era ainda para a maioria dos juristas bem como para os teólogos o cerne da lei natural 3 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibid ilO Grócio oferece duas provas da existência da lei natural A primeira ocorre a prio ri isto é demonstra a concordância necessária entre um ato ou coisa com a natureza racional e social do homem Esta prova apesar de muito difícil é a base de um deter minado conhecimento daquilo a que os homens sâo obrigados por sua natureza intrín seca pois tal prova fundamentase estritamente no raciocínio acerca dessa natureza A segunda prova é a posteriori ou seja fundamentase no fornecimento de indícios daquilo que todas as nações ou pelo menos os homens instruídos de todas as nações civilizadas acreditam ser obrigatório para todos os homens No desenvolvimento des ta prova Grócio faz referência a Cícero no sentido de que a concordância de todas as nações sobre um determinado assunto deve ser considerada como uma lei da natu reza e a Aristóteles no sentido de que a fim de descobrir o que é natural devemos procurar entre aquelas coisas que de acordo com a natureza estão em boas condições não entre aquelas que são corruptas Além disso ao estender a prova a posteriori para princípios específicos da lei natural Grócio cita dezenas de exemplos e argumentos retirados dos escritos dos antigos filósofos historiadores poetas retóricos e teólogos bem como da Bíblia Ao íàzêlo Grócio toma como base para seu próprio argumento a ideia do consensus gentium ou acordo entre os povos pois como argumenta quando tantos homens instruídos e sábios que também representam diferentes nações como os judeus os gregos os romanos e assim por diante afirmam os mesmos princípios como sendo verdadeiros ou corretos deve ser devido ao funcionamento de uma causa universal Essa causa deve ser ou uma conclusão correta elaborada a partir dos pró prios princípios da natureza por esses homens instruídos ou um acordo mútuo da humanidade civilizada Em qualquer dos casos essas provas servem para confirmar aquilo que é em princípio detectável por meio da prova a priori a respeito da natu reza do homem do direito e da sociedade política O segundo tipo de lei é a volitiva Dividese em lei humana e lei divina A lei vo litiva humana é de três típos O primeiro é a lei que não depende diretamente do poder civil é menos abrangente que a lei municipal ou dvil e indui os comandos de um pai um mestre e todos os comandos semelhantes O segundo é a lei munidpal ou civil jtis civilè que emana do poder dvil e que portanto regula as relações dos homens e das coisas em uma determinada sociedade política O terceiro é a lei das nações jusgentium que recebe sua força vinculatória a partir da vontade de todas as nações ou de muitas delas A lei das nações se distingue da lei natural não pela matéria mas pelo feto de ser mutável ao passo que a lei natural é imutável e pelo feto de ser baseada na vontade e não apenas no que é interpretado pela razão como em conformidade com a natureza ra cional e social do homem Essas distinções e sua importância podem ser compreendidas tomandose um exemplo a questão da responsabilidade pelas ações Grócio afirma que de acordo com a lei natural estrita ninguém é responsável pelos atos de outro exceto no caso limitado em que uma pessoa herda os bens de outra No entanto a lei das nações isto é a lei desenvolvida pela vontade de todas as nações ou muitas nações alterou H u g o G r ó c i o 349 4 Ibid 12 este princípio rigoroso no sentido de que todos os indivíduos de uma sociedade política sáo responsáveis pelas dívidas do governante e considerase que seus bens têm a incum bência de cumprir essas obrigações O motivo que Grócio oferece é que a menos que esta concessão seja feita os governantes porque passariam a ser responsáveis sozinhos por seus atos seriam incentivados a ações licenciosas já que na prática seus bens seriam imunes à apreensão como pamento de indenizações E do outro lado aqueles junto a quem o governante tem dívidas estariam assim injustamente privados de reparação a menos que impostos possam ser cobrados dos bens de seus súditos Em contraste com sua análise e definição extremamente complexas e detalhadas da natureza e dos tipos de lei o tratamento que Grócio aplica aos fenômenos mais especifi camente políticos tais como a natureza e as origens da sociedade política ou a natureza e o exercício do poder político é bastante incompleto e dependente da autoridade de filósofos historiadores juristas e assim por diante Por exemplo quando Grócio define lei municipal jus civile indica que emana do poder civil potestas civilis que o poder civil é o poder que governa sobre a ordem civil ou estado civitas e que a ordem civil é uma associação completa civitas coetusperfictus reunida para o usufiruto dos direitos e pelo interesse comum Mais tarde quando trata de modo um pouco mais aprofimdado o poder civil Grócio fica satisfeito no que se refere ao sentido ou finalidade da ordem civil ou estado em remeter o leitor à sua proposição de que a ordem civil é uma associa ção perfeita perfictus coetus Mas não oferece quase nenhum argumento independente quanto ao que exatamente quer dizer com isso e por que é assim O motivo parece ser primeiro que Grócio como jurista está menos preocupado com estas questões do que com questões sobre a natureza da lei sobretudo na sua relação com as operações do poder civil e segundo que simplesmente aceita duas ideias clássicas gerais 1 que só dentro da ordem civil pode o homem realizar plenamente o potencial de sua natureza racional e social e 2 que as regras como tais são tão namrais e necessárias para o corpo civil como é o governo da razão necessário e natural para o corpo humano Este último aspecto é demonstrado de maneira impressionante pelo modo como Grócio trata do poder civil e suas partes baseiase fundamentalmente nos conceitos e distinções de Aristóteles tal como apresentados na PoUtica e na Ética Assim Grócio explica que o poder civil tem três aspectos ou ramificações O primeiro ramo referese à elaboração geral das leis tanto seculares como religiosas e é denominado arqui tetônico pois encarna o aspecto abrangente e diretivo do poder civil O segundo concerne os interesses particulares da sociedade que são de natureza pública Tais in teresses são travar a guerra celebrar a paz e assinar tratados a cobrança de impostos e o exercício do direito de domínio eminente sobre a propriedade privada dos cidadãos Deste ramo diz Grócio que Aristóteles o denomina o ramo político propriamente dito ou o ramo que delibera sobre políticas específicas e sobre a reformulação de 3 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 Ibid 14 6 Ibid iii7 7 Cf Aristóteles Ética VI viii que Grócio cita decretos específicos O terceiro ramo do poder civil diz respeito aos interesses privados dos cidadãos e às possíveis controvérsias que possam surgir entre eles Sua função em contraste com a elaboração de leis gerais ou a deliberação sobre determinadas políticas públicas é o julgamento de conflitos entre interesses privados pelo poder público Por isso é chamado de ramo judicial O conceito de Grócio de natureza e do locus do poder supremo summa potestas na ordem civil também o liga à tradição clássica e o separa da ideia moderna de sobe rania tal como esta emerge nos escritos de pensadores como Hobbes Embora o po der supremo seja definido inicialmente como o poder cujas açóes não estão sujeitas ao controle legal de outro e não pode ser anulado pela ingerência de outra vontade huma na também é verdade que toda sociedade política e portanto o seu poder supremo é sujeita às limitações estabelecidas pela lei natural e pelo direito das nações Como diz Grócio a mãe da lei municipal é a obrigação que decorre do consentimento contudo uma vez que a obrigação decorrente do consentimento deriva sua força da lei natural sobretudo aquela parte da lei natural que impõe que os homens vivam na sociedade civil e sejam guiados pelas regras da justiça a própria natureza pode ser considerada a bisavó da lei municipal Também declara que estão equivocados aqueles que argu mentam que o padrão de justiça que é aplicável no caso de indivíduos é inaplicável a uma nação ou a um governante Tal visão é apenas uma aplicação particular de uma falsa doutrina da lei que não consegue perceber que a lei não se funda apenas na con veniência mas na justiça natural também Embora seja verdade que no caso da maioria dos estados é o benefício ou bem daqueles que são governados que é a principal preocupação ao avaliar se o poder su premo está constituído do modo devido isto não significa que em última análise o poder supremo resida nos governados ou que haja uma relação de dependência mútua entre governantes e governados Pelo contrário em uma monarquia por exemplo a posse do poder supremo significa em essência a posse de direitos e poderes que são inerentes à função daquele que governa De fato é bem possível que o rei possa inter pretar mal esses direitos e usar esses poderes de modo indevido Entretanto Grócio se opõe com vigor à conclusão de que com isso o povo tenha automaticamente o direito de assumir o poder supremo ou destronar o rei Assim a rigor o direito geral de revolução não existe a finalidade da sociedade civil sendo a tranqüilidade pública essa finalidade necessariamente prevalece até mesmo sobre o direito de proteger a si mesmo contra o abuso do poder pelo governante Desta forma os descaminhos do poder supremo devem em geral ser suportados mesmo que não se deva se possível cometer atos que sejam contra a lei natural mesmo que sejam comandados pelo poder supremo E aqui Grócio de modo típico para ele reverte para a autoridade da anti guidade quando menciona Cícero que afirma Para mim em quaisquer condições a paz entre os cidadãos parece ser mais vantajosa que a guerra civil H u g o G r ó c io 3 5 1 8 The Law ofWar and Peace Prolegomena 1523 9 IhidM9 Grócio procura de modo constante fezer uma distinção entre a natureza do poder supremo em si e a posse absoluta dele Assim em alguns casos e sobretudo no caso da monarquia hereditária absoluta o poder supremo tem direito de plena propriedade Isso significa que quando um povo assim governado é transferido de um monarca para outro não se trata estritamente falando de uma transferência de indivíduos mas do direito perpétuo de governálos em sua totalidade como um povo Contudo em outros casos na verdade talvez a maioria dos casos não se detém o poder supremo de modo absoluto Esse é o caso de um rei que tem o poder supremo porque este lhe foi conferido pela vontade do povo Mesmo nesse caso po rém o exercício efetivo do poder supremo uma vez concedido é pleno O poder supremo é em princípio uma unidade ou é indivisível e é constituído pelas partes anteriormente enumeradas como constitutivas dos três ramos do poder civil Na verdade porém existem numerosos exemplos históricos em que o supremo poder é dividido Um exemplo notável seria Roma sob os imperadores onde ocorreu que um imperador administrava o Oriente e outro o Ocidente e até que três impe radores governavam o império inteiro com três divisões Um tipo diferente de divisão pode ocorrer quando um povo na escolha de um rei reserva para si determinados poderes e confere outros ao rei absoluto Assim na época de Probo em Roma o senado confirmava as leis promulgadas pelos imperadores julgava recursos nomeava procônsules e designava oficiais militares para os cônsules Ainda um terceiro tipo de divisão é citado a partir do relato feito nas Leis de Platáo em que como os heráclidas fundaram Argos Messene e Esparta os reis desses Estados eram obrigados a governar de acordo com as disposições legais que haviam sido previamente estabelecidas Finalmente em geral Grócio segue a ideia de Aristóteles de que a ordem civil ou o estado mudam de um tipo para outro tal como quando há uma mudança da aristocracia para a democracia ou da democracia para a monarquia porém distingue essa questão política da questão jurídica de como as leis e o governo se relacionam entre si no que diz respeito à definição do poder supremo Precisamos agora examinar brevemente a aplicação por Grócio dos princípios gerais definidos anteriormente à questão da guerra justa que é o tema principal de sua doutrina do direito internacional A questão crucial é se a guerra pode ser verdadeiramente justa Grócio responde de modo afirmativo alegando os princípios gerais da natureza do homem e da socie dade e sustentando esses princípios com citações completas e exaustivas da história tanto sacra como secular do jus gentium e da lei divina volitiva quer dizer a Bíblia A ideia central de seu argumento é que nem todo o uso da força é proibido pela lei natural e volitiva mas só o uso da força que está em conflito com os princípios da so ciedade isto é que tenta apoderarse dos direitos ou bens de outrem Assim a guerra pode ser travada com justiça mas apenas para obter ou restabelecer o fim natural do homem que é a paz ou uma condição de vida social tranqüila e não para o autoen grandecimento pessoal ou coletivo Contudo esse tipo de definição do âmbito da 3 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y guerra justa em oposição à guerra injusta é demasiado genérico para servir como um guia efetivo Grócio deve portanto estabelecer com o seu habitual nível de detalha mento as diversas categorias de guerra justa e injusta Quanto às guerras justas dividemse estas em duas categorias gerais aquelas travadas em defesa da propriedade individual e aquelas travadas para punir injustiças e infligir punição merecida O tratamento da primeira catoria exige que Grócio entre em uma elaborada discussão a respeito da origem e dos tipos de propriedade pois é apenas ao saber o que pertence a quem que se pode decidir quando uma guerra é justa O tratamento da sjunda categoria exige que exponha a natureza dos pactos contratos e promessas pois só sabendo o que é devido a quem é que se pode decidir quando uma guerra é justa com relação a essas questões Como ilustração da doutrina de Grócio sobre a guerra justa é instrutivo conside rar seu argumento relativo à aplicação da lei natural a casos em que um governante em particular não tenha sido diretamente lesado pela depredação de outro O princípio que se impõe diz Grócio é que os governantes são livres para atender aos interesses da sociedade humana punindo aqueles que excessivamente violam a lei natural em bora nenhum dano direto tenha sido causado àqueles que aplicam a punição Grócio deriva esse princípio do fato de que aqueles que detêm o poder civil não estão sujeitos a nenhum outro poder legal todavia estão obrigados a obedecer e fezer cumprir a lei da natureza sempre que possível Referese então a Sêneca no sentido de que se um homem não ataca o meu próprio país mas contudo é um ferdo pesado para o seu próprio e apesar de distante de meu povo aflige o seu próprio tal degradação da men te no entanto o afesta de nós cita a autoridade de Aristóteles para a proposição de que contra homens que são verdadeiramente bárbaros a guerra é sancionada pela natureza isto é que uma guerra de civilização é em circunstâncias extremas justa Ao adotar esta posição Grócio explicitamente discorda dos escritores dos séculos XV e XVI tais como Francisco de Vitória que ensinara que quem aplica a punição deve ou ter sofrido um dano contra sua própria pessoa ou Esudo ou ter jurisdição sobre aquele que foi atacado A diferença básica e tratase de uma diferença que liga Grócio mais aos escritores da Antiguidade clássica que aos modernos como Hobbes ou teólogos como Vitória é que para Grócio o poder de punir é derivado não só da jurisdição civil mas da própria lei natural A obra de Grócio apareceu como já observamos menos de duas décadas antes de De Cive 1642 de Ihomas Hobbes Contudo apesar dessa proximidade no tempo e apesar de uma concordância superficial tais como o uso comum do conceito de Tei natural o feto é que Grócio ainda se pauta principalmente pelos clássicos da Antigui dade ao passo que Hobbes de modo explícito se propóe a algo novo O desacordo fundamental é relativo à questão de saber se o homem é de fato por natureza um animal racional e social ao nos voltarmos para Hobbes voltamonos para o iconoclas ta que expressa a essência da visão moderna do homem e da lei natural H u g o G r ó c i o 353 10 Ibid IIxx40 354 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y L eitu ra s O melhor texto de Das Leis da Guerra e Paz em inglês é a tradução da obra de Grócio elaborada como parte da série intitulada Classics of International LaV patrocinada pelo C am e Endowment for International Peace A tradução por Francis W Kelsey é completa e foi publicada em 1925 por Cla rendon Press Oxford A Grotius H i The Law ofWar and Peace Prolegomena secs 12522283039424550 5758 bk I chap i secs 113 chap ii sec 1 chap iii sec 5 par 7sec 7 sec 8 pais 161314 sec 9 secs 1314 sec 16 par 1 sec 17 sec 24 chap iv sec 1 par 3 sec 2 par 1 sec 7 pars 12 B Grotius Hugo 7feíaTíaríí7VKeProlmenabklchapichapii secs 146 chap iii secs 19131724 chap iv bk 11 chap i sec 1 pars 12 secs 23 sec 11 sec 17 chap ii secs 12 chap iii secs 14 chap v secs 1579 2729 chap vlii sec 1 chap x sec 1 chap xi secs 13 chap xii secs 712 chap xiv secs 16 9 chap xv secs 13 chap xx secs 14 18 40 48 chap xxii secs 1311 bk 111 chap 1 secs 13 chap ii secs 12 chap iii secs 14 6 21804789 T homas H obbes 15881679 Hobbes fãz uma apresentação temática de sua filosofia política em três livros The Elements of Law Elementos do direito 1640 De Cive O cidadão 1642 e Leviathan Leviatã 1651 As mais evidentes diferenças entre esses livros referemse ao desenvolvimento e à elaboração da doutrina teológica dos últimos livros Podese conceber que as intenções de Hobbes tenham sido duplas 1 assentar pela primeira vez a filosofia moral e política sobre uma base científica e 2 contribuir para a concretização da paz cívica e da amizade e para a criação de uma disposição na humanidade para o cumprimento de seus deveres cívicos Para Hobbes estavam intimamente ligadas essas duas intenções teórica e prática A última delas a intenção cívica ou civilizatória identifica Hobbes com a tradição da filosofia política que o associava aos nomes de Sócrates Platão Aristóteles Plutarco e Cícero Toda esta tradi ção porém segundo Hobbes fracassara tanto em sua busca pela verdade como em sua incapacidade de conduzir os homens à paz A enfática ruptura de Hobbes com a tra dição foi preparada de modo decisivo por Maquiavel e após Maquiavel por Bacon De acordo com Maquiavel os clássicos fracassaram porque procuravam atingir metas por demasiado elevadas Porque baseavam suas doutrinas políticas no exame das mais elevadas aspirações do homem a vida virtuosa e a sociedade dedicada à promoção da virmde tomaramse ineficazes nas palavras de Bacon criaram leis imaginárias para nações imsnárias O realismo de Maquiavel fundase em um consciente rebaixa mento dos padrões da vida política tomando como o objetivo desta não a perfeição do homem mas as metas inferiores de fato almejadas pela maioria dos homens e pela maioria das sociedades da época Esquemas políticos elaborados de acordo com os motivos inferiores porém mais fortes dos homens têm possibilidade muito maior de serem realizados que as utopias dos clássicos No entanto ao contrário de Maquiavel Hobbes desenvolveu um código de lei moral ou natural a lei natural como uma lei moralmente vinculatória que determina os fins da sociedade civil Contudo suindo o realismo de Maquiavel retirou de sua doutrina da lei natural a ideia da perfeição do homem Tentou deduzir a lei natural daquilo que é mais forte na maioria dos ho Ihomas Hobbes Leviathan Everymans Library New York Dutcon 1950 cap xi p 79 A ortografia foi modernizada para as citações em inglês neste capítulo mens na maioria das vezes não a razão mas a pabcão Por causa daquilo que entendia como sua descoberta das verdadeiras raízes do comportamento humano seu cxmhe cimento da natureza humana e sua conduta científica Hobbes acreditava que tivera sucesso onde todos os outros ífacassaram que foi o primeiro filósofo político verdadei ro De acordo com essas convicções recomendou que seus livros fossem adotados nas universidades como abalizados e continuamente atacava as doutrinas de Aristóteles cujas opiniões são neste dia e nessa região de maior autoridade que quaisquer outros escritos humanos tanto como subversivas e íalsas Para Hobbes o conhecimento científico significava conhecimento matemático ou conhecimento geométrico Até agora escreveu a geometria é a única ciência cujas conclusões são indiscutíveis O termo geometria foi por vezes utilizado por Hobbes para designar todas as ciências matemáticas o estudo do movimento e da força a física matemática bem como o estudo das figuras geométricas A íilosoíia ou ciência pro cede de duas maneiras 1 pelo método compositivo ou de modo sintético por um raciocínio a partir das causas primeiras e produtivas de todas as coisas até seus efeitos aparentes ou 2 pelo método resolutivo ou analítico pelo raciocínio a partir de efei tos aparentes ou fiitos relevantes até as possíveis causas de sua produção Os primeiros princípios de todas as coisas são definidos por Hobbes como corpo ou matéria e movi mento ou mudança de posição qualquer parte do universo é corpo e aquilo que não é corpo não é parte do universo E porque o universo é tudo aquilo que não é parte dele não é nada De acordo com o modo de proceder sintético ou geométrico principia ríamos com as leis da íísica em geral a partir delas deduziríamos as paixões as causas do comportamento individual dos homens e das pabcões deduziríamos as leis da vida social e política No entanto é por meio do método analítico a análise da experiência sensorial que chegamos a definições adequadas dos primeiros princípios em si O método analítico tem relevância especial para a íilosoíia política Pois Hobbes esperava que a ciência moral e civil que elaborara fosse convincente não apenas para os filósofos naturais mas também para qualquer homem que aspire a raciocinar o suficiente para governar sua íámília particular Essa expectativa é razoável porque os fiitos em que sua análise se baseia são conhecidos por todos os homens normais por meio da experiência Hobbes convida seu leitor a testar a verdade do que escreveu pelo autoexame e por uma análise que decida se o que Hobbes diz sobre as paixões pensamentos e inclinações naturais da humanidade se aplica a ele então ao aprender a ler e conhecer a si mesmo por meio da símilitude entre as paixões e situações será capaz de desvendar as paixões e os pensamentos de todos os outros homens Embora a concepção de método científico de Hobbes tenha influenciado suas formulações apre sentação e análise da experiência humana o autor indica que não é sua concepção de ciência mas sua compreensão da experiência précientífica comum que devemos exa minar a fim de determinar a verdade e a importância de sua íilosoíia política Sugere 3 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ver p ex Leviathan chap xxxi final e The Elements o f Law Ed Ferdínand Toennies Cam bridge Cambridge University Press 1928 1171 que a adequação e a retidão de seus julgamentos ou percepções do que são as expe riências humanas fundamentais podem ser contempladas e compreendidas indepen dentemente de sua física O comportamento humano segundo Hobbes deve ser entendido primordial mente em termos de uma psicologia mecanicista das paixões das forças no homem que por assim dizer o empurram por detrás não deve ser entendido em termos das coisas que se poderia pensar que atraem o homem para a frente as finalidades do homem ou o que para Hobbes seriam os objetos das paixões Estes afirma Hobbes variam de acordo com a constituição e a educação de cada homem e são muito fáceis de disfarçar Além disso o bem e o mal as palavras com que os homens caracterizam os objetos de seus desejos e aversões são relativas estritamente ao uso humano das palavras não há nada que o seja simples e absolutamente nem há qualquer regra comum do bem e do mal que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos O que os homens realmente querem dizer quando afirmam que algo é bom é que isso lhes agrada Todavia também é verdade que como as paixões resultam em ações os homens são guiados por sua imaginação e por suas opiniões sobre o que é o bem e o mal mas os pensamentos não têm controle sobre as paixões ao contrário porque os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias que vão ao exterior procu rar o caminho para as coisas desejadas Hobbes estava de acordo com a tradição oriunda de Sócrates e incluindo Tomás de Aquino de que os objetivos e caráter da vida moral e política devem ser deter minados com referência à natureza à natureza humana em particular No entanto determinou a forma como a natureza estabelece as normas para a política de modo muito diverso da tradição ou seja por meio da construção de uma teoria do estado de natureza A teoria do estado de natureza deduzida afirma Hobbes das paixões do homem é uma forma de lidar com o antigo problema psicológico um problema de importância decisiva para a filosofia política o homem é por natureza social e políti co Hobbes nega que o homem seja por natureza social e político Os motivos desta negativa são evidenciados pela teoria do estado de natureza a condição prépolítica na qual os homens vivem sem governo civil ou sem um poder comum sobre eles que os mantenha sob o medo Se o homem não é por natureza social e político então todas as sociedades civis devem terse originado dos estados présociais e prépolíticos da natureza ou seja o T h o m a s H o b b e s 3 5 7 3 The Metaphysical System f Hobbes seleaed by Mary W Calkins Chico Open Court 1948 Conceming Body caps i e ii esp vi7 Leviathan cap xxxiv p 33941 cap xlvi The Introduction p 45 A Review e Conclusion p 627 Não é fácil determinar se Hobbes entendia seu materialis mo como simplesmente verdadeiro ou seja como metafísico ou como metodológico ou seja uma assunção necessária para proceder de modo científíco 4 Leviathan cap vi C f Elements 17111011 5 cap vi p 41 cap viii p 59 6 De Cive The Citizen The English Works of Thomas Hobbes Ed Molesworth 183945 v II cap i2 ver especialmente a nota estado de natureza deve ter existido entre os progenitores de todos os homens que agora vivem na sociedade civil Hobbes náo acreditava que jamais tivesse havido tal es tado em todo o mundo mas dizia que em muitos lugares da América hoje durante as guerras civis e entre soberanos independentes tal estado de íato existe A questão histórica porém não é muito importante para Hobbes O estado de natureza é dedu zido das paixões do homem e tem como intuito revelar e esclarecer o que precisamos saber sobre as inclinações naturais do homem a fim de estabelecer o tipo correto de ordem política Serve primordialmente para determinar os motivos as finalidades ou as metas pelos quais os homens constituem sociedades políticas Conhecendose essas finalidades o problema político tornase uma questão de como organizar o homem e a sociedade a fim de alcançar as metas do modo mais eficiente Qual seria a condição do homem se nâo houvesse sociedade civil Como os ho mens se relacionariam entre si Em primeiro lugar argumenta Hobbes os homens são muito mais iguais quanto às fiiculdades do corpo e da mente do que se admite A igualdade mais importante é a mesma capacidade que todos os homens têm de matar uns aos outros A importância desse fato está em que a maior preocupação dos homens é a sua própria preservação A autopreservação por sua vez é mais importante porque o medo o medo da morte violenta é a paixão mais poderosa A igualdade de capaci dade leva à igualdade das esperanças e à competição entre os homens entre todos os que desejam as mesmas coisas Essa inimizade natural é intensificada pela suspeita ou desconfiança que os homens sem governo têm em relação uns aos outros na medida em que preveem como cada um gostaria de privar os demais de quaisquer bens que possuam incluindo a vida de modo que cada um é levado a pensar em subjugar todos os demais até que não reste poder capaz de ameaçar sua segurança Ao contrário do que é afirmado nos livros dos antigos filósofos morais elucida Hobbes a felicidade ou satisfação consiste em um ininterrupto progresso do desejo de um objeto para o desejo de outro Uma vez que é assim o que os homens buscam sempre é algum meio de as segurar a realização de seus desejos futuros Os homens não só procuram adquirir mas também assegurarse de uma vida de contentamento para si mesmos Assinalo assim assevera Hobbes em primeiro lugar como tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte O problema da vida civil é ainda mais complicado pela presença em nossa na tureza do amor pela glória ou orgulho ou vaidade A todos os prazeres que não são físicos ou sensuais Hobbes denomina os prazeres da mente Todos estes são direta ou indiretamente derivados da glorificação A glorificação se baseia nas boas opiniões que um homem bom ouve ou tem de si mesmo ou de seu poder As opiniões são sem pre baseadas em comparações com outros Todo homem deseja que outros o valorizem como ele se valoriza e consequentemente ao menor indício de desprezo e desvalori zação dispõese a destruir aqueles que o menosprezam Mesmo quando os homens se reúnem para o lazer e a recreação procuram esses prazeres principalmente nas coisas 3 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Leviathan cap x i p 7 9 8 0 que provocam o riso E o riso explica Hobbes é causado pela glória súbita por se estar satisfeito por um ato próprio repentino ou pela visáo de alguma coisa deformada em outra pessoa devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos Esse quadro sombrio não é atenuado por qualquer referência a um senso de honra ou nobreza Honra e desonra entendidas da forma correta segundo Hobbes nada têm a ver com justiça ou injustiça A honra nada mais é que um reconhecimento ou opinião do poder de alguém ou seja a superioridade em particular o poder que tem alguém de ajudar ou prejudicar a nós mesmos Mesmo a admiração é definida por Hobbes como a concepção que temos de outro ser que tendo o poder de nos fazer o bem ou nos ferir não nos desejam fazer mal A ênfase não recai na admiração ou no amor mas no medo Estas três grandes causas naturais da discórdia entre os homens a competição a desconfiança e a glória fazem do estado de natureza de íato um estado de guerra e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens Em tal estado os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua pró pria força e sua própria invenção Numa tal situação não há lugar para a indústria pois seu fruto é incerto consequentemente nâo há cultivo da terra nem navegação nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar náo há construções confortáveis nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força náo há conhecimento da iàce da Terra nem cómputo do tempo nem artes nem letras náo há sociedade e o que é pior do que tudo um constante temor e perigo de mone violenta E a vida do homem é solitária pobre sórdida embrutecida e curta Além disso não há recurso à justiça no estado de natureza nada ali pode ser injusto pois a justiça e a injustiça existem tâo somente em termos de uma lei anterior e náo há lei fora da sociedade civil Em suma o homem não é social por natureza ao contrário a natureza dissocia o homem O estado da sociedade civil portanto é convencionado desde suas raízes Isso não significa que não estejam presentes nos homens certos impulsos ou forças naturais que o impelem para a vida civil Contudo significa que as forças antissociais são naturais na mesma medida e quando não são abrandadas pela convenção são ainda mais poderosas que as forças que promovem a vida civil Em vez de servir como um guia direto para a bondade humana a natureza indica aquilo de que o homem tem de íugir O único aspecto redentor do estado de natureza é a possibilidade de sair dele Com Hobbes já estamos em um ambiente favorável à ideia da conquista da natureza O medo da morte o desejo de conforto e esperança de obtêlo por meio de sua indústria inclinam os homens à paz A razão agindo junto com essas paixões de medo desejo e esperança sugere regras para a convivência pacífica Ao comparar essas pai xões com as três grandes causas naturais para a inimizade humana percebemos que o medo da morte e o desejo de conforto estão presentes tanto entre as inclinações para a T h o m a s H o b b e s 359 8 Ibid cap xiii p 1034 paz como entre as causas para a inimizade a vaidade ou o desejo de glória está ausen te do primeiro grupo A tarefa da razão é portanto descobrir meios de redirecionar e intensificar o medo da morte e o desejo de conforto de modo a dominar e anular os efeitos destrutivos do desejo pela glória ou oigulho Ao compreender a namreza humana de modo mecanicista tornamonos capazes de manipulála e afinal esta é a esperança de Hobbes de conquistála Hobbes denomina essas regras da razão de Leis da Namreza a Lei Moral e às vezes os ditames da razão Ao utilizar esses nomes admite que se dobra diante do uso tradicional para ele as regras são apenas conclusões ou teoremas referentes ao que conduz à autopreservação A rigor são leis somente os comandos do soberano civil Essas regras no entanto na medida em que são ordena das por Deus nas Escrituras podem ser denominadas leis Todas as leis da natureza e todos os deveres ou obrigações sociais e políticos deri vam do e são subordinados ao direito da namreza o direito de autopreservação do indi víduo Na medida em que o liberalismo moderno ensina que todas as obrigações sociais e políticas derivam e estão a serviço dos direitos individuais do homem Hobbes pode ser considerado como o fimdador do liberalismo moderno Podese esperar que rras e instituições sociais morais e políticas a serviço dos direitos individuais sejam muito mais eficazes que os sistemas utópicos de Platão e Aristóteles Pois os próprios direitos indi viduais derivam das pabtões e desejos egoístas mais poderosos dos homens o desejo por luna vida confortável e o mais poderoso de todos porque é o medo daquilo que é o pior de tudo o medo da morte violenta a paixão subjacente ao direito de autopreservação Uma vez que os direitos são sustentados pelas paixões em certo sentido seu cumprimen to pode ser autoimposto Na medida em que caem em descrédito os fimdamentos das doutrinas tradicionais de restrição moral e desprezo para com o egoísmo está aberto o caminho para uma nova legitimação ou santificação do ísm o hiunano O direito da natureza é a liberdade sem culpa para fazer ou deixar de fazer tudo o que se pode para preservar a própria vida O direito a um fim também implica um direito aos meios para esse fim Porque os homens diferem em inteligência e prudên cia alguns entendem melhor que outros as exigências da preservação Todavia para Hobbes essas diferenças intelectuais não são determinantes Independentemente de sua inteligência argumenta Hobbes homem algum tem interesse suficiente na pre servação de outros por conseguinte no estado de natureza cada homem deve ser o único juiz dos meios necessários para sua própria preservação Portanto cada homem tem o direito natural a todos os meios que julgue necessários a sua preservação Na inimizade universal do estado de natureza nada que não esteja sob o poder próprio de um homem pode ser considerado um perigo para a sua preservação e desta forma não há nada que não possa ser considerado como um meio para sua preservação Por conseguinte neste estado todo homem tem direito a mdo Ninguém está seguro em tal estado As leis naturais distintas dos direitos da natureza são os preceitos da 9 Ibid cap xiii 10 Elements 1146 360 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y razão que instruem os homens quanto ao que devem fazer para evitar os perigos à sua própria autopreservação que derivam igualmente de seus direitos naturais e de seus desejos irracionais Para assegurar sua autopreservação a primeira lei fundamental da natureza or dena que os homens procurem a paz e se defendam contra aqueles de quem a paz não pode ser obtida Todo o restante da lei moral as leis da natureza é direcionado para o estabelecimento das condições de paz A primeira lei da natureza derivada da lei fundamental é que cada homem deve estar disposto a se desfazer de seu direito a todas as coisas quando os outros também assim estiverem dispostos e deveria ficar satisfei to tão somente com a mesma liberdade contra outros homens quanto permite que outros homens tenham contra ele mesmo Este estabelecimento múmo de direitos é realizado por aquilo que veio a ser conhecido como o contrato social A sociedade civil é constituída pelo contrato social no qual cada um dentre uma multidão de homens se obriga por contrato com cada um dos demais a não resistir aos comandos do ho mem ou conselho que reconheceram como seu soberano Cada homem só celebra um contrato com vistas ao que é bom para si mesmo e sobretudo com vistas à surança e à preservação de sua vida Portanto não se pode presumir que alguém tenha aberto mão contratualmente desses direitos cuja perda anularia o objetivo de todos os con tratos Por exemplo não se pode conceber que alguém tenha desistido de seu direito de resistir a quem quer tente priválo de sua vida Quando um homem por contrato ou pacto abre mão ou renuncia a qualquer direito é obrigado ou compelido a não impedir aqueles a quem concedeu ou cedeu esse direito de usufruírem os benefícios desse direito Em outras palavras de acordo com a próxima lei da natureza os homens devem cumprir seus pactos Se este prin cípio não se sustenta a própria sociedade se dissolverá Este princípio fidelidade aos contratos de acordo com Hobbes é a base de toda a justiça e injustiça pois onde não há pacto precedente nenhum direito foi cedido ou transferido e todo homem tem direito a tudo Assim a injustiça ou o dano nada mais é que o descumprimento dos pactos o exercício de um direito do qual a pessoa já abriu mão legalmente Toda a legislação genuína então vem a ser uma forma de autolegislação e os danos são como uma autocontradição uma disposição de fezer aquilo que alguém já se propôs a não fazer Todos os deveres e obrigações para com os outros derivam de pactos Mas pactos ou contratos em que uma ou ambas as partes prometem realizar algo no futuro dependem da confiança Não há confiança e não há pacto válido quando há um receio razoável de descumprimento por qualquer uma das partes Não há confian ça no estado de natureza Portanto antes de ser correto empregar os termos justo ou injusto deve haver algum poder coercitivo o soberano que pode obrigar da mesma forma todos os contratantes a cumprirem os pactos O soberano deve cuidar para que o terror da punição seja uma força maior do que a atração de qualquer benefício que poderia advir de uma violação do pacto Não se apela a qualquer força moral a T h o m a s H o b b e s 361 11 Ibid 1162 De Cive chap iii3 fim de criar condições de confiança mais uma vez o medo é a paixão a ser invocada Segundo Hobbes o cálculo inteligente do autointeresse é tudo o que é necessário para fàzer justo um homem O fato de que age sob coação não fàz dele menos justo pois o interesse próprio é a única base da moralidade Uma das conseqüências deste tipo de raciocínio é uma ampliação da noção tradicional de guerra justa Para Hobbes tal como para Bacon não é necessária a intenção de corrigir um dano prévio para justifi car a guerra basta o critério subjetivo o medo da força de uma nação vizinha Hobbes visava diretamente a ideia de justiça distributiva de Aristóteles A doutri na de que alguns homens por natureza são mais dignos de comandar e outros mais dignos de servir é a base da ciência política de Aristóteles escreveu Hobbes A dou trina é íálsa porque no estado de natureza todos os homens são iguais a desigualdade ora encontrada entre os homens foi introduzida pelas leis civis Além disso a dou trina é perigosa porque contribui para o orgulho A justiça distributiva concebida dc modo adequado é a justiça de um árbitro e consiste não em distribuir a cada um proporcionalmente a suas virtudes c vícios mas em tratar todos como iguais Pois ex plica Hobbes se a natureza fez os homens iguais essa igualdade deve ser reconhecida Mesmo que a natureza os fizesse desiguais os homens sempre se considerarão iguais e portanto só aceitarão termos de paz em igualdade de condições Desta forma pelo bem da paz essa igualdade deve ser admitida mesmo que não exista Por conseguinte constitui uma lei da natureza que todos os homens reconheçam uns aos outros como iguais por natureza As diferenças naturais entre os homens são portanto inexistentes ou politicamente irrelevantes Um objetivo domina a discussão de Hobbes sobre as leis da natureza tomar os homens sociáveis e pacíficos e assim eliminar ou reduzir ao mínimo o atrito o ressentimento e a hostilidade gerada entre os homens pelo orgulho pela parcialidade e pelo amorpróprio excessivo em geral Entre as leis da natureza estão regras para a arbitrem de controvérsias e para a distribuição imparcial de bens em disputa É proibida a ingratidão Não devem ser permitidas as manifestações de ódio desdém ou desprezo nem mesmo por parte de juizes para com criminosos con denados Para que não se pense que nem todos os homens são capazes de compreen der todas essas leis da namreza Hobbes afirma que todas podem ser compreendidas mesmo pelos muito negligentes ou demasiado ocupados para aprendêlas por meio da seguinte regra Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti A lei moral não é voltada para o aperfeiçoamento de nossas naturezas Aristóteles estava errado quanto à virtude e ao vício Porque suas opiniões eram apenas as opiniões vigentes durante seu próprio tempo e ainda aceitas pela maioria dos homens iletrados afirmou Hobbes não é provável que fossem muito precisas A virtude se significa algo além da potência de um homem tratase do hábito de íàzer o que conduz a nossa própria autopreservação bem como a sua condição fundamental a paz o vício é o contrário 362 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 12 Leviathan cap xiv p 1078 cap xv p 12813031 cap xxvii p 251 cap xiii p 43536 cap xxvi p 23132 13 Elements 74eò3 O defeito fundamental das leis namrais os ditames da razão é que obriga os homens somente no que se refere a sua consciência e as ações e vontades dos homens são determinadas não pela consciência ou razão mas pelo medo de punição e pela esperança de recompensa Existe o medo de poderes invisíveis Deus ou deuses no estado de natureza mas esse medo não é suficientemente potente O que é necessá rio segundo Hobbes é o estabelecimento de condições que de feto tornam sjura a obediência às leis naturais caso contrário aquele que obedece a tais regras só se coloca à mercê dos que não as obedecem Em suma o govemo civil ou político os poderes visíveis são necessários A segurança exige em primeiro lugar a cooperação de muitos homens uma multidão grande e poderosa o bastante tanto para tornar perigosa a violação dos pactos e a invasão dos direitos uns dos outros como para proporcionar uma defesa contra os inimigos estrangeiros Não há limite definido para o tamanho de uma sociedade civil Deve ser grande o suficiente para dissuadir qualquer inimigo de arriscar a guerra e portanto depende do tamanho do inimigo Estes requisitos e os elementos antissociais da natureza do homem indicam que a unidade alcançada por meio do consentimento muitas vontades concordando com um só objetivo um bem comum não é suficiente para unir os homens A sociedade política ou a nação exige uma verdadeira unidade ou união Esta união tal como a justiça e a injustiça é definida por Hobbes em termos jurídicos A nação deve ser constituída como uma pessoa jurídica por uma grande multidão de homens cada um dos quais pactua com todos os demais quanto à vonta de desta pessoa jurídica civil ou artificial ser a sua própria vontade Esta pessoa jurí dica o soberano é a nação Em termos práticos isto significa que cada súdito deve conceber todos os atos do poder soberano como seus próprios atos toda a lislação do soberano como a sua própria autolegislação De feto o poder soberano o poder de representar e comandar as vontades de todos pode ser atribuído a um homem ou a um conselho Hobbes foi o primeiro a definir a nação como uma pessoa Achou isso necessário pelos suintes motivos Dado que a única obrigação legítima é em última análise a autoobrigação a liberdade do homem no estado de natureza deve sobre viver de alguma forma em sua submissão ao governo pois ninguém tem qualquer obrigação que não derive de algum de seus próprios atos visto que todos os homens são por natureza igualmente livres Isso é conseguido por meio das ficções lais de que o soberano é uma pessoa com uma vontade que pode representar as vontades de todos os seus súditos e que a lislação do soberano é a autolislação do súdito Por meio dessa união os poderes e feculdades de todos os súditos podem ser levados a contribuir plenamente para a manutenção da paz e da defesa comum O contrato social tem duas partes 1 um pacto de cada membro do futuro oiganismo civil com cada um dos outros para reconhecer como soberano qualquer homem ou assembleia de homens com quem a maioria deles concordar 2 a votação T h o m a s H o b b e s 363 14 Leviaéan cap xiv p 117 13 Ibid cap xxi p 183 que determina quem ou o que será o soberano Todos aqueles que náo sáo partes do contrato permanecem em estado de guerra e sáo portanto inimigos dos demais A validade do paao não é de forma auma afetada por ter sido celebrado sob coação medo da morte e da violência ou não O corpo político afirma Hobbes pode ser criado namralmente bem como por instituição Todo governo paterno e despótico emei da primeira forma por medo do próprio soberano por exemplo quando este é o vencedor na guerra todo o govemo por instituição emerge do medo mútuo dos indivíduos O medo é o motivo em ambos os casos As duas fimdações são igualmente legítimas não há diferença no que se refere ao direito entre a fimdação pela conquista e a fimdação pela instituição Na aquisição da soberania por conquista não íàz diferença se a guerra foi uma guerra justa ou não Uma vez que ninguém pode realmente transferir a sua força e fiiculdades para outro o contrato social de fàto obriga todos a não resistirem à vonude do poder soberano É óbvio que nem todos os cidadãos participaram de tal pacto mas quem vive em uma nação que aceita a proteção do governo do soberano deve ser considerado como alguém que tacitamente aceitou o paao Pelo que parece para Hobbes a exatídão na vida política que corresponde à precisão matemática em assuntos teóricos é a precisão jurídica E assim como as controvérsias são resolvidas na matemática assim é evidente Hobbes esperais que as controvérsias políticas que sem pre perturbaram a paz do mundo político poderiam ser postas de lado por uma dedução precisa a partir do contrato social dos direitos e deveres do soberano e do súdito O contrato social só é vinculatório quando é atingida a finalidade pela qual é ce lebrado a segurança A obediência é trocada pela proteção Não que os homens jamais possam estar completamente seguros contra danos por outros Basta que cada cidadão saiba que qualquer um que pretenda prejudicálo tenha mais medo da punição pelo soberano do que tem a ganhar com o seu crime O primeiro direito do soberano é o direito de punir ou o direito de exercer o poder de polícia Tal decorre da renúncia fimdamental do direito de resistência acor dado por todos os cidadãos Nenhum súdito pode ser libertado de sua sujeição pela alegação de que o soberano tenha cometido uma violação do paao pois o soberano não celebrou paao com nenhum súdito os súditos pactuaram somente entre si Uma vez que o soberano não pactuou com ninguém só ele tem o direito a todas as coisas que possuíam todos os homens no estado de natureza Por conseguinte não pode nem causar dano a ninguém nem cometer injustiça visto que a injustiça ou o dano no sentido estrito ou jurídico nada mais é que o não cumprimento do pacto assumindo um direito que já fora cedido por meio do pacto Além disso uma vez o soberano representa a vontade de cada um dos súditos quem acusa o soberano de dano está acusando a si mesmo e é impossível fezer injustiça contra si mesmo Desta forma de modo algum pode o soberano ser punido justamente por seus súditos O direito de íàzer a guerra e a paz que inclui o direito de cobrar impostos e de obrigar os cida dãos a pegarem em armas para a defesa de seu país também é incorporado ao sobera no pois esses direitos devem estar nas mãos do mesmo poder que pode punir aqueles que não querem obedecer 364 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y O poder legislativo também deve estar nas mãos do soberano pelo mesmo mo tivo os homens não obedecem aos comandos daqueles a quem nâo têm motivo para temer O poder da espada o poder punitivo e o poder legislativo devem estar nas mesmas mãos As leis civis de cada nação não sâo nada além dos comandos do sobe rano civil Prescrevem de que bens um homem pode usufruir isto é definem o que é e o que não é propriedade privada Determinam que ações um homem pode realizar sem ser molestado por seus semelhantes isto é prescrevem o que é bom mau justo injusto honesto e desonesto Contribuem para a paz ao tentar resolver todas as ques tões controversas antes que surja a controvérsia O poder judicial pelo mesmo motivo que o poder lislativo também está com prometido com o soberano Porque o soberano deve ser capaz de determinar os meios para exercer suas fimçóes o poder executivo e o poder de nomear todos os conselheiros ministros magistrados e fimcionários também está investido nele Além disso porque todas as ações voluntárias dos homens dependem de suas vontades e suas vontades de pendem de suas opiniões sobre o bem e o mal ou da recompensa e punição que rece berão por agir ou omitirse o soberano deve ser o juiz de todas as doutrinas e opiniões que podem ser comunicadas aos cidadãos O critério para a censura é que doutrinas são favoráveis e quais incompatíveis com a paz Este poder de censura absoluta também se aplica às opiniões religiosas Na realidade a religião é definida por Hobbes com vistas a este poder Tanto a religião como a superstição são definidas como o medo do poder invisível O que as distingue é que a primeira é permitida pela autoridade pública a última não As opiniões que segundo Hobbes mais perturbaram a paz do mundo cris tão são as opiniões que levam os cidadãos a ctetem que devem obediência a outros além daqueles a quem está reservada a suprema autoridade civil Retomaremos este assunto em nossa discussão sobre os ensinamentos de Hobbes acerca do cristianismo É evidente a partir dessa lista de poderes que o poder do soberano é absoluto ou seja nenhum poder maior pode ser concedido pelos homens a qualquer homem O soberano não é obrigado a obedecer às leis civis pois são estas apenas seus coman dos dos quais pode liberarse a seu belprazer Ninguém pode reivindicar quaisquer direitos de propriedade contra ele pois toda a propriedade é derivada das leis ou seja da sua vontade Contrariar a vontade do soberano em qualquer caso particular seria o mesmo que se opor aos fundamentos de toda a propriedade e portanto autodes trutivo Quando os cidadãos têm permissão para mover uma ação judicial contra a autoridade suprema a questão nâo pode ser se o soberano ou seus ministros tinham o direito de fazer o que foi feito mas sim o que a vontade do soberano de fiito determi nou quanto a essa matéria Que o poder absoluto está realmente implícito em todos os governos pode ser percebido pelos casos de generais a quem são temporariamente concedidos poderes absolutos em tempos de guerra Apenas o detentor do poder ab soluto pode conceder um poder absoluto mesmo que temporário E quando por exemplo uma assembleia constituinte prescreve limites aos poderes de um governo o exercício do poder de limitação constitui em si um exercício de poder absoluto Não é válida a objeção de que esse poder absoluto nunca foi reconhecido pelos cidadãos T h o m a s H o b b e s 365 em lugar algum como geralmente não o são os argumentos da prática pois a prática pode ser uma prática defeituosa A arte de fazer e manter nações consiste em seguir determinadas regras tão bem definidas quanto as regras da aritmética e da geometria Hobbes acreditava ser o primeiro a descobrir essas regras Determinados direitos do súdito são inalienáveis ou seja não podem ser trans feridos ou abdicados por meio de um pacto Pois não há obrigação do homem que não resulte de algum ato de sua autoria e presumese que cada ato próprio vise algum bem para si mesmo portanto nenhum contrato incluindo o contrato social deve ser interpretado de modo a priw um homem da condição de todo o bem para si mesmo de sua vida ou dos meios para garantilos Todo homem pode justamente desobedecer qualquer ordem para matar ou fèrir a si mesmo ou para absterse de ao de que necessite para viver O direito à autopreservação permanece inviolável Porém não são os soldados obrigados a sacrificar suas vidas na guerra E não é em certo sentido o medo da morte violenta a base de toda a legitimidade e portanto um motivo suficiente para justificar a desobediência civil Hobbes enfrentou esse problema e concluiu que fugir da batalha por medo é desonesto e coAude mas não injusto É tarefa do soberano assegurar que o medo da deserção supere o medo da batalha Desobedecer ao comando do soberano para lutar contra um inimigo não é injusto se um homem encontrar um substimto à altura É justo que um homem condenado resista ao carrasco que cumpre seu dever legal Ne nhum homem em um julgamento criminal é obrigado a depor contra si mesmo pois nenhum pacto incluindo o pacto fundamental pode obrigar um homem a prejudicar a si mesmo Nenhum homem é obrigado por exemplo a executar seus próprios proge nitores ou um benfeitor ou cometer qualquer ato que seja tão vergonhoso que o fizesse tão desgraçado e desprezado que se cansasse da própria vida É evidente que essas liberdades invioláveis dos cidadãos podem ser ampliadas e interpretadas como sendo o padrão que distingue o bom do mau soberano ou seja como capazes de proporcionar aos cidadãos padrões pelos quais poderiam legitimamente criticar julgar e assim enfraquecer a autoridade soberana Se lhes fosse dada forma ins timcional poderiam conduzir a uma soberania limitada Hobbes tentou o quanto pôde protrse contra o princípio revolucionário inerente a todas as tentativas de estabelecer princípios de govemo aquele que estabelece os princípios que justificam a autoridade com esse mesmo ato estabelece padrões para justificar a alteração ou supressão dessa autoridade quando se afasta desses princípios Apesar dessas exceções à obrigação de obe diência ao soberano permanece o direito absoluto do soberano ele pode legitimamente punir com a morte qualquer recusa ou resistência não importa até que ponto sejam justas Se o soberano exerce seu direito contra a razão correta no entanto ele como todo homem no estado de natureza peca contra as leis naturais e portanto é responsável perante seu autor Deus por sua iniqüidade Além disso admite Hobbes há um deter minado castigo natural para o governo negligente a saber a rebeldia 366 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 16 Ibid cap XV p 12830 cap xxi cap xxviii p 25859 De Cive cap vil3 Em todas as matérias em que as leis se calam o súdito tem o direito de fezer ou tolerar segundo sua vontade E às vezes prudentemente um soberano pode eximirse de exercer o seu direito mas isso em nada diminui o direito Não há nenhuma razão válida para que os soberanos desejem oprimir seus súditos pois a força dos soberanos depende diretamente da força e bemestar de seus súditos Decerto admitia Hobbes esse poder absoluto não deve ser abusado mas não há nenhuma situação de vida humana sem inconvenientes Entendese que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e apenas enquanto dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegêlos E não há como evitar o feto de que aquele que tem poder de proter a todos também tem poder para oprimir a todos Seguindo o livro de Jó Hobbes comparou o soberano ao Leviatã a quem Deus chamou de Rei dos Orgulho sos Somente o maior dos poderes terrestres pode governar o orgulho do homem O Leviatã de Hobbes é também como um Leviatã na medida em que governa as mentes dos homens e esmaga e arranca pela raiz as sementes do orgulho humano Existem três tipos de nações diferindo na medida em que divergem seus respecti vos poderes soberanos Quando o poder está comprometido com um homem o governo é uma monarquia quando o compromisso é com uma assembleia de homens na qual todo cidadão tem o direito de voto é uma democracia quando o compromisso é com uma assembleia na qual apenas parte dos cidadãos tem o direito de voto é uma aris tocracia Os antigos autores gregos e romanos também distinguiam entre bons e maus governos Chamavam de tirania o mau governo por um homem de anarquia o governo ruim pelo povo ou por muitos oligarquia o governo ruim de poucos Bons e maus go vernos distinguiamse consoante os governantes governarem principalmente em prol do bem comum ou da vantm comum ou em prol de suas próprias vantagens egoístas Estas distinções morais sjmdo Hobbes são ineficientes Indicam apenas o gosto ou desgosto subjetivo de quem os usa Aqueles que não gostam da monarquia chamamna de tirania igualmente anarquia é o nome que se dá à democracia da qual não se gosta oligarquia o nome da aristocracia execrada Esta rejeição do que Hobbes denomina a distinção aristotélica entre os governos que governam em beneficio dos súditos e aqueles que governam em beneficio dos governantes àz com que a distinção entre um tirano e um monarca legítimo seja politicamente sem sentido Tanto súditos como governantes aiumenta Hobbes compartilham em igual medida os primeiros e maiores benefícios de todo governo a paz e a defesa Todos sofirem da mesma maneira a maior desgraça a guerra civil e a anarquia Dado que a força e o poder do governante sempre dependerão da força e poder de seus súditos ambos sofirem as mesmas desvanuens se o governante enfraquece os indivíduos ao priválos de dinheiro e bens Uma base mais profunda talvez para rejeitar a distinção era a crença de Hobbes de ser possível esperar que nenhum governante ou detentor da soberania buscasse van uens próprias vantagens para a fiunília e amigos tanto quanto e até mais que as vantagens para o público Com base na redução hobbesiana do bem e do mal ao prazer T h o m a s H o b b e s 367 17 Leviathan cap xxi p 187 e à dor e sua doutrina da soberania tornamse muito menos importantes as eternas controvérsias políticas sobre qual é a melhor forma de governo Essas controvérsias estavam necessariamente ligadas à questão acerca de quais fins gerais deve buscar a sociedade civil por exemplo a liberdade o império ou a riqueza Ao contrário das doutrinas errôneas de Aristóteles e Cícero e de outros autores gregos e romanos que segundo Hobbes eram parciais ao governo popular em cada forma de governo são iguais o poder do governo e a liberdade do cidadão A soberania é absoluta em cada nação O objetivo ou finalidade de cada forma de governo é a mesma paz e segurança As questões decisivas políticas ou práticas tendem a se tornar questões técnicas ou ad ministrativas tais como em que tipo de administração dos poderes soberanos atingese a paz e a segurança de maneira mais conveniente Uma vez que aqueles que têm a autoridade soberana sendo homens estarão sempre mais preocupados com seus interesses privados o interesse público será mais bem atendido onde estiver mais intimamente ligado a interesses privados Isso ocorre com a monarquia que é portanto a melhor forma de governo Na democracia onde cada homem detém uma parte da soberania é o maior possível o número de pessoas capazes de enriquecerem e servirem a si mesmas à custa do interesse público Em uma monarquia só pode haver um Nero em uma democracia pode haver tantos Neros quanto há oradores que lisonjeiam a multidão O monarca pode promover pessoas indignas mas muitas vezes não o fiiz Em uma democracia não pode ser evitada a promoção de pessoas indignas Pois dentro da democracia há sempre uma forte con corrência entre os oradores populares ou demagogos e o poder de cada um demsogo depende de seu poder de controlar e distribuir patrocínio Aqueles que não se esfor çarem para beneficiar e atrair tantas pessoas quanto possível dignas e indignas para o seu lado ou facção serão logo esmjados por aqueles que o conseguirem A partir daí fica íácil entender o principal defeito da democracia a tendência de gerar íacções e guerras civis Neste quesito a aristocracia fica em algum lugar entre as outras duas formas Tornase melhor quanto mais se aproxima da monarquia pior quanto mais se aproxima da democracia Quanto ao exercício efetivo do poder soberano podese duvidar que a democracia seja de feto algo diverso de uma aristocracia de oradores ou uma monarquia temporária de um só orador Aqueles que se queixam da falta de liberdade sob a monarquia não compreendem o que realmente desejam Pois as liber dades de um súdito tal como definidas pela doutrina da soberania são as mesmas em todos os governos contudo em uma democracia os acusadores da monarquia seriam os governantes bem como os súditos Não almejam a liberdade mas o domínio ou o poder e as honras que a acompanham A verdadeira causa de sua insatisfeçáo é que a monarquia privaos da oportunidade de exibir sua sabedoria conhecimento e elo qüência na deliberação ou encenação de deliberação sobre assuntos da maior impor tância O amor à liberdade segundo Hobbes acaba por ser apenas uma máscara para o desejo de louvor para a vaidade Apesar dessas críticas e de outras como a irresolução 368 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 18 De Cive cap x 2 e x 16 19 Ibid cap X esp x7 x8 e xl5 de conselhos divididos a dificuldade de agir de modo secreto e assim por diante a democracia ocupa uma posição bastante privilegiada dentro da estrutura baseada na ideia do estado de natureza e da doutrina da soberania Podese analisar este aspecto como se segue A instituição da monarquia ou da aristocracia exige a nomeação ou designação oficial prévia de determinadas pessoas como soberano A democracia entretanto pode ser instituída diretamente pelos indivíduos entre si Por conseguinte a forma original ou a primeira forma de todos os governos instituídos é a democracia Uma vez que todos os homens no estado de natureza têm direitos iguais e que em última análise todas as obrigações legítimas são autoobrigação a primeira parte do contrato social a fim de ser vinculatória deve ser um acordo de cada homem com todos os outros homens para aceitar como soberano a pessoa ou pessoas designadas por uma maioria de todos eles Este primeiro acordo de cada homem com todos os outros homens constitui a multidão como um povo democrático o ato de nomeação do soberano cada homem tendo um voto igual é um ato democrático Poderíamos dizer que o único procedimento democrático é coerente com a igualdade dos homens no estado de natureza De acordo com um princípio muitas vezes enunciado por Hobbes quem quer que tenha o poder de dispor da soberania é o verdadeiro soberano podese dizer que o povo como um povo democrático é o soberano fimdamental de cada nação instituída Hobbes protegiase contra esta conclusão por meio da abordagem de um argumento mais fundamental a saber como todos os contratos dependem do con sentimento dos contratantes podem ser dissolvidos pelo mesmo consentimento Por conseguinte o povo ao retirar seu consentimento pode dissolver o governo Primeiro de tudo responde Hobbes o contrato original obriga cada homem a todos os outros náo à maioria mesmo que uma maioria esmagadora Enquanto um só homem discor dar da dissolução do contrato os demais não têm o direito de dissolvêlo Não se pode imaginar afirma Hobbes que todas as pessoas sem exceção se uniriam contra o poder supremo Mas há uma obrigação distinta do próprio soberano pois cada homem ao concordar em reconhecer os atos do soberano como seus próprios transferiu ao sobe rano seu direito natural de usar seus poderes como lhe aprouvesse Não pode retirar o que pertence agora ao poder supremo sem cometer injustiça contra o soberano Os tradicionais argumentos em favor do regime misto ou governo limitado são rejeitados por Hobbes por se basearem em um conhecimento insuficiente do que é uma verdadeira união Quando por exemplo a soberania é supostamente dividida entre um executivo monárquico um poder judicial aristocrático e um corpo popular que contro la as finanças a liberdade do súdito é tão restrita quanto pode ser em qualquer governo enquanto os três ramos estiverem de acordo A vanuem de tal divisão de poderes então residiria no desacordo ou controle mútuo dos três poderes mas essa divergência segundo Hobbes constitui a guerra civil e a dissolução do governo Hobbes reconhecia que muitos governos duram muito tempo com a crença equivocada de serem governos T h o m a s H o b b e s 3 6 9 2 0 Ibid cap v i2 0 desse tipo Contudo nas monarquias limitadas e nas ditaduras temporárias conhecidas na história os verdadeiros soberanos nâo eram os monarcas mas as assembléias que limitavam os monarcas Um corpo político genuíno argumenta é constituído náo por acordo ou concórdia mas peü união pela aproximação das vontades e assim da força e do poder de todos na vontade de uma pessoa jurídica o soberano A verdadeira monarquia segundo Hobbes é a monarquia hereditária pois o verdadeiro soberano de uma monarquia eletiva é o colégio eleitoral A principal difi culdade para as monarquias é o problema da sucessão em particular o problema de quem deve apontar o sucessor do rei O atual possuidor da soberania deve determinar seu sucessor Hobbes elabora regras detalhadas sobre o que deve ser entendido como a vonude do monarca caso não tenha mencionado expressamente quem deve herdar seu poder Prossegue falando de modo geral a partir do pressuposto de que o parente mais próximo é o mais próximo em afeto e assim deve ser entendido como sucessor Hobbes define a lei em termos de vontade não de razão Os conselhos por ou tro lado baseiamse em razões razões deduzidas dos benefícios a serem obtidos pelo aconselhado O conselheiro tem como meta o bem de outro ou finge têla Mas a lei é comando e não conselho e um comando que deverá ser obedecido apenas porque exprime a vontade daquele que manda Como o objeto da vonude de cada homem é algo de bom para si mesmo cada comando tem como objetivo o bem daquele que man da A lei é um comando dirigido a alguém que tenha sido obrigado a obedecer an teriormente um comando de a é m que já tenha adquirido o direito de ser obedecido O direito civil é um desses comandos emitidos pela nação o soberano Mais plena mente as leis civis são aquelas regras comandadas pela nação para cada súdito por meio de algum sinal suficiente da sua vontade que deverão ser utilizadas pelos súditos para distinguir o certo do errado Os ensinamentos políticos de Hobbes as leis natu rais em si são apenas conselhos até que comandadas por um soberano civil O costume em si não tem poder para criar leis A lei consuemdinária deriva sua autoridade do consentimento tácito do soberano amai Diziase que o direito comum e o direito do capital eram guiados pelo padrão da razão correu um padrão que por ser considerado independente e superior a toda autoridade política poderia ser e foi utilizado pau refrear e questionar os atos irracionais de todas as autoridades civis Ho bbes reinterpreta o entendimento tradicional do direito comum de tal forma a tornar impossível o recurso a qualquer autoridade superior ao soberano civil Concorda com os advogados que a lei nunca pode ser contra a razão Mas a razão de quem pergunu Não a razão de estudiosos ou sábios ou juizes subordinados mas a razão dessa pessoa artificial a nação responde Em sua discussão sobre o direito comum Hobbes não distingue a razão da nação de sua vontade Em cada decisão justa o juiz referese à razão que impulsiona o soberano que ocupa o trono a fezer ou autorizar a lei que re gula o caso em apreço o juiz não recorre às razões que influenciaram o soberano sob o qual a lei em questão foi promulgada A abordagem de Hobbes parece levar à ideia da supremacia absoluta da atual lei estatutária O cânone da Igreja ou a lei eclesiás tica também é lei mas somente na medida em que é constituída pelo soberano civil 3 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Todas as leis é claro exigem intérpretes isto é juizes para aplicar as leis aos casos particulares O soberano é o intérprete supremo da lei e constitui igualmente a todos os intérpretes subordinados ou juizes Nada que os mortais criam diz Hobbes pode ser imortal No entanto com a ajuda de um arquiteto muito hábil as nações podem ser construídas de modo a im pedir que pereçam de distúrbios internos Hobbes descreve as forças da natureza do homem que sempre tenderam para a dissolução da paz e da ordem civil Todavia essas forças não serão neutralizadas pela reforma moral por apelos ao que fora considerado como a porção mais nobre da natureza do homem Hobbes apela ao contrário ao au tointeresse esclarecido c com base no conhecimento e manipulação dos mecanismos das paixões apoiase na concepção do tipo correto de instituição Não havia necessi dade para ele como houve para Aristóteles dc distinguir os tipos e níveis de povos a íim de determinar que tipo de governo é apropriado para cada um deles Hobbes tem em visa a elaboração de um sistema de governo que seria correto para todos os tempos povos e lugares Ao construir seu edifício sobre o menor denominador comum da motivação humana poderia esperar que se mantivesse firme em qualquer lugar c cm todo lugar Pois quando são dissolvidas as nações não por violência externa mas por desordem intestina a causa não reside nos homens enquanto matéria mas enquanto seus obreiros e organizadores Um grande erro é muitas vezes cometido no início de uma nação quando os homens a íim de obter um reino se contentam com menos poder do que é necessá rio para a manutenção da paz e a defesa Então quando a segurança pública exige o exercício desses poderes renunciados sua retomada aparece como um ato de injustiça Isso por sua vez dispõe um grande número de homens à rebelião e conivência com potências estrangeiras que sempre recebem bem a oportunidade de enfraquecer seus vizinhos Assim a promessa de Guilherme o Conquistador de não violar a liberdade da Igreja levou à deserção de Tomás Beckett e sua obtenção do apoio do papa contra Henrique II E porque nem o Senado nem o povo de Roma reivindicavam todo o poder desenvolveramse as sedições dos Gracos depois as guerras entre o Senado c o povo sob Mário e Sula e César e Pompeu e finalmente o próprio governo popular em Roma foi destituído e a monarquia foi instituída Assim é uma violação dos seus deveres que o soberano abra mão de qualquer de seus direitos Além disso é uma violação de seus deveres permitir que o povo seja mal infor mado ou desconheça as bases para os direitos do soberano A primeira tarefe a este respeito é purgar a nação do veneno das doutrinas sediciosas O primeiro grupo de T h o m a s H o b b e s 371 21 Para um confronto entre a jurisprudência hobbesiana e a tradicional compare o cap xxvi Do direito civil do Leviathan com Tomás de Aquino Summa Theologca III Qq 9097 publicada pela Henry Regnery Co como Treatise on Law em oposição à qual o capítulo de Hobbes pode ter sido escrito Ver também seu A Dialogue between a Philosopher and a Student ofthe Common Laws ofEngland The English Works of Thomas Hobbes Ed Molesworth VI 22 Leviathan cap xxix p 27576 doutrinas sediciosas originase principalmente das palavras de sacerdotes ignorantes que mal interpretando as Escrituras induzem os homens a pensar que a santidade e a razáo natural náo podem ficar juntas Ensinam que todo indivíduo privado é o juiz de ações boas e más Isso é verdade no estado de natureza mas na sociedade civil o direito civil e o soberano são a medida e os juizes do bem e do mal Uma segunda doutrina repugnante para a sociedade civil afirma que é pecado aquilo que o homem fiiz contra a sua consciência incluindo o que lhe ordena seu sobe rano Se o ato ordenado é pecaminoso é pecado do soberano e é ele o responsável pelo ato perante Deus O pecado não é do súdito Pelo contrário o pecado é a desobediên cia ao soberano Pois por desobedecer o súdito arroga para si o conhecimento e julga mento do bem e do mal sendo na verdade a mesma coisa tanto a consciência quanto o julgamento Em terceiro lugar na ordem está a doutrina de que a fé e a santidade nâo devem ser atingidas pelo estudo e pela razão mas sim por inspiração sobrenatural ou infusão Se esta doutrina for aprovada afirma Hobbes não compreende ele por que razão todos os cristãos não seriam também profetas ou por que razão alguém deveria seguir como regra de ação a lei de seu país em vez de sua própria inspiração Ao mesmo tempo essa doutrina leva os homens a se estabelecerem como juizes do bem e do mal Depois há aquele grupo de sofismas eloqüentes elaborados por Aristóteles Platão Cícero Sêneca Plutarco e os demais mantenedores das anarquias grega e romana os sofismas assumidos pelos advogados para servirem a seus próprios interesses tal como a doutrina de que os soberanos estão sujeitos às suas próprias leis que a autoridade suprema pode ser dividida que os indivíduos particulares têm di reitos absolutos sobre a propriedade os quais excluem a interferência do soberano e finalmente a doutrina também propagada por muitos sacerdotes de que o tiranicídio é lícito e até louvável Esta última afirmação eqüivale a dizer de acordo com Hobbes que é legal que os homens se rebelem contra seus reis e os assassinem conquanto que primeiro os chamem de tiranos Finalmente há a doutrina enraizada no receio da escuridão e dos espíritos e retirada da escuridão das distinções da escola a doutrina da divisão do poder civil ou temporal do poder espiritual ou fimtasmagórico Em sua discussão teológica Hobbes tenta provar pelas Sagradas Escrituras que essa distinção não tem nenhum significado e que nenhum homem pode servir a dois senhores Não basta eliminar as opiniões sediciosas e íàlsas O soberano tem como dever íàzer com que as verdadeiras bases pata seus direitos sejam ensinadas ao povo Isto significa em primeiro lugar adotar nas universidades os livros de Hobbes como os textos mais abalizados sobre moral e política Aparentemente Hobbes considerava o seu projeto como uma meta educacional de longo alcance pois segundo ele próprio não estava muito interessado em saber se seus livros seriam adotados no dia de hoje No entanto ansiava para que seus livros fossem oficialmente recomendados por algum soberano para o ensino nas universidades as fontes da doutrina moral e civil Devese começar elu cidava com a mente dos jovens não corrompidas pelas doutrinas de Atenas e de Roma 3 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 23 Ibid cap xxix Aqueles que são instruídos de modo adequado quando deixarem as universidades como pregadores nobres homens de negócios e advogados no exercício da sua atividade diária transmitirão os verdadeiros fundamentos do direito civil para o povo As dificuldades na maneira de ensinar o povo são em geral superestimadas acreditava Hobbes Pois antes de mdo não é muito difícil aprender aquilo que apela para nossos próprios interesses egoístas e em segundo lugar em um julgamento recordativo do modo como Maquiavel avaliava o povo observa Hobbes que o povo não tem o orgulho e a ambição que obstrui a mente dos ricos dos poderosos e daqueles cuja reputação é de serem instruídos Apesar de sua exaltação da soberania e da monarquia Hobbes é evidente espera que algum dia suas doutrinas se tornem populares Nada de muito positivo foi dito sobre a boa sociedade pela qual ansiava Hob bes uma vez que estejam firmes as condições de paz A ênfiise de Hobbes recai sobre situações extremas como a guerra civil quando toda a lei e a ordem entram em co lapso sobre os perigos para a paz resultantes das tentativas de questionar e restringir a autoridade do soberano sobre padrões negativos em vez de positivos Todavia por óbvio Hobbes ansiava por um regime muito mais moderado do que sugeriria seu total apoio ao poder soberano Em primeiro lugar ansiava por uma sociedade não imperialista Isso no entanto é incompatível com sua doutrina de que os soberanos e nações independentes estão necessariamente em um estado de natureza com relação um ao outro e portanto por natureza obrigados a fazer todo o possível para subjugar ou enfraquecer seus vizinhos Essas políticas são incompatíveis enquanto não houver um estado mundial Contudo também ansiava por um estado com leis de incentivo à agricultura e à pesca leis contra a ociosidade e despesas e consumo excessivos e leis para incentivar e valorizar a indústria a navegação e as ciências mecânicas e matemá ticas Os encargos públicos devem ser distribuídos por igual Os homens devem ser tributados de acordo com o que gastam ou consomem a frugalidade deve ser recom pensada o desperdício luxuoso desencorajado e cada homem deve pagar ao esudo proporcionalmente aos benefícios que obtém com sua proteção Haverá igualdade perante a lei sanções rigorosas contra juizes corruptos e fácil acesso aos tribunais de apelação A segurança do povo é a lei suprema e a segurança deve ser entendida como incluindo todos os contentamentos e deleites da vida que um homem pode obter de modo legal sem prejudicar a nação A paz da sociedade civil depende de o soberano possuir o poder de vida e morte sobre seus súditos Se os homens acreditam que há outros poderes capazes de conceder recompensas maiores que a vida e infligir castigos maiores que a morte obedecerão a esses poderes e a autoridade do soberano será destruída A vida eterna e o tormento eterno ou morte eterna são bens e males maiores que a vida natural e a morte natural Porque ou enquanto segundo Hobbes os homens acreditarem no poder de outros homens na qualidade de ministros de poderes invisíveis concederlhes a felicidade T h o m a s H o b b e s 3 7 3 24 Ibid cap xxx p 28896 De Cive chap xiii9 25 Leviathan cap xxx p 296 ff e De Cive cap xiii esp xiii 14 eterna ou o tormento eterno a teologia não pode ser separada da íilosoíia política Devemos nos limitar a um esboço da teologia cristã de Hobbes omitindo as numero sas passens das Sagradas Escrituras que cita como autoridades Apesar de desde a criação Deus governar a todos os homens por meio do poder da natureza o reino de Deus na maioria dos textos das Escrituras ao contrário da interpretação da maioria dos teólogos signiíica um reino político com súditos defi nidos os judeus Adão e todos aqueles que viveram até o dilúvio e Noé e sua família após o dilúvio receberam ordens diretas de Deus por meio de sua voz O primeiro no reino de Deus por aliança foi Abraão com quem Deus fez um contrato oferecendo a Abraão a terra de Canaã como possessão eterna em troca de sua obediência e da obedi ência de sua descendência Assim Deus foi instituído como soberano civil dos judeus Deus precisava íalar apenas a Abraão o pai senhor e soberano civil de sua fiunília pois as vontades de todos os seus fiuniliares e de sua descendência estavam contidas em sua vontade Como a fiunília e descendência de Abraão receberam comandos positivos de Deus pela voz de seu soberano terreno Abraão assim em cada nação aqueles sem re velação sobrenatural em contrário devem obedecer às leis de sua própria soberania em todos os atos externos e profissões de religião Cada soberano como fez Abraão tem o direito de punir qualquer um que simule uma revelação privada para se opor às leis Assim como Abraão em sua família somente o soberano de uma nação cristã pode ser o intérprete autêntico da Palavra de Deus O contrato de Deus foi renovado com Isaac e Jacó mas foi suspenso enquanto os judeus estavam sob a soberania do Egito O contrato foi renovado novamente por Moisés no Monte Sinai Já que Moisés não poderia herdar autoridade de Abraão sua autoridade era íúndamentada no con sentimento do povo e em sua promessa de lhe obedecer Mais uma vez apenas Moi sés como soberano civil sob Deus foi chamado para Deus mas não Aarão o sumo sacerdote nem qualquer outro sacerdote nem a aristocracia de 70 anciãos nem o povo Por Moisés ter lançado o bezerro feito por Aarão e pelo controle de Moisés da queles que profetizavam no acampamento ficou demonstrado que todos os sacerdotes e profetas em uma nação cristã derivam sua autoridade a partir da aprovação e da au toridade do soberano O reino era um reino sacerdotal Moisés governou como sumo sacerdote de Deus e seu viceregente sobre a Terra O reino foi herdado por Aarão e depois por seu filho Eleazar Após a morte de Josué e Eleazar foi dito que não havia rei em Israel Isso era verdade apenas na medida em que se referia ao exercício do poder soberano O direito de governar o poder soberano ainda residia no sumo sacerdote Os poderes dos juizes eram extraordinários poderes temporários ou emergenciais Ao depor Samuel o sumo sacerdote o povo depôs o reino peculiar de Deus e instituiu uma monarquia do tipo normal O tratamento que Salomão dispensou a Abiatar sua dedicação do templo e toda a história bíblica demonstram que desde a primeira ins tituição do reino de Deus até o cativeiro a supremacia da religião estava nas mesmas mãos que a soberania civil e o ofício de sacerdote depois da eleição de Saul não era 374 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 26 Leviathan epístola dedicatória cap xv final cap xxxviii início De Cive cap xvii 27 magisterial mas ministerial Durante o cativeiro os judeus náo tinham nação alguma e depois de seu regresso tornouse tão corrompida que nada se pode concluir de sua confusão tanto na nação quanto na religião a respeito desse tempo É tripla a missão do nosso Abençoado Salvador o Messias escreveu Hobbes Redentor Mestre e Rei Cristo na Terra foi Redentor e Mestre mas não Rei Jamais fez o que quer que fosse para questionar as leis civis dos judeus ou César nem deu a qualquer outra pessoa autorização para fàzêlo Deverá ser rei só após a ressurreição geral o reino que reivindicou estará em outro mundo De fato nunca comandou ninguém Como Redentor foi sacrificado para redimir os pecados dos homens e como Mestre aconselhou os homens sobre o caminho para a salvação ou seja a vida eterna O significado da Santíssima Trindade é que a pessoa de Deus foi representada em três momentos diferentes e em três ocasiões diferentes Moisés representava a Deus Pai Cristo a Deus o Filho e os apóstolos e seus sucessores ao receber e transmitir o Espírito Santo representavam a Deus o Espírito Santo Enquanto não houve nação cristã nenhum soberano civil converteuse ao cristianismo o poder eclesiástico esteve nas mãos dos apóstolos e daqueles a quem ordenavam como ministros Não tinham poder de comando sua missão era apenas instruir e aconselhar os homens a crerem e terem fé em Cristo Que Jesus é o Cristo é o único artigo de fé necessário ao cristão Se comandado por um soberano infiel a professar o contrário com sua língua não é necessário o martírio mas a confissão é apenas algo externo um sinal de obediência à lei Se comandado pelo soberano a realizar atos tais como adorar fidsos deuses que na verdade negam o Senhor o pecado não é do súdito que obedece mas do soberano Nunca é justo que os cristãos ou qualquer outra pessoa tentem depor o rei mesmo que infiel ou herege uma vez que tenha sido estabelecido pois isso seria uma violação da fé e assim contrário à lei da natureza que é a lei eterna de Deus O primeiro imperador cristão foi Constantino que foi também o supremo bis po de Roma assim como todos os soberanos cristãos são bispos supremos em seus próprios territórios Esta missão pertence à essência da soberania Hobbes desenvolve longos argumentos em particular contra os escritos do Cardeal Belarmino para se opor às reivindicações dos papas de Roma Todos os sacerdotes em uma nação cristã são apenas os ministros do soberano obtendo dele o sumo sacerdote sua autoridade Sempre que um estrangeiro tem autoridade para nomear professores ou sacerdotes fãz isso apenas com a autoridade do soberano em cujos domínios o ensino ou o ministério ocorrem Na verdade a igreja tal como a palavra é usada na Bíblia significa nada mais do que uma nação cristã De tudo isto fica claro que é fidsa a distinção entre o governo espiritual e o temporal Todo governo nesta vida tanto do estado como da religião é temporal e está sob o comando de um soberano civil Hobbes diz que a doutrina relativa ao Reino de Deus tem tanta influência sobre o reino do homem que não deve ser decidida por todos mas somente por aqueles que T h o m a s H o b b e s 3 7 5 27 Leviathan chaps xlxliii Cf cap xxii p 18990 e 200 têm o poder soberano No entanto escreve uma vez que seu próprio país está em estado de guerra civil e a autoridade está indecisa formulará sua própria doutrina em caráter experimental O Reino de Deus onde os homens gozarão a vida eterna será um reino sob Cristo aqui na Terra e no momento da ressurreição geral O Inferno tam bém está na Terra e Satanás é um inimigo terreno da Igreja Os tormentos do Inferno significam metaforicamente aquele sofrimento mental a inveja causado pela visão de outros que usufruem a felicidade eterna que os atormentados perderam por causa de sua incredulidade e desobediência Os pecadores também sofrerão dores corporais e morrerão uma segunda morte Pois o fogo eterno e a morte eterna não significam que ao atormentado será concedida a vida eterna ou quais tormentos eternos exigiriam Significa ao contrário que o fogo arderá para sempre e que não faltará um suprimento de pecadores a serem atormentados e mortos porque os pecadores comerão beberão gerarão e morrerão eternamente após a ressurreição tal como antes Na verdade sob a interpretação de Hobbes tornase difícil entender de que modo é alterada a vida dos pecadores pela ressurreição Desta forma a morte eterna passa a não ser pior que a morte natural nem mesmo igualmente ruim É evidente que a conclusão geral a que Hobbes desejava que os leitores de sua teologia chegassem era que de fato não havia qualquer diferença essencial entre a Palavra de Deus revelada nas Escrituras e a palavra de Hobbes transmitida em sua filosofia política No entanto somos forçados a in d s se Hobbes acreditava na verdade de sua teologia De fato afirma Hobbes a respeito de Deus que é evidente que lhe devemos atribuir existência pois ninguém quererá venerar aquilo que julga não existir Contudo a relação entre verdade e veneração ou honra não é de forma alguma inequívoca Porque escreve ele todas as palavras e ações que indicam receio de ofender ou desejo de agradar são culto quer aquelas palavras e ações sejam sinceras quer sejam fingidas e porque apa recem como sinais do ato de honrar são também geralmente chamadas honra Devido a essas e muitas outras declarações Hobbes ainda em vida adquiriu fama como ateu Talvez a conclusão mais caridosa derivada de sua teologia seja que em seu deste mido zelo na destruição de todas as opiniões que acreditava serem hostis a uma com preensão adequada dos direitos e deveres do homem Hobbes demonstrou que para ele nada era mais sagrado que a busca e a promulgação da verdade filosófica L e it u r a s A Hobbes Thomas Leviathan Chaps xiiixv xvüxviií xxi xxiv xxvixxx xlvi 6 Hobbes Thomas Leviathan Chaps vi xxii xvi xix xx xxiixxiii xxv xxxixxxii xxxv xliii 3 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y caps xxxviii e xliv cap xxxi p 312 cap xiv p 570 cap xii cap xlv cf cap xxvii p xiii p 104 cap xxxix p 406 cap xiii p 435 cap xl p 417 o 24950 René D escartes 15961650 Descartes é celebrado como o fundador da íilosoíia moderna porém jamais da moderna filosofia poiítica Inaugurando uma nova era aparenta um surpreendente isolamento da anterior tradição política moderna fundada por Maquiavel nunca se quer aventou uma discussão temática das questões políticas Isso sugere que a moderna íilosoíia e a íilosoíia política moderna têm origens independentes e talvez divirjam em suas intenções É possível vislumbrar contudo uma ligação entre Descartes e a moder na tradição política ao examinarmos sua relação com Francis Bacon o primeiro grande defensor confesso da política maquiavélica voltada para o domínio da fortuna ou da natureza nos assuntos humanos Emulando até mesmo a linguagem de Bacon Descar tes afirmou que a íilosoíia baseada em um novo método e voltada para o domínio e a posse da natureza conquistaria maior glória para a íilosoíia e maiores benefícios para a sociedade Desta forma seus ensinamentos políticos versam em princípio sobre a premente necessidade política de estabelecer relações harmoniosas entre a íilosoíia ou ciência e a sociedade ou com a versão iluminista dessa relação a relação dominan te nos tempos modernos Assim dAlembert um dos principais impulsionadores do Iluminismo francês pode declarar na Encyclopédie 1751 que Descartes lançou as fundações para um governo mais justo e mais feliz do que jamais se viu Os ensinamentos políticos de Descartes íicam parcialmente toldados pela notória cautela de sua maneira de escrever compus minha íilosoíia de forma que não chocas se ninguém e para que possa ser recebida em qualquer lugar mesmo entre os turcos Sua prudência fica evidente no íato de que nunca publicou em seu próprio nome louvores ou acusações a qualquer filosofia política mas apenas um elogio anônimo de Imtauratio magna Grande restauração e de New Atlantis Nova Adântida de Ba con ao passo que em cartas particulares aceitou o preceito principal de Maquiavel 1 J dAlembert Discoursprélimimire de 1Encydopidie ed L Ducros Paris 1930 p 104 2 R Descartes Oeuvres ed C Adam e P Tannery Paris 1910 V 159 As referências sáo a esta edição se o texto original náo estiver disponível na edição Pléiade Oeuvres et Lettres ed A Bridoux Paris 1952 nada de ruim observando em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e acreditava que a política e o pensamento de Hobbes em seu De Cive O cidadáo eram superiores à sua metafísica Os ensinamentos políticos de Descartes fezem parte da ciência moral maior e mais perfeita que é a meta geral da filosofia Toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica ou seja o conhecimento de Deus e da alma humana o tronco é a física e os ramos que brotam do tronco são todas as outras ciências mas principalmente a medicina a mecânica e a moral Assim como não é das raízes nem do tronco das árvores que se colhem os frutos mas somente a partir das extremidades de seus galhos assim a principal utilidade da filosofia depende de seus elementos os quais só se podem aprender no final O ramo principal é a ciência moral perfeita a qual pressupondo um conhecimento completo das demais ciências é o último grau da sabedoria Todavia sabese de modo quase universal que em parte alguma de seus escritos publicados ou não se pode encontrar a ciência moral perfeita de Descartes Essa dificuldade é inseparável de outra que emerge do exame da árvore do conhecimento O homem é incluído duas vezes uma como a segunda raiz metafí sica e outra como o galho mais elevado Porém em cada uma das versões publicadas de sua metafísica Descartes trata primeiro da alma humana e depois de Deus Além disso a símile omite qualquer referência nas raízes ao princípio metafísico coevo da alma a saber a substância corpórea da qual presumese deve crescer o tronco Por conseguinte a símile poética da árvore do conhecimento é enganosa no que se refere à sua parte menos visível Em seguida somos forçados a procurar um argumento não poético segundo o qual o homem é o início e o fim da árvore do conhecimento e a ciência moral per feita sua principal utilidade É somente no Le Discours de la méthode Discurso do método 1637 que Descartes oferece uma descrição de sua filosofia do início ao fim e de todas as partes em sua verdadeira ordem No entanto hoje esta obra é em geral menosprezada devido a seu caráter popular Todavia é precisamente sua retórica popu lar que constitui o primeiro sinal de que somente o Discurso trata das dificuldades pecu liares da meta suprema de Descartes a ciência moral perfeita só terá plena existência por meio de uma cooperação sem precedentes entre a filosofia política e o público Descartes escreve que principiou com a opinião de seus professores jesuítas de que o estudo trará um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida Pelo critério da utilidade analisou e rejeitou os ensinamentos das escolas e de toda a filosofia antiga Excluiu uma só a ciência a matemática o que o surpreendia era que o edifício mais nobre não fora erigido sobre os fundamentos firmes e sólidos da matemática Em lugar do espanto diante das perplexidades fundamentais com que se defronta a mente e que constituiu o início da filosofia para os antigos Descartes coloca 3 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 AT XI 320 Pléiade 1245 AT IV 67 4 Pléiade 566 5 Ibid 127128130 o assombro ante uma até então inimaginável possibilidade de que a criatividade hu mana banirá o espanto revelarvosei segredos tão simples que daqui em diante de nada vos assombrareis quanto à obra de nossas mãos Em contraste com a matemáti ca a filosofia que deveria prover os fundamentos das ciências é totalmente ques tionável inútil e incerta A teologia termo que Descartes emprega aqui e em toda parte para indicar tão somente a teologia revelada ensina a ganhar o céu ao qual aspira tanto quanto qualquer outro Entretanto as verdades reveladas estão acima de nossa inteligência por conseguinte não constimem um conhecimento claro e se guro útil para a vida As únicas obras morais que Descartes chega a mencionar em sua crítica da tradição são os escritos dos pagãos também lhes faltam fundações Descartes se opõe ao objetivo da tradição clássica já que abandona as especu lações ou a busca do conhecimento em si mesmo em fiivor de um conhecimento útil A justificativa para que rejeite a visão clássica está no tratamento que aplica à única disciplina de sua crítica que discute o fim do homem Os escritos dos pagãos compreendem os ensinamentos morais dos estoicos em particular mas também os da filosofia política platônica e aristotélica Enquanto os escritos pagãos contêm mui tas exortações à virmde que são muito úteis os palácios requintados e magníficos da virmde são construídos sobre a areia e a lama Aquilo a que os pagãos davam tão belo nome ou seja a virtude é muitas vezes apenas insensibilidade ou orgulho ou desespero ou parricídio A virtude pagã que pretendia ser uma média e a ex celência do homem é portanto muitas vezes um extremo um extremo desumano presunçoso pobre de espírito e até mesmo criminoso Como extremos as virtudes pagãs não se distinguem das paixões Não há nada em que o caráter defeituoso das ciências que recebemos dos antigos apareça de modo mais claro do que no que escre veram sobre as paixões Descartes substituiu a distinção dos antigos entre as paixões e as virmdes pela distinção entre as boas e más paixões A base da antiga distinção era a ideia de que a alma tem partes de que certas partes são capazes de ouvir e obedecer à razão e que por meio delas a razão pode estabelecer e governar uma hierarquia natural dentro da alma A razão é autônoma pois tem seu objeto próprio ou porque todos os homens por namreza desejam o conhecimento independentemente da utilidade do conheci mento Descartes rejeita esta visão de uma ordem natural da alma os antigos não per ceberam a aguda dependência da mente ou razão das paixões ou do temperamento e da disposição dos óigãos do corpo Esta dupla reflexão de Descartes acerca do poder das paixões e da promessa da ma temática conduz diretamente a seu aigumento em favor de um novo método o qual vem R e n é D e s c a r t e s 379 6 Ibid 885 7 Ibid 130 8 Ibid 130 9 Ibid 695 10 Ibid 168169 a ser ao mesmo tempo sua reflexão política íundamental Uma vez que as virtudes são substituídas por certas paixões o que é útil para a vida deve ser entendido como aquilo que atende aos fins das paixões Dentre as paixões no entanto devem ser estabelecidas distinções entre as paixões boas e más úteis e inúteis nobres e ignóbeis De modo mais preciso o que é necessário é uma paixão abrangente ou uma paixão que possa fornecer um princípio de ordem para as demais paixões por conseguinte necessariamente a pai xão capaz de dominar as outras paixões Esta paixão mais útil será assim a paixão mais nobre e a paixão dominante mais perfeita Descartes inicia seu argumento em íàvor do método com o princípio de que não existe tanta perfeição nas obras formadas de várias peças e feitas pela mão de diversos mestres como naquelas em que um só trabalhou O que é feito por inteiro por um mestre está inteiramente sob o poder desse mestre desta forma principia como os estoicos com o que está inteiramente em nosso próprio poder sem se restringir aos pensamentos da própria pessoa Seu princípio é articulado por meio de uma série de exemplos de mestres que culmina com a razão como uma for ma de domínio Porém uma vez que é a vontade de alguns homens usando a razão que conduz ao perfeito domínio a razão está a serviço da vontade ou como dirá Descartes mais tarde da paixão suprema que denominou generosidade Os exemplos são sete 1 o único arquiteto de um edifício 2 o único enge nheiro dos edificios de uma cidade 3 o caso geral do único legislador prudente que fornece leis a um povo 4 o caso especial do legislador divino único Deus que fez as ordenanças do estado da verdadeira religião ou da cristandade que deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros 5 o caso especial do único legislador humano pagão de Esparta o único legislador humano a ser sempre elogiado por Descartes muito embora várias leis de Esparta fossem bastante impróprias e até mesmo contrárias aos bons costumes 6 os raciocínios simples feitos naturalmente por um único homem de bom senso e 7 o caso final e hipotético de um único homem que desde a infencia possuía o uso perfeito de sua razão desassistida não afetada por apetites ou preceptores A série de exemplos é ascendente elevase das artes práticas inferiores relativas às coisas inanimadas até a prática culminante incluindo a divina a prática da jurisprudên cia e daí para o mais elevado poder teórico o emprego da razão humana desassistida Uma vez que todos os mestres são autores de obras as obras devem incluir o mais alto uso da razão o domínio é neutro quanto à distinção entre pensar e fezer filosofia e techné Doravante a íilosoíia será descrita tal como o fora antes por Bacon como arqui tetura é enganadora a símile orgânica da árvore do conhecimento O primeiro signi ficado de perfeição na série é a unidade da obra decorrente da unicidade do mestre A este significado Descartes acrescenta um segundo a magnitude do assunto a partir do qual o mestre realiza sua obra Portanto para Descartes o domínio será tâo abrangente quanto a série ou um domínio teórico do todo ou da natureza o objeto de maior mag 3 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Ibid 132 12 Ibid 133134 nitude que compreenda também o maior domínio prático a jurisprudência da maior magnitude A ciência política a arte arquitetônica ou arte mestre de acordo com Aris tóteles é substituída pela filosofia entendida como domínio teórico ou arquitetura À unidade e à mjnitude Descartes acrescenta como exemplo final um terceiro motivo de perfeição ou seja a fonte dentro do mestre da qual procede o perfeito domínio o uso da razão humana desassistida Todos os três motivos assumem seu lugar na definição da paixão mestre que Descartes denomina a maior virtude a generosidade a sensação em si mesmo de uma resolução firme e constante de nunca falhar na própria vontade de empreender e executar todas as coisas que se julga serem as melhores que é buscar perfeitamente a virtude É evidente que a palavra generosidade náo tem o sentido de liberalidade de seu equivalente em inglês Todavia o último exemplo é hipotético o mestre que desde a infância possui o uso perfeito de sua razão desassistida não afetada por apetites ou preceptores A res peito de si mesmo Descartes observa que deve ao acaso e não à virtude o fato de estar suficientemente livre das paixões para que fosse capaz de refletir desde o início de suas principais ponderações no Discurso e nas Meditações Quanto a seus preceptores fala da religião na qual fora instruído desde a infância Deve portanto encontrar um procedimento ou um método que expurgue a mente de todas as opiniões e crenças que dependem de apetites e preceptores Somente a construção de um método e não o uso natural da razão natural pode superar a desproporção natural entre a taxa de cres cimento dos apetites ou paixões e a da razão Pois os preconceitos que desde o início da infância recebemos de nossos apetites ou paixões governam nossas percepções sen soriais e não podem ser corrigidos pela razão que naturalmente serve a essas paixões Por conseguinte toda a filosofia anterior que começou com a percepção sensorial e sofria a falta de um método para purgar a mente dos preconceitos obrigatoriamente foi pervertida O método é capaz de dominar os defeitos naturais ou desproporções da natureza do homem ao tomar a matemática como modelo o que é correto porque esta não deve nada aos sentidos ou ao corpo Mas para ter domínio global bem como para dominar o corpo o método deve tornarse um domínio abrangente de todo o corpo ou seja a física matemática O fato de que o mais elevado exemplo de domínio ou generosidade por Des cartes inclui necessariamente a política ou jurisprudência evidenciase em seu todo a partir da reflexão que se segue acerca das reformas A primeira regra do método demanda a rejeição de todas as opiniões que náo são claras e distintas ou a reforma das opiniões incertas que são as fundações da própria vida do indivíduo Em contras te com essa reforma particular Descartes pergunta se é conveniente que os estados e as nações sejam reformados por um indivíduo particular e se é conveniente se tal reforma é legítima e possível Contudo as opiniões das quais um indivíduo particular deve necessariamente duvidar são também as opiniões dominantes ou constitutivas e portanto as fundações dos estados R e n é D e s c a r t e s 3 8 1 13 Ibid 76876 14 Ibid 134135 A conexão entre reforma particular e pública evidenciase de modo peculiar no feto de que a reforma particular de defeitos no corpo das ciências pode conduzir e talvez devesse fezêlo à reforma na ordem estabelecida nas escolas para o ensino das ciências e as escolas são o repositório abalizado das opiniões que constimem as fundações dos grandes oiganismos isto é os estados e nações Descartes portanto concorda com a visão clássica de que a opinião é o elemento da sociedade o tendão que lhe dá unidade e movimento Desta forma seria inevitável que a publicação de sua reforma particular suscitasse uma questão acerca de ele pretender ou não uma reforma pública mais uma vez Descartes concorda com os clássicos que a indição filosófica quando tornada pública tende a corroer o aspecto da opinião em que vive a socieda de Além disso o perigo para a opinião fundamental da sociedade é inédito no caso da filosofia de Descartes pois seu método exige a extinção geral de todas as opiniões que não têm a certeza da matemática No entanto Descartes publicou seu método chegando mesmo a redigilo de maneira popular e na língua vulgar pelo que sinalizou que pretendia uma reforma pública Permanece obscura a intenção política de Descartes no Discurso sem ao menos um breve esclarecimento das três principais características de sua retórica Acreditase muitas vezes que Descartes seja um conformista político pois sua moral provisória começa assim a primeira rra foi obedecer às leis e costumes de meu país manten do sempre a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância Sem considerar o caráter provisório do governo é menos firequente observarse que no meio do mesmo parirafo Descartes afirma que na corrupção de nossa moral são poucas as pessoas que queiram dizer tudo em que acreditam Foi forçado a acres centar essas regras da moral provisória porque caso contrário pedagogos e outros diriam dele que não tem religião e fé e procura derrubar todos com seu método Esse caráter prudente de sua retórica tolda o sentido da principal característica literária do Discurso Assim como o argumento sobre o domínio supremo leva à minha ma neira à maneira do Descartes individual que é inédita irrepetível e que prescinde da repetição assim o ato de publicação é inteiramente singular A forma do Discurso é portanto a de uma autobiografia do primeiro e definitivo fundador da filosofia Sua terceira característica retórica sua popularização da filosofia tornase compreensível quando se percebe em que sentido o fundador necessita de não filósofos Primeiro o ato de publicação de Descartes tem como premissa a conveniência da reforma dos estados existentes o que é evidente a partir de sua diversidade apenas mas em última análise tem como premissa a conveniência de uma reforma perma nente das relações entre a filosofia e o público Uma vez que a diversidade apenas tor na evidente a imperfeição haverá somente um bom r m e caracterizado pela perfeita relação entre a filosofia e o público Suas críticas específicas contra a sociedade con temporânea indicam o caráter geral da reforma permanente A autoridade principal 15 Ibid 141 16 AT V 178 3 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y para as fundações existentes engendra a guerra civil as controvérsias entre as esco las cuja insensatez torna mais tacanhos e obstinados aqueles que nelas praticam são possivelmente as principais causas das heresias e dissensões que assolam o mundo Toda a reflexão sobre o domínio o famoso dia de Descartes à beira dc um fogão começa com uma referência às guerras na Alemanha e termina com uma referência à guerra na Holanda é estruturada pelas guerras pósReforma entre os poderes católicos e protestantes da Europa O estado da vetdadeira religião ou cristandade revela não só a unidade de seu fundador mas sua autodisjunção Para Descartes a questão da legitimidade da reforma pública por indivíduos par ticulares está subordinada à questão de sua possibilidade pdo simples motivo de que a fortuna constitui um direito ao poder político legítimo Descartes não poderia de maneira alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que não sen do chamados nem pdo nascimento nem pela fortuna à administração dos negódos públicos não debtam de neles realizar sempre em teoria alguma nova reforma Essa incomum constrição das bases da Intimidade à fortuna e ao nascimento é ainda mais surpreendente se considerarmos a fortuna como uma rdvindicação de 1 midade se a fortuna legitima então qualquer tentativa de tomada do poder tem a pers pectiva de indmidade uma vez que um indivíduo não pode saber antes do sucesso foi a fortuna que o chamou à administração dos nódos públicos Uma vez que o acaso ou fortuna colocaram Descartes no caminho certo para a descoberta das verdadeiras fundações seu projeto é abençoado com a letimidade desde seus primórdios Para demonstrar a legitimidade do dormnio supremo Descartes precisa demonstrar a viabi lidade do domínio total da fortuna Entretanto é preciso rejeitar totalmente a opinião vulgar dc que existe fora de nós uma Fortuna que fàz as coisas acontecerem ou não acon tecerem Tal como ocorre com Maquiavel cuja marca sobre o modo como Descartes trata a deusa Fortuna é inconfundível é a natureza que deve ser dominada Contudo a questão imediata é somente a dificuldade de reforma pública por um indivíduo parti cular será resolvida por Descartes por meio da atração do poder para todos os homens sobre os frutos de sua íilosoíia e pela estratégia usada para anunciálos Uma vez que sejam conhecidos os princípios gerais da física o projeto de Des cartes se torna uma filosofia prática muito útil para a vida e que pode suplantar a íilosoíia especulativa que se ensina nas escolas Ao se tomarem senhores e possuido res da natureza os homens podem inventar uma infinidade de artifícios que permi tiriam usufruir sem custo algum os frutos da terra c todas as comodidades que nela se encontram Os frutos da árvore do conhecimento anularão as conseqüências da Queda no jardim ou com efeito com mais precisão negarão sua verdade O Discurso culmina em seguida com a promessa de um paraíso na Terra ou imita a obra de Ba con sobre o método o Novum organum cujo subtítulo referese ao reino do homem 17 Pléiade 568 18 Ibid 135 19 Ibid 168 R e n é D e s c a r t e s 3 8 3 A ciência que conduz à felicidade humana não é o estudo tradicional da excelência da alma a ciência moral e política e menos ainda a teologia que ensina a ganhar o céu mas a medicina a ciência do corpo A saúde é sem dúvida o primeiro bem e a base de todos os outros bens desta vida A medicina é também o meio para o prolongamento da vida porém acima de tudo é a ciência que produz a sabedoria o fruto final o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos óios do corpo que se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui creio que é na medicina que se deve procurálo Para governar as relações entre a sociedade e a filosofia que promete tais frutos Descartes afirma que há uma lei que nos obriga a procurar no que depende de nós o bem geral de todos os homens Esta lei a única obrigação categórica jamais expressa por Descartes é apresentada apenas uma vez em seus escritos e mmca é oferecido um argumento que a sustente Descartes declara que a lei obrigavao a publicar a sua filosofia para que náo pecasse mas jamais reivindicou ter extraído a lei de verdades reveladas Para dar conta dessa surpreendente mistura de afirmação ousada e silêncio retumbante observamos em primeiro lugar que Descartes invoca a lei somente após ter descoberto noções gerais de física não concebia sua metafísica que continha o que alegava serem as primeiras provas demonstrativas da existência de Deus e de suas perfeições como portadora de suficiente benevolência para o público a ponto de demandar sua publicação Com efeito imediatamente após expor a sua metafísica no Discurso Parte IV voltase para sua física por meio da qual acreditava haver des coberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo quanto aprendera até então ou mesmo esperava aprender No contexto da discussão da sua publica ção no Discurso Parte VI Descartes tacitamente reformula a lei como uma obrigação apenas hipotética que o b r aqueles que desejam o fim ou os frutos da nova filosofia a buscarem os meios para esse fim Os meios são as experiências necessárias ou a troca de experiências entre pessoas qualificadas ou as condições políticas que sancionarão e promoverão essa troca O caráter hipotético da obrigação aparece na promessa de Descartes de que iria mostrar tão claramente a utilidade que podia resultar para o pú blico de sua filosofia que obrigaria a todos aqueles que desejam o bem dos homens ou seja todos aqueles que são em verdade virtuosos e não apenas por hipocrisia nem apenas por princípio tanto a comunicarme as experiências que já tivessem realizado como a me ajudar na pesquisa das que ainda há por fàzer O bem dos homens o termo perde o sentido de comunidade de o bem co mum agora compreende principalmente o que todos os homens sempre buscaram como indivíduos ou através da sociedade ou seja a satisfàção das necessidades confor to saúde e vida longa e esta visão drasticamente reduzida do bem comum é o padrão da 384 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 Ibid 168169 21 Ibid 168 22 Ibid 154 23 Ibid 171 virtude Assim Descartes em comum com os fundadores da filosofia política moderna inverteu a relação da virtude e do bem comum tal como entendida pelos clássicos e ao fezêlo reviu os dois conceitos A lei da benevolência é duplamente hipotética na medida em que nos obriga a buscar o meio somente se aceitamos a conveniência do fim da utilidade mas também apenas se estiverem disponíveis os verdadeiros meios a verdadeira física ou a ciência dos fratos Esta lei tem seu locus portanto não primor dialmente nas relações dos cidadãos entre si ou com o soberano mas nas relações recí procas entre a filosofia ou ciência e a sociedade Por este motivo contudo ainda mais pelo motivo adicional de que a filosofia ou ciência deve ser o principal doador e a socie dade o beneficiário da utilidade para o público Descartes não ofereceu qualquer ensi namento sobre a justiça ou o direito natural A generosidade a mais elevada virmde de filósofos ou cientistas exclui ou substitui a justiça porque se baseia em uma visão da alma diversa daquela dos mestres do direito namral quer antigos ou modernos A iniciação de Descartes em um novo método completase por uma física mate mática que o obrigou a confrontar o status da alma e de seu conhecimento tecendo o argumento metafísico apresentado de modo mais abrangente nas Meditações 1641 Descartes opta por duvidar de forma absoluta ou melhor rejeitar de forma absoluta qualquer opinião ou fonte de opinião que revelasse um mínimo grau de dúvida a fim de estabelecer fundações para o edifício da ciência Na seqüência essa demanda re mmbante pela dúvida universal é cuidadosamente limitada nos Princípios I n 10 é negada sua universalidade Leibniz observou que a exigência de duvidar de todas as coisas talvez tenha o intuito de estimular o leitor moroso por meio da novidade A dúvida é um procedimento criado para eliminar nossa confiança natural nos sentidos e nas imiens que daí derivam parte do que Descartes chama de o ensino da nature za e passou a ser chamado de a atitude natural Para testar a capacidade de duvidar daquilo que não depende da confiança nas imagens em particular a matemática que não pertence à opinião Descartes invoca um Deus que tudo pode e portan to pode felsear os raciocínios mais autoevidentes isto é que o resultado da soma de dois mais três são cinco Uma vez que Deus nesta concepção de onipotência pode suspender o princípio da contradição todo o raciocínio humano teria encontrado seu fim a menos que a perfeição de Deus necessariamente excluísse tal logro Visto como o conhecimento de Deus ainda não está disponível ou porque Deus não passa de uma opinião antiga que não oferece motivo real para dúvida Deus é substituído por um Gênio Mau que não é onipotente e não compromete a matemática nem o raciocínio que independe de confiança nas imagens A ideia subjacente à ficção poética do Gênio Mau é introduzida pela apresentação da visão do ateu de que o homem e seu pensamento são o resultado de um destino cego ou do acaso ou de uma série contínua de causas antecedentes O ponto de vista ateu é muitas vezes considerado como um motivo mais radical para a dúvida de que o Deus onipotente e possivelmente mau porque Descartes assevera que quanto menos poderoso é o autor do homem maior é a probabilidade do erro humano Todavia esta afirmação diz respeito somente às diferenças de poder e por conseguinte não é R e n é D e s c a r t e s 3 8 5 uma cximparação com um Deus possivelmente mau Uma vez que é tâo repugnante para um Deus perfeito permitir que sejamos enganados algumas vezes quanto fazêlo sempre e náo se pode duvidar que às vezes permita que sejamos enganados o perigo divino para o saber humano permanece como uma grave dificuldade ao longo das Me ditações No contexto da dúvida a suposição do ateu serve para questionar a harmonia do conhecedor c do conhecido o que parece implicar que o todo é governado pela in teligência Contudo a dúvida cartesiana dá um passo além das rejeições prémodernas a uma inteligência dominante quando abandona também a confiança na harmonia das imagens dos sentidos e seus objetos As imsens podem ser totalmente enganosas a vida é um sonho pode descrever a situação natural a natureza indiferente a nosso desejo ou necessidade de saber é personificada pelo Gênio Mau Examinada mais de perto a confiança natural na semelhança da imagem à coisa fora rejeitada pela natureza matemática ou não empírica dos conceitos científicos de extensão figura ffanàeza et cetera Todavia afirmar a dessemelhança entre a imagem e a coisa parece implicar a existência de coisas fora do inteleao com a qual são compa radas e o conhecimento de sua existência parece depender da imicm Não exigiria a rejeição da tese da semelhança ou do ensino da natureza confiança na natureza no que diz respeito à tese da existência como Descartes por vezes sugere No entanto nas Meditações Descartes costuma tratálas como portadoras dc igual dubiedade Desta forma a tese da existência ou a grande inclinação para crer que os corpos existem demanda em última análise a bondade de Deus como garantía da sua aceitabilidade Se contestamos que a mesma garantia parece estar disponível para assegurar nossa íbrte tendência a crer que as coisas lembram as nossas imíens apesar de tudo teríamos de reconhecer que isso transgrediria as exigências da ciência cartesiana O Gênio Mau torna duvidosa a existência de todas as coisas externas ou do corpóreo incluindo o corpo do cético e a fortiori por implicação a tese da semelhança Somente estas duas teses são postas em dúvida dentro dos limites da dúvida universal Pela lógica é possí vel duvidar da existência do corpóreo ou da matéria de íato no dizer de Hume ou do ensino da natureza enquanto afirma a existência do cético é mesmo necessário afirmar tal existência Por conseguinte esta proposição eu sou eu existo é necessariamente verdadeira cada vez que eu a pronuncio ou que a concebo em minha mente Posto que o conhecimento de que eu sou não depende para sua verdade do conhecimento do corpo ou de qualquer conhecimento da natureza ou do ser possui uma prioridade epistemológica cm relação a qualquer afirmação posterior do tipo metafisico Este princípio é o ponto de Arquimedes punctum Archimedis que estabelece a existência do eu sapiente dentro do todo cuja inimizade é superada pela fisica ma temática ou pelo domínio da natureza Somente após a determinação deste princípio é que Descartes inds o que é a mente ou o pensamento o cogito é portanto anterior a c independente de qualquer determinação da materialidade ou imate rialidade da mente humana Descartes comprometeu a autonomia absoluta do ego pensante dc acordo com a maioria dos estudiosos contemporâneos ao dedicarse a provar a existência de um Deus onipotente que é dotado de um número infinito 386 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y de perfeições infinitas Deus é portanto o primeiro princípio ou causa de todas as coisas e portanto do homem e do conhecimento do homem Descartes fez quase insuperável a dificuldade de interpretar sua metafísica ao também afirmar que a mente humana finita nâo pode vir a conhecer algo infinito e concluir portanto que Deus é incompreensível A resolução destas dificuldades vai variar na medida em que se concorda com a maioria dos estudiosos contemporâneos quanto ao fato de que Des cartes publicou seu pensamento essencial com toda a firanqueza ou com pensadores mais antigos como Leibniz que afirmou Descartes tomou cuidado para não falar de modo tão claro quanto Hobbes mas náo podia deixar de revelar suas opiniões de passagem com um modo de expressarse que não seria compreendido exceto por aqueles que analisam em profundidade estes tipos de assuntos Seja como for Des cartes jamais reivindicou derivar o conhecimento de Deus de um conhecimento dos deveres ou direitos do homem enquanto das infinitas perfeições de Deus de fato alegou derivar as leis da natureza O aipunento metafísico de Descartes forneceulhe uma fonte para compreensão da alma que sustenta a sua teoria da generosidade A segunda fonte para sua visão da alma é a física ou o remédio que trata a máquina do nosso corpo apresentada de modo mais amplo em sua publicação final As paixões da alma 1649 Segundo seu aipimento metafísico o livrearbítrio é uma fimção da mente ou da alma uma substância imaterial distinta da substância corpórea todavia capaz de agir sobre a substância corpórea especificamente sobre o corpo humano de um modo que ad mitese Descartes não explicou de maneira adequada Este ponto de vista metafísico refletese na primeira parte da definição de generosidade que é o conhecimento de que nada pertence realmente ao homem além de sua livre disposição de suas von tades nem qualquer razão pela qual deva ser elogiado ou culpado exceto se as usar bem ou mal No entanto de acordo com o argumento físico o calor do coração é o princípio corpóreo de todos os movimentos da máquina de nosso corpo enquanto a causa primeira do erro dos antigos é a crença de que a alma dá movimento ao corpo Por conseguinte o argumento metafísico repetiria o erro antigo No argumen to físico o pensamento ou consciência é a percepção dos movimentos dos espíritos animais totalmente corpóreos consciência esta que Descartes não explicou de modo adequado e a vontade não é livre mas sofre a ação das paixões o principal efeito de todas as pabcões nos homens é que incitam e dispõem sua alma para determinar as coisas que preparam o corpo Esta segunda perspectiva ou perspectiva física reflete se na segunda parte da definição de generosidade que o homem é sensível em si mesmo de uma firme e constante resolução nunca falha por sua própria vontade em empreender e executar todas as coisas que julga serem as melhores o que consiste em buscar perfeitamente a virtude Resolução Descartes entende como uma espécie de coragem que é um certo calor ou imitação dos espíritos animais que dispõem a R e n é D e s c a r t e s 3 8 7 24 295 579580 AT VII 9 25 G W Leibniz Philosophischer Briefwechsel I 506 alma poderosamente para devotarse à execução das coisas que procura fezer Este ponto de vista fisiológico da alma melhor explica o motivo pelo qual Descartes pode dizer que feia como físico em As Paixões da Alma cuja primeira parte trata de toda a natureza do homem Henry More filósofo inglês do século XVII abertamen te admitiu a interpretação fisiológica da alma cartesiana doutrina que denominou nulibismo Não importa como avaliamos essas alternativas podemos dizer que a generosi dade é a consciência da própria identidade na qualidade da própria vontade ou reso lução A liberdade da vontade em certa medida nos torna semelhantes a Deus tor nandonos senhores de nós mesmos desde que por covardia não percamos os direitos que Ele nos dá Uma vez que a covardia priva o homem de direitos estes pertencem ao corajoso ou resoluto por conseguinte ao generoso em particular Entretanto a covardia tem alguma utilidade quando nos exime de tomar as dores que possamos ser instigados a tomar por motivos prováveis se outros motivos mais certos que as leva ram a serem julgadas inúteis não animassem essa paixão Por conseguinte motivos muito precisos podem talvez privar o generoso dos seus direitos dados por Deus Seja como for nenhum aigumento nem qualquer base bíblica é jamais oferecido por Descartes para a existência desses direitos nem jamais os menciona de novo O significado político da generosidade surge por contraste com a virtude aristoté lica da manimidade da qual a generosidade é uma versão revista de acordo com Descartes A msanimidade é um hábito cultivado ou uma disposição da alma en quanto Descartes escolhe o novo nome generosidade justamente porque não é cul tivada mas um temperamento ingênito ou congênito pelo menos em parte fisiológico Mentes generosas ou mentes fortes e nobres têm sua força a partir do nascimento ou por natureza por consjuinte são senhores por natureza uma nobreza natural ou aristocracia Enquanto a magnanimidade para Aristóteles era uma virtude moral abran gente e portanto distinta e inferior à virtude teórica a generosidade em Descartes é simplesmente a maior virtude uma vez que seu objetivo supremo é o domínio da na mreza através da física matemática tornase duvidosa a própria distinção entre teoria e prática A magnanimidade compreende e pressupõe outras virmdes por conseguinte em particular a virmde da justiça e é portanto uma espécie de ornamento das outras virmdes A generosidade por outro lado não pressupõe as outras virmdes e Descartes não menciona a justiça como uma virmde ou paixão a generosidade é ao contrário a 3 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i in c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 26 Pléiade 696697698715768769 AT XI 326 27 PhilosophicalWritin ofHenry More ed F I MacKinnon Oxford Oxford University Press 1925 18396 Descartes o príncipe dos nulibiscas zombando de seus leitores com sua sutileza jocosa defendia que existem espíritos incotpóreos mas se evidenciava que o íâzia somente por via de um escarnecer oblíquo e estreito de sua existência afirmando que de feto existem mas em suida furtiva e astutamente nandoo pela declaração de que náo estáo em lugar algum ou null ibi 28 Pléiade 768 29 Ibid 779 30 Aristóteles él Aí 1124a chave para todas as virtudes Assim sendo Descartes náo oferece qualquer tipo de ensino do direito natural Em contraste com os antigos a ausência de qualquer ordem natural da alma impedia um ensino tradicional do direito natural Descartes compar tilhava com Hobbes o principal fundador da moderna doutrina do direito natural a visão de que a razão serve às paixões No contexto determinante da comparação entre o homem e os animais a razão é um instrumento universal o que distingue o homem dos animais é um meio único não um fim específico diverso Porém em contraste com Hobbes Descartes examina a sociedade política a partir da perspectiva das mentes fortes ou generosas cujo sentido da força de sua resolução a sua mais forte paixão é exclusiva delas Por conseguinte rejeitou a perspectiva igualitária de Hobbes em O cidadão segun do a qual a paixão pela autopreservação é a maior paixão de todos os homens e portanto o fundamento da lei natural A generosidade é uma paixão ou virtude política não apenas porque seu objeto é aquele domínio da natureza que produz bens para todos os homens O conhecimento da generosidade é a parte principal daquela sabedoria ou ciência moral perfeita que ensina o homem a ser o senhor das paixões e portanto a apreciálas por meio do que o homem experimenta as maiores doçuras de sua vida Epicuro náo estava errado quando ponderava em que consistia a bemaventurança ao concluir que se trata do prazer em geral No entanto a satisfação e contentamento da consciência da própria força no domínio da natureza não são incompatíveis com o prazer da glória concedida por outros pelos resultados benevolentes do domínio as maiores recom pensas filosóficas e políticas podem coincidir na mesma alma Descartes não professa desprezo pela glória como o fizeram os cínicos e a tradição epicurista A busca pela glória pode realmente perturbar o contentamento ou repouso da mente mas a gló ria como respeito pelo povo ou vulgo pela exterioridade de nossas açóes também é perseguida em prol da segurança e por conseguinte do repouso A verdadeira glória é o reconhecimento de outras mentes fortes e nobres pela benevolência do que não é visível externamente a perfeita ciência moral ou sabedoria É um motivo para se estimar a si mesmo perceber que se é estimado pelos outros A autoestima primor dial ou generosidade é portanto reforçada pelo apreço ou glória que é concedida pela benevolência e a benevolência assim entendida tornase o substituto da justiça A reforma de Descartes começa com a transformação da filosofia no projeto de domínio da natureza da virtude na ciência das paixões e da virtude teórica e prática perfeita em uma só paixão virtuosa a generosidade Uma vez que o domínio da na tureza é um meio para um fim prático para todos os homens a filosofia deve ter uma nova relação com a sociedade A relação é um composto formado por uma ameaça aos R e n é D e s c a r t e s 3 8 9 31 Pléiade 774 32 Ibid 165 33 Ibid 795 34 Ibid 99lò 792 35 Ibid79 fundamentos tradicionais da sociedade e uma promessa de benevolência pelos frutos do domínio da natureza Todavia este risco é redimido pelo fato de que a dúvida universal que o método exige está tão longe de duvidar da opinião de que o bom é o útil que de fato é baseada nesta opinião e o útil é necessário para todas as socieda des sempre Portanto o projeto de Descartes pode ser acolhido por todas as socie dades exceto aquelas baseadas na virtude tradicional ou piedade ou é relativamente neutro quanto às diferenças entre os tipos de regimes O apoio ao projeto da ciência pelos regimes mais liberais bem como pelos regimes mais tirânicos nos tempos mo dernos oferece indícios dessa neutralidade Primordialmente por este motivo Descar tes nunca articulou uma concepção do melhor regime A convergência das metas da íilosoíia e da sociedade não é destruída pelo fato de que o útil buscado pelas mentes generosas não se confunde com o útil buscado pela sociedade Porque a sabedoria final das paixões e o prêmio da glória procurados pelos generosos exige os mesmos meios ou seja o avanço da ciência que é necessário para alcançar os frutos úteis procurados pela sociedade A premissa fundamental da harmonia entre a íilosoíia e a sociedade é que todos os homens são governados pelas paixões Os meios comuns o avanço da ciência não podem ser alcançados sem uma certa transformação ou nova legislação das instituições sociais A ciência só poderá avançar se a livre troca de experiências ou livre comunicação for sancionada dentro das fron teiras da sociedade e também entre as sociedades cumprirá sua promessa somente se a sociedade também promover a ciência pela dotação dos cientistas com segurança rendi mentos e deferência Esta livre troca não pode ser limitada à troca de conhecimentos as sociedades ou mais precisamente as autoridades políticas não são jmzes competentes do conhecimento Por conseguinte a sociedade não deve apenas sancionar os competen tes ou cientistas como juizes mas deve sancionar todas as comunicações de doutrinas A sociedade por conseguinte necessariamente abre mão do controle de suas opiniões ou seja de suas fundações pois as opiniões dominantes da sociedade são necessariamente afetadas pela livre comunicação de doutrinas Além disso a sociedade será afetada em profundidade pela infinidade de artifícios ou tecnologia da ciência A sociedade não pode ter o conhecimento da ciência mas só a crença na benevolência da ciência Entre tanto uma vez que a sociedade na sua origem não tivera conhecimento da benevolência da ciência nem de suas necessidades sociais foi preciso que Descartes seguindo Bacon iluminasse a sociedade em relação a ambos Podese dizer que Iluminismo tem três significados É um tipo de ação política sem precedentes empreendida pelos fundadores da íilosoíia moderna e continuada pela maioria de seus seguidores que forja o vínculo entre a íilosoíia ou ciência e a so ciedade na empreitada comum do domínio da natureza Também se pode dizer que é a retórica empregada para forjar o elo e as relações estabelecidas por ele Uma vez que a condição ótima do progresso da ciência exige a colaboração de cientistas de vá rios países e por conseguinte a liberdade de comunicação entre eles e exige também a difusão do conhecimento das condições do avanço da ciência o Iluminismo implica sociedades abertas ligadas umas às outras na empreitada comum do domínio da 3 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y natureza É essencialmente antitético a qualquer sociedade ou elementos de uma sociedade que buscam o cultivo autônomo e preservação de sua própria moralidade e modo de vida Assim o Iluminismo é por intenção uma política universal poten cialmente de magnitude global e a primeira de origem filosófica Por ser uma combinação de uma promessa e uma ameaça a retórica do Iluminis mo semeia a discórdia na sociedade tanto no momento da sua criação como após sua vitória Descartes indica a promessa do Iluminismo a três tipos de homens No Discur so apela em especial aos homens de bom senso ou ao público um amplo espectro mediano da humanidade que se julga adequadamente equipado com bom senso o qual Descartes provisória e enganosamente equaciona à razáo A verdade subjacente a esta bajulação é que os homens de bom senso raciocinam bem em matérias que lhes dizem respeito em particular e em relação às quais os erros de julgamento castigam nos logo em seguida sua racionalidade está enraizada em seus interesses próprios ou de autopreservação no aqui e ora mas não naquilo que os punirá em outra vida A retórica de Descartes anuncialhes que são os beneficiários do projeto que produz os frutos da terra sem dor e das condições sociais do sucesso do projeto São os aliados naturais do segundo grupo as mentes generosas ou os cientistas que constró em sobre suas fundações e os philosophes que propagam sua reforma Podese distinguir um terceiro grupo os dirigentes políticos em si que necessariamente dão boas vindas à defesa por Descartes de conhecimentos úteis para a sociedade bem como a sua oposição às ambições políticas dos reformadores que acreditam que Deus lhes deu graça e zelo suficiente para serem profetas Descartes convida esses grupos a se unirem em oposição comum contra os ad versários que extraem suas crenças dos livros antigos suas histórias e suas fábulas Juntamente com reformadores e profetas coloca aqueles que acreditandose de votos e grandes amigos de Deus embora na verdade apenas fenáticos e supersti ciosos cometeram os maiores crimes que podem ser cometidos por homens como trair cidades matar os príncipes e exterminar povos inteiros só porque não acatam suas opiniões O apoio popular a esses líderes zelosos vem dos espíritos fracos um termo usado repetidamente por Descartes para designar aqueles que são propensos à superstição e cujas consciências são agitadas por arrependimentos e remorsos do tipo humano que mais se opõe aos espíritos fortes e nobres Mas esses últimos têm um recurso disponível a ciência das paixões mesmo os espíritos mais débeis poderiam adquirir um império mais absoluto sobre todas as suas paixões se empre gassem indústria suficiente para treinálos e conduzilos Apoiando os zelosos está a autoridade da escola ou escolástica os monges fornecem a possibilidade para todas as seitas e heresias através de sua teologia ou seja sua escolástica que antes de tudo R e n é D e s c a r t e s 3 9 1 36 Ibid 131133 37 Ibid 168 38 Ibid 1244141142 39 Ibid 722 deve ser exterminada Por causa desta aliança de amigo contra inimigo dAlembert podia considerar Descartes como um chefe de conspiradores que primeiro tiveram a coragem de se levantar contra um poder despótico e arbitrário No entanto a retórica iluminista de Descartes necessita derrotar inimigos mais fundamentais para garantir o êxito duradouro de seu projeto Náo só seus preceptores ou os livros da cristandade latina corrompem a razão natural mas assim também o fezem os livros gregos e latinos Descartes deixou claro que seus únicos rivais no plano de seu empreendimento ou aqueles cujos escritos possuímos que procuraram as primeiras causas e os verdadeiros prindpios eram Platão e Aristóteles Assim aqueles cujos preconceitos mais se opõem a seu projeto são aqueles que mais estuda ram a íilosoíia antiga Sua retórica tem portanto a íúnção de combater toda a tradição humanista do conhecimento a qual simplesmente exigia que Descartes se opusesse à tradição Uma vez que a concepção de que o bom é o velho ou o tradicional nunca pode ser totalmente erradicado a retórica iluminista tem uma íiinção permanente de discórdia social Descartes conseguiu voltar contra os clássicos o questionamento da identidade do bom e do antigo pela íilosoíia clássica uma vez que os identificava com o velho ou o tradicional A tradição clássica parecialhe tal como para Stevin e Grócio uma corrupção da sabedoria da juventude dourada do mundo em algum siècle sage présocrático Como Descartes sabia que uma crença filosófica menos precisa sobre o todo é necessária como base para a sociedade procurou fornecer um substituto para a tradição que promovesse o projeto de ciência Por meio de uma científica fábula do mundo ou pelo que pretendia ser uma explicação científica da gênese dos céus e da Terra do universo visível e todos os seus fenômenos estabeleceu a crença de que a ciên cia é senhora do todo e pela promessa do progresso da ciência em direção a benefícios infinitos Descartes e Bacon estabeleceram a ideia de progresso ou a crença de que o bem é o íúturo cuja benevolência nada deve à tradição à natureza ou a Deus Não foi Descartes mas Bacon quem primeiro propôs um projeto que pro metia a máxima benevolência para a sociedade por meio de um método universal e portanto inaugurou a política do Iluminismo Podese dizer que Descartes seguin do Bacon aceitou porém reviu a anterior íúsão de Maquiavel da maior glória ou domínio com a maior benevolência por meio de ensinamentos políticos dedicados ao domínio do acaso ou da natureza nos assuntos humanos Foi inicialmente o re alismo de Maquiavel que ensinou que a razão não busca por natureza a verdade pura mas serve às paixões ou que a força natural do julgamento do homem não é suficiente como dizia Bacon e por conseguinte a razão deve ser equipada com o artefato do método ou que a razão deve ser conduzida pela obra ou pela arte do método como afirmou Descartes É precisamente a crítica incipiente de Maquiavel das impurezas da razão natural que exigia que a natureza fosse remediada ou melhor 3 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 40 ATV 176 41 Pléiade 179 562 564 879 884 42 Ibid 560 562 564 AT 373376 dominada pela ane ou pela construção de um método Se por um lado Maquiavel acreditava que o entendimento do homem deve abaixarse de modo a incluir o do animal a fím de ascender ao domínio da natureza humana por outro Bacon pensava que o próprio domínio inicial do entendimento humano deve ser adquirido por uma descida para aprender com as artes mecânicas de modo que a ascensão para o domínio de toda a natureza fosse feita como que por máquinas Por conseguinte com base no realismo de Maquiavel Bacon tentou ultrapassálo como ficou nitidamente eviden te no Novum Organum Livro I seção 129 Pois envidar esforços para estabelecer e ampliar o poder e o domínio da própria raça humana sobre o universo por meio de um método universal é mais benevolente que o ensino dos modos e ordens políticos Os benefícios das descobertas podem estenderse a toda a raça humana os benefícios civis apenas a determinados lugares os últimos não duram mais que algumas eras os primeiros por todos os tempos as reformas civis em geral começam com a violên cia mas as descobertas conferem benefícios sem causar sofrimento a ninguém Este argumento em sua totalidade é uma parte germinal do projeto de Des cartes A genealogia do projeto de Descartes é visível em particular nas declarações surpreendentemente semelhantes da doutrina sobre a reforma dos órgãos políticos por um indivíduo particular no Príncipe Capítulo VI no Novum Organum Livro I seção 129 e no Discurso Parte 11 Segundo Descartes Bacon não percebia com clareza suficiente que o novo método deve ser matemático para ser correto ou siste mático ou que exigia uma nova matemática e física matemática e uma determinação correspondente da alma Com essas momentosas emendas mas sobre as fundações lançadas por Maquiavel Descartes tornouse o fundador da filosofia moderna L e it u r a s A Descartes René Discourse on Method Trans L J Laileur New York Liberal Arts Press 1951 B Descartes René Medimions Trans with introduction by L J Lafleur New York Liberal Arts Press 1951 R e n é D e s c a r t e s 3 9 3 43 Para esses passos ver em panicular J Klein Mathematical Jhought and the Origjn o f Álgebra Cam bridge London 1968 197211 J ohn M ilton 16081674 Quando estudante em Cambridge John Milton pronunciou sete discursos em latim que refletem como seria de esperar levando em conta seu estilo e idioma náo só a extensão de suas leituras dos autores da Antiguidade clássica mas também até que ponto ainda menino já aceitava com consciência sua autoridade como mestres Mais tarde quando se atreveu a infringir a lei relativa às licenças para impressão e no mesmo ato aconselhar o Parlamento quanto à necessidade de revogála deu a seu discurso que se tornaria sua mais famosa obra em prosa o título àeAreopagitica Are opitica assim lembrando a seus destinatários o exemplo clássico de Isócrates e do areópago ateniense Milton buscava reformar a educação inglesa ao moldála s n d o as escolas antigas e famosas de Pitágoras Platão Isócrates Aristóteles e outras tantas Durante quase 20 anos propôs e defendeu um ensino político intencionalmente deri vado das doutrinas e instituições da Grécia e Roma antigas Insistia também no entanto que não se tratava de introduzir algo totalmente estranho à tradição inglesa de revolucionála a fim de recomeçar por meio da insti tuição do govemo a partir de princípios inteiramente novos De fato aiumentou em sua obra política mais abrangente The Ready and Easy Way to Establish a Free Commonwealth A maneira mais rápida e mais fecil de estabelecer uma comunidade nacional livre que não era sequer necessária a introdução de modelos exóticos havia exemplos suficientes no passado inglês Milton já escrevera antes em um traudo antiepiscopal Não há governo civil conhecido nem o espartano nem o romano embora ambos por tal aspecto tanto elogiados pelo sábio Políbio mais divina e har moniosamente afinados com maior igualdade equilibrados tal como se o fossem pela mão e balança da justiça do que é ou era a nação inglesa onde sob um monarca livre e desimpedido os homens mais nobres mais dignos e mais prudentes com plena aprovação e suffio do povo têm em seu poder a determinação suprema e final dos mais elevados assuntos O f Refbrmation in England The Compleu Works f John Milton ed F A Fanetson New York Coliunbia University Press 19311938 III i 63 Citado doravante como Works A ortografia fbi modernizada nas citações em inglês A virtude desta comunidade nacional livre consistia em parte no fato de que possma uma constituição mista não era uma monarquia aristocracia ou democracia mas uma mistura que reconhecia as pretensões de cada uma delas um equilíbrio divina e harmoniosamente afinado As melhores e menos bárbaras nações têm por objetivo uma certa mistura e temperamento compartilhando as diversas virtudes de vários outros estados Embora Milton viesse a se tornar inimigo declarado da monarquia logo adotando ideias totalmente republicanas e portanto quanto a isto mais coerentes com o espírito de seus modelos clássicos do que com a tradição inglesa seu apego à ideia da constituição mista mantevese fixa ao longo de sua carreira política Uma política propo sitalmente derivada da antiga Grécia e Roma é uma política constitucional e a causa do governo constitucional a causa que a Inglaterra foi escolhida por Deus para fomentar no mundo do século XVII nâo contava com maior defensor que John Milton Mesmo no último instante que antecedeu a restauração da monarquia e com ela a prelazia quando a boa e velha causa parecia estar íádada ao insucesso foi Milton que insistiu ser simples e claro o caminho para uma nação livre e se o povo deixando de lado o preconceito e a impaciência de forma judiciosa e calma agora considerar o seu próprio bem tanto religioso como civil sua própria liberdade e os únicos meios para tal ele ger homens não dependentes de uma única pessoa isto é de um rei ou câmara dos lordes a tarefe estará cumprida pelo menos os alicerces firmemente plantados para uma nação livre e também boa parte erguida da estrutura principal A tarefe aqui é compre ender a configuração e a finalidade dessa comunidade nacional livre Muito embora não seja quem deu origem à doutrina da constituição mista ou mais precisamente neste caso do estado misto nenhum nome está mais intimamente ligado a ela do que o do historiador grego Políbio Em sua famosa descrição da cons tituição romana descrição esta precedida por um comentário um tanto enigmático a esse respeito Políbio parece combinar a ideia da constituição mista de Platão e Aristó teles com uma nova ideia a da divisão do poder Se por um lado a mistura de Aris tóteles era uma combinação de oligarquia e democracia obtida pela concessão do poder político à classe média e mais moderada em um esforço para alcançar a moderação a mistura romana de Políbio parece incluir elementos da monarquia aristocracia e de mocracia cada uma exercendo uma parte do poder do estado e cada uma associada a uma determinada instituição a monarquia ao consulado a aristocracia ao senado e a democracia de modo um tanto vago às assembléias populares Sem entrar na ques tão das intenções de Políbio devemos tentar compreender o que o próprio Milton pretendia dizer com o termo Quereria indicar como Aristóteles no quarto livro da Política um regime que combina a democracia e a oligarquia de modo a evitar as des vantagens de cada uma e combinar as vantagens de cada uma e todavia possui um corpo de cidadãos indiviso que é em última análise soberano em todos os aspectos ou indicaria com isso um regime em que o cômputo total do poder político é dividi do em elementos monárquicos aristocráticos e democráticos J o h n M il t o n 3 9 5 2 Ibid 3 The Ready andEasy Way to Establish a Free Commonwealth Works VI 125 Milton não era um mero espectador dos extraordinários acontecimentos políti cos de sua época era defensor ativo tanto da causa do Parlamento contra Carlos I e posteriormente de Cromwell Grande parte de seus escritos políticos foi apresentada em panfletos escritos às pressas e para fins práticos imediatos seja para defender a si mesmo e ao povo inglês ou para encetar um último esforço para impedir a restauração da monarquia Nestas circunstâncias não surpreende que suas opiniões acerca de de terminados assuntos tenham sido modificadas pela turbulência dos acontecimentos da guerra civil e suas conseqüências Uma delas é seu conceito de monarquia outra sua concepção do caráter das pessoas comuns Milton não foi em momento algum um democrata mas sua opinião sobre a capacidade política das pessoas comuns parece ter sido mais favorável no início do que mais tarde Em 1644 na Areopagítica atacou o licenciamento para impressão pois entre outros motivos tratavase de uma censura contra as pessoas comuns que as tomava sem razão como estando em tal esudo de abatimento e íraqueza de fé e de arbítrio que nada podem absorver a não ser pela garganta de um licenciador Porém em seu Second Defense ofthe People ofEngland Segunda defesa do povo da Inglaterra uma defesa da nação por destimir e em seguida executar Carlos I e assim livrar a nação de um impiedoso domínio tuçou uma distinção entre as pessoas valorosas msânimas e leais que eram capazes de grandes feitos e de fidelidade a uma grande causa e a multidão Wgar A certa almra no início de sua carreira política repre endeu um adversário por seu uso do termo plebe amotinada contudo mais tarde empregou ele mesmo o termo plebe pau designar as pessoas comuns que segundo ele eram estúpidas e ignorantes da arte de governar além de inconstantes e voláteis São poucos os homens que almejam a liberdade disse em sua primeiu Defense ofthe Enish People Defesa do povo inglês e só alguns são capazes de usála pois a maior pane do mundo prefere senhores justos senhores notese bem porém justos To davia em sua Segunda defesa do mesmo povo inglês também pediu a Cromwell garan tia de que todos os cidadãos igualmente tivessem o mesmo direito de serem livres À luz destas dedauções contuditórias talvez o mais seguro guia pau sua avaliação do caráter das pessoas comuns possa ser encontudo no lugar que lhes atribuiu na Consti tuição Em 1641 Milton falou do poder político como sendo exercido apenas com a plena aprovação e o sufnio do povo mas foi só em 1660 em A maneira mais rápida e mais fácil que detalhou o modo como tal consentimento deveria ser oferecido e aqui no contexto de uma descrição da eleição dos membros do Conselho Geral ou legislatuu fica evidente que é mínimo o papel do povo Este exerce algum poder em um estado equilibudo mas não se pode descrever esse estado como uma democucia No entanto uma das razões da recusa tardia de Milton em admitir um rei em seu estado misto é o seu apo ao princípio da soberania popular 396 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 WbrÁi VIII 35151 5 Dfense ofthe English People Work VII 393 75 6 Wbrfc VIII 239 Milton não foi sempre republicano Considerando que em OfReformation Da Reforma escrito em 1641 achou necessário a fim de promover a reforma religiosa argumentar que o episcopado não era a única forma de governo da Igreja compatível com a monarquia oito anos mais tarde afirmou que um rei pode ser destituído quan do age de forma ilegal e mesmo quando não comete qualquer ilegalidade porque o rei recebe sua autoridade do povo Em primeiro lugar o povo escolhe os reis e pode rejeitálos os homens nascidos livres têm o direito de serem governados como lhes parecer melhor Contudo poderiam outras nações em especial uma nação de bárbaros ou a plebe íomerada serem legitimamente governadas por um rei ou até mesmo um déspota É o que sugere Milton tanto na Primeira defesa como em A maneira mais rápida e mais fácil Os reis não recebem seu mandato de Deus mas do povo Portanto vemos que o mandato e o direito justo de reinar ou destituir em referência a Deus são vistos nas Escrituras como um só visível somente no povo e dependendo apenas da justiça e do demérito É a soberania popular que deriva de Deus como afirma em Paraíso Perdido Livro XII mas do Homem sobre os bomens Não fez Senbor tal título para si mesmo Reservou bumanos debcou livres uns dos outros De início Milton pode ter apoiado a monarquia contudo logo se tornou repu blicano e um republicano entusiasmado A soberania popular no entanto guarda perfeita compatibilidade com a aceita ção da monarquia até mesmo da monarquia hereditária já que o povo pode delegar a uma família real o poder governamental ao mesmo tempo em que mantém o poder soberano de removêlo Entretanto ao chegar 1651 ano em que publicou a Primei ra defesa Milton encontrara nos eventos contemporâneos suficientes razões práticas para rejeitar a monarquia mesmo no sentido restrito de monarquia constitucional Na década anterior sua experiência como cidadão inglês confirmara os argumentos que conhecia dos escritos de Platão e Aristóteles de que a monarquia tende a se degenerar transformandose em tirania na verdade de acordo com Milton de todas as formas de governo a monarquia é a que tem a maior probabilidade de fãzêlo Nada que escrevessem os amigos do rei foi capaz de dissuadilo na verdade tornouse cada vez mais republicano na medida em que revidava a vários panfletos prómonárquicos Fi nalmente nada conseguia discernir ao redor do rei além de luxo corrompido e depra vação um estilo de vida que fez miserável o povo perverteu a nobreza privilegiada e gerou uma nobreza servil que aspirava não ao serviço público mas ao serviço como intendentes ecônomos meirinhos palafreneiros até mesmo junto às latrinas Em suma a monarquia avilta o caráter dos homens Como se poderia esperar que argumentasse um discípulo de Aristóteles não é uma forma de governo adequada J o h n M il t o n 3 9 7 7 The Tenure ofKitiff and Magistrates Works V 14 8 Ibid p 18 para homens livres Ser governado por um rei entregar todos a seu cuidado paternal é agir mais como meninos menores de idade que como homens Como se precisa ser efeminado para entregar a ele toda nossa felicidade toda nossa segurança nosso bemestar pois se fôssemos outra coisa que náo preguiçosos ou bebês náo precisaría mos depender de ninguém só de Deus c de nosso próprio juízo nossa própria virtude e indústria ativas Eram estas as razões de Milton ser republicano Náo significa é claro que se recusasse a admitir o exercício do poder executivo o Estado misto previa uma magistratura e se em 1641 tratavase esta de um rei em 1660 era um Conselho de Estado escolhido pela legislatura Por óbvio nem o povo como um todo nem o rei e seu séquito exerciam o poder político decisivo no Estado misto este papel estava reservado para os homens mais nobres mais dignos e mais prudentes segundo afirma em Da Reforma Também é evidente que essas palavras não se referem a uma aristocracia portadora de títulos de nobreza que governa por meio de uma câmara dos lordes pois não há câmara dos lordes na nação livre e Milton desdenhava a ideia de um título que confere nobreza a seu possuidor Ao mencionar os homens mais nobres mais dignos e mais pruden tes referiase aos homens verdadeiramente notáveis por seu caráter e por seu serviço público A tais homens completos e cidadãos escolhidos aconselhou Cromwell na qualidade deste último como legislador ou pai fundador sem dúvida é possível con fiar devidamente os cuidados de nossa liberdade Aludia a homens para quem o serviço público não era um meio de granjear poder posição ou riqueza mas um dever sagrado E que governo mais se aproxima deste preceito de Cristo se não uma nação livre onde aqueles que são mais preeminentes são servos perpétuos e labutam pelo pú blico à sua própria custa e negligenciam seus próprios negócios todavia não se elevam acima de seus irmãos vivem em sobriedade com suas famílias caminham pelas ruas como os outros homens podese lhes dirigir a palavra livremente com fámiliaridade de modo amistoso sem adoração Podemse encontrar tais homens entre o tipo mediano pois e mais uma vez Milton concorda com Aristóteles os demais são via de regra desviados por um lado pelo luxo e pela riqueza por outro pela carência e pela pobreza do caminho que leva à excelência e do estudo das leis e do governo Está definido então a quem Milton confia o poder político decisivo na nação livre não a um indivíduo particular ou ao povo mas a uma verdadeira aristocracia a ser encontrada entre os homens da classe média é necessário agora verificar como a colocaria em prática Os homens mais hábeis e mais nobres governarão com o con sentimento ou como afirmou em 1641 com plena aprovação e sufrágio do povo e exercerão seu governo de início através de um Conselho Geral ou legislatura Pois o fundamento e a base de qualquer governo justo e livre posto que tantas vezes sofreram 3 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Ready and Easy Way WorksYl2Q21 10 Second Dtfénse Works VIII 235 11 Ready and Easy Wsty Works VI 120 12 Definse t f the E n h People Works VII 393 os homens por confiar tudo a uma só pessoa é um conselho geral dos homens mais competentes escolhidos pelo povo para vez por outra deliberarem acerca dos assuntos púbücos para o bem comum Diferente da república romana descrita por Políbio este órgão legislativo não só promulga as leis angaria e gere as receitas públicas e em geral atua como um órgão lslatívo mas também controla o exército e a marinha Além disso e l dentre seus próprios membros assim como de fora um Conselho de Estado um óigão executivo ou magistratura que lida com assuntos particulares com maior sigilo e prontidão Finalmente há o governo local organizado em cada con dado do país e que exerce os poderes de um tipo de nação subordinada e em particular com o pleno poder de eleger juizes e aplicar a justiça Eis então os elementos de um estado polibiano misto a monarquia ou magistratura personificada no Conselho de Estado a aristocracia representada pelo Conselho Geral ou legislatura e a democracia representada pelo processo eleitoral especificamente pela eleição dos fimcionários lo cais e mais importante dos membros do Conselho Geral Estas são as instituições da nação livre um estado construído com vistas a atingir algum tipo de equilíbrio Mas que tipo de equilíbrio Seria um equilíbrio do legislativo contra o execu tivo contra o judicial ou seja uma divisão do poder a fim de evitar que qualquer indivíduo ou qualquer grupo se torne demasiado poderoso Ou seria um equilíbrio da monarquia e da aristocracia e da democracia o poder de cada um sendo exercido através de uma das instituições constitucionais Não há naturalmente um monarca mas há uma magistratura não há uma assembleia popular independente mas o povo ou pelo menos alguns deles vota Em que sentido seria este um estado equilibrado A resposta a esta pergimta exige no mínimo uma análise mais detalhada dos fiitores institucionais em questão Os homens mais hábeis governam com o consentimento do povo mas esse con sentimento é expresso somente na eleição do Conselho Geral e das autoridades locais Milton pesou a possibilidade de equilibrar o Conselho Geral com uma assembleia popu lar ou outra instituição popular tal como os éforos espartanos ou os tribunos romanos mas rejeitou a ideia porque esses remédios ou pouco beneficiam o povo ou os levam a tal licenciosa e desenfiieada democracia que in fine arruinaramse por seu próprio po der excessivo Com base na experiência da república romana que acreditava degene rou na tirania de Sula porque o povo não contente em ter apenas seus tribunos obteve o controle sobre a escolha primeiro de um depois de ambos os cônsules depois dos censores e pretores Milton rejeitava as assembléias populares em favor somente do su fr o democrático ou sufiio quase democrático Seu julgamento maduro dissuadiuo da possibilidade de equilibrar classe contra classe pelo equilíbrio de instituição contra instituição a tentativa de fàzêlo conduzia ou a uma constituição totalmente impopular ou a uma democracia desenfreada mas não a um estado equilibrado J o h n M il t o n 3 9 9 13 ReadyandEasy Way Works VI 12526144 14 Ibid p 130 Contudo o sufrágio não se revela democrático e mesmo se o fosse a máquina eleitoral parece ter sido concebida para minimizar a influência das pessoas comuns Os membros do Conselho Geral são selecionados por uma série de comissões eleitorais que utilizam uma lista de candidatos fornecida de início por uma espécie de colégio eleito ral Outra maneira de obter um equilíbrio será bem qualificar e aperfeiçoar as eleições não confiar tudo à balbúrdia e aos gritos da multidão rude mas permitir que apenas aqueles entre eles que são adequadamente qualificados nomeiem quantos desejarem e dentre esses outros de melhor estirpe escolham um número menor com mais critério até que após uma terceira ou quarta filtragem e refinação da escolha mais rigorosa só restem escolhidos aqueles que perfazem o número devido e parecem pela maioria das vozes os mais dignos Além disso o elemento democrático da constituição se mos tra de partícular fraqueza e não c h a ser suficiente para contrabalançar o poder da aristocracia no Conselho Geral quando damos a devida atenção para o fato de que este conselho o principal órgão a governar sob a constimição é eleito em perpetuidade Exceto quando da morte ou ausência de um membro não haverá eleições depois da original Milton prefere um parlamento perpétuo e é somente com grande relutância que admite a impopularidade e a inviabilidade desta configuração e aceita em substitui ção uma assembleia da qual um terço dos membros são eleitos anualmente luna vez que a necessidade de escolher parlamentos sucessivos gera comoções novidades mudança isto é instabilidade em particular porque os parlamentares recémeleitos darão início a mudanças somente para terem algo a fàzer ou aparentar terem algo a fàzer Como o Conselho Geral é ao mesmo tempo o fundamento e principal pilar de todo o Estado fàzer mudanças desnecessárias é por em perigo toda a estrutura Milton tinha consciência de que esta constituição seria alvo de ataques por sua su posta falha em posicionar salvsiardas em torno dos interesses do povo e ressaltou que uma dessas salvaguardas seria eleger homens confiáveis para o conselho homens para exercer um governo justo o que poderia ser feito por um eleitorado beminformado sem levar em conta aparentemente o número de pessoas em sua composição Neste ponto é possível discernir uma diferença importante entre Milton e os escritores políti cos que ensinaram que por meio de dispositivos como um estado misto mas querendo dizer com isso uma divisão ou equilíbrio de poder os homens poderiam construir uma nação indestrutível cuja viabilidade não dependeria de modo algum da presença de cidadãos de bom caráter A nação livre de Milton pretendia a imortalidade mas sua excelência e durabilidade dependiam da presença de homens de bom caráter de fàto dependia totalmente do governo de homens verdadeiramente virtuosos A educação desses homens não poderia ser debcada ao acaso mas deveria ser assumida como um 400 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 Ibid p 131 Milton náo especifica o método de eleição de funcionários locais mas parece que aqui também a nobreza e os principais representantes da pequena nobreza exerceriam o real poder Ibid p 144 16 Esta é a oportunidade agora mesmo a estação na qual podemos criar uma nação livre e firmála para sempre no país Ibid p 125 dever público primordial Dar ao povo maior aptidão para a escolha e aos escolhidos maior aptidão para governar será reparar nossa educação corrupta e defeituosa a fim de ensinar ao povo a fé náo sem virtude temperança modéstia sobriedade parcimônia justiça não para admirar a riqueza o princípio da sociedade comercial ou a honra o princípio da monarquia mas para que cada um dedique seu bemestar e felicidade privados à paz liberdade e segurança públicas É um problema identificar quem ou que instituição ensinaria ao povo a fé não sem virtude devido à noção que tinha Mil ton da relação adequada entre Igreja e Estado embora como veremos seja fiicil resolver o aparente problema por meio de seu entendimento da formação moral e da liberdade cristã Decerto está evidente em OfEducation Da educação com seu esboço de re forma educacional e em A segunda defísa onde apelou a Cromwell como legislador para que melhorasse as condições para a educação e moral da juventude porque proporcionar a formação moral é um dever público A excelência e a durabilidade da nação livre então não dependiam de dispositivos institucionais por mais que corre tamente planejados mas do caráter dos homens que a compõem Assim a verdadeira salvaguarda dos interesses do povo não consistia em um equilíbrio das instituições mas em seu caráter e no caráter dos homens que governam Milton fez uma concessão apenas Porém para evitar qualquer desconfiança o povo realizará suas várias assembléias ordinárias nas cidades principais de cada condado e essas serão tão eficazes para a obtenção de sua liberdade quanto uma nu merosa assembleia de todos formada e convocada a propósito com a mais cautelosa ro tação isto é com as eleições mais freqüentes Estas assembléias locais terão o poder de declarar e publicar o seu consentimento ou discordância pelos deputados dentro de um prazo limitado enviado ao Grande Conselho Isso não signiíica que cada con dado tenha poder de veto sobre as decisões tomadas pelo Conselho Geral mas que a maioria dos municípios deve concordar com as decisões Essas são as instituições do Estado misto ou nação livre uma forma de governo exercido pelos mais sábios homens em todas as eras de modo a ser o mais nobre e mais justo o mais conveniente para toda a liberdade devida e partilhado com igualdade e também uma forma de governo claramente recomendada ou melhor comandada pelo nosso próprio Salvador É uma forma de governo não só derivada dos ensi namentos dos sábios da antiguidade clássica e que segue um modelo encontrado no passado inglês como é também uma forma de governo comandada por Cristo Mas a indicação permanece que tipo de equilíbrio atinge Se esta configuração tem o intuito de instaurar um equilíbrio entre os diversos poderes do governo o legislativo o executivo e o judiciário foi concebido equivocadamente Basta um momento de reflexão sobre o método de seleção do executivo para revelar a fiJta de verdadeiro J o h n M il t o n 401 17 7íV7p 131 18 SecondDefénse Works V lll 237 19 Ready and Easy Way Works VI 132 144 20 Ibidp9 equilíbrio e até que ponto o legislativo é o poder absoluto Isso é perfeitamente correto avalia Milton porque apesar da relevância de que o poder executivo seja exercido por homens que não participem da legislatura o poder legislativo é supremo Decerto se esta configuração atinge um equilíbrio entre a aristocracia e a democracia não o íàz por encastelar cada classe em uma fortaleza institucional mas ao contrário por meio da regulação do direito de voto A este respeito se assemelha menos ao que em geral se considera como o estado misto de Políbio do que à comunidade política de Aristóteles o governo da classe média levado a efeito principalmente por meio de uma moderada proporcionalidade de acordo com os bens possuídos para o direito ao voto Com isso se pretende produzir um sufrágio amplo o bastante para conquistar a popularidade e assim esperase conquistar a estabilidade mas limitada de tal forma que minimize o poder total da multidão pois como disse Milton nada é mais natural que os inferiores cedam aos superiores não a quantidade à quantidade mas a virtude à virtude e a sabe doria à sabedoria A monarquia não encontra lugar nessa mistura e a única divisão de poder se encontra no quasefederalismo porque Milton como Platão e Aristóteles antes dele sabia que o poder não pode ser dividido entre as classes o equilíbrio portanto deveria ser definido de modo tão preciso que preservasse e mantivesse a devida autoridade em ambos os lados no Senado bem como no povo e isso é impos sível Dê ao povo 24 das tribunas e o povo acaba com os cônsules censores e pretores também tudo ou nada O governo constitucional não é um equilíbrio de classe contra classe mas uma mistura de aristocracia ou oligarquia e democracia possibilitada pelo governo do indivíduo mediano Entre os indivíduos medianos encontramse os homens mais prudentes os homens mais hábeis e virtuosos Embora seja claro que Milton devia seu modelo de governo constitucional aos escritores da antiguidade clássica não é totalmente claro que tivesse compartilhado plenamente sua compreensão da finalidade desta constituição É verdade Políbio elo giara Licurgo pela introdução da estabilidade em Esparta interrompendo assim o ciclo regular de revoluções constitucionais e Milton pediu primeiro a Cromwell e após a morte deste ao general Monk que imitasse Licurgo Também é verdade qut acreditava que devidamente constituída a nação livre duraria para sempre ou seja ati que Cristo viesse para estabelecer a Sua nação Porém tanto para os antigos como pan Milton a estabilidade era apenas uma condição necessária às metas da vida política não era a finalidade da vida política e portanto concordavam que as instituições sãt formadas tendo em vista não só a estabilidade mas seus fins Pois admitindo um solução para o problema da sucessão a constituição mais estável pode muito bem ser governo absoluto de um só homem sobre uma população completamente degradada É quando examinamos os fins da vida política que Milton parece aíàstarse de sua autoridades clássicas e o motivo óbvio para isso parece ser o seu cristianismo 402 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 21 Eikonoklastes Works V 132 22 Aristóteles PoUtica 1294 38 23 SecondDefinse Works V lll 153155 24 Ready and Easy Way Works VI 130 Náo só questões religiosas em geral mas questões de doutrina em particular foram de importância decisiva para Milton de modo que seus esforços para reformar a constituição da Inglaterra foram pelo menos igualados por seus esforços para re formar a vida religiosa dos ingleses e seria difícil dizer a qual atribuía prioridade Os bispos eram uma ameaça tão grande à constituição bemordenada quanto o rei e uma ameaça muito mais imediata que a represenuda pelas pessoas comuns Tal como o bispo de Roma não hesitara em capturar a cidade e tornarse seu governante temporal assim temia Milton os bispos ingleses imporiam sobre a Inglaterra um governo tem poral tirânico Os bispos e toda a instituição seriam abolidos Náo só o cristão é capaz de compreender a verdade das Escrituras sem a assistência de um bispo mas bispos dotados de poder político sáo uma ameaça à liberdade cristã quantos fiéis e ingle ses livres e bons cristãos têm sido obrigados a abandonar seu lar querido seus amigos e parentes a quem nada além do vasto oceano e os desertos selvíens da América pode esconder e proteger da íiiria dos bispos O episcopado é um cisto no corpo da constituição suas cerimônias e os tribunais eclesiásticos são sanguessugas que absorvem as receitas e as riquezas do país Milton escreveu tantas páginas dedicadas à reforma desses aspectos quanto sobre a reforma dos aspectos políticos No entanto é dificil separar os dois em seu pensamento isto é fitlar de refor ma política sem referência à reíbrma religiosa e isso apesar do fiito de que segundo o próprio Milton os dois poderes eclesiástico e civil são totalmente distintos Não seria inteiramente correto afirmar que percebeu só um problema o da relação entre o eclesiástico e o civil Contudo o que precisava de reforma não era a Igreja somente ou o Estado somente mas a relação entre eles Assim Milton aconselhou Cromwell a dei xar a Igreja para si mesma e ter a prudência de se aliviar e aos mitrados desse encargo que é a metade e ao mesmo tempo o mais longínquo de sua própria província O que quis dizer com esta afirmação paradoxal talvez possa ser entendido a partir da dedicatória epistolar dirigida ao Parlamento de A Treatise of Civil Power Ecclesiastical Causes Tratado do poder civil em causas eclesiásticas Escreveu ali tanto a nação como a religião no longo prazo se assim for florescerão na cristandade quando os que governam discernirem entre civil e religioso ou quando aqueles que assim discernem forem aceitos para governar As questões religiosas não são exatamente uma preocu pação da autoridade civil como demonstram as atrocidades cometidas pelo arcebispo Laud e seus coadjutores apoiados pelo poder do Estado por outro lado as questões teligiosas são devidamente do interesse da autoridade civil em sentido negativo é dever da autoridade civil manter a separação Entretanto Milton também pretende mais do que isso Também indica que Cromwell como legislador cristão pode melhor fomentar a religião cristã e é seu dever fiizêlo ao estabelecer e manter uma separação entre os poderes civil e eclesiástíco Seu auxílio é necessário para estabelecer uma nação livre J o h n M il t o n 403 25 OfReformation in England Works III i 4849 54 26 SecondDefense Works VIII 235 Italics supplied 27 Works VI 2 e ã nação livre mais que qualquer outra forma de governo promover á a liberdade de consciência que acima de todas as outras coisas deve ser para todos os homens a mais cara e mais preciosa É difícil distinguir os ensinamentos religiosos de Milton de seus ensinamentos políticos porque suas reformas políticas são orientadas por sua dou trina religiosa e em menor escala suas reformas religiosas são guiadas por considerações políticas Suas reformas políticas são projetadas sem dúvida tendo em vista a liberdade cristã mas também existe uma liberdade civil que independe da liberdade cristã e que é ameaçada entre outras coisas por uma Igreja estabelecida Com relação à liberdade civil uma Igreja estabelecida é semelhante a uma nobreza com seus títulos nobiliárqui cos porque ambas oferecem recompensas com base em algo que náo é o mérito e ambas limitam o acesso a posições elevadas por aqueles cuja única reivindicação é o mérito É a doutrina do cristianismo de Milton e especificamente sua doutrina da liberdade cris tã que origina a causa final ou finalidade e portanto a forma da constituição mista A liberdade é a meta da vida política sem levar em conta se é o objetivo reconhecido pela maioria de um povo em particular Na verdade Milton sabia que em 1660 a multidão irreverente parecia estar louca pela restauração da monarquia com sua pompa e sua religião tão hostis à liberdade e que muitos que antes apoiaram a causa da liberdade pas saram a ser apóstatas zelosos Porém não era justo nem razoável que suas vozes contra o fim principal do governo devessem escravizar a multidão inferior que poderia ser livre Melhor e mais justo se a minoria capaz e digna obrigasse a multidão se necessário pela força das armas a manter sua liberdade É complexa a ideia de liberdade de Milton e não apenas porque embora costu me dividila em duas partes liberdade espiritual ou cristã e liberdade civil em deter minado momento na Segunda dtfesa acrescente uma terceira a liberdade doméstica ou privada e se refira à Areopagltica como a obra onde trata não da liberdade civil mas dessa liberdade doméstica Tal complexidade é condizente com as dificuldades do tema Em lugar algum se reduz sua obra a uma simples proposição e nada do que escreveu corresponde às exigências para ser qualificado como um tratado sobre o assunto O que mais se aproxima disso é a Areopagttica que reconhecidamente trata de apenas um aspecto da liberdade Como afirma Milton na Segunda defesa há em primeiro lugar a liberdade no sentido de um meio para o fim a virtude para formar e aumentar a virtude o fetor mais perfeito é a liberdade Porém na frase seguin te apela a Cromwell para que melhorasse as condições para a educação e moral da juventude protesto este suficiente para nos lembrar de algo que também aprende mos com a Areopagltica que a nação livre não é uma sociedade pluralista Sabemos por exemplo que a nação livre não tolera papismo e superstição declarados mas apenas diferenças próximas ou melhor indiferenças Ao cidadão da nação livre é assegurada a liberdade para se tornar virtuoso mas não lhe é garantida a liberdade de definir a virtude da forma que lhe aprouver 4 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 28 Ready and Easy Way Works VI 142 29 Ibid p 140141 30 W orksV m lò7 Há por outro lado a liberdade no sentido negativo de ser livre de governo A nação livre náo exerce nenhuma autoridade em assuntos eclesiásticos nem como sa bemos exige o licenciamento de impressão proporcionando assim uma liberdade de imprensa O caráter limitado dessa liberdade no entanto pode ser melhor apreciado a partir do resumo que fàz Milton sobre o argumento da Areopafítica em sua Segunda Defesa Finalmente escrevi seguindo o modelo de um discurso normal aAreopagíti ca a respeito da liberdade de imprensa que a determinação do verdadeiro e do falso do que deve ser publicado ou suprimido náo pode estar nas mãos dos poucos que podem ser encarregados da inspeção dos livros homens em geral sem conhecimentos e de juízo vulgar e por cuja licença e prazer nâo se tolera que ninguém publique qualquer coisa que possa estar acima da compreensão vulgar Aqueles que são incli nados à liberdade de investigação têm liberdade para comunicarse sem a inquisição privada de qualquer censor absoluto mas por sua própria conta e risco A distinção de Milton é aquela feita mais tarde pelo direito comum onde a liberdade de imprensa consiste em poder publicar sem restrições prévias e não na liberdade de reprovação quanto a conteúdos criminosos quando publicados Por último o Conselho Geral em parte devido à extensão dos poderes exercidos a nível local promete restringir seu governo em particular à área das relações internacionais Esta liberdade negativa é ao menos compatível com a liberdade cristã e provavelmente exigida por ela a qual Milton define em parte como a liberação através da agência de Cristo do governo da lei dos homens Talvez se possa entender melhor o que isto significa a partir do seguinte trecho de Tratado do poder civil em causas eclesiásticas escrito em 1659 o estado da religião sob o evangelho é muito diferente do que era sob a lei existia entáo o estado do rigor infância escravidão e obras para todos os quais a força náo era indecorosa agora existe o estado da graça maturidade liberdade e fé a todas as quais pertence a disposição e a razão náo a força a lei foi entáo escrita em tábuas de pedta para ser cumprida ao pé da letra voluntária ou involuntariamente o evangelho a nossa nova aliança no coração de cada fiel deve ser interpretado apenas pelo sentimento de caridade e de persuasão interna a lei náo distinguia nenhum governo ou governadores da Igreja e da nação mas os sacerdotes e levitas julgavam em todas as causas não só as eclesiásticas mas também as civis o que sob o evangelho é proibido a todos os mi nistros da Igreja Esta passagem serve para introduzir a liberdade em seu sentido elevado Os homens podem acreditar que sáo livres podem gabarse de que sâo livres e podem de fato ser livres no sentido negativo mas ainda podem ser escravos Podem ser escravos no aspecto decisivo de serem incapazes de usar corretamente a liberdade negativa que lhes é dada e sâo escravos se desconhecem o certo e o errado ou se acham J o h n M il t o n 4 0 5 31 Ibid p 133135 32 Blackstone Commentaries IV xi 13 33 WorksV15 que o poder consiste em violência ou a dignidade em orgulho e altivez Sáo escravos se esmorecidos pelo luxo se controlados por sua luxúria e não por sua razão se em suma como Milton deixa muito daro na Segunda defesa não são senhores de si mes mos Não basta a liberdade da lei A menos que sua liberdade seja daquele tipo que não pode ser conquistada nem retirada pelas armas e só ela é tal que emergindo da piedade justiça temperança in fine da verdadeira virtude íincará raízes proíundas e firmes em suas mentes podeis ter certeza não faltará quem mesmo desarmado logo vos privará do que vos gabais de ter conquistado pela força das armas A liberdade que não pode ser nem obtida nem perdida pela força das armas e a liberdade de que dependem todas as outras liberdades é a liberdade cristã na plena acepção do termo Esta é a liberdade que só é conhecida pelo homem verdadeiramente livre e esta é a liberdade que constitui o objetivo ou meta da vida política Tal liberdade só se tornou possível através de Cristo porque foi Cristo quem mu dou a condição do homem de legal para evangélica de uma condição de servilismo para com Deus e de para com a lei de Deus para uma condição em que o homem é autorizado a exercer uma faculdade que compartilha apenas com Deus Na verdade esta é uma liberdade para servir a Deus mas é uma liberdade para servir a Deus sjundo a melhor luz que Deus plantou em alguém para esse fim e o que isso significa de fato é a liberdade para buscar a verdade A verdade veio ao mundo com Cristo e foi a forma perfeita mais gloriosa de se observar porém mais tarde foi par tida em mil pedaços A liberdade do homem consiste em procurar esses pedaços o que significa a busca pelo desconhecido pelo que é conhecido Não é apenas a liberdade do homem que consiste nesta vida de busca da verdade mas também a dignidade ou a virtude do homem Pois em todas as coisas Deus direciona suas dádivas não a uma credulidade indolente mas à diligência constante e a uma busca incansável da ver dade Por em prática a liberdade cristã é buscar a verdade dentro dos limites das Escrituras aquele que procura sendo guiado pelo Espírito Santo e buscar a verdade dentro dos limites das Escrituras guiado pelo Espírito Santo o qual homem algum pode ter certeza de que está a todo momento nele mesmo é buscar a verdade dentro de limites muito amplos É quase buscar a verdade sem quaisquer limites Que este é o caso fica evidente a partir da seguinte consideração o modo como um cristão avalia o poder da razão desassistida dependerá até certo ponto do que considera como as conseqüências da Queda da primeira desobediência do homem a Deus Segundo Milton o homem de fato perdeu o paraíso por sua Queda mas a aquisição do conhecimento do bem e do mal elevou o homem acima do nível de sua existência anterior até um ponto onde se tornou mais parecido com Deus A descrição 4 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 34 Second Drfense Works VIII 237241 35 Ready and Easy Way Works VI 141 36 Christian Doctrine Works XIV 9 37 Treatise o f Civil Power W ork VI 6 poética da expulsão do Éden por Milton não traz à memória a cena de angústia retra tada por exemplo no afresco de Masaccio Lágrimas vertem mas logo as secam Adiante se prostra o Mundo onde encontrar Um abrigo a Providência os guia Mãos dadas passos infirmes e lentos Com a vinda de Cristo e a libertação da lei mosaica o paraíso é recuperado mas não o paraíso do Éden pois esse estado original de inocência está irremediavelmente perdido O homem já conhece o bem e o mal O mundo aliás conheceu Sócrates o mais sábio dos homens e até mesmo Cristo que rejeita a oferta de Satanás do reino terrestre de Atenas no auge do seu poder intelectual reconhece a beleza intelectual da Antiguidade clássica Rejeitaa porque não é a verdadeira sabedoria mas tendo sido construída sobre nada íirme é mera conjectura ou imaginação É possível distinguir a vida do homem verdadeiramente livre buscando a verdade dentro dos limites das Escrituras guiado pelo Espírito Santo da vida do filósofo da antiguidade pagã mas não é fiicil não muitas questões em aberto para os últimos estão fechadas para Milton Sem a liberdade de peneirar e coar todas as doutrinas afirmou e pensar e escrever sobre elas segundo a fé e persuasão individuais os homens estão ainda escravi zados e não de feto como anteriormente sob a divina lei mas o que é o pior de tudo ao abrigo da lei do homem ou para falar de modo mais sincero sob uma tirania bárbara Poucos pensadores pagãos atribuíam maior estima à vida do intelecto pois o que é mais sradável o que mais afortunado que as coníèrências de homens instru ídos e eminentes tal como se diz ter realizado o divino Platão com muita frequência sob o famoso plátano A felicidade para este cristão consiste na amizade e a ami zade consiste em buscar a verdade juntos É dever da nação livre promover isso pois a nação livre é um lugar de liberdade filosófica como um dia se pensou que fosse a Inglaterra A finalidade da vida política que determina a forma da vida política existe fora ou além da vida política As honras da nação livre premiam o conhecimento e educam seus cidadãos de tal forma que estejam preparados para buscar o conhecimento e em conseqüência para exercer a liberdade que Cristo lhes concedeu A nação livre é erigida não somente sobre algumas instituições mas sobre homens autcvemados homens que aprenderam a go vernar a si mesmos Quantos homens aprenderão a se governar e serão verdadeiramente livres Milton não diz embora queira que todos os homens tenham o direito de tentar J o h n M i l t o n 407 38 Pamdise Lostyi 39 Christian Doctrine Works XIV p III3 40 Seventh Prolusion Works XII 263265 L e it u r a s A Milton John The Ready and Easy Way to EstabUsh a Free Commonwealth Milton John A Second Defense fth e People ofEngland Milton John Areopagytka B Milton John O fRfbrm ation in England Milton John OfEducation Milton John The Tenure ofK in ff and Magistnttes Milton John A Treatise t f Civil Power in Ecclesiastical Causes 408 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y B aruch Spinoza 16321677 Spinoza foi o primeiro filósofo a redigir uma defesa sistemática da democracia que consta de seu Tractatus theologjco politicus Tratado teológicopolítico publicado em 1670 Esta defesa surge como uma conseqüência necessária da posição metafísica de Spinoza e de sua rejeição explícita da filosofia política tradicional A enunciação mais detalhada dos fundamentos metafísicos do pensamento político está contida na Ethica Ética a obra msna de Spinoza um estudo sobre a estrutura fundamental da realidade ou substância e assim da relação entre a existência humana e a ordem eterna A rejeição por Spinoza da filosofia política tradicional é exposta de modo mais daro nas painas de abertura do Tractatus politicus Tratado político e o induz a substituir o que considera como as concepções imaginárias e inúteis dos filósofos tradicionais pelas análises realistas e científicas das da vida política características de homens tais como acima de tudo Maquiavel Em certa medida a metafísica científica de Spinoza preserva o aspecto da tradi ção política clássica segundo o qual uma ordem eterna subjaz e regula a ordem mera mente humana De acordo com o entendimento clássico a ordem eterna primeiro se torna acessível por meio de uma análise desta ordem humana Contudo a análise de Spinoza em harmonia com sua aceitação dos modernos procedimentos científicos acarreta um descaso inicial da ordem humana para que a ordem eterna possa se tornar visível A observação dos fenômenos políticos distintos da ordem pretende eliminar a distorção da perspectiva meramente humana os fenômenos políticos são registrados e analisados da mesma forma que os fenômenos de qualquer outra ciência A ordem humana é então deduzida a partir da ordem eterna cientificamente revelada O elemento clássico no pensamento de Spinoza podemos sirir constitui uma revisão do ponto de vista estoico de uma vertente da doutrina socrática Spinoza continua a reconhecer a necessidade e a possibilidade de um aperfeiçoamento na or dem humana à luz da nossa visão da ordem eterna mas combina esse reconhecimento com uma concepção estoica da relação entre o filósofo e a eternidade Daí resulta uma curiosa combinação de ativismo socrático e passividade estoica A satisfação filosófica resulta da contemplação da ordem eterna da qual o homem é apenas uma parte e em termos da qual suas preocupações sociais e políticas são tentações ilusórias que o aíastam da serenidade Entretanto a serenidade depende da reconstituição bem sucedida da ordem social e política ou humana A influência dos estoicos sobre Spinoza é visível na sua definição metafísica de liberdade que de acordo com seu determinismo parece identificar a mais elevada forma de atividade como uma resignação passiva diante das conseqüências da ordem eterna Na esfera política embora seja verdade que Spinoza preserve o ativismo socrático menciona do anteriormente transíbrmao de uma atividade de cavalheiros para uma atividade de cientistas ou de políticos decisivamente influenciados por uma compreensão científica das questões políticas O cavalheiro que dá ouvidos ao filósofo é substituído na esfera prática pelo cientista político com uma correspondente mudança nos ensinamentos políticos piáticos Na esfera prática a liberdade é concebida como a expressão inteligente do poder humano Contudo o poder humano é explicado em termos de uma concepção geral do poder uma concepção comum a todas as coisas existentes A concepção comum de poder torna possível um método de estudo que é comum a todas as coisas Por sua vez a combinação da concepção de poder e do método de estudo produz a metafísica científica que se propõe a explicar os princípios fundamentais da realidade os princípios que são comuns a todos os aspectos da realidade seja ela humana ou eterna A nova metafísica científica transforma os ensinamentos políticos práticos porque se origina de uma nova concepção da natureza humana Ao ignorar a perspectiva me ramente humana a metafísica científica explica o homem em termos que são comuns ao humano e ao não humano O novo realismo científico se orienta pelo comum por aquilo que os filósofos tradicionais teriam chamado de base Assim fàz porque esses elementos comuns podem ser dominados por seu método universal a nova concepção oferece uma promessa de sucesso em dilemas políticos que não estava disponível para a visão por demais ambiciosa dos filósofos tradicionais O domínio do poder ele mesmo o maior poder procede de forma idêntica tanto no mundo humano como no não hu mano Spinoza é leitor de Maquiavel que ensinava que a Fortuna poderia ser dominada por homens fortes e mesmo que através do desenvolvimento de um método eficaz a natureza do homem talvez a própria natureza poderia ser modificada Tanto Spinoza como Maquiavel enfiitizam sua intenção de estabelecer uma nova maneira que é útil porque é de grande eficácia e eficaz porque parte de uma visão dos homens tal como são não como se gostaria que fossem Retirando do homem suas fimtasias começando com o homem tal como é na nudez de sua existência natural a nova maneira é inferior à maneira clássica e judaicocristã que se perdeu por ter metas demasiado elevadas As alturas ou a liberdade e a virtude baseadas no controle da natureza pela força humana só podem ser conquistadas com um ponto de partida convenientemente baixo Esse ponto de partida por sua vez preíigura a substituição da antiga elevação por um novo patamar A nova ou menor altura reconhece a na tureza degradada do homem que se deve ao domínio da paixão sobre a razão Para alcançar as alturas a razão deve regular a paixão A melhor forma de regular a paixão é a invocação de outras paixões em suma o homem só pode ser regulado pelos elemen tos que são comuns a todos os homens A regulação dos homens se baseia fúndamen 4 1 0 H is t ó r ia DA F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y talmente na aprovação daqueles que devem ser regulados A concepção científica do poder e do método universal de análise nos leva por meio de uma nova concepção do homem a rejeitar a aristocracia clássica em fiivor da democracia A razão livre da paixão é a ciência Esta libertação envolve uma mudança na concep ção clássica de razão A passividade estoica é transformada em um domínio ativo com base no entendimento da substância Assim o homem entra em conflito também com a reli gião tradicional pois da mesma forma a religião aconselha a resignação à ordem eterna por intermédio da obediência à palavra revelada de Deus A tentativa inicial de Maquiavel de libertar a razão da religião tradicional na esfisra da política tem continuidade tanto em Hobbes como em Spinoza de forma similar ambos tentam modificar as reivindicações da religião por meio de uma reinterpretação radical das Escrituras Sagradas Spinoza também conserva a admiração de Hobbes e de Descartes pela mate mática como modelo para a nova razão através da qual fidsas utopias serão substituídas por uma vontade de poder cientificamente regulada Na aplicação da análise mate mática à ordem humana Spinoza decompõe esta ordem em seus átomos individuais de tal forma que o homem natural é estritamente présocial Para Hobbes e Spinoza o estado de natureza é portanto caracterizado por um primado do indivíduo isto é a multiplicidade de indivíduos cada um lutando para existir na medida em que seu poder o permite constitui o dado inicial A sociedade emerge quando o homem o indivíduo inteligente reconhece as vantagens da união em concordância reconhece que a sociedade ou o instrumento criado pelo homem para a satisfação dos desejos constitui em geral um aumento eficiente de seu poder individual Há no entanto uma diferença essencial entre o pensamento de Hobbes e o de Spinoza o que se explica pelo menos em parte pela diferença em sua orientação me tafísica Hobbes dá continuidade à tradição materialista A ordem inteligível embora não inventada pelo homem é uma interpretação humana da seqüência ou padrão dos movimentos A expressão científica dessa interpretação começa e é deduzida a partir de definições dos movimentos primários e das leis do pensamento por meio das quais essas definições podem ser combinadas Contudo o homem é com efeito um tipo de movimento que difere em sua estrutura interna de outros tipos de movimento O homem como o intérprete dos movimentos não é explicado de todo em termos de movimentos não humanos A importância do homem é indicada na esfera política pelo fiito de que por direito natural Hobbes quer dizer em essência o direito humano Posto que a ordem é relativa à decisão do indivíduo de aceitar definições comuns a autonomia decisiva do indivíduo nunca pode ser transformada por inteiro na segurança da comunidade Para Hobbes a necessidade de autopreservação do indivíduo é mais primitiva que a sociedade e é de fato a condição para a sociedade a filosofia e a religião Desta forma a autopreservação permanece mesmo no seio da sociedade sob uma forma que é comum a todos os indivíduos no estado de natureza Contudo para Spinoza de acordo com a tradição estoica a ordem eterna é anterior e independente do indivíduo ou das decisões do indivíduo Para Spinoza a passagem do estado de natureza para a B a r u c h S p in o z a 4 1 1 sociedade política não é em sentido algum como é pelo menos em parte para Ho bbes a criação da ordem ou das condições de poder A sociedade é sim a condição para a filosofia ou para a descoberta da ordem Assim a filosofia ao invés da pabcão autônoma comum a todos os indivíduos é para Spinoza a mais potente salvarda para a autopreservação do indivíduo Porque Hobbes preserva na sociedade a autonomia radical do indivíduo cujo empenho apaixonado para existir interfere com o seu êxito cm íàzêlo é necessário con trabalançar este pluralismo natural e inexpugnável com um governo fortemente centra lizado Hobbes é monarquisu para o bem do indivíduo o monarca está em melhores condições do que os indivíduos para fornecer um remédio para o que subjaz a seu medo comum Além disso uma autonomia natural significa que os indivíduos são radicalmen te iguais Esta igualdade será preservada da melhor forma em uma comunidade que seja tão homogênea quanto possível e em que o partidarismo seja limitado se não total mente eliminado O monarca é um símbolo da igualdade entte as unidades sociais pelo próprio fiito de ser a unificação de sua vontade social Sua vontade única e indissolúvel é o reflexo da vontade de cada súdito individual enquanto igual a qualquer outro súdito Assim a monarquia é o mais seguro e portanto o melhor dos rmes Spinoza por outro lado concebe os indivíduos como a representação a partir do ponto de vista humano da articulação da ordem eterna em uma hierarquia de partes e todos É portanto capaz de aceitar as difirenças naturais distintas das convencionais entre os homens como politicamente fundamentais O caráter inexpugnável dessas dife renças naturais sempre exigirá uma variedade de tipos e funções dos homens na sociedade e portanto de opiniões que não podem ser destruídas na unidade do poder governante exceto ao custo de destruir a própria ordem social Spinoza é portanto um defensor da democracia na qual em prol da filosofia que protege os interesses de todos a liberdade de expressão deve ser concedida a fim de refletir e satisíàzer as diferenças naturais entre os homens Na medida em que a democracia é a personificação dos ensinamentos filosó ficos corretos rjilamentará as opiniões dos homens por meio de instituições religiosas sociais e políticas mas não insistirá em uma uniformidade de opinião Assim o filósofo é por natureza o homem mais elevado porque é o mais poderoso e a melhor salvaguarda do poder de indivíduos não filosóficos Entretanto para que seja preservada a filosofia o filósofo deve apoiar a democracia que é de fiito a manifestação de seus ensinamentos políticos Caso contrário quando a opinião é tiranizada a filosofia é destruída pelo dogma e pela superstição Por outro lado para que a democracia seja preservada deve apoiar a liberdade da filosofia Os interesses da filosofia e da democracia coincidem quando ambos são corretamente definidos Já observamos que os ensinamentos políticos de Spinoza se destinam a ser uma dedução de sua análise da substância Como Spinoza nos diz em De InteUectus Emen datione Reforma do intelecto seu desejo seria de direcionar todas as ciências a um 4 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Benedict Spinoza Improvement o f the Understanding in Works ed van Vloten and Land 3rd ed 4 V bound as 2 The H i e NijhoíF 1914 I 7 As citações que aparecem nesse capítulo fotam traduzidas para o inglês pelo autor fim O íim da ciência política é portanto idêntico ao íim das ciências naturais ou metafísicas Os princípios íundamentais de todas as ciências sáo as propriedades da substância e portanto todas as ciências procedem de acordo com o método por meio do qual essas propriedades são descobertas Visto que os homens fazem parte da subs tância e assim são determinados por ela Spinoza chama tais elementos de modos podemse deduzir as leis que regem seu comportamento a partir das leis gerais dos elementos ou modos da substância Ao igualar direito a poder e poder à luta de todos os modos para se conser varem Spinoza ao contrário de Hobbes nega o caráter peculiarmente humano dos fenômenos políticos como vimos o ponto de vista humano conduz a ilusões É sob a perspectiva dessas equações que teremos de entender o Tratado teolóopolítico no qual os princípios da ciência política são formulados com base em uma acomoda ção explicitamente mencionada por Spinoza à assunção ilusória de que o homem tem um status especial no universo Isso também explica a preocupação acentuada de Spinoza com a teologia em um livro político pois a base tradicional para acreditar no status especial do homem e assim para a propagação e preservação de ilusões anti científicas é em sua visão a religião Na mesma perspectiva entendemos também a observação de Spinoza de que toda a doutrina do Tratado político decorre da premissa de que o desejo de autopreservação é necessariamente universal Essa premissa é a causa imediata da atividade humana de tal forma que na apresentação científica da filosofia política íunciona como o meiotermo entre a substância e a estrutura das melhores formas de governo Todas as ciências devem ser estudadas utilizandose o método que é aplicado em matemática a este respeito Spinoza segue o novo movimento na íilosoíia exemplifica do por Descartes Só são aceitáveis as conclusões que tenham sido deduzidas de ideias adequadas claras e distintas As ideias são adequadas quando expressam a natureza de um modo ou aspecto da substância tal como é em si mesmo ao invés de como se mostra para o homem Por analogia com a matemática a estrutura interna do modo embora dedutível a partir das propriedades da estrutura mais geral da substância pode ser entendida simplesmente tal como é tal como se apresenta diante da luz de nosso entendimento e náo como algo que tende ou parece tender em direção a um fim ou um bem além de sua coisitude intrínseca ou estrutura determinada Assim Spinoza expulsa a teleologia da filosofia A tentativa do filósofo para en tender como são as coisas como foram determinadas pelas leis da substância náo deve ser dificultada pelo íato de que o próprio filósofo seja determinado em sua busca do íim que é o entendimento Para obter uma verdadeira compreensão da realidade o filósofo deve ver as coisas como elas sâo e não como se mostram para ele por causa da influência de suas paixões sobre a razão Sem essa compreensão exata não pode conquistar aquele domínio da realidade que suas paixões desejam B a r u c h S p in o z a 4 1 3 2 EdtUs I iii 69 3 Political Treatise II iii 18 A compreensão dos fenômenos políticos é portanto diferente da ação política baseada na compreensão correta Não há nenhuma razão ou finalidade nas proprie dades da esfera por exemplo além da necessidade intrínseca à ideia de uma esfera de que se é que existe deve existir de uma maneira específica O mesmo é verdadeiro a respeito da humanidade O estudo do homem como um ramo da filosofia se realiza da mesma forma que o estudo das esferas pedras ou cavalos Como diz Spinoza na Etica Vou examinar as ações e os apetites humanos do mesmo modo como se fos sem uma questão de linhas planos e sólidos A dedução matemática é a adequada para o estudo do homem tal como o é para o estudo das pedras Mas as pedras não se envolvem em atividades políticas A natureza racional do homem possui formas de expressão tanto científicas como não científicas A forma de expressão não científica atinge seu pleno desenvolvimento na sociedade política ou na organização do poder individual em termos de sentimentos e desejos subjetivos Esse elemento subjetivo é ele mesmo condicionado pela tendência inerente ao homem de estabelecer uma falsa analogia entre sua própria atividade intencional e as atividades das coisas naturais O homem atribui objetivos às atividades das coisas naturais e com isso desenvolve a religião juntamente com a sua forma degenerada a superstição O estudo científico dos fenômenos políticos exige um cuidadoso estudo da re ligião como a forma mais decisiva de condicionar o comportamento político nas so ciedades précientíficas Da mesma forma um apelo cientificamente construído para a mudança política radical deve ajustarse às formas existentes de crenças religiosas subjetivas O filósofo deve estudar as paixões humanas e suas modificações exatamente como se fossem propriedades da atmosfera mas também deve analisar o lado prático da política do ponto de vista humano ou causai Este ponto de vista embora pre sente em ambos os tratados políticos predomina no Tratado teológicopolitico como fica logo evidente pelo fato de que contém o tratamento exaustivo que dá Spinoza à religião um assunto que é abordado com pouca profundidade no Tratado político É essencial perceber que esta diferença entre os dois tratados é compatível com o fato de que a apresentação mais completa dos ensinamentos políticos de Spinoza encontra se no Tratado teológicopolítico precisamente porque se trata de uma combinação de considerações teóricas e práticas Duas questões são fundamentais para esses ensinamentos 1 Com base na com preensão científica da natureza humana qual é a forma do melhor Estado optima respublicd 2 Quantos homens podem ser convencidos a modificarem suas leis e costumes atuais a fim de fàzer com que a sociedade corresponda mais de perto ao modelo do melhor Estado O Tratado teológicopolitico mas não o Tratado político tem como intuito persuadir bem como instruir A principal preocupação do Tratado político não é de fato apenas o melhor Estado mas a questão mais prática relativa à melhor versão dos três principais tipos de governo monarquia aristocracia e demo 4 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 Ethics I iii Prefece 5 Political Treatise II viii 46 cracia Consequentemente sua ênfase maior sobre as leis e instituições positivas em conjunto com uma franqueza inicial sobre o caráter científico dos objetivos e métodos da filosofia política fez com que se assemelhe ao modelo atual de um trabalho teórico em ciência política muito mais que o Tratado teolágjcopoUtico Porém Spinoza não é um cientista político da atualidade considera parte de seu empreendimento cientí fico mobilizar os homens para uma conduta que seja justificada pela teoria A filosofia política não é científica a menos que seja útil Assim a obra mais teórica é a que induz os homens à atividade teoricamente correta O Tratado teolócopoUtico é do ponto de vista de Spinoza seu tratamento teó rico mais completo da filosofia política porque é o que menos se preocupa com as leis e instituições positivas e mais se preocupa com as motivações universais do compor tamento humano Em sentido um tanto semelhante podese dizer que a República de Platão é uma descrição mais completa de sua teoria política do que as Leis exatamente porque as Leis se preocupam mais com os detalhes da legislação do que com a natureza da alma humana Mas o Tratado teológicopolítico é obviamente muito menos uni versal em sua intenção que a República Para nossos propósitos aqui o caráter local do tratado de Spinoza pode ser explicado como devido a sua acomodação à ampla influência das Sagradas Escrituras em sua época Porque os homens agem movidos pela paixão e não pela razão só podem ser impulsionados a reconstruir as crenças religiosas sobre as quais repousa a sociedade política por uma modificação das paixões predominantes por meio da substituição criteriosa dos objetos que os satisfazem Assim podemos compreender o exterior religioso do Tratado teológicopoUtico Spi noza simplesmente não pode rejeitar as Escrituras sem isolarse daqueles a quem espera influenciar O ponto de partida de qualquer apelo ao público deve ser por necessidade a situação histórica contemporânea Gntudo os próprios fundamentos a partir dos quais a situação histórica contemporânea é avaliada transcendem essa situação São os funda mentos da compreensão filosófica da natureza na conhecida fiase de Spinoza o filósofo que se encontra nesta terra vê o mundo histórico sub specie aetemitatis A mesma opinião pode ser expressa como segue De acordo com Spinoza a natureza humana funciona segundo princípios inteligíveis e invariáveis Quando se compreende completamente a situação contemporânea percebese que está enraizada na situação humana como tal As raízes da situação contemporânea são os princípios da namreza humana os quais não se alteram pela variedade de situações históricas A correta análise teórica da sociedade e religião contemporâneas exige uma correta análise teórica da sociedade e da religião como tal O livro político fimdamental é um tratado teológicopolítico porque se baseia no reconhecimento de que a relação entre religião e política não é apenas um acidente da história mas decorre da namreza do homem Passamos agora a uma análise mais específica dos dois tratados políticos É n a tiva a ligação entre as duas obras a ausência no Tratado político de um amplo debate Ba r u c h S p in o z a 4 1 5 6 Ibid p 31 7 Ibid ü 46 acerca de religião Enttetanto quando Spinoza politiza a religião mesmo que não o íàça de modo explícito é possível deduzir essa atitude a partir de sua teoria da natureza humana Os dois tratados são compatíveis entre si bem como ambos sáo compatíveis com a Ética Náo é possível estabelecer aqui a forma precisa do conceito de religiáo de Spinoza porém é claro que jamais desafia a necessidade de religiáo que tem o homem Podese concordar com a afirmaçáo de que a Ética como um todo é a maneira como Spinoza apresenta a devoçáo de um homem livre Em seus escritos políticos deixa claro que há uma distinçáo entre a religiáo dos íilósofos e a re l o pública No Tratado po lítico diznos que embora deva ser permitida entre o povo a liberdade de diversidade religiosa essa liberdade é restrita à crença e à devoçáo privadas Porém quando discute os direitos das autoridades supremas em geral e a íbrma de uma aristocracia em parücular Spinoza deíènde uma reláo nacional determinada pelo Estado e portanto com ritos públicos uniformizados Durante todo o tratado eníatiza o perigo que representa para a estabilidade do público uma diversidade de seitas religiosas e modos de devoçáo Esta ênfese é característica do modo como Spinoza aborda cada aspecto da legislaçáo política e é conseqüência direta da sua concepção da natureza humana Posto que os homens são motivados a agir pela paixão e não pela razão seria loucura construir um Estado no qual a liberdade repousasse apenas em uma presunção de razão ou de boafé As paixões primárias são o medo da dor e a esperança do prazer Uma vez que o desejo mais proíúndo de todo homem é sua própria autopreservação a luta para elevar ao máximo o prazer e minimizar a dor fez dos homens inimigos por sua própria natureza ao medo e à esperança pode ser acrescentada a paixão básica do ódio Quando os homens se unem para formar sociedades em um esforço para salvsuardar a existência individual por meio do poder coletivo nem por isso modificam suas nature zas mas continuam a ser criaturas da paixão Continuam a ser motivados pelo medo e pela esperança e assim o pero do ódio persiste no seio da sociedade Por este motivo Spinoza alerta incessantemente para a necessidade de preservação da unidade dentro do Estado É natural a associação política mas uma de suas principais íunções é conter a na tureza passional do homem A melhor maneira de consqir isto será tirandose proveito da primazia do medo e da esperança O princípio do Estado é o desejo de autopreserva ção e é por meio desse desejo que os homens devem ser levados à obediência Contudo a ênfese na paixão tanto no caso do indivíduo como do Estado é com patível com a reivindicação de Spinoza para legislar de acordo com a razão e com sua crença de que os homens são livres somente quando obedecem através da razão e náo pelo medo O direito do homem é idêntico a seu poder e seu poder é limitado pela pai xão Uma vez que a paixão só pode ser controlada por outras paixões construir o Estado sobre esta fundação é ao mesmo tempo racional e propício à liberdade A sociedade deve correr a condição do estado prépolítico da natureza onde os homens estão tão divididos pela paixão a ponto de não terem quase direito aum A liberdade é a vida de acordo com a razão De acordo com a influência clássica sobre seu pensamento Spinoza concebe o Estado em si como uma expressão direta da ordem racional do universo Assim pelo menos em um sentido limitado é razoável obedecer à lei na sociedade 4 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y A própria sociedade existe como resultado de um acordo mútuo entre indivíduos para delegar o poder a uma autoridade soberana com o fim de reforçar a capacidade de autopreservação de cada homem Dentro da sociedade a vontade da autoridade sobe rana é com efeito a vontade do indivíduo razoável Na melhor sociedade a vontade do indivíduo é exteriorizada por meio das melhores ou o mais razoáveis leis Desobe decer à autoridade soberana é contradizer a si mesmo é não ser razoável é ir contra os próprios interesses Por causa da natureza egoísta e passional do homem se cada cidadão tiver o direito de interpretar as leis o interesse próprio desintegrará o Estado Assim cada um de nós está vinculado em todas as coisas à mente única da nação mesmo quando consideramos iníquas suas decisões A razão ensina a adquirir inde pendência individual por meio de abdicar dela em favor da vontade do Estado Em conseqüência podese dizer de fato que o Estado mais poderoso e mais independente é constituído de acordo com os princípios da razão correta que revelam qual meta é do interesse de todos os homens A necessidade de unidade porém não torna os homens escravos de uma tirania monolítica Visto que a obediência se baseia no interesse próprio é do interesse da auto ridade soberana ser razoável o Estado deve evitar causar indignação no povo Não tem o direito de fàzêlo pois não tem o poder de fezêlo uma vez que uma multidão desorde nada e indada constitui uma ameaça à força da autoridade do soberano Assim como o cidadão razoável entenderá que sua liberdade depende de uma nação forte e unida e que essa força e unidade em si não constituem um obstáculo à sua liberdade privada de pensamento e de crença assim também a autoridade soberana em um Estado razoável entenderá que age errado quando procede de forma contrária aos ditames da razão Aqui Spinoza não está contradizendo suas afirmações usuais de que a paixão é regida pela paixão e não pela razão É razoável apelar para o interesse próprio em vez de para argumentos religiosos ou filosóficos O ato errado do soberano é aquele que acarreta sua própria ruína Portanto a autoridade soberana é obrigada a agir de tal for ma que preserve o medo e a reverência entre a multidão desordenada Embora o pacto social deixe de ser vinculatório quando transgride o interesse geral Spinoza afirma expressamente que o direito de decidir quando isso ocorre repousa com exclusividade na autoridade soberana Somente a autoridade soberana tem o poder de saber o que é do interesse geral No entanto este poder é ele mesmo sujeito às limitações da paixão pública A autoridade soberana sge no interesse geral ao transformar a paixão pública em virtude e obediência e isso é feito por meio de boas leis As boas leis atendem melhor aos interesses de todos os cidadãos portanto são razoáveis e por razoáveis não devem ser temidas Assim a melhor nação conquista a obediência não por medo mas pela razão O melhor Estado é aquele onde os homens passam a vida em concor dância e as leis são mantidas invioláveis Devese entender que por razão até agora Spinoza referese à ponderação dos interesses do indivíduo B a r u c h S p in o z a 4 1 7 8 Ibid iv 6 9 Ibid V 2 O Estado de Spinoza portanto transforma a paixão em serva da razão por meio da compreensão racional da natureza passional do homem A íilosoíia constitui o maior poder para todos os homens embora seus ensinamentos devam ser apresentados de for ma adequada para a mente do público A íilosoíia é de interesse geral não é exagero dizer que o íim último do Estado é a íilosoíia A pína de título do Tratado teolóopoUtico nos diz que a liberdade de filosoíàr é necessária para a preservação da piedade e da paz pública A liberdade do cidadão dentro do melhor Estado é a manifestação polídca da liberdade filosófica Dentro do Esudo há luiu unidade entre cidadão e soberano Essa unidade depende de instituições racionais que fàzem dos magistrados os representantes políticos dos filósofos tal como as instituições são a fàce pública da filosofia Como diz Spinoza os homens são dirigidos de tal forma que acreditam que não são dirigidos mas que vivem por seu próprio intelecto e sua própria opinião livre Com base nisso Spinoza rejeita a monarquia em fàvor da democracia A de mocracia imita o estado de natureza ao limitar o direito dos principais magistrados à quantidade de seu poder No estado de natureza existe uma heterogeneidade natural de tipos humanos que subjaz à heterogeneidade nas quantidades de poder e é ela própria a expressão visível das articulações na estrutura da substância Um homem não tem poder suficiente para governar o Estado as monarquias são aristocracias ca mufladas A heterogeneidade do estado de natureza é em termos políticos a condição para a desigualdade natural dos homens Contudo isso não significa que um homem ou alguns homens tem o direito de governar seus semelhantes Uma vez que direi to é equivalente a poder e o poder de qualquer homem sozinho é insuficiente para governar para preservar a si mesmo de acordo com seus interesses a característica po liticamente significativa do estado de natureza não é a superioridade de um indivíduo em relação a outro mas a variedade de tipos Essa variedade de tipos humanos não pode ser suprimida tal como não se pode suprimir o caráter da própria substância O desejo do indivíduo deve refletirse na estrutura legal e institucional do próprio regime caso contrário os indivíduos não aceitarão a identidade entre sua vontade e a do Estado O regime democrático ou a síntese de tipos humanos que em sua estrutura se mantêm fiéis à diferença desses ti pos imita o estado de natureza Porém uma imitação não é uma identidade Podemos dizer que o regime democrático racionaliza o estado de natureza ou cumpre o que está implícito no estado de natureza A variedade de tipos no estado de natureza contém uma desigualdade racional implícita que é diferente da desigualdade bruta ou física Para citar um exemplo simples o homem que é capaz de dominar seus vizinhos pela força física no estado de natureza pode ser incapaz de lidar com as ameaças ao seu poder que transcendem o domínio da força bruta O homem que tem força física superior é na realidade menos poderoso que o homem de maior inteligência No entanto tem poder suficiente para em determinadas circunstâncias destruir as condi 4 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid X 7 ções náo apenas para sua própria sobrevivência mas para a sobrevivência daqueles que se sobrepujam a ele de outras maneiras O regime democrático racional deve equilibrar os poderes da força e da inteligência a fim de preservar os dois Spinoza concebe este equilíbrio de tal forma que sua versão de democracia difere muito daquela da maioria dos autores atuais Como seu tratamento do âmbito do poder soberano indica Spi noza tende a enfiitizar a liberdade das instituições em vez da dos indivíduos Tende a conceber as instituições como a incorporação racional de controles sobre o poder irracional da multidão Como conseqüência a liberdade dos indivíduos tende a ser reservada para a esfera privada do regime ao invés da pública Quando Spinoza avalia a inteligência política da multidão aponta que se esta pudesse moderarse e não julgar quando são ignorantes estariam mais aptos a gover nar do que a serem governados Em sua discussão sobre a democracia no Tratado polí tico afirma que a palavra democracia não designa o conjunto de eleitores dentre os quais são escolhidos os que ocuparão os cargos mas ao contrário indica que existem leis que determinam de modo específico quem terá direito a voto Na própria con cepção de democracia a ênfase recai sobre as instituições e não sobre os indivíduos De acordo com Spinoza a principal diferença entre a aristocracia e a democracia consiste nisto em uma aristocracia o conselho governante aristocrático perpetuase pela elei ção de novos membros Em uma democracia todos os cidadãos têm direito a votar e exercer cargos Conmdo as restrições de idade e de posses podem reduzir o número de cidadãos no conselho supremo da democracia a um número infizrior ao dos que parti cipam do conselho em uma aristocracia Esta modificação por si só uma expressão do modo conservador como Spinoza entende a democracia é a única diferença essencial entre os dois conselhos Quando Spinoza atribui à inexperiência a ignorância política da multidão não está defendendo o liberalismo individualista mas ao contrário a fimção educativa das instituições livres às quais os indivíduos são subordinados e que os tornam verdadeiramente indivíduos Podese resumir o afestamento entre Spinoza e Hobbes pela constatação de que Spinoza passa da definição geralmente aceita de autopreservação para uma outra con cebida com sutileza Em nossa análise acompanhamos essa transição do modo como uma implicação sutilmente entendida do estado de natureza vem a substituir luna ge neralização comumente aceita a partir da forma mais explícita do estado de natureza A transição se torna politicamente evidente na rejeição de uma monarquia absoluta em fiivor de uma democracia conservadora quase aristocrática O princípio da demo cracia conservadora que incorpora a relevância filosófica dessa transição é a liberdade da filosofia a filosofia é o poder de autopreservação sutilmente entendido A fim de manter a filosofia livre isto é poderosa é preciso refletir de modo correto em nosso regime político as espécies diferentes de tipos humanos Visto que a filosofia é a compreensão da estrutura da substância não pode prosperar se não tiver acesso a essa estrutura Este acesso é obtido pela observação das diferentes espécies de instituições e atividades humanas consequentemente o regime político deve permitir B a r u c h S p in o z a 4 1 9 uma variedade de opiniões como já foi indicado É importante lembrar que o regime político tem como seu bem maior a preservação da íilosoíia Pois isso não é de modo algum o mesmo que dizer que o bem maior é a liberdade do indivíduo Esta última afirmação implica uma feita de ordem natural com base na qual se possam classificar os indivíduos Spinoza não é cristão nem liberal moderno nem existencialista a li berdade para ele só é possível sob a condição da íilosoíia e portanto no sentido mais completo somente o filósofo é livre A sociedade livre depende totalmente não da liberdade de expressão no sentido da expressão de alguém mas da liberdade de expres são filosófica Este é o coração do conservadorismo de Spinoza o qual transparece de modo explícito no Tratado teoláffcopolitico Enttetanto devido às várias finalidades secundárias deste tratado sendo a mais importante libertar a íilosoíia do controle religioso ou popular a visibilidade explícita anteriormente leferida é muitas vezes toldada e ptedsa ser apontada de modo explícito O Tratado teolóopolítico é uma obra revolucionária Por outro lado Spinoza pretende introduzir mudanças práticas sem perturbar a ordem da sociedade Pretende sua revolu ção como um substituto sem derramamento de sangue para as cruentas extravagâncias causadas pelo triunfo da superstição sobre a religião A íim de fezer com que a nação altere seus costumes é preciso apresentarlhe instruções intelveis Spinoza aceita a tradicional distinção entre a minoria dos íilósofos e da esmagadora maioria da multidão não filosó fica O problema de felar na presença do vulgo sem mencionar os íilósofos em potencial que ainda estão sob a infiuênda do vul levou Spinoza a exercer grande cautela em meio a sua ousadia Na visão de curto prazo foi ineficaz sua prudência mas no loio prazo parece ter tido surpreendente eficácia como se pode avaliar por meio de um exame das mudanças nas interpretações de Spinoza durante os últimos 150 anos No tratado sobre a Reforma do Entendimento Spinoza instrui seus leitores para falarem à multidão de forma inteligível e para se adaptarem tanto quanto possível à capacidade dos muitos No Tratado teológicopolítico aponta que o vulgo inclui todos aqueles que não sejam ao menos íilósofos em potencial juntamente com o vulgo estão todos aqueles sujeitos às mesmas paixões que o vulgo Spinoza pede aos homens des se tipo que nâo leiam seu livro mas é óbvio que este pedido não pode ser uma imposi ção Decerto o livro se dirige aos líderes da multidão pois é através desses líderes que a própria multidão pode ser transformada Spinoza ao comentar sobre a forma literária da Bíblia pondera que para instruir uma nação ou a humanidade é preciso ajustar ao máximo os motivos e as definições de seus ensinamentos à capacidade plebeia que constitui a maior parte do gênero humano Contudo é este exatamente o objetivo do Tratado teológicopolítico alterar as opiniões da humanidade a respeito da religião e ensinar uma nova doutrina política No sentido mais geral o tratado como um todo é uma acomodação para o entendimento comum com certeza em relação a questões acerca das quais os muitos mais se preocupam 420 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 11 TheologcoPolitical Treatise II v p 92 Por óbvio os filósofos sáo livres como indivíduos particulares para fezer as cor reções necessárias a fim de discernir de modo mais claro os ensinamentos teóricos mas exatamente porque assim o fizeram apresentarão seus discursos e ações públicas às leis da república defendida nos ensinamentos teóricos Desta forma devemos distinguir entre os aspeaos do Tratado teolôopolítico que se destinam a convencer o vuo aqueles que expressam os princípios da melhor república e aqueles que descrevem a própria república No terceiro caso jamais devemos esquecer as palavras de Spinoza na passíem crucial relativa à liberdade de expressão e de pensamento Ninguém pode agir contra os decraos do poder soberano e no entanto mantêlo seguro mas sobre todas as coisas se pode pensar e juar e em conseqüência até mesmo felar desde que se fele ou pense única e exclusivamente a partir da razão e não por malícia raiva ou ódio e que não se tente introduzir nada no Estado unicamente pela autoridade deste decreto Para obter a melhor república devese primeiro purificar a religião por motivos que já foram discutidos Quinze dos vinte capítulos do Tratado teolócopolítico são de dicados a esta tarefe A excessiva complexidade da argumentação contida nesses capítulos impede que aqui se apresente mais que um resumo deles Enquanto entendermos com clareza as razões para a complexidade do assunto há justificativa para que em uma introdução ao pensamento político de Spinoza limitemonos a sua concepção simples porém fimdamental da religião e sua relação com sólidos princípios políticos Por uma questão de persuasão Spinoza de início aceita a origem divina das Escrituras Percorre entretanto um caminho que vai de um começo convencional até um final pouco convencional As Escrituras devem ser estudadas de maneira análoga ao estudo da natureza Em contraste com a posição de Maimônides os princípios para a interpretação das Escrituras devem ser estabelecidos a partir das Escrituras em si e não de uma posição filosófica anterior Quando nos aproximamos da Bíblia sem tendenciosidade constatamos que os pontos de vista especulativos expressos pelos profetas são como as opiniões contraditórias e inadequadas de outros não filósofos A análise científica das Escrituras baseada em dados históricos lingüísticos e biográficos e o estudo detalhado das contradições internas e dos erros na compilação das próprias Escrituras nos libertam da ideia de que a Bíblia tem autoridade sobre questões especu lativas Contudo os ensinamentos morais das Escrituras são os mesmos em todos os lugares e são de fácil compreensão Os profetas discordam quanto às questões especu lativas mas estão em perfeita harmonia no que se refere à Lei Divina da moralidade A este respeito prefiguram os cidadãos da melhor república A Lei Divina como os ensinamentos universais evidentes das Escrituras deve ser o fundamento de nossa compreensão das Ssradas Escrituras A verdadeira religião tem autoridade apenas sobre a ação qualquer religião que pretenda exercer a autoridade teórica é superstição O fim da filosofia nada mais é que B a r u c h S p in o z a 421 12 Ibid XX p 306 a verdade da fé no entanto como demonstramos amplamente o im nada mais é que a obediência e a piedade Já que obediência significa obediência à lei de Deus o conteúdo da obediência é determinado pela definição de piedade O que é piedade A resposta derivada das Escrituras é clara distinta e simples Primeiro a piedade exige um número mínimo de proposições teóricas como por exemplo que existe um Deus onipotente do qual depende nossa salvação Segundo que a verdadeira virtude consis te inteiramente no amor a Deus e ao próximo O amor de Deus se expressa pelo amor ao próximo e por se conformar às modalidades públicas do culto Amar o próximo é respeitar direitos Posto que seus direitos são determinados pela lei positiva a piedade não só exige que obedeçamos às leis do Estado mas consiste em tal obediência Os verdadeiros ensinamentos das Escrituras têm sido interpretados de modo a pra ticamente equiparar a piedade à obediência às leis e ao patriotismo Ao restringir a auto ridade da religião à moralidade cujas rras precisas são definidas pela ordem política Spinoza libertou a razão dos perigos da superstição sem destruir os resultados benéficos da fé Demonstra que a razão e a revelação estão de acordo tanto a respeito do conteúdo da moralidade ou da religião como também quanto ao sentido em que independem uma da outra e no sentido em que estão relacionadas A aliança universal que substituiu a aliança especial entre Deus e os judeus por meio da qual temos conhecimento inato de Deus como fonte da moralidade é a manifestação religiosa dessas ideias inatas das quais a razão deduz os princípios da moralidade Finalmente é só a revelação que fornece ao homem a prova de que sua salvação depende da obediência a esses princípios Posto que de acordo com o argumento político de Spinoza os princípios da moralidade são expressos de modo mais apropriado nas leis do melhor regime a religião de fato forne ce provas de que a piedade consiste em estrita obediência à ordem política correta e de modo mais geral a seu o governo legalmente constituído Nos capítulos finais do Tratado teológicopolitico Spinoza demonstra que os ensi namentos políticos acerca da razão natural estão em harmonia com a moralidade reve lada como mencionado anteriormente A razão natural nos ensina o jus naturale que é próprio de todo ser finito A atividade tem origem na luta pela autopreservação Por exemplo os peixes usam a ígua e devoram os peixes menores por direito natural o que vem a ser simplesmente uma expressão do ser determinado Conforme opina Spinoza a natureza tomada de forma absoluta tem direito absoluto a todas as coisas que pode obter ou fazer Em outras palavras o direito natural é coextensivo com o poder Assim no estado de natureza é impossível transgredir nada do que se pode fazer é proibido pois todas as ocorrências são naturais A transgressão só é possível em uma sociedade como violação da lei A transgressão é uma violação do desejo fimdamental de autopreservação Ou seja o homem é por natureza um animal político porque a sociedade política é necessária para a sobrevivência e a perfeição humanas A sociedade 422 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 13 Ibid XV p 249 14 Ibid xvi p 258 é criada pela razão e é o instrumento pelo qual a razão se refina A perfeição da razão é a perfeição do homem como tal a perfeição de seu poder A fim de aperfeiçoar seu poder o homem é impelido não apenas a formar sociedades mas a encetar esforços para entender e efetivar a melhor sociedade É racional moderar o próprio comportamento de acordo com as circunstâncias Os homens possuem uma variedade de naturezas e isso juntamente com o fato de que táo poucos sáo filósofos exige que a melhor sociedade se ajuste à natureza da maioria Uma acomodação fundamental deste tipo é o reconhecimento de que todos os homens são movidos por seu cálculo de bens prazer e males dores mas que pou cos são capazes de fazer tais cálculos com precisão O pacto social no qual se baseia o melhor regime só pode ser preservado por um apelo ao autointeresse todos têm por natureza o direito de agir com malícia tampouco estão obrigados a respeitar seus pac tos a menos que na esperança de um bem maior ou pelo medo de um mal maior Spinoza precisa demonstrar tanto para os poucos e em certo sentido para os muitos que seu melhor regime tem tão grande capacidade de assegurar os bens que faz da desobediência uma contradição ao interesse próprio De acordo com a primazia do interesse próprio Spinoza formula sua preferência por uma democracia O Estado existe para o bem do indivíduo mas é por causa do indivíduo que subordina a individualidade ao poder comum Em seu capítulo sobre a aristocracia no Tratado político Spinoza afirma que é correto tratar todos os cidadãos como iguais porque é desprezível o poder de cada um em relaçáo a todo o Estado A mesma concepção de igualdade se aplica à democracia Cada indivíduo cede todo o seu poder ao Estado a fim de que a democracia seja uma reunião coletiva de homens que coletivamente têm o maior direito a todas as coisas em seu poder Quer de espírito livre ou por medo da maior punição cada cidadão será a partir daí obrigado a obedecer à autoridade soberana Se todas as pessoas concordam em transferir todos os seus poderes para um governo que expresse a vontade de todos então todos participam do autogoverno Isso nada é além de providenciar a própria autopreservação Como a democracia satisfaz o desejo natural ao ser compatível com a variedade de naturezas que têm um objetivo geral comum a democracia é preferível a outros regimes Uma característica marcante da democracia de Spinoza é a que dá ao poder so berano o direito de promulgar as leis que desejar sobre a religiáo Spinoza náo pretende obviamente abolir a religião Quer sim evitar que o Estado seja sujeito aos diversos julgamentos e paixões de todos Além disso quando é concedido poder político aos clérigos este tende a corrompêlos em detrimento tanto da Igreja como do Estado A forma da democracia deve ser tal que equilibre a necessidade de 15 Ibidp26 16 Ibid p 262 17 Ibid p 26 18 Ibid B a r u c h S p in o z a 4 2 3 harmonia e estabilidade públicas com a excelência da liberdade privada de expressão pensamento e crença O direito da autoridade soberana de promulgar legislação reli giosa decorre do direito natural do Estado de supervisionar todas as questões relativas à autopreservação de seus cidadãos Este direito é expresso sob a forma de um contrato segundo o qual o poder soberano é o único responsável pela articulação dos códigos legais mas suas ações devem é claro ser moderadas pelo perigo de perder o poder Spinoza discute esta questão juntamente com a relação entre governantes e sacerdotes no âmbito de uma análise da primeira comunidade judaica estabelecida por Moisés A partir dessa análise Spinoza deduz doutrinas políticas específicas De forma alguma deveria a primeira comunidade judaica ser copiada em sua totalidade uma vez que nâo é mais válida a aliança exclusiva com Deus sobre a qual se baseava As novas exigências que se seguem a partir da aliança universal são simbolizadas pela observação de Spinoza de que a constituição judaica é inútil para Estados que desejem relações internacionais As doutrinas a serem aprendidas a partir do estudo da nação judaica podem ser resumidas da seguinte forma 1 deve haver uma separação entre as fimções religiosas e políticas 2 as questões especulativas não devem ser solucionadas pela Lei Divina pois a religião deve consistir em ações apenas 3 o poder soberano deve ter todo o direito de decidir o que é lícito e o que não é 4 mais mal do que bem decorre de uma mudança na forma de governo A terceira conclusão é importante o bastante para merecer um capítulo inteiro A religião adquire a sua força como lei somente a partir dos decretos do soberano Deus não tem reinado especial entre os homens exce to na medida em que reina através dos governantes temporais Não se pode legislar sobre a piedade interior a piedade externa manifestase pela justiça e pela caridade Deus não pode ser concebido como legislador Seus preceitos tornamse lei somente por meio da mediação da autoridade devidamente constituída Apesar do poder que tem o soberano de legislar como bem lhe aprouver no que diz respeito à religião Spinoza ressalta que a liberdade de crença religiosa é necessária para o bemestar do próprio poder soberano Com efeito tal ênfase é idêntica à defesa que fãz Spinoza da liberdade de expressão É impossível a supressão de pensamento muito me lhor permitir a discussão da maioria dos assuntos que forçar os homens ao facciosismo secreto Visto que o fim verdadeiro do governo é a liberdade os homens devem ser livres para discutir até mesmo as leis desde que não cheguem a incitar a rebelião A liberda de para discutir as leis é inseparável da liberdade de discussão relosa e a liberdade de discussão em geral é necessária para o progresso das artes e das ciências A saúde da filo sofia depende de tal liberdade Há desvantíens na liberdade de expressão mas as vanta gens são muito mais relevantes Não se deve esquecer no entanto que tal liberdade não é ilimitada Os cidadãos que são mais capazes de raciocínio e discurso especulativos se abs terão devido a ponderações acerca do bem privado e público de defender doutrinas que contradizem as leis e costumes públicos Assim o interesse e a razão se combinam para 424 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Ibid xlx p 295 proporcionar um equilíbrio entre a liberdade e a moderação A prova da Intimidade do discurso é portanto a lei Visto que a lei deve ser preservada a ação deve submeterse à censura da lei A censura é tanto direta como indireta dependendo do grau de compre ensão do cidadão individual isto é de seu poder de fàlar e pensar Dado que o poder é equivalente ao direito a liberdade e o arbítrio sáo compatibilizados A virtude política judaica é um dos elementos no melhor regime de Spinoza mas náo é suficiente Seu defeito pode ser resumido na observação de Spinoza de que os judeus desprezavam a filosofia e que para eles a vida era uma longa escola de obedi ência à complexa lei que os distinguia de todos os outros homens O cristianismo por outro lado pode ser usado para demonstrar que o caráter apolítico da religião deixa espaço para a especulação filosófica Tanto íilósofos como apóstolos argumentam de modo racional o logos do cristianismo pode ser comparado ao logos da filosofia mas não se pode fazer o mesmo com a lei ou nomos do judaísmo A virtude da obediência portanto sofre de um defeito intrínseco que deve ser sanado pela possibilidade da íilosoíia Apesar de sua síntese de elementos do judaísmo e do cristianismo Spinoza é capaz de evidenciar que cada um em separado quando interpretado de modo correto é equivalente a sua definição da verdadeira religião universal Observamos no início que a diferença entre o Tratado político e o Tratado teo lógicopolítico estava no relativo silêncio do primeiro a respeito da religião Deve estar claro agora que há uma segunda diferença íundamental entre os dois tratados O Tratado teológicopolítico se ocupa do status político da filosofia o que não é o caso do Tratado político Para Spinoza este interesse não pode ser separado de um interes se pela religião e em última análise pela superstição O tratamento completamente adequado da ciência política é então aquele que lida com o modo como a íilosoíia deve ser preservada da corrupção supersticiosa da religião A defesa da democracia é em essência uma defesa das condições que tornam possível o desenvolvimento da íi losoíia Os detalhes da concepção de democracia de Spinoza cuja caracterização mais fundamental talvez seja o equilíbrio acima mencionado entre liberdade e moderação expressam seu entendimento da impossibilidade de separar a liberdade do perigo A íilosoíia política de Spinoza tem interesse especial hoje porque combina a acei tação da ciência moderna com a tradicional concepção da íúnção normatíva da íilosoíia Assim como Maquiavel e Hobbes Spinoza acreditava que entendera de modo correto a natureza do homem e portanto que sua análise da situação política constituía o único ensinamento político verdadeiro Tal como Descartes e Hobbes Spinoza não via con tradição entre a matemática e o modo matemático de raciocínio por um lado e do outro a possibilidade de construir uma filosofia detalhada uma íilosoíia que expressaria a verdade sobre os princípios de cada aspecto da experiência do homem Em um sentido político mais imediato a versão de democracia de Spinoza além de sua importância histórica nos recorda de forma detalhada e luminosa as dificuldades que devem ser enfrentadas por todos aqueles que amam a liberdade e em particular a impossibilidade de preservar a liberdade quando está ausente um amor pela especulação B a r u c h S p in o z a 425 L e it u r a s A Spinoza Benedict TheologicoPoütical Treatise in The ChifW orks ofBenedict Spinoza Trans with an introduction by RHM Ehwes New York Dover 1951 Ptefãce chaps iv vivü xiixx Spinoza Benedict Political Treatise in ibid Chaps iv viii B Spinoza Benedict TheologfcoPolitical Treatise in ibid Chaps iiii v viiixi Spinoza Benedict Political Treatise in ibid Chaps vivii ixxi Spinoza Benedia Ethics in ibid Bk I appendõ bk m ptefãce bk IV propositíons 737 scholium 2 Spinoza Benedict Epistle 50 in ibid para Jarig Jellis numeração de acordo com a edição de van Vloten 4 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i i n c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 16321704 J ohn L ocke No início de Two Treatises of Government Dois tratados sobre o governo John Locke usou as seguintes palavras para descrever a doutrina política de Sir Robert Fil mer autor de quem discordava com veemência O sistema de Filmer nada mais é do que isso Que todo govemo é monarquia absoluta E a íimdaçáo sobre a qual ergue seu pensamento é esta Que nenhum homem nasce livre Os ensinamentos políticos de Locke podem ser expressos em termos opostos com similar brevidade desta forma Todo govemo é limitado em seus poderes e existe somente pelo consentimento dos governados A fundação sobre a qual ergue seu pensa mento é esta Todos os homens nascem livres O tema da liberdade humana caracteriza as obras mais relevantes de Locke para a compreensão de seu pensamento político em A Letter Conceming Toleration Uma carta sobre a tolerância 91689 escreveu sobre a liberdade religiosa nos Dois tratados sobre o govemo 1690 sobre a liberdade política e em Some Considerations ofthe Con fio codicilo de seu testamento Locke referiuse a várias edições de Two Treatises f Government impressas durante sua vida como todas muito incorretas Antes de sua morte preparara pelo me nos um exemplar correto da terceira impressão para ser utilizado pela editora para a impressão de luturas edições Um desses exemplares com correções nas margens e acréscimos com a própria letta de Locke e de seu assistente está agora sob a posse do Christ s CoU Universidade de Cambrit Nas edições a partir de 1713 esse texto corrido serviu de base para a maioria das impressões po rém por algum motivo desconhecido no íinal do século XDC os editores voltaram a utilizar o texto da primeira edição Muitas edições em circulação nos Estados Unidos e na Iilaterta suem este texto muito incorreto As exceções mais destacadas são John Locke Ttvo Treatises o f Government e Robert Filmer Patriarcha ed Thomas I Cook New York Haíher 1947 John Locke The Second Treatise o f Government ed Thomas P Peardon New York Liberal Arts 1952 e John Locke Two Treatises o f Government ed Peter Laslett Cambridge Cambrite University Press 1960 Todas as citações de Two Treatises neste capítulo são de uma fotocópia do texto do Christ s CoU tomei a liberdade porém de americanizar a grafia e modernizar a pontuação do texto em ingiés Na queles trechos em que o exemplar de Christ s C o ll não é claro consultei a edição de Laslett e seu aparato critico de tanta utilidade Os leitores constatarão que os trechos apresentados aqui diferem somente em poucos aspectos dos textos das três edições citadas adma mas vejase o n 9 suprd First Treatise sec 2 sequences ofthe Lowering ofinterest and Raising the Value ofMoney Algumas conside rações sobre as conseqüências da redução dos juros e da elevação do valor do dinheiro 1691 sobre a liberdade econômica Cada uma dessas obras constitui uma instrutiva análise do princípio da liberdade humana contudo visto que este princípio tem sua afirmação mais completa e mais política em Dois tratados este capítulo se restringirá a uma descrição e análise dessa obra O Livro I de Dois tratados em geral referido como First Treatise ou O f Govern ment Primeiro tratado xobre o governo obra hoje de publicação infirequente e leitura rara dedicase primordialmente a uma discussão e refutação da tese defendida por Filmer de que os reis governam por um direito divino herdado de Adão O Livro II de Dois tratados em geral denominado Second Treatise ou O f Civil Government Se gundo tratado sobre o governo civil muitas vezes publicado e lido como se fosse uma obra à parte começa com um breve resumo da argumentação do Primeiro tratado tendo refutado o princípio do direito divino que então muitos consideravam como o fundamento do poder dos príncipes Locke reconheceu sua responsabilidade em explicar o que considerava ser a verdadeira base do governo A investigação de Locke começa com a grande pergunta O que é o poder po lítico Responder a essa questão entender corretamente o poder político 4 e explicar a verdadeira extensão origem e finalidade do governo civil é a maior preocupação do Segundo Tratado Énos apresentada primeiro uma definição O poder poUtico entáo considero como o direito de elaborar leis com pena de morte e consequentemente todas as penalidades menores para a regulação e preservação da propriedade e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da nação contra danos externos e mdo isso somente para o bem público 3 Entretanto somos logo informados de que para entender essa definição deve mos primeiro considerar em que esudo todos os homens estão naturalmente e que se trau este de um esudo de perfeita liberdade e de um estado também de igualda de A liberdade natural deriva da igualdade natural nada havendo mais evidente de que criamras da mesma espécie e classe promiscuamente nascidas com todas as iguais vantagens da natureza e o uso das mesmas íaculdades tam bém devem ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição 4 Porém embou esse esudo de natureza seja um estado de liberdade todavia não é um esudo de permissividade O estado de natureza tem luna lei da natureza que o governa que obriga a todos 6 A liberdade natural do homem não deve ser enten dida no sentido de que os homens não são refreados por qualquer lei pois em todos os esudos de seres criados capazes de leis onde não há lei não há liberdade 57 4 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 Todas as referências no texto deste capítulo são feitas a seções do Segundo Tratado 4 Frontispício de Two Treatises A liberdade natural do homem é ter apenas a lei da natureza a governálo nâo estar sob qualquer restrição além da lei da natureza 22 E a razão que é essa lei ensina a toda a humanidade que apenas a consulte que sendo todos iguais e independentes ninguém deveria prejudicar a outro em sua vida saúde liberdade ou posses E estando equipados com faculdades similares compartilhando tudo em uma comunidade de natureza não se pode supor qualquer subordinação entre nós que possa autorizarnos a destruir um ao outro como se fôssemos feitos para o uso um do outro como as classes inferiores de criaturas são para o nosso 6 Assim os ditames da lei da natureza no estado de natiueza parecem muito di ferentes do que antes nos ensinara Hobbes Segundo este o estado de natureza é um estado de guerra de todo homem contra cada homem Porém Locke não equipara os estados de natureza e da guerra ao contrário íála de uma nítida diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra os quais por mais que alguns homens os tenham confundido são tão distantes entre si quanto distam um do outro um estado de paz boa vontade assistência mútua e preservação e um estado de inimizade malícia violência e destruição mútua 19 Desta forma nossa primeira impressão do estado de natureza de Locke é de ho mens que vivem juntos em amizade nos primórdios da humanidade antes do advento da sociedade civil usufruindo da liberdade e igualdade naturais em um ambiente de paz e boa vontade sob o benéfico governo da lei da natureza Conmdo examinemos agora em maior detalhe os principais elementos desta primeira impressão O que é o estado de natureza Até que ponto é pacífico E qual é a lei da natiureza que o governa Ao examinálo mais de perto nossa primeira observação é de que o estado de na tureza não se limita à condição original prépolítica do homem Na verdade quando Locke responde pela primeira vez à peiunta acerca de o estado de natureza ter sem pre existido o exemplo que oferece não é de modo algum o dos homens prépolíticos mas o de homens que são políticos em essência e em uma intensidade inusitada Com frequência é perguntado como uma forte objeção onde estariam ou estiveram um dia os homens em tal estado de natureza Para o que pode bastar como resposta pelo momento que como todos os príncipes e governantes de governos independentes em todo o mundo estão em um estado de natureza é óbvio que ao mundo nunca íãltou nem nunca faltará quantidades de homens naquele estado 14 Todos os príncipes e governantes homens civilizados que vivem em uma re lação civil com muitos outros homens estão no estado de natureza Um exemplo subsequente é o de um suíço e um índio pelo menos um deles um homem com expe riência política reunidos nas fiorestas da América diz deles Locke estão perfeitamente em um estado de natureza em referência um ao outro 14 grifo nosso Se como vemos a expressão estado de natureza por vezes não está relacionada à condição do J o h n L o c k e 429 homem prépolítíco o que entáo em termos precisos é o estado de natureza Locke fornece esta breve definição Homens vivendo juntos segundo a lazáo sem um superior comum na Terra com autori dade para julgar entre eles é este propriamente o estado de natureza 19 O estado de natureza é mais abrangente do que uma descrição da condição do homem antes do advento da sociedade civil É uma forma específica de relacionamen to humano sua existência quando ocorre não tem relação com o grau de experiência política dos homens que nele estão e pode existir em qualquer momento na história da humanidade incluindo o presente onde quer que haja um grande número de homens não importa de que maneira estejam associados que não tenham poder deci sório a quem apelar lá ainda estão no estado de natureza 89 grifo nosso Lftilizando os termos da definição do estado de natureza podemos derivar uma definição de seu oposto Seria este um estado de homens que convivem tendo um superior comum na Terra com autoridade para julgar entre eles Em outras palavras o oposto do estado de natureza é a sociedade civil Aqueles que estão unidos em um corpo e têm uma lei estabelecida comum e um corpo de magistrados a quem apelar que tem autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os infratores estão em uma sociedade civil uns com os outros mas aqueles que não têm em comum essa possibilidade de recurso quero dizer na Terra ainda estão no estado de natureza 87 Assim se esclarece melhor o sentido em que não se devem confimdir o estado de natureza e o estado de guerra Não são idênticos todavia não se opõem A distinção entre eles reside no íàto de não serem coisas do mesmo tipo Seria tão errado confundir o estado de natureza e o estado de guerra quanto seria confundir a sociedade civil e o estado de guerra tal confusão revelaria um entendimento equivocado de suas defini ções pois a definição do estado de guerra não inclui o termo essencial um superior comum das definições tanto do estado de natureza quanto da sociedade civil As palavras que definem o estado de guerra introduzem um elemento completa mente diferente ou seja o uso da força sem direito sem justiça sem autoridade O uso da força sem autoridade sempre coloca aquele que a usa em um estado de guerra 155 é o uso injusto da força que portanto põe um homem em estado de guerra com outro 181 todo aquele que usa a força sem direito colocase em um estado de guerra com aqueles contra quem assim a usa 232 E finalmente é tal força apenas 207 grifo nosso que estabelece o estado de guerra ou seja a existência do estado de guerra não depende da presença ou ausência de um juiz comum A fàlta de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em um estado de natuteza a força sem direito sobre a pessoa de um homem constitui um estado de guerra tanto onde existe como onde não existe um ju iz comum 19 grifo nosso 430 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y Posto que o uso da força sem direito define o estado de guerra o seu oposto o estado de paz seria definido como a condição de homens que vivem juntos onde não há uso da força sem direito ou a mesma coisa onde a força é usada apenas com direito Agora podemos afirmar integralmente o sentido em que diferem o estado de natureza e o estado de guerra 1 O estado de natureza se caracteriza pela ausência de um juiz comum e pela ausência de qualquer lei exceto a lei da natureza 2 A sociedade civil o seu oposto é caracterizada pela presença de um juiz co mum com autoridade para aplicar a lei civil Então além disso quer no interior do estado de natureza ou na sociedade civil 3 O estado de guerra existe se a força for usada sem direito 4 Ou o estado de paz o seu oposto existe se não houver uso da força sem di reito Isso significa que no estado da natureza e também na sociedade civil pode algu mas vezes prevalecer um estado de paz outras vezes um estado de guerra e que não im porta que tenhamos distinguido com toda nitidez entre o estado de natureza e o estado de guerra não eliminamos a questão essencial haverá guerra no estado de natureza Porém antes de nos voltarmos a essa pergunta precisamos primeiro compreen der como pode existir o estado de guerra no seio da sociedade civil onde existe um juiz comum com autoridade para impedir o uso da força sem direito Na realidade pouco antes de afirmar que um estado de guerra pode existir tanto onde existe como onde não existe um juiz comum Locke oferece uma definição que parece dizer o contrário que parece excluir o estado de guerra da sociedade civil Contudo a força ou um propósito declarado de íbrça sobre a pessoa de outro onde não hd superior comum na Terra a quem apelar por socorro é o estado de guerra 19 grifo nosso A solução desta dificuldade reside no fato de que mesmo na sociedade civil o poder da autoridade civil não pode estar sempre em vigor Assim um ladrão a quem não posso causar dano exceto pelo recurso à lei por terme roubado tudo o que possuo posso matar quando me ataca para roubar apenas meu ca valo ou casaco porque a lei que foi feita para a minha preservação quando não se pode interpor para garantir a minha vida contra a força presente a qual perdida é incapaz de reparar permiteme minha própria defesa e o direito de guerra uma liberdade de matar o ressor porque o agressor não me dá oportunidade de recorrer a nosso juiz comum 19 O estado de guerra só pode existir no seio da sociedade civil quando se torna ineficaz a força do juiz comum É como se as partes apesar de serem concidadãos que se encontram na estrada do rei estivessem pelo momento no estado de natureza J o h n L o c k e 4 3 1 sem um juiz comum para resolver suas diferenças Assim consutamos que o estado de guerra só pode ocorrer na sociedade civil na mesma medida em que o estado de natureza pode ocorrer na sociedade civil Para fàlar de modo pteciso nâo pode existir o estado de guerra onde a autoridade civil está presente e aplica de modo eficaz a lei da sociedade O estado de guerra só pode ocorrer na ausência dessa autoridade civil o estado de guerra só pode existir no estado de natureza ou em algo que temporaria mente se aproxime dele O que aparenta ser o estado de guerra na sociedade civil ao contrário tratase disso o estado de guerra no estado de natureza no seio da sociedade civil O estado de natureza é o estado em que todos os homens estão naturalmente a sociedade civil é uma invenção humana que em geral obscurece o fàto inescapável de que o estado de natureza perdura pelo menos em parte e é inextirpável Como veremos adiante Locke faz uso deste conceito de reincidência do estado de natureza e do estado de guerra na sociedade civil é nesses termos que afirma o direito de resistir ao exercício do poder arbitrário e tirânico Assim Locke pode fàlar da ocorrência do estado de guerra na sociedade civil e também sem se contradizer fàlar de a socieda de civil ser um estado de paz entre aqueles que a ela pertencem de quem o estado de guerra é excluído 212 Da forma anteriormente descrita a guerra pode de fato ocorrer na sociedade civil bem como no estado de natureza no entanto com essas diferenças decisivas é mais provável estourar a guerra no estado de natureza do que na sociedade civil e uma vez iniciada é também mais difícil que cesse ali porque a força não pode dar lugar à justa determinação da lei 20 como ocorre na sociedade civil Voltemos agota ao exame do estado de natureza no sentido mais restrito e mais revelador da condição original prépolítica do homem e indaguemos mais uma vez Haverá guerra nesse estado Das inúmeras passagens que poderíamos citar talvez as que se seguem sejam suficientes para sugerir uma resposta para a pergunta Admito com facilidade que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza que decerto serão grandes quando os homens puderem ser juizes em causa própria pois é fâcil imaginar que aquele que foi táo injusto que causou mal a seu irmão dificilmente será tão justo que condenará a si mesmo pelo dano 13 O estado de natureza não será tolerado devido aos males que necessariamente decorrem dos homens serem juizes de suas próprias causas No estado de natureza todos têm o poder executivo da lei da natureza 13 e embora a lei da natureza seja compreensível e clara para uma criatura racional e um estudioso dessa lei 12 todavia os homens sendo induzidos por seus interesses bem como ignorantes por íàlta de estudo da mesma não estão aptos a acatála como uma lei vinculadora para si mesmos em sua aplicação a suas causas específicas 124 Se o poder executivo da lei em qualquer Estado cair nas mãos de homens ig norantes e tendenciosos que a aplicam erroneamente contra outros e se recusam a aplicála a si mesmos diferiria de forma significativa a aplicação da lei nesse Estado 4 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y do emprego da força sem direito Locke fornece muitas passagens semelhantes para apoiar a condusão de que o estado de natureza será muitas vezes indistinguível de um estado de guerra Contudo essa conclusão não parece compatível com a descrição anterior do es tado de natureza homens vivendo juntos segundo a razão a menos que cogitemos a possibilidade de que Locke incutia em seus leitores a muito estranha doutrina de que a razão por vezes aconsdha os homens a matarem outros homens A conclusão também parece contradizer o ensinamento da lei da natureza de que ninguém deve prejudicar outro quanto a sua vida saúde liberdade ou propriedade 6 Qual é então a lei da natureza e quais são as obrigações que ela impõe As obrigações da lei da natureza são apresentadas de duas maneiras Todo ho mem é obrigado a preservar a si mesmo e todo homem é obrigado a preservar toda a humanidade Cada um como é obrigado a preservar a si mesmo e a náo abandonar sua posição inten cionalmente assim por razão igual quando sua própria preservação não estiver em jogo deveria tanto quanto possível preservar o resto da humanidade e não pode a menos que seja para íãzer justiça a um inírator drar ou prejudicar a vida ou o que contribui para a preservação da vida a liberdade a saúde a intidade física ou os bens de outrem 6 Nesta citação temos declarações diretas e explícitas de obrigações altruístas de moderação nas relações com nossos semelhantes mas como vemos não lhes faltam ressalvas Quando não há juiz comum estará muitas vezes em jogo a própria pre servação de um homem Quando isso acontecer qual será então sua obrigação Até que ponto será ele capaz de agir de modo a preservar o resto da humanidade Que fàtores o guiarão quando tentar fazer justiça a um infrator Pela lei da natureza é obrigado a preservar a si mesmo também tem o dever de tanto quanto possível preservar o resto da humanidade Entrarão em conflitos esses dois deveres Muitas passagens indicam que existe uma surpreendente ligação estreita entre a au topreservação e a obrigação de preservar toda a humanidade Em exemplo após exemplo o cumprimento do dever de preservar os outros é associado ao direito de matar outro homem que ameace ou possa ameaçar a própria preservação de um indivíduo Aquele que me agride deve ser tratado como incapaz de se associar a seres humanos como um animal selvem como portanto uma ameaça para toda a humanidade É razoável e justo que eu tenha o direito de destruir o que me ameaça com a destruição pois pela lei fimdamental da natureza devendo o homem ser preservado tanto quanto possível quando mdo não pode ser preservado deve ser preícrida a sutança dos inocentes e podese destruir um homem que fiiz guerra consigo ou que tenha descoberto uma inimi zade a seu ser pela mesma razão que pode matar um lobo ou um leão 16 Nesta formulação não parece haver qualquer conflito entre o dever de preservar a si mesmo e o dever de preservar toda a humanidade tanto quanto possível Contudo é óbvia a possibilidade de mau juízo se um homem for forçado a julgar não só quem J o h n L o c k e 4 3 3 fez a guerra contra ele mas também quem tem uma inimizade para com o seu ser e com base nesse julgamento destnulo Assim um zeloso esforço para cumprir a obrigação de preservar o resto da humanidade pode na prática ser indistinguível de uma preocupação excessiva com a autopreservação e pode ela própria na ausência de outras restrições tornarse uma ameaça à paz e à preservação de outros A agressão contra os outros é de feto uma violação da lei da natuteza expõe todos a um perigo maior põe em risco a preservação Se for mal compreendida a lei da natureza como o será por aqueles que não a estudam ou seja por aqueles que impulsionados por seu forte desejo de autopreservação não avaliam suficientemente a importância da situação de paz geral para sua própria preservação a destruição da vida será o resultado geral É profunda a conexão entre a lei da natureza e o desejo de autopreservação O primeiro e mais forte desejo de Deus plantado no homem e forjado nos próprios princípios de sua natureza sendo o da autopreservação os homens confiam em que na busca desse desejo também estão cumprindo sua obrigação para com Deus e a natureza Pois o desejo o forte desejo de preservar sua vida e seu ser tendo sido instilado no ho mem como um princípio de açáo pelo próprio Deus a razáo que era a voz de Deus nele só poderia ensinarlhe e garantirlhe que indo em busca dessa inclinação natural deveria preservar seu ser cumpriria a vontade de seu Criador Desta forma uma linha de conduta que tende para a autopreservação não só está de acordo com a razão que é a lei da natureza mas é podese dizer a própria concretização de um comportamento razoável Nesse sentido a lei da natureza é conhecida por todos os homens e neste sentído os homens só podem seguir os seus preceitos Porém em outro sentido o da compreensão dos meios pelos quais esse desejo possa ser atendido os homens desconhecem a lei da natureza por feita de esmdo da mesma e portanto inconscientemente comportamse contra seus ditames contra a razão isto é contra seu interesse em sua própria preservação No entanto em um sentido a lei da natureza pode ser gravada nos corações de toda a humanidade 11 em outro é pouco provável que os homens no estado de natureza saibam como lhe obedecer A lei da natureza é ao mesmo tempo conhecida e desconhecida Os homens devem descobrir e criar condições tais que lhes permitam atender seu desejo natural de autopreservação A origem da lei da natureza portanto será encontrada nos mais intensos desejos dos homens A lei da natureza tem como fim a paz e a preservação Será obedecida por causa do desejo universal de preservação não depende da coação para seu cum primento Embora nisso seja discernível alguma relação com ensinamentos anteriores em comparação com os conceitos clássicos e medievais da lei da natureza tratase de 4 3 4 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 5 First Treatise sec 88 6 Ibid sec 86 feto de uma doutrina muito estranha 9 pois esta lei da namreza náo se preocupa nem com a excelência do homem nem com o amor de Deus e do homem por seu semelhante É preciso apontar no entanto que Locke não nega de modo explícito a importância da excelência ou o amor apenas os ignora Na verdade pouco usa ou não usa no Segundo tratado palavras tais como caridade alma ética moralidade virtude nobre ou amor Não são essenciais para a sua explicação dos fundamentos da sociedade civil Para essa tarefe indica forças mais poderosas e universais na natureza humana e acima de tudo as mais poderosas É como se dissesse Não posso negar que muitas vezes os homens são moderados e justos e que alguns se esmeram pela excelência nem posso negar que alguns são impulsionados pelo medo ou pelo amor a Deus e pelo amor e caridade para com seus semelhantes Assevero apenas que quando consi deramos os verdadeiros fundamentos da sociedade política a real origem do governo nenhum desses aspectos tem importância suficiente para que mereçam ser menciona dos O que conta é o que é universal e poderoso que força controladora existe dentro de cada homem o que pode ser invocado para reger o comportamento do homem A base da lei da natureza é o mais forte desejo implantado em cada homem O desejo de autopreservação determina como se comportarão os homens uma vez que os homens não são capazes de se comportar de outra forma esse comportamento nun ca está errado Deus e a natureza jamais permitiriam que um homem tanto abando nasse a si mesmo que viesse a descuidar de sua própria preservação 168 devese reconhecer que os homens têm o direito de fezer o que são incapazes de não fezer Não tem firme fundamento na natureza o governo que não permite e até mesmo incentiva que os homens ajam do modo como não podem evitar íir Este princípio de ação in variável governa o comportamento dos homens em diversas circunstâncias e situações assim sendo uma compreensão dele como a base da lei da natureza é o fundamento necessário para uma investigação sobre a natureza do poder político Portanto quan do lemos a afirmação de Locke de que as leis civis da sociedade política são corretas somente até o ponto em que se fundeiam na lei da natureza pela qual devem ser re gulados e interpretados 12 para reconhecermos seu significado político devemos ter em mente o conteúdo dessa lei da natureza As obrigações da lei da natureza não se encerram na sociedade mas apenas em muitos casos sáo refinadas e por leis humanas têm sanções a elas anexadas para assurar sua observação Assim a lei da natureza permanece como uma regra eterna para todos os homens legisladores assim como os demais As regras que criam para as ações de outros homens devem bem como suas próprias ações e as de outros homens ser conformes à lei da natureza ou seja à vontade de Deus da qual é uma expressão e à lei fimdamental da natureza sendo a preservação da humanidade nenhuma sanção humana pode ser boa ou válida contra ela 135 A primeira impressão do estado de natureza de Locke mostraa muito diferente do estado de natureza de Hobbes como foi dito Porém na verdade encontramos três semelhanças significativas Não importa como Locke distingue entre o estado de natureza e o estado de guerra o estado de natureza é o lar e o único lar do estado J o h n L o c k e 435 de guerra o estado de natureza é uma condição ruim a não ser suportada Em segundo lugar a origem o conteúdo e a finalidade da lei da natureza podem ser ex pressos de forma breve e não imprecisa pela palavra autopreservação E finalmente os ensinamentos de Locke não são diferentes dos de Hobbes na afirmação de que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza Todavia não devemos perder de vista a validade dessa primeira impressão Há não obstante as suas semelhanças profundas e significativas diferenças entre os dois ensinamentos o estado de natureza de Locke não é tão violento quanto o de Hobbes Se como parece a força será comumente empregada sem o direito no estado de na tureza de Locke não é por causa de uma propensão natural dos homens de causarem dano uns aos outros como afirma Hobbes ao contrário deste Locke não fala de cada homem como o assassino em potencial de qualquer outro homem A principal ameaça à preservação da vida no estado de natureza não reside na tendência dos homens a cau sarem dano uns aos outros mas como veremos na pobreza e nas privações inerentes a sua condição natural Uma vez que os defeitos do estado de natureza diferem nas duas descrições os remédios propostos por Locke e Hobbes diferem na mesma medida A principal conseqüência da diferença crucial entre as duas descrições é o feto de que o governo civil que Locke postula tem um caráter muito menos absoluto do que o de Hobbes E o sinal mais evidente da diferença é a atenção muito maior que dá Locke ao tema da propriedade O início da discussão da propriedade por Locke tem três elementos 1 uma afirmação ou suposição sobre a doação de origem divina do mundo para o homem 2 uma pergunta decorrente da afirmação ou suposição a respeito da origem da pro priedade privada e 3 a promessa de uma resposta para a pergunta É muito claio que Deus deu a tetia aos filhos dos homens deua à humanidade em comum Entretanto assim supondo parece a alguns uma grande dificuldade que a ém algum dia venha a ter a propriedade de qualquer coisa Tentarei demonstrar como os homens podem vir a ter a propriedade de diversas partes daquilo que Deus deu à hiuna nidade em comum e isso sem qualquer acordo expresso de todos os coproprietários 25 No mundo comum e universal cm que Locke feia ninguém tem originalmente um domínio privado exclusivo frente ao resto da humanidade 26 Cada homem possui um direito igual a cada parte do que é comum Isto não quer dizer no entanto que todo mundo tem uma pane na posse de todas as coisas quer dizer apenas que originalmente não havia posse não havia propriedade No mundo comum e uni versal qualquer homem tem o diretio de ajudar a si mesmo com qualquer parte do comum sem o consentimento dos outros então os outros não tem propriedade porque é da natureza da propriedade que sem o consentimento do homem ela não possa lhe ser retirada 193 A afirmativa de que o mundo foi dado ao homem em co mum significa simplesmente que no começo ninguém possuía nada O mundo comum universal era um estado de ausência universal da propriedade É por isso que 4 3 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Locke prossegue imediatamente para a questão Como é que alguém alguma vez veio a ter a propriedade de algo A resposta reside em que havia uma exceção para o que diferentemente era o mundo comum universal a única exceção era a pessoa de cada homem singular Embora a terra e todas as criaturas inferiores fbssem comuns a todos os homens cada homem tinha uma propriedade de sua própria pessoa A isto ninguém tinha qualquer direito fera ele próprio 27 Além disso todo homeme possui não apenas de sua pessoa mas também de seu próprio trabalho que é a extensão imediata de sua pessoa o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos podemos dizer são propriamente seus 27 A propriedade que cada homem possui em sua própria pessoa e no seu próprio trabalho são a propriedade original e natural são a fundação de toda outra propriedade no estado de natureza Todas as outras propriedades então são derivadas da propriedade original natural c não derivada Nos primeiros tempos havia vastos territórios não cultivados e muitos poucos ho mens havia assim amplo fornecimento de provisões naturais feito de frutas comestíveis e animais selvagens Neste cenário de abundância e mesmo de superabimdáncia de provisões as maçãs que você retirou são suas porque você combinou apenas o que per tencia apenas a vxê sem trabalho em retirálas com algo que não pertencia a ninguém as maçãs penduradas nas árvores ou caídas no chão Aiém poderia contestar sua pro priedade sobre elas afirmando que por remover estas maçãs do estado comum você o teria privado da oportunidade de retirálas para ele Embora essa objeção fosse de outra forma válida ela é totalmente superada por uma lembrança da condição de abundância sob a forma de uma decisiva e sempre presente qualificação seja lá o que for que você resolva retirar do estado comum natural e colocar seu trabalho onde há bastante e tão bom quanto o que é deixado em comum para outros 27 em itálico Na comunidade universal para que se adquira a posse de maçãs sem dono basta colhêlas desde que restem tantas maçãs sem dono abandonadas nas árvores e no chão em volta delas quantas alguém poderá vir a possuir por colhêlas ele próprio Alguém que venha a contestar a propriedade das maçãs colhidas não está de fiito reivindicando as maçãs que são comuns Se as maçãs são tudo que deseja ainda restam suficientes maçãs boas para que as colha Ao afirmar que as maçãs já estão em posse de outro está de fato reivindicando somente o trabalho que aquele que as colheu acrescentou a elas mas nunca teve qualquer direito a este trabalho Pois sendo este trabalho propriedade inquestionável do trabalhador homem algum além dele pode ter direito àquilo que se agregou a esse trabalho pelo menos enquanto houver bastante e de igual qualidade em comiun para os demais 27 Na comunidade original a propriedade da terra é adquirida da mesma forma Tanta terra quanto um homem lavra planta beneficia cultiva e cujo produto pode J o h n L o c k e 4 3 7 utilizar esta é a sua propriedade 32 se for levantada a objeção de que por assim cercar a terra privou outro a mesma refutação com base na mesma ressalva ainda se aplica Tampouco constituiria essa apropriação de um pedaço de terra por meio de sua melho ria qualquer prejuízo a qualquer outro homem pois haveria ainda terra boa e suficiente e mais que os que ainda não são proprietários poderiam usar Desta íbrma com efeito nunca houve menos pata os outros por causa de sua cerca para si mesmo Pois aquele que deixa tanto para outro quanto este pode usar não subtrai nada 33 Essa propriedade é uma combinação do que é privado o trabalho e o que é comum a terra Por que então a combinação de algo privado e algo comiun produz um resultado que é totalmente privado Nem é tão estranho como talvez possa parecer antes da reflexão que a propriedade do trabalho seja capaz de sobrepujar a comunidade da terra Pois é o trabalho sem dúvida que impóe a tudo a diferença do valor 40 Quando há tanta terra para tão poucos por muito que se possa cercar resu mais do que suficiente para os demais é como se nada tivesse sido subtraído É de pouca monta o que é subtraído a terra sem trabalho dificilmente valeria alguma coisa 43 Esta é outra forma de Locke explicar por que a combinação do privado e do comum resulta em propriedade privada o componente privado o trabalho constitui quase que o valor inteiro da coisa os materiais o elemento comum mal entram no cômputo O trabalho confere direito à propriedade no estado de natureza primor dialmente porque o trabalho constitui de longe a maior parte do valor das coisas de que desfrutamos neste mundo 42 Se o acréscimo de meu trabalho tornou alguma coisa valiosa a qual sem ele era quase inútil 43 então decerto meu trabalho sendo nela a única coisa de valor devese reconhecer que o trabalho a fez minha Há dois motivos pelos quais as provisões naturais são em si quase inúteis A pri meira é que a maçã não pode trazer benefícios a um homem até que seja colhida de alguma forma apropriada nem tampouco um cervo até que seja caçado e abatido As ímtas e os animais tal como existem na natureza antes de qualquer acréscimo de esforço humano são inúteis para o homem Tal como uma maçã em outro continente de nada wde assim é com uma maçã a dez passos de distância até o acréscimo do trabalho A segunda razão pela qual as provisões naturais quase nada valem é exatamente a sua grande abundância o que constituiria um excesso de oferta quando o núme ro de seres humanos fosse relativamente pequeno Quando íala das provisões como inúteis Locke não implica que não sejam importantes para a sobrevivência O ar que respiramos e a água que bebemos são vitais mas enquanto o ar e a água forem supe rabundantes não pagaremos para respirar ou para saciar a sede Os materiais naturais tal como o que quer que esteja presente em abundância praticamente ilimitada não poderiam exigir pjamento ou um equivalente em troca Isto parece indicar que Locke 438 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y tinha em mente alguma forma precoce da lei da oferta e da procura não nos deve surpreender portanto encontrar em seus escritos econômicos a declaração de que o valor ou o preço é determinado pela quantidade e vazão equivalente grosso modo de oferta e procura e de nenhuma outra maneira no mundo Aquele que devidamente estimar o valor de algo deve considerar a sua quantidade na proporção de sua vazão pois só isso rula o preço O valor de qualquer coisa é maior na medida em que sua quantidade íbr menor em proporção a sua vazão Pois se br alterada a quantidade ou vazão de um lado ou de outro logo será alterado o preço mas nâo de outra maneira no mundo Pois não é o ser acrescentando aumentando ou diminuindo alguma boa qualidade a qualquer produto primário que fez o seu preço maior ou menor mas apenas quando fez sua quantidade ou vazão maior ou menor em proporção uma à outra A condição original era uma abundância de provisões quase inúteis não se tra tava de uma fartura real mas apenas de uma fertura potencial a ser concretizada pelo trabalho e invenção humanos O que parece à primeira vista uma espécie de paraíso uma vasta extensão de terras férteis bem abastecidas com os frutos que naturalmente produz e os animais que alimenta tudo produzido pela mão espontânea da natureza 26 a mãe comum de todos 28 e com muito poucos gastadores 31 para consumir esta abundância é na verdade uma combinação de muito do que é quase inútil e uma quantidade insuficiente do que é necessário para tornála valiosa o tra balho humano A penúria 32 geral do estado primitivo é comparável à condição dos índios os habitantes carentes e miseráveis da América 37 que são ricos em tenas e pobres em todos os confortos da vida a quem a natureza forne ceu com tanta generosidade quanto a qualquer outro povo os materiais da ahuttdância isto é um solo fértil adequado para produzir em abundância o que poderia servir como alimento vestimentas e deleite mas por falta de melhorálos pelo trabalho não possuem um centésimo das conveniências de que usufruímos 41 grifo nosso Outra das principais causas da penúria da comunidade original é que a grande maioria das coisas realmente úteis à vida do homem são geralmente coisas de curta duração tais que se não forem consumidas pelo uso degenerarão e perecerão por si mesmas 46 Este feto natural da deterioração seria talvez a maior limitação da propriedade no estado de natureza A natureza não limita com rigor a propriedade em comum universal Tanto quanto alguém pode fazer uso de qualquer vantagem na vida antes que se deteriore também pode por seu trabalho esfâbelecer uma propriedade Tudo o que exceder a isso é mais do que seu quinhão e pertence a outros 31 A posse da terra era igual mente limiuda J o h n L o c k e 4 3 9 Some Considerations fdse Loweringofinurest and Raising the Value ofM oney in TheW odtsofJohn Locke in Nine Volumes 12th ed London 1824 IV 4041 tudo quanto plantou e colheu estocou e utilizou antes que se deteriorasse era este seu direito particular tudo o que cercou e pode alimentar e utilizar o gado e o produto era também dele Mas se a grama de seu cercado apodrecesse no cháo ou o fruto de seu plantio perecesse sem colheita e armazenagem este pedaço de terra apesar de sua cerca ainda assim deveria ser considerado como devoluto e poderia ser propriedade de qualquer outro 38 Locke parece ter derivado do fato natural da deterioração uma espécie de rra para garantir uma justa distribuição dos bens na propriedade comum universal O raciocínio é plausível mas um exame de duas questões revela a inadequação desta in terpretação da discussão da deterioração por Locke Primeiro por que é necessária tal regra Em segundo lugar seria eficaz Como foi explicado na condição original a propriedade deve fimdamentarse em uma superabundância de provisões naturais O trabalho que alguém realiza ao co lher uma maçã fez com que esta passe a ser de sua propriedade se houver maçãs suficien tes e de igual qualidade para os demais Entretanto quando há tanu abundância por que haveria necessidade de uma regra para limitar a acumulação A quantidade de que uma pessoa se apodera pode não fezer diferença para outra contanto que lhe reste o su ficiente e de igual qualidade nem seria motivo de preocupação se alguém se apoderasse ou nâo de vantens Se alguém for tolo o bastante para desperdiçar seu trabalho na aquisição de mais do que pode usar engana a si mesmo mas não prejudica a outro Só é necessário empregar algum meio para limitar a acumulação se houver menos que uma superabundância somente se o que for tomado dekar menos que o suficien te para os demais Contudo mesmo nesse caso a capacidade de uma regra para limitar o acúmulo baseada na deterioração dependeria de esta ser aplicada a bens perecíveis ou duráveis Suponhamos que um homem conquistasse um verdadeiro monopólio local das nozes nada deixando para os demais uma vez que as nozes podem durar um ano inteiro em boas condições para consumo 46 o homem poderia levar todo esse tempo para comer seu estoque sem que nada se deteriorasse A regra da deterioração seria ineficaz para limitar a posse desses bens duráveis e escassos Não propiciaria uma distribuição equitativa desses bens É desnecessária qualquer regra que limite a acumulação quando há uma grande abundância de provisões Se em outras condições tal regra for necessária uma regra baseada na deterioração é ineficaz no caso de bens duráveis A regra da deterioração pode ser necessária e eficaz como meio para uma partilha justa somente no caso de uma escassez de bens perecíveis Porém como vimos o estabelecimento da proprieda de na condição original pela mistura de trabalho com as provisões naturais depende por inteiro de uma abundância extrema tal que gere automaticamente uma quantida de que deixe restar o suficiente para os demais Se não há o bastante para todos nem mesmo o trabalho é capaz de estabelecer o direito a uma parte do todo pela exclusão de todos os outros homens Por outro lado se o trabalho não é capaz de instituir o direito de propriedade quando há uma escassez então nada é capaz de fezêlo Não há outra opção no estado original O direito de propriedade pode ser transferido por 440 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y escambo ou compra mas somente o trabalho pode dar início à propriedade Em suma se há uma escassez de provisões perecíveis no estado original náo pode haver proprie dade natural Só pode existir propriedade daquilo que é comum A conclusão é que mesmo quando a coisa escassa e perecível está sob a posse de alguém qualquer outro homem ainda pode reivindicála em igualdade de condições Na luta pela propriedade que se desencadearia o direito seria estabelecido pela força do mais forte e seria difícil senão impossível guardar uma quantidade maior para si mesmo do que aquela que poderia ser consumida rapidamente De fato a deterioração limita as posses no estado original e mantém todos os homens em estado de penúria Nada foi feito por Deus para o homem e s tn ou destruir 31 dizemnos mas se todos os habitantes do comum universal origi nal enlouquecessem a ponto de dedicar todo o seu trabalho a estrar tanto quanto pudessem o resultado de seus esforços conjuntos não seria nada comparado à ampla deterioração e desperdício que ocorrem em todo o vasto território deixado à natureza 37 Quando se considera a abundância das provisões naturais que havia há longo tempo no mundo e os poucos usuários 31 é espantosa a deterioração que não poderia ser atribuída ao homem A degradação das coisas pela mão do homem é mini mizada diante da deterioração que ocorre fora do seu alcance A deterioração natural só pode ser reduzida por uma alteração das condições predominantes Não importa até que ponto Locke desaprovasse o desperdício e a destruição sua discussão sobre a deterioração não indica uma regra moral para lidar de modo justo com os outros homens no estado original Revela ao contrário a maciça escala do desperdício sob o governo da natureza aponta para a necessidade de descobrir algum meio de libertação desse governo implacável O terceiro fator que contribui para a penúria da fase inicial do comum universal é a ausência do cultivo da terra a terra que é deixada inteiramente à natureza é chamada como de íáto é de inculta 42 a extensão do desperdício natural pode ser reduzida portanto pela expansão da íricultura É equivocado pensar que um ho mem priva os outros quando cerca a terra para cultivála para seu próprio uso Porque a terra cultivada é muito mais produtiva do que a terra inculta todos os seus vizinhos se beneficiarão Ouvi dizer que na própria Espanha permitese que um homem are semeie e colha sem ser permrbado um terreno sobre o qual não tem qualquer direito além do uso que fàz dele Os moradores se julgam em dívida para com aquele que por sua indústria sobre terrenos negligenciados e consequentemente incultos aumenta o estoque dos grãos que lhes íàltavam 36 Desta forma a agricultura é um passo vital para aliviar a penúria da condição original do homem mas é limitada em sua eficácia pelo íato da deterioração A menos que haja algum modo de um homem dispor de sua produção excedente antes que se estrague certamente não cultivará mais do que sua própria íámília pode consumir se cultivar mais o excedente só apodrecerá ou será tomado dele por outros Assim não J o h n L o c k e 4 4 1 haverá excedente o que é a base necessária para a melhoria da condição do homem e não haverá aumento da humanidade que é a principal intenção da natureza Em suma era imprescindível uma invenção que tornasse razoável um homem produzir mais que o indispensável para atender às necessidades imediatas de sua pró pria família mais do que poderiam consumir antes que se estnasse E essa invenção foi o dinheiro que de acordo com Locke passou a existir através de uma espécie de progressão natural Primeiro os homens trocavam alimentos perecíveis por alimentos mais duráveis como as nozes mais tarde trocavam mercadorias por um pedaço de metal felizes com sua cor 46 Finalmente chegaram ao consenso de que coisas escassas porém duráveis como ouro e prata seriam aceitas em troca das mercadorias perecíveis E assim suiu o uso do dinheiro uma coisa duradoura que os homens podem guardar sem que se estne e que por consentímento mútuo os homens aceitariam em troca dos mantimentos verdadeiramente úteis mas perecíveis da vida 47 Com a invenção do dinheiro os homens resolveram os problemas econômicos básicos de seu estado original com as conseqüências políticas de longo alcance que discutiremos em seguida É importante compreender que Locke de feto entendia que o uso do dinheiro antecedeu a sociedade civil O dinheiro passou a ser usado por consentimento mútuo 47 de que os homens o trocariam por mercadorias perecíveis Este consentimento tácito e voluntário não pressupõe a existência da sociedade civil foi obtido fora dos limites da sociedade e na ausência de pacto apenas atribuindose um valor ao ouro e à prata e concordandose tacitamente quanto à utilização do dinheiro 50 Esse acordo tácito não poderia por si só estabelecer a sociedade civil pois não é qualquer pacto que dá fim ao estado de natureza entre os homens mas so mente este de concordar mutuamente em constituir uma comunidade e estabelecer um oanismo político outras promessas e pactos os homens podem celebrar uns com os outros e ainda permanecer no estado de natureza 14 O dinheiro foi introduzido no comum natural mas seu uso acelerou o fim do comum natural O dinheiro de tal forma alterou as condições que já não era mais pos sível que os homens vivessem juntos sem maior proteção para seus bens O dinheiro permitiu que os homens ampliassem suas posses o dinheiro tornou rentável que um homem possuísse terras muito extensas mas cujo produto fosse superior ao que pu desse consumir 50 Sem dinheiro um homem não tem qualquer incentivo para ampliar suas terras e produzir um excedente por mais favoráveis que sejam todas as demais circunstâncias Onde não há alo que seja ao mesmo tempo duradouro e escasso e tão valioso que mereça ser acumulado ali os homens não estarão propensos a ampliar as terras que possuem por mais ricas que sejam por mais livres que estejam para que delas se apodetem 48 442 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y Entretanto descubrase algo que tem o uso e valor do dinheiro entre seus vizi nhos e se verá o mesmo homem logo começar a ampliar suas posses 49 A introdução do uso do dinheiro completa a transformação de todas as condições econômicas originais Uma vez que aumentam as propriedades cercadas escasseiam as terras sem dono A produção aiunentada pode sustentar um aumento populacional isto é uma oferta mais ampla de mão de obra A condição inicial na qual as proprieda des se limiuvam a proporções muito modestas 36 dá lugar a propriedades maio res A igualdade dominante na penúria é substituída por uma desigualdade econômica assim como diferentes graus de empenho podem dar posses aos homens em propor ções diferentes assim a invenção do dinheiro deulhes a oportunidade de continuar e ampliálas 48 Locke como vemos fez mais do que prometeu não só demonstrou a origem da propriedade privada como também justificou a desigualdade de posses está ckto que os homens concoidaram com uma posse desial e desproporcional da terra tendo eles por um acordo tácito e voluntário descoberto a fbrma como de modo razoável um homem pode possuir terras muito extensas mas cujo produto é superior ao que pode consumir recebendo em troca pelo excesso ouro e prata que podem ser acumulados sem prejuízo para ninguém enquanto esses metais não se deterioram nem se degeneram nas mãos de seu possuidor Os homens tornaram possível essa partilha das coisas em desigualdade dos bens privados apenas por atribuirlhes um valor em ouro e prata e pelo acordo tácito quanto à utilização do dinheiro 30 Se iora considerarmos a objeção que poderia ser muito adequadamente levan tada neste ponto de que não é justa uma desigualdade de posses somos conduzidos direto para o tema central de todos os ensinamentos políticos de Locke o aumento As condições das primeiras etapas do natural comum eram hostis a qualquer perspec tiva de aumento da oferta dos bens de que os homens necessitam para o seu confor to conveniência e preservação A questão portanto é como repartir o pouco que se conseguia arrancar do punho fechado da namreza Isso significa que quem tomou um pouco mais que seus vizinhos tomou mais que sua parte e roubou dos outros 46 Entretanto quando alguns homens por sua invenção e diligência criaram novas con dições para a produção da abundância passou a haver muito mais a partilhar e embo ra as novas condições exigissem uma desigualdade de bens proporcional aos diferentes graus de indústria entre os homens ninguém era lesado Aqueles que possmam uma pequena parte do todo consideravelmente aumentado estavam em melhor simação do que aqueles que antes compartilhavam em igualdade de condições o mísero pouco da condição original O mais pobre dos homens em uma sociedade que possui a agri cultura e o dinheiro é mais rico que o mais afortunado no primitivo comum namral préagrícola Examinemos os necessitados e miseráveis índios na América que não cultivam o solo um rei de um território grande e fecundo ali se alimenu se abriga e se veste pior do que um trabalhador por jornada na Inglaterra 41 grifo nosso É dificil exagerar a importância que Locke atribuía à combinação de riculm ra e dinheiro Conforme descreveu o problema em um ensaio anterior a natureza é J o h n L o c k e 4 4 3 totalmente impotente para fornecer as condições em que sua principal intenção a multiplicação da humanidade possa ser cumprida A herança de toda a humanidade é sempre uma só e náo cresce proporcionalmente ao número de pessoas que nascem A natureza forneceu uma profusão definida de bens para o uso e conveniência dos homens e as coisas que trouxe foram dadas deliberadamente de maneira e quantidade definitivas náo íòram produzidas de modo fortuito nem estão aumentando proporcionalmente à necessidade ou avaieza dos homens Quando o desejo ou a necessidade de posses aumenta entre os homens náo há nenhuma ampliação naquela hora e l i dos limites do mundo Alimentos roupas adornos riquezas e todas as outras coisas boas da vida foram dados em comum e quando alguém arrebata para si mesmo tanto quanto pode retira do quinhão de outro homem a quantidade que acres centa ao seu próprio e é impossível que alguém fique rico exceto à custa de outro Podese dizer que esta passagem representa o problema que Locke resolveu em Dois tratados O mundo permanece constante não está dentro do poder da natureza ampliar seus limites sequer em um metro quadrado Porém sem essa ampliação como pode haver um dia sustento suficiente para o aumento da humanidade E como pode haver qualquer melhoria na condição dos homens em geral se não há ganho para alguém que não envolva a perda para outra pessoa É chocante em sua audácia a resposta que fornece Locke O que está totalmente fora da alçada da natureza está bem ao alcance de qualquer agricultor aquele que se apropria da terra para si por seu trabalho não diminui mas aumenta os suprimentos comuns da humanidade Pois as provisões que servem para sustentar a vida humana produzidas por um acre de terra cercada e cultivada sáo para ãlar de modo proporcional dez vezes maiores do que as produzidas por um acre de terra comum de ual riqueza que permanece inculto E portanto aquele que cetca a terra e produz uma maior abundância das conveniências da vida em dez hectares do que se poderia obter de uma centena de heaares deixados à natureza podese nalmente dizer que doou noventa hectares para a humanidade 37 grifo nosso Por seu trabalho invenção e arte os homens tornam possível o aumento e assim resolvem os problemas econômicos que os afligem na condição natural original Con tudo ao mesmo tempo também tornam impossível a manutenção desse estado O original comum embora perigoso e inconveniente é tolerável quando suas condições são uma abundância de matériasprimas poucos homens muito espaço e uma igual dade geral de fraqueza Entretanto as conseqüências do aumento são tornar escassas as provisões sem dono mais numerosos os homens e o espaço mais difícil de obter e nesta nova situação é gerada uma nova desigualdade de poder entre os homens com 4 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O texto latino e a tradução para o inglês desse trecho estão em John Locke Essays on the Law ofN a ture Ed W von Leyden Oxford Clatendon 1954 p 210e211 algumas pequenas revisões da tradução para o iiés foram realizadas pelo editor geral deste volume Reimptesso com permissão de Oxford University Press Ibid p 213 base na nova desigualdade de posses Sob estas novas condições o trabalho já não pode conquistar o direito de propriedade ou ser a medida do valor e a deterioração deixa de limitar a aquisição Agora pela primeira vez existe a possibilidade de propriedades demasiado extensas para que sejam protegidas através dos meios disponíveis em um estado de natureza A soberania da natureza se anula e os homens precisam instituir uma nova forma de governo de sua própria autoria para substituíla Os homens são rapidamente levados à sociedade 127 para a proteção de seus bens As posses dos diligentes e racionais os homens de cujos poderes de aumento depende o bemestar geral devem ser protegidas contra a fantasia ou a cobiça dos rixentos e litigiosos 34 O governo é a etapa final no longo processo em que os poderes de aumento do homem se libertam das restrições da natureza A grande arte do governo é o aumento das terras e o direito de utilizálas e é chamado de divino o príncipe que pelas leis estabelecidas de liberdade garante proteção e incentivo à diligência honesta da humanidade Assim vimos que a discussão da propriedade por Locke é um relato do desen volvimento da economia desde a condição natural original dos homens passando por várias etapas até chegar a um ponto onde não podem mais viver juntos sem a autoridade e o poder de um juiz comum para proteger as posses ampliadas que se tornaram possíveis para benefício de todos após a introdução do dinheiro A teoria da propriedade de Locke explica a necessidade de transição do estado de natureza para a sociedade civil Agora já demos um grande passo em direção à compreensão da res posta de Locke para a grande pergunta O que é o poder político Embora Locke ao longo dos Dois tratados se devote à questão da natureza do poder político devese reconhecer que sua abordem é bastante indireta O Primeiro tratado é em grande medida uma demonstração de que o poder patriarcal de Filmer não pode ser transformado em poder político a primeira metade do Segundo tratado é dedicada principalmente a uma descrição dos poderes naturais e do estado natural do homem em contraste com seus poderes políticos e estado político É só a partir daqui que Locke enfrenta de forma direta e detalhada a discussão do poder político e da sociedade política Restanos portanto verificar como Locke passa da base não política que criou para as conseqüências políticas Fica evidente de imediato a relevância do náo político para a política na declaração de Locke de que o fim o maior e principal de os homens se unirem em naçóes e se J o h n L o c k e 445 10 Second Treatise sec 42 Este trecho é um dos mais importantes entre aqueles acrescentados por Lo cke ao exemplar que está no Christ s College Náo aparece em muitas das edições ora disponíveis pelos motivos expostos no n 1 supm e foi impresso incorretamente em diversas edições em que náo aparece Está impresso incorretamente como the increase oflands and the r ifjt ofemploying o f thern o aumento das terras e o direito de utilízálas em lugar do texto correto the increase o f lands and the right employing o f thenT o aumento das terras e sua correta utilização Um exame do texto manuscrito não deixa dúvida de que a palavra o f supérflua no texto é um erro de imprensa cuja distorção do sentido do texto seiá logo percebida elo leitor atento colocarem sob um governo é a preservação dos seus bens 124 Aqui e em muitos outros liares além do capítulo denominado Da propriedade Locke emprega a palavra propriedade no sentido abrangente que inclui a vida liberdade e bens 87 No estado de natureza a propriedade é muito incerta muito insegura 123 porque fal tam três coisas necessárias para a sua guarda uma lei estabelecida arraigada conhecida 124 um juiz com autoridade para resolver todas as diferenças de acordo com a lei estabelecida 125 e o poder de apoiar e respaldar a sentença quando correta e darlhe a devida execução 126 A sociedade política o oposto do estado de natureza é criada para corrigir esses três defeitos O caráter da sociedade poiítica derm da intenção funda mental de assurar a preservação da propriedade ao proporcionar um poder de íàzer leis e julgar cxintrovérsias e um poder de executar as sentenças e punir os transgressores Qualquer quantidade de homens pode íázer um pacto para sair do estado de natureza e entrar em sociedade para constituir um só povo um organismo político sob um governo supremo 89 Apenas aqueles que celebram tais pactos explícitos uns com os outros estão juntos em sociedade política aqueles que não aderem estão em relação à sociedade e seus membros ainda no estado de natureza O cerne do pacto que todos os membros celebram uns com os outros a íim de estabelecer uma sociedade política é um acordo para transferir os poderes que cada um possuía no estado de natureza às mãos da comunidade 87 No estado de na tureza todo homem tem dois poderes naturais íázer tudo o que lhe aprouver para a preservação de si mesmo e outros dentro do permitido pela lei da natureza e o poder de punir os crimes cometidos contra a lei 128 Estes dois poderes naturais de cada homem são o original do poder legislativo e executivo da sociedade civil 88 O segundo poder o poder de punir todo homem ao entrar em sociedade política cede integralmente e compromete sua força natural para auxiliar o poder executivo da sociedade como a lei da mesma exigirá 130 Mas Locke não diz que o primeiro poder que inclui julgar o que é necessário para a preservação é transferido em sua to talidade afirma que é cedido na medida em que a preservação de si mesmo e do resto da sociedade o possa exigir 129 Devemos estar atentos portanto às respostas para estas perguntas Até que ponto é necessária a transferência desse poder para a so ciedade Por que esse poder não é transferido em sua totalidade E quais são os direitos e obrigações de um membro da sociedade se como pode acontecer a preservação de si mesmo conílitar com a preservação do resto da sociedade Os poderes naturais dos homens no estado de natureza são transformados pelo pacto nos poderes políticos da sociedade civil Esses poderes políticos são limitados no entanto pela finalidade para a qual foram criados Uma vez que o objetivo era sanar a incerteza e o perigo do estado de natureza proporcionando leis estabelecidas para a proteção da propriedade de todos os membros o exercício do poder ilimitado não é e não pode ser considerado como poder político O poder absoluto arbitrário ou o governo sem leis estabelecidas vigentes náo podem existir em harmonia com os fins da sociedade e do governo pelos quais os homens náo 4 4 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y abririam mão da liberdade do estado de natureza e aos quais não se atrelariam se não bsse para preservar suas vidas liberdades e fortunas e por normas vigentes do direito de propriedade garantir a sua paz e tranqüilidade Não se pode supor que tencionassem se tivessem o poder de assim fezer dar a qualquer um ou mais de um um poder absoluto arbitrário sobre suas pessoas e propriedades feto seria colocarse em uma condição pior do que o estado de namreza onde tinham liberdade de defender seus direitos contra os danos de outros e estavam em condições de ualdade de forças para mantêlos 137 A insistência de Locke sobre a natureza limitada do poder político revela tanto a sua concordância como sua grande discordância com Hobbes Locke partindo do princípio de autopreservação como a fundação pétrea da sociedade civil mostra re petidas vezes que o poder arbitrário absoluto não constitui remédio para os males do estado de natureza Estar sujeito ao poder arbitrário de um governante descontrolado sem o direito ou a força para se defender contra ele é uma condição muito pior que o estado de natureza não se pode supor que seja aquela a que os homens consentiram livremente pois não se pode supor que uma criatura racional mude sua condição com a intenção de piorála 131 Desta forma observa Locke a monarquia ab soluta não é de modo algum uma forma de governo civil 90 O grande erro de Hobbes não é a sua premissa mas sua conclusão política de que o único remédio para o estado de natureza é que os homens se sujeitem ao poder ilimitado do poderoso leviatã uma conclusão que contradiz a premissa de que o medo da morte violenta ou o desejo de autopreservação é o primeiro princípio da ação humana A conclusão de Locke governo limitado com base no consentimento dos governados é mais fiel a essa premissa que a conclusão do próprio Hobbes A sociedade política é uma invenção e artefiito humano mas essa coisa artificial uma vez criada tem uma natureza própria e portanto tem uma lei natural aplicável Tratase de ir de acordo com sua própria natureza quando se age para a preserva ção da comunidade 149 pois o que não é surpresa a primeira lei fundamental e natural é a preservação da sociedade 134 A primeira conseqüência óbvia dessa lei natural da sociedade é que todos os direitos de seus membros devem ser compatí veis com a preservação da sociedade Nenhuma sociedade pode conceder a qualquer dos seus membros qualquer direito que levaria a sua destruição Fazêlo poria em risco a preservação de seus membros cuja segurança tanto depende da proteção que a socie dade lhes proporciona Por este motivo também deve ser permanente o compromisso assumido pelos membros Quando um homem se torna membro de uma nação fica perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer inalteravelmente sujeito a ela e jamais poderá estar de novo na liberdade do estado de natureza 121 enquan to sobreviver o governo E o poder da sociedade deve ser inclusivo atingindo a todos os membros e todas as controvérsias nos termos da lei ali e somente ali haverá sociedade política onde cada um de seus membros renunciou a esse poder natural entregandoo nas mãos da comunidade em todos os casos que não impedem de apelar para a proteção da lei por ela estabelecida E assim excluído todo julgamento privado de cada membro em particular a comunidade passa a ser árbitro por J o h n L o c k e 4 4 7 meio de regras firmes e estabelecidas indiferentes e iguais para todas as panes e por meio de homens que derivam sua autoridade da comunidade para a execução dessas regras decide todas as diveigências que podem ocorrer entre quaisquer membros dessa sociedade a respeito de qualquer questão de direito e ptme as infrações que qualquer membro co meta contra a sociedade com as penalidades impostas pela lei 87 grifo nosso O poder da comunidade sobre seus membros parece avassalador seria mesmo possível dizer ilimitado É aqui que notamos com clareza a dificuldade fimdamental inerente à tentativa de desenvolver uma teoria de que o poder político é limitado por que tem sua origem em poderes e direitos naturais Se os membros de uma comunida de retêm parte de seu poder namral dependendo dele e não do poder da comunidade para sua proteção poderá a sociedade política funcionar como previsto Por outro lado se todo o poder é colocado nas mãos da comunidade o que restará para proteger os membros de eventuais abusos desse poder concentrado Outra lei natural aplicável ao corpo político e de fato a todos os corpos com postos por elementos distintos pode ser chamada de lei da maior força Esta lei é a base da doutrina de Locke sobre o governo da maioria Como já foi dito a sociedade política é estabelecida por meio do acordo unânime de seus membros para consti mir uma comunidade porém embora toda sociedade política seja fundada com base na unanimidade não se pode esperar tal unanimidade em outros assuntos A conse qüência imediata deste primeiro acordo unânime e a impossibilidade de permanecer em unanimidade é que governará uma parte da sociedade a maioria Pois quando qualquer número de homens pelo consentimento de cada indivíduo criou uma comunidade assim fizeram dessa comunidade um corpo com o poder de agir como um corpo que existe somente pela vontade e determinação da maioria Para que os atos de qualquer comunidade sendo apenas o consentimento de seus indivíduos e sendo necessário para aquilo que é um corpo moverse para em um só sentido é necessário que o oiganismo se mova desse modo para onde a maior força o transporta que é o consentimento da maioria ou então é impossível que aja ou permaneça um corpo uma comunidade com a qual o consentimento de cada indivíduo que se uniu a ele concordou que deveria e assim todos estão vinculados por esse consentimento a serem concluídos pela maioria 96 grifo nosso A primeira proposição deste argumento é que a maior força dentro de qualquer sociedade irá governála Locke parece supor que a maioria será a maior força e que portanto a maioria governará O mesmo tipo de argumento é apresentado na discus são de Locke da sociedade conjugal Quando o homem e a mulher discordam o ho mem como o mais capaz e mais forte 82 naturalmente comandará Entretanto com base na lei da maior força teríamos de dizer que no caso raro mas possível de um marido que não seja mais forte e capaz que sua esposa ele não comandará por natureza Da mesma forma em qualquer corpo político em que a maioria não for a maior força o governo não lhe caberá naturalmente Contudo sabemos e Locke decerto sabia que a maioria das pessoas nem sempre é a maior força na sociedade civil porque as desigualdades de natureza econômica política e social florescem sob o go 4 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y verno certas vezes portanto um homem é a maior força como fica evidente pelo fato de que toda sociedade está sujeita a seu governo Entáo por que Locke parece supor que a maioria seria a maior força Em qualquer corpo constituído por elementos distintos a maioria será neces sariamente a maior parte do todo somente quando todas as partes forem iguais e necessariamente a maior força só quando todos forem iguais em sua força Locke quer dizer que a maioria governará a sociedade nos momentos em que os membros forem iguais ou praticamente iguais em força Sabemos que no estado de natureza os homens estão em condições de igualdade de força enquanto após algum tempo na sociedade política um homem pode tornarse 100 mil vezes mais forte 137 que os outros homens Desta forma a doutrina do governo da maioria de Locke é que naqueles mo mentos em que os homens na sociedade estão mais próximos do estado de natureza e portanto são mais iguais em força como por exemplo quando concordam em deixar o estado de natureza e estabelecer uma comunidade a maioria sendo a maior força irá governar A maioria possui quando os homens se unem na primeira sociedade todo o poder da comunidade naturalmente em si 132 grifo nosso veremos que há um outro momento decisivo quando a maioria deve governar um outro momento quando os homens na sociedade estão muito próximos se não no próprio estado de natureza isto é uma época em que a sociedade está momentaneamente sem governo Até agora seguimos o procedimento do próprio Locke quando falamos da socie dade política sem fazer referência a qualquer forma de governo Locke faz a distinção entre sociedade política e governo mas não entende que a sociedade política possa existir sem governo exceto por períodos muito breves em ocasiões extraordinárias Os homens participam da sociedade política a íim de serem governados por uma lei fixa e essa finalidade só pode ser atingida pelo estabelecimento dos poderes legislativo e executivo que é precisamente como Locke expressa o ato de constituir o governo A sociedade política só perdurará se o governo for constituído de imediato A sociedade política e o governo podem ser separáveis na mente mas nâo existem de forma inde pendente a sociedade política exige governo A sociedade política nada pode fazer sem governo somente constituir o governo A realização dessa tarefa exige uma decisão momentânea uma escolha da forma de governo Formas de governo diferem principalmente de acordo com o modo como e em que mãos o poder legislativo é colocado A primeira lei positiva e íundamental de todas as nações é o estabelecimento do poder legislativo 134 a promulgação dessa lei íundamental ou constituição um ato da sociedade política necessariamente sem governo é o grande ato que é natural e necessariamente determinado pela maio ria da sociedade A maioria pode deter o poder legislativo e então o governo é uma democracia ou pode confiálo a alguns poucos homens e então o governo é uma oli garquia ou pode colocar o poder nas mãos de um homem sob um ou outro conjunto de condições e então é uma forma ou outra de monarquia Contudo em todos os casos só o consentimento da maioria pode constituir as fundações do governo todas as formas de governo lembrando que a monarquia absoluta não é uma forma de J o h n L o c k e 449 governo da democracia perfeita à monarquia hereditária 132 têm de forma igual o consentimento da maioria como sua base Em essência a doutrina de Locke do governo da maioria náo resulta em uma preferência por uma forma de governo em detrimento de outras Âs pessoas são as partes do paao social cada homem concordando com todos os outros para constituir uma sociedade Nada é dito de um paao entre o povo e o govemo Os poderes do govemo só são confiados sem que a eles se tenha renunciado a aqueles que se tornam seus agentes seu poder é apenas fiduciário O poder supremo para preservar a si mesmos e à sociedade permanece sempre com o próprio povo Deste poder não pode abrir mão nenhum homem ou sociedade de homens têm o poder de remmciar a sua preservação ou consequentemente aos meios para ela O povo sempre terá o direito de preservar o que não tem o poder de abandonar 149 Todavia embora o povo con tinue a ser o poder supremo Locke afirma também que quando é estabelecido o poder legislativo este é e continua sendo o poder supremo enquanto o governo continuar a existir e funcionar Além disso este legislativo não é somente o poder supremo da nação mas sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade um dia o colocou 134 Para explicar o que parece ser uma enorme contradição ter dois poderes supremos é preciso recordar a distinção entre a sociedade sem governo e a sociedade sob um governo O poder supremo permanece sempre nas mãos do povo mas não quando considerado sob qualquer fbrma de governo 149 O povo exerce o poder supremo ativamente só na sociedade sem governo mas quando existe govemo o poder supremo está nas mãos do lslativo onde o povo o colocou O povo e o lislativo são ambos supremos mas não ambos ao mesmo tempo Sob o govemo o poder supremo do povo está completamente latente e nunca será exercido até que por alguma calamidade ou loucura o govemo deke de existir este poder do povo nunca pode ter lugar até que o govemo seja dissolvido 149 Enquanto existir govemo o lslativo é o poder supremo ativo Entretanto o poder latente do povo persiste e se o governo vier a ser dissolvido então mais uma vez não há sociedade sem govemo nesse momento o poder supremo será exercido de modo dirao e ativo pelo povo o que significa é claro pela maioria e para atingir um único objetivo formar um novo govemo o mais rápido possível ao deliberar acerca de uma constituição e colocar o poder legislativo em novas mãos O princípio fundamental da separação de poderes é expresso de modo claro por Locke Em nações bem ordenadas os principais poderes são separados porque pode ser uma tentação muito grande para a fragilidade humana que tende a agarrar o poder que as mesmas pessoas que detêm o poder de promulgar as leis tenham também em suas mãos o poder de executálas 143 Entretanto Locke aplica este princípio somente à separação das funções legislativas e executivas trata do sistema judicial como parte do lislativo e não preconiza sua separação Locke não distingue um outro poder político o poder de guerra e paz ligas e alianças 146 Conmdo embora esse poder que Locke denomina poder federativo seja distinto do poder executivo devem ser ambos colocados nas mesmas mãos pois ambos exigem a força da sociedade para seu exercí cio força esta que não é seguro colocar sob comandos diferentes 148 450 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O poder legislativo é superior ao poder executivo pois o que pode dar leis a outro deve ser superior a ele 150 No entanto quando o lislativo não existe sempre e o executivo é conferido a uma única pessoa que também participa do legislativo então esta pessoa em sentido muito aceitável também pode ser denominada suprema Tampouco havendo um lislativo superior a esta pes soa não havendo leis a serem promuadas sem seu consentimento o que não se pode esperar jamais se íbsse sujeito à outra parte do lislativo esta pessoa é com muita pro priedade neste sentido suprema 151 Esta afirmação não n que o poder legislativo é supremo mas serve para lem brar que o órgão legislativo não precisa ser o ramo supremo do governo Esta é a pri meira indicação da surpreendente abrangência que Locke concede ao poder da pessoa que é o executivo surpreendente porque sua doutrina da supremacia do legislativo parece tão enfática e sem ressalvas Não importa até que ponto o executivo exista para executar a função subalterna da aplicação da lei tal como promulgada pelos legisladores é preciso acrescentar que em alguns momentos deve agir sem a orientação da lei o bem da sociedade exige que várias coisas sejam deixadas a cargo daquele que tem o poder executivo Pois os lisladores não sendo capazes de prever e fornecer por meio das leis tudo o que pode ser útil para a comunidade o executor das leis tendo o poder nas mãos possui pela lei comum da natureza o direito de fezer uso dela para o bem da sociedade 159 Não somente pode o executivo sem a sanção da lei como também pode fiizer com que as leis cedam 159 diante de seu poder onde seria prejudicial a adesão c a elas e pode até mesmo chegar tão longe a ponto de agr contrariamente à lei para o bem público Este poder de agir de acordo com o próprio discernimento em prol do bem público sem a prescrição da lei e às vezes até contra ela é a isso que se deno mina prerrogativa 160 O perigo inerente à prerrogativa do executivo não é menos óbvio que sua necessidade A prerrogativa sempre cresceu de modo mais intenso nos reinados dos melhores príncipes O povo confia em um príncipe bom e sábio mesmo quando este ultrapassa os limites da lei não temendo por sua segurança porque cons tatam que seu objetivo é promover o seu bem Tais príncipes divinos na verdade tinham algum direito ao poder arbitrário por meio do argumento que demonstraria ser a monarquia absoluta o melhor govemo como sendo aquele com que o próprio Deus governa o universo porque tais reis compartilham de sua sabedoria e bondade 166 Porém até mesmo os príncipes têm sucessores divinos e não há nenhuma ga rantia de que um deles alegando o precedente não fiiça uso da prerrogativa ampliada para favorecer seus interesses particulares em detrimento das propriedades e da segu rança do povo Sobre este fundamento se assenta o dito de que os reinados dos bons príncipes fisram sempre os mais perigosos para as liberdades de seu povo 166 J o h n L o c k e 451 Segundo este argumento o que caracteriza os príncipes mais sábios e melhores náo é que obedeçam e apliquem a lei estabelecida mas seus serviços para o povo O âmbito da discricionariedade executiva é limitado apenas pela condição de que seja usada para o bem público a prerrogativa de um bom príncipe que está ciente da confiança depositada em suas mãos e cuida bem de seu povo não será jamais excessiva 164 Entretanto posto que ultrapassar os limites dos poderes constitucionais ou legais sob pretexto de servir o povo tem sido a prática constante dos tiranos desde tem pos imemoriais o bem público parece uma prova perigosamente vaga e insuficiente para determinar se a prerrogativa está sendo usada de modo correto O bom príncipe e o tirano se assemelham por ambos íirem fora do âmbito da lei e até mesmo de forma contrária a ela A diferença entre eles reside toda no fato de sua ilegalidade ser benéfica ou não O bom príncipe transgride a lei a fim de melhor servir o povo o tirano usa o seu poder não pelo bem daqueles que estão sob ele mas para sua própria vantagem privada 199 Contudo existiria um modo prático de determinar a intenção de um governante Nem sempre é íácil definir se a lei foi violada mas decerto é mais íácil do que detectar se foi violada por um bom objetivo Não teria Locke exacerbado a dificuldade de distinguir o bom príncipe do tirano Locke não parece pensar assim O importante náo é como a pergunta seria respondida pela teoria mas como é avaliada na prática e na prática diz ele esta avaliação é feita com facilidade 161 Entre tanto antes que nos diga como é feita diznos por quem é feita À pergunta quem de cidirá se os poderes do governo estão sendo usados para pôr em perigo o povo Locke responde O povo será o juiz 240 O significado de o povo será o juiz está intimamente ligado no argumento de Lo cke ao direito de resistir à tirania que tem o povo desta forma esses dois temas serão examinados juntos O direito de resistência tal como expresso por Locke náo deve ser com demasiada presteza equiparado ao que veio a ser conhecido como o direito de revolução Se lembrarmos a lei natural fimdamental da sociedade é evidente que não pode haver direito de por em risco a preservação da sociedade A revolução é uma ameaça à preservação da sociedade Qualquer que seja o direito de resistência deve ser coerente com a preservação da sociedade O povo será o juiz afirma Locke De que será juiz Julgará se deve retomar ati vamente o poder supremo porque o governo foi dissolvido Como obteve o direito de fazer esse julgamento O povo sempre o possuiu e é totalmente incapaz de abrir mão dele Nessa altura Locke de novo recorre a sua discussão anterior sobre o estado de natureza e o estado de guerra e sobre os direitos que existem em si mesmos da seguin te forma Quando um príncipe ou alguém em posição de poder político utiliza esse poder de forma contrária à confiança depositada nele pelo povo para favorecer seus interesses à custa do povo conserva seus bens separados dos do povo afastase de sua comunidade colocase fora de sua sociedade situandose em um estado de natureza com ele Além disso usando a força contra o povo sem autorização ou direito coloca se em estado de guerra com o povo 452 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O tirano guerreia contra o povo Ao usar contra ele a força que lhe foi confiada com efeito destrói seu governo Náo mais pode ser considerado como seu governante político em qualquer sentido da palavra político Assim o povo tem o direito natural de se defender contra sua agressão e a resistência do povo é perfeitamente coerente com a preservação da sociedade O povo está defendendo a sociedade é o tirano quem se revoltou a rebelião sendo uma oposição náo às pessoas mas à autoridade que se baseia apenas em constituições e leis do governo aqueles quem quer que seja que pela força rompem e pela orça justificam a sua violação delas são verdadeira e adequadamente rebeldes Pois os homens ao entrar em sociedade e govemo civil excluíram a força e introduziram leis para a preservação da propriedade a paz e a unidade entre si aqueles que utilizam a íbrça novamente em oposição às leis de fàto rebeUareisto é trazem de volta o estado de guerra e são propriamente rebeldes 226 Em todo esse debate é raro Locke empregar a palavra revolução preferindo a palavra rebelião assim mantendo um uso estritamente literal de acordo com seu argumento não há direito de derrubar há apenas um direito de resistir quando do retorno da guerra Os ensinamentos de Locke sobre este assunto são endereçados aos que têm poder político e sobretudo aos príncipes pois são eles os mais prováveis rebeldes a forma mais adequada de evitar o mal é mostrar àqueles que estão sob a maior tentação de cair nele o perigo e a injustiça que constitui 226 Assim Locke inverte a discussão usual que considera o povo como a mais provável fonte de revolução Por que não di rige Locke seus ensinamentos também ao povo alertandoo contra o uso da força para derrubar os seus governantes Não teria simplesmente enganado seus leitores com uma inteligente inversão da terminologia O príncipe é chamado de rebelde e o povo que tenta depôlo é chamado de defensor da sociedade e todo o argumento repousa na insistência de Locke de que o povo julgará se o governo for dissolvido uma questão de extrema complexidade técnica E o seu recurso à força realmente significa algo mais além de o povo se opor às políticas de seu presente governo e tencionar substituílo seja com uma nova forma ou por colocálo em outras mãos Não fomentariam a revo lução popular os ensinamentos de Locke por incitar e justificar o povo sempre que estiver descontente a sublevarse com o grito da tirania nos lábios para depor seus governantes adequadamente designados Locke nega que tenha fornecido qualquer novo motivo para a revolução Ar gumentou que enquanto existir governo não há direito legal ou constitucional para fazer qualquer coisa que ponha em perigo a preservação da sociedade e do governo Negou qualquer direito de resistir à autoridade quando for possível recorrer à lei a força nâo deve ser aplicada contra nada a não ser à força injusta e ilegal 204 Este direito de resistir não é um direito político mas um direito natural que não pode ser exercido enquanto funcionar um governo devidamente constituído Além disso o povo não é propenso a criar problemas em geral prefere evitar o perigo da desordem as revoluções não acontecem a cada pequena má gestão nos J o h n L o c k e 453 assuntos públicos Grandes erros do governante muitas leis erradas e inconvenientes e todos os deslizes da fragilidade humana serão suportados pelo povo sem motim ou resmungo 225 Locke é veemente em sua condenação dos indivíduos que de feto fomentam a revolução contra um governo justo pois são diz ele culpados do maior crime do qual acredito um homem capaz 230 Todavia a defesa mais instrutiva de Locke contra a acusação de que fomenta a tendência para a revolução é mais profunda que as mencionadas antes mas não é a elas relacionada No estado de natureza todos os homens têm o poder de julgar o que é necessário para a sua preservação não podem entregar todo esse poder de julgar nas mãos da sociedade Pode ser denominado inalienável porque por mais que tente é impossível que um homem abra mão de seu poder de julgar se sua vida estiver em perigo Nenhum juramento ameaça ou doutrina é capaz de fezêlo No estado de na tureza ou na sociedade civil não há nenhum tipo de cirurgia que possa retirar de um homem vivo o desejo de autopreservação e as conseqüências dela Contudo embora esse direito de julgar seja reservado para todos os homens por uma lei antecedente e superior a todas as leis positivas do homem o reconhecimento deste direito não constitui uma base permanente para a desordem pois esta não entra em ação até que o desconforto seja tão grande que a maioria o percebe e se cansa dele e descobre a necessidade de alterálo 168 grifo nosso As três perguntas quando é a prerrogativa indevidamente utilizada como dis tinguir o tirano do bom príncipe e quando é dissolvido o governo acabam sendo a mesma pergunta o governo está ameaçando a segurança do povo E essa é a questão de que só o povo será o juiz Locke não vê qualquer dificuldade em atribuir a ele nem qualquer possibilidade de atribuíla a qualquer outro porque embora seja difícil de responder teoricamente o povo a responde com fecilidade não pela razão mas pelo sentimento Locke nega que suas palavras influenciem esta situação Seus argumentos ou doutrinas não têm nenhum efeito sobre o assunto As palavras não impedem os homens de sentir 94 Sua hipótese na verdade qualquer hipótese não tem ne nhuma influência em tal assunto as forças naturais não são afetadas pelas doutrinas pois quando o povo é feito desgraçado chorem seus governadores tanto quanto quise rem para os filhos de Júpiter quer sejam sagrados e divinos descidos do céu ou pelo céu autorizados consideremnos para quem ou o que quiserem o mesmo acontecerá Se uma longa série de abusos prevaricações e artifícios todos tendendo na mesma direção torna seu plano visível para o povo e este náo pode deixar de perceber a que está sujeito e ver para onde está indo náo é de se admirar que então desperte e se esforce para colocar o governo em mãos tais que lhe assegurem os fins para os quais o governo foi primeiro constituído 224 225 Sc haverá resistência dos governantes depende inteiramente do que o povo per cebe e sente Quando a grande maioria das pessoas conseguir perceber que suas vidas estão em grande perigo como será impedida de resistir à força ilegal usada contra ela não posso dizer 454 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Este i um inconveniente confesso que está presente em todos os governos quando os governantes atingem esta situação passam a ser suspeitos em geral por seu povo a situação mais perigosa em que se podem colocar na qual são os que menos merecem comiseração porque é táo íacil de ser evitada 209 A perspectiva da resistência das pessoas quando se sentem em perigo é o único limite eficaz sobre o uso da prerrogativa Um príncipe sábio compreende este limite e sempre evita agir de modo que o povo suspeite de suas intenções Quando tem de agir sem a aprovação da lei e até mesmo de modo contrário a ela fíca atento à necessidade de fezer conhecidas suas boas intenções de modo a que o povo as perceba e sinta Se felhar nisso e o povo vier a suspeitar dele e se sublevar para substituílo então em bora por algum tempo possa ser capaz de manter sua posição pela força seu poder político terminou Quando um lei destrona a si mesmo e se coloca em estado de guerra com seu povo o que os impedirá de perseguir a quem náo é rei como o feriam com qualquer outro ho mem que se colocasse em estado de guerra contra eles 239 O rei não é rei o governo está de feto dissolvido e as desigualdades associadas com o governo foram anuladas O retorno ao uso da força o estado de guerra nivela as partes 235 Em um momento como este não existem superiores e inferiores na política O resultado será determinado pela maior força Assim o argumento completou um círculo O desejo do homem de preservar a si mesmo retirouo da guerra do estado de natureza e o conduziu à sociedade política Contudo na sociedade política os homens estão diante de um novo e mais terrível perigo a tirania ou o poder arbitrário absoluto o poder aumentado de um homem ou alguns homens que trazem de volta uma guerra muito pior do que a guerra na normalidade do estado de natureza Sob o governo tirânico as probabilidades do in divíduo são multiplicadas exponencialmente e é quase impossível a defesa No ílindo os homens só têm a proteção da sua força natural e o desejo natural de preservação Este desejo mais forte que deu origem à sociedade política é também sua principal defesa quando o povo percebe que a sociedade sua maior segurança está sob ameaça resiste àqueles que a destruiriam O empreendimento político da humanidade é uma luta interminável para sair do estado de natureza e evitar cair de novo nele com todos os seus terríveis males Há dois lugares no Segundo tratado onde Locke feia dos príncipes divinos Em um deles fala dos príncipes a quem é concedida a maior prerrogativa que são mais livres do controle das leis São como Deus que governa o universo como monarca absoluto porque compartilham de sua sabedoria e bondade 166 Entretanto na passsem anterior é considerado sábio e divino o príncipe que governa de acordo com as leis estabelecidas da liberdade Da mesma forma que o príncipe é como Deus Criador pois as leis estabelecidas de liberdade constituem os meios para propiciar o aumento de terras que é uma espécie de criação como vimos embora não seja uma J o h n L o c k e 455 criação a partir do nada Este aumento não é apenas a causa da prosperidade interna mas também a fonte do poder para defender a sociedade contra os ataques hostis de outras sociedades O príncipe divino cujo cumprimento da lei traz a prosperidade logo será demasiado duro para com seus vizinhos 42 Esta referência a poder e a vizinhos hostis nos faz lembrar que toda sociedade está no estado de natureza com todas as outras sociedades e que o poder é a base da segurança Porém as necessidades da vida no estado de natureza internacional em particular as exigências da guerra por vezes demandam açóes extraordinárias em resposta a situações imprevistas que não podem ser reguladas por lei Um povo pode roso cujo poder foi gerado pelo crescimento material resultante do estímulo do desejo de confortável preservação sob a proteção de leis de liberdade estabelecidas sempre se defrontará com a possibilidade de uma batalha uma situação em que os cidadãos devem ser dedicados ter espírito público e estar prontos para sacrificar seus tesouros e talvez mesmo suas vidas sob o comando discricionário do poder executivofederativo para a defesa da sociedade como um todo O fato de que os príncipes que mais governam pela lei e menos governam pela lei são denominados divinos exprime um dilema que não pode ser totalmente resol vido enquanto a sociedade for entendida como sendo fundamentada no princípio da autopreservação Resta uma pergunta não resolvida por Locke se um dia serão sufi cientemente compatíveis a preservação da sociedade como um todo e a preservação de seus membros individuais Por exemplo poderá a preservação da sociedade ser coe rente com a autopreservação nos momentos mais graves de provação que muitas vezes determinam o destino das sociedades políticas Poderá o princípio de autopreservação fornecer a base para o desenvolvimento do patriotismo do espírito público e espe cialmente do sentido do dever de abrir mão da riqueza e até mesmo da vida em defesa da pátria Locke é profundo e abrangente quando fala sobre os motivos da fundação da sociedade política mas esses motivos acabam por ser tais que seu próprio caráter o impede de considerar em que direção se desenvolverá a sociedade após a fundação estar assegurada Locke não suplementa seu princípio fundamental nâo discute outros motivos para a manutenção de uma sociedade após sua fundação motivos que podem emergir dentro de uma sociedade e que talvez não existissem na época de sua funda ção Não há discussão por exemplo das obrigações que crescem entre os conterrâneos Locke fala muitas vezes das sociedades raramente de países muitas vezes da lei da natureza raramente ou nunca de tradições costumes instituições muitas vezes de direitos raramente de deveres muitas vezes de o povo raramente dos povos Quando fala dos ingleses não fala de seu amor pela Inglaterra mas de seu amor por seus direitos justos e naturais O pouco que Locke diz a respeito da educação cm Dois tratados nada tem a ver com o desenvolvimento de um sentido de dever público a educação é mencionada como algo cujo mais nobre propósito não vai além de preparar as crianças para cuidarem de si mesmas 4 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Piefecio de Two Treatises Dois tratados Há uma passagem reveladora a este respeito em que Locke fàla do caráter abso luto da disciplina marcial A preservação do exército e nele de toda a nação exige uma obediência absoluta ao comando de todo oficial superior e é morte justa desobedecer ou discordar do mais perigoso ou irracional deles 139 O sargento pode ordenar a um soldado que marche até a boca de um canhão ou se coloque em uma fenda na muralha onde é quase certo que pereça O general poderá condenálo à morte por ter abandonado o seu posto ou por não obedecer às ordens mais desesperadas Pode mandar enforcálo pela menor desobediência E este poder extraordinário do comandante militar é justificado porque tal obediência cega é necessária para o fim para o qual o comandante tem seu poder viz a preserva ção dos demais 139 A preservação do restante da sociedade pode muito bem explicar o direito de comandar do general mas por que deve o soldado obedecer a or dens desesperadas Das palavras de Locke emerge apenas um motivo se desobedecer o general pode enforcálo Contudo não demanda a eficácia de um exército um motivo melhor do que esse Que tipo de exército será esse em que o medo da punição é o único suporte para a disciplina em combate A questão é se o soldado de Locke que desconhece palavras não lockianas tais como honra bravura dever e heroísmo lutará em prol de outros quando o medo do inimigo ultrapassar seu medo de seus próprios oficiais comandantes Nem nesta passagem nem em qualquer outra parte de Dois tratados fornece Locke uma explicação para o que fundamenta o dever do soldado de dar sua vida por seu país O grande tema de Locke era a liberdade e seu grande argumento era de que não há liberdade onde não há lei Na condição natural do homem não existe lei ou pelo menos não há lei conhecida e estabelecida Para serem livres portanto os homens devem ser legisladores Contudo por desconhecimento da natureza humana e da so ciedade que mais lhes convém muitas vezes o resultado de seus esforços de legislar não melhoram mas pioram sua condição A tarefa de tornar a humanidade livre exige uma compreensão da natureza do homem A força mais poderosa da natureza humana e portanto a mais significativa para o entendimento político é o desejo de autopreservação É ao mesmo tempo o maior obstáculo e a maior força para a paz entre os homens Devidamente orientado oferece uma garantia de segurança em meio à abundância Ignorado ou desafiado provoca a violência a anarquia e uma terrível destruição da vida e da propriedade A tarefa da razão portanto é compreender apaziguar e direcionar essa paixão de forma constru tiva sempre com a consciência do perigo iminente se um sentimento de desconforto colocálo na senda da violência O desejo de preservação pode ser desviado dirigido ou incitado mas não há maneira alguma de diminuir ou erradicar seu poder avassalador Por este motivo os homens não são inteiramente governáveis e jamais será concluída a tarefii de tornar a J o h n L o c k e 4 5 7 humanidade livre sob o comando da lei O remédio para os males do estado de na tureza jamais realiza plenamente a sua cura Os homens vivem em parte pelo menos sempre e inevitavelmente na condição natural não política e sempre em perigo de recair em uma condição muito pior pois não se podem ensinar os homens a ter sentimentos contrários a seu desejo mais forte O governo é impotente para mudar a natureza hu mana deve ajustarse ao que não pode ser mudado O governo que não se ajustar a essa paixão em todo homem deve estar preparado para lutar contra ela sem cessar pela força e pelo terror Porém o governante sábio ferá mais do que ajustarse canalizará e orien tará incentivará e protegerá o desejo de preservação e ferá dele o próprio fundamento da lei da liberdade da segurança e da abundância para seu povo Locke procurou livrar a humanidade de toda forma de poder arbitrário absoluto Tentou apresentar uma explanação verdadeira e completa da criação da civilização pelo homem a partir dos materiais quase inúteis fornecidos a ele Nessa explanação a prin cipal força que impulsiona o homem para sua própria libertação é a paixão o desejo de preservação Como o leitor desse volume bem sabe os íilósofos políticos da Antigui dade consideravam as paixões arbitrárias e tirânicas Acreditavam que a tendência das paixões é acima de tudo escravizar os homens Ensinavam portanto que um homem só é livre na medida em que a razão nele é capaz de uma forma ou de outra de subjugar e governar suas paixões Locke no entanto reconheceu a paixão como o poder supre mo da natureza humana e argumentou que a razão não pode íázer mais do que atender o desejo mais poderoso e universal e orientar para seu cumprimento Somente quando esta ordem de coisas for entendida e aceita como a verdadeira e natural ordenação é que haverá alguma possibilidade de êxito na luta da humanidade pela liberdade paz e abun dância É nisso acima de tudo que constituem os ensinamentos políticos de Locke John Locke foi chamado de íilósofo da América o nosso rei da única maneira em que um íilósofo sempre foi rei de uma grande nação Nós portanto mais do que muitos outros povos do mundo temos o dever e a experiência para julgar o acerto de seus ensinamentos L e it u r a s A John Locke Second Treatise Segundo tratado B John Locke First Treatise Primeiro tratado John Locke Some Considerations ofthe Consequences ofthe Lowering ofinterest and Raising the Value ofM oney Algumas considerações sobre as conseqüências da redução dos juros e da elevação do valor do dinheiro John Locke A Letter Conceming Toleration Uma cana sobre a tolerância 4 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y M ontesquieu A 16891755 Charles Secondat barão de Montesquieu nasceu e morreu na França Seus escritos mais famosos sáo Lettrespersanes As cartas persas 1721 Considémtions sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência 1734 e LEspritdes lois O espírito das leis 1748 1 In tro d u çã o Os ensinamentos da fese madura de Montesquieu devem ser recolhidos principal mente em O espírito das leis como o autor mesmo indica em seu prefacio Suas demais obras devem portanto ser relacionadas a esta Todavia parece faltar um plano geral ou coerência a seus 31 livros fato a partir do qual se inferiu que Montesquieu não era um filósofo sistemático e não possuía ensinamentos maduros no sentído estrito O prefiicio no entanto contém uma reivindicação dara de que a obra como um todo tem uma oiganização e se baseia em um princípio bem elaborado Desta forma um esquema da obra e por conseguinte ensinamentos sistemáticos ou não existem ou existem de for ma velada Se formos obrados a decidir preferimos acreditar que a referência objetiva do escritor à existência de uma oiganização da obra é mais fidedigna do que a negação do leitor de que existe um plano geral Montesquieu quando menciona a necessidade de procurar pelo esquema da obra dá forte indicação de que este não se revela de imediato O espírito das leis é portanto uma obra obscura Um motivo importante para disfarçar opiniões não ortodoxas era a possibilidade de represálias por parte da Igreja e do Estado Porém o E lo fiinebre de dAlembert a Montesquieu escrito logo após a sua morte ex plica de modo mais amplo esta obscuridade De acordo com dAlembert Montesquieu buscava instruir tanto o sábio quanto o ignorante de tal forma a esconder dos ignorantes as importantes verdades cuja exposição direta poderia causar mal desnecessário O que parecia ser desordem e obscuridade eram instrumentos para este fim O próprio Mon tesquieu explica que seus princípios podem ser descobertos por um atento exame dos pormenores nossa tarefa portanto é tentar chegar ao todo e a seus princípios por meio das partes e detalhes Tem duplo objetivo a íilosoíia apresentada no prefilcio e no Livro I compreender a diversidade das leis e dos costumes humanos as leis nâo escritas e auxiliar o governo sábio em toda parte O primeiro é teórico o segundo prático e sua ligaçáo surge a partir da questão da lei em si Em sua femosa exposição de abertura Montesquieu define as leis cm seu sentido mais amplo como as relações necessárias derivadas da natureza das coisas As leis são as relações existem de modo objetivo e por necessidade Governam a ação de todas as coisas de Deus sobre o mundo dos corpos uns sobre os outros e assim por diante Esta legalidade universal é o pano de íimdo contra o qual deve ser vista a lei humana Contudo é ambíguo o termo lei cm decretos humanos implica um leUtdor a promulgação da lei para aqueles que devem obedecêla e apü cação da lei com as sanções dela decorrentes Governariam as leis portanto todas as coisas no universo tal e qual são capazes de governar os seres humanos A tese clássica em fevor da resposta afirmativa está na Summa Jheologica de S Tomás de Aquino A promulgação humana ou lei positiva era compreendida em termos de sua conexão com a lei eterna a lei natural e a lei revelada A lei como tal é um mandato da razão elaborada promulgada e aplicada para o bem comum pelo governante da comunida de Sua fonte última é a mente de Deus A definição inicial de lei por Montesquieu diveiçe da tradição tomista primeiro por não deixar espaço para o milagre e segundo por descrever a universalidade da neces sidade absoluta e cega ao contrário da governança racional que visa o bem A lei huma na como razão humana aplicada à governança do homem parece estar curiosamente fora de liar em tal mundo Conmdo o que Montesquieu se encarrega de demonstrar é precisamente até que ponto os assimtos humanos são influenciados por causas mecâni cas Ao abandonar tanto a teleologia divina como a natural e apontar também os limites da ação humana dotada de propósito intenta fundar uma ciência dos assuntos humanos consistente com a flísica cartesiana e newtoniana É difícil dizer com certeza que visão de Deus considerava compatível com este entendimento da lei e da natureza Antes que houvesse leis humanas havia o homem Para compreender a diversidade das leis humanas devemos visualizálas à medida que emergem cfe namreza do homem enquanto este e dentro de ambientes naturais e sociais específicos A variedade de am bientes reais será responsável pela variedade de assuntos humanos e de feto das histórias de todas as nações desde que conheçamos os prindpios gerais em questão e desde que levemos em conta os indivíduos excepcionais a habilidade política e o acaso A ciência humana exige esmdos históricos e estes esmdos são o elo entre a teoria e a prática A prática política ou habilidade política exige que cada sociedade seja compreendida e tratada em sua particularidade ou seja à luz de sua história Entretanto só se podem entender as particularidades históricas à luz das causas gerais próximas e últimas e por tanto um sólido conhecimento histórico exige teoria ou filosofia É desta forma que se conectam a lei como legislação e a lei como relações necessárias entre as coisas 4 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Ver citação nas pnas 515516 adiante 2 Montesquieu The Spirit t f the Laws ed Gonzse Tnic 2 v Paris Colleaion des Classiques Garnier nd Prefãce Como eram os homens antes de haver leis humanas e por que surgem tais leis De início os homens mal se distinguiam dos animais Sem linguagem e razão eram domi nados por medos físicos instintivos e pela necessidade de se preservar como indivíduos e em sAÜhi se associarem uns com os outros só mais tarde viriam a poder desejar de modo consciente permanecer em sociedade Porém a sociedade gera descontentamen to Grupos procuram o privilégio na posse de vantagens e incentivados ora por sua consciência de sua própria força entram em guerra uns contra os outros Da guerra vem a lei o direito ou o justo drotí A lei suie como um meio de suprimir a guerra seja dentro das sociedades ou entre elas Dentro das sociedades as relaçóes entre governantes e governados direito político e entre cidadão e cidadão direito civil são estabelecidas de tal íbrma a unir a comunidade devastada pela guerta A ideia do direito do justo e do obrigatório tem origem na ideia de lei e não a precede O homem por natureza ou em sua origem não tem consciência ou sentido do dever Este relato detiwido do segundo capítulo do Livro I omite referência às relaçóes anteriores de equidade atribuídas aos homens no primeiro capítulo Essas relaçóes ou deveres que precedem todas as leis positivas têm caráter peculiar Impóem um mínimo obedecer às leis positivas ser grato pelos benefícios recebidos permanecer dependente do ser que criou o homem e pagar o mal com o mesmo mal Na prática sua parcimônia assegura que sejam percebidas pelos homens em toda parte Todavia não estão incluídas na explanação da natureza e do comportamento primitivo do homem no Capítulo II Isto sugere que sua existência se deve a exigências sociais primitivas semelhantes às que engendram a lei Seja como for essas obrigações não chegam a prescrever a plenitude da justiça ou do bem humano pelos quais se devem guiar as sociedades Se o homem não principia conhecendo a justiça tampouco possui um íim ou perfeição naturais Montesquieu nega explicitamente que qualquer forma específica de governo ou conjunto de leis sejam necessários ou estejam mais de acordo com a natu reza A lei em geral é a razão humana na medida em que governa todos os povos da terra e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica esta razão humana As leis de cada nação devem estar relacionadas a sua forma de governo suas cir cunstâncias físicas por exemplo geografia clima e suas condições sociais por exem plo liberdade costumes comércio religião E todas as relações que a leis têm ou deveriam ter em conjunto constituem o seu espírito esprit Com esta passem a busca clássica pelo melhor estado a lei natural tomis ta e a lei natural lockiana são rejeitadas como guias para a ordenação da sociedade política Emerge um relativismo absoluto como conclusão do livro introdutório de Montesquieu Contudo não se trata de subjetivismo Montesquieu concorda que objetivamente um dado conjunto de leis pode ser não apenas ser imiinado melhor ou pior para um determinado povo Sustenta no entanto que há em última análise M o n t e s q u ie u 4 6 1 Ibid I iii trans D L uma variedade irredutível de normas bem como de reais configurações políticas Essas normas em suma não são elas próprias passíveis de julgamento em termos do que é o melhor ou o pior absoluto do ponto de vista político Daí se seguiria que o estudo da história é mais importante para a descoberta de normas específicas que o estudo da filosofia A história porém como o estudo dos fetos e causas não pode por si só pro duzir quaisquer normas Como então se produzem normas específicas válidas O espírito das leis é uma análise das coisas diferentes às quais as leis podem rela cionarse Essas coisas examinadas uma após a outra sem ordem aparente ocupam os Livros II até XXV da obra enquanto os Livros XXVI e XXIX retornam a um nível de generalidade semelhante ao do Livro I Os Livros XXVII XXVIII XXX e XXXI no entanto parecem ser adjuntos ao corpo principal do trabalho e não partes intrínsecas a ele e os três últimos servem para esclarecer a constituição da França moderna por desnudar suas origens históricas 2 F orm as d e G o v e rn o Montesquieu dedicase primeiro a um exame das estruturas políticas ou seja dos meios para reprimir os conflitos sociais Todo govemo tem ao mesmo tempo uma natureza e um princípio aos quais suas leis devemse relacionar Desvendamos sua natureza quando averiguamos quem governa e como as paixões que o impulsionam são o seu princípio As principais espécies de governo são a república democrática ou aristocrática a monarquia e o despotismo Seus assuntos nacionais e em seguida seus assuntos externos constituem o assunto dos Livros II a X Antes de discutir detalhes são necessárias várias observações gerais Notamos primeiro que Montesquieu vai muito além de simplesmente fornecer informações so bre várias as formas de governo que tenham de feto existido Afirma que seu objetivo principal é reconstruir as leis instituições e as práticas por meio das quais cada forma é aperfeiçoada Por si mesma esta tentativa pode ser coerente com o relativismo que Montesquieu se propõe a abraçar Entretanto também compara as várias formas entre si de modo a indicar seu mérito comparativo máximo Seria isso possível sem algum padrão absoluto do bem e do mal político Vamos começar com a república democrática Em uma democracia devidamente constituída o povo soberano delegará a autoridade para realizar o que ele próprio não pode fezer Em relações internacionais e na preparação de legislação precisam ser guia dos por um conselho ou senado e só podem confiar neles se os escolherem Precisam de magistrados mas são admiráveis em detectar o valor dos indivíduos para este fim A legislação em si no entanto será feita diretamente pelo povo A democracia não exige que todos os cidadãos sejam elegíveis para cargos públicos mas que todos participem da seleção dos ocupantes desses cargos Senadores e magistra dos civis inferiores devem ser escolhidos por sorteio não por voto e dentre voluntários selecionados entre aqueles que não são necessitados os pobres não são eleveis Altos magistrados militares e civis serão eleitos por todos noAimente entre os que estão em 4 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y melhor situação Por fim os membros dos tribunais populares são escolhidos por sorteio entre todos os voluntários ricos ou pobres Assim a democracia não é o simples governo da maioria nem o simples governo por sorteio Tratase de luna mistura Na verdade os pobres são obviamente menos priviliados e os ricos mais privilegiados do que simples números admitiriam íàto este reforçado pela implicação de que os ocupantes de cargos públicos não teriam salário e a participação em assembléias populares não seria obrigatória A democracia necessita do conservadorismo bem como o autossustento e lazer dos ricos No entanto também necessita do mérito cuja aquisição é auxiliada pelo uso das técnicas da eleição e de um exame dos candidatos O princípio da democracia é a virtude Onde todos participam da elaboração das leis as quais devem eles mesmos obedecer e da escolha de seus próprios governantes dentre seu meio é necessário um grau muito elevado de espírito público ou devoção ao bem comum Virtude em suma é patriotismo o amor da república e das leis e dela derivam as virtudes específicas do cidadão a probidade a temperança a coragem e a ambição patriótica Para preservar a virtude devem ser evitados os extremos de riqueza e pobreza através da criação de mínimos bem como de máximos legais para a posse de bens A virtude necessita de uma quase igualdade e mais do que isso de um nível relativamente baixo de riqueza em geral assAUii írugalidade e impedido o luxo Esta condição não só deve existir como deve ser amada Outros métodos para manter a virtude são um senado censório composto pelos mais velhos eleito por toda a vida para preservar a pureza dos costumes fortes poderes paternos leis suntuárias a acusação pú blica de esposas infiéis e em geral a vigilância mútua em todos os pontos de conduta A democracia sobrevive apenas em uma pequena cidadeestado cuja coesão seme lhante à da íámília engendra uma preíèrência contínua pelo bem público em detrimento do bem privado Suas assembléias públicas não são representativas Porém não é coerente com um clero independente ou seja um estado dentro do estado e provavelmente só é coerente com a religião e moralidade psgás A Atenas de Sólon Esparta Cartago e a república romana tardia são todas utilizadas como exemplos de democracia Nenhuma nação cristã nem tampouco não pagá ou não antiga é utilizada da mesma íbrma A característica mais atraente da democracia é a grandeza moral de seus cida dãos A democracia também garante a seus cidadãos um alto grau de liberdade e de segurança de acordo com a lei Por outro lado deve forçosamente estabelecer limites para sua grandeza e liberdade Sua pobreza sua pequenez sua restrição de privacidade sua dependência de inquestionável devoção do público e a vigilância mútua dos seus cidadãos impede um desenvolvimento mais completo dos talentos humanos em particular na área da filosofia e das belas artes Democracia signiíica mediocridade intelectual e artística Montesquieu admite uma distinção entre repúblicas produtivas e comerciais como Atenas e repúblicas militares como Esparta A primeira escolha de democracia parece estar em algum ponto entre as duas o corpo de cidadãos deve M o n t e s q u ie u 4 6 3 ser composto de agricultores que tanto trabalham como lutam No entanto é possível uma democracia baseada no espírito comercial como seu princípio desde que suas leis impeçam que esse equilíbrio econômico seja destruído pela riqueza excessiva Montes quieu dá a impressão no entanto de ser muito difícil sustentar a saúde de uma demo cracia comercial O brilho da democracia de Péricles distinta da democracia de Sólon em Atenas baseavase em extremos de riqueza de corrupção moral e de liberdade ou seja na decadência da política e não em sua saúde A república aristocrática é um regime no qual apenas uma parte do povo é sobe rano como melhor exemplificam o início da república romana e a Veneza moderna A aristocracia depende da desimialdade política e econômica entre os nobres soberanos e o povo não participante E raro mas não impossível que os nobres identifiquem seus próprios interesses com os interesses do povo desta forma mais se aproximando da virtude da democracia Contudo o princípio mais provável da aristocracia é um espírito de moderação dos nobres que os impede de buscar desmedida superioridade uns sobre os outros ou sobre o povo É difícil assjuar leis e instituições propícias para tal moderação Em geral quanto maior o número de nobres e menor e mais pobre o contingente dos desprovidos de direitos políticos mais saudável a aristocracia Desta forma a democracia pode ser considerada a perfeição da aristocracia É caracterizada por maiores cuidados e precauções para com o bem comum do que a aristocracia Seus membros sáo em média mais virtuosos mais livres e mais seguros ou avaliandoa da perspectiva oposta menos humilhados e explorados Devemos notar que Montesquieu altera radicalmente os padrões e nomes usados na tradicional classificação aristotélica dos regimes Aristóteles dassificouos em termos dos detentores da autoridade soberana e do objetivo de seu gpverno Os bons rtçimes são governados em prol do bem comum os maus para a vantagem dos próprios governantes Assim é feiu uma dara distinção entre oligarquia e aristocracia sendo ambas o govemo pdos poucos Montesquieu distiie apenas dois tipos e não quatro de república que dependem de o governo estar nas mãos da totalidade ou de parte das pessoas Cada tipo é aperfdçoado de determinada maneira e os casos reais de ambos se assemelhariam mais ou menos a esta perfeição Entretanto tal como em Maquiavd a distinção clara entre regimes motivados pela virmde ou pela violência deixa de ser primordial Desse modo Montesquieu utiliza o termo aristocracia para regimes que Aristóteles teria chamado de oligarquias Também denomina democracia o r m e que Aristóteles teria pro vavelmente chamado de comunidade política e até mesmo em certos casos chama de democracia regimes que Aristóteles considerava aristocracias mistas por exemplo Cartago Podese concluir que a classificação revista de Montesquieu tem dois efeitos primeiro lança dúvidas sobre a adequação de classificar os regimes de acordo com a bondade dos motivos de seus governantes segundo acentua os méritos dos regimes po pulares ou do elemento popular em regimes mistos dessa forma ensinando que melhor se alcança o bem comum por meio da ampla participação popular no governo Podemos ser levados a questionar isso pelos grandes elogios que íàz Montesquieu das instituições singulares da República de Platão no Livro IV mas a conseqüência dessa concessão não é uma adesão à preferência clássica pela aristocracia 4 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O govemo republicano tem o seu lugar natural em uma sociedade pequena e a expansão no tamanho poder e riqueza de uma república leva necessariamente ao colap so de seu espírito e instituições Esta é a lição que Montesquieu tirou acima de tudo de seu estudo de Roma em oposição ao fato de Maquiavel fevorecer o imperialismo romano nos Discursos Entretanto o tamanho reduzido que exigem as repúblicas repre senta um problema crucial para a defesa A solução para este problema em um sistema republicano é a confederação em que várias repúblicas se reúnem para formar um todo defensivo maior A moderna república holandesa e a antiga confederação da Lícia são exemplos desse dispositivo Montesquieu parece ter encarado a confederação como uma associação de sociedades não diretamente dos indivíduos e se refere à possibili dade de dissolução da confederação enquanto perduram suas sociedades constituintes Entretanto favorece também explicitamente como no caso da Lícia uma associa ção altamente centralizada em lugar de uma associação frouxa dos estados membros Na monarquia uma pessoa governa de acordo com leis fixas e estabelecidas Para isso é necessário que haja poderes intermediários entre o monarca e o povo donde a nobreza a Igreja e as cidades Também é preciso que haja um repositório indepen dente ou guardião das leis tais como os parlements franceses Juntas essas forças por seus privilégios e independência são capazes de conter as ações tanto do monarca como do povo No entanto quando o monarca combina os poderes legislativo e exe cutivo em sua própria pessoa como na França o governo tende para o despotismo Com cautela porém de modo claro Montesquieu fornece provas de considerar uma monarquia equilibrada como aquela em que algo semelhante ao antigo États généraux Estados Gerais francês compartilhasse o poder legislativo com o monarca A menos que a monarquia possua tal estrumra não é um regime estável Montes quieu afirma que o mundo antigo não tinha uma concepção adequada da monarquia Esta concepção surgiu da conquista germânica de Roma seus dois principais com ponentes sendo uma nobreza independente hereditária e privilegiada e um governo representativo O mais próximo disso a que chegaram os antigos foi a monarquia da época heróica descrita por Aristóteles mas ali o povo detinha o poder legislativo dire to e era capaz em última instância de retirar os poderes do rei Montesquieu discorda abertamente de Aristóteles no que diz respeito à classificação das monarquias Rejeita o princípio clássico de rotular os regimes com base nas intenções ou virtudes e vícios dos governantes Para ter uma boa monarquia não basta ter um bom monarca O governo só possui uma natureza ou constituição se sua estrutura não depender de uma circunstância tão pouco confiável quanto os dons morais naturais ou cultivados de um indivíduo importante No entanto o próprio Montesquieu admite mais tarde que o caráter moral de um monarca é tão vital para a liberdade de seu país quanto suas leis O que regula a monarquia é a honra não a virtude Montesquieu é muito severo na sua crítica moral das cortes e dos principais homens das monarquias em toda parte M o n t e s q u ie u 4 6 5 Ibid XI viii Fala de seu caráter miserável e de sua insignificância se disseminarem por todos os níveis da sociedade Todavia o objeto mais procurado em monarquias a honra ou superioridade de condição e pessoa serve como substituto para os incentivos da ação virtuosa A ambição pela distinção por parte de todas as classes e indivíduos provoca uma conduta que redunda em beneficio público ao mesmo tempo em que visa so mente o bem privado ou egoísta Além disso o código de honra estabelece limites não oficiais para a arbitrariedade tanto do rei como dos súditos A busca pela honra criticada por Montesquieu não pode simplesmente ser identi ficada com a atividade atribuída por Aristóteles ao homem m iânim o ou orgulhoso O sistema de costumes e hábitos da monarquia é a honra vulgarizada ou a honra que busca ser reconhecida por muitos que depende muito mais do reconhecimento por outros que sucumbe em vez de resistir aos vícios por exemplo a valentia que sáo popularmente tomados como sinais de ousadia Por outro lado Montesquieu parece menos disposto do que Aristóteles a aceitar o horizonte mental do homem imnâni mo em si na medida em que esse horizonte é limitado principalmente pela autoestí ma e encoraja a ação menos por amor do bem público do que pela autoestima e pelo desejo das mais altas honrarias Nas monarquias as leis que apoiam a honra devem conceder privilégios hereditá rios aos indivíduos e propriedades da nobreza O luxo deve ser permitido como forma de sustentar os pobres e favorecido o comércio por parte dos não nobres A busca das guerras de ambição e conquista é mais inerente à monarquia do que à república e por sua natureza a monarquia exige um território maior Contudo a expansão imoderada eníniquece o poder da honra e incentiva o poder despótico De maneira geral a mo narquia é menos moral menos justa e menos estável que a democracia É preciso que assegure vastas desigualdades hereditárias No entanto é compatível com uma estrutu ra de leis escritas e não escritas chegando mesmo a exigila para a proteção das pessoas e das propriedades em suas próprias desigualdades No que se refere à própria França Montesquieu jamais aconselha que se desvie seja para a virtude republicana ou para a liberdade inglesa Todavia As cartas persas revelam que Montesquieu tem consciência de que o absolutismo real a corrupção da aristocracia e a riqueza da classe média são responsáveis pela decadência da monarquia Existe despotismo onde um homem governa como deseja sem respaldo da lei Ao descrever este tipo de governo Montesquieu em geral utiliza exemplos dos impérios do Oriente Próximo e do sul asiático tal como em As cartas persas foi conveniente falar dos despotismos europeus teológicos ou seculares por meio de comparações explícitas ou implícitas com os do oriente O despotismo emprega um administrador chefe político ou vizir que governa enquanto o déspota comete excessos Seu princí pio é o medo despertado pelo exercício da força bruta em particular sobre os grandes que caso contrário oprimiriam as massas Desta forma o despotismo desempenha uma determinada íimção pública mas também depende de seus súditos não serem 4 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibid III vi dotados de virtude honra e conhecimento pois estes sâo perigosos para o rime É o mais desumano infestado de vícios e estúpido dos governos todavia prevalece entre a humanidade O governo moderado exige condições especiais e habilidades especiais e portanto só é alcançado com dificuldade Na Ásia em particular o clima e a geografia se combinam para tomar o despotismo inevitável Este se desenvolve de maneira natural entre uma população numerosa porém tímida que ocupa um terri tório imenso Desta forma um só homem que governa pela força pode manter o país unido e evitar o único mal maior a anarquia Além disso nesses casos o despotismo é intrinsecamente incapaz de aprimoramento essencial sua própria existência depende da utilização permanente da violência cruel e sanguinária Dentre as quatro formas de governo duas republicanas fica evidente que Mon tesquieu considera a democracia como a melhor e o despotismo como a pior É mais difícil decidir exatamente por quê Para ilustrar a democracia é mais elogiada pela virtude dos seus cidadãos que pela liberdade e segurança que lhes proporciona Toda via esta virtude é denominada paixão ou sentimento algo que cada cidadão sente por ter sido criado dentro dessa comunidade Isto significa que a virtude fimdamentada na razão ou entendimento em vez de na paixão a qual podemos denominar virtude racional não tem status quer na democracia ou nas formas políticas inferiores a ela Em suma toda virtude que possui significado político permanece no nível de pakão e preconceito Porém se a virtude democrática não estiver em um nível muito mais elevado que o desejo de liberdade e segurança deve o filósofo político valorizar a de mocracia primordialmente por sua virtude Há outra solução para a mesma dificuldade Examinada do ponto de vista po lítico é valiosa a paixão da virtude porque contribui para uma democracia saudável Sua fimção é portanto proveitosa para algo além de si mesma que é o objeto de íato desejado Uma democracia pode ser comparada a uma fiunília em que algo como um egoísmo coletivo vitaliza seus membros que identificam seu próprio bem com o bem comum Essa ideia é coerente com a visão das necessidades humanas apresentadas no Livro I Neste a virtude nunca é apresentada como uma necessidade natural da alma desejável por si mesma da mesma forma que a saúde do corpo é desejável A sociedade se origina e permanece a serviço das necessidades corporais tais como a autopreserva ção a surança econômica e a satisfiição sexual Se assim for a virtude bem como a liberdade e a igualdade da democracia teria de ser valorizada como o recurso político que melhor satisíàz tais necessidades Mais tarde voltaremos a examinar a relação en tre a vida política e os bens da alma 3 L ibe r d a d e Po lític a Até este ponto da análise não foi introduzida qualquer forma de governo que tivesse a liberdade como princípio A situação é remediada nos Livros XI a XIII e no último capítulo do Livro XDC A Inglaterra moderna é o único país cujas leis têm a M o n t e s q u ie u 4 6 7 liberdade como seu intuito direto A liberdade do ponto de vista político é o direito de fazer o que as leis permitem Possui dois aspectos uma constituição equilibrada e a percepção de segurança jurídica do cidadão com a primeira contribuindo para a última Seu primeiro requisito é a separação dos três poderes do governo executivo legislativo e judiciário de tal modo que fiquem em mãos diferentes Se quaisquer dois ou todos estiverem combinados nas mesmas mãos o poder estará por demais concentrado e será pouco controlado Montesquieu não divide os poderes do governo exatamente da mesma forma que Locke Locke distinguira a fimção de executar a política externa e a denominara poder federativo e incluíra simultaneamente a execução das leis nacionais e o julgamento dos infratores da lei no título poder executivo O que Montesquieu faz é juntar em um só poder a execução das leis nacionais e da política externa ao mesmo tempo em que concede independência ao poder judicial Seu propósito em suma é garantir ao cidadão uma segurança ainda maior do que era possível dentro do sistema de Locke É preciso distinguir cuidadosamente entre a análise de Montesquieu e a análise tradicional ou aristotélica dos poderes do governo Aristóteles fala das fiinçóes deli berativa dos magistrados e judiciais A primeira tem a ver com a deliberação acerca de assuntos comuns ou dos assuntos comuns mais importantes como fezer a guerra e a paz e de política externa em geral legislação julgamento dos crimes mais graves e nomeação de magistrados A dos magistrados é ligado à autoridade de emitir ins truções e ordens em áreas mais limitadas tal como estratégia ou finanças O judicial tem a ver com o julgamento de delitos e a conciliação de disputas que náo sejam as mais graves Isso deixa claro que Aristóteles incluiu na esfera deliberativa funções que Montesquieu teria distribuído entre todos os seus três poderes Além disso Aristóteles pensa na fimção dos ministrados em termos de várias magistraturas independentes enquanto Montesquieu em essência concebe o poder executivo como uma unidade Acima de tudo Aristóteles não toma como um princípio a distribuição dos três pode res entre diferentes homens muito pelo contrário como mostra sua função delibera tiva A maior liberdade seja na forma procurada por Locke ou Montesquieu não lhe pareciam coerentes com as necessidades de qualquer regime saudável muito menos com as necessidades do regime dedicado à vida boa Em sua relação com a constituição a liberdade política exige náo só que os três poderes sejam separados mas que se constituam de maneira específica O poder judi cial deve ser confiado a júris ad hoc compostos de pares do réu sendo os julgamentos determinados de forma táo precisa quanto possível pela lei escrita O poder legisla tivo deve ser dividido Sua parte principal deve ser atribuída a representantes devida mente eleitos de todo o povo e o direito ao voto só será negado àqueles cuja situaçáo é táo abjeta que náo se acredita que tenham vontade própria Os ilustres pelo nasci mento riqueza ou honras devem constituir um conjunto de nobres que protege seus privilégios hereditários por meio de sua atuaçáo como a segunda metade da legislatura O executivo deve ser um monarca cujo controle sobre a legislatura consistiria de um poder de veto e cujos ministros por sua vez poderiam ser examinados e punidos pela legislatura embora de acordo com a lei ele próprio náo possa ser removido 4 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Montesquieu considera a Inglaterra assim descrita nâo apenas como mais livre porém mais justa e em alguns aspectos mais sábia que as repúblicas da Antiguidade ou que a democracia que descreve A primeira vantagem da Inglaterra é a clara sepa ração entre os poderes e o mecanismo de controle incorporado nos ramos legislativo e executivo A segunda é a representação da opinião pública por meio de um ramo do poder legislativo que assim está livre para discutir assuntos legislativos e para se abster de decisões executivas de uma forma impossível para a cidadeestado da Anti guidade Além disso o poder judicial é menos ameaçador e mais justo Finalmente o executivo único embora não comparável em sabedoria a um corpo como o senado romano deterá no entanto uma grande quantidade de poder concentrado e motivos suficientes para exercer com vigor esse poder Não se pode esperar que um governo constitucional desse tipo funcione sem uma quantidade considerável de atrito inter no de modo que algum sacrifício da qualidade e tranqüilidade no funcionamento do governo é o custo necessário da liberdade Montesquieu faz a alegação ambígua de que essa liberdade se firma nas leis da Inglaterra quer esta liberdade seja ou não desfrutada de feto pelo povo inglês Apesar disso Montesquieu se atém de forma evidente à lógica da liberdade tal como a enten de ao contrário da realidade da Inglaterra em meados do século XVIII O feto de que não chamou atenção para o muito limitado e irregular sufrágio do povo e para a dis tribuição muito irregular dos assentos na Câmara dos Comuns devese sem dúvida a ter considerado tais realidades deficientes do ponto de vista da liberdade Da mesma maneira o feto de terse recusado a descrever a tendência para a íusão dos poderes exe cutivo e legislativo que mais tarde ficou conhecida como governo de gabinete pode muito bem ser explicado por sua crença de que eram prejudiciais à liberdade A principal vantagem da Inglaterra sobre a mais livre das nações da Antiguidade a República Romana é ter enfraquecido o poder direto e maciço do povo e concedido tanto a nobres e plebeus uma quase inexpugnável autoridade mutuamente limitante Contudo ainda não se comprovaram as principais distinções entre o que significava a liberdade para a Inglaterra e o que significava para as repúblicas da Antiguidade Pois não basta possuir uma constituição adequada também são necessárias leis adequadas para que o cidadão usufrua o máximo em termos de segurança jurídica Aqui são de importância crucial as leis penais as quais têm uma função semelhante à da Declara ção de Direitos na Constituição dos Estados Unidos Montesquieu distingue quatro tipos de crimes contra a religião contra a moral contra a tranqüilidade e contra a segurança O resultado líquido de sua análise é tornar impossível em um estado livre processar o sacrilégio por meios legais ou punir a torpeza moral exceto em questões sexuais Também são definidas limitações para a perigosa acusação de traição e os es critos só devem ser julgados criminosos quando abrem caminho para atos de traição Finalmente os processos e sanções legais devem ser concebidos de forma a garantir um tratamento justo na medida do possível Começa a revelarse agora na sua verdadeira dimensão a distância que separa a república fundamentada na virtude e a Inglaterra moderna Possuem uma semelhança M o n t e s q u ie u 4 6 9 básica ambas são repúblicas feto este que o passado monárquico da Inglaterra tende a mascarar Exemplificam a avaliação de Montesquieu de que o melhor dos governos terá uma sólida base popular que garantirá sua preocupação com o bem comum Po rém a Inglaterra encarna o individualismo cada cidadão tendo liberdade para viver como bem lhe aprouver A religião é um assunto particular do indivíduo assim tam bém é a escolha de seu modo de vida A investigação filosófica tem a privacidade de que necessita as artes e as ciências tém liberdade de expressão A Inglaterra afestase da conformidade do ror e da curiosidade da virtude democrática Longe de ser uma exigência da Inglaterra moderna a virtude chega a lhe ser perigosa É preciso ir um passo além na análise da Inglaterra Sua liberdade não é apenas de ações e pensamentos mas de paixões Ser livre é principalmente atender aos próprios anseios pelo dinheiro prestígio e poder A Inglaterra é capitalista foram removidos os limites morais sobre a interminável aquisição competitiva Seu paralelo no campo da ambição é a política partidária A Inglaterra é a moderna Atenas uma república comer cial ao invés de uma república militar ou agrícola Auxiliado por seu poder naval seu imperialismo é comercial e não militar Porém como se mantém o espírito do comércio sem que se destrua pelo luxo excessivo e pela devassidão Elevados impostos mantêm os homens trabalhando e despesas frívolas são presumidas condenáveis embora não fique daro se por motivos religiosos ou de negócios Além disso a extrema intensidade da concorrência e da constante abertura de novas opormnidades econômicas fezem da devassidão a exceção e não a regra Nem podem os dissolutos ter ainda a influência de que desimtaram dentro dos limites estreitos da ddadeestado Em suma a avareza e a ambição constimem os fimdamentos morais do sistema inglês não seu inimigo mortal O interesse próprio de cada homem sustenta seu amor pda liberdade e seu patriotismo Na Inglaterra a liberdade dos muitos cheios de paixão garante a liberdade dos poucos ponderados Montesquieu não nega que os vícios dos ingleses merecem a amar ga sátira de um Juvenal mas ele próprio não fez tal sátira Isso ocorre porque o sistema inglês obtém benefícios para todos a partir dos vícios que permite e incentiva A máxi ma segurança jurídica a participação de todos no governo e a atividade no comércio produzem um cidadão orgulhoso de sua independência esperançoso de melhorar sua condição mas totalmente cego ao feto de que é escravo das paixões vulgares A Ingla terra é uma sociedade secularizada interessada em bens terrenos Não precisa de uma religião ou virtude democrática em comum para fornecer uma argamassa para a união da comunidade e portanto pode permitir mais privacidade e liberdade de expressão que a própria Atenas da Antiguidade Com um original sistema constitucional por meio do qual o esforço em prol do interesse próprio é moldado de forma perene a Inglaterra descobriu como adiar quase indefinidamente o colapso interno 4 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibid XDC xxvii início 4 N atureza Só é possível avaliar a plena relevância da Inglaterra e do comércio para o pensa mento de Montesquieu quando se compreende a sua concepção do homem natural ou primitivo e do ambiente natural em que existiu de início O segundo capítulo do Li vro I fez com que prevíssemos um tratamento histórico do desenvolvimento humano ao deixar o estado de natureza Esta abordagem também aparece nos trechos iniciais do terceiro capítulo contudo em seguida nossa atenção é abruptamente transferida daquilo que é natural ao homem no sentido de original para o que é natural no sentido de melhor Em outras palavras começamos a pensar nas coisas humanas avançadas e posteriores Essa mudança de assunto prossegue nos Livros II a XIII onde são discutidas formas aperfeiçoadas de governo Os livros XIV a XVIII contudo des tinamse a satisfazer à expecutiva original Seu assunto é o ambiente e os primórdios naturais do homem cuja importância pode explicar a localização central desses cinco livros na obra como um todo Os temas tratados são primeiro os efeitos do clima sobre o corpo e a alma e sua relação com diversas formas de escravidão em segundo lugar a relação entre a geografia e a sociedade humana primitiva Material recolhido a partir de referências às condições primitivas em outros livros ajudará a completar o quadro daquilo que o homem era e é por natureza Montesquieu exibe toda a força de seu naturalismo ateleológico no primeiro livro sobre o clima A temperatura por influenciar o corpo humano influencia a mente e as paixões Em climas quentes os homens são mais sensíveis aos prazeres e às dotes e por tanto mais sensuais mais tímidos mais preguiçosos Um clima frio tem efeitos opostos enquanto a zona temperada é indeterminada Assim são despertadas tendências e ne cessidades diferentes diferentes possibilidades morais enquanto as virtudes em si por exemplo a corsem a temperança a justiça variam radicalmente com o clima em sua viabilidade e desejabilidade Em geral o problema do legislador é assegurar que sejam atendidas pelo menos as condições mínimas para a sociedade Montesquieu não indaga que condições climáticas produzem os melhores seres humanos Tal como indicam os títulos dos livros relevantes chega a salientar a conexão entre o clima e a escravidão hu mana mas não entre este e a liberdade humana O clima estabelece limites naturais para a expansão de um governo livre moderado ou não despótico ou o que é mais comum o homem é súdito e não senhor do dima É estranho portanto que Montesquieu dê tão pouca atenção no Livro XIV aos climas temperados e seus efeitos pois não há uma ligação óbvia entre essas áreas de indeterminação e a civilização a menos que deseje en fetizar a natureza rara e acidental daquilo que sustenta as coisas humanas mais elevadas Dadas as variações causadas pelo clima como teria sido a primeira sociedade humana Montesquieu não fala abertamente sobre as relações femiliares originais mas sugere que abrigariam alguns dos segredos mais profundos da humanidade Com toda a probabilidade a família não existia originalmente como unidade estável mas se de senvolveu a partir da situação de promiscuidade Já se haviam desenvolvido proibições ao incesto proporcionando assim uma base para a paz e cuidado mútuo O homem M o n t e s q u ie u 4 7 1 governava a família com sua força superior e a mulher permanecia em uma posição subordinada e até mesmo servil Nessas condições era muito diíundida a poligamia que é uma necessidade permanente apenas nos climas quentes bem como as institui ções de serralho ou harém que a preservam As sociedades primitivas ou sâo selvíens ou são bárbaras o que dependerá de os homens como caçadores permanecerem em tribos isoladas ou como pastores serem capazes de se unir em uma horda Sua organização frouxa permite grande liberdade a cada homem e a ausência de dinheiro propicia uma quase igualdade de posses e portanto pouca exploração A autoridade política está nas mãos do mais forte dos sá bios e dos velhos As guerras são duras e a captura de escravos uma prática normal A punição do crime por sua vez é brutal e cruel Finalmente a religião e muitas vezes os sacerdotes já exerce uma forte influência Esta imitem do homem primitivo pode ajudar a esclarecer o verdadeiro signifi cado da lei natural A lei natural consiste naqueles direitos e deveres de indivíduos ou nações que deveriam ser respeitados em toda parte devido ao bem em que resultam Neste sentido a lei natural é natural à humanidade Mas náo é natural no sentido de ser originalmente conhecida pelos homens ou pretendida originalmente por motivos morais A lei natural tem dois polos por um lado o direito à autopreservação e à liber dade dos indivíduos e das nações por outro as obrigações mútuas que unem os mem bros da família Somente estes deveriam ser universais entre os homens Na verdade os vários artigos da lei natural diferem quanto ao grau em que sáo de fato respeitados e também quanto ao momento de sua origem na história humana Em dois aspectos a versão da lei natural de Montesquieu foi muito além da prá tica até mesmo das nações civilizadas A escravidão privada segundo ele só é legítima em um caso o de uma escravidão moderada e contratual dentro de um despotismo político Quanto à necessidade da escravidão implacável Montesquieu favorece a vi são de que é possível obter mão de obra gratuita para realizar até mesmo a pior das tarefas mesmo nos climas mais tórridos vrgumenta contra Aristóteles que a escra vidão é ruim tanto para senhores como para escravos e que por natureza homem al gum nasceu para ser escravo Recusase também a aceitar a reivindicação dos juristas romanos de que a captura na guerra e o endividamento são motivos suficientes para a escravização Ao mesmo tempo no entanto admite que todos os homens têm um proílindo desejo de desfrutar do trabalho servil de outros homens Montesquieu parece ter pensado que os esforços do cristianismo para acabar com a escravidão na Europa poderiam difiindirse com a ajuda do Iluminismo cosmopolita e um apelo às simpatias humanas É menos otimista quanto à possibilidade de acabar com a guerra mesmo dentro da Europa Apesar da moderna atenuação do combate em si e da maior condescendência nos acordos de paz náo se pode dizer que a tendên cia europeia à paz seja maior do que antes e a Europa continua armada até os dentes Montesquieu asseguranos de que a única guerra justa é a de autodefesa e o único tra 472 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 8 7 XVIII xiii XXVI xiv XVI ii tamento justo de um território conquistado é aquele que visa preservar a conquista ao invés de destruir ou oprimir os vencidos Todavia é forçado a admitir que as relações internacionais sempre foram e sempre serão conduzidas com base no autointeresse e na força ao contrário de acordos ou preocupação com direitos de outros Nações dignas negligenciam este fiito a seu próprio risco Parece necessária a conclusão de que será mais difícil convencer a humanidade a desistir da guerra do que da escravidão Esses exemplos também mostram que a lei natural enquanto ditames da razão humana para o bem até certo ponto demandam uma restrição das tendências ao amorpróprio que são namrais ao homem É provável que as leis naturais observadas em toda parte por exemplo em relação à fiunília não se tenham originado de in tenções racionais e justas mas de algumas das paixões geradas pelo amorpróprio As leis namrais menos cumpridas talvez constituam ditames da razão que não conseguem difiindirse precisamente porque sua base nas paixões humanas não tem profundidade suficiente Parece portanto que os dons naturais ou originais do homem não o prepa ram diretamente para se tornar um ser moral e reflexivo Maquiavel e Bacon suscitaram a dúvida quanto ao fato de em tempos moder nos as necessidades naturais e sociais e o acaso definirem ou não limites para o que o conhecimento a vontade e o poder humanos poderiam realizar Locke sierira que os homens poderiam estabelecer em toda parte sociedades livres segundo o modelo inglês o que tinham o direito de fàzer ou seja substituir antigos regimes de todo tipo pelo novo individualismo era passível de realização Montesquieu compartilha dessa admiração pela liberdade moderna e ainda vai além de Locke na concepção de salvaguardas para ele Contudo o modelo inglês é absolutamente impossível na Ásia e muito improvável mesmo na maior parte da Europa A Ásia é o lar natural de todo tipo de escravidão privada marital e política O fato de que a Ásia carece de uma zona temperada e porque o caráter de suas barreiras naturais não a predispõe a formar estados de porte médio tem fàvorecido despotismos no sul conquistas despóticas do sul pelo norte e virtual imobilidade em seu modo de vida e costumes ao longo dos séculos As oportunidades para o governo moderado são muito maiores na Europa até então de longe a área mais interessante do mun do Contudo Montesquieu não recomenda revoluções contra as antigas monarquias europeias em uma tentativa de imitar a liberdade inglesa Essa liberdade é peculiar por um lado parece depender de coisas fàcilmente sujeitas à imitação por exemplo a emancipação das paixões egoístas e o estabelecimento de um mecanismo constitucio nal todavia a posição insular da Inglaterra a sua história particular e seu clima têm uma especial ligação com suas leis Mesmo neste caso então Montesquieu tenta resta belecer para a posição moderna um reconhecimento prudente da necessidade de uma variedade de ordens políticas Coloca limites para o que o esforço humano consciente pode alcançar mas também deve ser dito que esses limites vão muito além do que os clássicos acreditavam necessário ou sábio M o n t e s q u ie u 473 óXiiiiiXXVIxx 5 C o m ér c io Agora temos uma concepção dos deficientes primórdios naturais do homem e do ponto mais elevado que pode atingir o regime da moderna liberdade Os dois são ligados pelo desenvolvimento do comércio Montesquieu foi o primeiro grande filó sofo político a considerar o comércio digno de extenso tratamento empírico em sua obra principal Dos vários elementos que participam do espírito das leis é o único que conta com um livro independente dedicado à sua história ou revoluções Em sua análise das sociedades primitivas Montesquieu entende a introdução da Ericultura como a causa da introdução do dinheiro Há uma interação constante entre as necessidades do homem e seu conhecimento novas necessidades incentivam a busca de novos conhecimentos novos conhecimentos incentivam o crescimento de novas necessidades A arte da agricultura implica a existência prévia de inúmeras habilidades especializadas e aumenta a necessidade de algo material para servir como meio de troca e padrão de valor o dinheiro Uma vez inventada a forma metálica do dinheiro são vas tamente ampliadas as oportunidades para aumentar as desigualdades entre os homens No entanto as trocas internas ainda não constituem o comércio internacional e além da conquista a principal fonte da multiplicação da riqueza de um povo avaliada em termos de variedade e abundância de bens de consumo é o comércio internacional O comércio propicia a riqueza a riqueza leva ao luxo o luxo à perfeição nas artes Em sua história do comércio Montesquieu menciona a poesia de Homero e chama aten çáo para a perfeição do gosto e das artes plásticas nas cidades da Grécia antiga Não há qualquer menção à poesia no livro sobre as sociedades primitivas Montesquieu denomina comércio à comunicação entre os povos De duas ma neiras esta comunicação se relaciona com a civilização do homem ou seja com a re dução da barbárie A primeira é através da riqueza e das artes a segunda através da filosofia A tribo ou nação que não consegue participar do comércio é caracterizada por superstição preconceito e ignorância inatos bem como por costumes bárbaros Assim a condição original ou natural das sociedades humanas é gravemente imperfeita O comércio lança as bases para que se escape desse provincianismo Favorece a comparação entre diferentes formas de vida Faz possível questionar crenças ancestrais Permite que os homens descubram mais a respeito da natureza Em suma torna possível a filosofia a busca coerente ou consciente do conhecimento da natureza e do homem É curioso que Montesquieu não aponte para a filosofia da Grécia antiga Ainda mais surpreendente é sua incapacidade de chamar a atenção para a grande revolução na filosofia natural que considerava a característica mais importante da modernidade Porém a citação de Virgílio que epigrafa o primeiro livro sobre o comércio fornece indicação suficiente as coisas que ensinou o poderoso Atlas Eneida I 740 referese a uma variedade de temas dentro do estudo da natureza Foi a revitalização do comércio que incentivou a reto mada da filosofia assim como o abrandamento do barbarismo europeu no início dos tempos modernos O comércio e conhecimento juntos deram fim à Idade Média 474 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y O comércio se desenvolve por uma combinação de necessidades invenções e aci dentes Montesquieu descreve suas principais variedades suas origens frequentemente rústicas sua dependência da tecnologia sua descoberta de maneiras de enganar os tiranos sua moderna extensão global e finalmente sua complexa organização finan ceira Os efeitos do comércio são amenizar e lapidar costumes bárbaros ao mesmo tempo em que corrompe os costumes puros incentivar as artes e ciências conduzir em direção à paz ao promover a união entre as nações via suas necessidades e elevar os padrões de vida Dentre esses fatores Montesquieu parece menos interessado no último percebido como um íim em si mesmo Tampouco demonstra simpatia pelos lucros do comerciante os maiores benefícios do comércio são as conseqüências menos óbvias não intencionais do egoísmo do comerciante O livro que une a discussão do homem natural ou primitivo por Montesquieu e sua ampla discussão de acordos comerciais trata do espírito geral das nações Co meça por advertir contra a tentativa de forçar todas as nações a caberem no mesmo molde em seguida aponta que as virtudes e vícios morais são diferentes de virtudes e vícios políticos e termina por revelar que as fundações da moderna Inglaterra estão nas paixóes egoístas da avareza e da ambição A ideia de que as virtudes políticas exigidas de seus cidadãos por uma ordem política imperfeita podem na realidade ser vícios morais era a pedra angular da íiiosofía política clássica só raramente ou nunca foram idênticos o bom homem e o bom cidadão Contudo Montesquieu tem em mente algo muito mais desconcertante as mais elevadas coisas humanas são ocasionadas pela ação de vícios morais e a melhor ordem política depende de tais vícios Esta compreensão da vida humana Montesquieu aprendeu com Maquiavel e seus seguidores não com os clássicos Estes últimos condenavam o comércio como avareza institucionalizada usavam palavras duras para o empréstimo de dinheiro e favoreciam os regimes que tinham uma base agrícola não comercial Porém isso eqüivalia a desejar os frutos do comércio as ciências e as artes sem o comércio em si Se as atividades populares ou vulgares geram e nutrem as mais elevadas atividades do homem colocálas em perigo póe em risco as coisas mais elevadas que não são capazes de perdurar de forma independente Removase o comércio e as viagens como na Idade Média e se arruina a íilosoíia A íilosoíia é sustentada pelo cosmopolitismo e o cosmopolitismo pelo comércio A íilosoíia mais livre está na Inglaterra que é altamente comercial A visão de Montesquieu não implica que as coisas produzidas indiretamente atra vés das ações da multidão são ou mesmo podem ser em completa harmonia com o caráter da própria multidão A filosofia é um bom exemplo Pode o povo ou a sociedade como um todo tornarse filosófica São capazes de esclarecimento no sentido radical A resposta de Montesquieu é dada no livro sobre o espírito geral de cada povo O espírito geral é formado pelo clima religião leis máximas políticas exemplos passados mares costumes O espírito ou a mente de uma nação é formado pela razão As nações vivem pela paixão e pelo preconceito não pelo entendimento O Esclarecimento para fàzer a vida humana menos bárbara ou desumana é possível mas mesmo este esclareci mento deve ser apoiado por um apdo as paixões quer seja o autointeresse ou a piedade M o n t e s q u ie u 4 7 5 e o preconceito peculiar à sociedade a que se liga Ou ainda a Inglaterra oferece as maiores oportunidades e segurança para a filosofia e as artes mas a Inglaterra náo é em si mesma nem filosófica nem poética As sociedades acreditam enquanto os filósofos questionam e as sociedades protegem a filosofia mais por uma preocupação própria do que com suas liberdades A filosofia e a sociedade por este motivo nunca são ligadas por verdadeira amizade Por seu lado o filósofo é moralmente obrigado a considerar dupla mente os efeitos sociais bons e nocivos de seus escritos daí o estilo de escrita atribuído a Montesquieu por dAlembert e a dissimulação da própria filosofia No princípio de sua obra Montesquieu distingue a obra do filósofo moralista e do legislador Para Aristóteles os objetivos políticos tem que ser compreendidos em termos da busca do bem total ética e política fazem parte de um único estudo com a primeira precedendo a última Para Montesquieu no entanto ética e política tem uma relação muito menos direta e como um legislador ele próprio nunca revela a moralidade filosófica ou verdadeira Falando estritamente o mundo político nunca pode ou é guiado por essa moralidade Porque virtudes políticas ou vícios políticos são todos paixões Assim sendo nenhum não filósofo pode ser virtuoso em qualquer grau Mas esta é uma doutrina mais radical do que a dos clássicos que consideravam homens do povo ou de uma virtude meramente movida pelo hábito como animados por um conhecimento muito incompleto mas no entanto verdadeiro da virtude Ele conclui por essa e por várias outras razões que vimos que o homem pela natureza não é um ser racional assim como também não é um ser filantrópico ou social os elemen tos da alma humana não tendem naturalmente para a perfeição moral e intelectual Seguese que as utopias e as quase utopias da filosofia política clássica são baseadas em premissas falsas Elas julgam e tentam guiar a natureza humana por padrões estranhos a elas e são utópicas por esta mesma razão O legislador filósofo ganha imensamente em efetividade dissimulando sua ética filosófica e fazendo uso prudente de suas pai xões reais e opiniões pelas quais as elites intelectuais e as grandes multidões podem ser dirigidas Mas então sua fimção muda antes ele era apenas um educador de filósofos e estadistas agora ele próprio é um manipulador de homens Os modelos aos quais ele recorre são aqueles com que o homem médio e melhor equipado pela natureza e pelo entendimento Seu duplo enraizamento é a autopreservação e a piedade Sem mais alto âmbito é a liberdade não a excelência 6 R eligiã o No Livro I Montesquieu sugerira de modo vago que Deus assistia o homem por uma revelação especial e que a atração do homem pelo Criador após a formação de uma ideia de Deus é a primeira das leis naturais em importância embora não no tempo Como se constata a religião é o último elemento do espírito das leis a ser discutido na obra Os dois tópicos imediatamente anteriores comércio e propaga ção preocupamse com as necessidades do corpo No livro que o sucede a religião 476 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o u t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 10 Ibid I i final é tratada de tal forma a obscureccr a distinção entre a lei verdadeiramente divina dos judeus e cristãos de um lado e as leis religiosas dos gentios do outro Também é ver dade que a obra pouco depende da história sagrada como tal embora às vezes traga exemplos dessa história Com relação à Idade Média cristã seu interesse maior é pelo componente feudal e nâo pelo cristão Montesquieu afirma nessa obra ser um escritor político não um teólogo Mas também alega que as duas qualificações são perfeitamente coerentes o cristianismo não é apenas verdadeiro mas também o maior bem terreno que a humanidade poderia possuir Âigumenta contra Bayle que os cristãos são os melhores cidadãos Todavia as ressalvas que atribui à afirmação deixam claro que considera os conselhos cristãos de perfeição incompatíveis com a vida política de modo que o cristão mais perfeito seria um cidadão muito ruim É esta visão que gera o louvor de Montesquieu às seitas estoicas da Antiguidade e aos grandes imperadores romanos os antoninos que estavam entre eles Os estoicos eram acima de tudo cidadãos ou seja não eram santos A princi pal fimção da religião e das leis civis é fàzer dos homens bons cidadãos e assim auxiliar cada sociedade a satisfezer suas necessidades Pois os mais verdadeiros e mais sagrados dogmas podem ter terríveis conseqüências se não forem ligados aos princípios da socie dade e os dogmas mais fàlsos conseqüências maravilhosas quando assim ligados Montesquieu critica vários aspectos dos efeitos sociais e políticos do cristianismo O cristianismo opôsse ao comércio e ao empréstimo de dinheiro na Idade Média ao fomentar a castidade conventual desencorajou o casamento e a propagação em toda parte era hostil à poligamia e ao divórcio promovia a desobediência civil em nome de uma lei maior por um zelo intolerante da universalidade voltava cristão contra cristão e cristão contra não cristão Entretanto também teve efeitos salutares na restrição de maquinações de déspotas e monarcas no auxílio tanto da abolição da escravidão como da mitigação da guerra na Europa Montesquieu tenta corrigir os seus excessos Ao contrário de Locke porém não fez da liberdade de consciência um direito natural e universal do homem Não é sábio um convite universal para o estabelecimento da diversidade religiosa Não é preciso aceitar uma nova religião em uma sociedade se é possível excluíla mas onde já há uma religião estabelecida esta deve ser tolerada 7 C onclusão A principal virtude do legislador segundo Montesquieu deve ser a moderação O autor salienta a habilidade prudente exigida pela habilidade política sua necessidade de determinar o tipo de lei a ser aplicada de compreender a rede de relações que compõem o espírito das leis e sua ligação com os elementos complexos de cada sociedade Embora a Europa fosse sempre seu principal interesse estendeu o alcance da explicação científica e da avaliação nos assuntos humanos a todas as épocas e lugares A frase que aplicou aos imperadores estoicos cailhe melhor ainda ele tomou conta da humanidade M o n t e s q u ie u 4 7 7 11 ó7 XXI xx XXIII xxi XXIV xiii XXV X 12 Ibid Prefece I iii XXVI i XXDC i A íilosoíiã de Montesquieu delineia e relaciona os papéis desempenhados pela necessidade cega e pela escolha fundamentada um outro tipo de necessidade na formação das leis Deriva dos clássicos sua ênfese na variedade de ordens políticas e a prioridade dos detalhes na habilidade política Contudo Montesquieu se junta a Maquiavel e Locke na rejeição da virtude clássica como o guia político fundamental Essa desaprovação condenou de antemão seus esforços para conter as tendências revo lucionárias e universalistas do liberalismo de Locke De fato posto que o retrato da li berdade ao contrário da virtude deve necessariamente encantar a todos sua descrição elaborada da própria liberdade inglesa veio a ser um instrumento desse liberalismo A mesma rejeição teve outro efeito ao transformar em um labirinto a relaçáo entre ética e política incentivou uma ciência política que perderia o interesse na moralidade e no exercício da política A superfície de O espírito das leis é simples e desordenada o interior é difícil e coerente O que dissemos pode ser suficiente para estabelecer a verdade da afirmaçáo de que tem uma organização Seus ensinamentos sistemáticos até mesmo seu título enigmático continuarão a nos iludir até que seus propósitos sejam entendidos por completo L e it u r a s A Montesquieu O espirito das leis Prefácio livros IV XI XII X K 11 27 B Montesquieu O espirito das leis Livros XIV XV XVIII XX XXI XXTV XXVI Montesquieu Cartas persas Montesquieu Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência 478 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y D avid H ume 17111776 David Hume é mais conhecido como cétíco como um afiado e profundo crítico da razão humana Na verdade afirmase às vezes que a filosofia de Hume desferiu um golpe mortal sobre o direito natural e eliminou a possibilidade de julgamentos de va lor racionais Assim a teoria de Hume é apresentada como um desafio para a própria existência da filosofia política o qual deve ser confiontado Porém estamos diante de um paradoxo Hume ele próprio é autor de uma doutrina política abrangente que se apresentava como sendo a verdade sobre temas como as leis da natureza a justiça a obrigação da obediência civil e o melhor tipo de govemo Nosso primeiro assunto ao que parece deve ser os ensinamentos de Hume acer ca dos fundamentos e da autoridade dos julgamentos nornutivos Esse assunto deve ser precedido por um breve exame de sua teoria dos princípios e das operações do entendimento Voltando sua observação para dentro da mente humana Hume lá encontra uma coleção e sucessão do que denomina percepções o sabor de uma maçã a ideia de um triângulo uma noção de justiça o apreço por uma ação pmdente raiva e assim por diante A percepção é o que quer que esteja presente na mente e nada está presente na mente além de suas percepções De fiito a mente nada mais é que um amontoado ou febce de percepções Há dois tipos de percepção Existem impressões o que está em nossa mente quando ouvimos ou vemos ou sentimos ou amamos ou odiamos ou desejamos ou determinamos Existem ideias o que está em nossa mente quando refletimos sobre uma pabcão ou um objeto que não está presente A diferença entre impressões e ideias é uma diferença em sua gradação de força e vivacidade as impressões são mais fortes e vivas que as ideias Todas as ideias afirma Hume derivam de impressões Ora é verdade que a ima ginação é muito livre e podemos imíinar montanhas de ouro e cavalos alados que nunca vimos no entanto essas ideias são compostas a partir de outras ideias Quanto às ideias simples aquelas ideias irredutíveis que não admitem distinção ou separa ção descobrimos que não está em nosso poder imcinar qualquer coisa que não Xr responda e represente alguma impressão que tenhamos experimentado anteriormente Tal como um cego não pode conceber uma ideia do roxo nem um surdo do som de uma flauta assim em geral nunca podemos pensar em algo que náo tenhamos visto ou de alguma forma percebido nós mesmos ou sentido em nossas próprias mentes Todas as nossas ideias sâo apenas imagens ou cópias de impressões Não podemos ter conhecimento no sentido mais amplo e com certeza absoluta afirma Hume sobre questões de fato e de existência real mas apenas sobre as relaçóes entre ideias Podese explicar isso da seguinte forma é tido como uma máxima esta belecida que tudo o que é concebível é possível Ora o contrário de cada afirmação de matéria de fato é sempre concebível Posso imaginar que o sol náo nascerá amanhã por conseguinte náo tenho conhecimento de que nascerá Não posso ter certeza de que os objetos diante de mim continuarão a existir quando fechar meus olhos pois é ima ginável que náo o farão Nâo podemos ter conhecimento daquilo que se pode pensar ser de outra forma O conhecimento portanto só pode ser daquilo que náo se pode pensar ser de outra forma daquilo que só pode ser pensado como é Por exemplo náo é concebível o contrário da proposição os ângulos de um triângulo sáo iguais a dois ân gulos retos a relação entre os ângulos de um triângulo e dois ângulos retos deve ser pensada como sendo o que é Posto que o reino das possibilidades é o lugar onde a ima ginação é livre então a necessidade deve ser localizada onde se limita a imaginação Os únicos objetos do conhecimento entáo sáo essas relações de ideias que de pendem inteiramente das ideias que comparamos entre si Só podemos conhecer o que está necessariamente implícito em nossas ideias em certo sentido só podemos tirar de nossas ideias o que nelas colocamos Por exemplo é correta a proposição onde não há propriedade náo há injustiça ao passo que a ideia de injustiça é apenas a vio lação da propriedade Porém isso nada mais é do que desembrulhar o que embalamos antes Ademais Hume parece pensar que mesmo as demonstrações dos matemáticos são meramente formas mais longas e complicadas desse tipo de processo de extração Observemos também que os objetos do conhecimento são as relações entre ideias consideradas como ideias Ao comparar ideias nada podemos aprender sobre algo que náo seja uma ideia Nâo podemos ter nenhum conhecimento estritamente falando do mundo da realidade mas apenas do mundo das ideias O princípio tudo o que é concebível é possível merece um exame mais apro fundado Ora há muitas declarações afirma Hume cujo contrário é concebível mas que no entanto temos o direito de aceitar com total segurança por exemplo que to dos os homens morrerão Na verdade Hume considera todas as matérias de fato como partes de um sistema de necessidade universal O que entáo signiíica dizer que tudo 480 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y David Hume Treatise ofHuman Nature ed L H SelbyBie Oxford Clarendon 1896 I i 1 Enquiry Conceming Human Understanding ed L A SelbyBigge Oxford Clarendon 1894 2 Human Understanding 4 I primeiras duas partes uma afirmaçáo anterior e menos satisfatória aparece em Treatise I iii 1 Treatise I iii 11 início e 125 o que é concebível é possível ou não é absolutamente impossível ou é possível pelo menos em um sentido metafísico Além disso por que deve este princípio que parece não ser autoevidente ser considerado uma máxima estabelecida Em resposta podese dizer que em certo momento na história da filosofia co meçouse a pensar que a desordem a contradição e a ignorância que prevaleciam na filosofia eram uma desgraça que deveriam ter fim e o edifício da razão humana ser erigido sobre uma base totalmente inabalável Porém uma fundação inabalável só poderia ser assurada por se permitir já de início o mais profundo controle ao ceti cismo A fim de que a filosofia possa ser indubitável é necessário começar por duvidar de tudo o que se pode duvidar Ora a máxima estabelecida de Hume deve ser entendida como um instrumen to deste tipo de ceticismo preliminar O ponto de partida da filosofia é a resolução de duvidar A área de dúvida será tão extensa quanto a área do meramente possível Assim suie a necessidade de regular nosso raciocínio por esta máxima estabeleci da que expande o possível até aquilo que é possível conceber e como conseqüência restringe o necessário ao que é necessário para conceber De fato a máxima pode ser considerada como um ceticismo preliminar em sua forma mais nua obriganos a duvidar sempre que não somos obrigados a ratificar Enquanto Descartes em cuja filosofia a necessidade da dúvida universal é tão claramente preconizada afirmou que a liberdade da mente pela qual se supõe que nenhum objeto é de cuja existência se tenha sequer a menor das dúvidas em Hume a mente supõe podese dizer que nenhum objeto é cuja existência não seja obrigada a admitir A principal preocupação de Hume não é com esse típo de radodnio que através da intuição ou da demonstração descobre as relações entre as ideias mas sim com o raciod nio prorável pelo qual descobrimos a matéria de fàto e a existência real e que nos orienta durante toda nossa vida e de fato gera a maior parte da nossa filosofia Ora todo o nosso raciocínio sobre a matéria de feto se baseia afirma Hume na relação de causa e efeito Sem causalidade não podemos ir além de nossos sentidos e memória pela causalidade so mos capazes de inferir a existência de objetos e ocorrências para além de nossa experiência Assim a discussão da probabilidade resolvese em um exame da causalidade Hume começa por suscitar dúvidas céticas em relação a causa e efeito Exami nemos um caso particular da inferência da causa para o efeito Por exemplo vemos uma bola de bilhar atravessar a mesa e atingir outra Concluímos que a segunda se moverá Qual é a base para essa conclusão Não nos é dada a conhecer pela razão pois é possível conceber que a colisão não seja seguida por um movimento Deve portanto ter base na experiência no passado já vimos bolas colidirem e serem impulsionadas Porém continua a ser concebível que não o fizessem neste caso partícular A inferên cia então tem base na experiência juntamente com a suposição de que o futuro se assemelhará ao passado Entretanto qual é a base para este princípio Não é a razão porque é concebível que o futuro não se assemelhe ao passado A experiência então mas como podemos aprender com a experiência o próprio princípio que por si só torna possível aprender com a experiência D a v id H u m e 481 Parece que estamos num beco sem saída Contudo ora Hume apresenta sua solução cética para essas dúvidas céticas Quando observamos um evento que se sucede a outro em várias instâncias a mente adquire o hábito de contemplálos juntos Então quando vejo uma bola de bilhar bater em outra minha imaginação caindo em uma roti na mais àmiliar é leida a pensar no movimento da sunda bola E não somente formo esta concepção mas acredito nela o que significa simplesmente que me proporciona uma sensação diferente das ideias em que não acredito É difícil descrever tal sensação a ideia é concebida de maneira mais forte ou mais vivida ou mais firme de modo que passa a fezer parte daquilo que denominamos realidade juntamente com as impressões e as ideias da memória Em suma todos os raciocínios sobre a causalidade nada mais são do que os efeitos do costume e o costume não tem influência apenas estimula a imaginação e nos proporciona uma concepção forte de qualquer objeto Outra questão é investigada a ideia de causa e sua origem Observamos por exemplo uma bola de bilhar bater em outra sendo a causa como se diz de que esta se mova De que impressão se deriva a ideia de causa Observamos que a colisão das bolas e o movimento da segunda são eventos contíguos que um ocorre antes no tempo em relação ao outro e finalmente que ao serem repetidos constatase que essa conjunção de eventos é constante Isso é tudo Todavia há mais na ideia de causalidade que prio ridade contiguidade e conjunção constantes em geral supomos que há uma conexão necessária entre os dois eventos De que impressão advém isso Responde Hume de nada nos objetos mas de algo na mente ou seja o sentimento de ser obrigado ou im pelido a passar na imaginação da causa para o efeito Equivocadamente transferimos essa impressão para os próprios objetos entretanto de feto a necessidade não está nos objetos mas em nós mesmos O argumento que foi esboçado anteriormente segue um padrão que se repete com frequência na filosofia de Hume O que é aceito sem questionamento pelo senso comum aqui a causalidade em outros lugares a existência de um mundo de objetos que não depende de nossa percepção deles e ainda em outros lugares até mesmo a existência continuada de um eu pessoal é considerado como não tendo nenhuma base racional Porém é dissolvido somente para ser restaurado A natureza é forte demais para a razão E é fornecido um relato do modo como a razão é superada En tretanto esta superação é de natureza duvidosa As dúvidas céticas não são refutadas Nem são simplesmente afestadas em nome do bom senso da forma em que o Dr Johnson refutou Berkeley chutando uma pedra Recebem uma solução mas uma solução cética O que é restaurado não é bem o que foi dissolvido Assim a infe rência da causa para o efeito é um hábito a crença no que é inferido é um sentimento inexplicável a ideia de causa é um erro Por assim reduzir o raciocínio causai a uma questão de costume e sentimento Hume expõese a dificuldades na tentativa de distinguir e justificar o raciocínio correto 4 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 Ibid 2 3 4 6 7 e 14 Human Understanding 4 5 e 7 5 Treatise I iv 2 e 6 Por exemplo ao observar diversas instâncias de conjunção de objetos é engendrado um hábito de transição mental embora na realidade essas instâncias possam não ter nenhuma conexão essencial Podemos para usar o exemplo de Hume considerar todos os irlandeses como estúpidos mesmo diante de claras evidências em contrário Tratase de um preconceito e o julgamento deve ser conclamado para ajustar a ima ginação Mas como é isso possível Hume explica que as regras gerais denominadas preconceitos são corrigidas por outras regras gerais denominadas regras de lógica baseadas na observação da natureza e nas operações do entendimento e que nos permi tem distinguir o essencial do não essencial O hábito é vencido pelo hábito No entan to o hábito só poderia ser superado por um hábito mais forte Todavia Hume afirma que estas rras de raciocínio são derivadas da observação não de um maior número de instâncias mas das operações mais gerais e autênticas do entendimento Outro problema como é que podemos chegar a um juízo sobre a causa e o efeito depois de apenas um experimento cuidadoso O hábito de íázer uma transição mental de um objeto para outro deve ao que parece variar proporcionalmente ao número de instâncias de sua conjunção que observamos o qual seria pequeno após uma só ins tância Como pode o hábito exceder a experiência Hume replica que incluímos nossa experiência única dentro do princípio de que objetos semelhantes em circunstâncias semelhantes produzem efeitos semelhantes e o hábito de transição é produzido de modo artificial O princípio em si é obviamente habitual a uniformidade da natu reza é reduzida a um hábito de esperar no íúturo aquilo a que estamos acostumados no passado É um hábito pleno e perfeito com base em milhões de experimentos Contudo devemos perguntar é perfeita nossa experiência de sucessão uniforme Se não for então mais uma vez como pode o hábito exceder a experiência Os problemas colocados anteriormente podem ser resumidos da seguinte forma se o terreno da inferência é o hábito então ao que parece o hábito é motivo suficien te para uma inferência e a inferência não pode ir além do hábito Hume não pode admitir essas conseqüências Sua teoria pretende não só explicar o raciocínio dos animais mas também justificar os métodos de Newton A questão é se resolve ou não os problemas sem utilizar nada além do hábito e do sentimento Estamos ora em condições de passar ao tratamento que Hume dá à base e au toridade do juízo normativo Como em sua discussão da causalidade principia com dúvidas céticas que levam à conclusão de que distinções morais não sâo derivadas da razão Uma linha de argumentação visa mostrar que a virtude e o vício não são objetos do entendimento O entendimento possui diz Hume duas operações a comparação de ideias pela qual descobre as relações entre os objetos e a inferência da matéria de D a v id H u m e 4 8 3 6 Ibid iii 13 7 Ibid 8 13 e 14 123 8 I iii 15 e 16 9 Ibid III i 1 também Enquiry Conceming the Principies o f Morais apêndice I fato pela qual descobre sua existência Portanto se a virtude e o vício podem ser des cobertos pelo entendimento devem consistir ou em relações ou em matérias de fato Em primeiro lugar Hume comprometese a demonstrar que virtude e vício não podem ser relações O objetivo final da aprovação e desaprovação moral é uma ação mental em relação a objetos externos por exemplo a paixão do afeto para com os pró prios filhos ou a decisão de tomar a propriedade de alguém Se o bem e o mal moral são relações devem portanto ser relações que vigoram entre ações internas e objetos externos e capazes de vigorar apenas entre ações internas e objetos externos Porque se por exemplo o bem moral fosse uma relação que também pudesse vigorar entre objetos externos então os objetos irracionais e inanimados poderiam ser moralmente bons Ora não parece haver nenhuma relação que seja tão restrita Exantinemos por exemplo a relação de conformidade A teoria moral que Hume parece especialmente interessado em refutar afirma que há certas conformidades e inconformidades naturais das coisas umas com as outras e que a virmde de uma ação está em sua conformidade com a situação A objeção de Hume é que a conformidade supondo que tal relação exista pode vigorar entre objetos externos que no entanto não podem ser chamados de virmosos De fato as relações que realmente existem entre ações internas e objetos ex ternos em instâncias de virtude e vício são constatadas entre objetos externos onde claramente não constituem virtude e vício Suponhamos por exemplo uma árvore que ao crescer sufoca a árvore de cuja semente ela própria cresceu As relações aqui são precisamente as mesmas que se encontram no caso de um filho que estrangula seu progenitor Não consideramos a primeira instância como um exemplo de vício mas se o vício consistisse na relação seria este o caso São a virtude e o vício então matérias de fato Hume convida o leitor a tomar o exemplo de uma ação cruel um assassinato talvez e examinála sob todos os ângulos para verificar se é possível aí encontrar aquela matéria de fato ou existência real que denominam vício Não importa como examinemos o assunto serão encontrados ape nas certas paixões motivos volições e pensamentos Não há outra matéria de fato na situação O vício nos escapa inteiramente desde que consideremos o objeto Hume conclui que a virtude e o vício não são nem relações nem matérias de fato isto é não são objetos do entendimento e por conseguinte o senso de moralidade não consiste em sua descoberta Outra e mais eminente linha de argumentação pode ser resumida da seguinte forma a moral desperta paixões e produz ou impede ações A razão por si mesma é totalmente impotente neste particular As regras da moralidade portanto não são conclusões de nossa razão Por impotência da razão Hume quer dizer uma ação é o resultado de uma pro pensão ou aversão a algum objeto e essa propensão ou aversão é despertada em geral pelo menos pelo prazer ou dor produzidos ou esperados do objeto Ora a razão pode informarnos sobre a existência de objetos e das relações entre eles mas se os objetos são indiferentes para nós se não despertam propensão ou aversão essas informações não têm qualquer influência sobre a vontade Assim a razão sozinha não pode pro 4 8 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y duzir ou pelo mesmo motivo evitar qualquer ação Como disse Hume em uma frase famosa a razão é e só deve ser escrava das paixões e nunca pode pretender qualquer outra função que não seja servirlhes e obedecerlhes Todavia é claro que a razão em conjunto com a paixão pode ter uma forte influência embora oblíqua e mediata sobre a vontade Pode estimular a paixão indicandolhe a existência de seu objeto Por exemplo minha opinião é que por trás do muro de um jardim há frutas saborosas e meu desejo por elas se baseia nessa opinião E a razão pode dirigir a paixão para seu objeto ao traçar a conexão entre causas e efeitos Posso atinar com o recurso de con seguir uma escada de mão e galgar a parede Em tal caso a participação da razão pode ser grande e até mesmo decisiva Assim se eu descobrir que é incorreta minha opinião sobre a existência das frutas ou sobre a melhor maneira de obtêlas minha paixão e volição deixam de existir Porém o papel da razão continua a ser executivo pois não fornece o impulso que nos move Os juízos calmos e indolentes do entendimento não são suficientes portanto para influenciar a vontade E o ponto crucial do argumento de Hume é que esses julgamentos pelos quais podemos distinguir entre o bem e o mal são suficientes para influenciar a vontade Nega que a cognição moral é separável de uma propensão ou aversão à ação Quer dizer nega que se pode saber o que é moralmente bom sem sentir uma inclinação a isso O celebrado trecho de Hume que se segue pode ser imediatamente elucidado pelo argumento anterior ao mesmo tempo em que auxilia a elucidálo Em todo sistema de moralidade com que me deparei até hoje sempre observei que o autor prossegue por algum tempo no sentido comum do raciocinar e estabelece a exis tência de um Deus ou faz observações sobre os assuntos humanos quando de repente surpreendome de encontrar que em vez das usuais cópulas de proposições é e náo é não me deparo com qualquer proposição que não esteja ligada a um dever ou não dever Essa mudança é imperceptível mas é no entanto da maior conseqüência Pois como este dever ou não dever expressa alguma nova relação ou afirmação é necessário que deva ser observado e explicado e ao mesmo tempo que uma razão deve ser oferecida para o que parece totalmente inconcebível como esta nova relação pode ser uma dedução de outras que são inteiramente diferentes dela Mas como os autores em geral não empram esta precaução tenho a presunção de recomendálo aos leitores e estou convicto de que esta atenção pequena subverteria todos os vulgares sistemas de moralidade e observemos que a distinção entre vício e virtude não é fundamentada apenas nas relações de objetos nem é percebida pela razão A moralidade como vemos preocupase com o dever e a obrigação o moral mente bom é em essência o que se deve fazer E isso não pode ser descoberto pela razão Por exemplo analisemos novamente a tese de que a virtude consiste em confor midade Em determinado ponto Hume admite para avançar o debate que a relação D a v id H u m e 4 8 5 10 Treatise II iii 3 11 Ibid III i 1 último parrafb de conformidade existe e pode ser descoberta pela razâo Isso no entanto afirma náo basta para mostrar que se trata de virtude deve ser demonstrado que existe uma conexão entre conformidade e a vontade Pois o moralmente bom tem o caráter de lei é obrigatório Quer dizer é coercitivo influencia a vontade A razão pode presume se descobrir a conformidade mas não pode descobrila como moralmente boa Pois o moralmente bom é o que devemos fiizer e o que devemos fezer é o que somos com pelidos ou impelidos a fezer A única maneira de entender a compulsão é soírêla só podemos descobrir o que influencia a vontade ao sentir essa influência Ora não é autoevidente esta identificação do obrigatório com coercitivo Parece repousar sobre a necessidade de tornar o obrigatório efetivamente obrigatório Em outras palavras Hume parece seguir as linhas estabelecidas por Hobbes e Locke na tentativa de erigir a moral sobre uma fundação de que as paixões não desconfiando náo procurarão substituir Da mesma maneira que Hume encontrou a certeza do co nhecimento pela identificação do necessário com o que deve necessariamente ser pen sado assim descobre a eficácia da moral pela identificação dos virtuosos com o que se é obrigado a buscar Da mesma forma em que a imaginação humana foi tomada como base da ciência assim as afeições humanas são tomadas como base da moralidade Voltamonos agora para a solução céüca dessas dúvidas céticas sobre a moralida de a qual vem a ser que as distinções morais derivam de um senso moral Posto que a virtude e o vício não são descobertos pela razão seguese que os distinguimos por meio de algum sentimento ou impressão que provocam O vício de uma ação cruel nos esca pa inteiramente enquanto consideramos o objeto Jamais poderemos encontrálo até que voltemos nossa reflexão para nosso próprio peito e encontremos um sentimento de desaprovação que aflora em nós para com esta ação Eis aqui uma matéria de feto mas é objeto do sentimento não da razão Encontrase em nós mesmos não no objeto A moral portanto é mais propriamente sentida do que julgada Mais precisamente Hume assevera não apenas que a virtude e o vício são des cobertos pelo sentimento mas que são constituídos pelo sentimento Não é que a virtude seja aprovada porque é virtude mas que a virtude é virtude porque é aprovada Quando se diz que uma ação é virtuosa nada se afirma além de que dá origem a um sentimento de aprovação tal como quando se diz que um objeto é a causa ou o efeito de outro nada se quer dizer além de que estão habitualmente unidos na imiinação A visão da virtude observa Hume é agradável e a do vício desiradável De clara ainda que o próprio sentimento de aprovação moral é íradável e que o da desaprovação é desagradável Na verdade identifica aprovação e prazer Nega que a aprovação seja uma inferência a partir do prazer Silenciosamente passa por cima da possibilidade de que o prazer seja uma conseqüência da aprovação Ao contrário reduz a aprovação ao prazer Ter o senso de virtude nada mais é que sentir uma satisfeçáo de um determinado tipo Vemos então que o senso moral não é uma feculdade distinta e peculiar e que os sentimentos morais são prazeres e dores Os sentimentos morais no entanto são prazeres e dores de um determinado tipo diferindo em seu sentimento de outros prazeres e dores da mesma forma como 4 8 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y por exemplo o prazer oferecido por um bife difere do prazer proporcionado por um poema Esses prazeres e dores peculiares 1 surgem apenas a partir da consideração do caráter e ações de seres racionais e 2 surgem quando estes são examinados em geral sem referência a nossos interesses particulares Assim podemos apreciar um inimigo pelas próprias qualidades que o tornam perigoso para nós Em suma distinguese a virtude pelo prazer e o vício pela dor que qualquer ação sentimento ou caráter nos propicia por sua mera visão ou contemplação Hume considera as qualidades ou caracteres estimados como virtuosos como de quatro tipos Primeiro as qualidades que são úteis para os outros por exemplo justi ça generosidade beneficência honestidade Segundo as qualidades que são úteis para quem as possui por exemplo prudência indústria frugalidade temperança Terceiro as qualidades que sâo imediatamente agradáveis aos outros por exemplo modéstia inteligência decência Finalmente as qualidades que são imediatamente agradáveis ao que as possui por exemplo uma autoestima adequada o amor da glória a magnani midade Podese acrescentar que uma qualidade pode pertencer a mais de uma dessas classes Por exemplo a coragem não só é útil para seu possuidor e para o público mas também dá um prazer imediato ao seu possuidor Em suma os objetos de aprovação moral são aquelas qualidades que são ou ime diatamente agradáveis ou que dão prazer quer para o seu possuidor ou para os outros O bom é fundamentalmente idêntico ao agradável Porém não é idêntico ao próprio prazer Ao fàzer julgamentos morais não valorizamos os outros por seu valor para nós mesmos A aprovação não é concedida às qualidades porque nos dão prazer mas pelo contrário porque dão prazer aos outros incluindo aquele que as tem Todavia em ou tro sentido devemos salientar podese dizer que aprovamos o que nos agrada porque a nossa própria aprovação consiste em sermos agradados Por que aprovamos essas qualidades virtuosas Por vezes Hume responde que somos movidos pela humanidade ou benevolência Entretanto não devemos en tender isso como um instinto original ou como um desejo pelo bem dos outros É a manifestação de um princípio mais geral e extremamente importante da natureza humana a simpatia ou aquela propensão que temos para receber por comunicação de outras pessoas as suas pabtões sentimentos etc Devese notar que simpatia não é o mesmo que pena e não tem nenhuma conotação de afeto ou boa vontade É um simples canal através do qual as dores prazeres paixões e assim por diante são trans mitidas de uma pessoa para outra O objeto de aprovação moral portanto é uma fonte de prazer o sentimento de aprovação é em si um prazer e o prazer do sentimento é tomado emprestado do ob jeto Assim Hume está habilitado para rejeitar o que chama de moralidade egoísta mas todavia para evitar confirmar a existência de uma benevolência geral para com os D a v id H u m e 4 8 7 12 Ibid penúltimo parágrafo e 2 13 Principies o f Morais 10 1 e 105 Treatise III iii 1 homens muito além de nossa relação com nós mesmos Faz isso ao postular a operação da simpatia que fez nossos os prazeres e as dores de outros mas o fez por assim dizer mecanicamente sem a interposição de boa vontade para com nossos companheiros ou de cálculos de interesse próprio No íundo da negação de Hume de que o bem e o mal morais podem ser desco bertos pela razão está a demanda de que a moralidade esteja de acordo com as paixões ou para usar suas próprias formulações a identificação do obrigatório com o coer citivo e a insistência de que juízos morais tenham uma influência direta e imediata sobre a vontade Sua própria teoria atende a essa demanda Os principais motivos para a ação são o prazer e a dor os julgamentos de aprovação e desaprovação moral não passam de prazeres e dores Assim a virtude é em essência amável e o vício é em essência odioso e consequentemente desejados ou evitados Um julgamento moral é portanto não apenas um sentimento de louvor ou culpa ou seja um sentimento de prazer ou dor mas também uma opinião de obrigação ou um senso de dever isto é uma propensão ou aversão Ao exigir que a moralidade esteja de acordo com as paixões e seja construída sobre elas Hume segue Hobbes e Locke Contudo não os segue em suas conclusões Esses filósofos representam o que Hume denomina sistema egoísta da moral o qual critica com dureza No entendimento de Hume a premissa básica do sistema egoísta é que a paixão fundamental e dominante é o interesse próprio Hume nega isso 1 Tal sistema exagera o poder da razão Para demonstrar que paixões tal como a amiza de que parecem ser desinteressadas são na verdade apenas manifestações do amor próprio os filósofos devem tecer a hipótese de que há raciocínios muito complexos e refinados raciocínios de feto demasiado complexos e refinados para que tenham de feto muita influência sobre as paixões 2 Além disso nem todos os desejos podem ser reunidos em um desejo pelo próprio bem pessoal Por exemplo existe a afeição pelos próprios filhos e o ódio pelos inimigos e por vários outros São estes os instintos ou impulsos originais tanto quanto o desejo pelo próprio bem e buscam seus objetos independente de qualquer expectativa de vantagem 3 Na verdade longe de todas as paixões serem redutíveis ao interesse próprio a ação pelo interesse próprio em si pres supõe a existência de outras paixões pelo menos algumas vezes e talvez sempre ou quase sempre O interesse próprio nos impulsiona a desejar um objeto agradável por exemplo um bife Porém qual é o motivo pelo qual o objeto agrada Porque satisfez um outro desejo a fome por exemplo Sem outros desejos além do interesse próprio haveria pouco ou nada com que o interesse próprio se preocupar 4 Tampouco é o interesse próprio necessariamente a paixão mais forte ou dominante Quando colo cado em competição com algumas outras paixões específicas o interesse próprio nem sempre goza de prioridade E um homem pode preferir seu bem menor ao seu bem maior consciente de que é menor O desejo por um bem menor pode superar o desejo por um bem reconhecidamente maior 488 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 14 PrinàpUs of Morais apêndice 11 Treatise II iii 3 último parrafo e 9 8 A moralidade egoísta é baseada numa compreensão excessivamente simplifi cada das paixões Hobbes para tomar o exemplo mais claro encontra seu ponto de partida numa única paixão o medo da morte e o desejo de autopreservação esta é a paixão mais forte e íundamental A virtude consiste na obediência às leis da natureza que são ditados da razão para evitar a morte e preservando a vida O medo da morte é a maior paixão porque a morte é o maior mal Pressupõese que todo homem pela necessidade natural sempre procure o que pensa ser o seu maior bem Hume por outro lado diz que não existe tal necessidade natural A paixão não produz nenhum axioma incontestável para a razão e portanto a razão não pode fornecer uma orientação segura para a conduta Tsto náo é contrário a razão preferir a destruição de todo o mundo a coçar meu dedo Não é contrário a razão para mim escolher minha total ruína para evitar o mal estar de um índio ou de uma pessoa total mente desconhecida por mim Os padrões do julgamento moral não são ditados da razão derivados da paixão eles próprios são paixóes isto é sentimentos morais Além disso desde que nenhuma paixão é axiomática uma moral de acordo com as paixões deve ser marcada pela amplitude e complexidade Hume rejeita o tipo de estreiteza da virtude característica do ensino da lei natural moderna ele se recusa a acor rentar seus sentimentos morais em sistemas estreitos Dos modernos Hume apela para os antigos moralistas como Cícero que são os melhores modelos O ensino da lei natural moderno baseando a moralidade nas pai xóes como fez Hume felhou no entanto em fezer justiça ao amplo espectro das paixões humanas Uma moralidade verdadeiramente de acordo com as paixóes toma seu padrão do curso natural e comum das paixões De acordo com Hume a moral se distingue e é determinada pelo sentimento Um caráter possui virtude ou vício na medida em que desperta algum prazer ou dor e se desperta tal prazer ou dor é virtuoso ou vicioso Seguese que uma vez que nunca podemos estar errados quanto a nossos sentimentos de prazer e dor os julgamentos morais sâo perfeitamente infalíveis Tal conclusão parece levar a um caos da subjetividade Os sentimentos de ho mens diferentes diferem assim como os sentimentos do mesmo homem em momen tos diferentes dependendo de sua situação particular Por exemplo é raro termos muito afeto por alguém que age de modo contrário a nossos interesses mesmo que esteja agindo de acordo com as regras gerais da moralidade Sentimos o maior e mais vivido prazer com a diligência comum de um servo do que com as mais nobres quali dades de Marco Bruto No entanto Hume não é um relativista A moral é uma questão de gosto mas há gosto certo e errado Esta posição é explicada como se segue a variação de nossos sentimentos decorrentes da variação de nossa situação nos deixa inseguros Além disso descobrimos que os sentimentos dos outros com base em suas situações par D a v id H u m e 489 15 Tfrtfriíí II iii 36 16 Ibid III ii 1 penúltimo parágrafo cf Principies o f Morais apêndice IV ticulares contradizem nossos sentimentos com base em nossas situações particulares Ora essa contradição e incerteza fezem com que seja impossível que os homens con versem juntos em termos razoáveis Portanto a íim de nos comunicarmos uns com os outros somos obrigados a buscar um ponto de vista comum e menos variável a partir do qual julgar as qualidades das pessoas O ponto de vista que adotamos é o de quem está imediatamente conectado com essas pessoas Por exemplo nosso afeto e admiração por Bruto seria como sabemos muito maior do que para com nosso servo se estivessem igualmente próximos de nós e distribuímos nossa estima de acordo Ao fazer julgamentos morais negligenciamos nossa situação atual e até nossos próprios interesses Corrigimos os nossos sentimentos É necessário indagar como isso é possível nos termos de Hume Como pode um sentimento que resulta de uma situação real ser superado por um sentimento resultante de uma situação hipotética De feto Hume admite que isso não ocorre As paixões escreve nem sempre permitem nossas correções O que é regulado pela transposi ção de situações não são tanto nossos sentimentos quanto nossas noções abstratas e pronunciamentos gerais No entanto é preciso indagar não implicaria isso um abandono do princípio de que o julgamento moral é uma questão de sentimento O problema que estamos discutindo o status dos julgamentos normativos na íilosoíia de Hume pode agora ser abordado por meio de um exame da questão de até que ponto tais julgamentos têm uma base diversa dos julgamentos sobre a matéria de feto Há trechos em que Hume indica que diferem radicalmente quanto a seu tipo Por exemplo escreve que a razão que fornece o conhecimento sobre a verdade e a fel sidade difere do gosto que é a fonte do sentimento moral porque a primeira desco bre objetos tal como realmente se apresentam na natureza sem adição e diminuição enquanto o último tem uma feculdade produtiva e por dourar ou colorir todos os objetos naturais com cores que toma emprestadas do sentimento interno constrói de certa forma uma nova criação O padrão da razão é eterno e inflexível enquanto o padrão do gosto emerge da estrutura e constituição dos animais É duvidoso porém que um contraste tão vividamente elaborado sobreviva a um exame mais aprofundado Pois se a moralidade é mais propriamente sentida do que julgada todavia da mesma forma todo raciocínio provável não é senão uma espécie de sensação Não é apenas na poesia e na música que devemos seguir o nosso gosto e sentimento mas também nas ciências experimentais Virtude e vício não são ma térias de feto ou melhor são matérias internas de feto ou seja nossos sentimentos de aprovação ou desaprovação moral Porém o mesmo vale para a conexão entre causa e efeito Os objetos não têm qualquer conexão detectável A relação causai nada é no objeto mas é algo na mente Hume é daro tenta fornecer uma base mais segura para o radocínio causai do que mero sentimento distinguir o preconceito e a fentasia do raciocínio sólido e for 490 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 17 Treatise III iii 8 penúltimo parágrafo e iii 1 14 ff Principies o f Morais 9 1 18 Principies o f Morais apêndice I último parágrafo Treatise III i 21 I iii 812 necer regras para orientar a conduta da investigação Entretanto como acabamos de ver busca realizar uma tarefe semelhante para a moralidade escapar da contradição e da variação do julgamento moral e determinar o padrão de gosto correto na moralida de Em ambos os casos encontra dificuldades similares ao fezêlo O estado de natureza é na opinião de Hume uma ficção dos filósofos Porém ao reconstituir a origem do governo é permissível começar pela hipótese do homem em uma condição selvagem e solitária Descobrimos que mais do que qualquer outro animal o homem é ao mesmo tempo necessitado e fraco Precisa de alimento roupas e abrigo Todavia é mal equipado por suas habilidades naturais para obtêlos e mantêlos Somente a sociedade pode compensar suas felhas Ao unir forças com ou tros passa a ser capaz de levar a cabo projetos para os quais por si só não tem força su ficiente a divisão do trabalho induz a uma maior habilidade nas artes a ajuda mútua é um escudo contra os acidentes e o azar Somente na sociedade podem ser atendidas suas necessidades inclusive as novas necessidades que a própria sociedade engendra Contudo não se pode atribuir a origem da sociedade a cálculos de vantagens como esses que estão muito além da capacidade dos homens não cultivados Devese esta a uma outra necessidade com um remédio mais evidente a saber o desejo sexual Este aproxima o homem e a mulher o afèto paternal os mantém unidos e surge uma socie dade femiliar governada pelos pais É na femflia que os homens descobrem por meio da experiência as vantagens da sociedade e são ao mesmo tempo ajustados a ela Há no entanto alguns fetores que tornam a sociedade difícil de manter Primei ro as paixões do egoísmo e da generosidade confinada Em geral um homem ama a si mesmo mais que a qualquer outra pessoa E embora o total de sua afeição por outros seja comumente maior que o seu amorpróprio restringese principalmente a seus parentes e amigos Segundo a escassez e a instabilidade de bens externos Bens externos não existem em quantidade suficiente para satisfezer as necessidades e desejos de todos Ainda podem ser tomados de seu possuidor para serem úteis para outro ao contrário dos atributos corporais úteis Essas circunstâncias internas e externas coinci dem de modo a produzir o principal impedimento para a sociedade o insaciável per pétuo universal desejo de adquirir bens para nós e para os próximos a nós As demais paixões são mais fáceis de conter ou não são tão perigosas A vaidade por exemplo é uma paixão social e um laço de união entre os homens Não podemos esperar que essa propensão seja controlada por nossos sentimentos morais naturais Estes se conformam ao curso natural das paixões e tendem a reforçá las O remédio é um artifício descoberto pela razão a convenção da qual participam todos os membros da sociedade para conceder estabilidade à posse desses bens exter nos e permitir a cada um o gozo pacífico do que pode adquirir por meio de sua fortu na e indústria Esta é a primeira lei da natureza a abstinência dos bens dos outros Esta convenção ou acordo não é da mesma natureza que uma promessa ou con trato Ao contrário é o senso comum do interesse comum que emerge gradativa mente entre os homens e ganha força pela repetida experiência da inconveniência D a v id H u m e 491 de transgredilo Uma vez estabelecida esta convenção surgem as ideias de justiça e injustiça e as ideias que advém destas propriedade direito e obrigação Se a regra fimdamental da justiça é a estabilidade da propriedade são necessárias outras regras para determinar quais bens sáo de propriedade de quais pessoas A regra mais óbvia era a da posse presente e mais tarde outras se apresentaram a ocupação a prescrição e assim por diante Agora em vigor essas regras dependem do acaso e muitas vezes resultam em uma desproporção entre a propriedade dos homens e suas necessidades e desejos Todavia a adequação ou compatibilidade entre os bens e as pessoas não pode jamais insiste Hume ser aceita como uma regra As regras de justiça sáo estabelecidas para dar fim às disputas e à discórdia e nada produz mais disputas e discórdia do que questões de adequação ou compatibilidade Para permitir o ajuste da propriedade às pessoas sem criar problemas o expediente natural é permitir a transfe rência de propriedade por consentimento Esta é a segunda lei da natureza que surge de modo muito semelhante à primeira A terceira lei da natureza é a obrigação advinda das promessas e surge da se guinte maneira é óbvia a vantagem da ajuda mútua Se eu ajudálo agora na colheita e você por sua vez ajudarme na colheita mais tarde nós dois seremos beneficiados Porém se for permitido que os homens sigam o curso natural de suas paixões o egoís mo e a generosidade confinada os fariam perder esta vantem Eu poderia ajudálo e você não me ajudar Ou mais provavelmente eu me recusaria em caso de você não querer me ajudar em troca Um pouco de experiência aponta um remédio os homens inventam uma determinada forma de palavras denominadas promessa por meio da qual uma pessoa expressa uma resolução de fazer algo e se expóe à penalidade da desconfiança se náo a cumprir Essa é a origem das regras da justiça A obrigação natural de cumprilas afirma Hume é o interesse próprio Entretanto posto que Hume rejeite o sistema egoísta da moral precisa explicar de forma diferente sua obrigação moral Por que é a justiça uma virtude e a injustiça um vício A resposta é que reconhecemos que a justiça é benéfica para a sociedade Pode ser que nem sempre ajamos com justiça Contudo ao examinar a injustiça de outros nós a avaliamos como perniciosa e acabamos comparti lhando a inquietação de quem vai sentir as suas conseqüências ruins Isso se aplica em certa medida até mesmo a nossas próprias açóes E esta inquietação ou dor simpática é idêntica ao sentimento de culpa moral É reforçada por outros meios pelo artifício de políticos que distribuem elogios e culpa públicos pela educação que nos ensina a considerar a justiça como honrada e por um cuidado com a nossa reputação Porém tudo isso seria em vão sem distinções morais prévias Em suma portanto o motivo original para o estabelecimento da justiça é o interesse próprio mas a fonte de sua aprovação moral é uma simpatia para com o interesse público 492 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Treatise III ii 25 Principies of Morais 3 As vantagens da sociedade e por conseguinte das regras de justiça são grandes e óbvias Todavia não se pode esperar uma estrita observância delas Por um lado o interesse próprio pode às vezes ser mais bem atendido por um ato de injustiça Com maior frequência porém nossas infrações se devem a nossa tendência para regular nossos desejos e vontades em conformidade com a aparência de objetos ao invés de seu valor real e para preferir um bem menor à mão a um bem maior mais distante So mos capazes portanto de aproveitar uma vantagem imediata obtida por meio de um ato de injustiça em detrimento de uma vannem real porém remota a ser adquirida por meio da justiça O governo é a principal salvaguarda desenvolvida pelos homens para precaverse contra ceder a esta fiaqueza É incurável a propensão natural dos ho mens de preferir o contíguo ao remoto mas pode ser tornada inofensiva pela alteração de suas circunstâncias e situações Alguns homens são feitos governantes ou seja são colocados em uma posição onde têm interesse imediato na administração imparcial da justiça e nenhum interesse ou apenas um vago interesse no contrário Os demais homens são governados ou seja são tão coagidos e contidos pelos governantes que seu interesse imediato é a adesão à justiça Tal como acontece com as leis da justiça o motivo original e a obrigação natural de obediência ao governo é o interesse próprio e a obrigação moral resulta da simpatia pelo interesse público O objeto frmdamental e principal do governo é a administração da justiça i é a proteção da propriedade e o cumprimento dos contratos Contudo o governo wii além disso empreendendo projetos úteis de grande escala que os indivíduos seriam incapazes de realizar ou não teriam disposição para intentar Desta íbrma o governo não só prote ge os homens na busca de seus interesses mas também os obriga a buscálos Hume denomina virtudes artificiais aos deveres de obediência ao governo e à observância das regras de justiça os quais se distinguem das virtudes naturais A base pata a distinção é esta as virtudes naturais são aqueles a que os homens são impeli dos por algum instinto ou impulso natural original e que recebem aprovação moral porque constituem indícios de tal instinto ou impulso Por exemplo independente de quaisquer considerações de dever ou de utilidade há uma afeição natural dos pais para com seus filhos As virtudes artificiais por outro lado não são praticadas por causa de tal propensão Pelo contrário tudo indica que nossos instintos naturais sem freios nos levariam a todos os tipos de desigualdade e de insubordinação As virtudes artificiais aparecem como louváveis somente após o pensamento e a reflexão pois são virtudes somente em conseqüência da invenção humana Para dar um exemplo claro suponhamos que de acordo com os termos de um testamento uma fortuna é tirada de uma pessoa merecedora e entregue a outra que não a merece Nem a felicidade privada à primeira vista nem a felicidade do público são assim favorecidas Porém a virtude do ato emerge quando o examinamos como parte de um vasto plano que deve ser respeitado de modo inflexível mesmo em tais casos difíceis pois é benéfico o funcionamento do sistema como um todo D a v id H u m e 493 20 Treatise III ii 7 Essays Of the Origin of Govemment Principies ofMomls 4 Em outro sentido porém sáo naturais as virtudes artificiais Originamse ne cessariamente da situaçáo do homem E sáo um produto da razão que tanto quanto a paixão é parte da natureza do homem Assim como vimos Hume não hesita em falar de leis da natureza As virtudes artificiais não devem ser entendidas como contrárias às paixões São contrárias apenas a seu movimento insensato e impetuoso Assim o governo não erradica a propensão a preferir uma vantagem imediata contra outra remota apenas lhe dá um novo rumo para que destrua seus próprios efeitos negativos Na verdade as paixões são satisfeitas de melhor forma por serem controladas e dirigidas Em parti cular a ganância é muito mais plenamente gratificada por estar sujeita às restrições da justiça que por ser deixada livre Uma vez que a justiça e o governo são artifícios que visam o benefício humano é claro que em casos muito raros e extremos é permissível revogar sua obrigação A regra comum é a observância inflexível da justiça e a submissão cega ao governo Contudo em uma cidade sitiada por exemplo os direitos de propriedade podem ter de dar lugar à necessidade pública E como o sentimento universal da humanidade explica quando a ruína pública seria o único resultado da persistência na submissão ao governo os laços de fidelidade são afrouxados e é aceitável a rebelião O interesse dos homens pela segurança e proteção que só podem ser proporcionadas pela socie dade política é ao mesmo tempo o motivo original para a instituição do governo e a sanção imediata da obediência a ele Quando os governantes chegam a ser tão opressores que o governo não mais proporciona essa segurança e proteção a sanção não pode permanecer em vigor O efeito cessa com a causa Esta admissão do direito de desobediência em caso de emergência extraordinária suscita a seguinte dificuldade posto que os homens são tão propensos a seguirem normas gerais e a se manterem fiéis a máximas após as razões para elas terem deixado de existir não poderia talvez a obrigação moral de obedecer derivada da simpatia sobreviver à obrigação natural com base no interesse Não poderiam os homens ser obrigados a obedecer a um governo que destrói a justiça Hume afirma que não Nos so conhecimento da natureza humana da história passada e dos tempos de hoje nos informa que as imperfeições humanas contra as quais a sociedade política foi estabele cida para nos proteger são inerentes a todos os homens sem excluir os governantes e que é razoável esperar que estes às vezes ajam de modo cruel e injusto mesmo contra os seus interesses imediatos Esta observação baseada em diversos exemplos tem ela mesma o caráter de uma regra geral e por conseguinte pode servir como base para uma exceção à regra geral da obediência Assim é que a opinião geral da humanidade não acredita ser crime a resistência à grande opressão 494 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 21 Treatise III ii 1 22 ói22 1 3 5 9 6 1 23 Ibid 9 Essays O f Passive Obedience Na sábia estruturação das instituições políticas diz Hume devese supor todo homem um canalha ou seja que esteja sempre buscando seu interesse próprio A al ternativa a esta suposição é contar com a boa vontade dos governantes para a segurança da propriedade e da liberdade em outras palavras confiar na sorte e não ter segurança alguma Boas constituições não dependerão da existência de grandes virtudes indivi duais garantirão que os interesses privados dos homens até mesmo dos homens maus serão controlados e direcionados de forma a servir e produzir o bem público Esse é o objetivo do governo livre que Hume denomina sociedade mais feliz O poder de um governo livre é tão grande quanto o de qualquer outro governo mas é dividido entre várias partes talvez um monarca uma aristocracia hereditária e uma assembleia popular que exerçam esses controles uns sobre os outros para impedir que um deles supere os outros e adquira controle absoluto Uma vez que em certa medida o poder arbitrário é sempre opressor um governo livre deve agir de acordo com leis gerais iguais e previamente conhecidas Deve haver uma assembleia popular e um senado aris tocrático menor O senado fornece sabedoria e é mantido honesto pelo outro órgão É conveniente que a assembleia popular seja escolhida em eleições freqüentes por um eleitorado cuja qualificação seja bastante elevada devido a suas propriedades A aristocra cia é fiivorável à paz e à ordem mas tende a se tomar opressora É bom modificála pela adição de algum aspecto da democracia regulado de modo a evitar as fiilhas peculiares da democracia tal como a turbulência É de grande importância proteger o Estado contra a intrusão eclesiástica e os distúrbios relosos Deve haver uma união entre o poder civil e eclesiástico e uma dependência do clero em relação ao governo civil É necessária uma tolerância das seitas dissidentes para aplacar seu fervor e permitir que a união civil adquira uma superioridade acima das distinções religiosas A liberdade no sentido de um governo livre é explica Hume a perfeição da so ciedade civil Todavia a autoridade é essencial para sua própria existência e quando os dois entram em conflito como muitas vezes acontece devese talvez dar preferên cia à autoridade Por outro lado podese dizer com razão que o essencial pode e vai cuidar de si mesmo e precisa de menos proteção que aquilo que tende à perfeição da sociedade e é passível de ser negligenciado ou ignorado Apesar da estima que nutre pelo governo livre Hume acreditava que nos últimos tempos até mesmo a monarquia absoluta melhorara tanto que atendia aos fins da sociedade civil quase tão bem quanto qualquer outro tipo de governo Modernas mo narquias civilizadas haviam tomado emprestado instituições e costumes dos governos livres e muito se aproximavam deles na nobreza estabilidade e segurança oferecida à propriedade Poderiam melhorar ainda mais Essa reflexão ilustra a necessidade de cuidados ao formular verdades eternas e permanentes na política Devemos ser cautelosos na profecia Da mesma forma deve mos ser tolerantes nos julgamentos históricos e não por exemplo culpar eras passadas pela intolerância religiosa uma vez que não tinham experiência para mostrar que a tolerância apesar de paradoxal em princípio é salutar na prática Devemos julgar outros tempos pelas máximas vigentes naqueles tempos Para expressar isso de modo D a v id H u m e 4 9 5 mais geral o mundo ainda é muito jovem para que se saiba totalmente do que a natureza humana é capaz ou se conheça o efeito de alterações na educação costumes ou princípios dos homens Com alguma frequência as opiniões políticas de Hume sáo caracterizadas como tóri Por exemplo Thomas Jefferson considerava a História da Inglaterra de Hume res ponsável por minar os princípios do governo inglês livre e espalhar o torismo universal sobre o país Hume responderia é daro que o verdadeiramente ofensivo era sua recusa em sacrificar a verdade histórica que os pestilentos preconceitos do Whiggism Seus ensinamentos teóricos sobre a natureza bem tal como sobre os objetos e forma adequada de governo parecem estar muito próximos dos do grande filósofo Whig Locke To davia se Hume era filosoficamente Whig era como dizia um Whig muito cético Tal ceticismo transparece de forma mais óbvia talvez em seu ataque contra o sistema político da moda e contra o credo do partido Whig a teoria do contrato social e em sua advertência contra a desconfiança nutrida pela inovação A teoria do contrato social tal como a entendia Hume ensina que os poderes do governo derivam do consentimento dos governados que a obrigação de obediência se baseia na troca de promessas constantes do contrato que institui o governo e que os súditos são liberados de suas obrigações quando o governo se torna opressor e assim rompe com as promessas feitas por sua parte Um argumento contrário a essa teoria é o seguinte o motivo original para o dever de cumprir promessas é igual ao motivo original do dever de obedecer aos governantes as promessas atendem a nossos interes ses de uma maneira e governo de outra Este último dever portanto não depende do primeiro Se as promessas nunca tivessem sido inventadas ainda assim seria necessário o governo De fato tão distante está o governo de depender da fidelidade às promessas que em grande parte o governo foi de feto criado para impor essa fidelidade A principal objeção de Hume é que a teoria do contrato é adversa à prática e ao sen timento de toda a humanidade Hume admite que o governo em seus primórdios deve ter sido fundamentado no consentimento Os homens são quase iguais em força física e até que sejam educados também em intelecto ninguém pode sujeitar uma multidão a seu governo pela força A sujeição ao governo só poderia ter surgido quando os homens voluntariamente abdicassem de sua liberdade namral e se submetessem a ser governados em prol da paz e da ordem A isso se pode chamar de contrato original No entanto nenhum governo de que temos notícia formouse pelo consentimento voluntário do povo suas origens são ao contrário a conquista ou a usurpação Via de regra é exata mente quando ocorre uma mudança de governo que as pessoas são menos consultadas 4 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 24 Essays On the Independency of Parliament That Politics May Be Reduced to a Science Of the Origin of Government Idea of a Perfect Commonwealth O f Civil Liberty History o f England final do capítulo xxiii Apêndice to the Reign o f James I On religion see History início do capítulo xxix e capítulo Ixvi 1678 25 NTs Tóri torismo Relativo ao partido monarquista conservador britânico Tory Party 26 NTS Whigg Whiggism Relativo ao partido britânico que originou o Partido Liberal a partir de 1868 Os sentimentos naturais de todos os homens contradizem a teoria do contrato Tao distantes estão os governantes de considerar sua autoridade como sendo baseada no consentimento dos governados que tendem a tratar essa visão das coisas como sedi ciosa E os governados em geral pensam em si mesmos como tendo nascido devendo obediência a um determinado governo Assim Hume opõese à versão de Locke dos modernos ensinamentos acerca da lei natural Porém opõese a esta versão posicionandose em fundamental acordo com a sua intenção O objetivo é ordenar a sociedade política de tal forma que suas fina lidades sejam atendidas pela ação natural das paixões sem dependência excessiva da bondade extraordinária ou seja do acaso Hume afirma Todos os planos de governo que supõem grande reforma nos costumes da humanidade são obviamente imaginá rios Ora a oposição de Hume à teoria do contrato é exatamente que esta pressupõe tal reforma dos costumes Superestima o poder da razão ou mais exatamente também assume rápido demais que os homens perceberão de modo correto seus reais interesses e os buscarão com firmeza Se o fizessem governo algum existiria de fato exceto com base no consentimento Porém uma vez que não o fazem devese admitir e permitir que outras fundações sejam justas A teoria do contrato cuja intenção é ser consoante com as paixões dos homens leva a conclusões que são contrárias à experiência e ao sentimento universais Por exemplo nega a legitimidade da monarquia absoluta que é uma forma de governo tão comum e natural quanto qualquer outra A teoria do contrato ensina que quando os governantes passam a ser tão opresso res que já não fornecem srança e proteção aos governados esses últímos já não são obrigados a se submeterem Hume concorda como já vimos Porém não é necessária uma doutrina do contrato original para se char a essa conclusão em teoria nem para garantila na prática Em casos tão extremos podese confiar que os homens resistirão sem referência a qualquer teoria a doutrina da obediência passiva é tão distante de seus sentimentos comuns quanto a do contrato social Este último porém não só é desne cessário como também pernicioso No decurso normal dos acontecimentos o dever dos governados é submissão cega Todavia a teoria do contrato distrai nossa atenção da rra geral e a direciona para as exceções exceções essas a que podemos tender muito por nós mesmos a abraçar e ampliar Uma lealdade voluntária é uma lealdade precária Os laços de lealdade não devem ser dissolvidos mas solidificados A sociedade hu mana é um corpo permanente ganhando e perdendo membros a cada momento e por conseguinte é essencial a estabilidade do governo É necessário para o bem da paz e para que haja governo e governantes É desejável claro que a forma de governo seja boa e que os governantes sejam adequados No entanto fiizer da superioridade de uma forma de governo ou da adequação de um determinado governante o padrão dominante é abrir a porta para as próprias discórdia e desordem que o governo foi criado para eliminar Por conseguinte devese dar maior peso às reivindicações da ordem estabelecida D a v id H u m e 497 27 Essays O f the Original Contract O f Passive Obedience Idea of a Perfect Commonwealth Treatise III ii 810 Todo governo aponta Hume é fundamentado na opinião O principal esteio do governo de poucos sobre muitos ou seja dos fracos sobre os fortes é a opinião de que aqueles que detêm a autoridade têm direito a essa autoridade Em geral esta opinião é fruto do tempo e do hábito O costume é o grande guia da vida humana a maioria dos homens nunca cogita em indagar acerca dos motivos para a autoridade da forma de governo à qual se habituaram Ou se o fizessem ficariam satisfeitos em receber a resposta de que esta prepondera há muito tempo e que trilham pelo mesmo caminho de seus antepassados A antiguidade sempre gera a opinião do direito A fundamen tação do governo verdadeiramente de acordo com as inclinações naturais dos homens não é contratual mas costumeira As ponderações anteriores indicam que há limites para o que pode ser feito quan to a inovações e ainda mais importante quanto ao que deve ser feito uma vez que a novidade também tem seus encantos Jamais são justificáveis as inovações violentas Abalar a autoridade do costume e da antiguidade não a transfere para a razão que é um guia inconstante com pouca influência sobre o homem mas para os interesses particulares de cada homem disfarçados de razão O estadista sábio portanto fará reverência diante daquilo que carrega as mar cas da idade Na tentativa de melhorar uma constituição adaptará suas inovações à estrutura antiga de modo a não perturbar a sociedade Sua cautela pode ser refor çada pela reflexão sobre os limites da previsão humana Medidas políticas têm muitas conseqüências que não se podem prever é preciso guiarse pela experiência é preciso aprender com os erros percebendo sua inconveniência quando ocorrem O tempo não só fortalece as instituições políticas como também as aperfeiçoa Como vemos Hume inicia com os princípios mais fundamentais dos ensinamen tos acerca da moderna lei natural e chega a conseqüências que são em grande medida semelhantes às de Locke Ao mesmo tempo e partindo dos mesmos princípios rejeita elementos importantes dos ensinamentos de Locke e se torna um grande defensor do conservadorismo Desta forma sua doutrina política guarda uma aparência um tanto paradoxal e talvez contenha uma certa tensão que se reflete em sua máxima de que nâo há nada de maior importância em todos os estados que a preservação do antigo governo especialmente se livre L e it u r a s A Hume David Enquiry Conceming Human Understanding Secs 2 3 4 5 6 7 Hume David Treatise ofHuman Nature Tratado da natureza humana Livro III partes i e ii Hume David Essays O f the Origin of Government O f the Original Contract O f the First Principies of Government Idea of a Perfect Commonwealth Uma boa seleçáo dos ensaios 498 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 28 Essays O f the First Principies of Government O f the Original Contract Idea of a Perfect Commonwealth primeiras duas partes O f the Coalition of Parties parraíb 5 O f the Rise and Progress of the Arts and Sciences parágrafo 25 29 Essays O f the Liberty of the Press parágrafo 6 D a v id H u m e 499 políticos de Hume pode ser encontrada em David Humes Pohtical Essays Ed Charles W Hendel New York Liberal Arts Press 1953 B Hume David Treatise f Human Nature Tratado da namieza humana Livro I partes i e iii Hume David Enquiry Conceming the Prinriples ofMorak Investigação sobre os Princípios da Moral Seções 1 3 4 5 9 apêndices I II e III Hume David Essays Ensaios O f the Liberty of the Press Ihat Pblitics May Be Reduced to a Sci ence On the Independency of Parliament Whether the Bridsh Government Inclines More to Absolute Monarchy or to a Republic O f Parties in General O f the Parties of Great Britain O f Civil Liberty O f the Rise and Ptttess of the Arts and Sciences O f the Balance of Power O f Some Remarkable Customs O f Passive Obedience O f the Coalition of Parties O f the Protestant Succession J eanJacques R ousseau 17121778 Rousseau principia sua obra Du contrat social O contrato social com as célebres palavras O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado Como pode essa mudança acontecer Náo sei O que pode legitimála Acredito ser capaz de resolver esta questáo Assim afirmando Rousseau coloca o problema político em sua forma mais radical e ao mesmo tempo sugere o revolucionário princípio de que feita legitimidade a quase todos os rm es existentes A sociedade civil acortenu o homem e fez dele um escravo da lei ou de outros homens ao passo que ele como homem nasceu para a liber dade para o direito de se comportar como lhe aprouver Além disso a sociedade civil tal como é hoje constituída náo tem direito a invocar a adesão moral de seus súditos é in justa O pensamento político de Rousseau afestavase do presente em amhas as direções voltavase para a feliz liberdade do homem no passado e para o estabelecimento de um regime no futuro que possa apelar para a vontade daqueles que estão sob sua autoridade É tarefe do filósofo esclarecer qual é a natureza verdadeira do homem e com base nisso definir as condições de uma boa ordem política Visto de fora o pensamento de Rous seau tem um caráter paradoxal parecendo ao mesmo tempo almejar proposições contra ditórias virtude e sentimento suave sociedade política e estado da natureza filosofia e ignorância mas sua coerência é excepcional e suas contradições refletem contradições na natureza das coisas Rousseau tomou para si a tarefe de esclarecer o significado da moderna teoria e prátíca e assim fezendo trouxe à luz conseqüências radicais da moder nidade das quais os homens não tinham consciência antes A política moderna de acordo com Rousseau baseiase em uma compreensão parcial do homem O Estado moderno o Leviatã é guiado por sua própria preserva ção e por conseqüência pela de seus súditos Por conseguinte é inteiramente nega tivo tendo em conta somente as condições de felicidade de vida enquanto esquece a felicidade em si Qualquer sistema político que só leve em conta um único aspecto Ilusttam muito bem a consciência que tinha Rousseau do caráter paradoxal de suas obras sua Letter to M eTAlemhert em Politics and the Arts Letter to M dAIembert on the Theatre by JeanJacques Rousseau trans with notes and an introductions by AUan Bloom Glencoe 111 lhe Free Press 1960 p 131 n e a carta de Rousseau Lettre à M Beautnont sexto parágraíb da existência humana não pode satisfazer os anseios dos homens pela realização ou exigir sua total lealdade O argumento de Rousseau vai mais longe ainda ao afirmar que o Estado moderno baseado na autopreservação constitui um modo de vida que é exatamente contrário àquele que traria a felicidade dos homens A vida das grandes nações é caracterizada pelo comércio e consequentemente pela distinção entre ricos e pobres Cada homem pode buscar o seu ganho no âmbito da estrutura estabelecida pelo Estado O dinheiro serve de padrão para os valores humanos e a virtude é esque cida Cálculos de vantagens particulares são a base das relaçóes humanas isso pode não levar a uma guerra perpétua mas destrói a fundamentação na confiança e na cômoda sociabilidade e propicia o egoísmo e a má cidadania Porém acima de tudo porque há escassez e necessidades e não podem ser satisfeitos os desejos de todos os homens na sociedade os ricos são protegidos e os pobres oprimidos A sociedade civil é um esta do de interdependência mútua entre os homens mas os homens são maus e a maioria é forçada a desistir de suas próprias vontades a fim de trabalhar para a satisfeçáo dos poucos Ainda uma vez que esses poucos controlam as leis os muitos nem sequer usufruem a proteção pela qual supostamente participam da sociedade O resultado da concentração simplista e unilateral na preservação é a destruição da vida boa que vem a ser o único objetivo da preservação Esta é a base para o ataque de Rousseau ao Iluminismo Acreditavase que o progresso das artes e das ciências era a condição talvez a condição suficiente para o progresso da sociedade civil e para um aumento da felicidade humana O preconcei to seria derrotado pela educação as maneiras seriam refinadas pelas artes a natureza conquistada pela ciência Poderia ser assegurado um governo sólido que fosse funda mentado nas paixões daqueles que dele participam As esperanças do Iluminismo são as do homem moderno de acordo com Rousseau e é o retrato da sociedade humana pintado pelo Iluminismo que serve como ponto de partida para sua revolução do pen samento político Rousseau não apenas nega que o progresso das artes e das ciências aperfeiçoa a moralidade mas afirma ao contrário que esse progresso sempre leva à corrupção moral Para que floresçam as artes e as ciências exigem um ambiente de luxo e de lazer Em geral emergem estas dos vícios da alma na melhor das hipóteses uma curiosidade ociosa é sua fonte e na maioria das vezes são oriundas do desejo de confortos desnecessários que só enflraquecem os homens e satisfazem demandas desnecessárias A sociedade dominada pelas artes e ciências é uma sociedade cheia de desigualdade tanto porque os talentos necessários para empreendêlas se tornam motivo para distinção entre os homens como porque grandes somas de dinheiro são necessárias para sustentálas bem como aos trabalhadores para manobrar os apetre chos concebidos por essas artes e ciências A sociedade é transformada para sustentar J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 1 Discourse on Political Economy in The Social Contract and Discourses trans with an introduction by G D H Cole Everymans Library New York Dutton 1950 p 306308 323324 Este volume será citado doravante como o Rousseau de Cole as artes e as ciências e seus produtos e essa própria transformação cria uma vida cheia de vaidoso autoapreço e injustiça A primeira etapa da reflexão de Rousseau conduz a uma admiração pelo passado É noi a situação do homem moderno porém podemse encontrar na Antiguidade clássica modelos de sociedade civil em que os homens eram livres e se autogoverna vam A república velha a polis acima de tudo Esparta eram o refúgio de homens de verdade e proporcionaram longos perfodos de paz estabilidade e independência Rousseau revive a disputa entre os antigos e os modernos ao reafirmar a tese em fevor da cidade antiga Essa cidade não se baseava no conforto na autopreservação ou na ci ência mas na virtude a ciência das almas simples Virtude no sentido clássico signi ficava a boa cidadania e as qualidades que necessariamente a acompanham É somente com base na coragem no autossacrifício e na moderação que se pode fundamentar uma cidade em que a grande maioria governa a si mesma Rousseau é republicano é republicano porque acredita que os homens são livres e iguais por namreza Só uma sociedade dvil que é um reflexo dessa namreza pode ter esperança de fezer felizes os homens As exigências de uma sociedade livre eram atendidas da melhor forma pelas cidades gregas e por Roma embora não fossem perfeitas e a solução fundamental de Rousseau é um aperfeiçoamento a partir delas Eram pequenas de tal maneira que todos se conheciam e por conseguinte tinham interesses comuns e confiança uns nos outros Eram governadas pelo povo de tal forma que governantes e governados eram os mesmos não havia portanto diferenças fundamentais entre os interesses de gover nantes e governados As leis eram de antiga data e os homens se acostumaram com a carga de seu peso pela força do longo hábito O governo da lei é necessário para a so ciedade civil e leis justas exigem um rigoroso código moral para sustentar igualmente a sua carga somente uma estrita vigilância múma e hábitos de justiça são capazes de assegurar o seu funcionamento A principal consideração do governo é a virtude dos cidadãos A sociedade civil para funcionar como uma sociedade deve constituir uma unidade em que os indivíduos desistem de seus desejos particulares para o bem do todo A sociedade não pode ser concebida como o equilíbrio de interesses conflitantes para que os homens possam ser livres e não joguetes de grupos de interesse no poder Não o Iluminismo mas uma rígida educação moral é o prérequisito para uma sólida sociedade civil O gosto de Rousseau e sua análise sobre a injustiça da sociedade mo derna conduziramno de volta para a Grécia Contudo Rousseau foi levado ainda mais longe Seus ensinamentos não são apenas uma retomada dos de Platão e Aristóteles Se por um lado admira as práticas 5 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Discourse on the Sciences and Arts in JeanJacques Rousseau The First and Second Discourses ed by Rcer D Masters and trans by Roger D and Judith R Masteis New York St Martins Press 1964 Este volume será citado doravante como os Discourses de Masters The Government ofPoland in Rousseau Political Writingy trans and ed by Frederick Watkins New York Nelson 1953 chap ii p 162 ff cf Discourse on the Origin and Foundations ofln equality amongMen in Discursos de Masters p 7890 da Antiguidade por outro não aceita a sua teoria Nenhum ensinamento político será suficiente se meramente descrever como construir uma ordem estável ou como fàzer felizes os cidadãos É preciso também que legitime a autoridade exercida pelo gover no deve enunciar os fundamentos dos deveres e direitos do cidadão A questão políti ca central será sempre o que é justiça isto leva necessariamente à pergunta o que é natural Porque fora dos limites do direito positivo quando o problema é fundar ou reformar um regime o modelo exclusivo pode ser a natureza e mais especificamente a natureza do homem E é no que se refere a essa questão que Rousseau discorda de seus antecessores ou melhor juntase aos modernos em sua negação de que o homem é por natureza político Seguindo a forma corrente da ciência moderna em geral bem como a da ciência política Rousseau rejeita a noção de que o homem é encaminhado pela natureza em direção a um fim o fim da vida política A cidade ou Estado é uma construção puramente humana que tem origem no desejo de autopreservação Como tal o homem é concebível sem a sociedade política embora nesta época tardia possa esta se ter tornado necessária para ele A justiça como pode ser visto nas nações consiste em manter os privilégios daqueles que ocupam posições de poder Todos os Estados conhecidos estão cheios de desigualdades de nascimento riqueza e honra Talvez se possam justificar essas desi gualdades em termos de preservação do rime o que não o torna mais tolerável para aqueles que não as desfhitam As leis instituem e protegem essas diferenças hierárqui cas Sc há desigualdades naturais as que existem nas nações não as refletem pois são resultado das ações humanas e do acaso Não podem ser moralmente vinculativas para aqueles que oprimem com seu peso Se a sociedade civil não é natural então é preciso esquadrinhar um momento anterior a ela para encontrar o homem tal como é por natureza Esta investigação é ne cessária a fim de determinar as origens do Estado se a sociedade civil náo é natural é convencional portanto para que haja alguma legitimidade nas leis da sociedade civil suas convenções devem basearse nessa natureza primeira Rousseau fez uma tentativa de descrever o homem no estado de natureza Outros pensadores modernos concor dando que a sociedade civil é convencional tentaram fàzer o mesmo e fundamentar o direito político em um direito prépolítico natural Porém de acordo com Rousseau jamais conseguiram atingir o primitivo estado de natureza Náo foi radical o bastante sua própria rejeição da naturalidade da sociedade civil Negaram que o apego ao bem comum e a comunidade política sáo partes da perfeição humana e tentaram derivar as regras da política a partir de um indivíduo independente de qualquer Estado Contu do ao descrever esse indivíduo descreveram na verdade o homem que vive na socie dade civil Foram criptoteleólogos no sentido de que tentaram compreender o homem tal como ele é por namreza do ponto de vista de seu completo desenvolvimento na sociedade civil Entretanto se o homem não é verdadeiramente um ser político e social então a sua namreza deve ter sido transformada para que atingisse um ponto em que ele pudesse viver na sociedade civil Os pensadores anteriores ao retirar do homem sua natureza social viram nele muitas características que são resultado da vida J e a n Ja c q u e s R o u s s e a u 5 0 3 comunitária por exemplo a inveja a desconfiança o desejo ilimitado pela aquisição e a razão Para conhecer o homem natural é necessário um esforço mental quase sobre humano pois não temos contato com ele somos homens civilizados desgastados pela corrosão da sociedade civil Há um percurso do homem natural até o homem civil mas esse trajeto não é como o caminho do embrião até o homem onde o primeiro passo é direcionado para o último e por ele iluminado Este movimento não é obrigatório por isso precisamos de uma história da espécie humana Pela primeira vez a história tornase parte inte grante da teoria política O homem é um ser diferente em épocas diversas embora para Rousseau ainda possua uma natureza primitiva que domina todas as transforma ções ocasionadas pelo tempo A consciência que tinha Rousseau da desproporção entre o homem natural e o homem civil que está implícita em uma rejeição da naturalidade da sociedade civil obrigao a uma investigação do homem primitivo Os outros ensi namentos que não revelam o verdadeiramente natural conduzem apenas a uma es cravidão mais profunda aos vícios engendrados pela sociedade civil A investigação que realiza se desenrola de duas maneiras a primeira é por meio do que hoje chamamos de antropologia O primitivo que era antigamente desprezado como inferior e imperfei to agora parece lançar luz sobre esse período anterior e por conseguinte se torna um objeto de grande interesse científico Entretanto porque aqueles denominados selva gens ou primitivos já vivem em sociedades não são mais que placas de sinalização na estrada de volta Mais importante é a segunda maneira a introspecção para descobrir os primeiros e mais simples movimentos da alma humana Posto que o homem não é primordialmente político e social se quisermos enten dêlo como é por natureza devemos despojálo de todas as qualidades relativas à vida em comunidade A primeira e mais importante delas é a razão A razão depende da fala e a fàla implica na vida social Assim a definição do homem já não pode ser que se trata de um animal racional De início só se poderia dizer que é um animal como os outros animais Vagueia pela floresta em busca de alimento Procura preservar o seu ser mas não é um animal voraz por natureza hostil a todos os outros membros de sua espécie tal como Hobbes entendia que fosse Hobbes só podia afirmar isso ao atribuir aos primeiros homens os desejos ilimitados do homem político Na verdade este primeiro homemanimal tem apenas a mais simples necessidades do tipo que em geral são satisfeitas com facilidade Nâo é capaz de imaginar um futuro distante Não tem medo da morte porque não é capaz de concebêla apenas evita a dor Não tem necessidade de combater seus semelhantes exceto quando há uma escassez das ne cessidades básicas É ocioso por natureza e se move somente para satisfazer suas neces sidades naturais Só busca a riqueza lun ser que tem capacidade de previsão que tem necessidades além do natural O homem natural industrioso de Locke é também uma elucubração derivada da sociedade já desenvolvida É nesse ócio que é desfrutado o verdadeiro prazer do animal ele percebe quanto é agradável sua própria existência São apenas duas as suas paixóes fundamentais o desejo de preservar a si mesmo e alguma compaixão ou simpatia para com o sofrimento de outros de sua espécie Esta última o 5 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y impede de ser brutal para com os outros homens quando tal humanidade náo entra em conflito com sua própria preservação Náo possui virtudes porque náo precisa de nenhuma Não se pode dizer que tem moral tudo o que fez fez porque lhe sarada fezêlo Mas possui alguma bondade não causa mal Contemplados desta forma podese dizer que todos os homens são iguais por natureza Possuem na prática apenas existências físicas se existem diferenças de força pouco é seu significado porque os indivíduos estão em contato uns com os outros Não se pode derivar o direito de um homem governar outro a partir do estado natural do homem O direito do mais forte não é um direito primeiro porque o escravo por sua vez pode sempre se revoltar obrigação moral alguma se estabelece porque um homem mais forte subjugou outro mais fraco Segundo um homem jamais poderia escravizar outro no estado de natureza porque os homens não tinham necessidade um do outro e seria impossível manter um escravo Tampouco fornece a família uma fon te de direito político porque no estado de natureza não há femília As relações entre o homem e a mulher são informais e a mãe cuida dos filhos por instinto até que estejam fortes o bastante para se defenderem sozinhos não há envolvimento de autoridade ou dever O estado de natureza é um estado de igualdade e independência Há duas características que distinguem o homem dos outros animais e assumem o posto da racionalidade como a qualidade essencial da humanidade A primeira é a liberdade da vontade O homem não é um ser determinado por seus instintos é capaz de escolher aceitar e rejeitar É capaz de desafiar a natureza E a consciência dessa liberdade é a prova da espiritualidade de sua alma O homem tem consciência de seu próprio poder A segunda característica do homem que vem a ser menos questionável é a sua perfectibilidade ou capacidade para a perfeição O homem é o único ser capaz de gradualmente aperfeiçoar suas feculdades e legar esse aperfeiçoamento para toda a espécie Todas as feculdades mentais superiores que se veem no homem civilizado são provas disso São agora parte permanente da espécie mas não lhe pertenciam por natureza Com base nessas duas características fundamentais do homem podese dizer que o homem natural se distingue por não ter quase nenhuma natureza por ser potencialidade absoluta Não há metas apenas possibilidades O homem não tem determinação é um animal livre Esta constituição o conduz para longe de seu con tentamento original em direção à miséria da vida civil mas também o torna capaz de dominar a si mesmo e à natureza O homem natural portanto é um animal preguiçoso que desfruta a sensação de sua própria existência preocupado com sua preservação e tendo compaixão pelo sofirimento de seus semelhantes livres e perfectíveis Seu movimento em direção ao estado civilizado é o resultado de acidentes imprevisíveis que deixam sobre ele marcas indeléveis As catástrofes naturais forçamno a um contato mais próximo com outros homens Desenvolve a fala e começa a manter um lar estável com sua mulher e filhos É mais frágil e suas necessidades são maiores agora mas sua existência é intrinsecamente agradável Não há ainda nenhuma lei nenhum Estado nenhuma desigualdade As necessidades dos homens não são tais que os tornem concorrentes No entanto final J ea n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 5 mente os homens se tornaram dependentes uns dos outros e as primeiras experiências de cooperação ou de metas comuns sugerem à mente o que poderiam ser a obrigação ou a moralidade A liberdade do homem ainda vem em primeiro lugar e quando for vantajoso para ele poderá desvencilharse de qualquer compromisso assumido mas também percebe uma vantsem na obtenção do auxílio de outros bem como a neces sidade de fezer a sua parte se quiser receber o mesmo em troca No entanto ainda é tão independente que não estará disposto a sacrificar qualquer fração de sua liberdade a fim de garantir o cumprimento de contratos Além do despertar da primeira consciência da obrigação moral o homem nesta nova situação de comunidade começa a exercer a vingança Uma vez que os homens estão em contato diário uns com os outros há mais motivo para atrito e porque náo há lei cada homem é juiz em causa própria É enfraquecida a compaixão natural que é a raiz da humanidade no estado de natureza como resultado do conflito entre o amor de si e a compaixão cm casos assim o primeiro sempre vence Porém não são essas batalhas que fezem com que os homens constituam a sociedade civil é a instituição da propriedade privada O fundador da sociedade política c o homem que causou os maiores males para a humanidade foi aquele que primeiro disse Esta terra me per tence O cultivo do solo é a fonte da propriedade privada Somente aquilo que um homem fez ou aquilo a que acrescentou seu trabalho pode em qualquer sentido ser considerado como pertencente a ele Com a fundação da propriedade privada surge também o planejamento para o futuro Quando os campos c riachos por si mesmos forneciam alimentação vestuário e habitação o homem não pensava no futuro O agricultor porém deve fezêlo e o desejo de aumentar e proteger suas colheitas mul tiplica seus desejos e fez com que busque o poder É ainda na instituição da propriedade privada que encontramos a origem da desigualdade Pois diferentes homens têm diferentes habilidades e talentos que permi tem que alguns deles aumentem suas posses Logo toda a terra disponível está cercada e alguns possuem mais do que precisam outros menos Os homens reconhecem a propriedade como algo real mas sua própria necessidade também é algo real Não há juiz para julgar entre essas diferentes reivindicações e não há nenhuma lei natural para solucionálas porque a situação foi criada pelo homem não é natural Necessariamen te sobrevêm um estado de guerra entre os proprietários e os não propretários Neste estágio o homem já desenvolveu toda a sua potência e se fez infeliz A maior mudança em sua natureza é que antes vivia inteiramente pata si mesmo dentro de si Agora vive para os outros não só porque depende deles do ponto de vista físico mas porque aprendeu a compararse aos demais Sua alma tornouse escrava de outros homens e este vínculo é mais forte que sua necessidade deles para ajudálo a satisfezer seus desejos Busca o dinheiro e as honras em vez de refletir sobre seus reais desejos O homem tornouse vaidoso e na busca para satisfezer essa vaidade existem infinitas fontes de contenda A vaidade ou amorpróprio amourpropre tomou o lugar do amor de si amour de sot original em lugar de desejos físicos que devem ser apazigua dos está iora possuído por infinitos anseios por bens que nunca poderá usar e por uma glória que despreza assim que é obtida 5 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o ii n c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y É neste momento que um indivíduo entre os ricos consciente do perigo constante para sua propriedade e da situação miserável do povo sure um contrato para o esta belecimento da sociedade civil Este homem esperto discerne a possibilidade de garantir seu questionável direito à propriedade por meio do consentimento de outros homens e de manter a paz por meio de um paao mútuo para proter a todos contra a ressão Foi extinta a paixão natural da compaixão e seu único substituto na nova situação é uma moralidade que define os deveres dos homens sustentada por uma autoridade reconhe cida Já não basta a natureza O aterrador estado de guerra torna necessário este passo e assegura a aquiescência dos pobres No entanto tratase de uma fraude Os ricos dão uma aparência de legitimidade a seu controle de suas propriedades e têm a possibilidade de desfrutálas em paz É legalizada a desigualdade que gradualmente se instalou e a opressão dos pobres é mantida pela força pública Hobbes tem razão quando diz que os homens que são comidos a fundar a sociedade civil são hostis uns aos outros e atormen tados por desejos infinitos Está errado apenas em afirmar que é esta a natureza do ho mem Houve um estado anterior que definiu o caráter essencial da liberdade do homem e que torna impossível que este se submeta legitimamente à vonude de qualquer outro Locke está certo quando afirma que o objetivo da sociedade civil é proteger a proprieda de Também está incorreto apenas em afirmar que a propriedade é natural ao homem e que as desaldades estabilizadas pela sociedade civil estão em conformidade com reais padrões de justiça Todo homem tem o direito natural de se preservar e de apr de acordo com este direito A sociedade civil não tem nenhum fundamento natural para legitimar um comando que contradiz o direito natural Entretanto todas as sociedades civis emi tem tais comandos o direito natural não pode ser a sua legitimação O homem é livre por natureza e a sociedade civil toma dele sua liberdade ele é depende da lei e a lei é elaborada em fevor dos ricos pelo menos em sua origem tencionava fevorecêlos Então o problema político está na apresentação da história de seu nascimento O homem livre por natureza precisa do governo para organizar e regular a vida em comum à qual se comprometeu Porém exatamente porque desenvolveu terríveis pai xões que demandam um governo um governo justo passa a ser factualmente difícil porque os homens que elaboram as leis estão sob a influência dessas paixões e os ci dadãos continuam a possuir essas paixões e têm todo o interesse em alterar o governo em prol da sua satisfeçáo Somente a mais rígida educação moral é capaz de remover essa dificuldade educação moral esta que quase nunca é encontrada Ainda do ponto de vista do que é correto a sociedade civil exige uma devoção ao bem comum uma subordinação do indivíduo ao todo enquanto o homem por natureza é um animal independente e ofsta Em qualquer ponto onde percebe um conflito entre a socie dade e ele mesmo é natural e devidamente motivado por seu interesse egoísta Como pode a sociedade civil legitimamente compelir um homem a se sacrificar por ela Como pode um indivíduo egoísta exigir que outro lhe obedeça Nenhum contrato J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 7 5 As painas precedentes resumem o argumento de Discours sur l origine et lesfòndementes de Tinégalité parmi les hommes Discurso sobre a origem da desigualdade entre os bomens pode vincular ao ponto de sacrificar aquilo pelo qual foi celebrado e nenhum homem por vontade própria cede por contrato a liberdade que é o âmio de seu ser A sociedade civil não pode ser fundamentada no direito natural a natureza só dita o interesse próprio A natureza é muito baixa para abarcar a sociedade civil o esmdo da namreza conduz a sua rejeição como padrão pelo menos para a sociedade Segundo Rousseau seus antecessores não compreenderam isso A sociedade civil exige moralidade porque o caráter natural do homem não é suficiente para obrigálo in foro interno às exigências mais rigorosas da vida política e suas paixões recém inflamadas o tornam ainda menos apto para a sociedade Uma sociedade que se baseasse no cálculo dos interesses de cada homem teria como resultado apenas que as paixões continu ariam a se desenvolver pois o interesse de cada homem já é determinado por suas paixões e levaria inexoravelmente à tirania ou à anarquia Por consuinte posto que a moral não é natural ao homem é preciso criála É a base para este projeto que Rous seau estabelece em O contrato social nele tenta solucionar o problema que constitui o conflito entre o indivíduo e o Estado ou o interesse próprio e o dever Nada pode sujeitar a liberdade do homem mas a sociedade civil é uma sujeição O ato de criação da sociedade civil é idêntico ao de estabelecer compromissos moralmente vinculati vos para outros Já que a natureza não fornece a base para o acordo é necessária uma convenção Tradicionalmente as convenções são consideradas como sendo de ordem inferior às leis naturais exatamente porque são feitas pelo homem e mutáveis as con venções são diferentes em toda parte e parecem ser o resultado da vontade arbitrária e do acaso O homem que obedecesse à convenção pareceria ser prisioneiro de outros homens Porém se o homem é livre sua capacidade de fàzer convenções é um sinal dessa liberdade sua vontade não é limitada por natureza Nesta medida o homem criador da moral e do Estado é o cumprimento da noção do homem como ser livre e indeterminado Se pudesse ser evitado o caráter meramente arbitrário das convenções então seria possível dizer que uma sociedade civil convencional é ao mesmo tempo a realização da natureza humana e digna de seu respeito e obediência Como afirma Rousseau em suas próprias conmndentes formulações A dificul dade é encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado pela qual cada um unindose a todos no entanto obedeça apenas a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes A solução é que cada homem se dê por inteiro à comunidade com todos os seus direitos e proprie dades O depósito é feito no todo mas não em um indivíduo desta forma ninguém se coloca nas mãos de outro O contrato é igual pois cada um dá tudo Ninguém se reserva quaisquer direitos pelos quais possa pretender julgar sua própria conduta por conseguinte não há fonte de conflito entre o indivíduo e o Estado pois o indivíduo contratou aceitar a lei como o padrão absoluto para seus atos O contrato social esta belece uma pessoa artificial o Estado que tem uma vontade tal como a pessoa natural o que parece necessário ou desejável para essa pessoa é a vontade dela e aquilo que é a 5 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a s L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Social Contract Iiiv 7 Ibid Ivi vontade de todos é lei A lei é o produto da vontade geral Cada indivíduo toma parte na criação das leis mas a lei é geral e o indivíduo em seu papel como legislador deve fazer leis cuja concepção permita que sejam aplicadas a todos os membros da comu nidade O indivíduo transforma sua vontade em lei mas agora ao contrário do que fez no estado de natureza deve generalizar sua vontade Como legislador sua vontade só pode ser igual à vontade de todos como cidadão obedece a sua própria vonta de como legislador Embora os homens de gostos e entendimentos diversos componham o corpo legislativo soberano ninguém pode impor sua vontade aos outros a menos que possa ser igual à vontade dos outros A lei é produzida pela vontade de cada um que pensa em termos do todo A função primoidial do contrato social é constituir um regime que pode expressar a vontade geral A sociedade civil é apenas um acordo entre um grupo de homens de que cada um deve tornarse parte da vontade geral e obedecer a ela Como resultado cada um permanece tão livre quanto era antes porque a nada obedece além de sua vontade transformada A liberdade convencional da sociedade civil satisfaz o direito primário natural do homem a liberdade Enquanto a sociedade estiver organizada de forma que as leis possam ser elaboradas de forma impessoal nenhum homem pode fazer uma reclamação contra ela com base no direito natural O homem no estado de natureza tinha direito a tudo aquilo de que tivesse vontade nem a vontade nem a razão de outros homens podiam legitimamente emitirlhe comandos Não há nenhuma razão eterna que possa e deva controlar nossas ações Cada homem faz seus próprios julga mentos com base em sua experiência pessoal e afetado por sua vontade particular Este fato se reflete na noção de vontade gerai o homem é um ser que tem vontade e a capa cidade de fezer aquilo de que tem vontade é a essência da liberdade A vontade é como tal independente daquilo de que se tem vontade A lei natural ou qualquer outro comando racional voltado para o bem comum é uma limitação à liberdade extraída de uma fonte duvidosa Portanto a vontade geral não contém diretrizes específicas pode determinarse a fezer o que quer que lhe ocorra é vazia em si mesma é vontade pura Este é outro aspecto da preservação da liberdade natural A vontade geral é formal e só se distingue da vontade particular porque só pode ser vontade daquilo que todos poderiam concebivelmente ter como vontade Assim se estabelecem alguns limites sobre o que a sociedade como um todo pode fazer ao contrário da licença completa da natureza e Rousseau acredita que essas limitações puramente formais são suficientes para garantir a decência ou que a vontade generalizada em si é moral O filósofo crê que descobriu o verdadeiro princípio da moralidade que outros apenas intuíram e ten taram fundamentar em interpretações dúbias e arbitrárias da natureza ou da religião revelada A liberdade do homem que parece ser independente e oposta ao governo da moral é a única fonte de moralidade Com esta descoberta Rousseau completa a rup tura com os ensinamentos políticos da Antiguidade clássica iniciada por Maquiavel e Hobbes Seus predecessores imediatos mantiveram a noção de lei natural que limitava a liberdade humana que eles próprios ensinavam J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 9 8 Ibid Iv ii O movimento a partir do estado natural até o estado civil produz uma grande transformação no homem Era antes uma besta aíavel tornouse agora um ser mo ral Todas as suas capacidades entram em jogo suas ideias são desenvolvidas e amplia das e seus sentimentos são enobrecidos No estado de natureza o homem agia apenas por instinto íora deve avaliar suas ações em relação a princípios para que as palavras escolha e liberdade adquiram um sentido moral Se um homem continua a ir segundo sua vontade particular podese dizer que se rebaixa ao nível dos animais Abre mão de sua liberdade tanto no sentido de ser um mero instrumento de suas pabtões como no sentido de que destrói a possibilidade de uma sociedade justa e por conse guinte colocase em poder dos outros A sociedade tem justificativa portanto para forçálo a ser livre para cosilo a exercer sua vontade da forma adequada A educação e a punição são os instrumentos dessa coação Porém a dignidade verdadeiramente humana emerge da opção consciente pela vontade geral em detrimento da particular O contrato social institui o soberano Rousseau utiliza o termo soberano para indi car que a fonte de toda a Intimidade está no povo em geral ao contrário de no monarca ou nos aristocratas ou em qualquer outro segmento Deve haver um governo que pode ser monárquico aristocrático ou democrático mas seu direito de governar é oriundo do povo e exercido somente enquanto lhe agradar Posto que foram abandonadas a na tureza e a religjão revelada só a voz do povo pode estabelecer a lei cada promulgação deve retornar a ele a sua vontade A vontade do povo é a única lei O govemo só obedece à lei e cada cidadão é constantemente um membro do corpo legislativo Todo cidadão encontrase em uma dupla relação com o Estado como inalador na medida em que é membro do soberano e como súdito da lei um indivíduo que deve obedecer Várias conseqüências decorrem do íato de que o soberano é a única fonte de legitimidade Em primeiro lugar a soberania é inalienável O direito de criar leis em lugar do corpo de cidadãos em geral não pode ser atribuído a nenhum homem ou gmpo de homens Ririam estes de acordo com suas vontades individuais e seus de cretos não seriam vinculativos Isto significa que o governo representativo é uma má forma de govemo Outros assumem a responsabilidade dos cidadãos que perdem sua virtude de cidadãos bem como sua liberdade Se uma nação é tão grande que os cidadãos não podem leunirse em um corpo comum então a representação tornase uma lastimável necessidade uma necessidade que enfraquece a expressão da vontade geral Em tal caso para que seja preservada qiuJquer legitimidade os representantes devem ser eleitos por assembléias locais em que se reúnam todos os cidadãos e os re presentantes devem receber instmções detalhadas Não devem ser independentes em seu julgamento e para cada nova questão que se apresente devem consultar aqueles que os elegeram Caso contrário não há vontade geral A vontade geral exige con sulta permanente Pode ser consultada apenas pelo voto para que seja majoritário o sistema sugerido por Rousseau Contudo não se trata esta de uma forma de maioria simples as leis só podem ser devidamente instituídas se os cidadãos possuem a virtude 5 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Ibid IIIXV Cf Government ofPoland cap vii p 187205 de suprimir suas vontades particulares Os indivíduos devem ser cidadãos no sentido clássico o que requer uma moralidade autoimposta muito rígida Rousseau não é um libertário no sentido moderno da palavra não é possível que cada homem viva como deseja pois isso arruinaria a possibilidade de acordo e destruiria as fontes da energia moral necessária para o autocontrole Rousseau desprezava a democracia tal como nor malmente praticada porque esta signiíica uma selvagem anarquia de interesse próprio A insistência formalista no voto do povo não tem sentido sem o estabelecimento de suas precondições morais Esparta estava correta em se concentrar nos hábitos de seus cidadãos ao contrário da moderna condescendência que deixa a vida privada a cai dos indivíduos Os gostos e costumes dos cidadãos afetam todos os seus julgamentos e determinados hábitos impossibilitam totalmente o governo livre Rousseau reestabe lece a cidade grega mas traz à luz o verdadeiro princípio que motivou sua insistência na virtude austera a virtude em si não é um fim é um meio para a liberdade Ao mesmo tempo além da virtude a expressão da vontade geral deve ser garanti da pela supressão das fecções Cada cidadão por si só não pode esperar que prevaleça sua vontade particular e reconhece que se todos votassem de acordo com suas pai xóes não haveria ordem É somente quando pertence a um grupo grande o suficiente para influenciar as votações de maneira decisiva que sua vontade particular supera sua percepção da vontade geral a fim de discernir o que ele pessoalmente pode ganhar Assim devem ser proibidos os partidos e os extremos de riqueza e pobreza evitados Na medida do possível os cidadãos informados devem votar como indivíduos e o resultado de tal votação pode ser considerado como uma vontade geral Rousseau tinha consciência da tensão que existe entre a estabilidade que a lei exige e a constante reavaliação implícita na assembleia do povo Não há nenhuma lei ou instituição que não possa ser revogada para que o Estado seja regido pelas vonta des reais de seus atuais cidadãos Toda assembleia deve começar com a peiunta Apraz ao soberano preservar a atual forma de governo Contudo a ideia de que a lei é um produto da vontade própria do indivíduo enfraquece a admiração quase religiosa que é necessária para manter o respeito pela lei Antigas instituições e a santidade da lei são restrições sobre a expressão do interesse egoísta é mais provável que o homem que jamais concebeu a possibilidade de alterar os costumes estabelecidos se comporte de acordo com comandos que jamais questionou do que aquele que está acostumado com mudanças fáceis Esta é uma dificuldade que Rousseau nunca solucionou de todo mas que tenta eliminar quando dificulta o processo de mudança quando responsabiliza por seus efeitos os indivíduos que a sugerem e defende uma educação que incute o respeito pelas boas instituições No entanto não pode ser removida a possibilidade de mudança se os cidadãos tiverem consciência de sua liberdade e forem capazes de discernir o que a preserva e o que a destrói J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 1 1 10 Social Contract IILxviii O soberano é também por namreza indivisível A noção de vontade geral toma impossível que haja uma separação de poderes que nada mais é que uma delegação para a execução de fiinçóes previamente definidas pelo soberano e que em última análise depende dela O poder soberano é uma unidade que náo pode ser dividida sem que seja destruída Nenhuma autoridade existe sem que seja derivada da vontade geral O contrato social é um acordo para formar uma sociedade civil e estabelece o instrumento da autoridade o soberano Porém a instituição deste corpo não lhe confere movimento a nova sociedade deve ter atividades e finalidades precisa de leis O caráter das leis não é determinado pelo contrato o contrato só estabelece o órgão le gítimo de legislação Os decretos individuais podem variar de acordo com os interesses da sociedade As leis tal como a vontade geral devem ser apenas gerais Não podem referirse a pessoas ou atos específicos Se o fizessem as pessoas envolvidas não parti cipariam da vontade geral estariam de fora dela uma vez que suas vontades não par ticiparam do estabelecimento da lei A lei pode estabelecer regulamentos que especifi cam diversos deveres honras e classes mas não podem dizer a quem esses regulamen tos se aplicam Considera os cidadãos como um corpo e os atos como abstratos As leis devem ter sanções impostas pelos homens já que não há outras fontes delas sobre a terra estas sanções devem incluir o poder de vida e morte na medida em que os maus necessitam de repressão Caso contrário a sociedade seria uma vantagem para os injustos mas não para os justos E não há limites para o alcance da lei O que não afeta as necessidades da própria sociedade civil deve ser deixado à livre de terminação do cidadão mas não há meio de estabelecer com antecedência o que será necessário para a preservação da sociedade Náo há direitos reservados em favor dos cidadãos Se houvesse os cidadãos poderiam abandonar o contrato em momentos crí ticos Ainda uma vez que a sociedade civil implica todo um modo de vida os assuntos aparentemente mais triviais de usufruto particular podem ter um efeito político Os costumes da sociedade são motivo de preocupação igual ou maior que as instituições do governo porque os costumes subjazem às instituições e lhes dão força Encontrar um código de leis que seja adequado a um povo que seja completo e que será obedecido não é uma tarefa para homens primitivos tal código não pode emergir a partir da simples reunião de um grupo de homens que se constituem como soberano As vontades particulares ainda são predominantes não são reprimidas pelo hábito da vida civil Do ponto de vista prático é só depois de um povo ter vivido por um longo tempo com suas leis e hábitos que pode ser considerado um povo um grupo com interesses comuns e uma vontade geral algo que vai além de uma aglomeração É só mais tarde que o povo estará preparado para julgar se são boas suas leis No entanto a sociedade precisa de leis desde o início para que os mais fortes não tomem o poder e im ponham suas vontades particulares à massa do povo e a escravize Por conseguinte para a formação de uma verdadeira sociedade civil é necessário um legislador Este homem 5 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Discourse on Political Economy p 298 no Rousseau de Cole extraordinário deve descobrir as regras apropriadas para a sociedade em questão e deve forçar ou persuadir o povo a aceitálas Ele próprio não pode ser um membro do estado e não tem autoridade ele propõe as leis que em última análise devem ser aprovadas pela vontade geral O seu é um trabalho de amor pelo qual obtém apenas honra Rousseau tem em vista homens como Moisés e Licurgo que estabeleceram um povo e com este a justiça Nisto também retorna a uma visão clássica pois não acredita em reforma parcial ou no triunfo automático e gradual da razão na política É necessária a ação cons ciente típica do estadista toda a ordem deve ser fundada em um só momento de acordo com um plano racional e só a grandeza pode orientar esta tarefa A maior tarefe política é o estabelecimento de um regime e nada pode eliminar a necessidade de virtude extra ordinária para concretizálo A própria grandeza do legislador faz mais difícil seu sucesso porque aqueles a quem pretende convencer não são capazes de entendêlo É preciso que aprenda a língua do vulgo e esta é principalmente a língua da inspiração divina ou da religião O povo pode impressionarse e convencerse pelos tons de misericórdia e pela aparência de milsre Esta é uma das poucas maneiras de calar a voz do interesse priva do por tempo suficiente para que os muitos aprendam a apreciar as vantagens da lei A religião é usada para fins políticos e na visão de Rousseau não deve tornarse indepen dente do controle político A religião não deve conter ensinamentos que não conduzam às finalidades do regime Rousseau estava perfeitamente consciente de que impostores poderiam desempenhar o papel de legisladores e que o homem forte é sempre um perigo Porém ao examinar as origens dos regimes via apenas meios como esses para estabelecer regimes ordeiros e legítimos Os regimes são criados por homens e os bons exigem grandes homens e meios extraordinários Embora as condições formais de legitimidade sejam as mesmas em toda parte Rousseau queria preservar um nicho para a atividade do estadista Sabia que a política não poderia tornarse uma ciência abstrata como desejavam alguns teóricos moder nos Rousseau tentou combinar a clareza e a certeza da ciência política moderna com a flexibilidade da arte clássica da política O feto da diferença de circunstâncias significa que muitas nações não podem desfrutar da liberdade e que muitos outros só podem usufruir de uma forma diluída dela Um regime que pudesse ser concretizado em to dos os lugares seria de ordem tão inferior que os poucos que podem desfrutar de um bom regime ficariam privados dele sem que os demais tirassem proveito disso A legis lação deve ser elaborada no momento certo e um povo primitivo não corrompido por hábitos decadentes é o mais qualificado para fezêlo Devemse levar em consideração seu clima e seu território sua extensão e seu caráter As tradições do povo e seus cos tumes determinam a gama de possibilidades A formalidade da vontade geral permite essas diferenças Não há doutrina da lei natural que limite as atividades do estadista e o obrigue a suavizar seu julgamento acerca do que mais propicia o bem comum O feto de que existem diferentes povos implica que haverá diferenças entre as determinações da vontade geral É preservada a diversidade da vida mas o homem não fica sem orien Je a n Ja c q u e s R o u s s e a u 513 12 Social Contract Illvii cf Government ofPoland cap ii p 163165 tação motal na diversidade existe a unidade que é a mesma em toda parte a vontade geral Entretanto náo há substanciais comandos universais implícitos na vontade ge ral uma grande variedade de princípios opostos pode ser legitimamente emitida por ela a vontade geral pode estipular leis que levam a grande variação nos estilos de vida e de açáo De acordo com O contrato social e a fílosofía política que lhe subjaz não existe regime ou esquema de leis ideal Diferentes sistemas podem igualmente permitir a existência de uma vontade geral em circunstâncias diversas A vontade geral é apenas a expressão de um desejo de que algo seja feito Também é necessária uma força para íãzêlo Esta necessidade acarreta uma distinção entre o legislativo e o executivo entre o soberano e o governo Uma vez que o soberano só pode legitimamente promulgar leis acerca de assuntos gerais a aplicação das leis a atos ou pessoas específicas não é de sua alçada mas ao contrário pertence ao governo O governo recebe suas instruções da vontade geral e usa sua autoridade para determi nar os atos dos cidadãos de acordo com a percepção do soberano É o intermediário entre o soberano e o cidadão individual e é totalmente derivativo Esta distinção de Rousseau é nova e funciona como uma ruptura fundamental com seus antecessores em particular os da Antiguidade clássica Prefigura a distinção entre Estado e socie dade que é tão importante hoje Para os pensadores clássicos a disposição dos cargos públicos o governo era a principal consideração A forma de governo determina a forma da sociedade e com uma mudança de governo seria constimída uma nova sociedade Não se devia lealdade ao país ao povo ou à sociedade mas ao governo No esquema de Rousseau a existência do soberano antes da existência do governo signi fica que este último é apenas um fenômeno secundário do ponto de vista do direito e do fato O contrato constitui a sociedade que antecede o governo e que se mantém apesar de mudanças no governo Por conseguinte o mais interessante objeto de estudo é a sociedade e se deve lealdade primordialmente a esta e não ao governo O principal feto da política não é o govemo dos homens o governo é um mal necessário porque os homens precisam de orientação no exercício de sua liberdade Quanto menos governo melhor e há uma grande preocupação em limitar o âmbito do governo e impedir que contrarie a vontade geral O governo é sempre visto com suspeita e os cidadãos devem ter cuidado para que o exercício de suas funções não os iniba injustamente no exercício de sua liberdade O governo institui as desigualdades de hierarquia e de autoridade que lhe são necessárias mas essas diferenças não estabelecem reais diferenças de valor entre os cidadãos que são todos iguais O governo sempre depende totalmente da vontade do povo e pode ser reduzido a sua igualdade original a eles É fecil perceber como pensadores posteriores foram capazes de desenvolver sobre esta base noções como a debilitação do Estado sem acreditar que seriam perdidas as vantagens fundamentais da sociedade e é menos chocante pensar em mudanças no governo com base nisso A tradição mais antiga ensinava que o estabelecimento do 5 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Social Contract Illviii Letter to M dAIembert p 66 14 Social Contract Ivii Illi Discourse on Political Economy p 289298 governo é o ato fundamental na formação de uma comunidade e que a destruição daquele eqüivale à destruição da sociedade Por conseguinte a desigualdade que o governo implica é contemporânea da sociedade e daí se segue que a autoridade do go verno nâo deriva do povo como um todo ou da vontade geral Os homens superiores não devem sua superioridade ao povo Esta diferença leva o pensamento de Rousseau a uma deterioração na respeitabilidade do governo e maior concentração nos direitos dos cidadãos do que na eficácia da execução O governo deve ser poderoso o suficiente para dominar as vontades particulares dos cidadãos mas não poderoso o bastante para dominar a vontade geral ou as leis Quanto mais habitantes tiver um país mais serão poderosas as vontades particulares e mais difícil será para os Indivíduos se identificarem com a comunidade Por conse guinte o governo deve ser mais vigoroso em terras populosas especialmente quando for grande a extensão territorial Quanto mais pessoas partilharem da autoridade do governo menos vigoroso será o governo a monarquia é o mais vigoroso dos governos e a democracia o menos Seguese que a diferença de tamanho das nações significa que são necessários diferentes tipos de governo Não se pode fàlar de melhor governo A diferença entre democracia aristocracia e monarquia é numérica e por conseqüên cia de vigor É tacitamente negada por Rousseau a noção clássica de que a diferença é de virtude e que a escolha entre as três formas de regime é o ato político decisivo Via de regra a aristocracia possui o menor número de inconvenientes A democracia exige virtude demais é quase igual a governo nenhum e é fiicil demais a identificação das vontades particulares coletivas com a vontade geral A monarquia é concentrada demais e os problemas de sucessão são grandes demais A aristocracia é uma espécie de média entre os inconvenientes dos dois mas pode tornarse o pior dos regimes Exis tem três tipos possíveis de aristocracia hereditária natural e eletiva O primeiro é o pior tipo na opinião de Rousseau pois se baseia na riqueza e na desigualdade conven cional enquanto seus membros estão sob a ilusão de que seus direitos são independen tes da vontade do povo Há um interesse coletivo de classe que divide a comunidade Contrariando toda a tradição da filosofia política Rousseau nega que uma verdadeira aristocracia é uma classe politicamente identificável Nas societkdes primitivas os melhor dotados para governar são quase que naturalmente escolhidos e esta é uma so lução excelente embora inadequada para sociedades mais desenvolvidas A eleição é o único modo legítimo de selecionar um número limitado de governantes pois assegura que será constante sua submissão à vontade geral Desta forma a aristocracia passa a ser pouco mais que uma expressão do feto de que na maioria das sociedades nem todos governam de modo que deve ser escolhido um número limitado de homens Não existem critérios de nascimento ou riqueza para a seleção desses poucos e a aristocracia não representa um modo de vida Rousseau é daro tenta estabelecer critérios para a seleção dos verdadeiramente melhores e para J e a n Ja c q u e s R o u s s e a u 5 1 5 15 Discourse on the Orign and Foundations ofinequabty amongMen e os Discursos de Masteis p 227 notas à p 174 do texto evitar a demíogia mas sua noção de aristocracia não está longe da nossa noção atual de governo popular ou democrático Acima de tudo nenhuma classe é autorizada a estabelecer direitos especiais para si mesma e consequentemente nenhum modo de vida especial pode ser ligado a seus privilégios de classe Rousseau tenta preservar a diferenciação e o privilégio especial para o talento político mas o princípio funda mental do direito político é a igualdade e o privilégio nunca deve identificarse com as convenções da aristocracia tradicional que preserva a mediocridade sob pretexto da superioridade O pensamento de Rousseau implica uma condenação total do encora jamento para as diferenças de classe que eram fundamentais ao pensamento clássico A morte de um governo ocorre quando as vontades particulares tomam para si o lugar da vontade geral Isso pode levar tanto à anarquia como à tirania anarquia quando os indivíduos saem cada um em sua própria direção tirania quando a von tade particular de um único homem dirige o governo Portanto o problema político resumese em estabelecer a relação adequada entre a vontade geral e a particular A transformação do homem em sua passagem do estado de natureza para o estado civil e sua descoberta de sua capacidade livre para a vontade é o evento crucial para ele e a primeira e contínua preocupação do estadista é garantir a preservação dessa transfor mação A cidade antiga atende melhor a esse fim porque é pequena o bastante para tolerar um governo aristocrático e para que os cidadãos compartilhem uma herança comum e um estilo em comum porque as vontades particulares podem mesclarse aos costumes com maior facilidade e porque o estadista pode controlar a totalidade A questão do tamanho de uma nação não é uma questão de mera limitação técnica como se supõe com maior frequência no pensamento moderno mas tem a ver com a natureza das possibilidades humanas Rousseau acreditava que as revoluções pode riam restaurar a antiguidade conservadora sobre novas fundações autoconscientes Seu pensamento é uma surpreendente união do progressismo revolucionário radical da modernidade com a discrição e contenção da antiguidade Como já foi dito Rousseau principiou sua crítica do pensamento moderno do ponto de vista da felicidade humana Uma solução política que não satisfaz a humani dade é apenas uma abstração tampouco se pode distinguir o lugar próprio do político exceto diante do pano de fundo do homem completo Com isso suscitase a pergunta acerca de a solução de O contrato social ser tão completamente satisfatória quanto pa rece indicar o livro em si A questão é se todos os homens em particular os melhores homens podem encontrar satisfação completa dentro da sociedade civil que é possí vel Nâo há dúvida de que O contrato social fornece uma base do ponto de vista de Rousseau para o estabelecimento de ordens em que a maioria dos homens possa viver de modo satisfatório quando as leis se tornarem necessárias para eles Porém não fica totalmente claro se essas ordens podem concretizar uma justiça perfeita que conquiste o apego dos corações e mentes dos melhores Há duas razões elaboradas a partir dos escritos de Rousseau que fezem inevitável essa pergunta A primeira é genuinamente política e tem a ver com a propriedade Rousseau jamais imaginou como universalmente viável um uso comum dos frutos da terra A 5 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y propriedade privada é quase inejctricavelmente acoplada à sociedade civil e prende a ela os homens Entretanto a propriedade privada náo é natural e é sempre uma fonte de de sigualdade A propriedade privada é a raiz do poder na sociedade civil e não pode deixar de influenciar o estabelecimento de leis Mesmo em uma sociedade onde não existem extremos de riqueza e pobreza existe a distinção e a tendência é sempre de agravar essas diferenças É muito diferente a vida de um homem se ele nasce na pobreza ou na riqueza e o dinheiro tem muito a ver com sua capacidade de remover obstáculos externos à sua liberdade A sociedade prote os ricos mais que os pobres e os pobres têm muito menos a perder e talvez muito a ganhar com a destruição da ordem estabelecida Rousseau re conhece isso por sua disposição de dar um peso um pouco maior nos procedimentos de votação aos ricos solidamente entrincheirados que têm o maior interesse na preservação do regime mesmo que apenas por motivos egoístas A partir do momento em que a igualdade das pessoas passa a ser a base do direito político tornase muito questionável a legitimidade da desigualdade da propriedade privada Rousseau não acreditava que a real igualdade de riqueza pudesse ser mantida sem constante revolução e sem a destrui ção das vantagens da vida política mas a sua visão da propriedade priwida nâo é total mente diversa da de Marx A propriedade priwida é um perpétuo ponto de interrogação colocado após as palavras Intim a sociedade civil Mais importante porém é a dúvida suscitada pela investigação da natureza do ho mem e pela própria vida de Rousseau tal como o filósofo achou melhor descrevêla para o público O homem é por natureza um animal ocioso cujo verdadeiro prazer está no sentimento principalmente no sentimento de seu próprio ser O movimento do tempo e dos eventos não apaga de todo essa natureza Contudo a sociedade civil edge esforço e trabalho temse pouco tempo para o exercício dos sentimentos O bom cidadão quer a estima e o afeto de seus concidadãos busca suas opiniões ao invés de viver dentro de si mesmo como o fàz o selvem Acima de tudo a sociedade civil exige a virtude e a vir tude é árdua Virtude significa viver de acordo com princípios consciente da repressão do animal e do sentimental no homem A virtude é necessária para a sociedade civil mas não está daro se é boa em si mesma se como para os antigos é a perfeição humana específica desejávd por si mesma além de por seu efeito de preservar a sociedade O homem natural possuía uma bondade que o levava a cuidar de seus semelhantes tratava se de um prazer para ele tal como o era a satisfeçáo de suas necessidades pessoais Jamais fezia algo por obrigação mas porque fluía dele de modo natural Rousseau fez uma dis tinção entre o homem moral e o homem bom O homem moral age a partir do senso de dever e tem o caráter do cidadão de confiança O bom homem segue seus instintos naturais aquda primeira natureza não corrompida pda vaidade é o amigo e o amante sentimental Rousseau colocavase na classe dos homens bons e sua obra Les Conjèssions Confissões é uma revelação da vida ações e sentimentos de tal homem Não é um J e a n J a c x íu es R o u s s e a u 5 1 7 16 Ibid p 141142 17 Ver Rousseau Les Rêveries du promeneur solitaire sixième promenade Paris Garnier 1960 p 7586 cidadão confiável é inútil para a sociedade É ocioso Finalmente é um caminhante solitário que sonha e recupera o sentido de sua existência sob as camadas de convenção que o fizeram perderse por completo Vai embora e vive no campo sozinho intocado pela sociedade civil Esta é uma outra solução para o problema humano impossível para a maioria dos homens que não têm a força da alma e de intelecto necessárias para libertarse de sua dependência e para pensar nas felsas opinióes da sociedade mas é mais satisfatória e mais sradável porque está mais perto dessa primeira natureza Podese dizer que há duas estradas que partem do estado de natureza e que náo se encontram uma que conduz à sociedade civil outra à condição de homens como Rousseau Uma delas olha para o futuro e para uma transformação do homem a outra anseia ardentemente por um retorno à natureza Náo há uma solução harmoniosa para o problema humano existem alternativas insatisfatórias em conflito uma com a outra o estadista versus o sonhador ou poeta São mutuamente excludentes Ficase com uma sensação de incompletude ou imperfeição ao examinar a opiniáo de Rousseau sobre a vida humana A sociedade civil não satisfaz grande parte do que é mais profundo no homem O sonhador não consegue viver bem com seus companheiros E no estado de natureza onde essa divisão ainda não ocorrera o homem não era realmente o homem Entretanto Rousseau resistiu à tentação a que seus sucessores sucumbiram Porque estava ciente de que a moralidade do homem foi adquirida com o sacrifício de seus mais ternos sentimentos naturais e é apenas em parte um meio para a preservação do Estado nâo tentou tornar absoluta essa moralidade por meio da exclusão de tudo o que é humano O filósofo não ensinou que a história apesar de toda a sua força iria superar a força da natureza do homem Não acreditava que o homem poderia tornarse de todo social E não negligenciou a importância da política para se entregar a anseios românticos pelo passado perdido Todas essas possibilidades podem ser en contradas em seu pensamento mas cada uma recebeu náo mais atenção do que lhe era devida Por esse motivo percebese que Rousseau apresentou o problema humano em sua variedade com maior profundidade e amplitude que qualquer de seus sucessores L e it u r a s A Rousseau JeanJacques Discourse on the Sciences and Arts in JeanJacques Rousseau The First and SecondDiscourses ed by Roger D Masters New York St Martins Press 1964 Discours sur les Sciences et les arts 1750 Rousseau JeanJacques Discourse on the Orign and Foundations of Inequality among Men in ibid Discours sur Torigine et le fondements de Tinégalitéparmi les hommes 1755 Rousseau JeanJacques Social Contract livros I e II Du contrat sociaC 1762 B Rousseau JeanJacques Discourse on Political Economy Discours sur Téconomiepolitique Rousseau JeanJacques Social Contract livros III e IV Du contrat social 1762 Rousseau JeanJacques The Confession of Faith of the Savoyard Vicar in Emile livro IV Profes sion de foi du Vicaire Savoyard in 1Emile ou de léducation Rousseau JeanJacques The Government ofPoland in Political Writings Trans and ed F Watkins New York Nelson 1953 Considérations sur legouvemement de Pologne 17701771 Rousseau JeanJacques Letter to M dAUmbert on the Theatre in Politics and the Arts Trans with notes and an introduction byAUan Bloom Glencoe 111 lh e Free Press 1960 J Rousseau Citoyen de GenèveàMr dAlembert sur les spectacles 1758 5 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Im m anuelK ant A 17241804 F il o s o f ia e P o l ít ic a Kant em sua íilosoíia colocou a política ao mesmo tempo em um lugar central e derivativo Em suas três principais obras Auflage der Kritik reinen Vemunfi Crí tica da razão pura 1781 Kritik derpraktischen Vemunfi Crítica da razão prática 1788 e Kritik der Urteilskrafi Crítica do juízo 1790 é raro que fale de política e o àz só por alusão exceto em um único parágrafo da Critica dojuizo Onde apresenta ensinamentos políticos de modo explícito ele o íàz ou por meio de uma doutrina do direito ou de uma íilosoíia da história Seus escritos expressamente políticos são na sua maioria breves e ocasionais Os conceitos e propostas práticas que contêm confirmam a ideia de que em essência são um meio de interrelacionar dois universos já existentes o do sistema kantiano tal como desenvolvido nas três Criticas e o do direito natural moderno tal como desenvolvido por Hobbes Locke e em particular Rousseau Kant certas vezes transcende seus mestres porém mesmo quando o faz como em sua doutrina da paz perpétua por meio da organização internacional sua originalidade não reside no conteúdo da proposta que neste caso tomou emprestada de projetos como os do Abade de SaintPierre que Rousseau comentara mas na nova base íilosóíica e na dimensão que lhe dá ao expressála em termos jurídicos que pre tendem ser independentes de toda a experiência e fúndamentandoa em sua íilosoíia moral e sua íilosoíia da história A seçáo política da primeira parte de Die Metaphysik der Sitten A da moral intitulada Meta physische Aníàngsgründe der Rechtslehre Elementos metafísicos da doutrina do direito Zum ewigen Frieden A paz perpétua e o artigo Über den Gemeinspruch Das ms in der Theorie richtig sein tai aber nicht fur die Praxis Sobre o dito popular pode ser verdade na teoria mas náo se aplica na prática Estas três obras aderem à repartição tripla direito público direito das nações e direito cosmopolita Em particular Idee zu einer allgemeinen Geschichte in welthürgerlicher Ahsicht Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita MumaffSkher Anfang der Menschengexhichte Início conjetural da história humana e a segunda seçáo de Der Streit der Fakultãten O conflito das feculdades da filosofia e do direito Os ensinamentos políticos de Kant podem ser resumidos em uma frase governo republicano e organização internacional Em termos mais caracteristicamente kantia nos tratase de uma doutrina do estado com base no direito Rechtstaaí e da paz eter na De feto em cada uma dessas formulações ambos os termos expressam a mesma ideia a da constituição legal ou paz através da lei Dentro e entre os estados tratase de uma questão de passar do estado de natureza que é um estado de guerra para o estado de direito que é um estado de paz A definição do estado de direito e sobretu do das bases em que assenta e das condições que o compelem a existir é o objeto do esforço de Kant na medida em que se trata este de um íilósofo político Kant realiza sua tarefe inspirandose em suas concepções de moralidade e de história mostrando como a paz depende da lei e o direito da razão e o impulso na natureza das coisas em direção a um estado livre e racional e portanto pacífico Podese dizer que o empreendimento de Kant tem como ponto de partida a tensão entre ciência e moral entre a física moderna desenvolvida de modo mais sistemático por Newton e a consciência moral expressa de modo mais puro por Rousseau entre o de terminismo universal implícito na primeira e a liberdade da vontade implícita na última Kant procura resolver o problema radicalizandoo Procura preserwu os dois termos não pela reconciliação deles mas ao proporcionar à sua tensão e à sua coexistência uma base teórica a saber a articulação da oposição entre natureza e liberdade entre o mundo dos fenômenos e o mundo dos númenos O mundo dos fenômenos é o mundo das coisas em sua manifestação ou aparência o mundo dos númenos é o mundo das coisas tal como são em si mesmas ou como poderiam ser conhecidas se fosse possível ter o conhecimento delas sem a mediação da experiência O mundo dos fenômenos é o que a ciência pode saben o mundo dos númenos é o reino que se desvela pela moral É neste último reino que a razão alcança a perfeita liberdade do efeito condidonante e portanto limitante do mundo natural das coisas É exatamente neste reino da razão incondicionada que os homens podem ser livres de todas as coisas externas de cada objeto do fezer construir ou adquirir O que lhes resta é a perfeita autonomia liberdade para obedecer a uma lei autoprescrita por puro respeito pela universalidade ou imparcialidade da própria lei A disjunção completa entre o empírico e o numenal implica igualmente uma total disjun ção entre feliddade e virtude a felicidade é a satisfeção de nossas inclinações naturais e empíricas enquanto a virtude é a obediênda à lei moral Uma pertence à ordem da natureza e a outra à ordem da liberdade Contudo Kant não pode abandonar a questão com a total disjunção entre os dois reinos É preciso que seja alinhavado um acordo entre a virtude e a feliddade de modo que a liberdade possa funcionar dentro da natureza e a natureza ser teceptira à ação mo ral até mesmo ao ponto de ser transformada por ela Kant obtém tal acordo ao susdtar a questão pelo que pode o homem ansiar com esperança Em seguida demonstra que a resposta se coloca em duas direções o que se pode esperar nesta vida assim trazendo à baila o reino dos fenômenos e o que se pode esperar no mundo vindouro A fim de mos trar o que podemos esperar no outro mundo Kant elabora os postulados da razão prátíca a existência de Deus e a imortalidade da alma Suas discussões sobre direito política e teleolo histórica capacitamno a mostrar o que o homem pode esperar aqui na Terra 5 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Tendo separado os reinos da moral e da natureza Kant tenta reunilos pela pro dução de intermediários e correspondências entre eles O direito a história e a política aparecem como critério composto para avaliar essa reunião A avaliação e portanto o critério são de singular importância pois a questão da relação entre os reinos da natu reza e da moral é de fato a questão da existência possível dos dois reinos cujas concep ções são os produtos de uma liberdade e uma razão que agem no mundo fenomênico A raiz da questão suscitada pela filosofia política de Kant reside na ambigüidade da moral e da política cada uma em si mesmo e ambas em sua relação mútua Essa am bigüidade só permite aceitar após algum aperfeiçoamento a própria fórmula de Kant de que a verdadeira política é a aplicação de sua moral A dificuldade surge porque é verdade não apenas que a política de Kant deve ser entendida com base em sua moral mas sua moral pode ser entendida com base em sua política Além disso sua política também deve ser entendida independente de sua moral e sua moral em última aná lise depende radicalmente de condições que vão além da política Essa ambigüidade ou contradição explica tanto a divisão como a reunião que realiza Kant entre a lei e a moral e sua estranha hesitação no limiar da filosofia da história enquanto aparente mente lhe concede um lugar ao mesmo tempo decisivo e tangencial A dificuldade revelase quando nos desviamos do sistema kantiano como tal em direção a sua inspiração e significado humano A moral de Kant é revolucionária não só em seu status teórico e por ser baseada na íbrma pura do direito ao contrário de qualquer conteúdo específico mas também no conteúdo para o qual este formalismo não pode dei xar de apontar a saber os direitos do homem Porém a noção de direitos do homem tal como a autonomia sobre a qual repousam e que Kant afirma deduzir a priori tem uma préhistória que é política Kant repetidas vezes reconhece a influência decisiva de Rous seau em suas doutrinas políticas e morais A prioridade do prático sobre o teórico do moral sobre o intelecmal a superioridade aos cientistas ou filósofos como tal de almas simples obedientes à voz do dever todos procedem do Primeiro discurso cát La Profession de foi du Vicaire savoyard Profissão de fé do vigário da Saboia de Rousseau assim como em última análise as noções de liberdade como obediência à lei autoprescrita e da gene ralização dos desejos particulares como garantia de sua lalidade são retiradas dos ensi namentos de Rousseau em O contrato social Finalmente a filosofia da história de Kant é orientada explicitamente pelo Discurso sobre a origem da desiptaldade de Rousseau Perceber o rousseaunismo da moral de Kant é perceber de imediato a inspiração poiítica dessa moral Contudo ao mesmo tempo a radicalização do rousseaunismo por Kant sua transformação da generalização dos desejos ou vontades em uma universaliza ção de máximas e as conseqüências que dela tira em sua doutrina de postulados produ zem uma moral ao mesmo tempo apoUtica e inaplicável à política Se a moral de Kant é política e se precisa ou depende da política são perguntas que podem ser feitas mirando se as fontes ou inspiração o conteúdo e a aplicação ou as conseqüências dessa moral Não podemos deixar de perguntar também se a política de Kant é moral isto é se depende em todos os aspectos da ética da razáo prática Assim a paz perpétua é enaltecida como o supremo bem político porque na verdade a razão prática termi I m m a n u e l K a n t 5 2 1 nantemente proíbe a guerra mas a paz é mostrada também à maneira de Hobbes e de Locke como indispensável à vida e à propriedade isto é boa em prol de determinado fim ou felicidade no reino da natureza ou da ausência de liberdade Além disso o estado da sociedade civil tem um conteúdo moral porque é o estado daquele respeito pelos direitos que é a base para a liberdade e a dignidade humana Porém enquanto a filosofia da história recorre ao funcionamento de uma boa vontade uma vontade moral para produzir um estado verdadeiramente civil Kant reconhece que a natureza obriga o progresso em direção a esse estado a depender da paixão da discórdia e da guerra Mais uma vez a ideia do verdadeiro governo republicano só pode ocorrer a um político moral um homem que subordina totalmente a política à moral e para quem a realização da paz eterna não é uma tarefa apenas técnica mas verdadeiramente moral Ao mesmo tempo nâo só o governo republicano não pressupõe a perfeição em seus cidadãos mas o estabelecimento da sociedade civil em geral é possível entre demônios somente se estes forem inteligentes Assim a moral e a política às vezes parecem con vergir às vezes existir em planos completamente diferentes Podemos antecipar nossas conclusões ao ponto de dizer que o que torna este problema dificil e interessante com relação ao kantismo e o kantismo por sua vez em relação à filosofia política é que a partir de uma única fonte surgem não só as bases rigorosas e sólidas mas também a disjunção entre a moral e a política enquanto a importância política deste sistema re pousa acima de tudo em seu poder de aproximar as duas uma da outra É verdade que a disjunção entre os dois mundos é mais convincente que sua reconciliação a pureza da alma e a esperança de seu progresso indefinido em outro mundo são mais essenciais para a moral do que o governo republicano e o progresso indefinido neste mundo em direção à paz perpétua e inversamente o problema da sociedade civil remetia de modo mais eficaz às exigências de felicidade e segurança que de moral Todavia é verdade também que Kant tem importância capital não só para a filosofia mas para a consciência política exatamente devido às conseqüências políticas de seus ensinamen tos morais e à dimensão moral de seus ensinamentos políticos Kant atribui a deter minados temas morais uma direta influência política e a temas políticos uma sagrada dignidade moral Quem quer que examine com seriedade as bases do liberalismo e da democracia descobrirá nelas um sentimento moral que está ausente em Hobbes e Locke e até mesmo em Rousseau mas que recebeu de lõmt um suporte teórico A questão da relação entre moral e política em Kant atinge o ápice em seus ensinamentos acerca do respeito pela dignidade do homem O problema essencial da política kantiana é a natureza e o status filosófico e moral dos direitos do homem Passemos agora a esse tema Os D ir e it o s d o H o m e m O empreendimento de Kant em favor dos direitos do homem se expressa por meio de uma intenção de estabelecer uma base moral incondicional para a liberdade e igualdade 522 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 3 A paz perpétua Apêndice I Primeiro acréscimo políticas ou de libertar os homens ao iluminálos a respeito de seus direitos revelando a todos que a liberdade para legislar é a única base Intim a para a obediência do súdito Para melhor compreendêla vamos analisar a posição de Kant em relação a Rous seau e a Hume que segundo Kant forneceram o ponto de partida para sua íilosoíia e o motivaram decisivamente a realizar tal empreendimento Kant registrou o poderoso efeito que teve Rousseau sobre ele Sou eu por inclinação um pesquisador Sinto em plena medida a sede de conhecimento e o desejo ganancioso de progredir em sua direção bem como satisfeção em cada avanço Houve um tempo em que acreditava que este por si só poderia constituir a honra da humanidade e desprezava o vulgo que nada sabe Rousseau mostroume o caminho certo Essa distinção ilusória desaparece aprendo a respeitar os seres humanos e reputaria a mim mesmo mais inútil que os operários comuns se não acreditasse que esta avaliação poderia dar valor a todos os outros pelo estabelecimento dos direitos do homem Quanto a Hume escreveu Kant Confesso de pronto que as repreensões de David Hume foram o que primeiro interrompeu meu sono dogmático tantos anos atrás e deu a minhas investigações em filosofia especulativa um direcionamento completamente novo Rousseau íbi a inspiração afirmatiwi pela qual Kant orientou sua própria concepção da dignidade humana e da tarefe da íilosoíia e essa dignidade e essa tarefe possuem uma influência polítíca direta e imperatíva De Rousseau Kant adota o primado da moral sobre a filosofia da ação sobre a contemplação da prátíca sobre a razão teóriau o pensa mento de que o primado da moralidade exige a igualdade de valor de todos os homens e a ideia drasa moralidade e do reconhecimento dos direitos do homem coincidem em substância Contudo a primazia da ação sobre a contemplação implica o primado da liberdade sobre a natureza o primado da razão prática implica a crítica da razão teórica isto é tanto da ciência como da metafísica O ceticismo de Hume tomara questionável tanto a ciência como a metafísica e assim despertou Kant de seu sono dogmático Kant teve de desenterrar os verdadeiros e racionais fímdamentos da ciência e assim revelar suas limitações e portanto colocar sobre uma base sólida a rejeição teórica da metafísica Hume sustentara que as noções íundamentais necessidade e causalidade são validadas para nós pela experiência e pela conveniência mas não pela razão Kant aceitou o julgamento n a tiv o de Hume sobre o dogmatismo do pensamento domi nante isto é sua crítica ao fíracasso dos íilósofos em considerar a possível fragilidade de suas noções mais fundamentais mas rejeitou a parte positiva da doutrina de Hume seu empirismo Kant exigiu que os princípios que sustentam nossa compreensão espe cialmente o nexo causai tivessem fundamentação melhor que a mera experiência para que sua necessidade e sua universalidade não se tornassem ininteligíveis e assim fosse perdida a possibilidade da ciência em particular a fisica matemática Immanuel Kant 5 2 3 4 Beobachtungen über dm Gtfuhl des Schõnen und Erhabenen Observações sobre o sentido do belo e do sublime Akademie Ausgabe v 20 p 44 Vet também The Philosophy of Kant ed Carl J Friedricb p xxii New York Modern Library 1949 5 Cf The Philosophy ofKdnt ed Friedricb p 45 Kant coloca o problema por meio da distinção entre juízos analíticos e sintéticos Juízos analíticos são aqueles em que o sujeito em si contém ou implica perfeitamente o predicado de modo que o predicado apenas explicita algo já dito quando o assunto foi proferido e não produz qualquer conhecimento novo A validade dos juízos analíticos é portanto independente da experiência tais juízos são a priori Juízos sintéticos são aqueles em que o predicado de fato acrescenta algo ao que o pensador do julgamento pode ter em mente ao proferir o assunto em si Os julgamentos baseados na expe riência são necessariamente sintéticos são juízos sintéticos a posteriori Porém a ex periência como tal não é possível se não existirem juízos sintéticos a priori julga mentos de necessidade apoctica e validade universal portanto impossíveis de validar pela experiência Por exemplo toda experiência pressupõe o princípio da causalidade que como demonstrara Hume não é analítico e que como Hume foi incapaz de constatar não pode ser derivado da experiência já que é uma pressuposição de toda a experiência possível Porém a causalidade não é o único princípio deste tipo Há todo um sistema de categorias bem como as formas de intuição pura espaço e tempo A cooperação entre as categorias e as formas de intuição pura fornece o arcabouço que toma possível a ciência da natureza A ciência da natureza isto é do mundo feno mênico é portanto não uma contemplação de uma realidade existente fora de nós mesmos mas ao contrário é o estabelecimento da lei para a natureza por nós mesmos é o investimento das coisas por nós mesmos com aquilo que só nós podemos saber so bre elas a priori A ciência da natureza é fundamentalmente o produto espontâneo do entendimento distinto da receptividade dos sentidos É a razão prática que nos permite participar do mundo inteligível escapar ao mesmo tempo da passividade da mera contemplação e da relatividade empírica do mundo fenomênico esse mundo ao qual é limitada a razão teórica A ascensão da determinação para a espontaneidade é alcançada pela descoberta da liberdade da razão prática Essa liberdade encontra seu ponto culminante na liberdade do homem moral ou na moral em si O primado da razão prática tem uma dupla conseqüência traz alívio da incog noscibilidade do mundo tal como é em si mesmo ao dar a todos os homens igual mente acesso à verdade mais profunda que é a verdade moral e através do contínuo desafio do mundo meramente empírico pela razão prática conduz à emancipação das formulações morais e políticas dos homens a partir da experiência do passado No que diz respeito à natureza é a experiência sem dúvida que nos fornece as regras e é a fonte de toda a verdade em relação a leis morais por outro lado a experiência é infe lizmente apenas a fonte de ilusão e é completamente censurável derivar ou limitar as leis do que devemos fazer de acordo com nossa experiência do que tem sido feito A noi concepção de razão movese através da primazia da prática até a distinção radical entre o é e o deveria a distinção presente em Hume mas elaborada primeiro por Kant e daí para o formalismo moral e o doutrinarismo político e jurídico Os direi 5 2 4 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey Kritik der reinen Vemunfi Crítica da razáo pura Tmnszerulenmle Dialektik Dialética transcen dental livro 1 seçáo 1 tos do homem devem ser conhecidos a priori válidos e exveis universalmente Podem ter como fonte e conteúdo somente essa liberdade radical que está ligada à essência do ser racional como tal Como essa liberdade independe da natureza do cosmos do homem e da sociedade náo pode ser definida em termos da realização dos fins nem aplicada em termos de circunstâncias determinadas ou determinantes A crítica da razão teórica que Hume começou abre caminho para uma libertação radical do homem eliminando tudo o que poderia impor leis sobre a liberdade fora da própria liberdade É à influência de Rousseau que Kant deve a origem e as conseqüências morais e políticas desta libertação o verdadeiro ponto de partida e o verdadeiro destino de seu empreendimento Há um eco dessa influência na femosa frase que abre a secção 1 de Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Fundamentos da Metafísica dos Costumes Nada se pode conceber no mundo ou mesmo fora dele que possa ser chamado de bom sem reser vas exceto a boa vontade As virtudes em si não são simplesmente boas pois podem ser empregadas de modo corrupto por uma vontade má A moral não existe por causa da felicidade ou da perfeição da natureza do homem pelo contrário é a moral que confere valor a essa felicidade e a essa perfeição Por outro lado a bondade da boa vontade não é de forma alguma validada pela realização do fim desejado pela vontade nem diminuída por seu fracasso em alcançar o seu fim Podemos perceber agora a característica bilateral dos ensinamentos morais e po líticos de Kant sua demanda tanto por obediência como pela emancipação tanto pela submissão como pela glória na liberdade Pois a moral ou boa vontade consiste em agir não apenas em conformidade com a lei mas por respeito à lei à qual a moral presta obediência absoluta Porém uma vez que a lei é uma expressão da autonomia do sujeito não representa uma autoridade externa mas sua própria vontade A boa vontade como boa em si mesma independente de qualquer efeito que possa ter e constituindo em si o bem mais elevado até certo ponto substitui a Deus ou à natureza São depreciados os homens que se gabam de sua inteligência ou de sua felicidade é no indivíduo humilde que se submete ao máximo à lei que o homem como tal é erguido pela bondade da vontade a uma soberania sem precedentes São várias as implicações políticas dessa doutrina revolucionária da prioridade e substância da moral Em primeiro lugar e do modo mais óbvio esta doutrina dá forte apoio à ctença na igualdade humana depreciando as diversas fontes naturais e sociais empíricas de desigualdade e sustentando que a distinção de um homem depende ape nas de sua qualidade como ser moral No entanto cada homem pode ter uma boa vonta de a única coisa necessária e a única coisa boa em si mesma Daí segue ser a igualdade de todos os homens no aspecto decisivo e em seu valor absoluto respeitada por todos em cada um Não só a hierarquia hereditária mas cada humilhação do homem pelo homem ou diante de outro são uma ofensa contra a igualdade e a autonomia do homem Constitui problema difícil e relevante a transição do primado da moral por meio da dignidade do sujeito moral para a igualdade de todos os homens Pertenceria a dignidade ou valor absoluto do sujeito moral como legislador a todos os homens ou somente àqueles que cumprem seu dever ao homem capaz de íir moralmente Immanuel Kant 525 ou ao homem que e moralmente No primeiro caso até que ponto devem a perfeita dignidade e os direitos do homem apenas capaz de cumprir seu dever ser traduzidos em equivalentes políticos e sociais A resposta de Kant à primeira pergunta náo deixa de ser ambígua Na maioria dos trechos da curta obra Fundammtos da Metafísica dos Costumes o filósofo mantém a estipulação mais estreita e mais rigorosa em termos de o homem de feto se com portar moralmente No entanto na segunda parte da obra intitulada Die Metaphysik der Sitten A metafísica da moral ifTugendlehre A doutrina da virtude onde se preocupa menos com a base para o respeito do que com suas implicações a concepção mais ampla definitivamente prevalece e Kant salienta as reivindicações sobre outros que resultam da respeitabilidade de cada ser humano como tal Porém é aí que encon tramos uma articulação das concepções estreitas e amplas pelo menos no que se refere aos deveres dos homens uns para com os outros Todo homem tem direito ao respeito de qualquer outro homem e em contrapartida deve respeitar a todos eles A própria humanidade é dignidade o que significa que um homem não pode ser tratado nem por si mesmo como um meio mas sempre e somente como um íim Sua dignidade personalidade consiste precisamente nisto e ele tem a obrigação de reconhecer na prática essa dignidade em relação a todos os homens Não posso negar a um homem depravado todo o respeito que pelo menos em sua qualidade de homem não pode ser tirado dele e isto é assim mesmo que suas ações o tornem indigno dele As aírontas e as condenações provocadas pelo vício ainda que sejam merecidas e inseparáveis do des prezo silencioso para com o indivíduo em questão jamais devem levar a um total desprezo pelo homem depravado nem para a negação de todo o valor moral nele pois ele seria então supostamente incapaz de algum dia melhorar a si mesmo o que não se pode conciliar com a ideia de homem que como tal como um ser moral jamais pode perder toda inclinação em direção ao que é bom A dignidade que pertence somente ao homem moral impõe precisamente sobre ele o dever de tratar todos os homens com certo respeito pois a dignidade do homem moral redunda em ação sobre a espécie sobre todos os homens potencialmente mo rais possuidores de uma inclinação para o bem que por piores que sejam distingueos dos animais e os assimila ao homem moral Os homens não são iguais em dignidade mas temse o dever de tratálos como se o fossem O direito do indivíduo de ser trata do como igual ou pelo menos de ver certos aspectos da sua dignidade respeitada não se baseia em ele ser igual ou respeitável mas no dever de tratar todos os homens como iguais ou respeitáveis Baseiase menos no primado do que no conteúdo da moral Se o respeito pelos direitos do homem se baseia na moral é assim porque a moralidade é definida como o respeito pelos direitos do homem O conteúdo da moralidade aparece como uma dedução a priort da universalidade como a forma da moralidade A linha do formalismo moral chega perto de definir o horizonte político em um mundo con 5 2 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 7 A meudtsica da moml parte 2 Tindlehie A doutrina da virtude parágrafos 38 39 ceitual dominado pelas ideias de universalização da humanidade racional como um íim em si mesma do reino dos íins e da autonomia O valor moral de uma ação procede da bondade da vontade pela qual essa ação é animada o que por sua vez significa a pureza daquela vontade a bondade da vontade em sua abstração de qualquer fim empírico A pureza da vontade implica pu rificação da vontade de todas as intenções substantivas a animação da vontade apenas por seu respeito próprio o seu respeito pelo princípio formal da vontade em geral em outras palavras respeito pela lei como tal O próprio dever significa a necessidade de realizar uma ação por respeito à lei Entretanto como o homem moral encontra a lei que regulará todas as ações de sua vida Como reconhece o seu dever um homem de boa vontade O critério de Kant para a boa vontade revela ser a universalização tal como o critério de Rousseau para a vontade geral era a generalização O critério de Kant exige que um homem pronto para íir pergunte a si mesmo se a máxima que re sua ação pretendida por exemplo a grandeza da minha necessidade justifica este afiistamento da honestidade poderia vir a se tornar a lei universal de ação para todos os homens sem destruir a ato em si Por exemplo um homem que precisa de um empréstimo percebe que nunca será capaz de pagálo Deve prometer fazêlo mesmo assim Se todos os homens prometessem pagar mesmo quando se sabem incapazes de cumprir suas promessas as promessas se tornariam universalmente inúteis Sua íãlsa promessa se universalizada aboliria as promessas e aboliria também o próprio empréstimo que é o objetivo da promessa A regra autocontraditória ou irracional náo pode ser a lei para um ser racional Seguese que um homem náo deve fezer uma pro messa que náo espera cumprir Kant denomina imperativo categórico ao feto de que um homem deve agir apenas de acordo com o critério de tornar universal a sua açáo o imperativo que liga categórica ou universalmente náo apenas hipoteticamente ou com vistas a certas circunstâncias as necessidades ou fins ligados à ação Aja de modo que a máxima de sua ação possa ser elevada por sua vontade a ser uma lei universal da natureza Há somente um imperativo categórico e este é o imperativo de universa lidade Porém Kant elabora esta universalidade ao oferecer três fórmulas alternativas para o imperativo categórico fórmulas que ajudam a revelar tanto o significado hu mano como as bases para o dever A segunda fórmula procura o princípio objetivo pelo qual a vontade determina a si mesma Rejeitando como meramente hipotético o ditame dos fins subjetivos do ser racional que visam a seus fins particulares Kant exige que a vontade oriente a si própria a respeito dos fins em si mesmos categoricamente válidos No entanto os únicos fins em si mesmos possíveis dotados de um valor objetivo são os próprios seres racionais O supremo princípio objetivo prático a partir do qual podem ser deduzidas todas as leis da vontade é de acordo com a segunda formulação do imperativo categó rico Aja de forma a tratar a humanidade em sua própria pessoa bem como todos os Immanuel Kant 5 2 7 Grundlegende Prinzipien der Mataphysik der Sitten Princípios fundamentais da metsica da mo ral seção 2 outros sempre como um fim e nunca como um simples meio É esta formulação do imperativo categórico que fornece diretamente a base moral para a doutrina política dos direitos do homem A violação do dever de respeitar o homem como um fim em si mesmo é mais visível em ataques à liberdade e à propriedade onde a intenção só pode ser de tratar seus seres racionais semelhantes como meros meios ou instrumentos e não como seres capazes eles mesmos de participar dos fins da ação em pauta A exigência de que todos os homens sejam tratados como fins cm si mesmos res trit de forma óbvia a liberdade entretanto porque implica a anulação pelo direito de todos os fins subjetivos esta fisrmulação conduz à ideia de autonomia da vontade que esubelece a sua lei e sendo sujeita a ela somente como sua própria determinação Este terceiro princípio o da autonomia concebe a vontade de cada ser racional como instituidor de uma legislação universal uma concepção que por sua vez conduz ao fértil conceito do reino dos fins Reino é a articulação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns e o reino dos fins é a conjunção dos seres racionais que estão ligados por leis objetivas que visam precisamente a conjunção desses seres tanto como fins e também como úteis para os fins particulares uns dos outros isto é como meios Não só as conseqüências mas também a formulação do princípio da moral de Kant são de natureza política O dever aponta em direção da ordem ou comunidade Kant salienta de fato a diferença entre a ideia de uma comunidade ética que é interna e universal e a ideia de uma sociedade política que é externa e particular No entanto a comunidade ética tem uma estrutura política Um ser racional pertence ao reino dos fins como um membro dele quando ao lhe prescrever leis universais ele próprio é também sujeito a essas leis Pertence a ele como um governante na medida em que ao prescrever leis não está sujeito a uma vontade externa No reino dos fins não é ao governante que fala o dever mas a cada membro e a todos no mesmo grau O reino dos fins é uma república que tem base na reciprocidade Não se pode exerar a importância da reciprocidade para a moral O dever não é nada menos que a neces sidade prática de ir de acordo com o princípio da reciprocidade o que dá uma ex pressão não só à igualdade dos seres humanos em dignidade mas a seus fundamentos na racionalidade A reciprocidade é o princípio de interação por excelência entre seres racionais agentes que ajustam com objetividade suas relações uns com os outros A esfera das relações dos homens uns com os outros a esfera dominada pela justiça que na compreensão clássica era apenas uma parte do domínio da virtude tornase para Kant totalmente coincidente com a virtude No início de Fundamentos da Metafisica dos Costumes Kant deprecia três das quatro virtudes cardeais clássicas a saber a cornem a moderação e a inteligência porque podem ser prejudiciais se não forem acompanhadas pela boa vontade Agora podemos entender por que não incluiu a quarta a justiça na depreciação a boa vontade tende a ser idêntica à justiça Ninguém proclamou com mais força que Kant a subordinação das pabtões à razão e 9 Ibid 10 Ibid 5 2 8 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey com isso a existência no homem de uma hierarquia vertical No entanto tal como em Rousseau antes dele a limitação dos desejos humanos não é alcançada por Kant verticalmente em conformidade com uma hierarquia natural no homem mas late ralmente pela limitação recíproca mútua e respeito pelas liberdades e pelos indiví duos A ideia do reino dos ílns que demonstrando ser a universalização crucial para a conexão entre a autonomia e a limitação recíproca da liberdade ilustra a pesada dívida da moral de Kant para com a política de Rousseau Mostra também até que ponto a moral de Kant em seu formalismo racional ultrapassa a política de Rousseau em sua radicalização no plano moral da reciprocidade de direitos e deveres e da primazia tanto dos direitos como dos deveres sobre a virtude Esta primazia é eníatizada em A metafísica da moral na qual Kant íãz uma dis tinção entre os deveres jurídicos e os deveres que a virtude implica dando marcante prioridade aos deveres jurídicos Os deveres jurídicos aplicamse aos atos externos que estão sujeitos às restrições externas da legislação os deveres comandados pela virtude aplicamse às máximas por trás das açóes as intenções internas que são direcionadas para algum íim que deveria ser um dever mas que não podem ser coagidas de fora Embora os deveres jurídicos tratem apenas dos atos externos que têm precedência sobre os deveres de virtude ainda que estes sejam ligados à intenção e à boa vontade porque os deveres jurídicos sâo eles próprios a essência da moral pois definem a re ciprocidade de direitos e deveres ao exigirem que cada homem respeite os direitos do homem tanto nos outros como em si mesmo Os deveres jurídicos especificam os comandos da justiça primeiro respeitar o di reito de humanidade em si mesmo recusandose a permitir que outros o tratem como um simples meio e exigir ser tratado como um fim segundo não íàzer mal a ninguém terceiro em prol do exposto entrar em uma sociedade na qual a propriedade de cada um possa ser garantída contra os outros A virtude direciona os homens para fins que deveriam ter o caráter de deveres a perfeição de si mesmo e a felicidade dos outros Os deveres jurídicos são definitivos e perfeitos aqueles impostos pela virtude são amplos e imperíèitos na medida em que seus ditames devem deixar alguma margem de escolha para os homens livres Os deveres jurídicos prevalecem sobre os morais antes de auxiliar a íèlicidade dos outros homens preocuparse com seus direitos O amor da humanidade é condicional o respeito por seus direitos um dever ss d o e absoluto Podese dar prioridade à prática sem comprometer a moralidade porque a prescrição externa ou a lalidade e a moralidade interior convergem no respeito pelos direitos do homem Apresenta grandes dificuldades a tentativa de Kant de deduzir a política da moral Embora seja verdade que o íilósofo deriva da moralidade a sacralidade do direito e do dever incondicional de respeitálo também é verdade que separa radicalmente a lei da moralidade sua doutrina legal inclui no direito à liberdade o único direito inato e fonte de todos os outros direitos o direito de mentir enquanto a sua doutrina moral não to lera a mentira em circunstância alguma Kant desenvolveu um dever moral absoluto de respeitar um direito moralmente neutro mesmo que seja um direito à imoralidade Immanuel Kant 5 2 9 Além desta tensão entre a obrigatoriedade e a neutralidade moral dos direitos do homem está a tensão mais geral e mais radical entre o dever de obedecer às leis exteriores e o conteúdo contingente muitas vezes imoral dessas leis Não apenas a conformidade das leis aos direitos do homem ou à vontade geral não constitui uma garantia de sua moral nem essa conformidade sequer chega a constituir a condição necessária para o dever moral do súdito de obediência à autoridade Cabe ao soberano Eir em conformidade com a vontade geral o súdito deve obedecer à lei tal como ela existe Assim entretanto o problema de aplicar a moral à política se torna ainda mais grave e leva a uma nova tensão Até certo ponto as leis ou diretrizes políticas existentes se opóem tanto aos direitos do homem como às exigências da moral Essas leis não apenas autorizam elas categoricamente prescrevem atos que violam a moral A moral portanto nos comanda a desejar que a legislação seja substituída por uma ordem po lítica que esteja em conformidade com os direitos do homem e seja compatível com a moral em si ao mesmo tempo a moral exige obediência a essas leis imorais A motal proíbe o combate à imoralidade por meio da fraude ou da força proíbe o uso de meios imorais para atingir um íim moral Entre o íim desejado e o permitido se abre um abismo que parece fazer com que seja impossível resolver a primeira tensão ou seja entre a obrigatoriedade e o conteúdo da lei externa No apêndice de Zum ewigen Frieden A paz perpétua Kant lida tematicamente com o problema suscitado pela aplicação da moral à política Principia pelo conflito entre política e moral que se expressa nas duas máximas a da política sejam pruden tes como as serpentes e a da moral sejam simples como as pombas mas o íàz a íim de negar que este conflito cause qualquer dificuldade real Em princípio a política é simplesmente a aplicação dessa doutrina jurídica cuja teoria é a moral Qualquer conflito entre política e moral deve ser resolvido pela pura subordinação da primeira à segunda A honestidade é a melhor política contém uma teoria frequentemen te traída pela prática mas a verdadeiramente teórica honestidade é melhor do que qualquer política é absolutamente inatacável por qualquer prática Kant contrasta o moralista político que tenta vergar a moral a íim de ajustála à política com o polí tico moral que deriva sua ação política de seu reconhecimento do dever Kant rejeita as máximas maquiavélicas de prudência política que invocam a sabedoria prática ou experiência com os homens aja então peça desculpas repudiai vossas obras à vontade dividir para conquistar em favor da máxima moral baseada no conhe cimento do homem Que a justiça prevaleça ainda que o mundo pereça por isso Quando a política e a moral estão em conflito a moral resolve o conflito de uma forma característica de sua própria essência deprecia o princípio material ou os resultados do ato e se concentra no princípio formal dele O tema da segunda parte do apêndice de A paz perpétua é a harmonia entre a política e a moral com base no significado supraempírico da legislação pública ou direito público Kant sustenta que em princípio o direito público definitivamente necessita de publicidade A máxima de uma ação exigirá sigilo somente se a publicação da máxima expusesse sua injustiça e assim ameaçasse e inflamasse a humanidade A 530 H istória da Filosofia PoiincA Leo Strauss e Joseph C ropsey injustiça pede sigilo o sigilo prefígura a injustiça Como uma norma para a moral das máximas e portanto das ações sua capacidade de serem feitas públicas assemelhase à universalidade em seu formalismo e artificialidade Em uma ilustração do funcio namento da publicidade Kant mostra como esta impede o repúdio das promessas de um soberano sancionado por Maquiavel Spinoza e mais tarde Hegel o repúdio supostamente subserviente ao dever supremo do soberano a seu próprio estado A razão prática estabelece a priori exatamente o que veio a ser denominado diplomacia pública a diplomacia dos pactos abertos abertamente acordados A partir da discussão do critério publicabilidade de uma máxima que prefigura a moral de um ato político decorrente dessa máxima Kant passa a buscar a condição positiva em que as máximas práticas irão concordar com o direito Reconhece a ne cessidade desse esforço adicional porque entende que as máximas de um ator seriam publicáveis não só se fossem justas mas se o ator fosse tão irresistivelmente poderoso que pudesse publicar projetos iníquos com desprezo para com as reações do mundo Seria possível dizer que a publicabilidade da máxima é necessária mas não suficiente para a moralidade de um ato Assim Kant propõe a condição geral para a coincidência entre moral e política a condição também para a existência do direito público e de um direito das gentes o estado de direito entre os homens o acordo entre as nações para abandonar o estado de natureza a fim de abjurar a guerra Não a experiência mas a razão pura revela a necessidade de uma federação de estados pois a ideia derivase da noção de direito em si para que seja atingida a conjunção entre a moral e a política e a prudência política receba uma base legal As pistas que Kant oferece em relação à aplicação direta da moral à política nos trazem de volta à conhecida dificuldade a moral formal e universal exige uma deter minada ordem política sem que se revele como uma base para tal e com muito mais rigor proíbe o uso dos meios considerados por Kant como necessários para a realiza ção dessa ordem A abstração e a rigidez da moral criam um abismo entre ela mesma e suas aplicações políticas tanto no reino dos fins como no dos meios tanto no reino da ordem jurídica que para Kant é o da liberdade externa não das intenções morais como no campo da ação política que mesmo para Kant é inevitavelmente o reino das situações contingentes particulares e imprevisíveis F il o s o f ia d a H is t ó r ia Superar a disjunção da moral e da política é exatamente a tarefa da filosofia da história cujo dever é apontar a direção e dar esperança para o progresso em direção à ordem lal que permitiria a união decisiva A filosofia da história deve portan to reconciliar a interdição e a indispensabilidade de meios imorais deve substituir a anarquia e injustiça que a cena humana projeta e a imprevisibilidade que acompanha a liberdade da vontade por uma concepção de um progresso definido tanto com a fina lidade associada à moral e a necessidade correspondente ao determinismo fiísico Aqui ressuige a dívida de Kant para com Rousseau que é reconhecida na caracterização que ImmanuelKant 531 fez Kant de Rousseau como o Newton do mundo moral Tal como Newton descobriu a simplicidade e a ordem de um mundo material aparentemente desfigurado pelo aca so Rousseau foi o primeiro a perceber sob a multiplicidade de aparências humanas as profundezas da natureza humana e a perceber a lei oculta que justifica a própria Providência Antes de Rousseau a Providência pode ter aparecido para autorizar uma cena humana em que a política ignorava a moral não só no presente mas sem esperança de cura pelo progresso ao longo da história Entretanto Rousseau é o Newton do mundo moral e sua doutrina uma justifi cação da Providência em parte por uma razão que não olha para o íuturo mas para o passado a tensão entre moral selvagem e a lei moral universal é resolvida no Segundo discurso Como indica Kant ele mesmo assume seu afiistamento não do homem mas daquele homem civilizado a quem Rousseau só chega depois de ter recuperado e co meçado com o homem natural Se os selvagens ignoravam a lei moral tal ocorria por que a razão ainda não surgira suficientemente neles A promulgação da lei moral a toda a humanidade poderia então ter sido apenas milrosa mas é mérito de Rousseau ter mostrado no nível da história como fizera Newton no nível físico que a sabedoria e a glória de Deus manifestamse melhor na necessidade e na regularidade das leis naturais que em qualquer interrupção milagrosa delas em seu decurso A íimção essencial da filosofia da história no entanto é interpretar o passado dando esperança para o íuturo e assim apoiando a ação moral com um incentivo àquilo de que não pode prescindir Kant considerava que a moral perderia seu significado a me nos que a humanidade estivesse progredindo moralmente ou a menos que o progresso da espécie bem como dos indivíduos não fosse pelo menos considerado impossível A crença em um progresso moral transmissível de geração em geração e a crença no pro gresso intelectual e político deve apoiar e ajudar a gerar um ao outro A moralidade do indivíduo ainda que só dependa de boa vontade ou seja do próprio homem deve ser progressivamente elaborada e recompensada por condições externas que nem seduzam nem penalizem a virtude É tarefe da história preparar a ascensão da razão e da civili zação que são necessárias mas não suficientes para a obediência à lei moral universal e preparar o estado de direito é exigido pela moral por meio da abolição da violência que é um perene convite para a imoralidade Kant não apresenta como um feto a evo lução histórica da cultura do intelecto e da polítíca mas sim como o postulado prático indispensável para o sujeito moral O progresso histórico não emana da ação moral mas é devido ao íuncionamento do mecanismo da natureza ou à Providência ao contrário de qualquer consciência humana a Providência utiliza essas próprias inclinações vícios violência e guerra a dominação ou a abolição dos quais são sua missão explícita Entre a filosofia da história e a moral existe tanto a concórdia como a tensão cada uma de las essencial reproduzindo o problema interposto no pensamento de Rousseau por sua compreensão da tensão entre o progresso intelectual e moral De feto a filosofia da his tória talvez estabeleça uma ligação entre moral e política mas a sua própria ambigüidade tornaa incapaz de superar totalmente sua disjunção 532 H istória da Filosofia Poutica Leo Strauss e J oseph C ropsey 11 Observações sobre o sentido do belo e do sublime Akademie Ausgabe v 20 p 58 A íilosoílã da história de Kant mais do que a de qualquer de seus sucessores é voltada para as exigências da moral Seu principal valor é prático como um guia para a ação A tarefe da razão teórica é mostrar que não pode ser demonstrada a impossibili dade do progresso certamente não por um apelo à experiência e aliás essa experiência em si dá indicações se não decisivas todavia decerto encorajadoras em fevor do pro gresso Kant não afirma que os homens têm o dever de acreditar na acessibilidade dos fins do progresso seu dever é agir de forma consistente com o desejo por tais fins desde que sua intangibilidade não seja certa Uma vez que a razão moral tenha estabelecido seu poder de veto absoluto sobre a guerra por exemplo a questão da paz perpétua ser atingível ou não é substituída por nosso dever de como ela se fosse possível assim sendo de estabelecer as instituições nacionais e internacionais do republicanismo que a paz exige Ao invés de fezernos assim os tolos da moralidade é exatamente a crença de que a lei moral pode enganar o homem que despertaria em nós o desejo fatal de abdicar da razão e nos submetermos como os animais ao mecanismo da natureza A razão moral libertanos do dogmatismo da razão teórica ou científica Ora por que é feita a lei moral para depender para a conservação do seu valor da possibilidade de um progresso em direção a alguma ordem política quando o dever moral de cada homem já foi unido a um imperativo absolutamente categórico cujo ditame pode obedecer porque deve fezêlo Em breve devido à necessidade de mostrar através da filosofia da história que não há concordância ou não a discórdia essencial entre virtude e moral felicidade e moral natureza e política dever ou e interesse É verdade que Kant introduz assim em sua filosofia da história e da política considera ções como a felicidade que não são estritamente morais Podese objetar que a moral kantiana abstraída da felicidade é comprometida pela preocupação de Kant em re conciliar moral reconciliação e felicidade Devese admitir porém que a tentativa de reconciliar a felicidade e a virtude que torna alguém digno dela é para o kantismo menos determinante no plano da história humana que no plano da crença em um outro mundo No entanto a tentativa de reconciliação limiuse a fornecer à história uma tendência política e um fim o estabelecimento de uma ordem legal ou pacífica em lugar de reivindicar que realiza a educação moral da humanidade um projeto limitado para a remoção dos obstáculos à moral somente na medida em que são obs táculos também para a sociedade civil De feto mesmo quanto ao direito como a reconciliação adota o ponto de vista da espéciedestino do homem no mundo natural desviase duplamente da vantagem da moral no sentido estrito que é a vantiem do indivíduo no mundo numenal Em primeiro lugar o problema moral apresentase a todo momento para todo indivíduo a cada momento o indivíduo deve ser virtuoso portanto pode sêlo e assim os postulados da razão prática voltam a se sustentar de forma decisiva Porém pelo contrário diferente da imortalidade da alma individual o progresso histórico da espécie propõe uma resposta para o problema da virtude e da felicidade somente no nível do futuro da espécie não só pode o indivíduo dispensar Immanuel Kant 533 12 A meuflsica da moral Doutrina do direito conclusão a noção do progresso histórico para fins de comportamento moral no momento pre sente mas a esperança externa que ele oferece nem sequer o afeta diretamente I t o primeiro grande filósofo em cuja obra a íilosoíia política se transforma em íilosoíia da história formula uma clara e forte objeção a toda a íilosoíia da história incluin do a sua própria Kant percebeu nitidamente que o progresso histórico é tarefa para gerações de homens que de modo mais ou menos inconsciente constroem um edi fício cuja perfeição traz uma felicidade que naturalmente não podem compartilhar Entretanto Kant considera que esta é a condição inevitável de seres racionais que são mortais como indivíduos e imortais apenas como espécie Aparece agora o segundo aspeao em que a íilosoíia da história é inferior ao postu lado da imortalidade da alma como garantia de moralidade Prevendo que a perfeição da moral fosse alcançada somente de modo indireto por meio da realização dos íins naturais do homem na sociedade a filosofia da história baseiase fortemente no empírico e no fenomenal a brevidade da vida do homem a imortalidade da espécie o próprio feto de que há progresso e uma vulnerabilidade a todas as catástrofes naturais que poderiam dar fim à própria história Mesmo se satisfeitas essas condições são condições peculiarida des da vida humana não dedutíveis a priori como caraaerístícas de um ser racional que decreta e obedece à lei moral Além disso por serem empíricas exigem uma confirmação empírica Muito embora teoricamente o progresso histórico nada mais exija como sus tento de sua aplicabilidade prátíca que uma demonstração de que sua impossibilidade não pode ser provada Kant não pode evitar a busca de evidências empíricas positivas a seu fevor a aposta do homem na convergência entre a história e a moralidade não pode ser abandonada como uma aposta simples A ação moral pressupõe e implica a esperança ou uma fé prática que deve produzir uma nova forma de encarar a natureza a experiência e a história A experiência humana deve ser suscetível de uma interpretação mais compatível com o ideal da paz aerna que a de meros políticos Assim é que Kant se volta de novo para aquela experiência da qual recuara com desprezo procurando nela sinais de progresso em direção à paz legalidade e morali dade Qualquer experiência que indique a aptidão do homem para ser o autor de seu próprio progresso é representada por Kant como sujeita a projeção para o passado e o íiituro como indicação da inclinação humana para o avanço Dependendo portan to de uma determinada leitura dos eventos e de uma determinada interpreução dos sinais a filosofia da história não pode reivindicar a necessidade ou rigor de qualquer dos postulados que se referem ao outro mundo ou das leis científicas que se referem ao mundo do daerminismo natural Em que plano e em que dimensão da vida humana se revelam os sinais e meios para o progresso Não no nível dos atos particulares dos homens de seus interesses e seus motivos não se pode contar com sua sabedoria para unir os homens com vistas a um projeto racional comum Exatamente por este motivo o filósofo deve partir da ausência de planejamento dos assuntos humanos para uma busca pelo plano da natu reza que é a base da história propriamente dita Nestas circunstâncias há apenas duas 5 3 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoifncA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 13 Ideia de uma história univetsal com um propósito cosmopolita proêmio maneiras de conceber o avanço em direção ao regime republicano de direito e à paz perpétua ou o homem escolhe livremente este caminho mas o seguirá não em virtude de sua natureza empírica por motivos de interesse ou felicidade mas sim por dever moral e obediência às leis ou será empurrado ao longo dele de forma involuntária sob coação de um poder maior Para que essas possibilidades se tornem indicações do íútu ro a experiência teria que conter provas ou de uma disposição moral entre os homens para superar suas inclinações e para participar de um estado de direito universal ou da ação de um poder superior que desconhecido dos homens desvia suas ações de seus íins particulares para atender a um objetivo comum coincidente com a paz perpétua São estes precisamente os dois aspectos ou íacetas da íilosoíia kantíana da his tória De feto a primeira possibilidade reflete a ação de algo que vai além da história mas a segunda constitui a íilosoíia da história propriamente dita a história só existe na medida em que há algo além da liberdade e na medida em que as ações humanas assumem um nuno involuntário Paradoxalmente a moralidade só pode avançar e se impor sobre a natureza na medida em que os homens não realizem o que querem ou que seus planos os traiam no dizer de Adam Smith na medida em que são condu zidos como por uma mão invisível a buscar íins que não fezem parte de sua intenção Assim é o íim da natureza que Kant formula de modo explícito como uma versão mais prudente da Providência que servirá de guia para a história A razão prática e a natureza colaboram uma com a outra e fortalecem uma à outra porque a natureza ir resistivelmente anseia que a lei afinal prevaleça Aquilo a que os homens negligenciam para este íim acontecerá de qualquer modo embora não sem labuta Assim a íilosoíia da história pode devolver às pessoas práticas a acusação de irre alismo que fezem contra o idealismo dos moralistas e utópicos o que parecia uma contradição entre piedosos desejos e as necessidades demonstradas pela experiência surge agora como um debate entre probabilidades empíricas genuínas porém limi tadas e uma necessidade que é ao mesmo tempo superior à experiência e já parcial mente cumprida nela Kant wd ainda mais longe são exatamente as indinaçóes egoístas da natureza hu mana que a natureza explora a fim de atingir os fins propostos pela veneranda embora impotente vontade geral da humanidade O egoísmo e a ganância íbmentam a guerra e a inclinação a acumular propriedades mas ao mesmo tempo inspiram egoístas medidas contra a agressão e a cobiça as quais conduzem a um progresso pacífico e próspero Tan to através do curso da história e em seus diversos apogeus a ordem emerge do conflito a paz da guerra e o bem público dos vícios privados A ordem política que a moralidade exige e que por sua vez deve pavimentar o caminho para a moralidade ou fecilitar sua tarefe não é apenas moralmente neutra como também é alcançada por meios imorais ou que no mínimo seriam impossíveis sem as paixões e os vícios Immanuel Kant 535 14 A paz perpétua Primeiro acréscimo 15 Ibid Sendo a natureza interpretada teleoiogicamente isto é moralmente o fim e por tanto o significado conferido à história pela natureza consiste na elaboração de todas as disposições da espécie humana Estas disposições culminam na cultura isto é na aptidão geral do homem como ser inteligente para utilizar a natureza como um meio e de escolher livremente por si mesmo os fins que almeja Kant concorda com Rousseau que o homem é fimdamentalmente caracterizado por sua liberdade ou melhor ainda por sua perfectibilidade É capaz de ser racional antes de ser de fato racional sua cul tura e sua inteligência se desenvolvem lentamente à medida que o desenvolvimento destas o arrebata de seu estado animal E tal como Rousseau Kant sustenta que esse progresso da cultura e da inteligência em si não constitui um progresso em direção à felicidade ou à moralidade Quando a razão e o instinto se separam a razão rompe também com a inocência e se faz uma ruptura entre a razão e a adaptação do homem à sua existência animal O desenvolvimento da razão sugere refinamentos do desejo que de modo algum são sempre salutares e dá ao homem também uma sensação de mal e de vício ao mesmo tempo em que introduz em sua vida a proibição e portanto a infração Kant remete a Rousseau e aos ensinamentos bíblicos sobre o pecado original ao apontar o vício e a miséria que acompanham a civilização Estes são íravados pela desigualdade que campeia entre os homens à medida que as competências se desen volvem entre eles a abundância material emerge e com ela a opressão das classes inferiores e o malestar das superiores Compreendemos agora como Rousseau foi capaz de persuadir Kant não só da necessidade de ver o homem dentro da perspectiva histórica da transição da natureza para a civilização mas também de hesitar antes de ver nessa perspectiva qualquer ga rantia ou mesmo fimdamento de moral As reflexões de Kant seguindo Rousseau acerca de uma tensão entre o progresso moral e o progresso da civilização das ciências das artes e até mesmo das instituições políticas pode ser a explicação mais importante para o papel secundário e ambíguo da filosofia da história no pensamento de Kant A ideia de que a espécie humana ao desenvolver suas potencialidades pode afastarse cada vez mais da virtude e da felicidade ou de qualquer forma que deve iniciar seu ca minho com essa separação leva a uma dúvida de que a humanidade seja concretizada neste mundo e a uma certeza de que os meios de concretização são corrompidos por uma impureza que deprecia a realização da humanidade nesta vida em comparação com o destino moral do indivíduo na vida futura A conclusão de Kant é mais otimista que a de Rousseau Provavelmente existe em Rousseau uma tensão irredutível entre o destino do indivíduo e o da sociedade Em Kant na verdade em sua interpretação de Rousseau essa tensão deve ocorrer por meio da evolução histórica em si em uma reconciliação dentro de certo tipo de sociedade que corresponde ao desígnio da natureza e ao destino do homem Kant interpreta as contradições que Rousseau aponta entre a civilização e o estado de natu reza como as contradições entre as inclinações do homem ligadas a seu destino moral 5 3 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o u t ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 16 Kritik der Urteilskrafi Crítica da feculdade do juízo 84 e as ligadas à sua preservação O luxo a desigualdade e a violência não podem ser separados do progresso moral Ao afestar homem da natureza devem conduzilo para a sociedade do contrato social para aquele ponto em que a perfeição da arte torna se natureza de novo Se por um lado Kant estigmatiza os males da civilização tal como fez Rousseau por outro enfatiza muito mais que Rousseau seu papel histórico positivo e indispensável e o modo como devem no final superarse ou transcenderse A miséria brilhante da cultura que desperta e estimula apetites e vícios deve levar à cultura de disciplina em que a vontade é liberada do despotismo do apetite cruel os caminhos da moralidade são abertos por meio da legalidade Da mesma forma a de sigualdade conduz ao aparecimento de sociedade igualitária e da guerra à paz É daro que Kant não isenta de culpa os meios corrompidos na verdade condena o emprego de tais meios de modo mais intransigente que qualquer outro filósofo No entanto está disposto a ver ndes um benefício retrospectivo de tal forma que apresenta uma história que supera a antinomia entre fins e meios É a natureza que de alguma forma assume a responsabilidade pela violência e imoralidade da política fazendo uso da máxima os fins justificam os meios que é tão estritamente vedada aos indivíduos pela razão prática Assim quando Kant discute temas como a Revolução Francesa a rebe lião contra os tiranos ou as guerras de libertação chega a um juízo dual problemático o desEravo retrospectivo pela história e a condenação incondicional pela moralidade Quer a visão histórica permaneça concatenada com a moral tal como para Kant ou a domine tal como acontecerá com Hegel existe uma promessa de reconciliação entre as duas ao passo que em Rousseau só existe uma insinuação de antinomia A reconciliação em pauta é problematizada no entanto justamente pelo lato de que a sociedade que a torna possível é ela mesma o produto permanente dos próprios apetites e vícios que se encontram nas fontes do comportamento censurável dos ho mens Talvez a desigualdade e a guerra venham a aniquilarse afinal mas o mesmo não é de modo algum verdadeiro do egoísmo e da hostilidade dos quais emanam pois são eles parte da natureza eterna do homem essa natureza que é função da história desen volver e do estado civil explorar no interesse dos direitos da moralidade e da felicidade O fenômeno fundamental do qual se desenvolvem tanto o problema político como sua solução é o que foi identificado por Hobbes como a associabilidade natural do homem a guerra latente ou manifesta de todos contra todos A surpreendente fórmula de Kant para descrever esu animosidade é a insociável sociabilidade dos homens ou seja a sua inclinação para entrar em sociedade inclinação que é contudo acompanhada de uma repulsa geral a entrar em sociedade que ameaça constantemente desagregála O elemento decisivo na fórmula é a insociabílidade a concórdia é apenas o desejo dos homens a discórdia é o comando da natureza imposto a íim de pressionar e portanto desenvolver o ser humano Ainda assim embora possa ser verdade que a discórdia é o Immanuel Kant 537 17 Inído conjetuial da história humana MutnufUcher Arfang der Menschengeschichte Vermischte Schriften p 274 Inselverl 18 Ideia de uma história univetsal com um propósito cosmopolita 4 Princípio mecanismo da natureza para afinal obter a concórdia essa mesma concórdia demons tra ser apenas uma discórdia bem regulada pelo menos no nível jurídico e político A sociedade civil está para o estado da natureza como a ordem está para a desordem e a paz está para a guerra mas a liberdade natural e o antonismo sobrevivem como devem íàzêlo no estado civil O regime mais conforme à essência da sociedade civil é o que melhor conserva essa liberdade enquanto promove esse antagonismo alcança por meio da articulação das instítuições a compatibilidade da liberdade de cada homem com a de outro homem e a eliminação da violência do antagonismo Se a vida civil depende da contenção egoísta do egoísmo nossa primeira questão ressurge com nova premência qual é a relação entre a ordem social e a moralidade cujas exigências deve atender e para cuja prática deve preparar Como difere das cons truções realistas cínicas egoístas ou utilitárias da tradição maquiavélica Com a mediação da filosofia da história mais do que nunca a filosofia política de Kant parece ser composta de uma moralidade abstrata que náo é deste mundo e de uma política amoral que é muito deste mundo O E st a d o d e D ir e it o Tomada simplesmente por si mesma a filosofia política de Kant sendo em essên cia uma doutrina do direito rejeita por definição a oposição entre educação moral e jogo de paixóes como íúndamentos alternativos para a vida social O Estado é definido como a união dos homens sob a lei O Estado digno desse nome é constituído por leis que sáo necessárias a priori porque fluem do próprio conceito de direito Um regime não pode ser julgado por qualquer outro critério nem a ele podem ser atribuídas quaisquer outras funções além daquelas próprias da ordem legal em si É da essência do direito sustentarse a priori como proveniente da razão prática e também imporse somente aos atos externos que são aqueles sobre os quais é possível legislar e impor restrições externas sem qualquer consideração pelos objetivos ou motivação interior de um homem Desta forma a lei fornece uma mirada isto é em sua abstração e sua uni versalidade essencialmente neutra em relaçáo à moralidade e felicidade mesmo que possa estar de acordo com qualquer uma das duas Sem dúvida Kant diverge de seus antecessores ao apresentar a moralidade como uma condenação do estado de natureza e um comando para que os homens entrem em um estado de direito em que passem a estar sob coação externa e no qual só podem ser respeitados os direitos do homem e é à moral que esses direitos devem sua santidade Porém o único direito inato aquele em torno do qual revolvem todos os outros é aquele que garante a liberdade de cada homem para realizar todos os atos externos que lhe aprouverem desde que não invada essa mesma liberdade dos outros Essa liberdade externa é definida sem considerar qualquer limitação moral interna e implica a rejeição de todas as limitações morais ex ternas todas as tentativas de educação moral por parte do estado Por outro lado não importa até que ponto a sociedade civil seja responsável pela preservação de seus mem bros não deve adotar como fim o seu ser seu bemestar ou sua felicidade mas pode ter 5 3 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y como meta correta apenas a preservação da ordem de direito em si O caráter universal e a priori da lei e da natureza jurídica da sociedade política exigem que esta última se limite ao universal e por conseguinte às condições mínimas para a coexistência de homens livres sem levar em conta a natureza empírica desses homens ou os usos que ferão de sua liberdade Além disso há uma outra base mais diretamente política para a disjunção entre os fins da sociedade política e os fins de seus membros indivíduos que perseguem seus diversos fins dentro de um direito idêntico à liberdade externa o regime que teria como objetivo muito embora de forma benevolente prescreverlhes o caminho para sua felicidade constituiria um despotismo paterno contrários aos seus direitos Na mesma linha o estado não pode e não deve tentar c o r seus cidadãos a agir moralmente pois embora as ações possam ser reguladas as intenções indispensá veis para a moralidade desses atos não pode ser induzida de fora para dentro talvez eu possa ser obrigado a empregar certos meios a fim de atingir um determinado fim mas só eu posso ditar o fim para mim mesmo Desta forma parece que este estado de direito que deve abstrair tanto da felicidade como do dever moral de maneira a se basear exclusivamente na liberdade externa será um estado por sua natuteza contrário ao despotismo ou seja o estado republicano Uma vez que existe este estado demonstra ser mais propício tanto à felicidade dos homens como a sua moral à sua felicidade porque o sentimento de não dever a ninguém seu destino é indispensável para a felicidade dos homens e à sua moralidade porque a con formidade dos atos dos homens para com a lei prepara a conformidade das suas inten ções para com a lei moral Resta ver se o sistema kantiano pode ter sucesso em proibir o estado no interesse da liberdade externa de qualquer cuidado com a moral e felicidade dos homens e ao mesmo tempo comprovar sua demonstração de que o estado resulta de uma preocupação com ambos e impele os homens para ambos A construção de Kant é baseada no primado absoluto do direito inato de todo homem à liberdade externa a liberdade da restrição da vontade de outro Ao mesmo tempo a razão prática declara como seu único postulado legal a possibilidade de o indivíduo considerar todos os objetos externos como próprios Tanto o direito inato como a possibilidade postulada exigem para a sua proteção que seja restrita a liber dade externa dos homens Restrições legais à liberdade externa são indispensáveis para a conversão de simples bens em propriedades definitivas porque legais O direito exige que haja coação tanto dos que transgridem a lei como daqueles que precisam ser forçados a participar da vida civil A constituição da sociedade civil é concebida como baseada em um contrato original pelo qual os indivíduos se unem para estabelecer uma vontade coletiva a cujo representante delegam seus poderes independentes de mútua coação Como em Hob bes somente o chefe de estado pode coagir outras pessoas sem ser ele mesmo sujeito a coação porém como em Rousseau porque está unido a todos obedece apenas a si mesmo a vontade geral fonte e produto do contrato original é único soberano e legislador mas com o entendimento de que o corpo de cidadãos em si é aquele so berano Assim Kant pode afirmar em A paz perpétua que a liberdade externa não é a Immanuel Kant 539 liberdade de um homem fezer o que lhe aprouver mesmo dentro dos limites de uma li berdade semelhante dos outros mas sim sua liberdade de náo obedecer a quaisquer leis externas às quais possa não ter consentido Seguese que o governo representativo em que a legislação é dominada pela vontade geral é o único governo legítimo Kant distingue três poderes políticos que são de feto a vontade geral manifesta em três pessoas o poder supremo ou soberania na pessoa do legislador o poder executivo na pessoa do governador e o poder judicial assegurando a porção de cada um na pessoa do juiz A prova da conformidade de um governo com o contrato original e de sua representatividade e legitimidade é portanto a separação de po deres dentro dele Ao distinguir os regimes Kant substitui o critério tradicional de um poucos ou muitos governantes em fevor de um exame da forma enraizada na ação da vontade geral que efetuou a transformação primordial da multidão em um povo como o estado aplica seu poder absoluto O filósofo chega à distinção entre estados republicanos e despóticos O despotismo é exatamente a junção do legislativo e executivo em um único poder que executa leis de sua própria criação uma situação exemplificada pela total democracia Por outro lado quanto menor o número de go vernantes e quanto maior a representação do povo mais perfeitamente pode o regime aproximarse do republicanismo no qual na prática o governo representa o povo enquanto o próprio povo é o legislador soberano Kant modifica esta doutrina da soberania popular que tem óbvias implicaçóes revolucionárias de uma forma que aparentemente entra em conflito com sua distin ção entre a priori e empírico e entre direito e moral O filósofo declara para começar que o contrato original a condição indispensável para a sociedade civil direito e repu blicanismo náo precisa ser considerada como um feto histórico e é aliás impossível exceto como uma ideia útil para impelir os legisladores a respeitarem uma vontade ge ral postulada com seriedade Entretanto se o contrato original é apenas um critério para julgar regimes assim também é a vontade geral que supostamente surgiu dele Assim uma expressão real da vontade geral pelo voto popular pode legitimamente ser substituída pela legislação monárquica conquanto que a legislação pudesse ter recebido a aprovação da vontade geral Enquanto o republicanismo é assim transfor mado em justiça como critério de legitimidade qualquer governo pode ser conside rado legítimo pelo menos provisoriamente embora seja preciso entender que nâo é aplicável nenhum princípio substantivo de justiça mas apenas o princípio formal da universalidade a medida é adotada com justiça por todo um povo ou de forma coe rente com a vontade geral por um governador se nada de contraditório houver nisso Isto confirma a definição de direito em abstração de todas as consideraçóes morais e empíricas Porém é nítida tarefa do governante e não do povo julgar se a definição está sendo respeitada o povo deve obedecer em quaisquer circunstâncias A des qualificação do povo para a defesa de seus direitos inalienáveis praticamente assegura 540 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Sobre o dito popular pode ser verdade na teoria mas náo se aplica na prática conclusão 20 Ibid algum desvio em relação à legitimidade estrita Esta não é gravemente afetada pelo fato de que os cidadãos devem ter o direito de livre discussão e crítica Por conseguinte a justiça deve afinal depender da boa vontade do chefe de Estado cujo poder não deve ser contrabalançado por qualquer outro Kant apoiava a moderna substituição da educação por instituições e da regulação moral das paixões por suas limitações mútuas mas até que as revoluções que o filósofo condena por razões morais tenham instalado o republicanismo em toda parte o respeito pelos direitos do homem embora se tenha tornado uma prioridade reduzida aparentemente dependerá de fatos empíricos tal como a educação e a moralidade dos governantes É por isto sem dúvida que Kant considera o problema político como incapaz de receber solução perfeita o homem é um animal que precisa de um mestre mas o mestre é ele próprio um homem A solução abstrata segundo a qual cada homem será seu próprio senhor sendo todos reciprocamente senhores e súditos parece viável apenas e mesmo assim de modo precário quando substancialmente modificados por considerações empíricas ou morais que Kant luta em vão para apresentar como necessárias a priori e puramente no interesse da legalidade em si De modo mais geral o filósofo é levado a justificar muitas medidas cautelosas que em última análise dizem respeito à prosperidade do estado e à felicidade de seus cidadãos mas luta para derivar sua justificação de argumentos que os demonstram necessários para a defesa do estado legítimo contra os inimigos externos do povo A Pa z E t e r n a Os mesmos problemas recorrem de modo ainda mais enfático nos mais originais e talvez mais decisivos ensinamentos políticos de Kant isto é em sua doutrina das relações entre os estados e a paz perpétua Aqui também o desejo de conciliar uma doutrina pura mente jurídica baseada nas demandas da moral e no mecanismo das paixões de conciliar o ideal com o real por meio de uma teleologia da natureza a astúcia da natureza exigida pela moral leva a extensas concessões baseadas em considerações empíricas Ao solapar os fundamentos neutros e abstratos do direito a elaboração dessa doutrina revive com todas as suas dificuldades e aridez o problema da relação entre moral e história É justamente o legalismo intransigente e abstrato do empreendimento de Kant que o conduz para além das posições de Hobbes e Locke pois ao conceber a instituição do estado como um simples estágio de desenvolvimento Kant desloca o problema da transição do estado de natureza para o estado da sociedade civil para o plano universal ou cosmopolita As necessidades que levam à formação de qualquer sociedade civil em particular são tão generalizadas que também afetam as relações entre as sociedades a ponto de impedir qualquer resposta perfeita para essas necessidades por parte de estados coexistentes O mesmo postulado jurídico subjaz à política interna e externa o direito público o direito das gentes ou as relações entre estados e o direito cosmopolita de homens e estados como cidadãos da cidade universal Todos os homens que podem afetar uns aos outros reciprocamente deveriam estar dentro do campo de ação de alguma I m m a n u e l K a n t 5 4 1 instituição civil pois mesmo que somente um usufrua sua licença natural sobrevêm o estado de guerra Qualquer p e r externo provindo seja de uma comunidade ou de um indivíduo perturba a garantía contra a violência para a liberdade e propriedade pa cíficas da sociedade civil Indivíduos não podem atender a seus próprios interesses nem ao comando da razão prática não haverá guerra nem ao plano da natureza com pleta unificação civil da humanidade se os estados não sAÜtem o caminho que vai do estado de natureza para o estado de direito Kant como Hobbes afirma que o estado de natureza é um estado de guerra e que as nações estão nesse estado em relação umas às outras Novamente como Hobbes Kant sustenta que no estado natural a paz de qualquer momento dado é apenas um episódio empírico no estado de guerra subjacen te O estado de paz para que exista precisa ser instituído de modo explícito A íilosoíia política de Kant porque jurídica em essência tomase íundamentalmente uma doutrina de guerra e paz em que a polítíca externa tem dara precedência sobre a interna consti tuições dvis individuais não serão capazes de trazer a paz interna enquanto persistirem as ameaças externas à paz Kant íãz uma crítica acirracü a Grócio e outros teóricos do di rdto internacional bem como à escola do equilíbrio de poder porque não reconhecem a importância decisiva da obtenção da organização jurídica entre os estados Tendo afirmado isso Kant surpreende o leitor da primeira parte de A metafísica da moml Rechtslehre Doutrina do Direito com sua declaração de que a oianização dos estados não deve contar com um poder soberano mas deve ser meramente uma aliança ou federação revogável à vontade e exigindo renovação periódica É óbvio que é questíonável a capacidade de uma organização deste tipo para obter obediência ou a paz A obscuridade ou hesitação de Kant quanto a este ponto compromete duas preocu pações ainda mais fundamentais a paz perpétua só pode ser precária ou provisória mas não deíinitíwu e pode de íato ser um ideal puramente inatiivel ao contrário de uma necessidade moral ou um fato previsível Finalmente as dificuldades que afetam uma concepção jurídica da ordem internacional nos colocam de novo cara a cara com o caráter problemático da afirmação de Kant de ter resolvido o problema de Rousseau o progresso histórico realmente prepara a regeneração moral da humanidade As dificuldades que suigçm para Kant no nível político e legal são inerentes à natureza de uma organização internacional que pode ou deve estar para os seus es tados componentes tal como os estados estão para seus cidadãos A plena eficácia da organização pressupõe intrusões na autoridade dos próprios Estados ou até mesmo em sua própria condição de estados Por outro lado se for restrito o poder da organiza ção os estados permanecem efetivamente na condição original de finalidade e guerra iminente A alternativa consiste no estado universal de um lado e de mero pacto ou aliança de estados de outro Kant rejeita o estado universal e parece íavorecer a federa ção ou república de repúblicas Não fica daro se a república de repúblicas é um ideal inatingívd útil para regular a ação ou uma meta realizávd que sozinha seria capaz de introduzir leidade e significado na polítíca e na história 5 4 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 1 Apazperpituases2aotíi3 Kant rejeita o estado universal por motivos que se afestam das abstrações da legalidade e que dependem ao contro da sabedoria política empírica da moral e da íilosoíia da história Sua objeção é que as leis perdem mais e mais da sua força na medida em que o governo ganha em tamanho e um despotismo sem alma decai final mente na anarquia depois de ter destruído os germes do bem O estado universal seria o despotismo universal e a paz que sobreviria seria a paz do túmulo desconhecen do não só a liberdade mas a virtude o gosto e a ciência Além disso o estado universal deve desintegrarse em corpos menores cuja interação é o instrumento escolhido pela natureza Kant firmemente decide em favor da difícil reconciliação entre uma multi plicidade de estados e uma ordem jurídica embora seja verdade que em Die Relipon innerhalb der Grezen des blofien Vemunfi A religião dentro dos limites da mera razão refirase à íusão prematura e portanto fetal de estados se ocorrer antes que os ho mens se tomem moralmente melhores deixando assim em aberto a possibilidade do estado universal como o culminar de um progresso histórico que tem o progresso moral como sua condição preestabelecida Em suas anotaçóes e em seus textos publicados Kant fez comentários diversos embora não inconsistentes sobre a tripla questão do poder coercitivo da Confederação a provisoriedade ou a perfeição da paz que esta pode obter e o status do projeto como possível e ponanto obrigatório ou como impossível e perturbador Em algumas deda raçóes mas não em outias a participação em uma constituição legal é obrtória para os estados Em algumas delas os estados podem obrar seus vizinhos a participarem de uma constituição desse tipo em outras não Em algumas o corpo internacional pode coagir em outras não Às vezes a organização internacional é apresentada como realizadora de um progresso persistente porque é da natureza do Bem perdurar uma vez que se inicie assim como é da natureza do mal destruir a si mesmo no entanto às vezes a organização é representada como estando em perigo constante de esfecelarse Às vezes o projeto é apresentado como uma ideia iriealizável às vezes como um limite acessível por um progresso assintótíco indefinido e às vezes como um fim atingível pelo acordo de três governantes europeus As obras publicadas de Kant examinadas por si sós teíletem a incerteza e talvez a evolução de seu pensamento indicando a impossibilidade de uma solução puramente jurídica para o problema e a dificuldade de alcançar qualquer solução Remetemos o leitor particularmente a Idee zu einer allgemei nen Geschichte in weltbürgerlicher Ahsicht Ideia de uma história universal com um pro pósito cosmopolita Theorie und Práxis Teoria e prática e A paz perpétua A visáo de Kant que se manifesta em Doutrina do Direito em Metafisica dos Costumes merece especial atençáo pelas questóes que suscita Sua argumentação pode ser resumida da se guinte forma 1 A paz eterna constitui uma transformação radical e indispensável dos assuntos humanos sem a qual todas as posses e sqrança são apenas provisórias Exige o esubelecimento de uma constituição civil universal Volkerstaai 2 Isso é imprati cável um congresso de Estados deve ser aceito em seu lugar 3 Como a inviabilidade Im m a n u e l K a n t 543 22 Ibid Primeiro acréscimo nâo foi demonstrada de forma absoluta e a moralidade exige a paz eterna e portanto uma constituição civil universal devese porém adotar a paz eterna como a meta a ser sempre almejada por meio do progresso perpétuo Este argumento não é isento de grandes dificuldades Em primeiro lugar seria a profundidade da transformação introduzida pela paz eterna compatível com a gradual imperceptível e acima de tudo aparentemente infindável evolução que conduz a essa transformação A doutrina de Kant parece apelar implicitamente tanto à noção do fim da História como à do progresso perpétuo no entanto as duas noções são mutuamen te contraditórias Em segundo se entrar em uma constituição civil parece no momento nada mais que um objetivo distante e a coerção institucional das pabtões está correspon dentemente remota seguese que a presente lei internacional imediata tem como diria Hegel a forma de dever do dever ser É o ditame da moral que os estados imediatamente se transformem e a suas relações de modo a tornar possível uma futura condição jurídica ou talvez como se para tornar possível essa condição Kant cri ticara o direito internacional vigente e em particular a Grócio ao enfatizar que não pode haver lei sem o estado de direito e não pode haver estado de direito sem contrato e coerção Ele mesmo porém em seu projeto para a paz perpétua é levado a enumerar alguns artigos preliminares que se justificam pela máxima Então aja de tal forma a não impedir a saída dos estados do estado da natureza e a inauguração da paz perpé tua Alguns desses artigos são de aplicação imediata alguns podem ser adiados por razões de prudência mas em todo caso é certo que neles reaparece parte do direito internacional clássico muito embora com uma nova justificação final constituindo o que é mais concreto e mais tangível na doutrina da paz perpétua e da lei das nações de Kant Em sua última obra publicada Der Streit Der Fakultãten O conflito das facul dades Kant parece colocar a sua ênfase e suas esperanças em relação à paz eterna na instituição do governo republicano essencialmente pacífico no âmbito dos estados em lugar da submissão dos estados a uma comunidade civil universal Os argumentos de Kant parecem implicar que a transformação da natureza e das relações internacionais esta última o testemunho mais perigoso e visível da maldade da natureza humana pode levar afinal à submissão dos estados a uma constituição legal e à paz perpétua que por sua vez deve abrir o caminho para a regeneração mo ral dos estados e dos homens A questão dupla reaparece agora podese depender do progresso moral para transformar a história de maneira favorável ao direito e à paz Podese depender do progresso histórico para produzir uma constituição universal legal e um estado de paz favorável para a moralidade Tendo ou a história ou a moral como ponto de partida e admitindo uma aparente neutralidade do ponto de vista legal recorre a pergunta relativa à possibilidade e ao modo como um pode influenciar o outro progresso imperceptível ou transformação radical Vamos examinar primeiro o que Kant considera como as indicações históricas concretas de que a natureza assegura a paz eterna e também que perspectivas próximas ou remotas se abrem com essa garantia O tema central ditado pelo próprio problema 5 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y e pela concepção kantíana da história regida pelo antonismo é o papel desempe nhado pela guerra na história contudo esse tema é articulado com o do progresso da civilização na era do Iluminismo e mais particularmente com a oposição entre a religião e o comércio Em primeiro lugar existem condições externas por meio das quais a natureza manifesta sua filantropia e pelas quais a teleologia natural prepara o arcabouço para a teologia histórica os dispositivos por exemplo por meio dos quais a natureza tornou habitáveis até mesmo as regiões mais inóspitas da Terra Em segun do é através da mediação da guerra que a natureza impulsiona os homens a todos os cantos do mundo na verdade compelindoos a habitálo todo assim possibilitando sua progressiva unificação política Na medida em que os homens não avançam em direção a seu fim moral pela instrumentalidade de sua liberdade devem avançar sob a coação da natureza e assim de acordo com a terceira disposição provisória da nature za os homens são compelidos sob ameaça da guerra a participar de relações mais ou menos legais Mais especificamente a guerra externa e também antagonismos internos impulsionam na direção do governo republicano como o mais eficaz no enfrentamen to de ambos os tipos de ameaça Contudo de todas as formas o governo republicano é o mais íavorável à paz Portanto na medida em que o republicanismo é difundido no mundo a guerra tende a ser suprimida Dentro da perspectiva do direito internacio nal no entanto que pressupõe a existência independente de muitos estados a nature za aparece como uma obstrução para a paz eterna obtida pela íiisão dos estados em um estado universal A natureza interfere com essa fusão ao proporcionar uma diferença de linguagem e de religião São estas até certo ponto desejáveis e permanentes apesar de implicarem o ódio e a guerra Este mal necessário é gradualmente superado no entan to pelo progresso do Iluminismo que colaborando com o avanço da civilização e de uma ampla concórdia humana conduz a uma pacificação geral com base na liberdade no equilíbrio e na emulação Superveniente a todas as diversas manifestações da reli gião deve ser a única religião universal a religião inserida unicamente nos limites da razão válida para todos os homens e em todos os tempos o produto pacificador que emerge gradualmente desse mesmo iluminismo A religião racional não seria capaz de produzir a unidade e a paz sem um pro gresso simultâneo da civilização que as apoiaria com uma base mais sólida no interesse comum Dentro da cena ampla da divisão natural e da união coagida entre os povos mais cedo ou mais tarde o espírito comercial principia sua manifestação em todas as nações tendendo a proporcionar a harmonia aonde a noção de direito cosmopolita pouco efeito viria a ter O comércio o meio de seu interesse comum é promovido por um espírito que é incompatível com a guerra De todos os poderes e meios à disposição do Estado o poder do dinheiro é sem dúvida o mais certo e os estados assim são constrangidos a auxiliar o avanço em direção à paz nobre não por razões de moral é verdade e evitar a guerra onde surge sua ameaça por mediação exatamente como se estivessem unidos em aliança perpétua para este íim É assim que a natureza assita paz perpétua pelo próprio mecanismo das tendências humanas Im m a n u e l K a n t 545 23 Ibid Desta forma temse a sensação de finalmente confrontar as verdadeiras razões que estão por trás da esperança de Kant em grande medida as razões de seu século As religiões que dividem se opóem como no pensamento de Montesquieu ao comér cio que une O desenvolvimento econômico interno dos estados e a elaboração de suas relações comerciais externas tornarão a guerra não lucrativa e desastrosa respectiva mente A riqueza substitui o poder como a medida de superioridade Impulsionada pela conquista muito se adiantara a humanidade na estrada para a unidade e a legali dade porém a diversidade de línguas e religiões efetivamente tornouse um obstáculo nesse caminho Hoje em dia o comércio substitui a conquista na continuidade da tarefa de unificação de uma forma que respeita a diversidade e garante a paz dentro de limites compatíveis com ela Onde fiJharam a guerra por meio da conquista e a moral por meio da educação parecia à era de Kant que o comércio ou de forma mais geral o dinheiro estava prestes a ter sucesso Todavia o íuncionamento do comércio está entrelaçado com o da guerra do esclarecimento e da moral já as obscuridades do kantismo impedemnos de discernir claramente entre esses modos e encontrar a direção final desse íuncionamento Ten deria a evolução econômica da humanidade a abolir a guerra por meio de guerras tão brutais a ponto de serem insuportáveis ou por meio da deterioração da guerra que é contrária ao espírito e interesse dos estados Se o Mal o conflito entre inclinações dá origem ao Bem a paz perpétua íaria isso por meio de catástrofes provocadas por sua força esmagadora ou por meio de aperfeiçoamentos provocadas por sua debilidade A primeira possibilidade aponta para a revolução e a regeneração radicais esta última em direção a um processo gradual e indefinido A mais forte indicação dada por Kant parece apontar na primeira direção as guerras estão se tornando mais freqüentes e mortais e acima de tudo mais caras em breve serão tão catastróficas que se tornarão impossíveis A humanidade será compeli da a mudar seu curso Entretanto este redirecionamento para o bem não terá o caráter de um evento único inevitável e decisivo Pelo contrário está ligado ao progresso da civilização e da iluminação e depende em certa medida do entendimento e decisões dos soberanos que por sua vez dependem de um avanço fundamental na iluminação cujo adiamento posterga o evento crucial para um momento indeterminado futuro E mesmo assim o redirecionamento para o bem inicialmente suposto não transformará a condição dos estados e do homem de modo radical e decisivo A perspectiva é de um aperfeiçoamento gradual correspondendo ao progresso no esclarecimento e na cultura o que implica o progresso se não na moral dos homens pelo menos na legalidade de seus atos o qual apesar das intenções que o influenciam se conformará mais e mais estreitamente com o ditame do dever A tensão entre a paz perpétua como eventualidade e como princípio regulador entre o progresso indefini do como um movimento que jamais atinge seu objetivo e como aquele que o atinge cada vez mais está bem expressa no trecho final de A paz perpétua Se é um dever a realização do estado de direito público e se há alguma razão na experiência para pensá lo realizável embora apenas por abordálo por meio de um progresso indefinido a 5 4 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y paz eterna que substituirá os mal chamados tratados de paz na verdade apenas tré guas não é uma ideia inútil mas uma tarefe que realizada pouco a pouco de forma constante se acerca do fim porque é de se esperar que os períodos de igual progresso continuamente diminuam A noção de progresso assintótico é a mais consistente com a concepção kantiana do infinito tal como apresentado em Crítica da Razão Pura Kant baseiase nos matemáticos para negar que há uma contradição na afirmativa de que o progresso da humanidade é uma constante que se aproxima da meta e se assimila a ela sem jamais atingila Contudo no mundo político e histórico do homem a ideia de progresso acelerado em direção a um objetivo nunca alcançado apresenta dificulda des maiores do que as existentes no paradoxo de Aquiles e a tartaruga A ideia tornase inteligível apenas em virtude de várias substituições aquilo que em um determina do nível aparece como uma meta realizável aparece em um nível inferior como uma ideia reguladora a moral é substituída pela legalidade o estado de direito de egoísmos mutuamente anuladores sob restrições externas substitui o estado do homem tornado bom pela compulsão interna do dever a situação em que os estados se comprometem a renunciar à guerra embora seja esta em si uma condição jurídica substitui a condi ção jurídica no sentido estrito tal como definida pela submissão das nações à coerção pública Volkerstaaí E a situação em que os estados nada ganham com a guerra em que intervém para suprimila como se fossem compromissados a fezêlo mas não o são é uma condição quase jurídica um substituto para o estado de direito em que a paz não é meramente provável mas seria assegurada pela submissão à autoridade pública ou pelo menos a guerra seria explicitamente proibida por um pacto O progresso implica um crescente abrandamento do estado de guerra que no entanto continua a ser a essência das relações entre os estados e a rigor entre os ho mens A combinação de educação iluminação e incapacidade equilíbrio de forças e o alto custo da guerra faz com que o esudo de natureza cada vez mais se assemelhe ao estado de direito o esudo de gueru se assemelhe ao esudo de paz mas não mudaram realmente nem a natureza das sociedades nem a dos homens nada é realmente garan tido e afinal a rigor nada é verdadeiramente salvo Talvez nada se salve não porque nada pode ser salvo mas porque ainda não foram tomadas as medidas essenciais e decisivas A história conduz os homens à civilização isto é a uma solução manipulável dentro do esudo de guerra ou do jogo da paixão a histó ria deixa os homens no limiar da verdadeira paz e da verdadeira legalidade No entanto talvez tal ocorra porque deixa os homens no limiar da moralidade que confrontando a debilidade interior de seu adversário irá explorar a oportunidade de ministrar o golpe decisivo introduzindo aquele genuíno governo republicano cujo conceito é acessível apenas ao político moral e aquela paz cujo conceito é moral A reforma histórica será sucedida por unu revolução moral De feto para Kant a revolução é necessária para a maneira de pensar Denkunari mas a reforma gradual é necessária para a maneira de sentir Sinnesarif É necessária uma reviravolu radical porque tornarse um homem bom não apenas pela lei mas pela moral não pode ser realizado por meio de uma tefornu gradual enquanto a base das máximas permanecer impura pelo contrário deve Im m a n u e l K a n t 547 ser alcançada por meio de uma revolução na mentalidade Gesinnun do homem que pode tornarse um novo homem somente por uma espécie de renascimento semelhante a uma nova criação e uma mudança de mentalidade Podemos inferir que a astúcia da natureza resulta por meio do progresso da cultura e do direito da guerra e do comércio em um triunfo n a tiv o que consiste unicamente na eliminação dos obstáculos à moral ou em trazêlos a um estado de neutralização mútua enquanto os seus objetivos adequados paz e direito universais só são alcançados quando a razão prática intervém diretamente para atingir os seus próprios fins que incluem os da natureza mas os ultrapassa Como fica evidente em A paz perpétua Kant acreditava que o mal é autodestrutivo e os desígnios de homens ímpios reciprocamente frustrantes Kant demonstra ainda que se trata de uma ques tão de intervenção ativa in extremis por assim dizer da intenção moral e não apenas da realização inconsciente do bem através do mal quando os motivos da política natural suprimirem e destruírem uns aos outros os da moral da política começarão a se manifestar em ação e concretizar a ideia de paz eterna D a H is t ó r ia à M o r a l Ao que parece a moral por um lado e a natureza ou a história por outro terão seus efeitos através de uma colaboração bastante semelhante a um revezamento Em primeiro lugar a natureza vem em auxílio dessa vontade geral fundada na razão e re verenciada por todos mas ineficaz na prática ao assegurar o cancelamento mútuo das tendências egoístas de tal forma que para a própria razão é como se não existissem Contudo em segundo tendo sido limpo o terreno é a moral ou razão prática que assume o comando e por si leva a termo a tarefa e é a vontade geral ou universal expressa a priori que por si só determina o que é lícito entre os homens e que pode se conduzirmos nossos negócios com coerência ser a causa que produz o efeito dese jado através do mecanismo da própria natureza e que ao mesmo tempo permite que a noção de lei seja concretizada Porém se a instituição do verdadeiro estado de direito e da paz eterna está ligada à intervenção real na história de uma intenção moral em que tipos concretos de ação vai se manifestar essa intenção Será que a transformação moral dos homens conduz à transformação decisiva das instituições que o perfeito equilíbrio das paixões não con seguiu obter É pelo contrário a transformação das instituições que deve no longo 5 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 24 Die Reüpon innerhalb der Grezen des bloJSen Vemunji A Religiáo dentro dos limites da mera razão I V 25 Vorarbeiten zum Emgen Frieden Notas preparatória para A paz perpétua in Kant Gesammelte Schrijien Akademie Ausgabe v 23 p 192 26 A paz perpétua Primeiro acréscimo 27 Vorarbeiten zum ôffentliches Recht Notas preparatória para direito público in Kant Gesammelte Schrijien Akademie Ausgabe v 23 p 353 prazo levar à transformação moral dos cidadãos garantindo assim a estabilidade dessas próprias instituições Ou é a intenção moral que se manifesta na história na verdade a intenção dos soberanos iluminados pela fílosofia que se comprometem simultaneamente com a transformação das instituições e da educação moral de seus súditos Em A relião dentro dos limites da mera razão e em Ideia de uma história uni versal com um propósito cosmopolita Kant apresenta a regeneração moral dos homens e sua educação moral pelos estados como necessariamente antecedente à unificação da humanidade Em A paz perpétua no entanto afàstase da noção de educação moral pela comunidade em direção ao pensamento de que essa educação não é indispensável para a formação do governo republicano Na verdade Kant indica que a natureza realiza o que é necessário para esse objetivo por meio das próprias tendências egoístas deixando ao estado a tareia de explorar o mecanismo natural para transformar em bons cidadãos os homens moralmente defeituosos Cita o exemplo da nação de demônios para argumentar que a íundação do estado não exige a bondade moral dos homens Kant chama a atenção para a aproximação à moralidade que pode ser observada em estados reais onde a perfeição moral decerto náo é a influência decisiva nem mesmo determinada por lei e comenta que não se deve esperar uma boa constituição da moral do povo mas ao contrário uma sólida educação moral do povo pela Constituição As duas linhas de pensamento podem de fato ser reconciliadas até certo ponto Quando as instituições receberam precedência sobre a transformação moral o contex to era a constimiçáo interna do estado e as coerçóes externas da lei como um substituto para as coerçóes internas da própria moralidade Onde a transformação moral recebeu precedência sobre as instimiçóes o contexto era o das relaçóes entre os estados a qual não pode abrir mão da moralidade uma vez que não essas relações não reconhecem qualquer coerção restrição externa efetiva Conmdo permanece o paradoxo segundo o qual é possível supor uma constimiçáo que se desenvolve a partir do mecanismo das tendências para educar corretamente um povo se um governo republicano pode con seguir isso por que não se tornaria essa a principal fimção de tal governo Poderia este governo cumprir essa fimção independente das disposições treinamento e intenções dos seus cidadãos Pode ele inspirar com uma boa vontade uma nação de demônios que coagidos por suas tendências egoístas a participar de um estado legal tornarse iam moralmente bons através da influência desse estado Em outros escritos Kant suaviza esse paradoxo apresentando como comple mentares as duas ideias que parecem estar em conflito A constituição do Estado em última análise repousa sobre a moralidade do povo a qual por sua vez nâo pode lançar raízes sem uma boa constituição Tal afirmação poderia íacílmente ter sido feita por Platáo e Aristóteles Se então até Eora Kant concorda com os Clássicos não deveria ele aceitar também seus pressupostos e suas conclusões acerca do objetivo Im m a n u e l K a n t 549 28 A paz perpétua Primeiro acréscimo 29 Vorarbeiten zum Ewigen Frieden Notas preparatória para A paz perpétua Gesammelte Schriften Akademie Ausgabe v 23 p 162 moral da política e do caráter político da moralidade Dito de outra forma a posição de Kant expressa nesta citação parece suscitar duas perguntas uma delas prática Por que não deveria o estado adotar como meta a moral do povo e outra teórica Não conflita a reciprocidade declarada entre direito e moral com o que é especificamente kantiano na concepção de cada um deles Não seria o núcleo do kantismo exatamente a radical disjunção da legalidade que influiu somente nas ações externas e da morali dade que influi apenas nas intenções Até certo ponto a resposta à primeira pergunta está contida na segunda Kant não pode nem por um momento abandonar a ideia de que uma intenção moral uma boa vontade não nos pode ser introduzida por um comando externo qualquer podemos ser obrigados a realizar determinados atos mas não podemos ser forçados a adotar um determinado fim como nosso A sugestão de influência política sobre a moral só pode ser feita com legitimidade com vistas a compulsões atenuadas graduais e indiretas implícitas na educação e na formação dos hábitos Seriam esses últimos capazes de transformar a natureza empírica do homem o suficiente para favorecer sua liberdade moral Se um educador quer a família o estado ou a natureza nos ensina a desenvolver nossa razão e dominar nossos instintos não nos conduzem esse desenvolvimento e domínio mesmo que tenham começado por meio da promoção de fins egoístas até à fronteira da moral e tornam altamente provável essa conversão final de liberdade que lhes daria um valor moral Em suma na multiplicação dos canais entre a natureza e a liberdade por meio da noção de uma liberdade surgida a partir da namreza e gradualmente emancipada dela não estão a natureza e a liberdade sendo reunidas de acordo com os princípios internos da lei Essa é de fato a fimção principal da filosofia da história de acordo com Kant O problema final da filosofia da história é compreender a pertinência moral do progresso na cultura na civilização e no direito o que converge no nível da educação da humani dade com o problema da possibilidade da educação moral do indivíduo As respostas de Kant à pergunta decisiva são tão diversas e hesitantes quanto as que fornece sobre as condições institucionais e históricas da paz Talvez a formulação mais exata de seu pensamento sobre o tema possa ser obtida a partir de dois trechos um sobre os efeitos da legalidade que prevalece nos estados e o outro no nível da tele ologia histórica No primeiro A paz perpétua Apêndice I Kant afirma que as proibi ções impostas contra agir de acordo com tendências ilegais incentivam uma predileção moral para respeitar a lei Em Crítica dojuizo que contém esta última passagem 83 Kant pretende mostrar como o fim último da natureza viz a cultura significando a aptidão para propor livremente fins para si mesmo e usar a natureza como meio para isso prepara a liberdade moral o único fim incondicional em si mesmo independente da natureza Para este objetivo Kant precisa introduzir uma noção intermediária a da forma superior de cultura que denomina a cultura da disciplina em que os homens do minam sem expurgar os desejos naturais que conduzem aos fins da vida sendo livres para dar asas a eles mas apenas na medida em que a própria razão o dita Esta possi bilidade de dominar as paixões prepara aquela emancipação radical diante de todas as tendências externas que ela própria constitui a moralidade O desenvolvimento de 550 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y tal domínio deve ser entendido como baseado naquela civilização do homem que se manifesta no refinamento do gosto e na elaboração do conhecimento nâo obstante o aumento da sensualidade que é inseparável do processo As belasartes e as ciências que através de um prazer acessível a todos e pelas boas maneiras e graças da sociedade ainda que não feçam o homem moralmente melhor o tornam porém civilizado sobrepóemse em muito à tirania dos sentidos e preparamno assim para um domínio que pertence à razão somente Todavia os males com os quais quer a natureza quer o insuportável egoísmo dos homens nos afligem convocam fortalecem e temperam simultaneamente as forças da alma para que estas não sucumbam e assim nos revelam uma aptidão que em nós permanece oculta para fins mais elevados A questão crucial a ser enfrentada em relação a esses dois trechos a questão em que se concentra todo o problema da íilosoíia kantiana da história e da política é esta que significado exato deve ser ligado a expressões como íàcilitar suscetibilizar a revelar a aptidão para preparar para prevalecer fortemente contra dar um longo passo em direção a e assim por diante Qual é a natureza ou mais precisamente qual é a necessidade da ligação entre o que prepara e o que é preparado entre o o longo passo em direção à moralidade e passo moral em si Este último pode necessariamente im plicar o primeiro mas o primeiro não parece necessariamente conduzir ao último Uma união demasiado estreita entre eles traria um determinismo ou mecanismo às condições de moralidade que colocaria em risco a liberdade essencial da própria moralidade Uma disjunção demasiado extrema entre eles uma transição demasiado radical da natureza para a liberdade ou mundo fenomenal para o mundo numenal torna inócuo todo o projeto da íilosoíia da história que constituiu precisamente uma tentativa de preencher essa lacuna É dificil entender como uma transição imperceptível da condição prémoral para a condição moral seria compatível com a escolha moral radical entre paixões e dever que está implícita na concepção kantiana da moralidade O que se pode dizer com certe za porém é que a civilização e o direito devem necessariamente preceder a moralidade e que a decisão moral por sua vez é o começo o archê da vida moral e não pode ser substituída pelos vários apelos ao egoísmo ou pela disciplina e lalidade os quais jamais poderão ser mais do que a preparação submoral para a moralidade A filosofia da história pode atenuar mas não pode de forma alguma anular a disjunção absoluta do mal e do bem do egoísmo e da moralidade da natureza e da liberdade A liberdade deve ser ou não ser e se for é incompatível com o íúnciona mento de qualquer mecanismo automático A conversão moral da humanidade que jamais poderá tornarse uma certeza teórica ou necessidade mecânica nâo pode ser tomada como a base para uma solução do problema político Reciprocamente a ex ploração histórica e jurídica do mecanismo das paixões torna impossível uma solução do problema moral humano Para Kant a política o direito e a história permanecem em uma relação ambígua ou náo resolvida com a moral os dois lados da relação em um estado de necessidade I m m a n u e l K a n t 5 3 1 30 Critica da factddade do juízo 83 mútua e repulsão mútua Kant apresenta a ordem política e jurídica como sendo limi tadas a ações externas porém tanto moralmente necessárias como alcançadas por meios imorais No entanto como vimos Kant não consegue manter o caráter me ramente legal da ordem jurídica pois subrepticiamente reintroduz nessa ordem a moral Como vimos ao examinar as bases morais dos direitos do homem e da íilosoíia da história Kant falha em demonstrar tanto as bases morais desses direitos como a ne cessidade moral dessa íilosoíia Vimos finalmente ao examinar a aplicação da íilosoíia da história ao problema decisivo da paz eterna que meios imorais ou maquiavélicos não foram suficientes para promover esta paz Com efeito quer se examine a doutrina política de Kant sua doutrina legal ou sua íilosoíia da história constatase que a moral sempre tem demais ou muito pouco a íãzer Se uma preocupação política associada com os direitos do homem é central para a sua inspiração e em particular como a inspiração para a sua moral sua doutrina política efetiva no entanto continua a ser uma síntese instável e insatisíàtória de uma intenção moral e realista A compreensão e as formulações de Kant permitiramlhe reinterpretar a vida política moderna visando a questão crucial e negligenciada de sua dignidade moral deliberadamente sacrificada pela tradição de Maquiavel e Hobbes mas o que permitiu que sua filosofia alcançasse este ganho foi um obstáculo para uma solução verdadeiramente coerente A existência de sua doutrina moral veta a solução do problema político por meio de instituições a natureza dessa doutrina proíbe uma solução por meio da educação Em última análise é o problema da educação moral e da conversão moral que se situa no centro das dificuldades de Kant pois este problema é afetado pela influência mútua e relaçóes que perpassam os dois mundos o da liberdade moral e o do determi nismo natural que Kant procurou preservar com grande esforço ao mantêlos radical mente dissociados um do outro Os espaços comuns que tenta multiplicar para eles são inseguros e problemáticos a pofitica não é guiada pela prudência natural é simples mente por vezes moral e por vezes imoral a história pressupõe a noção paradoxal de uma natureza teleológica que aparenta não ter íúndamento ontológico e que colabora historicamente com o determinismo para explorar sem que o saibam os desígnios dos homens em outras palavras de uma Providência que é a natureza chamada por outro nome e que de forma um tanto incompreensível prefere o uso de meios imorais mas que se detém antes da liberdade moral do homem a lei é ao mesmo tempo a expressão do mecanismo da natureza e dos conceitos da razão prática porém o que natureza e liberdade unidas de acordo com os princípios internos da lei acarretam é uma combina ção de princípios formais e acomodações contingentes que sáo tão difíceis de aplicar às relaçóes entre estados que lançam dúvidas não só sobre si mesmas mas por implicação sobre as exigências da moral e as próprias garantias da natureza Cada um desses espaços comuns propostos para os dois mundos é exposto a uma crítica que chamaria a atenção ao mesmo tempo para o caráter decisivo dos problemas colocados e o caráter por vezes de extremamente rude ou contraditório das soluções oferecidas 5 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Mesmo que se admita porém que Kant não tem sucesso em conciliar o externo e o interno a necessidade e a liberdade a natureza e a moralidade as provas da física e o testemunho da consciência devese ponderar no entanto se não existe em cada um desses termos algo irredutível que Kant sozinho fez emergir em todo o seu poder A crítica da filosofia política de Kant pode sem dÚAÜda conquistar vitórias tanto no campo dos fenômenos políticos concretos examinados no nível adequado a eles ou por desafiar a coerência do sistema como um todo entretanto para que essas vitórias sejam decisivas a crítica deve lidar com os fundamentos do pensamento de Kant A crítica da filosofia política de Kant deve tornarse uma crítica da Critica da Razão Pura e uma da Critica da Razão Prática Immanuel Kant 553 WiLLiAM B lackstone 17231780 Sir William Blackstone náo era filósofo político mas um advogado e juiz inglês Sua principal obra náo é um livro sobre a justiça ou mesmo sobre o direito mas um conjunto de comentários sobre as leis da Inglaterra Commentaries on the Laws of England Náo era autor original ou inventivo mas propositalmente era o oposto muitas vezes aborda questões importantes e complexas de um modo que parece obs curo ou superficial De íato a opinião mais diíundida acerca de Blackstone é que foi contraditório ou coníúso quanto a algumas questões relevantes da filosofia política Acreditase que dava a conhecer uma pessoa amável embora um tanto pomposa um estilo enxuto e por vezes elegante um intelecto que nâo é forte na teoria mas é capaz de sólidos julgamentos práticos e intrinsecamente propenso a íàzer concessões em suma um personagem tipicamente inglês Há muitas evidências que apoiam esta vi são mas sáo insuficientes e os motivos pelos quais são insuficientes sáo os mesmos que justificam dar atenção a Blackstone em uma história da íilosoíia política Ao oferecer o primeiro ciclo de palestras sobre as leis da Inglaterra na Universidade de Oxford em 1753 Blackstone abriu um precedente que viria a ter grande impacto sobre a educação jurídica inglesa e de modo mais amplo sobre sua educação cívica Apesar de sua obra Commentaries Comentários ser dirigida a fimcionários de todos os tipos e súditos de toda ordem destinase ao advogado e ao cavalheiro em particular Ao advogado para que fosse alçado dos limites da mera prática e direcionado para os elementos e princípios básicos sobre os quais se assenta sua prática Ao cavalheiro para Os quatro volumes de Commentaries on the Laws ofEngland Comentários sobre as leis da Interrd foram publicados pela primeira vez em 1765 1766 1768 e 1769 A edição utilizada pata este artigo é a oitava publicada em 1778 e a última publicada durante o período de vida de Blackstone exceto onde indicado diversamente as citações são relativas ao volume e página A autenticidade das alterações efetuadas pelo editor da nona edição nas quais se baseiam muitas das edições moder nas é um tanto duvidosa porém as divergências sáo pequenas e numerosas edições padronizadas reproduzem todo o texto com a paginação original A utilíssima edição de William G Hammond San Francisco BancroftWbitney 1890 contém uma comparação crítica de todas as alterações da primeira à oitava edição que fosse resgatado de sua desonrosa ignorância das leis que é seu dever resguardar aper feiçoar e ministrar Em ambos os casos a necessidade era de instrução acadêmica acerca das leis do país de modo a permitir que o estudante não só viesse a conhecer as linhas gerais do direito positivo mas também que compreendesse e até que urdisse ele mes mo aipunentos retirados a priori do espírito das leis e dos fundamentos naturais da justiça Blackstone convida a um exame das leis do país de seus fundamentos naturais e do espírito das leis que as perpassa É verdade que também discute a lei divina quan do introduz o direito em geral por exemplo mas em geral a lei divina só aparece de forma breve neste início logo cedendo espaço para o direito natural Tampouco utiliza Blackstone a lei divina como explicação de forma distinta de sustentação para as leis da Iilaterra A religião de fàto tem um liar importante ao a b r das leis da Inglaterra e Blackstone é um amigo cordial da Igreja estabelecida mas o que é relevante é a influência da Igreja em íàzer os homens sóbrios trabalhadores e bons cidadãos Desta forma o mais sublime tema de Blackstone situase na relação entre direito natural e direito convencional tal como essa relação se apresenta para aquele que é advogado no melhor e mais elevado sentido O plano ou organização dos Comentários caracterizase por uma simetria que contém como um todo e em cada uma de suas partes um movimento ou progressão do natural para o convencionado Após uma introdução os quatro volumes dos Comentários dividemse em duas partes cada uma composta por dois volumes ou livros O primeiro é Rights Direitos dividi do em Rights ofPersons Direitos das pessoas Livro I e Rights ofThin Direitos das coisas Livro II seguese Wrongs Atos ilícitos dividido em Private Wron Atos ilícitos privados Livro III e Public Wrongs Atos ilícitos públicos Livro IV A Unha argumentativa como um todo flui dos direitos individuais até os atos ilícitos públicos O primeiro capítulo do Livro I principia com o que Blackstone denomina os di reitos absolutos dos indivíduos que são aqueles que são pertinentes e pertencem aos homens individualmente como indivíduos e pertenceriam a suas pessoas apenas em um estado de natureza O fim primeiro e principal das leis humanas é manter e regular esses direitos absolutos No entanto Blackstone devota pouco tempo à U berdade natural da humanidade mesmo neste primeiro capítulo passando rápido à questão dos direitos civis e em particular dos direitos absolutos dos ineses que são examinados sob os fluniliates rótulos lockianos de segurança pessoal liberdade pessoal e propriedade privada O restante do Livro I e de longe sua maior parte é dedicado aos direitos relativos isto é aos direitos secundários e mais artificiais dos indivíduos em suas W l u a m B l a c k s t o n e 5 5 5 2 Ibid I 32 3 Ver ibid III 100103 IV caps iv viii xxviii 4 Em esboço anterior da área coberta mais tarde em Comentários Blackstone observa que em muitos aspeaos segue o plano de Sir Matthew Hale The Analysis ofthe Law fEngland 3 ed 1739 mas salienta que optou por extrair um novo Método seu próprio ao contrário de implicitamente copiar algum outro An Analysis ofthe Laws o f England 3 ed 1758 p vii Uma análise das leis da Inglaterra 5 Comentários I 123124 relações lealmente estabelecidas com outras pessoas primeiro as relações públicas entre governantes e governados em seguida as relaçóes privadas entre senhor e servo marido e mulher pai e filho e assim por diante que são decorrentes da sociedade civil Embora como mencionado anteriormente seja discutido no primeiro capítulo do Livro I o direito de propriedade como um dos direitos absolutos dos indivíduos Blackstone exa mina a propriedade em um livro à parte e posterior posterior observese até mesmo às relações de governo O motivo para isto é que a orem natural dos direitos das coisas é em comparação aos direitos das pessoas ao mesmo tempo menos data e menos rele vante paia a sodedade civil Menos clara porque Blackstone encontra a or m natural na ocupação ou posse e parece deixar em aberto a dificil questáo relativa a que tipo de direito pode a mera posse constituir ou outorgar menos relevante porque enquanto os direitos naturais pessoais tais como a autodefesa sáo de certa forma regulados pda lei positiva o direito natural de adquirir a propriedade é em grande parte substituído ou suplantado por direitos convencionais de possuir e transferir propriedade Afirmase que Wron Atos ilícitos o tema da segunda pane dos Comen tários visa na maior parte a transmitirnos uma ideia meramente n a tiv a pois náo passam de nada além de uma privação do direito A segunda parte náo contém capítulos comparáveis em sua intenção filosófica aos primeiros capítulos do Livro I e II porque os atos ilícitos wron são definidos pelos direitos e deles derivados O último par de livros não é contudo apenas a imagem espelhada do primeiro O Livro III descreve como a lei estipula a reparação de atos ilícitos wrongj privados relativos tanto a pessoas como a bens danos civis refletindo portanto a discussão dos Livros I e II e proporcionando por assim dizer um fechamento a toda a questão dos direitos individuais Os atos ilícitos wron públicos crimes e contravenções o assunto do Livro IV constituem a porção mais artificial da lei Os direitos são a base da jurispru dência de Blackstone e a rigor não há nenhum direito do público apenas direitos dos indivíduos No Livro IV porém a sociedade política que é um meio para o fim de proteger os direitos individuais é abordada tal como pode e deve ser abordada para muitos objetivos práticos como se fosse um fim Esse fim é o o governo e tranqüili dade do todo ou de modo mais simples a paz pois a paz é o íim e fundamento da sociedade civil Sem entrar em detalhes podemos dizer que a descrição de Blacks tone dos vários tipos de crimes e contravenções por exemplo crimes contra Deus e a religião e contra o rei e o governo contém sua discussão n a tiv a ou indireta do tipo de bem público artificial ou bem comum que deve ser construído em prol do pacífico usufruto dos direitos individuais 5 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Ibid 113 89 epassim Blackstone coloca de maneira bastante frouxa A origem da propriedade privada provavelmente tem frmdamento na natureza contudo decerto as modificações sob as quais a encontramos boje o método de conservála com o proprietário atual e de ttasladála de bomem para bomem sáo derivadas da sociedade em sua totalidade 1 138 7 Ibid III 2 8 Ibid IV 7 1349 As únicas e verdadeiras fundações naturais da sociedade declara Blackstone são os desejos e temores dos indivíduos entretanto não é o procedimento padrão de Blackstone realizar um exame detalhado ou exaustivo desses desejos e temores ou da liberdade natural da humanidade que sáo seu ponto de partida Ao contrário dedica se logo a uma discussão dos direitos civis o que podemos imaginar não desagradou aos cavalheiros e advogados ingleses como se para deíinir os direitos do homem em termos dos direitos dos ingleses Os direitos dos ingleses no entanto são todos direitos de acordo com a lei A liberdade pessoal para fornecer apenas um exemplo consiste no poder de locomoção de mudar de situação ou de deslocar a própria pes soa para qualquer lugar ao qual a própria inclinação possa dirigir sem aprisionamento ou restrição salvo se por devido intercurso da let No entanto se a lei fosse alterada de modo a permitir a detenção e aprisionamento por períodos indefinidos devido a suspeita por parte de funcionários do executivo não constituiria isso uma redução do direito do cidadão inglês a sua liberdade pessoal Colocando a questão de modo mais geral Blackstone afirma seguindo Montesquieu que na Inglaterra como talvez em nenhum outro lugar a liberdade política ou civil é o próprio fim e dimensão da constituição contudo Blackstone vai além asseverando que esta liberdade corre tamente entendida consiste no poder de fazer o que quer que as leis permitam Tal argumento parece circular define a boa lei como a que melhor mantém a liberdade individual e define a liberdade individual como o que é permitido por lei Essa cir cularidade ou ambigüidade se íãz presente ao longo de Comentários não por causa de alguma falha no raciocínio de Blackstone ou por algum compromisso irracional para com o sistema jurídico inglês mas porque o argumento teórico sólido o argumento retirado da natureza tende a ser autodestrutivo na prática Até mesmo a autodefesa com justiça denominada o direito primário da nature za é estritamente limitada embora não seja nem de fato possa ser removida pela lei da sociedade O princípio do direito é que quando a perpetração de um crime em si mesmo capital é intentada pela força é lícito repelir essa força pela morte da parte que a intenta Blackstone de imediato alerta que não devemos levar tal doutrina até o mesmo ponto visionário aonde vai o Sr Locke o qual afirma que todos os tipos de força sem direito sobre a pessoa de um homem colocamno em um estado de guerra com o agressor e por conseqüência que este pode legalmente matar aquele que o coloca sob esta restrição não natural Este princípio pode ser justo em um estado de natureza não civilizada mas as leis da Inglaterra como as de toda comunidade bem regulamentada sâo demasiado ciosas da paz pública demasiado cautelosas com a vida dos súditos para que adotem um sistema tão controverso nem tolerarão com impunidade que qualquer crime seja impedido pela morte a não ser que o mesmo W il l ia m B l a c k s t o n e 557 9 Ibid 147 10 Ibid 134 itálico nosso Ver I 129 138 para as definições de segurança pessoal e propriedade 11 Ibid 6 12 Ibid III 4 se cometido também fosse punido com a morte As leis da Inglaterra no entanto oferecem uma exceção a esta regra do homicídio desculpável o qual vem a ser na terminologia jurídica o homicídio justificável Quando por exemplo um homem se protege de uma íessão física e no transcorrer da contenda mata seu agressor é isen tado de penalidade legal desde que o soírimento certo e imediato fosse a conseqüên cia de aguardar pela assistência da lei e que o matador não tivesse qualquer outro meio possível ou pelo menos provável de escapar de seu agressor Um homem que sofre ataque deve virar as costas e fugir se puder e mais tarde levar seu atacante às barras do tribunal A presunção está sempre a favor da lei da sociedade civil não da lei da natureza A manutenção do governo e portanto das leis em si é uma questão ainda mais delicada Muitas vezes apontase Blackstone como um expoente da soberania parla mentar em contraste por exemplo com as ideias americanas de governo limitado No Parlamento composto por rei lordes e comuns encontrase aquele poder despótico absoluto que deve em todos os governos residir em algum lugar O Parlamento pode lidar com questões fora do âmbito normal das leis pode modificar a sucessão à coroa pode alterar a religião estabelecida pode mudar a constituição do reino e o pró prio Parlamento Em suma pode fezer mdo que não é impossível por natureza É verdade que com fiequência Blackstone parece pressupor que o Parlamento não pode fàzer o que não deve fezer por exemplo substituir uma monarquia hereditária por outra eletiva e enfetizar a verdadeira excelência do governo inglês pois todas as partes dele constimem um freio múmo de uns sobre os outros No entanto não importa a msitude da salvaguarda prevista na prática pelo sistema inglês de mútuos freios so ciais e políticos Blackstone afinal precisa retornar ao princípio primeiro da sociedade civil o de que o Parlamento ou a legislatura pode fezer o que lhe aprouver Será que não existe no entanto um princípio ainda mais fundamental É pre ciso admitir que o Sr Locke e outros escritores teóricos sustentaram que resta ainda inerente ao povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo quando jul gam que o legislativo age de forma contrária à confiança nele depositada Blacks 5 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ibid IV 181182 cf III 16869 itálico no original O trecho de Locke aqui não é uma citação direta mas uma paráfrase Ver Segund Tratado seções 1819 14 IbidW 84 15 Ibid I 160161 16 Ibid I 154155 Ver I 5051 na medida em que a legislatura do reino é confiada a três pode res distintos por inteiro independentes um do outro primeiro o rei segundo os lordes espirituais e temporais os quais são uma assembleia aristocrática de pessoas selecionadas por sua piedade seu nascimento sua sabedoria sua condem ou suas propriedades e terceiro a câmara dos comuns livremente escolhida pelo povo dentre ele mesmo o que fãz dela um tipo de democracia uma vez que este corpo egado ativado por diferentes fentes e atento a diferentes interesses compõe o Parlamento britânico e tem o supremo comando de todas as coisas não pode haver inconveniên cia ousada por qualquer dos três ramos que nâo seja resistida por um dos outros dois cada ramo estando armado com um poder de negativa bastante para rechaçar qualquer inovação que julgue inadequada ou perigosa tone insiste que nâo importa até que ponto seja justa esta conclusão em teoria e é justa na teoria de Blackstone exatamente pelos mesmos motivos que é justa em Locke não podemos adotála na prática nem tomar qualquer medida legal para executá la sob qualquer dispensa do governo de fato existente no presente Tal d elação do poder ao povo em geral presume uma dissolução do governo uma redução das pessoas ao seu estado original de igualdade bem como a revogação de todas as leis positivas Nenhuma lei humana portanto suporá tal situação que de imediato destrói toda a lei e compele os homens a construir de novo sobre novas fundações tampouco elaboram disposições para um evento tão periclitante que tomará ineficazes todas as disposições lais O último recurso ao princípio inicial ao qual Blackstone em outros textos denomina lei da natureza ou o Deus das batalhas é a base da lei porque impõe limites à autoridade política tal como nenhuma lei e nenhum freio interno é capaz de fazer Todavia a lei não pode prever nem sequer supor que este último recurso de feto gerasse uma tensão com ela a manutenção da lei e portanto a manutenção efetiva dos direitos individuais depende de abandonar como que de uma vez por todas o estado original de igualdade sem lei do qual emergiu a sociedade civil e ao qual possa em uma situação desesperada retornar O Sr Locke e seus com panheiros teõricos não estão errados mas podem pôr em perigo a comunidade política precisamente devido a expressarem de modo tão claro seus verdadeiros fundamentos Pois a liberdade civil entendida de modo correto consiste em proteger os direitos dos indivíduos pela força unida da sociedade a sociedade não pode ser mantida e claro não pode exercer nenhuma proteção sem obediência a um poder soberano e obediên cia é uma palavra vazia se cada indivíduo tiver o direito de decidir até que ponto deve ele mesmo obedecer Blackstone não teme que sua constante ênfese na lei e na obe diência às leis incapacite o povo para a retomada de seu direito original caso isso venha a ser necessário Onde o poder soberano passa a ser tirânico c constitui ameaça de destruição do estado a humanidade não abandonará pela razão os sentimentos de humanidade nem sacrificará sua liberdade por um escrupuloso cumprimento de máximas políticas que foram originalmente criadas para preservála A origem da sociedade civil sugere Blackstone é a anarquia sua tendência a tira nia Houve momentos em que os direitos dos ingleses foram esmagados por príncipes arrogantes e tirânicos em outros feitos tão abundantes tendendo até mesmo para a anarquia um estado pior que a prõpria tirania coloca Blackstone como convém a um advogado pois qualquer governo é melhor do que nenhum No entanto o objetivo é evitar ambas tal como tem feito a constituição britânica de modo geral Em apoio a este objetivo a jurisprudência de Blackstone reconhece esses extremos mesmo enquanto te LLiAM B l a c k s t o n e 5 3 9 17 Ibid 161162 itálico no oiinal 18 Ibid 193 19 IbU 251 20 Ibid 245 21 Ibid 127 siste à sua força pois qualquer um dos dois é fatal para a liberdade Afirmando o mesmo de maneira positiva Blackstone procura manter a posição central da lei entre a base e a tendência da sociedade civil em particular a lei tal como é entendida pelos juizes e mi nistrada em seus tribunais Em uma lista de cinco direitos subordinados auxiliares que servem principalmente como barreiras para proteger os três grandes direitos primários Blackstone coloca em lugar central o direito de todos os ingleses a recorrer aos tribunais para a reparação de danos As leis e náo o Parlamento ou o povo em geral diz aqui Blackstone são na Inglaterra o árbitro supremo da vida da liberdade e da propriedade de cada homem Nesta existência distinta e separada do judiciário está a principal defesa da liberdade pública a qual não pode subsistir muito tempo em qualquer estado a menos que a administração da justiça comum seja em algum grau separada tanto do legislativo como também do executivo Em particular se fosse unida ao legislativo a vida a liberdade e a propriedade do súdito estariam nas mãos de juizes arbitrários cujas decisões seriam entáo reguladas somente por suas próprias opiniões e não por quais quer princípios jurídicos fundamentais os quais embora os lisladores deles possam se afastar os juizes todavia são obrigados a cumprir Aqui mais uma vez Blackstone expressa o princípio dos freios mútuos mas nossa preocupação atual é com seu comentário de que existem princípios jurídicos funda mentais os quais embora os legisladores deles possam se afastar os juizes todavia sáo obrigados a cumprir Parece curiosa a afirmação quando se examina aquela que pode ser vista como a definição básica embora náo exaustiva de lei por Blackstone a vontade de um homem ou de um ou mais conjuntos de homens a quem a autoridade supre ma é confiada é em diferentes estados de acordo com suas constituições diferentes entendida como A lei é a vontade do soberano mas a boa lei e portanto a lei propriamente dita exige algo mais Não apenas o consentimento pois até mesmo as leis em si feitas com ou sem o nosso consentimento se rulam e condicionam nossa conduta em assuntos de mera indiferença sem qualquer finalidade boa em vista são re gulamentos destrutivos da liberdade A finalidade boa em vista é a genuína liberdade civil que nada mais é que a liberdade natural até ora e não mais adiante refireada pelas leis humanas como é necessário e conveniente para a vantagem geral do público Até que ponto e em que aspectos a vantem geral exige a restrição da liberdade natural não é uma questão que possa ser respondida por algum princípio ou regra gerais exceto de uma maneira que reformula a pergunta É uma questão de julgamento E o govemo livre depende da manutenção dentro dele de um lugar central para o judiciário essa pe culiar corporação de homens que são capazes por tradição posição política e formação de julgar bem Na medida em que fornece proteção desinteressada à vida às liberdades e às propriedades dos súditos o judiciário também serve como um freio sobre o uso insensato da autoridade parlamentar e popular e como uma fonte ou pelo menos um portavoz da instrução nos verdadeiros princípios da liberdade civil 5 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 22 Ibid 141269 23 Ibid 52 itálico no original Foi corrigido um óbvio erro de imprensa no texto desta citação 24 Ibid 125126 Os princípios fundamentais do direito que os juizes devem cumprir e que ate nuam a visão da lei como a vontade do soberano consistem em ou são derivados em primeiro lugar do costume No direito inglês a qualidade de um costume depende de ter sido utilizado por tempos imemoriais ou na solenidade de nossa expressão jurídica os tempos contra os quais não opera a memória do homem É isto que lhe confere peso e autoridade e desta natureza são as máximas e costumes que compõem o direito consue tudinário o common latv ou lex non scripta deste reino Quando em sua introdução Blackstone passa de uma discussão sobre a natureza do direito para as leis da Inglaterra não começa com um povo contratante ou com uma legislatura soberana mas com essas leis comuns das quais os juizes são os depositários e oráculos vivos Leis ou estatutos escritos são meramente dedaratórios ou reparações de algum defeito nas leis comuns que são o fundamento primeiro e principal pedra angular das leis da Inglaterra De inúmeras maneiras ao longo de Comentários Blackstone reconhece fortalece e utiliza a autoridade do antigo É muitas vezes tomado como um mero patriota ou conservador muito embora forneça amplos indícios de que nem o seu louvor do que é inglês nem a sua devoção ao que é antigo devem ser interpretados somente por seu significado visível Decerto Blackstone fez ressaltar a obrigatoriedade do precedente e a deferência devida pela geração presente aos tempos antigos Opta por exemplo por defender com base na autoridade em lugar de razão e justiça a decisão de lordes e comuns de julgar que James II apenas abdicara do trono ao invés de ter subvertido o governo e violado o contrato original Deixando clara sua opinião de que a decisão fora razoável e justa para evitar os extremos selvens a que as teorias visionárias de alguns republicanos zelosos os teria conduzido teme que tais especulações se levadas longe demais poderia implicar um direito de dissidiar ou revoltarse contra a deci são caso pensássemos que fosse injusta opressiva ou inconveniente Blackstone era tão perspicaz quanto os comentadores que apontaram uma fálha neste argumento porque segundo os próprios princípios de Blackstone a atual geração tem o direito de a qualquer momento julgar se o contrato foi violado O argumento implícito de Blackstone é que se surgirem circunstâncias desesperadas como ocorreu em 1688 devese esperar que o direito original seja exercido de forma tão sábia e moderada como o foi então quando a estrutura do governo e do direito foi mantida enquanto era feita uma revolução No entanto deve ser desencorajado o exercício desse direito básico A estabilidade de qualquer sistema político sobretudo uma política cujos prin cípios fundamentais contêm uma tendência intrínseca para a instabilidade depende de uma opinião generalizada acerca da obrigatoriedade do antigo É dever do juiz e preocupação de Blackstone como seu mestre articular e manter a integridade do sistema de direito positivo tal como existe O leitor de Comentários é informado com frequência do requinte com que se formularam as antigas regras W il l ia m B l a c k s t o n e 3 6 1 25 Ibid 67 6973 26 Ver ibid 172 19091 IV 35 27 Ibid 121213 do direito e de como estão intimamente ligadas e entrelaçadas apoiando ilustrando e demonstrando uma à outra É alertado de que o próprio número e complexidade das leis municipais inglesas que o exasperam seja como estudioso ou litigante prestam testemunho quanto à extensão do país sua prosperidade comercial e acima de tudo quanto à liberdade e a propriedade de seus súditos É lembrado de que toda ciência tem seus termos e regras de ofício cujo motivo pode não ser imediatamente discernível Muitas destas regras artificiais reíletem a preocupação do advogado com formas e pro cedimentos que decorrem de seu treinado entendimento de que se as leis são moldadas de determinada forma promulgadas de determinada maneira e executadas de acordo com determinados processos aumenta a probabilidade de se fezer substancial justiça A arte jurídica fornece o quadro em que é exercido o discernimento e é feita justiça Assim à moda do advogado Blackstone afirma que as leis municipais sáo algo permanente uniforme e universal e descreve os trâmites processuais do julgamento por júri como o mais transcendente privilégio que qualquer súdito pode desfrutar ou almejar No entanto sua preocupação com a integridade ou com os íúndamentos lógicos do sistema jurídico inglês é mais profimda que formas e trâmites apesar de sua relevância e da magnitude do espaço que por inevitável ocupam em uma análise do direito ingjês Os Comentários estão repletos de intrincados e aparentemente intermináveis ex plicações das antigas regras do direito muitas das quais parecem irrelevantes ou mes mo contrárias às atuais necessidades e aos princípios modernos Cansado pelo esforço de compreender os motivos por trás de um sistema onde por exemplo um meio irmão jamais poderá ser sucessor como herdeiro do espólio de seu irmão mais velho mesmo que tenham o mesmo pai é provável que o leitor conclua que a velha máxi ma do advogado comum de que o que não é razão não é lei é sustentada somente por uma determinação inabalável para afirmar nâo importa com que artificialismo e a qualquer custo em máximas latinas e ficções malalinhavadas que o que é lei na Ingla terra é racional Se há qualquer princípio consistente que lhe seja subjacente parece ser a intenção enfática de Blackstone para afastar seus alunos da paixão pelos modernos aperfeiçoamentos No entanto os modernos aperfeiçoamentos sáo os próprios fun damentos dos Comentários contudo é essencial para os empreendimentos modernos que a reforma use um manto conservador O peso e a influência do antigo deve ser preservado e usado para apoiar o novo Herdamos um andgo castelo gótico construído nos tempos da cavalaria mas equipado para um habitante moderno As muralhas circundaxlas por um fosso as torres de defesa 5 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 28 Ibid II 128 cf II 376 29 Ibid III 325327 30 Ibid 144 III 379 cf discussão de equidade por Blackstone em I 62 9192 III 429441 31 Ibid II 227233 32 Ibid I 70 33 Ibid 10 Ver III 381385 julgamento por júri IV 235239 pena capital IV 388389 corrup ção do sangue para algumas das sugestões de Blackstone para reformas e os salões com seus troféus são magníficos e veneiáveis mas inúteis Os apartamentos inferiores sra convertidos em convenientes salas sáo alegres e confortáveis embora os caminhos até eles sejam sinuosos e árduos Blackstone auxilia a reformar o antigo castelo com o que é melhorado o con forto deste por exemplo pelo relaxamento de algumas das antigas restrições legais para o comércio entretanto tem o cuidado de alertar contra a reforma que poderia afrouxar alguma pedra aparentemente inútil ou enfraquecer madeirames inconvenien tes causando danos vitais a todo o edifício náo só aos apartamentos radáveis mas também ao nobre arcabouço Desta forma Blackstone é um reformador de extrema cautela mas sua metáfora possui também um significado mais profundo A sociedade civil consiste de um con junto convencionado e em certo sentido arbitrário de normas e regulamentos cuja finalidade é a rularização e assim a proteção dos direitos naturais Contudo para vários fins práticos a eficácia desse sistema convencionado depende de vir a confundir se com a natureza Uma investigação demasiado persistente dos fundamentos do sis tema convencionado pode revelar de modo muito claro e amplo que se trata de um sistema convencionado e não de um conjunto de regras naturais que assim incentiva o sistema artificial a apelar de maneira autodestrutiva pata sua fundamentação natu ral Será de bom alvitre que a massa da humanidade obedeça às leis quando feitas sem inspecionar demais as razões de têlas feito E claro quanto mais antigas e mais estabelecidas as leis menos provável serem questionadas suas razões A tendência geral de tomar como natureza o que encontramos consagrado pelo costume antigo e enraizado pode ser uma armadilha para o estudante acadêmico de direito mas é absolutamente indispensável para a manutenção da lei O caso clássico porque o mais modificado ou artificial dos direitos individuais é o direito de propriedade e Blackstone oferece duas versões para sua origem Em sua discussão introdutória da propriedade em geral encontra essa origem na simples posse ou ocupação Em seguida demonstra como o desejo dos homens de manter sua propriedade em maior segurança impulsionaos gradativamente a partir de um esudo selvagem da liberdade errante para a sociedade civil e para a civilização com seu sistema jurídico cada vez mais complexo e artificial a íim de estabelecer os direitos de propriedade A segunda versão da origem da propriedade começa no pico da hie rarquia ao contrário de sua base e descreve um general que conquista terras repartca entre seus seguidores e com o tempo estabelece um sistema militar hierárquico As leis inglesas bem como a história inglesa são aqui apresentadas como uma combina ção desses dois eventos Assim o padrão básico das leis territoriais é a posse feudal da VLUAM B l a c k s t o n e 563 34 Ibid III 268 35 Ibid II 2 36 Ibid II 37 Ibid 68 38 Ibid 45 ff qual a máxima grandiosa e fundamental é que todas as terras foram inicialmente concedidas pelo soberano e sáo portanto de posse mediata ou imediatamente da coroa Porém esta máxima fundamental é uma ficçáo uma ficçáo com a qual nossos antepassados consentiram sob o normando Guilherme o Conquistador somente a fim de estabelecer um sistema militar de utilidade geral naquele momento uma ficçáo que mais tarde advogados normandos utilizariam como o instrumento da tirania eclesiástica ficçáo esta que agora muito modificada e adaptada a uma sociedade co mercial sinaliza a admissão de que um homem pode preservar o que é seu de modo mais eficaz ao consentir em supôlo como pertencente ao rei Na verdade o monarca hereditário é ele próprio uma espécie de ficção ou é uma entidade completamente artificial o principal sinal e exemplo da substimição da igual dade natural dos homens pela devida subordinação hierárquica que o governo exige Embora Blackstone elogie a moderna liberdade para discutir os limites das prerrogativas do rei um tema que em épocas anteriores fora considerado demasiado delicado e sa grado para ser profanado pela pena de um súdito discuteo no entanto com decência e respeito Pois embora uma mente filosófica considere a pessoa real apenas como um homem nomeado por mútuo consentimento para presidir muitos outros e lhe prestará a reverência e dever que os princípios da sociedade demandam todavia será capaz a massa da humanidade de se tornar insolente e refiratária se ensinada a reputar seu príncipe um homem sem maior perfeição que eles mesmos A lei portanto atribui ao rei determi nados atributos de grande e transcendente natureza pelo que o povo é levado a apreciá lo à luz de um ser superior e prestarlhe aquele reverente respeito que pode capacitálo com maior facilidade a exercer a atividade do governo Assim a superioridade apenas convencional do rei é amplamente percebida em parte graças a determinadas leis e textos sobre a lei como uma superioridade natu ral seu direito convencionado ao trono um direito natural seu direito contratual à lealdade de seus súditos um direito natural Como súditos prestamos reverência ao rei sem considerar que é nosso servo aceitamos nossa posição subalterna na socie dade sem levar em conta nossa igualdade original aceitamos a propriedade que as leis nos atribuem sem considerar nosso direito original de nos apoderarmos do que pudermos Em suma obedecemos sem contemplar nosso direito de nos livrarmos do soberano que comanda e da lei que ministra pois exercer esse direito seria a destruição da segurança de nossas pessoas de nossa liberdade e de nossa propriedade As mu ralhas circundadas por um fosso as torres de defesa e os salões com seus troféus diz Blackstone são magníficos e veneráveis mas inúteis É verdade que os fins nobres e cavalheirescos que um dia sustentaram e exibiram estão agora desalojados fins mais novos e melhores são expressos nos confortáveis apartamentos Contudo esses apar tamentos não podem prover para si mesmos a minificência e a venerabilidade com 5 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 39 Ibid 53 40 Ibid I 271 cf I 208209 IV 105 e a discussão de lealdade de Blackstone I 366370 41 Ibidliy72A que suas próprias paredes externas devem ser reforçadas para que o moderno edifício se mantenha de pé O labirinto gótico da hierarquia e do dever para o qual Blacksto ne fornece a chave é o meio indispensável para a regulação e assim a preservação da igualdade humana e dos direitos individuais L e it u r a s A Blackstone William Commentaries on the Lam ofEngland Introduction I i II i B Blackstone William Commentaries on the Lam ofEnglartd I ii iii vii xii xiv II iv xiii xiv III i iii viü xxiii xxvii IV i iv vi xiv xxviii xxxiii W l u a m B l a c k s t o n e 5 6 5 AdamSmith 17231790 Os principais escritos de Adam Smith estão contidos em dois livros Theory of Moral Sentiments Teoria dos sentimentos morais 1759 cAn Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das naçóes 1776 Por 13 anos sua principal ocupação profissional foi como professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow Sua fama agora repousa sobre as bases que lançou para a ciência da economia Não se encontra aí muito de filosofia política mesmo tendo em conta a inclusão da jurisprudência no curso de Moral A contribuição de Smith para a economia no entanto tem o caráter de uma descrição e defesa do sistema ora denominado capitalismo liberal e os liames entre a ordem econômica e o sistema político restritos em quaisquer circunstâncias são de excepcional amplitude e força no mundo tal como visto e moldado por Adam Smith A ligação íntima entre economia e filosofia política até mesmo ou talvez em parti cular embora tenda a um obscurecimento desta última é um potente fato da filosofia política aqueles que como Smith foram responsáveis por isso por este motivo ape nas teriam garantido um lugar nas crônicas da filosofia política Smith tem interesse por sua participação no desvio da filosofia política em di reção à economia e por sua íamosa elaboração dos princípios da livre iniciativa ou capitalismo liberal Em virtude desta última conquistou o direito de ser conhecido como um arquiteto do nosso atual sistema de sociedade Contudo para esse título tem um rival em Locke cuja obra o precede em cerca de um século Nossa tese será de que apesar de Smith seguir uma tradição em que Locke é um grande nome todavia uma mudança distinta e importante ocorreu nessa tradição mudança esta para a qual Smith colaborou de que para entender de forma adequada o capitalismo moderno é necessário compreender a transformação smithiana da tradição lockiana e de que para entender o campo onde se embatem o capitalismo e as doutrinas póscapitalis tas primordialmente a marxista é preciso entender as questões do capitalismo na forma alterada que lhes deu Adam Smith Colocando a questão em sua forma mais simples os ensinamentos de Smith expressam a doutrina capitalista de tal modo que nela se podem reconhecer muitas das questões fundamentais a partir das quais o pós capitalismo faz suas contestações Seria um equívoco dar a entender que foi de Smith a iniciativa de modificar a doutrina clássica moderna Para prevenir essa implicação é preciso calçar tudo o que será dito a seguir com uma única ressalva a respeito da dívida de Smith para com seu amigo e compatriota mais velho David Hume A filosofia moral de Smith como de fato ele próprio admite é um refinamento da teoria de Hume que dela difere em aspectos que embora muito significativos não são decisivos Um estudo minucioso da relação entre as doutrinas de Smith e Hume revelaria plenamente a conexão entre o capitalismo liberal e os princípios céticos ou científicos sobre os quais Hume de sejava fundamentar toda a íilosoíia As mais amplas conclusões que resultariam de tal estudo podem ser deduzidas de um exame das doutrinas de Smith apenas exatamente porque refietem de modo tão profundo a influência de Hume Muitas das reflexões fundamentais de Smith estão contidas em Teoria dos sentimen tos morais em que expóe seu relevante entendimento da natureza e da natureza humana Isso é feito na medida em que responde à seguinte pergunta o que é a virtude e o que a qualifica A premissa de sua resposta é que o que quer que a virtude venha a ser deve ter muito em comum com aquilo que concede aprovação aos homens ou a suas açóes ou talvez simplesmente coincidir com isso A pergunta o que é virtude nunca se distingue da questão o que merece aprovação A aprovação e a desaprovação são concedidas às ações O que impulsiona qualquer ação é o sentimento ou emoção ou afeição ou paixão que são sinônimos que é o motivo para cometer o ato A aprovação de qualquer ação deve ascender para a paixão que verdadeiramente explica a ação O sentimento ou afeto do coração do qual procede qualquer ação e do qual em última análise toda a sua virtude ou vício deve depender pode ser examinada sob dois aspectos diferentes ou em duas relações diversas primeiro em relaçáo à causa que o desperta ou o motivo que Ibe dá ensejo e em sundo lugar em relação ao fim a que se propõe ou o eleito que tende a produzir Na adequação ou inadequação na proporção ou desproporção em que o afeto parece ter influência sobre a causa ou objeto que o desperta consiste a propriedade ou improprie dade a decência ou a deselegância da ação conseqüente Na natureza benéfica ou prejudicial dos efeitos que o afeto tem como objetivo ou tende a produzir consiste o mérito ou demérito da ação as qualidades pelas quais tem direito a recompensa ou é merecedor de punição Propriedade e mérito são portanto os atributos da paixão por trás de cada ação que determina o caráter virtuoso da ação Guardam certa semelhança com o adável e útil de Hume mas Smith acreditava que sua própria doutrina era original por evitar A d a m S m it h 5 6 7 Theory of Moral Sentiments Teoria dos sentimentos morais in The Essays ofAdam Smith London Alexander Murray 1869 part VII sec II cbap iii adfin p 271 Uma comparação com um trecbo representativo de Hume tal como a parte V de An Enquiry Concernir the Prinãples of Morais Investção sobre os Princípios da Moral com por exemplo a parte I de Theory of Moral Sentiments Teoria dos sentimentos morais apontará a concordância entre as duas doutrinas Teoria dos serttimentos morais 11 iii p 18 a redução fínal de toda a aprovação à utilidade o que Smith rejeitava com o Rmdamen to humiano de que a utilidade como tal não é reconhecível pelo sentido e sentimento imediatos mas somente por uma espécie de cálculo da razão Smith acreditava que fora capaz de fundamentar a moralidade em um fenômeno das paixões apenas uma crença à qual o título de seu livro presta testemunho Se o senso e o sentimento são de fato imediatos e não mediados no sentido de que não há nada entre eles e a raiz do ser fundamental então há um valor considerável em levar a análise das virtudes a seu verdadeiro fimdamento que está nas paixões Na doutrina de Smith a pista para essa redução está no fenômeno da Simpatia o critério para a propriedade e o mérito Simpatia é uma palavra usada por Smith em seu sentido literal um paralelo etimológico de compaixão sentir com ou um sentimento companheiro É um íato para o qual talvez nenhuma outra explicação mecânica possa ser dada além de que as paixões de um ser humano são transferidas para outro pela força da imiinação que age sobre o receptor O homem que percebe ou simplesmente imagina o terror o ódio a benevolência ou a gratidão de outro deve em cena medida entrar nesta paixão e vivenciála ele mesmo pois deve imíinarse na situação do outro e daí tudo se sjie De maior relevância no que precede é a ressalva em certa medida Se o es pectador imparcial consciente do que ocasionou o terror o ódio ou outra paixão do agente sente em seu próprio peito a mesma medida dessa paixão que motivou a ação do ente então o espectador literalmente simpatiza com o ente e aprova o seu ato por ser coerente com o decoro O espectador experimenta simpaticamente a paixão do agente e se a experimenta no mesmo grau experimenta ainda o sentimento de aprovação pois é esta também uma paixão O decoro porém não é o único fundamento para a virtude moral Não apenas a adequação da paixão do sente à sua causa mas o objetivo ou tendência dessa paixão o seu efeito tem pertinência sobre a qualidade moral do ato em questão Smith referese à natureza dos efeitos que o afeto tem como objetivo ou tende a produzir Neste caso o ou é disjuntivo e precisaremos discutir mais tarde a importante diferença entre os efeitos a que visa o sentimento e aqueles que o ato que inspira na verdade tende a pro duzir Por enquanto basta notar que quando uma ação recai sobre um ser humano ferá com que sinta gratidão ou ressentimento porque será benéfica ou prejudicial iradável ou dolorosa Se um espectador imparcial informado de todas as circunstâncias simpa tizasse com a gratidão sentida pelo ser humano objeto então o espectador julgaria me ritório o ato do agente e teria sido atendida a segunda condição da virtude moral Em suma se o espectador imparcial real ou suposto deve simpatizar com a paixão tanto do agente decoro como do paciente mérito então o ato do agente pode ser declara do virtuoso com base do sentimento de aprovação do espectador Se o refinamento do mecanismo de simpatia por Smith mais nada fez do que mostrar como uma moralidade bastante estrita poderia ser extraída das paixões e da ima ginação por si sós já teria algum interesse Na verdade aponta para um círculo muito maior de conseqüências Na colocação de Smith a simpatia não pode ser desvinculada da imaginação Juntas definem uma indubitável sociabilidade natural do homem Pelo 5 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y exeidcio de duas capacidades subracionais a simpatia e a inuiiiação cada homem é por sua natureza levado ou compelido a transcender o seu próprio eu e sem realmente ser capaz de sentir os sentimentos de outro homem é capaz e é impelido a imnarse no l i desse outro e de participar nâo importa até que ponto de íbrma indireta dos sentimentos que sáo os fenômenos fundamentais da existência do outro Smith deve mos lembrar náo queria apenas saber o que é a virtude mas também o que lhe dá vali dade Por que em prindpio os homens decidem ser virtuosos quando ser virtuoso significa ser merecedor de aprovação A resposta de Smith é que é da namreza de um ser humano desejar a aprovação e o amor dos seus congêneres humanos A primeira írase de Teoria dos sentimentos morais sugere a retirada que está em andamento da doutrina da guerra de todos contra todos Náo importa quáo egoísta se possa supor um homem há evidentemente alguns princípios cm sua natureza que o íàzem interessarse pela fortuna de outros e que tornam a sua felicidade necessária a ele embora nada daí extraia exceto o prazer de a contemplar A combinação da imaginação da simpatia e da necessidade do amor e da aprovação de outros homens é o fundamento para as asserções de Smith de que a natureza formou o homem para a sociedade Assim não apenas ensina Smith uma sociabilidade natural do homem mas também o caráter natural da lei moral Pode referirse com facilidade aos princípios naturais do certo e do errado entendendo como certo não apenas o que beneficia ou evita causar danos ao agente Pode fàzêlo porque o fundamento da ação e da per cepção moral é a constituição interna da natureza humana não no sentido antiquado das mais elevadas possibilidades do homem é verdade mas no sentido da psicologia humana os instintos os sentimentos os mecanismos de simpatia que são as causas eficientes do comportamento humano Estes são perfeitamente naturais e os senti mentos de aprovação o são igualmente daí os princípios do certo e do errado serem incontestavelmente naturais A versão do direito natural de Smith depende muito fortemente da construção do espectador imparcial o ser imaginário que supõese representa toda a humani dade ao analisar e julgar as ações de cada indivíduo Julgamentos feitos deste ponto de vista implicam que nenhum homem pode de modo correto preferir a si mesmo a ponto de fazer exceções à regra geral em fevor de si mesmo Uma vez que amar o nosso próximo como amamos a nós mesmos é a grande lei do cristianismo também é o grande preceito da natureza amar a nós mesmos apenas como amamos nosso próximo ou o que vem a ser a mesma coisa como o nosso vizinho é capaz de amar nos O recurso ao julgamento imaginado da humanidade em geral ao mesmo tem po dirige a consciência para a vigilância iminada mantida sobre cada homem em to A d a m S m it h 5 6 9 3 A maioT parte da felicidade humana derivase da consciência de ser amado Ibid I II v p 40 4 Por exemplo ibid III II p 105 Cf anteriormente p 372375 a respeito da n ção da socia bilidade natural do homem por Hobbes 5 Teoria dos sentimentos morais V II p 177 6 Ibid 11 v p 24 dos os momentos por uma suposta humanidade que tudo vê O padrão construtivo da humanidade universal é fundamental para a versão de sociabilidade natural e direito natural ensinada por Smith Também é uma premonição do construto póscapitalista de toda a humanidade como o foco do direito e da história É verdade que os ensinamentos de Smith incluem a sociabilidade natural do homem e a base natural da lei moral mas esta modificação da doutrina do direito natural moderno náo signiíica um retorno à antiguidade Devese repetir que para Smith o direito natural repousa na primazia da porção subracional da alma e que a sociabilidade natural tal como a entendia náo é um princípio irredutível do homem mas o produto de um mecanismo em funcionamento Mais tarde Kant viria a falar do mesmo fenômeno como a insociável sociabilidade do homem Nesse sentido a so ciabilidade natural náo aponta para a sociedade política tal como fazia em Aristóteles Ao contrário assemelhase a um gregarismo Tratase de uma compaixão para com os companheiros de espécie seus semelhantes a qual tem tudo em comum com a suposta relutância dos cavalos em pisar em cima de um corpo vivo de qualquer espécie e da aflição de todos os animais ao passarem por cadáveres de seus semelhantes Afirmar categoricamente com base nisso que o homem é por natureza um animal social náo significa de modo algum asseverar também que é um animal político O homem é vinculado à humanidade por laços de sentido e sentimento imediatos mas está ligado a seus concidadãos em si pelos laços mais fracos superinduzidos do cálculo ou da razão derivados de avaliações de utilidade Como vimos o ponto de vista do juízo moral para Smith é o do homem ou da humanidade universal a classe homogênea de companheiros de espécie A lei moral é natural em um sentido que extrapola as fronteiras intermediárias e artificiais da sociedade política e contempla principalmente o indivíduo natural e as espécies naturais De acordo com essa lei a perfeição da natu reza humana é sentir muito pelos outros e pouco por nós mesmos restringir nosso egoísmo e dar livre curso a nossas afeições benevolentes A sociedade política no entanto não é direcionada para essa perfeição humani tária da natureza humana mas para a salvaguarda da justiça concebida de forma muito restrita A mera justiça é na maioria das ocasiões apenas uma virtude negativa e apenas nos impede de ferir nosso próximo O homem que mal se abstém de violar ou a pessoa ou a propriedade ou a reputação de seus vizinhos decerto possui muito pouco mérito positivo Justiça signiíica fàzer tudo o que o semelhante de alguém pode com propriedade forçálo a fazer ou que pode punilo por não fezer A justiça em resumo se assemelha de perto à lei da natureza tal como entendida por Hobbes e Locke Smith a 5 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 7 De Rousseau Discours sur Torigne et les fóndementes de 1inigalité parmi les hommes Discurso so bre a origem da desigualdade entre os bomens Primeira Pane Os leitores dos dois Discursos de Rousseau ficarão impressionados com a semelhança entre os temas e visões entre esta obra e Teoria dos sentimentos morais A divisão da natureza humana entre amorprõprio e compaixão e a bondade com ressalvas da sociedade civil são apenas exemplos 8 Teoria dos sentimentos morais 11 v p 24 9 Ibid II II L p 75 compreendia do mesmo modo Conclui a Teoria dos sentimentos morais com um trecho sobre a jurisprudência natural a justiça e as regras do patrimônio natural querendo dizer com todos eles um sistema daqueles princípios que devem perpassar e ser a base das leis de todas as nações Encerra com a promessa de voltar a discutir esse tema em um trabalho posterior Seu único outro livro é A riqueza das nações Náo seremos capazes de compreender de modo adequado a versão da sociabilida de natural do homem de Smith se não entendermos profundamente a diferença entre o homem concebido como um animal social e como um animal político É útil para este fím examinar mais a fundo a questão da justiça a virtude singularmente políti ca que pode até ser sinônima de obediência à lei positiva A justiça no contexto da teoria moral de Smith é uma virtude defeituosa Ao se preparar para um tratamento excepcional da justiça divide a íilosoíia moral em duas partes a ética e jurisprudência o tema desta última sendo a justiça A defesa da justiça significa a punição da injus tiça e a punição da injustiça baseiase na paixão insocial do ressentimento o desejo de retribuir o mal com o mal o comando da lei ssrada e necessária da retaliação que parece ser a grande lei que nos é ditada pela Natureza A sociedade política se baseia em um paradoxo moralista um dos muitos que encontraremos a sociabilidade repousa sobre uma animosidade latente sem a qual não existiria o Estado Em segundo Itar a justiça que é igual a dar a outro não menos ou mais do que lhe é devido não causa gratidão e portanto no sistema de Smith não é acompanhada pelo mérito ou por muito pouco Levando em consideração tanto a natureza da justiça como sua salvaguarda tratase de uma virtude defeituosa na medida em que não pode ou praticamente não pode merecer plena aprovação por mérito nem tampouco por decoro Em terceiro embora haja um sentido em que a sociedade política é natural é este um sentido fiaco A sociedade nacional é de fato o protetor e a matriz de nós mesmos nossas casas nossos parentes e nossos amigos e nem por um instante sonha Smith com um definhamento do Estado É por natureza caro a nós Porém muitas vezes o amor por nossa própria nação predispõenos a olhar com a inveja e o ciúme mais malignos a prosperidade e o engrandecimento de qualquer outra nação vizinha O amor por nosso próprio país náo parece derivarse do amor pela humanidade Este pri meiro sentimento é totalmente independente do segundo e parece às vezes piedispornos a agir de íbrma incoerente com ele A França pode conter talvez perto de três vezes o número de habitantes que a GtáBietanha contém Na grande sociedade dos homens portanto a prosperidade da Fiança deveria parecer um objeto de muito maior importância que a da GrãBretanha O súdito britânico porém que por conta disso preferir em todas as oca siões a prosperidade do primeiro à do último país nâo seria considerado um bom cidadáo da GrãBretanha Náo amamos nosso pais somente como uma parte da grande sociedade da humanidade nós o amamos por si só e independente de quaisquer considerações A d a m S m it h 571 10 Recomendase que o leitor consulte a abordem desse assunto no capítulo sobre Aristóteles 11 Teoria dos sentimentos morais II I ii p 65 II II i p 75 12 7õú7VIIIiip202204 São dignas de atenção essas reservas e ressalvas sobre a sociabilidade política Vol tarão a aparecer em uma encarnação avolumada conjurada por Marx um século mais tarde quando atinge um clímax a substituição do homem polítíco pela espécie animal Seria enganoso sugerir que a doutrina de sociabilidade do homem de Smith constituiu uma recaída na Idade Média ou na Antiguidade Seria mais enganoso ainda sugerir que na visão de Smith a natureza humana é simplesmente dominada por qual quer tipo de sociabilidade natural Examinamos o vínculo mecânico ou psicológico da simpatia com base na teoria moral de Smith a fim de mostrar a mudança de ênfase entre a preparação do capitalismo na doutrina de Locke e sua elaboração em Smith Porém o tema do direcionamento natural do homem para a preservação náo é de modo algum enfraquecido por Smith Pelo contrário a autopreservação e a propaga ção da espécie são os grandes objetivos que a natureza parece ter proposto na formação de todos os animais Não há qualquer motivo para duvidar que Smith afirmasse isso com toda intensidade Podemos supor portanto que se empregarmos altruísmo e egoísmo em seu sentido literal o homem pode ser descrito de acordo com Smith como sendo por natureza altruísta e egoísta um membro da espécie impulsionado pelo amor de si mesmo e por sentimentos de fraternidade para com outros É uma das características marcantes do sistema de Smith que a sociabilidade muito embora descrita de modo específico e a concentração autocentrada na preser vação sejam mostradas como profundamente combinadas em uma articulação namral de grande força e isto é realizado simultaneamente com uma reabilitação da moral por meio de fundamentos naturais A natureza de fato com tanta satisfação parece ter ajustado nossos sentimentos de aprovação e desaprovação à conveniência tanto do in divíduo quanto da sociedade que após o mais rigoroso exame será estabelecido acre dito que tal ocorre universalmente Quando se tem em mente que os ensinamentos de Smith visam à articulação entre moral e preservação e que os frutos práticos de sua doutrina se destinam a serem colhidos pela emancipação dos homens sob um governo brando para buscar sua felicidade livremente de acordo com seus desejos individuais esta realização como um todo exige grande respeito A reconciliação entre o bem pri vado e o bem comum por meio náo da coerção mas da liberdade com fundamento no dever moral talvez nunca tivesse sido visto antes Neste edifício amplo e simétrico Smith percebeu algo que lhe pareceu ser uma ir rqlaridade ou uma classe de irrqlaridades Observou que em determinados pontos desenvolvese uma disjunção entre o que o homem por natureza seria levado a aprovar como virmoso e aquilo que é conduzido pela natureza a aprovar como propício para a preservação da sociedade e da espécie humana e isto não obstante a verdade abrangente contida no trecho citado anteriormente Recordemonos de que os componentes de um ato virmoso são o decoro e o mérito e que ambos se fundamentam em uma base de simpatia Se os homens não desejassem a simpatia de outros ou tampouco reagissem ao 572 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ibidyp7 14 Ibid IV ii p 166 impulso de simpatizar com outros náo haveria moral nem sociedade Porém a tendência natural dos homens é de simpatizar em particular com alegria e a boa sorte e escusado será dizer que os homens não só desejam que se simpatize com eles mas que essa simpatia tenha como motivo sua prosperidade não sua adversidade No entanto o desejo de sim patia em maior escala tornase como conseqüência a base da ambição que é a aspiração de ser extravagante grandioso e admirado A multidão da humanidade entregase a esta aspiração pois como é natural simpatiza com a eminência isto é riqueza e posição Contudo riqueza e posição como disse Smith em algumas ocasiões não necessariamen te se conjugam com a sabedoria e a virtude Como observa Esta disposição para admirar e quase venerar os ricos e os poderosos e desprezar ou pelo menos menosprezar as pes soas de condições pobres e inferiores embora necessária tanto para estabelecer como para manter a distinção de classes e a ordem da sociedade é ao mesmo tempo a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais Recordemonos de que o mérito é a qualidade de um ato que um espectador imparcial proclamasse digno de gratidão A qualidade decisiva de tal ato é o decoro da paixão do ente ao cometêlo sua intenção benevolente para com o recipiente e o prazer do recipiente com o benefício concedido em conseqüência do que deseja retribuir o benefício para o agente Tal conjunção seria talvez complicada mas em todo o processo uma condição se destaca com nitidez o recipiente deve receber um benefício Ora Smith observa que há certa lacuna entre a intenção e a consumação Essa lacuna é o Acaso Devido a um mero acaso a boa vontade malogra e nada ou pior que nada produz o agente benevolente para o beneficiário pretendido Em outras ocasiões o agente nada pretendendo ou possivelmente menos do que nada calha ser a fonte de um benefício para o recipiente Em oposição à sólida moral o ato de primeiro agente fica sem a aprovação da simpatia e sem o selo da virtude enquanto o ato do segundo agente ganha aplauso e gratidão A tendência universal dos homens em considerar a questão e náo a intenção é considerado por Smith como uma irre gularidade salutar e útil em sentimentos humanos por dois motivos Em primeiro lugar punir pelas afeições do coração somente onde nenhum crime foi cometido é a mais insolente e bárbara tirania Tentar viver uma vida comum enquanto se julgam os homens culpáveis ou louváveis por suas secretas intenções significaria que cada tribunal de magistratura viria a ser uma verdadeira inquisição Em segundo o homem foi feito para a ação e para promover pelo exercício de suas faculdades tais mudanças nas circunstâncias externas tanto de si mesmo e de outros que podem pa recer mais favoráveis à felicidade de todos Não deve satisfazerse com a benevolência indolente nem se imaginar um amigo da humanidade porque em seu coração quer o bem para a prosperidade do mundo Smith prossegue falando da utilidade para o mundo da propensão cognata que têm os homens para serem perturbados em espírito mesmo quando o mal que fizeram foi totalmente sem intenção um assunto que Smith A d a m S m it h 5 7 3 15 I III iii p 5657 16 Ibid II II iii p 9698 elucida com algumas observações sobre o sentido falacioso de culpa ilustrado pelo tormento de Édipo Em suma a natureza sabiamente providenciou para que nossos sentimentos nos direcionassem para a preservação de nossa espécie onde um conflito entre a preservação e a virtude moral ou a razão sólida é provocado pela divergência entre intenção e conseqüência Ainda no mesmo estilo Smith observa que quando um homem conquista o medo e a dor pelo nobre esforço do autocomando tem direito a ser compensado com uma percepção de sua própria virtude em troca pelo alívio e segurança que poderia obter ao ceder às suas paixões Entretanto é a sábia previsão da natureza que seja apenas imperfeitamente compensado para que não tenha motivo algum para atender ao apelo do medo e da dor e para atender a sua persuasão O medo e a dor são instru mentos de preservação pereceriam um homem ou uma espécie indiferentes a eles O autocomando que os domina não traz consigo porque não convém um sentimento de autoestima suficiente para superar a angústia de suprimir essas violentas paixões Evidentemente a virtude moral não é e nem deve ser apenas a sua própria recompen sa nem portanto pode ser incondicionalmente válida ou válida por si mesma Deve conceder de acordo com os ditames da natureza certa precedência à preservação Em uma passagem importante Smith desvela ainda mais o caráter paradoxal da moral natural tal como a concebe É levado a contrastar o curso natural das coisas com os sentimentos naturais da humanidade É devido ao curso natural das coisas que diligentes trapaceiros prosperam enquanto indolentes homens honrados morrem de fome que grandes conjuntos de homens sobrepujam os pequenos e finalmente que a violência e o artifício prevalecem sobre a sinceridade e justiça Os sentimentos naturais do homem no entanto estão em rebelião contra o curso natural das coisas dor tristeza raiva compaixão pelos oprimidos e afinal a desesperança de ver uma condigna retaliação ao vício e à injustiça neste mundo estes são os sentimentos natu rais do homem O curso natural dos acontecimentos não obstante seu grau de ultraje tem um aspecto ponderoso a recomendálo Na atribuição a cada virtude sem favor ou acomodação a recompensa que lhe é própria a natureza adotou a regra útil e ade quada para despertar a indústria e a atenção da humanidade Acontece serem indis pensáveis para a sobrevivência humana a labuta e o trabalho árduo e a única forma de obtêlos é por remuneração e punição adequadas O curso natural dos acontecimentos apoia a preservação da raça em detrimento da moralidade precisa os sentimentos na turais da humanidade são despertados pelo amor da virtude e pela repulsa ao vício e à injustiça A natureza é dividida mas não é dividida igualmente contra si mesma A causa da virtude absoluta pode ser ouvida somente após uma mudança de foro para uma jurisdição em um mundo além da namreza Smith persevera em seu tema do preço em bondade e razão que deve ser pago para realizar as atividades fundamentais do mundo Aborda a questão de grande im 574 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 17 Ibid III ill p 129 18 Ibid III v p 147149 portância para sua doutrina relativa ao fato de ser a utilidade das açóes a base para sua aprovação Se a resposta fosse uma simples afirmativa consequentemente o prin cípio da virtude aprovação seria racional o cálculo da utilidade Contudo sabemos que na opinião de Smith o princípio da virtude e da aprovação não é a razão mas o sentimento e a emoção mediante a simpatia Todavia é evidente que a humanidade apresenta uma tendência constante para as quantidades de trabalho e de governo que são os esteios para a preservação da raça Smith explica isso por meio de uma ilusão imposta aos homens pela natureza uma ilusão que executa a tareia da razão melhor do que a razão poderia fezêlo Quando olhamos para o poder ou riqueza sob a posse de um homem nossas mentes são conduzidas na imínação a conceber a adequação desses objetos para o exercício de suas respectivas funções Ao mesmo tempo sim patizamos com a satisfeção que imaginamos terem os possuidores desses prêmios É apenas um passo daí para desejarmos nós mesmos sermos felizes em grandeza e daí para realizarmos o imenso esforço que resulta em riqueza e governo Quando examina mos a questão fica aparente que somos levados a buscar prosperidade e poder por um motivo psicológico e portanto a gerar riqueza e ordem entre os homens como sub produtos de pulsões subjetiA como se diria Além disso e conjuntamente agimos sob a influência do apetite pelos meios para a satisfeção nem ao menos pela satisfeção em si quando buscamos a riqueza e o poder Ambos são desejáveis para a felicidade que supostamente proporcionam a seus possuidores De feto pouco ou muito pou co é auxiliada a felicidade pela posse de poder e riquezas essas enormes e laboriosas máquinas tramadas para produzir algumas conveniências insignificantes para o cor po consistindo de molas as mais iradáveis e delicadas que devem ser mantidas em ordem com a mais ansiosa atenção e que apesar de todos os nossos cuidados estão a todo o momento prontas a explodir fezendose em pedaços e a esmagar sob suas ruínas seu infeliz possuidor É curioso o motivo de Smith para depreciar as distinções de riqueza e de situa ção Em que consiste a verdadeira felicidade da AÚda humana os pobres e obscuros não são em aspecto algum inferiores àqueles que pareceriam estar muito acima deles Na comodidade do corpo e na paz da mente todas as diversas situações de vida estão quase no mesmo nível e o mendigo que banhase ao sol ao lado da rodoAua possui a segurança pela qual batalham os reis É neste contexto que Smith anuncia em Teoria do sentimento moral a noção e a expressão da mão invisível de grande fiuna por ter sido aprimorada ao longo do aigumento central de A riqueza das naçóes A passagem merece citação extensa é certo que a natureza se imponha a nós desta forma É esse engano que desperta e mantém em movimento contínuo a indústria da humanidade É isso que primeiro a le vou a cultiirar a teria a construir casas a fundar cidades e nações e a inventar e aprimorar todas as ciências e anes que enobrecem e embelezam a vida humana que totalmente A o a m S m it h 575 19 Ibid IV i p 161 e em todo o livro 20 Ibid p 163 modificaram a fiice inteira do globo transformaram as rudes florestas da natureza em plamcies agradáveis e férteis e fizeram do oceano inexplorado e estéril um novo fimdo de subsistência e a grande estrada de comunicação para as diferentes nações da Terra A terra por estes labores da humanidade foi obrigada a redobrar sua fertilidade natural e a sustentar maior multidão de habitantes É sem propõsito que o proprietário orgulhoso e insensível contempla seus extensos camjjos e sem um pensamento para as necessidades de seus irmãos na imaginação consome ele mesmo a colheita inteira que cresce sobre os campos O provérbio caseiro e vulgar de que o olho é maior que a barriga nunca foi mais plenamente confirmado que com respeito a ele A capacidade de seu estômago náo é de modo algum proporcional à imensidade de seus desejos e suportará náo mais do que o mais humilde camponês O resto é obrigado a distribuir entre aqueles que preparam da maneira mais agradável aquele pouco que ele mesmo utiliza entre aqueles que equipam o palácio em que esse pouco será consumido entre aqueles que preparam e mantêm em ordem todas as diversas bugigangas e quinquilharias que sáo empregadas na economia da grandeza todos esses portanto extraem de seu luxo e extravância aquela porçáo das necessidades da vida que teriam em váo esperado de sua humanidade ou sua justiça O produto do solo mantém em todos os momentos quase o número total de habitantes que é capaz de manter Os ricos sõ selecionam da pilha o que é mais precioso e agradável Consomem um pouco mais que os pobres e apesar de seu egoísmo e capacidade natu rais embora seu inmito seja apenas a sua prõpria comodidade embora o único íim a que se propõem do trabalho de todos os milhares que empregam seja a satisfação de seus prõprios váos e insaciáveis desejos dividem com os pobres o produto de todas as suas me lhorias São conduzidos por uma máo invisível a íàzer quase a mesma distribuição das necessidades da vida que seria feita se a terra fosse dividida em partes iguais entre todos os seus habitantes e assim sem querer sem saber promovem os interesses da sociedade e proporcionam recursos para a multiplicação da espécie Além daqui náo há vantagem em multiplicar as evidências da crença de Smith de que o fim dominante da natureza com respeito ao homem ou seja a prosperidade da espécie como um todo seja alcançado por meio de uma atenuaçáo da moralidade e da razáo Uma vez que este é um ponto que o pensamento póscapitalista viria a abordar de modo polêmico e contra o qual aplicaria sua suprema e mais ambiciosa dialética merece ser examinado com atenção A afirmação de que o fim que a natureza pretende para o homem é promovido pela orientação de seus sentimentos ao invés de sua razão decorre da premissa de que o domínio das paixões é maior que o da mente e todo animal persistentemente almeja que seu próprio ser seja ininterrupto A natureza do homem refletese de modo mais claro naquilo que sente do que naquilo que pensa além disso a diferença entre os dois não é tão profunda quanto se concebia antigamente mas ao contrário é tal que pode ser composta por estarem ambos contidos em percepções Smith não em p r a lin guagem de impressões e ideias usada por Hume no empreendimento por meio do qual o funcionamento da mente recebeu uma aparência unificada na medida em que foram obscurecidas as distinções entre emoção sensação e razão Se Smith assim o fizesse teria mais explicitamente concordado de maneira mais explícita com a definição de Hume do 5 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 1 Ibid p 1 6 2 1 6 3 eu como essa sucessão de ideias e impressões relacionadas das quais temos uma lem brança íntima e de ideias como as débeis imns de impressões no pensamento e na razão A redução do eu do ego ou do homem real à sua realidade ou aos traços da quilo que realmente percebeu ao invés de sua alma e seus poderes ou faculdades é parte da doutrina que rejeitou as ideias inatas e com isso rejeitou tudo exceto as essências nominais Essa doutrina com seus ecos de Hobbes e Locke é entrelaçada com a visão de que as linhas de força ao longo das quais a natureza produz e comimica seus movimentos adentram o homem e o governam mais por meio de suas paixões que de sua razão Em todo caso a colocação de Smith é de que a natureza não encarregou a fraca razão do homem de descobrir que deve preservar a si mesmo ou como fezêlo mas dotouo de forte apetite para os meios para sua sobrevivência bem como para a pró pria sobrevivência assim assegurando sua preservação No entanto é essa própria pri mazia do sentimento sobre a razão ou pelo menos a igual inclusão de ambos em algo semelhante à percepção que é a base para as concessões que devem ser feitas contra a moralidade em nome da preservação Recordemos que a doutrina moral de Smith começa com a aprovação o virtuoso é assim porque de íàto ou em princípio é aprovado pelo sentimento da humanida de Agora entendemos que existe uma dificuldade porque a natureza ensina o homem a aprovar tanto o que conduz à moral como o que conduz à preservação Por vezes são ambíguas as instruções da natureza Como é evidente a tentativa de derivar o Dever do Ser é perturbada pelo feto de que embora o que é virtuoso seja realmente aprova do não decorre daí nem que tudo o que é aprovado é virtuoso nem que tudo o que é virtuoso é aprovado É destas circunstâncias que se originam as irregularidades ou concessões anteriormente mencionadas O que então se tem a ganhar com a deriva ção psicológica ou comportamental de uma moral natural É que por este método a virtude moral pode ser deduzida do caráter do homem como homem ou seja abstraindo seu caráter como ser político e atentando somente para seu caráter como natural A íilosoíia moral de Smith tem como objetivo compreender a base da virtu de na medida em que se pode dizer que essa base existe em um estado totalmente real em qualquer tempo na grande massa da humanidade em si Ou seja o ponto de partida de Smith é a igualdade natural dos homens no sentido elaborado por Hobbes O contraste com a Antiguidade clássica lança luz sobre a posição moderna O femoso esquema da República de Platão fez da divisão do trabalho ou da distribuição de fun ções na sociedade política um princípio elevado porque a virtude em uma classe social não poderia ser medida pelo mesmo metro contra o qual deve ser medida uma outra classe A Política de Aristóteles distingue entre a virtude de escravos homens livres e A d a m S m it h 577 22 Hume Tratado da natureza humana 11 i e II I ii 23 Caracteristicamente Hume nâo se compromete com sua observação a razáo nunca pode se opor à paixão no comando da vontade Ibid IIIII Smitb fez dois comentários sob a fôrma de alusões que negam a racionalidade única do bomem a humanidade bem como todas as outras criaturas racionais Iheory o f Moral Sentiments III v p 146 e essa grande sociedade de todos os seres sensíveis e inteligentes ibid VI II iii p 209 24 Teoria dos sentimentos morais III v p 142 homens de excelência a Ética a Nicômaco náo pode ser considerada como um manual da excelência para a grande massa da humanidade Os moralistas da Antiguidade con centravamse com frieza na distinção entre as pessoas de peso político e todo o povo que vivia dentro das fronteiras Só a democracia tem o mérito de tomar possível o apa gamento dessa distinção e portanto temos o direito de considerar a humanização da virtude moral sua universalização ou referência ao que está realmente presente em todos os homens como homens como a democratização da moral A democracia é o regime que minimiza a distinção entre governantes e governa dos o fenômeno político frmdamental e nesse sentido podese dizer que a democra cia ou a democracia liberal tende a substimir a vida política pela sociabilidade vidas privadas vividas em contiguidade ao mesmo tempo que proporciona uma difusão mais ampla para a autoridade política De certa forma é impossível a abstração da moral das exigências da vida política propriamente dita a vida política tem de ser vivi da e é preciso fornecerlhe sustento sob a forma da organização econômica do uso da força para reprimir o crime e a revolta a legitimação das desigualdades convencionais em prol da ordem e assim por diante Onde a moral é radicalmente humana ou na tural no sentido dessas palavras que se opõe a político as disposições indispensáveis a serem tomadas para a vida política terão o caráter de uma intrusão sobre a moral ou de uma irregularidade Não é nosso intuito afirmar que a base moral da doutrina social de Smith é tramada para produzir uma abstração das condições de existência política Pelo contrário asseveramos que a fim de atenuar ou prevenir essa abstração a qual suas premissas ameaçam por em prática Smith deve recorrer a irregularidades da natureza ou a exceções às suas premissas Dificilmente haveria melhor maneira de ilustrar a fugidia relação entre retidão e política do que pela suinte citação do Marlborough de Churchill O segundo debate na Câmara dos Lordes obteve de M arlboioi seu desempenho Parlamentar mais memorável É ainda mais notável porque embora tivesse ele decidido o que deveria ser feito e o que pretendia fàzer sua condução do debate foi ao mesmo tempo espontânea dissimulada e inteitamente bemsucedida Como no campo de ba talha mudou muito rapidamente seu curso e disseminou uma rede de manobras diante de seus oponentes Pôs a sinceridade a serviço da íàlsidade e aparentando telutar em deixar escapar toda a verdade induziu seus atacantes a completo e embaraçoso erro Sob o impulso de uma emoção que não poderia ser de todo presumida fez uma revelação acerca da política de guerra que efetivamente enganou não só a Oposição mas toda a Casa e que também desempenhou o seu papel em enganar o inimigo estrangeiro que como é natural logo foi posto a par do debate público Agiu assim no interesse da estra tégia correta e da causa comum tal como as concebia Estava acostumado pelas condi ções em que batalhou a sempre enganar os amigos para seu bem e os inimigos para seu mal porém a velocidade e a fecibdade com que esta manobra em particular foi concebida e realizada no pouco femiliar ambiente do debate Parlamentar revelanos algumas das secretas profundezas de sua mente astuta todavia benevolente 5 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 25 Winston S Churchill Marlborou His Life and Times 4 v in 2 bks London Harrap 1947 V III bk II p 303 Reproduzido com permissão de Charles Scribners Sons e George Harrap Co Ltda É evidente que nâo se pode fezer da dissimulação o princípio da moral é evidente também que a moral que não fez uma distinção útil entre a dissimulação em uma causa nobre e a mendacidade comum terminará ou no preciosismo que condena tudo como vício ou no latitudinarismo que peiscruta em váo a linha entre vício e virmde Quanto a este aspecto a filosofia moral da Antiguidade poderia ser descrita como muito po lítica Reconhecia na pmdência uma virmde sutil que animava as demais a partir de sua sede na mente Dando um tratamento paliativo ao modelo de Odisseu dos antigos moralistas devese dizer que o afestamento da mais estrita moral era por eles tolerado visando afinal algo mais elevado pois náo entendiam a excelência moral como a maior de todas as excelências Quando Smith diminui a moral tal não ocorre em prol de algo mais elevado pois não existe nada mais elevado A mais sublime especulação do filóso fo contemplativo mal é capaz de compensar a negligência do mais insignificante dever ativo O homem que e apenas com base no respeito pelo que é certo e digno de ser feito com base no respeito por aquele que é o objeto digno de estima e aprovação ainda que estes sentimentos jamais sejam concedidos a ele age pelo motivo mais subli me e divino que a natureza humana é sequer capaz de conceber A fim de colocar a questão de modo um tanto simplista tanto os antigos quanto os modernos abdicaram de alguma coisa para atenuar a virtude moral estrita os antigos sem qualquer compun ção porque tinham em vista uma excelência ainda maior Smith de forma titubeante porque seu objetivo não poderia exceder em valor a virtude moral O objetivo de Smith uma vida livre razoável confortável e tolerante para toda a espécie encontrava sua esperança sua base e sua expressão na ciência da economia tal como ele em grande medida a inaugurou Algo que se assemelhasse a um relato detalhado de economia de Smith estaria fora de lugar aqui de tal forma que nos li mitaremos a alguns temas escolhidos Seus ensinamentos em A riqueza das nações sáo íamosos sobretudo por sua defesa da livre iniciativa em termos amplos e simples não se pode separar o bemestar da nação de sua riqueza a qual Smith concebe da maneira moderna como o produto nacional anual Contudo o produto anual da na ção é a soma dos produtos anuais de seus habitantes individualmente Cada habitante tem eterno interesse em maximizar seu próprio produto e ferá todo o possível para conseguir isso se lhe for dada liberdade Assim todos devem ser dotados dessa liber dade com o que ao mesmo tempo maximizarão o produto agregado e se controlarão mutuamente pela força da competição O renomado ataque de Smith ao capitalismo mercantilista o terrível sistema de preferência pelo interesse comercial é parte do seu argumento de que o interesse comum não é atendido pelo fomento legislativo diferenciado para as empresas mas por se permitir que a natureza automaticamente converta o autointeresse individual no bem de todos Assim sendo como cada indivíduo se esforça na medida do possível para empregar seu capital no apoio à indústria nacional e assim direcionar tal indústria de maneira que A d a m S m it h 5 7 9 26 Theory of Moral Sentiments VI II iii p 210 VII II iv p 275 seu produto tenha o maior valor possível cada indivíduo necessariamente busca aumen tar tanto quanto possível a renda anual da sociedade Em geral na verdade náo pretende favorecer o interesse público nem sabe até que ponto o está favorecendo Quando prefe re apoiar as atividades nacionais e náo as estrangeiras visa apenas sua própria segurança e ao direcionar essa atividade de tal forma que sua produção possa atingir o maior valor tem em vista somente seus próprios ganhos e nesta como em muitas outras situações é conduzido por mão invisível a fomentar um objetivo que não fezia parte de suas inten ções Tampouco é sempre pior para a sociedade que náo fizesse parte dessas intenções Ao perseguir seus próprios interesses o indivíduo com frequência fevorece os da sociedade com muito mais eficácia do que quando pretende de feto fevorecêlos Nunca chegou a meu conhecimento que muito bem fosse feito por aqueles que simulam exercer o co mércio para o bem público Com efeito náo é uma simulação muito comum entre os comerciantes e poucas palavras bastam para dissuadilos Náo temos qualquer dificuldade em reconhecer a reconciliação natural entre os interesses individuais e comuns para a qual a Teoria dos sentimentos morais nos pre parou Também não estamos preparados para as irregularidades morais que Smith entendia serem incidentais a esta reconciliação São abordadas em dois ou três prin cipais seções no argumento exposto em A riqueza das nações Em primeiro lugar a prosperidade de todos e cada um nâo pode ser desconectada de sua produtividade e sua produtividade depende da divisão do trabalho Porém como é inevitável a divisão do trabalho embrutece as classes trabalhadoras e grande parte se nâo a maior parte da humanidade A destreza do trabalhador em seu oficio particular parece ser ad quirida às custas de suas virtudes intelectuais sociais e marciais Porém em todas as sociedades aperfeiçoadas e civilizadas é este o estado em que os trabalhadores pobres isto é a grande massa do povo deve necessariamente cair a não ser que o governo muito se esforce para impedilo Em suas discussões Smith tenta não exagerar a probabilidade de que o governo venha a ter sucesso Em segundo uma parte grande se não uma parte preponderante da vida econô mica da nação deve ser regulada pela classe de comerciantes e fabricantes Por vezes Smith surpreende por seu rigor nas suas admoestaçóes a essas classes como um con junto de homens O peso de sua objeção contra elas é que sua preocupação com o ganho colocaos em um conflito intolerante com as outras ordens da sociedade e com a nação como um todo exceto por descuido É necessária a sabedoria do governo para impedir que ajam mal ou seja sua interferência em proveito próprio e para dar livre curso somente às suas atividades úteis ou seja a sua produtividade Smith nâo era tão dogmático quanto alguns defensores do laissez faire viriam a se tornar mais tarde Em terceiro Smith considera o acréscimo anual ao produto como sendo gerado pelo trabalho O valor de troca ou preço de cada mercadoria uma vez que a terra se 5 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 27 An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations New York Modern Library 1937 rV II p 423 Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações 28 IbidN m 2p7ò5 29 Ibid eg I conc p 249250 IV III ii p 460 tornou propriedade privada e o capital foi acumulado resolvese em salários alu guel e lucro Desta forma os latifundiários e os empregadores que utilizam o trabalho partilham do produto do trabalho Smith fãz grande esforço para argumentar que os lucros do capital náo sáo um salário pelo suposto trabalho de inspeção e direção os quais afirmou serem muitas vezes confiados a um funcionário importante Estava longe de tentar esconder a contribuição para a produção que resulta da acumulação de capital Pelo contrário enfatizoua porém descreveua como algo que ocorre pelos aprimoramentos nas forças produtivas do trabalho No curso de suas investigações acerca do que hoje denominamos cálculo do rendimento nacional Smith decerto deu motivos às gerações posteriores para considerálo como detentor de uma teoria do valor do trabalho com as decorrentes crenças sobre a distribuição Quanto ao aluguel tratase de um preço de monopólio pelo uso da terra por cuja cobrança o proprie tário fica habilitado a participar do produto anual do trabalho Não podemos deixar de notar que Smith mal se deu o trabalho de justificar esta partilha e este resolver Pelo contrário por certa animosidade de expressão Tao logo a terra de qualquer país se torna propriedade privada seus proprietários como todos os outros homens gos tam de colher onde nunca semearam e exigem uma renda até mesmo por sua produ ção natural indica uma reserva quanto a sua perfeita conveniência Smith parece acreditar é verdade que quando são relatados os fiitos da distribuição a insinuação de possíveis desigualdades pode ser totalmente compensada pela explicitação dos amplos benefícios compensatórios pondera se não pode ser verdade que a vivenda de um príncipe europeu nem sempre suplanta tanto a de um camponês trabalhador e frugal como a vivenda do último suplanta as de muitos reis africanos os senhores absolutos das vidas e liberdades de dez mil selvagens nus Contudo é evidente Smith não imaginar dirigirse à multidão de trabalhadores pobres em detalhada defesa do capi talismo do modo como Marx dirigiuse a eles em detalhada denúncia Smith sugeriu abertamente essa noção de que algo como uma de suas irregularidades morais jazia em torno da raiz da ordem distributiva mas foi em muito sobrepujada pelas vantagens correlativas para todos e detestava os homens do sistema que seriam incapazes de compreender esse cálculo tão simples Smith não se referiu ao complexo da livre iniciativa como capitalismo mas como um sistema de liberdade natural ou a condição em que seria permitido que as coisas seguissem seu curso natural em que haveria perfeita liberdade A natureza significava para Smith o humanamente desimpedido ou desobstruído e de modo mais amplo isso significa o que não se confunde com as intervenções inapropriadas da Adam Smith 5 8 1 30 Ibid I VI p 4849 31 Ibid II intro p 260 Também II II p 271 etc 32 Ibid I XI p 145 33 Ibid I VI p 49 34 Ibid 11 p 12 Também Introduction and Plan of tbe Work p 1 viii 35 rV IX p 651 I X p 99 razão humana deixar a natureza seguir seu curso deixar os homens íàzerem o que são instintivamente impulsionados a fazer na medida em que isso for compatível com a segurança de toda a sociedade É fecil conceber e admitir que o natural contrapóe se ao artificial humano ou obrigado a obedecer a um desígnio preconcebido Assim a liberdade está toda do lado da natureza em oposição à coerção do lado da razão humana Ao mesmo tempo no entanto nada no mundo é tão inflexível e por conse guinte tão restritivo quanto o necessário ditame da natureza surda e muda enquanto a fonte da liberdade do homem reside em seu poder da razão a origem de seus diver sos artefatos A maneira como Smith enfrenta essa dificuldade é na verdade apoiar abertamente a liberdade da razão utilizada no serviço da liberdade mais vinculativa da natureza o cálculo sob o comando da paixão A doutrina de Smith é permeada pelas conseqüências do feto de que o elemento mais elevado na hierarquia a natureza con cebida como o livre motivo da paixão é o símbolo da falta de liberdade do homem como Kant viria a enfetizar de modo tão complexo É uma caraaerística distintiva da doutrina de Smith e do capitalismo liberal como um todo não conceber a liberdade como tendo importância primordial por que é a condição para a existência de cada homem como um ser moral individual a base para sua vontade autolegislada em ação ou para sua humanidade Para Smith a liberdade continuou a significar o que significara para Locke para Aristóteles e para a longa tradição da filosofia política a condição de homens sob governadores legítimos que respeitam as pessoas e os bens dos governados tendo estes últimos de consentir de alguma forma com este esquema Esta concepção de liberdade é essencialmente política e pertence ao libertarianismo de Locke não de Rousseau O projeto capitalista náo é insuflado por uma busca por métodos para a libertação institucional das pulsóes interiores de cada homem no interesse da vontade moral É insuflado por uma busca por métodos para a libertação do instinto natural de autopreservação de todo homem em prol da liberdade externa politicamente inteligível e da vida próspera e pacífica para a humanidade como um todo Portanto Smith não teve dificuldade em conceber o homem como livre enquanto ao mesmo tempo escravizado à natureza e sujeito a formas de lei que garantem sua liberdade externa mas dificilmente podem ter como objetivo ser a base de sua emancipação interna dessa mesma natureza Assim Smith está livre para depositar sua confiança em uma sabedoria da natu reza que se mostra até mesmo ou em especial na loucura e na injustiça dos homens a higiene moral que produz uma multidão na verdade uma raça de autolegisladores não eia indispensável para o seu plano nem era a vida política uma espécie de psi coterapia para produzir a emancipação subpolítica do homem Smith resignavase portanto a receber os benefícios da sociedade civil muito embora devessem estes ser 582 H istó ru da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 36 IbU IIII p 308 37 Smith em geral justapõe naturalmente e necessariamente sendo este ultimo empregado aparen temente como uma forma intensificada do primeiro Cf eg ibid p 8 86 357 414 421 422 591674723 e nota de rodapé 754756 mediados por certos males inquestionáveis e estava preparado para fazêlo indefinida mente se os beneficios fossem vastos e os males inevitáveis A este respeito antecipou os mecanismos da filosofia da história tal como viriam a emergir mas não suas metas o bem por meio do mal e a razão por meio da loucura mas sem Campos Elísios na outra ponta do arcoíris É importante que percebamos de modo mais exato o que a doutrina de Smith tem em comum com a filosofia da história que viria a se desenvolver mais tarde De início existe sua crença em um progresso natural das coisas em direção ao aperfei çoamento estimulado pelo esforço uniforme constante e ininterrupto de cada homem para melhorar sua condição melhorar sua condição sendo entendido no sentido mais vulgar Smith apresenta como exemplo um relato do progresso da Europa desde a desordem medieval até a relativa regularidade dos tempos modernos A antiga anarquia persistiu porque os grandes proprietários rurais tinham tropas de empregados que na verdade constituíam exércitos particulares Nada poderia produ zir ordem se não se dissolvessem esses exércitos A base para a sua existência era o fato de que os nobres e aristocratas tinham abundantes rendimentos em bens e mercadorias dos quais nas primitivas condições de comércio vigentes na época não poderiam dis por por troca ou venda Em conseqüência eram obrigados a utilizálos para alimentar uma multidão de homens que se tornavam seus dependentes e inevitavelmente seus soldados O que causou a derrocada de todo o sistema foi a ampliação do comércio o que permitiu aos magnatas converterem sua produção em dinheiro e a partir daí em luxos para seu deleite pessoal em vez dc na base militar de seu poder político A revolução de maior importância para a Íèlicidade do público bi desta lòrma provocada por duas ordens dilèrentes de pessoas que nâo tinbam a menor intenção de servir ao pú blico Satisfezer a mais inlàntil vaidade era o único motivo dos grandes proprietários Os mercadores e artífices muito menos ridículos sram meramente com vistas a seu próprio interesse e em fimção de seu próprio princípio do mascate de ganbar um pêni sempre que possível obter um phú Nenbum deles tinba conhecimento ou previa a grande revolução que a insensatez de um e a indústria do outro estavam gradualmente ocasionando Smith íála da ascendência da Igreja Romana do século X até o século XIII En tende que foi sinalizada pelo poder temporal do clero e este por sua vez sustentado pela influência do clero entre as multidões de homens As camadas inferiores do povo vinculavamse ao clero por laços de interesse as multidões dependiam de uma carida de que era irrestritamente concedida porque mais uma vez o clero não tinha outros meios de descartar a enorme produção de suas terras Quando surgiram tais meios a constituição da Igreja Católica sofreu uma profunda alteração Não tivesse essa constituição sido atacada por inimigo algum além dos débeis esforços da razão humana teria durado para sempre Porém esta imensa e bem construída tessitura 38 Ibid IIIL p 325326 39 Ibid II IV p 391392 Adam Smith 5 8 3 que toda a sabedoria e virtude do bomem jamais poderiam ter abalado muito menos derrubado foi pelo curso natural das coisas primeiro enfraquecida e depois em parte destruída Os graduais aperfeiçoamentos das artes das manufeturas e do comércio as mesmas cau sas que destruíram o poder dos grandes barões destruíram da mesma maneira na maior parte da Europa todo o poder temporal do clero Por meio desses mesmos instrumentos toda a humanidade é unida provavel mente em um movimento que a impulsiona para o alto bem como para a frente Smi th considera as descobertas geográficas como de importância ímpar para a espécie A descoberta da América e de uma passagem para as índias Orientais pelo Cabo da Boa Esperança sáo os dois maiores e mais importantes eventos registrados na história da humanidade Assim a comunicação e o comércio da espécie como um todo foram em princípio alcançados pela primeira vez na memória do homem e com esse notável evento surgiu a ocasião suprema para permitir que toda a humanidade reciprocamen te mitigasse as necessidades uns dos outros aumentasse os prazeres uns dos outros e encorajasse a indústria uns dos outros Smith acreditava que em giande medida a namreza íàla para a história na lin guagem da economia e que o amplo curso da história assim traçado vai provavel mente em direção a uma vida mais fácil mais culta mais racional e segura para a humanidade em geral Ao mesmo tempo Smith imaginou que o avanço da civilização era sincronizado com a geração de uma enorme multidão industrial privada de quase todas as admiráveis qualidades humanas A civilização não é um bem sem ressalvas ou em termos mais precisos é obtida a certo preço Este femoso tema do qual Rous seau tratou com virtuosismo foi desenvolvido por Smith com preocupação mas sem agitação Propôs um paliativo para o mal por meio de um amplo sistema de ensino básico praticamente gratuito para as massas fortalecido por uma quantidade inédita de seitas religiosas chegando a três mil cada uma necessariamente tão pequena que cada um de seus membros seria visível para a vigilância de seus companheiros de culto Todos manteriam vigília sobre a moral uns dos outros que longe de estar em perigo de esmorecer por fàlta de interesse demandaria ela própria a moderação por febrífiigos cursos educativos em ciências e filosofia e espetáculos artísticos como o teatro Smith recomenda repetidas vezes a mais enérgica atenção do govemo para com o estado intelectual e moral de grande parte da humanidade industrial não só por filantropia mas por óbvias razões de Estado Nossa tese com um resumo da qual encerramos agora é esta pouco tempo após a conclusão da obra de Locke homens inteligentes começaram a refletir sobre o que 5 8 4 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 40 tó VL iii 3 p 755 41 Ibid III VII iü p 590 também IV I p 416 42 Ibid V I iii 2 p 736738 V I iii 3 p 747748 seria hoje chamado de as implicações morais de sua doutrina e a expandilas Foi mostrado anteriormente no capítulo sobre Locke o ponto até onde teria ele atenuado os ensinamentos de Hobbes acerca da ferocidade natural do homem e assim aponta do a íilosoíia política na direção da economia Porém os principais ensinamentos da moderna escola do direito natural não foram prejudicados por isso de modo unívoco a natureza continuou a significar preservação com direitos que apoiam tudo que é rela tivo a isso Ora isto passou a ser considerado insuficiente e se acreditava que a redução do homem a suas afeições sugeria que este é afetado não somente em si mesmo mas em sua espécie Talvez não se tenha dado crédito suficiente a Locke pela relevante atenua ção mencionada antes que vai nessa direção mas seja como for o tema foi enfatizado por Smith mais ou menos na época do Segundo discurso de Rousseau A redução da vida humana a seus alicerces emocionais foi ampliada até se tornar a base dos deveres bem como dos direitos Não se pode negar que foi de modo consciente que se fizeram esses direitos revolverem em torno da preservação da espécie tampouco se pode negar que deveres são diferentes de direitos e de alguma forma os dois exigem uma recon ciliação entre si Durante esta conciliação dos deveres da virtude moral com os direitos da natureza quer dizer preservação Smith recorreu à tensão entre a natureza e a ordem moral dela derivada deixando a reconciliação inevitavelmente imperfeita A partir des ta semente germinaram os ensinamentos quanto à imperfeição moral da ordem natural ou a melhor ordem da sociedade a sociedade civil livre próspera e tolerante Assim em sua autocompreensão o capitalismo antecipou a principal crítica póscapitalista ao capitalismo a sociedade civil é uma solução fiJha para problema humano Nosso segundo ponto inseparável do primeiro é que a autocompreensão do ca pitalismo também antecipou uma proporção surpreendente de que viria a ser proposto no século XIX como a alternativa para o capitalismo Tentamos mostrar como o capi talismo direcionavase para a construção de uma humanidade universal tanto como o fundamento do dever o espectador universal e como o beneficiário final do progresso econômico desta forma como a melhor sociedade possível O motor desse progres so foram os ignóbeis desejos e esforços do homem canalizados através das instituições econômicas de produção e distribuição que vez por outra se abrem para ele Uma ex pectativa de bem através do mal de razão através da insensatez progresso uma crença na tendência dos interesses da humanidade em suplantarem os da sociedade política particular na preponderância da influência econômica sobre os assuntos humanos no primado do trabalho no processo de produção na preocupação da sociedade civil com a defesa da propriedade isto e muito mais que o marxismo iria proclamar estava Adam Smith 5 8 5 43 Devese chamar a atenção do leitor para a obra de Bernard Mandeville c 16701733 cuja The Fable ofthe Bees 1714 A febula das abelhas tinha como subtítulo Private Vices Public Benefits Vicios privados benefícios públicos Campeavam as polêmicas em torno dele e Smith acres centou sua reprimenda ao lidar com ele no capítulo O f Licentious Systems Sobre os sistemas licenciosos Theory o f Moral Sentiments VII II iv ao mesmo tempo que admitia que Mandeville náo estava incorreto em todos os aspectos presente nas doutrinas do capitalismo em certa medida e de um modo ou de outro tal como foi nosso objetivo demonstrar Elucidase de maneira curiosa a teoria de Marx de que o capitalismo contém a semente de sua própria negação Podese dizer talvez que de acordo com sua própria autocompreensão os fundamentos do capitalismo coincidem em um grau extraordinário com o canteiro semeado para sua própria ne gação porém a própria semente é ao alheio ou seja a íilosoíia da história algo que foi gerado não pelo funcionamento de quaisquer instituições econômicas mas por um ato de especulação humana Talvez Smith deva ser culpado por não ter extraído uma metafísica dessa sabe doria da natureza que acreditava orientar o processo humano e à qual tantas vezes recorre uma metafísica que daria historicidade ao processo de encerramento de toda a carreira humana Talvez devesse ter percebido a força de uma metáfora como a sa bedoria da natureza e passar a postular sabedorias ainda mais elevadas pelas quais as próprias leis da natureza podem ser controladas Entretanto nunca chegou a esse pon to pois não questionou a crença de que existe um horizonte imutável dentro do qual ocorrem todas as mudanças esse horizonte ou estrutura sendo a Namreza A íilosoíia da história será tema de capítulos posteriores Pelo presente podemos observar que quando os ensinamentos de Rousseau acerca da maleabilidade da nam reza humana receberam o seu devido cultivo e ampliação demonstraram ser o pouco fermento que fez crescer toda a massa Os paradoxos e as irregularidades que o capita lismo liberal estava disposto a tolerar devido à sua origem na natureza do homem não poderiam ser tolerados pelo século XDC uma vez que este já não via a necessidade de tolerálas A natureza que dá origem a inconveniências deve afestarse e se submeter a ser suplantada pela lei da mudança de namreza isto é a História É essa fissura estrei ta mas abismai que divide o capitalismo do comunismo L e it u r a s A Smith Adam An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations Book I chaps ix xi intio e conc book V chap i B Smitb Adam An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations Book III book IV chaps i ii vii 586 H istória da Filosofia P o lítica Leo Strauss e Joseph Cropsey T h e F ederaust O Federalista 17871788 Imediatamente após a convenção federal de 1787 Alexander Hamilton dedi couse à difícil tarefe de assegurar que Nova York ratificasse a Constituição proposta Como parte de sua estratégia planejou uma série de ensaios curtos para expor as virtudes do documento Hamilton obteve a colaboração de John Jay e ironicamente só após vários outros declinarem seu convite de James Madison também The Fede ralist O Federalista foi publicado cm série em grupos de dois e quatro ensaios na imprensa da cidade de Nova York Os ensaios pretendiam influenciar a eleição de delegados para a convenção estadual de ratificação e uma vez que para esta eleição foi adotado o sufrágio masculino universal os ensaios eram portanto endereçados ao Povo do Estado de Nova York Porém O Federalista era destinado ainda a instruir e inspirar os delegados fevoráveis e a persuadir ou acalmar os delegados desfevoráveis à convenção Para tanto mesmo antes da conclusão da publicação seriada na imprensa os ensaios foram publicados como livro que foi distribuído aos principais defensores da Constituição em todo o país Assim O Federalista dirigiase ao mesmo tempo ao mais amplo eleitorado e aos homens capazes e educados que de fato iríam determinar o destino da Constituição Parece evidente que seus autores também miravam além da presente batalha e escreveram com vistas a influenciar as gerações futuras ao fezer de sua obra o comentário mais abalizado sobre o significado da Constituição Apesar de O Federalista ser uma obra política de alcance mais imediato ou seja um trabalho de propsanda política cala fundo também com os homens pensantes da época e de íora pois tem como meta a solidez de seus argumentos Complicase ainda mais a leitura de O Federalista pelo feto de ter sido escrito por dois homens podese descartar aqui a pequena contribuição de Jay cujas opiniões individuais e carreiras subsequentes divergiram de forma radical Este feto encora jou muitos leitores a identificar na obra inconsistências fundamentais onde estas não 1 Alexander HamUton 175751804 James Madison 17511836 John Jay 17451829 2 Há muito é controversa a autoria dos 85 artos De acoido com a convincente atribuição de Dou glass Adair HamÜton escreveu 51 artigos 1 691113 1517 2136 5961 6585 Madison 29 10141820 37586263 e Jay 5 2564 existem na suposição de que uma obra escrita em conjunto por Hamilton e Madi son seria necessariamente contraditória Tal como a crença de que O Federalista seria apenas uma obra propandística a crença de ser uma obra inconsistente de autores incompatíveis desvalorizou O Federalista como um trabalho teórico O Federalista no entanto apresentase como a obra de um certo Públio o qual afirma fornecer uma descrição consistente abrangente e verdadeira da Constituição e do regime que foi concebida para produzir Como será visto Públio cumpre o que promete Além do fato de que Hamilton e Madison possuíam a motivação e a capacida de para produzir um Públio de impressionante consistência O Federalista conta com um personagem literário que lhes possibilitou concordarem com bastante íàcilidade a respeito de grande parte do que precisava ser dito O Federalista trata sobretudo de questóes de fiito Apesar de suas diferenças Hamilton e Madison estavam de acordo quanto ao que fizera a convençáo e que tipo de país disso resultaria Da mesma forma eralhes íacil concordar a respeito de como fazer a Constituição parecer mais atraente ou menos nociva para aqueles que pretendiam convencer O Federalista é um comentá rio e uma súplica em prol da Constituição Desta forma seus autores náo estavam em princípio obrigados a lidar com o assunto mais controverso ou seja o padrão pelo qual eles próprios avaliavam a Constituição como boa Naturalmente isto não significa que Públio seja superficial ou que diga somente o que seus leitores desejam ler Na verdade Hamilton e Madison vão muito longe como Públio ao sugerir a íúndamentação teóri ca sobre a qual deve erguerse uma sábia aceitação da Constituição É isto o que faz de O Federalista uma obra esclarecedora Porém o caráter literário de O Federalista não os obrigava a avançar tanto na discussão que os forçasse a desnudar suas diferenças mais relevantes Infelizmente o que ajuda a explicar a consistência de Públio também explica por que O Federalista não atinge o nível das grandes obras em que as questóes teóricas são levadas a suas devidas conclusões ou seja seu alcance mais profimdo Uma última observação sobre Públio logo conduz aos ensinamentos de O Federa lista Sabemos que Hamilton levava a sério seus pseudônimos pois tinham a finalidade de revelar a natureza de seus argumentos Pouco antes do aparecimento de Públio fora iniciada uma série de ensaios em apoio à Constituição escritos sob o pseudônimo de César É freqüente pensarse que Hamilton era também César mas as atuais pes quisas demonstram ser isso pouco provável Seja como for os dois primeiros ensaios de César foram muito mal recebidos e a série foi abandonada por seu autor A escolha de Públio é especialmente reveladora quando comparada aos malfadados ensaios de César quer estes últimos tenham sido escritos por Hamilton ou nâo Públio como sabia o leitor instruído era o Públio Valério Publícola descrito em Plutarco Públio tal como César era um homem forte mas havia entre eles uma enorme diferença César destruiu uma república enquanto Públio salvou uma república Ao contrário 588 H istória da Filosofia P olítica s Leo Strauss e Joseph Cropsey Ver o excelente ensaio de Douglass Adair A Note on Ccrtain of Hamiltons Pseudonyms Nota sobre alguns dos pseudônimos de Hamilton WilUam and Mary Quarterly third series XII abril 1955 de César Públio deu sua contribuição para a república de um modo compatível com a sobrevivência desta Trouxe em seu socorro qualidades que a própria república nâo é capaz de fornecer mas a deixa essencialmente intacta após sua contribuição Não importa quem tenha sido seu autor os ensaios de César estavam destinados ao fra casso Na verdade a Constimição não era cesarista e o público a ser persuadido era naquele momento proíundamente hostil a um apelo cesarista O caráter de Públio pelo contrário era perfeitamente adequado à situação e caracterizava com exatidão os argumentos de O Federalista Públio possuidor de uma capacidade e conhecimentos que o próprio povo não é capaz de fornecer traz ao povo a constituição que preservará ou melhor instituirá com surança a república No primeiro ensaio Públio apresenta a organização da obra 1 y4 utilidade da UNIÃO para a vossa prosperidade poUtica 2 A insuficiência da atual Confitderação para preservar esta União 3 A necessidade de um governo pelo menos com vigor similar ao do proposto para atingir tal oljetivo 4 A conformidade da Constituição proposta com os verdadeiros princípios do gpvemo repuhUcano 5 Sua analogia com a Constituição de vosso próprio Estado e finalmente 6 A segurança adicional que sua adoção propiciará à preservação desta fôrma de governo à liberdade e à propriedade Públio acha então necessário explicar a ordem de sua obra Talvez se acredi te supérfluo oferecer argumentos para provar a utilidade da UNIÂO afirma já que se acredita que não possui adversários Públio justifica o seu tema de abertura com base no feto de que na verdade existem adversários secretos Entretanto além desta justificação peculiar é possível en xei outros motivos de Públio para a organização de sua obra Em particular está daro o motivo por que principia com a utilidade da união Por um lado começa com o pé direito por iniciála com um assunto que goza da concordância de quase todos os seus leitores Além disso uma declaração adequada e integral acerca dos fins como é sempre o caso de uma dedaração completa dos íins termina por conter as mais claras implicações do que deve ser feito para atingir esse íim Portanto no momento em que Públio termina de descrever o valor da união terminou também de apresentar todos os seus argumentos principais acerca de questões debati das no amistoso contexto dos íins indiscutíveis Quando explanados de forma correta é palpávd a inconsistênda dos íins da união com a imbecilidade isto é a firaqueza da Confederação os quais exigem um governo vigoroso Públio quer extrair uma concordância geral para a proposição abstrata de que a união é boa e a Confederação inadequada aquiescência esta que é necessária para sustentar a União Públio é capaz de converter a concordância geral em consentimento inteligente e detalhado ao instruir seus leitores sobre o que está logicamente implícito em seu vago compromisso para com a União Desta forma os três primeiros ramos da obra de Públio argumentam assim The Federalist 5 8 9 lhe Federalist ed Henry Cabot Lodge introduction by Edwatd Mead Earle New York Modem Library 1941 1 p 6 itálicos no original Federalist 15 p 89 desejar a união é necessariamente desprezar a presente Confederação e dar boasvindas ao vigoroso governo de que a união necessita Resta apenas demonstrar que a união sob este vigoroso governo a Constituição proposta é satisfatoriamente lepublicana Por conseguinte Públio precisa ensinar uma maneira republicana mais completa do que até então se pensou ser possível para que se desfrute a utilidade da união Como se verá esta constitui ao mesmo tempo a tateia política mais difícil de Pú blio bem como seus ensinamentos teóricos mais importantes Um exame mais atento da organização da obra revela sua importância Na verdade a obra se divide entre os seis ramos em investigação da seguinte forma 1 a utilidade da União 14 ensaios 2 a insuficiência do Confederação 8 ensaios 3 a necessidade de governo vigoroso 14 ensaios 4 o republicanismo da Constituição 48 ensaios 5 e 6 1 ensaio Ao c h c ao último ensaio Públio afirma ter tão plenamente antecipado e esgotado os dois últimos ramos que apenas reúne os argumentos apropriados e conclui a obra Portanto na verdade o livro é dividido em quatro subtítulos Mas a organização pode ser explicada de forma ainda mais simples Como foi visto os três primeiros subtítu los tratam de um tema a questão política imediata do que deve ser feito a respeito da união mostrando por que é boa o que é inadequado nos Artigos da Confederação e que ripo de governo será adequado para a meta da união A Constimição proposta sendo adequada para esses fins mdo o que resta é mostrar que esta Constituição está em conformidade com os verdadeiros princípios do govemo republicano E esta é a tarefa do quarto e de lon o maior ramo da investigação Assim a organização dos ensaios exposta em sua forma mais simples é união e republicanismo A organização dos en saios transmite perfeitamente os ensinamentos de O Federalista um novo e verdadeiro republicanismo que envolve de modo cmcial uma nova visão do problema da união Os americanos já viviam sob governos republicanos e sob uma união confederada destas repúblicas mas na opinião de O Federalista o princípio dessas repúblicas e sua união confederada eram velhos e fálsos A Confederação portanto estava necessaria mente naufirsando e as repúblicas individuais tendiam para doenças mortais que por toda parte fizeram perecer governos populares A Constituição contém o novo e ver dadeiro princípio da união republicana que resgatará o govemo republicano na América A orgulhosa conclusão do íamoso décimo ensaio resume esse ensinamento Assim dis pomos no âmbito e na estmtura adequada da União de um remédio republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo republicano grifo nosso O Federalista é notável pela conjunção que obtém entre uma discussão das questões mais urgentes da política e de questões teóricas Isso é mais evidente no tratamento da união republicana A correta oianização da união era o principal problema político do 590 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey A oianização dos ensaios é revelada com perfeição no Federalist 39 que defende a Constituição com dois princípios fundamentais de que é suficientemente republicana e suficientemente fedeial isso que neste ensaio associa as duas principais divisões do Uvro e em certo sentido constitui seu ensaio central a questão é aparada até cbegar à sua essência a união e o republicanismo Federalist 10 p 5354 dia no entanto o que O Federalista tem a dizer a respeito desta questão prátíca baseiase em seus mais novos e relevantes ensinamentos teóricos A oposição à Constituição tam bém repousava sobie uma visáo teórica De feto uma das mais marcantes características do debate sobre a Constituição era a extraordinária intrusão de considerações teóricas na resolução da questão prática O grande ataque sobre a Constituição era a acusação de ser antirrepublicana a nova união Determinadas características da Constituição eram consideradas especificamente antirrepublicanas mas a principal investida da oposição resultava do aigumento mais geral de que só os governos estaduais não um enorme go verno central poderia ser efetivamente livre e republicano Esta opinião decorria de uma crença amplamente difundida popularizada por meio da íbrma como se entendida por Montesquieu de que somente países pequenos podem desfrutar do govemo republica no O raciocínio que O Federalista empregava em contrapartida era o que se segue Necessariamente os países grandes caem no despotismo Por um lado precisam do governo despótico como mera conseqüência de suas grandes dimensões em suas subdivisões a autoridade política entra em colapso sem um governo mais forte do que permite a forma republicana Além disso países grandes geralmente ricos e populosos são belicosos ou vêm a sêlo por conta de vizinhos invejosos a realização das guerras inexoravelmente alimenta o governo despótico E mesmo se os países grandes tentas sem ser republicanos não teriam sucesso Para preservar seu governo o povo deve ser patriota vigilante e informado Isso exige que o povo dê cuidadosa atenção às questões públicas e que os assuntos do país estejam em uma escala compatível com a compreen são popular Potém nos países grandes o povo fica confuso e se torna apático devido à complexidade dos assuntos públicos e enfim absorvemse em seus interesses pessoais Finalmente mesmo os cidadãos alertas de uma grande república precisam permitir que de feto alguns poucos homens conduzam os negócios públicos afestados das localidades e dotados de instrumentos de coerção seria inevitável que os representantes de confiança subjugassem o governo republicano às suas próprias paixões e interesses Tal era a visão tradicional e inabalável da necessidade de que as repúblicas fossem pe quenas Decorria daí que essas pequenas repúblicas só poderiam combinarse para ob jetivos limitados em confederações que respeitassem o primado dos estados membros No entanto seus oponentes entendiam a Constituição não como uma confederação propriamente mas como algo calculado em última análise para fezer dos estados um govemo consolidado ou seja uma grande república por conseguinte a Constituição era necessariamente antirrepublicana Ou seja a Constituição era denunciada como algo fundamentado em uma visão nova e falsa da união republicana Assim é compreensível que O Federalista peça a seus leitores que não deem ouvidos à voz que com petulância lhes diz que a forma de governo recomendada para a sua adoção é uma novidade no mundo político que nunca teve ainda liar nas teorias dos mais impemosos especuladores que precipitadamente ousa fezer o que é impossível realizar T h e F e d e r a u s t 5 9 1 8 FedentUst 1 4 p 8 4 Enquanto os leitores são convidados a náo dar ouvidos O Federalista não nega a acusação de novidade pelo contrário exalta a novidade como a glória dos povos da América Felizmente para a América ciemos que paia toda a raça humana os líderes da revolução não temeram aíâstarse de velhas formas mas ao contrario suiram um novo e mais no bre curso Realizaram uma revolução sem paralelo nos anais da sociedade humana Criaram tecidos de governo que não têm modelo na íàce do globo Elaboraram o projeto de uma grande Confederação que cabe aos seus sucessores aperfeiçoar e perpetuar Contudo somos informados de imediato devemse esperar algumas felhas nes sas realizações Ocorre que mais erraram na estrutura da União Contudo isso era esperado jporque foi este o trabalho mais difícil de realizar grifo nosso A correta união republicana portanto é tarefa mais difícil de realizar do que uma revolução sem paralelo e que a criação de governos estaduais sem modelo prévio Porém a Constitui ção realizará esta tareia tão árdua Cumprirá e portanto salvará o novo e mais nobre modo de vida que a América inaugurou para o mundo Esta União mais perfeita repousa sobre um republicanismo novo e verdadeiro que é tarefa de Públio explanar Públio coloca sua reivindicação mais importante na conclusão do femoso déci mo ensaio apresenta um remédio republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo republicano Mais uma vez Públio elogia Thomas JefFerson por exibir igualmente um fervoroso apego ao governo republicano e uma visão esclarecida das perigosas propensóes contra as quais deveria guardarse Assim Públio declara ser um partidário incondicional porém sereno do republicanismo Contudo a palavra republicano não nos diz o suficiente sobre o tipo de regime que Públio advoga Isto é suscita imediatamente a pergunta que tipo de república Como pode a república de Públio encaixarse na tradicional distinção dos três tipos de governo por um poucos ou muitos A resposta é óbvia Públio defende uma república democrática Na verda de o que é digno de nota é a intensidade que Públio atribui à palavra república nos trechos chave um conteúdo exclusivamente democrático Por exemplo o princípio republicano habilita o partido majoritário a derrotar através de votação regular os projetos inconvenientes de uma fecção minoritária E esta deve ser uma maioria derivada do grande corpo da sociedade nâo de uma proporção insignificante ou uma classe favorecida da mesma Embora seja verdade que a palavra república 592 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 9 Ibid p 85 10 Federalist 49 p Ò17 11 Federalist 10 p 57 Federalist 39 p 244 Ver também Federalist 52 p 341342 A definição do direito ao suírio é reputada com toda justiça como um artigo íundamental do governo repu blicano Deverá ser a mesma em relação aos eleitores do ramo mais numeroso das lslaturas estaduais Não se pode temer que o povo dos Estados alterarão esta pane de suas constituições de tal modo que venham a restringir os direitos assurados a eles pela Constituição federal O sufrio nacional é feito tão democrático quanto o tão democrático su fixo nos Estados e não há possibilidade de que o sufrágio se torne menos popular sempre significou a ausência da monarquia e implicou a relevância de todo o corpo dos cidadãos não implicava o sufrio masculino universal ou quase universal o uso anterior da palavra sempre distinguiu entre repúblicas aristocráticas ou oligárquicas e repúblicas democráticas Porém a ideia exclusivamente democrática de Públio acerca do republicanismo obrigao a negar a aplicação explícita da denominação república a todos os regimes aristocráticos e oligárquicos outrora assim chamados Em suma na medida em que aceita a antiga tríplice distinção entre os regimes O Federalista trata seu regime republicano como pertencente ao modo irretorquivelmente democrático de governar Por mais que o regime que propõe se afaste da namreza de uma demo cracia pura O Federalista enfática e corretamente nega que esse afastamento retire a constituição da classe dos governos democráticos e a coloque na classe dos governos monárquicos ou aristocráticos O novo e verdadeiro republicanismo de Públio constitui portanto um ensina mento novo e verdadeiramente democrático Por muitos motivos que não podem ser discutidos aqui tem sido obscurecido o caráter democrático de O Federalista e da Constituição que divulgou Desta forma perdese o que há de mais importante em O Federalista É necessário e conveniente no entanto examinar um argumento muitas vezes utilizado em apoio à visão de que a Constituição de Públio não estabeleceu um regime democrático Em um famoso trecho do décimo ensaio acreditase ter sido o próprio Públio radical ao distinguir entre as repúblicas e as democracias e por con sjiinte ter ele mesmo retirado a Constituição da classe democrática Não é muito exata esta conclusão Públio distingue uma república de uma democracia purafi o que é algo muito diverso Ao dizer uma democracia pura afirma Públio referirse a uma sociedade que congrega um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente Da forma como Públio compara as duas uma república diverge de uma democracia pura apenas na medida em que é um governo no qual tem vigência o esquema de representação Esta e somente esta é a única dis tinção que fãz Públio O sinônimo perfeito para o uso de Públio da palavra república é portanto a democracia representativa O princípio da representação no entanto introduz uma impureza na forma republicana do ponto de vista da democracia pura Contudo isso não significa que as repúblicas se oponham às democracias quanto a sua espécie ao contrário por assim dizer as repúblicas são democracias impuras Sobre a questão crucial sobre onde se aloja a soberania ou seja com os muitos tanto as repúblicas como as democracias puras pertencem a uma classe mais abran gente A aparente dificuldade levantada pela distinção entre repúblicas e democracias puras feitas por O Federalista é resolvida quando percebemos que esta classe maior ou gênero é o que Públio denomina governo popular E com governo popular Públio referese ao que se entende hoje pelo termo democracia Ou seja Públio entende que o governo popular inclui todas as formas de governo por muitos distintas das várias The Federalist 593 12 Federalist 39 p 243 13 Federalist 10 p 58 grifo nosso formas de governo por poucos ou por um Podemos procurar ajuda para compreender Públio em Madison e Hamilton individualmente A respeito da questão crucial do ló cus da autoridade política tanto Públio como Madison e Hamilton referemse a repú blica democracia e govemo popular alternadamente No décimo ensaio Públio fida de forma idêntica sobre um remédio republicano para a doença da íacção e um remédio que preservará o espírito e a forma de govemo popular Em 6 de junho na convenção fedenJ Madison discutiu esse mesmo remédio como a única defesa contra os incon venientes da democracia consistente com a forma democrática de govemo Hamilton chamou a república criada pela Constituição de uma democracia representativa Assim sendo devese entender que Públio pretendia na írase bem torneada de G L Pierson aplicada a Tocqueville fiizer a democracia s r a para o mundo É desta for ma que deve ser entenda a maior reivindicação de Públio Salvar o govemo popular de suas doenças mortais c ao mesmo tempo preservar tanto o espírito quanto a forma de govemo popular é o grande objetivo de nossas investigações Públio alega tesgatar esta forma de governo do opróbrio em que há tanto tempo labuta e portanto recomendála à estima e à adoção da humanidade O precedente não se destina no entanto a desvalorizar a importância da dis tinção de Públio entre república e democracia pura Pelo contrário a propriedade peculiar de uma república que é uma democracia representativa é o íúndamento dos ensinamentos de O Federalista promete a cura pela qual estamos procurando Mas o caráter democrático do republicanismo de O Federalista deve ser enfatizado a fim de se apreender sua tese central Públio a l curar os males até então incuráveis do govemo popular enquanto se mantém perfeitamente coerente com o princípio do govemo popular isto é alojando a soberania com os muitos Públio auxilianos a identificar o que há de novo em seus ensinamentos No déci mo quarto ensaio que dá sjuimento a seu ataque ao equívoco que limita govemo re publicano a um pequeno distrito Públio explica por que os homens por tanto tempo cometeram tal erro O que Públio agora sabe acerca do republicanismo estava até então vedado aos homens tanto pelos exemplos antigos como pelos modernos As possibilida des latentes na forma republicana popular encontravamse veladas porque a maioria dos governos populares da Antuidade eram da espécie democrática Enquanto na Europa moderna à qual devemos o grande princípio da representação náo se encon tra qualquer exemplo de um governo totalmente popular e baseado ao mesmo tempo totalmente nesse prindpio Se a Europa tem o mérito de ter descoberto esse grande poder mecânico no governo pela simples ação do qual podese congregar a vontade do maior corpo político e sua íbrça dirigida a qualquer objeto que o bem público e x a América 5 9 4 H is t ó r ia d a F ii o s o f i a P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Alexander Hamilton Writinff ed Henry Cabot Lodge 12 v New York Puttuun 1904 II 92 itálicos no original 15 Fedentlist 10 p 58 16 Ibid p 59 17 FedemUst 14 p 80 pode reivindicar o mérito de fezer da descoberta a base de repúblicas náo mistas e exten sas Devese apenas lamentar que nenbum de seus cidadáos deveria desejar privála do mérito adicional de exibir sua plena eficácia no estabelecimento do sistema abrangente ora sob sua avaliaçáo Muitos foiam os governos totalmente populares que tiveram os antigos contu do na maior parte eram estes da espécie democrática pura isto é do tipo direto náo do tipo representativo Os europeus possuem governos em parte ou totalmente re presentativos mas nenhum ao mesmo tempo totalmente representativo e totalmente do tipo popular Coube à América inovar na combinação governos totalmente popu lares e totalmente baseados no princípio da representação A palavra não mista deve ser lida com toda a força de sua expressão Os estados americanos não eram regimes mistos como estados totalmente populares não contavam com uma significativa mis tura de elementos aristocráticos ou monárquicos E não eram pequenas repúblicas no sentido tradicional do termo pois já eram repúblicas abrangentes Tudo que é neces sário conclui Públio é demonstrar a eficácia plena do princípio representativo na república não mista e na república ainda mais abrangente proposta pela Constituição No entanto é enganoso o brando discurso de Públio como vimos o que ainda resta a ser feito é a tareia mais dificil de realizar Compreendese que Públio trate com delicadeza o orgulho e o carinho de seus lei tores para com seus governos estaduais Os governos estaduais são bons parece afirmar e a Constimição será ainda melhor Assranos de que os valiosos aperfeiçoamen tos introduzidos pelas constituições americanas nos modelos populares tanto antigos como modernos não poderão certamente ser apreciados em demasia Esta fiase pode ser lida de duas maneiras é incerta a quantidade de elogios que propõe Como de íato avalia Públio os valiosos aperfeiçoamentos no governo estadual Os governos estaduais apesar de todo o seu aperfeiçoamento íracassam inteiramente na resolução do problema das fecções que é o problema do governo popular Os governos estaduais naufixigarão contra esta rocha tal como naufiragaram todas as democracias anteriores Soçobrarão porque não possuem um número de cidadãos e extensão territorial sufi cientes Sâo repúblicas abrangentes mas não são suficientemente grandes Os governos populares da Antiguidade obscureceram as possibilidades latentes no republicanismo informamnos porque feltava à maioria deles o princípio representa tivo Entretanto feltava algo mais na Antiguidade Assim sendo Públio volta a esta mes ma pergunta muitos ensaios adiante Agora avisa que a posição acerca da ignorância dos governos dav tiguidade sobre o tema da representação não é de forma alguma ver dadeira exatamente na amplitude que em geral lhe é conferida Públio fornece agora uma lista considerável de instituições representativas da Antiguidade De íáto nenhuma das antigas repúblicas baseavase inteiramente no princípio representativo tal como o The Federaust 595 18 Ibid p 81 itálicos nossos 19 Federalist 10 p 54 20 Federalist 63 p A2 fazem os estados americanos O que era um defeito Era porém um defeito trivial sofriam eles de um mal muito pior Náo se pode crer que qualquer forma de governo representativo poderia ter tido sucesso dentro dos estreitos limites ocupados pelas de mocracias da Grécia A utilidade do princípio representativo portanto que oferece a cura pela qual buscamos depende inteiramente do tamanho do país Mesmo os estados americanos relativamente grandes náo serão suficientes só uma união da magnitude e natureza previstas pela Constituição resolverão o problema do governo popular Os amigos iluminados da liberdade teriam de abandonar a causa do governo republicano como indefensável se não tivesse sido encontrada esta nova solução A solução reside na ciência da política que como a maioria das outras ciências tem tido grande melhora É agora bem compreendida a eficácia de vários princípios que eram de todo desconhecidos ou imperfeitamente conhecidos pelos antigos A distribuição regulai do poder em departamentos distintos a introdução de freios e contrapesos legislativos a instituição de tribunais compostos de juizes que mantêm seus cargos em bom comportamento a representação do povo na legislatura pelos deputa dos eleitos pelo próprio povo tratase de descobertas totalmente novas ou fizeram seu principal progresso em direção à perfeição nos tempos modernos São os meios e meios poderosos pelos quais podem ser mantidas as excelências do governo republicano e as suas imperfeições diminuídas ou evitadas A este catálogo de circunstâncias que tendem à melhoria dos sistemas populares de governo civil arrisco por mais novo que possa pare cer a alguns acrescentar mais um com um princípio que fbi feito a base de uma objeçáo para a nova Constituição quero dizer o ALARGAMENTO da ÓRBITA dentro da qual tais sistemas devem revolver quer no que respeita às dimensões de um único Estado ou à consolidação de vários pequenos Estados em uma grande Confederação Públio é assim o portavoz da nova ciência da política cujos mestres anterio res não menciona tendo feito ele mesmo um importante acréscimo para a ciência ou seja a possibilidade de uma república muito grande Além disso tudo nessa moderna ciência da política é visto agora sob uma ótica democrática se os antigos mestres da nova ciência só tendiam em uma direção democrática ou sugeriram regimes só em parte democráticos Públio toma a nova ciência da política e a amplia e a usa para o aperfeiçoamento de um sistema de governo civil totalmente popular Por fim através de Públio chegou o momento para a nova ciência deixar de ser apenas um ensinamento e se tornar uma grande realidade política Públio concebe o problema do governo popular representativo como sendo tríplice Primeiro existe a possibilidade de que o povo perca o controle de seu governo de que os governantes representativos subvertam o regime Segundo há a possibilidade de que as maiorias populares por intermédio de representantes submissos governem de modo opressivo Terceiro existe a possibilidade de que as maiorias por intermédio de representantes submissos não governe de modo opressivo mas de modo insensato deixando de fazer o necessário para manter a força e a estabilidade do governo 596 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 21 Ibid p 413 22 Federalist 9 p 4849 Proteger o povo é a tarefe mais simples Todo o poder do govemo proposto estará nas mãos dos representantes do povo Os governantes de feto não terão autorida de em última análise exceto por serem os objetos da escolha popular Esta ressalva garante contra a subversão pelos governantes representativos deixar os representantes totalmente dependentes do povo é a segurança essencial e afinal a única eficaz para os direitos e privilégios do povo que é possível na sociedade civil Embora o regime seja agora totalmente popular e totalmente representativo não há nada de novo até aqui a mais antiga reivindicação da democracia é que o direito de sufiágio resguarda a socie dade contra a opressão dos seus governantes A nova ciência da política porém ofeiece uma garantia adicional para os direitos do povo A separação de poderes a distribuição rqlar do poder em setores distintos diminui a ameaça de que os governantes sejam capazes de tramar e por em prática esquemas de opressão A liberdade do povo em geral e os direitos dos indivíduos são garantidos pela improbabilidade de uma combinação mercenária e pérfida dos diversos membros do governo pois se ergue sobre íúndações diferentes como bem admitirão os princípios republicanos e ao mesmo tempo presta contas à sociedade sobre a qual estáo colocados Era isso o que buscava Jefferson com a separação de poderes pois temia acima de mdo a opressão do povo por seus governan tes Entenderemos melhor como a separação de poderes fornecerá esta proteção quando virmos como a separação de poderes atenua os outros males que temia Públio Não basta argumenta Públio resguardar a sociedade contra a opressão dos gover nantes representativos é necessário também resguardar uma parte da sociedade con tra a injustiça da outra parte Em palavras simples o problema é a proteção contra maiorias populares arrogantes Este é um problema muito maior do que a traição inconstitucional de representantes porque a forma de governo popular permite que uma maioria popular execute e mascare sua violência sob as formas da Constimiçáo Nesta sentença Públio exibe com ousadia a namreza democrática do regime que pro põe os muitos governam e portanto podem fezer coisas opressivas dentro da legali dade Ao contrário do despotismo eletivo de Jefièrson esse mal ocorre não quando os representantes são infiéis aos seus constituintes mas quando atendem os desejos opressivos das maiorias populares com excesso de fidelidade O grande perigo que percebe Públio é que as maiorias populares exigirão medidas opressivas e que seus representantes eleitos as atenderão com excesso de préstimo Públio procura resolver o problema em ambos os níveis entre o povo e entre os seus representantes A mul tiplicidade de facções é a sua famosa resposta para o problema da maioria opressora em si Conmdo temos de considerar primeiro como a separação de poderes resolve o problema ao nível dos representantes 23 F ederaliali p 173 itálicos nossos 24 Fedemlist57ç37 25 Fedemlist28p73 26 Federalist 55 p 364 27 Federalist 51 p ÒÒ9 28 Federalist 10 p 57 The Federaust 597 Públio está ciente de duas outras maneiras respeitáveis de impedir as maiorias de oprimirem as minorias Uma delas é criar na comunidade uma vontade independente da maioria isto é da própria sociedade No entanto tratase esta da solução monár quica que Públio rejeita A outra tem seu exemplo na república romana onde a autorida de legislativa era dividida em duas legislaturas distintas e independentes permitindo que a minoria patrícia resistisse constitucionalmente à maioria plebeia Podese tomar este exemplo como ilustrativo da ideia tradicional da república mista que é excluída na república não mista de Públio onde toda a autoridade será derirada e dependente da sociedade Não se pode resolver o problema das maiorias opressoras em um regime totalmente popular por meios pertencentes aos regimes monárquicos ou mistos Públio encontra na nova ciência da política que não é necessariamente democrática uma so lução que pode ser enxertada na democracia a separação de poderes Talvez haja mesmo um parentesco mais proíúndo entre a separação de poderes e a democracia Seja como for Públio emprega a separação de poderes como íãz com todos os demais elementos da nova ciência de maneira a preserrar o espírito e a íbrma do gpvemo popular A separação de poderes atenua o mal das maiorias opressoras no nível governa mental Em uma república sem separação de poderes onde um único corpo de repre sentantes executa todas as íunçóes de governo nada haveria na máquina do governo que pudesse deter a vontade de uma maioria opressiva popular Contudo é exatamen te isso que a separação de poderes tem como meta realizar criar uma distância entre o desejo e o ato da maioria A separação de poderes toma a antiga distinção entre as fun ções legislativas executivas e judiciais do governo e fez uma distinção entre os funcio nários do legislativo do executivo e do judiciário Isto signiíica portanto criar alguns representantes que resistirão a desejos equivocados do povo a que outros representan tes cedem passivamente ou que chegam mesmo a incitar com demagogia Quando o poder de governar é distribuído a departamentos distintos é daro que são os repre sentantes que podem resistir e que são aqueles que irão ceder às demandas populares No governo republicano a autoridade legislativa necessariamente predomina O departamento legislativo como demonstrou a triste experiência dos governos esta duais tem em toda parte alargado o âmbito da sua atividade e arrebanhado todo o poder para seu frenético vórtice Por assim dizer é contra o legislativo que a força da separação precisa ser dirigida em particular A grande sirança contra uma con centração gradual dos vários poderes no mesmo departamento consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à invasão dos outros 598 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 29 Federalist 51 p 339 30 Federalist 34 p 203204 31 Federalist 5 p 339 32 Ibid p 338 33 Federalist 4 p 322 34 Federalist 51 p 337 Públio tinha motivos para expressarse de modo brando mas é claro o que quer di zer O executivo e o judiciário devem possuir os meios e os motivos pessoais para resistir ao legislativo Por exemplo quando se apresentam as ocasiões em que os interesses do povo estão em desacordo com suas inclinações ou quando os lisladotes que nor malmente têm o povo de seu lado estão empenhados na opressão então o executivo deve estar em condições de ousar agir com vigor e decisão de acordo com sua própria opinião A separação de poderes cria autoridades que apesar de sua dependência do povo e sua íálta de qualquer mandato independente pata governar têm todavia a pro babilidade de resistir e deter o legislativo quando este parece ceder às exigências equivo cadas da população os mestres constitucionais de todos os três ramos do govemo É fécil para Públio mostrar como o executivo e o judiciário terão os meios para rechaçar uma legislação opressiva o veto a iniciativa legislativa do presidente seu cri tério na aplicação das leis a revisão judicial e o disceririmento dos juizes no julga mento de casos individuais todos esses artifícios dão aos outros dois ramos os meios constitucionais para temporariamente anular ou moderar uma legislação opressiva No entanto é mais difícil perceber por que o executivo e o judiciário terão motivos pessoais para resistir ao legislativo Por que colaborarão com o legislativo nas boas ações colaboração sem a qual o governo seria reduzido à imbecilidade que Públio tanto desprezava e colidiria com o legislativo em suas más açóes Públio nos fomece duas razões Primeiro devese fezer com que a ambição neutralize a ambição O inte resse do homem deve ser ligado aos direitos constimcionais do lugar Se o governo foi devidamente organizado os moradores e os juizes defenderão seus cairos contra o legislativo porque o seu oIglho seu amor pelo poder ou fema ou até mesmo sua ava reza vai leválos a identifícar seus próprios interesses com a integridade de seus cargos Entretanto há aqui uma hipótese crucial Públio assume que a legislação opressiva necessariamente ou pelo menos em geral subtrai a dignidade dos cairos executivos e judiciais Públio parece pressupor que a legislação opressiva exige execução servil e adjudicação servil e que os executivos e os juizes servis não usufruem da dignidade de nenhum poder de nenhuma fíuiu e finalmente nem mesmo de recompensas pe cuniárias Por conseguinte Públio espera que o executivo e o judiciário por razões de interesse privado e paixão resistam ao legislador quando este for opressivo A sepa ração de poderes fornece à democracia governantes que sem os motivos tradicionais de distinção femiliar ou riqueza simplesmente por causa dos empregos que têm e seu apego a eles por autorrespeito tenderão a governar pelo maior bem da democracia O segundo motivo de Públio para crer que os outros ramos resistirão à lislação opressiva desejada por uma maioria popular é também baseado em sua suposição de que a legislação opressiva ordinariamente solapa a integridade dos cargos executivos e judiciais No entanto Públio parece assumir também que presidentes e juizes resistirão à legislação opressiva não apenas por causa do apego interessado a seus cargos mas The Federaust 599 35 FedemlistlX p 465466 36 Fedemlist5 p 337 também por um respeito decente para com o cumprimento de seus deveres Como homens razoavelmente decentes realizando uma tarefa terão motivos por se dizer motivos profissionais para resistir à legislação opressiva porque tende esta a violar as artes que servem e a subordinar os cargos executivos e judiciais Esta última reflexão permite compreender como Públio esperava que a separa ção dos poderes ajudasse a resolver o terceiro problema do governo popular não a opressão mas a inépcia do governo popular Mais uma vez Públio confronta a crítica tradicional ao governo popular por este entregar o governo nas mãos dos muitos o que quer dizer nas mãos dos ignorantes O próprio princípio da representação em si pode ser um passo na direção certa O efeito da representação pode ser aperfeiçoar e ampliar os pontos de vista público submetendoos a um corpo escolhido de cidadãos cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse do seu país e cujo patriotismo e amor à jusdça menos probabilidade terá de sacrificála a considerações temporárias ou parciais Pode muito bem acontecer que a voz pública pronunciada pelos representantes do povo será mais consonante com o bem público do que se pro nunciada pelo próprio povo convocada para tal fim Mas sabemos que Públio não conta muito com a sabedoria e a coragem do legis lador apenas São esses outros representantes do povo o executivo e o judiciário que são cruciais para elevar toda a representação do povo Observese que muito do que é dito aqui acerca da separação dos poderes aplicase também a freios e contrapesos legislativos ou seja os controles impostos pela existência do Senado O executivo e judiciário são eleitos e nomeados a alguma distância da opinião imediata do povo mas de modo democrático isto é náo com base em qualquer autoridade externa à soberania do povo Cumprem mandatos mais longos e atendem a distritos eleitorais maiores a natureza das suas funções inculca com mais força sobre eles a consciência do que é necessário no interesse do todo Passam a querer desempenhar bem suas tarefas A separação de poderes cria cargos que por si mesmos tendem a tornar os homens que os ocupam dignos dos cargos Além disso a separação de poderes ajuda a obter para o executivo e judiciário os homens mais propensos a desincumbiremse bem isto é influencia de modo benéfico a escolha da maioria A separação de poderes percebese fornece um excelente modo retórico para aqueles que se preocupam com a inépcia do governo popular Públio tem a coragem e o íato de que acreditou poder ousálo muito revela sobre sua audiência de pedir aos muitos que selecionassem como seus governantes homens que são supe riores a eles em sabedoria e virtude Todo povo deveria arregimentar como governan tes homens que possuem a maior sabedoria para discernir e mais virtude para procu rar o bem comum A separação de poderes fornece a Públio um quadro dentro do qual pressionar o povo na busca da sabedoria e da virtude em seus governantes Públio 600 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 37 Federalist 10 p 59 38 Federalist 57 p 370 pode apresentar o executivo e o judiciário e o Senado como portadores por assim dizer de uma lista de especificações do cargo qualidades que são necessárias para o de sempenho das funções e que se aproximam da sabedoria e da virtude É politicamente mais fácil e mais eficaz pedir ao povo que selecione o homem certo para a tarefe desig nada em particular um povo com o caráter comercial da América Mais dispostos a votar em homens superiores quando a superioridade é apresentada sob a forma de especificações do cargo o povo também é instruído sobre como escolher os melhores homens as especificações do cargo fornecemlhes uma espécie de lisu de verificação simples para guiar a escolha para homens melhores ao invés de homens piores Públio mostra como a separação de poderes os freios e contrapesos legislativos e inúmeros refinamentos práticos destes possibilitam pela primeira vez um sõlido regi me popular um sistema de governo popular que será menos opressor e mais sábio na arte de governar do que qualquer outro antes Porém é necessário admitir agora que essa conquista depende totalmente do último item na ciência de Públio a ampliação da õrbita republicana A separação de poderes é um aprimoramento do princípio representativo Não teria liar em uma democracia pura A separação garante contra esse acúmulo de todos os poderes legislativo executivo e judiciário nas mesmas mãos seja de um alguns ou muitos e seja hereditário autonomeado ou eleito os quais poderiam com justiça ser declarados a exata definição da tirania Contudo uma democracia pura pela definição de Públio é exatamente o acúmulo de todos os poderes nas mãos de muitos Por conseguinte é sõ em uma democracia representativa que os governantes podem ser separados em departamentos distintos Porém assim como não basta ter uma democracia representativa da mesma maneira não basta sequer ter representantes devidamente separados Deve ser lembrado que Públio afirmou que as pequenas e antigas democracias não poderiam ter sido auxiliadas por nenhuma forma de gover no representativo era letal a ausência das vantens de um extenso território e uma população numerosa O princípio representativo destinase a produzir governantes ca pazes de governar o povo melhor do que o povo pode governar a si mesmo diretamen te Entretanto nas pequenas repúblicas os governantes representativos encontramse tão de perto sob o escrutínio e a influência de uma maioria popular compacta que os representantes não constituem presença independente no regime mas apenas as ferramentas da maioria Por conseguinte o princípio representativo é inútil em uma pequena república Tampouco é a separação de poderes capaz de salvar a pequena república Ali a influência imediata de maiorias populares suficiente para intimidar um corpo representativo único também é suficiente para fezer de departamentos se parados meros isentes da vontade popular Somente quando há uma distância entre o povo e seu governo haverá essa diferença entre a autoridade suprema do povo e a T h e F e d e r a u s t 6 0 1 39 FedemUst 11 p 62 40 FedendistAj p 313 41 Ver também o Federalist 10 p 59 onde Públio observa que o efeito da representação pode ser invertido autoridade imediata de seus representantes que é a condição decisiva para as vanta gens fornecidas tanto pelo princípio da representação como pela separação de poderes Nem mesmo nas grandes repúblicas os estados mas apenas em uma república muito grande a união funcionará o princípio representativo e seu corolário a separação de poderes para o aperfeiçoamento dos sistemas populares de govemo civil O princípio representativo reforçado pela separação de poderes se destina a negar a autoridade do governo às maiorias populares opressoras após estas se terem formado No entanto Públio tinha consciência de que isso não era suficiente nem mesmo nas grandes repúblicas Se a maioria passa a ter a mesma paixão ou interesse opressores e os mantém por um período de apenas quatro a seis anos encontrará os meios para triunfar sobre a separação de poderes sobre os freios e contrapesos sobre o procedimento não tão difícil das emendas e sobre todos os mecanismos da Constitui ção Estes dispositivos foram projetados e poderiam ter sido concebidos apenas para resistir à vontade da maioria Não se trata de minimizar a importância das barreiras legais enorme é sua eficácia em moderar a força que Públio temia No entanto essa eficácia depende de um prévio enfraquecimento da força aplicada contra eles após a maioria ter sido desviada de seu esquema de opressão É por isso que Públio chama o problema da maioria popular em si de o problema do governo popular Desta forma Públio procura resolver o problema do regime opressor e insensato dos sistemas populares por meio da tentativa de lidar com a maioria popular em si Mais uma vez tudo depende da nova concepção de uma república muito grande e como veremos de um certo tipo de república muito grande O problema é debatido no famoso décimo ensaio sobre o problema da violência da facção Públio não está preocupado com o problema da facção em geral dedica apenas duas frases em todo o ensaio para os perigos de facções minoritárias O verdadeiro pro blema no governo popular é a fíicção majoritária ou mais exatamente a facção majo ritária ou seja a grande massa dos pequenos proprietários e dos sem propriedades Se o povo é o soberano os muitos são o soberano e os muitos podem desejar oprimir os poucos é dos muitos portanto de quem pode vir o maior dano Públio enfatiza um dano em particular aquele que resulta da luta entre ricos e pobres e que fez das de mocracias da antiguidade espetáculos de turbulência e contenção de curta duração O problema para o amigo do governo popular é como evitar a convulsão interna que ocorre quando os ricos e os pobres os poucos e os muitos como é seu costume atiramse às gargantas uns dos outros Sempre nos antigos governos populares os muitos armados com o poder político precipitaram tais convulsões Os muitos po dem ser desviados desse curso natural afirma Públio por um de dois únicos meios Ou se evita a ocorrência simultânea das mesmas paixões ou interesses na maioria ou esta maioria possuindo tais paixões e interesses concomitantes tem de ser tornada incapaz por seu número e situação local de tramar e executar esquemas de opressão 602 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 42 Federalist 10 p 58 Contudo bem sabemos que não podemos confiar nem nos motivos morais nem nos religiosos como meio de controle se tal maioria se íbrmar e conjiar sua ação A circunstância principalmente que irá proporcionar ambas as defesas contra as maiorias opressoras é o maior número de cidadãos e a extensão de território que pode ser compreendido dentro do âmbito de grandes governos republicanos Quanto menor a sociedade menor será o número de partidos e interesses distintos que a compõem quanto menos partidos e interesses distintos mais frequentemente se cons tituirá uma maioria do mesmo partido e quanto menor o número de indivíduos que compõem a maioria e menor o âmbito dentro do qual estão colocados mais fecilmente entrarão em acordo e executarão seus planos de opressão Ampliese essa área e teremos uma variedade maior de partidos e interesses tornase menos provável que uma maioria do todo possua um motivo comum para usurpar os direitos de outros cidadãos ou se tal motivo comum existe será mais difícil para todos que o sentirem descobrir suas próprias forças e agir em uníssono Em uma pequena república os pobres muitos percebemse como um único in teresse organizado contra o interesse único dos poucos ricos e consequentemente a política da pequena república é a política fetal da luta de classes Isso é o que importa aqui em relação à pequenez Na pequena república os muitos são distribuídos em apenas alguns negócios e profissões ainda mais podese sierir a pequenez do país torna instantaneamente visível para qualquer pessoa que estas poucas diferenças entre os muitos são triviais em comparação com a enorme diferença entre todos os pobres e todos os ricos Em uma pequena república as divisões entre os muitos são insuficientes para impedilos de conceber a sua condição em comum e unirse na luta fetal contra o inimigo comum Em uma grande república no entanto suigem distinções entre os muitos numerosas o bastante para causar cisões que impedem a formação e oiganiza ção de tais maiorias No entanto está claro o tamanho em si não é tão decisivo pode haver grandes países em que os pobres são indiferenciados pobres só de certas manei ras Apenas um certo tipo de grande república afesta a perspectiva do tipo certo de ci são Públio informanos onde isso ocorre O elenco de interesses corretamente divisivo emerge de necessidade nas nações civilizadas e divideas em diferentes classes movidas por diferentes sentimentos e pontos de vista Surpreendentemente tal como em Adam Smith nações civilizadas significa grandes nações dedicadas à vida comercial As di mensões da grande república oferecem um remédio para a doença republicana apenas se a grande república for também uma moderna república comercial O remédio republicano de Públio depende inteiramente de consuir o tipo cer to de cisões políticas Ora Públio percebe mais de uma fonte de divisão por exemplo conta claramente com a presença de uma multiplicidade de seitas religiosas En tretanto sabese bem que costuma enfetizar principalmente o aspecto econômico A T h e F e d e r a l is t 6 0 3 43 Ibidp606 44 Federalist5p33934Q posse de diferentes graus e tipos de propriedade influencia os sentimentos e pontos de vista dos respectivos proprietários e produz a divisão da sociedade em diferentes interesses e partidos Embora outras causas de divisão não devam ser negligenciadas a fonte mais comum e durável das íacções tem sido a diversa e desigual distribuição da propriedade grifo nosso É importante observar que em ambas as declarações Públio distingue dois tipos de divisões que resultam da propriedade os homens dife rem de acordo com a quantidade de bens que possuem mas também de acordo com o tipo de propriedade que possuem A diferença entre ricos e pobres de acordo com a quantidade de bens é a base da fetal luta de classes nas pequenas repúblicas No entanto Públio enxerga na república comercial de grande porte a possibilidade de pela primeira vez subordinar a diferença quanto à quantidade de propriedades à diferença quanto ao tipo de propriedades Em tal república a luta de classes até agora fetal é substituída pela luta segura até mesmo salutar entre os diferentes tipos de interesses de proprietários Em tal república um homem julgará como mais importante para si mesmo aumentar as vantagens imediatas de seu negócio especializado ou de sua profissão especializada dentro de um negócio do que fevorecer a causa geral dos pobres ou dos ricos A luta entre os vários interesses obscurece a diferença entre os poucos e os muitos Em parti cular o interesse dos muitos em si pode ser fragmentado em diversos interesses mais estreitos mais limitados cada um buscando uma vantagem imediata Em tal república e com tais cidadãos tornase menos provável que a maioria do todo terá um motivo comum para invadir os direitos dos outros cidadãos Em tal república as maiorias po pulares ainda governarão mas agora entre a grande variedade de interesses partidos e seitas que abrange uma coalizão da maioria de toda a sociedade raramente poderá ocorrer com bases em princípios que não sejam os da justiça e do bem geral Públio está ciente do que está por trás de seus novos ensinamentos sobre a gran de república comercial Sua doutrina se move em direções que a transportam para longe dessas preocupações manifestamente políticas das quais tratamos aqui Públio vê assim como Adam Smith a conexão entre uma área de comércio muito grande e a possibilidade da divisão do trabalho a qual por sua vez é tão intimamente ligada à multiplicidade salvadora da facção É por isso que Públio tão desesperadamente procura preservar tornar muitíssimo mais íntima e fortalecer a união Públio também sabe que a sua solução para o problema das maiorias populares exige que o país seja proíundamente democrático isto é que todos os homens sejam igualmente livres e igualmente incentivados a procurar seu ganho imediato e se associar com outros du rante esse processo Não deve haver barreiras rígidas que proíbam os homens de buscar seus interesses imediatos Na verdade são em particular os humildes de quem tanto se deve temer que devem sentirse menos barrados das oportunidades e mais otimis tas sobre suas chances Além disso sua solução exige um país que alcança o sucesso comercial um país rico Ou seja os ganhos limitados e imediatos devem ser reais os interesses fragmentados devem esporadicamente obter ganhos reais ou o esquema 604 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 45 Ibid p 341 deixa de seduzir ou serenar Além disso as leis e especialmente a lei fundamental deve ter em vista a proteção das propriedades de todos dos pequenos proprietários para que possam apegarse a seu pouco como sua preocupação fundamental e dos grandes proprietários de forma que sua propriedade pareça estar fora do alcance da inveja A lei fundamental deve também dificultar em particular aqueles atos opressores mais prováveis tal como os estados interferirem com o valor do dinheiro ou prejudicar a obrigação de contratos E Públio está ciente de que seu esquema envolve uma enorme confiança na inces sante luta por ganhos privados imediatos a vida comercial deve tornarse honrosa e ser praticada universalmente Públio conta com uma porção de patriotismo e sabedoria nas pessoas e em particular em seus governantes representativos No entanto é exata mente em sua discussão da separação de poderes esse dispositivo para garantir gover nantes esclarecidos que retorna à sua ênfiise primordial Embora possam ser esclareci dos é primordialmente suas paixões e interesses privados que os tornam úteis para o público Naquela que seria talvez a sentença mais notável e reveladora do livro Públio fida dessa política de sanar com interesses opostos e rivais a ausência de motivos me lhores que pode ser identificada ao longo de todo o sistema das relações humanas tanto públicas como privadas Compreender bem o modo como Públio entende a ausência de motivos melhores e como procura compensar este defeito pela íundação de um regime em que a arte de governar é feita comensurável com a capacidade dos homens quando suas paixões e interesses estão corretamente organizados é entender a contribuição de Públio para a nova ciência da política e compreender a república americana em cuja estruturação participou de modo tão relevante L e it u r a s A The FedemUst 1 6 9 1 0 1 4 1 5 2 3 3 7 3 9 4 7 516368 70 72 7 8 B The FedemUst Todos os demais números T h e F e d e r a u s t 603 46 Ibid p 337 T homas Paine A 17371809 Thomas Paine foi um panfleteiro brilhante em uma época que dava livre curso a seus talentos Nascido e criado na Inglaterra passou a maior parte de sua vida nos Estados Unidos e na França onde tomou parte ativa através de suas publicações nas grandes revoluções que varreram esses países no final do século XVIII Foi por sua força como propagandista a despeito de sua fraqueza como pensador que Paine percebeu o homem e a sociedade inteiramente em preto e branco sem tons de cinza As revoluções de sua época constituíam para ele batalhas entre o bem e o mal absolutos Produto típico do Iluminismo concebia o passado como um reinado de qua se ininterrupta ignorância superstição e tirania No entanto considerava um privilégio viver em um momento de despertar da razão quando a vontade e o bom senso inatos do homem médio começavam a firmarse e logo viriam a transformar todas as coisas Havia fundamento para a confiança de Paine todas as grandes leis da sociedade são leis da natureza A razão humana acreditava uma vez livre das imposturas da tradição política e dos absurdos da religião revelada teria facilidade em apreender as leis naturais da sociedade e do governo À medida que se difundisse o conhecimento racional os governos inevitavelmente se reconstituiriam com base em princípios na turais Então todos os grandes problemas sociais poderiam ser resolvidos sem grandes dificuldades Havia no pensamento Paine mais que vestígios do que fora chamado de futurismo redentor ou messianismo político uma fé semelhante à das cruzadas de que uma revolução na ordem social e política arrancaria as sementes do mal no homem e criaria uma nova humanidade sem pecado A época atual afirmou mere cerá doravante ser denominada a Idade da Razão e a atual geração semelhará para o futuro o Adão de um novo mundo Na concepção de Paine o problema da vida social era em essência o de fun damentar o governo em princípios corretos Felizmente tratavase de um problema 1 The Complete Writings f Thomas Paine ed Philip S Foner 2 v New York Citadel Press 1945 I 359 2 Tbid I 449 simples Náo obstante o mistério no qual se envolveu a ciência do governo com o objetivo de escravizar saquear e imporse sobre a humanidade é esta de todas as coisas a menos misteriosa e mais fócil de ser compreendida Em relação ao governo basta que os homens pensem e jamais agirão errado nem se deixarão enganar A filosofia política subjacente a Paine era a doutrina da harmonia natural dos interesses individuais A sociedade afirmava é produzida por nossos desejos e o governo por nossa maldade O homem é equipado pela Natureza para a sociedade porque nenhum homem é capaz de suprir suas próprias necessidades sem a ajuda da sociedade Essas necessidades e suas emoções sociais naturais impulsionam o homem à sociedade De fóto o homem é tão naturalmente uma criatura da sociedade que é quase impossível retirálo dela Portanto o princípio que constitui e mantém a sociedade é o interesse comum Em grande parte o interesse comum é suficiente para os íins da vida social Em contrapartida o governo tem um papel mínimo a desempenhar porque a sociedade realiza para si mesma quase tudo o que é atribuído ao governo Tudo o que o governo precisa fazer é suprir os poucos casos em que a sociedade e a civilização não são con venientemente competentes O progresso social portanto vai na direção de cada vez menos governo Quanto mais perfeita a civilização menos oportunidade tem para o governo porque mais regula seus próprios assuntos e governa a si própria O governo tal como constituído até agora tem sido a causa geradora ao con trário do remédio para a desordem social a pobreza e a guerra A solução para o pro blema do governo no entanto nâo é a sua abolição uma ideia que aparentemente Paine jamais contemplou mas a sua reconstituição dentro dos princípios corretos pela simples operação de construção do governo sobre os princípios da sociedade e dos direitos do homem toda dificuldade se vai A soma e substância da filosofia política e a única coisa que traz benefícios saber é esta O governo nada mais é que uma associação nacional que atua dentro dos princípios da sociedade Quais são então os princípios da sociedade Como já foi dito Todas as grandes leis da sociedade são leis da natureza São seguidas e obedecidas porque é do inte resse das partes fazêlo A íiinção do governo é permitir que os homens sigam seus próprios interesses Todo homem pretende exercer sua profissão e gozar os frutos de seu trabalho e os produtos de suas propriedades em paz e segurança e com a menor despesa possível Quando essas coisas sáo realizadas são atendidos todos os objetivos T h o m a s Pa in e 607 3 Ibid II 571 4 Ibid I 353 5 Ibid p 4 6 Ibid p 358 7 Ibid p 357358 8 Ibid p 359361 itálicos no original 9 Ibid p 359 pelos quais o governo deveria ser estabelecido Em suma a segurança do homem na busca de seus próprios interesses é o verdadeiro projeto e fim do governo Essa segurança é também um direito do homem A teoria da sociedade e do governo de Paine é elaborada inteiramente em termos de direitos Paine fala de deve res também mas estes consistem em garantir aos outros os mesmos direitos que se reivindica para si mesmo Todos os homens merecem igual proteção porque vêm ao mundo igualmente dotados de direitos Estes direitos sáo os únicos princípios sobre os quais pode ser construída uma ordem política justa e legítima Esta teoria de que Paine foi um insigne defensor embora de modo algum seu autor forneceu munição intelectual para o grande movimento revolucionário do século XVTII Os direitos do homem incluem tanto direitos naturais como civis Em The Rights ofMan Os direitos do homem Paine explica a distinção entre eles nestes termos Os direitos naturais são aqueles que pertencem ao homem no direito de sua existência Deste tipo são todos os direitos de propriedade intelectual ou direitos da mente e tam bém todos os direitos de agir como um indivíduo para seu próprio conforto e felicidade que não são prejudiciais aos direitos naturais dos outros Direitos civis são aqueles que pertencem ao homem em virtude de ser ele um membro da sodedade Todos os direitos civis têm como base um direito natural preexistente do indivíduo mas para o gozo do qual seu poder individual não é em todos os casos suficientemente competente Deste tipo são todos aqueles que se relacionam com a segurança e a proteção Ou seja existem direitos naturais nos quais o poder de executar é tão perfeito no indivíduo quanto o próprio direito Por exemplo a religião é um desses direitos No exercício destes direitos o indivíduo é autossuficiente e não precisa do governo Mas há outros direitos igualmente naturais em que embora o direito seja perfeito no indivíduo é defeituoso o poder de executálos Esses direitos o homem deposita nas reservas comuns da sociedade Ou seja abre mão da execução pessoal de alguns de seus direitos naturais e os troca por direitos civis de modo que sociedade pode protegêlo mais efetivamente no exercício de seus direitos O poder civil é portanto uma espécie de capital conjunto consistindo do agre gado daquela classe de direitos naturais do homem que se torna defeituosa no indiví duo em posição de poder Os homens agregam seu direito de serem juizes em causa própria e estabelecem um governo para exercer um julgamento entre suas reivindi cações conflitantes No entanto o poder de governo é apenas o poder conjunto dos indivíduos e não pode ser utilizado para violar os direitos naturais que guardam para si mesmos Pois os direitos naturais são os direitos com que Deus dotou o homem como homem na criação são consequentemente invioláveis e imprescritíveis 10 Ibid p 088 11 Ibid p 175 12 Ibid p 276 13 Ibid 608 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Como é óbvio Paine pertencia à escola do pacto social no pensamento político Entretanto náo aceitava um pacto entre o povo e seus governantes Admitia apenas um ato contratual pelo qual os próprios indivíduos cada um em seu próprio di reito pessoal e soberano entraram em um pacto um com o outro para produzir um governo e esta é a única modalidade em que os governos têm o direito de suipr e o único princípio de acordo com o qual têm o direito de existir Esse pacto não cria um governo soberano mas uma comunidade ou nação soberana O título de rei não basra para fezer de um homem o soberano A soberania como uma questão de direi to pertence à nação somente e não a qualquer indivíduo e em todos os momentos uma nação tem o direito inerente irrevogável de abolir qualquer forma de governo que julgue inconveniente e estabelecer aquele que esteja de acordo com seus interesses temperamento e felicidade O governo nunca é mais do que um agente do povo que constitui a nação e a única soberania que Paine reconhece é a soberania popular Assim como sâo impres critíveis os direitos naturais do indivíduo assim também é imprescritível a soberania inerente da nação Nenhuma pretensão de autoridade por parte dos detentores do poder fez frente ao direito do povo de priválos do poder e alterar a forma de governo Paine não demonstrou uma genuína compreensão da doutrina da prescrição no gover no tal como explanada por Edmund Burke mas não deixou qualquer dúvida acerca da veemência com que a rejeitava Todas as formas de governo pelo menos em grandes Estados onde seria impos sível a democracia direta poderiam ser classificadas em duas categorias governo por eleição e representação e governo por sucessão hereditária O governo hereditário inclui a monarquia e a aristocracia ou a combinação dos dois que prevaleceu em quase toda a Europa durante o século XVIII A opinião de Paine pode ser expressa de forma sucinta Todo governo hereditário é por natureza tirania Era impossível afirmou Paine que os governos hereditários tais como o que existiram até então pudessem ter principiado por qualquer outro a não ser uma viola ção total de todos os princípios sagrados e morais Não só a origem mas toda a his tória desses governos era um monstruoso registro de crimes Sua finalidade principal era o saque chamado pelo nome mais brando de tributação e um de seus principais meios de aumentar os impostos era travarem contínuas guerras Uma vez que eram sistemas de exploração para se manterem precisavam depender da fraude da trapaça e da ignorância induzida A monarquia advertiu Paine é o papado do governo uma coisa mantida para divertir os ignorantes e amansálos para psarem impostos T h o m a s Pa in e 6 0 9 14 Ibid p 278 itálicos no original 15 Ibidpò4 16 Ibid p 364 17 Ibid p 361 18 Ibid p 375 Porém os crimes de governos monárquicos e aristocráticos náo constituíam sua íàlha radical Ao contrário era esta ser o governo hereditário por definição escravi dão uma vez que privava a nação de seu direito inerente e imprescritível de se governar por meio de seus representantes escolhidos A conclusão de Paine é de que não há problema mais verdadeiro matematicamente em Euclides a não ser que o governo hereditário não tem direito de existir O governo representativo por outro lado é a única forma legítima de governo porque só ele se fundamenta no direito inerente da nação de se governar Contudo uma vez que a nação é uma coleção de indivíduos originalmente independentes que entraram em contrato entre si para formar um governo o direito supremo sobre qual o governo se fundamenta é o direito natural de cada homem governar a si mesmo Paine tirou a conclusão lógica deste princípio e se opôs ao estabelecimento das qualificações de propriedade para o direito de votar nos representantes Eliminar esse direito afirmou é reduzir o homem à escravidão pois a escravidão consiste em estar sujeito à vontade de outro e aquele que não tem direito a voto na eleição de representantes pertence a esse caso Deve ser atribuída representação a todos com base no princípio de um homem um voto Dessa forma os direitos de todos estariam igualmente pro tegidos e essa afinal é a finalidade maior do governo Desde que fossem respeitados os iguais direitos de todos os cidadãos à repre sentação Paine pronunciavase indiferente quanto à forma específica que assumiria a Constituição O governo funcionaria com base no princípio do governo da maioria é claro O legislativo como órgão representativo eleito seria supremo O executivo termo este que Paine não apreciava não teria nenhuma íúnção além de administrar as leis feitas pelo povo por meio de seus representantes decerto nâo íiría como uma força independente no Estado Porém a melhor maneira de construir e combinar os diversos órgãos do governo era uma questão de opinião e de qualquer modo estaria sujeita a revisão à luz da experiência O essencial seria um governo republicano com base em uma representação gran de e igual Sob tal governo os homens se governariam em seu próprio interesse Assim não haveria queixas sobre os altos impostos pois somente seriam cobrados os impostos que satisfizessem à razão da nação Tampouco uma república desperdiçaria seu tesouro em guerras porque seu governo não teria interesses diversos dos interesses da nação O próprio povo da nação não estaria disposto a guerrear O homem não é o inimigo do homem a não ser por meio de um falso sistema de governo Desta forma o ver dadeiro sistema de governo agiria de modo a reduzir ou abolir os dois principais males sociais a guerra e a pobreza causada por tributação e exploração excessivas A esperança de Paine era de que as guerras pudessem ser abolidas ou pelo menos drasticamente reduzidas como um aparato das relaçóes internacionais Se a Inglaterra 19 Ibid 11 572 20 Ibid p 579 21 Ibid 1343 6 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y aceitasse os princípios da Revolução Francesa as duas naçóes juntas poderiam refor mar o resto da Europa Seria entáo razoável ter esperança de um fim para as causas das guerras Quando todos os governos da Europa estiverem firmes no sistema repre sentativo as nações se reconhecerão e cessarão as animosidades e preconceitos fomen tados pelas intrigas e artifícios das cortes As frotas inglesa francesa e holandesa combinadas seriam capazes de impor um desarmamento naval geral e de reduzir as marinhas para talvez um décimo de sua força atual Uma aliança desses três poderes à qual os Estados Unidos de bom grado se juntariam também poderia forçar o fim do domínio espanhol na América do Sul e dar fim à pirataria algeriana O outro grande mal social contra o qual vociferou Paine era a pobreza pela qual culpava a alta tributação e outras políticas injustas da monarquia e da aristocracia Filho da classe pobre ele mesmo Paine nutria um ódio sincero e apaixonado pela po breza que via em torno de si na Europa Esse ódio levouo a propor um programa de governo forte e positivo para a abolição da pobreza Paine tinha como premissa que se o governo fosse conduzido sem extravagâncias civis ou militares como seria em uma república representativa haveria um grande exce dente decorrente da tributação às taxas vigentes ou mesmo reduzidas Parte deste excedente poderia ser eliminada por meio da abolição das taxas para os pobres ou seja o imposto sobre as femílias para auxílio aos pobres O resto do excedente poderia ser usado para impedir a pobreza que necessitava de auxílio Isso seria realizado pela concessão aos pobres do que hoje seriam chamados de subsídios para o casamento a maternidade e os funerais abonos família pensões para idosos e uma forma rudi mentar de auxílio desemprego Acompanharia este plano de previdência um imposto progressivo sobre os rendimentos das propriedades projetados para induzir as fiunílias a subdividirem as propriedades territoriais em lugar de mantêlas intactas por meio da lei de primogenitura Seria também criado um fundo nacional através de um imposto sobre as heranças com o qual todos os jovens ao chegarem à idade de 21 anos rece beriam um modesto capital para iniciálos na vida Não é necessário acusar Paine de ser incoerente com seus princípios fundamen tais ao formular essas propostas O governo de acordo com seus princípios existe apenas para proter os direitos individuais No entanto se for enfiitizada a igualdade de direitos a serem protidos então se segue que o governo tem uma função positiva a exercer Ainda assim é extraordinário que Paine que proclamou que o governo não era necessário além de suprir os poucos casos em que a sociedade e a civilização não são convenientemente competentes quase que no mesmo fôlego se revelasse como um profeta do moderno Estado do bemestar É claro Paine não foi o primeiro ou o último a simultaneamente minimizar e maximizar a função do governo Por trás dessas teorias está em geral a doutrina da har monia natural de interesses e de uma vontade soberana popular única que encarna e T h o m a s Pa in e 611 22 Ibid p 449 manifesta essa harmonia Muito terá a fazer o governo até que seja executada a vontade popular por sobre a oposiçáo dos ímpios e dos ignorantes depois disso porém a so ciedade em grande parte se autogovernará Como disse Paine as revoluções americana e francesa mostraram que as maiores forças que podem ser trazidas para o campo das revoluções são a razão e o interesse comum Onde estas têm oportunidade de atuar a oposição morre de medo ou desmoronam por convicção Em outras palavras o go verno democrático quando é verdadeiramente democrático e completamente sensível à vontade do povo de fato não é governo L e it u r a s A Paine Thomas Rights ofMan Direitos do homem B Paine Thomas Common Sense Senso comum Paine Ihomas Agntrian justice Qustiça agrária Paine Thomas Dissertation on First Principies ofCovemment Dissertação sohre os primeiros princí pios do governo 612 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o u t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 23 Ibid p 446 E dmund B urke 17291797 Durante quase toda a sua vida adulta Burke atuou como político por quase 30 anos foi membro da Câmara dos Comuns ocupandose dos assuntos cotidianos de seu partido na gestão de homens e demais questões Seus discursos panfletos e livros explo ram os grandes temas da íilosoíia política mas não por esses temas em si Burke não se dirigia primordialmente a outros íilósofos políticos e não construiu um sistema ou teoria na íilosoíia política Visava os governantes e os mais instruídos de seu tempo apoiando a causa dos Cavalheiros como lhe disse certa vez o rei Geoi III Essa proximidade com a política atraiu para Burke a atenção dos historiadores e conservadores de nossos dias os primeiros em geral com reprovação e os últimos com aprovação Devido a seu engajamento Burke examinava as questões públicas com agudeza quase incomparável Entre os observadores da política moderna só Tocqueville e tal vez Churchill sejam seus rivais na percepção dos acontecimentos Como Tocqueville e ao contrário de Churchill Burke não desfrutava da visão de governante que propor ciona um cargo de comando Seu cargo mais elevado foi Paymaster General Tesoureiro Geral um secretariado sem brilho Embora o mais hábil em seu partido destacado nos debates e influente a ponto de ser indispensável na gestão de seus assuntos nunca procurou e nunca lhe foi confiada uma liderança Na verdade não gozava da confiança dos principais estadistas de seu tempo devido à própria energia que usou em seu favor à ânsia de entrar em ação contra perigos dos quais só ele percebia a total amplitude e à paixão exibida na maravilhosa retórica que tanto admiravam Muito a admirar e nada com o que concordar foi o íámoso julgamento sumário de Pitt acerca das mais longas invectivas de Burke em íàvor da contrarrevolução contrária à Revolução Francesa E quando em 1788 parecia que o partido de Burke poderia recuperar Este capítulo foi publicado em forma ligeiramente diversa como introdução a Selected Letters o f Edmund Burke ed Harvey C Mansiield Jr Chicago University of Chiado Press 1984 1984 by The University of Chiado The Corrtspondence o f Edmund Burke ed Ihomas W Copeland 10 v C h io University of C h ic Press 195878 V I239 IbidVlh 335n seus assentos durante a regência de George III que enlouquecera Charles Fox e seus confidentes omitiram dele uma lista de titulares de cargos de liderança Burke era por demais inflamado no conselho por demais veemente em sua perseguição de Warren Hastings para que lhes parecesse responsável Em nossos dias os historiadores em particular os influenciados por Sir Lewis Na mier um mestre da investigação minuciosa assumiram essa desconfiança e atribmTam a Burke e não a seus contemporâneos a responsabilidade por ela Julgamno pretensioso seu comportamento extremo e suas palavras exeradas Se por um lado Burke falou da tolice no indivíduo e da sabedoria na espécie consideram Burke tolo em sua própria época sábio apenas para a posteridade Pois enxergar em profundidade as raízes dos acontecimentos intuir a causa dos descontentamentos do presente não pode deixar de parecer um tipo de inflação na medida em que as ocorrências diárias são vistas como uma tendência e percebidas como efeitos As tentativas de Burke para dar sentido ao trivial parecem íàzer com que perca seu caráter trivial e ao passo que os historiadores podem julgar emocionante sua eloqüência também a avaliam perigosa e desconfiam dele Até mesmo o seu entendimento premonitório da natuteza importância e futuro da Revolução Francesa é obscurecido pelo extremo partidarismo a que esta compreensão o obrigou Perdeu o crédito por sua presciência porque agiu inspirado nela Todavia Burke era um homem notável porque era um pensador notável Não se pode limitar seu mérito à sua retórica e resumir suas realizações como literárias en quanto se afesta a maior parte de seu pensamento como controverso ou constrangedor Suas palavras não soam ocas os voos de sua imaginação não são abstrações vazias Sua maravilhosa habilidade literária não nos isenta de leválo a sério ou de levar a sério seu pensamento como filosofia política Embora nunca tenha escrito um tratado de filosofia política há razões mais que suficientes em sua própria filosofia política para que não o tenha feito Em um tratado o pensamento de Burke teria perdido a essência de seu raciocínio e seu estilo era adequado à sua essência Não conheceríamos Burke se não fosse por seus discursos e escritos e não os conheceríamos se fosse bombástica a essência de seu pensamento Se os leitores estão dispostos a dar uma oportunidade à filosofia política de Burke ou à possibilidade dela como enfrentar a tarefa Hoje Burke é conhecido como o filósofo do conservadorismo No entanto ainda não é grande sua partici pação no recente ressurgimento do conservadorismo americano Das duas escolas de pensamento que têm sido identificadas com esse ressurgimento o tradicionalismo e o libertarianismo Burke aliase mais com a primeira Apesar de ter apoiado a liberação do comércio sempre que possível ter oferecido sua obra Thoughts and Details on Scar city Pensamentos e detalhes sobre a escassez 1795 como contribuição para a nova escola de economia política e ser amigo e admirador de Adam Smith de tal forma se opunha à liberdade individual sem entraves aos sistemas teóricos de autointeresse e à influência da nova propriedade que cercou e envolveu a economia abstrata livre dos economistas políticos com as tradições da constituição britânica Porém é claro que essas tradições estabelecimentos como as chamava Burke estão longe de serem 6 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o u t ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y as disposições da Constimiçáo americana e como veremos estáo ainda mais distantes do caráter previsto para a Constimiçáo americana Tais sáo os obstáculos à influência de Burke na política americana hoje No íinal da década de 1940 no entanto Burke foi descoberto pelo conservadorismo norteamericano como o proponente de uma teoria da lei natural Foi resgatado para se opor à irreligiáo ao do relativismo dos libe rais c para fornecer aos conservadores uma teoria que admite a vantagem política ou necessidade da religião e a influência das circunstâncias sobre a moralidade mas que todavia ratificava a lei natural a vontade de Deus como autoridade para os homens As freqüentes referências de Burke à lei natural anteriormente ignoradas ou dispensa das como retórica foram reunidas em um sistema que poderia ser descrito como um tomismo conservador modernizado O que quer que se pense do sucesso deste sistema é surpreendente ter sido Burke transformado no provedor de uma teoria necessária para uma política saudável Se há um tema recorrente nas cartas discursos e escritos de Burke tratase de sua êníàse so bre os males morais e políticos que decorrem da intrusão da teoria na prática política É a teoria como tal que Burke rejeita sua ênfase nos males da teoria intrusiva não é equilibrada por uma compensatória confiança na sólida teoria de que os homens necessitariam como um guia para sua política Uma teoria sólida para ele parece ser uma teoria autocontraditória Embora Burke possa cm algumas ocasióes referirse aos simulados filósofos da hora assim implicando a existência de um outro tipo em geral contcntase em denunciar filósofos metaflsicos e especuladores em si sem espe cificar aquela que poderia ser a vital distinção entre eles Em uma passagem famosa de A Letter to a Member ofthe National Assembly Carta a um membro da Assembleia Na cional 1791 ataca Rousseau o filósofis da vaidade um amante de sua espécie mas um inimigo de seus semelhantes II535541 em termos que nenhum filósofo jamais usara contra outro até que um declínio do decoro neste aspecto ocorreu no século XDC Na carta Burke distingue filósofos modernos que expressam tudo o que é ignóbil selvíem c desumano dos escritores de sólida antiguidade a quem os ingleses continuam a ler de modo mais geral acredita do que se fiiz jora no con tinente No entanto Burke não propóe nem remotamente que sejam adotados os autores antigos como guias para apontar o caminho para sair da crise que os filósofos modernos trouxeram para toda a humanidade Sua leitura não é tanto a causa como o efeito do bom gosto inglês algo que lamentavelmente fiJta no continente Se considerarmos a hostilidade de Burke à intrusão da filosofia na poUtica mas todavia nos lembrarmos também que este não apenas se desespera com a crescente influência da filosofia o problema de sua filosofia política parece ser a concepção de uma teoria que nunca se intrometa na prática Nossa pergunta ao avaliála é pode a teoria servir apenas como um cão de guarda contra a teoria mas nunca ser necessária como guia E d m u n d B u r k e 615 4 The Works ofEdmund Burke 8 v Bohns British Classics London Bohn 185489 I I 430 Todas as citações são desta edição 5 Ver também Works I 50 1 e Correspondence V 337 Desde o início estiveram sob a mira de Burke os danos causados à prática pela sólida teoria Sua primeira publicação A Vindication of Natural Society Uma defesa da sociedade natural 1756 é uma sátira que mostra as absurdas conseqüências políticas da teoria de Bolingbroke e nos panfletos iniciais sobre o partido Observations on a Late Publication Intituled The Present State ofthe Nation Observações sobre uma publicação tardia intitulada O presente estado da nação 1769 e Thoughts on the Cause ofthe Present Discontents Reflexões sobre a causa dos presentes descontentamentos 1770 argumentou contra os efeitos deletérios de uma preferência teórica por homens de capacidade e virtude ao contrário de partidos compostos por senhores indo juntos publicamente em confiança mútua Em seus discursos contrários à política britânica na América atacou a insistência do governo sobre os direitos de tributação e soberania sem levar em conta conseqüências ou circunstâncias como uma dependência especulativa e legalista da virtude do governo de papel Pois os advogados com a sua inquietação acerca de direitos e formas não se preocupam com o efetivo exercício das formalidades substituem a política prudente pela correção legal e procuram a generalização na forma da lei que é também a da teoria I 431 453476 II 7 Em um discurso proferido em 1785 Burke já denunciava os especuladores de nossa era especulativa III 139 En tretanto foi na Revolução Francesa que os males da especulação na política tornaramse visíveis em toda sua extensão e como um todo Burke foi surpreendido pela eclosão da revolução mas fora preparado pelas grandes preocupações de sua carreira política ante rior para identiíicála como uma revolução filosófica a primeira revolução completa uma revolução em sentimentos modos e opiniões morais que atingiu até mesmo a constituição da mente humana II352 III350 V 76 III A Revolução Francesa exibia e resumia todos os males da política especulativa Esses males tal como Burke os entende podem ser brevemente resumidos Pri meiro os revolucionários franceses chegaram ao extremo de destruir o antigo regime e de derrotar qualquer reforma moderada que náo incluísse a destruição porque como os teóricos ou inspirados pelos teóricos baseavam seu raciocínio no caso extremo A universalidade de sua teoria da revolução foi alcançada pela generalização a partir do caso extremo onde a revolução pode ser inevitável No decorrer da generalização açóes limitadas realizadas com grande circunspecção e compunçâo no caso extremo são no caso universal transformadas em destruição desenfreada e irresponsável A alardeada humanidade dos revolucionários é afetada de igual modo Sendo uma especial preocu pação em melhorar os seres humanos diluise em uma profissão humanitária em prol do povo francês e da humanidade que exige um sacrifício cruel das emoções naturais Uma vez que no caso extremo podese ou devese ser egoísta nenhum argumento universal pode ser sustentado quer seja em favor da autocontençáo ou em favor de ajudar os outros assim a moral defeituosa caminha junto com os corações insensíveis Este humanitarismo empurra os homens para o nível de bestialidade ao mesmo tem po em que perversamente alega libertálos e até mesmo enobrecêlos Em segundo lugar os teóricos erroneamente supõem que a política é previsí vel Tendo exposto as finalidades do governo em termos universais acreditam que os 6 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y meios para esses fins podem ser expressos em regras igualmente universais a náo ser que afastem totalmente a questão dos meios Entretanto os meios são determinados pelas circunstâncias que são infinitas e infinitamente combinadas variáveis e pas sageiras Quem não as tomar em consideração será metafisicamente louco V 114 As circunstâncias por sua vez são determinadas pelo acaso e o acaso sempre traz no vas situações I 312 365 153154 V 257 Uma vez que os fins universais são sempre refratados por novas e imprevisíveis circunstâncias conclui Burke Nada universal se pode afirmar de modo racional sobre qualquer assunto moral ou político III 16 Em terceiro a teoria é simples uma vez que o caso extremo e universal com o qual se preocupa é também o caso simples não complicado por acidentes e confusões A prática no entanto em particular a prática política é complexa Defirontase com reivindicações rivais de simples justiça para com as quais deve fàzer concessões e com reivindicações a exceções para com as quais deve transigir E se por um lado a teoria é simples por outro é refinada Vai além da experiência comum na sua tentativa de excluir tudo o que for acidental No entanto as pessoas comuns não conseguem ver além da experiência comum e desconfiarão daqueles que exploram os labirintos da teoria política III 106 políticas refinadas que dependem da colaboração de pes soas comuns fiacassarão como resultado de sua perplexidade Além disso os homens teõricos em si não se apegam ao que quer que seja seu quando se voltam para si mesmos veem somente seu próprio caso que é apenas um caso entre tantos outros É por isso que a especulação no sentido teórico está ligada à especulação no sentido de jogos de azar a especulação teórica é o jogo inconsciente com os próprios riscos II 463 Contudo os homens práticos em si são ligados a tudo o que é seu sua lealdade é pressuposta por sua responsabilidade Não podem ir sem favorecerem um grupo que não escolheram e não podem escolher todas as suas escolhas são feitas em um contexto que lhes é imposto pelas circunstâncias ou providência Nenhum homem examina os defeitos de seus direitos à fiizenda paterna ou a seu governo estabelecido II 26 428 Porém a neutralidade dos especuladores é em seu efeito político um desejo de que tudo transcorra à sua maneira Não admitem sua própria parcialidade de maneira que não admitem a de qualquer outra pessoa Em seguida as questões teóricas são atemporais e reversíveis as questões práticas devem ser decididas aqui e agora e não podem ser revertidas Homens políticos são vinculados por perigos iminentes que não permitem um discurso longo pertencente ao lazer de um homem contemplativo I 323 II 552 Finalmente a atividade dos especuladores é em essência privada não se preocupa com a opinião comum nem se quer a critica porém a política se apoia na opinião e deve respeitála Muito embora a opinião seja denominada preconceito ou superstição Burke não hesita em defendêla O preconceito contém sabedoria latente que tem pronta aplicação em situação de emergência deve ser tolerada a superstição caso contrário as mentes fracas serão pri vadas de um recurso considerado necessário para os mais fortes II 359 429430 Ao desenvolver os males da política especulativa ou metafísica Burke não se preocupa em discriminar a boa especulação da má ou em explicitar tal diferença de E d m u n d B u r k e 617 modo inconfundível para seus leitores Parece misturar as falhas da teoria em que se baseou a Revolução Francesa a teoria dos direitos do homem enunciada por Hobbes Locke e Rousseau com os defeitos necessários a toda teoria dos quais os teóricos anteriores podem ter tido conhecimento Burke menciona as objeções de Aristóteles à moralidade geométrica e várias vezes pede o auxílio de Aristóteles mas náo utiliza as investigações fundamentais do filósofo acerca da namreza da teoria e da prática Exceto quanto ao ataque a Rousseau que mencionamos Burke náo considera as fontes teóricas da doutrina dos direitos do homem até mesmo seu ataque a Rousseau não constimía uma reflexão teórica mas se restringiu especificamente ao emprego de teorias de Rous seau pelos revolucionários franceses II 541 Em suma Burke não oferece esclareci mentos teóricos ou uma reconstrução que fosse ao encontro dos revolucionários em seu próprio terreno Em vez disso na medida do possível tenta manterse firme e coníinar se à esfera da prática política Seus escritos que propõem açóes são muito mais ricos em sabedoria política assim aparentando serem mais teóricos do que os de estadistas comuns mesmo em retrospecto todavia sáo também muito mais circunscritos e cir cunstanciais do que os tratados que se destinam aos interesses dos teóricos desta forma são excessivos para historiadores insuficientes para íilósofos Burke afirmou certa vez A execução de perigosos e ilusórios princípios fundamentais obriganos a recorrer aos ver dadeiros V213 com o que admitia a necessidade de tal recurso em contraste com os estadistas comuns e assumia sua relutância contrariando os hábitos dos teóricos Todavia os verdadeiros princípios fundamentais a que recorre Burke não apa rentam ser princípios fundamentais Ao contrário de fornecer esclarecimentos teóri cos Burke afirma que a condução dos assuntos humanos pertence à prudência e em lugar de determinar qual poderia ser o melhor estado ou o estado legítimo celebra o espírito da constituição britânica A íilosoíia política de Burke emerge da elaboração desses dois aspectos a prudência e a constituição britânica Podem náo ser os prin cípios primeiros os princípios fundamentais mas são certamente os princípios que Burke propõe para chamar nossa atenção antes de todos os outros A prudência afirma Burke é o deus deste mundo inferior já que tem com pleto domínio sobre todo o exercício de poder entregue em suas mãos II 28 A pru dência é a primeira de todas as virtudes bem como o guia supremo de todas elas Isso significa em particular que a sabedoria prática com justiça substitui a ciência teórica sempre que há disputa entre as duas II 306 A razão para a soberania da prudência está no poder das circunstâncias de alterar todas as regularidades e princí pios As circunstâncias que para alguns cavalheiros de nada valem concedem na realidade a todos os princípios políticos sua cor única e seu efeito discriminatório Burke enfatiza que a prudência de que fala é uma prudência moral ou uma prudên cia pública e ampliada em oposição à prudência egoísta sem mencionar a esperteza 618 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 6 Works I 501 ver também II 396 454455 V 342 VI 251 Correspondence IV 36 7 WrfcVII 161verIII 16 8 Works II 282 ver I 497 ou astúcia No entanto Burke não vai além omitindo uma explicação de como ter certeza da moralidade da prudência Se a prudência é suprema que deve reinar sobre a moralidade mas se a prudência pode ser moral ou egoísta pareceria exigir a tutela da moralidade Aristóteles ao enfrentar este problema foi levado a compreender a pru dência como uma arte legislativa abrangente e em seguida a subordinála à teoria Burke propóe uma solução diversa Ao invés de dar seguimento a um inquérito sobre os primeiros princípios ou finalidades da prudência o que necessariamente iria além da prudência distingue dentro da prudência entre regras de prudência disponíveis para os estadistas comuns e a prudência de uma de ordem superior II 284 III 16 V 236 As regras da prudência náo são matemáticas universais ou ideais todavia náo deixam de ser regras como diz Burke com grandiosidade formada a partir da marcha conhecida da providência ordinária de Deus isto é visível na experiência humana Porém como essas regras sáo soberanas sobre todos os direitos teóricos ou primeiros princípios metafiísicos assim a prudência superior a prudência da prudência pode sustar as regras da prudência quando necessário III 81 Essa distinção no âmbito da prudência por meio da qual Burke tenta assegurar a moralidade da prudência sem subverter a sua soberania corresponde a uma distinção que fiiz entre a virtude e a virtude presuntiva real Não há qualificação para o governo além da virtude e da sabedoria real ou presuntiva II323 A virtude e a sabedoria pre suntivas são a virtude menor a virtude provável que pode ser presumida em cavalheiros de boa educação e de íamíiias proeminentes nascidos em situaçóes de eminência onde estão habituados ao autorrespeito à inspeção censória dos oUios do público a assumir uma visão ampla das infinitamente extensas e diíúndidas combinaçóes de homens e seus assuntos em uma grande sociedade a ter lazer para refletir a encontrar os sábios e instruídos bem como os comerciantes ricos ao comando militar às precauçóes de um instrutor de seus concidadãos e assim a agir como um reconciliador entre Deus e o homem e a ser utilizado como um Emente da lei e da justiça III 8586 A virtude real talvez como a do próprio Burke é mais elevada porém mais duvidosa deve inter vir quando fiJham as regras da prudência mas não deve governar normalmente para que a sociedade são seja vítima da instabilidade dos homens hábeis A ideia de virtude presuntiva pressupóe habilidade não a mais elevada mas a suficiente em condiçóes normais nos homens de posses ao mesmo tempo pressupóe ao menos a instabilida de e às vezes a imoralidade daqueles que nada têm a não ser habilidade e ao invés de terem nascido e sido criados em uma situação elevada devem alçarse à eminência por meios que podem não ser moniis e não devem ser exemplEues Nenhum país pode rejei tar os serviços daqueles que possuem a virtude real mas o caminho para a eminência e o poder a partir da situação obscura não deve ser por demais fecilitado II 323 Quando se íàz a estrada íàcil demais são demais os que a percorrem e os homens de virtude real são incentivados a mostrar sua habilidade ao contrário de sua virtude e são expulsos por homens novos que têm apenas astúcia e nenhuma propriedade como E d m u n d B u r k e 619 Works I I 29 56 V 218 Cf Aristóteles Ética a Nicômaco 61 144 637 aconteceu na Revolução Francesa A virtude real portanto deve ser normalmente man tida em subordinação à virtude presuntiva sendolhe permitido após a devida compro vação o direito de intervenção em caso de emergência tal como a Revolução Francesa quando os homens de virtude presuntiva são confrontados por um acontecimento tão surpreendente que não sabem como reagir Assim resolve Burke o problema da prudência dentro da prudência mantém a prudência moral distinta da mera astúcia todavia mantém sua soberania sobre os teó ricos astutos exceto quanto a intervenções pontuais pela maior prudência No entanto para que sustentem esta solução devem ser verdadeiras é claro as presunçóes da virtu de presuntiva São presunçóes legítimas que tomadas como generalidades devem ser admitidas como verdades reais III 86 Contudo isso não é suficiente a verdade real deve estar por trás do que é admitido como verdade real Em sua análise apreciativa para nâo dizer reverente da constituição britânica Burke demonstra serem palpáveis esses pressupostos A constituição britânica assegura tanto a soberania como a morali dade da prudência ao sustentar os pressupostos necessários para repelir as reivindicações subordinadas de maior virtude A teoria dessa constituição ou nessa constituição é a teoria que permite que a prudência permaneça soberana sobre a teoria Burke não fbi o primeiro a rir dos filósofos modernos Ele mesmo se refere aos eru ditos acadêmicos de Laputa e Balnibarbi encontrado nas páginas de GuUivers Traveis As Viens de Guiliver de Swift II 404 Mas quando Sviift ridicularizou os idealizadores políticos cujas invenções tinham laivos da mesma extensão inadequada da teoria para a prática descrita por Burke Swift não principiou em seguida a alaidear as belezas da constituição britânica Pelo contrário transpunha sua sátira para este solo st d o Den tre os filósofos políticos modernos Montesquieu é a mais óbvia inspiração de Burke no louvor da constituição britânica como modelo de liberdade a admiração de Montesquieu por essa constituição é citada por Burke em uma passem de fechamento de An Appeal from the New to the Old Whigs Um apelo dos novos para o antigos Whi 1791 III 113 Contudo Montesquieu não era tão hostil à teoria quanto Burke e acreditava que a prudência precisaria da orientação da teoria para fiigir da simplicidade equivocada da moderna soberania da ambição desumana da religião e do fascínio da antiga virtude Tocqueville compartilhava da opinião de Burke sobre a influência dos teóricos na Revolução Francesa mas os dois divergiam de um modo que irá ajudar a introduzir os pensamentos de Burke a respeito da constituição britânica O tema de Tocqueville em relação à Revolução Francesa era a democracia e demonstrou como a influência de homens de letras e phihsophes alimentou a paixão pela igualdade que caracterizou a Revolução O tema de Burke era a intrusão dos metafísicos uma de cujas conse qüências foi um nivelamento democrático que perverte a ordem natural das coisas II 322 Todavia enquanto Burke não acreditava que a democracia estivesse de acor do com a natureza e por conseguinte devesse ser atribuída a uma deturpação pelos teóricos Tocqueville acreditava que as reivindicações democráticas eram pelo menos em parte naturais para os homens por conseguinte sempre disponíveis para serem endossadas pelos teóricos Essa diferença transparece em julgamentos totalmente con 620 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y trários aos constítuintes franceses em 1789 Burke os descreve como esses fazedores de constituição os mais cruéis e mais tolos dos homens e os condena por tentar em vão criar uma constituição completamente nova Tocqueville elogiaos por esta mesma tcnutiva apesar de seu fracasso Elaborar uma constituição ou fundar uma sociedade era para a ciência política clássica e ainda mais para pensadores modernos como Maquiavel Bacon Hobbes e Locke o cerne da questão política o local onde se encontravam a teoria e a prática Nesse ponto a prudência soberana sobie a prática não pode ficar satisfeita com trocas e arranjos temporários mas deve estenderse a uma legislação que incorpore escolhas fundamentais e abraientes Tal legislação por sua vez deve ser guiada por uma arte em última instância por uma teoria que elabora o modelo para a escolha que é o melhor regime o regime mais digno de escolha Quando a prudência se torna abrangente e íáz as suas determinações para o bem e um bem que seja permanente então deve cooperar com a teoria e talvez até mesmo suboidinarse a ela É a caraaerística dominante da íilosoíia política de Burke assim como o tema norteador de sua política evitar o terreno em que convergem a teoria e a prática A fundação que antes de Burke íbra considera da por todos os pensadores políticos como o ato político essencial é pata de um não evento A elaboração de uma constítuição nunca pode ser o efeito de uma rqlação instantânea única II 554 Não pode acontecer e é errado tentar fezêlo acontecer Em completo desacordo com Tocqueville Burke não considera a democracia um rime possível O povo não pode governar pois é o demento passivo em con traste com os homens ativos no Estado Embora o povo possa ser dirigido por uma oligarquia cruel de algum tipo deve ser conduzido por uma verdadeira aristocracia natural por ministros que não são apenas os nossos governantes namrais mas os nossos guias naturais III 85 V 227 Assim para Burke não se pode escolher entre democracia e aristocracia nem pode haver uma era democrática ou aristocrática tal como para Tocqueville a natureza fez com que os muitos fossem incapazes de gover nar a si mesmos Uma democracia perfeita é a coisa mais vergonhosa do mundo II 365 porque a parcela de responsabilidade de cada um é tão íníima que a pessoa não a percebe e porque a opinião pública que deveria conter o governo é no caso da democracia nada além da autoaprovação do povo O governo responsável é capaz de vergonha talvez mais do que qualquer outra coisa tratase mais de defender o que se teve de fózer do que aceitar crédito pelo que se decidiu fózer Nenhuma aristocracia nem sequer uma democracia pode governar bem ou por longo tempo sem a percepção de um poder superior a feita dessa percepção é o que torna impossível a democracia bem como lhe retira a vergonha Apenas em um sentido atenuado portanto é natural qualquer governo humano até mesmo uma verdadeira aristocracia uma espécie de autogoverno O governo está tão distante de ser uma questão de escolha de escolher uma forma de governo que é um poder fora de nós mesmos II 333 E d m u n d B u r k e 6 2 1 10 Works V 3 17 Alexis de Tocqueville UAncien Rígme et la Révolution 2 v ed J P Mayer Paris Gallimaid 1952 1 72 88193201247 Fundamentalmente o governo nâo é governar é mudar reformar equilibrar ou ajustar O governo não se alimenta como pensava Aristóteles por reivindicações para governar estabelecidas por democratas e oligarcas na defesa e exagero de sua igual dade e desigualdade para com os demais O povo não tem a pretensão de governar por conta própria somente quando inflamado por alguns é que acredita que deseja governar os aristocratas não importa se naturais nascem e são criados para sua eminência que aceitam em lugar de demandar Na medida em que Burke é favorável ao sentido aristotélico de governo o governo pela escolha arte e ciência política humanas não se lança na teocracia e agarra o direito divino a fim de manter os governos sob controle pela vergonha Para certificarse de que o governo tem uma origem humana Burke adota a linguagem do contrato dos teóricos modernos Porém uma vez que o governo por contrato pode pa recer calculado se não escolhido por conveniência de fato uma questão de vontade ou prazer arbitrários não de julgamento Burke salienta as grandes diferenças entre os contratos comuns retomados por um pequeno interesse temporário e o contrato so cial que estabelece o estado O último contrato é uma parceria de toda a ciência uma parceria de toda a arte uma parceria de todas as virtudes e de toda a perfeição II 368 E é um contrato celebrado entre os vivos os mortos e aqueles ainda por nascer isto é não se trata de um contrato que esteja nas mãos da presente geração mas que é depositado em confiança para o passado e o futuro O passado e o futuro podese di zer substituem a lei divina para garantir que os presentes governos governem com um sentimento de vergonha Isso não significa mais uma vez que os governos presentes assumam a responsabilidade pelo governo a partir de princípios estabelecidos por seus fundadores Os mortos não são fundadores os quais são sócios passivos que deram sua opinião e agora apresentam sua perspectiva por tácita reprovação II 177178 V I21 Assim para Burke os direitos do homem não incluem o direito de governar II 332 O direito de governar seria o direito de alterar o governo quer dizer a seu belprazer mas o direito de alterar o governo a seu belprazer destrói o governo Os governantes devem aceitar as limitaçóes a seu governo mas sem submeterse a um governo sobre humano Para isso devem para o bem das geraçóes futuras aceitar a autoridade do passado sem se submeter ao governo dos fundadores A única maneira de fazer isso entendia Burke seria atenuar o significado de governo e fazer a geração presente igual à passada como é necessário a um contrato Burke elogia ao máximo a constituição britânica mas nunca seus fundadores Os antigos whi a quem apela contra os novos whi favoráveis à Revolução Francesa deram um bom exemplo mas não definiram os princípios que os novos whi devem seguir Fizeram uma revolução em 1688 apenas em extrema necessidade decorrente de circunstâncias únicas II292299 por isso sua conduta Burke ignora a teoria de John Locke que poderia interpretar essa conduta não implica muito menos expressa um princípio da revolução disponível para uso um século depois Para Burke a essência da moral é a moderação não a escolha Grande 622 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Works III 5466 ver I 375 II 293 VI153 parte das mais fortes obrigações morais são tais que nunca foram os resultados da nossa opção É por esse motivo que a moral deve ser entendida tal como em um contrato que não pode ser infringido sem o consentimento de todas as partes ao contrário de uma fundação ou revolução onde vêm à luz os princípios de escolha A frmdação de uma constituição depende de sua forma A forma de uma consti tuição deve ser capaz de prewJecer sobre seu material e suas circunstâncias que decer to mudarão ao longo do tempo incoiporando os íins peculiares àquela constituição e deixando esses íins visíveis para seus cidadãos ou súditos Por conseguinte certas vezes se obsen na ciência política clássica governos existentes classificados por sua fbrma e governos imaginários moldados pelo aperfeiçoamento das formas de governos existentes até um ponto onde a ciência política quase se esquece do material variado da política Para Burke no entanto as circunstâncias e os hábitos de cada país decidem a forma de seu governo Quando mudam as circunstâncias mudam as formas Um Estado sem meios para alguma mudança não tem os meios para sua conservação II295 Não é uma forma fixa mas exatamente o contrário um princípio de crescimento que pre serva os estados Formas constitucionais são suplantadas por reformas opormnas feitas de cabeça fria depois que o povo percebe uma injustiça mas antes que se imitem e se tais reformas devem ser sóbrias devem ser deixadas incompletas Sempre que melho ramos é corteto deixar espaço para melhorar ainda mais II 65 Assim até mesmo a melhor constituição tem um princípio de crescimento este é o seu único princípio go vernante um poder tal como o que alguns filósofbs denominaram natureza plástica Embora Burke teça elogios à antiga constituição da GrãBretanha acredita visionário supor que a sua antiga forma possa ter sido a mesma que possui hoje VI 294 a cons tituição é antiga hoje na medida em que perdurou por constantes ajustes não porque as suas formas permaneçam como eram nos tempos antigos Assim sendo Burke afirma que os costumes são mais importantes do que as leis V 208 As leis que são decisões formais por parte dos governos porque foram feitas de acordo com as suas formas dependem de costumes informais e não o contrário Em todas as formas de governo portanto o povo é o verdadeiro legislador já que o povo estabelece seus costumes O povo é o mestre nós os estadistas afirma Burke damos forma perfeita a seus desejos II 12 1122 VI 20 Uma vez que o povo é o verdadeiro legislador não alguma parte do povo que promove e impõe seus próprios fins a melhor constituição não tem nem um fim único nem uma hierarquia de fins mas a maior variedade de fins V 254 Garantir nossos direitos naturais é o grande propósito e fim último da sociedade civil portanto toda e qualquer forma de governo é boa somente enquanto for subserviente a esse propósito ao qual estão in teiramente subordinados V I29 A finalidade da sociedade civil é garantir os direitos naturais que exercemos diversamente na maior variedade de fins Como a melhor E d m u n d B u r k e 623 12 Works III7678 Cf Aristóteles Ética a Nicômaco 21 1106 3611071 13 Works III 36 ver II 313 14 Works I I 440 ver Geoige Berkeley Alciphron I I I 14 constituição é definida por direitos exercidos diversamente não pode ser encontrada no rico tesouro dos férteis elaboradores de comunidades imaginárias 1489 a cons tituição britânica é aqui e agora A constituição britânica náo é perfeita por exemplo náo é feita para a guerra ofensiva tal como é necessária contra o estado revolucionário francês V 423425 mas se fosse perfeita não admitiria um princípio de crescimento e então não seria melhor Posto que a constituição britânica não tem uma forma duradoura a ordem que estabelece não é visível em sua forma como era visível a ordem do regime clássico de acordo com Aristóteles Portanto a constituição britânica não possui um tipo de ordem democrática ou oligárquica correspondente a uma das várias formas das constituições ao contrário a ordem que possui não é de tipo particular porque suas partes têm variedade e diversidade As partes representam interesses que se combinam ou se opõem uns aos outros naquela ação e reação que no mundo natural e no mundo político da luta recíproca entre poderes discordantes extrai a harmonia do universo A discórdia nâo gera contradição social naquela estranha expressão mar xista tão familiar a nós hoje que eleva a sociedade aos padrões da lógica mas produz uma harmonia que deve muito mais à experiência de conviver em liberdade do que a pensar da mesma forma ou possuir alguns princípios comuns II 554 Essa ordem é complexa na verdade podese dizer que consiste em complicação em nunca direta mente afirmar ou negar qualquer reivindicação de justiça que exigiria um determinado ordenamento da sociedade Estas alegações devem encontrar um meiotermo mas nâo por encontrar um princípio que preserve o que é verdadeiro em cada afirmaçáo como no regime clássico misto Um termo comum mais seguro mais verdadeiro resultará de transformar reivindicações de direito em questões de conveniência de modo que toda a organização do governo tornese uma questão de conveniência Uma declaração como esta certamente rescende a utilitarismo e na medida em que Burke dá prioridade ao que é conveniente no sentido do real útil e eficaz acima do que é formalmente correto podese dizer que inspirou o utilitarismo uma doutrina do século XIX que limitou noçáo de conveniência de Burke e a explorou para atacar a constituição britânica que este tanto amava bem como o governo de cavalheiros que acreditava necessário Em conformidade com o crescimento das constituições a con veniência para Burke não se refere ao que é realmente ou naturalmente adequado mas sim com típico eufemismo britânico ao que nâo é inconveniente Deste modo assim como a organização total do governo deve ser descrita como uma questão de conveniência podese dizer também que equilibra inconveniências I 500 Burke adota essa noção maquiavélica de que todo o bem humano tem a in conveniência que o acompanha e que portanto todas as coisas humanas estão em movimento mas náo concorda que este movimento precise ser violento nem aceita 624 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a s L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 15 Aristótdes Política 3 12743839127656 16 Works II 308309 ver III 25 17 Works II 333 ver I I I 109 VI 22 18 Maquiavel Discursos sobre os primeiros dez livros de Tito Lívio I 6 o cálculo de conveniência que Maquiavel e os utilitaristas recomendam Embora as constituições devam evoluir são aíastadas por seus estabelecimentos da mera fluidez e das mudanças violentas Os estabelecimentos da constituição britânica no pen samento de Burke desempenham o papel das formas e formalidades constitucionais que tanto despreza Fornecem estabilidade e segurança diminuindo e direcionando o fluxo de paixões e ideias à medida que gradativamente se estabelecem nessa tarefe tal como a nossa instituição estabelecimento é um substantivo verbal cuja substância é apreendida a partir de seu processo Tal como o femiliar uso da expressão o Estabe lecimento íÃe Establishment de hoje os estabelecimentos de Burke referemse a classes sociais informais mas diferem por serem plurais e visíveis aos olhos do público Os estabelecimentos de Burke não são uma conspiração unida para diminuir e reduzir a nada os direitos formais de um povo ao contrário são as proeminências sociais que resultam do exercício real e necessariamente desigual desses direitos a Igreja o inte resse dos endinheirados a nobreza latiíundiária os militares até mesmo a monarquia II 106 363 434 Essas instituições estão tão longe de subverter a liberdade que são os únicos meios para garantila Burke contrasta o crescimento dos estabelecimentos na GrãBretanha ao longo dos séculos uma obra não de ajuste irracional mas que requer o auxílio de mais mentes do que uma geração pode fornecer em que mente deve benignamente conspirar com mente com os produtos dos legisladores apres sados da Revolução Francesa que começam sua tarefe com a ciência demolindo os antigos estabelecimentos e reduzindo o povo francês a uma massa homogênea II 439440455 e terminam com a força bruta substituindo os antigos estabelecimen tos por novas repúblicas matematicamente delineadas que prometem anarquia mas são sustentadas na verdade pela especulação sobre a riqueza confiscada pelo poder de Paris e pelo exército Considerando que os estabelecimentos mantêm a constituição britânica estável e equilibrada com uma excelência na composição que fez um todo coerente dos variados interesses de uma sociedade livre pois não impõe um plano II 440 os princípios que cimentam a República Francesa são instrumentos e evidência de tirania porque não podem se unir sem revelar um viés Burke cita os elogios de Montesquieu aos grandes legisladores da Antiguidade cuja sabedoria os impedia de lidar com os homens como se fossem entidades abstratas metafísicas II 45445 5 mas não infere da necessidade que tem o legislador de consultar o material humano real como fizeram Platão e Aristóteles que nenhuma constituição real pode ser um todo coerente que todas devem ser partidárias A constituição equilibrada pelos estabelecimentos é mantida pelo princípio da propriedade isto é da propriedade herdada Cada um dos estabelecimentos é uma propriedade e Burke deixa claro mesmo no exemplo da Igreja cuja elevada finalidade é consirar a comunidade e para alçar as vontades dos homens acima de egoísmo que o ataque dos revolucionários franceses era uma usurpação da propriedade II 132 Tais bens em eminência social sobrevivem e crescem não pelo motivo que justificou sua aquisição original mas pelos benefícios que podem ser discernidos em seu fímcio namento presente benefícios muitas vezes perceptíveis apenas pelo olho da sabedoria E d m u n d B u r k e 625 e da ecperiência já que as aparências enganam e as formas de livre governo sáo com patíveis com os íins do governo arbitrário e viceversa I 313 II 397 399 Portanto devemos venerar onde náo somos capazes de compreender agora III 114 devemos considerar a constituição como uma herança o que signiíica para repetir não herda da dos fundadores mas como se viesse a nós sem início algum Burke ilustra a ideia de herança com uma analogia filosófica Nosso sistema político explica funcionando segundo o padrão da natureza está em uma justa correspondência e simetria com a ordem do mundo Denomina a isso um órgão permanente composto de partes transitórias e o compara com a totalidade da raça humana que em qualquer momento dado nunca é velha ou de meiaidade ou jo vem mas é sempre a mesma enquanto atravessa a decadência a queda a ascensão e o progresso II 307 Nesta analogia a constituição é comparada a um corpo a raça humana que é um todo e náo tem forma Não é assemelhada a um corpo humano individual com uma forma como a concebiam determinados pensadores medievais A analogia de Burke é genérica e não orgânica de tal forma que podemos conceber que herdamos nossa constituição tal como herdamos a nossa natureza humana sem possi bilidade de rejeição Podemos e devemos aceitar as nossas oportunidades e limitações sem tentar encontrar a origem ou a finalidade do todo Burke assenta sua política em uma noçáo de propriedade e náo o contrário mas consegue manter sua política livre do espírito de aquisição de fato consegue mantêlo direcionado contra esse espírito O que significa dizer que a ideia de herança funciona pelo método da natureza Burke afirmou que é complexa a natureza do homem II 307 334 e sua maneira de compreender a relação entre a natureza e as instituições humanas é especialmente di fícil para nós hoje que expulsamos a natureza do discurso teórico digno de respeito Todavia atacou os revolucionários franceses por nada além de sua conduta não natu ral e se precisamos apreender o pensamento de Burke não podemos permanecer na ignorância do significado de seu ataque à Revolução Francesa A herança pelo método da natureza náo significa que herdamos da natureza nossa política e constituições Embora tenhamos um senso natural de certo e errado Burke não diz à maneira tomista que temos tendências naturais em nossas almas que são cumpridas na política a alma não é um de seus temas Tampouco afirma como Aristóteles que o homem é um animal político por namreza de tal forma que os nossos artificios políticos seriam a realização de uma potencialidade natural Afirma ao contrário que o homem é por sua constimição natural um animal religioso II 363 uma vez que o ateísmo é con tra nossos instintos e nossa razâo Somos impulsionados ao que parece ao reconheci mento de uma vontade superior a fim de evitar a dependência de nossa própria vontade arbitrária um reconhecimento que é um instinto humano para o bem humano Não é que busquemos conhecer a Deus como declarou Tomás de Aquino Quando Burke atacou a Revolução Francesa por violentar nossa namreza quis dizer que esta para 626 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Works II 354 ver I I 155 III 92 20 Ver Works II 484 III 86 nosso próprio bem ignora ou se opõe aos instintos que possuímos o afeto natural para com nossas íamílias c bairros pelo pequeno pelotão juntamente com o freio sobre tais afeições que são nosso senso de justiça e nossa religião II320 3474 10 V 255 Não herdamos da natureza mas herdamos os produtos do íàzer humano de acor do com as leis da natureza Os direitos naturais aos quais Burke depreciativamente chama de direitos metafísicos não vêm a nós diretamente mas como os raios dc luz que penetram em um meio denso são pelas leis da natureza refratados de sua linha reta II 334 Seguindo a pista dada por esta observação íàmosa poderíamos dizer que para Burke as leis da natureza são leis da refração São leis que descrevem as maneiras pelas quais os homens criando suas próprias convenções constituições ou propriedades imitam ou seguem a natureza tal como a natureza conduz a si mesma sem referência aos seres humanos Por exemplo como vimos os homens ao elaborar constituições imitam a natureza na busca de harmonia por meio do embate entre seus poderes discordantes e pela permanência através da ascensão e queda de suas partes transitórias A arte é a natureza do homem diz Burke III 86 repreendendo os íilósofos modernos que colocam o estado de natureza fora da sociedade civil A arte não a escolha é a dádiva especial da natureza para os seres humanos mas a dádiva não é empregada de forma a preservar a excepcionalidade humana Toda a sociedade é artificial porém todos os artifícios estão de acordo com a lei natural o dom da arte deve ser devolAÚdo à natureza Perguntase se a prudência não é afinal soberana para Burke se deve agir sob a disciplina da natureza O governo soberano da prudência é também um governo para a prudência É a prescrição esta grande parte íundamental do direito natural II 422 que descreve o crescimento da propriedade e das constituições e estabelece o método de herança Curiosamente antes dc Burke a prescrição nunca foi considerada parte inequívoca do direito natural pois não se pensava que fosse aplicável ao direito público Burke tomou este conceito emprestado do direito romano em que a prescrição dá direito à propriedade sem escritura devido ao longo uso contínuo ou a retira apesar da escritu ra após um longo e continuado desuso Esta regra do direito privado foi transformada por Burke em uma regra do direito público aplicável às constituições não apenas às leis das nações Assim uma regra de propriedade privada se torna a regra para o governo o mais sólido de todos os direitos não só à propriedade mas que significa garantir esta propriedade o direito ao governo um direito que não é a criatura mas o mestre do direito positivo as regras sradas da prescrição Se o problema da E d m u n d B u r k e 627 21 Wrfe III87 ver 1345 I I 369 V I21 22 O apelo de Burke à autoridade de Jean Domar Works I I 422 ignora a recusa de Domat em apli car a prescrição à propriedade pública Jean Domat La bis ãvila dans leur ordrt natureU III vii 5 Uma antecipação mais próxima de Burke pode ser encontrada em David Hume A Treatise of Human Nature III li 310 ver também William Paley Principia of Moral and Political Phibsop 1785 V I2 23 Works V 137 VI 80 146 ver I I 493 para a declaração de Burke acerca do argumento dos revolu cionários contra a prescrição intrusão da teoria na prática é o tema da íilosoíia política de Burke a prescrição é sua descoberta especial e é preciso dizer já que não aceitava a palavra inovação sua grande reforma V 120 Tratavase apenas de uma descrição do funcionamento da constituição britânica alegava mas como teoria era certamente nova De fato Burke teve como dizia uma participação muito plena na aprovação do Nullum TempusAct de 1769 por meio do qual tentou estabelecer a prescrição como direito público na GrãBretanha Foi com orgulho que Burke fez tal alegação em sua magnífica autodefe sa contra o Duque de Bedford A Letter to a Noble Lord Carta a um nobre lorde mas não alardeou da mesma forma a reforma teórica que justificava a novidade jurídica que ia contra a autoridade do Blackstone Tampouco comentou que a prescrição se tornou direito público em 1769 não por meio da prescrição mas por estatuto O fato de que não apenas o direito mas o direito mais concreto à propriedade deriva do uso prolongado ao invés de uma escritura implica que o governo que emite escrituras é compelido por práticas que vêm de longa data e não por princípios A propriedade por prescrição implica um governo sem uma teoria fundamental a melhor reivindicação para o governo não decorre de se estabelecer a própria reivindicação como a melhor mas por garantir o abandono de reivindicações rivais Todavia era necessária uma teo ria para demonstrar isso e mesmo tendo Burke de usar de toda cautela para apresentá la muito embora sua teoria se encaixasse perfeitamente aos fàtos não se pode negar que sua teoria interfere na prudência de estadistas A prescrição segue a natureza mas a aperfeiçoa A mudança pondera Burke é a lei mais poderosa da natureza Tudo o que podemos fezer e que a sabedoria humana pode fezer é precaverse para que a mudança ocorra por etapas imperceptíveis A na tureza por si mesma pode produzir grandes e rápidas mudanças mas tais mudanças se imitadas em processos humanos provocariam um tenebroso e taciturno desconten tamento naqueles repentinamente despojados de influência e por outro lado insufla ria com uma grande rajada de novo poder III 340 aqueles que por longo tempo sofreram no desalento Deve haver mudanças mas os homens devem tomar cuidado para que ocorram em etapas imperceptíveis A mudança imperceptível pode ser uma mudança jurídica porque não questiona as leis ou a constituição estabelecidas Ou pode legalizar a mudança abranda tornando legais governos que eram violentos em seu início II 435 Concordando com Maquiavel como foi dito anteriormente que todas as coisas humanas estão em movimento Burke nega que o movimento precise ser violento ou revolucionário Por este motivo o direito prescritivo não é o mesmo que direito histórico ou tradicional A prescrição avalia seu posicionamento a partir do uso corrente a menos que as propriedades ou o governo tenham sido há pouco usurpados Opóese às reivindicações históricas que derrubariam o poder estabelecido e é cética em relação à pesquisa histórica que a confirmaria VI 414 Assim para Burke a prescrição é uma importante parte fundamental do direito natural Não chega a afirmar que é a parte fundamental e não especifica o conteúdo 628 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 24 Works V 137 Blackstone Commentaries on the Laws o f England II 263264 completo da lei natural da mesma forma que teóricos mais afeitos à teoria tal como Tomás de Aquino ou Hobbes Burke contentase com a lei natural ser entendida co mo uma lei superior à legislação humana não exige que a lei humana seja vista como uma aplicação do direito natural No debate entre Cícero e Hobbes acerca da questão se os homens têm o direito de elaborar as leis que desejarem Burke fica ao lado de Cícero em negar que o íaçam Acrescenta portanto que todas as leis humanas pro priamente ditas são apenas declaratórias podem alterar a modalidade e a aplicação mas não têm poder sobre a substância da justiça original VI 2122 No entanto uma vez que Burke levou a prescrição para dentro da própria lei natural e pouco acrescentou que estabelecesse a substância da justiça original parece com efeito que a modalidade e a aplicação e mais do que a substância a lei natural é que deve orientar a prática Tratase a lei natural mais de um meio do que de um fim porque a pres crição para excluir a mudança violenta e abrangente impede que os fins da política apareçam na política sem refração pelos materiais e circunstâncias A prescrição é a prudência cristalizada na teoria Como tal é um censor para o restante da lei natural de modo que a lei natural pode enunciar com sua própria voz apenas o princípio de uma lei superior VI 21 VII 99100 504 A liberdade humana está tão longe de se opor ao princípio de uma vontade superior que não pode sobreviver sem ela Embora a sociedade seja o produto de um contrato entre os homens os homens não podem vi ver livres se têm liberdade de celebrar um novo contrato a cada geração Cada geração deve considerar suas liberdades como uma herança inalienável II 306 como sua propriedade exatamente porque essas liberdades não foram criadas por ela Podese aventurar a concluir que no centro da filosofia política de Burke está a constitui ção britânica não a lei natural A lei natural é a base mas apenas porque uma consti tuição criada por acidentes precisa de um fundamento Por mais extraordinária que seja a constituição britânica não constitui para Burke o estado racional Porém o fundamento para a constituição deve ser invisível e imperceptível sob pena de trans tornar a constituição que nele se sustenta Seria possível objetar aqui que estamos esquecendo as leis do comércio que Burke em uma passagem de Thoughts and Details on Scarcity Pensamentos e detalhes sobre a escassez 1795 certa vez igualou para o desgosto de Karl Marx com as leis da natureza e consequentemente com as leis de Deus As leis do comércio ao que parece promovem demasiados novos empreendimentos para que possam ser explica das pelo princípio da prescrição 207 V 217 256 É este o caso exceto na medida em que a prescrição acolhe e justifica a iniciativa privada sem concessão ou alvará do governo Contudo os bens móveis dos comerciantes jimtamente com as habilidades ativas que os criam poderiam ser mantidos sob controle e mantidos em equilíbrio E d m u n d B u r k e 629 25 Works V 100 Maix Capital capítulo 24 seçáo 6 Marx aparentemente desconsiderou a seguinte pasKm em Burke que é mais conforme seu temperamento Até mesmo o comércio as profissões e as manufaturas os deuses de nossos economistas políticos sáo eles mesmos apenas criaturas e eles mesmos apenas resultados os quais como causas primeiras escolhemos culmar Works II 351 acreditava Burke pelo estabelecimento das propriedades territoriais pelo governo dos cavalheiros Com alguma base na experiência inglesa e alguma esperança uniu a su premacia dos interesses latifundiários o que corretamente afiançava ser recomendado pela prática política da Antiguidade em particular de Aristóteles e Cícero com uma declaração de que não poderia ser encontrado exceto como sátira ou desaprovação em escritores antigos O amor pelo lucro embora muitas vezes levado a um excesso ridículo por vezes maléfico é a grande causa da prosperidade de todos os estados V 3 13 342 Se por um lado os interesses latifundiários deveriam ser supremos não de vem formar um corpo separado na nação como em países diferentes da CráBretanha e apesar de Burke endossar os preconceitos que orientam as vidas dos cavalheiros náo aceitava ou compartilhava o desprezo do cavalheiro por aqueles que ganham dinheiro O próprio Burke representou um eleitorado de comerciantes a cidade de Bristol no Parlamento de 17741780 embora seus eleitores não ficassem satisfeitos e em suas próprias propriedades em Beaconsíield mantinhase atuante como atestam suas cartas na busca de novos métodos e maiores lucros na íricultura Não importa como se procure ligar a doutrina da lei natural de Burke à tradição do direito natural encontrar uma proximidade maior a Cícero ou a Locke devese admitir que dá maior visibilidade nâo a esta conexão ou a sua própria lealdade dentro da tradição mas às características peculiares da lei natural segundo ele Sua lei natural lega a soberania à prudência e dá destaque às circunstâncias náo exige a transcendên cia das emoções autointeressadas incluindo o amor pelo lucro que Burke enfatica mente rótula como naturais e é mais do que tolerante em relaçáo aos preconceitos é deveras hospitaleiro para com eles Com vistas a proteger os preconceitos dos ca valheiros Burke nâo desejava revelar as dívidas da constituição britânica para com a tradição filosófica embora náo hesitasse em bradar que Montesquieu que divulgou essa constituição para a admiração da humanidade fosse um homem sem as tintas de um preconceito nacional III 113 Somos em geral homens de sentimentos incultos afirma Burke dos britânicos em uma passagem do Reflections on the Révolution in France Reflexões sobre a revo lução na França felicitando o seu povo por sua impermeabilidade à filosofia do Ilu minismo Prezamos nossos preconceitos continua ele e assumindo mais vergonha de nós mesmos estimamolos porque sáo preconceitos Nossos homens de especu lação uma de suas poucas referências aprobatórias a essa estirpe em vez de explodir os preconceitos em geral usam sua sagacidade para descobrir a sabedoria latente neles II 359 O preconceito náo se opõe à razâo mas se alia a ela O preconceito fornece os sentimentos naturais incultos que dão permanência à razão pois é volúvel a razáo desassistida e ao mesmo tempo o preconceito é de rápida aplicação em situações de emergência enquanto a razáo por si só é hesitante O franco reconhecimento de Burke de que a política é inseparável do preconceito de que a sociedade náo pode 630 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 26 Correspondence II 165167 por exemplo nunca ser racional e iluminada fez lembrar Aristóteles mas sua confiança de que o preconceito contém suficiente sabedoria latente não Para Aristóteles a sabedoria latente de feto existe na opinião política mas não no isolamento incontestável que Burke parece supor Pelo contrário de acordo com Aristóteles tipicamente a opinião política afirmase contra um adversário presente ou imiinário tem o caráter de um debate Qualquer observação para não mencionar qualquer estudo especulativo de opinião política revela diferenças que tomam a forma de contradições em particular a diferença típica na política entre os muitos e os poucos Burke deixa de fora o óbvio partidarismo do preconceito Embora fele muitas vezes dos poucos e dos muitos não salienta a sua diferença de opinião o preconceito do cavalheiro contra o vulgo versus o ressentimento do povo contra o privilégio Como se pode lembrar Burke não pensa que todo homem possui um direito natural nem o povo um desejo natural de gover nar II 177 332 III 497 O povo está contente em deixar latente a sua sabedoria ao invés de afirmála e assim a aristocracia pode ser educada para governar sem insistir em sua própria especificidade Aristóteles acreditava que a opinião política tornase sabedoria somente se as afirma0es partidárias forem expostas para exame corrigidas cm sua parcialidade e combinadas com a verdade de seus adversários Escreveu sua Politica como se estivesse conduzindo um debate e sugeriu que o estadista poderia melhorar a política a des peito da inerradicabilidade dos preconceitos por retirar as implicações latentes em um preconceito o que poderia tornálo mais saudável Burke no entanto deixa implícito que a sabedoria no preconceito permanece sabedoria somente enquanto estiver latente os preconceitos não devem ser perturbados ou serão inflamados os sentimentos natu rais Parece pressupor uma cooperação fundamental entre cavalheiros e povo passível de perturbação pelo que está de fora mas essencialmente incontroversa A aristocra cia natural governa sem se afirmar por conseguinte sem se impor Contudo mesmo se isso fosse possível Burke assumiu um risco ao recomendar que se deixassem os preconceitos sem iluminação como se pudesse ter certeza de que o preconceito jamais aferroaria Sabia que a vontade dos muitos e seus interesses muitas vezes difeririam II 325 No entanto supõe que está fora das possibilidades do homem criar um preconceito Um rei pode criar um nobre mas não pode criar um Cavalheiro O lento e natural crescimento dos preconceitos nos costumes e sentimentos iria tornálos inofensivos ao habituar tanto cavalheiros e o povo à satisfeção de suas necessidades dentro dos limites de suas emoções naturais Filósofos e estadistas devem deixar que os preconceitos exerçam seus bons efeitos sem interferência Todavia o próprio Burke não deixou o preconceito cavalheiresco tal como o encontrou Afirmou certa vez que sua utilidade principal era de ressoar como uma lamentável matraca para despertar os cavalheiros em seu partido A própria con E d m u n d B u r k e 6 3 1 27 CorrespondenceVll30 28 Conrespondence III 388389 cepçáo de partido que Burke elaborou em Reflexões sobre a causa dos presentes descon tentamentos era uma impbcaçáo do preconceito cavalheiresco utilizado para corrigir o preconceito cavalheiresco Assim ser patriotas de forma a náo esquecer que somos cavalheiros foi como Burke resumiu seus conselhos I 379 Anteriormente na Grá Bretanha e em outros países livres fora tomado como pressuposto que um político não poderia ser ao mesmo tempo partidário e patriota que o partidarismo como prática regular não podia basearse em princípios Burke foi o primeiro a argumentar o contrá rio que o comportamento dos políticos com base em princípios deve inevitavelmente ser partidário e que o partidarismo náo é apenas ocasionalmente necessário em casos de emergência mas é útil e respeitável no funcionamento ordinário da constituição Essas crenças sáo agora consideradas universais e sem reservas tal como eram seus contrários antes da contribuição de Burke e na medida em que Burke foi o responsável pela mu dança sua teoria teve um efeito poderoso No entanto para fazer essa alteração Burke apelou para o preconceito cavalheiresco não esquecer que somos cavalheiros Os políticos Burke tinha em mente Lorde Chatham esquecem que sáo cavalheiros que fingem colocar a devoçáo patriótica ao público à frente de todas as amizades parti culares e desfilam sua virtude sobrenatural como uma qualificação necessária para um alto cargo Quando vejo em qualquer um desses destacados cavalheiros de nosso tempo a pureza angehcal o poder e a beneficência devo admitir que são anjos Nesse meiotempo nascemos apenas para sermos homens I 378 Isso traz à lembrança um trecho de O Federalista 51 que diz Se os homens fossem anjos nenhum governo seria necessário Enquanto em O Federalista a natureza do homem não angélico justifica a tolerância da ambição para Burke confirma a necessidade de que a virtude cavalhei resca se oponha à ambição hipócrita O partido é informal todavia quando tornado respeitável não é mais oculto ou conspiratório Com a sua fonte na amizade privada e relaçóes honrosas a fidelidade partidária em princípio fornece certa consistência visí vel a não deserção dos amigos se torna a distinçáo de um patriota Na política partidá ria cavalheiresca a flexibilidade maquiavélica não é necessária e náo é recompensada A virtude cavalheiresca para Burke é hombridade Não seria ir longe demais dizer que hombridade é virtude de acordo com Burke Foi a virtude que reivindicou para si mesmo em seu progresso na vida afirmou em Carta a um nobre lorde Eu nâo possuía artes apenas hombridade E foi esta a virtude que antepôs à liberdade propagada pelos revolucionários firanceses Adoro uma liberdade com hombridade regulamentação moral Para Burke a hombridade parece ser cornem e prudência combinadas de tal forma que as ações viris são abertas à inspeção pública sem ser subservientes à opinião pública Possuindo um componente de humildade cristã a hombridade não chega até o orgulho da magnanimidade I 509 II 536 III 438 entretanto por esse motivo talvez seja mais eficaz em oposição à vaidade e também 632 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a f L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 29 WrbV125verII128 30 Works II 282 ver I 323 370 376 451490 II 287 308 339 352 III 438 V 212 porque tem a força de uma virtude que aproxima os homens em lugar de elevar apenas alguns A vaidade e a pretensa piedade eram os vícios que Burke percebia na doutrina francesa dos direitos do homem tentou substituir essa doutrina pelos reais direitos dos homens os direitos de homens viris que podem sustentar as rígidas virtudes bem como as liberais II 331 418 536 537 V 322 Nos nossos dias a hombridade está perdendo a sua identificação com o masculino mas após a reveladora denúncia de fraqueza democrática de autoridades tão diversas como Tocqueville e Nietzsche nâo podemos deixar de reexaminar a principal virtude de Burke Burke o paladino da prudência cavalheiresca passou sua vida política além dos limites da prudência cavalheiresca olhando para um horizonte que seu partido náo conseguia discernir instandoo a atividade incomum em terreno hostil É preciso tam bém dizer que se dedicou a proteger e aperfeiçoar os limites da prudência cavalhei resca a afestar os especuladores subversivos e a reformar as práticas constitucionais tais como o partido e impeachment o que facilitaria o governo dos cavalheiros Tendo auxiliado a fundar seu partido por darlhe uma doutrina e uma alma em vez de diri gilo abandonouo após a Revolução Francesa e em seguida atacouo Seus colegas nâo conseguiam perceber a diferença entre a Revolução Americana e a Francesa pois náo compreendiam a singularidade deste último evento a mais completa revolução já conhecida A íilosoíia política de Burke revolve em torno da defesa de uma consti tuição real ao contrário da construção de uma constituição imaginária Seu tema é a suficiência ou melhor a perfeição da prudência cavalheiresca Porém sua defesa de seus amados cavalheiros revela suas limitaçóes talvez melhor que qualquer ataque revolucionário Pois os revolucionários não encontraram um substituto adequado para os cavalheiros nem nós mesmos o conseguimos embora tenhamos procurado entre burocratas tecnocratas e democratas Seria quase possível definir cavalheiros pela soma de tudo o que falta em burocratas tecnocratas e democratas A reverência com que Burke os aprecia é mais clara do que a de seus críticos os defeitos dos cavalhei ros transparecem na necessidade de sua própria contribuição para a sua defesa Essa contribuição foi muito além de apenas alertálos para os perigos que eram por demais obtusos para perceber e despertálos com frases bonitas Usando o que certa vez deno minou a energia oportuna de um único homem V 78 Burke tentou fortalecer o governo dos cavalheiros de modo a tornálos menos susceptíveis a subversão e ataque O resultado no século XDC foi ao mesmo tempo de fixálos no lugar imóveis em seu preconceito recémfilosófico os conservadores e afrouxar suas conexóes confiando na promessa de que a reforma seria o meio de sua conservação os liberais Um tanto a contnosto Burke dá testemunho da imperfeição necessária da política no próprio seio de seus inspiradores discursos e nobres açóes L e it u r a s A Burke Edmund Rcflections on the Revolution in France Burke Edmund An Appealfirom the New to the OU Whi E d m u n d B u r k e 633 B Burke Edmund Tmcts on the Poperty Laws in Ireland Burke Edmund Thoughts on the Cause ofthe Present Discontents Burke Edmund Speech to the Electors ofBristol nov 3 1774 Burke Edmund Speech on Conciliation with America Burke Edmund iMter to the Sheriffi o f Bristol Burke Edmund Speech on Economical Refbrm Burke Edmund Speech on the Refbrm ofthe Representation ofthe Commons in Parliament mai 7 1782 Burke Edmund Letter to Sir Hercules Langrishe 1792 Burke Edmund Letter to a Noble Lord Burke Edmund Four Letters on a Regicide Peace 634 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y J erem y B enthâm 17481832 J ames M ill A 17731836 Jeremy Bentham pode ser descrito como filósofo político e jurídico reformador social fundador do utilitarismo e philosophe O utilitarismo indica a visáo de que saber se um ato é certo ou errado depende de se acteditar que suas conseqüências sejam boas ou ruins Para Bentham bom e mau refèremse aos prazeres ou dores produzidos pelas experiências dos seres humanos individuais Philosophe referese a uma categoria de intelectuais europeus do século XVIII entre os quais Bentham conquistou um suces so muito mais imediato do que na sua Inglaterra natal Como os philosophes Bentham acreditava que inevitavelmente a condição humana será aperfeiçoada através da simples proliferação do conhecimento no sentido de informação enciclopédica juntamente com princípios abstratos para a classificação das informações e de sua colocação em funcio namento para a reforma da sociedade Bentham não confiava na experiência herdada nem nas características de ordem política defendidas pelo apelo à aceitação tradicional A dependência de práticas antigas era para ele um sinal de ignorância Em Article on UtiUtarianism Long Version Bentham faz referência à muitíssimo celebrada obra de Helvétius intitulada Sur Vesprit Do espírito 1758 Nessa obra iniciouse a aplicação do princípio da utilidade a casos práticos À direção da conduta humana no curso ordinário da vida formavase uma conexão entre a ideia vinculada à palavra felicidade e mais uma vez entre a ideia vinculada à palavra feUcidade e as ideias respectivamente vinculadas às palavras prazer e dor Vinculada às palavras utiUdade e princípio de utilidade enconttavase agora uma abundância de ideias ideias que não podiam deixar de ser continuamente presentes e femUiaies às mentes mais de satentas pouco observadoras e pouco Em seguida Bentham discute a importância para seu pen samento de Advancement ofLeaming Avanço da aprendizagem de Francis Bacon de dAlemben e da Encyclopedia francesa da Cyclopedia Enciclopédia de Chambers e dos ensaios políticos de Hume Ao mencionar sua própria reputação na França observa Bentham Maior muito maior é a honta confrrida a ele naquele país estrangeiro do que em seu pióprio Deontology togither with A Table ofthe Springs ofAction and The Article on UtiUtarianism ed Amnon Goldwotth Oxford Clarendon Press 1983 p 290 311 Nesta visão a ignorância para Bentham era um problema que tinha uma so lução O antídoto para a ignorância era ser bem informado Não surpreende então que Bentham rejeitasse com desprezo o conceito de ignorância socrática Esta última aponta a misteriosa dificuldade de atingir qualquer compreensão fixa e final das inda gações fundamentais sobre como devemos viver Aparentemente de acordo com o Sócrates de Platão as questões do certo e do er rado do bom e do mau do belo e do feio jamais deveriam entrar em conflito na vida política Euttfron 7 O início da sabedoria seria ter sempre em mente esta condição preocupante e limitante em nossos argumentos uns com os outros O seguidor de Só crates pode questionar as opiniões tradicionais da sociedade mas não necessariamente para subvertêlas pois é sempre possível que se descubra serem essas opiniões dignas de apoio Além disso um seguidor de Sócrates não deixaria de levar em consideração o argumento do senso comum de que se alguém está contra a ordem vigente deve estar disposto a dizer que alternativa tem para oferecer A tarefa do filósofo é recordar seus parceiros dialéticos da necessidade de contemplar alternativas por meio de um esforço nem sempre bem recebido para localizar os pontos fracos de argumentos apresentados como fortes A ignorância socrática exacerba a dificuldade de harmonizar a busca pela sabedoria e as exigências da tomada de decisões políticas Bentham concluiu ser inapropriada esta tradicional reticência filosófica bem como uma barreira para o desenvolvimento de uma adequada ciência jurídica e de governo Desta forma acirra a diferença entre um filósofo socrático e um philosophe Bentham combina o estado de espírito do philosophe ao utilitarismo chegando ao que concebe como a solução simples que desvendará as complexidades do universo social É possível ser bem informado porque se pode discernir a base universal das açóes humanas em tudo o que as pessoas fazem e dizem Bentham desejava traduzir o significado das açóes em cálculos explícitos dos prazeres e dores que acompanham essas açóes a fim de aconselhar as pessoas sobre a adequação dos meios que escolheram para a busca da felicidade Bentham rejeitou a possibilidade de avaliar açóes de acordo com sua correção ou incorreção objetiva putativa Não podemos julgar açóes exceto quanto a suas conseqüências ou de forma independente hierarquizar os méritos das experiências que as pessoas julgam prazerosas Bentham repudiou o empenho dos filósofos socráticos para fazer exatamente isso reputandoos como sempre o fizeram os adversários de Sócrates um incentivo para sua impaciência em dar seguimento à criação de uma ordem social racional Este modo de pensar é ainda ilustrado pelo fato de que Bentham estudou Direito na Universidade de Oxford mas nunca exerceu a profissão Seus conhecimentos da legislação inglesa levaramno a desprezar sua imprecisão e desordem A tradição jurí dica inglesa em si era um mistério que não se podia explicar de maneira simples Na medida em que se distanciou dessa tradição reforçouse a propensão de Bentham por uma ciência da legislação Veio a ser um analista e um teórico procurando transformar e desmistificar a ordem inglesa antes de se estabelecer nela Ser um teórico no sentido de Bentham era buscar suplantar de uma vez por todas a filosofia política no sen 636 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y tido socrático era transformar todos os mistérios náo resolvidos em problemas sim ples com soluções jurídicas Entre a vasta gama de seus escritos sobre uma vasta gama de assuntos sua obra mais influente ainda éAn Introduction to the Principies of Morais and Leslation Uma introdução aos princípios da moral e da legislação 1789 A essência de sua posição pode ser apreendida nos argumentos aí expostos Neste livro Bentham elucida princípios para orientar a renovação e a transfornu ção da política e da sociedade através de uma legislação cientííicamente concebida Ben tham viase como um cruzado lutando para destruir o preconceito de forma a instalar o espírito crítico na sociedade O costume e a tradição seriam culpados a não ser que pudessem provar sua inocência assim emancipando a humanidade dos modos e costu mes fortuitos a que pode ter dado início por descuido mas que são Eora os interesses enraizados de uns poucos à custa dos demais Interpretava a situação contemporânea como um conglomerado de princípios e práticas conflituosos e indefensáveis em que náo era possível distinguir o irracional do racional A legislação inglesa para emprar uma íamosa metáfora de Descartes era como uma mansão construída ao longo de mui tas eras em uma mistura de estilos arquitetônicos sem elância e proporção O direito consuetudindrio common law como se denomina na Inglaterra a lei judiciária como poderia ser denominada com mais propriedade em toda parte essa composição fictícia que náo tem pessoa conhecida como seu autor nenhuma coleção conhecida de palavras como sua substância constimi em toda parte o corpo principal do tecido legal como o imaginário éter que na feita de matéria sensível preenche a amplidão do uni verso Farrapos e malhas de verdadeiras leis fincados nessa base munária compõem o mobiliário de cada códo nacional O que decorre daí Que aquele que deseja um exemplo de um corpo completo de leis ao qual se referir deve começar por criálo Descartes afirmou que há muitas vezes menos perfeição nas obras compostas por várias partes e realizada pelas mãos de vários mestres Edifícios planejados e executados por um arquiteto são em geral mais belos e melhor proporcionados do que aqueles que muitos tentaram colocar em ordem Uma vez que grande parte da Je r e m y B e n th a m e Ja m e s M i l l 637 2 Jeremy Bentham An Introduction to the Principies of Morais and Legislation Uma introdução aos princípios da moral e da legislação ed J H Burns and H L A Hart London and New York Methuen University Paperback editíon 1982 Dotavante citada como PML Ao felar dessa obra em 1829 Bentham descreveu a si mesmo da sAÚnte forma Manter dores e prazeres desde o início em vista do caráter dos principais materiais de que é composta estrutura da mente humana encarregouse de elaborar a primeira listiem tentada para ser enquadrada no tipo de artigos cha mado motivos sendo esses motivos acompanhados e explicados pelos diversos prazeres e dotes correspondentes um motivo nada sendo além do medo de alguma dor ou a esperança de um certo prazer Articles on Utilitarianism Artigos sobre o utilitarismo p 293 3 PML Prefácio p 8 4 Descartes Discourse on the Method ofRighdyConductii the Reasonin The PhilosophicalWorh of Descartes trans E S Haldane and G R Ross Cambridge Cambridge University Press 1972 V I p 87 Discours de la méthode pour hien cottduirt sa rmson et chercher la veriti dans les Sciences Discurso sobre o método para bem conduzir a razão lu busca da verdade dentro da ciênda nossa existência é composta de diferentes partes por muitas mãos não é difícil perce ber que para o proponente de métodos racionalistas de planejamento essa existência é matériaprima a ser demolida e reconstruída a partir do zero Todavia ao mesmo tempo Descartes que com Francis Bacon foi o principal defensor da busca moderna pelo método racional também expressou cautela acerca de qualquer reivindicação de um indivíduo particular para a reforma de um estado por sua total alteração e por sua inteira demolição a íim de reerguêlo de novo corretamente Descartes reconhecia a violência e a incerteza potenciais que acompanham a reforma social Admitia também que o costume pode amenizar as falhas de grandes corpos O costume temnos ajudado a evitar ou insensivelmente corrigido imper feições que a mera previsão teria encontrado dificuldades em resguardar Descartes conclui que as imperfeições sáo quase sempre mais suportáveis do que seria o processo de removêlas Não posso de forma alguma aprovar esses espíritos turbulentos e ítados que não sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna para a gestão dos assuntos públicos nunca deixam de ter em suas mentes algumas novas re formas E se acreditasse que neste tratado estivesse contida a menor justificativa para tal loucura lamentaria permitir que fosse publicado Descartes expressa um grau de reticência filosófica que Bentham parecia obriga do a desconsiderar devido à suposição de que não existia necessidade de tal conten ção Se e quando diminuíssem as dificuldades da reforma social tal como Bentham acreditava ter demonstrado ser possível uma reforma a seu estilo poderia vir a ser uma conseqüência legítima do método cartesiano Não haveria mais motivo para ser reticente dado o advento de adequados métodos modernos para finalmente tornar a íilosoíia realmente útil seria possível unir pensamento e ação Temendo os espíritos turbulentos e agitados Descartes poderia decidir andar sozinho e no crepúsculo ser prudente e paciente na busca do conhecimento racional abrindo caminho para um philosophe sem o ser ele mesmo Desapareceu com Bentham essa cautela Eliminado o ambiente da cautela filosófica é fácil que o estado existente da sociedade comece a parecer intolerável desagradável para o teórico que a contempla e pouco adaptado para suscitar um aperfeiçoamento daqueles condenados a nela ha bitar Bentham não aprovava a perspectiva alternativa de Blackstone e de Edmund Burke Burke encontrava beleza onde Bentham enxergava a feiura a beleza de uma ordem elaborada convencional refletindo gerações de tentativa e erro e realizações legitimadas pela antiguidade Do ponto de vista de Burke abstratos princípios sociais eram caricaturas extraídas de seu contexto e em seguida reaplicadas como se fossem 638 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 5 Ibid p 89 6 Ibid p 8990 7 Ibidp9 8 Sobre o ataque geral de Bentbam a Blackstone consultese A Fragment on Govemment Um mento sobre o governo in The Collected Works of Jeremy Bentham ed Jobn Bowring repr New York Russell Russell 1962 v I p 221295 modelares à própria cultura que deu a esses princípios qualquer significado que pu dessem realmente ter Do ponto de vista de Bentham quanto mais dados recolhidos quanto mais rápido poderia ser construído um modelo simples do mundo Essa diferença de perspectiva sobre a tradição jurídica inglesa e sobre a validade do costume e da tradição em geral é crucial para entender muitos dos debates da mo derna filosofia jurídica e política desde a época de Bentham e Burke Anteriormente o domínio da lei significava que as pessoas poderiam ter expectatívas razoáveis quanto ao que lhes exriam as rras que tegiam suas transações Tais iras evoluúam por meio das decisões individuais de juizes cujas decisões eram baseadas nas práticas costumeiras nos locais onde presidiam Esuia ausente a ideia de uma fonte centralizada de legislação uniforme informada por uma ciência da natureza humana Bentham queria fomecêla Ao fornecêla Bentham pretendia estabelecer um quadro geral das condições so ciais que acreditava iriam inevitavelmente aumentar o bemestar do público Mais sur preendente Bentham acrediuva que se isso fosse foito na Inglaterra tomaria corpo tun padrão pelo qual reformar o mundo inteiro Os legisladores que tendo se libertado das amarras da autoridade aprenderam a erguerse acima da névoa do preconceito sabem como fàzer leis tanto para um país como para outro Bentham não tínha a intenção de dizer às pessoas o que fezer tencionava de feto voltar seus cálculos para direções fimtífe ras sob leis que promovessem a maior felicidade do maior número Decerto não acredi tais que se pudesse simplesmente ditar a felicidade de outros Reconhecia que a ordem projetada pela legislação encorajaria a melhora de atitudes e procedimentos nas relações entre os indivíduos mas não buscaria apenas ditar atitudes e motivações pessoais Estas acreditais isriariam enormemente entre indivíduos e circunstâncias históricas diferen tes No entanto reformas na legislação do tipo preconizado por Bentham inevitavel mente afetariam crenças e hábitos de conduta pessoais tomando mais fácil paia alguns e mais difícil para outros persistirem em seus hábitos costumeiros O próprio princípio da maior felicidade para o maior número deixais implícito que algumas felicidades não seriam e na verdade não deveriam ser satisfeitas Legislar exige um discernimento acerca da forma como os princípios da moral e da legislação são adequados a condições históricas específicas A capacidade de julgar de modo legitimo reconhecia Bentham é uma arte bem como uma ciência Acredi Je r e m y B e n th a m e Ja m e s M i l l 639 9 C f the Influence ofTtme and Place in Matters cfLegislation in ibid p 180 col B 10 No Artide on Utilitarianism Bentham reconhecia um prohlema com a expressão de maior núme ro Se em uma sociedade de 4001 orem transferidos a 2001 todos os meios para a felicidade deixando 2000 sem nada escravizados é óhvio que o maior número tem a maior felicidade e a sociedade será extremamente infeliz Bentham petcehia que o princípio podia ser utilizado equivo cadamente para racionalizar a perseguição sistemática de grupos tais como os católicos romanos na GrãBretanha ou os protestantes na Irlanda p 310 Tal efeito opunhase completamente a suas intençóes Um princípio que estabelece como o único direito e fim justificável do Govemo a felicidade do maior número como se pode negar que seja perigoso Perigoso para todo o Governo que tem como seu fim ou ohjetivo real a maior felicidade de alguém determinado A Fragment on Government p 272 nota de rodapé explicativa col A tava porém que existem julgamentos melhores e piores os que são racionais por que informados pela ciência e os que são irracionais porque governados pelo simples preconceito No âmbito do julgamento pode sempre haver argumentação em torno de decisões para fazer uma coisa em vez de outra mas náo se pode questionar a supe rioridade do julgamento informado pela ciência devese atender ao preconceito e aos costumes mais cegos mas não precisam estes ser os árbitros e guias exclusivos Aquele que ataca o preconceito de modo arbitrário e sem necessidade e aquele que aceita ser conduzido por ele de olhos vendados como um escravo da mesma maneira se afesta da linha da razão A ciência do direito é para a arte da legislação o que a ciência da anatomia é para a arte da medicina com esta diferença de que seu tema é aquilo com que o artista tem que trabalhar em vez de ser aquilo sobre o que tem de trabalhar Tampouco o Estado o corpo político sofre menor ameaça devido a uma falta de fami liaridade com uma ciência do que o corpo natural devido à ignorância da outra É revelado aqui um dos significados centrais do apelo ao princípio da utilidade A ciência de Bentham é universal mas deve ser adaptada às condições históricas em que é aplicada No entanto ao mesmo tempo náo se pode conceder às condições históricas um poder de veto sobre a aplicação da lslação científica Caso isso acontecesse então o preconceito poderia legitimamente prevalecer sobre a ciência ou poderia reivindicar um discernimento inacessível para a ciência Esta tensão entre o costume e a tradição de um lado e o progresso científico de outro está no centro do debate político moderno A oposição entre conservadores e progressistas será resolvida em íàvor do progresso por Bentham e seus seguidores utilitarístas a busca cientificamente informada da felicidade é justificada pelo feto de que não foi ainda demonstrado nenhum limite empiricamente demonstrável sobre a autorrealízação ou o aperfeiçoamento humano Seguindo a tra dição de Francis Bacon Bentham acreditava que a tarefe de remediar a condição do homem mal havia começado mas era uma grande esperança para o futuro Além disso Bentham não acreditava ser o aperfeiçoamento social uma questão indecifrável Melhor alimentação melhores condições sanitárias melhor educação maior igualdade de oportunidades estas são as condições simples e obviamente de sejáveis que constituíam para Bentham as condições necessárias para a felicidade hu mana Acreditava que está perfeitamente dentro do âmbito dos poderes do engenho humano aperfeiçoar as organizações sociais nas quais esses bens desejados estarão mais e mais disponíveis O poder da íilosoíia política de Bentham depende do grau em que é convincente sua visáo de felicidade combinada a seu otimismo acerca da construção científica das políticas para alcançála Para o seguidor de Bentham por outro lado o progresso na esfera material con tribuirá enormemente para a produção de condições nas quais se dissipará a ansiedade espiritual Náo é óbvio que tal ocorrerá quando se é propenso a acreditar que a distinçáo 6 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Ofthe Influence ofTime and Place in Matters ofLegislation p 180 col B 12 PML Prefece p 9 ver também o Prefôdo à primeira edição de A Fragment on Govemment 1776 in Works V I p 226 col A entre a satisfação material e a espiritual é tal que a satisfação de uma não satisfaz a outra ou que são antagônicas Bentham no entanto adotando uma maneira de pensar que pode ser rastreada até Hobbes não concebe um método científíco para prever a satis fação espiritual Não é possível fazer as pessoas boas ou felizes Entretanto é possível conceber melhorias nas condições materiais que caso contrário poderiam afetar ne gativamente a sensação de bemestar Para Bentham seria impossível determinar a felicidade humana determinada por referência a um bem objetivo ou aos direitos naturais tal proclamado na Declaração de Independência Americana ou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França O objetivo de alcançar a maior felicidade do maior número náo signi fica que seja privilegiada a felicidade particular de alguém Na verdade é totalmente provável que na prática esse princípio resulte em políticas dentro das quais algumas ideias de felicidade serão sistematicamente depreciadas e portanto para Bentham o princípio em si é uma fonte de tensão em seu pensamento Dependendo do assunto e do ponto de vista a negação de qualquer felicidade especial pode parecer boa ou ruim Podese julgar boa a eliminação da escravidão e de condições de trabalho abusivas em geral embora náo pelos donos de escravos e exploradores podemse considerar em geral ruins o transporte escolar forçado e a ação afirmativa na contratação embora não por alguns pais e seus filhos ou pelo trabalhador que suspeita de discriminação para alguns a liberdade de religião parecerá essencial à dignidade humana e para outros o caminho para o declínio moral Náo importa como os indivíduos avaliam essas questões porém uma política social planejada para promover a maior felicidade para o maior número nâo precisa ser justificada em relação a qualquer indivíduo ou grupo específicos muito embora em princípio tenha como finalidade o bemestar do maior número possível Bentham rejeita a noção de bens absolutos ou verdades autoe videntes porque pretende defender a autorrealização individual Ainda assim para que melhore o bemestar geral de modo científico é razoável que a engenharia social tenha precedência sobre reivindicações individuais de direitos Se é possível resolver o conflito entre os direitos sociais e os desejos individuais de forma satisfatória em termos dos princípios de Bentham é uma questão que o estu dante atento deve examinar com cuidado Essa questão adquire um significado maior quando se percebe que a moderna tradição liberal desenvolve grande parte de seu pen samento político em termos de encontrar um equilíbrio adequado entre a interferência e não interferência na vida dos cidadãos pela ação governamental Assumiram grande importância as questóes relativas ao adequado âmbito de aplicação e aos limites da regulamentação governamental O feto de se terem tornado questões centrais indica a poderosa influência do pensamento de Bentham É possível que o impacto desta forma de pensar resida em aceitar como per manente o conflito entre direitos e desejos assim nunca se está livre para desistir do J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 1 13 Ver Anarchical FaUacies beingAn Fxamination ofThe Dedarations o f Rights issued during The French Revolution in Works v 11 p 489534 esforço de repensar e rever as próprias suposições sobre a ordem social Uma vez que o costume e o hábito sáo arautos do preconceito irracional devese buscar o antídoto na aplicação autoconsciente do princípio da utilidade às açóes e à legislação Se é possível írfastar os membros da sociedade de sua condição irrefletida e lhes ensinar sob os aus pícios do princípio da utilidade a empregar cálculos de vantagens e desvantagens fi cará claro que a grande maioria é perfeitamente capaz de autorregulação A maioria se mostra capaz de alterar sua conduta para permanecer em sintonia com a evolução das condições sociais Com o tempo concordaríamos que o princípio geral que os seres humanos são iguais e devem ser tratados como iguais é verdadeiro e adotaríamos a convicção dc que cada um deve contar como um e não mais que um Na maior parte então os seres humanos seriam e estariam livres para entrar em relações contratuais voluntárias de acordo com seu próprio entendimento No utilitarismo não existe limite inerente ao uso do poder governamental para fins de reforma social No entanto para Bentham isso significava principalmente a remoção de restrições arbitrárias e obsoletas à dependência dos indivíduos a suas próprias íáculdades na busca prudente de seus interesses A legislação científica tinha a intenção de libertar na direção do individualismo democrático Esperavase que le vasse ao que mais tarde seria chamado por John Stuart Mill afilhado filosófico de Bentham de sociedade em crescimento e aperfeiçoamento espontâneos Essa visão de ordem progressiva trazia consigo a crença otimista de que a estabili dade política não depende de duras restrições de que a natureza humana não é nem irre mediavelmente ingovernável nem volúvel que não existe uma classe especial de pessoas naturalmente adequadas para governar A infiuência desta visáo resultou em significati vas revisões do direito penal inglês no século XIX Por exemplo foi bastante reduzido o número de crimes puníveis com a morte Bentham transferiu a êníàse da punição por ter agido errado para um aumento dos incentivos para agir certo Desempenhou importan te papel no desenvolvimento da sensibilidade moderna que abomina causar dor e que quando compelida a causála toma essa necessidade como um sinal de resquícios de imperfeições no projeto social Acima de tudo tal sentimento resultou em snificatiwis tdbrmas eleitorais incentivando um padrão de crescente ampliação do direito de voto Essas ideias se aglutinaram às ideias do liberalismo econômico da liberdade inte lectual e da tolerância religiosa na Inglaterra do século XDC Deveriam ser removidas as barreiras artificiais ao comércio deveriam ser eliminadas as restrições à livre crítica ao governo p ex diíámação sediciosa e aqueles anteriormente excluídos na Inglaterra católicos ateus judeus deveriam receber todos os privilégios da cidadania Bentham imaginou uma sociedade de individualistas cooperativos Ninguém deve ser tratado como infalível em opinião ou juízo pois ninguém pode saber se a própria concepção de realidade corresponde à realidade como tal Não se justificam nem as pretensões de autoridade absoluta nem as reclamações de direitos absolutos Sob um governo de leis qual é o lema do bom cidadão Obedecer prontamente censurar livremente 642 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a 5 L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 14 A Fragment on Govemment p 230 col A O entendimento comum da política desde a época de Hobbes e Locke toma como questão central o equilíbrio entre liberdade e autoridade Bentham acreditava que sua ciência política possibilitaria criar uma relação simbiótica permanente entre as duas Dependendo de quais características do seu pensamento são enfatizadas Ben tham pode aparentar estar de um lado ou de outro Por um lado as leis devem ser os comandos cientificamente elaborados de um poder soberano não limitado por uma doutrina dos direitos naturais Por outro esses comandos devem ser auxílios desinte ressados para que os indivíduos encontrem o caminho para sua própria felicidade Nos dois extremos existe gravidade e austeridade na atitude legislativa As verdades morais e políticas não florescem no mesmo solo que o sentimento Crescem entre espinhos e não devem ser colhidas como margaridas por crianças que correm Bentham exigia uma transcendência inconteste do instinto do sentimento e do senso comum Ao invés de primeiro adquirir uma intimidade com o funcionamento das relações polítícas sociais e econômicas dominantes Bentham aconselha a aquisição de um método de investigação científica que poderá então ser aplicado ao estado de coisas existente Desta íbrma se está protdo da sedução pelas práticas atuais Ao contrário obtémse um distanciamento frio para com a sociedade e de feto para consigo mesmo Devemse examinar todas as coisas com atenção aos mecanismos universais que lhes são subjacentes Só então seria possível controlar nossos destinos por meio de um programa de reforma racional reforma esta que é mais do que apenas a imposição de um interesse egoísta sobre os outros em um interminável processo de luta malinfbrmada e impulsiva A paixão de Bentham do começo ao fim era fundar esse sistema cujo objetivo é criar o tecido da felicidade pelas mãos da razão e da lei A premissa unificadora de sua obra é o princípio da utilidade o princípio que aprova ou desaprova qualquer ação que seja de acordo com a tendência que parece ter para aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão d de cada ação que seja e portanto não apenas de cada ação de um indivíduo partícular mas de qualquer medida de governo O princípio da utilidade é sancionado pela natureza uma vez que a natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos a dor e o prazer Cabe somente a eles indicar o que devemos fezer bem como determinar o que feremos É importante observar que os mestres soberanos o prazer e a dor não apenas de terminam o que realmente fezemos mas também nos apontam o que devemos fazer O primeiro passo para ser científico é tornarse plenamente consciente das molas da ação Ao mesmo tempo no entanto cabe perguntar como pode haver uma discrepância entre o que fezemos e o que devemos fezer dado que é a mesma a base para ambos Uma resposta é que em um sistema político não reformado uma definição partídáría do que devemos fezer é generalizada por meio do direito e da política de modo que é imposto a todos aquilo que alguns interesses egoístas pensam que deveria ser feito 15 AW i Preficio p 910 16 AW iCap Ip 11 17 PML Cap I p 12 18 A lfíC ap Ip 11 Je r e m y B e n th a m e Ja m e s M i l l 643 Em outras palavras a sociedade não reconstruída é um agregado de interesses irracionais e desigualmente relacionados cada qual vai em busca de seus próprios cálculos do que vai produzir prazer e do que vai causar dor Poucos se comprometem conscientemente com o objetívo de fezer felizes o maior número possível de outros A maioria é propensa a generalizar a partir de sua própria opinião a respeito da felicida de ou do bemestar Na soberania da natureza não são suficientemente apreciadas as aspirações comuns da humanidade Contudo se e quando houver suficiente apreciação destas então o reconhecimen to múmo da namreza nosso soberano universal pode induzir a uma maior percepção de nossa situação universal e pode se tornar mais atraente um plano para aumentar a íèlicidade do maior número É racional a mudança de atimde que se afesta de uma busca meramente ocêntrica da felicidade pois os humanos não podem viver uma vida soli tária Nesta última situação viver diretamente apenas em relação à namreza não surgiria o conflito entre o que fezemos e o que devemos fezer Se parte da felicidade consiste em viver em paz segurança e tranqüilidade de espírito no meio dos outros então tem de haver um acordo de modo algum automático a respeito do que nós todos aceitamos como o que devemos fezer No entanto é óbvio que isso não pode ser exclusivamente o que eu ou qualquer outro preferiria de forma independente Na ausência de um padrão objetivo e acordado para classificar as várias preferências é necessário descobrir e apoiar os esquemas que aceitam que seja buscada a maior variedade de preferências sem levar ao caos Tais esquemas fomentariam as condições em que se reconciliariam o que fiirei e o que deveria fezer Então a razão terá sido empregada para reconduzir a humanidade a uma conformidade harmoniosa com sua natureza Caso contrário um raciocínio mal informado não científico nos levará a conflito e ansiedade constantes Todos os esforços para resistir a que nos ordenemos desta forma todos os esforços que podemos fezer para acabar com a sujeição serviráo apenas pata demonstrála e confirmála O princípio da utilidade expressa de forma simples e direta uma cadeia de ra ciocínio que em seus detalhes é complexa e longa Fornece uma forma abreviada de orientar corretamente o modo de pensar de cada indivíduo Lembranos de que a co munidade é um corpo fictício composto de indivíduos que são percebidos como seus membros constituintes Quais seriam entáo os interesses da comunidade A soma dos interesses dos diversos membros que a compõem Para Bentham toda a ação racional é ação em conformidade com o princípio da utilidade Os indivíduos que aceitam isso se submetem livremente à legislação vi gente na medida em que são estas estabelecidas com referência à utilidade que não se limitam a identificar com seus desejos pessoais e as criticam na medida em que náo o sáo Podese dizer que um homem é partidário do princípio da utilidade quando 644 H is tó m a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Ibid 20 PML Cap I p 12 a aprovação ou desaprovação que atribui a qualquer ação ou a qualquer medida é determinada e proporcional à tendência que concebe ele que tenha para aumentar ou diminuir a felicidade da comunidade Pensando bem o leitor pode ainda perguntarse dada a estipulação da força ine vitável do princípio da utilidade por Bentham que escolhas dos indivíduos poderiam ser criticadas por não se conformarem a ela Ou onde alegações ou propostas confli tantes apelam igualmente ao princípio da utilidade como se decidir entre elas Como distinguir entre aplicações adequadas ou indevidas desse princípio Não há resposta abstrata para tais questões Para Bentham não existe uma rta de moral de valor ou de direito independentemente correta ou verdadeira O que conta tem de ser determinado por meio do debate daqueles que são totalmente autoconscientes em seu compromisso com a observância do princípio O método de deliberação autocons ciente autocrítico é essencial para a produção de tegras úteis que se elevam acima de partidarismos Nenhum interesse na sociedade pode ser tomado como uma expressão do melhor interesse do todo Nenhuma regra pode isentarse de reavaliação e revisão Pata alguns esses argumentos parecerão basearse em uma atitude de teladvismo moral Bentham se pergunta se não há tantos padrões diversos do certo e do errado quanto há homens e se até no mesmo homem a mesma coisa que é correta hoje não pode sem a menor mudança na sua natureza ser errada amanhã Ao íázer essas perguntas Bentham quer mostrar que a cura para anarquia moral não é o despotismo mas a deliberação cooperativa Acreditava que o compromis so consciente para com o princípio da utilidade era a única maneira de em última análise alcançar acordos sustentáveis em substância Em contraste acreditava que os apelos aos direitos naturais ou à lei natural pressupunham pontos de substância e em seguida tentou obter uma submissão a eles Porque negava a possibilidade do direito natural ou da lei natural Bentham supunha que por trás de todos os apelos a estes estavam interesses egoístas bem ou mal disferçados Acreditava que o princípio da utilidade continuamente nos lembraria de que as propostas sempre se originam de pessoas interessadas identificáveis e nos encorajaria a simultaneamente avaliálas com desapego à luz do princípio da maior felicidade O acordo com o princípio implica a busca conjunta de acordo a respeito da substância No entanto é paradoxal o próprio uso do princípio Destinase a produzir acordos substanciais legítimos e simultaneamente a questionar todos os acordos subs tanciais a palavra direito não tem significado se afestada de utilidade Medir de modo correto em termos de utilidade significa medir corretamente com relação aos próprios interesses lembrando que os interesses do indivíduo devem ser en tendidos como caritativos ou como tendo em conta a maior felicidade do maior número Cada um de nós deve ter jurisdição na definição de nossa própria felicidade não podemos J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 5 21 PML Cap I p 13 22 PML Cap I p 16 23 PML Cap I parágraíb 4 p 1516 nos submeter a uma coletividade fictícia No entanto é obrigatório que as leis nos unam Por exemplo podese ser tentado a não cumprir promessas mas podese decidir no en tanto que uma regta de cumprimento das promessas traz melhores conseqüências para a sociedade Podese avaliar a felicidade que se desfmtará quando o autodomínio for combinado com a paz e a ordem em comparação com a felicidade a ser obtida por meio da busca desenfreada pelo autointeresse em meio a confiitos e desordem Ao escolher a primeira uma regra para governar a sociedade calculase que no seu conjunto contri bui para a maior felicidade geral e que se estará melhor nesse contexto Ao chegar a essa conclusão poderseia dizer com efeito que se deve agir da for ma cumprimento de promessas que gostaríamos de ver os outros agirem também Tal afirmação recorda o imperativo catórico de Kant No entanto Bentham não afirma que devemos optar por tal regra a não ser que tenhamos interesses pessoais em fazêlo A tensão entre autointeresse e respeito para com os demais está no cerne do utilitarismo e não pode ser resolvida pelo apelo a um dever moral transcendente por si mesmo A partir de uma perspectiva utilitarista o princípio kantiano não pode caso deva ser útil na prática excluir a presunção de conseqüências Para os utilitaristas devemse pon derar as conseqüências sempre que surjam argumentos entre possíveis cursos de ação alternativos Sempre que os indivíduos dão permissão para que sejam expressas opiniões uns para os outros ou acham que não podem escapar delas devem discutir os méritos relativos a diferentes cursos de ação quanto a seus possíveis resultados Sócrates expressou uma forma diversa de moral transcendente quando afirmou que passara a vida tentando ser bom e não parecendo ser bom Górgias 527 Com isso o Sócrates platônico queria dizer que era obrigado a não decidir o que era certo com base em suposições a respeito de que conseqüências poderiam advir na seqüência temporal de eventos As conseqüências de suas ações tal como entendidas ordinaria mente por exemplo por Criton que tentou persuadilo a fugir da prisão e da morte não teve qualquer influência em seu dever de manterse fiel à vida filosófica Além disso em sua visão do reifilósofo Sócrates retratou um governante que po deria através da ordenação de sua alma pela ordem divina transmitir a ordem divina para uma cidade terrena Tal alma poderia viver de acordo com a cidade celestial mesmo que nâo fosse esta instituída na terra República 592 e assim o filósofo poderia ir além do desconcertante reino de sugestões e insinuações que é a vocação do político Para Só crates portanto a busca da sabedoria é a felicidade e se a felicidade é uma forma de pra zer é o prazer que define o padrão pelo qual julgar os méritos de todos os outros supostos prazeres Aqui a correção é separada da utilidade em uma visão da ascensão da alma Isso contrasta com a visão utilitarista de Bentham do aperfeiçoamento social imanente Bentham considerava a busca de um summum bonum bem supremo uma 6 4 6 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 24 Bentham argumenta que deveríamos cumprir nossas promessas porque tal é o benefício a ser ga nho e o dano a ser evitado por mantêlas que muito mais que compensa o dano e tal puniçáo que for requerida para obrigar os homens a cumprilas e é essa uma questão de fato a ser decidida por testemunho observação e experiência A Fragment on Government p 270 col B tolice consumada uma busca por algo supostamente melhor e diferente do prazer mas impossível de ser encontrado Bentham chama Platão do mestre fabricante do absurdo e em geral lejeita os sãbios antigos O que desperta a ira de Bentham é o antigo esforço para depreciar as ideias co muns de felicidade como vulgares Tal depreciação poderia ser defendida apenas en quanto o alegado bem maior fosse aceito sem críticas Acreditava que qualquer um que incitasse alguém a íir contra seus interesses se esforçaria para criar em alguém o interesse em assim e para que Esse de acordo com ele A rejeição da vontade geral de Rousseau por Bentham também decorre desse ponto Para Bentham a vontade geral é uma forma moderna da antiga tentativa de impor a virtude aos indivíduos em detrimento da sua própria felicidade auto compreendida Forçar os homens a serem livres é para Bentham uma contradição impossível que surge a partir do fracasso da teoria do contrato social em fornecer uma base adequada para o exercício da autoridade política Como David Hume Bentham percebeu que a teoria do contrato social pressu põe um prévio compromisso de cumprimento das promessas como na concordância em deixar o estado de natureza e obedecer a um governo Assim não é o contrato que cria o cumprimento das promessas mas o cumprimento das promessas que íàz plausíveis os contratos A teoria do contrato social expressa uma atitude em relação ao governo que deve ter surgido muito antes como um hábito de obediência adquirido por meio da experiência da sua utilidade Bentham argumentou francamente que a lei com suas sanções punitivas não cria a liberdade mas a inibe O que justifica a lei ao íàzêlo é que a felicidade geral é aumentada por isso Bentham esperava que sua perspectiva quando universalmente aceita acarretasse duas conseqüências de uma só vez primeiro o número de acordos substanciais seria pequeno mas teriam base sólida sjundo seriam abolidas muitas restrições tradicio nais herdadas daquelas que Bentham considerava teorias religiosas morais políticas e econômicas antiquadas Para ele uma ordem política racional é aquela em que há uma distinção cada vez mais precisa entre o que é obrigatório e o que é uma questão de preferência particular Seria entendido que a ordem não precisa depender de extensas obrigações legais mas sim da garantia de que as obrigações existentes podem ser de fendidas independentemente de quaisquer interesses especiais Em troca pela garantia da conformidade dos cidadãos à lei o leque de sua livre escolha no reino moral poderia ser indefinidamente ampliado No entanto se a expansão indefinida da liberdade individual deve de fiito ser compatível com a ordem e o progresso é preciso demonstrar que não acarreta um egoísmo bruto ou um antagonismo mútuo É possível desfrutar de uma garantia razoá vel de respeito mútuo Por que alguém se importaria com outros J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 7 25 Deontology in Deontology together with A Table ofthe Springp ofAction and theArticle on UtiUtaria nismp 134147 26 A Table ofthe Springs ofAction in ibid p 26 Como vimos o princípio da utilidade íunciona de modo a suscitar uma maior consciência em cada um acerca da aspiração à felicidade que está em todos O princípio nâo nos pede que suprimamos a realidade de nossas próprias experiências de prazeres e dores Não implica que haja um bem ou interesse comum independente para o qual são irrelevantes nossas experiências ou ao qual devem se subordinar inquestionavelmente Em todas as ocasiões afirma Bentham temse a motivação puramente social de simpatia ou benevolência e na maioria das vezes os motivos semissociais do amor pela amizade e do amor pela reputação O poder desses motivos variará de acor do com as disposições dos indivíduos e das circunstâncias e principalmente de acordo com a força de seus poderes intelectuais a firmeza e constância de sua mente o quan tum de sua sensibilidade moral e o caráter das pessoas com quem tem de lidar A aspiração fundamental pela felicidade em cada indivíduo é idêntica à aspiração íundamental da legislação entendida de forma adequada Esta aspiração não desapa rece quando a legislação está ausente e poderia ser frustrada quando é imposta uma legislação ruim A legislação não deve necessariamente ser usada para nos obrigar a realizar açóes benéficas ou para evitar ações que possam ser prejudiciais A teoria de Bentham tenta especificar a relaçáo entre ética privada e deveres legais A arte da legislação consiste em saber quando náo legislar bem como quando fazêlo O objeto geral que todas as leis possuem ou deveriam possuir em comum é aumentar a felicidade total da comunidade excluir tudo que tenda a diminuir essa felicidade eliminar danos Entretanto toda punição é dano toda a punição em si é má Dentro do principio da utilidade só deve ser admitido na medida em que promete excluir algum mal maior Uma vez que Bentham afirma que os ditames da utilidade não são nada além dos ditames da mais ampla e iluminada que é prudente benevolência parece de correr daí que o mais elevado cumprimento dos ditames da utilidade ocorreria sem coação Assim a punição é o último recurso Os legisladores devem relutar em agir Com efeito a relutância em legislar pode muito bem ser uma condição prévia para uma boa legislação Entretanto quando a legislação é necessária deve ser clara e pre cisa e a punição deve ser rápida íirme e proporcional ao delito mas não mais do que o necessário Remédios ineficazes por causarem dor sem curar o mal que têm o intuito de curar multiplicam o mal ao invés de reduzilo 648 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y PML Cap XVII p 284 Ibid p 284285 Ibid PML Cap XIII p 158 7W iC apX p 117 PML Cap XIII passim PML Cap XVII p 288 Visto que Bentham rejeita apelos para regras jurídicas eternas ou imutáveis a única meta para os legisladores deveria ser assegurar o prazer e a segurança do povo Todas as políticas e a legislação devem ser justificáveis em termos do princípio da utilidade Assim uma vez que este princípio é compreensível para todos todos são qualificados para avaliar qualquer legislação de modo crítico Aqueles que exercem os poderes de um cargo governamental não têm nenhuma sabedoria além da fornecida a todo ser humano que entende a economia da natureza soberana e é capaz de assimilar as lições da experiência com os sistemas correntes os poderes da natureza podem agir por si próprios mas nem o msistrado nem os homens em geral podem agir nem deveria Deus no caso em questão sir a não ser através dos poderes da natureza Em seguida Bentham fornece um modelo de pensamento racional para o legisla dor o valor de um prazer ou dor está diretamente relacionado à sua intensidade duração certeza imediatismo fecundidade pureza e ao número de pessoas realmente afetadas A fim portanto de avaliar de modo preciso a tendência geral de qualquer ato pelo qual sáo afetados os interesses da comunidade proceda da seguinte forma Comece com qual quer uma das pessoas cujos interesses pareçam ser mais diretamente afetados pelo ato Some todos os valores de todos os prazeres de um lado e os de todas as dores do outro Some todos os números que expressam uma boa tendência que o ato possua com re lação a cada indivíduo para quem a tendência do ato seja boa no todo novamente em relação a cada indivíduo para quem a tendência do ato é ruim no todo Calcule o saldo Em tudo isso não há nada além daquilo a que a prátíca da humanidade onde quer que tenha uma visão clara de seus próprios interesses se adapta perfeitamente Embora Bentham não insista que laboriosamente os legisladores realizem sem cessar esse processo acredita de íato que devemos ter sempre em mente este modelo pois toda pessoa tem propensão a alguns tipos de prazeres em detrimento de outros Tal ordem política asseguranos Bentham desfrutará de crescente autoconfiança na medida em que se fizerem sentir os efeitos a longo prazo da aplicação consciente do princípio da utilidade Este padrão a posse comum de todos constitui a base comum para discussão e debate A sociedade informada por esse princípio pode exercer sua vontade política preservandose e transformandose em um contínuo processo de autodesenvolvimento James Mill foi o principal discípulo de Jeremy Bentham Liderou o movimento que visava colocar em prática as ideias de Bentham sobretudo na elaboração de um programa educativo para fazer com que seu filho John Stuart Mill se tornasse a en carnação viva dos ideais utilitaristas Mill tinha certeza de que poderiam ser realizadas drásticas reformas parlamentares sem violência Acreditava no poder de argumentos intelectuais para expressar e mobilizar o descontentamento popular assim pressionan do os governos a mudarem An Essay on Government Um ensaio sobre o governo J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 9 34 PML Cap III p 37 35 PML Cap IV publicado em 1820 tencionava ser uma simples argumentação defendida com firme za em fevor de um governo representativo democraticamente eleito que poderia ser entendida por qualquer um Mill acreditava ser capaz de intensificar e unificar as pers pectivas políticas entre todos os segmentos da sociedade excluídos do poder político O ensaio de Mill descreve o caminho que devemos percorrer para transcender a política aristocrática que prevalecia Invoca o princípio da maior felicidade do maior número a íim de conectálo a metas específicas para o íuturo Princípios tão gerais são defeituosos na medida em que as ideias particulares que abraçam são anunciadas de modo indistinto e por meio delas diferentes concepções são suscitadas em mentes diferentes e até mesmo em apenas uma única mente em diferentes ocasiões A re forma política correta vai superar esses defeitos A única tarefa do governo é aumentar ao máximo os prazeres e diminuir ao máximo as dores que os homens obtêm uns dos outros p 8 A lei da natureza dita que os homens devem trabalhar para sobreviver A escassez acarreta prejuízos e con tendas e competição pela autoridade uns sobre os outros para proteger seus interesses Enquanto não existe um governo comprometido com uma distribuição equitativa dos escassos materiais da felicidade o poder político será utilizado para defender os ricos contra os trabalhadores p 4849 A principal fonte de riqueza é o trabalho Se os trabalhadores não podem guardar a maior parte do que produzem pouco incentivo têm para o trabalho e devem ser cosidos ou escravizados A conseqüência disso só po deria ser a sistemática exclusão dos muitos pelos poucos da participação na definição da maior felicidade do maior número O governo deve ser redesenhado contra este resultado Deve ter o poder necessá rio para resistir a interesses particulares Uma vez que tal poder foi alcançado porém todas as difíceis questões de govemo são relativas aos meios de impedir que aqueles em cujas mãos estão depositados os poderes necessários para a proteção de todos fe çam mau uso deles p 50 Seria uma grande desgraça para a reforma substimir um predador antigo por um novo Mill constata no entanto que não satisfezem às formas tradicionais de gover no pelos muitos pelos poucos ou por um O governo pelos muitos a solução de mocrática exige que toda a comunidade se reúna Isso é impraticável para a própria população trabalhadora que deve proteger Mesmo que fosse viável a reunião de toda a comunidade porém essas assembléias são notórias por sua volatilidade são inapro priadas para conduzir os assuntos do governo O governo pelos poucos a solução aristocrática também íiracassa As aristocracias hereditárias são desprovidas dos mais fortes motivos para o trabalho São susceptíveis a deficiências mentais porque os poderes intelectuais são os filhos do trabalho p 53 Os aristocratas são os principais candidatos a adotar uma atitude predatória para com o povo A forma monárquica está aberta às mesmas objeções os poucos que detêm o poder tentarão sempre derrotar o próprio fim para o qual existe o governo p 54 6 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 36 James Mill An Essay on Government ed Currin Shields New York Liberal Arts Press 1955 p 47 Todas as citações são desta edição Mill pergunta retoricamente se somos obrigados a chegar à deprimente con clusão de que o governo é necessário mas que nenhuma forma de governo é aceitá vel Não poderíamos aimentar seguindo Hobbes que quanto menor o número de governantes menor a parcela de nossos bens que demandariam e portanto uma oligarquia ou monarquia seriam um mal menor Talvez até mesmo um soberano único e absoluto fosse uma solução racional Infelizmente a história parece fornecer quanti dades iguais de soberanos bons e ruins E isso não é tudo Um soberano absoluto sempre teme a rebeldia de seus súditos pois não são ovelhas mas seres pensantes e sensíveis O governante absoluto jamais será capaz de aceitar que as pessoas sejam subservientes o bastante Buscará mais e maiores ga rantias de controle Tal ocorre não porque o soberano é diíèrente dos outros mas porque a lógica das relações humanas seria aplicável a qualquer pessoa na mesma situação O poder é um meio para um fim O fim é tudo sem exceção que o ser humano deno mina prazer e remoção da dor O grande instrumento para alcançar aquilo que um ho mem aprecia são as açóes de outros homens Portanto o poder em seu significado mais apropriado exprime segurança para a conformidade entre a vontade de um homem e os atos de outros homens Esta não é presumo uma proposição que será questionada portanto a demanda de poder sobre os atos de outros homens realmente não encontra limites no número de pessoas a quem gostaríamos de estendêlo e sem limites em sua gradação sobre as ações de cada um p 5657 Como o poder pode vir a ser um fim em si não se sue que quanto menor o grupo governante menor o p e r de sujeição arbitrária Além disso enquanto o governante pode tentar manter o poder pela distribuição de recompensas que proporcionam prazer é mais provável que busque uma segurança maior no grande instrumento do Terror p 59 Este porém se autoalimenta tornandose cada vez mais extremo e diíundido O poder tende a escravizar o governo ilimitado precisa escravizar aqueles a quem se destinava a servir O desejo desenfreado é o desejo ilimiudo as ações decorrentes deste desejo ilimitado são os ingredientes com os quais é feito o mau governo p 63 Uma alternativa proposta com frequência e considerada como ilustrada pela es trutura do governo britânico então existente era o governo misto composto por todas as três formas simples Isto supóe que o rei a aristocracia e o povo sejam três vontades separadas cada uma unificada na busca de seus próprios interesses De acordo com a ciência da natureza humana tal como expressa por Mill cada um deve buscar ao má ximo seus próprios interesses Não se pode excluir a possibilidade de que dois dos inte resses se combinem contra o terceiro Na verdade Mill acredita que isto seja inevitável O poder nunca é distribuído igualmente não há equilíbrio natural entre as forças Em particular as pessoas são propensas a superestimar ou subestimar o poder de cada interesse e a agir de acordo com suas percepções equivocadas Os assuntos humanos mudam sem cessar e é impossível impedir que se revelem as diferenças de talento e fortuna O sucesso dá ímpeto a disparidades cada vez maiores entre os interesses A doutrina dos freios e contrapesos é visionária e quimérica p 65 J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 5 1 No entanto o resultado mais provável é a combinação da monarquia e da aris tocracia contra a democracia os dois interesses podem diferir mas nenhum dos dois deseja ser tr d o pelo poder democrático Mill constata ser inevitável que o povo será sobrepujado a não ser que sejam introduzidas outras precauçóes Aventamos mais uma vez a possibilidade de que o povo cujo interesse é o mais amplo na comunidade não pode nem governar nem se proteger O remédio só pode ser a criação de um órgão representativo que pode governar pelo povo sob controles que evitem a corrupção dos representantes Deve ser dado o poder necessário ao corpo representativo para o desempenho de suas funções deve este também ter uma identidade de interesses com a comunidade p 67 Em termos práticos isso significaria garantir que o poder da Câmara dos Co muns britânica pudesse defenderse contra o poder da Câmara dos Lordes combinado com o poder do rei Esse aspecto da reforma parecia simples a Mill pelo menos na sua concepção Mais difícil é a questão de como elevar a Câmara dos Comuns sem torná la o novo lobo no lugar do velho É preciso avaliar com grande cuidado o esquema de representação Primeiro os representantes devem ser membros das comunidades que representam Devem ser su jeitos às conseqüências acarretadas pelo mau governo A eficiência impede uma redu ção do poder mas podemos reduzir a duração do mandato do representante de forma a garantir que sofrerá as conseqüências das decisões que tomar durante seu mandato Devemse rejeitar cargos vitalícios ou hereditários mas deve ser permitida a reelei ção deve haver recompensa pelo serviço fiel e não meramente penalidades por atos ofensivos durante o mandato Porém a eleição de representantes deve ser ela própria representativa da comunidade Isto significa que o sufrágio deve ser ampliado embora as crianças e as mulheres sejam excluídas em razão da identidade de interesses com os pais e maridos Os homens adultos com pelo menos 40 anos de idade sujeitos a uma modesta qualificação por propriedade são os representantes naturais de toda a população Mill acreditava que esta era a melhor aproximação a um corpo ao mesmo tempo representativo e não muito grande e desfrutando de poucos incentivos para explorar as minorias Náo haverá representação especial para os interesses tradicionais tais como proprietários de terras comerciantes ou fabricantes Não haverá representa ção especial dos militares ou dos advogados Revolucionaria este novo sistema de governo representativo a ordem estabeleci da destruindo a monarquia e a Câmara dos Lordes Sejam mantidas ou náo a base para as decisões deixará de ser encontrada em uma reverência para com os costumes ou a tradição Serão mantidos somente se forem importantes e necessários ramos de um bom governo p 83 Entretanto dada a própria explanação de Mill acerca da lógica de interesses concorrentes como podemos esperar uma avaliação desapaixonada dessas instituições Somente se assumirmos como ele que o corpo legislativo recém estabelecido verdadeiramente representará os interesses de toda a comunidade de modo que tudo que aprecie para possível reforma náo seja julgado por qualquer outra norma a náo ser os interesses de toda a comunidade No entanto mesmo se fossem mantidas essas antigas instituições teria de mudar todo o seu significado e função 6 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Mill nega com muita clareza qualquer dependência do povo em relação a uma orientação pela aristocracia Assim a monarquia e a aristocracia devem ser julgadas em termos de sua utilidade administrativa Além disso Mill está certo de que o órgão representativo que sugere pode não possuir nenhum dos males por desígnio encon trados nos tradicionais governos aristocráticos Não considera a questão da tirania da maioria como faz Madison em O Federalista 1788 e Tocqueville em De la démocratie en Amérique A democracia na América 1835 Tudo depende do sucesso de sua re forma da representação em contornar a lei natural da expansão sem limites do poder O novo poder legislativo deve identificar e apoiar o interesse do todo Mill acredita que esta reforma política pode ter todos os efeitos salutares da re forma religiosa que a precedeu O poder da interpretação pessoal da Bíblia sem orien tação sacerdotal alterou completamente a condição da natureza humana e elevou o homem ao que pode ser chamado de uma fese diferente da existência p 88 Se assim foi nos tão intricados assuntos de interpretação relosa não será muito mais fecil que cada um entenda seus próprios interesses locais A virtude política é a prudência e a prudência é uma caraaerística mais geral daqueles que não dispõem das vantagens da fortuna do que daqueles que foram totalmente sujeitos a sua ação corrup tora Seria melhor confiar os poderes do govemo a incapazes que têm interesse no bom governo do que a incapazes que têm interesse no mau governo p 8889 A proporção entre homens sábios e homens tolos é aproximadamente igual afir ma Mill na aristocracia e nas classes democráticas A presença proporcional de insen satez e sabedoria portanto não se altera apenas porque a democracia substituiu a aris tocracia no poder A camada média da sociedade a parte mais inclinada à prudência está totalmente incluída na porção democrática da comunidade Aqueles que estão abaixo da camada média serão sujeitos à influência da camada média Assim há uma fonte namral de liderança política prudente na porção democrática Não há dúvida de que a camada média que dá à ciência à ane e à própria legislação os seus mais distintos ornamentos e é a principal íbnte de tudo o que deve ser exaltado e refinado na natureza humana é a parte da comunidade cuja opinião se a base de repre sentação bsse um dia tão ampliada seria decisiva Daqueles ababco deles uma grande maioria decerto seria guiada por seus conselhos e exemplo p 90 A camada do meio mediará entre pobres e ricos fornecendo o modelo exemplar de conduta pessoal e política correta Assim o ensaio de Mill é um apelo retoricamente poderoso para a reforma eleitoral que promete trará poder para aquele elemento da sociedade com maior probabilidade de identificar seus interesses com os interesses do todo Por sua vez será possível uma interpretação adequada do cálculo de Bentham de prazer e dor na política lislativa É preciso avaliar com grande cautela se as leis naturais da competição humana afirmadas sem ressalvas por Mill podem ser transformadas em vantagem por meio dessa reforma mecânica É preciso avaliar também se a autoridade natural que Mill rei vindica para a camada média pela lógica de seus próprios argumentos virá a parecer J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 5 3 arbitrária para seus eleitores Além disso as disparidades na intensidade de compro misso entre os interesses podem levar não a atos legislativos imprudentes mas a que os interesses de cada um pressionem o governo para obter preferência sobre seus rivais e a uma intermediação de interesses O conflito entre a liderança intelectual necessária para legislar cientificamente e as demandas de indivíduos e grupos para se libertarem e se desenvolverem como desejarem espreita por trás dos autoconíiantes argumentos de Um ensaio sobre o governo L e it u r a s A Bentham Jeremy An Introduction to the Principies ofMoralj andLegislation Edited by J H Burns and H L A Hart London and New York Methuen University Paperback 1982 Mill James and others Utilitarian Logc and Politics James MiWs Essay on Govemment Macaulays Critiqueand the Ensuing Debate Ed Jack Lively and John Rees Oxford Oxford University Press 1978 B Bentham Jeremy A Fragment on Government in The Collected Works of Jeremy Bentham Ed John Bowring v 1 p 22 1295 Repr NewYork Russell and Russell 1962 Bentham Jeremy Deontology together with A Table ofthe Spring ofAction and the Article on Utilitaria nism Ed Amnon Goldworth Oxford Clarendon Press 1983 6 5 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y G eorg w E H egel A 17701831 Os mais importantes escritos políticos de Hegel sáo por um lado Grundlinien der Philosophie des Rechts Elementos de filosofia do direito e de outro alguns ensaios como aqueles sobre a Constituição Alemã 1802 e a Lei de Reforma Britânica 1830 Aqui nos limitaremos a um exame de sua filosofia política propriamente dita apesar da importância de suas obras mais práticas Sua filosofia do direito ou melhor sua filosofia do Estado é inseparável em grau extraordinário de seus ensinamentos filo sóficos como um todo pois sua doutrina é mais sistemática do que a da maioria dos demais pensadores Isso já fica claro no esquema de sua apresentação O Estado que Hegel descreve é a obra da Razão eterna tal como a apresenta em Wissenschafi der Lopk Ciência da lógica e em Enxyklopãdie der Wissenschafien philosophischen Enciclopédia das ciências filosóficas mas é também o resultado da história universal tal como He gel a delineia em Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte Conferências sobre a filosofia da história Em última análise não se separam Razão e História de acordo com Hegel O desdobramento da Razão segue em paralelo ao processo da história universal ou seja o processo histórico é íundamentalmente racional Por conseguinte Hegel não quer construir um Estado ideal mas reabilitar o Estado real ao demonstrar que é racional Esta reabilitação é dirigida a dois tipos de adversários É contra a atitude de uma consciência moral religiosa ou intelectual que tenta se refugiar na vida interior e rejeitar o som e a fúria da realidade política que Hegel justifica a vida política como tal É somente no Estado e pelo Estado que o indivíduo obtém sua verdadeira realidade pois é somente nele e por ele que atinge a universa lidade Somente o Estado pode íir universalmente por meio da instituição de leis A moral que busca a universalidade pode ser atualizada somente por ser encarnada em instituições e costumes Os costumes ou a moral Sittlichkeií são a vida do Es tado nos indivíduos É em sua devoção ao Estado que o indivíduo vai além de seu 1 G W F Hegel Philosophy ofR ifit trans T M Knox Oxford Clarendon 1942 Prefece p 11 A nâo ser que especificado diversamente todas as dtaçóes são desta ttadução 2 G W F H Lectures on the Philosophy o f History trans J Sibiee New York Dover 1956 Introduction p 52 Todas as dtaçóes sáo desta traduçáo egoísmo primitivo espontâneo é a atividade de instrução do Estado que lhe dá uma fonnação e uma educação Neste sentido Hegel repete a resposta de um pitagórico a um pai que lhe perguntou sobre a melhor maneira de criar moralmente seu filho Façao cidadão de um Estado que tenha boas leis Apesar do que se poderia pensar com base em determinados textos hegelianos essa reabilitação do Estado não deveria ser interpretada como uma deificação dele É bem verdade que de acordo com Hegel o Estado constitui um fim último para o indivíduo que encontra nele a verdade de sua existência seu dever e sua satisfação e que o Estado constitui a atualização ou a aparência do divino no mundo externo Ainda assim a relação do Estado com o indivíduo é essencialmente recíproca é apenas um íim último para o indivíduo na medida em que sua própria meta é sua liberdade e satisfeção Além disso a moral ou religião de uma alma individual tem um valor infinito independente do Estado No Estado o indivíduo ultrapassa o nível de seus pensamentos e desejos pessoais e particulares sua mera existência à qual Hegel de nomina a mente subjetiva Através do Estado aprendeu a universalizar seus desejos transformálos em leis e viver de acordo com eles O Estado é uma realidade não um projeto pode ser vivido e pensado É somente através do Estado que o indivíduo assume seu lugar no mundo é como cidadão que distingue o que é razoável em seus desejos Este é o estíio da mente objetiva Mas a aparência ou realização do di vino isto é do absoluto ou do racional não é nem constituído nem se esgota pelo Estado O Estado apenas introduz e torna possível a mente absoluta É a íbnte da arte da íilosoíia e da religião que de certa forma transcende o Estado Quando Hegel fala do Estado como divino está apenas insistindo que seja respeitado ao demonstrar que é íundamentalmente informado pela racionalidade que apesar de seus aparentes defeitos e contingência é o que deveria ser Desta forma Hegel precisa defender a racionalidade do Estado real contra os românticos que simplesmente se afestam da política e também contra os utópicos e reformistas que se afestam do Estado real em favor de um Estado ideal A íúnção da íilosoíia não é ensinar ao Estado como deve ser mas ensinar aos homens como deve ser entendido o Estado A íilosoíia não pode ir além da realidade de seu tempo pode apenas reconciliarse com ela ao reconhecer a razão como a rosa na cruz do presente A íúnção da íilosoíia não é nem inventar nem criticar mas extrair a verdade positiva com a qual realidade já é informada Assim Hegel deseja revelar o racional no irracional Não só quer descobrir a essên cia necessária do Estado por trás dos detalhes contingentes mas também quer mostrar que o que parece irracional no próprio Estado íúnciona inconscientemente em direção ao triunfo do racional que o que parece contraditório será finalmente harmonizado que o jogo cego das paixões e ações específicas necessariamente termina no advento da ordem política universalmente justa e plenamente desenvolvida Por conseguinte o mal conduz ao bem as pabcões à razão contradição e confiito a síntese e paz 6 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Philosophy ofRight 153 trans P H and A B Ihid Prefàce p 12 Reimpresso cora autorização da Clarendon Press Oxford É o Estado entendido como uma totalidade harmoniosa e diferenciada que fãz possível esta síntese Para expressar a relação entre o todo articulado que não é nada sem suas partes e as partes que não são nada sem o todo Hegel emprega a metáfora do organismo do corpo humano em particular em que cada órgão possui sua verdadeira realidade apenas na função particular que desempenha dentro do todo e também a metáfora de uma estrutura arquitetônica semelhante a uma catedral gótica O parado xo dessa articulação é que resulta do jogo de forças inconscientes O duplo empreendi mento hegeliano termina nesse paradoxo e a ele corresponde a ideia de astúcia da ra zão O Estado emerge tanto como um resultado íinal e uma precondição É resultado da ação dos indivíduos e do jogo das paixões mas uma vez constituído sua estrumra aparece como primeira e primária enquanto a sua gênese é interpretada como um fato meramente empírico e externo O Estado é um resuludo final em que desaparece o feto de que encontra sua origem na ação de indivíduos Que estes indivíduos quer reíiramse à massa de homens que perseguem seus interesses particulares ou os gran des homens que realizam atos heroicos são inconscientemente os instrumentos de um plano que os transcende e muitas vezes contradiz diretamente seus objetivos conscientes que a ação de forças irracionais constrói um edifício arquitetônico que é a imagem da razão eterna é o que se entende pela astúcia da razão que demonstra a racionalidade da história É isto que permite que a íilosofía da história termine em filosofia política e inversamente o que permite que a filosofia política se transforme em uma descrição do Estado fínal plenamente desenvolvido O Estado nasce de confiitos e é por sua vez o palco e a origem de numerosos confiitos em potencial Isto é verdade do Estado porque é verdade do próprio homem O homem não se eleva ao nível da humanidade isoladamente mas em uma batalha mortal pelo reconhecimento O homem existe por si mesmo tem consciência de si mesmo ou de sua própria liberdade apenas na medida em que é reconhecido como consciência ou liberdade por outra consciência ou por outra liberdade Cada um dese ja ser reconhecido pelo outro sem por sua vez reconhecêlo Cada um se afirma como livre e por conseguinte como humano somente na medida em que é capaz de negar seu ser natural em prol do reconhecimento arriscando sua vida pelo prestígio Desta forma a luta pelo reconhecimento será uma luta de vida ou morte Por este mesmo motivo terminará em desigualdade Um dos dois adversários preferirá a vida ao prestí gio ou à liberdade Movido por seu medo da morte violenta consentirá em reconhecer o outro sem insistir em ser reconhecido por ele Submeterseá ao outro Assim o ho mem necessariamente emerge da luta pelo reconhecimento ou como mestre ou como escravo Sua realidade é então essencialmente social e até mesmo política já que a luta pelo reconhecimento e a submissão a um domínio é o fenômeno do qual emergiu a vida social do homem e é o princípio dos Estados G e o r g w f H e g e l 657 5 Phenomenology ofM ind Ed Hoffmeister Philosophisches Bibliothek Hambuig F Meiner 1952 chap vi B a p 355 trans RH and AB 6 Philosophy fRight Prefoce p 6 cf 275 p 174175 Philosophy of History Introduction p 33 7 Encyclopedia of Philosophic Sciences Philosophisches Bibliodiek Hambuig F Meiner 1959 433 p 352 trans P H and A B O conflito entre senhor e escravo antecede ao Estado Ocupa o mesmo lugar na formulação de Hegel que o estado de natureza o contrário do estado civil ocupa em Hobbes E como em Hobbes deixa sua marca na realidade política que daí decorre Para ambos o Estado emerge da violência a primeira relação entre os homens é o con flito que póe em jogo as duas paixóes fundamentais a vaidade ou o desejo de reconhe cimento e o medo da morte violenta Porém a relação do senhor e do escravo longe de se encerrar com a vitória do senhor engendra uma dialética que será a mola motriz da história humana O senhor força o escravo a trabalhar para ele Essencialmente ociosa a vida do senhor se resume na busca de reconhecimento prestígio e glória por meio da guerra O senhor não trabalha não está em contato direto com as coisas O escravo por outro lado que prepara as coisas para atenderem as necessidades do senhor é aquele que transforma a natureza e a si mesmo por meio do trabalho Posterga a destruição da coisa através do consumo ao preparála por meio do trabalho e adia a satisfeção de suas próprias necessidades ao trabalhar para atender as do senhor o trabalho é desejo reprimido O escravo trabalha em termos de uma ideia abstrata um projeto a ser rea lizado Dá forma ao mundo exterior que adquire uma consistência própria e exibe sua marca e dá forma a si mesmo ao separarse de seus instintos e ao tornarse um aprendiz em noções gerais abstratas linguagem e pensamento Assim por meio do trabalho do escravo são constituídos tanto o mundo da técnica como a própria sociedade por um lado e o mundo do pensamento da arte e da religião por outro É portanto a atitude de trabalho e medo da morte violenta a atitude prosaica a do escravo e da burguesia em oposição à atitude heróica e aristocrática que exatamente como em Hobbes são a base da sociedade de Hegel Além disso enquanto para a íilosoíia política clássica o lazer tinha uma dignidade maior do que o trabalho porque sua oposição refletia a oposição existente entre a teoria e a prática para Hegel o pensamento e o universal estão do lado do trabalho e o lazer é concebido como essencialmente belicoso Porém tal compensação não é suficiente para o escravo que continua insatisfei to nem para o senhor pois nenhum deles obteve o reconhecimento que esperava o reconhecimento de outra consciência livre O conflito permanece e é função do Es tado resolvêlo É dupla a reconciliação que o Estado deve efetuar Por um lado o Estado íimdamentase na reciprocidade seus cidadãos reconhecem um ao outro é o denominador comum do reconhecimento recíproco a que senhor e escravo almejam em vão Por outro o Estado encontra em si tanto o momento ou elemento de traba lho e de necessidade como de sacrifício e de guerra Esta tensão aparece sob forma de oposição entre sociedade civil e Estado entre o buiguês e o cidadão O problema do Estado moderno será precisamente tolerar os dois momentos e reconciliálos ou seja implementar a síntese do ponto de vista aristocrático e do ponto de vista burguês ou em última análise do senhor e do escravo 658 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y Philosophy ofMind Ed Hoffmeister Philosophisches Bibliothek Hambuig F Meiner chap iv sec A p 149 trans P H and A B Em última análise todos os conflitos implícitos nas relações do indivíduo da família da sociedade e do Esudo remetem a uma oposição íundamental que tem sede na vontade do indivíduo um conflito que põe em jogo o status do indivíduo no Estado Em vários níveis o conflito permanece como a oposição entre o individual e o univer sal a vontade partícular e a vontade geral o interesse priwido e o interesse público o burguês e o cidadão a satisfeção das necessidades e o sacrifício os direitos e os deveres as paixões e a razão a interioridade negativa e a positividade a consciência crítica e a aceitação da lei em suma entre o que Hegel denomina liberdade subjetiva como consciência e vontade individuais em busca de seus objetivos particulares e liberda de objetiva isto é a vontade geral substancial Para Hegel o Estado como liberdade concreta é a união destes dois elementos na medida em que o indivíduo se satisfez com o reconhecimento do universal como lei c com a adoção do Estado como fim Hegel afirma que é da união do particular e do universal no Estado que tudo depende Esta unidade de seu fim último universal e dos interesses particulares dos indivíduos se expressa no fato de que têm deveres para com o Estado na mesma medida em que têm direitos contra ele Esta reciprocidade de direitos e deveres portanto permite que o Estado constitua uma totalidade serena O direito à liberdade subjetiva deve ser reco nhecido de duas maneiras como o direito da particularidade do sujeito de ver satisfeitas suas necessidades e seu bemestar e como o direito de consciência de não reconhecer nada que não aprove racionalmente No entanto a particularidade deve adaptarse ao universal e à vida coletiva e a consciência crítica não deve por em perigo a existência de uma autoridade de um governo de um Estado oiganizado Tal condição obviamente só é atendida pelo Estado moderno Quanto ao passado não feltam exemplos históricos que evidenciam os perigos que tiveram de ser superados a íim de atingir um Estado racional A imperfeição e a ruína do mundo g r do ponto de vista político são conseqüência de seu mau entendimento do princípio da particula ridade O direito da particularidade do sujeito de encontrar sua satisfeção ou em outras palavras o direito da liberdade subjetiva constimi o eixo central da diferença entre os tempos antigos e modernos Os gros viviam de modo natural e imediato para o geral ou o substancial para a pátria Dos gregos podemos afirmar que na primeira e verdadeira forma de sua liberdade náo possuíam consciência Entre eles reinava o hábito de viver para a pátria sem uma reflexão mais aproíúndada Por conseguinte não há lugar para a subjetividade em qualquer de suas formas como o direito à satisfeção de necessidades particulares e ao bemestar a busca destes pertencia somente aos escravos como o direito à liberdade na escolha da vocação e na determinação da posição de classe ou como o direito da consciência crítica que sente a necessidade de íúndamentar na tazão o seu apego ao regime pofitico e sua ação moral Ao contrário o desenvolvimento G e o r g w f H e g e l 659 9 Philosophy o f R i 261 addition ttans P H and A B 10 Ihidp6 11 Éãi 124 p 84 12 Philosophy ofHistory p 253 independente da particularidade ou liberdade subjetiva aparece nos Estados gregos como um princípio hostil como uma destruição da ordem social Sua emergência nos Esta dos antigos é contemporânea da corrupção dos costumes e é a causa suprema de sua decadência No Império Romano a individualidade é reconhecida porém abstrata e externamente É dissolvido o Estado como um todo orgânico Todos os indivíduos são degradados ao nível de indivíduos particulares iguais entre si dotado de direitos for mais e o único vínculo a mantêlos juntos é a abstrata e insaciável vontade própria Isso ocorre porque estava ausente uma constituição e uma organização da vida moral concreta em geral que unisse o senhor e os súditos Em outra forma e em um contexto muito diverso encontrase a dupla acusação de abstração e arbitrariedade relacionada à ausência de organização nas alusões de Hegel sobre a França A Revolução Francesa representa uma conquista irrestritamente vital a decisão de colocar o pensamento ou a razão na base do Estado É o advento do princí pio da consciência subjetiva e com ela dos princípios de liberdade de igualdade e dos direitos do homem e do cidadão No entanto estes princípios que em si mesmos íàzem parte da própria essência do Estado moderno são concebidos de forma abstrata e indi vidualista que não deixa espaço para a organização e o governo ou para qualquer coisa concreta A realização dessa liberdade negativa e destrutiva que pretende suprimir toda diferenciação e toda determinidade significa terror indefinido já que qualquer institui ção é antagônica à autoconsciência abstrata de igualdade Uma vez que as tentativas de democracia em Estados grandes e desenvolvidos só pode levar à abstração e uma vez que há sempre um governo o liberalismo revolucionário está condenado a estar perpetuamente na oposição Depois de Napoleão que entendera corretamente a necessi dade de conciliar os princípios da revolução com a autoridade de um Estado organizado a vida política francesa permaneceu sob o domínio das contradições que afiigem uma nação cuja vida fora dominada por categorias abstratas havia uma oposição perpétua por parte dos estadistas aos homens de princípio e do govemo para com o povo Enquanto o povo não se organiza no Estado e pelo Estado constitui apenas uma coleção de vontades particulares e não sabe o que quer Pode manifestarse somente de forma arbitrária de forma prejudicial para toda organização Com este formalismo de liberdade com essa abstração nenhuma organização sólida pode ser estabelecida As disposiçóes particulares tomadas pelo governo encontramse imediatamente em oposição à liberdade pois são apenas manifestaçóes da vontade par ticular e portanto arbitrárias A vontade dos muitos sobrepuja o ministério e que foi até agora a oposição entra no palco como o novo governo Porém na medida em que é agora um governo tem por sua vez os muitos contra ele Desta forma são perpetuadas a mudança e a inquietação 660 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 13 Philosophy of Right Preface p 10 14 Ihid 357 p 221222 15 Ihid 5 addition p 228 16 Philosophy of History p 450 17 Philosophy of Right 301 p 196 18 Philosophy of History p 452 Assim H el que o reconhecimento das liberdades e direitos individuais e a igualdade jurídica conduzam à democracia Sustentar que cada indivíduo deva compartilhar da deliberação e decisão de questóes políd cas de interesse geral com o iindamento de que todos os indivíduos sáo membros do Estado que as preocupaçóes deste são as suas preocupaçóes e que é correto que o que é feito deva ser feito com seu conhecimento e volição eqüivale a uma proposta paia colocar dentro do orga nismo do Estado o elemento democrático desprovido de qualquer forma racional embora seja apenas em virmde da posse de tal forma que o Estado é um organismo O indivíduo deve ser levado em conta politicamente apenas na medida em que ocu pa um lugar definido nesse oiganismo A possibilidade de cada um se tornar um membro da classe governante a igualdade jurídica não deve ser prejudicial para a diferenciação social nem deve a opinião pública a possibilidade de cada um fezer sua voz ouvida pela autoridade causar danos à autoridade do Estado e seus representantes competentes Desta íbrma H l deseja uma síntese da libertação e respeito da paixão e da moralidade de princípios revolucionários e da necessidade da ordem política Histo ricamente o Estado moderno deveria representar uma síntese da polis cuja unidade confiança mútua dos cidadãos c sua ligação com o todo devem ser preservadas e da sociedade liberal da economia política cuja diversidade e diferenciação satisfeção de necessidades individuais realização do universal pelo livre arbítrio individual deveriam ser presenidas Filosoficamente Hegel pretende efetuar uma síntese da moral clássica ou substancial e concreta e da moral cristãkantiana ou interna e abstrata da política de Platáo fimdamentada no primado da razáo e da virtude e da política de Maquiavel Bacon Hobbes e Locke fimdamentada na emancipação das paixóes e sua satisfeção O meio para esu síntese é a história O sujeito e a finalidade da história são a progressiva revelação da liberdade ou o que eqüivale à mesma coisa a consciência que obtém a mente de si mesma por meio da história A mente compreende a si mesma como sendo essencialmente constituída por sua liberdade e sua liberdade se realiza neste ganhar consciência A liberdade é realizada no Estado moderno porque por um lado o Estado desligouse e manifestou diferentes momentos e aspeaos da liberdade liberdade objetiva liberdade subjetiva e assim por diante e por outro uma vez que a liberdade é agora revelada como a essência do homem todos os homens no Esudo são e sabem que são nele essencialmente livres A descoberta da verdadeira e comple u essência da liberdade coincide com a liberdade de todos No entanto se é verdade que a finalidade da história só é realizada no Estado moderno e pelo Estado moderno nâo é menos verdade reciprocamente que o Esudo moderno só pode ser constituído quando o princípio em que se baseia foi revelado em seus diferentes aspectos Assim é necessário que todos os homens sejam reconhecidos como livres que tenha surgido na religião o princípio da liberdade interior ou do valor infinito do indivíduo que a particularidade das necessidades e a demanda por sua satisfeção tenham despontado G e o r g W F H e g e l 661 19 Philosophy of Right 308 p 200 nos costumes e na moral dos homens Esta revelação só é completada no fim da histó ria pois a teia da história é tecida pelo surgimento gradual de princípios incompletos cada um deles manifestando um novo aspeao da liberdade mas cada um dos quais está condenado a desaparecer como conseqüência da sua própria incompletude Os desenvolvimentos destes princípios específicos são os espíritos dos povos Volksgeisté pois constituem totalidades concretas dentro das quais o princípio animador se expres sa de forma abrangente em religião ciência arte eventos e destino Assim a história é a história da religião dos costumes e da moral da arte da economia e assim por dian te ao mesmo tempo em que é história política A constituição política de um povo é o resultado de seu espírito mente desta forma é perigoso impor a um povo uma constituição construída a priori Só se pode fidar historicamente das formas políticas pois estas podem ser julgadas somente em relação ao grau de consciência de liberdade ao qual estão associadas Fundamentalmente a história universal se organiza em três etapas que não são três formas de governo mas três graus de consciência de liberdade classificados de acordo com o fiito de ser um alguns ou todos os que conhecem a si mesmos como livres Os orientais ainda náo sabem que mente ou homem como tais sáo em si livres porque náo o sabem nâo o sáo Sabem apenas que um único homem é livre É por isso que tal li berdade é apenas capricho e barbárie Este único homem é portanto apenas um déspota e náo um homem bvie Foi com os gios que a consciência da liberdade despontou pela primeira ve e por isso eram livres mas os gtos assim como os romanos sabiam apenas que alguns são livres não o homem em si Isso nem mesmo Platão e Aristóteles sabiam É por isso que não apenas os gregos tinham escravos mas que sua própria liberdade era ao mesmo tempo confinada em limites estreitos e ao mesmo tempo uma dura servidão do humano Somente as nações germânicas no cristianismo adquiriram a consciência de que o homem como homem é livre que a liberdade espiritual verdadeiramente constitui sua namreza Esta consciência apareceu primeiro na relão na r ão mais recôndita do espírito entretanto informar o mundo com este princípio era uma nova tarefe cuja solu ção e execução requerem um longo e doloroso esforço de educação É a aplioição do princípio aos assuntos do mundo que finalmente decide o destino dos regimes políticos A cidade grega íracassou em parte porque não conhecia o princípio cristão em parte porque seu próprio princípio era demasiado simples para admitir um suficiente desenvolvimento e diversidade na sociedade Em contraste o Estado moderno baseiase na religião cristã protestante e em uma sociedade econômi ca e socialmente diferenciada apenas na religião cristã que desponta o princípio do valor infinito do indivíduo No entanto para que o princípio cristão fosse realizado no mundo por meio do Estado racional era necessária outra revolução espirimal a Reforma É somen te na religião protestante que a liberdade cristã se realiza e efetua sua reconciliação com o mundo e o Estado A descoberta da interioridade cristã eindra uma série 662 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 20 Philosophy ofHistory p 18 de oposições entre a consciência e o mundo o outro mundo e este a piedade que comanda votos de castidade pobreza e obediência e a moral terrestre que recomenda o trabalho o casamento e uma liberdade razoável o clero e a laicidade a Igreja e o Estado Na religiáo luterana porém a reconciliação leva à consciência da capacidade do mundo temporal de conter a verdade dentro de si O casamento o trabalho a diligência os ofícios adquirem um valor moral Acima de tudo é eliminada a obediên cia cega No protestantismo não existe uma classe sacerdotal apenas um sacerdócio universal a consciência individual tem o direito de julgar Eventualmente este vem a se transformar no direito de julgar da razão individual Assim o princípio peculiar ao protestantismo é o da mente livre esse é o conteúdo essencial da Reforma o homem decide por si mesmo ser livre Assim pode ser constituído o Estado racional ao ser conduzida a liberdade subjetiva à universalidade Contudo tal só é possível porque dentro da própria religião a verdade reside doravante no sujeito em si excluindo toda a autoridade externa Já não há qualquer diferença entre sacerdotes e leigos o conte údo da verdade já não é exclusivamente reservado a uma casta É sim o coração a espiritualidade do homem sensível que pode e deve tomar posse da verdade e essa subjetividade é a de todos os homens Cada um deve realizar a tarefe da reconciliação dentro de si mesmo Esta reconciliação abolindo a diferença entre os dois mundos leva ao resultado de que em certo sentido a religião é abolida enquanto é cumprida o protestantismo anuncia tanto cristianização do saeculum quanto a secularização do cristianismo O Estado moderno é cristão e protestante na medida em que seu princí pio tem sua origem na religião Porém uma vez que esse princípio não é nada mais que o da universalidade racional é acessível a todos os homens em si e é secular o Estado que o expressa Em todo o caso este Estado é inconcebível enquanto a Reforma não tiver ensinado a liberdade aos povos Se apesar da atividade de Napoleão os princí pios modernos falharam nos países latinos o motivo é o catolicismo desses países A sujeição à religião traz consigo a servidão política O outro princípio fundamental que no entanto é ligado ao primeiro para a constituição do Estado racional é a diferenciação econômica e social fimdamentada na libertação dos desejos e necessidades individuais A multiplicação das circunstâncias e necessidades individuais a concorrência a divisão do trabalho tornam impossível um regime fundamentado apenas na sabedoria e na virtude dos governantes Tornam neces sária a passíem para a universalidade do direito que caracteriza o Estado moderno O Estado racional está longe de se fundamentar em uma sociedade sem classes ou voltada para a homogeneidade ao contrário Hegel acredita que as diferenças de classe e riqueza não são meramente inevitáveis mas são indispensáveis para a eficácia da liberdade indi vidual e para a atividade do Estado Ainda não há segundo ele um verdadeiro Estado na América do Norte por causa da ausência de tensão econômica e social G e o r g W E H e g e l 663 21 Ibid parte IV sec III chap i p 416 22 Ibid Introduction p 83 O Estado moderno é caracterizado por suas leis racionais mas sua introdução de pende de condiçóes históricas e sociais na ausência das quais essas leis seriam frágeis ou até mesmo perniciosas Por conseguinte Hegel demonstra uma reserva muito prudente em propor a aplicação concreta dos princípios universais Os costumes ou hábitos do povo devem estar preparados esta é a fonte da importância da religião e a transição para a racionalidade deve ser feita com prudência a fim de evitar uma revolução Esta é a tarefa do poder governamental que deve ter uma autoridade forte para este fim Em seu último artigo dedicado à Lei da Reforma Inglesa de 1830 que visa eliminar os burgos podres e aumentar a racionalidade do sistema eleitoral inglês promovendo a democratização Hegel concorda com a inspiração teórica do projeto que tenta intro duzir na Inglaterra os princípios universais há muito vitoriosos no continente e profere uma crítica violenta à arbitrariedade política e social reinante na Inglaterra bem como em seu direito que é apenas positivo e nâo espelha qualquer reflexão Porém ao mesmo tempo Hegel critica a reforma em si com o mesmo cuidado e concorda com a maioria dos temores de seus adversários Embora o artigo não chegue a uma conclusão deixa a impressão de que considerações de prudência levaram o autor a decidir contra a Lei da Reforma apesar de concordar com ela em princípio O motivo é que além da ausência de uma lei racional outro grande defeito Inglaterra é a ausência de um forte poder governamental sendo a monarquia fraca e a aristocracia incompetente Foi a ação dos príncipes auxiliados pelos funcionários públicos que permitiu a introdução de princípios racionais na Prússia sem as convulsões causadas na França pelo espírito abstrato Na ausência de orientação e controle pela mão firme do gover no na ausência da preparação de uma classe dirigente fundamentada na competência ao invés de dinheiro tradição ou demagogia a evolução corre o risco de ser precipita da e gerar a anarquia O Estado prussiano é para Hegel o modelo mais semelhante ao Estado racional porque representa graças não só à religião protestante e à autoridade da monarquia uma síntese entre as exigências revolucionárias dos princípios e as exi gências tradicionais da organização O estabelecimento do Estado moderno então exige três elementos leis racionais governo e sentimento ou moral Platão de acordo com Hegel baseou seus ensinamentos no segundo e no terceiro apenas e negligenciou o primeiro Os revolucionários doutrinários e os liberais por outro lado reconhecem apenas leis racionais esquecendo a importância do estado de espírito do governo e dos cidadãos Os exemplos da França e da Inglaterra mostram cada um à sua maneira os perigos da ausência de um governo real assim como o exemplo dos países católicos onde é impossível uma constituição racional mostra a importância política da religião e da moral como bases para a cultura Bildung dos indivíduos sua educação para o universal e sua formação como cidadãos de um Estado livre O Estado é em certo sentido nada menos do que a coroa e a base desta obra da moral que se eleva do particular para o universal ensinando o indivíduo a realizarse 6 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 23 NT Os rotten boroughs eram municípios que antes da Lei da Reforma de 1832 tinham direito a eleger um Membro do Parlamento muito embora contassem com pouquíssimos eleitores ao darse a um todo As etapas desta educação ou os momentos do espírito moral concreto Sittlichkeií são a família a sociedade civil e o Estado Discerniremos agora o duplo movimento já mencionado o processo pelo qual o Estado moderno cumpre essa síntese que é o resultado dos momentos subordinados íúndamentada na particu laridade e de necessidade racional íúndamentada no conceito universal Tanto a íàmília quanto a sociedade civil são distintas do Estado isto é opôemse a ele tal como o particular ao universal No entanto ambas têm algo em comum com ele por conseguinte alguma coisa por meio da qual contribuem para a educação mo ral ao abrirem o indivíduo para o universal A íamília tem uma unidade substancial constitui um todo íúndado na confiança dos seus membros um íim em si mesmo em que o indivíduo está consciente de ter a sua realidade É portanto a imagem do Esta do com esta diferença a unidade que prevalece nela é natural imediata perceptível ao invés de pensada ou aceita racionalmente A sociedade civil por outro lado é uma associação de membros independentes na qual a pessoa particular como uma totali dade de necessidades é o princípio primeiro A sociedade civil portanto representa o momento de separação e diferença em que a moral concreta Sittlichkeii parece ser dissolvida em íavor da particularidade e do egoísmo Contudo ao mesmo tempo é na sociedade civil que o pensamento aparece sob uma forma que ainda é abstrata a forma da compreensão e da universalidade formal Embora represente o momento da particularidade por excelência o universal está presente nela de várias maneiras Em primeiro lugar as relaçóes recíprocas dos indivíduos criam um sistema de dependência mútua que produz uma universalidade formal que é externa e nâo criada pela vontade dos indivíduos a pessoa particular o primeiro princípio da sociedade civil está em essência relacionada assim com outras pessoas particulares que cada um se afirma e encontra satisíação por meio dos outros e ao mesmo tempo pura e simplesmente por meio da forma da universalidade o segundo princípio aqui A economia política uma criação dos tempos modernos e uma conseqüência da libertação das necessidades individuais é exatamente a ciência desta dependência recí proca por meio da qual cada um enquanto busca seus interesses particulares sem querer obedece às leis gerais Nesse meio tempo como resuludo de suas relações com os outros o indivíduo suas necessidades e seu trabalbo soíiem profimda adaptação A sociedade civil engendra novas necessidades que sâo criadas por ela e não são naturais A necessi dade de se orientar de acordo com outros em uma rotina diária e nos costumes estilos de roupas horários de refeições e assim por diante eleva a individualidade natural dos membros da sociedade civil à universalidade formal da cultura Continua a ser uma uni versalidade obtida de modo inconsciente mas que já transforma a individualidade em si Além disso na sociedade civil o universal tem uma presença direta livre e consciente na forma da necessidade do homem de recorrer à lei e à administração O direito de pro priedade engendrado pelo sistema de necessidades e de seu reconhecimento recíproco é ele mesmo reconhecido em sua universalidade na medida em que a autoridade assegura a sua proteção É a esfera do próprio relativo a cultura que dá à luz o direito G e o r g W F H e g e l 665 24 Philosophy ofRight 182 p 122123 Direito significa universalidade desejado e reconhecido como tal é a base da única igualdade válida É parte da cultuta do pensamento como consciência do indivíduo na fbrma de universalidade que sou apreendido como uma pessoa universal em que todos são idêndcos Um homem conta porque é um homem não porque é judeu católico protestante alemão italiano etc Entretanto essa universalidade contínua a ter o cará ter do direito meramente abstrato A tealização da sua unidade com todo o reino do par ticular é a missão da administração que assegura que primeiro que seja alcançada a imperturbável segurança da pessoa e da propriedade e segundo que a garantia de subsis tência e bemestar de cada pessoa seja tratada e realizada como um direito A previ são administrativa ou seja a ação do Estado protege a universalidade na particularidade da sociedade civil na forma de ordem externa e de instituições que mantêm e apoiam o aglomerado de fins e interesses que existem nela Hegel deseja assegurar um equilíbrio entre a liberdade da indústria e do comércio e a necessidade de previsão e direção por parte do Estado como um todo Embora a vontade e o interesse dos indivíduos sejam as molas de ação da sociedade dvil e a função do Estado seja simplesmente levála de volta para o universal diminuir o perigo de revoltas decorrentes de interesses conflitantes e abreviar o período em que a sua tensão deve ser amenizada por meio do fundonamento de uma necessidade da qual eles próprios nada sabem no entanto ocorre ainda que o princípio de sua organização é o oposto do liberal As condições sociais públicas devem ao contrário ser consideradas como ainda mais perfeitas quanto menos em comparação com o que é organizado publicamente for deixado a cargo do próprio indivíduo de acordo com o que demandam suas tendências particulares Porém dentro do sistema das necessidades em si há um aspecto por meio do qual o individual está ligado ao universal de forma imediata e adquire uma realidade defini tiva Tratase da divisão de classes ou grupos gerais Stãndé Se a femília é a base pri meira do Estado os Stãnde são a segunda Existem três classes e sua divisão é dialética a classe irícola denominada substancial ou imediata a classe industrial denominada reflexiva ou formal e a classe dos funcionários públicos chamada de classe universal A classe i cola é a classe da segurança consolidação satisfeção duradoura das neces sidades e estas nada são além de formas de universalidade Há uma moralidade imediata e concreta que repousa na femília e na boa fé E a classe universal possui sua própria definição do universal para si mesma como objetivo como fundamento como fim de sua atividade Os funcionários públicos são por natureza orientados para o Estado e encontram em seu serviço sua raison detre e sua satisfeção 6 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 25 Ibid 209 trans PH and AB 26 Ibid 230 p 146 27 Ibid 236 p 147148 28 Ibid 242 p 149 29 Ibid2Q3pÒ 30 Ibid 250 trans PH and AB Por conseguinte só a classe intermediária a classe industrial é essencialmente orientada para o particular Por isso é escrava do rigor da insegurança da luta das necessidades de sua multiplicação indefinida e da indefinida divisão do trabalho e da contradição entre pobreza e riqueza Por esta razão requer a intervenção do Estado Por outro lado uma vez que para os seus meios de subsistência depende da refiexão do trabalho e da inteligência é essencialmente esta classe que dá à cultura individual o refinamento e a formação intelectual Nesta classe o indivíduo é despertado para a liberdade por ser despertado para a refiexão A liberdade nasce nas cidades enquanto o campo é tradicionalmente mais submisso porque mais passivo Acima de tudo mesmo nesta classe a particularidade é levada a tomar o universal como sua meta Sittlichkeit é portanto reintegrado à sociedade civil Reintegrálo é a missão da corporação no sentido de guilda ao contrário da firma ou empresa proprietária de açóes conjuntas que tem responsabilidade limitada o que limita as contradiçóes da sociedade civil por assegurar que haja um terreno comum para a pobreza e a riqueza funcionários e empregadores por fornecer uma consagração racional para a diversidade e a rivalidade de talentos e aptidóes por proteger os indivíduos contra acidentes específicos em suma pela superação do isolamento e do rigor da vida civil desempenhando o papel de uma segunda femflia A corporação introduz a moralidade objetiva na sociedade civil por meio dos sentimentos de honra profissional para os quais fornece uma base e a probidade que é verdadeiramente reconhecida e honrada nele Assim é central o papel da corporação pois na sociedade moderna a probidade e a honra profissional sáo as únicas formas realmente vivas da virtude Uma vez que a virtude neste caso representa apenas a adaptação do indivíduo às necessidades da situação em que ocorre encontrarse só pode ser denominada pro bidade A própria virtude no sentido de refiexão moral subjetiva ou no sentido de a virtude determinar o caráter de lun indivíduo em particular só tem lugar na vida quotidiana das sociedades modernas fundadas na sistematização e na universalidade objetiva em circunstâncias extraordinárias e nos conflitos entre deveres Em Estados primitivos e antigos a virtude heróica tinha o seu lugar porque não havia espaço para a ação de indivíduos excepcionais Hoje uma vez que foi constituído o Estado mo derno o sistema racional os substitui O que resta da virtude na sociedade como tal é a santidade do casamento e a honra profissional É por isso que depois da fem ília a corporação constitui a simda raiz moral do Estado a raiz que está implantada na sociedade civil A corporação reúne em si os momentos da particularidade subjetiva e a imiversalidade objetiva que eram anteriormente separados na sociedade civil No entanto este trabalho de união é apenas um aspecto particular daquilo que o Estado define como seu objetivo A esfera da sociedade civil conduz portanto ao Estado Podese entender este movimento quando se reflete sobre a relação do Sittlichkeit tal como expresso na femflia e na sociedade civil para com o patriotismo O senti G e o r g W F H e g e l 667 31 Ibid S 204 trans P H and A B 32 Ibid 255 trans P H and A B mento de femília a honra profissional e a probidade parecem em tempos normais serem os substitutos da virtude política e do patriotismo No entanto conduzem ao patriotismo na medida em que a surança e a confiança que expressam sáo íúndadas no Estado e aqueles que possuem estes sentimentos devem ao se conscientizarem desse feto tomar o Estado como seu objeto Esta conversão pode ser vista na definição de sentimento político ou patriotismo fornecida por Hegel Fste sentimento é sobtetudo de confiança e de certeza de que meu interesse particular e meu interesse substancial são preservados e mantidos dentro do interesse e dos fins de outro aqui o Fstado como conseqüência de sua telação para comigo como individuo Daí decorie que deceno não é outro para mim e que nesse estado de consciência sou livre Sob o nome de patriotismo subtendese a disposição ao sacrifício e a ações ex traordinárias mas em essência tratase da disposição de consciência que em situações e circunstâncias normais leva a entender a vida coletiva como a base e a meta A fim de compreender o conteúdo desse sentimento cívico devemos agora exa minar o Estado como uma organização racional e necessária O sentimento cívico recebe o seu conteúdo específico de diferentes aspectos do organismo do Estado Este organismo é a constituição política Esta constituição é racional na medida em que o Estado internamente diferen cia e determina sua atividade em si de acordo com a natureza do conceito isto é de tal forma que cada um dos poderes é em si a totalidade da constituição Deve haver de feto uma diferenciação dos poderes mas deve esta ser orgânica e não mecânica Os poderes não devem ser considerados nem como inteiramente independentes nem como reciprocamente límitantes uns dos outros nem ainda como mutuamente hostis pelo contrário devem refietir um ao outro mutuamente e ser determinados unicamen te pela ideia do todo O todo forma uma monarquia constitucional baseada em um corpo de fun cionários públicos profissionais e equipada com determinadas instituições representa tivas O aperfeiçoamento do Estado até a monarquia constitucional é a tarefe do mundo moderno O objeto da história universal nada mais é senão a história de sua formação que coincide com a do íntimo aproíúndamento do espírito do mundo Somente a monarquia constitucional corresponde à ideia plenamente desenvolvida de Estado que libertou todos os seus momentos e a uma sociedade complexa que libertou os poderes da particularidade Por exemplo o Estado moderno não pode ser íúndamentado na virtude como são as repúblicas de acordo com Montesquieu em um Estado social mais complexo quando as potências da particularidade estão desenvolvidas e livres não é suficiente a virtude dos chefes de Estado Para que o todo possua a força de se manter e de conceder aos poderes particulares desenvolvidos o 6 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o lIt ic a 5 L e o St r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 33 Ibid 268 trans P H and A B 34 Ibid 269 trans P H and A B 35 Ihid 272 trans P H and A B que é seu direito positivo e também negativo vem a ser necessária uma forma de lei racional diversa daquela que se manifesta nas disposições subjetivas Falando de modo geral a tipologia clássica monarquia aristocracia democracia só era válida para uma sociedade ainda indiferenciada Essas formas sáo encontradas de novo como momentos da monarquia constitucional o monarca é um alguns participam do poder governamental e a multidão em geral participa do poder legislativo No entanto a verdadeira diferenciação não se baseia em uma distinção quantitativa mas na natureza lógica do conceito de Estado Distingue a o poder de definir e estabelecer o universal o Legislativo b o poder de integrar no geral as esfisras particulares e os casos individuais o Execu tivo c o poder de subjetividade como a vontade dotada do poder supremo de decisão a Coroa Na Coroa reúnemse os difitentes poderes em uma unidade individual que as sim é ao mesmo tempo o ápice e a base do todo isto é da monatquia constitucional Deve haver um lócus de decisão suprema a soberania e a unidade do Estado devem ser expressas em uma vontade que determina finalmente A soberania do Estado assim como a vontade é personalidade deve ser encarnada em um indivíduo o monarca Uma vez que é em essência caraaerizado como este indivíduo em abstração de todas as suas outras caraaerísticas deve ser designado de maneira imediatamente natural pelo nascimento É somente pelo princípio hereditário que a pessoa do monarca que simboliza a unidade e a continuidade do Estado escapa das lutas de interesse e de opi nião que necessariamente dominam um império eletivo Contudo a ação do príncipe em si tem certo caráter simbólico e arbitrário é obviamente o príncipe que declara a guerra assina as leis nomeia seus conselheiros e resolve suas diferenças No entanto em todos esses casos é o fiat de decisão que lhe compete e não a própria tarefe de governar na maioria das vezes a última determina o primeiro quase que obrigatoriamente É por este motivo que com leis firmemente estabelecidas e uma bem definida organização do Estado o que foi reservado para a decisão exclusiva do monarca deveria ser considera do como insignificante em relação ao que é substancial Deve certamente ser conside rada grande sorte que um nobre monarca seja o destino de um povo No entanto não tem isso tão gtande relevância pois a força desse Esudo está em sua razão Quem então representa essa razão e consequentemente exerce o que é essencial no poder É o governo e em geral a classe universal dos funcionários públicos uma vez que o governo baseiase no mundo dos funcionários públicos BeamtenwelÍf É este governo que tanto prepara como aplica as decisões do monarca Assegura o G e o r g W F H e g e l 6 6 9 36 Ibid 273 trans E H and A B 37 Ibid p 176 38 Ibid 280 trans RH and AB 39 Philosophy o f History part IV sec III chap iii p 456 40 Ibid interesse geral mesmo na busca de fins particulares É nas ações e na formação dos funcionários públicos em que reside o ponto onde as leis e as decisões de governo entram em contato com os indivíduos e sáo de íato cumpridas É na situação dos próprios funcionários públicos que a função do Estado a síntese do particular e do universal é melhor realizada uma vez que é apenas no cumprimento de seu dever em seu serviço ao Estado que encontram a satisfeção de suas necessidades particulares Representam o tipo de homem que encarna o espírito do regime e serve como modelo para toda a comunidade Cada membro da comunidade pode por direito tornarse funcionário público A classe universal é aberta a todos os cidadãos este é o aspecto democrático do Estado racional Porém é aberta somente quando submetida a um exame objetivo de suas aptidões e de sua formação intelectual e moral É talvez neste tipo de exame relativo às ciências diretamente relacionadas à competência administrativa bem como à formação intelectual e moral em geral para que um comportamento imparcial correto e polido se torne habitual que será en contrado o elemento mais importante do Estado hegeliano esse Esudo que é com jus tiça caucterizado como o Beamtenstaat burocracia e como tal se opõe às aristocra cias da antiga ordem baseada na nobreza às oligarquias fúndamenudas no dinheiro e às modernas democucias fundamentadas nos grandes números na opinião pública e nos interesses particulares No artigo sobre a Lei da Reforma Inglesa Hegel lamenta a ausência tanto na lei e na conjuntuu das condições estabelecidas na Alemanha mesmo sobre aqueles que têm pretensões de nascimento fortuna ou grande proprie dade necessários pau a participação no governo ou nos assuntos de Estado tanto nos seus ramos gerais como específicos estudos teóricos formação científica exercícios práticos e experiência Na Inglateru um homem só precisa ter alguma fortuna pau que possa entrar no Parlamento que detém o real poder O resuludo é que os gover nantes sáo um conjunto muito variado de indivíduos em lugar de uma assembleia de homens competentes e dedicados ao Esudo Sáo aqueles que sabem hoi aristoi que deveriam reinar e não a ignorância ou a vaidade O governo de fimcionários públi cos é a forma moderna da aristocucia A burocucia um termo que apareceu pela primeiu vez na segunda metade do século XVIII com o início do Esudo moderno e que imediatamente adquiriu um sentido pejorativo é reabiliuda no pensamento de Hegel que percebe nela a forma sistematizada e racionalizada em conformidade com o espírito dos tempos modernos e a necessidade do conceito de Esudo do governo dos melhores Contudo ao mesmo tempo Hegel é bastante cuidadoso ao evitar a re provação implíciu no sentido pejoutivo do termo burocucia que é uma tirania dos funcionários públicos formando uma casu obediente ao esprit de corps e constituindo 670 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 41 Philosophy o f Right 295 trans PH and AB 42 Ihid 296 p 193 43 On the Eiish Refbrm Bill in Werke Ed G Lasson Leipzig Meiner 1921 ff VII 304 trans P R a n d A B 44 Philosophy o f History p 456 um Estado dentro do Estado Náo só a hierarquia constitui um meio de controle in terno contra a arbitrariedade mas acima de tudo as instituições da soberania vindas de cima e os direitos das corporações vindos de baixo evitam que os fimcionários públicos tomem a posição isolada de uma aristocracia e impeçam que a cultura e o talento se tornem os meios de arbitrariedade e dominação O poder legislativo gera não só o monarca e o governo de cujos momentos aca bamos de falar mas também um novo elemento as assembléias de ordens O papel dessas últimas não é exatamente legislar Não tomam quaisquer decisões essenciais ou definitivas Dão voz à liberdade subjetiva dos indivíduos às opiniões e aos interesses da massa e à sociedade civil na medida em que estes são excluídos do governo Es sencialmente as assembléias mediam entre o príncipe o governo e o povo Graças a esta mediação o poder do príncipe não parece ser isolado nem consequentemente constituir simples dominação ou teimosia tampouco fícam isolados uns dos outros os interesses particulares das comunidades corporações e indivíduos Tudo é feito para evitar que o povo como uma massa indiferenciada participe diretamente do poder ao mesmo tempo em que lhe proporciona uma relação com o Estado Assim não há voto individual direto o que daria reconhecimento à existência e ao papel do indiví duo isolado e abstrato e daria autoridade ao peso dos números O inivíduo deve ser representado na sua realidade concreta como um homem dotado de determinadas ca racterísticas e interesses que lhe proporcionam um lugar no organismo social O voto é dado pelas ordens Stãnde As ordens no sentido político assembléias de ordens são fundamentadas nas ordens no sentído social classes os grupos econômicos e so ciais os grupos com interesses particulares devem ser representados como tais Aqui também no entanto deve haver órgãos de mediação deve haver dentro das ordens um elemento em essência orientado para a íúnção de intermediário que lhes tem sido atribuída Este é o papel da classe substancial de proprietários de terras que são favorecidos devido a sua estabilidade e a sua grande independência em relação tanto ao Estado e às incertezas da vida econômica Os próprios proprietários de terras têm assento direto na assembleia enquanto A sunda seção do elemento representativo compreende o elemento variável da socieda de civil Tal elemento só pode participar da política por intermédio de seus deputados a multiplicidade de seus membros é uma razáo extema para isso mas o motivo essencial é a natureza específica desse elemento e sua atividade Uma vez que esses deputados são re presentantes da sociedade civil daí decorre como conseqüência direta que sua designação é feita pela sociedade como sociedade Isto é ao fezer a indicação a sociedade não está dis persa em unidades atômicas reunidas somente para realizar um ato único e temporário e mantidas unidas por um momento e nada mais Pelo contrário fez a nomeação como uma sociedade articulada em associações comunidades e corporações que embora já constitu ídas para outras finalidades adquirem desta forma uma ligação com a poiítica G e o r g W F H e g e l 671 45 Philosophy ofRight 308 p 200 Assim os membros da classe industrial são representados pela intermediação das corporações Os próprios representantes participam das esferas de interesse que representam e devem além disso atender algumas condiçóes de competência que correspondem às condições de fortuna exigidas dos membros da primeira ordem As duas ordens sentamse em duas assembléias distintas o papel da primeira câmara pode ser a conciliação entre a segunda e o governo Assim uma série de organismos inter mediários e de órgãos de mediação serve para afastar o espectro da democracia abstrata e para realizar um Estado em que a liberdade coincide com a organização Até que ponto são bemsucedidos Examinando a questão de um ponto de vista mais geral qual é o resultado dessa empreitada de conciliação entre modernos princí pios abstratos e as necessidades da organização governamental que constitui a síntese do Estado racional hegeliano Podese dizer que as instituições que discutimos garan tem uma livre articulação da liberdade igualdade e ímtemidade ou universalidade da pessoa humana mas dentro de limites muito estritos impostos por esta organização do Estado Assim há liberdade na escolha da ocupação na distribuição do pertencimento às classes ao contrário da regra na República de Platão onde a classe é estabelecida pelo governo ou do sistema de castas indiano onde é determinada pelo nascimento e no feto de que a única exigência que faz o Estado em tempos normais é de dinheiro sob a forma de impostos De todos estes pontos de vista é o livrearbítrio que deve ser o intermediário por meio do qual o Estado obtém o que precisa Quanto à opinião pública a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão oral e escrita em geral a situação é mais ambígua A liberdade subjetiva formal dos indivíduos consiste em terem e expressarem seus próprios juízos opiniões e recomendações particulares sobre os assuntos do Estado Essa liberdade se manifesta coletivamente no que se denomina opinião pública Contém esta princípios externos de justiça juntamente com preconceitos proíundas tendências de realidade juntamente com a opinião particular subjetiva e contingente Nela a verdade e o erro infinito estão unidos de forma tão imediata e íntima que não se pode discernir o elemento grave ou universal por ou com base na opinião em si Deve portanto ter a oportunidade de se manifestar po rém jamais de emitir o julgamento final uma vez que só se justifica de uma forma geral e coníusa mas não de forma precisa e consciente Por conseguinte ser independente dela na ciência assim como na vida é a primeira condição formal para realizar algo de grande ou racional Grandes conquistas têm garantia no entanto de posterior re conhecimento e grata aceitação pela opinião pública que no devido tempo fará deles um dos seus próprios preconceitos A liberdade de comunicação pública e em particular da imprensa a satisfeção desse irreprimível instinto de emitir e já ter emitido a própria opinião é também reconhecida mas limitada devido a sua ambigüidade É ao mesmo tempo tanto a ex 672 H is tó m a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 46 7õ316p204 47 Ibid 317 p 205 48 Ibid 318 trans PH and AB pressão do princípio da liberdade infinita da consciência crítica e da arbitrariedade da opinião subjetiva como em última análise um incentivo à desordem e ao crime Defi nir a Uberdade de imprensa como a liberdade de dizer e escrever o que se quer pertence à barbárie ignorante e superficial da representação No entanto a indeterminação da matéria e da forma em questão Onde termina a opinião e começa a infração fez sempre imprecisa a lei que a limita o julgamento contra ela sempre parece subjeti vo Esta subjetividade e contingência na repressão que são inevitáveis por natureza ainda são indispensáveis Hegel no entanto pede indulgência na medida em que o Estado é suficientemente saudável e forte para que seja capaz de suportar a expressão de opiniões irresponsáveis porque são tratadas com desprezo Porém mesmo aqui são aqueles que sabem que são os juizes da medida em que a opinião pública tal como expressa nas assembléias deve ou não ser seguida e a liberdade de expressão tal como é encontrada na forma impressa e na forma oral é útil ou perigosa e deve ser incentivada ignorada ou reprimida Da mesma forma é reconhecida a igualdade porém somente como uma igualdade abstrau de pessoas perante a lei É política e socialmente expressa na possibilidade de cada homem tornarse um membro da classe universal e dirigente Entretanto a igualdade deve ceder lugar à primazia da diferenciação e da articulação Não há igual dade social A equalização de fortunas é um sonho produzido pela mente abstrata A sociedade baseada na economia moderna encoraja desigualdades sociais mais significa tivas do que as conhecidas anteriormente e o Estado racional pressupõe grande dife renciação Do ponto de vista político é cuidadosamente evitado o poder da multidão O ponto de vista da minoria esclarecida deve prevalecer sobre o das massas hoi pollot que não sabem o que querem Finalmente é reconhecida a universalidade da pessoa humana mas somente na medida em que não traz com ela o cosmopolitismo polí tico Assim como a igualdade entre as pessoas não significa um Estado homogêneo assim também a universalidade da natureza humana não significa a universalidade do Estado que permanece sempre uma totalidade soberana específica que exclui por sua própria individualidade outras soberanias Existe de feto a criação de uma espécie de sociedade mundial a partir de um ponto de vista econômico mas que não elimina essa individualidade essencial dos Estados De modo geral a síntese hegeliana nos traz de volta à oposição entre a sociedade e o Estado que foi seu ponto de partida Trata se de uma sociedade amplamente liberal e descentralizada porém mais de um ponto de vista econômico e social do que político Para tomar decisões políticas que dizem respeito ao Estado é preciso adaptarse à sua organização No entanto é na relação entre política interna e externa em última análise entre a paz e a guerra que se coloca em toda a sua intensidade e amplitude o problema da relação entre sociedade e Estado entre as esferas particulares e o bem universal Do ponto de vista do Estado há uma identidade entre guerra e paz O Estado afirmase através da oposição A soberania que é voltada para dentro traz consigo uma soberania G e o r g W F H e g e l 673 49 Ibid 319 trans PH and AB que é voltada para fora na medida em que o Estado é acima de tudo constituído por sua independência e individualidade necessariamente compreende um aspecto negativo e exclusivo que o opõe a outras individualidades autônomas O Estado por tanto não pode afirmar justamente sua autoridade interna sem que assim afirme a sua independência externa Não há apenas uma relação necessária mas uma relação proporcional quanto mais unificado é um país em seu interior sob a autoridade do Es tado mais é capaz de fazer a sua independência respeitada pelo exterior povos que não desejam ou temem tolerar a soberania em casa têm sido subjugados pelo exterior e têm lutado por sua independência com ou a menor glória e sucesso quanto menos que têm sido capazes de oianizar previamente os poderes do Estado em assuntos internos Reciprocamente guerras bemsucedidas evitam os distúrbios internos e consolidam o poder interno do Estado Somente um grande perigo ou um grande empreendimento extemo permitem a reabzação da união ssrada do Estado por silenciar divisões e interesses particulares Assim tornase evidente que é na guerra e pela guerra que o Estado melhor se revela e melhor cumpre sua íúnção Períodos normais são caracterizados pela livre atividade das esferas particulares Cada indivíduo vive para sua íàmília e sua ocupação A totabdade só se intromete de modo indiieto sob a forma da cobrança de impostos o único requisito exigido pelo Estado Há um daro predomínio da sociedade particularidade e diversida de Por outro lado é a crise e especialmente a guerra que leúnem as esferas particulares na unidade do Estado é nas crises que se afirma a verdadeira natureza do Estado e do patriotismo ao exigir e obter do indivíduo o sacrifício daquilo que em tempos de paz parecia constituir a essência de sua existência sua fiunília seus bens suas opiniões sua vida Deste modo a guerra evidenciando a primazia do Estado sobre a sociedade civil e sobre o indivíduo em seu direito de exigir o sacrifício supremo a fim de manter a inde pendência reíúta as teorias bberais contratuais do Estado propostas por Hobbes Locke ou pela economia poUtica Uma avaliação totalmente distorcida da demanda por esse sacrifício é resultado de considerar o Estado meramente como uma sociedade civil e de considerar como seu fim último apenas a garantia da vida e da propriedade individuais Não é possível obter essa garantia pelo sacrifício daquilo que deve garantir muito pelo contrário E além disso na paz a vida civil ampliase continuamente todos os seus setores emparedamse e no longo prazo os homens entram em estagnação Suas idios sincrasias tornamse continuamente mais fixas e ossificadas Assim embora a guerra traga consigo a insegurança da propriedade e da existên cia é uma insegurança saudável conectada com a vida e o movimento A insegurança e a morte são naturalmente necessárias porém no Estado tomamse morais por se rem uma livre escolha A mortalidade tornase algo volitivo e a negatividade em sua raiz tomase aquilo que constitui o ser moral em sua essência 674 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 50 Ihid 324 p 209 51 Ibid 52 Ibid addition p 295 A guerra é o esrado de coisas que rrara com seriedade a vaidade dos bens e das preocu pações remporais A guerra possui a mais elevada significação pois por sua açáo a saúde moral dos povos é preservada em sua indiferença para com a esrabilizaçáo das insriruições finiras assim como os venros preservam o mar conrra a podridão que seria o resultado de uma prolongada calmaria assim também a corrupção das nações seria o resultado da paz prolongada quanto mais da paz perpétua Ao criticar a ideia kantiana de paz perpétua assegurada por uma associação de Estados observa Hegel que mesmo que diversos Estados unamse como uma femília este grupo como um indivíduo engendrará um oposto e criará um inimigo tanto isto é verdade que a verdadeira política é a política externa e que esta última é guiada pela possibilidade da guerra Como resultado é extremamente precário o direito internacional é de facto e até mesmo de jure incompetente para lidar com a possibilidade e a realidade da guerra O direito internacional é resultado das relações entre Estados independentes Seu con teúdo tem a forma do dever ser porque sua realização depende de diferentes vonudes soberanas Naturalmente os Estados como os indivíduos só existem na medida em que reconhecem um ao outro o que leva à possibilidade de contratos e acordos que devem ser respeitados No entanto uma vez que a soberania de um Estado constitui o princípio de suas relações com os demais os Estados se encontram assim em um estado de natureza em relação uns com os outros Seus direitos são realizados somente em suas vontades partículares e não em uma vontade universal que tenha poderes cons titucionais sobre eles Quando estas vontades particulares são incapazes de encontrar íúndamentos para a concordância seus conflitos só podem ser resolvidos pela guerra O direito internacional não pode impedir a guerra por resolver conflitos pois não há autoridade universal sobre os Estados que se imponha a eles uma liga do tipo kantíano pressupóe a adesão e obediência dos Estados que são sempre contingentes Tampouco é capaz o direito internacional de distinguir entre guerras justas e injustas de acordo com a violação de tratados Para cada Estado o seu bem particular é a lei suprema em nome deste bem pode questionar todos os compromissos que assumiu sempre que não mais correspondam aos seus interesses O conflito entre motal e política é resolvido pela existência concreta do Estado e não pelas demandas abstratas de uma justiça universal Contudo na medida em que o bem do Estado é a lei suprema a gueria continua a ser o recurso supremo pelo qual tal lei é necessariamente expressa No entanto a explicação baseada em uma pluralidade de Estados independentes não esgota a teoria hegeliana da guerra do mesmo modo que não o fez sua justificação pela negatividade humana as verdadeiras guerras precisam ainda de outra justifica G e o r g W F H e g e l 675 53 Ibid p 210 54 Ibid addition p 295 55 Ibid 330 trans P H and A B 56 Ibid 333 p 213 çáo Esta justificação originase em sua missão histórica No curso da história as guerras e revoluções são os instrumentos do espírito universal A ascensão do povo que possui a ideia e a difixsão do princípio que encarna o Espírito universal são efetuadas pelas guerras Porém o lugar que Hegel atribui a esta justificação de guerras pelo seu papel histórico suscita um problema difícil Se o sentido da guerra encontrase prin cipalmente no desenvolvimento e difusão da civilização o que acontece uma vez que este desenvolvimento e difusão foram realizados de modo definitivo Do ponto de vista político não seria o caso que o fim da história fosse definido pelo desaparecimento das guerras e das revoluções violentas Aparentemente haveria uma tensão ou mesmo uma oposição entre as duas ideias hegelianas da necessidade da guerra e do fim da história Ambas parecem ser indispensáveis para a construção do Estado racional Sem guerra o Estado tenderia a ser subordinado à sociedade o universal ao particular e toda a vida moral e política pautada pelos clássicos que Hegel quer reconstruir sobre os fundamentos da modernidade cornem patriotismo espírito cívico entraria em colapso A oposição de ricos e pobres e a multiplicidade de Estados pareceria garantir a permanência de crises e guerras Porém não dariam estes uma nova forma para as coisas Acima de tudo em um mundo que continua a ser dominado por oposições faria ainda sentido o fim da história por meio da solução de todas as contradições Por outro lado sem o fim da história e sem uma reconciliação total todo o edifício hege liano do Estado perderia seu caráter definitivo e necessário Como vimos a filosofia política pode coincidir com a filosofia da história porque o Estado final substitui o melhor regime Tanto a descrição hegeliana do desenvolvimento histórico como a do Estado racional implicam que o Estado final representa uma síntese que reconcilia to das as possibilidades humanas e não deixa espaço para a incompletude e a insatisfação que produziriam a continuação do desenvolvimento da história universal São de notável ambigüidade os textos de Hegel sobre a questão do fim da histó ria Por um lado o sol se pôs está chegando ao fim o longo dia da mente a humani dade atingiu sua velhice que é também seu florescimento a história terminou porque a mente encontrou a si mesma por ter conhecido a si mesma a liberdade é realizada na coincidência entre sua forma e seu conteúdo Por outro Hegel fàla dos problemas que a história terá de resolver nos tempos vindouros cita a América como a terra do futuro onde se revelará o peso da história do mundo talvez no antagonismo entre a América do Norte e a do Sul vê na Rússia uma solidez primitiva que pode conter em si mesma uma enorme possibilidade de desenvolvimento para além de sua natu reza intensiva É somente quando for encontrada uma solução para essas aparentes contradições em relação ao problema do fim da própria história que se poderá decidir a respeito de sua relação com o problema da guerra 6 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 57 Ibid par 324 trans P H and A B 58 Philosophy of History Introduction p 78 and 109 59 Ibid p 86 60 Letter to Baron von Uexküll Briefe von und an Hegel Ed Hoffmeister Philosophisches Bihlio thek Hamburg F Meiner 1952 11 298 n 406 trans P H and A B O caminho para uma possível solução parece ser indicado pelos textos em que Hegel íãz uma distinção entre os princípios históricos e sua tradução em realidade en tre a sua vitória como tal e sua vitória manifesta Na verdade é a liberdade concreta que é o princípio íinal é de feto a Reforma que é seu instrumento definitivo a Eu ropa é o terreno onde é concluída a história universal que começou na Ásia Quanto à Reforma escreve Hegel Aqui é desfraldado o novo o último estandarte em torno do qual os povos se unem o estandarte da mente livre Esta é a bandeira sob a qual servimos e que erguemos Desde então e até os nossos dias o tempo não teve tarefa alguma a realizar além de transmitir ao mundo este princípio Contudo esta introdução do princípio do mundo não é concluída muito embora o princípio seja realizado e o mundo atual seja o mundo de completude que não tem mais necessidade de nada externo Daqui em diante as revoluções ocorrem internamente O mundo cristão é o mundo da completude O princípio bi realizado e assim c h u o fim dos dias A Ideia já nada pode ver no cristianismo que náo tenha sido satisfeito Assim o mundo cristão nada tem de externo a ele em um sentido absoluto mas apenas relativamente é algo externo que em si já foi superada e que só precisa demonstrar que já foi superada Assim termina a história no sentido de que surgiu o princípio íinal O mundo é praticamente europeu ou ocidental tal como é em princípio cristão e protestante Porém tal como ainda existem Estados católicos ou não cristãos esta vitória espiritual da Europa ocidental continua a ser traduzida para a realidade política Vimos que na medida em que a Reforma representou a cristianização do mundo também represen tou a secularização do cristianismo De certa forma a universalização do princípio elimina o princípio ao realizálo Expressase isso politicamente pelo feto de que o verdadeiro Estado deve ser íúndamentado na religião protestante mas que a cidadania nele deve ser aberta aos católicos judeus e outros O protestantismo é a base do Estado racional e deixa de ser a sua base Da mesma forma a europeização ou ocidentalização do mundo significará a perda da supremacia da Europa ocidental ou pelo menos de sua singularidade como o domínio privilegiado do espírito universal Hegel pode por tanto entender que dentro de um mundo que se tornou definitivamente europeu a ascensão de potências não europeias como a América ou de potências não ocidentais como a Rússia na medida em que se tornam europeizadas ocupam o centro do palco histórico sem representar um princípio original ou a introdução de uma nova etapa Podemos agora retornar ao problema da guerra Ao que parece Hegel fez uma distinção fimdamental entre os povos que já atingiram a fese íinal da civilização e os demais Portanto considera as guerras de civilização como legítimas inevitáveis e indispensáveis isto signiíica a conquista pelas nações civilizadas daquelas que nâo atingiram o mesmo nível de desenvolvimento do Estado Em virtude deste princípio G e o r g W F H e g e l 677 61 Philosophy ofHistory pan IV sec III chap i p 416 62 Ibid p 342 é necessário que o destino dos impérios asiádcos seja submetido aos europeus e a China também algum dia terá de se ajustar a esse destino Por outro lado os Esta dos plenamente desenvolvidos reconhecem um ao outro como legítimos Constituem uma federação de Estados ou pelo menos uma família dentro da qual o parentesco ou a semelhança de costumes possibilita uma conexáo jurídica que perdura durante as guerras e que as humaniza e limita Além disso essa limitação essa transformação se encerra com o desaparecimento da própria guerra que entre os Estados europeus não é mais viável Em sua Estética diz Hegel em relação ao futuro do épico Se alguém quiser ter uma ideia de cmo podem ser os épicos futuros em comparação com os do passado basta imaginar o racionalismo americano vivo e univetsal triunfendo sobre o aprisionamento em um infinito processo de delimitação e particularização Na Europa hoje cada povo é limitado por todos os outros e não pode por si só entrar em guerra contra os povos europeus Se alguém quiser escapar da Europa só pode fezêlo em direção à América No entanto se a Europa é o futuro da América se a América por sua vez deve vir a conhecer a organização racional do Estado desenvolvido então irá também além da idade da juventude da poesia nascente do heroísmo e da guerra que é a era do épico A América também chegará à forma de princípios deveres e leis gerais que sáo válidos por si próprios mesmo sem a particularidade da vida subjetiva dos indiví duos Irá da poesia épica em que se dá rédea solta à individualidade das figuras à simples prosa do racional de uma vida interna e civil ordenada Em suma o Estado final deve estar de acordo com uma realidade apropriada para a prosa em que prin cípios abstratos florescem em lugar da descoberta individual armas de fogo em lugar de heróis o romance em lugar do épico A Europa no tempo de Hegel é o modelo de tal sociedade Como o épico a guerra em princípio pertence ao passado Esta então é a solução para a qual conduz Hegel a guerra é indispensável para o Estado racional na medida em que o Estado se distingue da sociedade civil Porém a própria realização do Estado plenamente desenvolvido traz consigo o ocaso da guerra Ao mesmo tempo indispensável e contrária ao Estado desenvolvido esta só subsiste devido à existência de outros Estados que ainda não se desenvolveram É graças à sua relação com o exterior com os povos que não reconhecem como Estados e que ainda não estão organizados de forma racional e que historicamente representam o passado que os Estados desenvolvidos modernos que como as nações da Europa ocidental não podem mais guerrear entre si são capazes de garantir sua própria unidade e a vir tude política de seus cidadãos 678 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 63 Ibid part I sec II p 142 64 Aesthetics in Hegels Sãmtliche Werke Ed H Glockner Stuttgart F Frommann 192741 III System of Individual Arts 3 A a Das Episehe AUgemeine Weltzustand v III p 354355 trans P H and A B 65 Aesthetia p 341 and c Das Epos ais Einheitsvolle Totalitãt p 395 trans P H and A B Por óbvio tal solução suscita um grande número de questões que Hegel não res ponde pelo menos de modo explícito Em primeiro lugar não seria essencialmente provisória Existiria nos povos ainda não convertidos ao Estado racional um resíduo incivilizável que faria deles os adversários providenciais e permanentes de que neces sita o Estado racional Viria a ocidentalização do mundo a tradução do princípio em realidade a se parecer com o progresso infinito que Hegel criticou em Kant Se pelo contrário esse processo deve ser levado ao fim se o mundo como a Europa deve cons tituir uma sociedade prosaicamente organizada não encontraria ela um adversário se necessário criandoo dentro de si mesma como insiste Hegel que seria o caso na socie dade projetada por Kant Renasceria a guerra do simples feto da pluralidade dos Estados e da ausência de uma autoridade soberana Ou apontaria esta situação para o nascimento de um Estado universal Ou finalmente seria a situação definitiva uma pluralidade de Estados entre os quais a guerra terá perdido todo o senüdo normal e legítimo devido ao reconhecimento recíproco da semelhança de seu modo de vida e costumes e sua comu nidade de princípios mas entre os quais a guerra será sempre possível devido à contin gência de suas relações Neste último caso esta uma guerra que não fosse uma oposição de princípios que já não representasse progresso histórico que já não tivesse essa outra justificação de que as guerras reais necessitam uma guerra que no caso extremo só nasceu por acidente e em todo caso fosse resultado de uma contingência não redimida pela necessidade de história uma guerra contrária ao princípio universal constitutivo dos Estados que a travaram não perderia também a fimção política e moralmente educativa que só ela poderia exercer Mesmo que continuasse a existir a possibilidade de uma guer ra não tenderia a sociedade civil a obter vantagens cada vez maiores sobre o Estado Em suma essa decadência esse Versumpfin des Menschen que Hegel atribui à sociedade civil padfica não permaneceria até alcançar o seu fim Hegel recusase a responder recusase a fezer previsões A história tem a ver apenas com o passado e no que tange à filosofia a coruja de Minerva só voa ao anoitecer Talvez seja possível dizer que se Hegel quis fazer uma síntese de antigos e mo dernos de mestre pão e escravo cristão de antigo guerreiro e trabalhador moderno da polis fundamentada na devoção dos cidadãos e da sociedade fimdamentada na satisfeção de indivíduos particulares acabou menos com uma verdadeira síntese do que com uma tensão entre dois polos ou um equilíbrio precário Talvez seja possí vel ir ainda mais longe e dizer que em última análise o equilíbrio alcançado pende para uma direção Tomando a revolução moderna e a emancipação das paixões como dadas Hegel desejava restaurar sobre essas bases a organização política e a excelência humana que culpa os modernos por arriscar Porém se é verdade que seu Estado de funcionários públicos constitui a fórmula que mais racionalmente se conforma à essência do Estado moderno e a que é mais viável talvez seja menos verdade dizer que a reconciliação de antigos e modernos tal como elaborada por Hegel nesta fórmula e em sua filosofia da história representa em seus elementos essenciais uma decisiva consagração da modernidade G e o r g W F H e g e l 679 66 Philosophy of Right Prefece trans PH and AB 680 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y L e it u r a s A Hel Georg W F Philosophy ofRit Trans T M Knox Oxford Clarendon 1942 Prefece Third Part H l Georg W F Philosophy ofHistory Trans J Sibtee New York Dover 1956 Introduction part 11 Tbe Greek World part 111 chap ii Christianity part IV sec III chap i Reformation chap iii Enlightenment and Révolution Hegel Geoig W F Phenomenology ofMind Chap iv sec A lhe Master and the Slave B Hegel Georg W F Philosophy ofRifirt Hegel Georg W F Philosophy ofHistory H l Georg W F On the Eiish Reform Bill and On the German Constitution excerpts in C J Friedricb ed The Philosophy of Hegel NewYork Modern Library 1953 A lexis d e Tocqueville A 18051859 A publicação em 1835 da primeira parte de A democracia na América De la démocratie en Amériqué estabeleceu Alexis de Tocqueville como um dos mais impor tantes analistas da questão democrática Tocqueville foi o primeiro autor moderno a realizar uma investigação abrangente acerca do modo como o princípio democrático a igualdade íunciona como causa primeira na medida em que molda ou afeta todos os aspectos da vida na sociedade A abordagem utilizada por Tocqueville para o estudo dos assuntos políticos reve lase como um afastamento do método dos autores políticos dos séculos XVII e XVIII os quais principiavam suas investigações pelo estudo do homem apenas independente de sua cidadania em um determinado r m e Para Tocqueville o estudo da política começa com a investigação da situaçáo social A situação social é em geral resultado das dicunstândas aumas vezes das leis na maio ria das vezes ainda dessas duas causas combinadas potém quando se estabelece podemos considerila ela própria como a íbnte de quase tot as leis dos costumes e das ideias que regem a conduta das naçóes aquilo que nâo produz a situação social modifica A Democracia de Tocqueville dedicase de maneira explícita a uma descrição do modo como uma determinada situação social uma situação de igualdade influi nas instituições políticas da naçáo bem como nos costumes no comportamento e nos hábitos intelectuais dos cidadãos A situação social é o que íàz com que um regime tenha suas características específicas Isso não quer dizer que a situação social seja capaz de explicar tudo acerca de uma sociedade pois os costumes prévios e a geografia entre outros fetores também desempenham seu papel na configuração do regime Porém em nenhuma situação duradoura esses fatores secundários obscurecerão ou impedirão a atuação do princípio motor fundamental A situaçáo social molda opinióes altera paixões e sentimentos determina as metas almejadas o tipo de homem que é admira do a linguagem usada e finalmente o caráter dos homens que agrega Alexis de Tocqueville Democracy in America the Henry Rccve text rev by Fiands Bowen ed with a historical essay by Phillips Bradley 2 v New York Vintage Books Knopf 1958 I 48 A situação de igualdade é a situação social que constitui o princípio motor dos regimes democráticos Para Tocqueville este é o fator íundamental do qual todos os outros parecem derivar O pensamento político de Tocqueville tem origem no reco nhecimento e aceitação do inevitável triunfo do princípio da igualdade Não apenas o decorrer dos últimos 800 anos conduziu a um determinado íim acarretando o triunfo da igualdade como também ao analisar o registro das ações do homem Tocqueville percebe uma expressão da vontade divina O desenvolvimento da igualda de de condições é um íáto providencial Se devem ser convencidos os homens do nosso tempo por atenta observação e sincera reflexão de que o desenvolvimento graduai e paulatino da igualdade social constitui ao mesmo tempo o passado e o futuro de sua história esta descoberta por si só concederia a essa transformação o caráter srado de um decreto divino Tentar deter a democracia seria nesse caso resistir à vontade de Deus e as nações seriam então compelidas a utili zar da melhor forma possível o quinhão social a elas concedido pela Providência Essas observações dekam evidente que Tocqueville náo acredita que o homem seja limitado pelo domínio de um completo determinismo A Providência diznos não criou o homem totalmente independente ou totalmente livre É verdade que em torno de cada homem é traçado um círculo fatídico que este nâo pode ultrapassar porém dentro dos limites desse círculo é ele poderoso e livre A obra de Tocqueville surge como uma advertência aos homens para que façam o melhor que puderem com o quinhão que lhes foi dado por Deus os homens não podem determinar se as con dições serão ou não iguais mas é por sua responsabilidade que a igualdade conduzirá à miséria ou à grandeza à escravidão ou à liberdade Na verdade tratase de uma reflexão grave acerca da marcha da história providencial o constatar que o triunfo ine vitável da situação democrática pode vir a ocorrer tanto em uma situação de escravidão humana como em uma situação de liberdade humana Triunfou uma situação social que o homem não pode evitar mas cabe à arte do homem compreender e utilizar de modo vantajoso as potencialidades da condição democrática conducentes à liberdade Para atingir esta meta Tocqueville clama por uma nova ciência política que seja ade quada às novas condições produzidas pelo triunfo da igualdade O fato de que essa igualdade pode ser entendida como o princípio dos regimes democráticos é discernível na linguagem da Declaração de Independência Todos os homens são criados iguais é ali considerada a proposição primordial ou verdade auto evidente os direitos à vida à liberdade e à busca da felicidade como direitos universais derivam desta verdade íundamental Se todos os homens são iguais nenhum homem tem por natureza o direito superior de tirar a vida de outro homem de restringir sua liberdade ou de estipular seu modo de vida A igualdade em questão não se estende à 682 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 2 Ihid p 3 3 Ibid p 7 4 Ibid II 352 capacidade intelectual Tocqueville reconhece que mesmo com o advento da mais ex trema igualdade de condições a desialdade de intelecto permanecerá como uma das últimas e desagradáveis lembranças do antigo regime Contudo a paixão pela igualda de mesmo onde esta náo pode existir eliminará a força prática da visão cfessica de que os sábios devem governar Os homens das eras democráticas não tolerarão privilos não importa quais sejam seus fundamentos Em Democracia o objetivo de Tocqueville é mostiar aos homens que podem ser ao mesmo tempo iguais e livres e por não igualar a democracia a qualquer forma institucional associada a ela governo do povo governo representativo separação de poderes Tocqueville enfetiza seu receio de que a verdadeira força motriz da democra cia a paixão pela igualdade seja compatível com a tirania bem como com a liberdade É bem possível que a tirania conviva com instituições que aparentam ser democráticas Ao contrário de auns de seus contemporâneos que acreditavam que o desenvolvi mento gradual da igualdade andava de mãos dadas com a destruição final da possi bilidade da tirania sobre a terra Tocqueville entendia que o princípio democrático teria propensão se não fosse orientado a um despotismo nunca antes experimentado Voltaremos a este tema mais adiante Em seus escritos Tocqueville se volta para o regime norteamericano da década de 1830 não porque este necessariamente incorpore os princípios do melhor regime mas porque assinala o culminar desse progresso histórico em direção a uma igualdade sempre maior A natureza da democracia portanto se revela na América jacksoniana a visita à América constitui para Tocqueville um confronto com a própria democra cia Ao enfetizar a igualdade de condições em vez da simples igualdade Tocqueville chama a atenção para um estado da sociedade em que o conceito de igualdade veio a se realizar É esse o estado da sociedade em que os homens entram em confronto uns com os outros quando sua igualdade em abstrato tornouse manifesta para des em igual dade de oportunidades na educação em um nivelamento geral da riqueza na garantia uniforme dos direitos políticos Tocqueville não considerava a América ou qualquer outra sociedade como um Estado em que o princípio da igualdade tivesse se realizado por completo mas a América aproximavase mais desse ideal do que qualquer outro rime Como todos os Estados democráticos caracterizavase pela progressiva dimi nuição das desigualdades do antigo regime A igualdade de condições é entendida é daro em contraste com a desigualdade de condições o Estado sodal do antigo rime quer seja da França ou da Europa feu dal em geral Dentro de Democracia as características do antigo regime continuamen te SC imiscuem na argumentação é por meio da consdência que possui Tocqueville da grande e naquele tempo ainda respeitávd alternativa da democracia que é capaz de informar e refinar a democracia destinada a triunfer Na caracterização feita por Tocqueville do antigo regime o padrão pelo qual aparentemente mede a democracia e cobra dela explicações podemos começar a compreender seu pensamento É como se devêssemos afirmar que não pode compreender a revolução democrática quem for insensível às qualidades que Tocqueville atribui a um estado aristocrático da sociedade A le x is DE T o c q u e v il l e 683 uma certa elevação intelectual e um desprezo pelas vantiens mundanas convicções fortes e dedicação honrosa hábitos refinados e maneiras sofisticadas o cultivo das ar tes e das ciências teóricas um amor pela poesia beleza c glória a capacidade de realizar grandes empreendimentos de valor duradouro Uma compreensão das questões de mocráticas exige uma consciência das alternativas para a democracia esta necessidade não é removida pela marcha da história Tendo cm mente esta consciência estamos prontos para examinar a explanação de democracia oferecida por Tocqueville O C a r á te r d o R e g im e A principal característica da sociedade democrática é seu atomismo Foram der rubados os códigos cuidadosamente prescritos que governavam as relações das três clas ses da sociedade em tempos aristocráticos Foram demolidas as barreiras que separam as classes a propriedade foi dividida e igualada foram abertos a todos novos caminhos para conquistas sociais intelectuais e políticas A preocupação das classes dominantes com aqueles a quem zelavam como pastores a seus rebanhos foi substituída por uma quase indiferença foram cortados os laços sociais e políticos que uniam os homens Os homens enfrentam uns aos outros como iguais cada um independente cada um impotente Os indivíduos que compõem tal sociedade não possuem como cidadãos vínculos naturais entre si sendo cada um igual a todos os outros ninguém é obrigado a obedecer aos comandos de outro A principal tarefa da moderna sociedade democrá tica é a construção de vínculos artificiais para substituir os laços da Idade Média De acordo com Tocqueville a chave para a qualidade atomística das idades de mocráticas reside na difusão do individualismo uma disposição de rejeitar todas as obrigações como impositivas ou como artigos de fé que não tenham sido submetidos ou não tenham resistido ao teste da investigação pessoal Cada indivíduo se torna o centro de um minúsculo universo particular composto por ele e seu círculo imediato de parentes e amigos Inteiramente absorvido na contemplação deste universo o indi víduo perde de vista aquele universo maior a sociedade em geral O pai espiritual desta nova ideia ou disposição é Descartes cujo método filosófico fornece o exemplo e a justificativa para a apresentação de todos os veneráveis objetos de crença e de afeto ao juízo particular de cada homem A igualdade de condições é responsável pela pronta e generalizada aceitação da nova disposição no cumprimento de suas próprias tentativas de derrubar as restrições sociais da Idade Média a democracia encontra um bem vindo aliado na filosofia cartesiana que questiona as crenças tradicionais Será visto que determinadas propensões que juntas dão origem ao que podemos chamar de o problema da democracia estarão concentradas em torno da questáo do individualis mo Tratamse da paixão pelo conforto e pelo bemestar material de uma preocupação para com o bemestar pessoal que exclui qualquer preocupação com os assuntos públi cos e um inevitável desvio em direção à mediocridade São estas que fezem o homem democrático muito propenso a aceitar ou a descambar para um despotismo suave que lhe assegure essas atividades e preferências A resolução do problema da democracia 684 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y implica encontrar dentro da democracia um lugar para a liberdade para a excelência bumana para a reemeiência da virtude pública e para a possibilidade de grandeza Quando o individualismo está relacionado à aldade de condições desenvolvese uma sede insaciável para o conforto material deste mundo Em uma sociedade despida das tradicionais restrições e obrigações para com o país os senbores a Igreja os bo mens se esforçam com softeguidão para satisíázer seus desejos imediatamente percebidos e imediatamente inteligíveis de melhorar suas condições de vida Sob o antigo regime a disparidade de riqueza e bemestar material era aceita como parte da condição natural das coisas além disso a nobreza da Europa feudal conseguira satísíàzer seu desejo de conforto material de tal forma que a debcara livre para cultirar as íáculdades mais elevadas Ou seja a nobreza não tinha apreensões acerca da riqueza de que desfrutavam ser em breve confiscada Esta salutar paz de espírito fora alcançada por meio do efeito legitimador de usos e costumes de longa data Com a derrubada do sistema feudal e com a disseminação das doutrinas individualistas a necessidade de melhoria das condições materiais de vida é vista como a expressão legítima dos direitos naturais de todos os homens Assim sendo a democracia satisfez o desejo de bemestar não só de alguns ho mens mas de todos os homens e deve fezêlo de tal forma a induzir os homens a dedicar uma parte de sua energia a outras atividades e às necessidades da nação em geral Há solução para o problema se houver bens materiais suficientes para satisfazer a todos de modo que ninguém precisa ter a preocupação de não obter a sua parte ou de o homem democrático se capaz de moderar seus desejos Tocqueville parece ter duas visões conflitantes a respeito da probabilidade de efeituar uma resolução do problema Por um lado parece confiar que o gosto pelas gratificações fisicas terá li mites modestos O homem democrático buscará os pequenos confortos da vida os meios de tornar a existência menos árdua a compra e o plantio de alguns hectares de terra a mais a ampliação de sua moradia A reprovação de Tocqueville ao princípio da igualdade não é que encoraje os homens na busca de gratificações ilegais ou excessivas mas que absorva os homens completamente na busca daquelas que são permitidas Por estes meios pode vir a ser estabelecida no mundo uma espécie de materialismo virtuoso que não corromperia mas debilitaria a alma e silenciosamente acionaria seus motores A repentina dramática e violenta revolta contra a moral a religião e a propriedade que eclodiu em 1789 foi apenas uma reação transitória característica somente de um período revolucionário não deve ser encarada como uma tendência permanente de eras democráticas O gosto pelo bemestar do homem democrático não só é compatível com a moralidade e a ordem pública como pode nem sequer ser satisfeito na ausência delas Pode até ser combinado com uma espécie de moral reli giosa Assim embora a democracia possa ser acompanhada pelo abandono daquilo que é mais elevado no homem pelo menos resolverá o problema de um bemestar modesto para o maior número É esta virtude da democracia que Tocqueville celebra em sua famosa conclusão da segunda parte da Democracia A le x is DE T o c q u e v i l le 685 5 IbidpA Há no entanto outra iáceta menos otimista em relação à busca de conforto material Foram abertos todos os caminhos para a satisfeção do desejo de bemestar porém abertos igualmente a todos é avassaladora a competição Por mais bens que alguém possua pensa continuamente na vasta gama dos que constantemente lhe esca pam este pensamento cncheo de ansiedade medo c pesar e mantém sua mente em incessante atação Se for este o caso não há solução tecnológica para o problema do bemestar os desejos dos homens aumentam com aquilo de que se alimentam jamais haverá o bastante para todos Essa inesperada mudança de um materialismo decente para uma busca mais ou menos acirrada pelo conforto material é concomitante à ascensão do espírito comer cial o comércio é visto como a maneira mais proveitosa de propiciar a satisfeção do gosto pelo bemestar O comércio rapidamente transforma o simples desejo por um modesto conforto em uma caricatura de sua própria forma anterior Vem a ser visto como se fosse o mais nobre empreendimento e seduz as feculdades dos homens de maior competência na sociedade Homens de intelecto superior são desviados da polí tica para os negócios da vida pública para os assuntos particulares No comércio en contram esses homens um canal adequado para seus talentos especiais bem como uma libertação da conformidade e vulgaridade da vida política Na verdade estes homens ameaçam formar o núcleo de uma nova aristocracia Tocqueville alerta os amigos da democracia para que sejam cautelosos pois se algum dia uma permanente desigual dade de condições e aristocracia novamente penetrar no mundo podese predizer que esta será sua porta de entrada O individualismo e o materialismo características da democracia que causam discórdia são até certo ponto compensados por um abrandamento geral dos costumes e pelo desenvolvimento de um espírito de compaixão hiunana ou por um sentimento de companheirismo As classes da Idade Média encaravam umas às outras como seres pertencentes a diferentes espécies tal era a diferença em suas maneiras ocupações e gostos A sociedade era fria intransigente rígida A revolução democrática com su cesso anula obrigações sociais ou políticas ao trazer à tona os laços humanos naturais À medida que as condições se tornam iguais os homens adquirem consciência de sua semelhança uns aos outros essa consciência evoca sentimentos de genuína simpatia e basta um ato da imaginação para permitir que um experimente os sofrimentos do outro A revolução democrática revela a bondade natural do homem um homem não feriria outro sem necessidade Podemos reconhecer aqui o paralelismo entre o homem democrático de Tocqueville e o homem natural de Rousseau Há além disso uma ligação entre as conseqüências do individualismo c o cres cimento da compaixão Ao contrário do que se poderia esperar a liberdade de coniiar inteiramente em si mesmo juntamente com a emancipação das restrições tradicionais não deixa o homem democrático inteiramente confiante e orgulhoso Sua gravidade 6 8 6 H is t ó r ia d a F i l o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Ibid p 145 7 Ibid p m reflete a importância da empresa na qual está envolvido mas sua confiança é minada pela ansiedade medo e pesar que acompanham sua condição Uma vez que é con frontado por todos os lados por aqueles que como ele se esforçam sem descanso para conseguir bens inatingíveis cada cidadão está habitualmente ocupado na contempla ção de um objeto muito insignificante a saber ele mesmo Não tem outra alternativa senão recorrer à assistência de outros algo que é obrigado a fazer na medida em que se tornam mais iguais as condições sociais Seria possível ter a impressão de que a compaixão e o autointeresse poderiam combinarse para tir como a base de um vínculo social ou político em tempos de mocráticos assim superando as forças divisionárias do individualismo e da busca pelo bemestar No entanto a compaixão e o autointeresse embora não sejam necessaria mente contrários nem sempre são compatíveis Tocqueville tal como Rousseau antes dele sugere que a compaixão embora um instinto natural no homem é enfraquecida pelo calculismo Na medida em que os homens não são desprovidos de interesse irão consultar seus próprios interesses antes de contemplar o bemestar de outros a de mocracia encoraja isso ao deixar cada homem íicar por conta própria Os homens democráticos socorrerão uns aos outros se isto não acarretar qualquer perda ou dano a si mesmos Para que o espírito de compaixão se tome plenamente eíicaz a sociedade exigiria não apenas uma condição de igualdade mas também uma condição de abun dância em que haveria bens materiais suficientes para todos Já mencionamos as forças que agem dentro da democracia de modo a frustrar tal possibilidade Além disso o espírito de compaixão transcende as fronteiras nacionais e como tal enfraquece os laços políticos os homens tornamse indiferentes às práticas arbitrárias que caracterizam os homens como cidadãos A compaixão é um instinto natural que tende a solapar laços apenas convencionais para Tocqueville a sociedade política em si possui exatamente este caráter convencional A gentileza o abrandamento dos costiunes e o ar de humanidade que caraaerizam as sociedades democrátícas tendem a ser perce bidos de modo mais contundente dentro da unidade íàmiliar ao contrário de entre os cidadãos A democracia diznos Tocqueville afrouxa os laços sociais mas estreita os naturais aproxima os parentes ao mesmo tempo em que aíàsta os cidadãos O P r o b l e m a d a D em o c r a c ia Essas características materialismo mediocridade compaixão domesticidade e isolamento que decorrem ou obtêm sua força da igualdade de condições e do indi vidualismo constituem o núcleo dos ensinamentos de Tocqueville sobre a democracia Um regime em que seus efeitos não fossem de alguma forma suavizados um regime em que não fosse oferecido nenhum incentivo para o exercício das mais elevadas fa culdades humanas em que a própria sociedade parecesse estar estagnada e as virtudes A le x is d e T c x x ju e v ille 687 8 Ibid p 82 9 Ibid p 208 públicas defínbassem tal regime poderia muito bem fezer com que se questionasse a bondade da Providência que o fomenta isso não é tudo O paradoxo fundamental da democracia tal como o percebe Tocqueville é que a igualdade de condições é compatível com a tirania bem como com a liberdade Uma espécie de igualdade pode ao menos coexistir com a maior das desigualdades Dekada à própria sorte a democracia é de fato propensa ao estabeleci mento da tirania quer de um sobre todos dos muitos sobre os poucos ou mesmo de todos sobre todos Devemos agora examinar este paradoxo A pabcão dominante nos tempos democráticos é o amor pela igualdade Esta pabcão é ela mesma gerada a partir da condição social vigente que como vimos é a fonte fundamental de todas as paixóes ideias e costumes da sociedade Entretanto o amor do bomem democrático pela igualdade sobrepóese a qualquer outro sentimen to mesmo pela liberdade A liberdade exige esforço e vigilância é dificil de alcançar e se perde com fecilidade seus excessos são evidentes para todos enquanto seus benefi cios podem facilmente passar despercebidos As vantagens e os prazeres da igualdade por outro lado são imediatamente percebidos e não demandam qualquer esforço São acessíveis a todos mesmo para aqueles de menor capacidade e a íim de proválos nada é necessário apenas viver Porém se tal é verdade dos prazeres da igualdade suas deficiências podem não ser nada evidentes exceto talvez para aqueles que não foram entorpecidos por seus encantos A igualdade de cxmdiçóes portanto desen cadeou uma pabcão que não admite ser refireada todos os governos do íúturo devem reconbecer suas raízes neste impulso onipotente A pabcão pela igualdade por parte dos bomens das comunidades democráticas é ardente insaciável incessante invencível esses bomens clamam por igualdade na liberdade e se não podem obtêla ainda assim clamam pela igualdade na escravidão O amor pela igualdade pode manifestarse de duas formas uma paixão viril e legal pela igualdade que procura elevar todos ao nível dos grandes ou um gosto depravado pela igualdade que se esforça para reduzir todos ao menor denominador comum Obviamente se prevalecesse a antiga paixão pela igualdade seria sensivel mente reduzido o poder das objeções à democracia Contudo as forças que agem sob condições de igualdade pouca esperança oferecem de que triunfará a paixão viril pela igualdade Os bomens sáo levados a desejar bens que não podem obter A igualdade traz a todos a esperança da obtenção desses bens mas a competição é tal que são pou cas as probabilidades de que cada um realize suas ambições Além disso a corrida para satisíázer esses desejos não é igualitária a vitória cabe inexoravelmente aos que têm capacidade superior Nem todos podem ser elevados ao nível dos grandes pois as dife renças de habilidade originamse em Deus ou na natureza Desta forma a democracia desperta a consciência do direito igual a todas as vantagens deste mundo mas frustra os homens na sua obtenção Essa frustração gera inveja e desloca o respeito A alma 6 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid p 102 11 Ibid do homem é assim constantemente provocada para sempre maltratada e irremedia velmente cansada pela labuta o homem não é capaz de suponar por longo tempo tal situação Busca uma solução que satisferá seu mais intenso desejo ao mesmo tempo em que aliviará a angústia a que dá origem Assim a igualdade prepara o homem para renunciar a sua liberdade a íim de salvuardar a igualdade em si Para Tocqueville essa renúncia da liberdade pelo homem pode ser feita em fevor de um déspota do tipo conssrado pelo tempo porém é mais que provável que o caráter do déspota assuma uma forma totalmente nova De feto termos como des potismo e tirania tornamse quase inadequados para expressar o pensamento de Tocqueville que procura descrever em lugar de apenas nomear o novo despotismo Em uma sociedade em que todos são iguais independentes e impotentes apenas um agente o Estado está em especial preparado para aceitar e supervisionar a renúncia da liberdade Tocqueville chama a atenção para a crescente centralização dos governos o crescimento de imensos poderes tutelares que de bom grado assumem o encargo de proporcionar o conforto e o bemestar de seus cidadãos Os homens democráticos renunciarão a sua liberdade em favor dessas autoridades poderosas em troca de um despotismo suave aquele que garante sua segurança prevê e supre suas necessida des fecilita seus prazeres gerencia suas principais preocupações dirige sua indústria e em última instância poupalhes toda a tarefe de pensar e todos os problemas da vida Tocqueville previu que um governo assim não seria incompatível com a sobe rania popular ou pelo menos com as formas de soberania popular O povo como um todo poderia muito bem consolarse com o entendimento de que ele mesmo escolheu seus próprios senhores A democracia dá origem a uma nova forma de despotismo a sociedade que tiraniza a si mesma Nenhuma exposição do problema da democracia seria completa sem um relato da descrição que faz Tocqueville da tirania da maioria dos muitos sobre os poucos Tocqueville não ignora os apelos de grupos de interesses especiais ou do feto de que é freqüente ser flutuante a composição da maioria em uma democracia No entanto tal variação ocorre dentro do contexto de uma firme convicção acerca de determinados princípios que são eles mesmos imutáveis neste sentido podese fidar de uma maio ria permanente dentro de uma democracia Além disso a aparente homogeneidade da sociedade democrática obscurece duas inerradicáveis fontes de heterogeneidade o in telecto e a riqueza A capacidade intelectual é distribuída de forma desigual e Tocque ville afirma que feita à maioria da humanidade a capacidade para chegar a convicções racionais Além da questão da capacidade as exigências do conhecimento são tais que os homens em condições democráticas raramente terão ou o tempo ou a paciência ou o interesse em buscálo Tocqueville não contempla qualquer avanço revolucionário nos meios de educação nenhuma profusão de métodos feceis e ciência barata sufi cientes para superar a feita de tempo e de talento Enquanto o povo continuar a ser o povo isto é os muitos será obrigado a ganhar seu pão e portanto lhe fiJtará o lazer A le x is d e T o c q u e v i l le 689 12 Ibid p 336 indispensável para o cultivo do conhecimento Os muitos se é que reconhecem esses fatos questionam sua relevância Substituem a superioridade intelectual dos poucos por uma superioridade derivada de considerações de quantidade A autoridade moral da maioria é em parte baseada na noção de que há mais inteligência e sabedoria em uma quantidade de homens unidos do que em um único indivíduo e que a quantidade de legisladores é mais importante que sua qualidade A autoridade da maioria é tal que mesmo a minoria ahnal concorda com esta última agressão contra o intelecto Isso observa Tocqueville assinala um novo fenômeno na história da humanidade A maioria náo apenas exige uma conduta de conformidade mas se esforça também para tornar impossível que os indivíduos concebam a náo conformidade Ter uma opinião contrária à da maioria sobre um assimto importante não é apenas imprudente ou inútil mas até desumano O poder da maioria é tão absoluto e irresistível que o in divíduo deve abrir mão de seus direitos como cidadão e quase abjurar suas qualidades como homem se pretende desviarse do caminho que a maioria prescreve A tirania da maioria sobre as mentes daqueles que são superiores a ela do ponto de visu intelec tual torna absoluta a disposição da democracia para a mediocridade É menos evidente a tirania da maioria sobre os ricos sobre os poucos proprie tários Tocqueville decerto tenu superar o medo daqueles críticos da democucia que percebiam no governo dos muitos a inevitável destruição de todos os direitos de pro priedade em seu preíácio tem o cuidado de salientar que no mais avançado país democrático do mundo os direitos de propriedade usufruem de maiores garantias que em qualquer outro lugar Ainda assim Tocqueville náo demonstra otimismo quanto à eterna luta entre ricos e pobres ter sido resolvida pela revolução democrática não fo ram todos rebaixados ou elevados ao mesmo nível de riqueza nem a inveja dos pobres em relação àqueles em melhores circunstâncias foi amenizada pela ocorrência de algum nivelamento Até que ponto então estão assegurados os direitos de propriedade De acordo com Tocqueville a separação entre os poucos e os muitos os ricos e os pobres é uma característica permanente de todas as sociedades íàdada a perdurar a despeito da progressiva concretização da igualdade de condições Esta é tuna regra fixa à qual estão sujeitas todas as comunidades Por outro lado pode variar de uma so ciedade para outra a proporção de indivíduos que compóem cada uma das três grandes ordens os ricos os com recursos moderados e os pobres Embora possam variar essas proporções Tocqueville rejeita a ideia de que os ticos ou os moderadamente ticos jamais ch e m a constituir a maioria O sufiágio universal portanto na verdade confere aos pobres o govemo da sociedade Além disso declara que é inevitável que a classe dominante seja o opressor É certo que a democracia incomoda uma parte da comu nidade e que a aristocracia oprime outra Por fim Tocqueville perde a esperança de 690 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 13 Ibid 1 265 14 Ibid p 277 15 Ibid p 222 16 Ibid p 197 instruir os pobres para que percebam que é contra seu próprio interesse empobrecer os ricos Desta forma náo vê motivos para acreditar que o tradicional conflito entre ricos e pobres deixará de existir em condições democráticas ou que íálte a uns a vontade ou a oportunidade de oprimir os outros Uma vez que a maioria é pobre e já que será ela a soberana justificamse os temores dos críticos da democracia apesar de tudo Todavia como podemos conciliar esta constatação com declarações em ou tros trecbos da Democracia que parecem divergir muito dela Na segunda parte por exemplo Tocqueville afirma que nas comunidades democráticas os pobres em vez de constimírem a grande maioria de uma nação como ocorreu até r a serão em número relativamente pequeno sendo seu lugar tomado pelos pertencentes às novas classes médias Não apenas a classe média passou agora a constituir a maioria mas possui propriedades e de feto é o principal defensor dos direitos de propriedade O que então têm os ricos a temer de uma maioria cujas paixões e interesses são tão semelhantes aos seus próprios Podemos sugerir uma ligação entre a tirania da maioria e o novo despotismo Os homens que se rendem a esta tirania branda e confortável são os homens da nova maioria que provaram e gostaram do primeiro firuto da busca universal pelo bemestar Mas seus desejos excedem suas oportunidades amedrontados diante da perspectiva de perder o que possuem para aqueles mais capazes do que eles próprios a maioria se volta para o governo como o único poder capaz de proteger os seus direitos e bens e de restringir as ambições dos poucos O novo despotismo é uma forma que pode assumir a tirania da maioria À custa dos poucos os ricos assjura aos muitos um modesto usufimto das coisas boas da vida neste sentido não é incompatível com a proteção dos direitos de propriedade em uma escala limitada A R e so l u ç Ao d o P r o b l e m a A resolução do problema da democracia deve ocorrer no nível da democracia isto é a solução deve ser compatível com o princípio da democracia que é a igual dade Está fedada ao fracasso qualquer tentativa de mitigar a democracia por meio de princípios ou práticas pertencentes a um regime a ela estranho nem mesmo um déspota pode governar de acordo com o princípio democrático sem se curvar diante da igualdade Assim Tocqueville alerta seus contemporâneos de que a tarefe não é a reconstrução da sociedade aristocrática mas fezer emergir a Uberdade do estado de mocrático da sociedade e determinar que ripo de grandeza e felicidade é adequado para a igualdade de condições A ironia da dificil situação democrática é que a democracia incentiva os homens a renunciarem a sua bberdade a única coisa essencial para a sua Ubertação Se o indi vidualismo é responsável pelo atomismo da sociedade democrática é a liberdade que paradoxalmente pode restabelecer um sentido de interdependência política ao fomen tar a consciência da dependência de cada indivíduo de todos os outios Qual é a proba A l e x is d e T o c q u e v il l e 6 9 1 bílidade de que a liberdade brote de um estado democrático de sociedade A resposta de Tocqueville revela um otimismo essencial na base de seu pensamento político Longe de encontrar defeitos na igualdade porque inspira um espírito de independência enalteçoa principalmente por esse mesmo motivo Admiroa porque deposita nas pro fundezas da mente e do coração de cada homem esse sentimento indefinível a instintiva propensão para a independência política e assim prepara o remédio para o mal que engendra A paixão pela igualdade a qualquer custo defrontase com uma paixão semelhante engendrada pela igualdade na liberdade No entanto essas paixões têm força desigual como já vimos Além disso as onipresentes tendências à centralização do governo au mentam o efeito da paixão que induz o homem a confiar ao governo a preocupação com seu próprio bemestar Os governos tornamse mais poderosos os indivíduos parecem mais indefesos do que nunca Consequentemente a paixão natural pela liberdade deve ser complementada pela arte política uma arte que Tocqueville constata ter sido pra ticada de forma exemplar pela América Para a resolução do problema democrático a experiência americana sugere determinados expedientes democráticos tais como o autogoverno local a separação entre Igreja e Estado imprensa livre eleições indiretas judiciário independente e o fortalecimento de associações de todos os tipos É preciso re conhecer que Tocqueville nâo se limita a recomendar a adoção de todas as práticas ame ricanas Embora admire o sistema federal por exemplo argumenta que um mecanismo tão complicado é totalmente inadequado para o temperamento e as realidades da vida política europeia Mais do que tudo a América fornece princípios tais como o princípio do interesse próprio corretamente compreendido sobre os quais se pode construir uma ordem democrática respeitável Antes de examinar a doutrina do interesse próprio o cerne da resolução do problema da democracia no pensamento de Tocqueville devemos examinar alguns aspectos dos expedientes democráticos que acabamos de relacionar Tocqueville reconhece o valor da liberdade local no nível da comuna e da co munidade para neutralizar os efeitos da centralização Dentro dos limites deste todo de dimensões menores cada cidadão recebe sua formação inicial para o uso da liber dade Ao aprender a cuidar de assuntos em seu próprio alcance e a cooperar com eles o cidadão absorve os rudimentos da responsabilidade pública A comuna é o lócus da transformação do interesse próprio em patriotismo pelo menos em um tipo de patriotismo De acordo com Tocqueville as instituições livres em particular as de nível local transformam indivíduos essencialmente egoístas em cidadãos cuja pri meira preocupação é o bem público Ainda assim é fácil exagerar a importância ou talvez a relevância que Tocqueville atribui ao autogoverno local Notese que em lu gar algum fornece ele uma fórmula simples ou uma fórmula abrangente para a deter minação dos assuntos relativos a autoridades locais distintas das autoridades nacionais 692 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 17 Ibid II 305 Além disso sugere que quanto mais complexa e civilizada tornase a naçáo menos provável é que estabeleça a liberdade local ou que tolere os esforços claudicantes de uma comunidade sem tradição de liberdade O sistema de júri é outro dos expedientes democráticos que Tocqueville recomen da para preservar a liberdade e contrabalançar as tendências individualistas da democra cia Tal como a liberdade local esse sistema também transmite aos cidadãos uma cons ciência das necessidades dos outros Críticos observam que não têm sido realizadas as expectativas de Tocqueville a respeito desta fonte mas em geral não reconhecem que Tocqueville depositou sua esperança de sucesso do sistema na disponibilidade de um corpo de juizes superiores e que estava ciente de que a qualidade dos juizes como uma classe diminuiria proporcionalmente ao aumento do seu número É nas qualidades de tais homens que Tocqueville baseia sua crença de que o sistema de júri formará a ca pacidade de julgamento do povo e incutirá nele a consciência dos requisitos da justiça O procedimento característico de Tocqueville é tentar descobrir os meios pelos quais podem ser aprimorados e orienudos os gostos e paixões dos muitos o sistema de júri é um desses meios e neste sentido serve como uma instância espedíica do papel geral e abrangente que Tocqueville esperava que os juizes e outros ligados à profissão legal desempenhassem em uma democracia O treinamento que os advogados em particu lar recebem fornecelhes um gosto pela ordem por formas jurídicas e políticas e pela ligação entre ideias gosto que o distinguirá da multidão e propiciará um teor aristo crático a sua forma de pensar e suas preferências Seu espírito tende a ser conservador e antidemocrático na medida em que vêm a desempenhar um papel proeminente na sociedade como decerto virão a fezer em uma sociedade onde praticamente todas as questões políticas são transformadas mais cedo ou mais tarde em questóes legais e rão de modo a conter os impulsos dos muitos Podemos observar que o papel dos advo gados na solução do problema da democracia é uma aparente violação do princípio de que essa resolução deve ocorrer no nível da democracia mas enfim tratase apenas de uma ruptura parcial Muito embora os advogados sejam destacados por gostos e há bitos aristocráticos mantêm seu vínculo fimdamental com o povo por seu nascimento e seus interesses desta forma não constituem uma classe distinta De todos os expedientes democráticos a liberdade de associação é o principal Tocqueville considerava as associações como substitutos artificiais para a nobreza dos tempos antigos que em virtude de sua riqueza c posição servia como baluarte contra as intromissões do soberano nas liberdades do povo Da mesma forma argumenta To cqueville em uma democracia as associações protegem os direitos da minoria contra a tirania da maioria Uma vez que cada indivíduo em uma democracia é independente mas também impotente é apenas associandose a outros que pode contrapor seus pontos de vista aos da maioria Esta é uma função política do direito de associação direito este que tem sua origem na natureza Tocqueville atribui à proliferação de as sociações uma dignidade que talvez seja inédita no pensamento político Ao passo que autores antes consideravam o fomento aos panidos fecções ou associações como uma medida que causa divisão na sociedade Tocqueville acreditava que fosse absolutamente A le x is DE T o c q u e v i l l e 693 essencial para o bemestar da sociedade democrática Longe de contribuir para a ani quilação da unidade da sociedade as associações superam as tendências de divisão da democracia nos atos que acompanham a organização e o íuncionamento de uma associação os indivíduos aprendem a arte de adaptarse a um íim comum No entan to a utilidade das associações vai muito além de quaisquer considerações meramente políticas A participação em grupos políticos gera um gosto pelas associações e revela as vantagens das associações para outros íins educacionais científicos comerciais De acordo com Tocqueville aprender a associarse é o prérequisito para a preservação da própria civilização Um povo cujos indivíduos perdessem o poder de realizar grandes coisas sozinhos sem adquirir os meios de produzilos por meio de esforços conjuntos em breve recairia na barbárie Tocqueville avaliava as associações como um meio não só de mitigar a tirania da maioria mas também de superar a mediocridade a que a democracia é propensa A democracia coloca a responsabilidade pelo governo nas mãos daqueles que na visão de Tocqueville ou acreditarão que não sabem por que ou não saberão em que acreditar No entanto um r m e democrático pode alcançar a viabilidade se ocorrer uma ampliação de perspectivas as instituições livres que Tocqueville recomenda têm como objetivo fecilitar este processo Os homens devem ser transformados em cida dãos moralmente conscientes por meio da atuação desses expedientes democráticos Os indivíduos dentarão de pensar apenas em si mesmos suas capacidades serão ampbadas por meio do contato com grandes juizes sua simpatia para com os seus companheiros aumentará por meio de sua atuação como jurados suas mentes serão abertas por sua participação em associações Tocqueville acreditava ser impossível conceber um sistema de instítuições que garantisse um bom governo por meio das ações e reações de cidadãos que fossem totalmente insensíveis ou que tissem por motivos inescrupulosos A evolução de um senso de moralidade pública a partir do espírito de extremo indi vidualismo que caracteriza as eras democráticas é o tema não apenas das instituições que estamos discutindo mas da obra de Tocqueville como um todo Os bomens tornarseão cidadãos por meio do íuncionamento do princípio do interesse próprio bem compreen dido Em sua introdução à Democracia TocquevUle nos diz que o homem pobre adotou a doutrina do interesse próprio como a diretriz para suas ações sem compreender a ciên cia que a fez íúncionar e seu egoísmo não é menos cego do que era anteriormente sua devoção aos outros O apelo de Tocqueville por uma nova ciência da política para atender às novas condições de igualdade é um apelo por uma ciência que estabeleceria sobre bases firmes o princípio do interesse próprio Naturalmente é o homem pobre a quem se deve ensinar os princípios da nova ciênda pois é de que como membro da maioria governará a nova sociedade do mesmo modo os princípios da nova dêncía devem ser adequados ao seu nível de entendimento 694 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 18 tó p 115116 19 Ibid 1196 20 Ündp Qualquer que seja a maior deficiência da doutrina do interesse próprio bem com preendido Tocqueville insiste que de todas as teorias filosóficas é a mais adequada aos desejos dos homens de nosso tempo e que todos os moralistas e educadores devem envidar todos os esforços para transmitir os seus princípios A possibilidade de motivar os muitos por meio de apelos ao autossacrifício ou à atração inerente da virtu de desaparece com a destruição do sistema feudal e com ele da crença na autoridade e na dignidade de fins não materiais Em condições de igualdade o interesse privado se torna a mola mestra se não a única propulsora da ação humana O interesse privado afirma Tocqueville é o único ponto imutável no coração humano Tocqueville contrasta a doutrina do interesse próprio bem compreendido com a visão de que o homem serve melhor a seus semelhantes ao servir a si mesmo Ambos os pontos de vista apelam em última análise aos instintos de autoestima do homem mas o último não prevê o surgimento de virtudes políticas somente intensificaria a tendência para o individualismo Se os homens não devem retrairse de todo em seus próprios círculos domésticos se o civismo não deve desaparecer é preciso ensinar aos homens que a partir de uma consideração iluminada por eles mesmos precisam ajudar constantemente uns aos outros e sacrificar uma parte de seu tempo e riqueza para o bemestar do Estado ou da comunidade É preciso que os homens cheguem a compreender a conveniência de adiar a gratificação imediata de seus desejos na expec tativa de um grau mais certo ou maior de satisfação em um momento posterior uma expectativa decorrente da contribuição do bemestar comum para seu próprio bem estar As fimdações da ordem pública ou social repousam sobre o egoísmo esclarecido cada indivíduo aceita a visão de que o homem serve a si mesmo ao servir a seus se melhantes e que seu interesse privado é fezer o bem Fiel às exigências da igualdade Tocqueville apela para os instintos de autoestima do homem e se esforça para construir sobre esta base um tipo de moralidade pública e patriotismo íària os homens virtuosos ao ensinarlhes que o que é certo é útil também É possível confiar plenamente na doutrina do interesse próprio O princípio do interesse bem compreendido náo é nobre mas é dato e certo Náo visa objetivos devados mas alcança sem esforço todos aqueles que almeja Como se encontra ao alcance de todas as capaddades todos podem aptendêlo sem dificuldade e guaidálo Por sua admirável conformidade ás fraquezas humanas fecilmente obtém grande domínio nem é esse domínio precário uma vez que o princípio contrapõe um interesse pessoal a um outio e utiliza para orientar as paixões o mesmo instrumento que as desperta Esta declaração sucinta revela a concordância fundamental de Tocqueville com os pressupostos do pensamento político moderno apesar de aparente desvios Tocqueville A le x is DE T o c q u e v i l l e 695 21 22 Ibid 1255 23 Ibid II 129 24 Ibidpò segue a tradição acerca do direito natural que se originou com Maquiavel e continuou nos ensinamentos de Hobbes O problema político do homem é solucionado por um rebaixamento dos padróes a doutrina do interesse próprio bem compreendido não almeja objetos elevados A realização dos padróes que são adotados é assegurada pela dependência de uma doutrina ao alcance da mais humilde capacidade por conseguin te ao alcance de todos A doutrina tem suas raízes naquela que é considerada a paixão mais poderosa do homem aqui a preocupação com o bemestar individual O sucesso da doutrina tem garantia ainda maior devido ao dispositivo de jogar um interesse contra o outro enquanto relega à razão a tarefe de assegurar a satisfeção das paixóes Em comum com a maioria dos filósofos políticos tipicamente modernos Tocqueville se esforça para construir seu sistema sobre o que está ativo na maioria dos homens na maioria das vezes o que como era de se esperar acaba por ser o que é mais inferior e não o que é mais elevado no homem Como em Maquiavel balizamonos a partir do que os homens são não a partir daquilo em que podem se tornar Tocqueville não é filisteu não é insensível ao que é mais elevado no homem Ainda assim somos con frontados com a sua aquiescência e incentivo a um princípio de moralidade política cujo efeito é estabelecer um padrão medíocre para a humanidade Se o princípio do interesse bem compreendido devesse influenciar todo o mundo mo ral seriam sem dúvida mais raras as virtudes extraordinárias mas estou convencido de que a profunda depravação seria também menos comum O princípio do interesse bem compreendido talvez impeça os homens de elevaremse muito acima do nível da huma nidade mas um grande número de outros homens que estavam descendo muito abaixo dela são capturados e contidos pelo princípio Observese alguns poucos indivíduos sáo rebaixados por ele pesquisese a humanidade é elevada por ele Observamos antes que de acordo com Tocqueville a resolução do problema da de mocracia deve ocorrer no nível da democracia Tocqueville aceita a igualdade e com ela o individualismo que é o seu efeito secundário inevitável A igualdade solapa a deferên cia concedida àqueles que em outras eras tinham a responsabilidade de zelar pelo bem comum o individualismo afesta os homens da preocupação com o bemestar comum O problema da democracia é recriar o sentimento de moralidade pública com base na igualdade e no individualismo A doutrina do interesse próprio bem compreendido constitui a tentativa de Tocqueville para resolver o problema com base nesses aspectos Confiar no interesse próprio bem compreendido requer naturalmente que o interesse próprio seja corretamente compreendido Dentro do contexto da Democracia o interes se próprio é entendido primordialmente em um sentido econômico tratase de uma preocupação com os sinais materiais mais imediatos mais tangíveis do bemestar de um homem De uma preocupação iluminada com próprio o bemestar material emergirá um bem que vai além de um bem econômico o patriotismo ou o espírito público é o corolário que resulta da busca inteligente do interesse próprio do indivíduo 696 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 25 Ibid Até agoia omitimos qualquer referência ao papel que desempenha a religião para mitigar o problema da democracia À primeira vista a insistência de Tocqueville quan to à indispensabilidade da religião parece indicar uma radical deficiência na doutrina do interesse do próprio bem compreendido Há certos sacrifícios que os indivíduos são conclamados a fiizer e pelos quais não podem sensatamente esperar por uma recom pensa nesta vida além disso qualquer que seja a perspicácia empregada para provar que a virtude é útil haverá indivíduos que não se comoverão com tais argumentos A virtude portanto precisa do apoio do outro mundo A solução reside em uma simples ampliação do princípio do interesse próprio para que venha a incluir as recompensas de uma vida futura Tocqueville sustenta que os fundadores de quase todas as religiões empregaram para promover sua causa a mesma linguem que os filósofos morais utilizaram para estabelecer o princípio do interesse próprio o caminho é o mesmo é a meta apenas que se coloca mais distante Não nega que a motivação de alguns indivíduos religiosos possa não ter sido nada além do amor a Deus mas insiste que o interesse próprio é o principal meio que as religiões utilizam para governar os homens e que desta forma impressionam a multidão e ganham popularidade Não somen te o interesse próprio pode ser complementado pela religião mas uma espécie de sen timento religioso em si pode ser fundamentado em um espírito de maquinação O modo como Tocqueville aborda a religião é totalmente popular Invoca a religião não apenas para justificar o sacrifício supremo mas também para combater tanto o individualismo quanto o materialismo das eras democráticas A religião não pode deixar de mostrar aos homens que há bens e aspirações que transcendem a ex periência de seus sentidos assim combate o ensinamento materialista de que tudo é redutível à matéria e perece com o corpo Desperta no homem o uso de suas mais sublimes faculdades ylém disso a religião serve para lembrar os homens de suas obrigações uns para com os outros e ao fazêlo afasta os homens de sua preocupação exclusiva com eles mesmos Tocqueville assevera que é impossível a liberdade sem a moralidade e a moralidade impossível sem a religião A religião fornece as crenças dogmáticas que são a argamassa da sociedade as crenças sobre a natureza de Deus a alma e as obrigações dos homens uns para com os outros e para com o todo maior o Estado do qual fazem parte Essas crenças são necessárias em especial nas épocas de extremo individualismo quando os homens são livres para formar e sustentar suas próprias opiniões mas não tém confiança para fazêlo Nesta situação quando tudo está em dúvida e todas as opiniões sâo mal defendidas e abandonadas com facilidade os homens tendem a submeterse ao primeiro demsogo que acalme suas sensibilida des com fidsas promessas de ordem e estabilidade As ideias gerais sobre Deus e a alma humana são portanto preservadoras da liberdade humana Contudo se os indivíduos não são capazes de encontrar por si mesmos as respostas para as questões eternas se os filósofos como afirma Tocqueville não são capazes de fornecer respostas inequívocas A le x is d e T o c q u e v i l l e 697 26 Ibid p 133 27 Ibid p 134 e se no entanto for fundamental para a liberdade e o bemestar da sociedade que baja um núcleo comum de tais crenças então a sociedade deve recorrer à religião para suprir a fidba Embora Tocqueville feça alusão a religiões falsas e muito absurdas não insiste na verdade ou na coerência da religião que cumprirá essa íimção política é praticamente indiferente quanto às doutrinas específicas da religião professada por esta ou aquela sociedade democrática Desta forma suas recomendações constituem pou co mais que uma justificativa de crenças simples projetadas para satisfezer e manter dentro dos limites adequados a demanda instintiva da alma humana por uma resposta para a questão da imortalidade A defesa que fez Tocqueville da utilidade da religião não o leva a advogar uma religião estatal pelo contrário extrai de considerações políticas a necessidade da se paração entre Igreja e Estado Entretanto ao contrário daqueles que procuraram se parálos a íim de fortalecer a ordem política ao mesmo tempo em que debilitavam a ordem religiosa Tocqueville argumenta que somente através dessa separação é que a influência religiosa permanecerá forte o bastante para exercer seus efeitos benéficos sobre a sociedade civil Estaria em perigo o efeito salutar do espírito da religião sobre a sociedade se a religião por sua entrada na esfera política implantasse a sugestão de que suas doutrinas estariam sujeitas à determinação da maioria Somente apoiandose na paixão natural pela religião que é do homem como homem e abstendose de alianças com qualquer partido ou Estado em particular é que a religião pode manter o seu do mínio sobre os homens em tempos democráticos A religião deve permanecer forte e por conseguinte separada a fim de cumprir a sua íúnção política Os colonos da Nova Inglaterra transmitiram esse legado precioso a seus descendentes o conhecimento do modo como se podem combinar o espírito de liberdade e o espírito da religião No âmbito político tudo era maleável e sujeito a modificação porém tendo atingido os limites do mundo político o espírito humano detémse por si mesmo temeroso abandona a necessidade de exploração até mesmo se abstém de eipier o véu do santuário curvase respeitosamente diante de verdades que aceita sem discussão A democracia ao que parece é impossível sem um santuário que se localize aci ma e além dos questionamentos democráticos Tocqueville tem plena consciência de que as condições de igualdade impóem suas próprias limitações sobre a religião Se a religião deve manterse fiel à sua íúnção política deve aceitar essas limitações deve também ser congruente com o princípio do regime democrático e com as paixões deflagradas pela igualdade A religião não pode ter esperanças por exemplo de persuadir os homens de que é imoral a paixão pela autogratiílcação mas pode tentar regular e moderar a pulsão pelo bemestar A religião deve acatar as paixões democráticas sem se render a elas Ao mesmo em que se 698 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 28 Ver eg ibid p 22154155 I 314 29 Ibid 145 atém às suas crenças essenciais a religião não deve instigar a hostilidade da maioria por contraporse desnecessariamente às ideias que prevalecem em geral ou aos interesses permanentes que existem na massa do povo Tocqueville devota seus esforços à pre servação do santuário religioso dos questionamentos ímpios e destrutivos dos muitos A J u st if ic a ç ã o d a D e m o c r a c ia A obra de Tocqueville é celebrada por sua objetividade e sugerir que se encar regue de fornecer uma justificativa para a democracia parece contradizer o espírito e a letra dessa obra Tocqueville tenta captar as propensões da democracia e convertê las em vantEens mas deliberadamente evita assumir uma preferência quer pela de mocracia mesmo em seu estado perfeito ou pela aristocracia o regime a que a demo cracia sucedera ou estava em vias de suceder Na introdução ao seu livro Democracia Tocqueville alerta para o fato de que náo escreveu pata elogiar a democracia ou para defender qualquer forma específica de governo nem sequer aventa uma opinião acerca de o irresistível movimento em direção à igualdade ser prejudicial ou vantajoso para a humanidade na conclusão da sua grande obra afirma que a aristocracia e a demo cracia são como dois tipos diferentes de seres humanos não suscetíveis de comparação justa Nesta mesma conclusão porém Tocqueville declara Podemos é claro acreditar que náo é a singular prosperidade dos poucos mas o bem estar maior de todos que é mais agradável aos olhos do Criador e Preservador dos ho mens O que me parece ser o declínio do homem é aos Seus olhos um avanço o que me aflige é aceitável para Ele Um estado de igualdade seria talvez menos elevado mas é mais justo e sua justiça constitui sua grandeza e sua beleza Tocqueville rejeiu a tese clássica de que a justiça tem como tema a busca da ex celência humana Em comum com filósofos políticos modernos sustenta que a justiça deriva dos direitos naturais a ideia de direitos naturais afirma é simplesmente a da virtude inttoduzida no mundo político Os direitos naturais de todos por sua vez derivam da igualdade natural de todos os homens uma condusão que não foi percebida pelos melhores intdectos da Antiguidade e teve de Eqardar a reveúção cristã antes que sua verdade pudesse ser percebida As desigualdades que caracterizavam a Idade Média baseavamse não na natureza mas no direito positivo A própria aristocrada de acordo com Tocqueville é contrária ao patrimônio natural e não pode estabelecerse sem recorrer à violência Até mesmo o governo da aristocracia é opressor para a maioria das pessoas no Estado não obstante a virtude e o talento dos aristocratas os aristocratas constituem um grupo distinto com interesses normalmente adversos aos interesses dos muitos Ao contrário por meio da atuação de uma tendência secreta a maioria ainda que seja ignorante não pode deixar de governar no interesse do maior número 30 Ibid II 28 31 Ibidpò5 32 Ibid 1254 Alexis DE Tocqueville 6 9 9 Tocqueville aiimenta ainda que a obrigação moral deriva de duas fontes seja das necessidades e interesses comuns a todos os homens ou das necessidades específicas de uma nação específica ou de um grupo dominante Noções gerais de justiça em cada estado anterior da sociedade foram recobertas por sistemas de moralidade que refletem ou apoiam as necessidades particulares dessa sociedade ou de grupos dominantes espe cíficos dentro dessa sociedade como por exemplo os princípios de desigualdade que supostamente justificaram o governo da aristocracia feudal Desta forma esses códigos morais secundários eram ligados a circunstâncias especiais ou emergiam de indivíduos que gozavam de privilégios distintos em determinados períodos da história Com o desaparecimento desses privilos desapaiecem também os códigos morais a que de ram origem e resta somente um código de justiça simples e uniforme que se baseia nas necessidades e nos interesses comuns a todos os homens como homens Em outras pala vras tornamse iguais as condições definham os códigos morais convencionais que são substituídos pelo código natural de moralidade que corresponde à condição natural do homem a igualdade A condição democrática é portanto a única condição que não dá origem a um código moral convencional e é deste íato podemos inferir do pensa mento de Tocqueville que a democracia recebe a sua justificativa Em seus fundamen tos pelo menos a democracia está de acordo com a natureza Aqueles a cpxem A Democracia tm América de Tocqueville dirigiase primordial ou imediatamente eram tanto os partidários quanto os críticos da democracia Tocquevil le procurou moderar as paixões dos primeiros e apaziguar os temores dos últimos O resultado foi uma obra digna de um estadista em que ambas as facções encontrariam algum consolo e pouco que as insultasse ao mesmo tempo em que promovia a causa de uma democracia moderada Tocqueville aceitou a revolução democrática intuiu suas fiaquezas e tentou remediálas por meios totalmente democráticos L e it u r a s A Tocqueville Alexis de Democracy in America v I Prefece Introduction caps ii iii iv v 6171 89101 vi 102107 viii 165180 ix x 181186 xiii 206209 240245 xiv xv xvi 281 290 xvii xviii 433447 452 v II livro I caps i ii v viii xx livro II caps i ii iv v vii viii ix X xi xiii xiv xix xx livro III caps i xvii xviii xix xxi livro IV caps i ii vi vii viii Ze la démocratie en Amérique B Tocqueville Alexis de The Old Régime and The French Trans Stuart Gilbert Garden City Doubleday Anchor Books 1955 ÜAncien Régime et la Révolution Tocqueville Alexis de TheEuropean Révolution and Correspondence with Gobineau Ed and trans John Lukacs Garden City Doubleday Anchor Books 1959 Tocqueville Alexis de The RecoUections t f Alexis de Tocqueville Trans Alexander de Mattos New York Meridian Books 1959 700 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 18061873 J ohn Stuart M ill I M é t o d o e m F il o s o f ia P o l ít ic a O que mergulhou John Stuart Mill na busca do método apropriado para o estudo da política foi o surgimento das críticas de Macaulay a An Essay on Govemment Um ensaio sobre o governo de seu pai James Mill Até aquele momento J S Mill jun tamente com outros utilitarístas ou filósofos radicais como se autodenominavam aceitara o método dedutivo de Bentham e James Mill como adequado para a ciência política De acordo com sua concepção de método dedutivo deviamse deduzir os princípios da íilosoíia polítíca e as regras práticas da ação política a partir de algumas leis simples da natureza humana isto é de axiomas psicológicos Bentham enunciou esses princípios e James Mill elaborou uma teoria de governo baseada neles Ihomas Macaulay apresentou uma crítica breve porém arrasadora desta abor dagem da política Argumentou ser incorreta a teoria da natureza humana que to mava por base em suas ações os homens eram guiados por algo além do desejo por seu próprio prazer Assim demonstrou que mesmo como teoria dedutiva a visão de James Mill era demasiado limitada Mais importante foi seu questionamento da pos sibilidade de desenvolver a partir de princípios íundamentais uma teoria que fosse relevante para a prática O que sabemos sobre a política aprendemos pela observação e pelo estudo da história Tomando como dados eventos históricos e seqüências de even tos observados e registrados o procedimento mais vantajoso acreditava Macaulay seria classificar e generalizar da maneira preconizada por Francis Bacon Essas genera lizações continuamente verificadas pela comparação com fatos novos constituiriam o conhecimento político tanto teórico como prático e conduziriam a uma ciência política muito superior às estéreis teorias a priori dos íilósofos radicais 1 Mill on Government Edinburgh Review v X March 1829 Reimpresso em The Miscellaneous Writing ofLord Macaulay London Longman Green Longman and Roberts 1860 I 282 322 J S Mill foi profundamente influenciado por essas e outras críticas feitas por Macaulay Entretanto acreditava que os utilitaristas estavam corretos na essência de sua teoria e que o erro de seu pai era de forma e não de conteúdo Concebia Um ensaio sobre o govemo como um ataque à reforma parlamentar ao contrário de um tratado sis temático e lamentava que seu pai não admitisse isso Assim enquanto o ensaio estava correto em suas conclusões principais era inadequado quanto a seu método Em seu próprio pensamento J S Mill tentou formular um método que fizesse justiça tanto ao discernimento do utilitarismo como às restriçóes de Macaulay Suas próprias conclusóes a respeito do método apoiamse na distinção entre três tipos de dedução direta concreta e inversa Assim sendo reconhecia quatro métodos todos científicos porém aplicáveis a diferentes assuntos A indução propriamente dita ou método químico como a denominava estabelece leis causais pela comparação de casos específicos observados utilizandose os cânones da indução os métodos da concordância diferença variaçóes concomitantes e resíduos Embora aplicáveis à quí mica e até certo ponto úteis para o estudo da história esta abordsm não é aplicável à ciência da política O método direto dedutivo ou método geométrico empregado por James Mill deduz por raciocínio silogístico os primeiros princípios de leis menos gerais Este método aplicase somente às áreas onde não existem outras causas que impeçam o íuncionamento da causa em estudo Portanto pode ser utilizado em ma temática mas não em mecânica ou política O método concreto dedutivo ou método fisico infere as leis de efeitos não de uma lei causai mas de várias delas tomadas em conjunto analisando todas as causas que influenciam o efeito e amalgamando suas leis umas com as outras A íregação de causas é possível porque o efeito produzido é a soma dos efeitos que seriam produzidos pelas causas tomadas isoladamente A simples agrção não funciona na química mas sim na mecânica e nas ciências sociais uma vez que os homens continuam sendo homens mesmo quando agpm em conjunto com outros homens Assim o método dedutivo concreto é adequado para a porção das ci ências sociais que se ocupa da determinação do efeito de uma determinada causa por exemplo uma nova lei em uma determinada situação da sociedade Por outro lado para verificar como se determinam as próprias condiçóes ou estados da sociedade devemos utilizar o método inverso dedutivo ou método his tórico O modo de proceder aqui é desenvolver leis empíricas da sociedade com base na indução e em seguida verificar essas leis por meio da dedução de leis a priori da natureza humana A abordagem indutiva por si só não basta porque há muito pou cos casos que podem ser utilizados como kdos Qualquer generalização desenvolvida adquire plausibilidade apenas por sua ligação com uma teoria dedutiva geral Foi de Comte que Mill retirou a teoria geral que acreditava necessária para colocar o próprio progresso humano no âmbito da ciência Em geral e para fins práticos é útil o método físico Falha este quando o progresso se torna um fetor na ação política isto é quando 702 H istória da Filosofia PoiíncA Leo Strauss e Joseph Cropsey 2 J S Mill Autobtoffuphy New Yoik Columbia Univeisity Press 1924 p 110113 3 JSM m A V m L flpf1843llleV l não se pode assumir que permaneçam constantes as circunstâncias que são a base para uma ação Assim há dois ramos nas ciências sociais um supõe que as condições per manecem as mesmas mas que são introduzidos fatores ou agentes novos ou diferentes a economia política por exemplo e outro que tenta definir o modo como mudam essas próprias condições ou seja a filosofia da história Na opinião de Mill nenhu ma ciência social é completa sem ambos esses ramos e o último o ramo histórico é fundamental Como será demonstrado ambos são diretamente aplicáveis aos estudos políticos o físico quando se avalia o valor de uma proposta legislativa específica em um determinado estio da sociedade o histórico ao levar em conta os efeitos de pro postas específicas sobre o progresso da sociedade em direção a sua próxima etapa II F il o s o f ia d a H is t ó r ia O conteúdo da filosofia da história de Mill sofreu forte influência do pensamen to firancês do século XVIII do movimento em favor da reforma na Inglaterra para o qual contribuiu e de seus estudos dos filósofos franceses da reforma do século XDC especialmente os saintsimonianos e Comte Acreditava na possibilidade e na conve niência do progresso social mas não em sua inevitabilidade A humanidade sabemos pela história é capaz de passar da barbárie à civilização e este avanço assiune diferentes formas e ocorre em ritmos diversos em diferentes sociedades embora admite Mill haja alguma ordem no progresso humano Por meio da utilização do método histórico adequado podemos determinar as etapas pelas quais qualquer povo deve passar em seu progresso e esse entendimento do padrão das transformações históricas fornece as coordenadas a partir das quais é possível definir que medidas devem ser tomadas para seguir para a próxima etapa Assim a filosofia da história entendida como a filosofia do progresso da sociedade é fundamental para a ciência prática da política e dá a esta ciência uma dimensão maior Não basta saber o que deve ser feito na situação atual para atingir os fins do governo que existe hoje na sociedade atual É necessário tam bém saber como devem ser atingidos tais fins de forma a capacitar a humanidade a passar para o próximo esteio mais elevado de civilização Isso também deve ser feito de tal forma que abra caminho para o estio de civilização que vem depois do seguin te Tal teoria devese assinalar é satisfatória enquanto examinarmos sociedades menos avançadas do ponto de vista das mais avançadas Peiuntamos de que necessitam tais sociedades para alcançar o nível de civilização que já atingimos Este é o tipo de pergunta que fãz Mill sobre as sociedades primitivas É mais dificil determinar de que necessita nossa sociedade uma sociedade altamente civilizada para que passe para a fiise seguinte da qual no momento não temos nem um exemplo nem uma ideia cla ra Esta lacuna na filosofia da história é preenchida pelo ideal estabelecido de maneira dedutiva a partir de uma teoria da natureza humana e de uma teoria da ética J ohn Stuakt M ill 703 4 Ibid esp VI Quando ainda jovem Mill formulou uma sugestiva abordsem para este proble ma Distinguiu dois estados básicos da sociedade o natural e o de transição O estado natural da sociedade é aquele em que os mais bem equipados para governar são de fato os que governam No estado de transição por outro lado estão no poder indivíduos que não são os melbores Estados naturais tendem a ser minados pela ascensão de novos Uderes a luta entre estes e os antigos líderes produz o estado de transição que será eventualmente substituído por um novo estado natural Embora pareça que mais tarde Mill abandonou este tipo de análise ficou um resíduo dele em seu pensamento a saber que não é satisíatório nenbiun estado da sociedade a menos que os mais bem equipados para governar exerçam a autoridade maior na sociedade Mill também impressionouse com a análise de três estados ou estágios de Comte Considerava muito correta a ideia de que o desenvolvimento intelectual da humanida de passou por um estágio teológico e um estágio metafísico e está agora em um estágio positivo ou como Mill preferiria chamálo experimental e sua aceitação desta dou trina sobreviveu a sua desilusão com a íilosoíia social posterior de Comte Se perguntarmos a Mill qual é a causa eficiente do progresso social descobrimos que este não fornece uma resposta simples Em cada etapa da civilização podem ser produzidas determinadas condições que tornam possível a próxima etapa por exem plo Mill salienta que a primeira lição a ser aprendida antes que seja possível qual quer progresso social é a lição da obediência Todavia a existência das condições de progresso não garante que o progresso vá ocorrer O avanço da sociedade é de fato produzido pelas ideias exemplos e liderança moral e intelectual de indivíduos superio res Indivíduos superiores têm florescido principalmente em condições de liberdade de modo que a liberdade se torna uma condição necessária para o progresso O argu mento é bastante simples o progresso depende do surmento de novas ideias novas ideias surgem apenas como desafios para ideias antigas e enraizadas e ainda assim somente se houver liberdade para desafiar as crenças existentes e sugerir alternativas Mill reconhecia que as crenças existentes forneciam uma base para a estabilidade da sociedade Reconhecia também que desafiar essas crenças constituía uma ameaça para a sociedade A tensão implícita entre as exigências de estabilidade e as exigências de reforma é esmiuçada por Mill em sua obra Representative Govemment O governo representativo que será discutida a seguir Outra questão a ser examinada por qualquer íilosoíia da história se pretende contribuir para o estudo da política é o lugar da sociedade existente dentro dos con tornos da história Mill não tinha dúvidas de que eram civilizadas as sociedades da Eu ropa ocidental e os Estados Unidos Havia também regiões não civilizadas no mundo e outras em vários e stro s de civilização abaixo dos níveis atingidos pela Europa oci dental Os sinais de civilização são a existência de governo responsável e o surgimento do conhecimento científico Mill parece acreditar que a medida do avanço de uma so 7 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y J S Mill The Spirit t f the Age C h io University of Chicago Press 1942 Esses ensaios foram publicados ordinalmente em 1831 ciedade é o estado do intelecto e parece ter poucas dúvidas de que o progresso futuro da humanidade está ligado ao desenvolvimento contínuo do conhecimento científico em particular na área das ciências sociais pois acreditava que as ciências físicas estavam em vias de atingir a completude A ideia de que o progresso ainda está para ser alcançado é a pedra íiindamental de todo o seu sistema de pensamento político e a ideia de que este só pode ser alcançado deliberadamente por meio de uma ciência da sociedade é um corolário que deve a Comte e aos socialistas franceses Para compreender a íilosoíia da história de Mill dentro de sua relação com sua ciên cia política devese apreciar a influência que teve Tocqueville sobre ela Mill aceitava a tese de Tocqueville de que era quase inevitável o movimento em direção a uma democra cia cada vez maior isto é em direção a uma igualdade de status cada vez maior Como Tocqueville não entendia que este movimento em si fosse o progresso mas ao contrá rio que apontava o problema a ser enfíentado por aqueles que desejassem promover o progresso Levada longe demais a igualdade interfere com a justiça e pode prejudicar tanto a liberdade como o respeito pela excelência intelectual e moral que é a condição para maior progresso É a partir dessa análise que Mill foi conduzido a restringir em sua própria teoria a fé na democracia radical que possuíam os utilitaristas anteriores III C o n s id e r a ç õ e s M o r a is A íilosoíia da história adotada por Mill exigiu uma revisão da teoria ética do uti iitarismo na medida em que íbi aplicada à política A finalidade do Estado para os utilitaristas anteriores era o bem dos indivíduos que compunham o Estado e esse bem deíiniase em termos hedonistas como o máximo prazer obtenível com o mínimo de dor Assim o governo era encarado como um agente para aumentar o prazer e diminuir a dor Não há dúvida de que em princípio Mill aceitava esse ponto de vista porém consideravao inadequado tanto por negligenciar um aspecto da natureza humana e pela incompreensão dos aspectos que inclmá A maior força dos argumentos de Mill em UtUtUrianism utilitarismo é dirigida contra os intuicionistas que acreditava alega vam que se pode conhecer a priori a distinção entre atos corretos e atos incorretos ou entre princípios morais corretos e incorretos Mill rejeitava esta visão e afirmou que o prindpio fundamental da moralidade dáse a conhecer pela experiênda e vai ainda mais longe ao oferecer uma espécie de prova indutiva para o princípio da máxima íèlicidade Mill revisa a teoria de Bentham ao tentar responder a acusaçóes específicas à ver são anterior do utilitarismo A objeção que mais parecia preocuparlhe era que o uti litarismo tinha uma visão rasteira da vida humana não distinguindo entre uma vida adequada para os animais daquela que é própria para os homens Em resposta a isso Mill introduziu uma distinção qualitativa entre os prazeres para complementar as dis J o h n Stuabt M ill 705 J S Mill M de Tocqueville on Democracy in America in Dissertatíom and Discussions New York Henry Holt 1874 II 79161 Ver também Autobiography p 134141 J S Mill Utilitarianism Frasers Magazine 1861 Reimpresso em várias edições tínções meramente quantitativas de Bentham e mostra que essa distinção qualitativa remonta ao epicurismo da Antiguidade Alguns prazeres especificamente os mentais e espirituais são eles mesmos superiores aos prazeres do corpo independente de consi derações de ordem quantitativa ou circunstancial Assim a felicidade demandaria não só uma vida de prazer sem dor mas a satisfeção dos prazeres superiores mesmo à custa da dor e do sacrifício dos prazeres inferiores De três maneiras este aspeao é importante para a filosofia política de Mill Primei ro porque está ligado a sua teoria do progresso humano Uma sociedade em que as pes soas buscam os prazeres superiores é mais aiçada em civilização do que aquela em que não o fezem Assim a promoção da busca dos prazeres superiores é ao mesmo tempo a promoção do avanço da sociedade Em segundo lugar porque o cultivo dos prazeres superiores exige maior liberdade social de modo que apenas uma sociedade livre pode ser verdadeiramente civilizada no sentido de Mill Por último porque os homens podem viver juntos de modo mais justo e com maioies conquistas humanas na medida em que buscam os prazeres mais elevados ao contrário dos mais baixos Assim o problema do governo é em parte resolvido pela busca dos prazeres mais elevados porque os traços de caráter que se desenvolvem a partir dessa busca são os traços de caráter necessários para atingir a melhor forma de organização política A ciência a maior conquista da vida in telectual demanda apenas aquela objetividade e desinteresse de que o homem necessita para ser de feto moral e por conseguinte ser cidadão do melhor tipo de estado Assim apesar de o núcleo do utilitarismo estar presente na afirmação de Mill de que essas açóes individuais ou sociais são direitos que produzem a maior felicidade do maior número esse núcleo foi tão modificado e ampliado que a teoria resultante tem um matiz diverso do utilitarismo original O governo não existe apenas para produzir o máximo do tipo de prazer que acontece de os cidadãos preferirem Ao contrário alguns tipos de prazer são melhores que outros e o governo tem a responsabilidade de educar seus cidadãos para buscar os prazeres mais elevados em lugar dos prazeres inferiores A educação moral portanto quer seja de feto exercida pelo govemo ou por particulares e Mill parece preferir esses últimos é uma das responsabilidades da boa sociedade e a educação moral deve ser voltada para o homem não apenas como um animal em busca do prazer mas como um ser progressista Há outras distinções importantes para a porção politicamente relevante da teo ria ética de Mill Para Mill o indivíduo é anterior ao Estado mas não o indivíduo tal como ele é ao contrário o indivíduo tal como pode vir a ser com uma educação adequada em uma sociedade bem organizada Isso não significa que Mill conceba um padrão de vida humana que deva servir de modelo para todos os homens mas sim que há uma grande variedade de potenciais nos homens e que a sociedade deve pro porcionar condições nas quais cada homem possa desenvolver seus talentos especiais e tornálos disponíveis para a comunidade Os homens podem dar o melhor de si se tiverem a oportunidade de usar seus talentos de modo ativo Mill considera a vida ativa como moralmente superior a uma vida de obediência passiva em quase todos os níveis de realização humana Disto decorre que o govemo que incentiva a participação 7 0 6 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y ativa de todos os seus cidadáos em seu íuncionamento apesar dos problemas que pos sam surgir como conseqüência é melbor que um governo que seja mais organizado mas que encoraje seus cidadãos a serem passivamente obedientes aos comandos de um grupo dominante qualquer que seja a morabdade e justiça desses comandos IV O F im d o E st a d o Mill inicia seu mais extenso tratado sobre a íilosoba política Considerations on Representative Govemment Governo representativo com uma reformulação da anti ga questão a respeito de os governos existirem por natureza ou por convenção Toma isso como uma indagação relativa à gama de escolbas no que se refere a formas de governo Se o governo é inteiramente uma questão de convenção então a escolba é ilimiuda Se os governos existem inteiramente por natureza então não bá escolba possível Mill rejeita ambas as posições e tenta mostrar o quanto bá de verdade em cada uma apontando três condições que qualquer povo deve satisfezer a fim de que um determinado sistema de governo possa ter sucesso o povo deve estar disposto a aceitálo disposto a fezer o que é necessário para mantêlo em vigor e disposto a fezer o necessário para possibilitar que cumpra sua finalidade As condições fevoráveis para o estabelecimento e manutenção de sistemas específicos de governo podem ser em certa medida o resultado da educação do povo e dentro dos limites estabelecidos por essas condições a forma específica de governo é uma questão de escolha A escolha de uma forma de governo dentre aquelas cujas condições estão presen tes deve ser guiada por uma compreensão da finalidade ou das finalidades do governo Após debater alguns pontos de vista contemporâneos sobre o assunto Mill entende que a opinião mais diíundida mesmo entre os utilitaristas é de que os governos exis tem para preservar a ordem e para atingir o progresso na sociedade Considera isso redundante pois a realização do progresso pressupõe a ordem ou seja a segurança do que foi alcançado Desta forma Mill estaria disposto a afirmar que o progresso é a finalidade mais ampla do governo mas com alguma relutância já que afirmálo não dá ênfese suficiente à necessidade igualmente importante de se proteger contra o perigo de retrocesso Uma forma mais adequada para conceber os requisitos de uma forma de govemo é reconhecer que a suposta antítese entre ordem e progresso é apenas um reflexo da mais profimda antítese psicológica entre dois tipos de caráter humano o tipo em que predomina a cautela e aquele em que a ousadia é dominante O bom govemo aquele que alcança o progresso com base na ordem demanda homens de ambos os tipos para fornecer um equilíbrio embora não seja necessária nenhuma dis posição especial na constituição para garantilo Basta ter certeza de que nenhum dos dois tipos seja sistematicamente eliminado O íundamental é a qualidades dos seres humanos sobre os quais é exercido o governo o que é visto sob duas perspectivas Um J o h n S t u a r t M i l l 707 J S Mill Considerations on Representative Govemment London 1861 Reimpresso em várias edições teste do bom governo é o grau em que sáo promovidas a virtude e a inteligência do povo A outra é a medida em que a máquina do governo aproveita as boas qualidades das massas Desta maneira a finalidade do governo é íãzer o povo melhor e os meios são para educar o povo e empregar as mais elevadas qualidades que alcançaram Desta íbrma a teoria moral de Mill fornece a base para sua teoria política e am bas são sustentadas por sua interpretação das etapas do progresso social Embora Mill reconheça que o governo deve cuidar dos assuntos da comunidade é mais importante a responsabilidade deste para o desenvolvimento do povo O critério para sua eficácia no primeiro é a sua eficiência e os padrões de eficiência são os mesmos para todas as formas de governo São mais complexos os critérios para sua eficácia na educação do povo e dependem do estio de desenvolvimento em que este se encontra Assim como existe uma ordem natural na educação de um indivíduo existe também uma ordem natural na educação de lun povo Aprendemse primeiro as lições mais íãceis aquelas que pressu põem outras não podem ser aprendidas até que essas outras tenham sido dominadas Se a condição précivilizada é a barbárie a obediência é a primeira liçâo o tra balho é a seguinte e o autogoverno é a etapa final Mill percebe uma linha contínua de desenvolvimento da escravidão até o autogoverno com cada etapa preparada pela aprendizagem de uma liçáo específica isto é pela aquisição de um novo traço de cará ter por parte da população como um todo Além do aspecto comercial do governo o critério da melhor forma de governo para qualquer povo em particular é que ofereça o que é necessário para ensinarlhe a liçáo que precisa aprender a fim de avançar para o estado mais avançado da sociedade que vem em seguida e que não o impeça de seguir em frente após um treinamento adequado para a etapa seguinte É neste contexto que podemos entender a visão de Mill de que o despotismo é um modo legítimo do go verno de bárbaros se a meta for o seu aperfeiçoamento Para Mill esta seqüência de etapas implica um ponto culminante para a melhor forma absoluta de governo uma forma que se as condições necessárias existirem promoveriam mais do que qualquer outro não uma só forma de aperfeiçoamento humano mas todas as suas formas e graus Esta afirma Mill é uma variação do sistema representativo V O A r g u m e n t o e m Fa v o r d o G o v e r n o R e p r e se n t a t iv o O governo representativo tem apenas um rival a o seu posto como o melhor siste ma político idealizado que vem a ser o despotismo benevolente Depois de examinar com cuidado os benefícios a serem obtidos pelo governo absoluto por um indivíduo intelectual e moralmente superior Mill encontra vários argumentos decisivos contra esta afirmação Um deles oriundo da teoria anterior de Bentham repousa sobre o princípio de que os direitos e interesses de qualquer indivíduo só têm segurança con tra não serem levados em conta quando este indivíduo é capaz de defendêlos e está 7 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 J S Mill On Liberty London 1859 i 10 Considerations on Representative Covemment iii disposto a fezêlo Em um despotismo benevolente porém os direitos dos indivídu os cujas limitações sobre o poder que possuem outros de interferir naquelas açóes de um homem que podem ser justificadas pelo princípio da utilidade não estão seguros porque dependem da garantia do déspota Enquanto déspotas específicos podem em alguns casos proteger esses direitos sendo a natureza humana o que é o despotismo não é confiável no que diz respeito a isso As evidências históricas que mostram que os povos livres prosperaram mais do que aqueles sob despotismos apoiam este argu mento O outro argumento vai à raiz do que é distintivo na teoria de Mill O despo tismo exige obediência por parte do corpo político isto é passividade A excelência intelectual prática e moral a mais elevada meta que o Estado deve se esforçar para cul tivar entre os seus cidadãos é produto de um caráter ativo Assim enquanto o despo tismo pode ser adequado onde um povo tem de aprender a obediência para avançar para estágios mais elevados de civilização uma vez que tenha aprendido essa lição o povo deveria ser incentivado à participação ativa que só é possível em um governo po pular O governo popular portanto parece ser a política ideal por duas razões pro tege os direitos dos indivíduos e promove seu mais elevado desenvolvimento moral e intelectual No entanto Mill tem mais uma etapa em seu argumento o mais elevado desenvolvimento dos indivíduos repousa também sobre uma civilização avançada que só é possível em um Estado de grande porte O governo popular só é possível em pe quenos Estados A maior aproximação ao governo popular viável em grandes Estados é o governo representativo ou seja a democracia representativa O governo representativo não é apenas o melhor sistema político ideal conside rando todos os fatos mas é também uma forma de governo que pode ser estabelecida no mundo moderno Sua existência depende de três condições já mencionadas jun tamente com um grau de maturidade que torna possível esta forma de autogoverno Onde o povo ainda tem alguma lição a aprender alguma outra forma de governo será mais adequada por exemplo o povo pode aprender mais facilmente a obediência a um líder militar ou um rei pode ensinálo a superar o espírito de localidade que o impede de se juntar com outras localidades para estabelecer a autoridade central pressuposta pelo governo representativo Com exceção de defeitos como estes que decerto acreditava Mill nâo eram os problemas da Inglaterra de seu tempo um go vemo representativo devidamente constituído seria o mais capaz de ajudar o povo a progredir para a próxima etapa da sociedade VI A n á l ise d o G o v e r n o R e p r e se n t a t iv o A composição adequada de uma democracia representativa não é uma questão simples e não a possuía nenhum governo do tempo de Mill principalmente porque o papel do representante no governo não fora corretamente compreendido O erro comum na concepção do governo representativo acreditava Mill era acreditar que os representantes do povo deveriam de feto governar As funções do governo executiva legislativa e judicial são atividades altamente especializadas que demandam indivíduos J ohn S t u a r t M i l l 7 0 9 experientes bem treinados que a massa náo é qualificada para selecionar Assim pode se dizer que Mill acredita no governo por especialistas No entanto cada composição tem um poder supremo de controle e este poder deve em uma democracia residir no próprio povo Não sendo capaz de exercer esse poder ele mesmo o povo o exerce de fato e pode controlar as operações do governo em prol do interesse público através de deputados eleitos periodicamente Assim para Mill os representantes não são o governo mas atuam para que o povo controle o governo Um parlamento de representantes eleitos atuaria como o controlador do gover no em prol do povo Mill entende este parlamento principalmente como um corpo deliberativo ao mesmo tempo uma Comissão de Queixas e um Congresso de Opi niões Contendo uma bela amostra de cada grau de intelecto que possa ter direito a uma voz nos assuntos públicos sua íúnção seria apontar necessidades ser um órgão para as demandas populares e um lugar de discussão adversa para todas as opiniões relativas aos assuntos públicos O aspecto relevante aqui é que a Democracia Representativa de Mill está duas etapas aquém da democracia no sentido literal do termo governo do povo O gover no pelos representantes do povo está uma etapa aquém e o governo por especialistas controlados pelos representantes do povo está mais uma etapa aquém Mill atinge esse ponto de vista náo só com base em considerações de ordem prática mas com base em sua crença de que ao passo que a justiça exige a democracia uma democracia sem controle pode ser uma tirania do mesmo modo que a monarquia absoluta O fúncionamento eficaz da democracia representativa exige a presença de condi ções não exigidas de outros sistemas de governo Deve ser preservado um bom equi líbrio entre o órgão representativo e os órgãos que de fato governam Um órgão re presentativo demasiado forte impedirá que o governo realize suas fúnçóes Um órgão representativo demasiado fraco será incapaz de controlar o governo O órgão represen tativo pode não ter as qualificações mentais necessárias para suas fúnçóes Interesses nefandos interesses que não são idênticos aos interesses da comunidade como um todo podem atingir a predominância Esses últimos defeitos tendem a estar presentes em todas as constituições São inerentes à natureza da monarquia e da aristocracia mas por meio de instituições adequadas seu perigo pode ser reduzido a um mínimo em um sistema representativo Mill dedicou considerável atenção à elaboração de nor mas específicas para a democracia representativa que fevorece de modo a capacitála para superar seus possíveis defeitos A técnica das melhores monarquias e aristocracias para obter talentos de ordem suficientemente elevada para assumir as fúnçóes governamentais é a criação de uma bu rocracia Conmdo a burocracia recai na rotina o que reprime a individualidade de seus membros e se torna um sistema regido pela mediocridade treinada Somente o govemo popular e Mill considera o seu sistema de democracia representativa a forma mais viável 7 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 IbidY de governo popular mantém vivos interesses antagônicos na comunidade assim estimu lando o pensamento individual e a iniciativa permitindo que o homem que possui gênio original derrube a barreira da mediocridade treinada No entanto a liberdade produzida pelo sistema representativo deve ser combinada com a habilidade treinada A distinção entre governar e controlar que está na base do sistema de Mill produz a combinação Os especialistas governam mas são controlados pelos representantes do povo As propostas específicas de Mill para a reforma do governo representativo exis tente podem ser compreendidas como uma tentativa de garantir o estabelecimento de uma democracia capacitada Sem capacitação não podem ser resolvidos os complexos problemas do governo de uma sociedade livre Sem democracia não há segurança para um bom governo isto é para a proteção dos direitos dos cidadãos Mill considera que a atual concepção de democracia se baseia em uma compreensão inadequada do governo da maioria Se democracia significa o governo do todo por uma maioria que só ela tem representação serão necessariamente frustrados os íins da democracia pois a minoria não tendo representantes não tem nenhuma garantia de que seus direitos serão protegidos e a maioria estará em posição de perseguir seus interesses neíàndos Mill teme por exemplo que um órgão representativo que represente os interesses da classe trabalhadora prejudicará os direitos de propriedade dos ricos e assim solaparão a economia da nação O governo da maioria em seu interesse próprio constitui um governo de desigualdade e privilo do mesmo modo que o governo por uma minoria privilegiada em seu interesse próprio A verdadeira democracia por outro lado é o go verno do todo pelo todo igualmente representado O sistema existente de felsa demo cracia envolve tanto a representação incorreta dos pertencentes ao partido da maioria que se opôs ao candidato escolhido como a não representação daqueles que votam no partido que perde A ausência de uma voz eficaz em oposição à maioria no órgão representativo tende a produzir um grupo dominante medíocre e incompetente Mill acreditava que o esquema de Thomas Hare para a representação pessoal for necia meios para dar a representação a cada eleitor Na variante de Hare da representa ção proporcional cada eleitor vota em uma série de candidatos marcandoos como sua primeira sua segunda sua terceira opção etc Quando o número suficiente de votos para eleger é creditado a um candidato seus demais votos vão para as segundas tercei ras e subsequentes opçóes de modo que cada voto conta para que alguém seja eleito Cada eleitor tem pelo menos um candidato do qual se pode dizer que o representa Mill acreditava que no sistema existente no qual uma maioria em um distrito geo gráfico determina a representação para aquele distrito os eleitores para os candidatos derrotados são príios de seus direitos Sob o sistema de Hare todos os votos valem Na teoria de representação de Mill o representante eleito tinha a responsabilidade de pensar e discutir questóes públicas no interesse do todo não apenas como um refiexo da opinião de seu eleitorado Aigumentou contra promessas por parte dos candidatos a caigos e se recusou a íàzêlas quando se candidatou ao Parlamento em 1863 J o h n S t u a b t M il l 7 1 1 12 Ibid vii Enquanto os utilitaristas anteriores partiram do pressuposto de que a extensão do sufrágio por si só garantiria que seriam defendidos os interesses de todos Mill percebia que sem representação pessoal o sufrágio universal conduziria à tirania da maioria Os reformadores anteriores também partiram do pressuposto de que as clas ses mais baixas escolheriam indivíduos superiores a eles para representálos Mill não se mostrou de modo algum tão otimista Acrediuva que medidas especiais deveriam ser tomadas pau evitar que os pontos de vista das classes instruídas fossem sufocados por uma enxuruda de votos das classes incultas O sistema de representação pessoal evitaria o governo do não instruído permitindo que os instruídos de todas as partes da nação reunissem seus votos para assegurar a eleição dos candidatos que preferiam No entanto para Mill isso não basuva Para dar aos instruídos um peso ainda maior do que seu simples número garantiria defendeu o voto plural para as classes profissionais e outras que assumiam maior responsabilidade na comunidade Enquanto a represen tação pessoal tem um efeito ambíguo sobre a democracia sendo democrática no sen tido de que dá a todos uma voz e contrária à democracia na medida em que aumenta a força das minorias em relação à maioria o sistema de voto plural é definitivamente um freio sobre a democracia e indica a força da convicção de Mill acerca dos perigos da democracia ilimitada A confiança de Mill era depositada em um órgão represen tativo em que se equilibravam os interesses das duas principais classes da sociedade a classe trabalhadora e a classe alta na expectativa de que a maioria dos representantes votasse de acordo com seus interesses de classe enquanto uma minoria de cada grupo responsável pelo equilíbrio do poder votaria em prol do interesse público VII A T e o r ia d a L ib e r d a d e Mill afirmava que seu ensaio On Liberty Sobre a liberdade era sua obra mais cuidadosamente composta e a que teria maior probabilidade de vir a ter valor dura douro Poderemos entender por que Mill pensava assim e poderemos julgar de forma mais adequada a importância do livro se o examinarmos no contexto de sua filosofia da história e de sua teoria do Estado Acreditando no progresso da sociedade de esteios inferiores para esteios mais elevados de civilização Mill percebia a culminação política desse desenvolvimento como a emergência de um sistema de democracia representativa Desta forma julgava a de mocracia representativa como o melhor sistema político ideal ou seja aquela forma de govemo em direção à qual pnide a humanidade No entanto Mill não via o flo rescimento da democracia representativa como o siumento da utopia Não apenas havia uma tendência sempre presente para o retrocesso contra a qual a sociedade tem de lutar sempre mas igualmente perigosa era a tendência dos mais idealistas e mais no bres movimentos de reforma de cristalizaremse em sistemas dogmáticos que obrigam à conformidade e assim inibem o progresso íumro Da mesma forma que a obediência e o trabalho foram as principais condições para o progresso humano em feises anteriores do desenvolvimento do homem assim no período civilizado a obediência e diligência tendose enraizado a liberdade tornase a condição para o progresso subsequente 7 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Como é evidente a teoria da liberdade de Mill está longe de ser uma doutrina universal que se aplique a todos os povos em todos os momentos Ao contrário é relevante na prática somente quando a sociedade passa a ser mais importante que o Estado Enquanto bá uma oposição de interesses reconhecida entre os governantes e os governados o progresso da humanidade exige que os homens se esforcem para atingir as condições do governo representativo Uma vez que estas condições são alcançadas pode emergir uma democracia representativa em que desaparece a oposição entre go vernantes e governados pois desta forma os governadores representam os interesses dos governados Esta condição que viabiliza a liberdade do indivíduo não assegura isso A própria emancipação da sociedade a partir da restrição de um governo em prol dos interesses de poucos cria na própria sociedade na grande massa do povo uma nova e mais perigosa ameaça para a liberdade do indivíduo Ao lidar com este novo problema que surge Mill acredita que está pensando no íuturo O problema de etapas posteriores do progresso é impedir que o indivíduo seja oprimido pela massa cada vez mais poderosa e confiante da humanidade O progresso em direção à civilização exige restrições sobre a liberdade individual o progresso da civilização exige que indivíduo seja emancipado de tais restrições O que é necessário acredita Mill é um princípio prático que de tal maneira defina a área da liberdade individual que não impeça o governo de cumprir sua obrigação de fomentar o progresso da sociedade Mill íundamenta esse princípio em sua teoria moral o único valor supremo é a felicidade dos indivíduos e os indivíduos podem melhor atin gir a sua felicidade em uma sociedade civilizada quando têm liberdade de perseguir seus próprios interesses com seus próprios talentos da forma como vieram a ser compreendi dos e desenvolvidos por eles dentro de um sistema adequado de educação Subjacente a tudo isto está o pressuposto do valor supremo da individualidade do desenvolvimento individual tanto para o próprio indivíduo como para o progresso íuturo da sociedade para o indivíduo uma vez que sejam atingidas as condições de desenvolvimento livre ou seja a civilização e o governo representativo para a sociedade porque o progresso da civilização depende das contribuições que só podem ser feitas por indivíduos capazes de pensar por si mesmos O homem civilizado para Mill é aquele que age a partir daquilo que compreende e que empreende todo o esforço para entender Este modelo socrático não é para os poucos dotados de uma tendência filosófica mas é concebida como um modelo para todos os homens na medida em que sejam capazes de realizálo Surge então a questão relativa às condições em que a sociedade pode progredir em direção a essa meta A principal condição é a moderação por parte dos indivíduos na so ciedade e a teoria da liberdade de Mill é uma tentativa de explicitar em termos práticos o que requer tal moderação Qjmo íundamento exige que cada indivíduo grupos de indivíduos o governo e a massa do povo se abstenham de interferir com o pensamento expressão e ação de qualquer indivíduo Este é o princípio básico da liberdade A radical não interferência com os indivíduos aplicada de forma abstrata e ab soluta tornaria impossíveis é claro o governo e uma sociedade ordenada Na verda de tratase de um princípio anarquista Mill restringeo em sua aplicação prática ao J o h n S t u a r t M il l 7 1 3 reconhecer que enquanto o pensamento deve ser absolutamente livre a liberdade de açáo dos indivíduos deve ser limitada em prol da segurança da sociedade Mill argu menta que o indivíduo pertence a si próprio e está sujeito ao controle social somente com o objetivo de impedilo de prejudicar os demais O indivíduo é soberano sobre si mesmo e a sociedade é soberana sobre os atos do indivíduo que tem conseqüências sobre os demais Os pensamentos do indivíduo sáo parte dele mesmo e portanto o princípio exige que a sociedade náo exerça controle sobre eles Aqui devemos ter em mente que Mill não íàla de qualquer grupo de indivíduos em qualquer lugar mas de um corpo maduro de cidadãos que foram educados para terem um sentido de respon sabilidade pública De modo explícito exclui as crianças e os selvagens Seria possível supor que a expressão pública dos pensamentos privados pertencesse a uma categoria diferente a da ação Mill admite isso em alguns casos isolados mas em ge ral acredita que a expressão exige a mesma liberdade absoluta que o pensamento pelos se guintes motivos primeiro a expressão é tão intimamente ligada ao pensamento que o controle da expressão se tomaria de íàto um controle sobre o pensamento Em segundo liar assevera que a reivindicação ao direito de limitar a liberdade de expressão isto é a reivindicação ao direito de silenciar a expressão de opinióes na sociedade pressupóe a infelibilidade por parte daqueles que o leivindicam A ciença de Mill é de que niijuém pode legitimamente reivindicar a iníàlibilidade e por conseguinte ninguém pode legiti mamente reivindicar o direito de suprimir qualquer opinião Pelo contrário a sociedade tem mdo a ganhar e nada a perder com a absoluta liberdade de discussão Uma opinião impopular pode ser verdadeira caso em que o restante da humanidade pode aprender alguma coisa com a visão dissidente Tal raciodnio seria correto mesmo que a opinião fosse em parte verdadeira e em parte felsa Mesmo que a opinião dissidente fosse por inteiro felsa a sociedade sairia ganhando por permitir que fosse expressa A sociedade seria mantida alerta acerca dos íúndamentos de sua própria opinião verdadeira que se tornaria um dogma morto se jamais fosse questionada e os ensinamentos do dissidente equivocado permaneceriam sempre como uma possibilidade A abordíem de Mill para o problema dos limites se existem à liberdade de discussão pública na sociedade assume devese lembrar um público maduro exer cendo sua discussão de forma contida e civilizada Aqueles cujas vidas não cumprem as regras do jogo não têm esses direitos devem ser contidos da mesma forma como aqueles cujas açóes prejudicam os demais na sociedade O princípio implícito aqui é que enquanto o debate continua a ser um debate deveria serlhe concedida liberdade absoluta porém uma vez que vai além da discussão tornandose ação deveria ser tra tada como ação Os exemplos que fornece Mill deste último por exemplo dizer a uma multidão exaltada diante da moradia de um vendedor de grãos que os vendedores de grãos matam de fome os pobres siere que não é apenas a opinião que determina a que categoria pensamento ou ação pertence a expressão da opinião mas ao contrá rio as circunstâncias em que a opinião é expressa Aceitase de forma geral que as açóes não podem ser tão livres quanto as opini óes As açóes devem ser limitadas na medida em que causem danos a outros Mill tem 7 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y grande cuidado em assegurar que esta regra não se torne a base de uma restrição geral da liberdade de ação Quando os bomens consentem com a ação que os prejudica essa ação não tem qualquer interesse para a sociedade Em geral cabe à sociedade o ônus da prova demonstrar que a ação do indivíduo é prejudicial e não ao indivíduo provar que é inofensivo O perigo de dano a si mesmo uma vez que se é um indivíduo ma duro não é motivo para interferência do governo Nessas circunstâncias o indivíduo pode ser censurado mas não colido O objetivo íinal da ação social deve ser assegurar a todos total independência e liberdade de ação Aí se inclui em particular a liberdade para satisíázer gostos e buscar interesses bem como a liberdade de associação tudo na medida em que outros não sejam prejudicados Por meio da educação nas virtudes de autoestima os indivíduos na sociedade deveriam ser incentivados a usar sua liberdade para evoluir morai e inte lectualmente se tiverem sucesso tornamse objetos adequados de admiração e emu lação se falbarem tornamse objeto de aversão e talvez mesmo desprezo No entanto a sociedade ou o governo não devem interferir em suas ações a menos que felbem em alguma obrigação social que em última análise seja íúndamentada no princípio utilitarista da maior felicidade do maior número À objeção de que é difícil senão impossível distinguir entre e a parte da vida do indivíduo que diz respeito somente a si mesmo e a parte que diz respeito à sociedade Mill oferece uma resposta parcial em termos práticos Se a base da objeção é que muitas ações que aparentam autoconside ração íàzem mal a outros Mill responde que na medida em que íãzem mal a outros devem ser punidas Devem ser punidos os danos definitivos ou danos a outrem mas prejuízos meramente contingentes os que não contrariam um dever específico devem ser tolerados por uma questão maior de liberdade Nestes termos Mill discute o gasto de rendimentos a ingestão de bebidas fermentadas a venda de venenos a poligamia os jogos de azar e outros atos que têm sido objeto de restrição legal Admite que não bá aplicação mecânica de seus princípios básicos mas insiste que são a única orientação adequada para corrigir a política social Mill conclui reafirmando os argumentos em íàvor da iniciativa individual em detrimento do controle social a maioria das coisas tende a ser feita da melbor forma quando realizada por indivíduos do que quando efetuada pelo governo a ação indi vidual promove a educação mental do indivíduo o que as açóes governamentais não fezem e o aumento da ação governamental é uma ameaça à liberdade Se por um lado Mill não exclui a interferência do governo na vida econômica da comunidade como impossível ou indesejável em princípio por outro restringiria essas interferências à área da distribuição de bens excluindo a área da produção de bens por ser regida pelas leis da natureza Embora mais tarde tenba cbegado a se considerar um tanto socialista também expressou um temor da extensão do controle social sobre a vida econômica Empregando a individualidade a liberdade e o progresso da sociedade J o h n S t u a r t M il l 7 1 5 13 On Liberty lúy como seus padrões reconheceu a vantem da interferência governamental náo au toritária sob a forma do fornecimento de conselhos e informações e na competição com a iniciativa privada onde houvesse perigo de monopólio Reconhecendo que a organização da sociedade em uma base comunista poderia elevar o padrão de vida das classes trabalhadoras não acreditava que um padrão de vidaelevadovaleriao preço das restrições à liberdade se fosse esse seu resultado L e it u r a s A Mill John Stuart On Liberty in Utilitarianism Liberty and Representative Government New York Dutton 1951 Mill John Stuart Representative Government in ibid Caps ivii B Mill John Stuart Utilitarianism in ibid Mill John Stuart Representative Government in ibid Caps viiixviii Mill John Stuart A System of Logic New York Longmans 1949 Livro VI Mill John Stuan Principies of Political Economy Ed W J Ashley New York Longmans várias datas Livro V 7 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 14 J S Mill Principies of Political Economy 2 v London 1848 V K a r lM arx 18181883 O marxismo apresentase como uma abrangente crônica da vida humana e náo apenas da vida humana mas da natureza também Oferece uma explanação do presente do homem bem como de seu passado e futuro extraindo seus ensina mentos da premissa de que é impossível uma explanação exaustiva e conclusiva a não ser como uma descrição da transitoriedade ou fluxo infinito das coisas Uma descrição definitiva do presente é apresentada nos escritos econômicos de Marx isto é em sua análise crítica do capitalismo A narração do passado e do futuro ou da evolução da sociedade aparece nos escritos de Marx sobre a teoria da história e da relação da história com uma determinada noção de metafísica A filosofia política de Marx consiste de seus ensinamentos sobre economia história e metafísica sobre a sociedade atual e sobre a emergência e desaparecimento de todas as sociedades incluindo a presente O leitor pode perguntarse se uma análise econômica do capitalismo é o mesmo que um retrato completo da época moderna ignorando por enquanto a existência de países comunistas Na opinião de Marx a economia é o coração vivo da sociedade e portanto compreender a verdade sobre a economia moderna é compreender os mais relevantes fetos sobre a sociedade moderna No entanto o leitor pode também per guntarse se um retrato completo da sociedade eqüivale a uma explanação completa da vida humana O marxismo considera os dois se a sociedade for corretamente compre endida como equivalentes Desta forma o marxismo pode apresentarse como uma explicação abrangente do passado presente e futuro do homem Afirma ter descoberto que a economia é o verdadeiro fundamento da sociedade e assim da vida humana A análise de Marx sobre o presente ou seja da economia capitalista baseiase em sua teoria do valortrabalho Sua interpretação da tradição do passado ao futuro ou seja da história depende de sua doutrina do materialismo dialético Nossa descrição da filosofia política de Marx portanto seguirá o seguinte esquema 1 O materialismo dialético ou a teoria da história de Marx e da prioridade da condição econômica 2 a teoria do valortrabalho e a explicação de Marx sobre o presente capitalista 3 a convergência entre o materialismo dialético e a teoria do valortrabalho No que se segue felaremos de marxismo e das doutrinas de Marx Devese entender que a partir de 1844 Marx teve como colaborador Friedrich Engels que com elegância e sem dúvida com justiça declarou ser Marx o gênio do movimento embora ele Engels desse a ele sua contribuição Não tentaremos em caso algum nem mesmo se fosse possível distinguir o trabalho de Engels do de Marx Repetidas vezes afirma Marx que o estudo do homem deve preocuparse com homens reais não com homens tais como se imagina se espera ou se acreditava serem Com isso entende Marx que a íundação das ciências sociais não é uma noção de um bem humano pelo qual se anseia ou uma reconstrução do homem primitivo imacula do mas ao contrário de um homem empírico tal como poderia a qualquer momento ser observado por qualquer um O homem empírico é primordialmente um organismo vivo que consome alimentos vestuário abrigo combustível e assim por diante e é obri gado a encontrar ou produzir essas coisas Os homens poderiam em tempos imemoriais ter sobrevivido somente pelo uso de materiais que encontravam e recolhiam mas em dado momento o aumento da população obrigouos a produzir aquilo de que necessi tavam e assim vieram a se distinguir dos animais A marca distintii da humanidade é a produção consciente náo a racionalidade ou a vida política ou a capacidade de rir por exemplo como alguns afirmam Há com certeza certa feita de clareza na doutrina de Marx acerca deste aspecto uma vez que admite diferir a produção humana da pro dução de animais pelo feto de que o ser humano planeja ou concebe antecipadamente o objeto completo de seu trabalho enquanto a abelha ou inseto trabalha por simples instinto Em outras palavras somente a produção humana se caraaeriza pela intenção racional e poderia assim ser considerada única pois se trata do fezer do animal racio nal Desu forma no entanto seria mais exato afirmar que a caraaerística singular do homem é a racionalidade e não a piodutividade no entanto Maix não pode dedaiar isso porque as implicações desu afirmação interfeririam com seu materialismo o qual defende que a ucionalidade do homem ou melhor sua consciência não é íunda mental mas derivativa A doutrina marxista do primado da produção na vida humana reside na crença de que foi a pressão de suas necessidades que primeiro forçou o homem a elevarse pau a sua humanidade e continua a pressionálo pau elevarse e seguir em írente e que o conteúdo de sua razão deve ser daerminado por condições externas à sua razão condições essas que são estritamente materiais De que forma mais exatamente de acordo com Marx as condições materiais determinam a vida e o pensamento Marx começa por observar que em todas as épocas os homens têm acesso a determinadas forças produtivas as quais aplicam pelo uso dos objetos animais ferramentas máquinas e assim por diante aos quais essas forças se incorporam Contudo as forças de produção digamos em termos gerais a simples tecnologia obrigam os homens a adaptarse e às suas instituições às exigências da tecnologia Os nômades por exemplo que repentinamente tiveram acesso à eneigia a vapor e a implementos agrícolas movidos a vapor seriam forçados a desistir de seu nomadismo e ao contrário a adotar os hábitos sedentários a divisão do trabalho as práticas comerciais e as instituições de propriedade que são determi 7 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y nados pelo modo de produção febril como também a adotar as práticas e instituições correlacionadas à icultiua É autoevidente que isso é verdadeiro em sentido geral decerto já era muito bem compreendido na Antiguidade grega Conforme afirmado anteriormente porém sua abrangência é insuficiente para expressar o pensamento de Marx Marx afirma repetidamente que a um determinado conjunto de forças de pro dução corresponde um modo de produção tal como o asiático o da Antiguidade o feudal e o burguês moderno ou capitalista De acordo com o modo de produção feudal por exemplo os possuidores dos meios de produção e os bomens que traba lhavam com esses meios ou a partir deles eram ligados por uma relação pessoal de responsabilidade mútua no modo capitalista empregadores e empregados são como os termos implicam os que usam e os que são usados bvres de deveres uns para com os outros com apenas o pagamento em dinbeiro a unilos A cada modo de produ ção corresponde como seu efeito uma forma de organização social Uma enunciação compacta dessa visão é oferecida por Marx em sua carta a P V Annenkov de 28 de dezembro de 1846 O que é a sociedade qualquer que seja sua forma O produto da ação recíproca dos bomens São livres os bomens para escolherem por si mesmos esta ou aquela forma de sociedade De modo algum Assumamos um estado específico de desenvolvimento das forças produtivas do bomem e obteremos uma forma específica de comércio e consumo Assumamos determinadas fiises do desenvolvimento na pro dução no comércio e no consumo e teremos uma estrutura social correspondente uma organização correspondente da família de ordens ou de classes em suma uma sociedade civil correspondente Pressuponhamos uma determinada sociedade civil e teremos determinadas condições políticas que são apenas a expressão oficial da socie dade civil Resume ainda mais a questão em Das Elend der Phibsophie A miséria da filosofia ao observar O moinho manual produz a sociedade com o senhor feudal o moinho a vapor a sociedade com o capitalista industrial As condições de produção determinam as relaçóes de propriedade prevalecentes o que significa não a definição abstrata da propriedade mas ao contrário quem nesta situação particular tem acesso à propriedade e quem é impedido de adquiri la Sob o feudalismo havia senhores que possuíam terras e tinham direitos a outras propriedades e servos que não podiam acumular nenhuma propriedade O mesmo ocorria nas demais circunstâncias sociais sob o capitalismo os empregadores possuem e acumulam os empregados labutam à beira da miséria nada possuindo alijados dos meios de produção Esta doutrina está diretamente relacionada à crença marxista de que as condições de produção controlam a distribuição da renda e o consumo da produção Também comandam a troca se a produção é organizada em torno de uma propriedade comum arável por exemplo não haverá troca sequer do produto do solo apenas compartilhamento Daí se segue também que o dinheiro será utilizado ou não dependendo do modo de produção o dinheiro não é em seu atual significado ou uso intrínseco a toda situação econômica ou à vida econômica como tal KarlMarx 719 Karl Marx The Poverty f Philosophy ii 12 observação Das Elend der Philosophie A miséria da filosofia Marx aíirma portanto que é um erro tratar o consumo a distribuição a troca o dinheiro e assim por diante como categorias eternas com conteúdo relevância ou validade abstratos e permanentes É um dos defeitos da ciência da economia política a economia burguesa considerar esses fenômenos puramente históricos como cate gorias fixas que possuem um objetivo essencial um caráter natural aspectos que podem ser entendidos de uma vez por todas porque existem de uma vez por todas Não apenas são essas categorias produtos históricos mas a ciência dessas categorias ou seja a economia revelase como meramente histórica ou transitória por confimdir o transitório com o eternamente verdadeiro isto é acreditando que consiste em leis fundamentadas de uma natureza imutável Marx critica Edmund Burke mas através de Burke todos os economistas por sua afirmação de que as leis do comércio são as leis da natureza e consequentemente as leis de Deus Na verdade de acordo com Marx a ciência econômica do período capitalista recebe suas categorias salários ju ros troca lucro e assim por diante das práticas predominantes sob a produção capita lista e assume essas categorias sem reconhecer sua gênese nas condições históricas Por não tratar seus fetos como históricos e fadados a desaparecer essa ciência econômica obviamente se condena a desaparecer quando seus fetos o fizerem A doutrina de Marx sobre o modo como as teorias dependem das condições históricas de produção leva em conta muito mais do que a teoria econômica Marx afirma que a totalidade da moral da filosofia da religião e da política é resultado do condicionamento dos homens por seu meio ambiente meio ambiente este criado pelo homem e que é a expressão do modo de produção A visão oposta de que o homem possui uma inteligência independente à luz da qual modela suas instituições e estabelece suas convicções é rejeitada como ideologia o termo marxista para a dou trina de que o pensamento tem um status independente Até aqui mostramos que o materialismo de Marx afirma apenas que as condições de produção determinam o caráter concreto da vida humana a qual existe como uma superestrutura sobre o fundamento das condições materiais mais verdadeiramente reais Nada foi dito porém a respeito do que é negativo ou positivo nas superestruturas reais que de feto suiram a partir dos fundamentos materiais existentes até então Tal julgamento no entanto é intrínseco ao materialismo de Marx e será discutido agoia Todos os modos de produção históricos possuíam uma característica em comum característica esta que por sua vez afetou todas as sociedades correspondentes o con trole dos meios de produção não era compartilhado por todos os homens mas em 7 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Capital New York Modern Library s d 1834 nl Copyright de Modem Library A pnaçáo é a mesma da ediçáo publicada por Charles H Kerr Co A referência é a Thoughts and Details on Scarcity de Burke Cf Engels Herr Eugen Dührings Révolution in Science AntiDühring x 1 ideologia a de dução da realidade não de si mesma mas de sua inuem mental Também de Engeb Ltedtvig Feuerbach iv 7 parágraíb do final ideolca isto é a preocupação com pensamentos como se bssem entidades independentes cada época alguns eram proprietários ou possuidores enquanto muitos mais tiveram que dar de si mesmos ou seja de sua capacidade para o trabalho nada mais tendo para dar a fim de ter acesso aos instrumentos de produção para ganhar seu sustento Assim em toda a história anterior o ato de produção colocou muitos homens na dependência de poucos As massas foram privadas da oportunidade de serem homens livres dotados de respeito próprio porque sempre foram forçados a ocupar uma posi ção de dependência subserviente escravos servos ou proletários sujeitos a homens que embora cidadãos privados ou súditos como eles ainda assim poderiam arbitra riamente priválos de sua vida ao cortar sua conexão com os meios de produção A desumanização que inevitavelmente resulta da dependência servil foi agravada pela pobreza imposta aos muitos pelos que os exploram Além disso o processo de produção desde o seu início possuía um caráter que Marx denomina natural no sentído de que certas diferenças naturais entre os ho mens de compleição fisica talento e assim por diante determinam a atribuição de tarefiis especiais aos indivíduos e portanto as relaçóes de produção eram estabelecidas impostas ou involuntárias ou seja naturais no sentido de não serem resultantes de escolha humana O protótipo de todas essas designações é a divisão de fúnçóes entre homens e mulheres para perpetuar a raça Transformouse esta na forma mais geral da divisão do trabalho incorporada na fiunília Na medida em que se desenvolviam as forças de produção a divisão do trabalho tornouse cada vez mais complexa e as ocu pações específicas tornaramse correspondentemente restritas Uma vez que os homens são compelidos pelas condições de produção a se tornarem pastores encanadores ou violinistas são privados da oportunidade de desenvolver ao máximo suas capacidades humanas por meio da aplicação livre de suas mentes em todas as direções São trans formados pela embrutecedora divisão do trabalho em fragmentos de homens impe didos de florescer a fim de tornaremse os homens completos para quem o trabalho seria uma fonte de satisfeção e não de dor Embora esta divisão em parcelas aconteça dentro de cada homem o mesmo pro cesso se repete entre os homens A comunidade passa a ser composta por tecelões que se definem em oposição a padeiros iricultores contrapostos a comerciantes o povo da cidade contra o do campo os operários manuais contra os operários mentais uma guerra de todos contra todos travada no campo dos interesses materiais os termos da luta diudos pelo modo de produção Finalmente o esfacelamento da sociedade é completado por sua aglutinação em uma classe ou grupo de classes dos poucos que controlam os meios de produção e a utinação paralela dos muitos despossuídos na classe ou classes dos que trabalham com os meios de produção A epítome do desmoronamento da vida social pode ser encontrada na existência da sociedade civil ou sociedade burguesa O termo alemão utilizado por Marx é bür gerliche Gesellschafi que pode ser traduzido tanto como sociedade civil ou sociedade burguesa A desagregação da integridade da vida humana mostra seus sintomas e é pressuposta pela divisão em nossa existência comum entre o político e o econômico e social Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o indi Karl Marx 721 víduo leva náo só no pensamento na consciência mas na realidade uma vida dupla uma vida celeste e uma vida terrena uma vida na comunidade política onde é leva do em conta como membro da comunidade e uma vida na sociedade burguesa em que é ativo como indivíduo particular considerando os outros homens como meios degradandose até tornarse um meio e se tornar um joguete de poderes estranhos A sociedade civil significa para Marx um enclave individualista na sociedade o reino de privacidade contra a comunidade com o entendimento de que a comunidade encon tra sua expressão corrupta na sociedade política sob as condições agora dominantes Sociedade civil para Marx longe de ser sinônimo de sociedade política é o cognato infrapolítico da sociedade política que é parte inevitável da ordem capitalista Um simples equivalente de sociedade civil neste sentido é a economia de um Estado capitalista ou até mesmo o mercado A sociedade civil é o estrato da vida comum que recebe seu caráter essencial da autoaíirmação dos homens um contra o outro em nome de seus direitos inalienáveis e irredutíveis A santidade desses direitos avaliados por autores como Locke como o fundamento para a garantia da liberdade e portanto a humanidade dos homens é rejeitada por Marx que vê a afirmação desses direitos como a fonte e decerto a expressão da desumanização do homem A guerra do mar xismo contra os princípios regentes do constitucionalismo ocidental não deve nunca ser confundida com uma mera escaramuça É evidente de acordo com Marx que a negação factual multiíàcetada de toda a comunidade de interesses sob o capitalismo é resultado da propriedade privada dos meios de produção A produção um ato social no sentido de ser em prol e para todos os homens não pode ser realizada de forma humana e racional se as instituições de produção são privadas particulares e por conseguinte antissociais Os modos de produção e instituições de propriedade que existiram até agora causaram fermentação e conflito entre os homens O que impediu a sociedade de se frmentar em pedaços Ou mais pertinente o que impediu os muitos de suma riamente livraremse das imposições dos poucos De acordo com Marx o poder do Estado é exatamente o agente criado pelos poucos opressores para manter subjugados os muitos O Estado é o órgão de coerção de classe tornado necessário pela divisão da sociedade que por sua vez é engendrada pelo controle privado dos meios de produ ção Escusado será dizer que o governo não aparece desta forma para a multidão dos homens Marx admite que todas as classes colaboram na sustentação do governo por seu respeito a ele e a seu poder de coerção mas isso não significa pelo contrário que os homens por causa da imperfeição de suas condiçóes materiais estejam preparados e sejam compelidos a erguer sobre si mesmos seu próprio tirano sua própria criatura que deve tal como o faz afirmarse contra eles Era a crença de Marx que os homens enquanto permanecessem no estado de coer ção de sujeição às necessidades e um ao outro através do processo de produção seriam 7 2 2 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y On the Jewish Question in Selecud Essays by Karl Marx trans H J Stenning New York Inter national Publishers 1926 p 5556 incapazes de levar uma vida plenamente humana pois a plena humanidade exigiria per feita emancipação dos grilhões de toda a sorte Se Marx viesse a empregar o termo es tado de natureza em seu próprio nome quereria dizer com isso o estado de incompleta dominação da natuteza pelo homem a alternativa para o estado de liberdade Enquanto os homens estiverem srilhoados como estão sob o governo e a sociedade civil estarão sujeitos como parte de sua servidão a uma escravidão que os obriga a contribuir para a sua própria desumanização através de instituições inventadas por eles mesmos Podemos concluir este resumo do materialismo de Marx com uma explicação do comentário anterior e ao mesmo tempo com uma demonstração da maneira pela qual Marx entende que coexistem o estado de necessidade e o estado da sociedade política como o estado de servidão humana ou o que Marx chama de a alienação do homem Sem uma compreensão deste aspecto do marxismo seria impossível formar um julgamento adequado da filosofia política de Marx como um todo Voltando ao nosso ponto de partida apontamos a observação preliminar de Marx de que o homem é um ser carente Cada homem está condenado à dependência de coisas externas da natureza digamos e de outros homens para ajudar a suprir suas necessidades No entanto além de ser essencialmente carente o homem é o que Marx denomina ser de espécie ou ser social o que não significa apenas que o homem deve viver e agir em comum com outros homens mas que o homem só pode realizar as suas possibilidades humanas se agir de acordo com outros seres humanos e sendo influenciado por eles O fato de que o homem sabe que seus semelhantes constituem um todo do qual ele fãz parte e que portanto associase com eles no pensamento de uma forma que está descartada para todos os animais subhumanos faz parte também da noção bastante difusa de Marx do homem como um ser genérico De qualquer forma foi a crença de Marx de que a atividade essencial do homem a produção era realizada em todas as sociedades anteriores por instituições que forçam os homens a olhar um para o outro e para a própria natureza como coisas e objetos alheios simples meios para os fins de satisfazer as necessidades do indivíduo O trabalho produtivo em si sempre foi considerado como uma necessidade dolorosa devido às condições sob as quais é realizado Desta forma o ambiente dos homens e seus semelhantes têm sido objeto de predadores e os próprios homens atuantes e suas próprias atividades essenciais para a vida têm sido meramente instrumentos meios para fins sem o valor intrínseco que devem ter para que o homem seja totalmente humano para estar em paz consigo mesmo ou para superar a sua alienação da natureza de si mesmo e dos frutos de seu trabalho A afirmação de Marx não é menos radical do que isso até que cada homem simplesmente se funda a toda a humanidade produzindo apenas porque a produção é a liberação e o cultivo da energia humana e não porque a produção é uma forma de ganhar a subsistência diretamente ou por meio de troca pela exploração das carências de outros homens só então serão os homens perfeitamente livres e será alcançada a articulação perfeita e final entre homem sociedade e natureza Até esse momento os homens irão distorcer a natureza um do outro tratando uns aos outros como objetos fazendo com que cada um fique em desacordo com sua espécie mesmo Karl Marx 723 quanto à própria natureza aliás não em sua beleza e esplendor mas como uma fonte de lucro Marx pensa na organização do processo de produção dentro da instituição da propriedade comum dos recursos produtivos sob a fórmula de cada um segundo sua habilidade a cada um segundo suas necessidades como a condição para propiciar a tradução absoluta da vida humana para uma base que no sentido mais literal não tem precedentes Até agora os homens viveram na sociedade civil ou seja no âmbito de instituições que pressuposta ou positivamente cultivaram o interesse próprio como o princípio da vida produtiva e da própria vida O materialismo marxista conduz à superação de toda a sociedade civil e a sua substituição pela espécie humana como uma fraternidade universal O materialismo marxista que começa por insistir na ne cessidade de levar em conta o homem empírico termina paradoxalmente em uma prescrição social sem fundamentação empírica ou precedente Foi dito anteriormente que do ponto de vista do marxismo a economia ou economia política é falha na medida em que dá conta da vida econômica em termos de preços salários custos lucro capital e assim por diante como se fossem catego rias transhistóricas ou elementos eternos intrínsecos à vida econômica em todas as circunstâncias A definição hoje comum de economia como a ciência da alocação de recursos escassos entre usos alternativos é um melhor exemplo daquilo a que Marx objetava do que a maioria das noções econômicas que existiam em sua própria época Esta definição implica que há algo que pode ser chamado de problema econômi co para todos os homens em todos os estágios da civilização e da tecnologia e que a solução racional para este problema requer mercados genuínos ou simulados para produzir certos equilíbrios entre conveniências e inconveniências uma lei universal semelhante às generalizações da física A negação da verdade da economia poiítica por Marx não era apenas uma negação de que os economistas tivessem fornecido uma descrição precisa da livre iniciativa Era uma negação de que a descrição de uma deter minada organização econômica fosse uma descrição atemporal verdadeira da essência da vida econômica Isto por sua vez é parte da ampla doutrina de Marx de que em geral nâo existem essências atemporais e portanto não há verdades eternas que não sejam ou triviais ou puramente formais A filosofia política de Marx é unificada com uma teoria sobre a natureza de todas as coisas de fato sua filosofia política é até certo ponto guiada por um esquema ou sistema universal uma doutrina de que as coisas não possuem essências nem como coisas fixas possuem existências possuem histórias ou carreiras Vir a ser de acordo com a fórmula toma o lugar de ser Marx seguia Flegel de fato se nâo em expressão ao rejeitar como metafísica a ideia de que há coisas acabadas ou objetos que possuem uma dada constituição fixa simples Afirmou pelo contrário que tudo é afetado tanto pela mudança quanto pela relação Assim as várias espécies estão sempre em evolução e os indivíduos nas cem crescem e depois declinam Os objetos inanimados surgem de processos naturais e em seguida sofrem erosão oxidaçâo ou decadência enquanto internamente estão como os seres vivos em constante movimento Além disso cada coisa é afetada de fato constituída pela relação que tem para com as outras coisas Por exemplo um 724 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y servo é servo apenas em virtude de sua relação com outro ser que é o oposto do servo ou seja um senhor A natureza do servo não é inteligível por referência exclusiva ao próprio servo assim como não seria possível entender em prdo se não houvesse empregadores Há ainda um aspecto de contradição que é introduzido na consti tuição de coisas perfeitamente imóveis imutáveis independente de suas relaçóes com as outras coisas uma linha curva em toda parte curva é contudo uma linha reta entre dois pontos iníinitesimamente separados O melhor exemplo desse paradoxo é oferecido não por Marx e Engels mas por Demócrito Se um cone fosse cortado por um plano paralelo à base o que se deveria pensar das superfícies resultantes da seção são iguais ou diferentes A resposta íacil é ambos as coisas Além disso as linhas de demarcação entre as classes de coisas não são nítidas pois há indivíduos nas margens que pertencem tanto a uma classe quanto a outra plantas animais e plantas sensitivas e nem sequer é simples distínguir a própria vida da não vida A transição da vida para a morte não é instantânea por exemplo as unhas e o cabelo continuam a crescer após a morte e a vida em si consiste em um processo pelo qual o ser vivo morre continuamente e se renova por meio da excreção e da nutri ção de tal modo que a vida é inseparável de uma morte contínua Não é preciso dizer que se a vida e a morte não fossem em nada distinguíveis seria impossível distinguir matéria viva de matéria morta ou dizer da vida que implica ou pressupóe ou mesmo que necessita da morte no entanto a posição marxista é de que a vida como um processo não é apenas vida mas também é necessariamente morte ao mesmo tempo A vida existe como um processo em vinude de uma contradição a vida é ao mesmo tempo vida e mone E assim é com as demais coisas Todas as coisas estão em fluxo conforme afirma o marxismo seguindo Herádito e todo fluxo é o movimento Para compreender o caráter de todas as coisas é necessário compreender a lei universal do movimento a lei que rege a natureza a história humana e o pensamento Essa lei derivase da doutrina marxista da contradição fundamental do movimento em si Desde a época de Zenão de Eleia há uma prova de que o movimen to é impossível todo corpo em movimento existe a cada instante em um e apenas um lugar o que é a definição de estar em repouso Estar em movimento é portanto estar em lepouso e também náo estar em repouso Cada coisa é portanto por analogia com um corpo em movimento igualmente o que é instantaneamente e o que é historica mente não apesar mas em virtude do íato de que os dois são contraditórios A contradição é fundamental para o desenvolvimento ou seja para a mudança histórica quando a mudança é assimilada ao movimento físico A mudança é gerada pela contradição por meio da oposição mútua de dois elementos contraditórios presentes na coisa em questão Examinemos um exemplo fornecido por Engels um gráo de cereal é plantado e é aniquilado enquanto grão na medida em que cresce a planta À medida que a planta se desenvolve até a sua própria extinção produz muitos grãos como o que Karl Marx 725 De K Freeman Ancilk to the PreSocmtic Philosophers Cambrii Harvaid University Press 1957 lhe deu origem O gráo é a afirmação ou tese a planta a negação ou antítese e os muitos grãos a negação da negação ou síntese Examinemos mais um exemplo sele cione qualquer quantidade algébrica a como a afirmação Neguea pela multiplicação por 1 obtendo a Negue a negação multiplicandoa por si mesma e o produto será a a afirmação em um nível mais elevado A seqüência de afirmação negação e negação da naçáo é denominada dialética e é esta que o marxismo acredita ser a lei univenal da natureza história e pensamento Todo o desenvolvimento ocorre dentro deste padrão No caso especial da história e do pensamento humanos é atribuída uma causa ao desenrolarse do processo dialético Essa causa é o modo de produção e suas mutações Porque o fenômeno primordial são as condições materiais de produção a doutrina marxista da história é denominada materialismo dialético para distinguila da dialéti ca idealista de Hegel que afirmava ser a razão autodependente o fenômeno primário como fonte da mudança histórica Como uma teoria da vida humana o materialismo dialético assevera que a base para todo o desenvolvimento da sociedade e da compre ensão é a contradição na ordem de produção A mais maciça de tais contradições é o conflito entre as classes na sociedade Por incluir no mesmo tipo a oposição dos inte resses de classe sob o aparato da dialética o marxismo procura mostrar que o conflito não pode ser resolvido por meio de concessões ou acomodações mútuas mas apenas por uma negação da negação isto é por mudanças revolucionárias em que as classes existentes são aniquiladas e substituídas por uma síntese em um nível mais elevado Um importante aspecto da filosofia política de Marx é sua reconstrução da histó ria com o fim de mostrar que a história tem de fato sido regida pela dialética materia lista De acordo com essa reconstrução cada época herda um modo de produção e um complexo de relações entre os homens que é peculiarmente adequado para esse modo de produção Eventualmente ocorre uma mudança no modo de produção acarretada talvez por uma mudança nas necessidades que poderia ter sido engendrada por essa própria modalidade de produção e mais imediatamente provocada por uma desco berta ou invenção fundamentais estimuladas por essas necessidades O novo modo de produção passa a existir enquanto as relações entre os seres humanos são ainda aquelas geradas pelo modo de produção anterior A contradição entre as relações sociais exis tentes e o modo de produção emergente ou seja o choque entre as classes dominantes estabelecidas e as embrionárias é a fonte de todas as colisões na história Marx e Engels citam uma série de acontecimentos históricos como prova dessa hipótese o mais amplamente examinado sendo a transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista e a evolução para o póscapitalismo A primeira é explicada recorrendose ao aumento da fiibricação com máquinas na Idade Média primeiro na indústria têxtil e em seguida de modo mais geral A disseminação da produção por máquinas desmontou a estrutura dos mestres das guildas com o trabalho do artífice e do aprendiz substituindoa por uma relação de empregadores burgueses e empregados assalariados entre os quais só existiam os laços do pagamento de salários O modo de produção manufatureira foi o veículo pelo qual os servos fugidos mais afortunados e mais ativos elevaramse deslocando os mestres da guilda como os proprietários dos 7 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y novos meios de produção e se tornando os progenitores de uma nova classe a burgue sia Opostos a eles e ao mesmo tempo indispensáveis a eles bavia os trabalhadores proletários que nada possuíam para viver além do salário ganho com a venda de sua força de trabalho À medida que se expandiram a indústria e o comércio a escala da produção aumentou enormemente e enquanto isso ocorria as relaçóes entre as classes proprietárias e não proprietárias passaram por uma mudança ainda maior uma exacer bação Inevitavelmente iravouse o choque de interesses entre capitalistas e assalaria dos pois a condição dos proletários precisava deteriorarse devido a contradições que são intrínsecas ao capitalismo contradições que se evidenciarão quando examinarmos a crítica de Marx à produção capitalista Por enquanto basta dizer que de acordo com Marx o pleno desenvolvimento da produção com a máquina sob a propriedade privada exige que a absoluta pauperização e desumanização dos assalariados por causa das pressões da concorrência capitalista Finalmente a miséria das massas será insu portável e o conflito de classes irromperá em um combate decisivo decisivo porque a vitória do proletariado prenunciará uma nova era do homem Os proletários não possuem nem riqueza nem o desejo de se tomarem os proprie tários dos meios de produção como uma classe Ao contrário de todas as classes insur gentes outras do passado sua finalidade não é tomar o Itar de seus opressores mas pôr íim à opressão Os meios para atingir tal meta são abolir a propriedade privada dos meios de produção e assim abolir a distinção entre proprietários e não proprietários distín çáo que é a condição para a divisão da sociedade humana em classes Após a dissolução das classes necessariamente se seguirá o íim da luta de classes e o prindpio da história estritamente humana Quando isso tíver ocorrido as relaçóes entre os homens estarão emparelhadas com o mais recente grande desenvolvimento no modo de produção tendo desaparecido as condições de opressão desaparecerá também a necessidade de coerção e o Estado definhará para ser substituído pela íiaternidade universal do homem Marx tinha bastante consciência de que seu prognóstico para a humanidade es tava obrigatoriamente ligado a um diagnóstico das condições prevalecentes Davase conta de que deveria investigar o mundo europeu contemporâneo em sua essência quer dizer em seu caráter econômico a fim de satisfazer a si mesmo e aos demais de que a dialética do materialismo realmente íúnciona no período decisivo a saber o presente Era necessário que demonstrasse que a lei da natureza do capitalismo é a lei da transformação do capitalismo em algo radicalmente diverso Incidentalmente seu empreendimento exigia que demonstrasse que nenhuma explicação do capita lismo que não fosse a sua própria compreendera o caráter essencial do capitalismo e portanto nenhuma outra explanação pelo menos nenhuma outra até então co nhecida poderia ser a base de um prognóstico para a humanidade Isto signiíica que a economia política comum que não chegou à conclusão de que o capitalismo é autoinvalidante é em vários aspectos insatisfatória até mesmo como uma des crição de como íúnciona o capitalismo A economia do próprio Marx é quase toda crítica dedicada não à explicação de como deveria ou poderia ser constituída uma economia socialista mas a uma representação detalhada da autocontradição e tran Karl Marx 727 sitoriedade das instituições capitalistas e da inadequação da economia política tal como é conhecida A inseparabilidade das duas críticas está implícita no subtítulo de O Capital Uma Crítica da Economia Política Já foi mencionada a crítica geral de Marx à economia política Devemos examinar aqui sua análise crítica do capitalismo propriamente dito c com ela suas reflexões mais específicas acerca da economia política O título de sua principal obra econômica O Capital indica qual lhe parecia ser o problema central da economia Capital de acordo com Marx náo significa apenas o meio artificial de produção mas também um ma chado de pedra na mão de um homem primitivo um arco na mão de um caçador grego ou um tear mecânico na Inglaterra do século XDC O capital é a riqueza produtiva sob a forma peculiar que gera lucro O sistema predominante é denominado capitalismo porque os meios de produção sendo propriedade privada são uma fonte de lucro para seus proprietários os capitalistas É muito importante compreender a natureza do lucro com perfeita precisão pois o lucro está no centro da ordem social e econômica vigente O lucro não é apenas qualquer excedente econômico tal como o que poderia surgir em economias primitivas ou feudais nem tampouco o capital é apenas a riqueza produtiva Lucro e capital são de modo singular mutuamente complementares O lucro aparece diretamente como parte do preço de uma mercadoria parte esta que o proprietário dos meios de produção o capitalista denominação que não lhe foi aplicada primeiro por Marx pode reivindicar De que exatamente consiste sua parte Qual é sua origem e o que dá ao capitalista o direito de reivindicála A economia política clássica fornecera alguma explicação que serviu como ponto de partida para a análise do próprio Marx A economia política clássica principiara com a afirmação de que o trabalho é a fonte do valor que a quantidade de trabalho incorporado a uma mercadoria é portanto relacionada à quantidade de valor neste bem e que os valores relativos de dois bens devem ser proporcionais às quantidades relativas de trabalho a eles incorporadas A suposição correlata é que aquele que criou este valor pelo acrés cimo de seu trabalho ao objeto tem o direito de ser o proprietário de seu produto Os economistas clássicos concordavam que quando a produção era realizada por indiví duos para si mesmos utilizando suas próprias mãos e os implementos criados por eles ou por eles possuídos cada homem poderia reivindicar para si o que quer que pro duzisse Porém tal condição cessaria quando a íim de dar continuidade à produção os homens necessitassem de acesso a terras e instrumentos pertencentes a outros A partir daí esses outros teriam direito de participação no produto Evidentemente o lucro deixando de lado o problema dos aluguéis é contemporâneo à acumulação da propriedade produtiva por alguns membros da sociedade Houve de acordo com o entendimento clássico um período da vida humana em que todo homem era capaz de produzir de forma independente e depois houve e ainda há um período em que a terra foi objeto de apropriação e foi viabilizado o acú mulo de bens duráveis No período anterior da vida humana a teoria do valortrabalho aplicavase na sua forma simples e direta No período posterior o produto do trabalho é compartilhado com capitalistas e latifundiários Leitores das doutrinas de Hobbes e 7 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Locke mas em particular do último devem recordarse da divisão de toda a história humana entre um período no estado de natureza e um período no estado da sociedade civil Estamos agora prontos para compreender de modo mais pleno a afirmação de Marx de que a economia política clássica atribui às instituições do capitalismo o status de condições naturais prospectivamente atemporais A economia política clássica e a filosofia política a que estava ligado consideravam como definitivamente relativo a uma determinada época o progresso do homem da condição prépolítica à condição política Essa mesma transformação fundamental foi concluída ou consumada com a substituição da monarquia absoluta pelo governo constitucional pois entre um súdito e um senhor arbitrário só existe a lei da natureza Essa crucial mudança no estado hu mano foi relacionada pela economia política clássica à acumulação e proteção da pro priedade dos meios de produção Desta forma as instituições da propriedade passam a assemelharse e a ter o mesmo estatuto que a sociedade civil ou civilização a vida política em si Nem Hobbes nem Locke nem os economistas políticos clássicos mi ravam além da sociedade civil em busca de aperfeiçoamentos ainda mais radicais para a idade viril do homem Foi debcado a cargo de Rousseau suscitar a ampla questão acerca da validade tanto da sociedade civil como da propriedade e assim abrir caminho para que seus sucessores procurassem um horizonte além da sociedade civil Marx ao rejei tar a visão de que a propriedade e a sociedade civil ou digamos a vida política eram a condição absoluta para a existência humana digna em paz e prosperidade negou o es tado natural e permanente das leis do comércio Rejeitou a implicação da economia política clássica de que o lucro e a propriedade privada dos meios de produção estão aqui para ficar tanto quanto a sociedade política e pelos mesmos motivos Decerto Marx não admitia que a transição do estado de natureza para o estado da sociedade política fosse a mudança absolutamente transcendental na vida humana Tampouco admitia que fosse transcendental a mudança paralela da aplicação pura para a aplicação diluída da teoria do valortrabalho ou mesmo que fornecesse um motivo válido para a compreensão das instituições econômicas vigentes O íato de que havia uma dificuldade nesse modo de explicação foi observado por Ricardo ao examinar a teoria de valor e salários de Adam Smith Ricardo apontou que se fosse verdade em um sentido simples que uma mercadoria que demandasse um dia de tra balho para sua produção contivesse o valor de um dia de trabalho em seu valor então quando essa mercadoria fosse trocada por trabalho deveria comprar seu igual valor ou seja um dia de trabalho A formulação resumida seria que o trabalho incorporado é igual ao trabalho demandado para qualquer mercadoria Em outras palavras não haveria lucro um trabalhador poderia ser contratado por uma semana somente se seu produto durante a semana ou o valor total dele fosse pjo a ele como seu salário O feto de que o salário não é igual a todo o produto obrigou Ricardo e Smith também aliás a encontrar uma explicação alternativa uma explicação que atribuísse o valor da produtividade ao capital como trabalho congelado Marx rejeitou as explicações de Karl Marx 729 6 David Ricardo Principies o f Political Economy and Taxation i I lucro salários c valor por Ricardo e outros clássicos porque estas explicações ao darem conta da diferença entre o trabalho incorporado e o trabalho demandado por uma mercadoria náo levam a uma condenação do lucro como resultante da exploração o que Marx acreditava correto Examinemos iora sua própria explicação Marx começa por apontar um problema que emerge da troca de mercadorias quando uma mercadoria é trocada por outra é indicado um denominador comum en tre duas coisas que nada parecem ter em comum Suponhamos que um par de sapatos seja trocado por três camisas Os sapatos e as camisas são tão perfeitamente desiguais ao ponto de serem incomensuráveis Como se pode jamais chegar a uma proporção de três para um ou qualquer outra Para lidar com o problema da comensurabilidade Marx recorre a uma distinção tradicional em economia política a distinção entre valor de uso e valor de troca porém a modifica Substitui a distinção entre valor de uso e valor de troca consideraila fimdamental pela economia poUtica pela distinção entre valor de uso e valor O motivo para isto é que Marx não considera a troca como uma instituição permanente e natural mas sim como histórica e transitória No entanto o valor de troca é derivado do valor adequado e no intuito de compreender o capi talismo é necessário entender o valor de troca e portanto o valor puro e simples Retornando agora às duas mercadorias observamos que são desiguais na medida em que consideramos seu valor em uso ou o seu caráter qualiutivo pois cada uma delas foi projetada paia atender a um determinado fim a que a outra não pode atender Ora um sapato vem a ser um sapato em virtude de ter sido produzido pelo traba lho específico de um sapateiro A camisa é uma camisa porque é produto do trabalho de confecção da camisa A diferença entre o trabalho de fabricação de calçados e de camisas é a fonte da diferença qualitativa entre sapatos e camisas Marx afirma ainda que assim como as duas mercadorias podem e na verdade devem ser encaradas não apenas como diferentes mas também como tendo valores comensuráveis de modo que o trabalho que as produziu possa ser considerado não apenas como trabalho quali tativamente diferenciado Deve ser visto também como trabalho humano homogêneo ou indiferenciado como a geração de determinada quantidade de movimento sobre determinada massa por meio de determinado gasto de eneiia humana Como habi lidades portanto os tipos de trabalho humano são apenas diversificados mas como trabalho fiísico todo trabalho é igual e mensurável em unidades de tempo de acordo com sua duração Deste último fiito depende a mensurabilidade e comensurabilidade dos valores A fórmula resumida seria o trabalho humano diferenciado produz valores de uso e diferenças qualitativas entre as mercadorias enquanto o trabalho humano in diferenciado produz valor simples e comensurabilidade quantitativa entre as mercado rias Assim é em seu caráter como produtos do trabalho humano indiferenciado não como produtos do trabalho específico destinado a satisíàzer necessidades específicas que as mercadorias possuem valores comensuráveis e podem ser trocadas Deve ser salientado que Marx não demonstra a designação do trabalho por si só como fonte do valor mas o afirma como algo autoevidente 7 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ver por examplo O Capital i p 45 A explanação de valor oferecida anteriormente fornece apoio à definição e elabo ração da noção de mercadoria por Marx Para ele uma mercadoria é um bem produ zido de modo privado para fins de troca ou venda isto é a troca por dinheiro Desta forma o capitalismo poderia ser descrito como um sistema de produção de mercado rias e como tal tendo como base a desordem e a distorção Racionalmente a soma de todas as forças de trabalho individuais na comunidade é igual ao conjunto da força de trabalho disponível à sociedade para a satisfação de todas as suas necessidades Para que os homens vivessem sem distorção em seus negócios sua força de trabalho deveria aplicase direto à satisfação de suas necessidades e não à produção para a troca Todavia porque que os meios de produção são propriedade privada a produção não é realizada diretamente para a sua finalidade verdadeira a satisfação das necessidades mas para a especial vantagem dos proprietários dos meios de produção O caráter social do tra balho é portanto mediado e distorcido pelo modo de produção O que Adam Smith considerava como uma virtude peculiar da iniciativa privada a saber o desempenho voluntário de uma íimção social sob a influência de um desejo de vantem pessoal é considerado por Marx como o terreno da iniqüidade e da instabilidade no sistema vigente Podemos compreender por que chegou a essa conclusão se examinarmos mais detidamente o modo de produção capitalista tal como Marx o interpretou São indispensáveis para o capitalismo a propriedade privada dos meios de pro dução e a existência de um conjunto de homens que ao mesmo tempo não possui nenhum meio de produção e é perfeitamente livre no sentido de não serem ligados aos donos dos meios de produção por qualquer laço pessoal de dever ou direito Para viver aqueles que não possuem propriedades devem emprarse no trabalho com as máquinas e as terras dos proprietários Com efeito os não proprietários vendem aos proprietários uma mercadoria denominada força de trabalho e não trabalho Força de trabalho significa a capacidade de trabalho durante um determinado período tra balho significa a efetiva duração do trabalho Para Marx é crucial a distinção A força de trabalho é uma mercadoria sob o capitalismo o que significa que é algo produzido para ser vendido e que possui um valor determinado pela quantidade de trabalho congelado ou nela incorporado No entanto o que se quer dizer com a quantidade de trabalho incorporada na capacidade de um trabalhador de trabalhar oito horas A resposta é a quantidade de trabalho exigida para produzir as necessidades que devem estar disponíveis para o homem que forneceu a força de trabalho em questão De modo um pouco mais amplo o valor de um dia de força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessária para produzir a subsistência do trabalhador e de sua família a fim de manter o nível da oferta de força de trabalho não só de um dia para o outro mas de geração em geração Vamos supor que a fim de fornecer todos os materiais de subsistência necessários para sustentar uma força de trabalho de oito horas devemse realizar seis horas de trabalho Então o valor de luna força de trabalho de oito horas seria igual ao valor de uma produção de seis horas Seria obtido então o produto de oito horas ao dar se por ele o produto de seis horas O valor gerado pela força de trabalho empregada Karl Marx 731 durante as duas horas de sua aplicação enquanto não é p í é chamada por Marx de maisvalia esta é a base do lucro O lucro só existe porque uma parte da força de traba lho do trabalhador tem como resultado um produto pelo qual ele não é po Em certo sentido porém o trabalhador não está sendo prejudicado Marx se esforça para salientar que a força de trabalho é comprada por seu valor integral o seu valor entendido como sendo rigidamente sujeito à teoria valortrabalho de todas as mercadorias inclusive a força de trabalho em si Assim o homem é po integralmente por sua força de trabalho mas não por seu trabalho Com esta formulação acreditava Marx ter resolvido o proble ma que a economia política clássica não cons iu esclarecer com consistência o pro blema causado pela desigualdade do trabalho incorporado em um produto e do traba lho exigido por ele Sua solução depende da distinção entre trabalho e força de trabalho Por meio desta radicalização da teoria do valortrabalho que aplica à força de trabalho em si Marx pode argumentar que foi trazida à luz uma grave contradição oculta do capita lismo a relação entre empregador e empregado é ao mesmo tempo prejudicial e não prejucbcial No sentido de que não é prejudicial ninguém pode ser responsabilizado individualmente a compra e a venda da força de trabalho sáo realizadas pelo valor total de acordo com as regras do mercado Na medida em que é prejudicial porém demanda correção A conclusão de Marx é de que o abuso exige a abolição do sistema ao invés de uma mudança das regras dentro do sistema jamais bastaria uma reforma porque nenhuma reforma seria capaz de eliminar a compra e a venda da força de trabalho Esta contradição é campo fértil para muitas mais Por exemplo da proposição de que o lucro se origina no consumo da força de trabalho pelo capitalista decorre que se pode aumentar o lucro ou pelo consumo de mais força de trabalho por meio do aumento da quantidade de trabalho que é produzido por uma determinada força de trabalho digamos por aproximação pelo aumento da produção por dia útil Entretanto o aumento da produção por dia aumento de produtividade é obtido por meio do aumento da utilização de máquinas Aumentar a utilização de máquinas se opóe ao aumento do consumo da força de trabalho A íim de evitar que a introdução de máquinas elimine o consumo rentável da força de trabalho é preciso prolongar a jornada de trabalho Marx portanto chega à conclusão de que a introdução de má quinas leva e levará ao prolongamento da jornada de trabalho e à formação de uma grande população de cronicamente tecnologicamente desempregados Aqui e em outras partes a análise econômica de Marx levouo a fazer algumas previsões grossei ramente incorretas quanto às condições em uma economia capitalista amadurecida Náo porque tivesse grande interesse seu poder de previsão em si mesmo mas porque devido ao fato de que grande parte de seu ímpeto revolucionário é justificado pelos horrores que alega prever no florescimento do capitalismo seus erros de previsão vêm a ter um efeito singular na credibilidade da análise sobre a qual repousam Continuando A luta incansável pelo lucro faz com que a economia e a sociedade capitalistas estejam em um estado de fiuxo interminável Sob a chibata da concorrência 7 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 8 Ibid IV XV 3 p 4 4 5 que tende a reduzir os lucros os capitalistas precisam constantemente revolucionar o processo de produção a fim de barateálo As antigas habilidades tornaramse obsoletas e é reduzido o nível médio de habilidade exigida da força de trabalho na medida em que os movimentos das mãos do artesão são analisados e copiados pelas máquinas Uma vez que a condição fundamental da vida econômica capitalista é uma força de trabalho livre sem propriedades para com a qual os proprietários não têm deveres todo o ferdo da mudança tecnológica recai sobre os assalariados sob a forma de desemprego e po breza No entanto a evolução tecnológica em si não é peculiar ao capitalismo mas no capitalismo é que se torna uma íbnte de miséria De forma dialética Marx argumenta que em seus abusos o capitalismo serve para revelar um problema humano transcapi talista que pode ser resolvido somente pela superação do capitalismo A indústria moderna através de suas catástrofes impõe a necessidade de reconhecer como uma lei fundamental da produção a variação do trabalho consequentemente a aptidão do trabalhador para o trabalho variado consequentemente o desenvolvimento do maior número possível de suas várias aptidões Tornase uma questão de vida ou morte pata a sociedade adaptar o modo de produção ao fundonamento normal desta lei a Indústria Moderna de fàto obriga a sodedade sob pena de morte a substituir o tra balhador de hoje prejudicado pela repetição de uma só e única operação trivial ao longo da vida e assim reduzido a um mero fragmento de homem pelo indivíduo plenamente desenvolvido apto para uma variedade de trabalhos pronto para enfrentar qualquer mudança na produção e para quem as diferentes funções sociais que realiza são não mais que diversos modos de dar livre curso a seus próprios poderes naturais e adquiridos Devese salientar que a tendência das mudanças tecnológicas na verdade não tem sido de reduzir o nível médio de habilidade da força de trabalho ou de acarretar uma queda dos salários reais e de criar uma crescente exército de reserva industrial dos desempregados Nem há qualquer indício em lugar algum do mundo de a que a tecnologia moderna pode ser compatibilizada com uma institucionalização do tra balhador polivalente Marx analisa mais aspeaos da vida econômica capitalista do que podemos exami nar aqui Sua maa obsessiva ao longo da discussão é mostrar que em virtude daquilo que o capitalismo é em virtude de ser intrinsecamente contraditório o seu desenvolvi mento será necessariamente sua dissolução quanto mais se realiza e se aproxima de seu ápice mais destrói a si mesmo e se aproxima de sua queda Marx fbmece um extraordi nário resumo de seu entendimento do assunto no final do Volume I de O Capitak Vimos na Pane IV quando analisamos a produção da maisvalia relativa dentro do sistema capitalista todos os métodos para aumentar a produtividade social do trabalho são efetivados à custa do trabalhador individual todos os meios para o desenvolvimento da produção transformamse em meios de dominação e exploração dos produtores mu tilam o trabalhador tornandoo um fragmento de um homem degradamno ao nível de um apêndice de uma máquina destroem todo resquício de encanto em seu trabalho KarlMaix 733 9 Ibid 9 p 534 e o transformam em uma odiada labuta aíàstamno das potencialidades intelectuais do processo de trabalho na mesma proporção em que a ciência é incorporada neste como um poder independente distorcem as condições em que trabalha sujeitamno durante o processo de trabalho a um despotismo ainda mais odioso por sua mesquinhez trans formam o seu tempo de vida em tempo de trabalho e arrastam sua esposa e filhos para baixo das rodas da força destruidora do capital Porém todos os métodos para a produ ção de maisvalia são ao mesmo tempo os métodos da acumulação e toda a extensão da acumulação tornase novamente um meio para o desenvolvimento desses métodos Seguese portanto que na mesma proporção em que se acumula o capital a sina do trabalhador seja seu pagamento alto ou babto deve piorar A lei por fím que sempre equilibra o excedente de população relativo ou o exército de reserva industrial na me dida e na eneigia da acumulação esta lei prende o trabalhador ao capital de modo mais firme que as correntes de Vulcano amarraram Prometeu ao rochedo Estabelece uma acumulação de miséria correspondente ao acúmulo de capital A acumulação de riqueza em um polo é portanto ao mesmo tempo no polo oposto ou seja do lado da classe que produz seu próprio produto sob a forma de capital a acumulação de miséria sofrimento no trabalho escravidão ignorância brutalidade degradação mental Marx acreditava que quando finalmente a burguesia em sua a maior parte ti vesse sido reduzida à proletarizaçáo pela concorrência selvíem e o proletariado tivesse sido reduzido à pobreza gritante pelas leis de acumulação e especulação então ocor reria a revolta e a humanidade estaria às vésperas da história Não é ir longe demais afirmar que a economia de Marx consiste na tentativa de mostrar como essa fatídica transformação está implícita na teoria do valortrabalho tal como concretizada nas práticas do capitalismo Se essas doutrinas de Marx são sólidas e até que ponto o são é uma questão de interesse mais do que trivial para o mundo A questão é suscitada em duas partes se o que Marx considerava como inevitável realmente o é e se são aceitáveis as premissas de seu sistema É preciso agora ocuparmonos de tais indagaçóes As previsóes de Marx referemse a dois temas o destino do capitalismo e o caráter da sociedade socialista Discorre ele longamente sobre o primeiro como vi mos e em grande medida faz previsóes incorretas Um século após ter ele chegado a essas conclusóes é justo negar que a introdução das máquinas deve obrigatoriamente levar ao prolongamento da jornada de trabalho que deve haver maciço e crescente desemprego tecnológico que a burguesia será necessariamente proletarizada e o prole tariado pauperizado e que o socialismo é o ápice do capitalismo As previsóes de Marx baseavamse na crença de que uma ordem econômica tem vida e ser próprios que se assemelha à articulação de partes inertes e quando de uma forma ou outra é deslan chada íunciona de modo mecânico tão pouco sujeita a alterações de direção quanto um projétil disparado por uma arma Marx tinha certa aversão pelo utilitarismo mas tendia tanto quanto qualquer outro representante da doutrina utilitária a comparar a 7 3 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid XV 4 p 708709 11 Ver ibid xxxii vida social a um silogismo A lógica é universal em extremo igual em todos os lugares e em todos os momentos Expressa a razáo mas nada tem a aprender com a prudência Marx fez concessões embora absolutamente insuficientes para tais infiuências simples e náo dialéticas como as leis leis para limitar a duração da jornada de trabalbo leis para incentivar ou obrigar à negociação coletiva para aprovar indenizações trabalhis tas imposto de renda progressivo segurodesemprego benefícios para idosos leis para regulamentar as bolsas de valores para promover o pleno emprego para proteger a concorrência para controlar a base monetária para apoiar a agricultura para socor rer os doentes para reprimir a adulteração de alimentos para obrigar os jovens a se sujeitarem a serem educados para garantir a poupança e mil outras leis não menos relevante entre elas que a lei que coloca a criação de leis sob a influência das multidões dominantes que Marx confundiu com um proletariado miserável Marx era um astuto observador jornalístico dos assuntos políticos mas em seus ensinamentos nada ad mitiu de significativo para a poiítica isto é à ponderação que descartava como mera reforma Postulou o homem econômico com confiança tão limitada quanto qual quer economista político embora com uma retórica mais admirável As previsões de Marx não são apenas do tipo funesto Por vezes Marx íãz alusão ao caiáter da vida na época póscapitalista e fornece breves esboços do mundo comu nista Não existe maneira de testar empiricamente suas visões do socialismo porque todas as sociedades socialistas existentes afirmam estar em um estado de transição para o comunismo propriamente dito e cada disparidade entre a expectativa e a realidade é explicada como temporária Se todas essas disparidades são na verdade temporárias ou quantas podem ser temporárias depende da solidez do terreno sobre o qual repou sam as expectativas de Marx Voltamonos para essa pergunta como conclusão O princípio governante da sociedade marxista socialista é de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades Esta máxima é adequada como lei íundamental entre amigos leais sábios e incorruptíveis dedicados um ao outro com uma benevolência absolutamente altruísta Entre esses amigos náo só nenbum indivíduo procuraria vantagens próprias à custa dos outros como jamais lhe ocorre ria a ideia de fezêlp Neste sentido seria transcendido o dever como dever aquilo que dita o mero sentido de dever a um homem capaz de oísmo seria o desejo mais espontâneo do homem como membro da sociedade íiraterna Seu dever não lhe pare ceria um dever A sociedade marxista seria uma sociedade de bilhões de amigos unidos cordialmente na mais rara e sensível união harmônica É possível imnar que houvesse uma grande multidão de homens vivendo jun tos sem qualquer ameaça de coerção que os impedisse de ofender uns aos outros mas que sua sociabilidade sem coação refletiria não sua bondade mas uma total indiferen ça a extinção de todos os impulsos revigorantes De modo enfetico não é isso que pensa Marx seus socialistas estariam vivos e no auge de toda a sua capacidade cada um fortemente ativo Sua visão da vida para a humanidade em geral é o que os pen sadores da Antiguidade concebiam como a mais elevada possibilidade aberta para os mais sábios e melhores o amor mútuo de alguns espíritos nobres elevados acima de Karl Marx 735 qualquer desejo mesquinho livre de qualquer traço de inveja ou ambição mundana de boa vontade partilhando aquele bem de valor inestimável que não se afasta de seu possuidor quando este o confia a outro e que é multiplicado quando dividido sendo este bem a sabedoria Podese compreender a noção da quintessência da justiça ma terializandose entre os sábios pois a sabedoria excita a admiração que gera amor e a sabedoria é um bem pelo qual os homens não podem lutar de modo hostil mas apenas de forma harmoniosa As condições para a benevolência racional seriam plenamente atingidas entre os poucos que desejam um bem cuja busca não corrompe A sociedade perfeita é portanto aquela em que não se pode distinguir entre a filosofia como regra da vida e a justiça que também é a regra da vida Na sociedade perfeita a justiça ad ministraria a si mesma e seria portanto perfeitamente pura porque náo marcada pela necessidade de coagir de punir ou de enganar Podese dizer que o desaparecimento da justiça na íilosoíia eqüivale ao desaparecimento do político no filosófico Não poderia ser descrita a sociedade perfeita exceto a partir da premissa de que existe algo como a filosofia que alguns homens consideramna como o maior bem que mais do que alguns poucos jamais poderão considerála desta maneira e que por tanto é da natureza das coisas que a justiça e a sociedade política ou o govemo não se dissolverão na filosofia O marxismo sonha com o desaparecimento da justiça e da so ciedade política não na filosofia é evidente mas na economia racional e portanto para a massa da humanidade não apenas para os poucos infinitesimais O sistema econômico que seria aprovado como racional por Marx não seria obviamente a economia liberal em que o homem econômico encontra ampla esfera de ação para a sua racionalidade Essa racionalidade que é na verdade apenas a ma quinação autointeressada é vista por Marx como sendo contagiada pela contradição Uma racionalidade que fosse autocontraditória serviria adequadamente como fonte de ação em um sistema que busca a prosperidade através da pobreza a liberdade através da subordinação e o bem comum através da emancipação da autopreferência A filosofia política prémarxista ou pelo menos préhegeliana tanto antiga como moderna caracterizavase por uma moderação que lhe permitiu aprovar regimes que alcançam a razão por meio do mito a liberdade pela coerção ou a sociabilidade pelo egoísmo Indóceis e irrefletidos como são os homens ainda assim podem vir a ser receptivos à vida social se for possível colocálos sob a orientação ou de homens de boa índole ou de instituições astutas que jogam uns contra os outros os motivos mais bai xos dos homens a fim de obter um resultado salutar Em ambos os casos concebiase a meta ou resultado como tendo extrema importância sem mencionar considerações tais como o fim ser dado pela natureza ou o fim justificar os meios Não podemos avaliar aqui até que ponto Marx foi afetado pela tendência kantiana de desvalorizar as simples finalidades mas é certo que Marx repudiou a disposição da tradição antiga e o entusiasmo das tradições modernas para fazer as pazes com as fraquezas da natureza humana apesar de não se render a elas e se contentar com a sociedade composta por homens tal como são Marx sonhava que a condição humana em que as finalidades boas seriam procuradas pelos homens de bem usando apenas bons meios e reagindo 7 3 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y apenas a bons motivos porque os possui A base ou pressuposto de seu sonho era a geração de um novo homem ou a reneração do homem e o instrumento dessa regeneração seria a ecxnomia racional corretamente entendida Inesperadamente vemos agora que se desvenda um fundamento de concordân cia entre os prémarxistas antigos e modernos quanto a este ponto tão importante a vida política repousa sobre a imperfeição do homem e continua a existir porque a natureza humana impede a elevação de todos os homens ao nível de excelência A conexão entre o governo civil e a imperfeição do homem é expressa por Rousseau por exemplo sob a forma da distinção entre Estado e sociedade os homens podem ser sociais enquanto não corrompidos mas na comunidade política são presas e predadores uns dos outros No início de Common Sense Senso comum escreveu Thomas Paine A sociedade é produzida por nossas necessidades e o governo por nossa maldade a primeira promove nossa felicidade de modo positivo pela união de nossas afeições a última de modo negativo pela restrição de nossos vícios A primeira é um patrono o último um carrasco Podese dizer que Rousseau sugeriu através da doutrina da perfectibilidade do ho mem que o govemo pode ser gradatívamente substituído pela sociedade na perfeita liberdade de autogpvemo a coerção perde a maior parte de sua íbrça Mas Rousseau não supunha de forma alguma o total desmoronamento do govemo na sociedade pois não supunha que todos os homens viessem a ser íUosóíicos nem que houvesse qualquer substimto perfeito para a racionalidade plena dos homens o que tornaria dispensáveis a coerção e a retórica de todos os tipos quer dizer a vida política Em poucas palavras não esperava que o egoísmo comum simplesmente desaparecesse do meio geral dos homens O que em Rousseau era uma sugestão limitada embora enfática passou a ser em Marx o núcleo dogmático de um prognóstico confiante uma propEanda estridente e uma incitação revolucionária o Estado ou ordem política definhará completamente e a humanidade homogênea viverá socialmente sob o comando da benevolência ab soluta de cada um s n d o sua habilidade a cada um segundo sueis necessidades O dever náo mais será cumprido de forma correlata ao atendimento do interesse egoísta A ligação entre o dever e o interesse quer dizer a subordinação do dever ao interesse será rompida de uma vez por todas pela abolição das categorias dever e interesse Serão abolidas pela revisão das relações de propriedade pela inauguração de uma nova economia que conduzirá à plena perfeição da natureza humana por meio da transcen dência da produção pela troca Em um resumo bastante limitado podese dizer que a radicalização de Rousseau por Marx repousa na suplantação da razão filosófica pela razão histórica A razão filo sófica a inteligência dos seres humanos individuEiis estando presente entre os homens de forma desigual não pode dispensar a sociedade política com sua coerção e retórica caso se pretenda evitar a calamidade Assim acreditava a tradição filosófica A doutrina Karl Marx 737 12 Cf a sentença com que Montesquieu começa I iii de The Spirit o f the Laws de Marx é de que há uma razáo inerente ao curso da história a história abomina con tradição tão profundamente quanto jamais se imaginou que a natureza abominasse o vácuo Se contradição significa mais do que um choque de interesses isso não nos é informado Seja como for a inviabilidade de qualquer contradição individual é trans formada pela filosofia da história na própria inviabilidade da contradição A filosofia da história tenta comunicar a sua confiança de que a contradição deve eliminar a si mesma agindo por meio do descontentamento dos homens afligidos com os sintomas das contradições que existem na sociedade A gradual resolução das contradições e o movimento do homem em direção a uma condição livre de contradições merecem ser chamados de a expressão da razão histórica Suplantam ou conquistam a razão filosófica ou a inteligência dos indivíduos não só no sentido óbvio de que através da evolução histórica da natureza humana a distribuição desigual de inteligência deixará de ter relevância política Quando for gerada a nova raça de homens pela propriedade comum dos meios de produção todas as antigas categorias naturais do direito tom barão diante da lógica da história e homens subfilosóficos viverão em uma sociedade sem coação e livre de mitos isto é perfeitamente racional tal como se pensava que somente os mais raros dentre os homens fossem capazes de viver porém de modo ainda mais emancipado que os mais raros que nunca usufiuíram do benefício de um ambiente perfeito As multidões de homens serão condicionadas a alcançar as alturas pela abundância de bens produzidos e distribuídos sem qualquer oposição do interes se Marx parece acreditar que se os homens sáo divididos pela escassez seriam unidos pela abundância Estaríamos mais dispostos a ser convencidos disso se houvesse razões para crer que algum dia será impossível distinguir homens de herbívoros no pasto O marxismo é famoso por ansiar pelo fim náo somente da vida política mas tam bém da religião A religiáo é a crença na existência de um reino do todo onde há uma retificação para cada defeito do mundo terrestre Aqui há morte lá existe vida Aqui a iniqüidade passa despercebida ou fica sem puniçáo lá é registrada e castigada ou se estiver além de qualquer puniçáo humana recebe o castigo divino aqui embaixo mes mo A bondade que é ignorada ou ridicularizada na terra é levada em conta e honrada no céu Pode ser sustentada a crença de que o todo é bom ou tende a sêlo mesmo que a parte visível do todo seja imperfeita pelo argumento de que a parte invisível compen sa perfeitamente as deficiências perceptíveis por nossa visáo Estaríamos muito longe de nosso caminho se tentássemos comparar os ensinamentos das tradições teológicas e filosóficas no que diz respeito a esta questão podemos observar porém que a tradi ção filosófica da Antiguidade também ensinava que é boa a natureza como um todo No entanto não é boa de modo tão inequívoco que possa tornar supérflua a coerção e a retórica que sustentam a vida política desta forma a bondade da natureza como um todo náo permeia toda a vida humana Acerca deste ponto fundamental existe uma base comum entre a filosofia da Antiguidade e a religiáo revelada para todos os efeitos a bondade do todo quer o todo seja a soma do natural e do sobrenatural ou o complexo sistema de forma e matéria da própria natureza não pode ser traduzida ou transformada na bondade da vida comum do homem Caracteristicamente no caso da 7 3 8 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y filosofia política moderna não foi afirmada a bondade da natureza como um todo a teleologia foi é claro rejeitada e a miséria do estado de natureza fisrtemente debatida A natureza precisava ser retificada ou melhor ser governada e seria encontrada uma indicação acerca do governo da natuteza nas leis da natmeza as leis da ciência e as leis da política e da economia A crença na possibilidade de conquistar ou dominar a natureza talvez tenha aberto caminho para a noção marxista de que é possível a perfeição da vida humana e não apenas possível mas previsível em uma sociedade sem classes Entretanto como foi discutido essa consumação não estava explícita nos ensinamentos da moderna filosofia política prémarxista Não antes de Marx afirmar a historicidade da própria natureza a absoluta perfectibilidade da natureza humana sob a influência das condições econômicas é que se supôs que a vida política e a reli gião deveriam desaparecer e ser substitmdas pela sociedade racional sem coação Somos levados pelas doutrinas do marxismo a reconsiderar alguns pontos de vista comuns Um deles é de que há uma profunda hostilidade entre a filosofia e a sociedade política porque a filosofia por seu questionamento irrestrito vem a expor a própria política às explosões do ceticismo enquanto o corpo político desconfiando das teorias e propenso ao filistinismo sempre ameaça com seu desprezo ou pior o tipo de homem que pensa No entanto por mais bem fundamentada que seja a suspeita mútua observamos que a filosofia com certeza a filosofia política clássica aiumenta que o homem é por natureza político e que a sociedade política é a sociedade verdadei ramente humana tendo em vista as características dos homens em geral Acreditouse que a filosofia ameaça a política vemos que na verdade a filosofia defendeu a política e que a previsão do fim da vida política teve de siardar a superação da filosofia pela história isto é pela doutrina da emenda da Natureza Outra opinião a ser revista é a de que entre filosofia e religião há em princípio uma guerra mortal uma afirmando a supremacia da razão a outra da fé Vimos que a filosofia pode ter como teve por muito tempo um terreno comum com a religião ambas tinham visões da natureza que não levavam à expectativa da sociedade perfeita dentro da ordem natural A objeção teórica à religião em nome de uma aspiração à sociedade perfeita teve de aguardar a superação da filosofia pela história Poderíamos resumir dizendo que a substituição da filosofia pela história era a condição necessária para a substituição da política e da religião pela sociedade e pela economia É este o cerne do marxismo O marxismo não é simplesmente mais um sistema político ou mais ixma ideolo gia Propõe nada menos do que o fim do Ocidente da vida política da filosofia e da religião como indica o resumo anterior Talvez devêssemos ansiar pelo fim do Ociden te mas não podemos saber se devemos fázêlo sem examinar racionalmente o projeto para suprimir a filosofia Esse exame racional fiiz parte da busca filosófica propriamen te dita Não nos podemos libertar da filosofia até porque é preciso filosofar para julgar Karl Marx 739 13 Ver anteriormente p 811 a íilosoíia Começamos a suspeitar da solidez do historicismo antifilosóíico de Marx Observar seus pontos fracos preparanos para admitir que a história pode dar espaço para as sociedades espiritualmente pobres a viabilidade das naçóes marxistas é um si nal não da solidez da profecia de Marx mas da vacuidade do historicismo otimista em que se baseou Temos todo o direito de concluir que a história é o ópio das massas L e it u r a s A Maix Karl and Engels Friedrich The Communist Manijèsto Manifist Der Kommunistiehen Partei Manifesto do Partido Comuinsa Marx Karl and Engels Friedrich lhe German Ideology Ed R Pascal New York International Pub lishers 1939 Part I Die deutsche Ideobge A ideologia alemá Marx Karl Jheses on Feuerbaeh Jhesen über Feuerbaeh teses sobre Feuerbach Marx Karl Capital New York Modern Library s d Livro I parte I cap i seções 1 2 4 Das Ka p italO Capital B Engels Friedrich Ludwig Feuerbach and the Outeome t f German Classieal Philosophy Ed C P Dutt New York International Publishers n d Cap iv Dialectical Materialism Ludwig Feuerbaeh und derAusgang der klassisehen deutschen Philosophie Ludwig Feuerbach e o resultado da filosofia alemá clássica Engels Friedrich Herr Fugen Dührings Revolution in Science AntiDühring Trans E Burns Ed C P Dutt New York International Publishers 1935 Part I Philosophy 7 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Friedrich N ietzsche 18441900 O jovem Nietzsche concebia o filósofo como um médico da cultura Sua própria filosofia é ao mesmo tempo um dinóstico da doença ou crise de seu tempo o século XDC como também a busca de sua cura Em seu primeiro livro publicado Die Geburt der Tragõdie aus dem Geiste der Musik 1872 O nascimento da trédia no espírito da música Nietzsche colocava suas esperanças em um renascimento da cultura alemâ através da música de Richard Wner Seu segundo livro Unzeitgemãsse Betrachtungen Considerações intempestivas conhecido em inglês como Thoughts OutofSeason Pen samentos fora de temporada consiste em quatro ensaios publicados em separado entre 1873 e 1876 Mais uma vez um deles é homenagem a Wagner Nietzsche logo parou de acreditar na cura que sugerira repudiando Wagner e perdendo a fé na possibilidade de um renascimento cultural alemão Assim entrou na segunda etapa de seu desenvol vimento uma fese caracterizada pela desilusão e por uma inclinação para o positivismo ocidental Simboliza isso o feto de ter dedicado a Voltaire seu terceiro livro Menschliches Alhsumenschliches Ein Buch fiir freie Geister Humano demasiado humano um livro para espíritos livres 1879 A posição final de Nietzsche é articulada em Also sprach Za mthustra Assim falou Zaratustra cujas quatro partes foram escritas e publicadas entre 1883 e 1885 e nas obras que se seguiram Contudo Nietzsche jamais repudiou mas apenas aprofundou sua avaliação de seu tempo como doente e problemático avaliaçáo esta que pode ser encontrada nos escritos de sua primeira fàse e as questões que susci tou nesta fese sâo problemas com os quais nunca debcou de lidar Justificase portanto iniciar uma exposição da filosofia política de Nietzsche com uma discussão sobre um de seus primeiros escritos o segundo ensaio de Considerações intempestivas O ensaio Vom Nutzen und der Historie fiir Nachteil das Leben Dos usos e desvan tagens da História para a vida publicado em 1874 é conhecido em inglês como The Use and Abuse ofHistory Usos e abusos da História Os pensamentos de Nietzsche 1 A dedicação aparece na primeira ediçáo do primeiro volume desta obra Chemnitz E Schmeitz ner 1878 Náo consta da traduçáo para o inglês em The Complete Works o f Friedrich Nietzsche Ed Oscar Levy Edinburgh and London T N Foulis 1910 v VI 2 Trad Adrian Collins New York The Liberal Arts Press 1949 estão fora de época porque visam ser contrários a seu tempo mas no entanto a serem uma influência sobre este tempo para o bem de um tempo futuro O ensaio é uma crítica de uma falha e defeito específicos do tempo o historicismo ao qual Nietzs che denomina o movimento histórico a tendência histórica ou o sentido histórico Acredita que seu tempo sofre de uma febre histórica maligna A crítica de Nietzsche ao historicismo é também seu confronto e crítica de Hel Na parte final do ensaio Nietzsche se refere a uma filosofia muito celebrada e conti nua creio que não houve nenhum momento decisivo perigoso para o progresso da cul tura alemá neste século que nâo tenha sido tornado mais perigoso pela enorme e ainda viva influência da íilosoíia hegeliana Hegel considera o homem contemporâneo como a perfeição da história do mundo o hegelianismo estabelece a soberania da história sobre outros poderes espirituais tais como a arte ou a religião para Hegel a fase superior e fi nal do processo de mundo conflagrouse em sua própria existência em Berlim Contra a doutrina de Hegel de que o processo histórico é um processo racional que no tempo de Hegel terminou em um momento absoluto em seu auge Nietzsche afirma que o pro cesso histórico náo é e nem pode ser terminado que a condusão da história não é apenas impossível mas também indesejável porque levaria a uma degeneração do homem e essa história não é um processo racional mas cheio de cegueira loucura e injustiça Assim poderia parecer que Nietzsche simplesmente efetua um retorno a um ponto de vista préhegeliano que considera a história como o reino do acaso e não uma dimensão do significado No entanto a crítica do historicismo por Nietzsche não nega a validade das premissas essenciais do historicismo e sua crítica de Hegel se baseia em uma área crucial de concordância com Hegel tal como revela uma análise mais profunda de Dos tisos e desvantagens da História para a vida O ensaio começa com um exame da vida dos animais Os animais esquecem cada momento assim que este se vai Viver inteiramente no presente sem memória do passado significa viver sem história O homem se recorda do passado e náo pode es capar dele o homem vive historicamente O homem também sofre com a consciência do passado e da passagem do tempo até porque esta consciência traz em seu bojo a consciência de que o homem é uma imperfeição imperfectível A felicidade depende da capacidade de esquecer e se entregar completamente ao presente Um homem que nada pudesse esquecer seria um homem totalmente infeliz pois veria apenas o fluxo e a mudança e não teria pontos fixos pelos quais se orientar Por outro lado o homem não seria homem sem a lembrança do passado Além disso é só através do desenvolvimento de seu sentido histórico e em virtude de seu poder de transformar o passado para uso do presente que o homem se elet acima dos outros animais e se torna homem O problema do homem é portanto encontrar o equilíbrio entre lembrar e esquecer o que é mais propício para sua vida como homem O grau e os limites da memória que tem o homem do passado devem ser estabelecidos pela medida 7 4 2 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o iin c A L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 3 Ibid p 34 4 Ibid p 552 em que o homem pode incorporar ou absorver o passado Um organismo saudável é aquele que instintivamente assimila do passado somente o que pode digerir o resto sim plesmente não percebe A linha divisória entre o histórico e o não histórico é o horizonte do organismo De acordo com Nietzsche Esta é uma lei universal um ser vivo só pode ser saudável forte e produtivo dentro de um determinado horizonte O horizonte do homem é constituído por seu conjunto fundamental de suposi ções sobre todas as coisas por aquilo que considera como a verdade absoluta que não pode questionar Seu conhecimento histórico deve ser cercado por uma atmosfera ahistórica de trevas que limita o sentido histórico do homem A esfera própria da história encontrase dentro e sob a atmosfera ahistórica que deve envolver o homem para que este perdure Nietzsche admite que existem usos bem como abusos da história Fala de três tipos de história que podem servir à vida A história monumental fornece ao homem de ação modelos de grandeza por sua representação dos grandes homens e acontecimentos do passado A história antiqudria voltase ao aspecto de preservação e reverência do homem imbuindoo com um amor salutar pela tradição É um benefício especial para os povos e raças menos dotados pois os mantêm a salvo de um cosmopolitismo inquieto e improdutivo A história antiqudria coloca aspectos obsoletos do passado diante das barras do tribunal e os condena mas ttaz à luz injustiças que sobrevivem do passado para que possam ser abolidas em prol do presente Entretanto Nietzsche preocupase mais com os abusos do que com os usos da histó ria Logo aponta a facilidade com que se pode fàzer mau uso de cada um dos tipos de his tória mencionados anteriormente A partir da história monumental podemse construir modelos de passadas grandezas que vêm a impedir o surgimento da grandeza presente A reverência ao passado que fomenta a história antiquaria pode ocasionar uma invalidação do presente Há sempre o perigo de que a história crítica arranque das raízes do passado mais do que merece ser extirpado Além disso Nietzsche liga a eficácia de cada tipo de história a sua cegueira para com a verdade completa Ao não prestar atenção suficiente às condições necessárias para o suimento da grandeza a história monumental cria a ilusão de que por ter sido possível a grandeza esta é ainda possível o que não é necessariamente o caso Ao cultivar uma reverência geral para com o passado a história antiquária é obri gatoriamente indiscriminada e elogia aspeaos do passado que não merecem elogios A história crítica não consegue perceber até que ponto os homens são resultado do passado que procuram condenar Os usos do passado para o presente dependem de uma violação da verdade sobre o passado a história útil não pode ser história científica A ciência e a exigência de que a história se torne uma ciência perturbam a relação adequada entre a história e a vida A ciência histórica é motivada pelo desejo de saber e não pelo desejo de servir à vida e impõe à atenção do homem mais conhecimento histórico do que ele é capaz de absorver ou digerir de modo adequado Neste ponto a história não serve mais à vida a história perturba a vida F r ie d w c h N ie t z s c h e 7 4 3 Ibid p 7 Nietzsche apresenta ao leitor um catálogo de calamidades que resultam de um excesso de história Uma delas é que os homens confrontados com um espetáculo de história tâo vasto que perde o sentido para eles virão a pensar em si mesmos como epi goni a quem tendo chegado tarde à cena nada resta a íàzer Se Hegel estivesse correto se a história tivesse terminado os homens modernos seriam de íàto epigoni Hegel está errado mas sua crença de que está certo fez com que os homens ajam como se fossem epigoni Homens que não têm outra missão a cumprir ou homens que acreditam que nada mais há a ser feito decerto se degenerarão pois o que há de melhor no homem são suas aspirações No entanto nem a afirmação de que o processo histórico está terminado nem a afirmação de que o processo histórico é racional são as afirmações mais fundamen tais do historicismo O historicismo afirma a importância avassaladora da história a determinação da vida e do pensamento do homem pela história e a impossibilidade de transcender o processo histórico Nietzsche aceita esta afirmação da onipotência da história e sua aceitação constitui uma área nevrálgica de concordância com Hegel Podemse resumir as calamidades que Nietzsche atribui a um excesso de conhecimen to histórico com a afirmação de que o excesso de conhecimento histórico destrói os horizontes do homem Não há contudo nenhum horizonte permanente do homem como homem As premissas fundamentais dos homens sobre as coisas são imanifestas insustentáveis historicamente variáveis e historicamente determinadas Não existem nem coisas eternas nem verdades eternas só há fluxo e mudança o que Nietzsche denomina a finalidade do viraser Ao mesmo tempo em que são verdadeiras as dou trinas que afirmam a finalidade do viraser são elas também fetais A história como a ciência universal do viraser é verdadeira porém mortal Se a vida humana só pode prosperar dentro de um determinado horizonte que os homens acreditam ser a verdade absoluta mas que na realidade é apenas um dos muitos horizontes possíveis então a vida necessita de ilusões e é mortal a verdade que expõe o horizonte como um simples horizonte Há então um conflito entre a verdade e a vida ou entre a vida e a sabedoria Em tal conflito de acordo com Nietzsche é preciso escolher o lado da vida Não pode haver vida sem sabedoria mas não pode haver sabedoria sem vida No entanto é impossível aceitar as ilusões que a vida exige se sabemos que são ilusões Os mitos são úteis apenas enquanto são confundidos com a verdade O ho rizonte de um homem é seu mito mais abrangente e lhe permite viver porque pensa nele como a verdade Compreender um horizonte como horizonte é estar além desse horizonte No mínimo a contínua aceitação de um horizonte desacreditado precipi taria o homem em um degradante autoengano mas Nietzsche está preocupado com o enobrecimento do homem Se há uma tensão entre a sabedoria e a vida esta não pode ser resolvida pela preferência pela vida Chegouse a um impasse 7 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Ibid p 6 1 Todavia Dos usos e desvantagens da história termina com uma nota de esperança afirmando uma harmonia entre a vida e a sabedoria Após ter o historicismo revelado o caráter arbitrário de todos os horizontes humanos o homem é submetido às ondas sem esperança de um ceticismo infinito mas Nietzsche professa ter terra à vista o homem pode recuperarse do mal da história Tal recuperação só é possível se for provado que o historicismo é fàlso ou pelo menos não totalmente verdadeiro Proviso riamente em Dos usos e desvantagens da história e de forma mais abrangente em seus últimos escritos Nietzsche tenta superar e transcender a visão historicista aquilo que começa como o questionamento da verdade objetiva do historicismo termina como um questionamento da própria possibilidade da verdade objetiva O tipo de história que culmina no historicismo é uma história que se entende como científica e objetiva O historicismo é uma afirmação teórica baseada em uma análise de fenômenos históricos Nietzsche questiona se o fenômeno histórico pode ser apreendido pela história objetiva e científica e seus historiadores questiona se a história entregará seus segredos para a investigação desinteressada A história é feita pelos atores históricos por grandes homens Os homens que fazem história são ho mens dedicados que têm um compromisso com uma causa que agem dentro de um horizonte de compromisso acreditando de modo ahistórico na validade absoluta de sua tentativa Os grandes homens da história foram os grandes criadores olhavam de frente para o futuro e se dedicavam ao que viria a ser Os maiores criadores são aqueles que criam horizontes dentro dos quais viverão os homens futuros Criam esses horizontes de modo inconsciente e sob a ilusão de que estão apenas descobrindo a ver dade Todos os horizontes anteriores envolviam uma crença em uma verdade absoluta que não pode ser criada mas que pode ser descoberta A história objetiva vive ou morre por sua fidelidade a seu objeto por sua capacidade de apresentar o passado tal como realmente foi Nietzsche cita com aprovação a velha máxima de que só o semelhante pode compreender o semelhante Somente os homens que se comprometem a olhar de frente para o futuro e somente os homens criativos podem entender as criações de homens do passado voltados para o futuro e com ele comprometidos A linguagem do passado é sempre oracular Só podemos compreendê la como construtores do futuro que conhecem o presente O historiador objetivo não é um homem criativo e não enfrenta o futuro E capaz de estabelecer a data de nasci mento de Michelangelo mas só um artista pode realmente entender Michelangelo O historiador objetivo ilude a si mesmo de modo a pensar que não interpreta o passado mas apenas o descreve Há porém uma ilusão que se esconde na própria pa lavra objetividade Qualquer afirmação sobre os fetos é uma interpretação dos fetos A própria seleção dos dados dentre uma infinidade de dados já é uma interpretação Em última análise não há escolha entre a história objetiva e subjetiva mas apenas uma escolha entre uma interpretação nobre e esplêndida do passado e uma interpretação sórdida e empobrecida do passado F r ie d r ic h N ie t z s c h e 7 4 5 7 Ibid p 656973 8 Ibidp4 Deste modo Nietzsche náo nega a validade da percepção de que os horizontes são criações dos homens ataca o historidsmo como uma interpretação particular desta cons tatação Tenta superar a aparente letalidade da visão historicista interpretandoa de modo nobre Se é íàto que os valores de acordo com os quais os homens têm vivido são suas pró prias criações ou ficçóes tratase de um feto ambíguo Nietzsche caminha na direção de considerar esta constatação como uma revelação da criatividade do homem e portanto de seu poder O homem é revelado como o animal que é capaz de criar horizontes Pela primeira vez é capaz de criar seu horizonte de modo consciente não seria um horizonte criado conscientemente o horizonte mais glorioso jamais criado pelo homem Nietzsche apenas sugere a possibilidade de tal solução em Dos usos e desvantagens da História e as questões suscitadas por tais sugestões não são resolvidas nesse ensaio Se os horizontes são criações dos homens não seria possível em princípio haver tantos hori zontes diferentes quanto há homens Se os horizontes são projetos livres como escolher entre diferentes horizontes Quando emergem essas perguntas é preciso desviarse de Dos usos e desvantagens da História para o conjunto principal da obra de Nietzsche mas com uma apreciação da importância que tem para ele o processo histórico Em Humano demasiado humano Nietzsche critica a filosofia tradicional por sua feita de sentido histó rico A importância do processo histórico é tal que quase se pode dizer que a própria fi losofia política de Nietzsche pode ser expressa em termos de uma análise histórica Niet zsche tenta criar o horizonte futuro do homem Sua criação não pode naturalmente ser derivada ou meramente derivarse da história pois é um projeto livre Porém a vi são historicista dos horizontes como horizontes por exemplo é necessariamente uma visão póscristã como se verá E o próprio projeto de Nietzsche tem em alguns aspectos a intenção de ser uma síntese das melhores projeções para o íuturo que ocorreram na his tória Com estas considerações em mente podese recorrer à interpretação de Nietzsche da história do homem a qual levou os homens à crise total de sua época O ápice da história do homem foi atingido perto do início da história registrada a mais elevada cultura até então foi a dos gregos Para Nietzsche a cultura é a perfei ção da natureza e cada cultura é caracterizada por uma unidade de estilo que permeia todas as suas atividades A grande cultura é aquela que está repleta de grandes homens criativos e que eleva os homens Em Jenseits von Gut und Bõse Para além de bem e mal escreve Nietzsche Até agora cada valorização do típo homem foi obra de uma socãedade aristocrátíca e será assim repetidamente uma sociedade que acredita na longa escalada de uma clas sificação hierárquica e que necessita da escravidão em um sentido ou outro Sem esse pathos da distância que nasce da diferença arraigada entre os estratos quando a casta dominante constantemente olha de longe e menospreza súditos e instrumentos e com a mesma constância pratica a obediência e o comando o sobrepujar e o manterse afastada esse outro pathos mais misterioso não poderia tampouco ter vicejado o desejo por um constante novo alargamento das distâncias dentro da própria alma o desenvolvimento 746 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Levy op cit Aphorism 2 p 1415 de estados cada vez mais elevados mais raros mais remotos mais abratntes de maior alcance em suma simplesmente o aperfeiçoamento do tipo o homem O pathos da distância existia na sociedade grega que era uma sociedade de se nhores e escravos Nietzsche também observa com aprovação que os gregos transfor maram em virtudes os combates e as competições até mesmo os poetas competiam uns com os outros Se a Grécia é o ápice da história registrada a tnédia grega é o ápice desse ápice A experiência íundamental do homem é abismai o homem é confrontado com um abis mo de íálta de sentido em um mundo que é um caos e não um cosmos o homem é um animal que sofre O otimismo é uma reação superficial para a condição do homem um autoengano O pessimismo pode ser uma mera fraqueza da vontade mas pode ser um corajoso enfientamento do abismo A trédia grega constitui um pessimismo de for ça uma afirmação e com ela uma transfiguração do sofrimento do homem A cultura grega que Nietzsche admira é essencialmente présocrática assim como os filósofos gros que elogia são principalmente présocráticos em particular He ráclito Sócrates é para Nietzsche o destruidor da tnédia grega Uma cultura sau dável é aquela em que são maximizados os instintos criativos dos homens Sócrates é o inimigo da vida instintiva um homem teórico que é crítico e não criativo que curiosamente iguala tanto a felicidade e a virtude à razão que debilita a nobreza e as virtudes nobres ao sujeitálas a um implacável inquérito dialético ao qual não podem resistir que impóe sua vontade à posteridade com tanto sucesso que desde Sócrates o racionalismo é o destino do homem ocidental Sócrates e Platão são uma previsão de uma calamidade ainda maior para a huma nidade o surgimento do cristianismo Nietzsche rotula o cristianismo como o plato nismo para o povo O triunfo do cristianismo sobre Roma é o triunfo da moral do escravo sobre a moral do senhor Para Nietzsche as moralidades são criações mas seus primeiros criadores eram os indivíduos e não os rebanhos A moral do rebanho é a primeira forma de moral da qual derivam tanto a moral do escravo como a moral do senhor No entanto sem pre houve rebanhos fortes e fracos Rebanhos fortes impõem sua vontade a rebanhos fracos e os escravizam A moral do senhor é uma afirmação de fi3rça pelos mais fortes uma celebração da vida vigorosa e ativa por aqueles que possuem vigor e capacidade de ação Os fortes não reprimem seus instintos ao contrário glorificamnos Os senhores são cruéis mas são inocentemente cruéis Identificam o bom com os poderosos e chamam de maus os fracos a quem descartam com desprezo Por outro lado a moral dos escravos é a rejeição da força pelos fracos Enquanto os senhores distinguem entre bom e ruim os escravos distinguem entre o bem e o mal F r ie d r ic h N ie t z s c h e 747 10 Beyond Good and Evü Aphorism 257 Translated with Commentary by Walter Kaufrnann New Yoik Vintage Books 1966 11 Ibid Prefece p 3 o que o mestre afirma como bom o escravo rejeita como o mal A moral do escravo é negativa em essência sendo uma reação e uma vingança contra os governantes e seus valores Sua preocupação principal é com o mal O bem tornase um rótulo ligado a vários tipos de fraqueza tal como humildade e passividade As águias não podem dei xar de ser águias e os cordeiros não podem deixar de ser cordeiros mas os cordeiros fingem e devem fingir que sua íraqueza é voluntária assim como a força das uias é voluntária e pode portanto ser condenada Nietzsche tende a utilizar alternadamente os termos moral do escravo e moral sacerdotal A moral do escravo é formulada por padres que são membros do rebanho governante mas membros fracos e decadentes Possuem uma causa em comum com o rebanho os doentes ministram para os doentes Desenvolvem ideais ascéticos que sáo a vingança que a vida fraca tenta realizar contra a vida mas esta tentativa de vingança serve à vida na medida em que impede que o rebanho destrua a si mesmo O povo sacerdotal são os judeus que são os inventores do cristianismo Através do Cristianis mo conspiram para efetuar uma transvaloração de todos os valores E têm sucesso a humildade tornase uma virtude e o orgulho um vício é revolucionada a moral do senhor O cristianismo torna a vida mansa por drenar seu vigor Negase a ação livre dos instintos que são forçados a se voltarem contra si mesmos O pior efeito desta transvaloração de todos os valores é preservar o que Nietzsche denomina um excesso de formas de vida defeituosas doentes em degeneração na economia da vida essa preservação ocorre necessariamente à custa de formas supe riores de vida Fez do homem um sublime aborto que é demasiado manso para seu próprio bem Nietzsche concebia seu próprio trabalho como uma tentativa de transvaloração de todos os valores mas seria um erro supor que tentou apenas restaurar um modelo de moral précristâo Seria impossível essa restauração devido às mudanças que o cris tianismo produziu no homem ocidental e seria indesejável porque nem todas as alte raçóes foram para o pior Nietzsche pensa nesse aborto como sublime de uma forma muito grave O cristianismo aproíimdou o homem A moral do escravo espiritualiza o homem ao sublimar seus instintos até que haja uma possibilidade de sua expressão por meio de formas cada vez mais delicadas A espiritualização do homem produziu entre outras coisas a ciência que ampliou o âmbito do futuro possível do homem Além disso o cristianismo universalizou o homem e tornou obsoleta qualquer restauração de metas limitadas para povos ou raças O cristianismo superou os gregos A transva loraçáo de valores de Nietzsche substituirá o falso universalismo do cristianismo por um verdadeiro objetivo universal para a humanidade transcenderá o cristianismo ao contrário de apenas destruílo Quando Nietzsche compara sua própria época com a grande era dos gregos ou mesmo com as eras em que o cristianismo produziu no homem europeu uma tensão 748 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 12 Aphorism 62 p 7476 mífica do espírito conclui que é íàlha em todos os aspectos decisivos Quase náo há indivíduos verdadeiros no século XDQ até os mesmo os raros eus verdadeiros que ocor rem em um período tão insignificante são atrofiados pelo tempo O governo de formas inferiores de vida à custa de formas superiores é para Nietzsche o significado de demo cracia A democracia é a mediocridade Não há diferença significativa entre a democracia e o socialismo Tanto a democracia como o socialismo pram o lalitarismo e ambos são os verdadeiros herdeiros do cristianismo e de sua moral do escravo O cristianismo abre caminho para o igualitarismo quando aíirma que todos os homens são iguais em aspeaos decisivos possuem em Deus um pai comum e são todos pecadores Nietzsche acredita que todos os governos de seus dias são inerentemente demo cráticos Até mesmo aqueles Estados que se consideram monarquias orientamse pelos muitos e atendem a eles Todos os Estados modernos cedem à opinião pública Nietz sche iguala a opinião pública à preguiça privada O governo da opinião pública é o governo da indolência e da preguiça gerando conformidade As sociedades modernas são todas sociedades de massa que não apenas moldam todos os homens da mesma forma mas dãolhes também uma forma muito degradada O jornal matinal substitui a oração da manhã A época se orgulha de seu pacifismo a verdade é que os homens já não acreditam em qualquer coisa com força suficiente para lutar por ela Nietzsche condena tanto o Estado quanto a sociedade modernos O Estado é um ídolo novo e poderoso quando Nietzsche está preocupado com a destruição de ídolos O Estado é apenas uma superestrutura com base nas qualidades únicas de um povo mas que distorce a singularidade o Estado prega doutrinas universais como os direitos do homem Seu universalismo superficial destrói a criatividade dos indivídu os sua máquina impessoal despersonaliza o homem Uma falsa qualidade permeia a sociedade O sucesso no mercado é um sinal de inutilidade É preciso ser ator o oposto de um eu genuíno para ter sucesso A educação moderna já não modela verdadeiros indivíduos mas produz especia listas A corrupção da educação necessariamente acarreta uma corrupção do nível geral do gosto Sintomática disso é a degradação do estilo literário As pessoas deixam de falar bem e escrever bem pois a excelência como tal tende a ser rejeitada Também a filosofia tem sido afetada pela crise total da época de Nietzsche É to lerada apenas por causa de sua impotência Já não é soberana sobre outras disciplinas Está em estado tão ruim que quase merece o descrédito que lhe atribuem Nietzsche acha deficientes todas as variedades de filosofia que examina Para começar todas ten dem a ser dogmáticas As filosofias transformamse em sistemas filosóficos a vontade para um sistema é a falta de integridade Certas variedades de filosofia continuarão a ser instrutivas Podese conhecer com os cínicos a parte sórdida por baixo dos valo res e apreciar as qualidades animais no homem podese aprender com os céticos uma espécie de distanciamento necessário e com os pessimistas o papel necessariamente grande do sofiimento e da dor na vida Em si mesmas no entanto essas filosofias não oferecem nenhuma solução para a crise da época sendo elas mesmas os sintomas da crise Tampouco a ciência oferece uma solução A ciência possui a rara virtude da F r ie d r ic h N ie t z s c h e 749 integridade mas está envolvida na crise é a última forma assumida pelos ideais ascéti cos da moral do escravo A ciência se volta contra a vida no interesse da verdade Sua própria veracidade no entanto a desarma A ciência passou a desacreditar a si mesma ao revelar suas próprias limitações Nietzsche tem um pequeno dito que expressa o que está na raiz da crise total do seu tempo uma crise que se reflete no pensamento e na ação nos indivíduos e nas instituições O dito é Deus está morto Com a afirmação de Nietzsche de que Deus está morto chegase ao cerne de seu empreendimento filosófico Em sua obra mais importante Afo sprach Zarathustra As sim falou Zaratustra Zaratustra que em certa medida é a autoidealização de Niet zsche declara a morte de Deus já no princípio da obra Não prova de início que Deus está morto mas por assim dizer toma como uma questão de honra pessoal que Deus esteja morto A crença em Deus tornouse uma indecência para todos os ho mens exceto aqueles que não tiveram oportunidade de saber da morte de Deus Mais tarde serão articulados o significado da afirmação sua base e suas conseqüências Nietzsche não é obviamente o inventor do ateísmo mas seu ateísmo é no entan to único e significativo por diversos motivos Primeiro Nietzsche náo fez qualquer ten tativa de esconder seu ateísmo mas o proclama repetidas vezes com toda a eloqüência de que dispõe muitos ateus anteriores tendiam a ser mais reticentes quanto a seu ateísmo Segundo no século XIX o ateísmo era território particular da esquerda política Podese dizer que Nietzsche que abominava a política da esquerda e que idealizava uma nova aristocracia inventou o ateísmo da direita política Por tradição a aristocracia é associa da à preservação da religião os aristocratas de Nietzsche ao contrário devem ser ateus sinceros Terceiro o ateísmo de Nietzsche é um ateísmo histórico Afirmar que Deus está morto implica que Deus um dia existiu Deus existiu enquanto foi possível crer em Deus Deus está morto porque a crença em Deus tornouse impossível Uma vez que Nietzsche está preocupado com uma análise de sua época em par ticular seus ensinamentos sobre a morte de Deus referemse principalmente mas náo com exclusividade à morte do Deus cristão Os discursos na Parte I de Assim falou Zaratustra preocupamse em grande medida com o cristianismo e seus efeitos Faz parte da intenção de todo o livro ser uma imitação e paródia da Bíblia Zaratustra quer criar um verdadeiro objetivo universal para a humanidade e deve portanto superar as falsas metas universais que já existem O cristianismo e o budismo são falsas metas uni versais no entanto uma vez que somente o cristianismo é uma força significativa na Europa Nietzsche dedica mais atenção a ele A morte do Deus cristão deixa o homem europeu sem um objetivo universal mas ao mesmo tempo tão universalizado pela influência do cristianismo que está além de qualquer objetivo nacional ou étnico 7 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ver seções 2 e 3 de Zarathustras Prologue Thus Spoke Zarathustra in Ed Walter Kaufmann The PortableNietzsche NewYork 1954 p 122126 Copyright 1954 da Vikii Press e reimpresso com sua permissão A morte de Deus é o último evento na história do cristianismo mas com a morte do Deus cristão morrem também todos os outros deuses Com a revelação do horizonte mais universal do homem como um mero horizonte tornase impossível toda a crença em verdades e seres eternos No final da Parte I de Assim falou Zaratustra este anuncia a morte de todos os deuses A morte de Deus é também a morte das ideias platônicas e da metafísica As filosofias e religiões tradicionais compartilham uma crença em um mundo verdadeiro que distinguem do mundo conhecido pelo homem através de seus sentidos o mundo aparente Tanto a filosofia como a religião têmse voltado para um outro mundo A impossibilidade da crença em Deus é tam bém a impossibilidade da crença em um mundo verdadeiro mas a abolição do mun do verdadeiro é também a supressão do mundo aparente o mundo conhecido pelo homem através de seus sentidos e sentimentos e através de todo o seu ser é Eora o único mundo e não o mundo aparente Ou podese dizer que com a morte de Deus o mundo aparente se torna o mundo verdadeiro e real A morte de Deus ocorre quando os homens percebem que Deus é uma criação deles mesmos Os descendentes dos homens que criaram Deus homens que foram radicalmente alterados pela crença em Deus agora assassinam Deus O Deus cristão é a âncora da moral cristã A moral cristã ao dar ao homem consciência de sua finqueza também fez com que ele se esforçasse para superar essa fraqueza O cristianismo apro fundou e elevou os poderes espirituais do homem A moral cristã enfatiza o desejo de veracidade Não só fez o homem mais dócil como também o torna um animal mais sutil e inteligente A devoção a Deus evolui para uma devoção à verdade que pode ser denominada ciência A consciência rigorosa e delicada que a crença no Deus cristão engendra voltase finalmente contra Deus O Deus cristão é morto por probidade intelectual que é a completa realização da moralidade cristã Porém com a morte do Deus cristão pelas mãos da moral cristã a moral cristã tomase infundada A moral cristã não pode sobreviver à morte de Deus Tornase agora problemática a devoção à verdade ou a devoção a qualquer coisa todas as visóes e aspirações são desmascaradas como arbitrárias e insustentáveis A morte de Deus é a morte não só da moral cristã como também de todas as morais tradicionais Em Assim falou Zaratustra o cristianismo é considerado como uma metamorfose do espírito do homem que pela aceitação do cristianismo tornase um camelo Assu me obrigações morais que dizem ao espírito Tu deves O homem assume deveres como a mortificação de seu orgulho a depreciação de sua própria sabedoria a devoção a causas perdidas e a busca da verdade O camelo veú pEua o deserto mas lá ocorre uma segunda metamorfose o espírito do homem se torna um leão Rebelase contra seus deveres Mata o dragão da obrigação em vez de ouvir o tu deves do dragão diz agora Eu vou Mas enquanto o leão pode matar o dragão dos valores que precedem a vontade do homem não pode criar novos valores é abEmdonado no deserto F w e d w c h N ie t z s c h e 751 14 Ibid p 191 15 Ib id p lò 7 m Com a mone de Deus o homem encontrase em um deserto que vem a ser a crise total do tempo de Nietzsche Tratase obviamente de mais do que uma crise na história das ideias A moral cristã pode continuar a ser observada por algum tempo talvez por hábito mas tal situação não pode perdurar Os homens são cada vez menos capazes de crer seja no que for Já não há um horizonte para dar sentido à vida a crise é total Para Nietzsche a política da esquerda é um sintoma da crise total e uma exa cerbação dela portanto por óbvio não é uma solução E o conservadorismo ou a política da direita Nietzsche rejeita a possibilidade de uma solução conservadora por diversos motivos criticando tanto a forma específica que o conservadorismo alemão assumiu com Bismarck como os pressupostos gerais do conservadorismo Em primeiro lugar o conservadorismo do século XIX é forçado a fàzer avassala doras concessões para o movimento democrático dos tempos modernos Bismarck tenta preservar a monarquia mas ao mesmo tempo é forçado a introdurir o sufrágio univer sal e uma extensa lislação previdenciária e portanto a promover o movimento demo crático O rei já nâo é considerado o governante mas apenas o primeiro servidor Em segundo o conservadorismo abraça os ideais do nacionalismo O naciona lismo é um fenômeno inerentemente democrático como demonstram seus desdobra mentos após a Revolução Francesa Constitui também um anacronismo As próprias concessões que todos os Estados europeus devem fezer à democracia e à crescente semelhança entre todas as culturas europeias mostram que já há uma unidade europeia oculta que não pode ser negada Nietzsche considera a si mesmo como um bom euro peu Os poucos verdadeiros indivíduos do século XIX como Napoleão e Goethe náo foram eventos nacionais mas sim europeus Não mais podem ser tolerados os confli tos superficiais entre os EstadosNações europeus até por causa da ameaça à Europa pelo gigante adormecido da Rússia Em terceiro o conservadorismo baseiase na velha nobreza que está decrépita O que é necessário é uma nova nobreza e uma nova ideia de nobreza Finalmente o conservadorismo está aliado ao cristianismo mas como foi visto Nietzsche defende um ateísmo sincero Podese resumir a visão de conservadorismo de Nietzsche pela citação de um afo rismo de uma de suas últimas obras GôtzenDãmmerung O crepúsculo dos ídolos Sussurrado para os conservadores O que náo se sabia antes o que se sabe ou o que se pode saber boje uma reviravolta um retomo simplesmente náo é possível em qualquer sentido ou grau Hoje ainda bá partidos cujo sonho é que todas as coisas andem para trás como os caranguejos Mas ninguém tem libetdade de ser um caranguejo Nada aju da é preciso avançar passo a passo para a decadência que é a minha definição do pro gresso moderno Podese fiear esse desenvolvimento e assim conter a degeneração recolhêla e tomála mais veemente e brusca não se pode fàzer mais que isso 752 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 16 The Ponahle Nietzsche p 546 547 Nietzsche rejeita tanto a política da direita quanto a da esquerda como sendo politicem opondo a elas seu conceito um tanto vo da grande política a política do íúturo A transvaloração de todos os valores é também a transvaloraçáo de toda a política Nietzsche equipara a moral à política É preciso resolver a crise total da época mas não há absolutamente nenhuma necessidade de que seja resolvida em benefício do homem Com a morte de Deus o homem está exposto ao maior dos perigos o homem pode degradarse completamen te Tanto a crença em Deus quanto a luta contra Deus aperfeiçoaram o homem com a morte de Deus o homem não tem mais oportunidade de amar ou odiar a Deus A morte de Deus pode resultar no abandono pelo homem de todos os esforços todas as aspirações e todos os ideais Tal homem motivado apenas pelo desejo de confortável autopreservação é chamado por Nietzsche de o último homem O último homem é o homem mais desprezível porque não é mais capaz de desprezar a si mesmo Não quer governar nem ser governado ficar rico ou pobre quer que todos façam o mesmo e sejam iguais Nós inventamos a felicidade dizem os últimos homens e piscam Quando Zaratustra descreve o último homem a fim de advertir os homens seus ou vintes ficam íáscinados pela imagem que traça o homem contemporâneo ainda não é o último homem mas o seu ideal é o último homem O niilismo é um protesto contra a chegada do último homem A fórmula para o niilismo é nada é verdadeiro tudo é permitido Uma vez que todas as aspirações e ideais demonstraram ser sem sentido os homens não podem dedicarse a uma causa nâo podem dispor de seu íúturo segundo sua vontade Os niilistas escolhem o nada ao invés de desistir da vontade Os ideais ascéticos do cristianismo sendo uma negação da vida podem ser vistos como uma forma inconsciente de niilismo Além disso o niilismo é uma conseqüência necessária da ciência moderna que destrói a validade dos valores Em certos momentos Nietzsche pensa no niilismo como o íúturo inevitável da Europa em outros chama a si mesmo de niilista O criador de novos valores é um destruidor de valores antigos No entanto a morte de Deus não é apenas o momento de maior perigo para o homem mas de sua maior possibilidade porque torna possível a criação suprema dos valores do íúturo A morte de Deus liberta o homem de Deus Horizontes anteriores mantiveram o homem irilhoado impediramno de estar em casa neste mundo que é o único mundo O homem pode iora ser leal à Terra tal como 2feratustra aconselha que seja O coração da Terra é de ouro não há inferno A morte de Deus é a libertação do homem da culpa a inocência produtiva da besta loura o melhor espécime de ho mem préhistórico pode ser recuperada em um nível mais elevado A morte de Deus é a descoberta da criatividade do homem Sabendo que os ho rizontes são criações suas está também mais consciente de seu próprio poder se nada é verdadeiro tudo é possível O homem se tornou homem por inconscientemente projetar horizontes com a projeção consciente de horizontes o homem pode tornar se mais do que homem F r ie d r ic h N ie t z s c h e 753 17 Thus Spoke Zamthustra Prologue sec 5 in The Portable Nietzsche p 128131 Neste ponto tornase evidente que Nietzsche precisa de uma doutrina filosófica para explicar o homem e a situaçáo do homem Doutrinas anteriores são desacredi tadas com a dissolução de horizontes prévios A nova doutrina precisa explicar como o homem veio a ser homem sem recorrer a princípios teleológicos a nova doutrina deve harmonizarse com o conhecimento da soberania do viraser da origem animal do homem e da feita de sentido inerente a todas as certezas Nietzsche chama a esta doutrina a doutrina da vontade de poder Nietzsche afirma que a vontade de poder é a característica básica de toda a re alidade A doutrina da vontade de poder é uma doutrina filosófica totalmente nova Em Assim falou Zaratustra e em Para além do bem e mal a apresentação da doutrina é acoplada a uma rejeição de todas as doutrinas filosóficas anteriores que compartilham a crença em uma verdade objetiva essa crença é segundo Nietzsche mero preconcei to Os filósofos felam de uma vontade de verdade e assumem que há uma verdade que pode ser descoberta pelo pensamento Na realidade de acordo com Nietzsche incons cientemente os filósofos procuram apenas imprimir sua interpretação sobre o mundo O pensamento ou a razão dos filósofos é inseparável da personalidade do filósofo A vontade de verdade é apenas uma forma de algo mais básico uma vontade de vencer e dominar tudo a vontade de poder Em Assim falou Zaratustra no discurso de Zaratustra sobre a autossuperaçáo é apresentada a mais completa versão da doutrina da vontade de poder Zaratustra observa as coisas vivas e descobre que onde quer que haja vida existe obediência A obediência porémé sempre obediência a alguma coisa é relativa a um comando Este comando náo deve ser procurado fora da vida A compulsão de superar comandar dominar não é uma mera característica da vida mas o cerne da vida A vida é vontade de poder Uma coisa viva é aquela que tenta conquistar busca acima de tudo exercer sua força No entanto não tenu conquistar e exercer sua força com qualquer perspectiva de um determinado fím Nietzsche nega que o instinto de autopreservação seja o instinto cardeal de um ser orgânico A autopreservação é apenas resultado da vontade de poder não a finalidade da vida o instinto de autopreservação é um princípio teleológico supérfluo A vontade de poder não é peculiar aos seres humanos embou explique como o homem tomouse homem a vida consiste em conquisu e alguns animais têm de con quistar sua bestialidade assim como alguns homens podem conquistar sua humanidade A feu predadou na selva e a pinmu de uma figura pelo artista são as duas formas da vontade de poder Finalmente a doutrina da vontade de poder é uma doutrina cosmoló gica que explica o caráter de toda a realidade Não há coisas inanimadas a doutrina não só reíiita todas as filosofias idealistas mas também todas as filosofias materialistas No entanto a principal ênfese de Nietzsche mantémse na vontade de poder do homem O homem é o animal que cria horizontes Para Nietzsche o homem não tem 754 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 18 Ibid p 225228 natureza ou função determinadas o homem é o animal que ainda não foi definido fest gestellí O homem é uma corda sobre um abismo um interlúdio entre o que é menos do que o homem e o que é mais do que homem A vontade de poder explica toda a atividade do homem de seus mais baixos anseios até suas maiores criações A filosofia é a forma mais elevada e mais espiritualizada da vontade de poder A razão não pode mais ser entendida como sendo parte da essência do homem como ocorre na tradição O homem não é um ser pensante em sua essência A razão e a consciência são apenas fenômenos superficiais O ego do homem é criado é parte do organismo total que é a fonte da razão e que a razão não pode compreender As coisas mais elevadas não são acessíveis à razão nem transmissíveis pela razão Sob o ego está o Eu a base do ego a sede da vontade de poder a fonte de todos os significados possí veis O conceito de Eu de Nietzsche tem alguma relação com o conceito fieudiano de id e Nietzsche certa vez chamou o Eu de isso Mas o Eu de Nietzsche em contrapo sição ao id de Freud deve ser radical e misterioso e é ele mesmo uma criação Zaratustra chama o Eu de corpo O dualismo tradicional entre mente e matéria corpo e alma é portanto abolido o Eu é também chamado de alma O resultado não é apenas uma noção menos elevada do que aquela que se atribuía anteriormente à figura da alma mas uma noção mais espiritualizada das coisas que se pensava anteriormente per tencerem à figura do corpo por exemplo Zaratustra teforese ao sangue como espírito A doutrina da vontade de poder conduz necessariamente a uma revisão das no ções tradicionais de virtude Para Nietzsche as virtudes são paixões sublimadas e trans figuradas paixões dedicadas Nietzsche compara as virtudes tradicionais com o sono porque se acreditava que conduzissem à felicidade entendida como um estado de paz e descanso e porque tradicionalmente a mais elevada virtude é uma sabedoria conce bida como a contemplação do eterno e incriado Para Nietzsche a virtude é a criativi dade a sabedoria é criação autoconsciente Com a ênfase de Nietzsche sobre o Eu vem uma maior ênfase na autorrealização e em virtudes como sinceridade e integridade Posto que no entanto cada ser é único e misterioso não pode haver para Nietzsche nenhuma doutrina abrangente das virtudes a virtude de um homem pode ser o vício de outro Também se pode afirmar que Nietzsche tenta reduzir as noções de virtude e vício a noções de doença e saúde do ser que é o corpo e estas noções por sua vez a noções de força e fraqueza Nietzsche está ciente de que há dificuldades na doutrina da vontade de poder Seria a doutrina da vontade de poder apenas a expressão da vontade de poder de Nietz sche ou uma doutrina objetivamente verdadeira Nietzsche não pode afirmar pura e simplesmente que é verdadeira nem que não é de modo algum mais plausível do que a opinião do homem comum sobre o caráter da realidade Nietzsche enfrenta esse problema de várias maneiras Anteriormente a filosofia entendia a si mesma como simplesmente verdadeira Nietzsche caracteriza a filosofia tradicional como filosofia dogmática Desta forma se esforça para apresentar a sua própria filosofia de modo diverso A doutrina da vontade de poder difere das doutrinas anteriores não só no conteúdo mas no modo Nietzsche acredita que não pode haver conhecimento ob F r ie d r ic h N ie t z s c h e 755 jetivo da realidade mas apenas perspectivas da realidade Algumas vezes portanto náo só admite mas afirma que a doutrina da vontade de poder é uma interpretação perspectivista da realidade caracterizandoa como uma hipótese a ser testada Con cebe sua própria filosofia e a filosofia do futuro para a qual sua própria filosofia é um prelúdio como uma experiência uma tentativa que também é uma tentação Mesmo que só possa haver perspectivas da realidade pode haver perspectivas mais e menos abrangentes A perspectiva de Nietzsche é a mais elevada já atingida porque incorpora as constataçóes de todas as perspectivas anteriores e porque é a primeira consciente da lei da perspectividade Igualmente a doutrina de Nietzsche da vontade de poder representa a primeira autoconsciência da vontade de poder a filosofia de Nietzsche é a primeira interpretação criativa da criatividade Nietzsche chegou a um auge onde náo há diferença entre a criação e a contemplação No entanto isso ainda significa que foi atingido algum tipo de finalidade Nietzsche é ao mesmo tempo compelido a afirmar e a negar a verdade objetiva da doutrina da vontade de poder a doutrina da vontade de poder deve de alguma forma ser tanto uma compreensão da verdade das coisas como a criação do Eu único criado por Nietzsche Os argumentos para a vontade de poder em Para além do bem e mal também são apenas os pensamentos mais íntimos de Nietzsche Assim fabu Zaratustra como indica seu subtítulo Ein Buch jiirA lk und Keinen Um livro para todos e para ninguém é ao mesmo tempo uma nova Bíblia para toda a humanidade e a expressão mais pessoal de Nietzsche Nietzsche só pode dar a outros indicaçóes do que quer dizer Na melhor das hipóteses só pode exigir que outros se tornem Eus verdadeiros criativos Zaratustra não quer discípulos Os ensinamentos de Nietzsche são um apelo criativo à criatividade e só podem ser com preendidos por homens criativos Há uma segunda dificuldade Quais sáo os limites da vontade de poder Pode tudo ser superado Se tudo pode ser superado então o homem vai finalmente superar até mesmo as condiçóes de desigualdade que segundo Nietzsche são indispensáveis para a elevação do homem Finalmente os homens irão de fato se tornar epigoni nada mais haverá para superar Nietzsche acredita em uma sociedade hierarquizada na su perioridade dos homens sobre as mulheres e na necessidade de sofrimento Porém se a vontade de poder é tudo e se tudo é em princípio possível por que náo devem e por que não serão abolidas as diferenças entre os sexos ou as diferenças hierárquicas entre os homens A filosofia política tradicional não precisa enfrentar esses problemas por que se orienta pela natureza Para Nietzsche o homem não tem natureza determinada Pode haver natureza no sentido de mundo exterior mas esta natureza não tem valor e é composta de dados sem sentido Não se pode viver de acordo com a natureza porque a natureza não dita nenhum curso de ação Para Nietzsche a natureza é um problema mas ele não pode prescindir de algum conceito de natureza e de um princípio natural de governar e ser governado que assegure a hierarquia A mais grave questão relativa aos limites da vontade de poder diz respeito ao passado Em princípio tudo pode e deve ser realizado por efeito da vontade mas tem a vontade efeito sobre o passado O próprio projeto de Nietzsche sobre o futuro 756 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y baseiase mesmo que apenas de forma negativa no passado Seu projeto é a criação do Eu mas o Eu é também uma criação do passado Não frustram a vontade o passar do tempo e o passado Nietzscbe concebe as filosofias anteriores como reação da von tade a sua própria impotência diante do passar do tempo a vontade de poder se vinga contra o tempo através da criação de seres eternos fictícios Porém sua própria filosofia não é negativa é ao contrário uma libertação do espírito de vingança Pretende ser uma afirmação total até mesmo do passado A vontade só afirma o passado se for demonstrado que este é também o íuturo Se bouvesse um eterno retorno de todas as coisas entáo o passado também seria o íuturo A doutrina de Nietzscbe sobre o eterno retorno afirma que todas as coisas já aconteceram um número infinito de vezes antes e vão acontecer um número infinito de vezes de novo exatamente como antes A doutri na do eterno retorno é uma doutrina moral bem como cosmológica Se bá um eterno retomo o bomem terá consciência da gravidade terrível de todas as suas ações uma vez que se repetirão um número infinito de vezes Além disso ao impor a vontade ao eterno retorno de todas as coisas o homem impõe sua vontade e afirma um futuro que se tornará seu passado o homem pode por assim dizer tomarse a causa de si mesmo Finalmente o retorno de todas as coisas garante a existência de coisas inferiores e portanto de coisas que não podem ser superadas pela vontade de poder Ao impor sua vontade sobre o eterno retorno a vontade atinge o seu auge supera a si mesma mas sobrevive na afirmação total de todas as coisas Através da afirmação total de todas as coisas o homem pode deixar de ser homem e tomarse superhomem O superhomem de Nietzsche é o projeto do futuro do homem Pretende ser um cumprimento e uma transcendência dos mais elevados ideais do homem jamais concebidos anteriormente O homem é em parte poeta em parte filósofo e em parte santo É poeta porque é criativo mas é mais do que os poetas de hoje a quem Nietz sche critica por terem mentido falsificam o dado sem sentido e por não criar novos valores mas ao contrário por agirem como servos da moral tradicional O super homem criará novos valores e neste aspecto se assemelhará ao filósofo tradicional mas suas criações serão criações autoconscientes Finalmente o superhomem será semelhante ao santo porque sua alma conterá toda a profundidade que o cristianismo deu ao homem O superhomem será César com a alma de Cristo Em última análise o cristianismo que Nietzsche maldiz desempenha um papel maior no nobre futuro do homem que a Antiguidade clássica que elogia Zaratustra é o homem mais piedoso que jamais acreditou em Deus O superhomem deve ser criado pela vontade Não há necessidade de que venha a emergir é apenas uma possibilidade de íúturo tal como o último homem A crise total significa apenas que o homem não pode mais ser homem deve elevarse até o superhomem ou afúndar até o subhumano O superhomem é o projeto livre de Nietzsche sobre o íúturo do homem mas suas raízes nos ideais do passado do homem que transcende salvam o projeto de ser arbitrário O superhomem recuperará a inocência da besta loura em um nível infi nitamente superior póscristão O superhomem representa a terceira metamorfose F r ie d r ic h N ie t z s c h e 757 do espírito O leão niilista que só pode dizer eu tenho vontade e que destrói valores antigos sem ser capaz de criar novos é substituído pela criança que diz eu sou que afirma tudo e cuja criatividade se assemelha à inocência de uma criança brincando O superhomem como tipo náo pode ser totalmente descrito porque será aci ma de tudo um eu verdadeiro Cada superhomem será único Náo é possível descre ver os valores pelos quais viverá porque cada superhomem será sua própria lei em si mesmo Podese no entanto afirmar que será um homem que sofre muito e que cria muito e que será um homem de infinito orgulho e infinita delicadeza Por exemplo o superhomem náo voltará a sua fàce a seus inimigos náo por ser brutal mas porque não quer envergonhálos No entanto as formas exatas que assumirão sua delicadeza e seu orgulho são necessariamente indeterminadas Desta forma o conceito de superhomem de Nietzsche é fundamentalmente vago e ambíguo Nem sequer é certo se o superhomem será um governante Nietzsche fala do governo planetário de uma nova nobreza e o superhomem é a nova ideia de nobreza de Nietzsche Em outros momentos fala da coexistência dos últimos homens e dos superhomens os últimos homens viverão em comunidades que se assemelham a formigueiros e os superhomens vagarão pela terra mas os superhomens não gover narão os últimos homens e tentarão evitar ter qualquer contato com eles Tampouco pode Nietzsche recomendar uma forma de ação política que tornará realidade a possibilidade do superhomem Há uma forte tendência de individualismo radical em Nietzsche que aconselha os homens a se tornarem verdadeiros Eus Nietz sche aconselha os homens a buscarem a solidão a fugir da vida pública a rejeitar os costumes estabelecidos de conduta e pensamento Deste ponto de vista seria possível sustentar que o superhomem representa uma solução para a crise apolítica total da modernidade O apelo criativo de Nietzsche para a criatividade é responsável em parte pela interpretação predominante de Nietzsche que vê nele um mestre do ver dadeiro individualismo Tal interpretação porém não é capaz de dar conta das graves conseqüências políticas de uma proposta de solução apolítica Há uma faceta subja cente à defesa que fãz Nietzsche do individualismo radical pois ensina os homens a abdicarem de suas responsabilidades públicas a desprezarem a mesquinhez da política comezinha e a se abster dos direitos comuns do cidadão Há sempre o perigo até mesmo de seu ponto de vista de que os piores homens e não os melhores ouçam esse conselho Mesmo que apenas os melhores homens atendessem esse conselho haveria o perigo de que se afastassem da arena política os homens mais necessários nela A interpretação predominante de Nietzsche é obrigada também a ignorar outra vertente em seus escritos uma vertente que é abertamente política Nietzsche antevê uma era de política apocalíptica Além disso enxerga a necessidade de um apocalipse e lhe dá boasvindas Anseia por uma época de grandes guerras que serão uma parte relevante da grande política do futuro Fala com aprovação da necessidade de um pro grama de eugenia antecipa uma época em que regiões inteiras da Terra serão dedicadas a experimentos do homem com o homem e é a favor da extinção impiedosa de povos e raças inferiores Nietzsche entende que o niilismo está batendo às portas da Europa 7 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Em seu ódio pela degradação do homem que é o último homem aconselha que sejam abertas as portas ao niilismo Parte da importância da filosofia política de Nietzsche está no fiito de que é uma crítica implícita ao marxismo Nietzsche jamais se refere a Marx ou a Engels mas conhecia as várias formas de socialismo do século XIX Além disso Nietzsche como Marx foi influenciado por Hegel Podese resumir da seguinte forma a relação do marxismo com a filosofia política de Nietzsche o reino da liberdade marxista que será assegurado pela revolução é para Nietzsche o reino do último homem a total degra dação do homem Nietzsche pensava de modo mais filosófico mais profundo do que Marx sobre o que se seguiria à revolução Se por um lado Marx está indissoluvelmente Ugado ao crescimento do comunis mo é preciso admitir que Nietzsche está ligado ao suipmento do fiiscismo no século XX A relação do fescismo para com Nietzscbe é reminiscente da relação entre a Revo lução Francesa e Rousseau Infelizmente o problema da bgação de Nietzscbe com o fescismo não se resolve pela alegação como muitos intérpretes de Nietzsche tendem a íázer de que Nietzsche não era íáscista mas que era um crítíco violento do nacionalismo alemão e que teria detestado Hider Tais fiitos são sem dúvida verdadeiros e enunciá los evidencia o absurdo de uma identiíicação grosseira das doutrinas de Nietzscbe com os delírios de Hider Nietzsche era um homem que possma uma nobre visão do futuro do homem Sua própria delicadeza integridade e coragem reluzem em seus escritos Não possma porém o racismo grosseiro que viria a ser um aspecto importante do íáscismo e desprezava o antissemitismo político Contudo o fiito é que de várias maneiras Nietzs che influenciou o íáscismo O fescismo pode ter feito mau uso das palavras de Nietzsche mas suas palavras se prestam ao mau uso com excepcional íácüidade Nietzsche era um extremista e ninguém tinha talento maior que o seu para tornar atraente uma visão ex trema ao apresentála com grande verve e eloqüência Aquele que aconselha os homens a viverem no perigo deve ter em mente que homens perigosos como Mussolini prestarão atenção a seus conselhos aquele que ensina que uma guerra boa justifica qualquer causa deve ter em mente que esses ensinamentos apresentados em tom de brincadeira mas apenas meio de brincadeira possam ser mal utilizados Nietzsche elogia a crueldade e condena a misericórdia sem suficiente reflexão acerca da correção de aconselhar o ho mem a ser mais cruel do que é ou de qual efeito terá tal visão sobre os homens cruéis Nietzsche não era racista mas seus escritos estão repletos de reflexões sobre a raça e as possibilidades de um rejuvenescimento biológico do homem Nietzsche não apenas íá Iha em defender ou ensinar prudência e responsabilidade públicas difiuna a prudência e a responsabilidade públicas Finalmente devese repetir mais uma vez que Nietzsche é o inventor do ateísmo da direita política F r ie d r ic h N ie t z s c h e 7 5 9 19 NR Nietzsche nâo era antissemita E esta interpretação da destruição de povos e raças segue a edi ção dos fragmentos montados com o nome de Vontade de poder por Eiisabeth Foster Nietzsche Coli e Montinari demonstraram que esta obra como tal não existe Qualquer apresentação da íilosoíia política de Nietzsche deve não apenas reve lar suas proíundas ambigüidades mas deve apontar suas graves conseqüências Con tudo nem a revelação de sua ambigüidade nem uma demonstração de sua graves conseqüências constituem uma reíiitação Mesmo que se pudesse provar o equívoco de Nietzsche seria possível ainda refletir acerca do que o próprio Nietzsche escreveu sobre Schopenhauer os erros de grandes homens são veneráveis porque são mais íirutíferos que as verdades de pequenos homens L e it u r a s A Nietzsche Friedrich The Use and Abuse of HistoryHvffYorklhtlÁhaalAsxsEtess 1949 VomNut zen und Nachteil der Historie fir das Lehen Dos usos e desvantagens da História para a vida B Nietzsche Friedrich Beyond Good and Evil Translated with Commentaty by Walter Kaufinann New York Vintage Books 1966 Jenseits von Gut und Bõse Para além de bem e mal A Editora Forense Universitária edita os Fragmentos Póstumos de Nietzsche e o Curso de Heideer con srado a ele em dois volumes 7 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 0 Ibid p 3 0 18591952 J o h n D ewey John Dewey é objeto de amplo reconhecimento como o filósofo mais importante da democracia americana do século XX Podese condensar o princípio que o orien tou ao longo de uma carreira extremamente longa e influente como uma tentativa de promover a realização da democracia em todas as esferas da vida Para tanto Dewey buscou uma concepção universal de democracia uma formulação abrangente à qual contrapôs o entendimento de democracia de todos os filósofos anteriores A filosofia política precedente argumentava tendia a restringir sua atenção a questões estrita mente políticas tais como o Estado e as várias instituições do governo O objetivo fundamental de Dewey ao contrário era o desenvolvimento de uma filosofia demo crática que visasse não apenas abarcar as tradicionais questões políticas mas o que é mais importante fornecer uma compreensão democrática de ética educação lógica estética e dos muitos outros campos do pensamento e da atividade pelos quais Dewey se interessava Todos os aspectos de seu trabalho como um todo foram afetados de modo decisivo por sua meta política Sua filosofia é politicamente programática o que significa que se dirige ao que Dewey considera o progresso social como a verdadeira finalidade da íilosoíia e focaliza sua atenção na situação contemporânea mais que em quaisquer condições fixas supos tamente etemas Assim ao menos em parte o motivo pelo qual Dewey rejeita a íilosoíia política tradicional é sua crença de que esta propiciou pouco mais que um estéril exame da relação lógica de diversas ideias umas com as outras distante dos fàtos da atividade humana como se essas relações lógicas ou racionais fossem autossuíicientes e impor tantes em si Sua rejeição da íilosoíia política tradicional inspirase também em parte em sua convicção de que a aborchem e o conteúdo desta íilosoíia por serem regidos por condições históricas que não mais existem demandavam uma modernização 1 JohnDewey The Public and itsPmblem Chicago Gateway BooXs 1946p 9 Reimpressa com per missão de Holt Rinehart and Winston copyrifiit 1927 de John Dewey Esta obra foi ordinalmente publicada por Henry Holt and Company em 1927 A edição de 1946 à qual nos referimos exclusi vamente neste ensaio distinguese por uma longa nova introdução de considerável relevância No entanto Dewey recusouse sempre a se juntar àqueles positivistas que rejeita vam a filosofia por considerála meramente sem sentido ou que insistiam que o homem náo pode lidar de modo racional com questóes de valor mas apenas com questóes de íato Dewey procurou dar um novo significado à íilosoíia ao tornála relevante para a solução dos problemas mais prementes da vida Buscou esse objetivo por meio de uma total Reconstrução em Filosofia um objedvo expresso de modo mais nítído em sua conhecida obra que tem esse título Reconstruction in Philosophy e o reiterou de uma forma ou outra em pratícamente todos os seus escritos mais importantes Os ensina mentos políticodemocrátícos de Dewey principal foco deste ensaio devem ser enten didos como apenas um aspecto dessa reconstrução da íilosoíia em prol da democracia Portanto devemos nos preocupar de início com alguns dos objetivos fundamentais desta reconstrução 1 a tentativa de Dewey de tornar relevantes as investigações filosóficas para a solução dos problemas sociais contemporâneos 2 o desenvolvimento de seu método da intelncia como a principal ferramenta para a solução destes problemas e 3 o desenvolvimento de uma teoria política baseada em uma visão evolutiva do ho mem e da sociedade concepção esta que está na laiz do conceito de crescimento de Dewey como o maior bem humano e verdadeira medida da justiça social 1 O início da reconstrução da íilosoíia por Dewey é sua afirmação de que os autênticos problemas e assuntos da íilosoíia emergem das tensões e pressões da vida da comunidade em que surge uma determinada forma de filosofia Seguese daí na visão de Dewey que a tareia inicial do verdadeiro filósofo é a identificação dos pro blemas mais fundamentais e urgentes de sua sociedade Dewey esforçouse para fezer exatamente isso O tema de sua filosofia social é moldado de modo decisivo pela ob servação expressa com vigor em Human Nature and Conduct A natureza humana e a conduta de que uma classe da comunidade persiste em tentar assurar seu futuro à custa de outra classe Dewey concebe as divisões de classe como um sintoma de uma desordem mais profunda na sociedade o descompasso entre produção e consu mo que de modo sistemático conduz ao enfraquecimento de sólidas relações huma nas O ardor e o alcance da acusação de Dewey a este aspecto da sociedade moderna só podem ser transmitidos de modo adequado por suas próprias palavras quando escreve que a simples produção tem sido cuidada de modo grosseiro e intenso Acelerase de modo fienédco o íãzer as coisas e todos os dispositivos mecânicos são usados para avolumar a massa sem sentido Como 7 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y John Dewey Reconstruction in Philosophy New York New American Library 1950 p 8 Reim pressa com permissão de Beacon Press Copyright 1958 de Beacon Press Esta obra foi originalmente publicada por Henry Holt and Company em 1920 Uma edição ampliada foi publicada em 1948 por Beacon Press com uma importante nova introdução escrita por Dewey As referências neste capítulo são à edição da New American Library Mentor de 1950 John Dewey Human Nature and Conduct New York Heruy Holt and Company 1944 p 270 Reimpressa com permissão de Holt Rinehart and Wnston C op y rig h t de Henry Holt and Com pany Não parecem ter sido feitas modificações importantes a esta obra desde que foi publicada inicialmente em 1921 As referências neste ensaio são retiradas da edição em brochura de 1944 resultado a maioria dos trabalhadores não encontra satisfeçáo nem renovação nem cres cimento intelectual nem realização no tiabalho A estupidez de separar a produção do consumo do enriquecimento presente da vida fica evidente nas crises econômicas nos períodos de desempro que se alternam com períodos de exercício trabalho ou superprodução O lazer náo é o alimento da mente no trabalho nem a recreação é uma avidez febril por diversões emoções exibições caso contrário nâo há lazer exceto como um torpor obtuso É inevitável a fediga que se deve para alguns à monotonia e para outros ao esforço excessivo para manter o ritmo Na sociedade a separação da pro dução e do consumo dos meios e fins é a raiz da mais profunda divisão de classes Estão no controle aqueles que fixam metas para a produção constituem a classe dominante aqueles que se encarregam de atividades produtivas isoladas Porém se são oprimidos os últimos náo sáo verdadeiramente livres os primeiros Podese entender melhor a critíca de Dewey à sociedade capitalista contemporânea comparandoa como ele próprio muitas vezes fàz à crítica marxista Dewey reconhece o mérito do matxismo por suas tentativas de esquadrinhar grande parte dos problemas dominantes da moderna sociedade capitalista Observa também que dadas as condições dradantes da sociedade moderna a concepção materialista da história ou determi nismo econômico adquire considerável relevância Sem dúvida estamos em algum tipo de socialismo qualquer seja o nome que Ibe dermos e não importa como será chamado quando for concretizado O determinismo econômico é r a um íáto não uma teoria Muito embora aceite a utilidade de determinados aspectos do diagnóstico socialista dos males do capitalismo Dewey no entanto critica com vigor a prescrição marxista para sua cura Considera o mais pernicioso bem como mais revelador erro do marxismo sua promulgação da crença monstruosa de que a guerra civil pela luta de classes é um meio de progresso social ao contrário de um registro das barreiras para sua obtenção Na opi nião de Dewey o progresso social deve ser atingido por meio da aplicação do método da inteligência não através da dependência marxista de crescente tensão e conflitos O que Dewey considera como a principal razão para o íracasso do marxismo e dos outros is mos do século XX também tornase evidente através de uma análise do segundo grande objetivo de sua reconstrução em íilosoíia o desenvolvimento do método da inteligência como a principal ferramenta para a solução dos problemas sociais 2 O fracasso da humanidade em alcançar a justiça social embora compreensível em tempos passados fazse agora tragicamente desnecessário de acordo com Dewey Está hoje disponível um instrumento para a solução eíicaz dos problemas que eterna mente atormentam a humanidade Este instrumento é o método da inteligência ou método científico tal como Dewey com frequência o nomeia O método é definido em Reconstrução em Filosofia porém como uma indicação abreviada para grandes e cada vez maiores métodos de observação experimentação e raciocínio refletivo ou ainda como a tríplice técnica de observação dos fatos construção de hipóteses e veri ficação de conseqüências J o h n D e w e y 7 6 3 4 Ibid p 271272 5 John Dewey Individualism Old and New New York Minton Balch and Company 1930 p 119 6 Human Nature and Conduct p 273 Dewey atribui o principal crédito pela descoberta do método científico a Francis Bacon a quem descreve como o verdadeiro fundador do pensamento moderno O método da inteligência que Bacon tentou introduzir distinguese em parte da ciência náo baconiana por recorrer à experimentação ativa em contraste com a con templação passiva da natureza A tradicional abordagem contemplativa é inadequada porque os princípios e leis científicos não residem na superfiície da natureza Estão escondidos e devem ser arrancados da natureza por meio de uma elaborada e ativa técnica de investigação Parafraseando Bacon Dewey sustenta que o verdadeiro cientista deve forçar os fatos aparentes da natureza a se moldarem a formas diversas daquelas em que em geral se apresentam e assim forçálos dizer a verdade sobre si mesmos do mesmo modo como a tortura pode obrigar uma testemunha relutante a revelar o que tenta esconder Através dessa subjugação da natureza a humanidade descortinou maravilhosas possibilidades na indústria e no comércio e novas condições sociais fevoráveis à invenção engenhosidade empreendimento Desta maneira foram possíveis enormes avanços nas artes industriais agrícolas e médicas Tornouse possível para toda a humanidade uma vida muito mais feliz e mais abundante Por que então Dewey se vê forçado a indar esses bens aparentemente ilimita dos possibilitados pelo método da inteligência permaneceram em grande parte não realizados Por que é vítima de novos males a maior parte da humanidade Por que a nova ciência desempenha um papel na escravizaçáo de homens mulheres e crianças nas fóbricas Por que mantém sórdidas fevelas pobreza opressiva e luxuosa rique za uma brutal exploração da natureza e do homem em tempos de paz e de explosivos tremendos e gases venenosos em tempos de guerra Dewey acredita que a causa da trágica fiustração do método da inteligência pode ser atribuída a defeitos na prática política Constata que instituições políticas obsoletas e injustas cujas origens são anteriores ao desenvolvimento da ciência baco niana são as principais responsáveis pelo aborto dos benefícios prometidos pela con quista da natureza Persistem arcaicas instituições sociais inadequadas para uma época de tecnologia e produção científica um fenômeno que Dewey resume com o termo atraso cultural Conclui que o novo industrialismo é em grande parte o antigo feudalismo residindo em um banco em vez de um castelo e brandindo a verificação de crédito em vez da espada Essas instituições ultrapassadas sâo perpetuadas e con troladas pelos governantes manifestamente injustos da humanidade reis aristocratas as proprietárias e aquisitivas classes da sociedade moderna que de maneira sistemá tica se apropriam indevidamente dos benefícios da ciência para fins pecuniários para o lucro de poucos Ou seja em grande parte os benefícios da ciência atendem aos interesses de uma classe proprietária e aquisitiva enquanto uma disseminação demo 7 Reconstruction in Philosophy p 10 4648 8 Human Nature and Conduct p 212213 9 The Public and its Problems p 175 10 Human Nature and Conduct p 213 7 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y crática dos benefícios da ciência indicaria que a ciência foi absorvida e distribuída Em suma é apenas dentro de uma ordem social verdadeiramente democrática que os benefícios prometidos pela concepção baconiana de ciência podem ser efetivamente aplicados para o alívio do estado do homem A concretização dos benefícios da nova ciência requer a democracia mas o in dispensável desenvolvimento da democracia depende por sua vez da aplicação do método da inteligência aos problemas sociais de sua aplicação às relaçóes humanas políticas econômicas e morais O apelo de Dewey para essa aplicação do método científico é reiterado em toda a sua obra Está convencido de que o reconhecido triun fo das ciências naturais no mundo físico pode e deve ser estendido a todas as esferas da existência humana Esta esperança é expressa com veemência em sua introdução de 1946 para The Public andIts Problems A opinião pública e seus problemas a ciência tem exatamente a mesma relação com o progresso da cultura que os assuntos reconhecidos como tecnológicos como o estado das invenções no caso por exemplo de ferramentas e máquinas ou do progresso alcançado nas artes digamos médicas uma porção considerável dos males remediáveis da vida presente devese ao estado de desequi líbrio do método científico no que diz respeito à sua aplicação a fiitos físicos de um lado e especificamente a fetos humanos de outro a forma mais direta e eficaz para escapar desses males é o constante e sistemático esforço a fim de desenvolver essa inteligência eficaz denominada método científico no caso das transações humanas Desta forma de acordo com Dewey não há dificuldades insuperáveis na apli cação aos problemas humanos e morais do método pelo qual a compreensão da natureza física foi levada a seu atual estÉio de evolução O método científico de ob servação elaboração de hipóteses e avaliação das conseqüências é aplicável às ciências sociais bem como às ciências naturais Dewey no entanto assinala um íator compli cador na aplicação do método científico à solução dos problemas sociais Em poucas palavras sua colocação é a seguinte a avaliação ou verificação das conseqüências nas ciências naturais é facilitada pela existência de um acordo geral a respeito de objetivos Por exemplo há normalmente pouca discordância acerca pelo menos dos objetivos imediatos da invenção no caso de ferramentas e máquinas ou na arte médica O consenso quanto às metas íacilita a aferição e portanto a avaliação das conseqüências da introdução de ferramentas e máquinas recéminventadas Podese apresentar argu mento semelhante no que diz respeito à arte médica cujo objetivo expresso é a manu tenção ou o restabelecimento da saúde Consideremos por exemplo certo número de cientistas médicos envolvidos na pesquisa do câncer em uma clínica de grande porte A observação dos mesmos pacientes e a análise de aproximadamente os mesmos dados J o h n D e w e y 765 11 The Publie and its Problems p 174 12 Reeonstruction in Philosophy p 52 13 The Publie and its Problems p x 14 Reeonstruction in Philosophy p 10 15 The Public and its Problems p x podem dar origem a diversas hipóteses sobre a natureza e o tratamento do câncer To davia a verificação das conseqüências dessas várias hipóteses não apresenta nenhuma dificuldade intransponível pois há consenso sobre os objetivos da pesquisa a saber a prevenção do câncer ou a redução de sua incidência e devastações Dewey reconhece que a verificação das conseqüências demonstra ser muito mais difícil quando se tenta aplicar o método da inteligência às relações humanas aos pro blemas políticos econômicos e morais porque o consenso para a avaliação das conse qüências está marcadamente ausente dessas esferas Dewey admite que toda contesta ção política séria gira em torno da questão de saber se um determinado ato político é benéfico ou prejudicial para a sociedade Assim sendo somos forçados a examinar a questão relativa a como a aplicação do método científico a assuntos humanos pode superar a dificuldade que resulta do fiito de que as partes em conflitos humanos têm opiniões catoricamente divergentes quanto ao que é benéfico ou prejudicial para a sociedade Um exemplo sugerido por Dewey pode esclarecer esta questão Suponha mos que em uma siderúrgica até então desorganizada alguns operários deem início a determinadas medidas para criar um sindicato Sua ação pode ser motivada por certos íatos evidentes acerca dos quais não há desacordo por exemplo salários horas de trabalho fidta de participação dos operários no controle das condições de trabalho Os próprios íatos que conduzem os operários à hipótese de que a oianização sindical será benéfica muitas vezes conduzem a administração à hipótese oposta Como pode então a aplicação do método da inteligência ajudar a administração e os trabalhado res a resolver essa diveiência A resposta de Dewey parece assumir a seguinte forma Demanda em primeiro lugar uma declaração detalhada das conseqüências específicas que decorreriam da sin dicalização bem como das conseqüências que decorreriam da manutenção do status quo Indiscutivelmente conseqüências de notável diversidade resultariam do fracasso ou do sucesso do movimento sindical Em caso de sucesso é provável que houvesse um aumento generalizado dos salários mudanças nos horários e outras condições de trabalho e alguma redução na autonomia administrativa De modo semelhante seria possível traçar em grande detalhe e ctensão as conseqüências associadas à manu tenção do status quo O próximo passo exigido pelo método da inteligência ex plica Dewey é contrastar e avaliar essas conseqüências divergentes Ainda assim é exatamente quanto a este aspecto que de novo se apresenta a dificuldade crucial na aplicação do método da inteligência Não insistiriam trabalhadores e administração na aplicação de padrões diferentes para avaliar as conseqüências Não resultaria este desacordo por sua vez de entendimentos muito diveientes sobre o que contribuiria para o bemestar ou para o autointeresse Não necessariamente contesta Dewey A au têntica aplicação do método da inteligência possibilita a avaliação das conseqüências por um padrão que transcende os interesses p ista s ou as perspectivas limitadas das partes em disputa A este padrão mais elevado Dewey chama de crescimento 766 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 16 Ibid p 15 O significado de crescimento e seu liar nos ensinamentos políticos de Dewey só podem ser compreendidos através de um exame de sua concepção evolutiva do homem e da sociedade o último aspecto da sua reconstrução em filosofia do qual nos devemos ocupar 3 Foi Charles Darwin quem liberou a nova lógica que produziu efeitos tão revolucionários nas ciências naturais para a aplicação ao intelecto e à moral e à vida Em um ensaio intitulado Tlie Influence of Darwin on Philosophy A influência de Darwin sobre a filosofia Dewey delineia as conseqüências de sua concepção de evo lução para sua filosofia social com isso distinguindoa ainda mais da filosofia política tradicional Dewey entende que esta última esteve engajada em uma busca equivocada de espécies e essências fixas dentro de um mundo fechado um mundo que con siste de um número limitado de formas fixas Seguindo Darwin Dewey condena a noção de espécies fixas em particular em sua aplicação à natureza do homem Tal concepção segundo ele reduz a vida humana à travessia monótona de um ciclo de mudanças previamente traçadas um princípio e uma perspectiva tão pouco desafia dores como aquele em virtude do qual a bolota tornase o carvalho Em oposição a esta visão insípida da filosofia tradicional Dewey oferece a resplandecente promessa de uma compreensão evolutiva das potencialidades humanas uma visão que apresenta possibilidades ilimiudas para o desenvolvimento para novos e radicais desvios Vista de uma perspectiva evolucionária a mudança tornase expressiva de novas possibili dades e metas a serem atingidas tornase profética de um íuturo melhor A mudan ça deve ser associada ao progresso em vez de à queda e ao declínio posição esta que Dewey atribui à filosofia política tradicional Dewey argumenta ainda que a aceitação geral da perspectiva evolutiva tem sido obstruída por mais outra das deficiências da filosofia tradicional seu postulado de uma hierarquia rígida de metas fixas Embora admita que os padrões éticos que existem concomitantemente com essas metas podem ter sido compatíveis com uma concepção estática de justiça social e da natureza humana uma concepção evolutiva do homem exige que sejam substituídos por um padrão do bem humano que preveja mudança gradual A este padrão denomina crescimento O conceito de crescimento fornece a Dewey um critério do bem que é univer sal e ao mesmo tempo compatível com um entendimento evolutivo do homem e da sociedade Permite que rejeite o alegado absolutismo e inflexibilidade da filosofia tra dicional sem abraçar o relativismo radical que se volta para o niilismo O crescimen to humano é visto por Dewey como a gradual realização das possibilidades humanas produzidas por uma complexa interação entre hábito e impulso uma colocação que desenvolve de forma exaustiva em Human Nature and Conduct A natureza hu J o h n D e w e y 767 17 John Dewey The Influence o f Darwin on Philosophy New York Henry Holt and Company 1910 p 89 18 Reconstruction in Philosophy p 62 65 19 Ihid p 102 cf Human Nature and Conduct p 284 mana e a conduta seu tratado sobre a psicologia social O ponto crucial de seus en sinamentos sobre este aspecto é que a direção da atividade inata depende de hábitos adquiridos mas ainda assim os hábitos adquiridos só podem ser modificados pelo re direcionamento de impulsos Uma vez que Dewey entende que nem o conteúdo do hábito nem do impulso sáo determinados por uma natureza do homem que seja fixa o resultado dessa interação pode produzir uma infinita variedade humana Seja qual for o conteúdo substantivo dos hábitos ou impulsos Dewey pede apenas que o resultado de sua interação produza crescimento de tal forma que o crescimento em si é a única finalidade moral Posto que Dewey abstémse de qualquer definição substantiva de crescimento o padrão permanece sempre formal proporcionando assim uma visão relativista do desenvolvimento humano dentro de um quadro uni versalista Por exemplo dizse que o crescimento assinala a realização do potencial total de um organismo a versão completa como explica Dewey com firequência de suas capacidades latentes De fiito a realidade é o processo de crescimento em si a existência real é a história na sua totalidade No que diz respeito ao homem Dewey clama pelo crescimento completo com o que quer dizer crescimento ou crescer como desenvolvimento não só fisicamente mas intelectual e moralmente também O alcance e o significado dessa norma tem resumo interessante em Reconstrução em Filosofia onde Dewey conclui que governo empresas arte religião todas as instituições sociais têm um significado um ptopõsito Esse propõsito é libertar e desenvolver as capacidades dos indivíduos huma nos sem levar em consideração raça sexo status de classe ou econômico A democracia tem muitos significados mas se tem um significado moral encontrase este em decidir que o teste supremo de todas as instituições políticas e arranjos industriais deve ser sua contribuição para o crescimento total de cada membro da sociedade O crescimento serve como o coroamento da reconstrução em filosofia de Dewey Como tal inclui e torna mais inteligíveis outros aspectos dessa reconstrução Desta forma é o conceito de crescimento que orienta a investigação filosófica para os problemas contemporâneos que demandam solução pois são precisamente as tensões e pressões que retardam o crescimento na vida comunitária que devem ser elimina dos através da aplicação do método da inteligência Posto que a ampla reconstrução social necessária em prol do crescimento deve ser realizada em certa medida através de meios políticos Dewey preocupase em particular com os aspectos da teoria políti ca que parecem ser relevantes para tal objetivo 7 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o St r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 Human Nature and Conduct p 126 21 Reconstruction in Philosophy p 141 22 Experiente and Nature Urbana 111 The Open Court Publishing Company 1925 p 275 23 John Dewey Experience and Education New York The Macmillan Company 1938 p 28 24 Reconstruction in Philosophy p 147 A teoria política democrática de Dewey pode para os presentes íins ser mais bem analisada se dividida em dois tópicos Em seus próprios termos sáo eles 1 uma concepção pluralista modificada da sociedade e 2 uma verificação das conseqüências indiretas para definir o âmbito legítimo da autoridade do Estado 1 O Público e seus Problemas eníatiza que o crescimento bumano ocorre pri mordialmente no seio das associações A própria existência do bomem depende das atividades associadas na medida em que cada ser bumano nasce uma criança ima turo indeíèso dependente das atividades de outros O íàto de que muitos desses seres dependentes sobrevivem é prova de que os outros em alguma medida zelam por eles Os seres bumanos se associam portanto em virtude de sua própria estrutura Sâo feitos dessa maneira é a natureza da besta Dentre as muitas associações que contribuem para o crescimento bumano Dewey assinala em particular a família o clã e a vizinhança bem como as escolas os sindicatos as empresas e as corporações industriais e uma variedade de grupos e clubes voltados para atividades científicas artísticas e esportivas Essas associações podem ser divididas em duas categorias para íins de investigação A primeira categoria inclui os grupos que se caracterizam por relaçóes face a face relativamente permanentes a íamília o clã a vizinhança e até mesmo a pequena aldeia Esses grupamentos sempre foram os principais gentes do cuidado ou crescimen to uma vez que há algo profundo dentro da própria natureza humana que conduz a relacionamentos estáveis Esses laços vitais firmes e proíúndos só podem ser desen volvidos em uma comunidade próxima É aqui que são formadas de maneira estável as inclinações básicas e humanas e sâo adquiridas as ideias que formam as próprias raízes do caráter Dewey é levado a concluir que o local é o universal íinal e tão próximo de um absoluto quanto possível É importante notar que de início Dewey exclui essas associações imediatas da esfera das preocupações políticas uma vez que re lações íàce a íáce têm conseqüências que geram uma comunidade de interesses e valores compartilhados demasiado diretos e vitais para que gerem a necessidade de organização política Qjstumes estabelecidos de maneira informal e medidas especiais improvisa das para atender às emergências que possam surgir sáo considerados suficientes para a regulamentação que possa ser necessária dentro da comunidade local Por dois motivos os agrupamentos que transcendem a comunidade local dão lugar à necessidade de rulação política Em primeiro lugar determinadas associações podem verse trabalhando com objetivos opostos ou presas em confiitos como no caso da disputa entre os operários e a administração citada anteriormente São abun dantes tais confiitos assumindo uma forma ou outra em todas as sociedades com plexas a escola e a Igreja lutam pelo controle de suas respectivas esferas de infiuência organizações que visam assegurar igualdade de tratamento para as minorias oprimidas 25 The Public and its Prohlems p 11 24 26 p 211213214 211215 27 Ihid p 39 J o h n D e w e y 7 6 9 sofrem a oposiçáo de associações que desejam preservar o status quo Com frequência tais conflitos conduzem à guerra civil e seja como for consomem energia e recur sos que poderiam contribuir para o crescimento dos membros das associações em questão Devemos lembrar que o método da inteligência exige a resolução pacífica de conflitos uma reoidenação como diz Dewey das associações que batalham pelo bem comum Uma vez que esta supervisão e regulação não pode ser efetuada pelos próprios grupos principais é necessário criar uma entidade especial para tal fim Dewey denomina Estado a esta entidade Entendido desta maneira o Estado é uma forma secundária de associação cujos principais poderes atendem ao funcionamento harmonioso e eficaz de todas as demais associações Dewey compara esta função do Estado à do maestro de uma orquestra que não fiiz música mas que harmoniza as atividades daqueles que ao fiizerem música fiizem coisas cuja validade é intrínseca É na necessidade de harmonizar as relações entre outras associações que Dewey en controu a justificativa inicial para o Estado Admite que a figura do maestro tem óbvios pontos de contato com o que se conhece como a concepção pluralista do Estado e tem muitos aimentos para sustentar essa afirmação O pluralismo parece fornecer uma salvaguarda contra o totalitarismo supostamente inerente às formulações dominantes da filosofia política tradicional dos quais se diz que permitem a absorção de todas as associações monopolistas pelo Estado de todos os valores sociais pelo valor político A concepção pluralista estrita em contrapartida permite que o Estado só aja para fixar as condições em que opera qualquer forma de associação evitando assim a glorificação do Estado e ampliação de seu poder Na verdade ocorre muitas vezes que o Estado em vez de mdo absorver e incluir constitui em algumas circunstâncias a mais ociosa e vatia das organizações sociais O lócus do crescimento continua a ser encontrado em outras associações o que é como deveria ser conclui Dewey Muito embora o pluralismo forneça as bases para sua teoria política formal Dewey no entanto considera insuficiente a teoria pluralista convencional O plu ralismo estrito limita a ação política à resolução de conflitos entre outros grupos tendendo assim a limitar o Estado a desempenhar o papel de um simples árbitro Dewey preocupase em manter este aspecto da teoria como uma salvaguarda contra o totalitarismo ao mesmo tempo possui um motivo de extrema importância e interesse para querer ir além da teoria pluralista estrita Está determinado a transcender a con cepção do Estado como árbitro a fim de realizar a contribuição positiva que o Estado pode fàzer na promoção do crescimento Esta contribuição potencial do Estado sofre uma restrição injustificada argumenta Dewey se o Estado é capaz de fazer mais do que fixar as regras de acordo com as quais qualquer forma de associação funciona Com certeza não haveria dificuldades se de íàto todas as associações contribuíssem para o crescimento mas Dewey reconhece que nem sempre é este o caso O Estado 7 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a ra L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 28 Ibid p 27 29 Reconstruction in Philosophy p 158159 30 lhe Public and its Prohlems p 28 7 273 deve portanto ter poderes para avaliar os objetivos declarados das associações e até mesmo para olhar por trás deles a im de determinar a sua real intenção as conse qüências fectuais de seu íuncionamento e tomar medidas adequadas Dewey ilustra esse aspecto de sua teoria em Democracy and Education Democra cia e educação onde discute determinadas características de algumas das associações menos desejáveis encontradas na sociedade Há infelizmente associações de homens unidos em conspiração criminosa pregações de negócios que saqueiam o público en quanto o servem máquinas políticas unidas pelo interesse de pilhagem Ora o pro blema colocado pela conspiração criminosa pode de feto ser resolvido a contento pela teoria pluralista convencional pois é possível argumentar que após a perpetração do crime a associação criminosa infringe condiçóes acordadas ou transgride as regras do jogo O Estado árbitro pode consequentemente reprimir essas atividades crimi nosas e as associações onde se originam Por outro lado aquelas íregações de negócios que saqueiam o público enquan to o servem e as máquinas políticas voltadas para o ganho egoísta apresentam uma dificuldade maior para a teoria pluralista convencional Enquanto as atividades de tais empresários e políticos se mantêm dentro da lei o Estado árbitro náo tem motivos legítimos para interferir em seu funcionamento Todavia essas sáo as próprias associa ções que na opinião de Dewey exigem a mais profunda até mesmo a mais radical reconstrução Podemos recordar suas severas e reiteradas críticas aos efeitos desastrosos para os homens das irregularidades dos modernos empreendimentos industriais ca pitalistas É pertinente também assinalar ainda sua afirmação de que essas práticas destrutivas são sustentadas e instigadas pelos políticos máquina os patróes como costuma referirse a eles que forjaram uma aliança com os interesses comerciais Jun tos dominam a vida pública contemporânea e orientam mal as atividades do Estado Caracterizando esta relação em A opinião pública e seus problemas Dewey pondera que as formas de ação associada características da atual ordem econômica são tão maciças e extensas que determinam os constituintes mais significativos do público e da resi dência do poder Além disso inevitavelmente estendem a mão para fisgar os óigãos do governo controlam aspeaos da lislação e da administração Dewey não está disposto a permitir que os princípios da teoria pluralista convencional que preveem apenas a função árbitro do Estado fiquem no caminho da reforma das associações empresariais gananciosas e das máquinas políticas que gravemente interferem com o crescimento da multidão de cidadãos comuns O crescimento o fomento univer sal do crescimento é sempre o padrão final de Dewey para a ação política Desta forma insiste que o Estado não deve limitarse apenas a fixar as condições em que todas as associações podem ílmcionar O bom Estado portanto torna mais sólidas e mais coerentes as associações benéficas de modo indireto esclarece seus objetivos e saneia suas atividades Impõe um rebabcamento a agrupamentos prejudi J o h n D e w e y 771 31 John Dewey Democracy and Education New York The Macmillan Company 1916 p 95 ciais e torna precárias as suas condições de vida Ao realizar esses serviços propicia maior liberdade e surança a cada um dos membros das associações valorizadas Livraos de condições dificultosas que absorveriam suas eneias na simples luta negativa contra os males se tivessem de lidar com eles pessoalmente Dewey fornece dois padrões pelos quais o Estado pode determinar se devem ser fomentadas ou desencorajadas as atividades de determinada associação São estes resumidos com precisão em Democracia e educação como se segue Que número e variedade de interesses sâo conscientemente partilhados Até que ponto é plena e livre a interação com outras formas de associação Dewey esclarece esses padrões ao aplicá los a associações destrutivas como a quadrilha de criminosos a corporação gananciosa a máquina política que serve a si mesma Considera cada uma dessas associações capaz de restringir o crescimento pois são poucos os laços que unem os seus membros Este fato é mais evidente no caso da quadrilha de criminosos participação na qual se baseia em um interesse comum na pilhagem Da mesma forma o laço que une em presários em uma agregação de negócios predatórios é limitado principalmente a um interesse no lucro pecuniário É a busca estreita de despojos ao invés de uma ampla preocupação com o bem comum que caraaeriza a participação em uma máquina po lítica Seguese daí que a participação em tais associações tende a isolar seus membros de outros grupos com relação à reciprocidade dos valores da vida Em contrapar tida Dewey é veemente ao fidar das possibilidades de crescimento que decorrem da participação em associações dedicadas às atividades científicas e artísticas educação assistência social e assim por diante Não se pode compreender por inteiro a relevância e o significado da democracia acrescenta Dewey até que uma segunda restrição seja feita à teoria e à prática plura lista convencional De modo geral as condições materiais da vida têm sido tais que é grave o prejuízo que causam ao crescimento de uma parte substancial dos cidadãos mesmo em um país tão rico como os Estados Unidos O poder econômico concentra do tem consistente e persistentemente negado efetiva liberdade aos economicamente desfavorecidos e destituídos privando muitos de uma oportunidade para um sólido desenvolvimento Tais privações como argumenta Dewey em A opinião pública e seus problemas tendem a perpetuarse posto que os carentes são muitas vezes incapazes de proporcionar aos seus filhos uma educação adequada e os demais elementos essen ciais para o pleno crescimento Quando associações primárias como a fiunília são in capazes de fornecer condições adequadas para o crescimento o Estado deve assumir essa responsabilidade Assim Dewey saúda a tendência constante de que a educação das crianças seja considerada um encargo próprio do Estado apesar do íáto de que os 7 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 32 The Public and its Problems p 7172107 33 Democracy and Education p 96 34 Authority and Social Change printed in the Harvard tercentenary publication Authority and the Individual 1937 p 178 and more readily available in InteUigence and the Modem World John DeweysPhilosophy Ed J Ratner NewYork Modern Library 1939 p 351352 filhos sáo a responsabilidade primordial da família Em tais questões é indispensável a cooperação do Estado uma vez que o período em que a educação é possível em um grau eficaz é o da infencia se este período não for aproveitado serão irreparáveis as conseqüências Poucas vezes se poderá compensar esta negligência mais tarde Decer to aqueles que não são pais são tributados para viabilizar uma sólida educação para todos já que é responsabilidade do Estado proporcionar boas condições para o máxi mo crescimento de todos independente de desvantíens econômicas ou outras O princípio subjacente a este argumento é elucidado pela afirmação de Dewey de que outros dependentes tal como o louco o permanentemente dependente são os típicos tutelados pelo Estado pois quando as partes envolvidas em qualquer tran sação são hierarquicamente desiguais é provável que a relação seja unilateral e sofram os interesses de uma das partes Se as conseqüências parecem graves em particular se parecem irrecuperáveis o público exerce uma pressão que igualará as condições Por óbvio a aplicação plena deste princípio exigiria extensa tributação dos ricos a fim de igualar as oportunidades para todos os cidadãos Também resultaria em um aumento no poder e complexidade da máquina do Estado à medida que fossem criados órgãos administrativos para a coleta de impostos e para realizar ou supervisionar programas apoiados pelo Estado No entender de Dewey os desejos e necessidades humanos que demandam algo semelhante ao estado democrático do bemestar social para que sejam atendidos não podem ser negados pelas limitações da teoria pluralista convencional É à luz desta conclusão que se pode compreender melhor a insistência de Dewey de que o tamanho exato e o caráter do Estado não podem ser determinados de forma universal ou a priori mas devem ser descobertos de novo dentro do contexto de cir cunstâncias particulares através da aplicação do método da inteligência O padrão orientador deve ser a determinação empírica de quais conseqüências da atividade pri vada são graves ou irrecuperáveis o bastante para justificar a intervenção política Este argumento aponta para duas outras questões quem de íàto determinará isso e quais são os critérios pelos quais se pode determinar se as atividades de uma dada associação são favoráveis ao sólido crescimento e assim a ser fomentadas ou o contrário A própria grande amplitude para não dizer falta de clareza de critérios como crescimento ou seriedade torna ainda mais relevante a questão de quem deve definilos e aplicálos Estas perguntas assumem significado ainda maior quando se considera o fato de que a gradual modificação de Dewey da teoria pluralista ampliou a esfera das atividades estatais legítimas incluindo até mesmo as associações fiice a fàce que de início eram percebidas como externas ao âmbito político A fim de propor cionar uma educação pública obrigatória proter os fracos e dependentes e igualar as oportunidades para o crescimento de todos a autoridade política iria forçosamente intrometerse nos assuntos até mesmo da família do clã do bairro Aparentemen te se essa autoridade política difusa caísse em mãos iníquas surgiria a ameaça desse mesmo totalitarismo que Dewey tanto se empenha em evitar Sua consciência dessa J o h n D e w e y 7 7 3 3 5 The Public and its Problems p 6 2 6 3 ameaça conduz a sua formulação do teste da conseqüência indireta para a legitimi dade de qualquer exercício da autoridade do Estado Este teste é o segundo elemento importante de sua teoria política formal a ser examinado 2 A aplicação do teste da conseqüência indireta de Dewey pode ser compre endida de modo mais fácil por meio de um exemplo Suponhamos que os operários de uma usina siderúrgica tentem organizar um sindicato Em seu início o movimento sindical pode limitarse a alguns operários que poderiam utilizar uma parte de sua hora de almoço para falar de negócios ou seja para discutir os problemas que encon tram no trabalho Tais discussões mesmo que regularizadas são caraaerizadas por Dewey como privadas de acordo com a regra de que uma ação é privada enquanto suas conseqüências restringemse ou se acredita que se restrinjam sobretudo às pes soas com envolvimento direto nela Assim sendo as discussões não têm qualquer interesse para o Estado e não podem sofrer qualquer interferência Suponhamos porém que aqueles que participam dessas discussões que eram de início privadas decidam fundar um sindicato e em seguida tomem medidas para implementar sua decisão A fim de atingir sua meta podem trazer outros trabalha dores a suas reuniões organizadores externos podem ser introduzidos na fábrica para auxiliar nesse processo pode ser deflígrada uma greve com o intuito de forçar o re conhecimento do sindicato Caso o movimento sindical venha a ter sucesso haverá vastas conseqüências indiretas que afetarão a vida de muitos Aumentos no custo do aço podem ter efeitos importantes sobre o íuncionamento de indústrias correlatas a elevação dos custos da mão de obra pode motivar a administração a introduzir equipa mentos automáticos açáo esta que daria origem a outras conseqüências indiretas As ramificações de todas essas conseqüências de uma forma ou de outra afinal atingirão os consumidores o público que compra Aqueles que são afetados com gravidade por essas conseqüências indiretas cons tituem o público tal como definido por Dewey O bemestar do público requer que sejam controladas essas conseqüências indiretas É para tal fim que aqueles que constituem o público devem selecionar representantes que por sua vez exercerão o poder político Dewey pouco se interessa pelos detalhes institucionais do Estado Afirma que a única declaração que pode ser feita é puramente formal o Estado é a or ganização do público executada através de funcionários para a proteção dos interesses companilhados por seus membros É evidente para Dewey que a complexa sociedade industrial do século XX dá ori gem a muitos desses públicos pois são incomparavelmente numerosas as ações con juntas cujas conseqüências são indiretas graves e duradouras e cada uma delas se cruza com as demais e gera um grupo específico de pessoas às quais afetam em particular Dada esta diversidade de públicos com sobreposição de membros Dewey é por for ça levado a se perguntar se há alguma maneira em que esses diferentes públicos pos 7 7 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 36 Ibid p 12 37 Ibid p 33 sam ser reunidos em um sistema integrado completo Esta questão é de íundamental importância uma vez que os termos da teoria de Dewey autorizam os intrantes de cada público a eleger representantes para tratar das conseqüências indiretas geradas por determinadas atividades privadas como no exemplo anterior Para tanto parece ser necessária a eleição de um gigantesco número de representantes ou a elaboração de um sistema pelo qual um indivíduo fosse eleito para representar vários públicos Infelizmente Dewey não desenvolveu sua doutrina da representação muito além deste ponto As orientações adicionais que fornece são em grande parte negativas como por exemplo seu argumento contra a ideia de representação funcional ale gando que tal sistema propicia a expressão política de grupos de interesse e não dos indivíduos afetados por seu íuncionamento Dewey insiste que a democracia política requer um sistema de representação mas de bom grado debca para outros a tareíá de elaborar as formas institucionais e os detalbes de seus ensinamentos políticos Assim o fez por dois motivos Em primeiro lugar argumenta que as instítuições políticas devem ser sujeitas a modificações constantes a fim de dar expressão imediata às condi ções em constante mudança da vida associada Por conseqüência qualquer tentativa de corrigir sua forma seria perigosamente restritiva Em segundo porém muito mais íundamental está a opinião de Dewey de que o caráter do corpo de cidadãos tem im portância cabal para a concretização da boa política Em seus escritos políticos Dewey intencionalmente minimiza a importância de arranjos institucionais e constitucionais Desta forma atribui a um corpo de cidadãos educados instruídos imbuídos de espí rito público e ativos a responsabilidade quase completa pela realização do bom regime Tais cidadãos proclama ao longo de sua obra poderiam inaugurar uma nova era na vida democrática uma era que pela primeira vez na bistória bumana tornaria possível a realização das fertas e abundantes potencialidades da vida Um corpo de cidadãos que pelo contrário seja predominantemente ignorante egoísta e apático promete um resultado diferente Temse observado que o teste da conseqüência indireta de Dewey para os limites da autoridade do Estado bem como a sua teoria da associação colocam nas mãos dos públicos e de seus representantes a responsabilidade total por determinar os limites do poder político e seu modo de implementação São eles que devem determinar se as conseqüências indiretas são sufi cientemente graves ou amplas para justificar o controle político Um mau enten dimento ou aplicação inadequada de tais normas por públicos seduzidos pela paixão ou por demsogos equivocados pode destruir a esfera do privado A tirania da maioria apresentase como uma possibilidade concreta A única proteção garantida contra o desgoverno agora e no íúturo está no de senvolvimento de um corpo de cidadãos que seja plenamente democrático em todos os aspectos Um dos instrumentos mais importantes para a produção de bomens de mocráticos afirma Dewey de maneira sistemática desde por assim dizer o início de J o h n Dewey 775 38 Ibid p 137 sua obra é um sistema de ensino concebido para tal finalidade Nas escolas os futuros cidadãos devem ser formados de maneira que a sociedade que criarão como adultos seja um pouco melhor do que a sociedade de seus pais e cada geração por sua vez repetirá o processo originando desta forma um crescimento sem fim A tarefa das escolas portanto não é apenas unir a mente das gerações mas formar personalida des por meio da organização ou método bem como pelo conteúdo da educação e assim fazendo preparar e assegurar o progresso da sociedade O que a democracia exige são homens cujas naturezas tenham sido de tal forma democratizadas que são capazes tolerar para não dizer beneficiarse de uma democracia purificada das instituições que hoje a contaminam Homens que não estivessem dispos tos a cooperar ameaçariam a democracia dos sonhos de Dewey tal como homens incli nados a buscar friamente a riqueza ou o poder e homens que não desejassem crescer em todas as direções Assim sendo em seus anos formativos as crianças devem ser condicio nadas pela vida em suas salas de aula a se esforçarem sem competir a estudar e traba lhar em cooperação e em grupos e a adquirir expansivos hábitos de autoexpressão que os prepararão para a vida em uma democracia de crescente perfeição Sabese bem que tem sido considerável a influência de Dewey sobre a teoria da educação Os esforços de Dewey no campo da educação coadunaramse com sua crença de que toda teoria deve ser colocada a serviço da democracia e de que devem ser democratizados na prática todos os aspectos da vida a fim de que a democracia possa ser segura e progressiva Seria possível concluir a partir disso que Dewey recorreu à visão tradicional de uma ordem política global a comunidade política abrangente em que não haveria fortalezas institucionalizadas para a resistência contra o princípio governante legítimo mas as leis orientariam a vida de cada cidadão para o bem Pode se perceber até que ponto tal se distancia da verdadeira posição de Dewey quando se recordam seus próprios julgamentos sobre a filosofia política tradicional Dewey nega va a existência de um bem fixo e substantivo para o homem e afirmava ao contrário que o bem é um processo de crescimento e de mudança Além disso não entendia a comunidade como primordialmente política ou seja uma unidade determinada pela constituição em seus aspectos fundamentais Acreditava sim que a influência de fatores psicológicos e econômicos era decisiva na formação do caráter e portanto no comportamento dos homens O quanto Dewey depreciava o político fica evidente em sua recusa de tratar a democracia como em princípio uma forma de governo ao contrário percebea como um modo de vida sendo a democracia política ou jurídica algo mais semelhante a um efeito embora um efeito muito importante do que a causa da democratização psicológica e econômica A democracia política portanto se mantém firme apenas enquanto repousa so bre bases asseguradas por meio de uma reconstrução democrática em filosofia e em todos os aspectos da vida A consciência de Dewey da enormidade desta tarefa só era mitigada por sua fé cega na capacidade de todos os homens em todos os lugares para alcançar o crescimento que é o concomitante indispensável da democracia Sempre 776 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y esperançoso não permitiu que as calamidades do século XX destruíssem suas expecta tivas otimistas para o íuturo da humanidade Sua obra se baseia sempre na certeza de que com o progresso da reconstrução democrática pela qual clama temos todos os motivos para crer que não importa quais mudanças venham a ocorrer nos atuais mecanismos democráticos serão estas de um tipo que ferá do interesse do público o guia e critério mais supremos para a atividade governamental e permitirá que o pú blico estabeleça e manifeste seus objetivos com autoridade ainda maior Neste sentido a cura para os males da democracia é mais democracia L e it u r a s A Dewey John The Public and Its Problems C h ic Gateway Books 1946 Cap i p 336 cap ii p 3774 cap vi p 208219 A opinião pública e seus problemas Dewey John Reconstruction in Philosophy New York New American Library 1950 Introduction p 828 Reconstrução em Filosofia B Dewey John Human Nature and Conduct New York Holt 1944 Cap iv p 125130 cap vi p 223237 A natureza humana e a conduta introdução à psicologia social Dewey John Experience and Education New York Macmillan 1938 Cap iii p 2332 Experiência e Educação Dewey John Liberalism and Social Action New York Putnam 1935 p 7485 Liberalismo e ação social Dewey John Democracy and Education New York Macmillan 1916 Cap vii p 94102 Demo cracia e educação J ohn D e w e y 7 7 7 39 Ibid p 146 18591938 E dmund H usserl Seria uma pergunta pertinente por parte do estudante de política se é correto incluir um ensaio sobre Edmund Husserl em uma bistória da filosofia política Com certeza não se encontrará neste ensaio uma ampla articulação de assuntos políticos virtudes e vícios regimes e leis considerações de ordem prudencial e o conhecimento de política adquirido pelo estadista através de longa experiência empeirid de seus detalbes No entanto é possível justificar essa inclusão Muitos são da opinião de que Husserl introduziu uma revolução na íilosoíia cuja importância é comparável à de Kant ou mesmo de Descartes muitos argumentam que a obra de Husserl assinala o fim ou o começo do fim da filosofia moderna Devemos reconbecer que tais senten ças são pronunciadas por indivíduos que estão próximos de serem contemporâneos de Husserl a relevância de Husserl não pode receber de nós sua derradeira avaliação Todavia como estudantes de íilosoíia política devemos encarar como muito revelador que uma forma de pensamento tão íundamental e abrangente como a de Husserl de certo contém relativamente pouco que se refira à filosofia poiítica Essa ausência não se deve a uma indiferença por parte de Husserl ou de seus seguidores para com os assuntos que preocupam o bomem político Pelo contrário a concepção de intensa ética que tem Husserl acerca das metas do filósofo inclui a ambição de fornecer uma orientação filosófica para a reflexão e a ação polítíca Paradoxalmente a ausência da filosofia polítíca é devida ao fato de ter Husserl tão elevadas expectativas sobre o que é possível no campo prático Uma reflexão sobre esse estado de coisas pode aprofundar nossa compreensão do que torna possível a filosofia política Para ser mais exato Husserl parte do pressuposto de que a mais elevada forma de vida a da investigação teórica pura é um potencial um tebs oculto ou consumação à espera de realização em todo ser bumano Husserl acredita que todos os bomens podem alcançar o tipo de autonomia caraaerística do antigo íilósofo a total independência do preconceito do deformador apo a si mesmo Filósofos anteriores pelo menos até Kant e Hel foram mais cautelosos a respeito de nutrir quaisquer suposições ou es peranças desse tipo Percebendo a constante tensão entre a luta pela verdade e os apegos ofuscantes que tornam possível a vida política assumiram a permanente necessidade de prudência na apresentação e aplicação da teoria à vida prática Assim Descartes e Leibniz embora seus escritos não sejam extensos sobre temas políticos empregam uma retórica adequada para o leitor não filosófico que reconhece tacitamente a dificuldade de abordar a vida prática por meio de argumentos teóricos Husserl tampouco escrevendo muito sobre política está apesar disso mais próximo de íilósoíòs como Nietzsche e Marx em seu entendimento da relação do discurso teórico com a vida prática Um de terminado otimismo extremo nos ideais husseriianos está ligado como veremos a suges tões de que a esfera política não pode ser dotada de uma natureza distinta e duradoura Em sua atividade filosófica Husserl com extraordinária persistência tenta desvelar os íúndamentos básicos da racionalidade de modo a resgatar a racionalidade das inter pretações falaciosas das correntes positivistas e historicistas do ceticismo A constatação fimdamental de Husserl podese dizer é de que todas as explanações anteriores da ra cionalidade tenderam a uma conclusão autodestrutiva totalmente evidente para nós no ceticismo da modernidade tardia na medida em que não conseguiram perceber o fato de que a essência da razão é a absoluta autonomia A fim de desvendar essa essência oculta da autonomia Husserl comprometese a examinar as premissas da tradição do pensamento científico e filosófico um exame que deixa evidente a atívidade construtiva autônoma da razão na produção de tais premissas Assim não podemos mais tomar como um pressuposto a verdade de tais premissas Para o estudante da política há três íàtores de importância imediata no esforço de Husserl 1 propóe uma noção de racionalidade como essencialmente normativa e vê a tarefe de resgatar a racionalidade a serviço do bem humano 2 propõe críticas ao positivismo ou como prefere Husserl psicologis mo e ao historicismo que têm é claro relevância imediata para a ciência política 3 que se envolve em um exame minucioso das premissas herdadas da tradição filosófica um exame que deu impulso a fundamentais investigações históricas quanto ao sentido dos primórdios gros e dos fundamentos dos primórdios modernos da filosofia A F e n o m e n o l o g ia e a C r is e O c id e n t a l Husserl é o principal fundador do movimento filosófico do século XX conhecido como fenomenologia Náo é o primeiro pensador a empregar o termo fenomenolo gia para designar um tipo de pensamento que procura deslindar e descrever os fenô menos primários da consciência exatamente como se apresentam sem a intervenção de construções teóricas No entanto é o primeiro a propor o ideal de uma fenome nologia de rigor científico que possui duas características marcantes 1 a ciência da fenomenologia deve ser absolutamente destituída de pressupostos ou seja deve ser capaz de fundamentar quaisquer pressuposições ou conceitos na absoluta autoevi dência da consciência investigadora e portanto não aceitará a verdade de quaisquer hipóteses ou conceitos estabelecidos pelas ciências existentes incluindo a lógica ou obtidos pela experiência comum 2 a fenomenologia científica é a verdadeira filosofia primeira e a íundação de todas as ciências e náo é apenas uma propedêutica à primeira filosofia tal como era para Hegel uma forma de fenomenologia E d m u n d H u s s e r l 7 7 9 Nem todas as formas da fenomenologia do século XX sâo husserlianas todavia quase todos os fenomenólogos posteriores a Husserl devem algo à sua formulação do ideal da fenomenologia e aos programas que sugeriu para a realização deste ideal A maior parte das áreas da vida intelectual no continente europeu do século XX foi influen ciada pela maneira de pensar fenomenológica O ideal teórico e os métodos de Husserl são inseparáveis de uma mensagem para a era moderna tardia a qual tem sido inequivo camente pertinente ao sentido de uma crise na civilização europeia desde 1914 Essa mensagem pode ser expressa da seguinte forma não só a filosofia mas nossa civilização como um todo não mais podem tomar como pressuposto a validade dos pontos de parti da e os resultados das ciências estabelecidas Uma determinada visão do conhecimento proveniente dessas ciências tornouse o entendimento até mesmo do cidadão comum ou preconceito relativo ao conhecimento Todavia essa visão é extremamente questio nável pois repousa sobre confusões e erros básicos que afinal resultam em dúvidas sobre o significado e o valor da ciência e com isso da própria razáo e do conhecimento As dúvidas sobre nossa capacidade de atribuir de modo racional um valor positivo para a razâo e o conhecimento recebiam no tempo de Husserl vozes poderosas de homens como Nietzsche e Weber É grande mérito de Husserl ter revelado por meio de uma análise crítica e histórica como tais dúvidas inevitavelmente emergiriam de erros exis tentes nas próprias bases da filosofia científica moderna e de ter indicado uma forma de resolver tais dúvidas por meio de uma afirmação da razáo como o bem maior Todos os escritos de Husserl e seus ensinamentos a partir de 1900 voltamse portanto para a resolução da crise da autocompreensão das ciências no Ocidente mo derno que se tornou na opinião de Husserl uma crise na autocompreensão pelo homem comum de suas próprias tarefas padrões e propósitos Na opinião de Husserl o homem ocidental deve perceber sua vida como portadora de um telos um fim ou propósito ou significado com base na razáo e em normas derivadas da razáo Todavia observa Husserl que muitos em sua geraçáo e na seguinte evidenciam uma hostilida de em relação à ciência e à razão que se baseia na experiência do fracasso da ciência e da razão em dizer alguma coisa de peso sobre as questões da liberdade e do sentido da vi da Assim a Europa ou o Ocidente é ameaçada com a perda de seu telos único está à beira de um colapso espiritual e de um ódio bárbaro do espírito Husserl percebe sua própria missão como sendo de evitar este colapso por meio de uma demonstração de que as falhas da razão são apenas as falhas das modernas póscartesianas concepções equivocadas da razáo A fenomenologia é portanto acima de tudo uma tentativa de dar à razão a interpretação correta como fonte de significado valor e telos final para a 780 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 1 E Husserl The Crisis ofEuropean Sciences and Transcendental Phenomenology trans D Carr Evans ton Northwestern University Press 1970 p 335334 389395 1 Doravante Crisis 2 Crisis 1 2 5 3 Philosophy and the Crisis ofEuropean Man a conferência de Viena de 1935 in E Husserl Phenomenology and the Crisis of Philosophy trans Q Lauer New York Harper and Row 1965 p 178180 191192 Doravante Philosophy Crisis 6 2 humanidade como tal mas em especial para o Ocidente Pois este já adquiriu alguma consciência de seu íim racional e o hábito de se considerar como o portador de uma iluminação especial para toda a humanidade No entanto até agora em sua história o homem ocidental teve apenas uma obscura promessa da verdadeira essência da razão como autonomia como dar a si mesmo todo significado valor e íins Husserl é portanto um dos principais analistas e que respondem ao que tem sido chamado do feto ou a ameaça do niilismo O pensamento de todos os seus segui dores e discípulos está dentro do âmbito de tal preocupação a recuperação do espírito ocidental em fece ao iminente niilismo Todavia é preciso dizer que muitos dos dis cípulos e leitores de Husserl abandonaram sua explicação desse espírito em termos de um heroísmo da razão no qual o telos do homem ocidental consiste no desvelamento da verdadeira essência das coisas e do Ser por meio da investigação racional Husserl alegava que este telos foi descoberto primeiro pelos gregos na Antiguidade Aqueles discípulos que rejeitavam a visão racional de telos do Ocidente eram assim obrigados a mostrar ou que Antiguidade grega apontou mas não consuiu perceber outro telos mais elevado ou a mostrar que o espírito que pode salvar o Ocidente e o mundo nâo é de origem grega em absoluto O primeiro desses esforços íbi encetado sobretudo por Heideer e está no cerne do que é agora denominado filosofia hermenêutica O segundo esforço foi feito por aqueles que procuravam recuperar as fontes e a energia de várias ortodoxias e cuja manutenção do nome filosofia é questionável Seria possível atribuir ao próprio Husserl alguma responsabilidade pelo abandono de sua visão Os críticos entre os discípulos de Husserl fiizem uma crítica unânime ao passo que Husserl afirma que seu pensamento não tem pressupostos pressupôs no entan to que a investigação racional é o telos humano seus fundamentos fenomenológicos para nossas crenças primárias não abalizaram essa crença Para ser justo com Husserl devese admitir que em suas últimas investigações tenta fundamentar integralmente sua explicação da essência humana como racional Tal fundamentação é central para o retorno ao mimdo da vida como objeto de investigação Ao mesmo tempo o pensa mento de Husserl o conduz para mais perto de algo semelhante à filosofia política na medida em que retoma o tema do mundo da vida Veremos que os escritos de Hus serl ocupamse em pelo menos duas ocasiões de um problema reconhecivelmente de cisivo para toda a tradição da íilosoíia política que começa com Sócrates o da relação do filósofo com o contexto da vida prática e poUtica que sua atividade pressupõe ou das fontes da íilosoíia e da ciência no mundo préfiiosófíco e précientífico Podemos observar de antemão que o modo como Husserl aborda este problema socrático é em alguns aspeaos bastante divergente do método socrático original Essas divergências ajudam a explicar o feto de fenomenólogos posteriores terem aban donado a ênfitse de Husserl sobre a racionalidade Muito embora Husserl concorde com Sócrates que a razão é essencial para a humanidade é incapaz de dizer que a razão E d m u n d H u s s e r l 7 8 1 4 Philosophy p 192 pertence à natureza hiunana Ou seja podese felar da essência humana mas náo da natureza humana a essência do homem consiste em uma racionalidade que se realiza por meio da formação de estrumras de significado A maneira pela qual a razão assim constitui significados possui determinadas características invariáveis e podese assim felar da essência invariante da razão Porém as estruturas de significado constituídas podem variar historicamente e incluem características humanas essenciais tais como a descoberta da teoria na Antiguidade Em outras palavras o modo como o homem concebe a natureza ou como diz Husserl objetiva a natureza sofre mudança histó rica é infinito o poder da razão para formar novos significados e assim é ilimitado seu poder de criar história A natureza portanto pertence à historicidade do espírito em outras palavras é historicamente mutável o modo como o homem rela ciona sua racionalidade a um mundo circundante É de feto a essência imutável da razão procurar clareza sobre fimdamentos básicos mas esses fimdamentos podem ser encontrados em sua própria atividade o modo como é concebido o mundo circun dante ou natural como algo externo à racionalidade nada tem de permanente Quando se fala da natureza humana dizse de feto felar da relação da razão com o mundo circundante que inclui o corpo humano Assim a discussão sobre a natureza humana é em geral substituída por Husserl e pelos fenomenólogos pela discussão da cultura ou civilização como a esfera das relações constituídas entre a razão e o mundo circundante Podese dizer que essa substituição é possível porque a fenomenologia é muito mais racionalista que o pensamento de Sócrates de Platão e da Antiguidade afirma que toda a essência da humanidade é a razão ou consciência Mesmo assim Husserl é um dos mais veementes críticos do historicismo Toda via é um crítico dedicado que conhece sua afinidade com o seu adversário Sua crítica ao historicismo é um aspecto crucial de sua tentativa de resgatar a racionalidade como o telos ocidental pela realização da ciência rigorosa Afinal Husserl constata que deve admitir os méritos do historicismo chega à conclusão de que a razão em sua busca para definir o seu próprio telos deve combinar investigações históricas e sistemáticas O telos da razão além disso não pode ser definido exceto nos termos de uma filosofia da história Podese dizer que a filosofia política de Husserl toma a forma em seus últimos escritos de uma filosofia da história A C r ít ic a d o P sic o l o g is m o A discussão da crítica de Husserl ao historicismo e de suas próprias reflexões posteriores acerca da importância da história deve ser antecedida por uma explanação mais detalhada dos conceitos e aiumentos da fenomenologia Husserl começou como matemático o seu ponto de entrada para os problemas da crise moderna foi sua re 7 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 Ibid p 183 sobre Sócrates 6 Ibid p 154188191 Crisü p 315334 7 Crâ p 343351 flexão sobre os fundamentos filosóficos da aritmética e da lógica Foi nesse campo de investigação que encontrou o problema que abriu para ele todo o reino da filosofia a tendência do pensamento desde Descartes e Locke a psicologizar todos os proble mas do conhecimento pela redução do direcionamento da mente a objetos intencio nais a meros atributos psicológicos ou estados de espírito O século XIX testemunhara excepcionais tentativas de fundamentar em processos psicológicos tanto a lógica como a aritmética Contra tais tentativas Husserl argumentou que os conceitos matemáticos e lógicos são entidades ideais e totalidades de sentido que não podem ser entendi das como sendo produzidas de forma casual por eventos físicos ou quasefísicos dentro da psique Tais conceitos e muitos outros como viria a descobrir Husserl possuem uma objetividade irredutível diferentes pensadores podem compreender o mesmo significado objetivo independente das diferenças reais ou aparentes em seus processos psíquicos compreendidos de um ponto de vista fisicalista Os erros das explicações psicológicas da base das ciências são então duplos 1 tais explicações supõem que a mente ou razão humana pode ser entendida nos mesmos termos que os objetos físi cos ou em termos quase físicos moldados a partir daqueles empregados para explicar corpos por exemplo dados dos sentidos e suas leis de dependência associação etc este é o erro do naturalismo 2 tais explicações também pressupõem ou argumen tam que uma psicologia baseada em tais princípios é a verdadeira filosofia primeira e a base de todas as ciências este é o erro do psicologismo Husserl via no psicologismo a principal fonte do subjetivismo ceticismo e relativismo modernos Sua crítica de seus princípios passou da questão mais estreita de suas nefiistas conseqüências para uma explanação das ciências exatas até a questão mais ampla de como desenredar das falsificações psicologistas a explicação da racionalidade como fornecedora de normas Uma vez que o psicologismo pressupóe o naturalismo é necessário articular uma explanação alternativa da psique como algo totalmente diverso da natureza tal como entendida pelos princípios modernos como o domínio do corpo ampliado regido por leis causais Husserl não sujeita a explanação da natureza a uma crítica imediata essa ao contrário contesta a inclusão da psique dentro da natureza assim entendida Isto é crucial para entender por que a psique e portanto a razão pode ter uma es sência mas não uma natureza A naturalização da psique de acordo com Husserl é aparente na leitura de Descartes que a considera como um tipo de substância em paralelo mas não igual à substância corporal Ainda assim Husserl reconhece sua dívida para com Descartes este último inaugurou o mundo da subjetividade como campo de investigação quando encontrou o denominador comum para todos os atos de consciência no eu penso cogjtò Porém muito embora Descartes tenha desco berto a universalidade e o papel fundamental da consciência não enfiitizou o que é sem dúvida único na consciência e que a fez diferente de tudo o que é natural a E d m u n d H u s s e r l 783 8 Philosophy as Rigorous Sdence in Phenommology ver n 3 suprd p 7984 98ff Doravante Rigprous Sdence 9 Ibid p 102105106 110 Crisis p 265 nâo há ontologia para o reino das almas consciência é sempre implicada em um mundo de significados que está presente a ela sempre que houver consciência O eu penso nunca pode ser vazio é sempre dirigido para além de si mesmo e para além do que está mais imediatamente presente isto é a sensação para um objeto A relação da consciência para com seu objeto denomi nada intencionalidade é diversa de qualquer relação entre os objetos ou eventos na simples natureza A explicação científica da intencionalidade a essência da razão deve substituir a psicologia naturalista como a verdadeira filosofia primeira ou metafísica desta forma ao mesmo tempo imitando e se aíástando da colocação das íúndaçóes de todo o conhecimento na explicação de consciência de Descartes É preciso ver como essa nova explicação do psíquico tem como objetivo resgatar ou deixar totalmente evidente pela primeira vez a essência da razão como fornecedora de normas Costumase dizer que Husserl procurou preservar a articulação do mundo do senso comum tal como se mostra para nós antes das distorções pela teoria Isto é correto na medida em que Husserl em oposição às modernas reduções científicas da experiência insiste em que para a consciência todas as aparências têm um logos uma razão imanente para aparecer como aparecem Não são redutíveis a processos ocultos e subjacentes ou substratos Este logos é também chamado de significado existem estruturas para vários tipos de significado ao que Husserl denomina eidê Os vários tipos básicos de atos conscientes vontade desejo lembrança imaginação etc pos suem suas diferentes estruturas eidéticas Husserl argumenta que a evidência dessas estrumras ou formas diferentes de intentar significados deve ser intuída diretamente nos próprios atos onde os tipos de objetos significados que estão sendo procurados sáo de fato encontrados ou realizados Assim o objeto ou o significado que eu de íáto intento em um determinado ato náo pode ser de um tipo totalmente diverso daquele que eu acredito que intento portanto não se pode aceitar a declaração de um psicólogo redutivo de que quando eu intento defender a justiça na realidade estou apenas expressando luxúria animal reprimida A fonte de todas as evidências sobre a nossa razão é a intuição ao invés de inferência ou derivação do racional a partir do irracional ou de um tipo de ato racional a partir de outro tipo É evidente portan to que a explicação da razão por Husserl deve implicar uma defesa da visão do senso comum da integridade do pensamento normativo Por outro lado a explicação do racional por Husserl está longe de ser simples mente uma justificação do realismo do senso comum Somos tentados a dizer que a despeito do realismo do senso comum Husserl mantém uma visáo peculiarmente radical da autonomia absoluta da razâo Podese dizer que se afasta do senso comum exatamente na medida em que caracteriza a razão como normativa ou fornecedora da 784 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 10 Crisis pars 1621 sobre Descartes Rigorous Science p 8889 116117 a nota de Husserl sobre a genuína metafísica Philosophy p 190 a nova ciência que trata de toda questão concebível 11 Rigorous Science p 112 ff 12 Ibid p 146147 Crisis par 9 sec c a crítica dos métodos indiretos lei e nada mais A explanação bastante unilateral de razão pode ser entendida como resultado em parte de uma crítica das bases e métodos da ciência moderna ou de determinadas versões dela na medida em que uma psicologia ílsicalista não pode acei tar o normativo como um dado irredutível da vida psíquica é inteiramente incapaz de explicar a si mesmo como atividade científica Toda ciência repousa sobre normas ideais de verdade o método indutivo é em si uma norma ideal que não pode ser alcançada indutivamente A razão é em essência e por completo normativa pois não podemos sequer deparar com fatos como fàtos sem a pressuposição do ideal Assim todo sentido é ideal e irredutível ao factual A fenomenologia que re vela esta estrutura idealizante e criadora de ideais da razão pode portanto alegar ser a ciência do científico revelando como é possível a ciência Porém é exatamente nesta questão da idealidade total da razão que Husserl constata ser falho o ponto de vista do senso comum e ser aliado à ingenuidade da psicologia fisicalista Uma rigorosa reflexão acerca da racionalidade revela que suas estruturas nada têm a ver com a natureza como o reino do existente a razão como criadora de normas não é de forma alguma limitada pelos fetos da existência a meta contingência do a posteriori Assim devem ser suspensas não negadas todas as supo sições sobre a existência caso se deseje ter acesso à essência do racional Esta suspensão epochê que primeiro possibilita o acesso da consciência aos fenômenos da experiên cia como fenômenos sem a intervenção de suposições sobre sua base metafísica em qualquer coisa existente é o primeiro momento da femosa redução fenomenológica de Husserl A consciência comum com a sua atitude naturalista toma como pres suposto a existência da natureza tende a objetivar ou a considerar toda a realidade como coisificada Assim não enfoca os fenômenos como fenômenos exatamente porque não tem como objetivo uma análise rigorosa A existência sempre escapa a uma descrição rigorosa porque a razão não pode constituir existência pode constituir ape nas o reino ideal do significado Muito embora a natureza como o reino do existente não possa ter qualquer interesse para a fenomenologia a natureza na medida em que tem um significado ideal por exemplo na lei científica é uma preocupação dela a natureza nesse sentido é de fato o produto da razão fornecedora de leis Assim para praticar a fenomenologia e focalizar o reino puro de significado ideal é necessário uma disciplina árdua para desligarse da preocupação comum com a natureza tal como ela existe A filosofia antes da fenomenologia como ciência rigorosa não foi capaz de realizar esse desligamento radical e portanto sempre tendeu a naturalizar a razão assim fazendo revelou que é apenas uma vítima dos preconceitos não examinados do senso comum Tal se revela em sua tendência a considerar a natureza como um todo autossuficiente de coisas que existem sem depender da mente como nos primórdios da cosmologia g r e de considerar a mente como uma variável dependente da na E d m u n d H u s s e r l 785 13 Rrous Science p 85 9298 PhUosophy p 154185188 14 Rorous Science p 8587 as ciências naturais tomam como ponto pacífico a existência da natuteza ibid p 116 ff a razáo náo constitui existência tureza ou corpo ou como um paralelo uma entidade semelhante à natureza Em suma podese dizer que a recuperação das aparências por Husserl está mais preocu pada com a descoberta da autonomia absoluta do racional A C r ít ic a a o H is t o r ic is m o No ensaio A íilosoíia como ciência rigorosa 1911 Husserl constrói um po tente argumento retórico a íavor da nova abordiem na íilosoíia O feto de que este é um dos escritos mais retóricos de Husserl indica que é também um dos mais expü citamente políticos ao contrário de mascarar sua retórica revela os mais proíúndos níveis das intenções da fenomenologia Mais uma vez o aijumento gira em torno da revelação de que o moderno pensamento naturalista e psicologista insidiosamente corrói a si mesmo e portanto parece corroer toda a razão Quando a razão parece estar corroída as conseqüências são desastrosas para toda a vida humana uma vez que toda a vida humana depende de normas racionais O homem deve aterse à ciência rigorosa para a satisfeção das mais elevadas necessidades teóricas e das necessidades de normas de natureza ética e até mesmo religiosa A alegação de que a ciência pode satisfezer tais necessidades foi aventada na Antiguidade e jamais foi de todo abandonada apesar de interesses que supostamente estariam em conflito com o exercício da livre inves tigação É curioso observar que na época atual a livre investigação é seu próprio agente de dissolução As noções de verdade absoluta e normas ideais cedem lugar a um relativismo de múltiplos pontos de vista o espírito científico é enfraquecido por um debilitante ceticismo que não tem outra fonte além da própria ciência As di versas formas da filosofia moderna precoce que íúndamentavam as ciências naturais inauguraram essas tendências céticas Contudo ao positivismo naturalista do século XVIII seguiuse o florescimento de um espírito muito mais cético o positivismo his toricista do século XDC Esse século afirmava que a experiência da história revelara o caráter transitório e limitado pelo tempo de todos os ideais a proira desta tese ou seja a experiência que produz a evidência nada mais era do que o simples feto da ascensão e queda de todas as culturas e formas de vida espiritual Este historicismo po sitivista porém é autorreíútável sozinhos os fetos jamais são capazes de determinar a verdade dos ideais a sentença todos os ideais são válidos apenas para a sua época não é sem dúvida uma simples declaração de feto sobre a história das crenças mas seu intuito é prescritivo sob a forma de uma declaração sobre a validade de todos os ideais passados e íúturos Como tal não pode ser válida apenas para a sua era e não pode ser extraída da simples experiência do passado As diversas íormas do positivismo são portanto manifestamente autorreíútáveis O resultado dessa autodestruição deveria ter constituído um reforço do espírito científico 786 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 15 Philosophy p 152153181182 16 Rigorous Science p 7172 17 Ibid p 7375 com um tetomo aos ideais clássicos de vetdade absoluta e náo seu enfraquecimento Assim devese atentar para uma forma mais sedutora de ceticismo que está ganhando a batalha contra a ciência rigorosa pela sucessão do positivismo iinuo Husserl referese a um fenômeno particular alemão a ascensão do Weltanschauunhilosophie a íilosoíia das visões de mundo Esu reconhece que a vida espiritual independe de uma base nos simples fatos e ao íazêlo assemelhase à fenomenologia e consideu que toda a verda de incluindo a do íato como o produto de grandes personalidades que interpretam o destino e as aspirações da humanidade pau a sua própria geração e talvez pau os que virão depois essas interpretações são as grandes visões de mundo O espírito científi co tem sua maior íraqueza nesta forma de filosofia a ciência é aqui substituída por uma sabedoria que está a serviço dos interesses imediatos da vida Destinase a uma elevação desses interesses todavia íàltamlhe os decisivos padrões de rigor que são necessários pau determinar qual poderia ser a mais eleuda íbrma desses interesses O historicismo mais antigo desacrediuva todos os ideais e portanto não atendia aos interesses da vidi o aprimoramento da vida é o fiudo assumido por um novo historicismo na erudição e na filosofia Husserl dirige seus argumentos contu a Lebensphilosophie de Dilthey que ao contrário de Nietzsche procuu incorporar o novo telos de investigação aos cânones relativamente tudicionais da erudição e da pesquisa Husserl observa antes de 1914 que o espírito da época é em sua essência anti naturalisu e inclinado ao historicismo de um tipo mais udical de afirmação da vida Desafortunadamente a revigorante emancipação de uma ciência humanamente banal é também uma emancipação da própria razão O estado de espírito da emancipação tem valor relativo quanto ao que deixa para trás mas não se deve esquecer que os mais elevados interesses da cultura humana exigem uma filosofia de rigor científico No entanto a filosofia das visóes de mundo propóe que há uma necessidade humana de um conhecimento unificado e unificador abrangente e totalmente esclarecedor e que a ciência náo pode fornecer esse conhecimento O conhecimento necessário existe sob a forma da compleu e espiritual formação educacional do indivíduo 57 dung Tal formação não pode ser desenvolvida por meio de proposições e doutrinas mas depende de uma experiência multifecetada estética religiosa ética política bem como científica Bildung é a virtude no sentido mais amplo como a excelência habi tual de todos os poderes do conhecimento vontade valorização e autojustificação Uma grande personalidade que possui Bildung pau Dilthey e a maioria dos alemães isto significava Goethe acima de todos os outros protótipos possíveis possui o germe desu virtude ou sabedoria em uma sabedoria rica mas não conceitualizada O papel da ciência é acessório a esta sabedoria a ciência articula esu sabedoria nas visões de mundo ou filosofias sistemáticas que oferecem a resposta relativamente mais perfeiu para o enigma da vida e do mundo A história da filosofia é a história das visóes de E d m u n d H u s s e r l 7 8 7 18 Ibid p 122130 19 Ibid p 7179 20 Ibid p 131133 mundo aprendese com essa história a variedade de grandes tipos humanos possíveis os criadores de visões de mundo O significado essencial da íilosoíia portanto só pode ser apreendido por meio da emparia interpretativa com esses criadores e nâo apenas através da mera lógica Husserl não nega que os objetivos do pensamento da visão de mundo são em muitos aspectos ao mesmo tempo nobres e necessários tenciona preencher uma ne cessária fimção teleológica na vida do homem Em sua opinião no entanto a filosofia da visão de mundo relativiza toda a verdade de acordo com o ponto de vista subjetivo dos indivíduos não obstante serem estes os mais notáveis indivíduos náo é diferente do positivismo quando incentiva uma submissão servil à autoridade das re alidades reinantes Deve ser possível exprimir o que for mais elevado no indivíduo notável como uma forma de ideal universalmente válido não apenas como a posse exclusiva de uma grande alma A objeção de Husserl colocada de outra forma é que o pensamento da visão de mundo não mantém a distinção entre ciência como fenôme no cultural e a ciência como teoria válida e portanto é semelhante ao positivismo por não perceber que os fatos nada nos ensinam sobre a verdade Por outro lado o ideal do Bildung tem o mérito de obscuramente prefigurar uma verdadeira ideia de humanidade universal todo ser humano que se empenha é um filósofo no sentido mais original da palavra De íàto a filosofia deve atender aos interesses da vida mas estes não são os interesses transitórios de um determinado povo ou era e podem ser atendidos apenas por uma ciência rigorosa que alcance uma postura universal Esta mos em perigo de sacrificar o bemestar das gerações futuras que depende do progres so ininterrupto da razão às imediatas pressões da vida à necessidade prática de assu mir uma posição O pensamento da visão de mundo perde de vista a meta infinita da ciência e está preocupado com metas práticas finitas As dificuldades que nossa era experimenta parecem revelar que o homem é um ser complexo e instável que tem dois objetivos um para sua própria época outro para a eternidade No entanto a ciência rigorosa corretamente compreendida não significa nada além da convergência dessas duas metas em um ponto infinito do qual a espécie humana deve aproximarse de modo assintótico Nossa época com a sua necessidade insuportável de uma visão de mundo deve buscar uma visão de mundo racional Ao mesmo tempo há uma cla ra dificuldade nesta proposição a vida pública exige personalidades particularmente significativas que possam realizar o bem público em esferas práticas e sua sabedoria não seja o impessoal e meticuloso saber da ciência pura Tais indivíduos são mais bem atendidos por visões de mundo que não se baseiem na ciência rigorosa Desta forma não fica claro na explanação de Husserl como as visões de mundo não científicas irão 7 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibidç 130 Ibid p 122123145 Ibid p 124129 Ibid p 134 Ibid p 134137 adquirir uma legitimação não relativística se a ciência rigorosa não é capaz de legitimá las Essa dificuldade não parece ser resolvida pela observação de Husserl de que o passo mais necessário que a filosofia deve dar na atualidade é a clara separação do pen samento da visão de mundo do conhecimento filosófico em seu sentido próprio M u n d o d a V id a e H is t ó r ia A dificuldade que acabamos de mencionar e outras que se pode supor tenham sido levadas à atenção de Husserl por seus críticos e pelo aprofundamento da crise mo ral e política da época instigaram Husserl a se dedicar a algumas novas preocupações e a dar nova direção à investigação fenomenoiógica A mais marcante e íundamental dessas novas preocupações são as reflexões na última grande obra de Husserl Die Krisis der europãischen Wissenschajien und die transzentale Phãnomenobgie A crise das ciências europeias e a fenomenologia iniciada em 1934 e inacabada sobre a ci ência do mundo da vida Na opinião de Husserl essa nova ciência é necessária para fornecer uma base mais perfeita a todos as radicais investigações da fenomenologia e portanto a todas as ciências Podemse isolar as seguintes considerações que levam à concepção dessa ciência 1 A fenomenologia preocupase sempre com a revelação das suposições não in vestigadas e ingênuas feitas pelas ciências e pela filosofia anterior Tomase evidente para Husserl que o mais fundamental e difundido dos ingênuos pressupostos da ciência não é apenas a existência da natureza mas do horizontemundo do homem como ser prático regido pelos interesses da vida cotidiana de modo crucial incluem estes os interesses do homem pela vida das comunidades políticas e religiosas às quais pertence Husserl supõe que muitas das mais básicas concepções e preocupações do homem como cientista não são os produtos dessa ciência mas são pressupostas por ela são constituídas dentro das experiências primárias da vida cotidiana A fenomenolo gia deve reencenar ou reativar as constituições primárias de significado que incluem os objetivos da ciência É ainda correto para Husserl que a razão pura é responsável tanto pelas constituições originais como pelas esquecidas e pelas reativações Vòltar se para a vida normal no mundo da vida não é apenas uma descrição das atitudes de um observador do senso comum até mesmo este observador ou este observador em particular está inconsciente de forma ingênua das constituições originais de seus pressupostos Tais constituições ocorrem anonimamente em sua maior parte e por tanto ingenuamente Assim o resgate fenomenológico da base do mimdo da vida não é idêntico à autocompreensão do mundo da vida esta última deve primeiro ser averiguada a fim de ser íúndamentada em investigações ainda mais profundas E d m u n d H u s s e r l 7 8 9 26 Ibidp3744 27 NR Editada pela Forense Universitária Grupo Gen 28 Crisis p 317334 29 Philosophy p 186 a vida como condição para a ciência p 150 a vida como condição para toda a cultura Crisis par 9 sec I 2 Husserl descobre que até entáo seu pensamento fenomenológico fora limitado por uma ingenuidade própria que assumiu o ideal da teoria pura como dada como já constituída e apenas necessitando de um acompanhamento mais fiel Esse próprio ideal deve ser reduzido ou seja devem ser recuperadas suas constituições originais A fenomenologia não pode ser sem pressupostos se não houver tal recuperação Todavia o ideal da teoria pura surgiu em um determinado lugar em um determinado momento na Antiguidade grega suigiu lá como uma atitude teórica em nítido contraste a com a preponderante atitude míticoreligiosa No momento em que surgiu como uma nova possibilidade pata a vida a teoria pura não poderia ser tomada como pressuposto os motivos que regem os primeiros filósofos revelariam como havia ocorrido uma transfor mação de interesses préfilosóficos em sua adoção de uma nova atitude Husserl assinala três importantes transformações a filosofia adota o mundo como um tema assim voltando sua atenção para o que está implícito mas é despercebido pela humanidade prática imersa em seus vários interesses por aspectos parciais do mundo b a atitude da teoria é distante dos interesses que mergulham o indivíduo no mundo em particular os interesses relacionados com a explicação míticoreligiosa do mundo como sendo regido por poderes que afetam o destino humano e que a humanidade procura influenciar ou controlar esta nova atitude é de assombro em vez de obediência reverência e medo ou súplica submissos c a filosofia mais antiga é como toda verdadeira filosofia uma ciência universal da totalidade do que é mas a primeira forma de filosofia necessária é a cosmologia ou seja uma explanação do todo como natureza entendida como uma estrutura objetiva do corpo independente da mente Explorar por inteiro as implicaçóes dessas transformações implica realizar investigações históricas não se podem divorciar por completo a história e a filosofia sistemática Restam dúvidas acerca do que exata mente espera Husserl encontrar nesta exploração É plausível que pretenda encontrar um íúndamento para a íilosoíia no mimdo préfilosófico com relação aos aspectos a e c da nova atitude Assim a mostra que a filosofia revela a capacidade humana de transfor mar o que está implícito mas oculto na consciência comum das coisas c mostra que a antiga filosofia de alguma forma ainda participa da ingenuidade e da tendência de naturalização de atitudes comuns ou naturais Contudo seria possível mostrar que a atitude de assombro b é uma transformação de outras atitudes Seja como íbr Husserl está correto quando salienta a ruptura que o suigimento da nova atitude introduziu entre as novas seitas orientadas por um recémdescoberto telos com um caráter infinito e com um potencial para a criação de uma comunidade cosmopolita baseada na investigação e as conservadoras e antigas comunidades baseadas na tradição Em outras palavras de modo inexorável o novo telos constituía uma fonte de conflitos para a vida humana Desta íbrma Husserl está disposto a sqir Heidcer ao considerar a teoria pura como uma atitude meramente derivativa que de maneira equivocada afirma a sua autonomia sobre as tradições míticopoéticas que propiciam o acesso primário do homem ao Ser 7 9 0 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 30 Philosophy p 158164 passim p 169172 31 Ibid p 160164173 ff 3 A ciência do mundo da vida persegue o objetivo de esclarecer e conformar a teoria pura como o ulos final do Ocidente e por meio do Ocidente da humanidade ao fiizêlo porém deve levar a sério a inchção de por que o telos náo está sempre evi dente e por que fica esquecido ou obscurecido Suscitar essas questões de forma séria é o mesmo que ir às fontes do grande conflito anteriormente mencionado Para Husserl isso significa examinar como a atitude natural com sua ingenuidade e resistência à teoria pura aparenta pertencer à essência da razão com base em sua explanação anterior da fenomenologia era impossível essa visão da razão como inerentemente autoocultante ou autoolvidante Assim no ensaio A filosofia como ciência rigorosa não se pode encontrar indício algum de que a própria razão pode estar na origem do conflito entre a ciência rigorosa e as pressões da vida que devem necessariamente deturpar os objetivos da ciência Husserl fãz agora uma tentativa de mostrar que uma vez que a ciência a racionalidade em sua perfeição deve desenvolverse historicamente e tem condições na história está sujeita também a distorções e esquecimento Husserl acrediu agora que o problema mais profundo de toda a filosofia é o sentido da razão na história 4 A ciência do mundo da vida deve ser um exame do mundo da vida ocidental em particular É neste mundo da vida que emergiu a teoria pura como o mais elevado telos do ser do homem portanto é aqui que na verdade se desenvolve o problema da história da luta permanente do homem para manterse fiel a esse telos apesar das forças que o compelem a esquecer dele E indispensável um exame da história dos esforços ocidentais para atingir a ciência rigorosa para a conclusão do inquérito anun ciado em 3 acima a explanação da essência da razão ao revelar que a autoocultação pertencer à sua essência tanto quanto a revelação de seu telos Ocupa lugar central no drama dessa história de Husserl a criação da moderna física matemática Esta física ou melhor sua base filosófica contém tanto a promessa da descoberta de uma verda deira ciência rigorosa quanto as sementes para as falsificações da ciência nas moder nas formas de ceticismo Podemos encontrar as raízes de nossa presente crise na obra fundamental de Galileu Descartes Locke e Newton que são seguidos pelos grandes analistas da primeira crise destes fundamentos Berkeley Hume Kant e Hegel A crise de Husserl devotase em grande parte a uma investigação histórica do pensamento desses filósofos com a expectativa de que um telos oculto esteja em funcionamento em seus esforços para estabelecer uma filosofia científica Em outras palavras há um evidente projeto que se desenvolve na história por meio do qual a razão procede pelo erro em direção à plena clareza sobre sua autonomia Devese perguntar no entanto o que tem essa história a ver com o mundo da vida Em primeiro lugar Husserl oferece uma explanação da origem do matemático ou mais exatamente da geometria grega em termos das constituições anônimas de sentido que ocorrem dentro das atividades normais do mundo da vida medir calcular avaliar etc E dmund H usserl 7 9 1 32 Crisis par 3 Philosophy p 155 ff 33 Philosophy p 161 a historicidade especial do Ocidente Crisis 14 e 57 o telos oculto das lutas entre os movimentos filosóficos p ex ceticismo e fé na razão 34 Crisis p 353378 The Origin of Geometry e 9 sec a Husserl mostra que a precisão do matemático deriva de um processo de idealização das percepções ordinárias uma vez que tenham sido constituídas tais idealizações sáo elas incorporadas sob formas simbólicas e de notação que lhes permitem ser transmitidas ensinadas manipuladas com maior facilidade e assim tornaremse a base dos conjuntos de conhecimentos que sejam científicos Essas mesmas materializações simbólicas po rém escondem suas próprias origens nas constituições primárias do mundo da vida As premissas das ciências são sedimentações de significados originais esquecidos O preço pago pelo estabelecimento das ciências transmissíveis e do progresso atingido com base em primórdios que náo são reencenados por gerações posteriores é uma crescente superficialidade uma evaporação do sentido nas ideias transmitidas Desta forma um conjunto de ideias originais passa a ser mera técnica Uma dificuldade na explanação de Husserl está na noção de anonimato das constituições originais é dificil compreender como uma constatação anônima é de fato uma constatação e como algo que nunca foi verdadeiramente percebido por ninguém pode ser esquecido e reencenado O que é verdadeiro do conhecimento matemático é verdadeiro de todo o conhe cimento tanto o ensino a aprendizagem a aplicação a validação e o maior desenvol vimento pressupõem que todas as ideias originais se tornaram transmissíveis isto é que se tornaram tradicionais A tradicionalidade do conhecimento é a fonte de seu caráter dual como autoesquecimento e desvelamento As pressões para esta criação de tradições emergem da própria razão na explanação de Husserl Não temos de deixar o plano de preocupações teóricas a fim de descobrir as pressões da distorção Não esta mos reduzindo as preocupações teóricas a extrateóricas Contudo temos de assinalar um aspecto da teoria que só se torna evidente a partir do ponto de vista do mundo da vida o caráter de criação da tradição que possui a razâo Além disso diíundida na discussão de Husserl está a alegação de que a tradição do conhecimento matemático tem desempenhado papel preponderante na distorção da ciência e da filosofia ocidentais e através deles do mundo da vida ocidental Em suma é opinião de Husserl que Galileu interpretou a natureza em termos de números de tal for ma a esconder a atividade idealizante da razáo envolvida na interpretação e assim indu ziu ao erro toda a ciência ocidental posterior em relaçáo à sua matematização da natureza como a realidade da natureza isto é decisivo para a naturalização do reino da mente ao longo de linhas físicomatemáticas A matemática permite num grau extraordinário o uso meramente técnico e autoolvidante dos conceitos Assim quando a própria filosofia passa a ser matematizada é muito grande o potencial para a distorção de todas as normas e ideais que devem ser fundamentados na filosofia Ao mesmo tempo Husserl sugere que a pressão para matematizar a natureza vem em certa medida do mundo da vida em si sob a forma das várias exigências para o domínio técnico da natureza 792 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph Cropsey 35 Ibid p 366367 e 9 seções fi cf p 313315 para a descrição da sedimentação como o a priori da história também Philosophy p 161 ff 36 Crisis 910 37 Philosophy p 151 Crisis 8 12 Podese dizer que Husserl subestima muito a natureza e o grau das pressões de correntes de interesses práticos que se concentram quase por inteiro na storçâo da teoria por meio de suas próprias exigências e do mundo da vida através da teoria Apa rentemente essa assimetria de ênfese está relacionada a determinadas suposições fun damentais subjacentes à fenomenologia as quais podem ser chamadas de suposições iluministas Para Husserl as pressões deturpadoras decorrentes do mundo da vida nâo parecem ser permanentes ou insuperáveis Acredita que as ideias sáo mais fortes do que a experiência e que a íilosoíia corretamente assume o papel que tem no moderno Ocidente de exercer a liderança nos assuntos humanos A filosofia moderna no entanto assumiu este papel com felsos princípios que fundamentam novos precon ceitos a fenomenologia é o tipo de filosofia que pode pelo contrário ter sucesso em superar os preconceitos de milênios Percebese que a história ocidental portanto culminará com a expectativa que a humanidade pode levar milênios a atingir de que o homem se torne totalmente responsável por si mesmo totalmente autônomo abandonando antigos hábitos de pensamento Por trás dessa visáo otimista dos assuntos humanos está uma versão bastante particular do moderno Iluminismo versão esta que surgiu durante a primeira crise da era moderna no século XVIII Tratase da visão de que os males da sociedade e as forças que se interpõem no caminho da virtude e da decência gerais emergem da pró pria teoria Esta visão é expressa de modo claro na subordinação kantiana da mera es peculação dialética com sua influência prejudicial para a razão prática e a sua base na boa vontade da pessoa comum Muito embora tal pensamento pareça assumir o ponto de vista do senso comum ou da razão comum na verdade atribui ao homem teórico importância e poder centrais para bem ou para mal O avesso da visão de que nosso mundo está corrompido principalmente pelas felsas teorias é a visão de que será corrigido pelas teorias verdadeiras ou talvez pelo fim de todas as teorias Com certeza uma versão deste pensamento é encontrada em Husserl Tem sido afirmado a respeito de Husserl que dá o passo tremendo de reintegração da doxa ou opinião os seus direitos como íúndamento de toda a filosofia nas constituições primárias do su jeito anônimo e mostra o erro da elevação platônica da epUtêmè conhecimento aci ma e contra a doxaZ Isso quer dizer que quase tudo está correto com o entendimento comum a filosofia não transcende mas elabora sua racionalidade implícita o nobre telos dentro dela Alguns dos sucessores de Husserl modificam esta posição por meio da rejeição do tebs racional mas permanecem como fenomenólogos comprometidos com a elaboração do mundo humano que se constitui por meio das experiências primárias de existência É provável que uma reflexão acerca deste foco fenomenológico auxilie a lançar luz sobre a relativa ausência de filosofia política na fenomenologia Edmund H usserl 793 38 Philosophy p 176 39 Crisis p 90 Philosophy p 178 sobre a liderança da filosofia 40 Crisis p 264265 41 A Gurwitsch Studies in Phenomenology and Psychology Evanston Northwestern University Press 1966 p 447 794 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey L e it u r a s A Husserl Edmund Philosophy as Rigorous Science Trans with introduction by Q Lauer in Ed mund Husserl Phenomenology and the Crisis t f Philosophy NewYork Harper and Row 1965 Husserl Edmund Philosophy and the Crisis of European Man Trans Q Lauer in ibid B Husserl Edmund The Crisis o f European Sciences and Transcendental Phenomenology An Introduction to PhenomenologcalPhilosophy Trans with introduction by D Carr Evanston Northwestern Uni versity Press 1970 Die Krisis der europãischen Wissenschajien und die transzentale Phãnomenologie Eine Einleitung in die phãnomenologische Philosophie A crise das ciências europeias e a bnomeno logia transcendental uma introdução à filosofia fenomenoiógica M artin H eidegger A 18891976 Martin Heidegger foi o primeiro filósofo desde Platão e Aristóteles a examinar em profundidade a questão do Ser De fato sua dedicação a esta pergunta inscreveo como o mais preeminente dos filósofos da Europa continental no século XX É menos claro porém seu status como filósofo político Em sua obra máxima e inicial Sein undZeit Ser e Tempo Heidegger demonstrou pouco preocuparse com a ética ou a política e logo depois rejeitou a sugestão para que escrevesse uma ética proveniente de uma fundamental incompreensão de seu pensamento Além disso no final da vida afirmou que seu pensamento não proporcionou qualquer auxílio aos problemas sociais e políticos Por que então analisálo em um texto dedicado à filosofia política Há duas respostas para essa pergunta No nível prático a afirmação de Heidegger de que seu pensamento é irrelevante do ponto de vista da política deve ser entendida à luz de seu alinhamento com o nazismo de 1933 a 1934 Este incidente empresta um significado político a seu pensamento que mais tarde Heidegger não viria a ter grande desejo de reconhecer O maior impacto de seu pensamento para a ética e a política no entanto originase de sua preocupação com o niilismo O niilismo possui um sentido moral tanto quanto metafísico Do ponto de vista metafísico significa que nada é ou seja não que não haja absolutamente nada o que seria absurdo mas que não há base imutável nenhum Deus ou Ser eterno tal como a tradição ocidental desde Platão imaginou estar por trás do fluxo da experiência Assim as inumeráveis coisas que de acordo com nossa experiência tão evidentemente são na verdade apenas parecem ser e na realidade estão em constante mutação tornan dose constantemente algo diferente do que são de uma forma caótica e inteiramente imprevisível Entretanto sem uma base ou fundamento imutável para este fluxo é dificil perceber como são possíveis a verdade a justiça e a moral Se não há Ser ou se Deus está morto como afirmava Nietzsche então há apenas o devir e portanto não há padrão fixo ou eterno No entanto se nada é fundamentalmente verdadeiro como reconheceram Dostoiévski e Nietzsche então tudo é permitido A conseqüência do niilismo metafísico é portanto o niilismo moral A negação de um Deus ou Ser eter no acarreta a destruição de todos os padrões fixos ou imutáveis do bem e do mal ou do nobre e do vil e portanto a destruição da base para qualquer lei moral universal ou padróes naturais de excelência humana Sob este prisma todos os padróes se revelam como historicamente relativos como meros preconceitos ou ideologias que servem para manter o poder explícito de algum grupo raça casta ou classe Esse reconhecimento do relativismo histórico de todos os padróes tem duas con seqüências diversas porém relacionadas Por um lado conduz ao abandono de todas as aspiraçóes humanas mais elevadas uma vez que em última instância nenhuma coisa tem mais valor do que qualquer outra coisa e náo há portanto qualquer motivo para lutar e se sacrificar por metas difíceis e distantes O resultado é um hedonismo banal que busca o caminho de menor resistência e assim é guiado por qualquer dese jo que por acaso predomine em um determinado momento Concomitante com este niilismo gentil há um niilismo brutal que procura destruir todas as normas e esta belecerse como a meta suprema da atividade humana Este é o niilismo como vontade de poder que sob a forma de ciência e de técnica tem como objetivo a conquista da natureza e sob a forma de uma política de poder a subjugaçâo da humanidade Nestas duas formas práticas de niilismo as doutrinas metafísicas mais abstratas e remotas vêm a ter implicaçóes morais éticas e políticas reais e muito fatídicas O mundo em que nasceu Heidegger apenas começava a se familiarizar com o niilismo De fato no final do século XIX a Europa caracterizavase em geral por uma difundida fé no progresso da razáo e da ciência uma fé que a filosofia com algu mas notáveis exceçóes compartilhava A Primeira Guerra Mundial abalou essa fé no entanto e infundiu o debate filosófico com uma seriedade e premência que este náo possuía antes Alguns atribuíram este flagelo às deficiências do capitalismo alguns ao nacionalismo excessivo mas a muitos outros parecia que os pressupostos filosóficos da modernidade e talvez até do próprio mundo ocidental possuíam terríveis defeitos que o niilismo que Nietzsche ouvira bater à porta encontrara seu caminho para entrar no coração da civilização europeia Heidegger também se dedicou a esta questão pri meiro apenas dentro dos horizontes da fenomenologia tal como desenvolvida por seu mestre e mais tarde colega Edmund Husserl mas cada vez mais dentro do contexto da tradição ocidental como um todo Na visáo de Heidegger o niilismo é a conseqüência final de um equívoco funda mental no que diz respeito ao Ser equívoco este que Heidegger denomina o esquecimen to do Ser É uma peculiaridade de seu pensamento atribuir a mais profunda importância prática ao que sáo aparentemente as consideraçóes teóricas mais abstratas e remotas Parece absurda na superfície a tentativa de Heidegger para convencer o leitor de que um difundido equívoco a respeito do Ser pode caracterizar toda a civilização ocidental o que de fato tem ocorrido uma vez que parece muito improvável que uma questáo metafísica táo abstrata jamais pudesse interessar a mais que um punhado de indivíduos No entanto náo é isto que pretende Heidegger Ao contrário assume que os pensadores que desenvolveram a estrutura básica dentro da qual pensamos e agimos aqueles a quem podemos com justiça chamar de legisladores no sentido mais fundamental têm uma concepção equivocada do Ser e esqueceram seu significado original O fracasso desses 796 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey pensadores em reconhecer a verdade sobre o Ser isto é averdade sobre o que é mais funda mental levou na opinião de H eider a uma distorção fundamental das categorias da linguagem e do pensamento Essa distorção não só nos impede de nos reconciliarmos com o Ser ou de compreender sua imponância para nossa vida cotidiana como também estabelece uma estrutura de pensamento e ação que separa o homem dos autênticos en tendimento e atividade humanos Neste sentído toma impossível uma existência ética e pobtica autêntica e em última análise lança o homem no niilismo Para Heideer a fonte desta concepção equivocada do Ser é o pensamento dos gregos em particular de Platão O esquecimento do Ser que termina no niilismo é o resultado da redefinição de Platão do Ser como presença eterna ou o que permanece imutável para sempre Esta noção era tão convincente que parecia fornecer a resposta definitiva para a questão do Ser e como resultado foi esquecida a própria pergunta Na opinião de Heideer no entanto é insuficiente esta resposta platônica No entan to mais tarde o esquecimento da questão do Ser que tal resposta engendrou tornou impossível até mesmo reconhecer esta insuficiência Assim a concepção platônica do Ser tornouse a premissa básica da tradição ocidental Culmina no niilismo o erro cada vez mais profundo que essa premissa insuficiente engendra No entanto o niilismo tal como o entende Heideer não é apenas um fenôme no n ativ o Pelo contrário representa duas possibilidades diferentes Por um lado o esquecimento do Ser que termina em uma n çã o do Ser e portanto uma negação de todas as categorias e padrões permite que prevaleçam as paixóes mais banais e bru tais Por outro essa obliteração de categorias e padrões desanuvia o horizonte e torna possível uma experiência original do mistério e maravilha da existência que é impos sível desde a época de Platão e Aristóteles O niilismo é assim ao mesmo tempo a maior catástrofe ética e política e a maior possibilidade filosófica dos últimos 2500 anos Desta forma Heideer acredita que o niilismo contém a possibilidade de sua própria destruição e por conseguinte a possibilidade de salvação da humanidade Esta no entanto permanece uma possibilidade que deve ser aproveitada e realizada e por conseqüência pode ser contornada e perdida O perigo para o homem como o percebe Heideer é que este pode acreditar que o niilismo é apenas um recente des vio de uma tradição de resto saudável e que pode ser restaurada por uma pequena cor reção É necessário ao contrário reconhecer a irremediável essência niilista da tradição ocidental como um todo e se aíástar totalmente dela na direção de uma recordação e reavaliação da esquecida questão do Ser que o niilismo possibilita A primeira e maior tentativa de H eider para se reconciliar com a questão do Ser ü i Ser e Tempo A tarefii específica desta obra era suscitar a questão do sentido do Ser 5 por meio de uma análise do ser humano Daseirí em termos de temporalidade ou em termos mais fiuniliares chegar a um entendimento da relação entre Ser e tempo por meio de um exame do modo como estes estão unidos no homem como ser histórico Na superfície há poucas indicações de que este projeto tenha um motivo prático ou político Sem dúvida a obra apresentase apenas como uma tentativa de recuperar os íúndamentos da ciência Neste sentido está dentro do horizonte da fenomenolca M a r t in H e id e g g e r 7 9 7 Um exame um pouco mais próximo no entanto revela uma continuidade fundamental do teórico e do prático A questão do Ser segundo Heidegger é a fonte e o fundamento de todas as ontologias ou ordenações de tudo que é e portanto de toda a compreensão humana Ao esquecer esta questão portanto o homem esquece a fonte de seu próprio conhecimento e perde a capacidade de questionar de maneira mais radical o que é es sencial tanto ao verdadeiro pensamento como à autêntica liberdade Sem ela o homem é reduzido a uma besta calculante preocupado apenas com sua preservação e prazer um último homem para usar a terminologia de Nietzsche para quem a beleza a sabedoria e a grandeza são meras palavras A banalidade niilista deste último homem portanto parece estar por trás da preocupação de Heideer com os fundamentos da ciência Para se reconciliar com este niilismo implícito é necessário do ponto de vista de Heideer superar o esquecimento do Ser O Ser contudo não é esquecido de maneira ordinária A questão do Ser é esquecida porque o próprio Ser é aceito como o concei to por si mesmo evidente como mais universal mas também como o mais vazio dos conceitos Em outras palavras o Ser é esquecido porque todas as pessoas acreditam que sabem o que é o Ser Isto segundo Heideer é resultado de um mau entendimento da relação entre Ser e tempo Desde Platão o Ser tem sido entendido em oposição às coisas reais como o que está além do tempo e não muda Todas as coisas reais nesse sentido estão entre o Ser e o nada Todas as coisas vêm a ser e também morrem Em oposição ao imutável reino do Ser portanto as coisas reais existem no reino do devir ou tempo A tradição ocidental nesse sentido caracterizase pela antítese entre Ser e devir ou Ser e tempo O que se tornou aparente nos tempos modernos porém é que esta distinção que está no cerne das categorias de nosso entendimento nos impede de compreender de modo adequado a nossa realidade histórica concreta o que Heidegger chama de fecticidade da existência humana Assim não podemos compreender a verdade sobre nós mesmos como seres históricos porque a tradição que informa nossa maneira de pensar repousa sobre o entendimento do Ser como presença eterna o que demonstra uma compreensão do Ser conexa a uma noção imperfeita do tempo O que é necessário é ter uma compreensão mais completa do Ser em termos da concepção mais profunda de tempo que veio à tona como resultado da descoberta da história Heidegger tenta suscitar a questão do Ser e tempo através de uma investigação do homem porque acredita que a humanidade tem uma relação especial com o Ser O homem é o único ser que tem seu próprio ser como questão ou seja o homem é o único ser que se preocupa com o que virá a ser com seu futuro suas possibilidades de ser A bolota do carvalho náo tem dúvidas sobre o que virá a ser Afora algum aciden te virá a ser um carvalho O homem na visão de Heidegger nâo tem um fim assim determinado Seu fim e portanto seu futuro é sempre uma indagação para ele Por tanto em contraste com a bolota o homem não pode habitar apenas no presente mas está sempre preocupado com o íuturo De fato em contraste com a bolota o homem possui um futuro O futuro da bolota significa alguma coisa somente para o homem Neste sentido o homem é também o único ser que é autenticamente histórico que está envolvido de modo ativo em planejar e moldar seu futuro em fazer história É 7 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y por causa dessa conexáo de Ser e tempo no ser humano que Heideer acredita que o homem pode servir como via de acesso para a questão do Ser como tal Ao examinar a forma como a história surge da preocupação do homem com a questáo de seu ser isto é com seu fim indeterminado Heideer espera char a um entendimento mais profimdo da questáo do Ser mesmo isto é dos fins não só do homem mas de todas as coisas que sáo e assim mostrar como o tempo como tal emeige do Ser H eid e r tenta abordar a questáo do Ser por meio de uma análise do ser hu mano que desvele as estruturas fundamentais da existência humana que mostre não 0 que o homem é mas como ele existe como ele é no e através do tempo Heideer principia com uma análise da existência cotidiana que se concentra no fiito de que o homem em toda parte e sempre se vê lançado em um mundo que se caracteriza por uma particular ontologia ou ordenação de tudo o que é Enquanto ser humano o homem é portanto o que Heideer chama de sernomundo Em conseqüência o homem encontra a si mesmo através das coisas com os outros ou seja no âmbito de uma estrutura particular que determina as relaçóes entre tudo o que é que define seus objetivos e por conseguinte suas atividades que desta forma determina como o homem e tudo o mais é Na maioria das vezes o homem é simplesmente absorvi do pela ordem vigente e é determinado em um nível prático conveniente e teórico disponível pelas preocupaçóes que surgem nela Na maior parte das vezes portanto o homem é caracterizado por aquilo que H eid er chama de decadência e existe de modo nâo autêntico tal como eles sendo eles Neste modo de ser o homem é dominado pelo que H eid er chama de impessoal que aceita o mundo como dado e jamais questiona com seriedade a ordem vigente das coisas De acordo com H eidçr a questáo do Ser surge para os seres humanos somente quando sua existência cotidiana é questionada por um autêntico confiunto com a morte Como sernomundo o homem está sempre voltado para o futuro porque o seu próprio ser é sempre uma incfigação para ele Seu ser nesse sentido se caracteriza por aquilo que H eider chama de cuidado Como um ser futuro que se preocupa com o que vai acontecer com ele é inevitável que o homem se depare com a questáo da morte Isso é verdadeiro até mesmo para o homem em sua modalidade do impessoal Este eu se prepa ra para a morte no entanto apenas de maneira não autêntica compieendendo a morte apenas em termos da morte de outros como o que acontece a a ém ou a eles Esta experiência não autêntica da morte confirma e náo transcende a hierarquia de tudo que é Uma compreensão autêntica da morte exe uma experiência totalmente diversa H eider descobre a possibilidade de compreender a morte de modo autêntico no fe nômeno da angústia em particular no modo como se revela no chamado da consciência o qual H eider defende ser o chamado do próprio ser de cada um como a cura pelas futuras possibilidades de ser Esta experiência da morte na aijústia liberta o homem da ordem predominante É o reconhecimento da finitude do próprio ser singular e abre a possibilidade da experiência da própria questáo do Ser De modo geral a vida é entendida em termos das possibilidades disponíveis dentro de um determinado mundo ou hierarquia de tudo o que é Para o impessoal M a r t in H e id e g g e r 7 9 9 o on essas possibilidades parecem ser dadas e imutáveis A autêntica experiência da morte porém revela essas possibilidades como possibilidades uma vez que revela que não podemos fazer tudo Neste momento de visão enfrentamos a morte como aquilo que é mais nosso como a possibilidade inelutável que limita todas as nossas outras possibilidades Reconhecemos que somos lançados em um mundo determinado de onde devemos partir A experiência da morte revela assim o horizonte singular de nosso mundo e nosso próprio destino pessoal dentro do destino maior daqueles com quem somos a nossa gente ou geração Emergindo como a questão do nosso pró prio ser a morte nos orienta para um conjunto específico de respostas ou possibilida des Descobrir essas respostas ou perceber essas possibilidades tornamse o objetivo de nossa atividade A questão de nosso ser que surge de nosso reconhecimento autêntico da inevitabilidade de nossa própria morte é assim a fonte da meta que é projetada diante de nós Esta meta projetada de acordo com Heideer é a fonte de nosso futu ro pois o futuro autêntico é sempre apenas como o prevemos aquilo em cuja direção nos movemos É com base neste objetivo ou meta futuros que em seguida agarramos o passado e o impedimos de escapar pois é somente desta forma que adquire relevân cia para nós Assim a revelação das possibilidades de nosso próprio ser no momento da visão em face da morte desvela todo um mundo de seres Todavia Heidegger nâo compreendeu o nexo fimdamental de Ser e tempo Na verdade este é entendido apenas da perspectiva do ser humano só negativamente em termos da morte O objetivo de Ser e Tempo era compreender Ser e tempo por eles mesmos independentemente do homem mas Heidegger nâo foi capaz de realizar esta tarefa de modo que satisfizesse a si mesmo Pretendia na parte inacabada do primeiro livro suscitar a questão do Ser de forma explícita e em seguida realizar o que denomi nou a destruição da história da ontologia ou o que poderíamos chamar de destruição da metafísica Quando começou Ser e Tempo Heidegger acreditava que seria possível contornar toda a história da metafísica ocidental e suscitar de novo a questão do Ser por meio de uma investigação direta do próprio ser humano e sobre essa base reinterpre tar a história Porém durante a redação de Ser e Tempo constatou que a linguagem e em particular a terminologia filosófica que era forçado a usar derivava da metafísica e assim em seus íúndamentos dependia dela As categorias dentro das quais tentou repensar a questão do Ser portanto eram constituídas de tal forma que escamoteavam a pergunta mesma ou seja de uma forma que tornava impossível até mesmo entender a questão de forma adequada Devido a esta dependência da metafísica Heidegger foi incapaz de concluir Ser e Tempo tal como pretendia O fracasso de Ser e Tempo portan to deixou claro para ele que a destruição da metafísica teria de preceder e não suceder o confronto explícito com a questão do Ser Essa destruição da metafísica é realizada em uma série de trabalhos posteriores e é basicamente uma crítica e uma reinterpretaçáo da filosofia ocidental que delineia o crescente esquecimento do Ser e desta forma o florescimento do niilismo Isso é efe tuado não através da demonstração de contradições internas ou motivos psicológicos ou econômicos subliminares mas pela demonstração de como cada pensador aceita a 8 0 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y noção predominante do Ser e assim deixa sem exame a questão norteadora da filo sofia ocidental a questão do Ser Esta crítica e reinterpretação no entanto não é de todo negativa mas ao contrário pretende reconciliarse com o Ser pois enquanto de monstra a obliteração cada vez mais profunda do Ser também aponta para o vazio do lugar que o Ser deixou desocupado onde o Ser é deixado sem exame esquecido Desta forma a destruição da metafisica é também o que Heideer denomina a história do Ser isto é a história do equívoco do esquecimento e do que Heideer muitas vezes chama de retirada do Ser que constitui a essência da civilização ocidental Como vimos já está aparente uma crítica implícita da metafisica cm Ser e Tempo No entanto esta crítica permanece dentro do horizonte geral da preocupação fenome nológica com os fimdamentos da ciência que Heideer herdou de Husserl A crítica de Heidegger da tradição ocidental nos anos que se seguiram aSere Tempo exibe uma apreciação mais profunda das conseqüências éticas e políticas do esquecimento do Ser ou daquilo que cada vez mais H eid er chama de niilismo Essa virada em seu pensamento foi o resultado de uma série de fatores mas talvez nenhum tão impor tante quanto o nazismo Heidegger envolveuse com os nazistas durante a década de 1930 na Universi dade de Freiburg No meio da revolução que se seguiu à ascensão de Hider ao poder H eid e r foi convidado por seus colegas para assumir o cargo de reitor da universi dade a fim de ajudar a preservar a independência da instituição Heidegger esperava mais do que isso no entanto e acreditava que a revolução nazista poderia ser direcio nada para uma experiência mais fundamental da existência humana que poderia servir como base para uma ética e política mais autênticas Neste esquema de reforma e de redirecionamento na opinião de Heideer a universidade alemã teria de desempe nhar um papel de liderança e fornecer ao movimento político um conteúdo intelectual que até então lhe fidtava Desta forma essa reíúndação fimdamental da vida alemã pressupunha uma reíúndação da universidade alemã Foi isso que Heidegger acredi tou ser capaz de realizar O títido decididamente não nazista de seu discurso de posse como reitor Die Seíhstbehauptung der Deutschen Universitãf A autoafirmação da universidade alemã reflete tal anseio Suas esperanças logo se revelaram como ilusões e Heideer percebeu estar em desacordo com os nazistas como resultado de sua resistência à nazificação da univer sidade e sua recusa em demitir judeus que integravam o corpo docente suas tentativas de conciliação por outro lado não satisfizeram as autoridades Tampouco foram essas as únicas dificuldades de Heideer pois as forças positivas na universidade alemã cujo apoio esperava resistiram a suas tentativas de reforma Foram assim aniquiladas suas M a r t in H e id e g g e r 801 Para a documentação acerca da relação de H eider com o nazimso ver The SelfAsseition of the German University Review ofM etaphpia XXXVIII March 1985 467 502 Only a God Can Save Us in Heidegger The Man and Thinker Ed T Sheehan Chicago Precedem Publishing 1981 An Introduction to Metaphysia New Haven Yale University Press 1959 doravante IM e seus discursos do período nazista em Ed M Friedman lhe Worlds ofEcistentialism New York Random House 1964 esperanças de uma transformação política com base em uma prévia transformação aca dêmica Confrontado com demandas nazistas que não estava disposto a atender e com uma intransigência do corpo docente que não podia vencer renunciou Como resultado passou a ser encarado com crescente desconfiança pelo regime e durante o restante do período nazista foi submetido a uma variedade de medidas punitivas incluindo a fiscalização de seus seminários e o trabalho forçado em fortificações militares Qualquer que fosse sua antipatia pelo nazismo Heidegger aparentemente tam bém viu algo positivo nele pois em 1935 falou da verdade interior e grandeza deste movimento em suas preleçóes intituladas Introdução à metafísica Einfiihrungin die Metaphysik e incluiu esse trecho quando a obra foi publicada em 1953 Significaria isso que Heideer era nazista Heidegger tentou defenderse dessa acusação de duas maneiras Primeiro argumentou que alterar o texto seria uma íaisificaçáo histórica Na verdade tal atitude teria permitido a acusação de que tentava esconder seu passado nazista Segundo na década de 1960 chamou a atenção para uma elucidação paren tética no trecho ofensivo que dizia a saber o encontro entre a técnica do mundo e o homem moderno Heidegger alegava que seu público sério entendeuo de modo correto em 1935 enquanto os estúpidos e suspeitosos interpretaram a passagem a seu próprio gosto como uma indicação de sua afeição pelo regime Deixando de lado toda a complexidade do íato e das especulações continua a ser indiscutível que Heideer jamais repudiou de público seu discurso nazista Isso posto o que nos revela esta elucidação parentética a respeito do modo como Heideer percebia o nazismo O homem moderno tal como o entendia possui um elo fundamental com a técnica Na visão de Heidegger tal como Ernst Jünger de monstrara com perspicácia em seu livro Der Arbeiter O trabalhador o modelo para o ser do homem no mundo tecnológico contemporâneo é o trabalhador Aparente mente era a tentativa dos nazistas de dar um novo significado ao homem como traba lhador que Heideer admirava e que acreditava oferecer a possibilidade de uma nova e mais autêntica ética e política embora jamais tenha esclarecido como tal poderia ser alcançado Heideer reconhecia que aqueles que ocupam o poder eram demasiado inábeis no pensamento para saber lidar de forma adequada com a técnica mas acre ditava que poderiam dar ouvidos àqueles capazes de pensamento mais profundo Por óbvio estava errado quanto a isto e náo foi capaz de perceber a dedicação dos líderes do movimento nazista a uma ideologia de genocídio e apocalipse Para Heidegger esta experiência teve como resultado filosófico uma reavaliação do poder e da penetração do pensamento metafísico e de sua ligação com o niilismo A metafísica culminou náo apenas no niilismo gentil que reconhecera em Ser e Tempo como a banalidade do mundo cotidiano e do ou impessoal mas também no niilismo brutal dos nazistas O fato de Heidegger náo ter conseguido terminar Ser e Tempo ligavase portanto à sua incapacidade de transformar seja a universidade alemã ou o movimento nazista Tornouse necessária portanto uma análise mais profunda e 8 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 Ed Günther Neske Erinnerungan Martin Heidegger Pfullingen Neske 1977 p 49 crítica que pudesse explicar a origem do niilismo brutal que se manifestou no nazismo Tal análise em primeira instância significava um exame da modernidade De acordo com Heidegger a modernidade é caracterizada pela subjetividade ou seja pelo feto de que nos tempos modernos o próprio bomem serve como a medida e o fundamento de toda a vetdade A modernidade é portanto também o reino da li berdade pois a predominância da subjetividade liberta o bomem da estrutura teocên trica da sociedade cristã tradicional e o estabelece sobre ele mesmo A fonte desu no noção é a interpretação de Descartes do bomem como autoconsciência que estabelece a independência absoluta do bomem como medida de todas as coisas Daí em diante apenas o que pode passar pelo tribunal da consciência ou seja apenas o que pode ser percebido e determinado entra no cômputo das coisas Porém quando o bomem se ergue sozinbo perde seu lugar no cosmos ordenado da sociedade tradicional A bberdade moderna portanto traz em seu bojo uma abenação que arremessa o bomem na busca de srança por meio da subordinação da natureza à sua própria vontade Assim a natureza não mais fornece diretrizes para a ação bumana mas passa a ser um outro incerto e portanto perigoso que deve ser dominado Em um nível intelectual a natureza é subjugada pela ciência moderna que desenvolve uma representação ou modelo matemático do mundo e assim reduz o mundo a um objeto previsível e portanto controlável H eider cbama este processo de objetívação A mo derna técnica portanto une esta nova ciência ao trabalbo bumano de modo a subjiar e tiansformar o mundo natural em um objeto adequado para o uso e babitação bumanos Fracassa no entanto a tentativa de garantir a subjetividade e a liberdade bumana por meio da subjugação técnica da natureza porque necessariamente implica também a subjição da natureza bumana e desta forma póe as pessoas em conflito umas com as outras A crescente competitividade desse conflito acarreta a formação de entidades técnicas e políticas cada vez maiores e mais organizadas e portanto na realidade resulta apenas na subordinação de todos os seres bumanos às tarefes do mundo tecno lógico Assim para Heideer nos tempos modernos o conflito não é conseqüência da paixão da parciabdade bumana da vontade de poder do antagonismo de classe ou de controvérsias acerca da natureza da justiça mas resultado da tentativa de garantir a liberdade bumana no mundo natural através da técnica Logo o conflito é também inevitável já que ser bumano no mundo moderno signiíica medir dominar e subjugar a natureza ou seja ser tecnológico Heideer esquematiza esse desenvolvimento a partir de Descartes passando por Leibniz Kant Hegel Scbelling e Nietzscbe até cbe gar à técnica do mundo do século XX Tratase da bistória do crescente niilismo do M a r t in H e id e g g e r 8 0 3 Para o relato de Heideer desse desenvolvimento ver o artigo e livros de sua autoria lh e Prin cipie of the Ground Man and World VII 1974 p 207222 Kant and the Problem ofMetaphysks Bloomington Indiana University Press 1962 HegeVs Concept o f Experiente New York Harper Row 1970 ScheVings Treatise on the Essence ofHuman Freedom Athens Ohio University Press 1985 Nietzsche 4 v New York Harper Row 19791987 e The Question p f Technology and Other Essays New York Harper Row 1977 pensamento moderno na jornada do homem moderno como sujeito a partir da auto consciência cartesiana até a vontade de poder nietzschiana que na visão de Heideer está no centro do mundo da técnica É da mesma forma a história da deneração do homem de autoconsciente senhor da criação para trabalhador e homemmassa A modernidade culmina como Heideer já reconhecera em Ser e Tempo no completo esquecimento do Ser e na desumanização absoluta do homem que se toma mera matériaprima para um mundo tecnológico do que visa apenas a sua própria autoper petuaçáo e crescimento niilistas Desenraizados e alienados da sociedade tradicional nós modernos tentamos construir com o auxílio da história um liar para nós mesmos no meio do devir A história nos permite medir e demarcar o tempo para que possamos determinar nossa origem e lugar em relaçáo a todas as outras coisas Conseguimos assim nos precaver contra a incerteza aterrorizante de um devir sem sentido No fundo porém este projeto tenta transformar o tempo em objeto de exploração e portanto é análogo à objetivação do espaço realizada pelas ciências naturais da modemide Assim consegue no entan to apenas separar o homem mais completamente da tradição metafísica que lhe deu um verdadeiro liar e significado ao ligálo em um nível fimdamental à questão há muito esquecida do Ser Inteiramente desvinculado dessa questão o homem é também aíàsudo do direcionamento que propicia a seu pensamento e atividade Todavia sem esse direcionamento a história pode ser interpretada de qualquer forma pois não mais há um padrão de verdade e realidade Assim o homem segundo Heideer é presa da confusão do historicismo e do relativismo dos quais pode escapar somente ao se entrar à ideologia pela adoção de uma visão de mundo arbitrária e irracional que fornece uma explicação simplificada mas totalitária que resolve toda a incerteza e insegurança A história e ideologia portanto servem apenas como duas ferramentas a mais a serviço da conquista tecnológica da Terra Na verdade aumentam a concorrência para assegurar o domínio e dão origem a uma luta ideológica que termina em guerra mundial que por sua vez é o meio para maior garantia de total mobilização e total controle da humanidade que em última análise oblitera a própria diferença entre guerra e paz Nesse sentido o fim da moderna subjetividade e liberdade é uma aliena ção e desabrigo universal sob a hegemonia de um totalitarismo ideológico que visa ao domínio universal e à exploração tanto do homem como da natureza Sob tais condi ções o homo sapiens é reduzido a homo brutalitas H eid er descreve três formas de vida política no final da modernidade o ame ricanismo o marxismo e o nazismo Em sua opinião todas aos três são formas de subjetividade e niilismo e portanto metafisicamente idênticos Todas se caracterizam pela ditadura do público sobre o privado e pela predominância das ciências naturais da economia de políticas públicas e da técnica O americanismo em sua opinião não é liberalismo ou democracia mas uma forma particular de positivismo lógico que serve 8 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Para o entendimento de H eider acerca de americanismo maixismo e nazismo ver IM p 3751 e VierSeminare Frankfiirt am Main Klostermann 1977 como elemento subserviente à ciência e à técnica A realidade do americanismo é o complexo industrial a sência central de planejamento econômico e tecnológico que organiza o trabalho do homem comum e expande seu domínio por meio do mercado mundial Tampouco se trata o marxismo meramente de um partido ou visáo de mun do mas constitui ao contrário a elevação do processo de produção à predominância e à conseqüente redução do homem a um ser socialmente produzido Tanto o ameri canismo como o marxismo dão um sentido íàlso à espiritualidade humana como inte ligência calculista e consequentemente íàlham em captar a necessidade do exame da questão do Ser A forma mais extrema desta negligência é o nazismo que completa e in verte o pensamento moderno ao substituir a razão pelo instinto O instinto é intrínseco não ao indivíduo mas à raça e recebe voz por meio de líderes que íãlam para a essência racial subjetivista Seus instintos elevamse acima da paralisia niilista da razão para a ação e assim ensejam uma ilusão de certeza e segurança O nazismo no entanto náo é capaz de reconhecer que é arbitrária sua distinção fundamental entre superhomem e subhomem uma vez que em princípio ambos foram reduzidos a animais Assim sendo as várias formas de vida moderna representam apenas uma insti tucionalização do niilismo Isso no entanto náo é devido ao caráter imperfeito da própria modernidade pois a modernidade e por conseguinte o niilismo sáo apenas as conseqüências finais do projeto metafísico que começa com os gros Para com preender a origem e a verdadeira extensão do niilismo afirma Heideer é portanto necessário examinar os gregos O mundo grego e a civilização ocidental tiveram início na visão de Heidegger com a revelação do Ser com o que às vezes denomina usando o grego alêtheia ver dade ou literalmente desvelamento Neste desvelamento o Ser aparecia como o caos ou o nada como a violência do abismo que dominou o homem em todo o seu mistério e inaugurou uma nova maneira de pensar e íir um mundo novo trouxe no vos deuses uma nova ética uma nova política e uma nova concepção de humanidade do homem Em outras palavras o homem foi fulminado pelo mistério e incompre ensibilidade fundamentais da existência H eid er sustenta que é esta a experiência concreta do Ser a maneira pela qual o Ser se revela para o homem Neste sentido o Ser parecia para os gregos uma questão fundamental Como uma peigunta no entanto orientouos para respostas e portanto para longe da questão em si para longe do Ser Os présocráticos encontravamse no meio desta luta entre o Ser como o mistério fundamental ou questão da existência e os seres conforme determinados por categorias ou respostas a esta pergunta Esta batalha foi travada na arte ou o que Heideer muitas vezes chama de linguagem não apenas por poetas mas também por escultores arquitetos pensadores e estadistas que participaram na criação das leis costumes e instimiçóes do mundo grego Todos confrontaram o mistério da existência que a experiência do Ser evocava e construíram uma nova forma de compreender e um novo mundo como resposta ou solução para este mistério M a r t in H e id e g g e r 8 0 5 Para a discussão dos g r s por Heider ver IM Early Grtek Thinking New York Harper Row 1975 e Erüuterungen zu Hõlderüns Dichtung Frankfurt am Main Klostermann 1944 A principal criação dos gregos foi a pólis Para eles não se tratava apenas do lugar onde se resolviam os assuntos do Estado mas o lugar onde deuses e homens relacionavamse uns com os outros onde pela primeira vez o homem reconhece sua mortalidade terrena em oposição a uma imortalidade celestial Desta forma os gregos como os entendia Heideer foram capazes de incorporar uma autêntica compreen são da morte e por conseguinte de sua própria finitude e destino em sua arte religião e íilosoíia e acima de tudo em suas instituições políticas É neste sentido que a pólis é a fonte da humanidade do homem como Ser humano Na medida em que o homem reconhece sua própria mortalidade e destino em oposição aos deuses imortais ocupa um lugar particular ou ethos próprio e assim tornase capaz de ética O caráter de seu lugar e portanto de sua ética e política é também um reflexo do caráter especial dos deuses e da relação do homem com eles A pólis neste sentido é sempre o lugar dos deuses e se caracteriza em suas leis e instituições pelo panteão específico revelado Esta experiência présocrática do Ser de acordo com Heidegger é íundamental mente trágica O abismo do Ser que desperta admiração e reflexão também exclui o ho mem da ordem cotidiana das coisas O Ser a tudo questiona e aqueles como Antígona Édipo e Herádito que se deparam com a questão do Ser tornamse apolis sem cidade e lugar sozinhos estrangeiros sem uma saída no meio do ser como um todo ao mesmo tempo sem estatuto e limite sem estrutura e ordem pois como os criadores devem primeiro íúndamentar tudo isso Em um sentido heroicotrágico expulsos da vida comum estes íúndadores representam para os gros a maior possibilidade humana A idade trágica em que esses personagens têm sentido e significação chega ao fim com o desaparecimento da revelação do Ser Esse mundo terminou quando a questão do Ser submergiu em suas respostas e firacassou em reaparecer como uma indagação ou seja quando nos termos de Heideer o Ser se retirou e foi esquecido Por que isso ocorreu é na opinião de Heideer obscuro e misterioso e não está no homem mas no próprio Ser Que tenha ocorrido é o íáto central e decisivo de toda a história ocidental A questão da retirada do Ser foi inaugurada pelos sofistas e culminou com o pen samento de Platão e Aristóteles A exceção a essa tendência foi Sócrates que seguiu o Ser em sua retirada ou seja que seguiu de volta o caminho dialético para por meio das respostas para a questão do próprio Ser na tentativa de chegar ao misterioso e muitas vezes contraditório início do pensamento Platão ao contrário afestouse da questão do Ser e de feto encerroua dandolhe uma resposta decisiva O Ser retratado por Platão é a presença etema a forma ou ideia imutável em contraste às coisas efêmeras do mundo 806 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 6 M p 152153 7 Para sua discussão de Platão e Aristóteles ver em particular seu anigo Platos Doctrine of Truth in Philosophy in the Ttventieth Century Fd W Barrett and H D Aiken 4 v New York Random House 1962 111 251270 e On the Being and Conception of Phrsics in Aristodes Physics B 1 Man andWorld IX 1976 p 219270 8 H eider náo explica em lugar algum sua separação de Sócrates e Platão Na maior parte dos aspectos parece seguir a distinção e caracterização desses íilósofos por Nietzsche do devir Desta maneira o Ser desaparece como uma pergunta e ressurge como a mais elevada resposta como o Ser dos seres como a essência imutável de todas as coisas Tomando isto como base Platáo Aristóteles e os escolásticos foram capazes de articu lar uma ontologia ou hierarquia de tudo que é em termos de sua proximidade com o próprio Ser É essa hierarquia metafísica que em suas várias transformações constitui a estrutura do mundo ocidental A primeira destas transformações deu origem ao Cristia nismo e à Idade Média a segunda ao mundo moderno Na primeira o Ser retirouse da natureza e asilouse na transcendência assim comprometendo o cosmos ancestral O imediatismo do Ser ou essência das coisas em sua forma natural deu liar à noção de que essa forma era apenas uma das muitas criações possíveis de um Deus transcendente e em última análise incompreensível o único que realmente é no sentido mais elevado O próprio Cristianismo foi abalado pela retirada do Ser em que o homem substituiu um Deus que desaparecia como o fundamento de todo o Ser e por conseguinte como o centro de toda a ontologia Doravante o homem como o sujeito autoconsciente é o que realmente é Na medida em que o homem compreendese como Ser no entanto o Ser perde seu último traço de mistério e portanto sua capacidade de evocar admiração e meditação pois o homem como aijumenta Descartes conhece a si mesmo imediata e completamente Neste sentido a história ocidental é determinada pela pergunta original do Ser e suas sucessivas retiradas É portanto a história do esquecimento do Ser como uma questão e o triunfo do ser como resposta Quando Nietzsche interpreta o Ser co mo apenas mais um entre muitos seres diferentes o Ser desaparece de todo e o Ociden te que fora guiado pela questão oculta do Ser chega a seu fim Assim Heidegger voltase contra a tradição iluminista para revelar o caráter som brio da vida moderna Mas não chama nossa atenção para este niilismo disseminado apenas para provocar desespero ou autorrepugnância mas porque acredita que vislum bra em suas profundezas a luz da aurora de uma nova revelação do Ser Demonstrar isso no entanto é mostrar a ligação oculta entre Ser e nada Nesta investigação Hei degger segue o caminho dos présocráticos Em particular percebe um paralelo entre a experiência présocrática da questão ou abismo do Ser e a experiência contemporânea do niilismo Via de regra o niilismo é entendido como a afirmação de que nada é ou seja não se trata de que nada seja em absoluto mas de que não há fimdamento para os seres e portanto nenhuma norma ou ordem imutável Heideer por sua vez quer entender o niilismo como a compreensão de que o fimdamento é literalmente nada ou seja coisa nenhuma ou não ser Isto significa que o fimdamento deve ser entendido como algo mais do que os seres o que significa Ser em seu sentido primordial como caos ou abismo O niilismo é portanto o alvorecer do reconhecimento do Ser da questão fundamental ou mistério que é a fonte do assombro que evoca todo o pen samento todas as categorias e portanto todas as ordens No niilismo o Ser aparece como caos ou abismo e debilita toda a ontologia e portanto toda a ética a política e a religião Desta forma o advento do niilismo sinaliza o fim da civilização ocidental e por conseguinte a possibilidade de um retorno a uma perspectiva préocidental e talvez até mesmo de uma aproximação entre Oriente e Ocidente M a r t in H e id e g g e r 8 0 7 O niilismo contudo não é um retorno aos présocráticos mas de fato orienta nos para longe do mundo que descortinaram De acordo com H eider os antigos gregos experimentaram a questão do Ser como a peigunta o que é Ser A questão norteadora do pensamento ocidental é portanto a peigunta o quê É esta ques tão que a filosofia e as ciências procuram responder Por conseguinte a antiga biologia procurou explicar o que são as diferentes formas de vida ou seja descobrir e descrever as categorias ou espécies de coisas A questão do Ser que emerge do niilismo ao con trário não é a pergunta o quê mas a pergunta como que em muitos aspectos tem sido fundamental para o pensamento moderno e está oculta por exemplo no coração da moderna ciência técnica e história Nosso pensamento não se direciona portanto à resposta para a pergunta o que é isso mas sim para a pergunta como é que funciona Portanto o interesse primordial da moderna biologia não é descobrir a divisão da natureza de acordo com gêneros e espécies mas explicar como funcionam os organismos A natureza não é portanto entendida como um belo cosmos a ser contemplado e imitado mas como uma conjunção de forças ou como um mecanismo que pode ser usado para garantir a preservação e a prosperidade humanas Na medida em que o Ser ocorre como a explicação do que é ou seja de como as coisas são é in compreensível dentro das categorias de linguagem que foram determinadas por uma metafísica que sempre entendeu o Ser e os seres como coisas como o quê Desta maneira a estrutura de nossa compreensão impede o reconhecimento do Ser Por con seguinte como concluiu Heidegger após o fracasso de Ser e Tempo o Ser permanece necessariamente oculto e por conseqüência impensado e esquecido Fundamental para o pensamento de Heidegger é a tentativa de mostrar a con junção do Ser como o como daquilo que é com a história ou o tempo A história Geschichte para Heidegger não é uma série causai ou o desenrolarse da liberdade humana ou o desenvolvimento dialético dos meios de produção mas o destino Ges chick do próprio Ser Heideer deriva esta noção de destino do grego moira fado destino que é a fonte escura e misteriosa da mudança que estabelece o horizonte para tudo o que é mas permanece ela mesma muito além desse horizonte Moira é o próprio Ser como a questão fimdamental que provoca o homem e o dirige para as respostas mas assim retirase e é ocultado pelas respostas e esquecido É como essa pergunta direcionadora que o Ser é história ou destino Sob esta luz o pensamento de Heideer parece ser historicismo radical Hegel en tendia a história como o desenvolvimento dialético da razão para o seu ponto culminan te em conhecimento absoluto Marx aceitou essa noção do caráter dialético da realidade mas negou que tivesse chegado à sua conclusão Nietzsche por sua vez negou até mes mo esta racionalidade dialética e afirmou ao contrário que o mimdo era completo devir governado apenas pela vontade de poder e pelo eterno retorno H eider parece trazer ao fim esse gradual desenvolvimento do historicismo com sua afirmação da identidade 8 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Para a discussão de Heideer da História ver seu artigo A Letter on Humanism in Basic Writín Ed D F Krell New York Harper Row 1977 Nietzsche IV p 99259tBeingand Time New York Harper Row 1962 entre história e Ser Essa interpretação no entanto pelo menos em parte representa mal o pensamento de H eider que tenta mostrar não que o Ser é história mas que a história é a revelação do Ser Heidet portanto não visa a historidzação do Ser mas a etemização da história ou do tempo Para H eider a história como o destino se des dobra para frente e para trás emergindo da revelação do Ser Por algum motivo obscuro e incompreensível o Ser se mostra ao homem como uma questão específica fimdamental Essa questão portanto orienta o homem como vimos em direção a um reino específico de respostas e portanto estabelece uma meta ou íuturo e um passado apropriados para esse objetivo A história é então uma série de projeções originais da eternidade sobre a temporalidade de revelações únicas do Ser que são imprevisíveis e incomensuráveis um com o outro Cada época acredita que possui a verdade e de íáto possuí a verdade uma vez que entende à sua maneira o que é etemo é ela própria a expressão do etemo do Ser como o como como a história ou o destino dos seres H eider suspeita que o niilismo moderno seja o advento de tal revelação do Ser O niilismo abre as portas para um encontro imediato com o Ser não somente porque elimina todas as categorias em que o Ser está preso oculto e esquecido mas também porque elimina todos os nossos equívocos sobre o nosso próprio ser humano todas as noções de fiuna imortal de imortabdade da alma ou da real imortalidade biolca e portanto toma possível de novo uma autêntica experiência de nossa própria mortaüda de da morte como a nossa mais extrema possibilidade própria O niilismo portanto não pode ser apenas rejeitado ou superado É pelo contrário a realidade contemporânea e contém tanto a possibilidade de dradação absoluta como a possibüídade de salvação em uma nova revelação do Ser O que é cmcial para o homem é se preparar para receber esta revelação Isso não significa rejeitar o mundo moderno técnico e político que é a base para o ser humano contemporâneo do homem H eider acredita ao contrário que esta nova revelação conduzirá a uma reinterpretaçáo íundamental da relação entre o homem e a técnica que dará um novo sentido e significado à existência humana e por tanto à atividade humana O reconhecimento do Ser como o como dos setes como técnica e história é portanto nada mais do que a libertação do homem para aceitar sua própria essência como ser humano O caráter substantivo da vida humana e assim a forma da ética e da política no contexto deste novo mundo no entanto permanecem obscuros e dependem na opinião de H eider da revelação plena do Ser bem como da recepção e resposta humana à questão que coloca Enquanto H eider assim expbca como será delineado o íuturo não sabe e não pode explicar que forma irá assumir Embora o homem não possa superar o niilismo pode prepararse para uma nova revelação De fiito tratase de tal preparação o projeto de Heidegger Compreende 1 a libertação do homem de todas as categorias e normas metafísicas através de uma reinterpretaçáo fundamental destrutiva da história do pensamento ocidental 2 a promoção de uma autêntica experiência do niilismo contemporâneo por conclamar o homem para um resoluto confronto com a morte e a ausência de sentido e 3 a persuasão do homem para que aceite seu destino específico dentro do destino de seu povo ou geração manifesto na revelação do Ser M a r t in H e id e g g e r 8 0 9 Por óbvio Heidegger náo pode garantir que mesmo sob tais circunstâncias o Ser irá revelarse que a essência misteriosa da existência atacará de novo o homem com toda a sua grande força gerando assim assombro e pensamento autêntico As sim pode ser nulo o resultado de todos os esforços e sacrifícios que H eid er exige No entanto o que mais preocupa talvez é que Heideer nâo explica como distin guir entre uma autêntica revelação do Ser e as projeções de preconceitos e paixões subliminares Na verdade sua destruição da metafísica parece tornar impossível tal distinção uma vez que destrói todas as categorias com base nas quais poderia ser feita tal distinção De forma semelhante sua ênfase em uma nova existência autên tica em contraste com a fidta de autenticidade de nossa existência contemporânea leva Heideer a uma identificação entre americanismo marxismo e nazismo que descarta as mais importantes questões políticas do século XX como epifenômenos e mina as bases de qualquer diferenciação entre os regimes dignos e os horrendos Finalmente como Heidegger não é capaz de prever sequer a forma que tomaria uma genuína revelação não fica claro se o novo deus que Heidegger acredita ser neces sário para nos salvar seria de fato preferível ao gentil niilismo do mundo técnico Sem dúvida tal deus poderia muito bem ser uma bestafera cuja solução para o niilismo gentil seria na verdade um niilismo de monstruosa brutalidade que oferecesse a perversão em lugar de prazer e terror em lugar da banalidade Com isto talvez se tenha propiciado uma compreensão melhor sobre a ligação de Heidegger com o nazismo e sobre os perigos com que se defrontarão outros que sigam o caminho que mapeou Heidegger não ignorava os perigos com que se de frontou A última linha de seu discurso de posse como reitor Tudo que é grandio so resiste à tempestade é tirada do sexto livro da República de Platão onde Sócrates descreve os perigos enfrentados pelo filósofo que tenta zelar pela cidade Heidegger percebia sua época como sendo semelhante à dos présocráticos Ambas ofereciam grandes oportunidades mas também grande perigo em particular para aqueles que suscitaram a inquietante pergunta do Ser Aqui Heidegger poderia muito bem ter aprendido uma lição com a história de Édipo para com quem exibe tanto respeito Ou talvez devamos concluir que tinha uma consciência muito viva de sua lição que o homem que procura fundar uma nova política com base em uma nova reve lação não é simplesmente expulso da vida política comum mas também se envolve nos mais hediondos crimes e nas degradações mais terríveis Aqui o fracasso de Heideer em criticar os nazistas de modo explícito por suas atrocidades pesa tanto contra ele como contra seu pensamento Aristóteles observa que o homem que vive fora da cidade é ou uma besta ou um deus Heideer pode muito bem nos ensinar que aqueles que vão além da cidade em sua busca por um novo deus muitas vezes se descobrem adorando os pés da bes ta que aqueles que extraem razão da revelação com muita facilidade enredamse na maior e mais monstruosa irracionalidade Portanto seu pensamento e seu exemplo parecem conduzirnos em direções opostas e suscitar de novo a questão da relação do filósofo para com a cidade 8 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y M a r t in H e id e g g e r 8 1 1 L e it u r a s A Heideer Martin An Introduction to Metaphysics New Haven Yale University Press 1959 Ein fiihrung in die Metaphysik Introdução à metafísica Heidegger Martin Being and Ttme NewYork Harper Row 1962 Introduction Sein undZeit Ser e Tempo B Heidger M ai Nietzsche 4 volumes New York Harper Row 19791987 Volume 4 H eider Martin A Letter on Humanism In Basic Writing Ed D E Krell NewYork Harper 8c R dw 1977 Heidger Martin lhe Question ofTechnobgy and Other Essttys NewYork Harper Row 1977 E pílogo Leo Strauss e a História da Filosofia Política O estudante que utilizar este livro pode de modo franco e válido indagar a res peito da abordagem ao ensino da filosofia política que é aqui apresentada Criou essa abordagem o editor sênior da obra Leo Strauss Nascido na Alemanha em 1899 lá estudou filosofia matemática e ciências naturais e frequentou os cursos de Husserl e Heidegger Depois de atuar como pesquisador em um instituto de estudos judaicos em Berlim deixou a Alemanha em 1932 e finalmente estabeleceuse nos Estados Unidos onde lecionou na New School for Social Research de 1938 a 1949 na Uni versidade de Chicago 1949 a 1967 no Claremont Mens CoUe de 1968 a 1969 e no St Johns College até falecer em 1973 Foi um professor de extrema influência entre seus muitos alunos está a maioria dos que contribuíram para este livro É ainda mais relevante o fiito de que escreveu 15 livros os três primeiros em seu alemão nativo e mais tarde uma dúzia em inglês em que interpretava uma grande variedade de textos e autores e investigava os problemas centrais da filosofia política A Vo lta à H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a Strauss revelase primeiro como historiador da íilosoíia política No entanto apresenta sua visão dessa história não com a motivação de uma curiosidade de anti quário sobre o passado mas motivado por aquilo que diagnosticou como a atual crise do Ocidente e da modernidade De acordo com Strauss era apenas o sinal mais claro da crise do Ocidente o pe rigo prático para a sua sobrevivência que advém do Oriente de um comunismo que tanto como uma forma de teoria política ocidental moderna e uma forma de despotis mo oriental constitui uma versão sem precedentes da tirania do velho A verdadeira 1 Exceto onde indicado todas as obtas são de Leo Strauss 2 On a New Intetpietation of Platos Political Philosophy Social Research XIII n 3 september 1946 p 332333 On Tyranny Ithaca NY Cornell University Press 1968 p 2122189190 The City atui Man C h io University of C h ia Press 1978 p 35 doravante Citf The Hiree Waves of Modemity in Political Philosophy Six Essays by Leo Strauss Ed Hilall Gildin Indianapolis and New York BobbsMerrill and Pasus 1975 p 98 crise ao contrário é que o Ocidente sob a influência de suas mais altas autoridades inteleauais já náo mais acredita em si mesmo em suas metas em sua superiorida de Pois Strauss entendia ser o moderno Ocidente constituído por um propósito ou projeto específico a construção de uma sociedade universal de naçóes livres e iguais constituídas por homens e mulheres livres e iguais que desfrutam de riqueza universal e portanto de justiça e felicidade universais por meio da ciência entendida como a conquista da natureza a serviço do potencial humano Tal objetivo tão íàmiliar para nós que vivemos no século dos Catorze Pontos de Wilson e das Quatro Liberdades de Roosevelt veio a caracterizar o Ocidente apenas na modernidade Em contraste pensadores prémodernos aceitavam não só a pluralidade como também a particulari dade das sociedades políticas assim como as politicamente significativas desigualdades naturais e convencionais entre os seres humanos Enfiitizavam a busca social da virtude ou salvação e a contenção do luxo e da corrupção que engendra Entendiam a ciência como a contemplação e a tecnologia como a imitação da natureza A perda da crença na nova meta é portanto especificamente uma crise da modernidade E uma vez que o objetivo que passou a vitalizar o Ocidente teve origem na filosofia política moderna Strauss chou à conclusão aparentemente singular de que a crise geral do Ocidente era em suas bases uma crise da disciplina específica da filosofia política Strauss considerava o íàto de o Ocidente ter perdido a certeza quanto a suas me tas não como uma carência psicológica de força de vontade ou como uma falta de co ragem moral mas como o resultado de desafios teóricos Tais desafios baseavamse em parte em dúvidas específicas sobre as premissas intrínsecas ao projeto moderno tais como o valor do universalismo as conexóes entre prosperidade e justiça e felicidade e o entendimento de ciência como a conquista da natureza a serviço do potencial huma no Em parte tais dúvidas decorrem da experiência do século XX da persistência de divisóes políticas como um baluarte contra a tirania universal da persistência do mal e da penúria no meio da abimdância e dos perigos que uma ciência sem restriçóes acar reta tanto para o homem como para a natureza Porém o que é ainda mais fundamen tal as dúvidas acerca da superioridade das metas do Ocidente baseiamse em doutrinas modernas tardias que nom a possibilidade de conhecimento racional da validade universal de qualquer meta ou princípio As ciências sociais restringiram sua esfera de competência aos fàtos distintos de escolhas e princípios morais e fundamentais aos quais entendia como valores ou preferências irracionais A doutrina à qual Strauss denominava historicismo afirmava que em sua essência todo o pensamento e ação humanos dependem de situaçóes históricas cuja seqüência não demonstra ter qualquer objetivo ou significado racionais O relativismo alegava que todos os absolutos apa rentes são ideais apenas em relação a determinados quadros de referência Todas essas E p íl o g o 8 1 3 3 Natural Right and History Chicago Univeisity of Chicago Press 1953 p 12 doravanre NRH City p 24 The Crisis of OurTime in Haiold J Spaeth Ed The Prediaiment o f Modem Politics Detroit University of Detroit Press 1964 p 4145 Three Waves of Modernity p 8182 4 Crisis of Our Time p 4243 City p 56 doutrinas portanto rejeitavam a filosofia política na sua forma original Esta situação constituía uma verdadeira crise para a filosofia política moderna porque tais doutrinas eram as implicações mais radicais dos entendimentos da natureza e da história que constituíam os pressupostos da filosofia política moderna em si Na visão de Strauss esta crise teve conseqüências teóricas para as crises práticas na medida em que tornou impossível uma defesa apaixonada do Ocidente exceto como uma questão de obscurantismo fanático Suas conseqüências práticas incluíam nâo só a vulnerabilidade aos perigos externos mas mais importante uma tendência interna para que se degenerasse a democracia liberal privada da crença na racionalidade dos seus propósitos e padróes transformandose em permissividade ou conformismo e filistinismo Para Strauss o problema prático portanto não era a democracia liberal em si da qual se considerava amigo mas a necessidade de defendêla contra perigos externos e internos Indicar a necessidade prática de uma solução no entanto náo é provar que a solução seja verdadeira Strauss nunca perdeu de vista a distinção entre utilidade e verdade A necessidade prática pode ditar apenas uma investigação sem re sultado predeterminado conduzida sem olhar de soslaio para nossa situação atual Para Strauss o mais nítido exemplo da crise do Ocidente da modernidade e da democracia liberal era a questão judaica a qual considerava como o símbolo mais evidente do problema humano na medida em que é um problema social ou político A questão judaica revela em primeiro lugar as limitações do liberalismo a sociedade liberal constituída pela moralidade universal e não pela religião que aquela considera como algo privado parece oferecer aos judeus participação igual mas exatamente porque reconhece uma esfera privada também reconhece e náo pode oferecer nenhu ma garantia contra os sentimentos antijudaicos privados e a conseqüente desigualdade social Mais importante ao oferecer a assimilação como o modelo a sociedade liberal priva os judeus da autoestima decorrente da lealdade para com sua própria tradição heróica enquanto por demasiadas vezes oferece em troca apenas uma autossatísfação superficial e a participação em uma sociedade humana universal inexistente Todavia apesar de todas as suas insuficiências esta não solução é evidentemente superior às soluçóes resultantes da destruição do Estado liberal por parte dos Estados antissemi tas do nacionalsocialismo e do comunismo No que se refere ao sionismo político do qual Strauss quando jovem foi adepto fervoroso essa tentativa de solução oferece aos judeus a assimilação não como indivíduos mas como um povo com seu próprio estado secular liberal tal como aqueles de outros povos No entanto a forma de resto 8 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 City p 1 67 Hie Crisis of Political Philosophy in Spaeth ed Pndicament p f Modem Politics p 91 What b Political Philosophy ÇWesopoa Conn Creenwood 1973 p 1727 doravante WIPP 6 NRH p 6 7 WIPP p 20 Crisis of Our Time p 48 8 NRH p 67 The Mutual Influence of Theology and Philosophy Independent Journal ofPhiloso Ay III 1979 114 City p 11 9 Spinozas Critique ofR elin New York Schocken 1965 p 6 10 A Clvii of Accounts Jacob Klein and Leo Strauss The CoUege XXII n 1 april 1970 2 vazia daquele estado exige a cultura judaica como seu conteúdo E a cultura judaica em qualquer sentido vital significa antes de tudo a fé judaica que como fé ou con fiança em Deus e náo nos homens deve considerar como blasfêmia a ideia de uma solução humana para a questão judaica Em segundo l i a questão judaica exibe portanto uma tensão que transcende a modernidade e sua crise a tensão entre razão humana e revelação divina as pretensões rivais pela dedicação humana representadas por Atenas e Jerusalém uma tensão que Strauss considerava o centro nevrálgico da história intelectual ocidental a história espi ritual do Ocidente e o sredo da vitalidade da civilização ocidental Strauss n v a que a moderna filosofia tívesse dado fim a este conflito ao lefútar a revelação na veidade seus esforços infrutíferos para fàzêlo através da transformação da filosofia em certeza sistemática apenas turvaram ou destruíram a consdência da ignorância que constitui o primeiro aiunento do filósofo em favor da necessidade da filosofia A resposta de Strauss para a crise da modernidade foi um esmdo tanto da filosofia política antiga como da moderna Posto que a crise é resultado das expressões mais recen tes do que esuva implídto nas mais recônditas premissas da filosofia políüca moderna era impossível siir em fiente e resolvêla diretamente com base nas doutrinas mais recentes Era necessário ao contrário voltar atrás pelo menos provisoriamente e tentar recuperar essas premissas em suas formas anteriores e originais para verificar se serviriam de trase para a superação da crise Pata entender e questionar essas premissas modernas originais era necessário por sua vez tentar contrapôlas à filosofia política dássica uma vez que seu suipmento ocorreu em parte como apoio em parte em oposição àquela alternativa ora quase esquecida Não apenas a crença moderna no progresso mas a disjunção fetovalor o relativismo e o historidsmo as próprias doutrinas que inaugura ram a crise impediram a maioria dos estudiosos modernos de considerar a possibilidade de que poderiam ser verdadeiras as doutrinas do passado que eram não só do passado mas estavam também comprometidas com a radonalidade daquilo que essas doutrinas recentes estigmatizavam como valores absolutos Assim fidtavalhes a abertura que é necessária para o entendimento Desta firma Strauss punha em dúvida que estivessem disponíveis entendimentos adequados quer da filosofia política moderna ou da antiggu viase obrigado a realizar e incentivar investigações históricas que não presumissem a verdade do pensamento atual ou a fidsidade do pensamento do passado A investigação de Strauss dos ensinamentos políticos antigos e modernos foi por força histórica bem como filosoficamente profunda sua acuidade histórica garantiuse E p íl o g o 8 1 5 11 Spinozas Critique ofReligion p 37 Progress or Return The Qntemporary Crisis in Western Civilizadon Modem Judaism I 1981 p 2122 12 Progress or Retum p 44 mpnt p 296297 13 NRH p 323671727476 Spinozas Critique ofR elin p 28293031 Mutual Influence p 113114116117118 Studies in Platonic Political Philosophy Chicago University of C h io Press 1983 p 149150 doravante Studies On Tyranny p 215216 14 A New Interpretation p 328332 WIPP p 68 On CoUingwoods Philosophy of History Review ofMetaphysics V n 4 june 1952 p 574 NRH p 33 pela investigação inicial do entendimento original de seus autores sua profundidade fi losófica por a partir daí averiguar sua veracidade Era paradoxal esta característica dupla da pesquisa de Strauss Ao passo que o historicismo em oposição ao qual Strauss esperava demonstrar mais uma vez a possibilidade da filosofia poUtica leva a sério a investção histórica do pensamento do passado não historicista mas se fecha à possibüidade da verdade de tal pensamento a filosofia não historicista que Strauss esperava recuperar não levava a sério as investigações históricas A filosofia política clássica era uma investigação so bre a natureza dos fenômenos poUticos e da ordem poUtica melhor ou correta não sobre os fenômenos particulares estadistas e estados com seus nomes próprios que são a preocupação da história poUtica muito menos sobre a história da filosofia poUtica Pla tão por exemplo admite Strauss tinha tal indiferença ou até mesmo desprezo pela verdade meramente histórica que considerava a questão filosófica da melhor ordem poUtica infinitamente mais importante do que a questão histórica relativa ao que este ou aquele indivíduo pensavam a respeito da melhor ordem poUtica Strauss portanto viase forçado a demonstrar a necessidade de recorrer à inves tigação histórica somente porque vivia em circunstâncias excepcionalmente adversas e nâo porque fosse superior aos pensadores anteriores cujo recurso à investigação não histórica era por sua vez uma indicação de sua situaçáo mais favorável Só assim poderia Strauss ter esperanças de estar aberto à verdade possível do pensamento do passado uma abertura necessária em primeiro lugar para compreendêla e em suida para aprender dela algo que pudesse resolver a crise atual Assim sendo Strauss explicava que enquanto a filosofia poUtica começa natu ralmente com uma análise direta e um esclarecimento das opinióes que a cercam a análise e esclarecimento de opinióes modernas requerem primeiro uma compreensão histórica dessas opinióes como modificações ou transformações de opiniões anteriores Isto porque Strauss entendia as opiniões modernas como modificações ou trans formações não apenas acidentais ou opiniões que por acaso sucedem outras mas essenciais de tal modo que só podem ser entendidas como modificações ou trans formações Essas opinióes permeiam a atmosfera intelectual de tal maneira que as pessoas muitas vezes não têm consciência de que as possuem quanto menos de seu ca ráter histórico Esse caráter pecuUar das ideias modernas é devido em parte a seu catáter tradicional ou herdado e em parte à crença especificamente moderna no pro gresso a crença de que os resultados continuamente novos da ciência ou da filosofia re pousam em premissas que foram há muito resolvidas e não precisam mais ser objeto de análise Assim sendo as opinióes modernas diferem daquelas que foram objeto 8 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 PersecutionandtheArtofWritingGcaoocVllLtetPKss 1952p 157158 ANewInterpreta don p 330331333334 WIPP p 56576874 16 Persecution and the An ofWriting p 155156 WIPP p 77 17 WIPP p 7375 sobre modificações e transformações ver também NRH p 7679 City p 10 e Three Waves of Modernity p 83 18 NRH p 31 WIPP p 27287679 das análises da íilosoíia polítíca clássica que podem ser entendidas sem um retrocesso adicional da investigação histórica e podem ser consideradas pelo menos neste aspec to como as opiniões naturais ou pontos de partida da íilosoíia Especificamente Strauss argumentou a fevor da peculiar necessidade dos estudos históricos em uma época dominada pelo historicismo Forneceu vários motivos para isso Primeiro a melhor compreensão e questionamento do historicismo que em últi ma análise produziu a crise do Ocidente ocorre por meio do confionto com a íilosoíia não historicista do passado acessível através de estudos históricos não historicistas Em segundo lugar o historicismo alega repousar em uma experiência da história que su postamente revela o íracasso da íilosoíia política não histórica em fornecer a resposta de íinitira para suas próprias peijuntas não históricas e o feto de suas respostas provisórias dependerem de suas situações históricas Questionar esta experiência e verificar se pode ser interpretada de outra forma também requer esmdos históricos não historicistas Em terceiro a coerência exige que o historicismo seja aplicado a si mesmo que a visão supos tamente final e universal acerca da dependência essencial de todo o pensamento humano de situações históricas transitórias ser ela própria entendida como essencialmente depen dente de uma situação histórica transitória Em última análise esta aplicação autocon traditória do historicismo a si mesmo conduz a um entendimento não historicista tal como o que Strauss esboçou em Natural Right and History Direito natural e história da gênese do historicismo como talvez apenas uma solução artificial e improvisada para um problema que só poderia suir com base em premissas muito questionáveis Por último a experiência da genuína compreensão histórica em si libertanos dos grilhões do historicismo é esta a autodestruição do historicismo De modo mais geral apontou Strauss os estudos históricos têm relevância filosófi ca somente em épocas de declínio intelectual quando há boas razões para acreditar que podemos aprender algo de extrema importância com o pensamento do passado que não podemos aprender com nossos contemporâneos Portanto o estudo que fez Strauss da bistória da filosofia política pressupõe uma insatisfação radical com o pensamento contemporâneo daí resultando um interesse nesse pensamento anterior que náo teve origem nas premissas responsáveis pela crise atual A C o n d u t a d a H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a Os singulares motivos para a visão de Strauss em relação à história da íilosoíia política ditaram as características inconfundíveis de sua maneira de estudála E p íl o g o 8 1 7 19 Persecution and the Art ofWríting p 15 5156 NRH p 7980 WIPP p 75 20 NRH p 33 On Tyranny p 24 21 NRH p 2024 3132 WIPP p 6264 22 NRH p 2425 33 WIPP p 7277 Qjllingwoods Philosophy ofHistory p 585586 23 Persecution and the Art ofWriting p 158 On Tyranny p 27 NRH p 32 24 CoUingwoods Philosophy ofHistory p 576 585 Seu entendimento da crise do Ocidente levou Strauss a empenharse para obter uma genuína compreensão histórica do pensamento do passado que o historicismo originalmente intentou mas que sua constituição impediuo de atingir Tentar enten der os pensadores do passado tal como percebiam a si mesmos exigia pôr em suspenso as próprias perguntas a íim de discernir as perguntas desses pensadores ensaiar uma tentativa de depender tanto quanto possível do que dizem direta ou indiretamente e depender o menos possível de informações extrínsecas e realizar um esforço para usar os termos e premissas próprios desses pensadores e evitar o uso de terminologia e premissas modernas a eles estranhas Para Strauss este esforço histórico que visava compreender o significado do pensamento do passado necessariamente envolve um esforço filosófico para levar a sério a pretensão de verdade desse pensamento E preciso pensar o pensamento devemse questionar as conexões lógicas e as relações de um argumento com o mundo a fim de acompanhar este argumento É acentuado o contraste desta abordíem não só diante da história da filosofia política realizada com base em uma crença no progresso a fé na superioridade do pen samento do presente em relação ao do passado mas também diante daquela realizada com o suporte do relativismo ou historicismo A fim de melhor perceber tal contraste seria útil que estudantes comparassem este livro com o mais influente livrotexto deste tipo na época em que foi publicada pela primeira vez a coletânea de StraussCropsey A History of Political Theory Uma história da teoria política 1937 de George H Sabine O prefácio original de StraussCropsey afirma atribuir a devida seriedade à filosofia política do passado como um fenômeno do qual aprender a respeito de ques tões ainda vivas o prefácio original de Sabine aíirma que dificilmente se pode dizer que sejam verdadeiras as teorias políticas na medida em que incluem avaliações que distorcem até mesmo os seus juízos factuais e que náo podem afastarse das relações que mantêm com os problemas avaliações hábitos e até mesmo com os preconceitos de sua época Em nítido contraste com StraussCropsey o prefácio de Sabine confessa uma preferência pela disjunção fatovalor e uma intenção de escrever a história da teoria política ocidental do ponto de vista deste tipo de relativismo social Strauss levava a sério a pretensão de verdade dos filósofos políticos do passado isso significa que considerava de grande urgência aceitála como verdadeira ou rejei tála como fidsa ou íàzer uma distinção ou reconhecer minha incapacidade de decidir e portanto a necessidade de pensar ou aprender mais do que sei neste momento Elaboradas tentativas acadêmicas de tratar esses pensadores como reflexos de suas épo cas ou de encontrar a fonte de seu pensamento em causas psicológicas ou econômicas eram portanto para Strauss distrações ou distorções na melhor das hipóteses ade quadas somente após teremse verificado incorretas essas pretensões de verdade Sem 8 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 25 A New Interpretation p 328329 On Tyranny p 2425 Persecution and the Art ofWriting p 161 Collingwoods Philosophy of History p 574 579585 26 George H Sabine A History o f Political Theory 3d ed New York Holt Rinehart and Winston 1961 p vvi cf Strauss Crisis of OurTime p 51 City p 8 WIPP p 227228 dúvida Strauss preferia cmpreender a época desses pensadores e até mesmo questões psicológicas e eventos econômicos à luz de seu pensamento Ao fezêlo exemplificou sua opinião geral de que é mais seguro tentar entender o inferior à luz do elevado do que o elevado à luz do inferior Ao por em prática este último necessariamente se distorce o elevado enquanto ao fezer o primeiro náo se priva o inferior da liberdade de se revelar plenamente tal como é Da mesma maneira que no prefácio à primeira ediçáo desta obra Strauss enfa ticamente direcionava seus alunos para os textos originais mas sua ênfese em textos e pensamento não correspondia à ideia absurda de que sáo objetos de investigação autossuficientes que podem ser entendidos sem referência a outros Strauss admitia de pronto que para entender um texto de filosofia política podemos necessitar de infor mações náo fornecidas pelo autor de informações que náo são fecilmente acessíveis a todos os leitotes razoáveis independente de tempo e lugar Contudo insistia que tais evidências externas fossem integradas em uma estrutura fornecida pelo autor Pode mos ter de aprender uma terminologia femiliar aos contemporâneos do autor mas não mais conhecida hoje Temos de aprender a ver seus contemporâneos seus antecessores e a tradição filosófica tal como esse autor os vk na verdade a tradição e a continui dade desaparecem quando se começa a interpretar Até mesmo um grande texto deve ser lido em seu contexto mas temos de entender o que seu autor entendia como sendo tal contexto não inserilo em algum contexto construído por nossa erudição Strauss preocupavase em particular em identificar com quem um livro tinha a intenção de argumentar e a quem tinha a intenção de persuadir mas ao esquadrinhar tais fetos externos tentava descobrir indícios no próprio texto Strauss realmente enfetizava a importância da situação histórica não porque o pensamento de um filósofo políti co do passado devesse refletilo de modo inconsciente mas porque tal filósofo pode ter propositalmente adaptado a ele a expressão de seu pensamento Acima de tudo Strauss insistia que para entender bem como julgar uma obra de íilosoíia política é preciso examinar não só o texto em si mas também os fenômenos que o livro nos aponta assim como a filosofia política em si exige um conhecimento de política É provável que seja da preocupação de Strauss com o contexto histórico da filo sofia política do passado que emana o aspecto mais controverso de sua abordagem à história da filosofia política sua sugestão de que algiuis filósofos do passado produ ziram escritos exotéricos Como indicado logo anteriormente a dúvida de Strauss para com o historicismo levouo a indagar se a aparente relação entre o pensamento de filósofos políticos do passado e suas situações históricas não revelava uma adapta E p íl o g o 8 1 9 27 Leo Strauss to HansGeoiç Gadamer February 26 1961 in Correspondence Concernii Wah rheit und Meíbode IndependentJournal qfPhibsophy II 1978 p 6 Spinozas Critique o f Religion p 2 28 Strauss to Gadamer February 26 1961 p 6 Perseeution and the Art ofWriting p 159161 29 WIPP p 63 Perseeution and the Art ofWriting p 5556 NRH p 198199 n 43 30 Collingwoods Philosophy of History p 583 WIPP p 14 çâo deliberada ao invés de uma reflexão inconsciente Essa indagação levouo a tentar distinguir as partes de seus ensinamentos políticos que eram meramente desejáveis ou necessárias dentro de suas circunstâncias particulares seus ensinamentos exotéricos daquilo que consideravam ser a verdade política sempre e em todos os lugares seus ensinamentos esotéricos A partir dessa distinção Strauss passou a enfatizar em particular a forma de diálogo em que Platão escreveu a qual diz coisas diferentes a pessoas diferentes a necessidade de entender seus argumentos à luz do cenário e da ação dramática e a ironia de Sócrates que é mostrado em conversa com indivíduos comuns nenhum deles igual a ele em sabedoria A descoberta da escrita exotérica por Strauss não foi uma invenção mas a recupe ração de um fenômeno já bastante conhecido Sua preocupação com a questão judaica levarao até Spinoza o criador filosófico tanto da democracia liberal assimilacionista como do sionismo político e assim até Maimônides a quem Spinoza parecia ter como representante da teologia e em seguida a Alfiirábi a quem Maimônides considerava como a maior autoridade filosófica de sua época e finalmente a Platão e Aristóteles vistos sob nova luz como os mestres de Alfarábi e Maimônides Strauss diferia de muitos outros estudiosos por estar disposto a acreditar que os pensadores medievais que toma ram a sério os antigos autores como mestres filosóficos teriam maior possibilidade de en tender seus escritos do que os estudiosos modernos que os consideravam apenas como objetos de curiosidade histórica e que rejeitavam suas visões da relação entre filosofia e sociedade Alfiirábi explicou que o sábio Platão não se sentia livre para revelar e des vendar as ciências para todos os homens Portanto seguiu a prática de utilizar símbolos enigmas obscuridade e dificuldade para que a ciência náo caísse nas mãos daqueles que não a merecem e se deformasse ou nas mãos daqueles que náo conhecem seu valor ou que o utilizam de forma inadequada Maimônides na introdução de Guia dos Perple xos explica que seu bvro contém contradições ocultadas de propósito porque ao fàlar sobre assuntos muito obscuros é necessário esconder algumas partes e divulgar outras Essa necessidade exige que a discussão prossiga com base em uma determinada premissa enquanto em outro local a necessidade exige que a discussão prossiga com base em ou tra premissa que contradiz a primeira Desta forma o autor emprega algum artifício para escondêlas por todos os meios Esses escritores medievais explicitaram os tipos de escrita que provavelmente caracterizariam todos os pensadores que não acreditam ser sempre possível dizer a verdade a todos sem perigo Por que em eras pregressas alguns filósofos empregaram métodos de comu nicação táo estranhos De acordo com Strauss a razáo mais óbvia e mais crua era 8 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 31 WIPP p 6364 City p 5062 32 Alfkrabi Platos Laws in Ralph Lerner and Muhsin Mahdi eds Medieval Political Philosophy A Sourcehook Ithaca NY Cornell University Press 1972 p 8485 33 Moses Maimônides lhe Cuide o f the Perplexed trans Shlomo Pines Chicago University of Chi cago Press 1963 p 18 20 34 Ver p ex A República de Platáo 331 382 415 450 494 a perseguição o perigo que constituía a sociedade para a filosofia exigindo que os filósofos se protegessem Esse perigo e reação são compreendidos com mais facilidade nas tiranias contemporâneas do que nas sociedades liberais contemporâneas Um motivo menos óbvio porém era o perigo que constituía a Íilosoíia para a sociedade Por sua própria natureza a filosofia como uma tentativa intransigente de questionar e substituir a opinião pelo conhecimento põe em perigo a sociedade que exige de seus membros que ajam com base em opiniões indiscutidas mas necessariamente discutíveis Os filósofos devem portanto praticar a responsabilidade política e res peitar as opiniões indispensáveis para íins práticos e políticos Este perigo e a reação a ele por parte da íilosoíia são ainda mais difíceis de avaliar para as sociedades que se percebem como baseadas na verdade científica universal mas deveriam ser mais in teligíveis para as ciências sociais que veem as sociedades como constituídas por mitos ou valores arbitrários Outro motivo para os escritos exotéricos são as necessidades da educação que deve começar com os pontos de vista iniciais dos estudantes e só conduzilos até a verdade passo a passo e sem lhes causar aversão Strauss sabia que não se pode provar com certeza absoluta a presença ou a ausên cia da escrita exotérica em um determinado texto bem como que a suposição dogmá tica de uma ou outra produziria interpretações arbitrárias Devese julgar da melhor forma possível com base nos indícios relativos a cada caso Com a dúvida de que a interpretação pudesse ser reduzida a um método e ciente de que sua sugestão era pas sível de mau uso Strauss se refere a essa sugestão como um método apenas em parte de modo jocoso e assinala que os métodos alternativos da moderna academia para lidar com contradições textuais tal como atribuílas ao desenvolvimento do autor a dificul dades textuais ou a psicologia inconsciente para não falar da simples confusão ou das contradições inerentes à textualidade são ainda menos capazes de alcançar a certeza absoluta ou o acordo universal ou de excluir uma perversa engenhosidade Strauss considerava sua abordsem à história da filosofia política como um com ponente decisivo da educação liberal Entendia esta como um esforço para filosofar primordialmente por meio de ouvir e tentar julgar o diálogo entte as mentes mais brilhantes o que poderia ser feito pelo estudo dos grandes livros trazendo à memória a excelência e grandeza humanas Tal recordação obrigatoriamente contribui para o bemestar da comunidade política e fomenta a responsabilidade cívica É necessária e oportuna na democracia liberal em especial a qual ao dar liberdade a todos tam bém dá liberdade para aqueles que cuidam da excelência humana E p íl o g o 8 2 1 35 Persecution and the Art ofWriting p 1718 2225 WIPP p 9394224225 36 Persecution and the Art ofWriting p 78 3336 110 182183 WIPP p 221222 NRH p 257258 260 263 37 Persecution and the Art ofWriting p 3637 ver também Maimônides Guide o f the Perplexed p 1718 38 Persecution and the Art ofWriting p 26 2931 WIPP p 223 231232 Strauss to Gadamer February 26 1961 p 56 39 Liberalism Ancient and Modem New York Basic Books 1968 p 68 13 15 24 A história da íilosoíia política era para Strauss uma educação na consciência dos problemas íimdamentais e permanentes Tudo o que é preciso para ensejar tal história é o pressuposto ou hipótese negados pelo historicismo da persistência através da mudança histórica dos mesmos problemas íimdamentais mas não de uma determi nada solução para eles Strauss entendia que a história como a investigava ajudava a confirmar a permanência de problemas fundamentais e até mesmo de soluções al ternativas A consciência da tenacidade desses problemas refuta o historicismo na verdade ao enxergar estes problemas como problemas a mente humana libertase de suas limitações históricas Para Strauss uma genuína consciência dos problemas fundamentais legitima e até mesmo constitui a própria filosofia A F il o s o f ia P o l ít ic a M o d e r n a Strauss enfiitizou a responsabilidade de Maquiavel na criação da filosofia política moderna Apesar da frequência das mudanças radicais e da imensa variação dentro da modernidade Strauss encontrou uma unidade básica dentro dela originada por Ma quiavel e preservada por seus sucessores É negativa a primeira aparição dessa unidade os modernos rejeitam a filosofia poUtica clássica por não ser realista por culminar em utopias cuja concretização reconhece ser por demais improvável e sujeita ao acaso incontrolávcl Em contrapartida Maquiavel e a filosofia política moderna procuram tornar prodvel ou até mesmo assegurar a efetivação da ordem correta vencer o acaso e superar os obstáculos impostos pela natureza e pela natureza humana em particular No entanto para tornar mais provável a realização da meta devese também reduzila Dado que a fílosofia política clássica subordina a política à moral e acima de tudo à virtude intelectual como o fim do homem ou a perfeição da alma humana fornecida pela natureza Maquiavel subordina a virtude à política como virtude útil apenas po liticamente encontra no desejo de glória um substituto amoral para a moral e inau gura a visão da fílosofia como estando a serviço das metas de toda a humanidade Strauss percebia esse realismo moderno não como uma verdadeira descoberta ou alargamento do horizonte mas na vetdade como um estreitamento do horizonte Este realismo obscurece aquilo que em essência transcende toda a realidade humana possível a eternidade e o todo ou o fato de que alma humana tende naturalmente 8 2 2 H i s t ó r u d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 40 WIPP p 228229 CoUingwoods Philosophy of History p 586 41 NRH p 2324 7475 Ihoughts on MachiaveUi C h io University of C h io Press 1984 p 14 42 NRH p 32 43 NRH p 2930 32 35 On Tyranny p 210 44 WIPP p 3435 4041 132 NRH p 139 Three Waves of Modernity p 8385 e mpm p 555868299300 45 WIPP p 4143 49 NRH p 178 Ihoughts on MachiaveUi p 294297 Three Waves of Moder nity p 8587 Liberalism Ancient and Modem p 1920 supra p 294 para eles Strauss explicava incrível estreitamento como uma reação humana gene rosa e de espírito público contra a desumanidade exemplificada pela Inquisição que resulta dos objetivos infinitamente elevados da tradição clássica transfigurados pelo Cristianismo Apesar disso ou por causa dessa reação entendia que Maquiavel ado tara o Cristianismo como seu mais importante modelo para transformar o modo e a função da filosofia em propaganda ou iluminação que busca controlar o destino geral do pensamento humano A unidade subjacente que Strauss discernia na modernidade o esforço para tor nar provável ou assegurar a concretização da ordem correta era responsável também em sua visão pelas muitas transformações que sofreu a modernidade Assim como a nova íilosoíia política de Maquiavel procurava garantir a concretização da ordem cor reta por meio da rejeição de um fim natural do homem assim a nova ciência natural de Bacon e Descartes buscava assegurar a realização da sabedoria por meio de um mé todo infidível que não dependesse da inteligibilidade natural do universo Da mesma forma Hobbes buscou garantir a efetivação da ordem correta com base no conheci mento científico e na iluminação do povo por meio da dedução de uma nova versão da lei natural a partir do medo da morte violenta como a mais forte paixão e do início ao invés da razão e do fim telos do homem como era o caso da versão antiga O foco de Hobbes sobre a busca do poder que daí resulta mesmo com a exclusão da nobreza do amor pela glória reconhecido por Maquiavel eqüivalia a mais uma redução do bori zonte Locke na visão de Strauss levou adiante esta mudança de ênfiise dos deveres e fim do homem para direitos e homem como indivíduo por meio da emancipação da ganância produtiva como a solução para a mesquinhez da natureza Rousseau ape sar ou por causa de seus esforços para voltar à natureza e para restaurar a dignidade da virtude foi ainda mais longe e apresentou a vontade geral como a garantia de justiça que torna completamente supérfluo o apelo à lei natural As filosofias da história de Kant Hegel e Marx tentavam mostrar de modo expbcito que a realização da ordem correta é um subproduto necessário do conflito dialético entre cegas pabcões egoístas no processo histórico Finalmente até mesmo Nietzsche assemelbavase a Marx ao afirmar que o discernimento definitivo abria caminho para a realização do ideal final caraaerízado pelo fim do domínio do acaso embora afirmasse que tal realização era uma questão de escolha e não dc necessidade E f í t o g o 823 46 WIPP p 43 51 55 NRH p 176178 Ihoughts on MachiaveUi p 295 47 WIPP p 4344 NRH p 177178 supra p 315 Ihouts on MachiaveUi p 157167185188 207208 48 WIPP p 4446 Ih o u on MachiaveUi p 84102118119171173297 49 NRH p 171175 WIPP p 47 Hiree Waves of Modernity p 8788 50 NRH p 179180195196199201 WIPP p 4749 51 WIPP p 49 NRH pp 248250 52 WIPP p 5052 Three Waves of Modernity p 8993 53 WIPP p 5354 Three Waves of Modernity p 9197 Studies p 32 NRH p 316319 54 Three Waves of Modernity p 9697 Studies p 189 De certa forma Strauss parecia considerar necessárias essas sucessivas transforma ções em virtude do árduo esforço original para garantir a realização da ordem correta Parecia considerar a modernidade como um tipo de progresso necessário da coerência da compreensão cada vez maior das implicações do princípio original moderno bem como uma conseqüente corrosão ou destruição do patrimônio prémoderno da civi lização ocidental A descrição de Strauss da história da íilosoíia política modema é no entanto mais complexa do que um simples aranço unidirecional ou do que um aíástamento da com preensão clássica Pelo menos em dois momentos cruciais houve tentativas de retornar ao pensamento prémoderno Estas no entanto levaram consciente ou inconsciente mente a uma forma muito mais radical de modernidade A crise do direito natural moderno fbi deflagrada por Rousseau e levou ao esíbiço de usar a história e não a na tureza como fonte de padrões essa crise abriu o caminho para a snda ou atual crise da modernidade que foi deflagrada por Nietzsche e desacreditou todas as tentativas de obter padrões permanentes a partir da história Ambas as crises íbram assinaladas por exaltadas e contundentes críticas ao pensamento moderno anterior críticas com as quais Strauss parece ter em geral concordado Não podemos voltar às formas anteriores do pen samento moderno de acordo com Strauss porque não se pode descartar ou esquecer a crítica ao racionalismo moderno ou à moderna crença na razão feitas por Nietzsche Strauss acrescenta ainda que esta é a razão mais profunda para a crise atual Do mesmo modo Strauss considera o historicismo mais radical o pensamento de Heidjçr como o ponto culminante e de maior autoconsciência do pensamento moderno Determinados elementos da maneira como Strauss retrata a história da íilosoíia política moderna tais como a consciência da necessidade de uma espécie de progressão a atribuição de profundos efeitos práticos a profundos argumentos teóricos o modo como tentativas de retorno transformamse em avanços e a culminação final parecem elaborar esboçar ou sugerir algo que no caso de quase qualquer outro homem seria chamado de sua filosofia da história No entanto não só esta elucidação de Strauss está longe de demonstrar a necessidade da realização da ordem correta como o dpo de necessidade que evoca aplicase apenas à modernidade e não à história humana em si e somente enquanto permanecerem inquestionáveis as premissas da modernidade A interpretação de Strauss da história da íilosoíia política no entanto tanto começa como termina com algo que se poderia chamar de aspectos privilegiados A filosofia política clássica entendia a política com um frescor e uma franqueza que ja mais foram igualados porque pertence ao momento fértil quando todas as tradições políticas estavam abaladas e não havia ainda uma tradição de filosofia política Da 824 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a s L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 55 WIPP p 4749 50 52 55 Progress or Rctum p 30 56 WIPP p 50 NRH p 252253 57 Three Waves of Modemity p 98 58 WIPP p 55 59 Cf Studies p 32 WIPP p 53 mesma forma o genuíno entendimento da íilosoíia política do passado é ao mesmo tempo necessário em nosso tempo e podese dizer foi possibilitado pelo estremeci mento de todas as tradições a crise do nosso tempo pode ter a vantagem acidental de permitir que compreendamos de maneira nova ou náo tradicional algo que até aqui foi entendido apenas de forma tradicional ou secundária O historicismo radical de Heideer de acordo com Strauss ao mesmo tempo nos obriga a reconsiderar as premissas mais elementares da íilosoíia e por desenraizar a tradição viabiliza a possi bilidade de uma genuína recuperação da íilosoíia clássica O estudo da modernidade feito por Strauss permitiulhe empreender essa recuperação da fílosofia política clássi ca enxergar a íilosoíia política clássica tal como esta enxergava a si mesma e não mais através das lentes da íilosoíia política moderna F il o s o f ia P o l ít ic a A n t ig a e M e d ie v a l Quanto mais progredia Strauss no sentido de desvendar a autocompreensão original dos filósofos prémodernos mais se inclinava a ponderar que a sabedoria humana ou política dos pensadores antigos e em particular a dos socráticos era de cididamente superior a qualquer das várias alternativas modernas Isto não quer dizer que Strauss simplesmente decidiu apostar todas as fichas nos antigos ou em seus discípulos medievais Uma das destacadas virtudes que Strauss encontrava no raciona lismo da Antiguidade e da Idade Média inspirado por Sócrates era a sua abertura e tenacidade em absorver importantes perspectivas alternativas incluindo não somente antigas posições filosóficas antagônicas mas acima de tudo as reivindicações de inspi ração divina feitas de maneiras tão diversas pelos poetas gregos e pelos proíètas bíblicos Além disso nunca cessou para Strauss o profundo e frutífero desafio que constituíam seus sempre renovados estudos de cada um dos principais posicionamentos modernos Este próprio repensar no entanto repetidas vezes confirmou seu julgamento básico Quais são os principais elementos da elevada perspectiva que Strauss ressuscitou dos antigos livros Tal como Cícero Strauss rotulavase como um cético platônico ou socrático Skepsis é o termo socrático que designa a investigação ver por exemplo Platão Góras 487 t As leis 636 Xenofonte Econômico vi 13 O ceticismo socrático é um modo de vida dedicado à investigação das questões mais abrangentes relativas à situação humana Não seria necessária ou sensata essa investigação ao longo da vida se a verdade sobre a situação humana já fosse conhecida de modo adequado Era o enten dimento de Strauss que a filosofia política platônica ou socrática emeipa de uma pro funda consciência da ignorância em particular no que se refere à metafísica e à cosmo logia mas também no que diz respeito ao bem do homem Alegava ter demonstrado a partir da evidência dos textos clássicos que Nietzsche e Heideer estavam errados E p íl o g o 8 2 5 60 WIPP p 27 City p 9 61 NRH p 31 Giving of Aaxunts p 3 An Unspoken Prole to a Public Lecture at St Johns lhe College XXX n 2 january 1979 p 31 em suas afirmações sobre o dogmatismo do racionalismo e sua explanação da existên cia ou Ser Embora seja verdade que o racionalismo em sua forma original descubra na existência bumana uma natureza imutável a partir da qual se podem deduzir os princípios imutáveis do direito náo é verdade que o racionalismo original fundamente essa descoberta em uma suposição dogmática de que ser significa ser sempre ou ser inteligível quanto menos ser um objeto ou ser previsível Sócrates estava tão longe de se comprometer com uma cosmologia específica que seu conhecimento era o conhecimento da ignorância O conhecimento da ignorância não é ignorância É o conhecimento do caráter ilusório da verdade do todo Sócrates portanto percebia o homem à luz do caráter misterioso do todo Todavia o racionalismo socrático caracterizase pela gentil porém firme recusa de sucumbir ao charme do humilde assombro que se pode acreditar ser induzido por essa consciência Saber que estamos situados em um todo ilusório ou misterioso é saber algo de grande importância sobre a situação humana e até mesmo sobre o todo O conhecimento da ignorância neste sentido pode ser e certamente foi para Sócrates a base sólida para uma fértil exploração dos elementos duradouros da condição huma na Tal exploração póe a nu as questões ou problemas atemporais que nunca deixam de definir e pôr em marcha a vida humana Sócrates como o entendia Strauss afirmava que estamos mais familiarizados com a condição do homem como homem do que com as cau as últimas dessa condição Podemos também dizer que Sócrates via o ho mem à luz das ideias imutáveis isto é dos problemas fundamentais e permanentes Proeminente entre as ideias ou problemas imutáveis está o problema da natureza da justiça o bem comum uma questáo que é aprofundada e tornada mais intrigante pelas respostas conflitantes oferecidas pelas leis humana e divina dos vários regimes políticos A questão da justiça tem precedência porque a justiça ou a lei surgem como o mais elevado padrão para julgar o que deveria ser feito qual é o modo de vida correto para indivíduos famílias e sociedades políticas Strauss faz uma nítida distinção entre o que denominou o ceticismo erótico carente saudoso ou zetético indagador averiguador dos socráticos e a dogmá tica ou o ceticismo mais absoluto introduzido por Descartes e subjacente à ciência e epistemologia modernas A consciência da ignorância socrática náo implica que se jam desconhecidos o mundo real ou as coisas em si mesmas e que portanto só podemos conhecer um mundo aparente O ceticismo socrático não envolve uma dúvida radical em oposição a um questionamento do senso comum náo supóe que a articulação do mundo dado em nossa percepção sensorial e discurso racional seja uma 8 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 62 WIPP p 11 3839 248251 NRH p 3032 120122 Studies p 4142 170171 175 185 210 LiberalismAncient and Modem p 27232234 cf Mutual Influence p 114 O protótipo do íilósofo no sentido clássico era Sócrates que sabia que nada sabia que assim admitia que o todo náo é compreensível que apenas se perguntava se ao dizer que o todo não é compreensível náo admitimos ter alguma compreensão do todo 63 WIPP p 3840 NRH p 2324 9293123124 64 NRH p 23 8186 City p 19202225 construção inconsciente de nossas mentes e que portanto o verdadeiro conheci mento ciência só é possível com base em construções mentais conscientes ou cons cientemente criativas É isto o que se entende por ceticismo socrático possuímos um entendimento mas um entendimento incompleto das naturezas isto é dos tipos ou características das classes ou ideias das coisas tal como percebidas pelos sentidos e expressas no discurso comum e entendemos mas entendemos apenas vagamente o todo que é articulado por essas naturezas como partes Assim enquanto podemos pro gredir um pouco em nosso conhecimento da natureza como um todo o nosso conhe cimento neste sentido abrangente permanece extremamente controverso Acima de tudo parece improvável que a especulação metafísica ou cosmológica ou psicológica por si só possa decidir em definitivo a questão mais importante e urgente se nossa vida pode e deve ser guiada pela razão humana apenas ou se existem o Deus ou os deuses revelados pelas Escrituras ou pelos poetas e que portanto exigem de nós que obedeçamos a suas leis e piedosamente procuremos a iluminação a partir deles Entretanto como Platão mostra de maneira mais vivida por meio de seu relato do encontro de Sócrates com o Oráculo de Delfos e como Maimônides indica pelo próprio título de sua principal obra O guia dos perplexos nossa perplexidade não pode ser resolvida por nossa simples reverência às autoridades religiosas Pois os pronuncia mentos e até mesmo os mandamentos dessas autoridades sejam eles transmitidos por oráculos ou escrituras ou versos poéticos são um tanto enigmáticos porque exigem interpretação humana e os intérpretes oficiais discordam entre si Pior de tudo há uma variedade de deuses mutuamente exclusivos ou pelo menos antônicos ou deuses supostos e códigos legais divinos Os confiitos entre as diferentes autoridades divinas não são apenas controvérsias teológicas pois são ao mesmo tempo confli tos entre sistemas ou rm es moraispolíticos concorrentes com as suas concepções conflitantes de justiça e do modo de vida correto Os vários deuses ou supostos deuses representam avalistas e defensores de diversas interpretações do caminho justo ou cor reto O nome mais adequado da pergunta teológica se divindades existem e quais portanto como insistia Spinoza seria a questão teológicopolítica a questão teológi ca é uma parte da questão da justiça ou pelo menos se entrelaça com ela Foram os escandalosos indícios das aparentemente irreconciliáveis discordâncias morais entre os vários regimes políticos e os mandamentos divinos a eles associados que dirigiram os antecessores intelectuais de Sócrates para a linha de pensamento que levou à conclusão de que todas as afirmações cívicas ou populares sobre deuses justiça e nobreza são opiniões imaginárias ou inventadas e inteiramente convencionais A E p íl o g o 8 2 7 65 Introduaion acima p 5 WIPP p 116 City p 1921 29 4243 NRH p 73 80 121124 145146 163164 169177 201 249 Persecution and the Art ofWriting p 9598 105112 Studies p 147173 210211 Sócrates and Aristophanes New York Basic Books 1966 p 313 Spinozas Critique ofReligion p 89 66 Introduction supra p 45 City p 2021 Spinozas Critique ofReUgpm p 731 esp 29 O an tagonismo entre Spinoza e o judaísmo e entre crença e descrença em última análise náo é teórico mas moral com o qual cf Persecution and the Art ofWriting p 139141 partir das fríinentárias evidências disponíveis Strauss concluiu que a maioria dos filósofos e dos sofistas excluindose Sócrates a exceção notável é Tucídides tendia a passar ao largo dos discursos justificativos aparentemente contraditórios de cidadãos e estadistas para ao contrário estudar suas ações em particular as ações por meio das quais se estabelecem as ordens políticas A esta luz argumentavam toda comunida de política pode ser decomposta em dois grupos aqueles a maioria ou uma minoria que exploram porque governam e aqueles que sáo explorados por serem governados Esta situaçáo universal de conflito e dominação é uma conseqüência necessária da natureza dos bens ou prazeres que os homens buscam através da sociedade poiítica É da essência desses bens serem escassos como a prosperidade material ou resistentes a serem compartilhados como o avanço cívico dos entes queridos ou ambos como a glória Se a partir desta análise dos atos e dos objetivos revelados nas ações olhar mos de volta para os discursos justificativos ou crenças sobre a existência de um bem comum e a nobreza e sanções divinas para da fraternidade cívica e do sacrifício ou serviço à comunidade essas últimas opinióes parecem ser apenas as ilusões por meio das quais os homens premeditadamente ou não enganam os explorados e salvaguar dam seu próprio sentimento de vergqnha ludibriada De tudo isso os soíistas e seus medíocres discípulos podem concluir que a me lhor vida ou seja a vida mais agradável é encontrada na dedicação viril à competição política perspicaz astuta e implacável No entanto os mais meticulosos pensadores présocráticos os genuínos filósofos apontam que enquanto se permanece como um concorrente na arena política continuase preso a uma dependência radical infinita mente ansiosa de grande número de apoiadores e suas opiniões ilusórias expressas em honra e desonra O único prazer autossuficiente sólido indolor e avassalador ou ines gotável é o prazer de pensar e conhecer A melhor vida pela natureza ao contrário da convençáo ou da imaginação é portanto a vida do filósofo que convive com alguns amigos que possuem ideias semelhantes como um parasita mais ou menos inofensivo à margem da sociedade Strauss dedicou grande parte de seus escritos a uma exploração desta tradição présocrática ou epicurista porque estava convencido de que a fílosofia política de Sócrates só pode ser entendida se fisr encarada como o produto de uma rebelião cética ao mesmo tempo contra as autoridades tradicionais e contra esta critica filosó fica original antipolítica dessas autoridades Sócrates caracteriza sua nova abordem como um voltarse para os discursos ou como a prática da dialética a arte do debate amistoso Seu modo de agir tal como apresentado por Xenofonte e Platão é dar cuidadosa atenção aos argumentos justificativos oferecidos por diferentes tipos de cidadãos ativos e comprometidos e também por seus críticos os sofistas e seus seguidores Sócrates testa esses argumentos ao colocálos em discussão uns com os ou tros ao contrapôlos ao desvendar as suas implicações totais e ocultas A prudência 828 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 67 NRH p 93113 126 City p 1415 68 NRH p 1012114117 City p 1415 SocnttesandAristophanes p 481153 para não felar de outras considerações recomenda que em geral Sócrates conduza esta investigação não com os próprios cidadãos mas com os mais inteligentes entre seus filhos de mente mais aberta Suas conversas revelam que as ações dos homens devem ser entendidas à luz do significado que lhes é atribuído por opiniões e discursos A essa luz tornamse menos conclusivas as ações cruéis nas quais se concentram os sofistas présocráticos ou filósofos Além disso mesmo que se retire a ênfese do que os homens dizem mesmo que se aceite provisoriamente o foco dos présocráticos descobrese que o que os seres humanos realmente fezem o modo como realmente vivem em conjunto não é o que os présocráticos afirmam Em primeiro lugar a vida política como um todo evidencia uma sociabilidade natural humana a necessidade de compartilhar a vida com outros um afeto e sim patia mútuos e uma preocupação que aponta em direção a um bem comum natural Tais indícios não podem ser explicados de maneira adequada com base em cálculos egoístas além disso uma vez que a sociabilidade humana se expressa sobretudo no discurso potencialmente racional é também muito mais rica do que qualquer colmeia ou mero instinto de rebanho Está daro que por este mesmo motivo a sociabilidade retém forte ambigüidade Sócrates está longe de subestimar a onipresença da peculiar mente humana peculiarmente ilimitada competição pela superioridade e prestígio Porém reluzindo por entre até mesmo essas trevas nos discursos com que os homens expressam seus motivos para suas açóes Sócrates percebe uma dimensão maior e mais importante da política muito embora de maior firagilidade Mesmo nos embates com a necessidade econômica e militar que tanto ocupam a agenda política os homens apresentam uma consciência das sí d as limitações sobre o que podem fezer a outros e a si mesmos a fim de vencer o perigo e a escassez Esses limites são repetidas vezes transgredidos mas o próprio feto de que a vergonha e as tentativas de mascarála acompanhem tais transgressões é sinal de uma inibição natural nos seres humanos Ademais os homens admiram não apenas o sucesso em ampliar os interesses terrenos mas também determinadas qualidades do coração e da mente empregadas para atingir esses resultados benéficos mas que também parecem transcendêlos Ao procurar desenvolver ou promover essas qualidades como fins e não apenas como meios os homens ultrapassam os componentes da felicidade no sentido primário Aspiram a um lazer que lhes daria opormnidade para nobres ações pacíficas e para belas ou elantes preocupações Reverenciam não só os heróis de guerra e ofer tantes de dádivas mas também os homens que parecem capazes de dar conteúdo a tais aspirações como os poetas Tampouco é verdade que os diversos regimes poUticos com suas especificações concretas dos limites adma mencionados traços de caráter e nobre lazer sejam tão ir E p íl o g o 8 2 9 69 NRH p 120126 City p 1321 5354 Xtnophons Socmta Ithaca Comell University Press 1972 p 122123 70 NRH p 129130 On Tyranny p 213214 71 NRH p 128135 On Tyranny p 205 City p 3435 WIPP p 868990111 Femediavelmente contraditórios quanto aíirmaiun os críticos présocráticos Quando opiniões abalizadas opostas são colocadas em confronto dialético algumas parecem evi dentemente mais estreitas mais rasas menos coerentes do que outras outras decidida mente apontam para além de si mesmas ou podem ser vistas como complemento uma da outra Como resultado principiamos a discernir uma ordem hierárquica das virmdes e das versões de cada virmde ascendendo a partir da coragem ou das virmdes da guerra passando pela moderação e a generosidade e chegando ao patrocínio estético das artes ao orgulho à sagacidade graciosa à afirmação da verdade e à amizade Em sua expressão cívica esta ordem emergente das virmdes proporciona um direcionamento mais claro e mais rico à educação pública e portanto à justiça ou ao bem comum entendido agora como a preocupação com a saúde das almas além do bemestar dos corpos do conjunto de cidadãos A dialética socrática descobre que o que é justo por natureza ou em todos os tempos e lugares revelase não como um código universal de rras ou leis como o que mais tarde foi identificado como a lei natural ou o imperativo categórico mas sim como uma hierarquia de objetivos que consiste em qualidades de caráter e de alegrias ou satisfações encontradas no exercício dessas qualidades A investigação completa e simpática dessas qualidades e alegrias desnuda a base na tural e o potencial no coração humano para a justiça e a nobreza e por consiinte nos permite discernir com clareza sem precedentes os aspectos dessa base natural e po tencial que são de qualquer ponto de vista verdadeiras ou Intim as fontes de admiração e perplexidade A virtude ou moral brilha em sua nobreza quando se trata de autossacri fício é esta dimensão trágica da virtude que evoca e estabelece de modo mais nítido do que qualquer outra coisa na experiência humana a crença no apoio ou reconhecimento divinos todavia essa mesma evocação de uma divindade que de alguma forma com pensará o heroísmo atesta o fato de que a virtude também é vista em última análise com maior certeza e insistência como algo que deve ser bom para o possuidor como detentora da chave para a folicidade e a realização pessoal como manter a coerência entre estes dois aspeaos contraditórios da virtude Quais exatamente são os motivos para a responsabilidade culpa punição louvor e responsabilidade humanas dado que se pode demonstrar que a virtude pode ser ou exigir um daerminado tipo de conhecimento Esses e outros enigmas quando demonstrados para homens inteligentes dotados de força de alma revelam que as virtudes cívicas da ação por si sós são incompletas Precisamen te quando levada a sério e como um todo a vida moral ou piedosa com suas deficiências intelectuais aponta para além de si mesma para uma vida mais desperta e intransigente mente zelosa para a vida filosófica tal como vivida por Sócrates Em outras palavras a 8 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 72 NRH p 140143162164193194 WIPP p 80878991 City p 31354244 73 City p 2328 226231 NRH p 128129 133134 On Tyranny p 109 Xmophorís Socratic Dis course Ithaca Comell University Press 1970 p 115122 128129 133139 142143 147150 161163 Xenophorís Sócrates p 59 6061 63 68 7677 83 85 98 121 167 Cf Christopher Bruell Strauss on Xenophons Sócrates Political Science Revietver XTV Fali 1984 p 263318 74 City p 28293840 Xenophorís Socratic Discourse p 165179195 lhe Argument and the Action o f Platrís Laiíí Chicago University of C h io Press 1975 p 70130133 Studies p 185 filosofia política socrática culmina em um desagravo da vida filosófica Agora porém a vida filosófica é concebida não mais como a existência socialmente marginal de pensado res que desprezam a poUtica mas sim como a vida dedicada ao exame de opiniões cívicas poUtícamente responsáveis bem como das opiniões filosóficas o fiizer filosófico poUtico de Sócrates revigora a cidade ao compelir a vida cívica a se tornar mais autoconsciente de sua própria grandeza mas também de sua própria insuficiência ou direcionamento qualificado para a filosofia Assim se a filosofia deve ser valorizada como a surpreendente culminação da exis tência humana cabe ao filósofo político esclarecer de modo muito mais concreto do que nunca a natureza exata do genuíno em oposição ao falso modo de vida filosófico Isso fornece ainda outro motivo pelo qual a investigação e ataque aos raciocínios sofís ticos em suas mais elevadas e mais tortuosas bem como mais vulgares formas é um tema tão difundido e dramático dos diálogos platônicos Strauss traduz em termos con temporâneos este tema platônico chave ao saUentar o enorme fosso entre o filósofo ge nuíno e o intelectual moderno que está posicionado muitíssimo abaixo do sofista da Antiguidade O intelectual ou sofista em contraste com o filósofo preocupase com a sabedoria não para seu próprio bem mas pela honra ou o prestígio que acompanha a sabedoria Strauss tirou daí a desconcertante conclusão de que enquanto há com certeza muitos que têm alguma experiência ou gosto pelo amor da verdade no entanto os filósofos genuínos homens consumidos por este amor são tão extremamente raros que será um golpe de sorte se houver um único deles vivendo em nossa época Essa defesa que é ao mesmo tempo uma definição precisa do modo de vida filosófico é naturalmente apenas o ápice da tradição socrática da filosofia política Tal defesa emerge e por sua vez inspira uma refiexão abrangente sobre o bem para a sociedade como um todo Em parte sem dúvida porque dão tal atenção ao discurso logos raciocínio sobre a justiça mas também com base em cuidadosas observações da vida política os clássicos argumentam que o principal fenômeno social é a disputa na arena política sobre quem decidirá quanto à definição das metas mais elevadas da sociedade quanto à determinação do modo de vida da comunidade e do que essa vida reverencia Isto não significa que os socráticos jamais supuseram que as disputas políticas fundamentais sejam realizadas apenas em palavras exatamente porque levou tão a sério o que estava em jogo no aigumento cívico Sócrates ensinou uma apreciação do papel desempenhado pela paixão pela violência e pela ameaça de violência Na medida em que a disputa fundamental é resolvida em cada sociedade resulta daí um regime politeia regime significa acima de tudo que tipo de ser humano governa e é admirado como exemplo e como tendo o direito de impingir um modo de vida específico por meio da coerção bem como pela exortação autoritária Neste sentido E p íl o g o 8 3 1 75 City p 2529 37 49 NRH p 140146 149152 156157 Xmophotis Socnttic Discourse p 132159166175176209 WIPP p 2933 9094 StudUs p 172173 Liberalism Ancient and Modem p 131419 76 NRH p 34 115117 Liberalism Ancient and Modem p 3 7 53 On Tyranny p 198 supremo a política determina o caráter da sociedade mais do que qualquer outro fa tor e por conseguinte a ciência política é a ciência da arquitetura social Até mesmo uma sociedade liberal que permite que a esfera privada e o mercado sobrepujem em alguma medida a esfera política faz isso apenas em virtude de uma constituição política específica erigida por uma decisão política basal A indagação bumana central é portanto qual é o melbor regime para qualquer sociedade dada E a resposta a esta pergunta depende de algum tipo de resposta para a pergunta mais geral qual é sim plesmente o melbor regime qual é o padrão Se o filósofo político vive a melhor vida em grande parte porque compreende melhor a problemática situação humana como um todo se o filósofo por causa de sua preocupação obstinada pela busca do conhecimento é o mais imune às tentações do dinheiro da glória e do domínio parece decorrer daí que o melhor regime é aquele em que o filósofo político governa e atribui a cada indivíduo o que é melhor ou o que lhe é devido No entanto é extremo o paradoxo desse melhor regime Como mostra Strauss neste livro em seu capítulo sobre Platão A República ensina tanto o motivo pelo qual o governo dos filósofos é tão urgente como por que uma vez que seja de fato examinado em profundidade é evidentemente impossível ou absurdo A vida do filósofo político é uma vida de incessante questionamento pesquisa tranqüila e desapego cosmopolita de si mesmo em prol da verdade universal A vida do esta dista exige respostas imediatas dedicação nobre à ação que produz resultados e um apego afemoso para com um conhecimento íntimo de seu próprio povo Dois tipos distintos de homem e duas formas diferentes de vida cada um deles pode aprender ou beneficiarse com o outro mas permanecem divididos por um fosso e resta alguma tensão entre eles Pois as perguntas e dúvidas e desprendimento do filósofo tendem em si mesmos a desestabilizar a corroer os laços habituais e emocionais que entre meiam qualquer sociedade saudável O grande ensinamento prático de A República tal como interpretado por Strauss é portanto uma lição sobre os limites do que é sensato espetar da política bem como uma lição sobre as restrições da filosofia política Jamais poderá existir uma sociedade imicamente racional ou esclarecida em que governa o conhecimento em lugar da mera opinião e do hábito Jamais poderá existir liberdade de expressão para o filósofo Por conseguinte o filósofo sensato deve filosofar politicamente Deve aprender como empregar a retórica oral e escrita de modo a continuar seu questionamento libertador e alcançar potenciais íilósofos de forma discreta ou mesmo velada No entanto ao mesmo tempo seu apego natural a seus semelhantes bem como seu conhecimento de sua dependência da sociedade impõemlhe ouras obrigações cívicas complexas O filósofo deve respeitar ao mesmo tempo que tenta criticar e ampliar de forma construtiva a perspectiva tradicional de sua própria sociedade e a de outras 77 City p 174549 NRH p 135138191194 WIPP p 33368390 78 Uberalism Ancient and Modem p viü 1415 Persecution and the Art ofWriting p737 WIPP p 221232 8 3 2 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v O resultado prático é que o regime que favorece a tradição socrática como a melhor possível ou como guia para a ação é uma república mista tendendo sempre que possível para a aristocracia As Leis de Platão e a Política de Aristóteles fornecem modelos de como o íilósofo político atua como árbitro tentando arbitrar ou misturar as reivindicações conflitantes da maioria pobre e da minoria rica de famílias reais ou nobres artesãos soldados comerciantes operários marinheiros agricultores A meta é planejar maneiras de as diversas classes ou partidos compar tilharem a responsabilidade política de modo a ressaltarem as virtudes específicas e reprimirem os vícios específicos de cada uma delas Todavia o socrático fala de uma perspectiva que desdenha todos os principais competidores pelo governo Favorece quando os pode encontrar os verdadeiros cavalheiros kaloi kagathot ou aristo cratas os poucos entre os instruídos e ociosos que tentam de fato dedicarse às vir tudes morais e a alguma apreciação da superioridade da vida do espírito mesmo que apenas aquela exercida na poesia reflexiva e na piedade Como os diálogos socráticos tantas vezes demonstram em geral com certo efeito cômico muito poucos entre os ricos bemnascidos e bemeducados encaixamse nesta categoria de verdadeiros aristoi Em outras palavras os socráticos não nutrem grandes esperanças de que os poucos verdadeiros aristocratas desempenharão um papel de peso na maioria das repúblicas e muito menos nos regimes despóticos que predominam na maioria dos lugares na maioria das vezes Tipicamente a voz política do socrático será uma voz solitária embora em oposição leal e prudente uma voz serena porém teimosa que relembra o significado e a questão da verdadeira excelência enquanto critica e chama a atenção para os preconceitos cegantes e as propensóes ao fanatismo do modo de vida dominante Nas oligarquias os socráticos questionam a ênfase ex cessiva dada ao ganhar dinheiro nas teocracias a obediência servil à tradição nos regimes militares a embrutecedora ênfase na hombridade e nas democracias o zelo nivelador do igualitarismo e de uma interpretação licenciosa da liberdade Cada regime percebe com perfeita clareza as felhas de seus adversários mas necessita ser firmemente lembrado dos perigosos excessos que podem resultar de seu apego incondicional ao que considera como obviamente correto Os E n s in a m e n t o s P o l ít ic o s d e S t r a u ss Podemse compreender melhor os próprios ensinamentos de Strauss sobre a política em sentido estrito como uma tentativa de revificar adaptar e aplicar nas circunstâncias dramaticamente novas de nosso tempo esta secular tradição socráti ca Tendo atingido a maturidade na malfadada República de Weimar e com grati dão tendo encontrado nos Estados Unidos um refúgio e proteção contra o fascismo 79 Liberalism Ancient and Modem p 1415 WIPP p 80818590 NRH p 138143 On Tyranny p 213214219222 E p íl o g o 8 3 3 Strauss foi um firme defensor e amigo mas por esse motivo mesmo náo um adu lador da democracia liberal Por mais distante que esteja a democracia liberal ou de massas do republicanismo cívico da antiguidade tanto em sua teoria como em sua prática a democracia liberal continua a ser uma forma de republicanismo Ou seja permanece como uma forma de autogoverno pelos cidadãos Portanto continua a exigir conforme insistia Strauss uma versão uma versão atenuada com certeza do ideal grecoromano de um conjun to de cidadáos ativos e orgulhosos imbuídos de um respeito informado pelo estadista notável Consequentemente lastimava a influência dos historiadores igualitários que de modo impensado ridicularizam a grandeza do estadista ao invés de tornála mais inteligível Strauss opunhase vigorosamente à tendência predominante de depreciar a história política de reduzir os argumentos e feitos dos cidadáos e dos governantes a um mascaramento superficial apenas ideológico de forças econômicas ou sociais subpo líticas supostamente mais profundas desafiou sem cessar aqueles entre seus colegas das ciências sociais que se concentravam naquilo que denominavam comportamento e que portanto tratavam os pareceres escritos de juizes as deliberações de representantes e a formação da opinião pública como fenômenos de um grupo de elite ou de massa que seriam inteiramente quantificáveis e em grande parte previsíveis Strauss argumen tara que esses modismos acadêmicos e didáticos não só minaram o já precário respeito para com o debate político e a liderança do espírito público mas também falsificaram os dados empíricos a realidade do homem como animal político Todavia na tentativa de manter acesas as brasas do conjunto mais antigo de cidadãos e arte política republicanos Strauss não sucumbiu a qualquer tipo de nos talgia pela polis e sua vita activa espaço público ou senso de comunidade Neste aspecto divergia não só de vários de seus contemporâneos críticos de esquerda e de direita da democracia liberal mas também de Maquiavel Rousseau Nietzsche e ou tros pensadores modernos radicais A lealdade primordial de Strauss era para com a filosofia clássica não para com a cidade clássica ou até mesmo para com a arte clássica Penetrara de modo demasiado proíúndo na análise minuciosa que fizera Tucídides de tudo o que está implícito nos excessos da oração fúnebre de Péricles que náo era capaz de celebrar o esplendor da Atenas imperialista Em parte como resultado disso não 8 3 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 80 Liberahsm Ancient and Modem p 15 2325 WIPP p 3638 263264 306311 On Tyranny p 22 City p 11 O retomo à filosofia política clássico e ao mesmo tempo necessário e tímido ou experimental Náo é razoável esperar que uma nova compreensão da filosofia política clássica nos forneça receitas para uso nos dias de hoje pois o sucesso relativo da filosofia política clássica causou a emergência de um tipo de sociedade completamente desconhecida dos clássicos Somente viven do hoje é que é possível encontrar soluções para os problemas de hoje Porém uma compreensão adequada dos princípios elaborados pelos clássicos pode constituir o ponto de partida indispensável para uma análise adequada a ser realizada por nós da sociedade atual com suas caraaerísticas pecu liares e para a sábia aplicação a ser realizada por nós desses princípios a nossas tarefas 81 Uberalism Ancient and Modem p 451023207208213214216218219 WIPP p 2728 7887 235241 era hábito de Strauss falar com desprezo do individualismo burguês ou rejeitar com ingratidão a humanidade a compaixão o bemestar social e a proteção à diversidade sem precedentes ocasionados pelas modernas repúblicas comerciais Percebia talvez de modo mais nítido do que qualquer outro a desarmonia na tradição americana entre uma ordem clássica ou ideal cívico mais antigos mais nobres mas menos influentes e uma ordem nova e cada vez mais triunfente permissiva e individualista Contudo exatamente por este motivo divisou de modo mais claro as virtudes distintas e os ví cios distintos de cada componente da incômoda combinação Em particular Strauss admirava a tolerância e o respeito pela liberdade individual que são as marcas distintivas do liberalismo não só porque oferecem um reíiio para a fílosofía perseguida mas também porque permitem ou até mesmo encorajam o sur gimento de revigorantes disputas políticas que às vezes podem estenderse muito além de eventos e controvérsias atuais Há então espaço dentro do liberalismo do tipo moderno para o liberalismo do típo antigo Strauss chegou mesmo a encontrar no liberalismo moderno um ninho para o mais elevado ingrediente daquele liberalismo mais antigo o liberalismo que consiste na libertação da mente por meio do estudo e do debate de visões alternativas da excelência humana desenvolvida nos grandes livros No melhor da universidade liberal continua a brilhar a antiga ideia de educação liberal como a joia da coroa do liberalismo moderno isto é enquanto a universidade resistir às pressões deturpadoras das demandas incessantes da sociedade democrática para a rele vância o serviço à sociedade e o endosso de amais cruzadas e dogmas morais Esta ameaça à ideia da universidade liberal é endêmica argumentava Strauss porque é apenas a manifestação mais agjxàa de uma ameaça à liberdade autêntica do inteleao que em toda parte assombra os passos do liberalismo moderno o fato grave é que a própria abertura da sociedade aberta contém em si um germe autodestrutivo A doença para a qual Strauss apontava não é aquela que os liberais discernem com facili dade e à qual muitas vezes resistem com nobreza a persistência e a freqüente ressur gência da perseguição e discriminação não oficial Mais insidiosa e por conseguinte mais corrosiva é a tendência da tolerância democrática a degenerar transformandose em primeiro lugar na crença descontraída de que todos os pontos de vista são iguais e por conseguinte nenhum é digno de argumentação realmente apaixonada análise profunda ou defesa inflexível e depois na crença estridente de que quem defende a superioridade de uma visão moral modo de vida ou o tipo humano distinto é de alguma forma elitista ou antidemocrático e portanto imoral Esta é a síndrome que Tocqueville caracterizara em uma manifestação anterior como a nova e branda tirania da maioria uma pressão sutil desorganizada mas onipresente em favor da conformidade igualitária decorrente da incapacidade de o indivíduo psicologicamente castigado e intimidado resistir à autoridade moral da opiniáo pública de massa Na E p íl o g o 8 3 5 82 City p 2223 151153 192195 226229 Persecution and the Art ofWriting p 21 2237 In troduction supra p 6 Liberalism Ancient and Modem p 1523 esp p 21 83 Liberalism Ancient and Modem p vi 325 5354 262 On Tyranny p 27 sua expressão mais sublime a igualdade promete a todo ser humano a oportunidade de ascender a uma posição justa na hierarquia natural de talentos e realizações de virtude e de sabedoriu mas em particular sob a influência venenosa do moralismo nivelante que se disfarça como relativismo a laldade se degrada com demasiada facilidade Além disso o problema não é mitigado é de fato agravado pela guinada impensada que se afasta do relativismo porque em sua forma aberta o moralismo democrático contemporâneo tende a superestimar as virtudes de uma sociabilidade bastante branda ou flácida existe uma tendência muito perigosa de identificar o homem de bem com o cara lepl aquele que coopera o gente boa isto é uma ênfase exagerada em uma determinada parte da virtude social e uma correspondente negiênda das virtudes que amadurecem se náo florescerem na intimidade para não dizer no isolamento ao educar as pessoas para cooperarem umas com as outras em espírito de amizade todavia náo se educam os náo conformistas aquelas pessoas que estáo preparadas para agirem de modo indepen dente para lutarem sozinhas A democracia ainda náo encontrou uma defesa contra o conformismo rasteiro e a crescente invasão da privacidade que promove Há na opinião de Strauss apenas uma resposta adequada A educação liberal é o antídoto para a cultura de massa a escada pela qual tentamos nos alçar da de mocracia de massa para a democracia tal como entendida em sua origem ou seja uma aristocracia que se ampliou até tornarse uma aristocracia universal Strauss não tinha qualquer expectativa de que tal sociedade pudesse ser alcançada e na verdade insistiu que não se nutrissem sas ilusões e esperanças quanto à sua concretização mas sustentava que poderiam ser dados pequenos passos em direção a ela e que dar tais passos seria a maior vocação da democracia liberal Todavia repetimos Strauss jamais se cansou de enfatizar a importância de distinguir em particular na política entre o que é mais elevado e o que é mais urgente e o que é mais urgente em matéria de democracia liberal não é o seu aperfeiçoamento mas sua defesa Em nossas aspira ções para aprimorar o liberalismo alimentava Strauss não devemos perder o nosso apreço pelas valiosas prosperidade humanidade e liberdade que já possuímos Strauss acreditava estar em perigo a democracia moderna tanto no que se refere a suas elevadas aspirações como em sua urgente necessidade de defesa leal pelas ciências sociais contemporâneas Não se trata apenas como já explicado do fàto de que as me todologias dominantes nas ciências sociais e na história social científica necessariamente induziram a um cinismo sobre a própria possibilidade de uma prática política autônoma e razoável ainda pior em seus efeitos ou implicações é a suposta distinção entre as proposições normativas e empíricas entre feto dentíflco e valor não científico Como demonstrou Strauss em sua crítica de Max Weber e também de pensadores po 8 3 6 H is t ó r ia d a F i l o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 84 Liberalism Ancient and Modem p 5 78 2325 6364 262264 268 272 NRH p 56 85 WIPP p 38 86 UberaUsm Ancient and Modem p 452425 NRH p 14 sítívístas menores os íúndamentos teóricxs para essa distinção fetovalor íbtam e são íracos a vetdadeira embora nem sempre reconhecida fonte da aceitação generalizada da distinção é sua coincidência com o relativismo igualitário a variedade mais simplista c dogmática mas por esse motivo a mais fecilmente disponível variedade do moralismo democrático Conmdo isso significa dizer que as ciências sociais supostamente isentas de valores mascaram o que vem a ser de íato um endosso negligente uma perigosa extensão ou promoção da pior corrente do pensamento democrático Contra esta tendência Strauss esboçou os íúndamentos de uma ciência política muito diversa inspirada na Política de Aristóteles O ímpeto para esta ciência política alternativa veio da reflexão sobre as íàlhas do esmdo científico da política visto à luz do que se poderia aprender a partir da história do pensamento político mas a prática real da nova ciência política que Strauss tinha em mente de modo algum pretendia limi tarse aos esmdos históricos A abordim alternativa seria genuinamente empírica porque derivada estritamente a partir da experiência genuína dos reais comportamento e pensamento políticos Cientistas políticos verdadeiramente empíricos principiariam não de uma impossível tabula rasa científica mas de um senso comum político pré científico Evitariam o jargão científico e a terminolcia teórica inventada mas ao contrário sjiiriam a articulação da polítíca atual na linguagem prática de homens políticos engajados Seu esmdo tentaria não ser nem de valor neutro relativista nem comprometido no estilo dos assim chamados esforços pósbehaviorístas para colher evidências teóricas ou empíricas para programas ideológicos da esquerda ou da direita Enraizada na transcendência conversacional do comum senso por Sócrates uma ciência política teoricamente sóbda partiria de um engajamento crítico o qual mmca aban donaria com a perspectiva da participação ativa dos cidadãos debatendo em defesa de várias convicções A partir dessa perspectiva cívica a verdadeira ciência política adotaria como sua categoria de análise básica o regime no sentido anteriormente esboçado As peijuntas às quais os cientistas políticos dirigiriam suas pesquisas e os critérios de relevância ou importância que guiariam sua seleção e o peso a ser atribuído aos dados seriam práticas e nâo teóricas ou científicas as perguntas e os critérios de relevância derivariam de modo muito autoconsciente das questões prementes e das discussões sobre o regime em cada país bem como dos debates entre os regimes distintos estabe lecidos em países diferentes O objetivo seria não só descobrir novas informações que teriam impaao na avaliação das várias posições partidárias concorrentes mas também levar o raciocínio de cada um até sua conclusão não declarada ou não pensada de modo a iluminar e arbitrar a totalidade das implicações das mais básicas ou abrangentes disputas da nação no passado e no presente Os métodos e resultados da matemática e da ciência natural modernas seriam cautelosamente empregados e teriam um papel estritamente subordinado A ciência política seria menos obcecada com a tentativa de fezer previsões com base em leis ou modelos pseudouniversais ou abstratos saberia e admitiria que em política tudo que vai além do trivial e de curto prazo é em grande E p íl o g o 8 3 7 87 NRH p 17 3580 Uberalism Ancient and Modem p 26 28 222223 WIPP p 1824 parte imprevisível e se dedicaria mais a orientar a deliberação genuína aprimorando a consciência que têm os cidadãos do âmbito peso e validade dos fetores e princípios envolvidos nas decisóes mais relevantes Sofisticados praticantes de tal ciência política se cxncentrariam menos nas características comuns a todos os regimes defesa políti ca monetária e mais nos diversos objetivos políticos que moldam e dão sentido dis tintivo a estas coisas comuns prudentemente ascenderiam à humanidade comum do homem por meio da arbitrem das diferentes e conflitantes defíniçóes morais dos regimes acerca do que é maior no homem Esta visão de uma ciência empírica cívica e política que Strauss tentou ressuscitar dita que a nossa principal preocupação como cientistas políticos deve ser o estudo de nosso próprio regime É assim porque essa escolha de foco expressa honestamente nossas inegáveis preocupaçóes principais como seres humanos e porque reconhecendo isso sabemos que precisamos nos engajar em uma revisão completa e crítica dessas preocupaçóes se temos a esperança de um dia atingirmos qualquer objetividade Os cientistas políticos que são informados pela ênfese dada por Aristóteles e Strauss ao regime e às diferenças radicais entre os regimes e seus modos de vida conflitantes têm plena consciência da assombrosa influência que cada regime tem sobre as almas daqueles que crescem dentro dele Como expressou Platão na mais famosa metáfora da República cada regime é uma espécie de cavernaprisáo da alma Os cientistas po líticos que chegam a sentir na carne essa verdade são aguilhoados pelo conhecimento de como é difícil sequer adquirir consciência do quanto é questionável a visão moral e política própria da qual estáo impregnados Sabem com é fácil exacerbar essa cegueira ou distorção iniciais pela sutil e inconsciente inserção de dados de épocas anteriores de sociedades e regimes estrangeiros em quadros teóricos com base em premissas morais e comportamentaishumanas adequadas somente para o regime em que se foi criado Não confiam que um método científico supostamente neutro produza resul tados neutros sabem em primeiro lugar que as perguntas básicas iniciais colocadas por cientistas políticos não são geradas pelo método sabem em segundo que método algum constitui prova contra as opinióes morais profundamente enraizadas de seu usuário mais importante de tudo sabem que é impossível verdadeiramente entender ou compreender os fenômenos políticos que é impossível realmente percebêlos como o que são sem avaliálos como justos ou injustos cruéis ou benevolentes destrutivos ou construtivos Estudantes aristotélicos da política portanto afestamse de suas pró prias raízes para um frutífero encontro e debate com os regimes estrangeiros passados e presentes Ao fezêlo não agem como meros comparatistas que comparam os siste mas políticos tal como entomologistas comparam colmeias Envolvemse em um de bate desafiador tendo em vista o que é melhor e pior mais ou menos justo Visam dar conselhos que irão melhorar a vida daqueles que estudam e procuram ouvir críticas 8 3 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 88 Liberalism Ancient and Modern p 205215 WIPP p 1417 2729 7895 NRH p 191194 Social Science and Humanism in The State o f the Social Sciences ed Leonard D White Chi co University of Chicso Press 1956 p 416420 que irão melhorar a vida de seus próprios concidadãos Tal como quaisquer cidadãos sensatos que convivem com os estrangeiros ou com eles debatem a fim de aprender tais cientistas políticos se esforçam para postergar seu julgamento para perscrutar suas próprias crenças arraigadas não por serem isentos de juízos de valor mas como uma conseqüência direta do juízo de valor de que a verdade é ssrada e deve estar subja cente aos verdadeiros justos por natureza Em particular se tiverem sido tocados pela influência da história da filosofia política os cientistas políticos irão mais longe nessa direção do que o próprio cidadão Sua busca da verdade como cidadãos será imbuída de um senso de dever como cidadãos do mundo participarão na qualidade de juizes e não apenas como iluminados concorrentes na maior das controvérsias humanas Na nossa época a controvérsia política predominante é aquela que revolve em torno da democracia liberal ocidental centrada nos Estados Unidos e o marxismo centrado na União Soviética Os esforços e as esperanças que investimos na negociação e manutenção de uma paz inquieta não devem desviarnos insistia Strauss de um lúci do reconhecimento deste antagonismo moral e político essencial e no futuro previsível persistente Bemintencionadas tentativas internacionalistas de minimizar a impor tância do conflito evidenciam tanto um desconhecimento da importância da dimensão política ou da dimensão do regime como uma crença tipicamente ingênua ou apolí tica de que os líderes de regimes tão diversos ainda assim compartilham razoáveis prioridades ou mesmo alguma versão das virtudes humanas e pacíficas de nosso regime liberal É função principal da ciência política corretamente entendida dissipar essa ilu são por meio da propição de um entendimento adequado da importância do conflito entre os regimes em geral e entre os regimes marxistas e liberais em particular Isto significa que Strauss tomava como um dever especial engajar em profundo debate os mais ponderados ou totalmente articulados defensores do marxismo Nesse sentido deu atenção a marxistas mais ortodoxos como Lukács e Macpherson mas considerou a mais convincente versão da concepção marxista aquela de Alexandre Kojève o grande esquerdista hegeliano Foi em seu debate extenso respeitoso po rém intransigente com Kojève que Strauss desenvolveu mais de modo mais pleno sua reflexão sobre as mais profundas raízes do pensamento marxista Nessa complexa reflexão discernimos os seguintes princípios básicos No plano estritamente político ou prático enquanto o m arxism o inteligente apreende com certa clareza algumas das inadequações na concepção liberaldemocrática da natureza humana por exemplo a ênfase exagerada no homem como consumidor a tendência ao relativismo a ilusão de uma ciência social de valores neutros a vaga alternativa positiva que o marxismo oferece é quando examinada com rigor impossível de distingnir da visão de pesadelo M uogo 89 WIPP p 1017 2125 2729 5657 7377 NRH p 5662 Liberalism Ancient and Modem p 216223 Social Science and Humanism p 418419 90 City pp 46 On Tyranny p 2122 201202 222226 Liberalism Ancient and Modem p 2425 230231270271 que tinha Nietzsche da futura sociedade dos Últimos Homens Além disso o mar xismo compartilha com o seu grande inimigo Nietzsche uma subestimaçáo grosseira do valor da decência compaixão civilidade e liberdade legal do liberalismo Ainda pior o marxismo fracassa em dar a devida consideração à permanente necessidade de elaborar controles institucionais contra o abuso de poder Portanto não é por acaso que o marxismo como uma realidade histórica isto é testado pelo único teste que o próprio marxismo considera comprobatório revela uma predominante propensão a se tornar a base para uma nova forma de despotismo peculiarmente cruel No nível teórico ou com relação à autoconsciência racional que é o dom mais precioso e distintivo da humanidade o marxismo em todas as suas formas falha em valorizar ou reconciliarse com a mais fundamental e insuperável contradição que per meia toda a vida social a desproporção entre o pensamento politizado e coletivizado hoje chamado de ideologia um tipo de raciocínio que mesmo no que tem de melhor jamais transcende o nível de dogma ou compromisso e o questionamento filosófico radicalmente independente que em seu núcleo se recusa a assumir com promissos com qualquer necessidade ou imperativo moral que não seja a necessidade e o imperativo de conhecer a verdade A verdadeira opinião uma fé uma dedicação amorosa e um enraizamento em nossa própria época ou povo que superam todas as dúvidas é aquilo de que todas as sociedades políticas e quase todos os indivíduos necessitam como o ar espiritual que respiram O genuíno racionalismo com raízes no conhecimento da ignorância possuído por eros para a verdade eterna em seu co ração ansiando por fugir do ambiente da caverna pode como resultado jamais se tornar a base direta de qualquer sociedade política ou sequer cosmopolita Foi sua inabalável identificação desta que é a mais profunda de todas as ten sões humanas que levou Strauss a ensinar em tantos níveis a necessidade de uma moderação de nossas expectativas políticas morais ou religiosas Os seres humanos jamais criarão uma sociedade que seja livre de contradições Em compensação por assim dizer Strauss nos convida para saborear uma infindável mas de modo algum infrutífera busca pela verdade acerca de nós mesmos e do todo em que vivemos Seus ensinamentos políticos foram em última análise uma lição sobre os sacrifícios que devemos fazer para que nossas mentes possam ser livres Podemos não ser filósofos mas podemos amar a filosofia o que consiste em escutar a conversa entre os grandes filósofos isto é em estudar os grandes livros Entretanto esta conversa não acon tece sem a nossa ajuda devemos fàzer acontecer essa conversa A noção da benefi cência da natureza ou do Bem deve ser restaurada ao ser repensada por meio de um retorno às experiências fundamentais das quais se origina Pois enquanto a filosofia deve acautelarse contra querer ser edificante é necessariamente edificante Nâo 8 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 91 Nietzsche Thtis Spake Zarathustra Prelude sec 5 92 Studies p 3234 229231 Relativism in Relativism and the Study t f Man Ed H Schoeck and J W Wigglns Princeton Van Nostrand 1961 p 145148 On Tyranny p 143226 WIPP p 230232 podemos exercer a nossa compreensão sem de tempos em tempos compreender algo de importância e esse ato de compreensão pode ser acompanhado pela compreensão da compreensão pelo noesis noeseos Essa experiência em nada depende do fato de que aquilo que compreendemos ser basicamente Eradável ou desagradável belo ou feio Levanos a perceber que todos os males são em certo sentido necessários se de sejamos a compreensão Permitenos aceitar todos os males que nos sobrevêm e que podem muito bem partir nossos corações com o espírito de bons cidadãos da cidade de Deus Ao tomarmos consciência da dignidade da mente percebemos o verda deiro fundamento da dignidade do homem e com isso a bondade do mundo quer o entendamos como criado ou como incriado que é a morada do homem porque é a morada do espírito humano E p ílo g o 841 93 WIPP p 2728 Liberalism Ancient and Modem p 7824 Spinozas Critique o f Religion p 6 The Political Philosophy afHobbes Its Basis and Its Cenesis C hio University of Chics Press 1952 p xvi Thoughts on MachiaveUi p 299 Índice Aarão 374 Abiatar 374 Abismo Ser como 806 807 Abraão 211 212 242 374 Abravanel Isaac 218 Academia Platâo 109 143 Ação causas e efeitos da 567 568 569 como ob jetivo do homem 573 de aprovação 574 Acaso em Bacon 337 342 n 19 em Spinoza 409 em Montesquieu 473 em Hume 497 como lacuna entre a intenção e o efeito de atos virtuosos 116 Acordo Isabelino 325 Adão 167179 374 606 Adivinhação 103157165171341 iostinbo S 161187 tentativa de reconciliar a Bíblia e a filosofia clássica 161164 filosofia como terreno comum para fiéis e infiéis 162 163 sobre a justiça e o direito 173 empre go do poder secular para reprimir a heresia 163 visáo de Platão 164 sobre a sociedade civil 165174 virtude cristã versus pagp 165 174 fracasso da filosofia clássica em promo ver a boa sociedade 165166 lei eterna e lei temporal 168170 e sanções divinas 171 e a presciência divina 171 polêmica contra Roma 174176 monoteísmo e religião civil 175178 e as duas cidades 178182 e a exis tência permanente do mal 187 Revelação e ciência 228 mencionado 188 287 299 ricultura como meio de aliviar a penúria no estado de natureza 441 como causa da intro dução do dinheiro 474 Alarico 182 Albo José 212223 Alcibíades 19 22 23 96 100 116 Aldeia 125155769 Alembert Jean le Rond d 377 392 459 476 Alexandre o Grande 109 173 298 317 Alfarábi 188206 tentativa de correlacionar o Islá e a filosofia política clássica 188191 o regi me virtuoso 204206 o governante supremo 194197 lei e sabedoria viva 197200 guerra e limitação da guerra 200204 legitimidade do fazer filosófico 208209 a função do pro feta 214 comentários sobre os escritos platô nicos 225 desejo de introduzir a filosofia na sociedade 225226 conceito de seita 250 251 estudo de Strauss 819820 Alma prova de imortalidade da 6263 racional de Aristóteles 113114 grandeza de 116 117 120 141 visáo de Descartes 386387 e Burke 626 Altabin na Nova Atlântida New Atlantis de Ba con 342 Aluguel significado de Smith 581 Ambição desejo de simpatia como fundamento da 573 Ambrósio 186 América visáo de Hegel 676 678 expedientes democráticos para a resolução do problema democrático 692694 Americanismo 804 805 810 Amizade definida por Aristóteles 119120 Amor pelo país visáo de Smith 571 Anabatistas 292 300 308 309 Análise em três estapas do desenvolvimento da humanidade 704 Anaxágoras 101 Angústia Heideer sobre a 799 Aníbal 271 Í n d ic e 8 4 3 Annenkov P V 719 Antidericalismo de Marsílio de Pádua 255 256 261 Antigo Riime caracterização de Tocqueville 683 Andgo Testamento 260288310311320326 Vir tambim Bíbliv Novo Testamento Antígona 806 Antdade admiração de Rousseau pela 502 503 516 517 Antoninos 477 Antônio S 235 246 Apoio 7296 Apostasia poder da coerção contra 249 257261 Aprovação como princípio da virtude 567 568 575 Aquiles 116 547 Aquino S Tomás de 225248 discussões da profe cia 213 oposição de Marsílio de Pádua 249 264266 concepção da lei divina 261262 tentativa de reinterpretar Aristóteles com base na fé cristã 225 status canônico da filosofia 226 distinção entre domínios da filosofia e da teologia 228229 natureza do regime políti co 230235 afastamento dos ensinamentos aristotélicos 240242 244246 sujeição da ordem natural à ordem da lei divina 235 direito natural 235 virtude moral e lei natu ral 235244 paixões primárias e secundárias 237239 inculpabilite de açôes imorais rea lizadas sob coação xxx defesa da escravidão legal 244 síntese de fé bíblica e filosofia aris totélica 244 influência sobre Hooker 233 determinação de metas de vida por referência à natureza 358 tratamento da lei 460 men cionado 118 223 626 629 Arabes filósofos influência platônica sobre 226 228 Arcontes dêmarcos 307 A reóp 394 Argos76352 Aristipo 283 Aristocracia características da 57 e oligarquia 69 posição hierárquica entre os regimes incorre tos 70 cumprimento das leis 77 na Pérsia de Xenofonte 85 87 Aristóteles sobre 116 128130135137 discussão de Cícero 159 161 verdadeira aristocracia 153 259 como elemento do regime misto 233 concepção de Marsílio 258259 262 argumento de Cal vino a fiivor da 301302 lócus do poder na 368 mérito da 369 designação da soberana 370 concepção de Spinoza 419 discussão de Montesquieu 464465 fidhas da 477 visão de Rousseau 514515 preferência de Burke pela 622 630631 James Mill sobre 651 653 burocracia como forma moderna da 670 discussão de Tocqueville 684698699 e elevação do tipo homem 702 e preserva ção da religião 750 visão socrática da 833 Aristóteles 109141 sobre a prudência 110 112 120122 127128 141 618 distinção entre razão teórica e tazão prática 110112 sobie a félicidade 112114117126138140 sobre a virtude 114120 125131 133136 138 140 141 sobie a educação 115 124 136 141 sobre a justiça 117120127135 sobre a amizade 119120 sobre a sabedoria política statesmanship 121124631 análise da cida de 123127 sobre a cidadania 127131 so bre as variedades de rimes 131135 sobre o melhor rime 135137833 sobre o melhor modo de vida 138141 injunção pata buscar a vida divina 162 efeito cristão sobre o pensa mento político medieval 225230 o melhor rm e 234 lista de virtudes 235236 virtude moral como média entre dois extremos 238 239 doutrina da verdade prática 239 sobre os princípios morais 242243 tratamento das virtudes morais 235236 inculpabilidade das ações imorais realizadas sob coação 242243 sobre a escravidão 244 472473 e Marsílio de Pádua 249266 passim fimção da classe sacerdotal 249250 magnanimidade como hábito de invocar elevadas honras para si mes mo 267 oposição de Maquiavel a 281 con cepção de Lutero 287288 297298 crítica de Bacon 328 sobre o poder civil 350 sobre mudanças na ordem chril 352 elto da guer ra 353 ataque de Hobbes a 356 doutrina da justiça distributiva 361362 distinção entre tirano e monarca Intim o 367 concepção de política 367 tipos de povos e governos 371 464465 rejeição de Descartes dos ensina mentos de 379 e rlme misto 395 sobre monarquia 397398 significado de comuni dade política ipolity 402 análise dos poderes do govemo 468 relação entre ética e política 475 e Rousseau 502 distinção das virtudes do homem 577 snificado de liberdade 582 8 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y uso dc Burke 619 631 Burke comparado a 622 624 631 632 Heideer sobre conceito de Ser 796 797 Strauss e influência de 820 836838 mencionado 254686109119 150166188200201205213237238 245246247337346355360362368 372 392394466 570662795 810 Arquidamo 11 Arte da realeza 97 Arte como natureza do homem para Burke 627 estado como fonte da 656 mundo da como constituído pelo trabalho escravo 658 e o Ser para os gregos 805 Artes e ciências como caminho para a corrupção moral 501 Artigos da Confederação 590 Asia discussão de Montesquieu 473 Assíria e assírios 86105 317 Associabilidade do homem 537 Assembléias das ordens descrição de H l 671 Associação de estados para o estabelecimento da paz perpétua 540545675 Associação liberdade de como meio de compen sar os efeitos da centralização 693694 Associações de negócios necessidade de reforma 771772 Associações humanas três associações perfeitas de Alfarábi 201 202 Associações contribuições para o crescimento humano 769774 necessidade de regula mentação política das 769774 Astrolca como causa do Exílio 220 Astúcia da razão 657 Ateísmo Burke sobre o 626 de Nietzsche 750 Atenas e Guerra do Peloponeso 6921106 ar gumento a íàvor do império 611121720 2526 expedição à Sicília 2025 e rebelião em Mitilene 2021 discurso de Diôdotos em 2629 e crença nos deuses 80 Aristóte les sobre o regime de 131133 Montesquieu sobie a democracia em 463 mencionada 76 808283109815834 Ático 145158 Atividade política razão como base da 297 Atividades nobres como meio de conquistar a fe licidade 191192 Ato virtuoso elementos do 572 Atomismo característica da sociedade democráti ca 684685691 Atos imanentes 262 Atos transitórios 262 Atos ilícitos wrong discussão de Blackstone 556 Atraso cultural cultural la 764 Augusto 298 317 Aumento como tema central dos ensinamentos políticos de Locke 443445 Aurélio Marco 272 276 Autodefesa lei primordial da natureza 557 Autointeresse apelo ateniense ao em Tucídides 1619 2529 como desejo íundamental do homem 488489 como caraaerística dos regimes democráticos 685686 doutrina de Tocqueville 691 694695 como mola mes tra da ação humana 695 Autonomia como fermulação do imperativo cate górico 527 da razão 778779 781785 Autopreservação como preocupação básica do homem 358 360361 366 389 411412 416 457 467 e crescimento da sociedade 417 447 e obrigação de preservar todos os tipos de homem 433434 e lei da natureza 434435436472 visão de Smith 571572 medo e dor como auxílios da 574 meios de 577 como direito da natureza 585 visão de Nietzsche 754 Autoridade política contrastada à escravidão 231 como elemento determinante da cidade 231 232 Autoridade visões luterana e calvinista da 300 309 Estado como servo de Deus 300301 formas de governo 302304 os poderes mais elevados 304308 tolerância 308 das Santas Escrituras 319320 Averróis 225242264 Averroístas latinos 247 Avicena 228 B BabUônia 105 317 Babilônios 317 Bacon Francis 328345 influência de Maquia vel sobre 329332 342 desejo de promover invenções 339341 e o método científico 332 765 823 filosofia política provisória Í n d ic e 845 333334 visões monárquicas 334335 vi são sobre o imperialismo 333335 Nova Atlântida New Atlantis 336340 e a guerra santa 294343 362 relação entre filosofia natural e política 343344 e ciência política 344 precursor de Hobbes 355 e Descartes 377378380381390392393 limites das conquistas do homem 472 método de obter conhecimento político 701702 menciona do 383621638 640661 Bar Kochba 219220 Bebida visão ateniese da xxx Beckett Tomás 371 Belarmino Cardeal 375 Bem comum como padrão de virtude de Descar tes 385 Bem concepção de Diôdotos em Tucídides 29 a ideia de Platão 64 a felicidade como em Aristóteles 112113 Bentham sobre a busca do mais elevado 646 Benevolência lei da de Descartes 384385 Bensalem em Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 338 Bentham Jeremy 635649 sobre a filosofia pla tônica e soctádca 635637 645646 ataque aos costumes e tradição 637640 rejeição da doutrina dos direitos naturais 640 648649 concepção de reforma 638641 formulação do princípio da utilidade 643646 sobre o contrato social 647 e o uso do método dedu tivo na ciênda política 701 revisão da teoria por J S MiU 705 Berkeley George 791 Bíblia tentativa de ystinho de reconciliar as Sa gradas Escrituras com a filosofia dássica 161 163165 e a obediência à autoridade civil 183184 síntese de Aquino entre a fè bíblica e a filosofia aristotélica 244247 fundamen to para a crença na 264 como autoridade da teologia reformada 286290 paródia de Nietzsche da 750 mencionada 208 217 22924826427631311320 Ver também Novo Testamento Velho Testamento Bildung concepção de Husserl 787788 Biologia 110808 Bismarck Otto von Príncipe 752 Blackstone William 554565 sobre a lei divina 555 sobre crimes e contravenções 556 dis cussão dos ditdtos dvis 556557 559 dis cussão do direito 559561 sobre a monar quia 563564 mencionado 628 638 Bolingbroke Henry St John 1 Visconde de 616 Bórgia César 271 Brasidas 14 Bruno Giordano 329 330 332 333 335337 Bruto Marco 276 277489 490 Budismo 750 Burgos podres 664 Burguesia ascensão da 727 efeitos da competição sobre a 734 Burke Edmund 613634 sobre o estabelecimen to 615624625 rejeição da teoria 615618 sobre a especulação na política 616618 625 630 ataque à doutrina dos direitos do homem 617621627629632633 sobre ptudênda 617 sobre preconceito como sabedoria latente 629631 sobre a elaboração de constítuições 620625 ideia de herança 625627629630 sobre a lei natural 626630 doutrina da pres crição 627630 Bentham comparado a 638 639 denúncia de Marx 720 Burocracia concepção de Hegel 670 p e r de queda na rotina 710 Ver também Funcioná rios públicos Caim 179 Caldeus 317 Calvino João 285318 passim estado de espírito e expressão de 286 base da teoltja polítíca 286290 concepção de homem 286287 298301 e autoridade das Escrituras 387 290 320 os dois reinos 291298 306 309 dupla cidadania do homem 291 relação dos dois reinos 291293 Igreja e Estado 293297 teologia e política 296298 autoridade e seus limites 300309 Estado como servo de Deus 300302 formas de governo 302304 os poderes mais elevados 304308 tolerância 308309 lei de Deus 310311 lei da nature za 311313 lei do Estado 313314 polídca como vocação 314318 o homem e seu cha mado 314316 o juramento de Deus 316 317 o herói 317318 alterações das doutrinas de 319 conflito com sucessores sobre a busca 8 4 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y da resisténda à autoridade 320321 contri buição ao espírito do capitalismo 336 Câmata dos Comuns 469 Ver também Pãrlamento CamUo M Fúrio 282 283 Caos Ser como 805 807 Capital contribuição para a produção 581 senti do de Maix 719 trabalho congelado 729 Capitalismo liberal formulação de Smith 566 conceito de libeidade 582 Ver também Ca pitalismo Capitalismo mercantilista ataque de Smith 579 Capitalismo e princípios dentífícos de Hume 567 formulação de doutrinas por Smith 567 pre paração de Locke paia 572 potencial para autodestruição 584585 e direitos de proprie dade 720 e nação de toda a comunidade de interesses 722 critica de Matx 727832 leis da natureza 727 status atemporal das institui ções do 728729 como sistema de produção de mercadorias 730731 modo de produção 731734 e íãido da mudança tecnolica 732733 Caiáter éthoi Aristóteles sobre o 115 Carlos I rei da Inglaterra 396 Carbtadt Andreas 308 Carlyle Ihomas 317 Carne uso bíblico 179 Carnéades 154 Cartago 136 463464 Cartwrt Ihomas 320 325 Casa de Salomão em Nova Adântida New Atlan tis de Bacon 337 Casamento abolição do 124 Castiacani Castruccio 283 Catão 151152 CatiÜna 276 Cativeiro 374375 Catolicismo e fracasso dos modernos princípios de libeidade 663 Católicos tolerância dos 309 Causa e efeito discussão de Hume 481484490 524 Causa final em p t do termo por Bacon 329 Cavalheirismo concepção de Aristóteles 116 121131 Cavalheiros governo dos em Burite 616 619 629633 Caverna 5464 Censura como poder do soberano de Hobbes 365 César 276 César ensaios 588589 Cesaropapismo 296 Ceticismo potenciais efeitos sobre a comunidade política 143144 e máxima estabelecida de Hume 480 ataque de Husserl 779 783 786787 socrático 825826 Céticos acadêmicos 143144 154157 China previsão de Hegel para a 678 Churchill Sir Winston 578 613 Ciáxares 8688 Cícero 142160 vida ativa versus vida contem plativa 145148 159160 o melhor regime 148154 rime misto 150154 sobre a jus tiça 154159 sobre a lei natural 157159 definição de sociedade civil 165 lei natural e temporal 168 e presciência divina 171 distinção entre as virtudes 271 e a lei da na tureza 349 sobre e a paz e a guerra 352 e Burke 628630 mencionado 63 161 165 166298347355368372489825 Cidadania análise de Aristóteles 127131 Cidadãos classes de no iime virtuoso 191193 direitos inalienáveis dos 365366 Cidade justa possibilidade da 5155 57 Cidadeestado na filosofia política clássica 45 Cidades sentidos antigos e modernos das 5 Di ôdotos sobre o bem das versus o bem indi vidual 29 fundação das em A República de Platão 3842 46 a cidade saudável 40 a cidade purificada 4041 indisposição dos filósofos para o governo das 5154 parale lismo com a alma 5758 impossibilidade da cidade justa 5661 efeito potencial do ceti cismo sobre143144 doutrina de ostinho das duas cidades 178182 papel na perfeição da natureza racional do homem 230231 au toridade polítíca e suas finalidades 233234 melhor regime e ordem social perfeita 233 235 Ver também Poliss Ciência da natureza 524 Ciência da política 344 605694 Ciência do governo visão de Paine 607 Ciência hunuuia sentido de Alfarábi 190 Ciência polítíca e filosofia polítíca 12 conceito de Aristóteles 109112121122 significado Í n d ic e 8 4 7 de Alferábi 190191 importância da lei di vina 217 como principal ane 381 formu lação dos princípios por Spinoza 412413 uso do método dedutivo 701 conceito de Strauss 836841 Ciência e fílosofía 1 significado de Platão 64 teórica e prática em Aristóteles 110112 como meio de obter o domínio da natureza 389391 como razão liberada da paixão 411 princípios da como propriedade da Substân cia 412 papel na filosofia 425 da lei em Bentham 637 639641 642643 crítica de Nietzsche 749 fenomenolca como 778 783 785 e psicologismo 783787 e histo ricismo 787789 do mundo da vida 789 793 e niilismo em Heider 796797798 803805 como conquista da natureza 813 Ciências sociais dois ramos de Mill 703 e crise do Ocidente 812 836839 Cipião 145 146 147 149151 152 153 154 156158 Círculo de Cipião 145 Cito II o Crande da Pérsia 8596104107274 317 Cito o Jovem 8294 95104106 Cisão como solução para o problema da opressão pelas maiorias populares 603605 Civilização asteca 338 Civilização ocidental Heidegger sobre niilismo na 795810 Husserl sobre crise 779782 xxx Strauss sobre crise da 812817 Civilização males da citados por Kant e Rous seau 533534 visão de Smith 584585 con cepção fenomenológica da 781 Ver também Civilização ocidental Civilizações incas 338 Classe agrícola descrição de Hegel 666 Classe industrial descrição de Hegel 667 668 Classe média como elemento mediano em Aris tóteles 132134 meios de efetivar o govemo da 402 James Mill sobre a autoridade da 653 como classe governante da democracia 691 Classe trabalhadora e divisão do trabalho 580 Classe universal descrição de Hegel 666667 Classes comerciantes e fabricantes ataque de Smi th 581 Classes sociais Ver Classes Classes na Pérsia de Xenofbnte 85 9092 a aná lise dos regimes por Aristóteles 128131 dis cussão de Builte 624625 629630 na so ciedade dvil de H l 665666 permanência das divisões de classe na democracia 690 for mação pela divisão do trabalho e fnmenta ção da sociedade 721722 uso do governo como órgão de coerção 722723 dissolução das 727 no regime misto 827 Clemente de Alexandria 164 Clêon 20 2628 Clero fim do poder temporal do 583584 Clima efeitos sobre o corpo e a alma 471 C ó d de Justiniano 309 Coerção como inseparável da sociedade civil 167 como base necessária para a vida social 300 Colombo Cristóvão 333 Comensurabilidade na troca 730731 Comércio discussão de Montesquieu 474476 como meio de unificação e promoção da paz 545 ascensão na democracia 685686 Comércio e fím do poder dos proprietários de ter ras 583 Commentarium ad Utteram 247 Compaixão crescimento sob os regimes democrá ticos 686687 Comportamento humano como resultado das paixóes 357 Comte Auguste 702 703 704 705 Comunidade commonwealth características es senciais da 148149 concepção de Marsílio do objetivo da 250 doença básica da 252 253 definição de Hobbes 362364 três tipos de 367370 construção correta da 371 Comunidade política poUty conceito de Aristóte les 128129130400 de regime misto 234 Comunidade política efeito do ceticismo sobre a 143144 Comunidade religiosa como objeto da revelação divina 217 Comunidade visão de Bentham 644 Ver também Comunidade política Comunismo discussão de Platão 33 34 4649 666778124141 visão de Marx 735736 e crise do Ocidente 812814 839840 Concorrência como causa da discórdia entre os homens 359 e desumanização dos assalaria dos 727 8 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Condição social como fonte de leis e política 681682688 Confederação Artigos de 590 Confederação 590 Conflito como progenitor do Estado 656659 entre liberdade subjetiva e objetiva 659 H eider sobre a inevitabilidade do 803 Conformidade demanda da maioria lu democra cia para a 689691 Conformidade relação de 484 485 Conhecimento absoluto a impossibilidade do 143 Conhecimento científico sificado de Hobbes 356 surgimento como sinal da civilização 704 Conhecimento histórico calamidades que resul tam do excesso de 744 Conhecimento racional e perfeição natural do ho mem 191 Conhecimento três faculdades do homem para o 195196 Consciência subjedva advento na Revolução Fran cesa 659660 Consciência análise de Husserl 784785 Conselho Noturno papel na cidade ideal de Pla tão 81 Conseqüências indiretas teste da Intimidade do exercício da autoridade do Estado 774775 Consentimento governo por 252 306307 325 326351 Conservadorismo e Burke 614 615 633 inade quação para atender à crise total de Nietzsche 752 Conspiração catilinária 256 Constantino 375 Constituição Estados Unidos conformidade aos prindpios republicanos 590591 acusações antirrepublicanas contra 591592 e solução do problema do governo popular 595596 meios de prevenir a opressão pela maioria 602603 e Burke 615 mendonada 469 Constituição Inglaterra 614633 passim Constituição alemã 655 Constituição Britânica 152 Constituição mista Cícero sobre 150151 como virtude da livre comunidade inglesa 395 396 e doutrina de Milton da liberdade cristã 403 Ver também Regimes mistos Constituição política descrição de Hegel 668 Contradição como fundamental para a mudança histórica 725726 Contrato social e Lutero e Calvino 301 como adotado pelos seguidores de Calvino 303 como base da sociedade 324 327 362 dis cussão de Hobbes 364365 e o soberano 369 510512 como acordo entre as pessoas 350551 teoria de Hume 496497 função do 509 e necessidade de leis 572 visão de Paine 609 conceito de Burke 621622 vi são de Bentham 647 como essencial para a constituição do Estado racional 663 Convenção e natureza 2 3 4 Convencionalismo clássico e direito natural 347 Convencionalista visão 3 Conveniência concepção de Burke 624 Coragem Aristóteles sobre a 115140 e hombri dade Burke sobre a 632 Córcira 911 15 Corinto 911 20 Coroa papel na monarquia constitucional 669 670 Corpo como primeiro princípio de todas as coisas 356 Corporação papel na sociedade civil de Hegel 667668672 Corrupção dos pares persas 9195 como acusa ção contra Sócrates 99104 Cosmologia 790 Costume Bentham sobre 637640 James Mill sobre 653 Crescimento concepção de Dewey 762 767 769 772 776 associações que contribuem para 769774 Crescimento político crescimento como padrão máximo para o 772 Creso 96 Criatividade visão de Descartes 379 apelo de Nietzsche para a 753 756 757 758 inter pretação de Nietzsche 756 Crimes discussão de Blackstone 556 dassifícação de Montesquieu 469470 Crise total da época de Nietzsche 750 752 753 Cristandade tentativas de incorporar a filosofia aos ensinamentos cristãos 161162 e o bem estar da sociedade 182187 acusada de en fraquecer o Império Romano 183184 efeito Í n d ic e 8 4 9 sobre o patriotismo 184185 e a guerra jus ta 185186 influência de Aristóteles sobre o pensamento político durante a Idade Média 225228 como fé ou doutrina sagrada 228 teologia como ciência mais elevada 227228 conflito entre governos espirituais e tempo rais 252253 estimativa de Maquiavel sobre a duração da 281 declarada como de origem humana 282 tratamento de Spinoza 425 crítica de Montesquieu 477 princípio do va lor infinito do individuo 662663 completa cristianização do mundo 676677 denúncia de Nietzsche 746747750752 como meta morfose do espírito do homem 751 Ser na 805 como reação à moderna filosofia polítí ca 822823 Cristãos aristotélicos 333 Cristo Jesus 164174260 262 279311 321 Critias 96100 Cromwell Oliver 396401 402403404 Cronos era de 67 77 Cuidado concepção de Heidegger xxx Cultura uso do termo por Aristóteles 141 influ ência moral do progresso cultural 546550 da disciplina 551 como passo além da in dividualidade natural do homem 665666 como perfeição da natureza 746747 con cepção da fenomenologia 782 Curso natural das coisas versus sentimentos natu rais da humanidade 574 Danos dvis reparação de 556 Dante Alighieri 264 Darwin Charles 66 767 Davi 218 280317 Decadência como definição de Nietzsche do pro gresso moderno 752 Decálogo 222 223 310 311 Decência propriedade como fundamento para a virtude moral 568 569 572574 Dedaração de Direitos 469 Declaração de Independência 641 682 Dedaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 641 Dedução concreta 702 Dedução direta 702 Dedução inversa 702 Dedução os três tipos de J S Mill 702 Democrada liberal e platonismo 45 Ver também Democracia Democrada ateniense no relato de Tuddides 20 23 27 características da 57 5960 684687 gênese da 58 crítica de Sócrates à 5861 go verno da massa 69 hierarquia entre os rimes incorretos 70 e timocrada 74 como iire diente do tjme misto 76 aplicação das leis 77 Xenofonte sobie 92 defeitos da 368495 Sócrates sobre 100 Aristóteles sobre 127130 131136 discussão de Cícero 150 e o reme virmoso 175 204206 versão de Marsílio da visão aristotélica 253 visão de Lutero 303 discussão dc Calvino 303304 lócus do poder em 367369 defesa de Spinoza 409411412 418423425 discussão de Montesquieu 462 464 visão de Rousseau 510 514516 discus são de Smith 579 e república de The Federalist 592594 ausência da separação dos poderes na democrada pura 601 rejeição de Burite 620622 James Mill sobre 650654 igualdade como prindpio da 682683 compatibilidade com a tíiania 682683 687691708 proble ma da 684 687691 e busca dos confortos materiais 684685 cresdmento do comérdo 685686 resolução do problema da 691699 justificação da 699700 como mediocridade 748 tentativas de Dewey para maior realiza ção da 761 significado moral de Dewey 768 dependênda da ddadania educada 775776 e americanismo 804 Strauss sobre 813814 822833841 visão socrática de 833 Demócrito 2 329725 Demóstenes 20 24 298 Deposição do soberano de acordo com Hobbes 375 Descanes René 377393 ensinamentos políticos 377378 e Bacon 377378 380381 393 concepção de matemática 378379381413 rejeição da filosofia da Antiguidade 378379 e Maquiavel 377 383 392 e Hobbes 378 concepção de pafaróes 379381 aiumentos em fevor do método 380381 teoria da gene rosidade 380381 385 387389 e retórica do discurso 382383 conexão entre reforma pública e privada 382384 e lei da benevo lência 38385 ideia de Deus 389 concep 850 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y ção de alma 388389 e projeto do domínio da natureza 388389 retórica do Iluminismo 390391 como fimdador da filosofia moder na 393 e Spinoza 425 necessidade da dúvida universal 481 Bentham comparado a 637 638 questionamento das crenças tradicionais 684 dívida de Husserl para com 783 e a filo sofia moderna 803807822825 menciona do 833778779783791 Descobertas geográficas relevância para a história da humanidade 584 Desconfiança como causa de discórdia entre os homens 359 Desempr como resultado das mudanças tecno lógicas 732733734 Desualdade propriedade privada como origem da 506 Desobediência civil justificação para 366 peca minosidade da 372373 Desobediência justificável anterioridade da lei es piritual sobre a lei temporal 305308 Desobediência direito de 584 Despotismo benevolente como rival do governo representativo 708 Despotismo discussão de Montesquieu 466467 necessidade de em países grandes 591592 como rival do governo representativo 708 visão de J S MUI 708 Destino história como em Heider 808810 Deterioração como maior limitação sobre pro priedade no estado de natureza 439441 Deus determina a sociedade dvU 167 oniscien te e infinito 171172 profetas e profecia 211212 214 e a lei divina 235 310311 e objetos de revelação 217 vida política como revolta contra 219 visão de Isaías da paz universal 220 como autor da natureza 228 como única causa criador e legislador 234 244246 visóes calvinista e luterana da relação do homem com 286288 Estado como servo de 300301 julgamento sobre governantes presunçosos 317 escolha de um herói 317318 ideia de Descartes 385389 Nietzsche e a crença na morte de 795796 niilismo e conceito de 796798 807 Deuteronómio 217 Devido intercuiso da lei 557 Dewey John 761777 tentativa de maior realização da democrada 761 tejdção da filosofia polí tica ttadidonal 761762 conceito de cresci mento 762767769 tentativas de reladonar a investação filosófica aos problemas sociais contemporâneos 762763 aplicação do mé todo da inteligência ao progresso sodal 763 768 teoria política democrática 769777 concepção pluialistica de 769775 teste da conseqüência indireta para definir o âmbito da auroridade do Estado 769774775 Dialética significado de 6566 Socrática 828 830 Diálogo em p r por Cícero como veículo para o ensino 144145 Diáspora dispersão dos judeus 207 218 Diferenças de classe indispensáveis pata a eficácia da liberdade individual e para a atividade do Estado 663 Diferenciação econômica como essencial para a constituição do Estado racional 663 Dilthey Wilhelm 787 Dinheiro fazer como arte universal na República de Platão 41 na melhor cidade 79 Dinheiro invenção do 442443 574575 leis do Estado que mudam o valor do 605 visão maixista do uso do 720 Diôdotos 2629 Diógenes o Cínico 283 Direito consuetidunário common lato visão de Hobbes 370 visão de Bentham 637 Direito divino dos reis 428 621622 Direito internacional visão de Hel 675 Ver também Lei das nações Direito natural clássico e convencionalismo 347 Direito natural natureza variável do 242 de Gró cio 347 vetsion de Smith 569 Rousseau e crise do 824 Direito três significados de Grócio 347348 como universalidade 666 Direitos absolutos dos indivíduos no estado de natureza 555 Direitos Civis discussão de Blackstone 557 dis tintos dos direitos naturais 608609 Direitos da minoria proteção por associação 693 694 Direitos do homem inalienabilidade dos direitos dos súditos 364366 efeito de Rousseau no pensamento de Kant 521522 526 529 530 536 visão de Kant 522531 ataque de Í n d ic e 8 5 1 Burke sobre a doutrina dos 618622 633 depreciação de Marx 721722 Hr também Direitos naturais Direitos individuais derivação de paixões egoístas do homem 359360 diteitos absolutos 555 direitos relativos 555556 proteção dos 559 restrições exigidas dos no progresso em direção à civilização 712713 Direitos naturais significado de Hobbes 411 como coextensivos com o poder 471 Rous seau 507 distintos de diteitos civis 608609 como objetivo da sociedade civil em Burke 623 628629 rejeição de Bentham da dou trina dos 639645648649 em Tocqueville 699 Ver também Lei da natureza Lei natural Direito natural Direitos do homem Direitos relativos dos indivíduos 511 Direitos subjetivos 348 Disciplina marcial discussão de Locke 457 Disciplina esfera da Igreja 295 cultura da 550 Divisão do trabalho e dradação da classe traba lhadora 580 e fragmentação do homem 721 Divisões de classes entendimento de Dewey 762 763 Dois teinos visões calvinista e luterana 291298 306 309 cidadania dupla do homem 291 292 relação dos 291294 Igreja e Estado 293296 teologia e política 296298 Domingos S 279 Dominicanos tentativas de restaurar o cristianis mo primitivo 279 Domínio reflexão de Descartes sobre 383 384 Donatistas 163 181182 309 Dor como motivo para a ação 484 488 como instrumento para a preservação do homem 574575 e prazer em utilitarismo 635636 643649650 Dostoiévski Fiódor 68795 Dúvida necessidade da 481 Economia política clássica teoria do valortraba lho 728729 Economia política explicação de Hegel 665 como ramo necessário das ciências sociais 703 negação de Marx da verdade da 724 Economia ciência de Smith 579285 negação de Marx da verdade da economia política 724 Economia como fundamento verdadeiro para a sociedade e a vida humana 717 Édipo 806 851 Educação musical como educação em virtude cívica 414575 Educação moral como prérequisito para a sólida sociedade civil 502 507 responsabilidade do Estado pela 706 Educação na Pérsia de Xenofonte 8485 8896 Socrática tal como descrita por Xenofbnte 96108 Aristóteles sobre a 115 124 136 141 menção de Locke 456457 propostas de Smith para 583585 como salvaguarda con tra o mau govemo 775777 concepção de H eider da universidade alemã 801802 e escritos exotéricos dos filósofos 820 concep ção da liberal por Strauss 821 835836 Éforos 307399 pcios 317 Eleazar 374 Elias 298 Elizabeth 1 rainha da Inglaterra 340 E ils Friedrich 718725726759 Engrandecimento como meta da polítíca de Ma quiavel 268 Ensinamentos aristotélicos e ensinamentos revela dos 208 Ver tarrthém Aquino S Tomás de Epicuranismo 389706 Epicuristas 145 347389 Epicuio 145389 Epigorti 744756 Equidade e justiça Aristóteles sobre 119 lei da 370 Era messiânica 219 Eros 45 48 60 63 72 Escolástíca cristã e o desenvolvimento da filosofia judaica 169 influência sobre Abravanel 220 Ver também Aquino S Tomás de Escolasticismo e desenvolvimento da filosofia ju daica medieval 208 rupmra dos reformado res sobre a questão da justificação 287288 oposição de Descartes a 390 Ver também Aquino S Tomás de Escolasticismo cristão Escolásticos 1311 321334 335 807 Escravidão mencionada por Tucídides 13 discus são de Aristóteles 125126 128 131 134 244 contrastada à autoridade política 231 anterior ao nascimento do Estado 657658 8 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y discussão de Montesquieu 473 como neces sidade da sociedade aristrocrática 746 Escritos exotéricos 819821 Escrituras disputa sobre a autoridade absoluta das 287289 321 finalidade fundamental das 323324 mencionadas 263 301 309 310 Esparta e Guerra do Peloponeso 921 defeitos das leis 7274 destruição de 7677 como regime misto 76 abordim de Xenofbnte 8285 106 Aristóteles sobre o rtçime de 116131134135137 como república mo delo de Rousseau 502 511 mencionada 22 80276352380463 Especialistas govemo por de J S Mill 709 Espectador universal 585 Esquecimento do Ser 797798 800801 804 807 Estabelecimento concepção de Burke 614 625 Estado de natureza teoria de Hobbes 357364 372 411 transição paia a sociedade política 412 436444 racionalização pelos regimes democráticos 418419 e ttantessâo 422 diferenças nas visões de Hobbes e Locke 428 429435 visáo de Locke 428430454455 e estado de guerra 431433 454455 aquisi ção de propriedade no 436438 motivos para a penúria no 439441 limitações da proprie dade pela deterioração 441445 e ausência do cultivo da teria 441 invenção do dinheiro 442443 dificuldades na preservação da pro priedade 446 poderes namrais do homem no 446448 opinião de Hume 491 concepção do homem de Rousseau 502505 518 Burke sobre 627 e direitos absolutos dos indivíduos 663 e relações entie Estados 675 Estado de transição da sociedade 704 Estado do bemestar social profecia de Paine 612 Estado do mundo discussão de Marsílio 263 Estado judaico 207 218 220 424425 Estado racional meios de constituir 662663 Prússia como modelo do 664 papel dos fun cionários públicos 668669 síntese do 672 indispensabilidade da guerra e íim da história 674679 Estado universal como meio de conquistar a paz perpétua 542543 Estado conceito de 45 e cidade náo equivalen tes para Aristóteles 123124 como serva de Deus 301302 lei do 313314 desejo de autopreservação como princípio básico do 416 íilosoíia como fim do 417 debilidade das 514 571 727 738 reabÜitação por He gel 655656 661662 664 como totalidade plenamente desenvolvida 657 como resulta do do conflito 657659 fimção de reconci liação entre senhor e escravo 659660 como união de liberdade subjetiva e objetiva 659 como base e meta do interesse individu al 667 primazia sobre a sociedade civil 674 visáo de J S Mill do fim do 707708 como órgão de coação de classes 772 conceito de Dewey 770771 concepção do árbitro 770 772 responsabilidade de fizrnecer condições para o crescimento 772773 teste da conse qüência indireta para a Intimidade da auto ridade do Estado 773776 Estados Unidos 611 704 Estados associação de para o estabelecimento da paz perpétua 519520 541548 675 EstadosGerais Éuas généraux 465 Estoicismo 155158234347410412 Estoicos 1 379380477 Estruturas eidéticas 784 Eterno retorno doutrina do 332 Eterno retorno doutrina de Nietzsche 757 Ética e ciência política em Aristóteles 112113 e doutrina da justificação pela fif 290291 e po lítica 476 e H e id r 795802808810 Eu sapiente eg cogtans ensinamentos de Des cartes 386 Eu definição de Hume 576 Eusébio 186 Eutidemo 9798 Evolução entendimento de Dewey sobre a 767 Excomunhão 262294 Executivo na comunidade livre de Milton 401402 âmbito do poder 450451 discussão de Mon tesquieu 469 e separação dos poderes 599 600 visão de Paine 610 visão de Hei 669 Exílio visão judaica tradicional 207208218220 Existências catilinárias 58 Faccionalismo como problema do governo do Es tado 595596 Facções como resposta para o problema das maio rias opressoras 597 602603 Í n d ic e 8 5 3 Factiddade da existência humana 798 Faculdade racional e imaginação 195 196 supe rioridade à origem natural dos desejos 347 Família discussão de Aristóteles 124125 Família distinta da sociedade civil 665 como a primeira base do Estado 666667 Farabi A1 Alíarábi Fascismo e Nietzsche 759 Fé justificação pela como cerne de toda a teologia reformada 286288 e a ética 290291 Federalist The O Federalista 587605 autoria 588 resumo 589590 Burke comparado a 632 mencionado 653 Felicidade concepção de Aristóteles 112115 117 126138140 definição de Alferábi 191 con quista por meio de atividades nobres 191 e aperfeiçoamento da razão 192 visão de Hob bes 358 no utilitarismo de Bentham 636637 639647 no utilitarismo de James Mill 650 Felicidade visão de Hobbes 358 Fenomenologia formulação de Husserl 779783 785 787793 796 e Heider 798 Feudalismo diieito à propriedade territorial 563 derrubada 685695 modos de produção 719 direitos de propriedade 719 mudanças acarre tadas pela ascensão da manufetura 726727 Fidelidade a pactos como base de toda justiça e injustiça 361362 Filão 154156159 Filhos de Israel 218 Filmer Sir Robert 427445 Fílon 207 Filosofia da história visão de Kant 531538 551 e doutrina de Smith 583 586 terminando em filosofia política 657 676 como ramo necessário das ciências sociais 703 de J S Mill 703705 íilosoíia política de Husserl como 781782 e Strauss 824 Filosofia da visão de mundo Wekanschauungphi losophU 787789 Filosofia islâmica 188 Filosofia natural e Sócrates 101104 e filosofia política 343344 Ver também Filosofia polí tica clássica Filosofia Filosofia política Filosofia política dássica distinção entre natureza e convenção 35 e Cidadeestado 5 tentati va de Agostinho de reconciliar com a Bfblia 161 repúdio de Maquiavd 166 246247 reconciliação com os ensinamentos do Islã 169172 rejeição de Descartes 379380 re jeição de Spinoza 409 rejeição por Montes quieu 476 Strauss e o estudo da 815817 825 rejeição modema da 822824 Ver tam bém Filosofia Filosofia política Filosofia política judaica medieval desenvolvimen to da 207208 visão de importância da pro fecia 213217 visóes do Messias 219220 e busca das leis racionais e reveladas 221223 Filosofia política judaica desenvolvimento da 207 208 visão da importância da ptofêda 213 218 visão da Id natural 221222 tentativas de harmonizar a filosofia g r e a rdigjão re velada 225 caráter platônico do pensamento político 226228 Filosofia política provisória de Bacon 246247 Filosofia política e ciência política 12 Sócrates como fundador da 45 evasão do termo por Tucídides 6 e dênda política em Aristóteles 111 122 e govemo do ptofèta 218 filoso fia natural 343344 base dentííica de Hob bes 355 ímportânda do método anaUtico 356357 abordagem de Spinoza 415 desvio em direção à economia 566 visão de Paine 606 rejeição de Burke 615619 conceito de Bentham 636637 e filosofia da história 655 767 de Marx 717 rejeição de Dewey 761762 e Husserl 778779780782793 e Heidger 795 Strauss e história da 812841 Ver também Filosofia política dássiou FilosofisM Filosofia da história Ciência política PoUtica Filosofia e ciência 1 referência de Tucídides à 2930 inseparabilidade da justiça 33 como arte das artes na República de Platão 3334 coincidência com o poder político em criar boas cidades 40 disputa com a poesia 61 definição de Platão 71 e vida de Sócrates em Xenofonte 84 96104 introdução por Cíce ro em Roma 143 e revelação divina 162 164165 como terreno comum para crentes e descrentes 162163 como obstáculo para a fé 163164 coincidência com a profecia no governante supremo do rm e virtuoso 196 198200 indispensabilidade para a sobrevi vência da cidade virtuosa 197201 e judaís mo 208209 e visão de Descartes da ciência moral perfeita 378379 transformação de 8 5 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Descartes em projeto de domínio da natureza 389390 como mais poderosa salvarda da autopreservação individual 411412 como fim último do Estado 417418 dependência da liberdade de expressão 424 rejeição pe los judeus 425 metas de Montesquieu para 460 determinação de duvidar como ponto de partida para 481 conceito de Hegel da únção da 656 Estado como fonte da 656 desaparecimento na sociedade marxista 736 suplantação pela história 738739 hostilida de para com a sociedade política 738740 guerra com a religião 739 declínio da 749 como mais elevada forma da vontade de po der 755 conceito de Husserl 778779 788 790791 Heideer sobre niilismo na 796 Heideer sobre a finalidade da 808 e escri tos exotéricos 819821Vr também Filosofia política clássica Filosofia política Filósofos islâmicos 213 Filósofos muçulmanos 208 222223 Filósofos indisposição para governar 5256 opi nióes acerca da profecia 213 crítica judaica dos 222223 Finalidade do viraser 744 Física como ciência teórica para Aristóteles 109 110 matemática Husserl sobre 791 Força de trabalho e mão de obra 731732 Fórmion 20 Fox Charles 614 França revolução na 660662 759 persistência das divisóes na vida política 660661 desi gualdade de condições na 683 Ftanciscanos tentativas de restaurar o cristianismo primitivo 279 Francisco S 279 Freios e contrapesos checks e balances de acordo com a constituição romana 151 discussão de Calvino 303 como característica do livre go verno 495 sistema inglês de 558 menção de Blackstone 560 rejeição de James Mill 651 mencionado 469 596 600602 Freud Sigmund 755 Funçáo deliberativa do governo descrição de Aris tóteles 436437 Funçáo judicial como função do soberano 364 365 descrição de Aristóteles 468 Funçáo magistrática descrição de Aristóteles 468 Funcionários públicos papel no Estado de Hegel 668669 Estado dos 679 Galeazzo Giovan 274 Galileu 791792 Generalização como critério de Rousseau para a vontade geral 527 Generosidade como a paixão suprema de Des cartes 381382 385 387389 Geometria uso por Hobbes 356 366 Husserl sobre 791 George III rei da Inglaterra 613614 Glória como motivação para o império ateniense em Tucídides 1922 26 visão de Descartes 389 Glorificação como causa de discórdia entre os homens 358359 Godos 182 Goethe Johann Wolfgang von 752 787 Golias 317 Górgias 284 Gosto distinto da razão 490 Governante filósofo e governante profeta 193197 Governante profeta e governante filósofo 193197 Governante supremo discussão de Alfarábi 193 198 necessidade de ousadia e virtude guerrei ra 200 profetas 213214 legislador huma no 253256 Governantes na República de Platáo 3537 42 43 perfeitos Xenofonte sobre 84 9195 prudência dos em Aristóteles 127128 li mitações dos em Burke 622 Ver também Regimes Governo civil discussão dos reformadores 301 e nova ciência da política 596598 Governo constitucional elementos 402 Governo da maioria doutrina de Locke 447449 Governo da multidão desorganizada como con trapartida deturpada da democracia 150 Governo das leis discussão de Platáo 6971 ne cessidade do 72 como imitação mais próxi ma do govemo divino 7778 e regime misto 154 em Alfarábi 198 Governo de gabinete 469 Í n d ic e 8 5 5 Govemo heteditário venus monarquia eletiva 258 visão de Fáine 609610 apoio de Hel 669 Governo local na comunidade livre de Milton 400401 como meio de neutralizar os efeitos da centralização 692 Govemo populan argumentos de Marsílio em fe vor do 253257 259 visão de Públio 593 595 proposto pela Constimição americana 59604 inépcia do 599600 opressão pela maioria 597599602603 Govemo representativo objeções de Rousseau 510 como único governo Intimo 540 em gran des repúblicas 602 tríplice problema do 596 604 visão de Paine 609610 análise de J S Mill 708712 Govemo responsável como sinal de civilização 704 Governo conflito entte poderes espirituais e tem porais 252253 291293 visões luterana e calvinista das melhores formas de 302304 metas 324 492494 706708 discussão de Montesquieu 462467 como intermediário entre soberano e cidadão 514515 diferen tes tipos de 515516 concepção de Paine do papel e função do 607608 necessidade da reconstituição 607 definição de Burke 621 622 James Mill sobre formas tradicionais de 650651 exigências para a participação no 670 crescente centralização do 688689 692 responsabilidade pela educação moral e desenvolvimento dos talentos individuais 706708 condições de J S Mill para o suces so do 706708 como órgão pata a coação das classes 723724Ver também Rimes Governos do Estado e problemas do feccionalis mo 594595 e crescimento do poder lis lativo 598 GrãBretanha visão imperialista de Bacon 336 ataque de Burke sobte a poiítica americana da 616 também Irterra Graciano 182 Gracos 371 Grande Tribunal de Justiça 212 Grandeza de alma magnanimidade 116117120 141 Grécia 659 662 polis da 5 guerras civis na 15 16 Hel sobte 659 662 e origens da fe nomenologia 781 790 Ser como entendido por e niilismo 797 805807 Ver também Atenas Esparta Gregório S 281 Grócio H i 346354 busca pela guerra justa 355 três significados de direito 347348 so bre a natuteza e tipos de lei 348350 análise do poder dvil 350 conceito de natureza e ló cus do poder supremo 351352 guerra justa e injusta 353 origem e tipos de propriedade 353 concepção da tradição clássica 392393 crítica de Kant 542544 Guerra do Peloponeso 621106 Guerra justa Alferábi 201202 Marsílio 264 Ba con 335336 Gródo 352353 discussão de Hobbes 362 para conquistar a soberania 364 Guerra persa 101218 Guerra santa concepção islâmica 201 discussão de Bacon 342343 Guerra como fim da Id 72 Aristóteles sobie 126 139140 atitude cristã em relação à 185186 e limitações da lei no i m e virtuoso de Alfe tábi 200204 e monarquia na filosofia judaica medieval 217219 necessidade da pata im pedir a superpopulação 262263 busca pela guerra justa 335 discussão de Gródo de guer ra justa e guerra injusta 352353 e o estado de natuteza 359 como estado de natuteza 429 432433 541542 definição de Locke 430 432 existência na sodedade dvil 431432 crescimento da Id como mdo de supressão da 461 discussão de Montesquieu 472473 ten dência ao governo republicano e à unificação política 544545 enraizada em diferenças em linguagem e religião 544545 e difusão do cométdo 545546 siestões de Paine para a abobção da 610611 justificação de H 673675 H d d r r sobre 803804 Guilherme o Conquistador 371 564 H Hábito como fundamento para a inferência 483 Halevi Yehudah 222223 Hamilton Alexander 587588 594 Hare Thomas esquema para a representação pes soal 711712 Harmonia natural dos interesses individuais dou trina de Paine 607611 Hastings Warren 614 Hedonismo clássico 330 8 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Hedonismo 330 796 Hegel Georg W F 655680 reabilitação do Esta do 655659 fimção da filosofia 656 princí pio da particularidade 659600 665 crítica da Revolução Francesa 659660 elementos do Estado 660661 concepção de história 661663 676677 visão da Reforma 662 663 Estado racional 662665 668673 e sociedade civil 664665 papel da corpora ção na sociedade 665667 modelo de mo narquia constitucional 668669 conceito de burocraria 669671 papel dos proprietários de terras 671672 liberdade de comunicação pública 672673 justificação da guerra 673 676 e Marx 724 726 crítica de Nietzsche 742746 758759 homens como epigoni 744 concepção de história 808809 e reali zação da ordem ideal 823824 mencionado 778779791 803 Heideer Martin 795811 e Husserl 781 791 796 801 e o nazismo 795 801802 804 805 809810 sobre as causas do niilismo 795799 793798 sobre Platão e Aristóteles 796798 806807 sobre a busca do Ser 805 807 sobre o conceito présocrático de Ser 805807 sobre o niilismo como revelação do Ser 807811 e historicismo 824825 sobre o dogmatismo do racionalismo 826 mencio nado 812 Henrique II rei da Inglaterra 371 Heráclidas 352 Herádito 725 747 806 Herança ideia de Burke 626627 629 Hereges poder de coação contra 249257 262 vi são de Lutero 308309 visão de Calvino 309 Heresia papel da autoridade secular na repressão da 163 181182 Hermenêutica filosofia hermenêutica 781 Hermes Trismsto na Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 342 Heródoto 6 Heróis pagãos e cristãos 174 concepção de Lute ro 317318 concepção de Calvino 318 Hesíodo 57 59101 História antiquária sentido de Nietzsche 743 744 História crítica sentido de Nietzsche 743 História monumental significado para Nietzsche 743 História Tucídides evita o termo 6 Rousseau 504 dialética hegeliana como força motriz da 658659 três fàses da 661662 como revelação progressiva da liberdade 570571 visão de Hegel do fim da 676679 recons trução por Marx 726 suplantação da filo sofia 737 739 usos e abusos da 743744 e historicismo 745 história objetiva 745 e mundo da vida em Husserl 789793 e Ser em H e id r 798 801 804 808809 Ver também Filosofia da história Historicismo crítica de Nietzsche 742746 crí tica de Husserl 779 782 783 786789 Heidegger sobre 804 808 análise de Strauss 813 815822 Hitler Adolf 759 801 Hobbes Thomas 355376 sobre Tucídides 8 e lei da namreza 223 360363 570571 opi nião de Sócrates e filósofos da Antiguidade 268269 reduçáo do status da moral 269 e moderna ideia de soberania 351 364365 disconcordância básica com Grócio 353 e realismo de Maquiavel 355356 e primeiros princípios de todas as coisas 356 e métodos da filosofia da ciência 356357 e teoria do estado de namreza 357364 373429435 541 658 728729 autolegislação 361 363 contrato social 274275674 definição de di reito 370371 correta constmção da comuni dade 371 e visão da boa sociedade 372373 teologia cristã de 373376 e Descartes 378 387 primazia da necessidade de autopreserva ção 389 412 488489 e Spinoza 411412 425 e caráter humano do fenômeno político 412 e visão de Locke da natureza limitada do poder político 496497 visão do homem na mral 504 577 585 sobre os fundadores da sociedade civil 506507 e Rousseau 509 indispensabilidade da paz para a vida e a pro priedade 521522 insociabilidade namral do homem 537 e concretização da ordem ideal 823 mencionado 486 488 618 620 628 641643651661696 Hombridade como virmde do cavalheiro para Burke 632 Homem empírico visão de Marx 718 Homem namral visão de Rousseau 517518 Homem primitivo investigação de Rousseau 504 505 Í n d ic e 8 5 7 Homem virtude do 75 como política animal 125 126626 ttés faculdades para o conhecimento 195197 perfectibilidade do 209211 505 visóes luterana e calvinista 285286298300 cidadania dupla do 291 queda do 298299 e dois chamados 314316 busca pela perfeição 321 como animal sodal e político 347 356 359 autopreservação 358360361 igualdade no estado de natuieza 368369 como inído e fim da árvore do conhecimento 378 sodedade como aumento do poder individual do 410 411 uso da dedução matemática para o estudo do 414 efeitos do dima sobre 471472 no estado de natureza de Rousseau 503506 mo vimento em diieção ao Estado dvilizado 505 507 509510 515 sociabilidade natural do 568 570571607 como espéde animal 572 723724 sentimentos naturais do 574 igual dade namral do 577 herança do sistema po lítico pelo em Burke 626627 aproximação à universalidade atiavés do Estado 656657 batalha pelo reconhecimento 657658 busca dos confortos materiais no regime democráti co 685686 análise das tiés etapas de desen volvimento do por Comte 704 homem em pírico de Marx 718 fiagmentação pela divisão do trabalho 721 733 alienação do 723724 como criatura da necessidade 722 horizonte do 743746 como epigoni 744 elevação pela aristocrada 747 mudanças produzidas pelo cristianismo 748751 liberação de Deus 753 último homem de Nietzsche 747752 von tade de poder 753756 superhomem 757 158Ver também Natureza humana Homens causas da discórdia entre 359 Homero 241 60 298 474 Homicídio justificável explicação de Blackstone 558559 Honra profissional como fôrma de virtude na so dedade moderna 667758 Honra como motivo para o império ateniense em Tucídides 12 1516 1920 22 Aristóteles sobie 114116 visão de Hobbes 359 como princípio da monarquia 463464 Hooker Richard 319327 ataque ao radicalismo bíblico 320 base metafísica do pensamento 321322 análise do direito 322323 sobre a Igreja e o Estado 325326 sobre a tolerância 326327 Horizonte linha divisória entre histórico e ahis tórico 743 destruição de 744 como mito mais abrangente do homem 745 como cria ções do homem 746 finalidade do 751 pro jeção do 753 Huguenotes 307 319 Hume David 479799 dúvida de matérias de fato 386 sobre os julgamentos normativos 479 483486 discussão de causalidade 481 483 524 discussão de moral 481488 so bre as leis da natureza 492493 visão sobre política 496498 e teoria do contrato social 487497 crítica da razão teórica 524 e ca pitalismo liberal 567 e reconhecimento da utilidade 568 definição de eu 577 mencio nado 647 791 Hus John 294 Husserl Edmund 778793 conceito de telos 778783787790792793 crítica do histo ricismo 779781783786789 íôrmulaçâo da fenomenologia 779783 sobre as causas do niilismo 781 e Heideer 781 791796 801 crítica do psicologismo 783786 sobre ciência 788789 sobre mundo da vida 789 793 mencionado 812 I Id conceito fireudiano de 755 Idade da Razão 606 Idade Média 227 320 474475 477 572 684 686 701 726727 807 Ideias doutrina das de Platão 4951 103 826 827 definição de Hume 479 e objetos do conhecimento 480481 Ideologia definição de Marx 720 na vida moder na Heidegger sobre 804805 do marxismo 840 Ignorância visão de Bentham 635 socrática 825 826 Igreja Anglicana 334 625 Igreja Apostólica 311 Igreja Católica Romana Vir Igieja Igreja Cristã Ver Cristandade Igreja Igreja da Inglaterra 334 Ver também Igreja An glicana Igreja e Estado visão de Lutero e Calvino 293 296 desejo de Milton de reformar as relaçóes 8 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y entie 403404 necessidade paia a separação entre 698699 Igreja como instrumento da graça divina 167 168 status canônico da filosofia durante a Idade Média 226227 platonismo dos Pais da Igreja substituído pelo aristotelismo 226 227 concepção de Marsílio do sacerdócio da 249250 como oligarquia ao contrário de aristocracia 258 reformas fianciscanas e dominicanas 278279 destruição dos sinais de Antiguidade 281282 sistema de indul gências 287 Invisível 293294 Visível 294296 fim dos poderes temporais 582 583 Ver tambim Igreja e Estado Igualdade de habilidade como prelúdio para a competição 358 Igualdade dos homens transição do primado da moral para a 525526 dignidade do homem moral 526527 Igualdade jurídica e diferenciação social 661 Igualdade como smdo principio da democracia de Alferábi 204205 derivação da liberdade natural da 428 Bentham sobre 641 reco nhecimento da no Estado racional de Hegel 671672 como condição social básica dos rmes democráticos 681684 como resul tado da vontade divina 682 efeito da paixão pela 687690 visáo de Tocqueville 691692 e imposição de limitaçóes sobre a religiáo 698699 liberalismo e dradaçáo da 835 Igualitarismo como evangelho da democracia e do socialismo 749 Iluminismo 377 390395 501 606 807 Imaginação três fimdamentos da 195196 e fe culdade racional 196 e simpatia 569 Imperativo categórico 527528646 830 Imperialismo visão de Bacon 335336 Império defesa ateniense em Tucídides 61213 16202526 persa 828495105 visão de Aristóteles 137 VertambémlmçenaSàsmo Impessoal 799 Impiedade l iação contra na cidade ideal 7980 Imposto de renda propostas de Paine para 611 Imposto sobre herança propostas de Paine para 611 Imprensa licença para a ataque de Milton 394 396 Impressões definição de Hume 479480 Individualismo radical deièsa de Nietzsche 758 Individualismo afirmação de Hobbes 348 carac terística da Inglaterra moderna 470 caracte ristica da democracia 684685 687 tendên cia a desconsiderar o bemestar comum 696 papel da religião no controle do 697698 Indução 785 Inferência hábito como fundamento para 482 483 Inglaterra virtude da constituição mista 395396 descrição de Montesquieu do governo da 467471 discussão das leis por Blackstone 554565 passim critica de Hegel 594 crítica de Bentham à tradição jurídica da 636639 James Mill sobie a reforma política na 652 654 Lei da Reforma 655664670 Ver tam bém GrãBretanha Iniciativa legislativa do presidente 604 Injustiça inferioridade à justiça 5660 maior pu nição para 62 como não cumprimento do pacto 366 Instinto e nazismo 805 Intelecto ativo 194196 203 Intelecto como fonte de heterogeneidade na de mocracia 689 como apagamento do avanço da sociedade 704 Inteligência método da uso na solução dos pro blemas sociais 763768 Intencíonalidade 784 Interesse comum como cimento da sociedade 607 Interesses individuais harmonia natural dos 607 612 Intuição conceito de Husserl 783784 Invenções desejo de Bacon de promover as 330 332 Isaías 220267298 fsis culto de 340 Islã 161188190193208225227 Isócrates 394 Israel 218219221310317326338374 Israeli Isaac 262 James I rei da Inglaterra 334 James II rei da Inglaterra 561 Í n d ic e 8 5 9 Jay John 587 Jefièrson Ihomas 99496 592 597 Jesuítas 378 Jetro 219 Jó 367 Joiada 317 Josué 374 Judaísmo 161208 227425 Judeus visâo luterana da tolerância 309 o ca tiveiro 375 os cidadãos do reino de Deus 374375 como inventores sacerdotais do cristianismo 748 questão judaica e crise do Ocidente 814815 Judiciário discussão de Montesquieu 468 papel no sistema inglês 560561 posição no gover no livre 561 como meio de elevar a represen tação do povo 600 Julgamento por júri 562 Juramentos normativos ensinamentos de Hume a tespeito de 479483486 status dos 490 Julgamentos sintéticos e analíticos xxx Julgamentos sintéticos 524 Júlio César 276 371 375 Jünger Ernst 802 Júpiter 177283 Jurisprudência natural significado de Smith 571 Jurisprudência como a ciência mais elevada no islã e no judaísmo 227 Justiça distributiva doutrina aristotélica da 362 discussão de Hobbes 362 Justiça recíproca 118 Justiça como tema em Tucídides 921 2629 discussão de Sócrates 3247 significado de 56 como preíèrível à injustiça 5664 re compensas pela 63 Xenofonte sobre o pro blema da 83 9699 105107 na educação persa 8486 discussão de Sócrates 9699 discussão de Aristóteles 117119 125135 discussão de Cícero 154157 viga mestra da sociedade civil 158159 e ordenação corieta de todas as coisas 166167 caráter defeituo so da 167168 no estado de natureza 359 origem das iras 491493 suspensão das obrigações 494495 visão de Rousseau 503 como critério de legitimidade 540541 de pendência da boa vontade do chefe de Estado 540541 administração da 559560 discus são de Smith 641642 ornal em Burke 628629 desaparecimento na sociedade marxista 735 e racionalismo socrático 825 827 829830Justificação pela fé doutrina da como cerne da teologia reformada 286288 e ética 290 Justiniano código de 309 Kant Immanuel 519553 estabelecimento da or dem social justa 269 filosofia e política 519 522 doutrina da paz perpétua por meio da organização internacional 519520 541548 674675 separação de íèlicidade e virtude 520521 tentativa de unir os leinos da natuieza e da motal 521523 582 influência de Rous seau 520521 532 536 diiritos do homem 522531 imperativo categórico 527528 co munidade ética e sociedade política 528529 primazia dos direitos e deveres lais sobre direitos e deveres da vinude 529530 apbca çáo da motal à política 529530 publicidade de açóes requeridas pelo direito público 530 531 filosofia da história 531541 550552 exigências da moral 533 progresso em direção à ordem poUdca 533536 678 progresso na cultura e intdnda 535536 e assodalidade do homem 537538 570 Estado lal 538 541 direito nato do homem à liberdade exter nai 538540 intenção moral na história pre cedendo a paz 548553 Bentham comparado a 645 desvalorização das simples finalidades 736737 e concretização da ordem ideal 824 mencionado 778779 791793795 Knox John 319320 Kojève Alexandte 839 Laélio 148 155159 Laércio Diógenes 283 Laissezfaire 580 Lazer visóes clássica e hegeliana do 658 Legisladon ane do 7778 conceito de Rousseau 513514 Lslatura supremacia na comunidade de Mil ton 402 estabelecimento como primeira lei da comunidade 409 como poder supremo 8 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y da comunidade 450451 e separação dos poderes 598599 como meio da elevação da representação do povo 600 supremacia no governo de Paine 610 visão de Hegel 669 Legitimidade fortuna e nascimento como base da 383 em Rousseau povo como fonte da 510513 Lei canônica sanção da filosofia 227 rejeição pe los reformadores 314 dependência do sobe rano civil 370 Lei celestial 322 Lei civil discussão de Grócio 349 definição de Hobbes 370 Lei da natureza discussão de Grócio 348349 e doutrina da guerra justa 353 derivação do direito individual à autopreservação 360 361 discussão de Hobbes 361363 defeito essencial da 363 razáo como 401 obriga ções da 433434 fonte e finalidades da 434 discussão de Hume 491492 como limitação da autoridade política 558 visão de Paine 606 como anteparo entre súdito e senhor 729 Vèr também Lei namral Lei da tazão visão de Hooker 322 Lei da Reforma Inglesa 664 670 Lei das naçóes discussão de Grócio 349 Ver tam bém Direito internacional Lei de Reforma 655 664 670 Lei divina discussão de Maimônides 210 mu danças na 211212 finalidades da 214 con cepção dos reformadores 310311 discussão de Blackstone 555 Lei eterna e lei temporal 168 como fonte de todas as leis 322 como expressão direta da vontade de Deus 323 Lei humana discussão de Maimônides 209211 derivação de 241 322 discussão de Grócio 349350 Ver também Lei Lei moral caráter natural da 570571 Lei mosaica 212 216 407 Lei municipal discussão de Grócio 349351 Lei natural e Aristóteles 118119 concepção estoi ca de 155156 discussão de Cíceto 157159 filosofia medieval judaica 221223 conceito de Aquino 230 239243 como fonte da lei humana 241 preceitos comuns ou primários da 242 variabilidade da 242 aplicabilidade à sociedade humana 243 visáo de Marsílio 264 266 e direito de autopreservação 269 e erra dicação da heresia 309 visóes calvinista e lute rana de 311313 visão de Hooker 321322 discussão de Grócio 347349 código de Ho bbes 356 razão como 428430 da sociedade política 446447 lei da maior força 447448 e lei convencional 555 discussão de Montes quieu 461462 472473 escola moderna 585 herança das instituições políticas por em Burke 626631 rejeição de Bentham 646 Lei não misturada 78 Lei positiva desprezo de Lutero pela 313314 e lei eterna 460 relações precedentes 461 e regulação dos direitos pessoais naturais 556 dever dos juizes de sustentar 561562 como fondamento das desigualdades da Idade Mé dia 699 Lei temporal distinta da lei eterna 168170 Lei volitiva 349 Lei e natureza 25 lei divina ou natural e lei hu mana 4 209 Tucídides sobre a impotência da 1516 discussão de Platão 6971 neces sidade da 7273 208210 como ditame do raciocínio correto 7475 natureza dupla da 78 como imitação mais próxima do governo divino 7778 discussão de Aristóteles 112 117122 126 131 distinção de S i s ti nho entre lei eterna e lei temporal 169171 sabedoria viva 197200 e governante supre mo 198199 e guerra no regime virtuoso de Alfarábi 200204 objetivos da 208210 212 e posição dos reis de Israel 217218 lei canônica e civil na sociedade cristã 227228 imperfeição da em Marsílio 257 ratificação popular da 259 de Deus 310311 usos da 310 natureza da 311312 do Estado 313314 análise de Hooker 322323 peri gos de fezer mudanças na 323 discussão de Grócio sobre a natureza e tipos de 349350 discussão de Montesquieu 445447 discus são de Rousseau 508509 e contrato social 512 discussão de Blackstone 559560 Burke sobre a fonte da 623627 visão utilitarista de Bentham 636649 as concessões Insuficien tes de Marx à 735 Ver também Lei canônica Lei humana Lei da natureza Lei natural Leibniz Gottfried Wilhelm 387 779 803 Leis divinas racionais 221 Leis do comércio 629 Í n d ic e 8 6 1 Leis racionais introdução no Estado modemo 664 Leis suntuárias como método de manter a virtude 463 Liberalismo e Platão 80 e Aristóteles 126 Hobbes como fundador do 360 e Burke 615633 in fluénda de Bentham sobre 641642 e ameri canismo 804 Strauss sobre 814 833841 Liberdade de associação como meio para neutrali zar os efeitos da centralização 693 Liberdade de expressão discussão de J S Mill 714715 Liberdade de expressão na democracia de Spinoza 412421424 Liberdade de filosofia como condição para a pre servação da democracia 412 como princípio da democracia conservadora 419 Liberdade de imprensa 405 672673692 Liberdade objetiva significado de Hel 659 661 Liberdade política discussão de Montesquieu 467470 Liberdade relosa 424 Liberdade religiosa defesa de Marsílio 261 Liberdade subjetiva progresso para a universalida de 663 Libeidade subjetiva significado de Hegel 659 661 Libeidade como característica da cidade em Aris tóteles 123124 como primeiro princípio da democracia de Alfiuábi 204 definição meta fisica de Spinoza 410 416 como tema das obras de Locke 427 realização da no Estado modemo 661 inseparabilidade da moral 697 e o niilismo em H eider 798 803 Liberdade ideia de Milton 404 406 como per feição da sociedade civil 495 definição de Smith 582 visão de Burke 614615 625 629632 teoria de J S Mill 712716 Libertarianismo 614 Uceu 109 Ucófbro 126 Ucurgo 152402 Linguagem uso do termo por Heidger 797 805 808 Literatura política islâmica 190 Lívio Tito 174272283 Livte empresa defesa da por Smith 566 579583 Liviearbítrio visão de Agostinho 172 visão de Descartes 387 do homem de Rousseau 505 Locke John 427458 conceito de autopreser vação 269 e estado de natureza 428433 discussão de propriedade 436445 transição do estado de natuieza para a sociedade civil 436445728729 aumento como tema cen trai dos ensinamentos políticos 443445 visão da natuieza limitada do poder político 447 doutrina do govemo da maioria 448 450 sobre sociedade conjugal 448 sobre separação de poderes 457459 e estabeleci mento de sociedades livres 473 e libeidade de consciência 477 e ensinamentos políticos de Hume 497 ensinamentos da lei natural 497498 570571 visão de homem natural 504505 finalidade da sociedade dvil 506 507 indispensabilidade da paz para a vida e a propriedade 522 direito de autodefesa 556 558 poder de remover a legislatura 557559 mudanças feitas por Adam Smith na tradição lockiana 566567 preparação para o capi talismo 572 significado de libeidade 581 teoria contratual 674 e realização da ordem ideal 822823 mendonado 486 488 577 585618629642661721722786791 Lógica Husserl sobre os fundamentos da 783 Lógos conceito de Husserl 784 Vir também Ra zão Lourenço S 243 Lucrécio 340 Lucro explicação de Marx 728729 732 Luta de classes em pequenas repúblicas 603604 como madça contradição na ordem de pro dução 726 e vitória do proletariado 727 Luta pelo reconhecimento como inído dos Esta dos 657 Lutero Martinho 285318 passim repúdio da Igreja Aristotélica 247 temperamento e modo de expressão 286 visão do homem 286287 298299 base da teologia da po iítica 286300 e autoridade das Escrituras 287290 300 discussão da razão 288 os dois reinos 291298 ddadania dupla do ho mem 291 relação dos dois reinos 291293 Igreja e Estado 293296 teologia e política 296298 autoridade e seus limites 300309 Estado como servo de Deus 300301 fôrmas 862 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y de governo 302304 os poderes mais ele vados 304307 tolerância 308309 lei de Deus 310311 lei da natureza 311313 lei do Estado 313314 política como vocação 314352 o homem e sua vocação 314316 julgamento de Deus 316317 o herói 317 318 negação da autoridade papal 326 M Macaulay Thomas Babington 701 702 Macedônia 15 Madison James 587588 594 653 Magnanimidade como hábito de reivindicar ele vadas honras para si mesmo 267 283 como vinude moral abraiente de Aristóteles 388 Magnificência 116 Maimônides Moisés 207224 objetos e caráter da lei 208213 discussão de profecia 213 218 sobre monarquia em Israel 218220 era messiânica 219221 leis racionais e re veladas 221 status das virtudes morais 222 ocultação das verdades filosóficas da multi dão 227 sobre escritos exotéricos de Platão 819820 mencionado 189421 826 Maior força governo da por Locke 448450 Maioria tirania da 682683 687691 693694 711712776 Maiorias populares opressão pelas 596 598 602 603 Maisvalia 732 733734 Mal moral como impedimento para a aquisição de ciência 229 Mandamentos racionais 221 Maniqueus 163 309 Mão invisível noção de Smith 575576 580 Maomé 188 190 193 197 Maquiavel Nicolau 267284 critica da tradição clássica 166 repúdio tanto de Aristóteles como da Igreja 246 defesa da política da conveniência 268 instrução de príncipes 270271 uso da virtude e do vício pelos príncipes 272 fundação de um novo Estado 273 275 280 meios de alçarse a uma posi ção elevada 273276 redescoberta de antigos modos e ordens 275276 estabelecimento da autoridade de Roma 276 sobre a religião romana 276278 razões para a grandeza de Roma 278 renovação de Roma após a der rota pelos gauleses 278 reformas franciscana e dominicana da Igreja 278279 renovação de repúblicas 279280 corrupção dos jovens 280281 destruição de lembranças dos tem pos 281282 estimativa do tempo de vida do cristianismo 281282 e Xenofonte 283 comparado aos sofistas 283284 uso da reli gião para conquistar fins políticos 325 visões imperialistas 334335 464465 e Bacon 329332 336 como precursor de Hobbes 355356 e Descartes 378 382 392393 e Spinoza 409411 425 e conquista dos li mites do homem 472473 e Rousseau 509 máximas da prudência política 530 repúdio das promessas do soberano 531 e Burke 619 624 628629 632 e moderna filosofia política 821823 mencionado 85137265 342343475 661662 695696 834 Máquinas poUücas necessidade de teforma 771 772 Máquinas e formação de população de desempre gados 732 Marcelino 163 Marco Aurélio 272 276 Mário 371 Marlborough John Spencer Churchill duque de 578 Marsílio de Pádua 249266 n ção da lei natu ral 223 264265 finalidade da comunidade 250 e Aristóteles 250266 passim conceito de seita 251 conceito racional de sacerdó cio 251 252 doutrina do lislador humano 253257 261 doutrina da monarquia 257 258 visáo de aristocracia 258259 mencio nado 293 303 Marx Karl 717740 estabelecimento da ordem social justa pelos proletários 269 visão do potencial do capitalismo para autodestrui ção 586 materialismo dialético 718724 visão do homem como ser de espécie 722 723 reconstrução da história 726727 crí tica da produção capitalista 728734 visão do mundo comunista 735736 decadência do Estado 737738 predição do desapareci mento da religião 738 crítica de Nietzsche 758 avaliação de Dewey 761 e realização da ordem ideal 824 mencionado 33 60 268 517 571581629779 809 Í n d ic e 863 Mandsmo e Aristóteles 128 descrição do 717 718 criticado por Nietzsche 759 crítica de Heideer 804805 810 controvérsia com a democracia liberal 839840 Matemática como ciência teórica para Aristóte les 110 visáo de Descartes 378379 381 como modelo para nova razáo 411 uso do método no estudo dos fenômenos políticos 413414 Husserl sobre o fundamento da 783 792793 Matéria de fàto e relaçáo de causa e efeito xxx juramentos sobre 481483 490 Materialismo dialético 717724 Ver também Matx Karl Materialismo baconiano 329 hobbesiano 376 n 3 característico de regimes democráticos 685687 uso da religião no controle do 697 698 marxista 718723 Média 84869394 Médici Lourenço de 272273283 Medicina visáo de Descartes visão sobre a 384 Mediocridade tendência para a democracia 684 687 690694 Medo como a paixão mais poderosa 358360 362 como causa da fundação de governos 364 366 como instrumento para a preserva ção do homem 573574 Medos 317 Meios de produção 719722 727 731 Meiotermo e virtude 115 238239 Meios 1317 26 Mente absoluta introdução pelo Estado 656 Mente livre como principio do protestantismo 662663 Mente subjetiva conceito de Hegel 656 Mentiras defesa dos Pais da Igreja 164 denúncia por S Agostinho 164 Mercadoria commotüty definição de Marx 731 Mérito como atributo da paixão por trás da ação 567568 como qualidade ausente na justiça 570571 elemento do ato vinuoso 572573 Messene 352 Messias 218220 375 Metafísica científica de Spinoza 410411 Metafísica como ciência teórica para Aristóteles 110 como primeira filosofia de Aquino 229 visão de Descartes 378 rejeição marxista da 724 Husserl sobre o estudo científico da in tencionalidade como 784 Heidegger sobre o niilismo na 795796 H eider sobre a des truição da 800801 804 810 Método físico de J S Mill 702 Método histórico de J S MUI 702 Método analítico da filosofia 356 Método científico apoio de Bacon 332 como principal instrumento para a solução de pro blemas sociais 763767 e filosofia política moderna 822 não neutralidade do 838 Ver também Descartes Método compositivo da filosofia 356 Método dedutivo uso de Bentham e MUI na ciên cia política 701 Método resolutivo da filosofia 356 Método argumento de Descartes em fàvor do 219222 Métodos de ensino uso do diálogo por Cícero 144145 Método da inteligência 763768 770 Método geométrico de J S MiU 702 Método químico de J S Mill 702 Moral provisória 333 Micálessos 15 MUI James 649654 701702 sobre formas tra dicionais de governo 650651 análise do poder 651652 sobre o ideal de governo re presentativo 651654 MUI John Stuart 701716 método em filosofia política 701702 filosofia da história 703 705 considerações morais 705707 fim do Estado 707708 aimento em fevor do governo representativo 708709 análise do governo representativo 709712 teoria de liberdade 712716 mencionado 642649 MUton John 394408 e causa do governo cons titucional 395 mudança na opinião das pes soas comuns 396397 mudanças na visão de monarquia 397398 visão de soberania popular 396397 fonte do poder político de cisivo no Estado misto 398400 instituições na comunidade livre 401404 salvaguardas dos interesses do povo 400401 reforma reli giosa 403404 relação entre Igreja e Estado 403404 ideia de liberdade 404407 Mishné Torá 17 Mitilene 20 2628 864 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Modernidade análise de Heider 803805 Modos de produção descrição de Marx 719 e uso do dinheiro 719 controle dos meios de produção 720 fimentação e conflito entre os homens 722 como causa do desenrolar do processo dialético 726 resultados de mu danças 726727 e problema da variação do trabalho 733 Moisés 211213 216219 298 312 374 424 513 Monarquia absoluta como melhor dos rmes justos 232 James Mill sobre 651 Vír tam bém Monarquia Monarquia constitucional modelo de Hegel 668 669 Ver também Monarquia Monarquia eletiva versus monarquia hereditária 257258 Monarquia discussão de Platão 656769 Aristó teles sobre 124125 128 131 como melhor forma de governo para Cícero 150 153 ver dadeira monarquia 153 e guerra na filosofia judaica medieval 218 relação com a lei 218 como instituição em Israel 219 doutrina de Marsílio 257258 Monarquia e tirania 69 como ingrediente do re gime misto 76 233 aplicação das leis 77 na Pérsia de Xenofonte 84 Aristóteles sobre 118 na filosofia judaica medieval 218219 melhor regime 232 doutrina de Marsílio 257258 atgumento de Lutero em fitvor da 302303 preferência de Hooker pela 325 326 posse do poder supremo na 351352 visão de Hobbes 367369 412 designação do soberano 368369 problema da sucessão 370 mudanças na visão de Milton 397398 discussão de Montesquieu 466467 visão de Hume 495 visáo de Rousseau 515 discus são de Blackstone 563565 visão de Paine 609610 como estabelecimento em Burke 624626 Ver também Monarquia absoluta Monarquia constitucional Monk General George 402 Monoteísmo e problema da religião dvil 175178 Montesquieu Charles Secondat Barão de 459 478 obejtlvos da filosofia 460 sobre leis 460461 sobre formas de governo 462467 sobre liberdade política 467470 sobre na tuieza 471473 sobre comércio 474476 sobre religião 476477 e Blackstone 557 teoria dos países pequenos e republicanismo 591 e Burke 620626 virtude como base para a fundação de repúblicas 668 Moral do escravo 747748 Moral do rebanho 747 Moral do senhor 747 Moral natural paradoxo da 574 Moral pública evolução do autointeresse individu al 694696 Moral sacerdotal 748 Moral depredação por Hobbes 269 discussão de Hume 484491 e estabeledmento do Estado 508 liberdade do homem como úni ca fonte da 509 anterioridade e substânda da 525 reabilitação de Smith 485 relação com a política 531 578579 da prudência em Burke 619 como moderação em Burke 622 realização através das instituições do Es tado 655656 inseparabilidade da religião 697699 formas de por Nietzsche 748 Moral elemento essendal no estabeledmento do Estado moderno 664 Moralidade cristã discussão de Nietzsche 751 More Henry 388 Morte violenta medo da como paixão fundamen tal ativada pelo conflito entre os homens 658 Morte e experiência de Ser em Heidcer 799800 809 Movimento lei do como lei que governa a nature za a história humana e o pensamento 725 Muçulmanos 189 193 Mudança histórica padrão de 703 Mudança política causas da 75 Mudança na ordem sodal Burke sobre 628 como fátor que afèta todas as coisas 724725 Mudanças tecnolócas caiga sobre os assalaria dos 732733 Mundo da vida 781 789793 Münzer Thomas 308 Mussolini Benito 759 MutakallimUn teólogos muçulmanos dialéticos 222 Multiplicidade de fecções como resposta ao pro blema das maiorias opressoras 597 N Naamã 317 Í n d ic e 8 6 5 Nacionalismo visâo de Nietzsche 752 Nações germânicas e entendimento da liberdade do homem 662 Nações distinções de Alferábi entre 202204 dis cussão de Montesquieu dos Estados Gerais 474475 e exercício da justiça 503 Namier Sir Lewis 614 Naturalismo Husserl sobre erro do 783 Natureza humana como tema em Tucídides 15 2829 discussão de Aristóteles 112 114 125 visão de Spinoza 410 415 entendi mento de Smith 567 visão de Rousseau da maleabilidade da 586 visão de Bentham 642 visão de Marx 739 essência do homem versus para Husserl 782 SernoMundo de Heider 798800 Ver também Homem Natureza ciência da 524 Natureza conquista da Bacon 328330 334 336337 341 344 Hobbes 360 Descartes 377 382384738 Natureza emenda da doutrina da 739 Natureza como entendida pelos filósofos gros 23 e convenção 35 e lel 35 visão socrá tica de 5 justiça pela em Aristóteles 118 como completa e intrinsecamente perfeita 228 lei da 312313 Hobbes e a teoria do Estado de 357364 372 discussão de Mon tesquieu 471473 como estado de guerra 541542 entendimento de Smith 567568 moral e razão como meio de atingir os fins da 576578 e meio de autopreservação do homem 577 relação para com a razão 582 reconciliação com os deveres da virtude mo ral 585 herança por em Burke 625631 cultura como petfoição da 747 conceito de Husserl 780786 789790 subjugação da em Heider 803 ciência como conquista da 813 e princípio da utilidade 643645 Ver também Lei da natureza Lei natural Es tado de natureza Nazismo e Heidegger 795 801802 804805 809810 mencionado 814 Necessidade 103112 Nectário 163 Nerva 276 Newton Isaac 791 Nícias 22 2324 Nietzsche Friedrich 741760 crítica de Hegel 742746 usos e abusos da história 743745 morais 747 denúncia do cristianismo 747 748 750751 alegação de que Deus está morto 749753 795 e niilismo 752 796 797 doutrina da vontade de poder 754757 doutrina do etemo retorno 757 e super homem 757758 crítica do marxismo 759 conceito de Ser 807809 e realização da or dem ideal 824 e crise da modernidade 824 sobre o dogmatismo do racionalismo 826 e marxismo 839 mencionado 318 633 779 780787 834 Niilismo e Nietzsche 753 759 e Dewey 768 Husserl sobre 781 Heideer sobte 795811 Noé 211 212 Nominalistas 288 322 Nomos 210 216 218425 Nova Atlântida New Atlantis melhor comuni dade de Bacon 328329 como causa final 337343 discussão de xxx obra elogiada por Descartes 377 Novo Testamento 256257 259262 288 311 326 Nulibismo 388 Nullum TempusAct 628 O Obediência doutrina dos reformadores 304307 Objetificaçáo 803 Objetividade da matemática e da lógica Husserl sobre 783 Obrigação de contratos prejuízo a 605 Obrigação moral fontes da 699 Occam William de 288 293 304 Oligarquia características da 57 58 59 hierar quia entre regimes incorretos 70 e aplicação das leis 77 dificuldade de fezer mudanças na 78 Aristóteles sobre 127130 132135 como contrapartida depravada da aristocra cia 150 367 como oposta ao r m e virtuo so 193 Burke sobre 621 James Mill sobre 651 visão socrática da 833 Opinião pública limites sobte 661 descrição he geliana da 672673 igualação de Nietzsche à preguiça particular 749 na democracia libe ral 835 Ver também Opinião Opinião como elemento da sociedade 381 visão de Aristóteles 631632 como fimdamento 8 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y para a filosofia em Husserl 792793 visâo de Strauss 816 840 Ver tambim Opinião pública Orco Ramiro de 271 Ordem civil discussão de Crócio 350351 Ordem política necessidade de síntese com o prin cípio revolucionário 659661 Ordem social visáo de Bentham das mudanças na 638642 Ver tambim Reforma Orfèu mito de interpretado por Bacon 343 Oianismo como metáibra da descrição do Esta do 657 Orgulho como causa de discórdia entre os ho mens 358360362 Orígenes 164 Orósio 186 Osíris 340342 Ostracismo 130131 Pactos importância da fidelidade aos 361 Paine Ihomas 606612 teoria da sociedade e go vemo 606612 leis da natureza 606 dou trina da harmonia natural entre os interesses individuais 607611 e teoria do pacto social 609 propostas para o bemestar social 611 612 e crescimento do governo 737 Pais da Igreja 164 225 227 321 Paixões primárias virtudes liadas às 236237 Paixões secundárias virmdes ldas às 236237 Paixóes Aristóteles sobre 114131141comobase dos ensinamentos políticos racionais 269 ob jeto das 357 como íbtça mais poderosa no homem 356358416567568576577 vi são de Descartes 379380 387389 meios de tular 410 necessidade do estudo das 413 transformação em servas da tazão 418 como fimdamento da moral 488489 e esqueci mento do Ser em Heider 796 Palestina 221 Panteia 96 105 Papa Ver Plenitude do poder papal doutrina Parábolas significados internos e externos 215 Paraíso crítica de Bacon da visão aristotélica 328 Parceria conceito de Aristóteles 123126 Parlamento 670 710711 Ver também Câmara dos Comuns Câmara dos Lordes ParUments 465 Particularidade princípio de Hel 659660661 665667668 Partido Burke sobre 616631633 Pathos da distância 746 Patriarcas 217 Patrimônio natural significado de Smith 571 Patriotismo e justiça na República de Platão 34 35 e Aristóteles 114 reforçado pelo cristia nismo 183185 e panidarismo em Burke 631632 definição de Hel 668 como pro duto da busca pelo autointeresse 696 Paulo S 178 254 260 287 Paz de Nícias 14 Paz como finalidade da autoridade política 232 522 condição para o bem político em Mar sílio 252 dependência do poder absoluto do soberano 373 definição de Locke 431 indispensabilidade pata a vida e a proprieda de 522 discussão de Kant da paz perpétua 541548675 Pecado e redenção visões luterana e calvinista 287 Pecado original 167 536 Pedro de Auveigne 247 Pedro S 305 Peliianos 163 Pentateuco 207 Percepções definição de Hume 479 Períêctibilidade do corpo e da alma 209210 do homem 503 505 Perfeição moral como precondição para a profe cia 214 Perfeição fundamentos de Descartes 380 Péricles 1113182230 834 Persas 317 Peisuição relosa durante a Idade Média 182 Perseu mito de 342 Pérsia Império da 82 8495105 Philosophes 391620635636638 Piedade definição de Spinoza 422 Pierson G L 594 Pitágoras 394 Pitt William 613 Platão 3181 sobre justiça 3249 5556 6263 A República 3263 sobre comunismo 33 35 4549 66 78 a cidade justa 3942 44 Í n d ic e 867 4951 53 56 57 61 e a democtada liberal 45 79 coincidência entre filosofia e poder político 5254 270 tipos de regime 5760 crítica da democracia 5860 sobre poesia 6062 o político 6372 sobre a ane ou o conhecimento peculiar ao político 6466 definição de filosofia 7172 Leis 7281 Xe nofonte comparado a 8285 92 99 como aluno de Sócrates 97 Aristóteles comparado a 110112117135 Aristóteles sobre filoso fia polítíca de 122 124 129130 140141 busca pelo melhor regime 161 nobre men tira 152 impossibilidade do rm e perfeito 156 visão de S ostinho 164165 conhe cimento da verdade sobre Deus 178 resumo de Leis por Alfarábi 197 influência sobre o pensamento político muçulmano 226228 rejeiçáo de Descanes da filosofia de 378 e r m e misto 395 visão de monarquia 398 e Rousseau 502 e distribuição de funções na sociedade política 577 cndca de Bentham 614614 645646 Husserl comparado a 782783793 H eider sobre o conceito de Ser 797798 806807 história política nos escritos de 816 Strauss e influência de 819 821 825833 mencionado 109 142 144 150188190193200204223251265 341352355360372394402407415 464625661662664672747795 Platéia 14 Plenitude do poder papal doutrina 250253258 Pletão Joige Gemisto 282 Pluralismo fimdamento para a teoria política fbr mal de Dewey 770772 Plutarco 277 282 355 372 588 Pobreza propostas de Paine para abolição da 611 Poder civil discussão de Grócio 349350 sepa ração do poder espiritual 372 descrição de Paine 608 Poder de polícia como primeiro direito do sobe rano 364 Poder humano concepção cientifica de Spinoza 410411 sociedade como incremento do 411 Poder legislativo como direito do soberano 365 discussão de Montesquieu 468469 Poder naval visão de Bacon 336 Poder político coincidência com a filosofia na criação de boas cidades 5256 64 271 in vestido pelos cidadãos no govemo 324325 definição de Locke 428 Poder supremo natuteza e lócus do 351352 Poden transferência de informação da socieda de política 446 natureza limitada do 447 análise de James Mill 651652 Vh também Vontade de poder Poderes do governo análise de Aristóteles 468 Poesia instrumental 62 Poesia crítica de Sócrates 6062 trágica 141 Poletariado crescimento e triunfo do 727 Políbio 150152 394395399402 Polamia no estado de natureza 471 Polis perfeição da 5 análise de Aristóteles 112 116 118119 123127 137 experiência do Ser na 806 e Strauss 834 Ver também Ci dades Politeia ou regime Platão 57 Ver também Re gimes PoUteísmo 178 PoUtica externa do melhor regime em Aristóteles 138139 Política Sócrates como professor de em Xeno fonte 96104 e Xenofonte 104108 como modo devida em Aristóteles 113125138 141 base da teologia 286290 e teologia 296298 como vocação 314318 discussão de Bacon 344 visão de Hume sobre 496 498 relação com a moral 578579 e apri moramento do sistema de governo dvil total mente popular 595599 rejeição de Budte da teoria 615618 Burke sobre a necessidade de preconceito para a 631 e Heider 795 797 802 808810 PoUtico o Platão 6372 Político chamado divino do 314 Político discussão de Platão 6466 concdto de Aristótdes 121123 631 discussão de Pla tão 832 e democracia para Sttauss 834 Pompeia 371 Positivismo critica de Husserl 779 782789 Americanismo como 804805 Positivismo legal 35 Potideia 911 Povo direito de resistir à tirania 452455 Prazer ensinamentos platônicos 7376 Aristóte les sobre vida de 113115 como motivo para 8 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y a açáo 484 488 e dor no utilitarismo 635 636643649650 Prazeres distinções por J S Mill 705706 Preconceito aprovação de Burke 617 630633 ataque de Bentham 637642 Prerrogativa real 564 Prescrição doutrina de Burke 627630 Presidente veto e outros poderes 599 Présocráticos e Sócrates 101 103104 conceito de Ser 805808 809810 e fílosofia política 828831 Primeira causa 176 Primeira Cruzada 343 Primeira Guerra Mundial 796 Príncipes instrução dos 270272 273 como fundadores de um novo Estado 272 280 julgamentos de Deus sobre 316317 no es tado de natureza 429 âmbito do arbítrio dos 451452 perda do poder político 454455 divino 455456 Princípio da maior felicidade prova indutiva da 705706 Ver também Utilitarismo Princípios revolucionários e necessidade de ordem política 659662 Probidade como forma de virtude na sociedade moderna 667 Problemas sociais aplicação do método científico a 763767 Probo 352 Processo histórico 742 744 746 Produção consciente como marca singular da hu manidade 718 Produção condições de efeito sobre distribuição de renda e consumo da produção 719 de pendência de teorias sobre a 720721 Produção primazia da 718 modos de de Marx 719 meios de 719722 reorganização como condição para traduçáo da vida humana 727 males que resultam da separação do consumo 762763 Profecia natureza da 196 no governante supre mo do regime virtuoso 198200 de Moisés e outros profetas hebreus 211 visão judaica da 212351 definição de 213 precondições para 213214 função política da 215216 visão de Abravanel 219 Profeta legislador e filósofo rei 193197 Profeta como tipo mais elevado de homem 213 214 fimção do 214216 218219 Progresso sodal como desejável mas não inevi tável 703704 causas do 704705 e busca do prazer superior 706 como finalidade do governo 791 fàses do 707708 teoria de J S Mill 712713 como verdadeira finalidade da filosofia 761 e aplicação do método da inteligência 763767 Progresso ideia de 392933 como decadência 752 visão de Bentham 640 ideia de 815 816 818 Ver também Progresso social Promessas invenção das 492493 Propriedade direito de origem do 563 como direito absoluto dos indivíduos 555556 universalidade da 666 determinação pelas condições de produção 720 Propriedade menção de Sócrates da abolição da 33 discussão de Grócio da origem e tipos de 353 aquisição no estado de natureza 437 438 446 discussão de Locke 436445 ori gem da 438443 transferência por consenti mento 492 causa da formação da sociedade civil 506 como raiz do poder na sociedade civil 517 divisóes resultantes da 604 pro teção da 605 690691 princípio de Burke 625 627628 como causa da fiagmentação e conflito entre os homens 722 Proprietários de terras declínio do poder 583 pa pel na sociedade civil de Hegel 671 direitos de propriedade sob o feudalismo 719 Protestantes franceses 307 Ver também Hugue notes Protestantismo visáo de Hegel 663664 Prudência conceito de Aristóteles 110111 120 121 128 141 618 conceito de Burke 618 621 627629 632633 conceito de James Mill 653 Prudêncio 186 Prússia introdução do princípio racional 664 Psicologia aristotélica 194 Psicologia mencionada por Aristóteles 110111 Psicologismo crítica de Husserl 779 782786 Psique conceito de Husserl 783 Publicidade exigida pelo direito público 530531 Publícola Publius Valerius 588 Públio 588605 passim Pufendorf Samuel 346 Í n d ic e 8 6 9 Punição conceito de Eientham 642648 Puritanos 319 321 323324 Qualidades vinuosas classificação de Hume 487 Queda VerfaUen 799 Queda do homem 288 298 312 322325 332 334384406 Quianos 16 Quinta essência negação de Bacon 328329 Racionalidade Razão Racionalismo tradição socrática de 825826 Strauss sobre o genuíno 840 Razão humana apieensão das leis naturais da socie dade e do governo 606 Ikr também Razão Razão natural ensinamentos políticos da 422 Razão prática elaboração de Kant 520521 pri mazia da 523524 estabelece diplomacia pública 531 Razão Aristóteles sobre 114115 125 imposta como meio de adquirir conhecimento huma no 162 discussão de Lutero 288 como base da atividade política 297 corrupção da 298 299 depreciação pelos suidotes de Calvino 319 e regras pata a vida pacífica 359 visão cartesiana 381 389 concepção de Spinoza 411 e fimdação do Estado 416418 concor dância e revelação 422 como lei da natureza 429 e paixão do desejo de autopreservação 457458 como serva da pabcão 484485 distinta do gosto 489 causa das virtudes ar tificiais 494 e o homem primitivo de Rous seau 504 e restrições da natureza 582 e preconceito em Burke 630 visão de H l sobre astúcia da 657 como simples fenô menos superficiais 755 na fenomenologia de Husserl 779793 e o niilismo em Heideg ger 796 concordância com a revelação 815 Realismo de Maquiavel 355 e Husserl 784 Reciprocidade importância para a moral 528 como fimdamento do Estado 658 Reconhecimento batalha do homem pelo 657 658 Reíbrma 249285286662663677 Refiirma pública e privada 382384 visáo de Ben tham 638642 visão de James Mill 650653 Reformadores Ver Calvino João Lutero Marti nho R m e básico 193 Rime de necessidade 193 Regime indispensável 193 Regimes equivocados 192 201 Regimes orantes 192 201 203 Regimes imorais 192 Rm es mistos iiredientes da mistura adequada 76 conceito de Aristóteles 133 ensinamen tos de Cícero sobre 153 na filosofia judaica medieval 219 como melhor regime 233 re jeição de Hobbes 369370 fonte do poder político decisivo no Estado misto de Milton 398 salvtuardas dos interesses do povo 400401 divisão da autoridade legislativa na república romana 598 ideia de Burke 624 na tradição socrática 833 Ver também Cons tituição mista Regimes Regimes perversos 192 Regimes virtuosos conceito de Alfarábi 190193 conceito de Alfarábi do melhor governante 196197 grupos componentes 197198 e substitutos para a lislação profética 199 200 dependência da sabedoria ou filosofia 197198 uso da compulsão interna 197 198 e guerta 200202 fimção da leligião nos 204 e democracia 200202 Regimes variedades de por Platão 5758 cau sas de mudança nos 75 regimes mistos 76 150154 233 discussão de Xenofbnte 9293 análise de Aristóteles 118 122123 126141 464465 melhor regime 148154 232233 270 catacterfcticas essenciais da comunidade 149 fbrmas simples de gover no 149 república romana antiga 151154 impossibilidade do regime perfeito 156 islã e melhor r m e de Platão 188192 regime virtuoso de Alfiirábi 190193 classificação de Alfarábi 192193 Aquino sobre o melhor 232233 realização do melhor em Maquia vel 270 boas e más comunidades 367 con ceito de Spinoza do melhor 414 classificação de Montesquieu 464465 discussão de Rous seau 513514 democracia representativa de 0 Federalista 593595 análise présocrática 870 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y dos 828830 análise socrática dos melhores 831833 como categoria de análise básica no conceito de Strauss de ciência política 837 838 Vir também Governo Regimes mistos Autoridade política República Platáo Regi mes virtuosos Regulamentação política das associações 769770 Rei como aproximação do divino pastor 70 Reifilósofo conhecimento exigido do 64 Platâo sobre 140141 646 em Cícero 154 e pro feta legislador 193194 Rei Messias 220 Reino características do 57 Reino dos fins 528529 Relação como fetor que afeta todas as coisas 724 Relativismo Montesquieu 461462 e Hume 489 H eidçr sobre 796 804 Strauss so bre 813815 818 836837 Religião luterana 663 Relão romana abordagem de Maquiavel 276 278 Religião como conjunto de representações ima ginativas da verdade 195 fimção no regime virtuoso 204 visâo de Hooker 325 defini ção de Hobbes 365 tentativas de modificar alegações da 411 discussão de Spinoza 414 416 421424 discussão de Montesquieu 476478 na sociedade civil de Rousseau 513 Burke sobre a necessidade da 615626 James Mill sobre a 653 Estado como fonte da 656 como diteito natuial 662 importância no Estado racional 663 e política da servitude 663 abordagem de Tocqueville 697699 de saparecimento no Estado marxista 738739 guerra com a filosofia 739 preserwição pela aristocracia 750 e o niilismo em H eíder 807808 e a questão judaica 815816 Reníusa em Nova Atlântida New Atlantis de Ba con 339 Reparação de danos direito de 560 Representação pessoal esquema de Hare para 711 712 Representação nas repúblicas 593595 fidta de nos antigos regimes 595 efeito sobie o bem público 600 na monarquia constitucional de Hegel 668 doutrina de Dewey 775 República Platão natuteza da justiça 3147 49 51 56 62 e comunismo 3334 4649 ata que sobre justiça 3739 fimdação da boa dda de 39424446 possibilidade da cidade justa 4951525563 e doutrinadas ideias 4951 filosofia e poder político 5253 cidade injusta e homem injusto 5657 tipos de reme 57 60 crítica da democtada 5860 e poesia 60 62 comparada à Ciropédia de Xenofonte 92 e Aristóteles 117 123 126 140141 e Hei dger 809810 limitações da política 832 rime como prisãocavema 838 República modelo de Paine 610611 Republicanismo conformidade da Constituição dos EUA aos prindpios do 590591 em países pe quenos 591 em países grandes 591592 Repúblicas indispensabilidade da religião 282 ex pansão e colapso das 465 e supressão da guer la 545546 e democracia pura 592595 Resistência conflito entre Calvino e seus sucesso res acerca da busca da 320 e preservação da sodedade 452455 Resolução visão de Descartes 387 Ressentimento como base para punição da injus tiça 571 Retórica 121 Revelação bíblica tentativas dos Pais da Igreja de reconciliála com os ensinamentos da filosofia clássica 161162 164165 Ver também Sa gradas Escrituras Revelação Apocalipse Revelação divina Ver Revelação Apocabpse Revelação impõe o uso da razão paia adquirir conhecimento humano 162 fimção com plementar da filosofia 162 164 objetos da 214215 e estabeledmento de leis racionais e reveladas 221 e razão na visão de Lutero 288 concordância com a razão 422 conflito entre razão e 815 Revisão judidal 599 Revolta distinta da revolução 453 Ver também Revolução Revolução Americana 612633 Revolução francesa 660661 662 Paine sobre 611612 Burke sobre 613626 passim 632 Hegel sobre 660 Nietzsche sobre 752 759 Revolução Aristóteles sobie 134 dever de em John Knox 320 direito de em Gródo 351 em Spinoza 417 em Locke 451452 em Hume 494 Burke sobre 616622623628 Ver também Revolução Americana Revolução Francesa Í n d ic e 871 Ricardo David 729730 Riqueza aristotélica 114117129130132134 136137 trabalho como fonte de em James Mill 650 como fonte de heterogeneidade na democracia 689 Roma introdução da filosofia em 143 constitui ção mista 151 a republica 151154 e Rô mulo 152 polêmica contra Agostinho 173 175 queda de 182184 660 adoção do cris tianismo como religião oficial 182 contrasta da a Esparta 276 razões para a grandeza de 278 rejuvenescimento após a conquista pelos gauleses 278 divisão do poder supremo em 351353 destruição do governo popular 371 399 como modelo de sociedade livre 502 princípio de prescrição e lei de Burke 627 Romanistas tolerância de 308309 Rômulo 152154276 Roosevelt Franklin 813 Rousseau JeanJacques 500518 ataque sobre a sociedade civil 500501 584 visão do ho mem no estado de natureza 503506 sobera nia do contrato social 510 512 necessidade de leis na sociedade 512513 sobre legislado res 512513 discussão de regimes 513515 influência sobre política e doutrina moral de Kant 521522 529 532 535536 maleabi lidade da natureza humana 586 ataque de Burke 615 618 crítica de Bentham 647 homem natural e homem democrático de To cqueville 686 governo civil e imperfeição do homem 737 radicalização de Marx 737 e realização da ordem ideal 823 mencionado 253 582759 834 Rússia visão de Hegel 676 Saadia Gaon 221222 Sabine Geoige H 818 Sacerdócio cristão concepção de Marsílio 249 250 252 Sacerdócio ensinamentos de Aristóteles sobre 250252 conceito racional de Marsílio 251 252 poder da multidão de e l r e retirar do cargo 254 soberano como íbnte de autorida de para o 374 Sagradas Escrituras como íbnte dos ensinamentos luteranos e calvinistas 285 como total auto ridade em todas as coisas 319320 acomo dação de Spinoza às 415 mencionadas 286 288 295 296298 309310 372374 Ver também Bíblia SaintPierre Abade de 519 Saintsimonianos 703 Salomão 218254 Salvação como dádiva da graça divina 168 Samuel 374 Sansão 317 Saul 374 Schelling Friedrich Wilhelm Joseph von 803 Schopenhauer Arthur 760 Suridade social propostas de Paine para 611 Seita conceito de Marsílio 251 Sêneca 176 218 347 353 372 Senhon conflito com escravo anterior à fiirmação do Estado 658659 Sentimento político definição de Hegel 668 Sentimentos morais corrupção pela admiração da riqueza 573 Sentimentos correção dos 490 Separação de poderes enunciação de Locke 450 em Montesquieu como primeira exigência da libeidade 467469 do livre govemo 495 teste da Intimidade do governo 540 apoio de Blackstone à 559560 como salvsuardas dos direitos do povo 597601 visáo de He gel 668669 Ser Heidegger sobre 795811 esquecimento do 796801 803804 806808 805808 809 810 conceito présocrático de 805808 no racionalismo socrático 826 Sermão da Montanha 260 Sernomundo 799800 Severo 272 Shaftesbury Anthony Ashley Cooper Conde de 329 Sicília 91315 2026 Significado moral do niilismo 795 Símaco 182 Simpada significado de Hume 488 conceito de Smith 568569 572573 Síntese tomista ataque de Lutero à 288 Sionismo 814 Síracusa 24 8 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o i ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Sistema de indulgências 287 Sistema de júri 562 689 693 Sistema federal inadequação para a vida política da Europa 692 Smith Adam 566586 doutrina dos direitos naturais 569570 sobre justiça 570571 sobre sociabilidade natural do homem 570 572 sobre autopreservação 572 sobre atos virtuosos 572573 conquista dos fins da natureza 576577 filosofia moral 577579 sobre democracia 578 ciência da economia 579585 defesa da livre iniciativa 579583 crença em progresso natural das coisas em direção ao aperfeiçoamento 583 visão de civilização 584585 propostas para a educa ção 584586 importância do comércio para as nações civilizadas 603 exame de Ricardo da teoria do valor e salários 729 menciona do 535614615731 Soberania popular afirmação e retratação de Mar sílio da 256257 259 263 visóes luterana e calvinista de 215 280282 como adotada pelos seguidores de Calvino 320 visão de MUton 396397 versão de Kant 539540 crença de Paine na 609 e crescente centrali zação do governo 689 Soberania doutrina do legislador humano de Mar sílio 253257 nos assuntos da igreja 326 327 e libetdades de um súdito 368 visão de Paine 609 lócus no Estado de Hegel 669 Soberano distinção entre soberano e governo 253256 direito de exercer o poder de po lícia 364 e poder legislativo 365 e poder judiciário 365 poder absoluto do 365366 busca de vantagens particulares 367368 e o contrato social 369510512 como supremo intérprete da lei 371 fracasso em reivindicar poder suficiente 370372 pecaminosidade da desobediência ao 372 dever de educar os cidadãos 373 como fonte de autoridade de padres e profetas 374 determinação do inte resse geral 417 indivísibUidade do 512 Sociabilidade natural do homem Ciócio 347 Hobbes 357 Spinoza 410 416 422 Mon tesquieu 476 Rousseau 503504 Smith 571572 Burke 739 Sociabilidade política discussão de Smith 572 SociabUidade e vida política 829 Socialismo visáo de Marx 735736 Socialistas franceses 705 Sociedade burguesa como epítome da sociedade fiígmentada pela divisão em classes 721 Sociedade ciril definição 165 existência de co ação na propriedade privada escravidão e governo 167168 visão de Agostinho 175 178182 ataques por Sêneca 176 necessi dade de aperfeiçoar a natureza racional do homem 230231 melhor regime 232234 como sujeita à lei divina 234235 aplicabUi dade da lei natural à 243 limites sobre o ta manho da 362 pecaminosidade da desobedi ência ao soberano 371373 oposta ao estado de natureza 430 538 e presença do estado de guerra 431432 transição de estado de natureza 437446 transformação dos pode res naturais do homem em poderes políticos 446447 autopreservação como fundamento da 447 liberdade como aperfeiçoamento da 495 ataque de Rousseau à 500501 males da dominação pelas artes e ciências 501502 movimento do homem primitivo em direção a 504507 509 contrato para o estabeleci mento da 507510 538540 propriedade privada como raiz do poder 577 e necessida de da virtude 577578 conteúdo moral da 521522 origem da 559 e lei convencional e lei natural 563 distinta da fiunília 665 e criação de novas necessidades 665666 equi líbrio entre liberdade de comércio e controle pelo Estado 667 como tiés classes de Hegel 666667 assembléias das ordens de Hel 670 primazia do Estado sobre 674 conexão entre forma da sociedade e desenvolvimento da produção 692 supressão pela fraternidade universal do homem 723724 Sociedade conjugal discussão de Locke 448 Sociedade modema crítica de Nietzsche 749 Sociedade política lei namral da 447448 lei da maior força 448450 abotdigem de Blacks tone 556 distribuição de funções por Platão 577 hostilidade quanto à filosofia 738739 Sociedade primitiva descrição de Montesquieu 471 Sociedade efeito do Iluminismo na 390391 como aumento do poder individual 411 412 criada pela razão 422 impedimentos à Í n d ic e 873 490492 origem da 491 inclinação namral do homem pata a 607 papel do interesse co mum na 607 estados namral e transicional da 713 Vir também Sociedade civil Sòciates como fundador da filosofia política 34 sobre a justiça 31 47 crídca da democracia 3760 crítica da poesia 6062 nos escritos de Xenofbnte 8284 92 95108 acusa ção de cormpção contra 99104 e Cícero 145 conceito de virtude 267 considerado anarquista por Hobbes 268 e comando de homens 284 influência sobre Spinoza 410 Bentham comparado a 635637 646647 crítica de Nietzsche 747748 e Husserl 782 e busca do Ser 806 como influência sobre Strauss 825833 837 mencionado 1 2 123124188355407 810 816 Sofistas Xenofonte sobre 96 101 Aristóteles so bre 111 118 121 126 e Maquiavel 283 284 Sócrates comparado aos 828829 831 Sófocles4l Sólon 338463 Spinoza Baruch 409426 ataque sobre filósofos 269270 defesa da democracia 409 410 412 417418 424 425 e Maquiavel 409 411 definição de liberdade 410 metafisica científica 409411 e Hobbes 410412 vi são de difètenças naturais nos homens 412 e Substância 413 sobre religião 416421422 sobre liberdade de expressão 420421 regu lamentação da democracia 423424 sanção do soberano por repúdio de promessas 531 e Strauss 819 mencionado 827 Stevin 392 Strauss Leo 812841 razóes para voltarse para a história da filosofia política 812817 sobre a conduta da história da filosofia política 817 822 e filosofia política modema 822825 filosofia política antiga e medieval 825833 ensinamentos políticos 833841 Suárez Francisco 346 Subjetívidade da modernidade 803804 Substância 409411412418419 Sucessão problema na monarquia 370 Sucesso político conceito judaico medieval 220 Sufiio masculino universal 593 690 Sufiío 399400 593 597 Summa Theolo 226 237 239 247 Superhomem projeto de Nietzsche para o futuro do homem 757758 Supremacia do legislativo doutrina de Locke 450 Swift Jonathan 620 Tácito 269 Tarquínio 154 Tebas 14 Tecnologia e niilismo em Heideer 796 803 805 809 Telos 778782787790791793 Temístocles 317 Tempo e Ser em Heider 797798 800 804 808809 Teocracia visão socrática da 833 Teodósio 182 Teodota 96 T e o lí cristã de Hobbes 374376 Teologia mítica 175177 Teologia natural 175177 Teologia como ciência teórica para Aristóteles 110 e política 296298 visão de Descartes 379 e racionalismo socrático 827 Teoria do valortrabalho 728729734 Teoria dos princípios e das operaçóes do entendi mento de Hume 479484 Teoria êtica de J S MiU 705706 Teorias dependência das condições de produção 720721 Timocracia 5758 74 193 Tirania medo ateniense da 122229 caracterísd cas da 57 60 aplicação das leis 7778 como conttaparre corrompida da monarquia 68 150 153 367 397 hierarquia entre regimes incorretos 70 Aristóteles sobre 128 133 134 138139 oposta a icgime virtuoso 193 guerra como fim supremo da 201 e o papel da lelão 203 direito de resistir à 452455 Burke sobre a república ftancesa como 625 da maioria 653 776 835 compatibilidade com a democtada 682683 688691 709 Tiranicídio legalidade do 372 Tiro 317 Tirsan festa do na Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 339 874 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Tocqueville Alexis de 681700 comparado a Burke 613 620621 633 discussão da con dição social 681682 compatibilidade en tre democracia e tirania 682683 687691 caráter dos regimes democráticos 684691 problema da democracia 684687691 dou trina do autointeresse 690 694697 resolu ção do problema da democracia 691699 abordagem da religião 696699 justificação da democracia 698700 influência sobre J S Mill 703 compatibilidade entre democracia e tirania 835 mencionado 593594 653 Tolerância visão luterana 308309 visão calvinis ta 309 visâo de Hooker 326327 Torá 208 216218 221 Totalitarismo pluralismo como salvaguarda contta o 770771 Hddger sobre ideoln 804 Trabalhador homem como 802 Trabalho atitude de como fundamento da socie dade de Hegel 658 Tiabalho e direito de propriedade no estado de na tureza 439441 e acréscimo anual do produto nacional 580 como fonte de riqueza em Ja mes Mill 650 e força de trabalho 731733 Trácia 15 Tradição Bentham sobre 637641 James Mill so bre 653 razáo como criadora da em Husserl 792 Tradicionalismo 614 Tribunos 218399 Tributação propostas de Paine para reforma da 610 Trindade snificado de 374375 Troca controle pelas condições de produção 720 problema da comensurabilidade 739740 Tucídides 630 método de escrever a história 68 relato da Guerra do Peloponeso 621 argumento ateniense em fevor do império 1113 1621 2527 expedição à Sicília de Atenas 14 2125 discurso de Diôdotos 26 29 e filosofia 2930 e Strauss 834 mencio nado 8284 U Ulpiano 235298 Último homem de Nietzsche 759798 840 União federal argumentos em fevor de em The Fe deralist O Federalista 589590 União Soviética 839 União Vèr União federal Universalidade progresso da libetdade subjetiva em direção à 663 como transformadora da indi vidualidade 666 como direito abstrato 667 Universalização como critério de boa vontade de Kant 527 imperativo categórico 527528 conexão entre autonomia e limitação recípro ca da liberdade 528 Universidade alemã conceito de Heideer 801 802 ideia liberal de Strauss 835 Universidade alemã concepção de Heideer 801802 Uso espiritual da lei 312 Uso teológico da lei 310 Usos da lei divina 310 Usos da lei 312 Usura defesa de Bacon 336 Utilidade princípio da formulação de Bentham 6436 Ver tambim Utilitarismo Utilidade como motivo para a amizade 120 como base para a aprovação de ações 575 Utilitarismo 702 704708 e Burke 624 de Ben tham 635649 de James Mill 649654 de J S Mill 701702 Udlitaristas 701702 705 707 712 Utopia Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 337343 Utopismo de Bacon 329 Vaidade 633 como paixão fimdamental ativada pelo conflito entre os homens 658 Valor trabalho teoria do 728729 no uso e na troca 729731 Valores transvaluação dos 748 753 Vattel Emmerich de 175177 Verdade prática doutrina de Aristóteles 239 Verdadeira aristocracia 153 Verdadeira monarquia 153 Veto poder de 598 Vício não sendo nem relação ou matéria de feto 484486 como descoberto e constituído pelo sentimento 486487 Í n d ic e 8 7 5 Viaoria Francisco 353 Vida adva versus vida contemplativa 145148 157160 Vida comercial como fàto no estabelecimento da república 605 Vida comunal efeitos sobre o homem 503504 Vida contemplativa versus vida ativa 145148 157160 Vida humana primazia da produção na 717 Vida política finalidades da 7275 difàmação pelos epicuristas 145 limitações intrínsecas 156 160 visão de Abravanel 219 justifica ção de 655656 Vigor 4345 Vindiciae contra Tyrannos 320 Viraser finalidade 742 e a tradição ocidental 798 804 e o Ser paia Sócrates 806 visão de Nietzsche 809 VertambémTempo Viigílio 474 Virtude do homem snificado da 75 Virtude guerreira como qualificação indispensável do governante supremo de Aliàrábi 200201 Virtude natural 493 Virtude referências de Tucídides xxxl6 25 or dem natural da 73 Xenofonte sobre afeição persa pela 91 95 Sócrates sobre a mais ele vada 97 discussão de Aristóteles 114120 126131 133136 138 140141 visâo de Cícero do uso da 146 cristã versus pagp 165166 conceito de Sócrates 267 visão de Hobbes 362 padrão de Descartes 379 385 princípio da democracia 462463467 como perigo para a Inglaterra 470 como descoberta e constituída pelos sentimentos 486487 não sendo relação nem matéria de fiito 483485 papel na sociedade civil 517518 667 discussão de Smith 567568 aprovação como princípio da 567568 575 presuntiva e real em Burke 619620 como base insuficiente pata a fundação do Estado moderno 669 revisão de noções de 755 na filosofia política moderna versus clássica 822 ordenação socrática dos tipos de 831 Virtudes artificiais e virtudes naturais 493 Virtudes cardeais de acordo com Aquino 237 238 depreciação de Kant 528 Virtudes intelectuais análise de Aristóteles 115 120123 Virtudes morais abordagem de Aristóteles 115 121 235236 mêdia entre dois extremos 115 238239 necessidade na sociedade po lítica 265 simpatia como fundamento para 568 reconciliação com os direitos da natu reza 585 Vocações do homem 204206 Voltaire 741 Vontade de poden doutrina de Nietzsche 754 756 niilismo como 796 803 Vontade divina crescimento da igualdade como expressão da 682 Vontade geral concepção de Rousseau 509510 514516647 823824 Vontade e lei de acordo com Hobbes 370 Voto plural sistema de 712 W Wagner Richaid 741 Weber Max 780 836 Whiism 496 Wilson Woodtow 813 Wodehouse P G 83 5Vdif John 293294326 Xenofonte 82108 283284 sobre justiça 83 9699 106 telação com Sócrates 8384 sobre a educação de Cito 8495 sobre a educação socrática 96108 sobre indinaçóes poUticas 104108 uso da dialética 828829 mendonado 123825 Zangões emergência dos nas oligarquias 58 Zenão o Eleata 725 Zeus 6667338341 Z in ít a m ja a fp â v e f i ifie te c a O FORENSE un ivershArm wwwforenseuniversitariacombr bilacpintogrupogencombr
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA p o l í t i c a FOR EN SE UNIVERSITÁRIA A EDITORA FORENSE se responsabiliza pelos vícios do produto no que concerne à sua edição aí compreendidas a impressão e a apresentação a fim de possibilitar ao consumidor bem manuseálo e lêlo Os vícios relacionados à atualização da obra aos conceitos doutrinários às concepções ideológicas e referências indevidas são de responsabilidade do autor eou atualizador As reclamações devem ser feitas até noventa dias a partir da compra e venda com nota fiscal interpre tação do art 26 da Lei n 8078 de 11091990 Traduzido de HISTORY OF POtrnCAL PHILOSOPHY THIRD EDITION Licensed br lhe Univctsit of Chicago Pless Chicago Dlinoia USA 19631972 br Joseph Cropsejr and Miriam Stnuiss 1987 hr lhe Unhrersity of Chicago Allrightsieserved ISBN 9780979303609 Histórn da Filosofia Política ISBN 9788521804789 Direitos exclusivos para o Brasil na língua portuguesa Copyright 2013 by FORENSE UNIVERSITÁRIA um selo da EDITORA FORENSE LTDA Uma editora intrante do GN Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor 1 1 6 andar 20040040 Rio de Janeiro RJ Tel 0XX21 35430770 Fax 0XX21 35430896 bilacpintogrupogencombr wwwgrupogencombr I O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida divulgada ou de qualquer forma utilizada po derá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação sem prejuízo da indenização cabível art 102 da Lei n 9610 de 19021998 Quem vender expuser à venda ocultar adquirir distribuir tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude com a finalidade de vender obter ganho vantagem proveito lucro direto ou indireto para si ou para outrem será solidariamente responsável com o contraíâtor nos termos dos anigos precedentes respondendo como contrafiitores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior art 104 da Lei n 961098 1 edição brasileira 2013 Tradução Heloisa Gonçalves Barbosa Revisão Técnica Manoel Barros da Motta CIP Brasil Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ S893h Sttauss Leo História da filosofia poIíticaLeo Strauss e Joseph Cropsey tradução de Heloisa Gonçalves Barbosa revisão técnica Manoel Barros da Motta Rio de Janeiro Forense 2013 Tradução de Christianisme history of political philosophy Inclui índice ISBN 9788521804789 1 Ciência política História 2 Ciência política Filosofia I Cropsey Joseph II Título 128340 CDD 32009 CDU 3209 Z in ít a m jia íjiá v e í J iS íie te c a Sumário Prrfdcio da Terceira Edição VII Prefácio da Segunda Edição IX Prefácio da Primeira Edição XI INTRODUÇÃO 1 TUCÍDIDES por David Bolotin 6 PLATÃO por Leo Strauss 31 XENOFONTE por Christopher Bruell 82 ARISTÓTELES por Carnes Lotd 109 MARCO TÚUO CÍCERO por James E Holton 142 SANTO AGOSTINHO por Ernest L Fortin 161 ALFARÃBIporMuhsinMahdi 188 MOISÉS MAIMÔNIDES por Ralph Lemer 207 SÃO TOMÃS DE AQUINO por Ernest L Fortin 225 MARSÍUO DE PÃDUA por Leo Strauss 249 NICOLAUMAQUIAVEL por Leo Strauss 267 MARTINHO LUTERO e JOÃO CALVINO por Duncan B Forrester 285 RICHARD HOOKER por Duncan B Forrester 319 FRANCIS BACON por Howard B White 328 HUGO GRÓCIO por Richard H Cox 346 THOMAS HOBBES por Laurence Berns 355 RENÉ DESCARTES por Richard Kennington 377 JOHN MILTON por Walter Berns 394 BARUCH SPINOZA por Stanley Rosen 409 JOHN LOCKE por Robert A Goldwin 427 MONTESQUIEU por David Lowenthal 459 DAVIDHUMEporRobertSHUl 479 JEANJACQUES ROUSSEAU por Allan Bloom 500 IMMANUELKANTporPierreHassner 519 WILLIAM BLACKSTONE por Herbert J Storing 554 ADAM SMITH por Joseph Cropsey 566 THE FEDERALISTpor Martin Diamond 587 THOMAS PAINE por Francis Canavan S J 606 EDMUND BURKE por Harvey Mamfield Jr 613 JEREMY BENTHAM e JAMES MILL por Timothy FuUer 635 GEORG W F HEGEL por Pierre Hassner traduzido por Allan Bloom 655 ALEXIS DE TOCQUEVILLE por Marvin Zetterbaum 681 JOHN STUART MILL por Henry M M d 701 KARLMARX por Joseph Cropsey 717 FRIEDRICH NIETZSCHE por Werner J Dannhauser 741 JOHN DEWEY por RobertHorwitz 761 EDMUND HUSSERL por RichardVelkley 778 MARTIN HEIDEGGER por Michael GÜlespie 795 EPÍLOGO Leo Strauss e a História da Filosofia Política por Nathan Tarcov e Ihomas L Pangle 812 ÍN DICE 842 V I H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y P refácio da I rceira E dição A segunda edição deste livro foi publicada em 1972 um ano antes da morte de Leo Sttauss Nesse meiotempo uma nova geração chegou próximo da maturidade ou a atingiu e a decisão de publicar uma nova edição ofereceu a oportunidade de incluir seu trabalho neste volume e simultaneamente ampliar a abrangência do livro em relevantes aspeaos Estão presentes pela primeira vez capítulos sobre Tucídides e Xenofonte para os quais nenhuma explicação se 6z necessária Estão presentes também capítulos sobre Husserl e Heideer para os quais pode ser necessária alguma explicação e um relato acerca de Leo Strauss para o qual pode ser necessária grande explicação Quando no ptefício à primeira edição nos referimos à inclusão de capítulos sobre os muçulmanos e judeus medievais e Descartes como uma questão em aberto tínhamos em mente é claro o fato de que esses pensadores não são primordialmente filósofos políticos De Husserl e Heidegger será dito o mesmo como se dirá da fenomenologia e do existencialismo que não são filosofia política No entanto basta pensar em 1960 e no radicalismo da época para trazer à memória o impacto que teve o existencialismo não importa com que transformações sobre a consciência do público Também não se pode esquecer que a filosofia de Heideer permitiu preparou ou provocou ainda é uma questão de controvérsia a sua participação longa ou breve em uma política execrável Talvez sempre talvez com ênfase nos nossos tem pos a política de forma pouco original e vacilante reaja à contemplação humana dos poderes horizontes e metas da humanidade e com hesitação põe em efeito as visões emergentes por meio das instituições de govemo Acredito que um conhecimento da obra de Husserl e Heideer auxiliará a aprofundar a com preensão do aluno não só da política do século XX mas das possibilidades políticas em princípio Os capítulos sobre Aristóteles Burke Bentham e James Mill são novos nesta edição As substi tuições foram resultado ou da retirada do capítulo original por seu autor ou de um desejo de ampliar o número de autores que contribuíram para o volume por meio da inclusão da obra de estudiosos que vêm despontando ou que já se afirmaram A indusão do Epílt sobre Leo Strauss um ensaio sobre um dos editores do livro além disso falecido realmente exige uma explicação Demandei esse acréscimo ao volume porque está iora bastan te claro que Strauss assumiu seu lugar como pensador na tradição da filosofia poUtica em um plano que r a não se pode descortinar mas de suficiente elevação para terlhe tomado instante e controverso em muitos locais Estou confiante que o ensaio será valioso para aqueles que buscam uma introdução cuidadosa e escrupulosa de uma obra difícil e amplamente estudada uma apresentação que não é neutra mas no entanto é objetiva Não posso saber ou alegar que qualquer uma das decisões que produziram as diferenças entre esta e a edição anterior teriam sido aprovadas pelo editor sênior Espero que esta edição seja recebida como uma continuação da intenção das versões que foram bem recebidas no passado JOSEPH CROPSEY Chicago 1986 COLEÇÃO EPISTEME POLÍTICA HISTÓRIA CLÍNICA COORDENADOR MANOEL BARROS DA MOTTA Obras a serem publicadas Cristianismo Dicionário dos Tempos dos Lugares e das Figuras André Vauchez Filosofia do Odor Chantal Jaquet A Democracia Internet Dominique Cardon A Loucura ManíacoDepressiva Emil Kraepelin A Razão e os Remédios François Dagognet O Corpo François Dagognet Estudos de História e de Filosofia das Ciências Georges Canguilhem O Conhecimento da Vida Georges Canguilhem M ichel Foucault Uma Trajetória Filosófica Hubert Dreyfiis e Paul Rabinow Realizarse ou se Superar Ensaio sobre o Esporte Contemporâneo Isabelle Queval Filosofia das Ciências Jean Cavaillès História da Filosofia Política Leo Straus e Joseph Cropsey Ditos e Escritos volumes la X Michel Foucault História do Egito Antigo Nicolas Grimal Introdução à Europa Medieval 3001550 Peter Hoppenbrouwers Wim Blockmans PREFÁao DA Segunda E dição O constante interesse pela abordagem ao ensino da filosofia política que é apresentada neste volu me propiciou a ocasião para publicar uma sínda edição O presente texto difere do anterior por conter um capítulo sobre Kant novos capítulos sobre Agostinho Tomás de Aquino e Maquiavel e pela revisão de detalhes importantes nos capítulos sobre Descartes e Locke Foram fisitas alterações em auns outros pontos mas mínimos LEO STRAUSS JOSEPH CROPSEY P refácio da P rimeira E dição A principal meta deste livro é apresentar a filosofia política aos estudantes universitários da área de ciência política Os autores e editores esforçaramse para tratar a filosofia política de maneira judiciosa to mando como pressuposto a cada passo que a importância dos ensinamentos dos grandes filósofos políticos reside não somente em seu aspeao histórico enquanto fenômenos a respeito dos quais precisamos apren der se quisermos compreender as sociedades do presente e do passado mas também por serem fenômenos cujos ensinamentos precisamos absorver se desejarmos compreender essas sociedades Acreditamos que as questões debatidas pelos filósofos políticos do passado perduram em nossa própria sociedade ainda que apenas da maneira como pode persistir qualquer questão que na sua essência é respondida tácita ou inadvertidamente Realizamos esta obra ainda com a crença de que para entender qualquer sociedade para analisála em profimdidade o analista deve ele próprio ser exposto a essas imortedouras peiguntas e ser arrebatado por elas Este livro dedicase àqueles que por qualquer razão acreditam que os estudantes de ciência polí tica precisam ter uma boa compreensão do tratamento filosófico das permanentes questões e àqueles que não acreditam que a ciência política seja tão científica quanto a química e a física disciplinas das quais se exclui sua própria história Consideramos que o fiito de a grande maioria dos integrantes da profissão concordar com a visão segundo a qual a história da filosofia política é uma porção válida da ciência polí tica será comprovado pela prática muito comum de oferecer cursos sobre o assunto Oferecemos este livro ao público com plena consciência de que não é um estudo histórico perfeito Tampouco se trata de um livrotexto perfeito É imperfeito como exemplar de sua categoria o que reco nhecemos espontaneamente porque por um lado não é obra de uma só mão Se pudesse ser encontrada a mão que é movida pela mente única que possui o necessário domínio da literatura da área essa mão escreveria se encontrasse tempo um livro mais coerente mais uniforme e sem dúvida um livro mais abrangente que adotaríamos assim que aparecesse Por outro lado entendese que em certa medida o leitor de um trabalho colaborativo vê essas deficiências compensadas pela variedade de pontos de vista talentos e experiências que compõem as partes do volume Estamos convencidos de que mesmo um livrotexto da maior excelência poderá atender somente a um objetivo limitado Quando um estudante tiver dominado o melhor relato secundário dos ensinamen tos de um autor possuirá uma opinião acerca daqueles ensinamentos conhecerá o que se diz a respeito em vez de ter um conhecimento verdadeiro do assunto Se o que se diz Ibr acurado então o estudante terá a opinião correta caso contrário terá a opinião errada mas em nenhum dos casos terá um conhe cimento que transcenda a opinião Nosso delírio seria dos mais profundos se nada paradoxal víssemos em inculcar opiniões sobre algo que almeja transcender a opinião Não acreditamos que este livrotexto ou qualquer outro possa ser mais do que um auxílio ou um guia para esmdantes que quando o leem são ao mesmo tempo enfaticamente direcionados para os textos originais Tivemos de tomar a decisão de incluir cenos autores e assuntos e omitir outros Ao fiizêlo não tivemos intenção de ptejulgar a questão relativa a qual ramo da filosofia política está vivo ou merece estar vivo Certamente seria possível argumentar a fiivor da inclusão de Dante Bodin Ihomas More e Har rington e a fitvor da exclusão dos muçulmanos e judeus medievais e de Descartes por exemplo Também poderia ser questionada a quantidade de espaço dedicado a cada autor tal como nossa abstenção da práti ca de mencionar nomes de autores com o único objetivo de colocálos diante dos olhos do estudante Não aborreceremos o leitor repetindo a oração do antologista para a remissão dos pecados Todos sabem que não pode haver um livro como este sem decisões e não pode haver uma decisão sem dúvidas quanto à sua correção O máximo que afirmaremos é que acreditamos que somos capazes de defender nossos atos LEO STRAUSS JOSEPH CROPSEY Nota No final da maioria dos capítulos dáse uma sugestão de leituras dividida em duas partes A parte designada como A contém as obras ou as seleções que em nossa opinião são indispensáveis para a com preensão do estudante enquanto a lista intitulada B contém material adicional importante que pode ser examinado se o tempo permitir XII H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y Introdução o termo filosofia política hoje tornouse quase sinônimo de ideologia para não dizer mito Seguramente é entendido por contraste a ciência política A distin ção entre filosofia política e ciência política é conseqüência da distinção fundamental entre filosofia e ciência No entanto até mesmo essa diferenciação basilar é de origem bastante recente Pela tradição a filosofia e a ciência eram indistintas as ciências na turais eram um dos segmentos mais importantes da filosofia A grande revolução inte lectual do século XVII que inaugurou as ciências naturais modernas foi a revolução deílirada por uma nova filosofia ou ciência contra a filosofia ou ciência tradicionais mormente as aristotélicas Mas a nova filosofia ou ciência teve sucesso apenas parcial Sua porção de maior êxito foram as novas ciências naturais Em virtude de seu triunfo as novas ciências naturais adquiriram independência cada vez maior da filosofia pelo menos na aparência vindo até mesmo por assim dizer a tornarse uma autoridade para a filosofia Desta forma obteve aceitação geral a distinção entre filosofia e ciên cia e consequentemente também se acatou a distinção entre filosofia política e ciência política como uma espécie de ciências naturais das coisas políticas Pela tradição no entanto não havia identidade entre filosofia política e ciência política Filosofia política não é o mesmo que pensamento político em geral O pensa mento político é contemporâneo da vida política A filosofia política entretanto sur giu dentro de uma vida política específica na Grécia naquele passado do qual temos registros escritos Segundo a concepção tradicional foi o ateniense Sócrates 469399 aC quem fundou a filosofia política Sócrates foi o mestre de Platão que por sua vez foi o mestre de Aristóteles Os escritos políticos de Platão e Aristóteles são as mais antigas obras dedicadas à filosofia política a chegarem até nós O tipo de filosofia polí tica que se originou com Sócrates denominase filosofia política clássica A filoso fia política clássica era a filosofia política predominante até o surgimento da filosofia política moderna nos séculos XVI e XVII A moderna filosofia política emergiu de uma ruptura consciente com os princípios socráticos Da mesma forma a filosofia política clássica não se limita aos ensinamentos políticos de Platão e Aristóteles e de suas escolas mas inclui também os ensinamentos políticos dos estoicos bem como os ensinamentos políticos dos pais da igreja e dos escolásticos na medida em que estes não se baseiem unicamente na revelação divina A percepção tradicional segundo a qual Sócrates fundou a filosofia política requer algumas especificações ou melhor explicações mas é menos equivocada do que qualquer outra Decerto Sócrates não foi o primeiro filósofo Isso significa que a filosofia precedeu a filosofia política Aristóteles caracteriza os primeiros filósofos como aqueles que dis cursam sobre a natureza e os distingue daqueles que discursam sobre os deuses O principal tema da filosofia é portanto a natureza O que é natureza O primeiro gre go cuja obra chegou até nós o próprio Homero menciona a natureza somente uma vez esta primeira menção de natureza nos dá uma indicação muito importante sobre o que os filósofos gregos entendiam por natureza No décimo livro da Odisséia Ulis ses fida sobre o que lhe aconteceu na ilha de Circe a deusa feiticeira que transformara muitos de seus companheiros em porcos e os trancara em chiqueiros Em seu caminho para a casa da feiticeira a fim de salvar seus pobres camaradas Ulisses encontrase com o deus Hermes que deseja preserválo e lhe promete uma extraordinária erva que o tor nará imune às artes maléficas de Circe Hermes arrancou uma erva da terra e revelou me sua natureza Negra na raiz era ela como o leite suas flores e os deuses a chamam mólio Árduo é escavála para reles mortais mas os deuses tudo podem No entanto a capacidade dos deuses de obter cilmente a erva não seria de nenhum proveito se não conhecessem a natureza da erva sua aparência e sua energia em primeiro lugar Os deuses portanto são onipotentes porque não são oniscientes na verdade mas conhe cem a natureza das coisas naturezas que não criaram Natureza significa aqui o cará ter de uma coisa ou de um tipo de coisa a aparência de uma coisa e o modo como esta coisa e e a coisa ou o tipo de coisa é considerada como não tendo sido criada pelos deuses ou pelos homens Se tivéssemos o direito de tornar literal uma expressão poética poderíamos dizer que reconhecidamente o primeiro homem a felar da natureza foi o astuto Ulisses que vira as cidades de muitos homens e assim passara a saber o quanto os pensamentos dos homens diferem de uma cidade para outra ou de tribo para tribo O significado primordial da palavra grega para natureza iphysis parece ser cresci mento e portanto também aquilo em que uma coisa se transforma quando cresce a duração do crescimento o caráter que tem uma coisa quando conclui seu crescimento quando é capaz de fazer aquilo que só a coisa totalmente crescida de seu tipo é capaz de fazer ou fazer bem Coisas como sapatos ou cadeiras não crescem porém não são por natureza mas por arte Por outro lado há coisas que são por natureza sem ter crescido e mesmo sem ter começado a ser de alguma forma Dizse que são por natureza porque não foram feitas e porque são as coisas primordiais das quais ou através das quais todas as outras coisas naturais vêm a ser Os átomos onde o filósofo Demócrito encontrou a origem de tudo são por natureza no sentido mais estrito A Natureza no entanto como quer que seja entendida não é conhecida por na tureza A Natureza tinha de ser descoberta A Bíblia hebraica por exemplo não possui uma palavra para natureza O equivalente de natureza em hebraico bíblico é algo como modo ou costume Antes da descoberta da natureza os homens sabiam que cada coisa ou tipo de coisa tem o seu modo ou costume sua forma de compor tamento normal Existe um modo ou costume do fogo dos cães das mulheres dos loucos dos seres humanos o fogo arde os cães ladram e abanam o rabo as mulheres 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y ovulam os loucos deliram os seres humanos têm a capacidade de falar No entanto há também os modos e costumes das várias tribos humanas egípcios persas esparta nos moabitas amalequitas e assim por diante Por meio da descoberta da natureza a diferença radical entre esses dois tipos de modos ou costumes ganhou o centro das atenções A descoberta da natureza levou à divisáo de modo ou costume em natureza jhysis por um lado e convenção ou lei nomos por outro Por exem plo o fato de que os seres humanos têm a capacidade de falar é natural mas que esta tribo em particular utilize esta determinada língua é devido à convenção A distinção implica que o natural é anterior ao convencional A separação entre natureza e con venção é fundamental para a íilosoíia política clássica e até mesmo para a maior parte da filosofia política moderna como pode ser visto de maneira mais simples a partir da diferenciação entre direito natural e direito positivo Uma vez descoberta a natureza e entendida primordialmente em contraste com a lei ou a convenção tornouse possível e necessário íãzer a pergunta Será que as coisas políticas são naturais e se forem em que medida A própria pergunta implicava que as leis não são naturais Mas em geral a obediência às leis era considerada como justi ça Por conseguinte surgiu a necessidade de indicar se a justiça é meramente conven cional ou se há coisas que são por natureza justas Seriam mesmo as leis meramente convencionais ou teriam suas raízes na natureza As leis não deveriam ser feitas de acordo com a natureza e especialmente de acordo com a natureza do homem se devem ser boas As leis são os alicerces ou a obra da comunidade política a comunida de política é por natureza Em tentativas de responder a essas perguntas partiuse do pressuposto de que há coisas que por natureza são boas para o homem como homem A pergunta exata portanto diz respeito à relação do que é por natureza bom para o homem por um lado para a justiça ou o direito do outro A alternativa é simples todo direito é convencional ou existe algum direito natural As respostas diametralmente opostas foram oferecidas e desenvolvidas antes de Sócrates Por várias razões não será proveitoso apresentar aqui um resumo do que é possível saber a respeito dessas dou trinas présocráticas Vamos proporcionar alguma noção da visão convencionalista a concepção de que todo direito é convencional quando nos voltarmos para a República de Platão que contém um resumo desta tese Quanto à posição oposta deve ser sufi ciente dizer aqui que Sócrates e a filosofia política clássica em geral desenvolveramna muito além dos pontos de vista anteriores Qual seria então o significado da afirmação de que Sócrates fundou a filosofia política Sócrates não escreveu nenhum livro De acordo com os mais antigos relatos afastouse do estudo das coisas divinas ou naturais e voltou suas indagações inteiramen te para as coisas humanas ou seja as coisas justas as coisas nobres e as coisas boas para o homem como homem sempre conversava sobre o que é piedoso o que é ímpio o que é nobre o que é ignóbil o que é justo o que é injusto o que é a sobriedade o que é a loucura o que é a coragem o que é a covardia o que é a cidade o que é o estadista o que é o domínio sobre o homem o que é o homem capaz de governar os homens e I n t r o d u ç ã o 3 coisas similares Parece que Sócrates foi induzido a afiistarse do estudo das coisas di vinas ou naturais por sua devoção Os deuses não aprovam que o homem tente buscar o que não desejam revelar em particular as coisas nos céus e por baixo da terra Um homem piedoso portanto investigará apenas as coisas permitidas para a investigação dos homens isto é as coisas humanas Sócrates realizava suas investigações por meio de conversas Isso significa que partia das opiniões consensuais Dentre essas opiniões consensuais as mais impositivas são aquelas sancionadas pela cidade e suas leis pela convenção mais solene Todavia as opiniões consensuais se contradizem umas às ou tras Assim tornase necessário transcender toda a esfera das opiniões consensuais ou da opinião per se para seguir na direção do conhecimento Uma vez que mesmo as opi niões mais confiáveis são apenas opiniões até Sócrates foi obrigado a seguir o caminho que ia da convenção ou lei para a natureza a ascender da lei para a natureza Agora no entanto mostrase mais claramente do que nunca que a opinião a convenção ou a lei contêm a verdade ou não são arbitrárias ou são em certo sentido naturais Podese dizer que desta forma a lei a lei humana demonstra apontar para uma lei divina ou natural como sua origem Isso implica porém que a lei humana precisamente porque não é idêntica à lei divina ou natural não é irrestritamente verdadeira ou justa somen te o direito natural a própria justiça a ideia ou forma da justiça é irrestritamente justa No entanto a lei humana a lei da cidade é irrestritamente obrigatória para os homens sujeitos a ela desde que tenham o direito de emigrar com a sua propriedade ou seja desde que a sua sujeição às leis da sua cidade seja voluntária A razão exata pela qual Sócrates se tornou o fundador da filosofia política emerge quando se considera o caráter das questões com as quais lidava em seus diálogos O filósofo fez a indagação O que é a respeito de tudo Essa pergunta destinase a trazer à luz a natureza do tipo de objeto em questão ou seja a forma ou o caráter do objeto Sócrates pressupunha que o conhecimento do todo é acima de tudo o conhe cimento do caráter da forma do caráter essencial de cada parte do todo tão distinto do conhecimento daquilo do qual ou por meio do qual o todo pode ter vindo a ser Se o todo consiste em partes essencialmente diferentes é pelo menos possível que as coisas políticas ou as coisas humanas sejam essencialmente diferentes das coisas não políticas que as coisas políticas constituam uma classe em si e portanto possam ser estudadas por si mesmas Sócrates ao que parece tomou o significado primeiro de natureza mais a sério do que qualquer um dos seus antecessores percebeu que a natureza é sobretudo forma ou ideia Se isso for verdade não se limitou a se afastar do estudo das coisas naturais mas deu origem a um novo tipo de estudo das coisas naturais uma espécie de estudo em que por exemplo a natureza ou a ideia de justiça ou direito natural e certamente a natureza da alma humana ou do homem é mais importante do que por exemplo a natureza do sol 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 1 Xenofbnte Memorahilia I 1 1116 2 Platáo Crtífo SI Não se pode compreender a natureza do homem se não se compreende a natu reza da sociedade humana Sócrates assim como Platão e Aristóteles assumiu que a forma mais perfeita da sociedade humana é a polis Hoje frequentemente se toma a polis como a cidadeestado grega Mas para os filósofos políticos clássicos era por mero acaso que a polis era mais comum entre os gregos do que entre os não gregos É preciso então dizer que o tema da filosofia política clássica não era a cidadeestado grega mas a cidadeestado Isso pressupõe no entanto que a cidadeestado é uma forma particular do Estado Pressupõe portanto que o conceito de estado engloba a cidadeestado dentre outras formas de Estado Todavia fidtava à filosofia política clássica o conceito de Estado Quando se fala hoje do Estado habitualmente se subentende Estado em oposição a sociedade Esta distinção é alheia à filosofia política clássica Não é suficiente dizer que poUs a cidade compreende tanto o Esudo quanto a sociedade pois o conceito de cidade antecede a distinção entre estado e sociedade portanto não se subtende a cidade ao se dizer que a cidade abraie o estado e a sociedade O equivalente moderno da cidade no nível de entendimento do cidadão é o país Pois quando um homem diz por exemplo que o país está em perigo tampouco fez ele uma distinção entre Estado e sociedade A razão pela qual os filósofos políticos clássicos preocupavamse sobretudo com a cidade não era por ignorarem outras formas de sociedade em geral e de sociedade política em par ticular Conheciam a tribo a nação bem como estruturas tais como o Império Persa Preocupavamse predominantemente com a cidade porque preferiam a cidade às ou tras formas de sociedade política Podese dizer que os motivos dessa preferência foram estes as tribos não são capazes de uma elevada civilização e sociedades muito grandes não podem ser sociedades livres Lembremonos de que os autores dos Federalist Papers ainda estavam sob a compulsão de provar que é possível que uma grande sociedade seja republicana ou livre Rccordemonos também de que os autores dos Federalist Papers assinavamse Publius o republicanismo aponta de volta para a antiguidade clássica e portanto também para a filosofia política clássica I n t r o d u ç Ao 5 TtrCÍDIDES c 460 c 400 aC Tucídides é autor de um único livro A Guerra do Peloponeso e os atenienses De modo geral náo é tido como filósofo político e as razões para isso sáo óbvias e graves Não apenas jamais usa o termo filosofia política como também náo se detém pelo menos náo de maneira explícita nas suas questões universais Embora nos diga qual regime ateniense avaliou como o melhor durante sua vida nunca fala do melhor re gime pura e simplesmente e embora elogie vários homens por sua excelência nunca discute a melhor maneira de viver ou o mais excelente modo de vida em si Além disso apresenta os resultados de sua busca pela verdade I 203 sob a forma do relato de um único evento político a guerra de 27 anos por meio da qual os espartanos e seus aliados derrubaram o império ateniense Por esses motivos ficase inclinado a dassificá lo como historiador Contudo ao contrário de seu antecessor Heródoto Tucídides jamais utiliza a palavra história Tampouco na verdade limita seu tema a uma guerra em particular afirma que seu estudo será útil para aqueles que buscam clareza náo só acerca da guerra mas de modo mais geral sobre o passado e até mesmo sobre o futuro o qual em sua opiniáo novamente se parecerá com o passado que ele desvendou Des ta forma atrevese a chamar seu trabalho de um patrimônio para sempre I 224 Uma vez que portanto encara seu tema como um evento especial que revela a verdade compreensiva e permanente pelo menos no que concerne às relações humanas lançar 1 A não ser que indicado de outra íbrma todas as referências são a esta obra As traduções do gro para o inglês são de minha autoria É grande meu débito a dois anigos de Christopher Bruell Thucydides View of Athenian Imperia lism American Political Science Review LXVIII n 1 march 1974 1117 e Thucydides and Perikles St Johris Review XXXII n 3 summer 1981 2429 2 VIII 972 IV 812 VI 545 VII 865 VIII 681 3 NT As traduções do texto g r são baseadas em TUCÍDIDES História da Guerra do Peloponeso Preíacio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Univetsidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 4 Idem O foco sobre aquele evento específico não nos autoriza a concebêlo apenas como um historiador Todavia ainda é dificil pensar em um homem que diz muito pouco sobre não está no texto universais que aliás nem sequer discute a sua própria reivindicação de relevância universal para sua obra seja como filósofo ou filósofo político Talvez seja melhor nesse caso em vez de tentar classificar seu pensamento voltar um olhar mais atento às características mais destacadas do livro A frase de abertura de Tucídides nos diz que começou a escrever sobre a Guerra do Peloponeso desde seu início já que esperava que fosse uma grande guerra e a mais no tável que já houvera Acrescenta que a guerra demonstrou ser o maior movimento ou mudança que jamais ocorrera pelo menos entre os gregos Para apoiar sua afirmação observa que os antonistas estavam em um pico de riqueza e poder e também que a guerra foi inigualável pelos sofrimentos que causou I 112 2312 Mas Tucídides não se limita a esses argumentos iniciais para nos convencer da grandeza ou importân cia da guerra Mais imediatamente convincente é o impacto da obra como um todo com sua narrativa austera porém vivida que nos faz testemunhar as ações e os sofri mentos que registra Percebemos a grandeza da guerra porque sentimos a sua presença Esse sentimento é reforçado ainda mais pelo fato de Tucídides incluir fãlas políticas em discurso direto pelos próprios participantes Parece que ouvimos os oradores enquanto argumentam em nome da justiça ou invocam os deuses enquanto apelam para o amor pela liberdade ou pela glória imperial e enquanto alertam para as terríveis conseqüên cias de políticas equivocadas De fato esses discursos fazem a guerra parecer presente para nós Mas ainda mais importante apelam a nossas próprias preocupações morais e políticas e nos conclamam a reagir à guerra como fizeram os próprios antagonistas à sua luz A ordem da narrativa que a acompanha e sua escolha de ênfases também foram calculadas para despertar essas inquietações E é principalmente deste modo ao suscitar nossas próprias preocupações morais e políticas que Tucídides nos torna recep tivos a suas asserções quanto à grandeza da guerra e seu significado universal Os discursos no livro de Tucídides com sua seriedade morai e sua premência exortamnos a tomar partido a fiivor ou contra eles mas todavia todo leitor se emo ciona com o contraste entre a ousadia desses discursos e a própria reticência de Tucí dides que com certeza explicita algumas opiniões Mas na maior parte das vezes não nos diz o que desejaria que pensássemos das cidades em guerra e de seus dirigentes ou dos muitos discursos e ações que relata Ora esse silêncio não significa que Tucídides seja indiferente ou que não mais reaja aos homens e eventos como nos encoraja a fàzer com a aprovação e desaprovação Mostra sim que é um hábil educador político Pois a gravidade moral que provoca em nós permanece imatura não é suficiente para nos ajudar a fomentar o bemestar de nossas comunidades o que ele necessariamente quer ocasionar a menos que seja guiada pela sabedoria política ou nela culmine E uma vez que a sabedoria política consiste primordialmente no bom julgamento de situações particulares e inéditas não vem a ser tanto um assunto a ser ensinado como T u c íd id e s 7 5 Idem ibidem uma habilidade a ser desenvolvida por meio da prátíca Por conseqüência em vez de nos dizer se aprova ou não uma determinada política Tucídides nos pede para julgar mos nós mesmos e em seguida submeter nosso julgamento aos testes que a guerra proporciona Assim ensejanos ouvir discursos nas assembléias tanto a favor como contra alguma linha de ação e como aqueles reunidos na assembleia temos de assumir um posicionamento próprio de uma forma ou de outra sem orientações expressas Só posteriormente e por etapas como na própria vida política é que ficamos sabendo das decorrências das atitudes que foram de fiito tomadas mas mesmo assim é a nós primordialmente que cabe ponderar a sua real influência e fàzer as devidas inferências quanto à sua sabedoria Com certeza a seleção e ordenação dos detalhes narrativos por Tucídides juntamente com os seus juízos explícitos cujo peso é tão maior pela sua raridade ajudam a nos posicionar nessas reflexões a tal ponto que Hobbes seu tradu tor pode dizer que a narração em si secretamente instrui o leitor e mais eficazmente do que jamais se poderia fàzer por preceito Mas esses auxílios só frutificam quando aceitamos o desafio do livro para assumir nossas próprias posições e aprender com nossos próprios erros De fiito uma declaração introdutória como essa seria mais do que inútil se transmitisse a impressão de ser um modo de poupar esse esforço Ora é verdade como já observamos que a reticência de Tucídides não se esten de apenas a questões particulares tais como as relativas a políticas mas também e sobretudo às universais e isso apesar do fato de que os oradores em seu livro fàzem muitas e contraditórias alegações sobre as mais importantes dessas questões Entre tanto também aqui como veremos sua reserva não é um sinal de indiferença mas ao contrário um elemento importante em sua forma de educar seus leitores Porque posições equivocadas no que diz respeito a questões universais podem resultar em um padrão de decisões erradas específicas e a narrativa de Tucídides ajuda seus leitores atentos a perceber e assim a superar algumas dessas arraigadas fontes de erro Além disso os próprios argumentos com os quais os vários oradores sustentam suas ale gações universais muitas vezes contêm inconsistências que revelam dificuldades nas suas próprias posições Se analisarmos todas essas dificuldades como a nossa própria preocupação com os assuntos em questão nos compele a fàzer elas apontam na direção de uma compreensão mais adequada Em certas ocasiões Tucídides indica as suas pró prias respostas a essas induções universais em parte ao criticar a opinião equivocada de alguns dos líderes na guerra Mesmo nesses casos porém quando explicitamente orienta nosso raciocínio primeiro nos encoraja a tomar as nossas posições as quais po dem muito bem diferir da sua e abordar suas perspectivas por meio de nossa própria experiência com o livro Além disso os seus juízos explícitos são sempre incompletos e levantam dúvidas maiores que temos de sanar por nós mesmos Após seu breve relato introdutório da origem e desenvolvimento da civilização grega Tucídides principia sua narrativa da guerra em si pelo exame de suas causas Em sua opinião a mais verdadeira causa embora a menos manifesta no discurso foi que 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a s L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Richard Schlatter Ed Hobbes Thucydides New Brunswick Ruers Univeisity Press 1975 p 18 os atenienses ao se tornarem grandes e assim despertarem o medo compeliram os es partanos a entrarem em guerra Acrescenta todavia que também registrará as causas ou melhor como também podemos traduzir a mesma palavra grega as acusações que foram abertamente mencionadas I 2356 cf I 88 De fato Tucídides parece dedicar muito mais atençáo a essas causas citadas abertamente do que àquela que considera como mais verdadeira Essa impressão é um tanto enganosa porém uma vez que essas acusações diretas diziam respeito às instâncias do próprio crescimento do poder ateniense que Tucídides considerava como a mais verdadeira causa da guerra No entanto a principal justificativa para o seu procedimento é que nos ajuda a sentir o impacto dos primórdios da guerra como de fato se revelaram abertamente e em público Se essas aparências podem enganar como aliás Tucídides diz que ocorreu a sua apresentação nos encoraja a confirmar nós mesmos este fiito ao invés de simples mente aceitálo devido à sua autoridade Além disso só começando por essas aparên cias mais simples é que podemos apreciar devidamente o tema principal do estudo da guerra por Tucídides ou seja a justiça ou a justiça em sua relação com a compulsão A primeira acusação da guerra foi uma acusação contra Atenas por Corinto uma potência naval como a própria Atenas e um importante membro da Aliança Espartana ou do Peloponeso Os coríntios fizeram a acusação de que Atenas por auxiliar a colô nia coríntia de Córcira em uma batalha naval contra eles violou a trégua que ligava as alianças espartanas e atenienses I 552 cf I 44 Os atenienses tinham recentemente estabelecido uma aliança defensiva com Córcira que foi ameaçada pela guerra com Corinto apesar dos avisos dos coríntios de que isso provocaria uma guerra geral pois acreditavam que a guerra estava chegando em qualquer caso e não desejavam permitir que Córcira com sua grande marinha ficasse sob controle de Corinto A localização de Córcira na rota costeira para a Itália e a Sicília também foi um fator na decisão dos atenienses embora não nos seja dito se isso os preocupava mais de um ponto de vista de fensivo ou ofensivo Logo após esse primeiro embate com Corinto surgiu a ocasião de um segundo ataque de Corinto contra Atenas ao qual os atenienses responderam com um contraataque próprio A batalha naval contra Córcira terminara de modo decep cionante para Corinto e os atenienses temiam que os coríntios retaliassem persuadin do Potideia uma cidade que tinham colonizado mas que era íora aliada de Atenas a revoltarse contra a Aliança Ateniense Assim Atenas ordenou aos potideus que derru bassem uma de suas muralhas entregassemlhes reféns e expulsassem seus ministrados coríntios Os potideus no entanto recusaramse a atender a essas exigências o que os levou a ao contrário efetuar a revolta que os coríntios de fato encorajavam e que Esparta também estimulara ao prometer invadir o território ateniense se Atenas os atacasse Os coríntios enviaram um exército para ajudar na defesa de Potideia e quan do os atenienses por sua vez despacharam uma grande força de ataque travouse outra batalha em que atenienses e coríntios apesar da trégua geral combateram entre si Quando os atenienses que saíram vitoriosos dessa batalha deram início ao cerco de Potideia Corinto acusou Atenas de sitiar sua colônia com tropas coríntias dentro dela Os atenienses por sua vez acusaram Corinto de ter causado a revolta de um dos seus aliados tributários e de ter lutado abertamente de seu lado I 66 T u c íd id e s 9 Logo após ter começado o cerco a Potideia os coríntios convocaram seus aliados a Esparta onde acusaram os atenienses de ter violado a trégua e de fazer injustiça ao Peloponeso Os próprios espartanos convidaram os aliados a apresentar suas alegações de injustiça ateniense diante de uma assembleia de Esparta e ficamos sabendo que cer to número de cidades tinha acusações próprias contra Atenas O discurso de Corinto nessa assembleia que Tucídides apresenta em sua totalidade argumenta que as ações atenienses em Córcira e Potideia sáo apenas os exemplos mais recentes de uma longa e continuada política destinada a escravizar toda a Grécia Muitas cidades dizem os coríntios já haviam sido escravizadas por Atenas e ora conspirase até contra os aliados de Esparta que estão sendo privados de sua liberdade Para ajudar a transmi tir uma sensação de perigo para a Grécia os coríntios fazem uma descrição do caráter ousado habilidoso e aquisitivo dos atenienses uma descrição que resumem dizendo que os atenienses por natureza nem a si mesmos nem aos outros eles deixam ter tranqüilidade I 709 Os coríntios concluem instando os espartanos a invadirem a Ática antes que seja tarde demais para ajudar Potideia e as outras cidades Mais tarde o último orador nessa assembleia um éforo espartano também exorta seus concida dãos a não traírem seus aliados para os agressores atenienses A assembleia espartana em seguida resolve de forma irrefutável que os atenienses haviam violado a trégua e estavam cometendo uma injustiça e se preparam para pedir aos aliados que declarem guerra contra eles em comum I 8724 Parece então que a causa da guerra foram as injustiças atenienses e a ameaça de injustiças futuras contra os gregos e em parti cular contra os aliados de Esparta E essa impressão foi compartilhada informanos Tucídides pela grande preponderância do mundo grego cujas simpatias no início da guerra se inclinavam para Esparta especialmente porque esta alegava travar uma guerra de libertação II 845 Até mesmo o deus em Delfos prometeu aos espartanos que os ajudaria quer fosse chamado ou não assim sugerindo que o esforço de guerra espartano estaria a serviço de punir a injustiça ateniense I 1183 cf II 5445 Tucídides já nos disse no entanto que a decisão de Esparta de entrar em guerra e tentar esmagar o poder ateniense foi motivada menos por acusações dos aliados de Atenas do que por seu próprio receio Além disso sua narrativa do intervalo de 50 anos entre as guerras Persa e do Peloponeso tende a corroborar essa alegação pelo me nos na medida em que desvela a incapacidade de Esparta de se opor verdadeiramente à insuuração e ao rápido crescimento do império ateniense I 8911182 De acordo com isso o discurso de Corinto em Esparta é tanto uma queixa sobre a indiferença espartana quanto uma acusação contra Atenas e os coríntios até ameaçam abandonar 1 0 H is t ó r ia d a F iix is o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y NT As traduções do texto grego são baseadas em TUCÍDIDES História da Guerra do Peloponeso Prefécio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 Idem a aliança se Espana permanecer inativa Especialmente à luz dessa ameaça parece ser mais o temor de perder aliados do que o desejo de protegêlos quanto mais salvar o resto da Grécia da tirania ateniense que causa a transformação da habitual relutância espartana de travar a guerra E essa impressão será confirmada pelo comportamento posterior de Esparta durante a guerra em particular por seu tratamento de Platéia e seu acordo com Atenas para aceitar a Paz de Nícias Entretanto não importa a ausên cia de generosidade que possa ter havido nos motivos de Esparta para declarar guerra a agressão ateniense ainda parece ter sido responsável por sua eclosão A tese contra Atenas é mais fraca do que parece no entanto em pelo menos um aspecto Embora os coríntios e os espartanos acusassem os atenienses de ter violado a trégua entre eles esse aspecto de seu argumento parece ter sido um tanto espúrio A aliança defensiva ateniense com Córcira embora perturbadora não era nitidamente proibida de acordo com os termos do armistício e nem mesmo os coríntios alegaram que a truculência ateniense para com Potideia estivesse em desacordo com a trégua Além disso os atenienses ofereciam em conformidade com seus termos submeter to das as controvérsias a arbitragem o que os espartanos não ofereceram nem aceitaram Em grande parte Péricles o líder ateniense contou com esses fatos para convencer os atenienses a não cederem aos ultimatos tardios dos espartanos I 784 1402 1442 Mesmo o rei espartano Arquídamo que se opôs à guerra na assembleia de Esparta reconheceu que era ilegal entrar em guerra contra uma cidade que ofereceu arbitragem e advertiu que Esparta se declarasse uma guerra seria considerada responsável por tê la começado Mais tarde na verdade quando a peleja corria mal para eles os próprios espartanos passaram a acreditar que por sua recusa da arbitragem e outros delitos semelhantes tinham sido culpados de primeiro romper a trqa e assim deflsrar a guerra 1815 VII 182 cf IV 202 Tucídides entretanto não endossa essa crença espartana em sua própria cul pa nem a exoneração de Atenas que implica Segundo ele lembramos os atenienses compeliram os espartanos a entrar em guerra por causa do temor que seu crescente poder inspirava neles Embora o mais verdadeiro motivo dos espartanos para travar a guerra não mereça nossos elogios tampouco podem ser acusados de terem violado a trégua já que foram obrigados a isso cf IV 9856 Seu medo de Atenas debtouos sem alternativa cabível ou pelo menos era nisso que tinham fortes motivos para crer O que portanto nos leva de volta à nossa primeira impressão de que Atenas e não Esparta era a culpada de ter desencadeado a guerra Talvez o foco recaia ainda mais intensamente sobre a culpabilidade de Atenas devido ao modo como os atenienses responderam às acusações contra eles Por exem plo alguns atenienses que por coincidência estavam em Esparta por conta de outros assuntos públicos quando ouviram fàlar das acusações dos coríntios e dos demais contra Atenas solicitaram e receberam permissão para fàlar à assembleia em fàvor de sua cidade Manifestaramse não para se defender contra as acusações dos aliados como se os espartanos fossem juizes em um tribunal de justiça mas para dissuadir os espartanos de tomarem uma decisão precipitada de entrar em guerra O cerne de T u c íd id e s 11 sua aimentação potém era a alação de que seu império náo merecia tanta ani mosidade mas que talvez náo fosse sem razão ou sem direito que o odiassem Para fundamentar essa afirmação aipunentaram terem sido obrados a íimdar e oqiandir o império em primeiro l i pelo temor e depois também pela honra e mais tarde ainda por interesse compulsões que depois mencionam juntas como as maiores coisas Contudo se as ações empreendidas em prol da honra e do interesse bem como aquelas realizadas por temor podem ser consideradas compulsórias e escusadas por esse motivo existe algo que seja proibido Desta forma então a defesa do seu império pelos atenienses de Êito não constitui defesa uma vez que ataca o próprio pressuposto de todas as acusações ou seja de que haja delito voluntário Os atenienses acrescentam não serem os primeiros a ceder à tentação do império mas ao contrário sempre esteve implícito que os mais fracos fossem governados pelos mais fortes e aquele que tem a possibilidade de conquistar algo pela força jamais até então fora dissuadido por con siderações de justiça Esses atenienses parecem ter acreditado que a espantosa rudeza de sua defesa intimidaria os espartanos visto que apenas uma cidade poderosa ousaria pronunciarse dessa forma e que assim dissuadiriam Esparta da guerra Em seguida porém afirmam governar de uma forma mais justa do que seu poder exige ou do que outros fariam em seu liar e também alertam os espartanos pata que não violem o ar mistício mas resolvam suas diferenças por meio de arbitnm Ora como essas v concessões à justiça talvez insinuem o poder dos atenienses não era tão grande que lhes permitisse forçar Esparta a tolerar seu império bem como mdo o que feziam para aumentálo somente por temor desse poder ainda assim admitiram abertamente que a justiça jamais refrearia sua busca por tal poder no foturo Não é de admirar então que esse discurso não tenha conseguido evitar a guerra pois revela nitidamente quais aspectos de Atenas tanto irritavam e amedrontavam a aliança espartana I 7278 O arrazoado oferecido em Esparta pelos atenienses em favor do império viuse repetido em várias ocasiões durante a guerra pelos portavozes de Atenas Péricles cuja liderança conduziu os atenienses na peleja dizlhes mais tarde quando prin cipiam a se cansar do combate que o seu império é como a tirania cuja imposição é injusta mas cujo abandono é perigoso II 6323 Péricles também lhes oferece a expectativa de vantagens sem limites proporcionadas pelo império e os exorta a defendêlo apesar do ódio que desperta em nome da honra que lhes traz e especial mente por causa da sempre lembrada glória no futuro II 6213 6436 Muito mais tarde na guerra essa tese imperialista é repetida pelos embaixadores atenienses de uma força armada que já está presente na pequena e independente ilha de Meios ao tentar 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 NT As traduções do texto g r sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefacio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de Sáo Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 10 Idem 11 Idem persuadir seus líderes a se submeterem voluntariamente a seu domínio Esses embaixa dores nem sequer simulam justificar o império de Atenas ou a sua decisão de subjugar Meios porque como afirmam saber a justiça não tem lugar no julgamento humano a menos que um poder igual assim obrigue ambos os lados V 89 E quando os líderes de Meios persistem em sua recusa de capitulação fimdamentada em sua confiança de que os sustentará a boa fortuna derivada da vontade divina pois são homens pios enfíentando homens injustos os atenienses replicam assim Quanto à benevolência divina esperamos que também nâo nos ÊJte Realmente em nossas ações náo nos estamos afiistando da reverência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no trato com elas Dos deuses nós supomos e dos homens sabemos que por uma imposição de sua própria natureza sempre que podem eles mandam Em nosso caso portanto não impusemos esta lei nem bmos os primeiros a aplicar os seus preceitos encontramola vigente e ela vigorará para sempre depois de nós pomola em prática então convencidos de que vós e os outros se detentores da mesma força nossa agiríeis da mesma íbrma V 10512 Esse diálogo entre os embaixadores de Atenas e os líderes de Meios é a mais co nhecida passem em Tucídides Todavia as declarações dos atenienses em Meios são apenas uma revelação e esclarecimento mais amplos daquilo que por muito tempo fora o pensamento central do imperialismo ateniense e como tal oferecem o mais poderoso incentívo para vermos a guerra como uma batalha contra a injustiça ateniense Se examinarmos a guerra a partir dessa perspectiva antiateniense estaremos pre parados para perceber e nos emocionar com as duas justaposições mais dramáticas na obra de Tucídides bem como para perceber o tema unificado que percorre a obra A Oração Fúnebre de Péricles na qual celebra a beleza do poder ateniense e ainda se vangloria de que em toda parte plantaram monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizeram é imediatamente seguida por uma terrível e devastadora peste em Atenas II 3454 E o Diálogo Mélio que comove ainda mais porque os ate nienses não tendo conseguido convencer os mélios posteriormente massacraram seus homens adultos e escravizaram suas mulheres e crianças é imediatamente seguido pela expedição à Sicília na qual a ambição ateniense finalmente foi longe demais e terminou em um desastre que praticamente selou a condenação final de Atenas Desta forma Tucídides nos convida a pensar tanto sobre a peste como sobre o desastre da Sicília juntamente com a derrota final de Atenas na guerra como os fadados castigos por sua insolência e injustiça cf 1 2336 O próprio Tucídides entretanto parece não ter compartilhado desta interpretação da guerra como um castigo divino ou cósmico de Atenas Embora se recuse a especular sobre as causas da peste diznos que esta também se disseminou na África e na Ásia T u c íd id e s 1 3 12 Idem Ibidem 13 Idem Ibidem 14 Idem Ibidem antes de chegar a Atenas e praticamente ridiculariza a credulidade daqueles que presu miam ter sido a peste profetizada por um antigo oráculo II48 5413 cf V 2634 Quanto à expedição à Sicília Tucídides diz que esta apesar de seu descomedimento poderia ter obtido êxito com uma liderança melhor e mais apoio doméstico para o exér cito II 6511 cf VI 1534 Além disso uma vez que a narrativa se interrompe cerca de seis anos antes do íinal da guerra com os atenienses tendo recentemente estabelecido um r m e superior e acabado de lograr uma importante vitória naval a qual restaurou sua confiança de que ainda poderiam prevalecer contra Esparta somos levados a inda gar se há qualquer sentido em supor predestinado o resultado final da guerra Contudo mesmo sem considerar a questão acerca do que causou os padecimen tos atenienses quanto mais se lê Tucídides menos se julga que o sofrimento de Atenas fosse justo ou merecido Ainda de modo mais geral a nossa primeira reação ao livro como um todo não é a satisfrção de ver feita justiça mas é muito mais provável que seja um sentimento de tristeza Esta consternação surge em grande medida pelo me nos de um sentimento envolvente de que a derrota de Atenas não é a vitória da justiça mas que a própria justiça está entre as principais vítimas da guerra Quer estejamos ou não atentos ao to de que a derrota de Atenas veio tarde demais para salvar os mélios e as demais vítimas indefesas do poder ateniense não podemos deixar de notar que os espartanos vitoriosos se tornaram se é que não o foram sempre pelo menos tão opres sores quanto os atenienses Por exemplo foram os espartanos e seus aliados que ataca ram Platéia a despeito do juramento que fizeram em homenagem ao heroísmo dos plateus na Guerra Persa de proteger a independência de Platéia apesar de a cidade ter sido coída a aliarse a Atenas pela própria indiferença de Esparta à ameaça da vizinha Tebas Ainda depois de sitiar a cidade os espartanos mataram todos os plateus que se renderam não porque acreditassem nas selvagens acusações feitas contra eles pelos tebanos mas quase totalmente como diz Tucídides a fim de iradar aos tebanos os quais consideravam vantajosos na presente guerra III 68 cf II 7174 III 551 Mais tarde a fim de recuperar apenas três centenas de prisioneiros incluindo uma centena ou mais de membros de suas famílias imediatas os espartanos concordaram com a chamada Paz de Nícias em que traíram entre muitas outras as cidades que haviam contado com as generosas promessas do líder espanano Brasidas para a revolta contra Atenas Porém esses são apenas dois dos muitos exemplos que confirmam o que os embaixadores atenienses em Meios disseram sobre os espartanos que em suas relações com os outros eles do modo mais ostensivo sustentam que tudo o que é vantajoso é justo e que tudo o que é agradável é nobre V 1054Todavia não são apenas os es 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 CompareseV 1858 e 321 com IV861 11434 1203 Ver também IV 81210867117e V 143151 16 NT As traduções do texto grego são baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefócio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Pãulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 partanos e os atenienses cujo comportamento fornece indícios da debilidade da justiça na guerra Para citar apenas um exemplo revelador em seu extenso catálogo das muitas cidades e nações que lutaram contra a Sicília ou em fiivor dela diz Tucídides de todas elas em geral que não tomaram partido por causa da justiça ou de parentesco tanto quanto por causa de vantíens ou por compulsão VII 571 ss Os homens desconsideraram por outro lado o aparente poder de restrição da lei ou da justiça mesmo quando tal comportamento não atendia a interesses próprios exceto talvez para satisfazer a uma paixão imediata É possível compreender tal ati tude pelo menos durante a peste em Atenas quando a iminência da morte libertou os homens de todas as restrições provenientes do temor dos deuses ou de qualquer lei humana e as pessoas tampouco nada viam de errado em colher rápido os seus lucros e com vistas ao prazer pois consideravam efêmeros tanto suas vidas quanto seus bens II 53 É mais difícil entender porém os sanguinários mercenários trácios que mas sacraram ao retornar de Atenas para casa os homens as mulheres as crianças e até mesmo os animais na pequena cidade de Micálessos Foi esta uma calamidade diznos Tucídides tão digna de ser lamentada dadas suas proporções quanto tudo que ocor reu na guerra VII 2945 303 E o mais horrível de tudo é o relato de Tucídides sobre a guerra civil em Córcira e das guerras civis que em seguida convulsionaram toda a Grécia A causa dessas revoltas foi o desejo de dominar enraizado na ganância e no amor pela glória mas após algum tempo a violência pareceu ter adquirido vida própria A vingança valia mais do que não ter padecido pessoalmente e seu alcance não via limites na justiça e nas vantagens para a cidade mas apenas no prazer imediato de qualquer facção que tivesse a supremacia Os cidadãos que se mantiveram neutros aliás foram mortos pelos partidários de ambos os lados quer porque não se juntaram a eles quer pela inveja de que pudessem sobreviver III 82 Este espetáculo triste da impotência da justiça em face do egoísmo e da violência não é apenas uma característica da Guerra do Peloponeso Tucídides mostra por meio de seu relato dos tempos antigos tanto na Grécia como na Sicília e por sua descrição das potências emergentes na Macedônia e na Trácia que o destino da justiça nessa guerra já fora seu destino antes e o mesmo se dava em outras partes 1217 II 9799 VI 25 Acima de tudo nos diz que episódios atrozes como os que ocorreram nas cidades durante as guerras civis haviam acontecido antes e irão sempre suceder no futuro enquanto permanecer igual a natureza do ser humano III 822 Essa afirma ção intransigente sobre a natureza humana é o mais claro eco da promessa feita por Tucídides em sua abertura de revelar a verdade completa e inalterável sobre os assun tos humanos E de fato a lição mais inequívoca da obra como um todo tanto para estadistas como para outros é a inquietação de que enquanto perdurar nossa espécie teremos de conceber uma natureza humana que vezes sem conta sempre que lhe for dada a oportunidade suplantará as frágeis restrições da lei e da justiça Tucídides não afirma no entanto que todos se perverteram de igual maneira como resultado das T u c íd id e s 15 17 Idem Ibidem guerras civis E é verdade que os espartanos por exemplo ao contrário dos atenienses não haviam explorado a sua supremacia na Grécia para instituir um império e que se tornaram nas palavras de Tucídides prósperos e moderados ao mesmo tempo tal como os habitantes de Quios Mas também é verdade que como Tucídides nos diz mais tarde espartanos e quianos superaram todas as outras cidades em número de escravos VIII 244402 Em outras palavras a moderação dos espartanos qualquer que fosse ela nos assuntos externos enraizase em seu receio de uma revolta dos escravos Seu comportamento não contradiz a regra geral da impotência da lei e da justiça em si mas por isso pouco fez para aliviar a tristeza com que primeiro resumos à obra de Tucídides como um todo Para os atenienses no entanto os quais afirmaram antes do início da guerra que nunca ninguém fora dissuadido da ambição por considerações de justiça o que chamamos imprecisamente de debilidade da justiça na guerra teria sido menos uma causa para tristeza do que ulterior confirmação de sua tese fimdamental de que o mais forte deve sempre subjugar o mais fraco Os atenienses apoiaram essa tese e assim rejeitaram a dedicação à virtude tal como tradicionalmente entendida II 632 V 101 alegando ser tal virtude incompatível com os desejos naturais e uigentes do homem por alguma segurança pela glória c por vantagens Ora podemos pensar que os atenienses absolveram com demasiada rapidez o comportamento passado dos po derosos bem como o seu próprio em termos de compulsão natural pois mesmo se aqueles que têm poder de conquistar ou dominar sempre o fizeram não se s e daí que tenham sido compelidos a isso Mas os atenienses não dependiam desses indí cios inadequados para sua aipunentação Para ver isso de modo mais claro temos de examinar de novo o que expuseram os embaixadores atenienses no Diálogo Mélio no qual a grande superioridade de suas forças encorajouos a grande franqueza Os atenienses tencionavam incorporar Meios a seu império e disseram aos dirigentes mélios que não deveriam ter esperança de dissuadilos ao utilizar o aiumento de que não cometeram qualquer injustiça contra Atenas Pois conforme sustentam os ate nienses os próprios líderes mélios também sabem que a justiça se decide no discurso ou avaliação humanos fimdamentada em um poder igual de compelir à medida que os superiores fezem o que podem ou o que for possível e os fiacos cedem V 89 Os mélios entendem como indicam na sua resposta que estão sendo proibidos de felar de justiça e comandados a limitarse a considerações de interesse se desejam que os atenienses os ouçam Todavia os mélios compreendem mal os atenienses que querem dizer ao contrário que não existe justiça e portanto nenhuma possibilidade de íàlar realmente dela e que não há necessidade de proibir tal discurso em qualquer situação em que o bem de uma pane for incompatível com o da outra Pois não somos todos obrados se formos sensatos a buscar o nosso próprio bem Afinal não reconhece o próprio aigjumento da justiça que este bem tem o poder de compelir ao alegar que é do nosso próprio interesse pelo menos em longo prazo ou no sentido mais verdadei ro ser sempre justo Os mélios de qualquer modo mais tarde no diálogo quando acusam os atenienses de não serem justos também alertam que Atenas não conseguirá 1 6 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoifncA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y subjugálos uma vez que eles que sáo livres do pecado serão auxiliados pela fortu na dos deuses bem como por seus parentes os espartanos V 104 Com efeito a alegação de que a justiça atende sempre aos nossos próprios interesses está contida na própria noção de justiça uma vez que pensamos em justiça como o bem comum e o bem comum deveria incluir o nosso próprio Os próprios mélios na verdade em sua primeira tentativa de contestar com base no interesse e não na justiça também usam como argumento pelo menos implicitamente essa noção de justiça Pois de fato afirmam ser útil para os atenienses que podem eles mesmos estar em perigo algum dia não invalidar o bem comum mas dentar a equidade e a justiça ficarem a serviço daquele que está em perigo e permitir que se beneficie ao menos em parte de ideias não totalmente precisas V 90 Os atenienses no entanto são capazes de demonstrar que não é de seu próprio interesse permitir que os mélios permaneçam independentes Mais genericamente a tese ateniense reconhece que um bem comum ou melhor uma coincidência de interesses nem sempre pode ser encontrado em todas as situações entre os homens Além disso estipula que nos casos em que essa coincidência não pode ser encontrada somos obrigados uma vez que entendemos a situação a buscar o nosso próprio bem enquanto distinto daquele de outrem porque é oneroso para nós não fazêlo e mesmo o contraargumento em nome da justiça deve no final das con tas admitir que a verdadeira justiça não se poderia opor à força de nosso desejo natural por nosso bem Além disso se formos compelidos pelas razões indicadas a buscar o nosso próprio bem também seremos compelidos a buscar tudo o que acreditamos ser o nosso próprio bem embora na verdade nos seja custoso avaliar mal o que seja este realmente Ora os atenienses acreditavam ser bom para eles conquistar e expandir seu império mesmo correndo o risco de guerra com Esparta e em última análise é por esta razão apenas que não assumiam qualquer culpa por fazêlo Somos tentados a rejeitar esse argumento ateniense em sua totalidade em espe cial porque à sua enunciação pelos embaixadores em Meios seguese o massacre dos cidadãos mélios Mas essa reação seria inadequada e não simplesmente porque os assassinatos e não meramente as ameaças dessas mortes pelos próprios embaixadores se os mélios recusassem a submissão não eram conseqüências necessárias ou apropria das do próprio argumento Pode muito bem ser verdade que o argumento ateniense contribuiu para a sua disposição de conquistar e manter um império Mas o mesmo é também verdadeiro a respeito dos atenienses ou pelo menos dos melhores entre os seus líderes que demonstraram extraordinária preocupação em ser dignos de seu domínio imperial e em serem nobres Com efeito apesar das evidências em contrário T u c íd id e s 1 7 18 NT As traduções do texto gro sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefacio de Helio Jaguaribe Trad do gro de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de Sáo Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 19 Considerese V 253 Contrastese porém com VII 571 sua tese imperialista em si em grande medida é o resultado de sua preocupação com a justiça e com a nobreza pois são estas as preocupações que lhes impuseram a con fiança em si mesmos na defesa do império defesa esta sem as hipocrisias de costume Além disso pareceu aos atenienses que aceitar a sua defesa do império e do egoísmo não era necessariamente o mesmo que repudiar o que é verdadeiramente mais sublime ou mais nobre Pode muito bem então tornarse uma questão de imenso interesse para nós verificar por que razão os atenienses acreditavam ser nobres ou de modo mais amplo superiores e examinar se é verdadeira sua concepção de si mesmos Os atenienses falam de várias formas acerca de sua superioridade e em especial de sua superioridade como indivíduos sobre os cidadãos de outras cidades Os ate nienses em Esparta na defesa de seu império unificam o argumento da compulsão que escusaria igualmente qualquer outro poder dominante com a alegação de que eles em particular são dignos de dominar em grande parte com base ao que parece em sua inteligência e zelo superiores Os oradores atenienses não simulam natural mente que essas excelências que contribuíram tanto para a vitória grega na Guerra Persa estejam ainda a serviço da liberdade da Grécia se é que alguma vez o estiveram Contudo não deixam de tratálas como algo que lhes assegura o direito a seu império ou pelo menos como fundamento para merecer menos ódio por causa dele I 732 744 751 762 O que apregoam os atenienses em Esparta é desenvolvido por Pé ricles na sua Oração Fúnebre na qual fala do povo ateniense como amantes da beleza e da sabedoria Além disso elogiaos por seu ânimo para a bravura em combate sem necessidade de recorrerem a longo e árduo treinamento e de modo mais amplo por sua participação ativa na vida política uma vida que não demanda em Atenas que se negligenciem interesses privados mas ao contrário completa o desenvolvimento gracioso dos mais elevados poderes multifacetados do indivíduo De acordo com Pé ricles o poder ateniense consiste nas realizações de cidadãos tão extraordinários que somente Atenas não dá espaço a suas cidades subalternas para a acusação de que não são governadas por homens dignos II 3741 Que os atenienses escolheram livremente empregar sua inteligência e seus outros dons em fàvor da cidade como também que estejam prontos a arriscar suas vidas por ela é um aspecto crucial da sua visão de si mesmos como nobres Péricles pode desper tar o seu zelo patriótico ao pedirlhes que não considerem só pela argúcia as tão conhe cidas vantíens que resultam da resistência aos inimigos mas sim que contemplem o poder da cidade e se tornem amantes dela e estejam preparados como seus amantes a imitar os soldados caídos que lhe fizeram a oferta mais nobre sua virtude II 431 Péricles emprega as palavras nobre ou belo em referência às mortes dos soldados 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 NT As traduções do texto grego são baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefacio de Helio Juaribe Trad do gregp de Mário da Gama Kuiy 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 porque respeita a sua dedicação para com Atenas considerando que ela transcende a mera astúcia ou o egoísmo Da mesma forma quando afirma implicitamente que a própria Atenas é tão bela e nobre que inspira o amor erótico Péricles o faz não ape nas em razão do seu poder mas também por causa do que percebe como a sua supe rioridade mesmo em relações internacionais à astúcia egoísta Isso não significa que creia que a política ateniense seja guiada por questões de justiça para repetir Péricles se vangloria de que Atenas plantou em toda parte monumentos imorredouros de males assim como de bens Mas Péricles afirma que os atenienses são os únicos que fa zem o bem a outros mais por uma confiança sem medo na sua própria liberalidade do que por cálculos de vantagens II 405 414 E mesmo quando íàla de monumentos imorredouros de males e bens tem em mente os males que Atenas sofreu bem como o mal que fez a outros É precisamente a ausência de limites para as mais fundamentais ambições de Atenas e sua disposição para sofrer enormemente para os fins mais subli mes que constituem para Péricles uma prova de sua nobre superioridade a simples cálculos de ganhos e perdas Especialmente como indivíduos em sua relação com a cidade mas mesmo como uma cidade em relação a outros ou pelo menos assim pa recia aos seus próprios olhos os atenienses deram livremente de si para fins nobres e sublimes E nesse contexto não devemos esquecer que os embaixadores atenienses em Esparta falaram da laudável moderação de sua cidade no uso de seu poder sobre seus súditos moderação que Atenas praticara muito embora assim parecesse incentivar queixas e desta forma tornando mais difícil governar I 763775 Porque se consideravam nobres e dignos de governar os atenienses também conce biam a honra ou glória que previam a partir de seu império não apenas como um grande bem para si mesmos mas também como algo maior Péricles havialhes dito que fora sensato almejar um império sem limites apesar do ódio que isso despertou alegando que o ódio seria de curta duração enquanto o brilho do império e sua glória futura ficariam na memória para sempre Mas Péricles vai adiante acrescentando que essa glória seria algo nobre com o que quis dizer em parte um reflexo de sua nobre superioridade em relação a um oísmo estreito ou simplesmente calculista II 6456 Em harmonia com a postura dos atenienses para com a honra e a glória quando os seus embaixadores em Esparta discorreram sobre as maiores coisas que os compeliram a conquistar e expandir seu império mencionavam a honra como distinta de e aparentemente irredu tível a meras vantagens I 753 762 É verdade que mais tarde Alcibíades felou de seu desejo de honra como um aspecto do seu desejo por vantagens Mas mesmo no seu caso como Tucídides deixa claro o general procurou a honra não apenas como a maior ou mais agradável vantagem mas como sua nobre recompensa para nobres feitos por feitos que a seus olhos traziam tanto uma grandeza intrínseca quanto vantagem para a cidade como um todo VI 1613 1656 cf VI 152 Que os atenienses fossem excepcionalmente nobres ou admiráveis não era apenas a sua reivindicação sobre si mesmos Mesmo os hostis coríntios a fim de alertar os seus T u c íd id e s 1 9 21 Idem Ihidem parceiros espartanos quanto ao perigo de Atenas tiveram de elogiar a maneira atenien se e disseram entre outras coisas que os atenienses usam seus corpos que lhes são por demais estranhos para o bem da cidade e sua inteligência que lhes é mais própria a fim de fàzer algo em seu fevor I 706 Ora é verdade que os coríntios tinham um incentivo para exagerar o grau de zelo dos atenienses tal como Péricles e os demais ora dores atenienses tinham seus próprios incentivos para o exíero no elogio da beleza e da glória de Atenas Mas a verdade sobre os atenienses como fica evidente em seus feitos é de certa forma ainda mais bela do que os esplêndidos mas claramente presunçosos discursos de Péricles nos levariam a crer Logo no início da guerra por exemplo duas das vitórias navais de Fórmion contra firotas do Peloponeso imensamente maiores no Golfo de Corinto deram brilhante testemunho de sua ousada e inteligente liderança e da iniciativa zelosa dos marinheiros atenienses II 8392 Mais tarde vemos uma manifestação do melhor da democracia quando Demóstenes num momento em que nem sequer era ainda oficial corajosamente propôs fortalecer Pilos na porção conti nental do Peloponeso e persuadiu as tropas atenienses a fàzêlo simplesmente porque não queriam permanecer ociosos enquanto esperavam por ventos fiivoráveis Essa ação que foi seguida por mais instâncias da habilidade de Demóstenes e do valor ateniense conduziu à inédita rendição de 300 espartanos e assim permitiu que Atenas encerrasse a primeira fese da guerra em condições fiivoráveis IV 2452 cf IV 641 O aspecto mais admirável da democracia ateniense fica também evidente no desenlace de uma rebelião em Mitilene que Atenas esmagara após um longo cerco Embora os atenienses tivessem inicialmente decidido pela pena de morte para todos os cidadãos do sexo masculino e até mesmo enviado no dia seguinte um navio para comunicar essas ordens mudaram de ideia Ponderaram que fora um decreto cruel e poderoso ou seja excessivo destruir a cidade inteira e não somente os responsáveis pela rebelião Consequentemente realizaram uma segunda assembleia naquele mesmo dia na qual decidiram não matar a grande maioria dos mitilênios Um segundo navio íbi enviado de imediato e em parte graças ao entusiasmo de seus remadores e à relutância dos que estavam no primeiro navio as novas ordens chiaram a tempo de salw Mitile ne da aniquilação A mudança de ideia dos atenienses nessa ocasião é um exemplo sem precedentes pelo menos durante a guerra de um povo inteiro demonstrando brandura de caráten A aigúcia dos atenienses não lhes permitiria crer no argumento proposto por Clêon na assembleia de que a justíça e x a punição de toda Mitilene A mesma sensi bilidade à justiça e à nobreza que impulsionou os atenienses a defenderem seu império e a íàzêlo com tal ausência de hipocrisia também estava na raiz de seu comportamento eminentemente moderado e relativamente decente para com Mitilene III3649 No entanto o exemplo mais esplêndido da nobreza ateniense é aquele em que Atenas se mostrou mais descomedida ou seja a expedição contra a Sicília Incorporar a Sicília a seu império sempre foi um sonho ateniense um sonho que Péricles mesmo havia nutrido ao fàlar aos atenienses de todas as infinitas possibilidades de sua supre 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 2 Idem Ibidem macia sobre o mar Todavia Péricles alertou também contra a tentativa de expandir o império durante a guerra com Esparta e teria presumivelmente se oposto à expedição contra a Sicília se tivesse vivido como açodadamente prematura A concepção que Péricles tinha de Atenas era de uma cidade que amava a nobreza mas com parcimônia ou economia enquanto a expedição contra a Sicília seria um esbanjamento dispen dioso e constituía um risco sem precedentes Ainda assim o próprio Péricles teria de admitir que havia algo especialmente belo mesmo que náo a beleza da saúde nesta mesma munificência Todos os atenienses de acordo com Tucídides apaixonaramse pela expedição contra a Sicília O amor erótico que Péricles apenas solicitara da comu nidade ateniense apoderouse dela de fato na véspera da campanha da Sicília E os homens no auge da vida foram guiados não por um desejo de riqueza ou poder ou mesmo de glória mas por um anseio pela visão distante e contemplação VI 243 Tampouco devemos desconsiderar inteiramente como mera simulação as declarações dos atenienses de que seu objetivo na Sicília era ajudar os seus irmãos de raça os le ontinos e seus aliados egesteus VI 61 1812 191 Além disso quando a expedição inicial se deparou com graves reveses e os peloponesos também causavam sofrimento em casa pela ocupação de um forte próximo a Atenas os atenienses não só persevera ram na Sicília mas enviaram uma segunda frota quase tão grande quanto a primeira Ninguém diznos Tucídides poderia ter acreditado de antemão que tal tenacidade fosse mesmo possível E mesmo após a terrível derrota de Atenas na Sicília a cidade demonstrou uma obstinação em travar a guerra com Esparta que surpreendeu todo o mundo grego A prosperidade de Esparta era de fato mais moderada do que a de Atenas Mas nenhuma outra cidade sequer rivalizava com Atenas como se vê acima de tudo na campanha da Sicília e no período que se seguiu pela magnificência de sua ambição e por seu vigor na adversidade A campanha da Sicília terminou em fracasso Péricles entretanto assegurara aos atenienses anos antes que seriam famosos no futuro por terem dominado o maior dos impérios gregos muito embora falhassem em seus objetivos imediatos na guer ra O insucesso asseverou ele fora sempre possível pois como disse ainda todas as coisas por natureza também decaem II 643 Na verdade a consciência iluminada de Péricles de que tudo deve ao fim e ao cabo entrar em declínio parece ter ajudado a alimentar sua crença de que os atenienses estariam agindo de maneira sensata ao buscar a glória imorredoura como o maior bem II 6456 e contexto Lembramos também que Péricles construiu monumentos imorredouros até mesmo dos insucessos atenienses Todavia é difícil comemorar a derrota de Atenas na campanha da Sicília T u c íd id e s 21 23 VI 243 cf I 14351441 II 622 657 e também 401 24 NT As traduções do texto grego sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefácio de Helio Jaguaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 25 V III12 245 cf VII 283 e 422 muito embora este fosse o mais memorável e de certa forma o mais nobre dos fra cassos de Atenas e náo se pode deixar de observar que aqui pelo menos a busca da glória imperial foi imprudente e não valeu seu terrível preço Pois não só percebemos a magnitude do sofrimento do exército mas também divisamos uma fealdade em Ate nas que emerge como a causa da sua derrota Apesar da surpreendente perseverança de Atenas em uma campanha ousada que o próprio Tucídides considerava exeqüível todo o exército na Sicília foi destruído por causa da busca míope de interesses particu lares ou que pareciam ser interesses privados em detrimento do público Em seu elogio a Péricles Tucídides atribui a derrota ateniense na guerra e na Sicília especificamente às ambições particulares de honra e de ganho ambições que não se refrearam mais após a morte de Péricles pela orientação inteligente e cheia de espírito público do cidadão preponderante II 65712 Náo mais existia a harmonia entre as ambições privadas dos líderes e o bem público que tinha sido a característica da Atenas de Péricles Essa análise íàz lembrar uma das acusações de Nícias em sua tentativa de dissuadir os atenienses da campanha siciliana de que seu c o l coman dante Alcibíades exortavaa por motivos totalmente egoístas VI 122 Ora podese dizer em defesa de Alcibíades que sua ambição privada pelas honras e riquezas deri vadas da expedição à Sicília estava em plena harmonia com os desejos da assembleia ateniense Mas é preciso acrescentar que a vontade do povo tal como expressa na assembleia não era a verdadeira medida dos interesses da cidade e não apenas porque os homens reunidos desconheciam esses interesses Que mesmo o povo ateniense subordinasse o bem público a uma espécie de in teresse privado tornase evidente sobretudo em sua selvagem reação às mutilações das estátuas de Hermes que ocorreram quando estava sendo oianizada a partida para a Sicília Os atenienses acreditavam que essas mutilações eram um mau presságio para a expedição e também embora pouco plausível que foram realizadas como parte de uma conspiração contra o povo VI 27 Alguns dos atenienses podem ter acreditado que mereciam fracassar na Sicília ou que indivíduos tirânicos conspirassem contra eles como um castigo por serem tuna cidade tirânica Em todos os casos seu medo mór bido de conspirações oligárquicas ou tirânicas alimentava algo que foi para eles uma paixão incomum pela vingança de ofensas contra os deuses Prenderam muitos homens respeitáveis e até mataram alguns deles somente por terem sido acusados Chegaram a trazer de volta Alcibíades de seu comando na Sicília para enfrentar a acusação capital de ter profanado os mistérios isso também alegaram relacionado a uma conspira ção contra o povo VI 53 601611 Ora havia motivos com certeza para suspeitar Alcibíades de ter ambições tirânicas e o general traiu Atenas para Esparta depois de ter fugido da acusação No entanto era o mais competente general de Atenas e sua destituição do comando ateniense juntamente com os hábeis conselhos que deu a Esparta foram a causa direta do fiacasso de Atenas na Sicília O povo ateniense ou mais precisamente a classe de atenienses em sua maioria pobres que se considerata toda a comunidade estava tão ansiosa para conquistar a Sicília que os seus concida dãos que se opuseram à campanha temiam erguer as mãos contra a campanha E esses 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y atenienses não se dissuadiram da expedição pelo que eles próprios consideravam um mau presságio Todavia esses mesmos atenienses zelavam tão pouco pela segurança do exército ou até mesmo pela sobrevivência da cidade na guerra em comparação com seu próprio domínio dentro dos muros da cidade que tentaram condenar à morte seu general mais capaz por uma impiedade que ele pode ou não ter cometido Quanto ao perigo de que o sucesso na Sicília pudesse auxiliar Alcibíades a se tornar um tirano no futuro este é um risco que a democracia ateniense teria de aceitar como um preço pela conquista da Sicília Além disso Tucídides indica em uma aparente digressão que os tiranos atenienses anteriores tinham praticado virtude e inteligência durante a maior parte de seu domínio e que respeitaram a maioria das leis costumeiras incluindo espe cialmente as observâncias sagradas VI 5446 cf VI 244 Esse comportamento está em contraste gritante daro ao do povo em geral que estava então tomado por um partidarismo ingênuo e cujas ações eram ainda mais insensatas porque aparentemente acreditavam que a sua principal inquietação dizia respeito a toda a cidade e aos deuses De acordo com tudo isso Tucídides conclui que não era Alcibíades mas ao contrário muitos entre os atenienses cada um dos quais privadamente irritado com suas práticas que provocaram a queda da cidade VI 1534 cf 11 65810 ós Alcibíades ser dispensado da Sicília um dos dois generais atenienses restan tes era Nícias um homem moderado e piedoso que se havia oposto à expedição mas em cuja lealdade de qualquer forma os atenienses acreditavam poder confiar Tucídi des revela sua própria simpatia por Nícias comentando por ocasião de sua rendição e morte nas mãos dos siracusanos que era ele quem menos merecia entre os gregos durante o meu tempo chegar a esse grau de infortúnio por causa de sua completa devoção à virtude tal como estabelecido pelo costume VII 865 Esta observação no entanto pode surpreender alguns leitores uma vez que o relato de Tucídides já indicou que as próprias fiquezas de caráter e julgamento de Nícias desempenharam um papel relevante na derrota de Atenas Vejamos então algumas das maneiras pelas quais Nícias contribuiu para o fiacasso de Atenas e então estaremos numa posição melhor para explicar a aparente incoerência entre a narrativa de Tucídides e seu julga mento explícito A esperança infundada de Nícias de que pudesse impedir a expedi ção sobre a qual os atenienses já haviam decidido junto com seu desejo de navar com a maior segurança possível se fosse obrigado a partir levouo a aconselhar os atenienses a enviarem uma força muito maior do que pretendiam Sua tátíca não con suiu impedir a expedição mas teve sucesso em persuadir os atenienses a enviarem um exército maior Na verdade foi só após os conselhos de Nícias teremlhes infun dido certeza na segurança da expedição que se apaixonaram por ela A preocupação T u c íd id e s 2 3 26 NT As traduções do texto grego sáo baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefácio de Helio Jsuaribe Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Esrado de Sáo Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 do relutante Nícias com a segurança e com a sirança de sua reputação como um general bemsucedido foi assim diretamente responsável pelo tamanho do investi mento ateniense na Sicília bem como pelo seu entusiasmo VI 1922426 Todavia o mais grave e mais revelador dos erros de Nícias ocorreu muito mais tarde na campa nha quando mesmo com os reforços de Demóstenes os atenienses não conseguiram capturar Siracusa Os navios e suas tripulações deterioravamse de forma constante o inimigo ganhava força e era inequívoco que os atenienses deveriam voltar para casa imediatamente enquanto sua superioridade naval ainda o permitisse Mas Nícias não estava disposto a regressar a Atenas sem ordens de casa em razão como disse de que os atenienses incluindo a maioria dos soldados que naquela altura clamavam para retornar condenariam os generais por terem sido subornados pelo inimigo Conhe cendo a natureza ele disse dos atenienses preferiu arriscarse a perecer se necessário nas mãos de seus inimigos e em particular ao invés de perecer sob uma acusação ver gonhosa e injusta nas mãos dos atenienses VII 484 Nícias tinha bons motivos dada a suspeição da democracia quanto a seus próprios líderes de temer o banimento e talvez até mesmo a morte se tivesse retornado para casa com o exército Todavia permanece o feto de que sua opção por morrer de modo privado na Sicília acarretou diretamente a ruína do exército e custou a vida de milhares de seus soldados Podese dizer em defesa parcial de Nícias que ainda acreditava haver possibilidade de capturar Siracusa mas quando o aparecimento de tropas inimigas descansadas persuadiramno de seu erro aquiesceu em conduzir o exército para casa Entretanto quando um eclip se lunar de tal forma inquietou a maioria dos atenienses que eles exortaram rogaram ou ordenaram aos generais que adiassem a partida Nícias afirmou que nem sequer contemplaria uma deliberação sobre como efetuar a retirada até que se tivessem passa do três vezes nove dias segundo as prescrições dos adivinhos Pois se dedicava com certo exagero observa Tucídides a adivinhações e práticas similares VII 504 Nícias pode muito bem ter acreditado que a maior probabilidade de segurança para a frota e não apenas para si mesmo consistia em permanecer em Siracusa durante o período estipulado mas é dificil perdoar um general por ceder a temores e esperanças fundados na superstição Por causa desse louco atraso o exército ateniense perdeu sua última oportunidade de retornar para casa a salvo Após a derrota final no mar em sua tentativa desesperada de evadirse do porto de Siracusa os atenienses de tal forma se viram dominados pelas proporções de seus males presentes que nem sequer lhes ocorreu nem sequer ao piedoso Nícias requerer a devolução dos corpos de seus companheiros mortos Em lágrimas e com muita autocensura os atenienses em fuga também abandonaram seus companheiros feridos mas nem assim o exército foi ca paz de salvar a si mesmo À luz dessa narrativa ficamos preparados para compreender que quando Tucídides afirma a respeito de Nícias que sua desgraça foi tão imerecida 2 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 27 Idem Ibidem 28 Idem Ibidem 29 VII 722 cf VII 753 e contrastese com IV 4456 diz que isso se deveu a sua devoção à virtude conforme estabelecida pelo costume ou seja à virtude convencional distinta da virtude simplesmente Embora a devoção de Nícias à virtude convencional o tenha ajudado a se tornar um homem de grande dig nidade e alguém em quem os atenienses podiam confiar na maioria das circunstâncias normais tanto ele como também a virtude conforme a entendia não estavam à altura da prova extremada que foi a campanha da Sicília Nícias era inteiramente devotado à virtude convencional em todo caso jamais causou voluntariamente qualquer dano à sua pátria Todavia não é confiável a virtude convencional pois depende e em parte é orientada por esperanças que não têm outra sustentação além da crença na virtude convencional em si A devoção de Nícias à virtude convencional estava na raiz da sua esperança confiante de que ele ou pelo menos o seu bom nome podiam usufruir da segurança que essa mesma devoção o levou a crer que mereciam cf V 161 E no entanto essa esperança cega de segurança pessoal foi responsável em grande parte como sabemos por sua própria morte e pela desgraça para sua cidade A campanha siciliana foi um erro grave A expectativa ateniense de êxito ou mesmo do retorno seguro do exército dependiam de sua capacidade de conciliar in teresses privados e públicos mas no entanto a expedição demandou da cidade um empenho que excedia em muito os limites dessa capacidade Reconhecidamente os atenienses poderiam ter triunfedo na Sicília se sua sorte fosse melhor por exemplo se não tivesse ocorrido a mutilação das estátuas de Hermes Mas a tentativa foi no entanto desmedida e irrefletida E mais importante os enormes custos da expedição juntamente com a desarmonia citadina que trouxe tão claramente à luz pode ajudar nos a ter uma visão mais sóbria do imperialismo ateniense como um todo Porque se não tivéssemos nós mesmos sido enganados pelo encanto que iludiu os atenienses já teríamos compreendido que seu imperialismo era felho desde o início devido a uma completa ausência de sensatez Os atenienses e os melhores entre os seus líde res dedicaramse à construção de um grande e nobre império Como no entanto acreditavam ser dotados de nobreza não podiam deixar de sentir o quanto lhes pesa vam as acusações por pretenderem governar a outros contra a vontade deles Conse quentemente sentiamse obrigados a defender seu império contra essas acusações e o fizeram com a argumentação de que eles como todos os homens eram compelidos pela natureza a serem oístas ou a colocarem o seu próprio bem antes de todas as outras preocupações Por outro lado uma vez que pensavam em seu império e em si mesmos como nobres aceitavam determinados riscos e dificuldades em relação a seu domínio que aparentavam estar em desacordo com os seus próprios interesses Ora deve terlhes inquietado íir assim pois em vista de seu próprio argumento em fevor do império esses riscos e dificuldades adicionais parecem ter sido sacrifícios desatinados Mas aparentemente os atenienses os entendiam menos como sacrifí cios do que como um preço que valia a pena pagar pelo simples motivo de que todos os seus arrazoados em conexão com a busca do império seriam mais do que compen sados pela recompensa da glória eterna Todavia por assim pensarem equivocavamse Pois o que vivenciaram no que se refere à glória ou no que tange à perspectiva de T u c íd id e s 2 5 glória no futuro tingiase com sua crença de que a glória nâo era apenas um bem mas também algo nobre ou seja um reconhecimento de sua superioridade ao mero inte resse próprio e da sua disposição em certos momentos para o sacrificio Em outras palavras não enfientaram diretamente seu próprio argumento em defesa do império pois este argumento não deixa espaço para a superação do interesse próprio ou para qualquer coisa mais importante do que o benefício próprio E se tivessem realmente aceitado esse argumento não teriam sido impelidos ou não da mesma maneira pela perspectiva de glória e dificilmente teriam sentido que seus arrazoados em sua busca seriam recompensados de forma tão suficiente e duradoura Muito antes do desastre na Sicília portanto os atenienses e os seus melhores líderes foram desencaminhados por sua má compreensão de si mesmos e do objeto de seu desejo O argumento ateniense corretamente entendido ensina que não pode haver no breza que supere o interesse próprio Por conseguinte podese ser tentado a chegar à inquietante conclusão de que os mais sábios de todos os atenienses no relato de Tucí dides são seus embaixadores em Meios cuja apologia da regra do mais forte menos se tingiu por qualquer preocupação contínua ou explícita com a nobreza No entanto seria fãlsa essa conclusão e não apenas porque a brutal tentativa dos embaixadores de destruir a inocência dos mélios fez com que adquirissem determinação ainda maior de não se submeter ao domínio ateniense Porque há um orador ateniense que demons tra uma compreensão muito mais profunda do aijumento ateniense Este ateniense é Diôdotos um homem notável a respeito de quem não há outras fontes e que só aparece uma vez na narrativa de Tucídides Embora não pareça ter sido um homem político foi de grande habilidade a sua única intervenção na vida política de Atenas Teve sucesso em auxiliar Atenas a manter seu império e a mantêlo por meio do tratamento relativa mente humano de um súdito aliado Além disso seu discurso é caracterizado por uma suavidade e até mesmo uma serenidade que não encontram comparação na obra de Tucídides e que parecem ser um espelho dessas qualidades do próprio Tucídides Diôdotos dirigiuse à assembleia à qual já nos referimos onde os atenienses reconsideravam seu decreto para matar todos os homens de Mitilene e lhes exortou a rescindir o decreto Sua tarefa era árdua muito embora a assembleia tivesse sido convocada em resposta a uma mudança de atitude do povo pois Clêon que na época tinha de longe a maior influência sobre eles falara antes de Diôdotos e se opusera a qualquer mudança Clêon argumentou fortemente que tanto a justiça como os inte resses dos atenienses exigiam o castigo mais severo aos rebeldes mitilênios No entanto a preocupação mais imediata para Diôdotos era Clêon ter atacado os hábitos atenien ses de com firequência reconsiderar suas próprias decisões Clêon atribuíra esse hábito não tanto a uma preocupação com o bem público mas principalmente ao desejo dos oradores de parecerem mais sábios do que as leis e de exibir sua inteligência em relação aos assuntos públicos uma vez que estes são tidos como as mais preeminentes ques tões Qualquer um afirmou Clêon que falasse contra o decreto do dia anterior estaria sendo incitado a fezêlo por sua vaidade como orador ou talvez também por suborno III 3823 3734 Diante desses ataques Diôdotos principia como de praxe pela 26 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y defesa da congruência de deliberações freqüentes sobre assuntos da cidade que tam bém chama de grandes coisas E os acautela em especial em relação ao fato de que a cidade é prejudicada quando oradores se acusam mutuamente de serem corrompidos pelo dinheiro pois o temor em seguida a priva de seus conselheiros Seria melhor para a cidade propõe não conceder ao tipo de cidadãos que fizeram tais acusações a autorização para falar E na cidade moderada continua ele um orador que falha jamais seria desonrado e muito menos acusado de injustiça e punido Em tal cidade moderada aparentemente todos aqueles que se dirigissem à assembleia seriam tão inteiramente livres da ambição privada que não se sentiriam desonrados por fracassar em sua persuasão Todavia Diôdotos sabe muito bem que a democracia ateniense como qualquer cidade real necessariamente suspeita dos motivos particulares de seus oradores e que o interesse da cidade por vezes chega mesmo a requerer vigilância Por compreender esses frtos da vida política Diôdotos não leva em consideração sua utópica cidade moderada e tenta desonrar Clêon a quem acusa ou de ser ignorante ou de manifestarse por algum motivo particular próprio Todavia é tal a desconfiança ateniense especialmente na esteira das acusações de Clêon que Diôdotos deve ir ainda mais longe a fim de conquistar a audiência com sua argumentação Pois os atenienses diz ele com ousadia são tão invejosos que rejeitariam até mesmo aqueles que fossem manifestamente os melhores conselhos para a cidade se suspeitassem que o orador ofereceria esses bons conselhos motivado pelo ganho Portanto o orador que queira liderar a cidade para o bem dela deve primeiro neutralizar as suspeitas acerca de si mesmo tarefa que aparentemente é impossível pela via direta apenas Pois Diôdotos conclui que mesmo um orador que deseje apontar o que é melhor deve mentir para a multidão a fim de merecer sua confiança e que é impossível beneficiar a cidade e apenas a cidade sem enganála III 4243 Com notável franqueza Diôdotos in forma os atenienses de que vai enganálos E essa admissão nos debca com as seguintes perguntas Por que é impossível ganhar a confiança da cidade sem mentir para ela E de que forma exatamente mente Diôdotos A mentira de Diôdotos parece estar em sua afirmação de que não vai sequer examinar a questão da justiça ou seja se os mitilênios foram injustos mas quer saber apenas se é do interesse de Atenas matálos todos É verdade que a maior parte de seu argumento contra essas mortes é uma análise intransigente em termos do interesse próprio ateniense todavia percebese que sua crueldade não é tão simples simples mente sem coração quanto aparenta Além disso como veremos Diôdotos não igno ra totalmente as questões de justiça Sua fala principia com a afirmação de que mesmo as mais rigorosas punições não são capazes de evitar todas as rebeliões e que portanto T u c íd id e s 2 7 30 NTi As traduções do texto grego são baseadas em Tucídides História da Guerra do Peloponeso Prefócio de Helio J arib e Trad do grego de Mário da Gama Kury 4 ed Brasília Editora Universidade de Brasília Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Sáo Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo 2001 Clássicos IPRI 2 Atenas deve estar preparada para tentar sufocar com o menor custo possível qualquer revolta que ocorra Atenas pode fàzêlo diz pela manipulação da divisão de classes entre os rebeldes e por oferecer à multidão uma perspectiva de complacência para com eles se de bom grado entregarem a cidade como o fizera a multidão dentro de Mitilene até certo ponto após receberem armamento pesado Mas então de modo surpreendente Diôdotos acrescenta que agora seria injusto trucidar a multidão en quanto distinta dos oligarcas em Mitilene pois tinham sido eles os benfeitores dos atenienses Assim apesar de sua afirmação original Diôdotos na verdade argumen ta explicitamente em termos de justiça Além disso muitos elementos em seu discurso vêm conduzidos de forma sutil a esse argumento do ponto de vista da justiça Pois a fim de demonstrar que é impossível evitar rebeliões Diôdotos assevera que todos os homens por natureza tanto privada como publicamente cometem transgressões e que nenhuma lei ou ameaça de punição vai impedilos disso Em outras palavras todos nós somos compelidos por nossas paixões naturais juntamente com nossas es peranças a tentar conquistar os objetos de nossos mais intensos desejos III45 E já que somos compelidos a isso não imporu até que ponto sejam vãs nossas esperanças de êxito nossos erros ou transgressões são involuntários e até mesmo Clêon admitira que os crimes involuntários merecem perdão Ora Diôdotos por boas razões não chega explicitamente à conclusão de que todos os criminosos merecem perdão entre outras coisas não se opõe a levar a julgamento os líderes presumíveis da rebelião Mas ao falar do caráter compulsório da transgressão desperta nos atenienses um estado de ânimo clemente e reacende e até aprofunda o humor brando com que se iniciara a assembleia daquele dia Desta forma tornaos receptivos à sua afirmação de que seria injusto eliminar o povo mitilênio Se o engodo de Diôdotos porém consiste em simular desdém pela justiça cabe indagar por que não declarou de modo mais franco que tanto a justiça ou a hu manidade como o interesse próprio dos atenienses exigiam que não se massacrasse o povo mitilênio Mas o feto é que teria sido imprudente da parte dele afirmar isso Em particular porque o discurso de Clêon tanto irritara o humor dos atenienses que um argumento escancarado contra a justiça dessas mortes lhes teria angustiado e os teria feito suspeitar de alguma fraqueza na tese de Diôdotos devida a uma busca de vantíens E mais importante teriam suspeitado que ele conscientemente traía os interesses da cidade sob o pretexto de justiça ou de humanidade mas na verdade tal como denunciara Clêon por causa de seus interesses privados Como a cidade descon fia tão excessivamente dos cidadãos que lhe dirigem a palavra Diôdotos deve tentar ganhar a sua confiança e o fez por meio da aparência de total desprezo pela justiça pelo menos na medida em que se trata de uma noção diversa do interesse da cidade De acordo com isso assevera também várias vezes que as preocupações da cidade e em particular a sua liberdade e seu domínio sobre os outros são as maiores coisas 2 8 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 31 Comparese III 473 e 4656 com III44 32 III 421434456 cf III 374 e 403 Quando exprime uma apreciação pelos interesses da cidade ou sua liberdade e seu império por serem infinitamente mais importantes do que a justiça e de fato como a mais importante de todas as preocupações Diôdotos é bemsucedido em mostrarse confiável E seu êxito depende é claro da mentira e do engodo Mas o embuste de Diôdotos vai ainda mais longe do que já admitimos pois nos levou a pensar que sua preocupação oculta é principalmente uma inquietação para com a justiça Para perceber que é este o caso temos de examinar de novo sua declara ção daquilo que denominamos o argumento ateniense em favor do império Diôdotos afirmara que todos os homens tanto privada como publicamente são de tal natureza que transgridem e que nenhuma lei jamais os refireará da transgressão Contudo uma vez que Diôdotos conhece tal fiito sobre nossa natureza nem a lei nem a justiça podem constituir sua principal apreensão nem mesmo naquelas circunstâncias em que é útil manter acordos em matéria de justiça Diôdotos indica no entanto qual é a sua prin cipal inquietação ao aplicar de modo explícito o argumento ateniense aos homens em particular ou aos indivíduos algo que nenhum outro orador em Tucídides faz Em outras palavras ele é o único orador que indica claramente que o primado do bem é de fiito o primado do bem do indivíduo distinto do bem da cidade Assim como não há nada maior ou seja mais importante do que o bem não há nada mais importante para o indivíduo do que aquilo que é bom ou ruim para si mesmo As suspeitas dos atenienses então de que seus oradores são impulsionados principalmente pelo inte resse próprio revelamse bem fimdamentadas pelo menos no caso de Diôdotos Ora é verdade que o interesse privado de Diôdotos enquanto ateniense e até mesmo a sua humanidade polida ambos o levarão a tentar ser útil para Atenas persuadindoa a rescindir um decreto cruel e mal orientado Mas os atenienses não o teriam honrado com sua aprovação se tivessem compreendido seus motivos Quer por medo da tirania quer como sugeriu o próprio Diôdotos simplesmente por inveja do bem maior de ou trem os atenienses não teriam aceitado o seu útil conselho a menos que ele os tivesse convencido de que as preocupações de sua cidade eram para ele as maiores coisas E uma vez que ele não acredita que sejam as maiores coisas é compelido a mentir Embora Diôdotos indique claramente que o bem supremo é o bem do indiví duo distinto do bem da cidade pouco mais diz sobre sua natureza Dada a sua crítica no entanto da alegação da cidade de que suas preocupações são as maiores coisas não parece possível que ficasse satisfeito apenas com as recompensas da vida política Realmente o próprio fato de que sabemos muito pouco sobre esse talentoso político poderia sugerir que não considerava o domínio sobre os outros ou seus frutos como o bem supremo do indivíduo Mas afora sua declaração sobre a necessidade de delibera ção antes da ação Diôdotos esconde seus pensamentos positivos sobre esse bem A este respeito como em outros Diôdotos é semelhante ao próprio Tucídides pois Tucídides também como vimos é omisso sobre a questão da melhor forma de vida Ou seria mesmo Não nos conduziria ao contrário toda a obra de Tucídides em direção a seu próprio modo de vida acima de tudo a sua busca pela verdade e a sua obra como um patrimônio para sempre I 203 224 como a melhor vida para o homem T u c íd id e s 2 9 A única menção de filosofia na obra de Tucídides está na Oração Fúnebre de Péricles Péricles elogia os atenienses por filosofar sem brandura pelo que aparentemente quis dizer sem se afiistarem da vida política E fàla também enfaticamente da supe rior dignidade da vida ativa ou política em relação à vida de lazer Mas Péricles não é capaz de entender que o filosofar dos atenienses caminha junto com uma espécie de suavidade própria Pois os homens ou pelo menos os homens mais hábeis são compe lidos pela própria gravidade de suas preocupações morais e políticas a questionar a ve racidade das suas convicções mais gratas e finalmente a voltarse para a filosofia como seu bem supremo Foi Tucídides quem teve a força mental necessária para aceitar essa compulsão e refletir sobre ela até entendêla claramente E a partir desse entendimen to ganhou força ainda maior Pois somente a partir da perspectiva que assim obteve é que poderia continuar a olhar para a vida política incluindo tanto os seus grandes horrores como suas belezas com clareza tão tranqüila e ao mesmo tempo colocála em prática por meio de sua escrita com tanto equilíbrio e humanidade L e it u r a Tuddides A Guerra do Peloponeso e os atenienses 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 33 II 4014026323 6445 cf II 414 PlATÂO ij 427347 aC Trinta e cinco diálogos e 13 cartas chegaram até nós como escritos platônicos mas nem todos são hoje considerados autênticos Alguns estudiosos chegam a duvidar de que nenhuma das cartas seja genuína A hm de não trazer à nossa apresentação o peso da polêmica as cartas serão completamente deixadas de lado É preciso dizer então que Platão não nos fala em seu próprio nome pois em seus diálogos só falam seus personagens A rigor portanto não há ensinamentos platônicos no máximo existem os ensinamentos daqueles que são os personagens principais em seus diálogos Não é fácil explicar por que Platão procedeu dessa forma Talvez duvidasse de que pudesse haver um ensino filosófico propriamente dito Talvez também acreditasse como seu mestre Sócrates que a filosofia é em última análise o conhecimento da ignorância De fato Sócrates é o personem principal da maior parte dos diálogos platônicos Podese dizer que os diálogos de Platão como um todo constituam não tanto uma apresentação de ensinamentos quanto um monumento à vida de Sócrates ao núcleo de sua vida todos eles mostram como Sócrates dedicouse à sua tarefa mais importante à conscientização dos homens e à tentativa de orientálos para a vida boa que ele próprio vivia Ainda assim Sócrates nem sempre é o personagem principal nos diálogos de Platão em alguns pouco mais fez além de escutar quando outros fàlam e em um dos diálogos as Leis sequer está presente Mencionamos esses fatos curiosos porque nos mostram como é difícil discorrer sobre os ensinamentos de Platão Todos os diálogos platônicos se referem de modo mais ou menos direto à ques tão política No entanto existem apenas três diálogos cujos títulos indicam claramente que se dedicam à filosofia política a República o Político e as Leis É principalmente por meio dessas três obras que temos acesso aos ensinamentos políticos de Platão A R e p ú b l ic a Na República Sócrates discute a natureza da justiça com um número bastante grande de pessoas A conversa sobre esse tema geral ocorre como é natural em um cenário específico em um determinado lugar num momento dado com homens que possuem cada um sua idade caráter habilidades posição na sociedade e aparência particulares Embora o local da conversa nos seja deixado bastante claro náo ocorre o mesmo com o tempo ou seja o ano Assim faltanos certo conhecimento das cir cunstâncias políticas em que se realiza essa conversa sobre os princípios da política Podemos supor no entanto que tem lugar em uma época de decadência política de Atenas que de qualquer modo Sócrates e os principais interlocutores os irmãos Glauco e Adimanto muito se preocupavam com tal decadência e cogitavam sobre o restabelecimento da saúde política Certo é que Sócrates íàz propostas muito radicais de reforma sem encontrar grande resistência Mas há também algumas indicações na República no sentido de que a almejada reforma provavelmente não terá êxito no plano político ou que a única reforma possível é a do indivíduo A conversação principia com Sócrates que fez uma pergunta para o homem mais velho presente Céfalo que é respeitado por conta de sua piedade bem como de sua riqueza A pergunta de Sócrates é um modelo de decoro Dá a Céfalo a oportunidade de felar de tudo de bom que possui de exibir sua felicidade por assim dizer e é relativa ao único assunto acerca do qual Sócrates pode aprender alguma coisa com ele sobre a sensação de ser muito idoso No decurso de sua resposta Céfelo feia de injustiça e de justiça Parece sugerir que justiça é o mesmo que dizer a verdade e devolver o que se recebeu de alguém Sócrates mostralhe que nem sempre é justo dizer a verdade e devolver a propriedade de outro homem Neste momento Polemarco íilho e herdeiro de Céfalo erguendose em defesa da opinião de seu pai assume seu lugar na conversa Mas a opinião que defende não é exatamente a mesma de seu pai se é que podemos utilizar uma piada de Sócrates Polemarco herda apenas a metade e talvez até menos da metade da propriedade intelectual de seu pai Polemarco não mais alega que dizer a verdade é essencial à justiça Sem saber estabelece assim um dos princípios da Re pública Como aparece mais tarde na obra em uma sociedade bemordenada é neces sário que se digam inverdades de certo tipo para crianças e até mesmo para adultos Este exemplo revela o caráter da discussão que ocorre no primeiro livro da República no qual Sócrates refuta uma série de opiniões falsas sobre a justiça No entanto esta obra negativa ou destrutiva contém em si as asserções construtivas da maior parte da República Consideremos a partir deste ponto de vista as três opiniões em matéria de justiça discutida no livro seguinte A opinião de Céfelo tal como retomada por Polemarco após seu pai sair para realizar um ato piedoso repousa no sentido de que a justiça consiste em devolver depósitos Expressando de modo mais genérico Céfelo defende que a justiça consiste em devolver legar ou dar a todos o que lhes pertence Mas ele também afirma que a justiça é boa ou seja salutar não só para o doador mas também para o receptor Ora é óbvio que em alguns casos dar a um homem o que lhe pertence é prejudicial a ele Nem todos os homens fazem um uso bom ou sábio do que lhes pertence de seus bens Se julgarmos de forma muito rigorosa poderemos ser levados a dizer que muito pou cas pessoas fezem um uso sábio de seus bens Se a justiça deve ser salutar podemos ser 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Platáo SepúbÜca 377 ss 389 414415 459 compelidos a exigir que todos possuam apenas o que é adequado para eles o que é bom para eles e somente enquanto for bom para eles Em poucas palavras poderemos ser compelidos a exigir a abolição da propriedade privada ou a introdução do comu nismo Na medida em que há uma conexão entre a propriedade privada e a família seriamos compelidos até mesmo a exigir a abolição da família ou a introdução do comunismo absoluto ou seja do comunismo não só em matéria de propriedades mas em relação às mulheres e crianças também Acima de tudo muitíssimo poucas pessoas serão capazes de determinar com sabedoria que coisas e que quantidade delas seriam satisfatórias para o uso de cada indivíduo ou pelo menos para cada indivíduo que é realmente levado em conta somente os homens de excepcional sabedoria é que são capazes disso Seriamos compelidos então a exigir que a sociedade seja governada por homens de simples sabedoria por filósofos no sentido estrito que exerceriam um po der absoluto Assim a refutação da opinião de Céfalo acerca da justiça contém a prova da necessidade do comunismo absoluto no sentido definido bem como do absoluto domínio dos filósofos Esta prova desnecessário dizer baseiase na indiferença a ou na abstração de uma série de aspectos da maior relevância é abstrata ao extremo Se quisermos compreender a República temos de determinar quais são esses aspectos negligenciados e a razão por que são ignorados A própria República lida atentamente fornece as respostas a essas perguntas Antes de prosseguir devemos descartar um equívoco que é muito comum hoje As teses da República resumidas nos dois parágrafos anteriores mostram claramente que Platão ou pelo menos Sócrates não era um democrata liberal São suficientes também para evidenciar que Platão não era comunista no sentido de Marx ou fascis ta o comunismo marxista e o fascismo são incompatíveis com o papel dos filósofos enquanto o regime da República continua de pé ou cai pelo governo dos filósofos Mas voltemos rápido à República Enquanto o primeiro parecer sobre a justiça foi apenas insinuado por Céfalo e explicitado por Sócrates a segunda opinião é elucidada por Polemarco embora não sem a ajuda de Sócrates Além disso a opinião de Céfalo está ligada em sua mente à visão de que a injustiça é ruim porque é punida pelos deuses após a morte Este ponto de vista não faz parte da opinião de Polemarco que é confrontado com a contradição entre as duas opiniões segundo as quais a justiça deve ser salutar para o receptor e a justiça consiste em dar a cada um aquilo que lhe pertence Polemarco supera esta contradição ao abandonar a segunda opinião Também modifica a primeira A justiça diz ele consiste em ajudar os amigos e prejudicar os inimigos Assim entendida a justiça parece ser irrestritamente boa para o doador e para aqueles receptores que são bons para o doador Surge no entanto uma dificuldade se consideramos justiça como dar a outros aquilo que lhes pertence a única coisa que o homem justo precisa saber é o que pertence àqueles com quem efetua qualquer transação este conhecimento é fornecido pela lei que em princípio pode facilmente tornarse conhecida pela mera audição Mas se o homem justo deve dar a seus amigos o que é bom para eles precisa julgar ele mesmo ele próprio deve ser capaz de distinguir corretamente os amigos dos P latão 3 3 inimigos ele próprio deve saber o que é bom para cada um de seus amigos A justiça de ve incluir o conhecimento de uma ordem elevada Para dizer o mínimo a justiça deve ser uma arte comparável à medicina a arte que conhece e produz o que é bom para o corpo humano Polemarco é incapaz de identificar o conhecimento ou a arte que acompanha a justiça ou que é a justiça Portanto é incapaz de demonstrar como a justiça pode ser salutar A discussão aponta para a visão de que a justiça é a arte que dá a cada homem o que é bom para sua alma ou seja que a justiça seja idêntica a ou pelo menos inseparável da filosofia a medicina da alma Aponta para a concepção de que não pode haver justiça entre os homens a não ser que os filósofos governem Mas Sócrates ainda não expõe essa visão Ao contrário deixa claro para Polemarco que o homem justo ajudará os homens justos ao contrário de seus amigos e não prejudi cará ninguém Não afirma que o homem justo ajudará a todos Talvez queira dizer que há seres humanos a quem não pode beneficiar Mas certamente também quer dizer algo mais Podese entender que a tese de Polemarco reflete uma opinião mais potente em relação à justiça a opinião segundo a qual justiça significa espírito público de dicação integral à própria cidade como uma determinada sociedade que como tal é o inimigo em potencial de outras cidades A justiça assim entendida é patriotismo e consiste na verdade em ajudar os próprios amigos ou seja os concidadãos e prejudi car os inimigos ou seja os estrangeiros A justiça assim compreendida não pode ser totalmente distribuída em cidade alguma por mais justa que seja pois mesmo a cida de mais justa é uma cidade uma sociedade privada ou fechada ou exclusiva Portanto o próprio Sócrates exige mais tarde no diálogo que os guardiões da cidade sejam por natureza amistosos para com seu próprio povo e rigorosos ou rudes para com estran geiros Também exige que os cidadãos da cidade justa deixem de considerar todos os seres humanos como seus irmãos e restrinjam os sentimentos e ações de fraternidade apenas aos seus concidadãos Compreendida de modo correto a opinião de Polemarco é a única entre as concepções gerais de justiça discutidas no primeiro livro da República que é inteiramente preservada na parte positiva ou construtiva da República Esta opi nião para repetir tem o sentido de que a justiça seja plena dedicação ao bem comum exige que o homem nada n e de si mesmo para sua cidade exige portanto por si só isto é se abstrairmos todas as outras considerações comunismo absoluto A terceira e última opinião discutida no primeiro livro da RepiAlka é a única ex pressa por Trasímaco Tratase do único orador nesta obra que manifesu raiva e se com porta de forma descortês e até selvagem Trasímaco está muito indignado com o resul tado da conversa de Sócrates com Polemarco e parece estar particularmente chocado com a alegação de Sócrates de que não é bom para si mesmo prejudicar quem quer que seja ou que a justiça nunca é prejudicial a ninguém É muito importante tanto para a compreensão da República quanto de modo geral que não nos comportemos para com Trasímaco do modo como Trasímaco se comporta isto é com raiva fenatismo ou 3 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 Ihidyi9y7f 3 IbidA selvageria Se então examinarmos a indação de Trasímaco sem indignação devere mos admitir que a sua reação violenta é até certo ponto uma revolta do senso comum Como a cidade é uma sociedade que de tempos em tempos deve travar uma guerra e a guerra é inseparável do prejuízo a pessoas inocentes uma cabal condenação a lesar seres humanos seria equivalente a condenar até mesmo a cidade mais justa Além disso parece ser inteiramente apropriado que o mais violento homem presente deva sustentar a tese mais feroz acerca da justiça Trasímaco declara que a justiça é a vantagem do mais forte Ainda assim essa tese demonstra ser apenas a conseqüência de uma opinião que não é apenas manifestamente brutal mas é até mesmo merecedora de grande respeito Segundo essa opinião o justo é idêntico ao lícito ou ao lal ou seja àquilo que os costumes ou as leis da cidade determinam No entanto essa opinião implica que não há nada superior às leis do homem ou às convenções a que se possa apelar Esta é a opinião hoje conhecida pelo nome positivismo jurídico mas na sua origem não é meramente especulati é a opinião na qual tendem a se basear as ações de todas as sociedades políticas Se o justo é idêntico ao lal a fonte da justiça é a vontade do legislador O legislador em cada ci dade é o regime o homem ou grupo de homens que governa a cidade o tirano o povo comum os homens de excelênda e assim por diante De acordo com Trasímaco cada rime estabelece as leis com vistas à sua própria preservação e bemestar numa palavra em proveito próprio e nada mais Daí se segue que a obediência às leis ou à justiça não é necessariamente vantajosa para os governados e pode até ser ruim para eles E no que tange aos governantes a justiça simplesmente não existe é preocupandose exclusiva mente com seu próprio beneficio que estabelecem as leis Admitamos por um momento que esteja correta a visão da lei por parte de Trasímaco e dos governantes Decerto os governantes podem cometer erros Podem comandar ações que de íàto são desvantajosas para si mesmos e vantajosas para os governados Nesse caso com efeito os indivíduos justos ou cumpridores da lei fiirão o que é desvantajoso para os governantes e vantajoso para os governados Quando essa dificuldade lhe é apontada por Sócrates Trasímaco declara após alguma hesitação que os governantes não são governantes se e quando cometem erros o governante no sentido estrito é infiJível do mesmo modo que o artesão no sentido estrito é infalí vel É esta noção de Trasímaco a respeito do artesão no sentido estrito que Sócrates usa com grande felicidade contra ele Pois o artesão no sentido estrito revelase preo cupado não com sua própria vantagem mas com a vantiem dos outros a quem ser ve o sapateiro fãz sapatos para os outros e só acidentalmente para si mesmo o médico receita para seus pacientes tendo em vista a vantagem deles desta forma se governar é como Trasímaco admitiu semelhante a uma arte o governo atende os governados ou seja um governo em beneficio dos governados O artesão em sentido estrito é infa lível ou seja fez bem seu trabalho e só está preocupado com o bemestar dos outros Isso porém significa que a arte entendida estritamente é justiça justiça em atos e não apenas na intenção como no cumprimento da lei Arte é justiça essa pro P latAo 3 5 4 Ibid 4 7 1 posição reflete a afirmação socrática de que a virtude é conhecimento A siestão que emerge do debate de Sócrates com Trasímaco leva à conclusão de que a cidade justa será uma associação em que todos são artesãos no sentido estrito uma cidade dos artesãos ou artífices dos homens e mulheres cada um dos quais tem um único trabalho que faz bem e com dedicação integral ou seja sem se importar com sua própria vantagem e só para o bem de outrem ou para o bem comum Essa conclusão permeia todos os ensinamentos da República A cidade lá construída como modelo baseiase no princípio de um homem um trabalho Os soldados dela são artífices da liberdade da cidade os filósofos dela são artífices de toda a virtude comum existe um anífice do céu até Deus é apresentado como um artesão como o próprio artífice das ideias eternas É por ser a cidadania na cidade justa um artesanato de um tipo ou outro e porque a sede do artesanato ou da arte está na alma e não no corpo que a diferença entre os dois sexos perde sua importância ou é estabelecida a igualdade dos dois sexos Trasímaco poderia ter evitado a sua queda se tivesse deixado a questão no nível do senso comum segundo o qual os governantes são naturalmente íãlíveis ou se tivesse afirmado que todas as leis são forjadas pelos governantes com vistas à sua aparente e não necessariamente verdadeira vantem Como Trasímaco não é nobre temos o di reito de suspeitar que escolheu a alternativa que se revelou fatal para si tendo em vista a sua própria vantem pois era um famoso professor de retórica a arte da persuasão Por conseguinte aliás é o único possuidor de uma arte a falar na República A arte da persuasão é necessária para convencer os governantes e particularmente as assembléias legislativas pelo menos aparentemente de sua verdadeira vantagem Mesmo os pró prios governantes necessitam da arte da persuasão para convencer seus subordinados de que as leis que são engendradas tendo em vista exclusivamente os benefícios para os governantes atendem ao benefício dos subordinados A própria arte de Trasímaco resiste ou tomba devido à visão de que a prudência é de extrema importância para o governo A mais clara expressão dessa visão é a proposição de que o governante que comete erros não é mais um governante A ruína de Trasímaco é causada não por uma rigorosa refutação da sua visão da justiça nem por um deslize acidental de sua parte mas pelo conflito entre sua depre ciação da justiça ou sua indiferença para com a justiça e as implicações de sua arte há alguma verdade na visão de que a arte é justiça Podese dizer e Trasímaco de fato o diz que a conclusão de Sócrates a saber que nenhum governante ou outro artesão jamais considera a sua própria vantagem é muito simplória Sócrates parece ser uma criança de colo No que diz respeito aos próprios artesãos estes naturalmente consi deram a remuneração que recebem por seu trabalho Pode ser verdade que na medida em que o médico esteja preocupado com os que são caracteristicamente denomina dos seus honorários ele não exerce a arte da medicina mas a arte de fazer dinheiro porém uma vez que o que é verdade para o médico é verdadeiro para o sapateiro e 36 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 5 Ihid 395 500 530 507 597 6 Aírf454455cf452 também para qualquer outro artesão seria preciso dizer que a única arte universal a arte que acompanha todas as artes a arte das artes é a arte de fazer dinheiro é preci so portanto dizer ainda que servir a outros ou ser justo tornase bom para o artesão somente através de sua prática da arte de fazer dinheiro ou que ninguém é justo por uma questão de justiça ou que ninguém gosta de justiça como tal Contudo o argu mento mais devastador contra o raciocínio de Sócrates é fornecido pelas artes que se preocupam manifestamente com a mais impiedosa e calculista exploração dos gover nados pelos governantes Tal arte é a arte do pastor a arte sabiamente escolhida por Trasímaco a fim de arrasar o argumento de Sócrates especialmente porque desde os tempos mais remotos reis e outros governantes são comparados a pastores O pastor certamente se preocupa com o bemestar de seu rebanho para que as ovelhas forne çam aos homens as mais suculentas costeletas de cordeiro Na concepção de Trasíma co os pastores preocupamse somente com o bem dos proprietários e com o próprio Entretanto há obviamente uma diferença entre os proprietários e os pastores as mais saborosas costeletas de cordeiro são para o proprietário e não para o pastor a menos que o pastor seja desonesto Ora a posição de Trasímaco ou de qualquer homem de seu tipo em relação tanto aos governantes como aos governados é precisamente a do pastor no que diz respeito tanto aos proprietários quanto às ovelhas Trasímaco poderá beneficiarse com segurança do apoio que dá aos governantes independentemente de serem tiranos pessoas comuns ou homens de excelência somente se lhes for fiel se fizer bem o seu trabalho para eles se mantiver a sua parte no acordo se for justo Contrariamente à sua afirmação deve concordar que a justiça de um homem é salu tar não só para os outros e especialmente para os governantes mas também para si mesmo É em parte porque tem consciência dessa necessidade que Trasímaco muda tanto suas maneiras na última parte do primeiro livro O que é verdadeiro para os ajudantes dos governantes é verdade dos próprios governantes e de todos os outros seres humanos inclusive tiranos e bandidos que precisam da ajuda de outros homens em seus empreendimentos mesmo que sejam injustos nenhuma associação perdurará se os seus membros não praticarem a justiça entre si mesmos Isso porém eqüivale a uma admissão de que a justiça pode ser simplesmente um meio embora um meio indispensável para a injustiça para a exploração de estranhos Acima de tudo não elimina a possibilidade de que a cidade seja uma comunidade unida pelo egoísmo co letivo e nada mais ou que não haja diferença fundamental entre a cidade e um bando de ladrões Essas e outras dificuldades explicam por que Sócrates considera insuficiente sua refutação de Trasímaco o filósofo declara em sua conclusão que tentou mostrar que a justiça é boa sem ter esclarecido o que é justiça A defesa adequada ou elogio da justiça pressupõem não só o conhecimento do que é justiça mas também um ataque adequado à justiça No início do segundo livro Glauco tenta apresentar tal ataque alega reafirmar a tese de Trasímaco na qual não P latão 3 7 Ibid 3 4 3 Ibid 3 5 1 3 5 2 acredita com maior empenho do que Trasímaco utilizara Glauco também tem como pressuposto que o justo é o mesmo que legal ou convencional mas tenta mostrar como a convenção emerge da natureza Por natureza cada homem se preocupa apenas com seu próprio bem e não tem qualquer preocupação com o bem de outro homem a tal ponto que nada hesiu em prejudicar seus companheiros Uma vez que todos agem em conformidade com isso todos ocasionam uma situação que é insuportável para a maioria deles a maioria ou seja os fracos descobre que cada um deles estaria em me lhores condições se todos concordassem quanto ao que cada um deles poderia ou não fezer O acordo que fàzem não é explicitado por Glauco mas podese adivinhar fecil mente uma parte dele concordarão que ninguém pode atentar contra a vida e a inte gridade física a honra a liberdade e a propriedade de qualquer dos associados ou seja dos concidadãos e que todos devem dar o melhor de si para proter os associados contra estranhos Nem a abstenção de tais transgressões nem os serviços de proteção são de forma alguma desejáveis por si mesmos mas apenas males necessários toda via males menores do que a insegurança universal No entanto o que é verdade para a maioria não é verdadeiro do homem real que pode cuidar de si mesmo e que estará em situação melhor se não se submeter às leis ou às convenções Contudo mesmo os outros violentam suas naturezas ao se submeterem à lei e à justiça submetemse a elas apenas por medo das conseqüências de não aquiescerem ou seja por medo de um tipo ou outro de punição não por vontade própria nem com al ia Portanto todo homem preferiria a injustiça à justiça se pudesse ter certeza de que não seria fli d o a justiça é preferível à injustiça somente quando se vislumbra a possibilidade de detec ção de se tornar conhecido como justo para com os outros isto é à boa reputação ou outras recompensas Assim uma vez que como espera Glauco a justiça é uma escolha sábia por si mesma ele exige de Sócrates umà prova de que a vida do homem justo é preferível à do homem injusto mesmo que o homem justo seja considerado injusto ao extremo e sofra todos os tipos de punição ou esteja em profundo sofrimento e o homem injusto seja considerado justo ao extremo e receba todos os tipos de recom pensa ou esteja no aie da felicidade o ápice da injustiça isto é da conduta de acordo com a natureza é a exploração tácita das leis ou das convenções somente em benefício próprio o conflito do tirano sumamente astuto e viril Na discussão com Trasímaco a questão se turvara pela sugestão de que existe um parentesco entre a justiça e a ane Glauco põe a questão em evidência ao comparar o homem perfeitamente injusto com o perfeito artesão enquanto concebe o homem perfeitamente justo como um homem simples que não tem outra qualidade além da justiça Examinando os ensinamentos da República como um todo somos tentados a dizer que Glauco compreende a pura jus tiça à luz da pura fortaleza seu homem perfeitamente justo nos fez lembrar o soldado desconhecido que se submete à morte mais dolorosa e mais humilhante sem qualquer outra finalidade exceto morrer corajosamente e sem qualquer perspectiva de que sua nobre ação venha a ser conhecida A demanda de Glauco sobre Sócrates é fortemente apoiada por Adimanto Fica evidente pelo discurso deste último que a opinião de Glauco segundo a qual a justiça 38 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y é uma escolha sábia inteiramente por si mesma é totalmente inovadora pois na visão tradicional a justiça era considerada uma escolha sábia principalmente se não exclusi vamente por causa das recompensas divinas para a justiça e pelos castígos divinos para a injustíça e várias outras conseqüências O longo discurso de Adimanto difere do de Glauco porque traz à tona o feto de que se a justiça é uma escolha sábia por si mesma deve ser fócil ou sradável As demandas de Glauco e Adimanto estabelecem o padrão pelo qual se deve julgar o elogio de Sócrates à justíça pois nos forçam a investigar se e em que medida Sócrates provou na RepúbUca que a justíça é uma escolha sábia ou agradável por si mesma ou até mesmo por si só suficiente para tornar um homem perfeitamente feliz no meio do que é de forma geral considerada a mais extrema infelicidade A fim de defender a causa da justiça Sócrates voltase para a fimdação juntamen te com Glauco e Adimanto de uma cidade no discurso A razão pela qual esse pro cedimento é necessário pode ser expressa como segue Acreditase que a justiça seja a obediência às leis ou a firme vontade de dar a cada um o que lhe pertence isto é o que lhe pertence de acordo com a lei mas também se acredita que a justíça seja boa ou sa lutar mas obedecer às leis ou conceder a todos o que lhes pertence de acordo com a lei não é irrestritamente salutar já que as leis podem ser más a justiça será simplesmente salutar somente quando as leis forem boas e isso exige que seja bom o regime a partir do qual emanam as leis a justíça só será totalmente salutar em uma boa cidade O procedimento de Sócrates implica além disso que não conhece nenhuma cidade real que seja boa este é o motivo pelo qual é compelido a fundar uma boa cidade Só crates justifica o feto de recorrer à cidade pela consideração de que a justiça pode ser detectada mais facilmente na cidade do que no indivíduo humano porque a primeira é maior do que o último indica portanto que existe um paralelismo entre a cidade e o indivíduo humano ou mais precisamente entre a cidade e a alma do indivíduo humano Isso significa que o paralelismo entre a cidade e o indivíduo humano baseia se em certa abstração do corpo humano Na medida em que existe um paralelismo entre a cidade e o indivíduo humano ou sua alma a cidade é no mínimo semelhante a um ser natural No entanto esse paralelismo não está completo Enquanto a cidade e o indivíduo parecem igualmente capazes de serem justos não é certo que possam ser igualmente felizes cf o início do quarto livro A distinção entre a justiça do indivíduo e sua felicidade foi elaborada pela exigência de Glauco a Sócrates de que a justiça deve ser elogiada independentemente de ter ou não quaisquer atrações extrínsecas Foi ela borada também a partir da opinião comum segundo a qual a justiça exige a dedicação integral do indivíduo para o bem comum A fundação da boa cidade acontece em três etapas a cidade salutar ou a cidade dos porcos a cidade purificada ou a cidade do acampamento armado e a Cidade da Beleza ou a cidade governada por filósofos P latão 3 9 Cf ibid 364 365 com 357 e 358 A fundação da cidade é precedida pela observação de que a cidade tem sua ori gem na necessidade humana cada ser humano justo ou injusto precisa de muitas coisas e pelo menos por esta razão precisa de outros seres humanos A cidade salutar satisfez de modo adequado às necessidades primárias às necessidades do corpo A sa tisfação adequada requer que cada homem exerça apenas uma arte Isso significa que todos fezem quase todo o seu trabalho para outros mas também que outros trabalhem para eles Todos trocam uns com os outros seus próprios produtos como seus próprios produtos haverá propriedade privada ao trabalhar em benefício dos outros todos tra balham em vanuem própria A razão pela qual todos exercerão apenas uma arte é que os homens diferem uns dos outros por natureza isto é cada homem tem o dom para uma arte diferente Uma vez que cada um exercerá a arte para a qual é por natureza mais bemdotado a carga será mais leve para todos A cidade saudável é uma cidade feliz não conhece pobreza nem coerção ou governo nem guerra não se alimenta de animais É de tal forma feliz que cada um de seus membros é feliz não precisa de governo porque há uma harmonia perfeita entre o trabalho de cada um e sua recom pensa ninguém transgride contra ninguém Não precisa de governo porque cada um escolhe por si mesmo a arte para a qual é mais bemdotado não há desarmonia entre dons naturais e preferências Também não há desarmonia entre o que é bom para o indivíduo sua escolha da arte para a qual é mais bem dotado por natureza e o que é bom para a cidade a natureza organizou as coisas de tal forma que não há excedente de ferreiros ou déficit de sapateiros A cidade saudável é feliz porque é justa e é justa porque é feliz na cidade saudável a justiça é fácil ou agradável e livre de qualquer tintura de autossacrifício É justa sem que ninguém se preocupe com a sua justiça é justa por natureza No entanto é considerada deficiente É impossível pelo mesmo motivo por que o anarquismo em geral é impossível O anarquismo seria possível se os homens pudessem permanecer inocentes mas é parte essencial da inocência que seja perdida com facilidade e os homens não são capazes de adquirir conhecimento sem esforço e sem antonismo Dito de outra forma enquanto a cidade saudável é justa em um sentido feltamlhe a virtude ou a excelência a justiça tal qual a que possui não é vinude A virtude é impossível sem trabalho duro esforço ou a repressão do mal em si mesmo A cidade sautfevel é uma cidade em que o mal existe apenas em estado latente A morte só é mencionada quando já se iniciou a transição da cidade saudável para a próxima fese A cidade saudável é chamada de cidade de porcos não por Só crates mas por Glauco que não sabe bem o que diz Falando literalmente a cidade saudável é uma cidade sem porcos Antes que a cidade purificada possa surgir ou melhor ser estabelecida a cidade salutar deve ter deteriorado Sua decadência é provocada pela emancipação do desejo por coisas desnecessárias ou seja pelas coisas que não são necessárias para o bemestar ou para a saúde do corpo Assim emerge a cidade de luxo ou efervescente a cidade 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid 372 11 370 373 caraaerízada pelo empenho na aquisição ilimitada da riqueza Podese esperar que em tal cidade os indivíduos deixarão de exercer a ane única para a qual cada um é designado pela natureza mas exercerão qualquer arte ou combinação de artes que seja mais lucrativa ou que não haverá mais uma estrita correspondência entre o trabalho e a recompensa desta forma haverá insatisfação e conflitos e portanto necessidade de um governo que restaurará a justiça desta forma haverá necessidade de algo mais que também esteve completamente ausente da cidade saudável ou seja a educação pelo menos dos governantes e mais particularmente a educação para a justiça Certamente haverá necessidade de mais territórios e consequentemente haverá guerra a guerra de agressão Com base no princípio um homem uma arte Sócrates exige que o exército seja composto por homens que não tenham nenhuma outra arte além da de guerrear Fica a impressão de que a arte dos guerreiros ou dos guardiões é de longe superior às outras artes Até agora era como se todas as artes fossem de igual valor e a única arte universal ou a única arte que acompanha todas as artes fosse a arte de fezer dinhei ro Agora temos o primeiro vislumbre da verdadeira ordem das artes Essa ordem é hierárquica a arte universal é a arte mais elevada a arte que dirige todas as outras artes e como tal não pode ser exercida por aqueles que se ocupam de outras artes além da mais elevada Essa arte das artes se revelará como a filosofia Por enquanto somos informados apenas de que o guerreiro deve ter uma natureza semelhante à natureza da besta que filosofe o cão Pois os guerreiros devem ser espirituosos e portanto irascí veis e duros por um lado e gentis por outro uma vez que devem ser duros em relação a estranhos e gentis para com seus concidadãos Devem gostar desinteressadamente de seus concidadãos e nutrir uma antipatia desinteressada pelos estrangeiros Os homens que possuem essas naturezas especiais necessitam além de tudo de uma educação espe cial Com vistas ao seu trabalho necessitam de treinamento na arte da guerra Mas essa não é a educação com que Sócrates mais se preocupa Serão por natureza os melhores lutadores e os únicos armados e treinados em armas serão inevitavelmente os únicos possuidores do poder político Além disso tendo terminado a idade da inocência o mal prevalece na cidade e portanto também nos guerreiros A educação de que os guerreiros precisam mais do que quaisquer outros é acima de mdo uma educação em virtude cívica Essa educação é a educação musical uma educação realizada es pecialmente por meio da poesia e da música Nem toda poesia e música são capazes de transformar os homens em bons cidadãos em geral e em bons guerreiros ou guardiões em particular Portanto a poesia e a música que não contribuem para tais fins morais e políticos devem ser banidas da cidade Sócrates está muito longe de exigir que Homero e Sófocles sejam substituídos pelos fabricantes de lixo edificante a poesia que exige para a boa cidade deve ser genuinamente poética Sócrates exige particularmente que os deuses sejam apresentados como modelos de excelência humana isto é do tipo de excelência humana a que os guardiões podem e devem aspirar Os governantes serão selecionados dentre a elite dos guardiões No entanto a educação prescrita por mais P l a iã o 4 1 12 Ibid 342 346 que seja excelente e eficaz náo é suficiente se náo for sustentada pelo tipo certo de ins tituições quer dizer pelo comunismo absoluto ou pela mais completa abolição possível da vida privada todos têm direito a entrar na moradia de todos os outros à vontade Como recompensa por seus serviços para os artesãos propriamente ditos os guardiões não recebem dinheiro de qualquer espécie mas apenas uma quantidade suficiente de alimentos e podemos supor das outras necessidades Vamos ver de que forma a boa cidade descrita até aqui revela que a justiça é boa ou mesmo atraente por si mesma Que a justiça ou a observação da justa proporção entre o trabalho e a recompensa entre trabalhar para outros e em vantiem própria é necessária foi demonstrado na discussão com Trasímaco pelo exemplo do bando de ladrões A educação dos guardiões tal como acordado entre Sócrates e Adimanto não é a educação para a justiça É a educação para a coragem e a moderação A educação musical em particular distinta da educação para o ginasta é a educação para a mode ração o que significa amar o belo isto é aquilo que é por natureza atraente por si só Podese dizer que a justiça no sentido estrito e rigoroso flui da moderação ou a partir da combinação adequada de moderação e de condem Sócrates assim tacitamente esclarece a diferença entre o bando de ladrões e a boa cidade a diferença essencial consiste no fato de que a parte armada e dominante da cidade é vitalizada pelo amor do belo pelo amor de tudo o que é louvável e gracioso A diferença não deve ser procurada no fato de que a boa cidade é guiada em suas relações com outras cidades gregas ou bárbaras por considerações de justiça o tamanho do território da boa cida de é determinado pelas próprias necessidades moderadas da cidade e por nada mais Talvez a dificuldade se revele de modo mais claro a partir do que diz Sócrates quando fida dos governantes Além das outras qualidades requeridas os governantes devem ter a qualidade de zelar pela cidade ou amar a cidade mas o homem terá maior pro babilidade de amar aqueles cujos interesses acredita serem idênticos aos seus próprios ou cuja felicidade acredite ser condição para a sua própria O amor aqui mencionado não é obviamente desinteressado no sentido em que o governante ama a cidade ou seu serviço para a cidade por si mesmos Isso pode explicar por que Sócrates exige que os governantes sejam honrados tanto enquanto vivem como após sua mone De qualquer modo o mais elevado grau de zelo pela cidade e de um para com o outro não ocorrerá a menos que todos sejam levados a crer na mentira de que todos os concida dãos e somente eles são irmãos Para dizer o mínimo a harmonia entre o interesse próprio e o interesse da cidade que foi perdida com a decadência da cidade saudável ainda não foi restaurada Não é de admirar portanto que no início do quarto livro Adimanto expresse sua insatisfação com a situação dos soldados na cidade do acampa mento armado Lida dentro do contexto de todo o argumento a resposta de Sócrates 4 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ibid 392 14 Ibid 423 cf também 398 e 422 15 óé414465466c f 346ss 16 IbidA5 repousa neste sentido somente como membro de uma cidade feliz é que um homem pode ser feliz apenas dentro desses limites pode um homem ou qualquer outra parte da cidade ser feliz compleu dedicação à cidade feliz é justiça Resta saber se a com pleta dedicação à cidade feliz é ou pode ser a felicidade do indivíduo Após estar concluída a maior parte da fundação da boa cidade Sócrates e seus amigos passam a procurar onde estão nela a justiça e a injustiça e procuram saber se para ser feliz o homem deve possuir justiça ou injustiça Examinam primeiro as três outras virtudes além da justiça sabedoria corsm e moderação Na cidade fundada de acordo com a natureza a sabedoria reside nos governantes e somente nos governan tes pois os homens sábios são por natureza a menor parte de qualquer cidade e não seria bom para a cidade se não fossem os únicos ao leme Na boa cidade a corjem reside na classe guerreira pois a condem política diferentemente do destemor brutal surge somente por meio da educação naqueles por natureza dotados para isso A moderação por outro lado pode ser encontrada em todas as partes da boa cidade No presente contexto moderação não significa exatamente o que significava quando foi discutida a educação dos guerreiros mas sim o controle do que é melhor por nature za aquele controle por meio do qual o todo está em harmonia Em outras palavras a moderação é o acordo dos naturalmente superiores e inferiores quanto a qual dos dois deve governar a cidade Uma vez que há diferença entre controlar e ser contro lado devese assumir que a moderação dos governantes não é idêntica à moderação dos governados Enquanto Sócrates e Glauco tiveram facilidade em encontrar as três virtudes mencionadas na boa cidade é difícil encontrar nela a justiça porque como diz Sócrates a justiça é tão evidente nela A justiça consiste em cada um fezer em prol da cidade aquilo para o que sua natureza é mais adequada ou simplesmente em cada um cuidar de seus próprios negócios é em virtude da justiça assim entendida que as outras três virtudes são virtudes Mais precisamente uma cidade é justa se cada uma das suas três partes os que fezem dinheiro os guerreiros e os governantes reali zam o seu próprio trabalho e somente o seu próprio trabalhoA justiça é portanto semelhante à moderação e diversa da sabedoria e da condem não o reduto de uma única parte mas exigida de todas as partes Desta forma a justiça como a modera ção tem um caráter diferente em cada uma das três classes Devese pressupor por exemplo que a justiça dos governantes sábios é afetada por sua sabedoria e a justiça dos fezedores de dinheiro é afetada por sua feita de sabedoria pois se até mesmo a coragem dos guerreiros é apenas a coragem política ou cívica e não a condem pura e simples é lógico que a sua justiça também para não falar da justiça dos fazedores de dinheiro não será justiça pura e simples A fim de descobrir a justiça pura e simples tornase então necessário considerar a justiça no indivíduo Essa consideração seria P latAo 4 3 17 Ibid 427 18 Ibid 433 19 Ibid 434 20 Ibid 430 cf Fidon 82 mais fócil se a justiça no indivíduo fosse idêntica à justiça na cidade isso exigiria que o indivíduo ou melhor sua alma consistisse nos mesmos três tipos de natureza que a cidade Um exame muito provisório da alma parece estabelecer este requisito a alma contém desejo ímpeto ou raiva e razão tal como a cidade consiste em fózedores de dinheiro guerreiros e governantes Assim podemos concluir que um homem é justo se cada uma dessas três partes de sua alma realiza o seu próprio trabalho e somente o seu próprio trabalho ou seja se sua alma está em estado de saúde Mas se a justiça é a saúde da alma e inversamente a injustiça é a doença da alma é óbvio que a justiça é boa e a injustiça é ruim independentemente do fóto de alguém ser conhecido por ser justo ou injusto Um homem é justo se sua parte racional é sábia e domina e se a parte impetuosa sendo o sujeito e aliado da parte racional auxilia no controle da mul tidão de desejos que quase inevitavelmente se tornam desejos de mais dinheiro e ainda mais dinheiro Isso significa no entanto que apenas o homem em quem a sabedoria domina as outras duas partes ou seja somente o homem sábio pode ser verdadeira mente justo Não é de admirar então que o homem justo afinal se revele idêntico ao filósofo Os fózedores de dinheiro e os guerreiros não são verdadeiramente justos mesmo na cidade justa porque sua justiça deriva exclusivamente de um hábito de um tipo ou outro distinto da filosofia portanto no mais profundo de suas almas anseiam pela tirania ou seja pela completa injustiça Vemos então como Sócrates estava certo quando esperava encontrar injustiça na boa cidade Isso não significa negar é claro que como membros da boa cidade os não filósofos agirão de modo muito mais justo do que agiriam se fossem membros de cidades inferiores A justiça dos que não são sábios aparece sob luz diferente quando está sendo considerada a justiça na cidade por um lado e do outro a justiça na alma Esse fóto mostra que é fólho o paralelismo entre a cidade e a alma Esse paralelismo exige que assim como na cidade os guerreiros ocupem um posto mais elevado do que os fózedores de dinheiro assim na alma o ímpeto ocupa um posto mais elevado do que o desejo É muito plausível que aqueles que defendem a cidade contra os inimigos estrangeiros e domésticos e que receberam uma educação musical mereçam respeito maior do que aqueles que não têm responsabilidade pública nem educação musical Mas é muito menos plausível que o ímpeto como tal devesse merecer maior respeito de que o desejo como tal É verdade que o ímpeto inclui uma grande variedade de fe nômenos que vão desde a mais nobre indignação com a injustiça torpeza e maldade e até a raiva de uma criança mimada que se ressente de ser privada de qualquer coisa que deseja não importando se é ruim Mas o mesmo também é verdadeiro do desejo 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 21 Repúblka 441 22 IbidóWM 23 Ibid 441 24 C fító442 25 Ibid 580583 26 Ibid 619 27 Ibid A17 um tipo de desejo é eros que se estende em suas formas saudáveis desde o desejo de imortalidade por meio da descendência até o desejo de imortalidade por meio da fema imortal ao desejo de imortalidade por meio da participação pelo conhecimento das coisas que são imutáveis em todos os aspeaos É questionável então a afirmação de que o ímpao é mais elevado na hierarquia do que desejo como tal Nunca nos es queçamos de que embora exista um eros filosófico não existe ímpeto filosófico ou em outras palavras que visivelmente Trasímaco é muito mais o ímpeto encarnado do que o desejo encarnado A afirmação em causa baseiase em uma abstração deliberada de eros uma abstração caraaerística da República Essa abstração se mostra mais impressionante em dois fàtos quando Sócrates menciona as necessidades fundamentais que dão origem à sociedade humana é omis so quanto à necessidade de procriação e quando descreve o tirano a Injustiça encar nada apresentao como eros encarnado Na discussão temática da respectiva posição hierárquica de ímpeto e desejo Sócrates se cala a respeito de eros Parece haver uma tensão entre eros e a cidade e consequentemente entre eros e a justiça só através da depreciação de eros é que a cidade pode assumir sua existência Bros obedece às suas próprias leis não às leis da cidade não importa que esta seja boa ou não na boa cida de eros está apenas sujeito ao que a cidade exige A boa cidade exige que todo amor próprio todo amor espontâneo pelos próprios pais os próprios filhos os próprios amigos e seres queridos seja sacrificado ao amor comum pelo comum Na medida do possível o amorpróprio deve ser abolido exceto enquanto significar o amor pela cidade esta cidade em particular como a própria cidade Na medida do possível o patriotismo toma o Itar de eros e o patriotismo tem um parentesco mais estreito com o ímpeto a disposição para a luta a irascibilidade a ira e a indignação do que eros Embora seja prejudicial para a alma agarrar Platão pela garganta por não ser um democrata liberal também é ruim encobrir a diferença entre o platonismo e a democracia liberal pois as premissas Platão é admirável e a democracia liberal é admirável não levam genuinamente à conclusão de que Platão seja um democrata liberal A fundação da boa cidade teve início a partir do fato de que os homens são por natureza diferentes o que revelou significar que os homens ocupam por natureza lugares desiguais na hierarquia São desiguais em particular no que diz respeito à sua capacidade de adquirir a virtude A desigualdade que é devida à natureza é aumentada e aprofundada pelos diferentes tipos de educação ou de habituação e pelos diferentes estilos de vida comunistas ou não comunistas de que desfrutam as diferentes partes da boa cidade Como resultado a boa cidade se assemelha a uma sociedade de castas Um relato da boa cidade da República faz com que um personagem platônico que o ouve se recorde do sistema de castas estabelecido no antigo Egito embora seja bastan P latAo 4 5 28 Cf ibid 366 29 Ibid 573 574575 30 Cf ibid 439 te evidente que no t o os governantes eram sacerdotes e não filósofos Decerto na boa cidade da República não é a descendência mas em primeiro lugar os dons naturais de cada um que determinam a classe a que se pertence Mas isso traz uma dificuldade Os membros da classe superior que vive comunisticamente não devem saber quem são seus pais biológicos pois devem reputar como seus pais todos os ho mens e mulheres pertencentes à geração mais velha Por outro lado as crianças bem dotadas da classe inferior não comunista devem ser transferidas para a classe superior e viceversa uma vez que seus dons superiores não são necessariamente reconhecidos no momento do nascimento são susceptíveis de conhecer seus pais biológicos e até mesmo de vincularse a eles o que pareceria incapacitálos para a transferência para a classe superior Há duas maneiras de solucionar essa dificuldade A primeira é expandir o comunismo absoluto até a classe inferior e considerando a relação entre estilo de vida e educação também expandir a educação musical para aquela dasse Segundo Aristóteles Sócrates não definiu se na boa cidade o comunismo absoluto é limitado à classe superior ou se abarca também a classe inferior Deixar essa questão em aberto estaria de acordo com a má opinião professada por Sócrates quanto à importância da classe inferior Ainda assim não há grande dúvida de que Sócrates pretendia limitar tanto o comunismo como a educação musical à classe superior Portanto a fim de eliminar a dificuldade mencionada Sócrates dificilmente poderá evitar que seja here ditária a participação de um indivíduo na classe superior ou inferior e assim violar um dos princípios mais elementares da justiça Além disso podese perguntar se é possível traçar uma linha perfeitamente distinta entre os bemdotados e os sem talento para a profissão de guerreiro e portanto se é possível uma designação perfeitamente justa de indivíduos para a classe superior ou inferior e portanto se a boa cidade pode ser perfeitamente justa Mas seja como for se o comunismo se limita à classe supe rior haverá privacidade tanto na classe dos que fàzem dinheiro e entre os filósofos en quanto filósofos pois pode muito bem haver apenas um único filósofo na cidade mas decerto jamais um rebanho os guerreiros são a única classe que é totalmente política ou pública ou completamente dedicada à cidade desta forma só os guerreiros consti tuem o caso mais evidente da vida justa em um certo sentido da palavra justa É necessário entender a razão pela qual o comunismo se limita à classe superior ou qual é o obstáculo natural para o comunismo Aquilo que é por natureza privado ou próprio do homem é o corpo e somente o corpo As necessidades ou desejos do cor po induzem os homens a ampliarem tanto quanto possível a esfera do privado do que é próprio de cada homem Esse empenho tão grande é contrariado pela educação 46 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoifncA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 31 7íotí24 32 República 401 421422 460 543 33 PoUtica 1264 1317 34 República 421 434 35 óirf415431456 36 Reconsiderar ibid 427 37 tó464cfIí739 musical que engendra a moderação ou seja um treinamento mais rigoroso da alma do qual ao que parece apenas uma minoria dos homens é capaz No entanto esse tipo de educação não extirpa o desejo natural de cada um por suas próprias coisas ou seres humanos os guerreiros não aceitarão o comunismo absoluto se não estiverem sujeitos aos filósofos Assim fica claro que o esforço em proveito próprio em última análise é contrabalançado somente pela filosofia pela busca da vercbde que como tal não pode ser propriedade privada de niiém Ao passo que o privado é por excelência o corpo o comum por excelência é a mente a mente pura ao contrário da alma em geral A superioridade do comunismo em relação ao não comunismo tal como ensinada na República só é inteligível como um reflexo da superioridade da filosofia sobre a não fi losofia o que contradiz visivelmente o resultado do parrafo anterior Essa contradição pode e deve ser resolvida pela distinção entre os dois sentidos de justiça Essa distinção não pode ser esclarecida antes de se ter compreendido os ensinamentos da República acerca da relação entre a filosofia e a cidade Devemos portanto começar de novo No final do quarto livro temse a impressão de que Sócrates completara a tare fe que Glauco e Adimanto lhe impuseram pois Sócrates demonstrara que a justiça enquanto saúde da alma é desejável não só por causa de suas conseqüências mas sobretudo por si mesma Mas então no início do quinto livro somos repentinamen te confrontados por um novo começo pela repetição de uma cena que ocorrera no início Tanto no começo quanto no início do quinto livro e em nenhum outro lugar os companheiros de Sócrates tomam uma decisão ou melhor fezem uma voação e Sócrates que não teve qualquer participação na decisão obedece Os companheiros de Sócrates comportamse em ambos os casos como uma cidade uma assembleia de cidadãos embora a menor cidade possível Mas há uma diferença decisiva entre as duas cenas enquanto Trasímaco esuva ausente da primeira cena passou a ser um membro da cidade na segunda Poderia parecer que a fundação da boa cidade exige que Trasímaco seja convertido em um de seus cidadãos No início do quinto livro os companheiros de Sócrates forçamno a abordar o assunto do comunismo em relação às mulheres e às crianças Não se opõem à proposta em si da maneira como Adimanto se opusera ao comunismo em relação à propriedade no início do quarto livro pois nem Adimanto é mais o mesmo homem que era naque le momento Só desejam saber de modo preciso como será conduzido o comunismo em relação às mulheres e às crianças Sócrates substitui essa pergunta por essas questões mais incisivas 1 Esse comunismo é possível 2 É desejável Parece que o comunis mo em relação às mulheres é a conseqüência ou pressuposto da igualdade entre os dois sexos em relação ao trabalho que devem realizar a cidade não pode excluir metade de sua população adulta de sua força de trabalho e de combate e não há diferença essen cial entre homens e mulheres em relação aos dons naturais para as diversas artes A exi gência de igualdade entre os dois sexos requer uma reviravolta completa dos costumes P latAo 4 7 38 CfííWci449450com327328 39 Cf ibid 369 uma revolução que é aqui apresentada menos como chocante de que como ridícula a demanda é justificada pelo fato de que somente o útil é justo ou nobre e que somente o que é ruim ou seja contra a natureza é risível a diferença de conduta entre os dois sexos de acordo com o costume é rejeitada por ser contra a natureza e a transformação revolucionária tem como intuito produzir a ordem de acordo com a natureza Pois a justiça exige que cada ser humano pratique a arte para a qual ele ou ela foi equipado pela natureza independentemente do que ditem o costume ou convenção Sócrates demonstra primeiro que é possível a igualdade entre os dois sexos isto é de acordo com a natureza dos dois sexos tal como a sua natureza se revela quando examinada no que diz respeito à aptidão para a prátíca das várias artes e em seguida demonstra que tal igualdade é desejável Ao provar essa possibilidade Sócrates explicitamente abstrai a diferença entre os dois sexos no que diz respeito à procriação Isso significa que o argumento da República como um todo segundo o qual a cidade é uma comunidade de artesãos do sexo masculino e feminino abstrai no mais alto grau possível a mais elevada atividade essencial para a cidade que ocorre por natureza e não pela arte Sócrates então voltase para o comunismo em relação às mulheres e às crianças e demonstra que é desejável porque tornará a cidade mais una e portanto mais per feita do que seria uma cidade composta por famílias individuais a cidade deve ser o mais semelhante possível a um único ser humano ou a um único organismo vivo isto é a um ser natural A essa altura entendemos um pouco melhor por que Sócrates iniciou sua discussão da justiça com a pressuposição de um importante paralelismo entre a cidade e o indivíduo preocupavase antecipadamente com a maior unidade possível da cidade A abolição da família não significa naturalmente a introdução de licenciosidade ou promiscuidade significa uma regulamentação extremamente rígida das relações sexuais a partir do ponto de vista do que é útil para a cidade ou do que é necessário para o bem comum A deferência ao útil podese dizer substitui a defe rência pelo santificado ou sagrado machos e fêmeas humanos devem ser acasalados exclusivamente em função da produção da melhor prole dentro do espírito em que procedem os criadores de cães aves e cavalos as reivindicações de eros são simples mente silenciadas Obviamente a nova ordem afeta as proibições habituais contra o incesto as regras mais sagradas da justiça costumeira No novo regime ninguém saberá mais quem são seus pais filhos irmãos e irmãs biológicos mas todos terão em conta todos os indivíduos da geração mais velha como seus pais e mães os de sua pró pria geração como seus irmãos e irmãs e os da geração mais jovem como seus filhos Isso significa porém que a cidade construída de acordo com a natureza vive em um 48 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 40 Ibid 455 456 41 Ibid 455 42 Ibid 462 464 43 Cf ibid 458 44 Cf ibid 461 45 Ibid 463 aspecto de suma importância mais de acordo com a convenção do que de acordo com a natureza Por essa razão ficamos decepcionados ao ver que apesar de lidar com a questão de saber se é possível o comunismo em relação às mulheres e as crianças Sócrates a abandona de pronto Uma vez que a instituição em causa é indispensável para a boa cidade Sócrates deixa em aberto a questão da possibilidade da boa cidade ou seja da cidade justa como tal E isso acontece com seus ouvintes e com os leitores da República após terem feito os maiores sacrifícios tal como o sacrifício de eros bem como da família para o bem da cidade justa Não se permite por muito tempo que Sócrates se furte de seu terrível dever de responder à pergunta sobre a possibilidade da cidade justa O viril Glauco obrigao a enfrentar essa questão Talvez devêssemos dizer que aparentemente fugindo ao tema da guerra assunto mais fácil em si e mais atraente para Glauco do que o comunismo de mulheres e crianças todavia tratando o assunto de acordo com as inflexíveis exi gências da justiça e assim privandoo de grande parte de sua atração Sócrates obriga Glauco a forçálo a voltar à questão fundamental Seja como for a questão para a qual Sócrates e Glauco se voltam não é a mesma que abandonaram A questão que deixa ram de lado foi a possibilidade da boa cidade no sentido de ela estar de acordo com a natureza humana A questão a que retornam é se a boa cidade é possível no sentido de poder ser criada pela transformação de uma cidade real Podese pensar que a última questão pressuponha uma resposta afirmativa à primeira pergunta o que não é total mente correto Ficamos sabendo agora que nosso esforço conjunto para descobrir o que é justiça para que fôssemos capazes de perceber como esta se relaciona à felici dade foi a busca pela própria justiça como um modelo Ao procurar pela justiça como um modelo deixávamos implícito que o homem justo e a cidade justa não serão perfeitamente justos mas decerto a própria justiça se aproxima de si mesma com particular contiguidade somente a justiça em si é perfeitamente justa Isso implica que nem mesmo as instituições características da cidade o comunismo absoluto a igualdade dos sexos e o governo dos filósofos são simplesmente justos Ora a própria justiça não é possível no sentido de que é capaz de vir a ser porque é sempre sem poder sofier qualquer alteração que seja A justiça é uma ideia ou forma uma das muitas ideias As ideias são as únicas coisas que a rigor são ou seja são sem qualquer mistura de não ser porque estão acima de qualquer vir a ser e tudo o que vem a ser está entre ser e não ser Uma vez que as ideias são as únicas coisas que estão acima de qualquer mudança são em certo sentido a causa de todas as mudanças e de todas as coisas mutáveis Por exemplo a ideia de justiça é a causa de qualquer coisa os seres humanos cidades leis mandamentos ações tornarse justa São seres autos subsistentes que subsistem sempre Têm esplendor máximo Por exemplo a ideia de P la t ã o 49 46 Ibid 466 47 Ibid 473 48 Ibid 472 49 óí479cf538ss justiça é perfeitamente justa Mas seu esplendor escapa aos olhos do corpo As ideias sáo visíveis apenas para o olho da mente e a mente enquanto mente nada percebe além de ideias No entanto como os fatos indicam que existem muitas ideias e que a mente que percebe as ideias é radicalmente diferente das ideias em si deve haver algo maior do que as ideias o bem ou a ideia do bem que é em certo sentido a causa de todas as ideias assim como da mente percebêlas É apenas por meio da percepção do bem por parte dos seres humanos que são por natureza dotados para percebêla que a boa cidade pode emergir e subsistir por algum tempo É muito difícil entender a doutrina das ideias que Sócrates expõe para Glauco para começar é absolutamente incrível sem mencionar que parece ser fimtástica Até agora foinos apontado que a justiça é flmdamentalmente um determinado caráter da alma humana ou da cidade ou seja algo que não é autossubsistente ora pede se a nós que acreditemos que é autossubsistente estando em casa como se estivesse em um lugar totalmente diferente dos seres humanos e tudo o mais que participa da justiça Ninguém jamais conseguiu dar uma explicação satisfíitória ou clara dessa doutrina das ideias É possível no entanto definir de maneira bastante precisa a di ficuldade central Ideia significa sobretudo a aparência ou a forma de uma coisa significa portanto um tipo ou classe de coisas unidas pelo fato de todas possuírem a mesma aparência ou seja o mesmo caráter e potência ou a mesma natureza em vista disso significa a classecaráter ou a natureza das coisas pertencentes à ciasse em questão a ideia de uma coisa é o que queremos dizer ao tentar descobrir o quê ou a natureza de uma coisa ou uma classe de coisas ver a Introdução A conexão entre ideia e natureza transparece na República dos fetos de que a ideia de justi ça é denominada o que é justo por natureza e de que as ideias em contradistinção com as coisas que não são ideias ou com as coisas que são percebidas sensoriamente são consideradas estando na natureza Isso não explica contudo por que as ideias são apresentadas como distintas das coisas que são o que são por participar de uma ideia ou em outras palavras por que a canidade o caráterclasse dos cães deve ser o cão verdadeiro Parece que dois tipos de fenômenos apoiam a afirmação de Sócrates Em primeiro liar as coisas matemáticas como tal nunca podem ser encontradas entre as coisas sensórias nenhuma linha desenhada na areia ou no papel é uma linha tal como definida pelo matemático Em segundo e acima de tudo o que entendemos por justiça e coisas afins não é como tal na sua pureza e perfeição necessariamente encontrável em seres humanos ou sociedades ao contrário parece que o que se enten de por justiça transcende tudo o que os homens jamais poderão alcançar exatamente os mais justos dos homens eram e são os que têm maior consciência das deficiências de sua justiça Sócrates parece dizer que o que é evidentemente verdadeiro das coisas matemáticas e das virtudes é universalmente verdadeiro há uma ideia da cama ou da 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 50 Ibid 517 51 Cf ibid 509510 52 Ibid 501 597 mesa tal como do círculo e da justiça Ora quando é obviamente razoável dizer que um círculo perfeito ou a perfeita justiça transcendem tudo o que jamais poderá ser visto é difícil dizer que a cama perfeita é algo em que homem algum jamais poderá descansar No entanto Glauco e Adimanto aceitam essa doutrina de ideias com relati va facilidade com facilidade maior do que o comunismo absoluto Esse fàto paradoxal não nos atiie com força suficiente porque de alguma forma acreditamos que esses jovens capazes estudam filosofia sob a orientação do professor Sócrates e ouviramno expor a doutrina das ideias em inúmeras ocasiões caso não acreditemos que a Repú blica seja um tratado filosófico dirigido a leitores fiuniliarizados com diálogos mais elementares ou anteriores Todavia Platão só se dirige aos leitores da RepMica por meio da conversa de Sócrates com Glauco e os outros interlocutores da República e Platão como o autor da República não siere que Glauco sem falar em Adimanto e nos demais estudou profundamente a doutrina das ideias Porém enquanto não se pode crer que Glauco e Adimanto tenham uma verdadeira compreensão da doutri na das ideias eles já ouviram dizer e de certa forma sabem que não sáo deuses como Dike ou Direito e Nike ou Vitória que não é esta ou aquela vitória ou esta ou aquela estátua de Nike mas um ser autossubsistente que é a causa de cada vitória e que é de um esplendor inacreditável De modo mais geral sabem que existem deuses seres autossubsistentes que são as causas de tudo o que é bom que são de esplendor ina creditável e que não podem ser apreendidos pelos sentidos pois nunca mudam sua forma Mas isso não significa nar que há uma profunda diferença entre os deuses tal como entendidos na teologia da República e as ideias ou que na República os deuses sejam de alguma forma substituídos pelas idéias Tratase apenas de afirmar que aqueles que aceitam essa teologia e tiram todas as conclusões a partir dela prova velmente chegarão à doutrina das ideias Devemos agora retornar à questão da possibilidade da cidade justa Aprende mos que a própria justiça não é possível no sentido de que qualquer coisa que venha a ser jamais pode ser perfeitamente justa Aprendemos logo depois que não só a pró pria justiça mas também a cidade justa não é possível no sentido indicado Isso não significa que a cidade justa tal como definida e esboçada na República seja uma ideia como a própria justiça e menos ainda que seja um ideal ideal não é um termo platônico A cidade justa não é apenas um ser autossubsistente como a ideia de justiça situada por assim dizer em um liar ultracelestial Seu status é semelhante ao de uma pintura de um ser humano perfeitamente belo ou seja a pintura é apenas em virtude do ato de pintar do pintor mais precisamente a cidade justa é somente no discurso é apenas em virtude de ter sido compreendida com vistas à própria justiça ou ao que é correto por natureza por um lado e o humano demasiado humano por outro P latão 51 53 Cf ibid 507 com 596 c 532 contrastar com Fédon 65 e 74 54 República 536 cf 487 55 Cfírf379e380ss 56 Ibid 379 Embora a cidade justa esteja decididamente em localização mais baixa na hierarquia do que a própria justiça até mesmo a cidade justa como um modelo não é capaz de vir a ser como foi projetada só se podem esperar aproximações dela nas cidades que são de fato e não apenas no discurso Mas não está claro o que isso significa Signifi caria que a melhor solução viável seria uma conciliação de tal modo que nos devemos reconciliar com um certo grau de propriedade privada p cx devemos permitir que cada guerreiro tenha seus próprios sapatos e afins enquanto viver e um certo grau de desigualdade entre os sexos p ex certas funções militares c administrativas continu arão sendo prerrogativa dos guerreiros do sexo masculino Não há qualquer motivo para supor que foi isso que Sócrates quis dizer À luz do trecho seguinte da conversa parece mais plausível a sugestão que se segue A asserção segundo a qual a cidade justa não pode vir a ser tal como projetada é provisória ou abre caminho para a asserção de que a cidade justa embora capaz de vir a ser tem pouca probabilidade de vir a ser De qualquer forma imediatamente após ter declarado que só é razoável esperar uma apro ximação da boa cidade Sócrates suscita a indagação que mudança viável nas cidades reais será a condição necessária e suficiente para sua transformação em cidades boas Sua resposta é a coincidência entre poder político e filosofia os filósofos devem go vernar como reis ou os reis devem verdadeira e adequadamente filosofar Como mos tramos em nosso resumo do primeiro livro da RepúbUca essa resposta não é de todo surpreendente Se justiça significa menos dar ou conceder a cada um o que a lei atribui a ele do que dar ou conceder a cada um o que é bom para sua alma mas o que é bom para sua alma são as virtudes seguese que não pode ser verdadeiramente justo quem não conhece as virtudes em si ou em geral as ideias ou quem náo é filósofo Ao responder à pergunta de como seria possível a boa cidade Sócrates apresenta a filosofia como um tema da República Isso significa que na República a filosofia não é apresentada como a finalidade do homem o fim pelo qual o homem deve viver mas como um meio para a realização da cidade justa a cidade como acampamento armado que se caracteriza pelo comunismo e igualdade absolutos dos sexos na classe alta a classe dos guerreiros Uma vez que o governo dos filósofos náo é apresentado como um ingrediente da cidade justa mas apenas como um meio para a sua realiza ção Aristóteles está justificado em desconsiderar esta instituição em sua análise crítica da República Política II De qualquer forma Sócrates consegue reduzir a questão da possibilidade da cidade justa à questão da possibilidade da coincidência entre filosofia e poder político Supor que tal coincidência seja possível é para começar demasiado incrível todos podem ver que os filósofos são inúteis ou mesmo prejudiciais na políti ca Sócrates que teve suas próprias experiências com a cidade de Atenas experiências que viriam a ser coroadas com a pena capital considera esta acusação dos filósofos como bem fundamentada embora necessitando de aprofundamento Sócrates traça o antagonismo das cidades para com os filósofos primordialmente até as cidades as cidades atuais isto é as cidades não governadas por filósofos são como assembléias 52 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 57 Ibid 472473 cf 500501 com 484 e 592 de loucos que corrompem a maioria daqueles aptos a se tornarem filósofos e contra quem aqueles que conseguiram apesar de todas as adversidades se tornar filósofos voltamlhes as costas com justificada repugnância Mas Sócrates está longe de absolver completamente os filósofos Somente uma mudança radical por parte tanto das cidades como dos filósofos poderia produzir a harmonia entre eles para a qual parecem ter sido destinados pela natureza A mudança consiste precisamente disto que as cidades dei xem de relutar em serem governadas por filósofos e os filósofos debcem de relutar em governar as cidades Tal coincidência entre filosofia e poder político é muito difícil de conseguir muito improvável mas não impossível Para dar origem à mudança neces sária por parte da cidade dos não filósofos ou da multidão o tipo certo de persuasão é necessário e suficiente O tipo certo de persuasão é fornecido pela arte da persuasão a arte de Trasímaco dirigida pelo filósofo e ao serviço da filosofia Não é de admirar que em nosso contexto Sócrates declare que ele e Trasímaco acabam de se tornar amigos A multidão dos não filósofos é de boa índole e portanto persuasível pelos filósofos Mas se assim é por que os filósofos da Antiguidade para não fidar do próprio Sócrates não conseguiram convencer a multidão quanto à supremacia da filosofia e dos filósofos e assim engendrar o governo dos filósofos e com ele a salvação e a felicidade de suas cidades Por mais estranho que possa parecer nesta parte do argumento parece ser mais fácil convencer a multidão a aceitar o governo dos filósofos do que convencer os filósofos a governarem a multidão os filósofos não podem ser persuadidos só podem ser compelidos a governar as cidades Somente os não filósofos poderiam obrigar os filósofos a cuidarem das cidades Mas dado o preconceito contra os filósofos essa com pulsão não se concretizará se em primeiro lugar os filósofos não persuadirem os não filósofos a compelirem os filósofos a governálos e esta persuasão não se concretizará dada a relutância dos filósofos em governar Chegamos então à conclusão de que a cidade justa não é possível devido à relutância dos filósofos em governar Por que os filósofos relutam em governar Sendo dominados pelo desejo do saber como a única coisa necessária ou sabendo que a filosofia é o bem mais agradável e mais abençoado os filósofos não dispõem de lazer para examinar os assuntos huma nos muito menos para cuidar deles Os filósofos creem que ainda em vida já estarão firmemente estabelecidos longe de suas cidades nas Ilhas dos Abençoados Assim só a coerção poderia induzilos a tomar parte na vida política da cidade justa ou seja da cidade que considera a educação adequada dos filósofos como sua tarefa mais im portante Por terem apreendido o verdadeiramente grandioso os assuntos humanos parecem insignificantes aos filósofos A justiça própria dos filósofos a sua abstenção de ofender seus semelhantes emerge do desprezo pelas coisas pelas quais os não filó P latão 5 3 58 Ibid 498 502 59 Ibid 499 500 520 521 539 60 Ibid455QV5l7 61 Ibid 519 sofos ativamente competem Sabem que a vida náo dedicada à filosofia e portanto em particular a vida política é como a vida em uma caverna tanto que a cidade pode ser identificada com a Cavema Os habitantes da caverna ou seja os náo filóso fos enxergam apenas as sombras de artefiitos Ou seja o que quer que percebam compreendemno à luz de suas opiniões santificadas pela sanção dos legisladores ou seja considerando as coisas justas e nobres isto é as opiniões convencionais e não sabem que suas mais caras convicções não possuem status mais elevado do que meras opiniões Pois se até a melhor cidade se ergue ou cai por uma íàlsidade fundamental embora uma fidsidade nobre podese esperar que as opiniões sobre as quais se apoia a cidade imperfeita ou nas quais acredita não serão verdadeiras São exatamente os melhores dos não filósofos os bons cidadãos que se prendem com paixão a essas opi niões e que portanto são violentamente contrários à filosofia que é a tenutiva de transcender a opinião em direção ao conhecimento a multidão não é tão persuasível pelos filósofos quanto julgamos com esperança em uma rodada anterior do argumen to Esta é a verdadeira razão pela qual a coincidência entre filosofia e poder poUtico é para dizer o mínimo extremamente improvável a filosofia e a cidade tendem a distanciarse uma da outra em direções opostas A dificuldade de superar a tensão natural entre a cidade e os filósofos é apontada por Sócrates que se desvia da questão de saber se a cidade só é possível no sentido de ser algo que se conforma à natureza humana para a questão de saber se a cidade só é possível no sentido de poder ser criada pela transformação de uma cidade real Quanto à primeira questão entendida em contradistinção à segunda vemos que aponta para a questão de saber se a cidade justa não poderia passar a existir por meio de um assentamento conjunto de homens que estiveram totalmente dissociados antes É a essa pergunta que Sócrates tacitamente dá uma resposta negativa ao se voltar para a questão de saber se a cidade justa poderia ser criada pela transformação de uma cidade real A boa cidade não pode ser criada a partir de seres humanos que ainda não tenham sido submetidos a alguma disciplina humana dos primitivos ou animais estúpidos ou selvíens gentis ou cruéis seus membros em potencial já devem ter adquirido os rudimentos da vida civilizada O longo processo por meio do qual os homens pri mitivos se tornam homens civilizados não pode ser obra do fundador ou do legislador da boa cidade mas é pressuposto por ele Mas por outro lado se a boa cidade em potencial deve ser uma cidade antiga os seus cidacfeos terão sido completamente mol dados pelas leis ou costumes imperfeitos da sua cidade santificados pela idade avança da e estarão apaixonadamente presos a eles Sócrates é portanto compelido a rever a sua proposta original segundo a qual o governo dos filósofos é a condição necessária 5 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 62 Ibid 486 63 Ibid 539 64 Ibid 514515 65 Ibid 517 66 Cf ibid 376 e suficiente para a criação da cidade justa Considerando que sugerira originalmente que a boa cidade passará a existir se os filósofos se tornarem reis Sócrates finalmente opina que a boa cidade passará a existir se quando os filósofos tiverem se tornado reis expulsarem da cidade todos com idade superior a 10 anos ou seja se separarem as crianças completamente dos hábitos de seus pais e parentes e trouxeremnas para os hábitos inteiramente novos da boa cidade Quando assumem uma cidade os filóso fos procuram assegurar que seus súditos não sejam selvagens ao expulsar todos com mais de 10 anos garantem que seus súditos não sejam escravizados pela civilidade tradicional A solução é primorosa Mas nos íaz peiuntar como os filósofos podem compelir todos com mais de 10 anos a obedecer submissos o decreto de expulsão uma vez que ainda não podem ter treinado uma classe de guerreiros absolutamente obediente a eles Isso não é negar que Sócrates poderia convencer grande parte dos melhores jovens e mesmo alguns dos mais velhos a acreditar que a multidão poderia ser não compelida na verdade mas persuadida pelos filósofos a deixar sua cidade e seus filhos e viver nos campos para que a justiça seja feita A parte da República que trata da filosofia é a mais importante do livro Assim oferece a resposta para a pergunta sobre a justiça até o ponto em que tal resposta é oferecida na República A resposta explícita à questão do que é justiça fora bastante vaga a justiça consiste em cada parte da cidade ou da alma fiizer o trabalho para o qual é por natureza mais dotada ou uma espécie de fiizer esse trabalho uma parte é justa se fez o seu trabalho ou se preocupa com seus próprios negócios de uma cer ta maneira A imprecisão será removida se a substituirmos de uma certa maneira por da maneira melhor ou bem a justiça consiste em cada parte fezer bem o seu trabalho Por conseguinte o homem justo é o homem em quem cada parte da alma fez bem seu trabalho Uma vez que a parte mais elevada da alma é a razão e uma vez que esta parte não pode fazer bem o seu trabalho se as outras duas partes também não fizerem bem o seu somente o filósofo pode ser verdadeiramente justo Mas o trabalho que o filósofo realiza bem é intrinsecamente atraente e é de fato o trabalho mais agradável totalmente independente de suas conseqüências Portanto é apenas na filosofia que a justiça e a felicidade coincidem Em outras palavras o filósofo é o único indivíduo que é justo no sentido em que a boa cidade é justa o filósofo é au tossuficiente verdadeiramente livre ou sua vida é tão pouco dedicada ao serviço de outras pessoas quanto a vida da cidade é dedicada ao serviço de outras cidades Mas o filósofo na boa cidade é justo também no sentido de que serve aos seus semelhantes a seus concidadãos à sua cidade ou que obedece à lei Ou seja o filósofo é justo tam bém no sentido de que todos os membros da cidade jusu e de certa forma de todos os membros justos de qualquer cidade independentemente de serem filósofos ou não filósofos são justos Todavia a justiça neste segundo sentido não é intrinsecamente P latAo 5 5 67 Ibid 54054l cf 499 501 68 Ibid 433 e 443 cf Aristóteles Ética a Nicômaco 1098 712 69 República 583 atraente ou uma escolha sábia por si mesma mas é boa somente tendo em vista as suas conseqüências ou náo é nobre mas necessária o filósofo serve à sua cidade até mesmo à boa cidade náo em busca da verdade por inclinação natural por eros mas sob compulsão É desnecessário acrescentar que a compulsão não deixa de ser com pulsão se é autocompulsão De acordo com uma noção de justiça que é mais comum do que a sugerida pela definição de Sócrates a justiça consiste em não prejudicar os outros assim entendida a justiça se revela no caso mais elevado como um mero concomitante da grandeza de alma do filósofo Mas se a justiça é tomada no sentido mais amplo segundo o qual consiste em dar a cada um o que é bom para sua alma é preciso distinguir entre os casos em que esta doação é intrinsecamente atraente para o doador estes serão os casos dos filósofos potenciais e aqueles em que é apenas um dever ou compulsão Esta distinção contudo subjaz à diferença entre as conversas voluntárias de Sócrates as conversas que espontaneamente procura e as compulsórias as que não consegue evitar com dignidade Esta distinção clara entre a justiça que é uma escolha sábia por si mesma totalmente independente de suas conseqüências e idêntica à filosofia e a justiça que é meramente necessária e idêntica no caso mais elevado à atividade política do filósofo é possibilitada pela abstração de eros que é característica da República Pois se pode muito bem dizer que não há nenhuma razão para que o filósofo não se envolva em atividades políticas devido ao tipo de amor por si mesmo que é o patriotismo Ao chegar ao final do sétimo livro a justiça foi completamente desvendada Só crates de fato cumpriu o dever que lhe impuseram Glauco e Adimanto demonstrar que a justiça bem compreendida é uma escolha sábia por si mesma independente mente de suas conseqüências e portanto que a justiça é sem limitações preferível à injustiça No entanto a conversa continua pois parece que a nossa compreensão clara de justiça não inclui uma compreensão clara da injustiça mas deve ser complementa da por uma compreensão clara da cidade totalmente injusta e do homem totalmente injusto só após vermos a cidade totalmente injusta e o homem totalmente injusto com a mesma clareza com que vimos a cidade inteiramente justa e o homem intei ramente justo é que seremos capazes de julgar se devemos seguir Trasímaco o amigo de Sócrates que escolhe a injustiça ou o próprio Sócrates que escolhe a justiça Tal escolha por sua vez exige que seja mantida a ficção da possibilidade da cidade justa Na realidade a República nunca abandona a ficção de que seja possível a cidade jus ta como uma sociedade de seres humanos distinta de uma sociedade de deuses ou filhos dos deuses Quando Sócrates se volta para o estudo da injustiça tornase até necessário que reafirme esta ficção com mais ênfase do que nunca A cidade injusta será mais feia e mais condenável na proporção em que a cidade justa seja mais possível 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 70 Ibid 519520 540 71 Considerar Apologia de Sócrates 30 72 República 545 cf 498 73 Leis7ò9 Mas a possibilidade da cidade justa permanecerá duvidosa se a cidade justa nunca for real Assim Sócrates afirma agora que a cidade justa foi um dia real Mais precisa mente Sócrates fàz com que as Musas o afirmem ou melhor que o deixem implícito A asserção de que a cidade justa foi um dia real é por assim dizer uma afirmação mítica que combina com a premissa mítica de que o melhor é o mais antigo Sócrates afirma então pela boca das Musas que a boa cidade era real no início antes do suipmento dos tipos inferiores de cidades as cidades inferiores são formas decadentes da boa cidade fragmentos conspurcados da cidade pura que foi completa portanto quanto mais próxima no tempo uma espécie de cidade inferior estiver da cidade justa melhor ou viceversa É mais adequado felar dos regimes bons e inferiores do que das cidades boas e inferiores observemos a transição de cidades para regimes em 543544 Regime é nossa tradução do grego politeia O livro que denominamos República é in titulado Politeia em grego O termo politeia é comumente traduzido por constituição e designa a forma de governo entendida como a forma da cidade ou seja como aquilo que dá à cidade o seu caráter por determinar a meta que a cidade em questão persegue ou que encara como a mais elevada e simultaneamente o tipo de homens que gover nam a cidade Por exemplo a oligarquia é o tipo de regime em que os ricos governam e portanto a admiração pela riqueza e pela aquisição de riqueza vitaliza a cidade como um todo e a democracia é o tipo de regime em que todos os homens livres governam e portanto a liberdade é a meta que a cidade busca De acordo com Sócrates há cinco tipos de regime 1 reino ou aristocracia o governo do melhor homem ou dos melhores homens que é direcionado para o bem ou a virtude o regime da cidade 2 timocra cia o governo dos amantes da honra ou dos homens ambiciosos que é voltado para a superioridade ou a vitória 3 oligarquia ou governo dos ricos em que a riqueza recebe a maior apreciação 4 democracia o governo dos homens livres em que a liberdade é objeto da maior apreciação 5 tirania o governo do homem em que impera a injustiça mais completa e mais desavergonhada A ordem decrescente dos cinco tipos de regime foi emulada da ordenação decrescente de Hesíodo das cinco raças de homens as raças de ouro prata bronze a raça divina de heróis a raça de ferro Notamos de imediato que o equivalente platônico de raça divina de heróis de Hesíodo é a democracia Logo veremos o motivo dessa correspondência de aparência peculiar A República baseiase no pressuposto de que existe um paralelismo estrito entre a cidade e a alma Por conseqüência Sócrates afirma que assim como existem cinco ti pos de regime da mesma forma existem cinco tipos de caráter dos homens o homem timocrata por exemplo corresponde à timocracia A distinção que por pouco tempo foi popular na atual ciência política entre as personalidades autoritárias e as demo cráticas como correspondentes à distinção entre as sociedades autoritárias e as de mocráticas era um pálido e grosseiro reflexo da distinção socrática entre o real ou aristocrático o timocrático o oligárquico o democrático e a alma ou o homem tirâ P latAo 5 7 74 Cf República 547 75 C f ibid 546547a e Hesíodo Os Trabalhos e os Dias 106 1 nico correspondentes aos regimes aristocráticos timocrático oligárquico democráti co e tirânico Neste contexto convém mencionar que ao descrever os regimes Sócra tes nâo fala em ideologias que lhes pertençam está preocupado com o caráter de cada tipo de regime e com a meta que manifesta e explicitamente busca bem como com a justificação política da meta em questão em contradistinção com qualquer justificação transpolítica decorrente da cosmologia teologia metafísica filosofia da história mito e assim por diante Em seu estudo dos regimes infisriores Sócrates ana lisa em cada caso primeiro o regime e em seguida o indivíduo ou a alma correspon dentes Sócrates apresenta o regime e o indivíduo correspondente como tendo emer gido do precedente Vamos considerar aqui apenas sua descrição da democracia tanto por este assunto ser mais relevante para os cidadãos de uma democracia como por sua importância intrínseca A democracia emerge da oligarquia que por sua vez emergiu da timocracia o governo dos guerreiros insuficientemente musicais que se caracteri zam pela supremacia do espírito cívico A oligarquia é o primeiro regime em que o desejo é supremo Na oligarquia o desejo dominante é pela riqueza ou dinheiro ou ganância ilimitada O homem oligárquico é frugal e laborioso controla todos os seus desejos que não sejam o desejo pelo dinheiro não tem educação e possui uma hones tidade superficial derivada do autointeresse mais conspícuo A oligarquia deve dar a cada um o direito absoluto de dispor de seus bens como lhe aprouver Assim torna inevitável o surgimento de zangões ou seja de membros da classe dominante que se veem sobrecarregados por dívidas ou já falidos e portanto desprovidos de direitos de mendigos que sentem uma fidta desesperada de sua fortuna desperdiçada e têm esperança de recuperar sua fortuna e poder político por meio de uma mudança de re gime existências catilinárias Além disso os próprios oligarcas corretos sendo tanto ricos como despreocupados com a virtude e a honra engordam a si mesmos e especialmente a seus filhos mimados e molengas Assim passam a ser desprezados pelos pobres magros e resistentes A democracia surge quando os pobres tomando consciência de sua superioridade sobre os ricos e talvez liderados por alguns zangões que sem como traidores de sua classe e possuem competências que normalmente apenas os membros da classe dominante possuem tornamse num momento oportu no mestres da cidade por derrotar os ricos matar e exilar uma parte deles e permitir que os demais vivam com eles na posse de plenos direitos de cidadania A própria de mocracia é caracterizada pela liberdade que inclui o direito de dizer e fiizer tudo o que se deseja todos podem adotar o modo de vida que mais lhes agrade Por conseguinte a democracia é o regime que promove a maior variedade possível todos os modos de vida todos os regimes podem ser encontrados nela Por conseguinte devemos acrescentar 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 76 NT Quase todos os gênios conhecem como uma hise de seu desenvolvimento a existência catili nária sentimento do ódio de vingança e de rebelião contra mdo o que já existe contra tudo o que está se fazendo Catilina e forma preexistente do todo César In Nietzsche Friedrich Wilhelm O crepúsculo dos ídolos Tradução Edson Bini revisão Márcio Pugliesi Do orjnal alemão Gõtzen Dãmmerung Curitiba Hemus 2001 n 45 p 88 a democracia é o único regime além do melhor em que o filósofo pode viver seu pe culiar modo de vida sem ser incomodado é por esta razão que com algum exsero podese comparar a democracia com a idade da raça divina dos heróis de Hesíodo a qual se assemelha mais do que qualquer outra à idade de ouro Certamente em uma democracia o cidadão que é filósofo não tem nenhuma obrigação de participar da vida política ou de ocupar algum cargo Assim somos levados a perguntar por que Sócrates não atribuiu à democracia o posto mais elevado entre os regimes inferiores ou melhor o posto mais elevado simplesmente uma vez que o melhor regime não é possível Poderíamos dizer que demonstrou sua preferência pela democracia por seus atos por passar toda a sua vida na Atenas democrática lutando por ela em suas guer ras e por morrer em obediência a suas leis Por mais que tenha sido este o caso Sócra tes certamente não preferiu a democracia em detrimento de todos os outros regimes no discurso O motivo é que sendo ele um homem justo pensou no bemestar não só dos filósofos mas dos não filósofos também e afirmava que a democracia não tem como intuito induzir os não filósofos a tentarem tornarse tão bons quanto lhes seja possível pois a meta da democracia não é a virtude mas a liberdade ou seja a liber dade de viver de maneira nobre ou vil de acordo com a preferência de cada um Por tanto Sócrates atribui à democracia uma posição ainda mais baixa do que a oligarquia uma vez que a oligarquia requer algum tipo de restrição e a democracia tal como ele a apresenta abomina qualquer tipo de restrição Poderíamos dizer que ao se adaptar a seu assunto Sócrates abandona toda restrição quando se trata do regime que detesta restrições Em uma democracia afirma ele ninguém é obrigado a governar ou a ser governado se não aceita isso pode viver em paz embora sua cidade esteja em guerra a pena capital não tem a menor conseqüência para o condenado que não é sequer en carcerado a ordem entre governantes e governados é completamente invertida o pai se comporta como se fosse um menino e o filho não tem nem respeito nem medo do pai o professor teme os seus alunos e os alunos não prestam atenção ao professor e há total igualdade entre os sexos nem mesmo os cavalos e burros abrem caminho quando se deparam com seres humanos Platão escreve como se a democracia ateniense não tivesse levado a efeito a execução de Sócrates e Sócrates fàla como se a democracia ateniense não se houvesse envolvido em uma orgia de perseguição sangrenta tanto de culpados como de inocentes quando as estátuas de Hermes foram mutiladas no início da expedição siciliana O exagero que fiiz Sócrates da branda licenciosidade da demo cracia é equiparado por um exíero quase tão forte da intemperança do homem de mocrático Certamente não lhe seria possível evitar este último exagero se não dese jasse desviarse no caso da democracia do processo que sue em sua discussão dos regimes inferiores Esse procedimento consiste na compreensão do homem que corres ponde a um regime inferior como o filho de um pai que corresponde ao regime ante rior Por conseguinte o homem democrático teve de ser apresentado como o filho de P ia t Ao 5 9 77 Repúblka 557 78 Ver Tucídides VI 2729 e 5361 um pai oligárquico como o degenerado filho de um pai rico que com nada se preocu pa além de ganhar dinheiro o homem democrático é o zangão o playboy gordo flá cido e pródigo o lotófago que atribuindo um tipo de igualdade a coisas iguais e desi guais vive um dia em entrega total a seus desejos mais baixos e o seguinte de modo ascético ou que de acordo com o ideal de Karl Marx caça pela manhã pesca de tarde cria gado à noite dedicase à filosofia depois do jantar ou seja faz a cada mo mento o que lhe apraz naquele momento o homem democrático não é o artesão magro resistente e econômico ou o camponês que tem um único ofício7 A culpa deliberadamente exagerada que Sócrates atribui à democracia tornase inteligível em certa medida uma vez que se considera o seu destinatário imediato o austero Adi manto que não é amigo do riso e que tinha sido o destinatário da austera discussão sobre poesia na seção sobre a educação dos guerreiros ao culpar com exíro a demo cracia Sócrates põe em palavras o sonho de democracia de Adimanto Não se pode tampouco esquecer que é necessário corrigir o vivido relato da multidão que foi provi soriamente necessário a fim de provar a harmonia entre a cidade e a filosofia a culpa exíerada da democracia nos lembra com uma força maior do que jamais fii empre gada da desarmonia entre a filosofia e o povo Após Sócrates ter trazido à luz o regime totalmente injusto e o homem totalmente injusto e em seguida comparado a vida do homem totalmente injusto com a do ho mem perfeitamente justo ficou claro sem qualquer sombra de dúvida que a justiça é preferível à injustiça No entanto a conversa continua Sócrates de repente retorna à questão da poesia a uma pergunta que já havia sido respondida em detalhes quando discutiu a educação dos guerreiros Devemos tentar compreender esse retorno aparen temente repentino Numa digressão explícita a partir da discussão da tirania Sócrates observara que os poetas louvam os tiranos e são homenageados pelos tiranos e tam bém pela democracia ao passo que não são honrados pelos três melhores regimes A tirania e a democracia são caracterizadas pela rendição aos desejos sensuais incluindo aqueles mais contrários às leis O tirano é eros encarnado e os poetas cantam o louvor de eros Prestam grande atenção e fezem homenagem precisamente a esse fenômeno do qual Sócrates se abstrai na República utilizando toda a sua competência Os poetas por conseguinte promovem a injustiça Assim fez Trasímaco Mas tal como Sócrates não obstante pode ser amigo de Trasímaco não há razão para que não pudesse ser amigo dos poetas e especialmente de Homero Talvez Sócrates precise dos poetas a fim de restaurar em outra ocasião a dignidade de eros o Banquete o único diálogo de Platão em que Sócrates aparece conversando com os poetas é totalmente dedicado a eros As bases para o retorno à poesia foram lançadas logo no início do debate sobre os regimes inferiores e as almas inferiores A transição do melhor regime para os regimes 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 79 Cf República 564565 e 575 80 C f ibid 563 com 389 81 C f ibid 577 com 428 e 422 82 Ibid 568 inferiores foi expressamente atribuída ao discurso trágico das Musas e a transição do melhor homem para o homem inferior tem de certa forma um toque cômico a poesia assume a liderança quando começa a descida do mais elevado tema a justiça entendida como íilosoíia O retorno à poesia que é precedido pelo relato dos regimes inferiores e das almas inferiores é suido por uma discussão da maior recompensa para a virtude isto é as recompensas não inerentes à justiça ou à própria filosofia O retor no à poesia constitui o centro da parte da República em que a conversa se afiista do tema mais elevado O que não pode ser surpreendente pois a filosofia como busca da verdade é a mais elevada atividade do homem e a poesia não está preocupada com a verdade Na primeira discussão da poesia que precedeu por longo tempo a introdução da filosofia como tema a despreocupação da poesia com a verdade era sua principal recomendação pois naquela época era da inverdade que se necessitava Os poetas mais proeminentes foram expulsos da cidade justa não porque ensinassem a inverdade mas porque ensinavam o tipo errado de inverdade Mas entrementes ficou claro que somente a vida do homem filosofimte na medida em que sobre o que filosofe é a vida justa e que essa vida longe de precisar da inverdade rejeitaa por completo O pro gresso da cidade mesmo a melhor cidade em direção ao filósofo exige ao que parece um progresso da aceitação qualificada da poesia para a sua rejeição incondicional À luz da filosofia a poesia revelase como a imitação de imitações da verdade isto é das ideias A contemplação das ideias é a atividade do filósofo a imitação das ideias é a atividade do artesão comum e a imitação das obras de artesãos é a atividade de poetas e de outros artesãos imitativos Para começar Sócrates apresenta a ordem declassificação nos seguintes termos o criador das ideias p ex da ideia da cama é Deus o criador da imitação da cama que pode ser usada é o artesão e o criador da imitação da imitação da pintura de uma cama é o artesão imitativo Mais tarde Sócrates reafirma a ordem de classificação nos seguintes termos primeiro o usuário então o artesão e finalmente o artesão imitativo A ideia da cama tem origem no usuário que determina a forma da cama com vistas à finalidade para a qual será utilizada Assim o usuário é o único que possui o conhecimento mais elevado ou mais autorizado o conhecimento mais elevado que não é de modo algum possuído por qualquer artesão como tal o poeta que se encontra no polo oposto ao do usuário não possui qualquer conhecimento nem mesmo uma opinião correta Para compre ender essa acusação aparentemente ultrajante da poesia é preciso primeiro identificar o artesão cujo trabalho o poeta imita Os temas dos poetas são acima de tudo as coisas humanas referentes a virtude e vício os poetas veem as coisas humanas à luz da virtude mas a virtude para a qual olham é uma imagem imperfeita e até mesmo P latão 6 1 83 Ibid 545 549 84 Ibid 608 614 85 Ibid yiT 86 Ibid 485 87 Ibid 601602 distorcida da virtude O artesão a quem o poeta imita é o legislador nâo filosófico que é um imitador imperfeito da própria virtude Em particular a justiça tal como entendida pela cidade é necessariamente o trabalho do legislador pois o justo tal como entendido pela cidade é o legal Ninguém expressou a sugestão de Sócrates mais claramente do que Nietzsche que afirmou os poetas sempre foram os criados de alguma moralidade Mas segundo o provérbio francês ninguém é herói para seu criado de quarto Não estariam os artistas e em particular os poetas cientes da fraqueza secreta de seus heróis De acordo com Sócrates este é certamente o caso Os poetas trazem à luz por exemplo toda a força do pesar que um homem sente pela perda de um ente querido a força de um sentimento que o homem de respeito não expressaria de modo adequado exceto quando estivesse sozinho porque sua expressão adequada na presença de outros não é apropriada e legal os poetas trazem à luz aqui lo que em nossa natureza a lei reprime à força Se assim é se os poetas são talvez os homens que melhor compreendem a natureza das paixões que a lei coíbe estão muito longe de serem meramente os servos dos legisladores são também os homens com quem o legislador prudente aprenderá A verdadeira contenda entre filosofia e poesia diz respeito do ponto de vista do filósofo não ao valor da poesia como tal mas à ordem de classificação da filosofia e da poesia Segundo Sócrates a poesia só é legítima como instrumental para o usuário por excelência para o rei que é o filósofo e não enquanto autônoma Pois a poesia autônoma apresenta a vida humana como au tônoma ou seja não dirigida para a vida filosófica e portanto nunca apresenta a vida filosófica em si exceto em sua distorção cômica por conseguinte a poesia autônoma é necessariamente ou tragédia ou comédia pois a vida não filosófica entendida como autônoma ou não tem como escapar de sua dificuldade fundamental ou tem apenas uma saída inadequada Mas a poesia instrumental apresenta a vida não filosófica como instrumental para a vida filosófica e portanto acima de tudo apresenta a vida filosó fica em si O maior exemplo da poesia instrumental é o diálogo platônico A República se encerra com uma discussão sobre as maiores recompensas pela justiça e as maiores punições para a injustiça A discussão consiste em três partes 1 a prova da imortalidade da alma 2 as recompensas e punições divinas e humanas para os homens enquanto vivos 3 as recompensas e punições após a morte A parte cen tral se cala a respeito dos filósofos recompensas pela justiça e punições para a injustiça ao longo da vida são necessárias para os não filósofos cuja justiça não tem os atrativos intrínsecos que a justiça dos filósofos tem O relato acerca das recompensas e punições após a morte é feito sob a forma de um mito O mito não é infundado pois se baseia 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 88 Ibid 598 599 600 89 Cf ibid 501 90 A Gaia Ciência n 1 91 NTi II ny a pas de hérospour son valet de chambre 92 República 603604 606 607 93 Ibid 607 94 Cf ibid 604 na prova da imortalidade das almas A alma não pode ser imortal se for composta de muitas coisas a menos que a composição seja muito perfeita Mas a alma tal como a conhecemos a partir da nossa experiência não tem perfeita harmonia A fim de des cobrir a verdade seria necessário recuperar por meio do raciocínio a natureza original ou verdadeira da alma Este raciodnio não é atingido na República Ou seja Sócrates prova a imortalidade da alma sem ter trazido à luz a natureza da alma A situação no final da República corresponde precisamente à situação no final do primeiro livro da República onde Sócrates deixa claro que provou que a justiça é salutar sem saber o quê ou a natureza da justiça O debate que se segue ao primeiro livro traz à luz a na tureza da justiça como a ordem correta da alma mas como se pode conhecer a ordem correta da alma se não se conhece a natureza da alma Lembremos aqui também o fiito de que o paralelismo entre a alma e a cidade que é a premissa da doutrina da alma expressa na República é evidentemente questionável e mesmo insustentável A República não pode trazer à luz a natureza da alma porque abstrai eros e o corpo Se estivermos realmente interessados em descobrir exatamente o que é justiça é pre ciso trilhar um caminho mais longo no estudo da alma do que aquele percorrido na República Isso não significa que o que aprendemos sobre a justiça na República não seja verdadeiro ou seja completamente provisório Os ensinamentos da República em matéria de justiça embora não sejam completos podem ainda ser verdadeiros na medida em que a natureza da justiça depende decisivamente da natureza da cidade pois até mesmo o transpolítico não pode ser entendido como tal exceto se a cidade for entendida e a cidade é cabalmente compreensível pois seus limites podem ser perfeitamente manifestos para ver estes limites não é preciso ter respondido à questão sobre o todo é suficiente se ter feito a pergunta a respeito ao todo A República então de fiito deixa claro o que é justiça No entanto como observou Cícero a República não traz à luz o melhor regime possível mas sim a natureza das coisas políticas a natureza da cidade Sócrates deixa claro na República qual caráter a cidade teria de ter a fim de satisfiizer as mais elevadas necessidades do homem Ao nos permitir ver que a cidade construída em conformidade com este requisito não é possível permite nos divisar os limites essenciais a natureza da cidade O PoLtnco O Político é precedido pelo Sota que por sua vez é precedido por Teeteto O Tee teto apresenta uma conversa entre Sócrates e o jovem matemático Teeteto a qual tem lugar na presença de Teodoro matemático maduro e de renome bem como do jovem companheiro de Teeteto denominado Sócrates que se destina a esclarecer o que é o conhecimento ou ciência A conversa não leva a um resuludo positivo Sócrates por si P latAo 6 3 95 611612 96 Ibid 504 506 97 Cícero República 1152 mesmo só sabe que nâo sabe e Teeteto náo é como Glauco ou Adimanto que podem ser auxiliados por Sócrates ou podem auxiliálo a produzir um ensinamento positi vo No dia seguinte à conversa de Sócrates com Teeteto Sócrates reúnese novamente com Teodoro o jovem Sócrates e Teeteto mas desta feita está presente também um filósofo anônimo designado apenas como um forasteiro de Eleia Sócrates pergunta ao forasteiro se seus companheiros consideram o sofista o político e o filósofo como um só único ou se como dois ou três Poderia parecer que a questão acerca da identidade ou não identidade do sofista do político e do filósofo toma o lugar ou é uma versão mais articulada da questão o que é o conhecimento O estranho responde que os seus companheiros consideram o sofista o político ou rei e o filósofo como diferentes um do outro O fato de que o filósofo não é idêntico ao rei foi reconhecido na tese centrai da República segundo a qual a coincidência entre a filosofia e a monarquia é a condição para a salvação das cidades e também da raça humana as coisas idênticas não têm de coincidir Mas a República não esclareceu suficientemente o status cogni tivo da monarquia ou do político A partir da República podemos facilmente receber a impressão de que o conhecimento necessário do reifilósofo consiste em duas partes heterogêneas o conhecimento puramente filosófico das ideias que culmina com a visão da ideia do bem por um lado e a experiência meramente política que não tem nenhum status de conhecimento mas que permite encontrar o caminho na Caverna e discernir as sombras em suas paredes por outro Mas o suplemento indispensável ao conhecimento filosófico também parecia ser um tipo de arte ou ciência O forasteiro eleata parece assumir a segunda e superior opinião da consciência náo filosófica pe culiar ao político Todavia nos diálogos Sofista e Político ele deixa clara a natureza do sofista e do político ou seja a diferença entre o sofista e o político sem deixar clara a diferença entre o político e filósofo Temos a promessa de Teodoro de que o forasteiro eleata também explanará em uma seqüência do Político o que é o filósofo mas Platão não cumpre sua promessa a Teodoro Devemos então entender o que é o filósofo uma vez que tivermos entendido o que são o sofista e o político Não é a política tal como transpareceu a partir da República um mero suplemento para a filosofia mas um ingrediente da filosofia Ou seja seria a política a arte ou o conhecimento peculiar ao político longe de ser meramente a consciência necessária para encontrar um caminho na caverna e longe de ser ela mesma independente da visão da ideia do bem uma condição ou melhor um ingrediente de uma visão da ideia do bem Se fosse assim então a política seria muito mais importante de acordo com o Político do que seria de acordo com a República Certamente a conversa sobre o rei ou políti co ocorre quando Sócrates já foi acusado de um crime capital pelo qual foi logo em seguida condenado e executado veja o final do Teeteto a cidade parece estar presente de forma muito mais poderosa no Político do que na República na qual o antagonista de Sócrates Trasímaco só representa a cidade Por outro lado no entanto enquanto na República Sócrates funda uma cidade embora apenas no discurso com a ajuda de 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 98 Cf Platáo República 484 e 539 cxim 501 dois irmãos que se preocupam apaixonadamente com a justiça e com a cidade no Po lítico Sócrates escuta em silêncio a um forasteiro sem nome um homem a quem íàlta responsabilidade política que traz à luz o que é o político na atmosfera rarefeita da ma temática a preocupação em descobrir o que é o político parece ser filosófica e não po lítica O Político parece ser muito mais sóbrio do que a República Podemos dizer que o Político é mais científico do que a República Por ciência Platão entende a mais elevada forma de conhecimento ou melhor o único tipo de consciência que merece ser chamado conhecimento A essa forma de conhecimento denomina dialética Dialética significa primordialmente a arte da conversa e em seguida a forma suprema daquela arte uma arte praticada por Sócrates a arte da conversa que pretende trazer à luz o o que é das coisas ou as ideias A dialética é então o conhecimento das ideias um conhecimento que não fàz qualquer uso da experiência sensível movese de uma ideia para outra até que tenha esgotado todo o reino das ideias pois cada ideia é uma parte e portanto aponta para outras ideias Na sua forma completa a dialética descenderia da mais elevada ideia a ideia que do mina o reino das ideias passo a passo até as ideias mais inferiores O movimento se processa passo a passo ou seja sue a articulação a divisão natural das ideias O Político bem como o Sofista apresenta uma imitação da dialética assim entendida ambos servem para dar uma breve noção da dialética assim entendida a imitação que apresentam é jocosa No entanto o jogo não é mero jogo Se deve ser impossível o movimento de ideia para ideia sem recorrer à experiência dos sentidos se em outras palavras a República deve ser utópica não só no que afirma sobre a cidade no seu me lhor mas também no que diz sobre a filosofia ou dialética no seu melhor a dialética no seu melhor não sendo possível não será séria A dialética que é possível continuará a depender da experiência Há uma conexão entre esse aspecto do Político e o fato de que as ideias de que trata o Político são classes ou incluem todos os indivíduos que participam da ideia em questão e portanto não subsistem independentemente dos indivíduos ou além deles No entanto no Político o forasteiro eleata tenta trazer à luz a natureza do político ao descer da arte ou conhecimento passo a passo para a arte do político ou por dividir a arte passo a passo até chegar à arte do político Por uma série de razões nâo podemos acompanhar aqui o seu procedimento metódico Pouco depois do início da conversa o forasteiro eleata fàz o jovem Sócrates con cordar com o que se pode denominar a abolição da distinção entre o público e o pri vado Alcança esse resultado em duas etapas Uma vez que a política ou monarquia são essencialmente um tipo de conhecimento não tem qualquer importância se o homem que possui esse conhecimento envei as vestes de um alto cargo em virtude de ter sido eleito por exemplo ou se vive em uma condição privada Em segundo lugar não há diferença essencial entre a cidade e a família e por conseguinte entre o político ou rei PiATto 6 5 99 Cf Político 285 100 República 511 531533 537 101 Cf Político 264 por um lado e o chefe de fiunília ou mestre ou seja o mestre dos escravos por outro Direito e liberdade os fenômenos caracteristicamente políticos que são inseparáveis entre si são eliminados logo no início porque a política é entendida como um tipo de conhecimento ou arte ou porque se abstrai daquilo que distingue a política das artes O forasteiro eleata abstrai aqui do feto de que a pura força física é um ingrediente necessário do domínio dos homens sobre os homens Essa abstração é em parte justi ficada pelo feto de que a política ou monarquia é uma arte cognitiva ao contrário de manual ou braquial No entanto não é apenas cognitiva como a aritmética é uma arte que dá comandos a seres humanos Mas todas as artes que dão comandos fezem no por causa do nascimento de algo Algumas dessas artes dão comandos em prol do nascimento de seres vivos ou animais ou seja preocupamse com a reprodução e cria ção de animais A arte régia é um tipo desse gênero de arte Para o bom entendimento da arte régia não é suficiente dividir o gênero animal nas espécies feras e homens Esta distinção é tão arbitrária quanto a divisão da raça humana em gregos e bárbaros distinta da diferenciação entre homens e mulheres não é uma distinção natural mas uma distinção que tem origem no orgulho O treinamento que o forasteiro dá ao jovem Sócrates na dialética ou na arte de dividir os tipos ou ideias em classes ou anda de mãos dadas com o treinamento na modéstia ou na moderação De acordo com a divisão que o forasteiro realiza das espécies de animais o parente mais próximo do ho mem é ainda mais inferior do que se apresenta conforme a doutrina de Darwin sobre a origem das espécies Mas o que Darwin expressou de modo sério e literal o forasteiro diz jocosamente O homem deve aprender a enxergar a humildade de seu estado a fim de passar do humano para o divino isto é para ser verdadeiramente humano A divisão de arte leva à conclusão de que a arte do político é a arte que se preocupa com a reprodução e criação ou com o cuidado pelos rebanhos do tipo de animal chamado homem Esse resultado é manifestamente insuficiente pois há mui tas artes p ex a medicina e a atividade do casamenteiro que reivindicam com a mesma justiça a preocupação com o cuidado pelos rebanhos humanos tal como fez a arte política O erro deveuse ao feto de que o rebanho humano era tido como um rebanho da mesma natureza que os rebanhos de outros animais Mas rebanhos hu manos são um tipo muito especial de rebanho a bipartição de animal em feras e homens não se origina apenas no orgulho O erro é retificado por um mito Segundo o mito agora pela primeira vez narrado em toda a sua plenitude houve uma época a idade de Cronos quando o deus guiava o todo e em seguida um tempo a idade de Zeus quando o deus permitia que o todo se movesse por seu próprio modo Na era de Cronos o deus governava e cuidava dos animais designando as diferentes espécies de animais ao comando e aos cuidados de deuses diferentes que agiam como pastores e assim asseguravam a paz universal e a fertura não havia sociedades políticas nem propriedade privada nem famílias Isso não significa necessariamente que os homens 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 102 262263 266 103 Cf ibid 271 272 vivessem felizes na era de Cronos somente se usassem a paz e a fertura então reinantes para filosofar é que se pode dizer que vivessem felizes De qualquer forma na presente época o deus não cuida do homem na idade atual não há providência divina os ho mens devem cuidar de si mesmos Privado do cuidado divino o mundo está repleto de desordem e injustiça os homens devem estabelecer a ordem e a justiça tão bem quanto puderem com o entendimento de que nesta época de escassez o comunismo e por conseguinte também o comunismo absoluto é impossível Podese dizer que o Político trouxe à tona o que a República deixara velado a saber a impossibilidade do melhor regime apresentado na República O mito do Político tenciona explicar o erro cometido pelo forasteiro eleata e pelo jovem Sócrates na definição inicial do Político ao procurar por uma arte única de cui dar de rebanhos humanos inadvertidamente voltaramse para a era de Cronos ou em direção aos cuidados divinos com o desaparecimento do cuidado divino isto é de um cuidado por seres que aos olhos de todos são superiores aos homens tornouse inevi tável que toda a arte ou todo homem deve crer em si para que tenha o mesmo direito de governar que qualquer outra arte ou qualquer outro homem ou que pelo menos muitas artes devem tomarse concorrentes da arte régia A primeira e inevitável con seqüência da transição da era de Cronos para a de Zeus é a ilusão de que todas as artes e todos os homens são iguais O erro consistia em assumir que a ane r a é dedicada ao completo cuidado pelos rebanhos humanos um cuidado total incluiria a alimenta ção e acasalamento dos governados e não um cuidado parcial ou limitado Em outras palavras o erro consistiu na desconsideração do fiito de que no caso de todas as artes do pastoreio diferentes da arte humana de pastorear seres humanos o pastor pertence a uma espécie diferente dos membros do rebanho Temos então de dividir todo o cui dar de rebanhos em duas partes cuidar de rebanhos em que o pastor pertence à mesma espécie que os membros do rebanho e cuidar de rebanhos em que o pastor pertence a uma espécie diferente dos membros do rebanho pastores humanos de feras e pastores divinos de seres humanos Em seguida temos de dividir o primeiro desses dois tipos em partes para que possamos descobrir que o pastoreio parcial de rebanhos em que o pastor pertence à mesma espécie que os membros do rebanho é a arte iia Vamos su por que o cuidado parcial procurado seja governar cidades O ato de governar cidades é naturalmente dividido em governar sem a aquiescência do governado decisão pela força e governar por decisão do governado o primeiro é tirânico o último réo Aqui vislumbramos pela primeira vez a liberdade como tema especificamente político Mas exatamente no momento em que o forasteiro fãz alusão a essa dificuldade afàstase dela Considera insatisfatório todo o procedimento anterior O método que se revela útil onde falharam tanto a divisão de classes e em classes assim como o mito é o uso de um exemplo O forasteiro ilustra a utilidade dos exem plos por meio de um exemplo O exemplo tem como fim ilustrar a situação do homem em relação ao conhecimento ao fenômeno que é o fio condutor da trilogia Teeteto P la t ã o 67 104 Ibid 274275 SofistaPoUtico O exemplo escolhido é o conhecimento de leitura pelas crianças A partir do conhecimento das letras os elementos elas avançam passo a passo para o conhecimento das sílabas mais curtas e mais fóceis a combinação de elementos e depois para o conhecimento das longas e difíceis O conhecimento do todo não é possível se não for semelhante à arte de ler deve estar disponível o conhecimento dos elementos o número de elementos deve ser bastante pequeno e nem todos os elemen tos devem ser combináveis Mas seria possível dizer que possuímos o conhecimento dos elementos do todo ou que poderíamos começar a partir de um início absoluto Será que nós no Político começamos a partir de uma compreensão adequada da arte ou do conhecimento Não é verdade que enquanto necessariamente ansiamos pelo conhecimento do todo estamos condenados a fícar satisfeitos com o conhecimento parcial de partes do todo e por conseguinte nunca verdadeiramente transcender a esfera da opinião Não seria portanto a filosofia e por conseguinte a vida humana ne cessariamente sisífica Poderia ser este o motivo pelo qual a procura pela liberdade não é tão evidentemente sólida quanto creem muitos amantes atuais da liberdade com base em pensamentos muito similares Talvez isso nos pudesse induzir a considerar o Gran de Inquisidor de Dostoiévski em função do Político de Platão Após nos ter compelido a lettar estas e outras questões afins o forasteiro retoma seu exemplo que se destina a esclarecer não o conhecimento em geral ou a filosofia como tal mas a arte régia O exemplo escolhido por ele é a arte de tecer ilustra a arte política por meio de uma arte enfiiticamente doméstica e não por essas artes que envolvem uma saída como o pas toreio e a pilotagem ilustra a arte mais viril por meio de uma arte caracteristicamente feminina A fim de descobrir o que é a tecelagem devese dividir a arte mas dividila de forma diferente da que fora utilizada em um primeiro momento A análise da arte da tecelíem que é feita com base na nova divisão permite que o forasteiro elucide a arte em geral e a arte r a em particular antes que aplique explicitamente o resultado dessa análise à arte régia Talvez a assertiva mais importante neste contexto seja a distinção entre dois tipos de arte de medição um tipo que considera o maior e o menor em rela ção a um outro e outro tipo que considera o maior e o menor ora entendido como excesso e defeito em relação à média ou digamos o apropriado ou algo similar Todas as artes e especialmente a arte régia fazem as suas medições tendo em vista a média correta ou a apropriada ou seja não são matemáticas Ao aplicar explicitamente à arte régia os resultados de sua análise da arte da tecelíem o forasteiro se permite esclarecer a relação entre a arte real e todas as ou tras artes e especialmente com aquelas artes que alegam com alguma aparência de justiça competir com a arte régia pelo governo da cidade Os concorrentes mais bem sucedidos e inteligentes são os notórios sofistas que pretendem possuir a arte régia e estes são os governantes das cidades ou seja governantes que não possuem a arte régia ou política ou praticamente todos os líderes políticos que já foram são e serão Há três categorias desse tipo de regime político o governo de um o governo de poucos e 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 0 5 C f 252 o governo de muitos mas cada um desses três tipos é dividido em duas partes tendo em vista a diferença entre violência e voluntariedade ou entre legalidade e ilega lidade assim a monarquia se distingue da tirania e a aristocracia da oligarquia enquanto o nome democracia é aplicado ao governo da massa independentemente de se a massa dos pobres governa sobre os ricos com o consentimento dos ricos e em estrita obediência às leis ou com violência e mais ou menos sem leis A distinção entre os regimes esboçada pelo forasteiro é quase idêntica à distinção desenvolvi da por Aristóteles no terceiro livro de sua Política mas observemos as diferenças Nenhum desses regimes baseia suas reivindicações no conhecimento ou na arte dos governantes isto é na única alegação que é irrestritamente legítima Daí resulta que são duvidosas as reivindicações com base na vontade dos sujeitos no consentimen to ou na liberdade e na legalidade Esse julgamento é defendido com referência ao exemplo das outras artes e especialmente da medicina O médico é médico quer nos cure por nossa vontade quer contra a nossa vontade quer nos corte quei me quer nos inflija qualquer outra dor e quer aja de acordo com normas escritas quer sem elas é médico se sua decisão redundar em benefício para nossos corpos Correspondentemente o único regime que é correto ou o que é verdadeiramen te um regime é aquele em que os possuidores da arte régia governam sem levar em consideração se governam segundo a lei ou sem leis e quer os governados con sintam com seu governo quer não com a condição de que seu governo redunde em benefício para o corpo político não fàz qualquer diferença se atingem este fim por matar alguns ou por banilos e assim reduzir a população da cidade ou por importar cidadãos de outros países e assim aumentar as dimensões da cidade O jovem Sócrates que não fica chocado com o que diz o forasteiro a respeito de matar e banir chocase um pouco com a sugestão de que o governo sem leis governo absoluto pode ser legítimo Para entender plenamente a resposta do jovem Sócrates devese atentar para o fàto de que o forasteiro não fez uma distinção entre as leis hu manas e as leis naturais O forasteiro volta a indignação incipiente do jovem Sócrates para um desejo de discussão por parte deste último O governo pela lei é inferior ao governo da inteligência viva porque as leis devido à sua generalicfede não são capazes de determinar com sabedoria o que é correto e adequado em todas as circunstâncias dada a infinita variedade de circunstâncias somente o homem sábio in situ poderia decidir corretamente o que é certo e adequado às circunstâncias Apesar disso as leis são necessárias Os poucos homens sábios não podem se sentar ao lado de cada um dos muitos homens não sábios e lhes dizer exatamente o que é apropriado que feçam Os poucos homens sábios estão quase sempre desatentos dos inumeráveis homens não sábios Todas as leis escritas ou não são maus substitutos mas substitutos in dispensáveis para as decisões individuais pelos homens sábios São princípios básicos grosseiros suficientes para a grande maioria dos casos tratam os seres humanos como se fossem membros de um rebanho O engessamento dos princípios básicos grosseiros em prescrições sagradas invioláveis imutáveis que seriam rejeitadas por todos como ridículas se isso fosse feito no campo das ciências e das artes é uma necessidade na ordenação dos assuntos humanos essa necessidade é a causa imediata da diferença P latAo 6 9 inextirpável entre as esferas política e suprapolítica Mas a principal objeção às leis não é que não sejam suscetíveis de ser individualizadas mas que se presume que se jam obrigatórias para o homem sábio o homem que possui a arte régia Todavia mesmo essa objeção não é totalmente válida Como o forasteiro explica por meio de imagens o homem sábio é sujeito às leis cuja justiça e sabedoria são inferiores às suas porque os homens não sábios não podem deixar de desconfiar do homem sábio e essa desconfiança não é totalmente indefensável dado o fato de que não conseguem entendêlo Os homens não sábios não são capazes de acreditar que um homem sábio que mereceria governar como um verdadeiro rei sem leis estaria disposto e apto a governálos A razão fimdamental para a sua incredulidade é o fato de que nenhum ser humano tem essa superioridade manifesta em primeiro lugar em relação ao corpo e em seguida em relação à alma o que induziria todos a se submetetem a seu governo sem qualquer hesitação e sem qualquer reserva Os homens não sábios não podem evitar serem eles mesmos os juizes do homem sábio Não é de admirar então que os sábios não estejam dispostos a governálos O homem não sábio deve até exigir do homem sábio que considere a lei apenas como impositiva ou seja que nem sequer duvide de que as leis estabelecidas sejam perfeitamente justas e sábias se não o fizer será culpado de corromper os jovens uma ofensa capital devem proibir a livre inves tigação acerca dos assuntos mais importantes Todas essas implicações do governo das leis devem ser aceitas uma vez que a única alternativa viável é o governo sem lei dos homens egoístas O homem sábio deve curvarse à lei que é inferior a ele em sabedoria e justiça não só em obras mas no discurso também Aqui não podemos deixar de perguntar se não há limites à sujeição do sábio às leis As ilustrações platônicas são essas Sócrates obedeceu sem vacilar à lei que lhe ordenou morrer por causa de sua su posta corrupção dos jovens todavia ele não teria obedecido a uma lei que o proibisse formalmente de exercer a filosofia Leiamos a Apolo de Sócrates juntamente com o Criton O gpverno da lei é preferível ao governo sem lei dos homens não sábios desde que as leis mesmo que ruins sejam de uma forma ou de outra o resultado de algum raciocínio Essa observação permite a classificação dos rimes incorretos isto é de todos os outros regimes diferentes do governo absoluto do rei verdadeiro ou político A democracia cumpridora da lei é inferior ao governo que cumpre a lei de poucos a aristocracia e ao govemo que respeita a lei de um monarquia mas a democracia sem lei é superior ao governo sem lei de poucos oligarquia e ao governo sem lei de um a tirania A ausência de leis não significa aqui a completa ausência de leis ou costu mes Significa o habitual desrespeito das leis por parte do governo e especialmente daquelas leis que são destinadas a restringir o poder do governo um governo que pode mudar qualquer lei ou é soberano é sem lei A partir da seqüência parece que de acordo com o forasteiro mesmo na cidade governada pelo rei verdadeiro haverá leis o 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 106 PoUtico 295 107 7ói297ss 108 7Ó301 verdadeiro rei é o verdadeiro legislador mas que o verdadeiro rei em contradistinção a todos os outros governantes pode mudar as leis com justiça ou iir contra as leis Na ausência do verdadeiro rei o forasteiro provavelmente ficaria satisfeito se a cidade fosse governada por um código de leis composto por um homem sábio um código que pode ser alterado pelos governantes não sábios somente em casos extremos Após a verdadeira arte régia ter sido separada de todas as outras artes resta ao fo rasteiro determinar o trabalho peculiar do rei Aqui o exemplo da arte da tecelagem as sume importância decisiva O trabalho do rei se assemelha a uma teia De acordo com a visão popular todas as partes da virtude estão simplesmente em harmonia umas com as outras De íàto porém há uma tensão entre elas Acima de tudo há uma tensão entre a condem ou virilidade e a moderação gentileza ou preocupação com o decoro Essa ten são explica a tensão e até mesmo a hostilidade entre os preponderantemente viris e os seres humanos predominantemente gentis A tarefii do verdadeiro rei é entretecer esses tipos opostos de seres humanos pois as pessoas na cidade que são completamente in capazes de se tornar ou viris ou moderadas não podem jamais tornarse cidadãos Uma parte importante do entretecer do rei consiste em promover o casamento entre as crian ças de famílias predominantemente viris e as de fómílias preponderantemente gentis O rei humano deve então aproximarse do pastor divino ao ampliar a arte de governar as cidades estritamente entendida de modo a incluir nela a arte do acasalamento ou de promover casamentos A atividade de casamenteiro praticada pelo rei é semelhante à atividade de casamenteiro praticada por Sócrates o que significa que não é idêntica a esta última Se conseguíssemos entender a identidade entre a atividade de casamenteiro do rei e a atividade de casamenteiro de Sócrates teríamos feito algum progresso no sentido de compreender a identidade entre o rei e o filósofo Esta afirmação pode ser feita com segurança apesar de ser possível e até necessário fàlar do rebanho humano ao tentar definir o rei o filósofo nada tem a ver com o rebanho O Político pertence a uma trilogia cujo tema é o conhecimento Para Platão o conhecimento ou o esforço para adquirir o conhecimento em si é a filosofia A filosofia se esforça para ter conhecimento do todo para a contemplação do todo O conjunto é constituído de partes o conhecimento do todo é o conhecimento de todas as partes do todo enquanto partes de um todo A filosofia é a mais elevada atividade humana e o homem é uma parte excelente talvez a parte mais excelente do todo O todo não é um todo sem o homem sem o homem ser inteiro ou completo Mas o homem se torna inteiro não sem esforço próprio e esse esforço pressupõe conhecimento de um tipo particular o conhecimento que não é contemplativo ou teórico mas prescritivo ou impositivo ou prático O Político se apresenta como uma discussão teórica do conhecimento prático Em contraste com o Político a República parte da vida prática ou política e chega à filosofia à vida teórica a República apresenta uma discussão prá tica da teoria mostra aos homens preocupados com a solução do problema humano P latão 7 1 109 Cf Teeteto ISl 110 Político 160 que esta solução consiste na vida teórica o conhecimento que a República expõe é prescritivo ou impositivo A discussão teórica do mais elevado conhecimento prático a arte régia no Político simplesmente por expor o caráter da arte régia assume um caráter impositivo expõe o que o governante deve fezer Embora seja necessária uma distinção entre conhecimento teórico e prático sua separação é impossível Conside remos a partir deste ponto de vista a descrição da vida teórica no Teeteto 173177 A arte régia é uma das artes diretamente preocupadas em tornar os homens completos ou inteiros A indicação mais óbvia da incompletude de cada ser humano e ao mesmo tempo da maneira como pode ser completado é a separação da raça humana em dois sexos assim como a união de homens e mulheres a meta principal de eros torna o homem autossuficiente para a perpetuação para não dizer sempiternidade da espé cie humana todos os outros tipos de incompletude a serem encontrados nos homens sáo concluídos na espécie na ideia de homem A raça humana inteira e não qual quer parte dela é autossuficiente como uma parte do todo e não como o mestre ou o conquistador do todo É talvez por esse motivo que o Político termina com um elogio de um certo tipo de atividade de casamenteiro A s L e is A República e o Político transcendem a cidade de maneiras diferentes porém afins Mostram primeiro como a cidade teria de se transformar se desejasse manter sua pretensão de supremacia diante da filosofia Demonstram em seguida que a cida de é incapaz de passar por essa transformação A República indica tacitamente que a cidade comum ou seja a cidade que não é comunista e que é a associação dos pais em vez dos artesãos é a única cidade que é possível O Político aponta explicitamen te a necessidade do governo pelas leis A República e o Político revelam cada um à sua própria maneira a limitação essencial e com isso o caráter essencial da cidade Assim deitam as bases para responder à pergunta sobre a melhor ordem política a melhor ordem da cidade compatível com a natureza do homem Mas não determinam a melhor ordem possível Esta tarefe é deixada para as leis Podemos então dizer que Leis é a única obra realmente política de Platão É o único diálogo platônico do qual Sócrates está ausente Os personens das Leis são velhos de longa experiência política um ateniense desconhecido sem nome Clínias o cretense e Megilo o espartano O desconhecido ateniense ocupa o lugar habitualmente ocupado nos diálogos platônicos por Sócrates A conversa tem lugar longe de Atenas na ilha de Creta enquanto os três velhos caminham a pé da antiga cidade de Cnossos para a caverna de Zeus Nossa primeira impressão é de que o ateniense desconhecido foi a Creta a fim de descobrir a verdade sobre as leis gregas que sob determinado aspecto eram as mais renomadas pois se acreditava que as leis cretenses seriam originárias de Zeus o deus supremo As leis de Creta eram semelhantes às de Esparta que eram ainda mais re nomadas do que as de Creta e cuja origem remontavam à Apoio Por sugestão do ateniense os três homens conversam sobre leis e regimes O ateniense fica sabendo Ti H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y pelo cretense que o legislador cretense compôs todas as suas leis tendo em vista a guerra por natureza cada cidade está sempre cm um estado de guerra náo declarada com todas as outras cidades a vitória na guerra e por conseguinte a guerra é a con dição para todas as bênçãos Com facilidade o ateniense convence o cretense de que as leis de Creta visam a um fim errado a meta não é a guerra mas a paz Pois se a vitória na guerra é a condição de todas as bênçãos a guerra não é a meta as próprias bênçãos pertencem à paz Por conseguinte a virtude da guerra a coragem é a porção mais baixa da virtude inferior à moderação e acima de tudo à justiça e à sabedoria Uma vez que percebemos a ordem natural das virtudes conhecemos o mais elevado princípio da legislação pois que a legislação deve preocuparse com a virtude com a excelência da alma humana ao contrário de com quaisquer outros bens é facilmente admitido por Clínias o cavalheiro cretense a quem o ateniense assegura que a posse da virtude é necessariamente seguida pela posse de saúde beleza força e riqueza Parece que tanto os legisladores espartanos como os cretenses estando convencidos de que a finalidade da cidade é a guerra e não a paz cuidaram bem da educação de seus súditos ou companheiros para a coragem para o autocontrole em relação às dores e medos por meio de fazerlhes experimentar as maiores dores e medos mas não toma ram qualquer providência quanto à educação para a moderação o autocontrole sobre os prazeres por meio de fazerlhes experimentar os maiores prazeres Na verdade se podemos confiar em Megilo pelo menos o legislador espartano desencorajava total mente o gozar dos prazeres Os legisladores espartanos e cretenses decerto proibiam os prazeres da bebida prazeres livremente usufruídos pelos atenienses O ateniense afirma que beber e até mesmo a embriaguez praticada de modo correto é propí cio para a moderação a virtude gêmea da coragem A fim de ser praticado de forma correta o consumo de bebidas deve ser realizado em comum ou seja em certo senti do em público para que possa ser supervisionado Beber até mesmo a embriaguez será salutar se os bebedores forem dirigidos pelo tipo certo de homem Para que um homem seja o comandante de um navio não basta que possua a arte ou ciência de navegar tampouco pode sofrer de enjoo no mar Do mesmo modo nem a arte nem o conhecimento são suficientes para orquestrar um banquete A arte não é suficiente para dirigir qualquer associação e em particular a cidade O banquete é uma metáfora mais adequada da cidade do que o navio o navio do Estado pois assim como os comensais do banquete estão bêbados por causa do vinho os cidadãos estão bêbados por causa de seus medos esperanças desejos e aversões e portanto têm necessidade de serem governados por um homem que esteja sóbrio Uma vez que os banquetes são ilegais em Esparta e Creta mas legais em Atenas o ateniense é compelido a justificar uma instituição ateniense A justificativa é um longo discurso e os longos discursos eram atenienses e não espartanos ou cretenses O ateniense é portanto obrigado a P latAo 7 3 111 ZííT 631 cf 829 112 Ibidò 113 Ibidm justificar uma instituição ateniense no estilo ateniense É obrigado a transformar seus interlocutores não atenienses até certo ponto em atenienses Somente dessa maneira é capaz de corrigir seus pontos de vista equivocados sobre as leis e com isso even tualmente as suas próprias leis Por meio disso passamos a compreender melhor o caráter das leis como um todo Na República os regimes espartanos e cretenses fo ram usados como exemplos de timocracia o tipo de regime inferior apenas ao melhor regime mas de longe superior à democracia ou seja o tipo de regime que prevaleceu em Atenas durante a maior parte da vida de Sócrates e Platão Nas Leis o ateniense desconhecido tenta corrigir a timocracia isto é transformála no melhor regime pos sível que está de algum modo entre a timocracia e o melhor regime da República Este melhor regime possível demonstrará ser muito semelhante ao regime ancestral o regime prédemocrático de Atenas As leis de Creta e Esparta foram consideradas íalhas porque não permitiam que seus súditos experimentassem os maiores prazeres Mas seria possível afirmar que a be bida proporciona os maiores prazeres ou mesmo os maiores prazeres sensuais Todavia o ateniense tinha em mente aqueles maiores prazeres que podem ser desímtados em público e aos quais se deve ser exposto a fim de se aprender a controlálos Os prazeres dos banquetes são beber e cantar Desta forma a fim de justificar os banquetes devese discutir também o canto a música e por conseguinte a educação como um todo os prazeres da música são os maiores prazeres que as pessoas podem desíhitar em público os quais deve aprender a controlar por meio da exposição a eles As leis espartanas e cretenses padecem portanto do grande defeito de não exporem seus súditos de forma alguma ou pelo menos não o suficiente aos prazeres da música O motivo para isso é que essas duas sociedades não são cidades mas acampamentos armados um tipo de rebanho em Esparta e Creta mesmo os jovens que são por natureza aptos a se rem educados como indivíduos por professores particulares são criados apenas como membros de um rebanho Em outras palavras espartanos e cretenses só sabem cantar em coro não conhecem a música mais bela a mais nobre Na República a cidade do acampamento armado uma Esparta muito melhorada foi transcendida pela Cidade da Beleza a cidade em que a filosofia a mais elevada Musa é devidamente honrada Nas Leis em que é apresentado o melhor regime possível essa transcendência não tem lugar A cidade das Leis no entanto não é em qualquer sentido uma cidade do acam pamento armado Todavia essa cidade tem algumas características em comum com a cidade do acampamento armado da República Tal como na RepúbUca a educação musical demonstra ser a educação para a moderação e esta educação demonstra exigir que músicos e poetas sejam supervisionados pelo verdadeiro estadista ou legislador Todavia enquanto na República a educação para a moderação demonstra culminar 7 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 114 República 115 LeisA2 116 C íibid67y 117 Ib id m 66r no amor pelo belo nas Leis pelo contrário a moderação assume as cores do sentimen to de vergonha ou de reverência A educação é certamente a educação para a virtude a virtude do cidadão ou a virtude do homem A virtude do homem é primordialmente a postura adequada diante dos prazeres e dotes ou o controle adequado dos prazeres e dores o controle adequado é o controle efetuado pelo raciocínio correto Se o resultado do raciocínio for adotado pela cidade esse resultado tornase lei a lei que merece este nome é o ditame do raciocínio correto principalmente a respeito de prazeres e dores O parentesco mas não a identidade entre o raciocínio correto e as boas leis corresponde ao parentesco mas não à identidade en tre o homem bom e o bom cidadão A fim de aprender a controlar os prazeres e as dores comuns os cidadãos devem ser expostos desde a infância a prazeres proporcionados pela poesia e pelas demais artes imitativas que por sua vez devem ser controladas por leis boas ou sábias por leis que portanto jamús devem ser mudadas o desejo de ino vação tão natural à poesia e às outras artes imitativas deve ser suprimido tanto quanto possível os meios para atingir esse objetivo é a consagração do correto depois que este veio à luz O lslador perfeito persuadirá ou compelirá os poetas a ensinarem que a justiça combina com o prazer e que a injustiça combina com a dor O legislador perfeito exigirá que essa doutrina manifestamente salutar seja ensinada mesmo que não seja verdadeira Essa doutrina ocupa o lugar da teologia do suido livro da República Para a República o ensino salutar sobre a relação entre justiça e prazer ou felicidade não poderia ser discutida no contexto da educação dos não filósofos porque a República não pressupõe como fàzem as Leis que os interlocutores do personagem principal sai bam o que é justiça A conversa toda relativa à educação e com isso também acerca das finalidades ou dos princípios da lslação é subsuntida pelo ateniense desconheci do sob o tema vinho e até em briez porque o aperfeiçoamento das leis antigas só pode ser confiado com srança a velhos de boa educação que como tais são avessos a qualquer mudança e que para se disporem a mudar as leis antigas devem ser subme tidos a um rejuvenescimento tal como o produzido pelo consumo de vinho Só depois de ter determinado as metas que a vida política deve atender educa ção e virtude é que o estranho se volta para o início da vida política ou a gênese da cidade a fim de descobrir a causa das mudanças políticas e em especial das mudanças de regime Muitos têm sido os primórdios da vida política porque têm ocorrido mui tas destruições de quase todos os homens devido a inundações pnas e calamidades semelhantes que trazem consigo a destruição de todas as artes e ferramentas apenas alguns seres humanos sobreviveram no topo de montanhas ou em outros lugares pri vilegiados passaramse muitas gerações até que se atrevessem a descer para a planície e durante essas gerações a última lembrança das artes desapareceu A condição de que emeiiram todas as cidades e rimes todas as artes e leis todos os vícios e virtudes 118 fó 643 659 653 119 éíí 660664 120 RepúbUca092 P latão 7 5 surgiram é a falta de todas essas coisas nos homens o local de onde algo emerge é um tipo de causa da coisa em questão a falta primária daquilo que podemos denominar civilização parece ser a causa de todas as mudanças políticas Se o homem tivesse tido um começo perfeito não haveria causa alguma para a mudança e a imperfeição de seu início certamente teria efeitos em todas as íàses por mais que perfeitas de sua civilização O desconhecido mostra que esse é o caso ao se acompanhar as mudanças pelas quais a vida humana passou desde seus primórdios quando os homens eram aparentemente virtuosos porque não eram de fato sábios mas simplórios ou ino centes apesar disso de fato selvagens até a destruição do povoado original de Esparta e suas cidades irmãs Messene e Argos Faz referência de modo delicado apenas à su jeição despótica dos messênios pelos espartanos O desconhecido sintetiza o resultado de sua averiguação pela enumeração dos direitos geralmente aceitos e eficazes para governar É a contradição entre os direitos ou reivindicações que explica a mudança de regimes O direito de governar com base na sabedoria conquanto o mais elevado seria apenas um entre sete Entre os outros encontramos o direito ou reivindicação do mestre para mandar em seus escravos do mais forte para dominar o mais fraco e daqueles escolhidos pelo destino para decidir sobre os que não o foram A sabedoria não constitui direito suficiente um regime viável pressupõe um amálgama de reivindi cações baseadas na sabedoria com reivindicações baseadas em outros tipos de superio ridade talvez a fusão adequada ou sábia de alguns dos outros direitos possa substituir o direito decorrente da sabedoria O ateniense desconhecido não abstrai como o faz o forasteiro eleata a força física como um ingrediente necessário do domínio do ho mem sobre o homem O regime viável deve ser misto O regime de Esparta é misto Mas seria mesclado com sabedoria Para responder a essa pergunta é preciso primeiro examinar de forma isolada os ingredientes da mistura certa São estes a monarquia da qual a Pérsia oferece o exemplo por excelência e a democracia da qual Atenas oferece o mais destacado exemplo A monarquia por si só representa o domínio absoluto do homem sábio ou do mestre a democracia representa a liberdade A mistura certa é a de sabedoria com liberdade de sabedoria com consentimento do governo por leis sábias elaboradas por um legislador sábio com a administração pelos melhores mem bros da cidade e com o governo do povo comum Após terem sido esclarecidos o final e as características gerais do melhor regime possível Clínias revela o que a presente conversa tem de utilidade direta para ele Os cretenses planejam fundar uma colônia e confiaram a ele juntamente com alguns outros a elaboração do projeto e em particular a composição de leis para a colônia como melhor entendessem poderiam até mesmo selecionar leis estrangeiras se lhes parecessem superiores às leis de Creta As pessoas a serem estabelecidas ali viriam de Creta e do Peloponeso não viriam todas de uma só cidade Se fossem da mesma 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 121 Leis 676 678 122 Ihidiy 123 Ibid m cidade com a mesma língua e as mesmas leis e os mesmos ritos sagrados e crenças náo poderiam ser facilmente persuadidas a aceitar instituições diferentes das de sua cidade natal Por outro lado a heterogeneidade da população de uma cidade do futu ro causa dissensões No presente caso a heterogeneidade parece ser suficiente para possibilitar consideráveis mudanças para o melhor ou seja a instalação do melhor regime possível mas não tão grandes que impeçam a fusão Temos aqui a alternativa viável para a expulsão de todos com idade superior a 10 anos que seria necessária para o estabelecimento do melhor regime da República As tradições que os vários grupos de colonos trazem com eles serão modificadas ao contrário de erradicadas Graças à boa sorte que propiciou a presença do desconhecido ateniense em Creta no momento mesmo em que está em preparação o envio dos colonos há uma possibilidade razoável de que as tradições sejam modificadas com sabedoria Os maiores cuidados devem ser tomados para que a nova ordem estabelecida sob a orientação dos homens sábios não seja alterada posteriormente por homens menos sábios esta nova ordem deve ser exposta às alterações tão pouco quanto possível pois qualquer alteração de uma ordem sábia parece ser uma mudança para pior De qualquer forma sem a presença fortuita do ateniense desconhecido em Creta não haveria esperança de uma legislação sábia para a nova cidade Esta conclusão nos fiiz entender a afirmação do desconhecido de que não são os seres humanos mas é o acaso que legisla a maioria das leis é por assim dizer ditada por calamidades Contudo ainda há espaço para a arte legislativa Ou inversamente o possuidor da arte legislativa será impotente se não tiver sorte pelo que só pode rezar As circunstâncias mais favoráveis pelas quais o legislador deve pedir é que a cidade para a qual deve formular as leis seja governada por um tirano jovem cuja natureza seja em alguns aspectos idêntica à do filósofo exceto que aquele não tem de ser gracioso ou espirituoso amante da verdade e justo sua falta de justiça o fiito de que é incentivado apenas pelo desejo de seu próprio poder e glória não causará dano se estiver disposto a ouvir o sábio legislador Dada essa condição dada uma coincidência do maior poder com sabedoria por meio da cooperação do tirano com o legislador sábio o legislador realizará a mais rápida e profunda transformação para melhor nos hábitos dos cidadãos Mas uma vez que a cidade a ser fundada será subme tida à menor alteração possível talvez seja mais importante compreender que o regime mais difícil de mudar é a oligarquia o regime que ocupa o lugar central na ordem dos regimes apresentados na República Decerto a cidade a ser fundada não pode ser governada pela tirania O melhor regime é aquele em que um deus ou demônio gover na tal como na era de Cronos a idade de ouro A imitação mais próxima do divino é o governo das leis Mas por sua vez as leis dependem do homem ou homens que podem ditar e fazer cumprir as leis ou seja o regime monarquia tirania oligarquia democracia aristocracia No caso de cada um desses regimes uma parte da cidade governa o resto e portanto governa a cidade com vistas a um interesse parcial não P latAo 7 7 124 Ibid 707708 125 Cf ibid 708712 com República 487 em termos dos interesses comuns Já conhecemos a solução para essa dificuldade o regime deve ser misto tal como foi de certo modo em Esparta e Creta e deve adotar um código elaborado por um legislador sábio O legislador sábio não se limitará a emitir ordens simples acompanhadas de san ções ou seja ameaças de punição Esta é a maneira de orientar escravos não homens livres O legislador sábio prefiiciará as leis com preâmbulos ou prelúdios que apontem os motivos das leis Todavia diferentes tipos de motivos são necessários para persua dir diferentes tipos de homens e a multiplicidade de razões pode confundir e assim comprometer a simplicidade da obediência O legislador deve então ser dotado da arte de dizer ao mesmo tempo coisas diferentes para diferentes tipos de cidadãos de tal forma que o discurso do legislador atingirá em todos os casos o mesmo resultado simples a obediência a suas leis Serão os poetas de grande valia para a aquisição dessa arte Deve ser dupla a dimensão das leis as leis devem consistir na lei não misturada a afirmação categórica do que deve ser feito ou evitado sob pena de con seqüências ou seja a prescrição tirânica e o prelúdio para a lei que gentilmente persuade apelando para a razão A mistura adequada de coerção e persuasão de tirania e democracia de sabedoria e de consentimento revelase em toda parte como a natureza dos arranjos políticos sábios As leis exigem um prólogo geral uma exortação para honrar os vários seres que merecem ser honrados em sua própria ordem Uma vez que o governo das leis é uma imitação do domínio divino devese honrar primeiro e acima de tudo os deuses ao lado de outros seres sobrehumanos em seguida os ancestrais depois o próprio pai e mãe Todos também devem honrar sua alma mas depois dos deuses A ordem de clas sificação entre honrar a própria alma e honrar os pais não fica inteiramente esclarecida Honrar a própria alma significa adquirir as várias virtudes sem as quais ninguém pode ser um bom cidadão A exortação geral culmina com a prova de que a vida virtuosa é mais radável do que uma vida de vícios Antes que o fundador da nova colônia possa começar com a lislação em si deve tomar duas medidas da maior importância Em primeiro lugar deve efetuar uma espécie de purgação dos cidadãos em potencial somente o tipo certo de colono deve ser admitido na nova colônia Em segundo as terras devem ser distribuídas entre os aceitos para a cidadania Não haverá então comunismo Quaisquer que sejam as vantagens que o comunismo possa oferecer não será viável se o legislador não quiser exercer governo tirânico ele mesmo enquanto no caso em apreço nem sequer é contemplada a cooperação do legislador com um tirano No entanto a terra deve continuar a ser propriedade de toda a cidade nenhum cidadão será o proprietário absoluto da terra atribuída a ele A terra será dividida em 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 126 Leis 713715 127 Ibid 7X2 128 Ibid 719720 129 Ibid 722723 cf 808 130 Cf Aristóteles PolitUa 1266 13 131 Ie739740 lotes que nunca devem ser alterados pela venda compra ou de qualquer outra forma o que será realizado se cada proprietário for obrigado a legar todo o seu lote para um único filho os outros filhos devem tentar casarse com herdeiras para evitar o excesso de população do sexo masculino para além do número de loteamentos estabelecido originalmente seria necessário recorrer ao controle da natalidade e em casos extremos à expulsão das colônias Não deve haver ouro e prata na cidade e a menor quantidade possível de ganho de dinheiro É impossível que haja igualdade de propriedade mas deveria haver um limite superior do que um cidadão possa possuir o mais rico cidadão deve ser autorizado a possuir não mais que quatro vezes o que os cidadãos mais pobres têm ou seja o lote de terra incluindo a casa e os escravos É impossível ignorar a desi gualdade de bens na distribuição do poder político O corpo de cidadãos será dividido em quatro classes de acordo com a quantidade de bens possuídos A terra atribuída a cada cidadão deve ser suficiente para capadtarlhe a servir a cidade na guerra como cavaleiro ou como hoplita Em outras palavras a cidadania é limitada aos cavaleiros e aos hoplitas O regime parece ser o que Aristóteles denomina comunidade política uma democracia limitada por uma considerável qualificação por propriedade Mas isso não é correto como transparece particularmente nas leis acerca da participação no Conselho e eleição para o Conselho O Conselho é o que poderíamos chamar a parte executiva do governo cada duodécimo do Conselho deverá governar por um mês O Conselho é composto por quatro grupos de mesmo tamanho o primeiro a ser escolhido entre a classe com as maiores propriedades o segundo a ser escolhido a partir da classe com as smdas maiores propriedades e assim por diante Todos os cidadãos têm o mesmo poder de voto mas enquanto todos os cidadãos são obrigados a votar nos conselheiros da classe de maiores propriedades só os cidadãos das duas classes com as maiores propriedades são obrigados a votar nos conselheiros da classe de menores propriedades Obviamente esse modo de agir tinha o intuito de íavorecer os ricos o rime se destina a ser uma média entre a monarquia e a democracia ou mais precisamente uma média entre o mais oligárquico ou aristocrático do que uma comunidade política Privilios semelhantes são concedidos aos ricos também no que diz respeito ao poder na Assembleia e à ocupação dos cargos mais honrosos No en tanto não é a riqueza como riqueza que é fevorecida nenhum artesão ou comerciante conquanto rico pode ser cidadão Só podem ser cidadãos aqueles que têm o tempo livre para se dedicar à prática da virtude dos cidadãos A parte mais visível da legislação em si diz respeito à impiedade que é naturalmen te tratada dentro do contexto da lei penal A impiedade fundamental é o ateísmo ou a negação da existência de deuses Uma vez que uma boa lei não só pune os crimes ou apela para o medo mas também apela à razão o ateniense desconhecido é obrigado a demonstrar a existência dos deuses e uma vez que os deuses que não se importam com a justiça dos homens que não recompensam os justos nem punem os injustos PiAtóo 79 132 NT Na Grécia antiga soldado de infantaria pesada cuja armadura eia composta de elmo couraça escudo grevas espada e lança 133 Ibid75e não são suficientes para a cidade precisa também demonstrar a providência divina Leis é a única obra platônica que contém tal demonstração É a única obra platônica que começa com um deus Seria possível dizer que é a obra mais piedosa de Platão e que é por essa razão que nela é atacada a raiz da impiedade ou seja a opinião de que não há deuses O ateniense desconhecido retoma a questão a respeito dos deuses embora náo tenha sido sequer levantada em Creta ou em Esparta mas foi no entanto cogitada em Atenas Clínias favorece fortemente a demonstração recomendada pelo ateniense com o fundamento de que constituiria o mais excelente e melhor prelúdio para todo o código O ateniense não pode refutar os ateus antes de expressar suas afirmações Eles parecem afirmar que o corpo é anterior à alma ou à mente ou que a alma ou mente é derivada do corpo e consequentemente de que nada é por natureza justo ou injusto ou que todo o direito se origina na convenção A refutação disso consiste em uma prova de que a alma é anterior ao corpo prova esta que implica que existe um direito natural As punições para a impiedade diferem de acordo com os diferentes tipos de impiedade Não fica claro que punição se houver será infligida ao ateu que é um homem justo decerto será punido menos severamente do que por exemplo o homem que pratica a retórica forense com vistas ao ganho Mesmo nos casos de outros tipos de impiedade a pena capital será extremamente rara Mencionamos esses fatos porque considerálos de modo insuficiente pode induzir as pessoas ignorantes a censurar Platão por sua su posta fiJta de liberalismo Não descrevemos aqui essas pessoas como ignorantes porque creem que o liberalismo exige tolerância incondicional do ensino de todas as opiniões não importa se perigosas ou degradantes Nós as chamamos de ignorantes porque não percebem até que ponto Platão é extremamente liberal de acordo com os seus próprios padrões que não podem de forma alguma ser absolutos Os padrões geralmente reconhecidos no tempo de Platão são mais bem ilustrados pela prática de Atenas uma cidade muito conhecida por sua liberalidade e delicadeza Em Atenas Sócrates foi pu nido com a morte porque se dizia que não acreditava na existência dos deuses cultua dos pela cidade de Atenas de deuses cuja existência era conhecida apenas por ouvir dizer Na cidade das Leis a crença em deuses é exigida somente até na medida em que é sustentada pela demonstração além disso aqueles que não forem convencidos pela demonstração mas são homens justos não serão condenados à morte Parece estar garantida a estabilidade da ordem descrita pelo ateniense desconhe cido tanto quanto se pode garantir a estabilidade de qualquer ordem política é garan tida pela obediência por parte da grande maioria dos cidadãos às leis sábias que são tão imutáveis quanto possível por uma obediência que resulta principalmente da educa ção para a virtude da formação do caráter Ainda assim as leis são apenas a segunda melhor opção nenhuma lei pode ser tão sábia quanto a decisão que toma na hora um homem verdadeiramente sábio Por conseguinte devemse tomar providências para por assim dizer alcançar um progresso infinito no aperfeiçoamento da legislação no interesse do crescente aperfeiçoamento da ordem política bem como para neutralizar 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 134 tó 886 cf 891 a deterioração das leis Desta forma a lslação será um processo interminável a cada momento deve haver legisladores em vida As leis só devem ser alteradas com a máxima cautela apenas no caso de necessidade universalmente admitida Os últimos legislado res devem ter em vista a mesma meta de comando que o legislador original a excelência das almas dos membros da cidade Para evitar a mudança das leis as relações dos cidadãos com os estrangeiros devem ser supervisionadas de perto Nenhum cidadão poderá ir para o estrangeiro para fins privados Mas os cidadãos de elevada reputação e de mais de 50 anos que desejarem ver como vivem os outros homens e especialmente conversar com homens notáveis de quem podem aprender algo sobre o aperfeiçoamen to das leis são encorajados a íàzêloTodavia todas essas e outras medidas similares não são suficientes para a salvação das leis e do regime fiJta ainda uma base firme Tal base firme só pode ser fi3rnecida por um Conselho Noturno composto pelos cidadãos idosos mais proeminentes e cidadãos mais jovens de 30 anos ou mais para isso selecio nados O Conselho Noturno deve ser para a cidade o que a mente é para o indivíduo humano Para exercer sua função os seus membros devem possuir acima de tudo o conhecimento mais adequado possível da finalidade única para qual toda a ação política direta ou indiretamente mira Este alvo é a virtude A virtude deveria ser uma mas é também muitas existem quatro tipos de virtude e pelo menos dois deles sabedoria e coragem ou ímpeto são radicalmente diferentes um do outro Como então pode haver uma única meta da cidade O Conselho Noturno não pode desempenhar sua função se não puder responder a essa questão ou de modo mais genérico e talvez expresso de modo mais preciso devem fàzer parte do Conselho Noturno pelo menos alguns homens que saibam o que são as virtudes em si ou que conheçam as ideias das várias virtudes da mesma forma como sabem o que as une de modo que todas em conjunto possam ser chamadas com justiça de virtude no singular seria a virtude o fim único da cidade uma ou um todo ou ambos ou algo diferente Também devem saber tanto quanto é humanamente possível a verdade sobre os deuses Uma sólida reverência aos deuses sui apenas a partir do conhecimento da alma bem como dos movimentos das estrelas Somente os homens que combinam esse conhecimento com as virtudes populares ou vulgares podem ser governantes adequados da cidade se viesse a existir a cidade deveria ser entregue ao Conselho Noturno para ser governada Aos poucos Platão aproxima o regime das Leis ao regime da RepúblicaP Tendo chegado ao fim das Leis devemos voltar ao início da República P latão 81 L e it u r a s A Platão República B Platão Leis 135 tí769771772875 136 Ibid 949 ss 137 Ibid ò 138 Aristóteles Política 1265 14 X enofonte C 430 c 354 aC Dos companheiros de Sócrates que escreveram sobre ele só Platáo e Xenofonte deixaram obras que chegaram até nós mais ou menos intactas Mas enquanto os es critos de Platâo são por assim dizer inteiramente socráticos as quatro obras socráticas de Xenofonte Memorabilia Econômico Simpósio e ApologUt de Sócrates preenchem apenas um dos cinco volumes da edição completa de suas obras Assim o leitor se vê diante da tarefa sem contrapartida no estudo de Platão de compreender o lugar dos escritos socráticos de Xenofonte no contexto mais amplo de sua obra como um todo De longe a obra mais longa de Xenofonte a Ciropédia Educação de Ciro é uma narrativa sobre a educação e a carreira do fundador do império persa que tal como apresentado por Xenofonte é um praticante exemplar da arte régia de governar Sua segunda obra mais longa Helênica Assuntos Gregos é dedicada a destacar os feitos políticos e militares dos gregos durante a vida de Xenofonte Começando aproxima damente onde termina a história de Tucídides em suas porçóes iniciais são às vezes consideradas como uma continuação e conclusão dessa narrativa KAnábase Marcha de Ciro para o Interior é em grande parte um relato do mais destacado evento da carreira política do próprio Xenofonte que liderou de volta à Grécia e à segurança a maior parte dos dez mil mercenários gregos que acompanharam o jovem Ciro ao coração do império persa em apoio à sua tentativa de derrubar seu irmão o rei persa Os gregos haviam se isolado lá após Ciro ter sido morto em combate e suas demais tropas terem debandado para o rei As outras obras não socráticas tradicionalmente atribuídas a Xenofonte consistem em escritos mais curtos Compreendem um elogio de Agesilau rei de Esparta conhecido pessoalmente por Xenofonte um diálogo sobre a tirania entre o tirano Hiero e o poeta Simônides e tratados sobre as constituições de Esparta e Atenas sobre a receita ateniense e sobre as artes do comandante da cavalaria da equitação e da caça com cães Xenofonte que viveu ele mesmo durante algum tempo como senhor de uma propriedade rural diznos algo sobre os gostos e opiniões de um cavalheiro grego 1 Andbase V 3713 por exemplo sua admiração pela arte régia de governar por um lado e pelo republi canismo ao estilo espartano por outro bem como sobre o interior ou a base rural de muitas das atividades do cavalheiro com sua pesada demanda pelo uso de cavalos e cães É tentador concluir que os seus escritos como um todo não apenas refletem esse gosto mas acima de tudo têm a intenção de mostrálo atraente Esta tentação pode ser reforçada quando observamos como somos obrigados a íãzer outra diferença entre os escritos de Xenofonte e Platão Os tons solenes comoventes quase trágicos dos diálogos platônicos dificilmente serão encontrados em Xenofonte Em seu lugar en contramos uma simplicidade de aparente leveza muitas vezes animada e adornada pelo humor Xenofonte é um escritor capaz de apresentar o problema da justiça sob a forma da história de dois meninos um deles grande trajando um casaco pequeno e outro pe queno com um casaco grande Aparenta terse esquivado da grave seriedade com tanta ânsia quanto e muito mais sucesso do que Bertie Wooster aquele dândi moderno in ventado por P G Wodehouse ao fugir de envolvimentos com mulheres meiulhadas até a garganta em sérias intenções e empenhadas em melhorar seu intelecto Pode haver considerável verdade nessa primeira impressão daquilo que inspirou Xenofonte e do público a quem desejava dirigirse Mas não esclarece o contexto em que devem ser entendidos seus escritos socráticos De fato não deixa lugar para esses escritos Pois como Xenofonte demonstra em sua abordagem mais extensa da vida e do caráter cavalheirescos o cavalheiro como tal não tem interesse em Sócrates ao passo que Xenofonte se preocupa com ele Tal preocupação é demonstrada não só em seus escritos socráticos propriamente ditos mas também pelo aparecimento de Sócra tes e temas correlatos em cada uma de suas outras obras principais Chegamos mais perto em seguida de fiizer justiça a ambos os aspectos das obras socráticas e não socráticas de Xenofonte e de trazer à luz a sua possível unidade ao sugerir que o au tor possa ter sido alguém que se devotou à pergunta socrática acerca do melhor modo de vida sem jamais ter aceitado completamente a resposta socrática de que esse mo do de vida é o filosófico Essa sugestão angaria algum apoio ao considerarmos que Xenofonte ao mesmo tempo que frequentemente chama a atenção para sua própria relação com Sócrates em nítido contraste com Platão chegando ao ponto de chamar o principal de seus escritos X e n o f o n t e 8 3 2 Econômico 21 10 44 135 3 Memorabilia III 51516 O testemunho é do filho do grande Péricles autor da política antiespar tana de Atenas 4 Econômico Se W 5 Ciwpédia 1 3 1617 6 O Econômico inclui o relato de uma longa conversa entre Sócrates e um perfeito cavalheiro a qual culmina na comparação entre seus dois modos de vida A conversa é desencadeada por Sócrates e todas as peiguntas que a animam são provenientes dele e atendem a seu desejo de obter informa ções sobre o cavalheiro 7 Anábase III 148 Helênica I 715 e contexto Gmpaiemos com Memorabilia I 11718 e IV 412 Ciropidia 1 63134 III 114 e 13840 VII 21525 socráticos de Memorabilia ou Lembranças suas memórias de Sócrates nos dois únicos episódios que escolhe para relatar sua amizade dá mais provas de resistência aos ensinamentos e conselhos de Sócrates do que de aceitação deles Se a volubilidade de Xenofonte prejudica que os acatemos fazendo com que perguntemos se alguém que escreveu como ele poderia estar preocupado com a questão da melhor forma de vida po demos recordar as indicações do próprio Platão de que é questionável o gosto pela tné dia à qual estava muito mais disposto a sucumbir do que Xenofonte Mas mesmo que nossa proposta tenha de ser revista ou qualificada com base em nosso estudo das obras de Xenofonte tem o mérito de permitir que iniciemos este estudo ajudandonos a discernir a ordem em que as mais importantes delas se posicionam em relação uma à outra Na Ciropédia Xenofonte apresenta suas ideias sobre o caráter do governante perfeito e sobre o modo de vida político em seu auge Os escritos socráticos liderados pot Memorabilia são dedicados ao filósofo por excelência e ao modo de vida filosófico tal como Xenofonte os observara em primeira mão nas realizações de Sócrates Ciro e Sócrates aparentemente representam as duas alternativas que mais o impressio naram constituindo os polos entre os quais acreditava encontraremse todas as outras possibilidades humanas p ex a Adda quase pública do cavalheiro por referência às quais devem ser compreendidos Em Anábase os dois polos se aproximam quando Xenofonte o aluno de Sócrates deixao indo contra os conselhos deste último para participar de uma campanha que está sendo organizada por um novo Ciro C ir o p é d ia Os feitos de Ciro o velho foram em parte devidos a seu nascimento família em parte à sua natureza e em parte à sua educação Se não fosse dotado de uma certa natureza excelentes capacidades naturais acompanhadas pela tendência a usá las de uma certa forma não poderia ter concebido seus grandes planos ou têlos executado Se não fosse fruto de duas linhas reais seu pai foi rei da Pérsia o pai de sua mãe rei da Média suas oportunidades teriam sido limitadas de tal forma que afetariam a natureza de suas realizações Mas deixando essas questões de lado por enquanto vamos começar a partir de uma análise de sua educação tal como o título de Xenofonte nos convida a fazer 8 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 8 Memorabilia I 3813 Andbase I I I 148 9 Ver por exemplo Leis 65824 e Mênon 7637 Ver Characteristics I 167 e 309 de Shaftesbury Indianapolis BobbsMerrill 1964 para a opinião de alguém que preferia Xenofonte a Platão a este respeito 10 Ciropédia 116 11 121 313 424 12 A comparativa brandura deste governo dependia em parte da reivindicação de legitimidade de Ciro o velho devida a seu nascimento e que sempre lutou para manter Consideremos especial mente VIII 51720 526 528 e VII 537 ss Foi educado nas leis persas O relato de Xenofonte náo pretende seriamente ser histórico De acordo com ele a Pérsia em que Ciro foi criado a Pérsia cujos exércitos liderou na conquista da Ásia e em cujo nome fundou um império era uma república bastante pequena ou o que poderíamos chamar de monarquia constitucional Era além disso uma república modelo de acordo com as ordenadas espartanas uma Esparta me lhorada Se Xenofonte admirava Esparta deve ter admirado ainda mais esta Pérsia Educando seus jovens publicamente como fez Esparta incutindolhes a continência e a obediência bem como habilidades militares a Pérsia suprimiu a educação espartana pata o roubo em fóvor de uma educação para a justiça Como as cidades eltiadas por Platão e Aristóteles a Pérsia de Xenofonte considerava como a tarefa mais importante de suas leis a formação do caráter de seus cidadãos desejava moldálos de tal forma que nem sequer teriam vontade de cometer qualquer ato perverso ou vergonhoso E tal como outras cidades tidas em alta estima era uma aristocracia uma vez que a fidelidade do país aos elevados propósitos de suas leis dependia de que a autoridade política per manecesse firme nas mãos daqueles e somente daqueles que tivessem concluído o curso da educação planejada para obter esse efeito Em outras palavras com a quase exceção de sua brincalhona proposta de que os regimes políticos almejáveis não são meros ob jetos de orações ou desejos futuros mas realmente existiram em algum momento no passado a apresentação da Pérsia por Xenofonte s e as linhas mais familiares para nós em Platão e Aristóteles E na medida em que o sucesso de Ciro e de seus persas foi de vido à formação que receberam das leis persas a Ciropédia como um todo representa uma espécie de homenem a essas leis e ao regime persa que os manteve A educação de Ciro entretanto no sentido amplo do termo teve lugar não ape nas na Pérsia mas também na Média na corte de seu avô um déspota oriental típico que governava um país de estilo muito diverso do da Pérsia Em consonância com isso o sucesso de Ciro equivaleu à transformação política de fato transformação em grande escala da Pérsia O império persa que fundou tinha pouco em comum com a antiga Pérsia que efetivamente substituiu relegandoa ao status de uma província um tanto pequena por mais que por sólidas razões políticas Ciro desejasse ressaltar a semelhança entre a antiga e a nova ordem em vez de suas diferenças E Xenofonte pa rece apresentar a transformação da Pérsia por Ciro de modo não menos simpático do que apresentou a antiga Pérsia que Ciro transformou Além disso as mudanças ope radas por Ciro dificilmente poderiam ter ocorrido ou ser defendidas por ele se não houvesse falhas graves na antiga Pérsia Ao apresentar a carreira de Ciro Xenofonte não podia debtar de chamar a atenção para esses defeitos Isso significa porém que foi X e n o f o n t e 8 5 13 Ibid 126 ss comparemos com Constituição de Esparta 26 ss bem com Andbase IV 614 14 Ciropédia I 223 15 Ibidl 16 Consideremos entre outros trechos ibid I 16 22 31 5713 II 13 III 35055 370 IV 23846 514 554 V 21520 VII 570 VIII 815 17 Comparemos com ibid I 22 com 31 3131841 425 e 51 18 Aid VII 585 forçado a salientar o que Platão e Aristóteles se permitiram apenas insinuan os defeitos do republicanismo clássico na sua forma mais elevada ou mais exaltada assim deu um passo importante em direção à crítica muito menos simpática de Maquiavel um favor que Maquiavel reconheceu em muitas observações cheias de apreço Para retornar à educação de Ciro na Média vemos que passou de seu 13 até o 15 ou 16 ano na corte de seu avô encontrando ali aspectos tanto de que gostar como de que não gostar Por exemplo iradavalhe o estilo de vestuário e de adorno da Média que muito suplantava o persa em riqueza e esplendor e deleitavase ao extremo em aprender equitação Mas não apreciava a paixão dos medas por comidas elaboradas o que tornava o processo de saciar a fome desnecessariamente complica do e demorado e por bebidas embrisantes até porque íàziam com que o próprio rei assim como seus agregados esquecessem o respeito que lhe deviam Embora Ciro criticasse duramente o comportamento dos monarcas medas pelo menos em retrospecto mesmo quando menino pode ter tido alguma consciência de que a mo narquia absoluta não deixa de ter suas vantiens E naquele momento ou mais tarde formou a opinião de que os seus companheiros na Pérsia seriam atraídos como ele pelas oportunidades médias de riqueza e distinção indisponíveis para eles na república persa incomparavelmente mais austera Quando Ciro estava provavelmente ainda nos seus vinte e poucos a vinte e tantos anos mas já considerado na Pérsia um homem maduro uma combinação de forças reunidas e lideradas pelo rei da Assíria trouxe ameaças para a Média ora go vernada por Ciro sob Ciáxares A ameaça à Média era ao mesmo tempo uma ameaça para a Pérsia pois a aliança com sua vizinha fora certamente uma das rochas sobre as quais a independência persa se mantivera até aquele momento O governo persa deci diu portanto em resposta a um pedido de Ciáxares enviar uma força de 31 mil persas para ajudar a defender sua aliada Também consentiram na vontade de Ciáxares quan to à seleção de Ciro que ainda possuía muitos amigos na Média desde sua estada lá 10 anos ou mais antes para comandar essa força Ciro conforme respondeu não era contrário a aceitar a atribuição Esta foi a abertura pela qual provavelmente esperava Mas para discernir a previdência ousadia e inventividade a paciência determinação e perseverança que estão entre os atores que compõem a grande liderança política basta apenas considerar a distância entre o que Ciro foi autorizado a fezer por esta comissão e aquilo que pretendia fezer e entre os recursos que lhe proporcionou e aqueles que seu projeto maior exigia 86 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 19 Com referência à Ciropidia em particular ver O príncipe 14 e 16 e Discursos I I 13 III2022 e 39 20 Ciropidia I 323 comparemos com VIII 14041 e 3114 21 Ibid I 33 315445 comparemos com IV 3 e VIII 316 e 325 22 Ibid I 34 comparemos com I 512 IV 1ÒBA7 517 V 21421 33435 VI 22529 mas também VIII 217 23 Ibid I 31011 comparemos com VIII 4915 24 Ibid 168 comparemos com 318 25 Consideremos ibid I 31618 com VIII 122 e Aristóteles PoUtica 12698121286916 Ciro era de feto o herdeiro do trono persa mas mesmo como rei náo teria ne nhuma autoridade independente além de poder realizar sacrifícios em fevor do país Sua autoridade legal constituía naquela altura apenas no comando militar para o qual tinha sido designado Ou seja dependia totalmente da decisão revogável do governo persa Ora dado o tamanho e a natureza da força que lhe foi confiada e a ocasião para seu envio aquele governo deve ter tido em mente o seu envolvimento em nada mais do que uma guerra limitada e defensiva só essa guerra teria sido verdadeiramente compatível com o desejo de manter o modo de vida único da Pérsia que demandava atenta supervisão mútua por parte de cidadãos fiuniliarizados uns com os outros por meio do contato diário Teria sido muito difícil para não dizer impossível manter tal modo de vida em uma Pérsia maior que poderia resultar da tentativa de absorver as conquistas estrangeiras e que teria sido quase tão ameaçada pelas múltiplas e pro longadas ausências da Pérsia que a administração dos territórios conquisudos como províncias subjugadas teria exigido No entanto Ciro não pretendia apenas ajudar a aliada da Pérsia e assim contribuir para sua defesa mas conquistar todos os países que se opunham à Pérsia e incorporálos juntamente com outros na Pérsia maior que imaginava Náo tinha intenção além disso de entregar essas conquistas ao governo persa cujo trono limitado um dia ocuparia Ao contrário esuva determinado desde o início isto é ainda durante a vida de seu pai a governar ele mesmo como monarca absoluto sem as limiuções de uma constituição Enquanto tomava as medidas necessárias pau essas realizações Ciro teria de norar a vontade e talvez mesmo as ordens do govemo persa até que lhe pudesse oferecer ou uma tenução irresistíveP ou um feto consumado ou uma combinação dos dois Apenas pau atingir seus objetivos militares seria necessário um grande exér cito do qual sua força original persa poderia constimir no máximo o núcleo mesmo assim somente se pudesse obter o consentimento do exército pau projetos que não tinha o direito de obrigálos a empreender Ciro também teria de garantir sua aquies cência para uma reorganização muito substancial destinada a compensar a deficiência em número pelo aumento da capacidade bélica Seria preciso granjear aliados além dos medas que estivessem dispostos quer de maneira consciente ou inconsciente a empenharse e assumir riscos em prol de uma supremacia persa e de sua própria sub missão por sua vez os próprios medas sem mencionar Ciro sob Ciáxares teriam de ser convencidos a reconhecer a supremacia de um aliado até então igual ou até mesmo inferior Finalmente os próprios companheiros de armas de Ciro dos quais muitos eram seus iguais em termos políticos coletivamente na verdade seus superiores te riam de ser persuadidos a reconhecer a conveniência ou a necessidade de concederlhe X e n o f o n t e 8 7 26 Ciropédia VIII 5 comparemos com 1318 27 Ibid 1235 28 Consideremosífóíf VI 14 29 Ibid 1 235 30 IbidVm 5 uma autoridade irrefreada de se curvar a ele como os persas jamais haviam se curvado diante de outro ser humano O exército confiado a Ciro consistia em um milhar de pares do reino isto é aqueles nobres que concluíam a educação persa e consequentemente recebiam ple nos direitos de cidadania e 30 mil plebeus Isto em um total de 120 mil persas O significado estritamente militar desta proporção reside no fato de que somente os nobres eram equipados e preparados para o combate próximo Este era o tipo de bata lha em que em geral se sobressaíam os gregos em vez dos não gregos e que permitia que exércitos numericamente inferiores derrotassem outros muito maiores preparados apenas para escaramuças ou para o combate a distância Mas havia também um signifi cado político na divisão no exército de Ciro Em casa na Pérsia toda a classe daqueles denominados nobres era pequena em número mas ainda assim dominava os plebeus muito mais numerosos que nâo tinham qualquer participação nos direitos cívicos Presumivelmente o monopólio dos nobres sobre o tipo mais eficaz de combate con tribuía para a fiicilidade com que eram capazes de manter sua ascendência e podemos supor portanto que no envio de um exército para fora da Pérsia as autoridades domés ticas tivessem o cuidado de manter tanto no exército quanto aos persas que ficassem em casa uma relação numérica entre as classes considerada politicamente segura Mesmo assim devem ter avaliado que o exército confiado a Ciro estivesse à altura da tarefa de fensiva a ele atribuída Ou se tinham qualquer dúvida acerca desse ponto tomaram a decisão política de correr um risco um pouco maior nas mãos de seus inimigos estran geiros em vez de colocar armas perigosas nas mãos de potenciais inimigos internos Ciro avaliou a situação do exército de modo um pouco diferente Não se pre ocupava para dizer o mínimo em preservar o equilíbrio político quer no exército ou em casa mas se preocupava muito com o fato de que as pequenas dimensões do ramo mais eficaz do exército tornavamno inadequado para as tarefas que planejava A solução militar óbvia era dar armas pesadas para os plebeus armas a serem pagas pelo amedrontado Ciáxares e induzilos com a promessa de igualdade de tratamento no futuro a se juntarem às fileiras dos habilitados para o combate próximo Era possível prever que os plebeus aproveitariam sem hesitar a oportunidade de melhorar seu status e condição de vida mas era de se esperar oposição dos nobres no exército Ao contrá rio das autoridades domésticas os nobres estavam no locai e teriam de ser informados imediatamente e até mesmo consultados a respeito de tais mudanças e não estariam alheios às suas implicações políticas domésticas Desta forma antes mesmo de abordar 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 31 Comparemos ibid I 318 com VII 537 ss VIII 115 e em especial 31314 comparemos com Andbase III 213 32 Ciropédia 1215 33 Ibid II 13 34 Consideremos o fàto de que o contingente adicional enviado a Ciro pelas autoridades persas quan do decidiram atender a seu pedido de reforços era composto por 40 mil plebeus e nenhum nobre V53 35 Ciropédia II 1210 o tema do fornecimento de armas aos plebeus Ciro dirigiuse aos nobres que haviam sido indicados para acompanhálo Neste o primeiro de seus muitos discursos políticos fida dos costumes herda dos de seus antepassados e de sua própria situação De acordo com Ciro estão agora em uma situação que lhes permite evitar o erro de seus ancestrais de náo colocar em prática esses meritórios costumes Observo que nossos antepassados não eram piores que nós também perseveraram na realização daqueles atos que são reconhecidos como virtuosos Mas que bem obtiveram por serem homens deste tipo tanto para a comuni dade persa como para si próprios isto já não sou capaz de perceber Ciro tacitamente encara a preservação do regime persa e do modo de vida persa como inútil As coisas boas que tem em mente são precisamente aquelas que a Pérsia não fornece muita ri queza muita felicidade e grande honra para si e para seu país Esta é a razão pela qual a guerra que era tida pelas autoridades persas apenas como uma ameaça a ser sufocada o mais rápido possível é vista por Ciro como uma oportunidade uma oportunidade para utilizar as qualidades por tanto tempo cultivadas pelos persas que os moldam fisicamente e os preparam na alma para a supremacia militar Já que sabemos por nós mesmos que desde a inância praticamos atos nobres e bons marchemos contra os inimigos os quais sei com certeza serem não mais que amadores em uma disputa contra nós Vamos então agir com coragem também porque está longe de nós a reputação de injustamente desejar coisas que pertencem a outros Pois são os inimigos que ora avançam e desferem golpes injustos enquanto nossos amigos recorrem a nós como aliados O que é mais justo do que se defender ou mais nobre do que ajudar os amigos Xenofonte não precisa indicar aqui a reação dos nobres que ouviram este dis curso todo o resto do livro o revela Os nobres talvez com uma ocasional exceção concordaram não só com o rearmamento dos plebeus proposto por Ciro mas com muitas outras de suas medidas e o fizeram apesar das graves conseqüências políticas de cada etapa por si só e todas em conjunto O motivo não é serem tão tolos que não tivessem consciência dessas implicações reside no efeito que teve sobre eles o discurso de Ciro Seus corações e portanto também suas mentes já não estavam voltados para um regresso a casa ao seu modo de vida ancestral mas almejavam partilhar das gran des empreitadas para as quais as palavras de Ciro lhes abriram os olhos O rearmamento dos plebeus ocorreu logo em seguida Tendo prevenido os no bres com antecedência da maneira mostrada Ciro teve apenas de lhes apontar a sensa tez de tal passo do ponto de vista estritamente militar Embora seja mais difícil com X e n o f o n t e 8 9 36 Ibid I 5714 37 Consideremos as observações de Aglaitada um homem sobre quem nada mais sabemos em II 21116 38 Ciropédia II 11012 precnder o modo como apresentou a proposta aos plebeus devemos retornar a uma passagem anterior na qual Xenofonte lança luz sobre todo o regime dos persas Ocorre que nenhum dos persas é excluído por lei da partilha de honras e cargos ou do que denominamos direitos civis ao contrário todos estão autorizados a mandar seus filhos para escolas públicas da justiça Mas somente os pais que se podem dar ao luxo de sustentar seus filhos sem obrigálos a trabalhar de íàto os enviam E só os homens que foram educados nas escolas públicas e galgaram com sucesso os outros estágios de formação estes também excluindo a participação nas ocupações lucrati vas completandoos são autorizados a participar de honras e cargos O que nos diz esta situação de igualdade jurídica e desigualckde de fiito é que a distinção entre as classes aristocráticas na Pérsia repousava sobre uma base que os próprios aristocratas não estavam dispostos a defender abertamente como tal ou seja a riqueza herdada Quanto aos plebeus podemos ter certeza de que consideravam sua exclusão da igual dade política e sua dura sorte em geral como imerecidas Ciro portanto dirigiuse a eles da seguinte forma Homens da Pérsia fostes todos nascidos e criados no mesmo país que nós nobies ten des corpos não piores que os nossos e vos condiz não terdes almas piores que as nossas No entanto se sois homens desse tipo na nossa pátria não partilhardes igualmente co nosco excluídos não por nós mas pela necessidade de encontrar vossas provisões diárias ora por outro lado será a minha preocupação com os deuses que vós as tenhais mas se desejardes podereis usar armas tal como as que usamos correr os mesmos riscos que nós e se a de nobre e de bom disto advir ser considerados nos de recompensas compatíveis Assim 30 mil homens foram alçados à condição de nobres reputando sua elevação como devida a Ciro apenas ou acima de tudo com todas as implicações disso tanto para as relações de Ciro com os antigos nobres recémameaçados dentro do exército como para a perspectiva de o exército passar a ser um dia reabsorvido pela antiga Pérsia A reforma do exército foi então completada por duas outras etapas Primeiro com consentimento geral orquestrado por Ciro adotouse o princípio de recompen sar incluindo promoções é claro de acordo com o mérito sendo Ciro o juiz desse mérito Tal foi necessário não só por uma questão de revigorar o exército por meio de incentivos mas também para constituir uma nova base para a distinção e a hierarquia em substituição às antigas e desgastadas já que a hierarquia seria tão necessária na 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 39 Deveuse à sugestão de um nobie atencioso apaientemente sndo de modo próprio o lãto de que o próprio Ciro foi quem apresentou as armas aos plebeus II 112 14 Este foi o primeiro de muitos auxílios deste tipo que Ciro recebeu durante o transcorrer de sua ascensão Nem é preciso dizer que aqueles que demonstraram tal iniciativa não foram esquecidos ver V III411 e contexto 40 Ciropétüa I 1215 41 Consideremos ibid II 119 comparemos com VII 567 42 Ibid5ss 43 Ibid II 217213116 nova ordem cxmo na antíga Além disso com sua própria autoridade Ciro ordenou que os que fossem expulsos das fileiras por indignos fossem substituídos pelos melho res seres humanos disponíveis quer fossem ou náo concidadãos tal como no caso dos cairos preferemse os melhores e não os da pátria Escusado será dizer Ciro dedicouse às tarefiis de ampliar seu exército com alia dos e de preparar a subordinação dos aliados aos persas e a ele pessoalmente bem como às tarefas militares propriamente ditas com a mesma energia e habilidade que revelou na reorganização de seu exército Além disso muito foi auxiliado em aproxi mar seres humanos de si por sua óbvia decência e consideração justiça e generosidade lealdade e confiabilidade Essas qualidades unidas à sua grande habilidade militar que lhe renderam de imediato grande renome tão logo teve oportunidade de exibilas em ação genmun uma mistura de poderosa atração Porém vamos passar ao largo de todas essas atividades apesar de tão agradável sua leitura no relato de Xenofonte para continuar nosso exame das sementes políticas plantadas por Ciro em sua reoianiza ção do exército persa e o que delas frutificou no império por ele fundado Já se pode discernir agora que seus esforços baseavamse em uma profunda compreensão ou pelo menos em uma extraordinária percepção intuitiva das limita ções da Pérsia isto é da aristocracia clássica Sabia por exemplo que a lealdade que exigia tal como no caso de qualquer sociedade particular não universal repousava sobre uma divisão arbitrária da humanidade em concidadãos amigos e estrangeiros inimigos reais ou potenciais Comparemos com a análise de Platão na RepMica dos defeitos da justiça entendida como ajudar amigos e prejudicar inimigos Ciro estava ciente também de que a hierarquia de classes sem a qual na condição pré moderna de escassez material o inusitado sistema persa de educação pública não poderia ter se sustentado apoiavase não no mérito ou na capacidade natural mas no critério indefensável da riqueza herdada Na República Platão foi capaz de remover essa mancha da aristocracia clássica somente graças ao expediente extremo da abolição da fiunília Esses defeitos da velha ordem deveriam ser removidos na nova pela criação de um império universal e portanto que tudo incluía e por tornar as condições de riqueza honra e responsabilidade dentro dela decorrentes apenas do mérito Acima de tudo Ciro conhecia ou percebia a fraqueza daquela estima pela virtude e ações virtuosas como fins em si que a antiga educação persa se orgulhava em produzir um apego do qual dependiam a antiga Pérsia e seu modo de vida Falando agora ape nas do apego em si e não da virtude que era seu objeto tal apego não era realmente X e n o f o n t e 91 44 Ibid II 226 comparemos com 62734 43 Ao fàlar das evidentes qualidades de Cito não temos intenção de nar aquilo que Maquiavel se deleita em assinalar que o emprego judicioso de qualidades de um tipo diverso foi quase igual mente necessário ao sucesso de Ciro Ver nota 19 Xenofonte também é claro nos deba ver essas outras qualidades e sua importância para Ciro embora apenas de modo consistente com o prind pio que enuncia em Andbase V 826 de que é nobre bem como justo e piedoso e mais radável lembrar ou mencionar as coisas boas e náo as más Quer dizer náo se privou totalmente do prazer de mencionar as coisas más o resultado da educação no sentido estrito da palavra Ao contrário fora inculcado à força nos nobres persas tanto literal como figurativamente através do louvor e da culpa E um apego assim produzido é vulnerável à tentação Comparemos com o que propõe Platão no mito de Er que conclui a República com sua história sobre a escolha de vidas Ainda assim ao fornecer aquela tentação ao sugerir aos nobres que não perseverassem naquilo que consideravam como a virtude por si mesma mas ao contrário por suas recompensas Ciro parece ser mais um corruptor que um reforma dor Observamos de passagem que este pode ser o único quesito em que se asseme lha ao outro herói de Xenofonte o alegado corruptor dos jovens E por apresentar de modo favorável a revolução de Ciro Xenofonte parece estender sua solidariedade para com a corrupção dos nobres A questão de como de fato Xenofonte encarava aquela corrupção é uma parte talvez a mais importante da questão de seu julgamento final sobre a nova ordem de Ciro como um todo Naquilo que constitui um prefácio para a obra Xenofonte nos diz que voltou sua atenção para Ciro após refletir sobre a fiequência com que as democracias monar quias oligarquias e acima de tudo as tiranias são derrubadas e chegar à conclusão de que é extremamente difícil para não dizer impossível que seres humanos governem com êxito a outros seres humanos Esta conclusão parece ser refutada pela carreira de Ciro que demonstrou que não é difícil nem impossível governar seres humanos desde que se saiba como fàzêlo Ciro parece ter resolvido o problema político Toda via em sua conclusão para a Ciropédia Xenofonte admite e mesmo enfatiza que o império de Ciro foi vítima de conflitos e entrou em decadência imediatamente após sua morte Os motivos não foram apenas que seus sucessores a quem faltavam suas grandes qualidades não fossem capazes de manter as instituições que Ciro estabelece ra Tais motivos se devem também às falhas das próprias instituições Deixemos de lado o fato de que a nova fundação de Ciro constituía em grande medida apenas um reembaralhamento das cartas com as tribos outrora dominantes íora reduzidas à escravidão no serviço aos novos senhores que a má vontade resultan te tornou necessária a manutenção de um imenso aparato militar e uma grande guarda pessoal para Ciro uma rede de espioníem interna praticamente onipresente embo ra informal e além disso o emprego de vários feitiços para manter impressionados bem como intimidados os governados que o mérito individual tão generosamente recompensado por Ciro algumas vezes mal se distinguia da lealdade a ele e da vontade 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 46 Ciropédia I 267 31617 47 Ibid 1212 620 48 Ibid 1 1 49 iVIII 8 50 IbidVl 168 51 Ibid VII 55870 52 IbidY íll 21012 53 IbidV m 14042 3124 de servir a seus objetivos meramente pessoais e que as recompensas assim recebidas eram revogáveis a qualquer momento ao belprazer de Ciro É mais importante para nossos fins agora destacar que Ciro julgava provir exatamente dos mesmos amigos a quem mais recompensara o maior perigo para o seu trono Podese discernir a relevância dessa constatação no fato de que a maior parte desses amigos era os mes mos nobres a cuja ganância em todos os seus aspeaos Ciro dera asas ao sugerir que substituíssem a busca da virtude por si mesma por sua busca pelas suas recompensas De modo mais geral a que o amálgama que Ciro tentou criar entre a educação persa e a continência por um lado e as vestimentas e o luxo medas por outro embora temporariamente revigorante foi a longo prazo e até mesmo a curto prazo destrutiva das qualidades instituídas pela lei dos hábitos mentais dos quais dependiam não só a capacidade militar de Ciro mas também a capacidade de se defender da qual qualquer país deve em parte depender Por conseguinte aumentou a deterioração progressiva na qualidade do exército de Ciro até mesmo no que concerne ao seu tamanho e à sua capacidade militar global Nem poderia a educação da nova nobreza instituída por Ciro às portas de seu palácio fornecer a emoção a dedicação à virtude por si mesma que faltavam as quais Ciro extirpara da antiga educação persa em que pese sua se melhança superficial com aquela e apesar de seu sucesso na produção de uma ordem e respeito mútuo ilusórios Com base nessas e em outras considerações similares dificilmente podemos evitar a conclusão de Xenofonte acreditar que a tese sobre Ciro apresentada em seu prefácio viuse refutada e não sustentada por sua narração da carreira de Ciro Xeno fonte deve afinal ter considerado toda a Ciropédia como um endosso das leis e regi me persas antigos em vez de sua transformação por Ciro embora haja um endosso adequadamente qualificado tendo em conta os defeitos da velha ordem revelados pela obra Mas por que nesse caso Xenofonte apresentou a transformação de Ciro de tal forma a tornálo atraente para nós pelo menos à primeira vista e até mesmo ao ser examinado mais a fundo Desejava simplesmente livrarnos de uma perigosa tentação após ter primeiro induzido uma afinidade nossa para com ela Ou será que estamos íora correndo o risco de repetir nosso erro desta vez indo longe demais na direção contrária à nossa visão anterior equivocada Estaria a verdade sobre Ciro a X e n o f o n t e 9 3 54 7óí VIII 4354912 55 Ibid VIII 11620 e 21519 56 Ibid VIII 14548 22628 43 comparemos com V 2712 57 7ÓÍ7 VIII 815 58 Comparemos ibid III 35155 com I 5710 59 Isto se revela em especial pela crescente dependência de inovações técnicas e da transformação do papel dos oficiais de retaguarda Comparemos III 34142 com VI 327 e vejamos VI 12730 15055 e VII 13335 60 Ibid VII 58586 VIII 11012 11633 Dos produtos desta educação diz Xenofonte Con templandoos aqui nos portões do palácio seria possível pensar que de feto vivem almejando o que é nobre própria opinião de Xenofonte sobre Ciro em algum ponto entre esses dois extremos Auxilianos a responder a esta pergunta ou pelo menos a entender a posição de onde Xenofonte fàz a sua avaliação íinal um exame de duas conversas que apresenta entre o jovem Ciro e seus pais Ciro jamais consultou seus pais sobre seu maior projeto e é bastante seguro afir mar que nenhum dos dois o teria aprovado se consultado com antecedência o que não é a mesma coisa que se conformar graciosamente a posteriori ou aceitar da melhor forma possível um fóto consumado Mas a julgar pelo menos a partir das conversas mencionadas os motivos para a desaprovação teriam sido diferentes nos dois casos Ciro e a mãe conversaram na Média quando ele era ainda menino sobre a diferença entre a justiça meda e a persa Sua mãe fóla em tons que deixam bem clara sua opi nião quanto à superioridade da última uma preferência da qual Ciro demonstraria não compartilhar Ciro conversou com o pai quando estava de partida novamente para a Média desta vez para assumir seu fódado comando Seu pai fóla da própria si tuação de Ciro levantando a questão do significado de se responsabilizar pelo governo de outros seres humanos Tereis esquecido filho das conclusões a que chegamos na avaliação que certa feita fize mos de que constitui um ato suficiente e nobre para um homem ser capaz de exercer tais cuidados para que ele próprio atinja uma nobreza e bondade maduras e que forneça para si e sua família as provisões necessárias para o dia a dia Mas sendo esta uma tarefa grande suficiente saber como liderar outros seres humanos para que tenham todas as provisões diariamente em abundância e de forma que todos sejam como deveriam ser isso nos pareceu então algo espantoso Sim por Zeus pai lembrome de dizerdes isso e para mim também parecia uma tarefo de monstruosa grandeza governar com nobreza E mesmo agora tenho a mesma opinião quando analiso o assunto examinando o próprio governar Contudo sempre que olhando para os outros seres humanos reconheço que ripo é capaz de continuar a governar e que tipo de concorrentes teremos pareceme demasiado veinhoso se acovardarem diante de seres desse tipo e não estarem dispostos a entrar na competição contra eles Mas obsert meu filho há momentos em que a concorrência não é com os seres humanos mas com as próprias obrigações sobre as quais não é focil estabelecer uma superioridade definida Aparentemente Ciro ao contrário do pai não considerava tornarse nobre e bom enquanto diferente de governar outros como uma grande tarefó Sua ânsia para governar outros também implica a crença de que já tinha alcançado esta meta ou pelo menos já sabia muito bem o que significa ser nobre e bom Seu pai cujas ob servações ao longo da conversa nos fazem lembrar de Sócrates claramente não tinha tanta certeza Portanto em fóvor de Ciro o pai hesitava mais do que este mesmo sobre a conveniência de Ciro assumir a responsabilidade política ou militar E resta a nós 9 4 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 61 Ciropédia VIII 52228 comparemos com V I 14 62 Ibid 1318 e contexto 63 Comparemos com ibid VIII 524 64 Ibid 1 679 e contexto saber se algumas indicações posteriores de Xenofonte quanto à pobreza interior em um contexto de política externa de esplendor e sucesso sem limites da vida de Ciro como rei não têm como finalidade sugerir as conseqüências de sua desconsideração dos conselhos paternos Decerto Xenofonte jamais diz de seu Ciro como disse uma vez de Sócrates Ele me pareceu ser abençoadamente feliz Podemos agora voltarnos mais uma vez à questão de como Xenofonte percebia a corrupção dos nobres por Ciro Já observamos mesmo que apenas por meio de um gracejo que o fato de Ciro ser um corruptor lhe propicia algo em comum com Só crates Estamos prontos agora para discernir que havia uma pitada de verdade nessa observação Pois a crítica implícita que o pai faz de Ciro poderia ter sido feita a respeito de praticamente qualquer um dos nobres educados na antiga Pérsia Estes acreditavam que sua formação era suficiente para tornálos bons e assim acreditando voltavam sua atenção para a idade adequada em seu próprio desenvolvimento para dedicar se aos assuntos públicos tal como Ciro deveria fazer Na verdade eram inferiores a Ciro na medida em que este tinha consciência um pouco maior do que eles de ser insuficiente o que consideravam como virtude Vistos sob esta luz a corrupção dos nobres por Ciro e seu questionamento de sua virtude podem ser considerados como uma libertação E dada a proibição na Pérsia antiga do ensino à maneira socrática pode ter sido o único tipo de libertação ali possível No entanto era uma libertação certamente incompleta até mesmo abortiva como era fadado a ser um esforço pú blico deste tipo A simpatia que angaria é devida apenas a ser um pálido reflexo da corrupção socrática de alguns poucos jovens atenienses e estrangeiros Ou seja serve para nos lembrar da pergunta em que consiste uma educação socrática Xenofonte levounos a suspeitar de que feltava ao próprio Ciro uma educação desse tipo mais elevado Porém se ao contrário de nossas expectativas anteriores o que é mais importante saber sobre Ciro não é a educação que recebeu mas a que lhe faltava o que pretendia Xenofonte sugerir com seu título Ciropédia Educação de Ciro Ou não passa este de um companheiro apropriado para Ciranábase Ascensão de Ciro que remete para a ascensão ou jornada pelo interior do país que o jovem Ciro náo concluiu Ciropédia seria portanto uma referência à educação que Ciro o velho não completou ou chamaria a atenção para o ponto em que tal educação cessou X e n o f o n t e 9 5 65 Xenofonte pouco diz a respeito da vida de Ciro após este ter completado suas conquistas ver VIII 61972 Seria possível comparar aqui com o tipo de jantares que ocorriam em torno de Ciro VIII 4 com o tipo que ocorria em torno de Sócrates todo o Simpósio de Xenofonte Seria possí vel também analisar a proeminência que a Ciropidia dá ao tema de eros e das duas almas isto é à questão daquilo que constitui a harmonia ou a saúde da alma ver V 1218 VI 13151 33437 4211 VII 1151812932 e 3216 comparemos com VIII 22021 e 76 66 Memorabilia 1614 67 Ciropédia I 215 comparemos com 25 68 Ibid I 63133 comparemos com Memorabilia IV 21120 M e m o r a b il ia Como já foi aludido há uma série de indícios relativos a Sócrates na Ciropédia bem como aos escritos socráticos de Xenofonte A conversa entre Ciro e seu pai que entre outras coisas inclui a menção de um professor que ensinava justiça à maneira socrática é um deles Mais adiante é referido o assassinato pelo rei armênio do professor de seu filho um sofista a quem o pai acusou de corromper seu filho ou seja de desvirtuar sua afeição ou admiração pelo pai Ouvimos também a respeito das relações de Creso com o oráculo de Delfos e Apoio um deus cujo desagrado Creso alcançou por duvidar de sua veracidade O convite ou instrução mais terna para que comparemos Ciro e Sócrates são as histórias paralelas de Panteia e Teodota Quando o amigo a quem a confiara encorajou Ciro a contemplar Panteia uma bela rainha cativa Ciro recusouse por medo de que sua beleza lhe despertasse um desejo tão grande de continuar a admirála que o levasse a negligenciar seus deveres Quando Sócrates por outro lado foi informado da presença na cidade de Teodota uma mulher cuja beleza segundo o informante de Sócrates era grande demais para descrever em pala vras Sócrates respondeu Então temos de ir dar uma olhada pois não é possível para aqueles que apenas ouvem saber o que é grande demais para descrever em palavras Não havia perigo de que Sócrates fosse afastado de suas atividades diárias pelo desejo de continuar a contemplar Teodota A diferença mais óbvia entre Ciro e Sócrates é que Sócrates nunca procurou ou preencheu cargos políticos elevados À primeira vista essa diferença pode não parecer muito significativa A razão é que Sócrates como ele admitiu e até mesmo reivindi cava era professor de política Para citar apenas algumas provas foi como professor de política de acordo com a Memorabilia que seus dois mais famosos alunos Crítias e Alcibíades procuraram Sócrates e com ele conviveram e como se apresentou ao indivíduo cuja educação em suas mãos recebe a maior atenção no livro além disso outra porção considerável do livro é dedicada a conversas de Sócrates com atuais ou futuros líderes políticos ou militares Um crítico ou rival de Sócrates desejando roubar seus alunos perguntoulhe uma vez se sua suposta crença de que capacitava outros a atuar na política não era desacreditada por sua própria abstenção da política uma abstenção que mal condizia com a alegação de sabedoria ou conhecimento Em sua resposta Sócrates recusouse a admitir que se abstinha da política Será que eu participaria mais da política por mim mesmo ou por assegurar que o maior número 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 69 Ciropédia I I I 114 e 13840 comparemos com Memorabilia I 24955 70 Ciropédia VII 21529 comparemos com A polo de Sócrates 1415 bem como Platão Apolo de Sócrates 2Vò2 71 GrapáaV 128 ss 72 M emorahilialW Wl s 73 Ibid 121248 74 7óIV217 75 Ibid III 17 possível de indivíduos seja capaz de fózêlo Talvez então Sócrates simplesmente buscasse por outros meios o mesmo tipo de meta que Ciro ou seja objetivos igual mente públicos Mas será que Sócrates compartilhava do pressuposto de seu crítico de que todo aquele que compreende política gostaria de colocar em prática esse conhe cimento pelo envolvimento na política E será que a educação por meio da qual pode ter tornado alguns mais capazes de se engajar na política também os levaria a optar ou lhes permitiria continuar a desejar fezêlo Segundo Xenofonte Sócrates queria que seus companheiros chegassem a aceitar o que ele aprovava o que teria sido perfeitamente possível somente no caso de seus melhores alunos Um dos sinais por meio dos quais Sócrates pensava que poderia re conhecer os jovens com as melhores naturezas com quem mais desejava conviver era seu desejo de aprender todo o necessário para dirigir uma comunidade política com nobreza É somente na seção da Memorabilia dedicada às conversas de Sócrates com líderes políticos e militares reais ou futuros que Xenofonte menciona Platão a quem de modo implícito porém claro identifica no contexto como o aluno por quem Sócrates mais se interessava Xenofonte diznos também que Sócrates abordou dife rentes tipos de jovens de diferentes maneiras que adaptax sua aborthem para o tipo de natureza com que lidava É provável portanto que seu tratamento daqueles com as melhores naturezas levasse em conta sua nobre ambição e isso por si só teria sido mo tivo suficiente para a educação socrática se apresentar a eles como uma educação para a política Desta forma continua a ser pertinente indagar que distância percorriam desde o ponto de partida político Qual é a conseqüência da educação socrática da educação que ele mesmo adquiriu e que forneceu a alguns outros ou os preparou para adquirir Xenofonte apresenta a educação socrática mais plenamente no último livro da Memorabilia É verdade que a apresenta tal como Sócrates a adaptara para beneficiar Eutidemo um jovem de natureza extremamente promissora No entanto ao permi tir isso ao analisar o que mesmo os melhores alunos têm em comum com Eutidemo podemos aprender algo com esta apresentação do ensino de Sócrates e talvez espe cialmente a partir da apresentação de seu início Os melhores alunos têm em comum com Eutidemo em primeiro lugar um anseio pela virtude por meio da qual os seres humanos tornamse capazes de se engajar na política e capazes de governar ou seja pela mais nobre virtude e a maior arte que é denominada arte régia Em se gundo uma vez que sua ambição é nobre que partilham com ele a convicção de que não se pode praticar o bem nesses contextos sem ser justo Aparentemente Sócrates começaria seus graves ensinamentos com um apelo a esta ambição ou desejo e esta X e n o f o n t e 9 7 76 161561 77 Ibid 128 78 IbidW l 79 A III 61 80 IbidN ò 81 Etidemo penence à mais tola das classes descritas em IV 1 82 Memorabilia IV 211 comparemos com IV 12 convicção Daqui resulta que o conhecimento da justiça é um prérequisito de fun damental importância para o entendimento político e para a ação política Mas será que os jovens a quem se dirige possuem esse conhecimento É improvável que as me lhores naturezas compartilhem o pressuposto tolerante de Eutidemo quanto a ser uma questão simples saber o que é justiça ou portanto tenham uma parcela sequer de sua confiança ingênua de que o sabe Mas estarão esses indivíduos totalmente isentos da crença de que sabem o que é justiça E será que suas opiniões sobre o que é justiça seriam mais capazes de suportar as críticas de Sócrates do que as de Eutidemo Uma vez atingido este ponto em uma conversa com Sócrates está claro para seus melhores alunos que nada seria mais importante do que investigar o que é justiça e fazêlo com a ajuda de alguém que já prestou o inestimável serviço de revelar a sempre presente mas até então ignorada necessidade de tal investigação Toda ideia de se dedicarem à atividade política deve ser adiada até que aquela tarefa seja realizada Mas será realizada em um período de tempo finito É quase desnecessário dizer que não é inteiramente satisfiitório o relato de justiça feito por Sócrates no contexto da educação de Eutidemo Mas seria totalmente satisfatório qualquer outro relato socrático em Xenofonte ou Platão O Sócrates de Xenofonte assim como o de Platão era fa moso por jamais cessar ou seja por nunca terminar sua investigação sobre o que é jus tiça A conseqüência é que a atividade investigatória que deveria ser apenas preliminar ao envolvimento na política passa a substituíla O que pretendia ser uma educação para a política um meio passa a ser o fim O relato que acabamos de esboçar sobre o que poderia ter induzido Sócrates ou alguns de seus alunos a abandonarem uma vida política pela vida filosófica decerto sus cita mais perguntas do que fornece respostas Seria possível até achar que constitui um ajumento tanto contra a filosofia como a favor dela Pois se a investigação filosófica é incapaz de fornecer uma resposta para a questão do que é justiça por que alguém que sente em seus ossos a necessidade profunda e até mesmo urgente de uma resposta estaria disposto a gastar sua vida nessa investigação Entretanto talvez a resposta à per gunta socrática esteja disponível mas não expressa abertamente e talvez nessa respos ta e nas respostas às perguntas aparentemente relacionadas com o autoconhecimento e o bem se encontre a mais ampla exposição dos motivos para a superioridade se é que existe da vida filosófica sobre a vida política Para beneficiar Eutidemo que nun ca se opôs a um argumento inadequado ou imperfeito Sócrates achou por bem apre sentar uma versão adequadamente simplificada ou uma aproximação de seus pontos de vista não nos é dito por Xenofonte o que Sócrates fez nesta fase no caso das 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 83 Consideremos íótt IV 21220 84 Ibid IV4 comparemos em especial com I 24046 85 Simpósio 41 comparemos com Memorabilia 1 116 IV 45 84 86 Ver o Clitófòn como um todo também República 354 e 36843 435815 e contexto e 611106126 87 Memorabilia IV 22136 comparemos com os tópicos discutidos em III 9 88 Ibid IV 240 ss comparemos com IV 61315 melhores naturezas Não sabemos portanto se não era parte de seu tratamento com o intuito de despertálos para certos dilemas fundamentais que se recusava a resolver por eles colocar algumas perguntas que deixava a seu cargo responder O que sabemos o apoio que nos resta em nossa perplexidade é apenas isto que um obstáculo que pode ser chamado de problema da justiça impede o caminho para uma satisfeção razoável ou nobre com a vida política pelo menos temporariamente e que na tentativa de removêlo como devemos de modo quase inevitável entramos em contato com uma outra vida que pretende ser superior à vida política Como resultado nossa tarefa pas sa a ser não só descobrir o que é justiça mas descobrir o que é filosofia e verificar sua pretensão de constituir a melhor resposta para a pergunta como viver A Memorabilia Lembranças como um todo é o relato de Xenofonte de sua exposição a esse outro modo de vida na pessoa de Sócrates As lembranças foram redi gidas e publicadas como que sob uma nuvem Seu herói fora sentenciado à morte por seus concidadãos atenienses após ser condenado sob a dupla acusação de impiedade e corrupção dos jovens Para começar a ver como esse fato pode ter influenciado a ma neira pela qual Xenofonte os descreve é preciso fazer um esforço para nos libertarmos pelo menos por um momento da situação de hoje quando quase ninguém considera Sócrates como culpado de um crime capital Sócrates acreditase amplamente hoje era inocente do que foi acusado ou mesmo que não fosse totalmente inocente os fetos de que foi acusado não são e não deveriam ter sido tratados como crimes Devemos fezer esse esforço apesar do feto de que o próprio Xenofonte na medi da em que era um defensor da inocência de Sócrates é em parte responsável por nossa situação Quando Xenofonte escreveu é possível que a opinião geral sobre a questão da inocência ou culpa de Sócrates ainda não fosse consensual Se a maioria dos desti natários imediatos de sua obra aqueles mais interessados em Sócrates era susceptível de ser convencida de sua inocência quase certamente teriam amigos ou parentes que não o seriam Tampouco estariam os primeiros destinatários necessariamente na pos se de argumentos com os quais pudessem satisfezer os céticos e portanto defender a respeitabilidade do seu próprio interesse em Sócrates Foi Xenofonte portanto quem forneceu tais argumentos não só em proveito próprio mas também para outros socrá ticos reais ou potenciais Foi necessário para suas lembranças como para os diálogos de Platão assumir a forma de uma defesa de Sócrates Ora sempre houve alguns para quem o depoimento de Xenofonte tem mais peso que o de Platão de acordo com Thomas Jefferson por exemplo De Sócrates nada temos de genuíno a não ser na Memorabilia de Xenofonte Xenofonte deve assim compartilhar com Platão o cré dito ou responsabilidade pelo grande sucesso que tais defesas tiveram um sucesso que ajudou a consolidar a opinião atual X e n o f o n t e 9 9 89 Comparemos com ibid III 1114 e contexto e II 628 90 Carta a William Short em The Lifi and SeUcted Writinff o f Thomas Jeffirson New York Modern Libtaiy 1944 694 A menos que façamos o esforço mencionado abordaremos esta obra sob a influ ência desta visáo por conseguinte de uma forma determinada Tomamos como pres suposto sua tese sobre a inocência de Sócrates e portanto não damos especial atenção à organização e ao uso de argumentos e exemplos por meio dos quais Xenofonte se esforça por defender essa tese Nossa cegueira para com a astúcia subjacente à sua dis cussão aparentemente simples se deve a não termos mais consciência como até mesmo os partidários de Sócrates teriam na época de Xenofonte da força das acusações contra Sócrates Como resultado não prestamos atenção suficiente nos indícios que Xeno fonte nos fornece sobre os sacrifícios que teve de fazer ao refutar as acusações e sobre as distorções que teve de inserir em seu relato de Sócrates a fim de que prevalecesse a visão que é hoje aceita como verdade Por exemplo no longo segundo capítulo da obra que se ocupa da acusação de corrupção Xenofonte cita uma série de alegações específicas feitas contra Sócrates por seu acusador Em cada caso o ataque é seguido pela defesa de Sócrates por Xenofon te na questão em pauta Uma vez que a defesa tem a clara intenção de desacreditar o ataque dá a impressão de que essas alegações específicas eram totalmente infundadas Porém como Xenofonte decerto sabia suas respostas nem sempre encaravam de frente os ataques nem os aniquilavam em sua totalidade Segundo a primeira dessas acusações Sócrates induzia seus companheiros a des prezar as leis vigentes e o regime democrático estabelecido por meio de observações tais como a sua crítica do sorteio como um método de seleção para a ocupação de cargos e tornava violentos seus companheiros Ao duplo ataque Xenofonte responde que com certeza Sócrates não tornava violentos seus companheiros Até mesmo esta afirmação parece ser posta em dúvida pelo fato mencionado em seguida pelo acusador de que Crítias e Alcibíades notoriamente violentos estavam entre aqueles ligados a Sócrates Xenofonte não pretende defender os atos de Crítias e Alcibíades nem negar sua ligação com Sócrates Afirma simplesmente que Sócrates com algum sucesso fez o que pôde para que se moderassem enquanto estiveram sob sua influência e que se iram mal depois Sócrates não deve ter maior responsabilidade por isso do que digamos um pai digno cujo filho age mal depois de sair de casa Não há do que discordar mas essa afirmação não é capaz de responder à questão crucial sobre se dada precisamente sua influência limitada sobre seu caráter cujas tendências futuras não eram invisíveis Sócrates deveria ter fornecido ferramentas a Crítias e Alcibíades sob a forma de uma educação política De acordo com a terceira alegação do acusador Sócrates ensinava desrespeito aos pais tanto por convencer seus companheiros de que os faria mais sábios do que seus pais como por meio de um argumento no sentido de que seria legítimo que a pessoa mais ignorante fosse presa pela mais sábia A refutação de Xenofonte voltase apenas para o ponto relativo à prisão A quarta alegação portanto repete a acusação 1 0 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 91 Memorabilia I 29 212 249 25152 256 e 258 quanto ao efeito de Sócrates sobre o respeito aos pais e se estende a parentes em geral e amigos Aqui até mesmo Xenofonte admite no decurso da sua resposta que Só crates realmente disse as coisas que é acusado de ter afirmado sobre os pais e outros fiuniliares bem como amigos uma certa perda de respeito por parentes e até amigos em si parece ser a conseqüência inevitável do elevado respeito para com aqueles que conhecem as coisas necessárias e são capazes de explicálas A alegação final do acusa dor declara que Sócrates fez um uso pernicioso de determinados trechos dos poetas de mais alto renome interpretando por exemplo uma linha de Hesíodo como se significasse que ninguém se deve abster de qualquer ação injusta ou vergonhosa mas cometer até mesmo essas ações por amor ao ganho A resposta de Xenofonte alude ao padrão estabelecido por Sócrates para o benéfico ou bom mas nada diz sobre a sua opinião acerca do nobre e justo Uma vez que temos consciência do modo como foi escrita a Memorahilia somos obrigados a indicar como essa maneira de escrever pode ter afetado a im m que apresenta do filosofar socrático como um todo À primeira vista Xenofonte parece negar que Sócrates tenha se envolvido no que podemos chamar de filosofia natural Nem conversava ele da forma como a maioria dos outros conversava sobre a natu reza de todas as coisas investigando o estado do que é chamado pelos sofistas de cos mos e por quais necessidades cada um dos seres celestiais vem a ser Ao contrário conversa sempre sobre as coisas humanas investigando o que é piedoso o impiedoso o que é nobre o vil o que é justo o injusto o que é a moderação a loucura o que é a coKem a covardia o que é o estado o estadista o que é o governo de seres humanos o governante apto de seres humanos e sobre as demais coisas tais quais considerava nobres e bons aqueles que as conhecessem e aqueles que as ignorassem eram justa mente chamados de escravos Contudo há outras indicações tanto oã Memorabilia em si como em outros dos escritos socráticos de que Sócrates de fato ocupouse da filosofia natural Em certa ocasião referese à sua reputação como filósofo natural sem fiizer objeção a ela Sócrates parece ter identificado sabedoria a qual denominou o maior bem com a ciência de todos os seres E jamais deixou de investigar o que cada um dos seres é em parte talvez por meio da leitura e do estudo das obras dos antigos sábios Não há nada que sugira que os seres em questão não incluíam os seres celestiais ou as obras dos chamados filósofos présocráticos Na verdade Xenofonte indica claramente que Sócrates conhecia as doutrinas desses filósofos tendo citado Anaxágoras em especial pelo nome Mesmo os trechos que fundamentaram nossa X e n o f o n t e 101 92 Comparemos com Platão Hiparco bem como MemombiUa 1 254 93 Mtmorahitia I 111 para o uso do termo filosofia namral comparemos com investação a respeito da natureza Platão Fidon 968 94 Mttmrabiüa 95 Econômico 113 comparemos com Simpósio 667A 96 MemombiliaTV 5667 97 A irV 61 1614 98 Aid 1114 IV 757 primeira impressão demonstram ao serem reexaminados ser mais qualificados do que pareciam de início Sócrates não conversava sobre a natureza de todas as coisas da forma como a maioria dos outros conversava pode têlo feito de maneira diferente Sempre conversava sobre as coisas humanas e as outras coisas cujo conhecimento considerava essencial para a nobreza e a bondade cavalheirismo o conhecimento de outras coisas além das coisas humanas é evidentemente essencial para o cavalheirismo no sentido socrático Essas duas passsens ocorrem no primeiro capítulo da Memo rabilia o capítulo em que Xenofonte confronta a acusação de impiedade Talvez sua defesa de Sócrates contra essa acusação exigisse que negasse de alguma forma que Sócrates se ocupara da filosofia natural Para perceber tão claramente quanto possível por que tal possa ter ocorrido devemos considerar o que significa ocuparse da filosofia natural tanto para o pró prio Sócrates como para os présocráticos de cuja forma de abordar o assunto Sócrates desviouse e criticou Xenofonte nos conduz a esta constatação ao relatar as críticas feitas por Sócrates a seus antecessores Sócrates criticava as doutrinas de seus predecessores sobre a natureza de todas as coisas devido à sua implausibilidade alguns têm a opinião de que o ser é sozinho outros de que os seres são ilimitados na multitude alguns de que tudo está sempre em movimento outros de que nada jamais se move alguns de que tudo vem a ser e perece outros de que nada jamais vem a ser ou perece Além disso Sócrates con siderava os assuntos que tentavam elucidar como não apreensíveis pelos seres huma nos Não pode ter querido dizer com isso que a razão é incapaz de lançar qualquer luz sobre os assuntos em questão as próprias doutrinas da implausibilidade apontam para as plausíveis o meio entre os extremos opostos Ao contrário deve ter tido em mente que estar de posse até mesmo de doutrinas muito plausíveis não significa ainda ter conhecimento desses assuntos A própria atividade filosófica de Sócrates seria en tão distinta pelo menos das de muitos de seus antecessores ao ser orientada por uma maior consciência de seus limites Este fato já está implícito na descrição que fãz Xenofonte da atividade como a tentativa de descobrir o que é cada um dos seres O aspecto da natureza ao qual temos mais acesso é o quê perceptível de cada um dos seres ao invés de suas causas imu táveis causas que nem vêm a ser nem perecem A natureza perceptível de cada ser é sempre a natureza de um grupo ou classe de seres Como tal é mais visível no dis curso Na verdade a classificação a separação das coisas em classes ou tipos subjaz à nossa fida nossa capacidade de falar Segundo Sócrates o dialogar tò dialégesthat 1 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 99 Consideremos ibid IV 76 e Simpósio 668 bem como Platão Leis 96649678 e Apologia de Sócrates 1863 100 Memorabilia 1 114 comparemos com IV 767 101 Ibidl 113 eW 76 102 Ibid IV 6 103 Ibid IV 511 e Econômico 96 segs recebeu este nome devido à prática daqueles que se reúnem para deliberar em comum por meio da separação tò dialégeirí das questões segundo sua espécie Podemos ser tentados a pensar que o conhecimento de classes ou tipos ou espécies imutáveis pode ria simplesmente tomar o lugar do conhecimento das causas imutáveis Mas isso seria o mesmo que ignorar a manifesta dependência de classes de seres da existência desses seres individuais O Sócrates de Xenofonte nunca feia de ideias com existência distinta as classes ou tipos não são distintos de seus membros as naturezas são sempre as naturezas das coisas que as possuem É verdade que as naturezas são as causas das coisas definindo limites para elas Entretanto compartilham essa responsabilidade com algo diferente delas algo pelo qual não são responsáveis e cuja existência e natu reza não lhes são garantidas por elas nem por qualquer outra coisa que conhecemos Sócrates pode apontar para essa responsabilidade compartilhada quando chama a atenção para o comportamento diversificado de coisas que possuem a mesma natureza perceptível Como resultado não podemos saber embora possamos suspeitálo que algumas classes são permanentes A mais profunda implicação da crítica de Sócrates a seus predecessores filosóficos fica clara somente quando examinamos mais de perto o que tentavam fazer os pré socráticos Haviam tentado descobrir não apenas o estado do cosmos mas as necessi dades em virtude das quais cada uma das coisas celestiais passa a ser ou a forma como o deus inventa cada uma das coisas celestiais entendidas como o modo como as idealiza Escusado será dizer que entendiam que o reino da necessidade se estendia a assuntos terrenos também A prudência e a loucura humanas assim como o acaso derivam da necessidade fundamental e são por ela limitados Sua afirmação mais bá sica a inspiração das doutrinas por meio das quais tentavam elaborar e justificar essa afirmação era que não é tudo que pode passar a ser ou acontecer mas apenas o que se harmoniza ou é permitido pela natureza da causa ou causas fundamentais Porém se é impossível discernir as causas fundamentais não se deveria considerar essa afirmação como meramente plausível Todavia poderia Sócrates como filósofo ou como ser humano deixar em aberto a peipmta se qualquer coisa pode acontecer Para explanálo mais detidamente Sócrates pode não ter conhecido qualquer indício que apoiasse tal opinião que desafiasse a alegação básica dos filósofos Pelo contrário a alegação pode ter sido sustentada por todas as evidências disponíveis a ele Contudo apesar de Sócrates poder com razão atribuir um peso considerável a esse fato ainda teria de levar em conta as afirmações daqueles que têm a pretensão de conhecer indícios em contrário O uso da adivinhação por exemplo implica a afirmação de que pode existir uma importante ligação entre dois eventos um espirro e a futura salvação de um exército para tomar um exemplo entre muitos oa Anábase de Xenofonte que não decorrem dos eventos em si da ação deliberada de seres humanos X e n o f o n t e 1 0 3 104 Memorabilia IV 512 105 Simpósio 74 106 Memorabilia 1 111 e IV76 OU do acaso Ou mencionar a punição divina por determinados atos errôneos como faz Xenofonte com muita ênfase no meio de sua Helênica significa sugerir que esses atos tiveram conseqüências que não decorrem de modo natural por assim dizer dos próprios atos Em particular significa negar a validade da sugestão que parece ser transmitida no início e no fim da Helênica que as relações humanas só são retiradas de sua habitual confusão quando e somente enquanto são dirigidas pela prudência humana sob a forma de um líder competente ao leme Seja qual for seu próprio en tendimento dessa questão Xenofonte estava certamente ciente da dificuldade com que se defrontava Sócrates Para repetir Sócrates pode não ter conhecido nenhum indício que lançasse dúvida sobre a afirmação ou premissa básica distinta de doutrinas particulares de seus predecessores filosóficos Teria sido incapaz portanto de aceitar reivindicações de que tais indícios existissem contrariando o que era capaz de ver e de sentir Entretanto tampouco era capaz de provar a falsidade de tais alegações Como então procedeu Sócrates nesta situação O que foi exposto anteriormen te terá demonstrado esperamos por que era necessário que Xenofonte abordasse a questão Todavia permanece obscura a resposta Seria talvez a parte mais recôndita de seu relato nos escritos socráticos da vida filosófica representada por Sócrates A n á ba se Já mencionamos o fato de ter sido Sócrates e não Ciro a quem Xenofonte qua lificou como possuidor de suprema felicidade Seu relato da vida de Sócrates na Me morabilia e nos outros escritos socráticos é portanto um relato da efetivação das mais elevadas possibilidades humanas conhecidas por ele Apesar disso como vimos também o próprio Xenofonte não seguiu o exemplo de Sócrates pelo menos náo em todos os aspectos Abandonou Sócrates para integrar a expedição organizada pelo jovem Ciro E como deixa bem claro e até mesmo salienta fez isso contrariando os conselhos de Sócrates Este abandono de Sócrates e do caminho socrático porém não revela necessariamente que haja um desacordo profundo Talvez não assinale nada além do feto de Xenofonte não se sentir plenamente capaz de seguir o exemplo de Sócrates ao pé da letra Ao invés de tentar o impossível e portanto ser forçado a se contentar com uma imitação artificialmente exata e portanto um tanto ridícula pode ter optado por seguir ou imitar Sócrates mais livremente de maneira adaptada às suas próprias inclinações e habilidades Como fica claro a partir de uma leitura de seus atos e discursos na Anábase as inclinações de Xenofonte eram em grande parte para a política e sua habilidade política era de uma ordem muito elevada 1 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 107 Anábase III 29 comparemos com Memorabilia 1 134 IV 710 1 169 119 108 Helênica V 41 comparemos com Andbase II 62129 109 Helênica I 1115 VII 52627 110 Consideremos o retrato de Antístenes pintado por Xenofonte no Simpósio Contudo isso não implicaria em uma aceitação por parte de Xenofonte de um modo de vida que sob a forma em que fora buscada por seu representante por exce lência Ciro o velho claramente rejeitava É tentador procurar contornar essa difi culdade sierindo que Xenofonte chegou a essa sua crítica de Ciro o velho só após e talvez como resultado de sua associação com o mais novo e de sua própria experiência da vida política Porém essa sugestão é descartada pela constatação de que seu papel de cisivo na crítica a Ciro a uazida à baila na conversa de Ciro com o pai foi fornecida a Xenofonte com antecedência não por suas reflexões sobre Ciro ou sobre a política pro priamente dita mas pela educação socrática que recebera já antes de entrar na política Somos forçados a nos peipmtar portanto se Xenofonte não percebia e exercia a vida política de um modo um pouco diverso do de Ciro o velho ou se não existe um meio termo entre Sócrates e Ciro que seria perfeitamente adequado para se trilhar K Aná base parece ter sido dada a tarefa de demonstrar que este é o caso A base que fornece para a compreensão das diferenças entre Xenofonte e Ciro o velho é o jovem Ciro Xenofonte chama a atenção para a semelhança chegando quase a identidade entre os dois Ciros fazendo com que seu Sócrates os trate certa feita de modo brincalhão como a mesma pessoa De acordo tanto com a Anábase quanto com o Econômico o jo vem Ciro foi a figura política mais capaz de emergir na Pérsia desde Ciro o velho No entanto diferiam em vários aspectos Primeiro o jovem Ciro era um homem erótico De qualquer forma tinha duas amantes das quais uma se diz ter sido tão sábia quanto bela e Ciro afirmou em certa ocasião ter tido relações sexuais com uma rainha em visita Nenhum assunto deste tipo é jamais mencionado em relação a Ciro o velho que estava disposto a renunciar à visão da bela Panteia casouse de modo extremamente sensato do ponto de vista político talvez com uma tía idosa e foi descrito por seu companheiro persa mais próximo como um rei frio Pode haver uma conexão entre essa diferença e outra Ao passo que Ciro o velho uma vez atingida a maturidade nunca correu riscos que não fossem de certa forma exigidos pela sua busca pelo império o jovem Ciro ao avistar seu irmão o rei em meio à sua batalha decisiva descontrolouse e imediatamen te o atacou embora sua própria guarda fosse então dispersa um ato que lhe custou ao mesmo tempo a vida e a vitória que já estava praticamente assegurada Podese comparar este feto especificamente com a frieza e cautela de Ciro o velho em relação à captura da Babilônia e do assassinato de seu principal inimigo o rei da Assíria É verdade que ao contrário de auns de seus principais aliados Ciro o velho não sofre rá pessoalmente qualquer injustiça nas mãos dos assírios enquanto o jovem Ciro fora gravemente injustiçado por seu irmão Contudo esta observação não só auxilia na X e n o f o n t e 1 0 5 111 Econômico 4á 6S 112 Andbase I 91 Econômico 418 113 Andbase Q2Ò22 114 CiropédiaW 1218 VIII 528 422 115 Anábase 22 116 Ciropédia VII 52034 117 Anábase 1 114 comparemos com Ciropédia IV 62 s V 227 f 435 f eliminação da diferença entre os dois que discutimos quanto serve para indicar aquela que pode ser sua causa subjacente Assim como era mais erótico do que Ciro o velho Ciro o jovem também pode ter sido mais impulsionado por questões de justiça Foi necessária uma injustiça para forçálo a ar de acordo com a ambição que sem dúvida partilhava com o mais velho o que muito difere de encontrar justificativas ou pretextos para atos já tencionados por motivos inteiramente diversos Uma vez que Xenofonte conhecia o jovem Ciro em parte por experiência pessoal podese dizer que foi ele o material a partir do qual Xenofonte criou o seu Ciro o Ciro da Ciropédia O Ciro ancião é uma versão idealizada ou aperfeiçoada do mais jovem De acordo com isso as diferenças entre os dois primeiros surgem como defeitos do mais novo pelo menos do ponto de vista político Se são sempre defeitos mesmo a partir deste ponto de vista só poderá ser determinado de maneira taxativa quando se examinar a alternativa representada por Xenofonte Xenofonte compartilhava as características que distinguiam o jovem Ciro de seu antecessor mais ilustre Tal como ele e também como seu Sócrates era um homem erótico E não se preocupava menos com a justiça pelo menos a julgar pela atenção que seus escritos dão a esta questão Mas faltavamlhe a impetuosidade ou defeitos de raciocínio do jovem Ciro Em particular jamais permitiu que o zelo na vingança por um erro superasse sua prudência nem por um instante Para expressar esse ponto de maneira mais tucidiana do que xenofontiana Xenofonte estava ciente de que a existência de uma injustiça não garante que terá sucesso a tentativa de proporcionar a devida retaliação que nossa situação pode ser tal que nos obrigue simplesmente a suportar um malefício sem obter vingança Na época em que Xenofonte liderava de volta à Grécia a força grega que pertencera ao jovem Ciro e na verdade duran te a maior parte de sua vida adulta tais injustiças teriam sido mais provavelmente cometidas por mãos espartanas Pois a derrota de Atenas por Esparta na Guerra do Peloponeso que durou 27 anos substituíra o equilíbrio de poder entre as duas gran des potências o qual prevalecera na Grécia por mais de 75 anos por um predomínio indiscutível de Esparta E como Xenofonte descreve tanto na Anábase como na Helênica sem se afastar de sua costumeira moderação mas com perfeita clareza 1 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 118 Comparemos com Ciropédia I 5713 VII 57273 e 57677 119 Andbase A 120 Andbase VII 320 V 310 Memorabilia I 3815 comparemos com Simpósio 82 bem como Memorabilia II 628 121 Tucídides A Gtierra do Peloponeso IV 624 comparemos cora Andbase V 115 e II 62129 à luz de V 826 comparemos com Ciropédia V 435 122 Supostamente Esparta travara a guerra para libertar as cidades gregas da escravizaçáo real ou iminente pelo império ateniense Ver p ex Tucídides A Guerra do Peloponeso II 84 No início de Helênica Xenofonte nos diz que após a derrota final de Atenas suas longas muralhas foram derrubadas pela música de meninas flautistas e com a expectativa geral de que aquele dia traria o início da liberdade para a Grécia II 223 O restante da Helênica mostra o quanto tal esperança era infundada o domínio espanano de modo geral nâo se disdnguiu nem pela sabedoria nem pela brandura Como líder político Xenofonte foi forçado a se adaptar a essa situação e a induzir aqueles que comandava a fàzêlo Entre as passagens mais impressionantes da Anábase estão os discursos em que instrui seus companheiros gros sobre a necessidade de ceder a determinadas exigências espartanas que estavam longe de serem justas ou razoáveis e em geral sobre a necessidade de se acomodarem a aqueles que agora do minam a Grécia Os leitores que se sensibilizam em qualquer medida com a crueza que a necessidade política pode atingir ocasionalmente também podem encontrar em Xenofonte o escritor em seu tratamento dos espartanos um modelo de como proceder em circunstâncias semelhantes Xenofonte aplaudia e portanto encorajava o que era bom embora salientasse sem rancor ou amaira o que era mau na medida em que era prudente e útil fózêlo Para voltar àquilo que o distinguia dos Ciros o velho e o jovem as elevadas qualidades que no caso dos dois persas ou seja bárbaros só lhes impediriam de causar danos políticos se suprimidas ou extirpadas da alma seguramen te poderiam prosperar em Xenofonte que tivera o benefício de uma educação socrática uma educação que essas qualidades entre outras o tornaram apto a receber O resultado não foi apenas a sua capacidade de equipararse a Ciro o velho no plano do frio cálculo político sem ser prejudicado pelo eros que não possuía nem pelo zelo equivocado que lhe fóltava mas também a graça e dignidade que toda a sua pos tura política extraía de uma liberdade interior que Ciro não compartilhava Xenofonte também era ambicioso foi tentado pela perspectiva de se tornar comandante único do exército grego de Ciro e aspirava se tornar o fundador de uma nova cidade grega na costa do Mar Negro Mas enquanto Ciro queria que seus louvores fossem cantados por todos os seres humanos Xenofonte preocupavase primordialmente com o apreço de seus amigos Ao contrário de Ciro não ansiava tanto pelos elogios de juizes in competentes quanto pelos dos competentes Esta diferença nos ajuda a compreender sua serenidade em fàce dos mais variados reveses políticos por exemplo a dignidade e a sagacidade com que se defendeu quando confrontado com ingratidão e hostilidade infundadas por parte de homens cuja vida salvara Ajudanos também a entender sua capacidade de deixar a vida política para voltar a uma vida privada Quando havia algum bem a ser feito pela sua liderança tanto para si como para outros ou alguma necessidade premente agia com suprema determinação e engenhosidade para realizar a tarefà ou atender à necessidade Quando nada mais havia a ser feito pelo menos por ele ou seja quando não havia nada de útil a fózer afàstavase Por outro lado sua educação não o debtara totalmente despreparado para levar uma vida privada A apo sentadoria no campo enquanto lhe fóltavam os desafios imediatos para o coração e a mente apresentados pela política em seu auge teria seus atrativos para ele por deixar X e n o f o n t e 1 0 7 123 Andbase VI 6816 e VII 12531 compaicmos com III 237 e VI 12628 124 Ibid VI 11921V 61516 comparemos com VI 418 125 Ciropédia III IÒV AndbaseVl 120 126 Andbase VII 611 segs comparemos com V 75 ss e 82 segs mais tempo livre para a contemplação e a escrita especialmente porque a contem plação poderia abarcar suas próprias experiências políticas entre outras coisas como verificamos ao ler a Anábase que o fez Para um homem como Xenofonte o reviver contemplativo de experiências seria decerto um aprofundamento deles Poderia assim ser aguardado como a promessa de um prazer mais profundo do que as experiências originais em si e menos emaranhado com o sofrimento 1 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y L eitu ra s Xenofonte Ciropédia e Memorabilia Xenofonte Anábase A ristóteles 384322 aC Aristóteles nasceu na cidade de Estsra na península Calcítüca no norte da Gré cia Seu pai era o médico pessoal do rei Amintas III da Macedônia e esta ligação tão próxima com a casa real macedônica e seus destinos políticos moldaria tanto a carreira de Aristóteles quanto a história da escola filosófica que fimdou Quando jovem Aristóteles foi enviado a Atenas para aperfeiçoar sua educação Ali encontrou Platão e permaneceu como membro da Academia até o final da vida do filósofo Depois de um período duran te o qual dizse embora a história possa ser apócrifii atuou como tutor de Alexandre o Grande Aristóteles retornou a Atenas e fimdou sua própria escola o Liceu dedicado à pesquisa e ao ensino em todas as áreas do conhecimento humano Após a morte de Ale xandre e da subsequente rebelião das cidades gregas contra a hegemonia da Macedônia Aristóteles foi forçado a deixar Atenas mais uma vez e consta que observou para que os atenienses não pequem uma segunda vez contra a filosofia Morreu pouco depois Do grande número de obras atribuídas a Aristóteles na Antiguidade apenas uma parte sobrevive até hoje Seguindo o exemplo de seu mestre Aristóteles aparentemente compôs diálogos destinados a um público geral muitos deles sobre temas políticos com exceção de algumas citações frmentadas nada resta deles As obras que chega ram até nós são via de regra tratados que se pensa terem sido elaborados em conexão com a pesquisa de Aristóteles e suas atividades de ensino Os ensinamentos políticos de Aristótdes estão disponíveis para nós sobretudo na Política e na Ética a Nicômaco Dois outros tratados a Ética a Eudemo e a Magna Moralia Grande Moral cobrem em grande parte o mesmo tema que a Ética a Nicômaco mas oferecem menor inte resse permanece muito incerta a relação entre essas três obras Deve ser mencionada também a Retórica que contém uma discussão única de psicologia política bem como importantes reflexões sobre a relação entre a retórica e a política e a Constituição de Atenas único exemplo existente de uma compilação da história constitucional das cidades gregas realizada por Aristóteles e seus discípulos Em geral os escritos de Aristóteles tendem a ser abordados como tentativas dire tas de apresentar uma explicação apenas científica ou teórica de seu assunto Todavia longe está de ser evidente que seja seguro examinar os tratados éticos e políticos sob essa luz Aristóteles indica que há uma diferença fundamental entre as ciências teóricas que sáo estudadas cxm vistas ao conhecimento e as ciências práticas que sáo es tudadas mormente por causa dos benefícios que se obtêm delas A política é para Aristóteles a ciência prática por excelência É necessário já de início compreender o alcance e a intenção da ciência prática ou política tal como Aristóteles a concebe tanto para apreciar de modo correto o caráter literário de seus escritos éticos e políticos como para entender o papel problemático no pensamento aristotélico da filosofia política como tal T e o r ia e PnÁ ncA Embora a distinção entre ciência teórica e prática não seja desenvolvida de modo sistemático por Aristóteles em texto algum a diferença fundamental entre tais mo dalidades de conhecimento residiria em seu método e nas faculdades intelectuais que empregam bem como no que se refere a seus objetos e finalidade Os objetos da ciên cia teórica são as coisas não sujeitas a mudança ou coisas cujo princípio de mudança reside em si mesmas seu método é a análise dos princípios ou causas dessas coisas seu objetivo é o conhecimento demonstrativo e sua faculdade é a porção científica ou racional da alma As ciências teóricas reconhecidas por Aristóteles incluem a metafísi ca ou teologia a matemática a física a biologia e a psicologia A ciência prática em contraste preocupase apenas com o homem ou com o homem em sua capacidade como um ser autoconsciente ou uma fonte de ação práxis pois na medida em que depende da vontade humana a ação humana é essencialmente sujeita a mudanças A finalidade da ciência prática não é o conhecimento mas o aprimoramento da ação sua fiiculdade apropriada é o segmento racional ou prático da alma ou o que Aristó teles denomina sabedoria prática ou prudência phronêsis Quanto ao método das ciências práticas Aristóteles parece entendêlo como uma modalidade de análise con cebida menos para descobrir os princípios ou causas do que para articular os fenôme nos da ação humana em grande parte por meio de um exame dialético e refinamen to das opiniões dos homens a respeito desses fenômenos O feto de que Aristóteles recorra com frequência em seus escritos políticos à ar gumentação dialética isto é a um modo quase coloquial de investigação que começa a partir de premissas incorporadas no senso comum revela uma afinidade de espírito se não de forma com o diálogo platônico Assim como Platão e o Sócrates platônico Aristóteles localiza o ponto de partida adequado para a filosofia política na língua e opiniões dos homens comuns Não progride pela dedução de princípios imutáveis da natureza humana nem tenta estabelecer um vocabulário técnico rigoroso do ponto de vista lógico que seja distante da vida política real Parte do motivo pata isso reside na 1 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Metafisica 110251828 Tópicos 661451518 Ética a Nicômaco doravante EN 62 113926b441140123 2 EN 1310941127 41095 3013 71098268 Ética a Eudemo doravante 1561216 111718 insistência de Aristóteles de que não se deve procurar a mesma precisão na esfera práti ca ou política que se busca nas ciências teóricas As coisas humanas são inerentemente variáveis e abordálas dentro do espírito do físico ou do matemático que procuram descobrir leis universais é distorcer a essência dos fenômenos relevantes O tipo de raciocínio adequado para lidar com assuntos políticos está mais próximo do raciocínio prático ou prudente do cidadão comum pois se enraíza nos detalhes da experiência cotidiana do que do raciocínio dedutivo do cientista ou do filósofo Essas considera ções podese acrescentar de certo modo auxiliam a refutar a visão comumente aceita hoje de que a ciência política de Aristóteles é invalidada por sua associação com uma ciência natural teleológica ou metafísica ultrapassada Entretanto a maneira de proceder de Aristóteles também reflete sua compreen são da finalidade da ciência prática É por estar a serviço da ação que a preocupação central da ciência prática deve ser a apresentação de seu assunto de uma forma que mobilize as opiniões e afete o comportamento dos homens políticos comuns A ciên cia prática de Aristóteles dirigese não aos filósofos ou estudantes de filosofia ou não primordialmente a eles mas aos homens políticos De modo mais preciso voltase a homens políticos educados que são detentores do poder político real ou potencial ou na melhor das hipóteses ao legislador que cria a estrutura constitucional dentro da qual ocorre toda a ação política Isso não quer dizer que a ciência prática de Aristóteles seja no total alheia à sua ciência teórica Em vários trechos Aristóteles indica que a filosofia teórica ocupará um lugar em seus escritos políticos onde quer que seja intrínseca à investigação e fàz uso freqüente de pressupostos oriundos da psicologia teórica em particular Contudo fica evidente também a relutância de Aristóteles em estabelecer uma base teórica dis cernível para a ciência prática Isso se deve ao menos em parte à sua percepção de que é excessiva a influência que sofrem os homens políticos dos argumentos teóricos sobre a política apresentados por intelectuais Aristóteles parece pensar sobretudo nos sofis tas que carecem de qualquer compreensão ou capacidade prática 16121716 Na medida em que a prudência dos homens políticos é ameaçada de modo constante por argumentos ou opiniões teóricas infundadas a ciência prática teria alguma neces sidade da ciência teórica mas este fato em si destaca a importância de salvaguardar a autonomia da esfera prática Na única ocasião em que emprega o termo filosofia política Aristóteles o fàz de maneira a sugerir que é externa à investigação que empreende nos escritos éticos e políticos existentes Aristóteles parece entender a investigação da Política e da Ética a Nicômaco como uma forma de experiência política ou ciência política politike Mas significaria isso que Aristóteles reconhece a filosofia política como uma discipli na distinta independente da ciência política A r is t ó t e l e s 111 3 Ver em particular E N 109 4 Consideremos em particular EE 111214914 5 Política doravante P 3121282l423 À primeira vista somos tentados a supor que vÃristóteles nega cabalmente a pos sibilidade de uma filosofia política teórica dada a sua visáo da variabilidade das coi sas humanas e a impossibilidade de exatidáo ao estudálas Por outro lado é óbvia a incorreção de perceber na abordagem de Aristóteles um prenúncio da distinção moderna entre natureza como o reino da necessidade e assuntos humanos como o reino da história ou da liberdade É verdade que Aristóteles distingue entre o natural e as coisas humanas Contudo na teoria em si essa distinção é imprecisa porque o homem continua a ser para Aristóteles com proeminência uma parte da natureza ou porque possui uma natureza que exibe regularidades significativas em meio ao fluxo das coisas humanas Daí parece resultar que os princípios ou causas da ação humana são passíveis de tratamento teórico no mesmo sentido Assim devese ao menos con siderar a possibilidade de que os escritos políticos de Aristóteles sejam de sua própria maneira de ironia tão radical quanto os de Platão que propositalmente subtraiam as reflexões finais ou mais fundamentais de Aristóteles sobre o homem Uma abordem mais profunda do alcance da ciência prática ou política apare ce no sexto livro da Ética a Nicômaco Ali Aristóteles indica que a ciência prática é em certo sentido coextensiva tanto com a ciência política como com a prudência A ciência prática ou política neste sentido amplo tem três ramos a ética ou a ciência do caráter a economia ou a ciência da administração do lar e a ciência política no seu sentido mais restrito e familiar a ciência de governar a comunidade política É de fundamental importância reconhecer que a ética é parte integrante da ciência política em sentido amplo e que os escritos éticos de Aristóteles foram é inegável concebidos não como tratados independentes mas como prolegômenos para um estudo da polí tica Qualquer discussão da ciência política aristotélica seria portanto incompleta se não devotasse grande atenção aos ensinamentos dos tratados éticos e da relação desses ensinamentos com a política Fe l ic id a d e V ir t u d e e C avalheirism o Toda arte e toda investigação assim como toda ação e toda escolha têm em mira um bem qualquer e por isso foi dito com muito acerto que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem A primeiríssima frase da Ética a Nicômaco de Aristóteles reflete a preocupação de estabelecer o âmbito e a dignidade da ciência política Tal como todas as nossas ações visam em última análise a um fim determinado que é desejado por si próprio e não por causa de algo além de si mesmo assim as várias artes e ciências podem ser consideradas como em última análise subordinadas a uma ciência mestra única que engloba o bem humano integral Mas esta ciência mestra é distintamente a sabedoria política ou ciência política ipolitike Pois a sabedoria 1 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Consideremos E7V109 118115 7 NTi Esta e as demais citações de Ética a Nicômaco sáo de Aristóteles Ética a Nicômaco Traduçáo Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão iiesa de W D Ross Sáo Paulo Editora Abril 1984 Coleção Os Pensadores v 2 política determina quais ciências devem ser estudadas num Estado quais sáo as que cada cidadão deve aprender e até que ponto e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço como a estratégia a economia e a retórica estão sujeitas a ela Ora como a política utiliza as demais ciências e por outro lado legisla sobre o que devemos fazer e não devemos fazer a finalidade dessa ciência deve abranger a finalidade das outras de maneira que essa finalidade será o bem humano EN 121094287 A dignidade da sabedoria política se reflete tanto na autoridade que exerce sobre todas as formas de conhecimento humano ao que parece como em seu papel na legislação Aristóteles toma como pressuposto inicial ser inevitável que uma preocupação com o bem huma no envolva considerações de legislação e do Estado mesmo que o bem do indivíduo e o bem do Estado sejam os mesmos o do Estado é evidentemente maior mais nobre ou mais completo Tais são por conseguinte os fins visados pela nossa investigação pois que esta pertence portanto à ciência política numa das acepções do termo EN 12109471 1 O bem ou a vida boa para os homens como indivíduos e para a co munidade política constitui o arco temático da ciência política aristotélica Aristóteles começa sua investigação pela questão da natureza do bem humano in tegral Pequena é sua dificuldade em identificar este bem com o bemestar ou felicida de eudaimonia Quando se trata de especificar o conteúdo da felicidade no entanto parece que há discordância tanto entre as pessoas comuns quanto entre as pessoas comuns e os sábios intelectuais ou filósofos na verdade há pessoas que identificam a felicidade com coisas diversas em momentos diversos de acordo com a sua preo cupação do momento Todavia Aristóteles não chega à conclusão característica do pensamento liberal moderno de que a felicidade enquanto distinta dos instrumentos ou das condições para a felicidade seja portanto subjetiva em sua base ou resistente a uma definição politicamente útil Aristóteles está convencido de que existe de fato uma grande medida de concordância quanto à natureza da felicidade e que as diver gências a respeito são reflexos não arbitrários de aspectos fundamentais da condição humana Para Aristóteles existem basicamente três formas de vida à disposição dos seres humanos a vida de prazer a vida política e a vida teórica ou filosófica Uma vida centrada nos prazeres do corpo é a vida vivida pela maioria dos homens por muitos dos favorecidos pela fortuna bem como por pessoas comuns Homens de um tipo mais refinado por outro lado consideram a honra como a finalidade da vida e a bus cam por meio da exibição de sua virtude na ação política Por fim alguns homens buscam os prazeres decorrentes da pura atividade intelectual NE 1410951426 Ao contrário do que se poderia esperar Aristóteles não se responsabiliza por julgar essa contenda Apenas rejeita a alegação em favor da vida de prazeres e passa a elaborar uma definição de felicidade que parece propositalmente destinada a escamotear a dife rença entre a vida política e a teórica Esse modo de proceder é muito característico da abordagem de Aristóteles um pouco antes indicara que o seu bom ouvinte é uma pessoa bemeducada em seus hábitos e nâo dominada pela paixão NE 131095211 Com efeito Aristóteles adota a perspectiva de homens políticos ou práticos ou de homens deste tipo que são mais refinados como resultado de sua criação e educação A r is t ó t e l e s 1 1 3 Seria um erro concluir que a aborcüem é portanto fechada ou circular ou que Aristóteles meramente se identifica com a perspectiva dos gros educados ou da classe mais alta Afora a siestáo clara de ser provável que seu ouvinte esteja mais preocu pado com a honra a ser conquistada na vida política do que com a virtude que a fez merecida Aristóteles de modo algum ignora as alternativas do prazer e da filosofia que surgem como temas principais nos livros finais do tratado Na verdade podese dizer que a estrutura da Ética a Nicômaco como um todo tem o caráter de uma ascensão a partir da perspectiva de homens políticos ou práticos comuns até uma perspectiva in formada pela íilosoíia que é apresentada no Livro X como um exercício visivelmente superior às atividades da vida prática NE 1079 Na busca de uma definição de felicidade que obtenha um amplo consenso Aristó teles dá momentaneamente um passo para trás em relação às opiniões comuns manifes tadas sobre felicidade voltandose para a questão mais geral e toSrica da natureza do ho mem e de seu trabalho ou função próprios ergprí O que distíngue o homem é sua alma racional sob a ferma dupla de um elemento que possui razão ou pensa e um elemento que obedece à razão A verdadeira íimção do homem é portanto o pôremfimciona mento ou atividade energeia da alma de acordo com a razão ou melhor a ftirma mais superior de tal atividade A felicidade ou o bem humano podem ser definidos então como a atividade da alma em conformidade com a excelência ou a virtude arete e se há várias virtudes de acordo com a melhor e mais perfeita V 161097229818 Aristóteles nega com ênfese que haja um conflito entre a felicidade assim defi nida e o prazer aqueles que por hábito realizam ações virtuosas ou nobres têm prazer em fezêlo pois tais ações são prazerosas por natureza No entanto a ligação entre a virtude e a felicidade é qualificada em vários aspectos importantes Aristóteles admite que seja dificil ou impossível agir de modo virtuoso ou alcançar a felicidade sem um mínimo de bens exteriores Estes incluem não só uma determinada quantidade de riqueza amigos e poder político mas também os filhos um bom berço e até mesmo a boa aparência o homem de muito feia aparência ou malnascido ou solitário e sem filhos não tem muitas probabilidades de ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus ou se a morte lhe houvesse rouba do bons filhos ou bons amigos EN 18109936 Aristóteles alongase no embate com a questão de saber se um homem bom exposto ao sofrimento extremo pode em qualquer sentido ser considerado feliz e reconhece a visão comum de que em última análise a felicidade é um joguete do destino ou uma dádiva dos deuses EN 19 1099911009 Embora rejeite essas ideias é nítido o modo como Aristóteles está atento aos aspectos da situação humana que necessariamente limitam qualquer esforço individual ou coletivo para garantir a felicidade Parece não encontrar nenhum mérito em uma alternativa que se concentrasse em garantir as condições materiais de felicidade em vez de promover as virtudes que são constitutivas da felicidade tal como a entende Pelo menos parte do motivo para isso parece residir na convicção de Aris tóteles partilhada por todos os pensadores políticos da Antiguidade clássica de que a riqueza é menos importante como uma condição exterior para a felicidade do que as 1 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y relações humanas que dependem decisivamente da virtude Essa convicção por sua vez reflete a visão fundamental de Aristóteles de que o homem é por natureza um animal social ou político Tal como a alma humana é dividida entre um elemento racional e um elemento capaz de obedecer à razão assim a virtude ou excelência é dupla Pertencem à porção racional da alma as virtudes intelectuais que são adquiridas na medida em que forem adquiridas principalmente por meio do discurso ou do ensino Pertencem à porção irracional a parte da alma que é o locus da pabtão ou emoção as virtudes morais ou éticas as virtudes associadas ao caráter fÃÃoí Segundo Aristóteles as virtudes morais não emergem nos homens nem pela natureza nem contra a natureza os homens têm um potencial natural para desenvolvêlas mas na verdade fezêlo requer a formação de hábitos As virtudes morais são semelhantes às artes no modo como são adquiridas pois os homens aprendem a se tornar bons pela realização de boas ações assim como o carpinteiro aprende seu oficio pela prática NE 11321 Como será visto a exigência do hábito nas ações virtuosas fez com que aos olhos de Aristóteles seja atribuída gran de importância à educação e à sua gestão adequada pelas autoridades políticas Não é possível acompanhar aqui em detalhes a complexa apresentação feita por Aristóteles das características e tipos de virtude moral mas vários pontos devem ser destacados em especial Em primeiro lugar apesar de se poder dizer que a virtude moral envolve a razão não se trata de algo essencialmente racional É ao contrário uma atitude ou disposição característica das emoções e das ações que delas emanam De acordo com a definição formal de Aristóteles a virtude é uma disposição que envolve uma escolha intencional e é voltada para a observância de um meiotermo entre extremos viciosos Não se pode definir este meiotermo com precisão de modo abstrato mas determinálo pela razão de acordo com as circunstâncias específicas do caso O papel da razão na ação moral é portanto em grande parte se não o for so mente instrumental Embora a ação moral a fim de ser verdadeiramente moral deva ser resultado de uma escolha não se assume que a escolha em questão envolva um pro cesso de cálculo racional das vantagens e riscos de agir de modo moral Pelo contrário como Aristóteles enfetiza repetidas vezes é da essência do comportamento moral que as ações virtuosas sejam realizadas por si mesmas e não por suas conseqüências É por tanto um erro fundamental atribuir a Aristóteles aquela que seria hoje denominada uma concepção utilitarista da moralidade O homem bom não é guiado em todas as suas ações por um cálculo de que a honestidade seja a melhor política ou de que toda ação virtuosa contribua para a sua própria felicidade A visão geral de Aristóteles é bem exemplificada por seu tratamento da virtude da coragem EN 369 que põe a prova qualquer compreensão utilitarista da mora lidade O homem corajoso é aquele que habitualmente escolhe o meiotermo entre a covardia e a temeridade em especial nas situações que envolvam risco de morte súbita em batalha Aristóteles distingue com cuidado no entanto entre o homem que realiza feitos corajosos por si mesmos e aquele que o fez apenas por deferência para com as opiniões de seus concidadãos isto é por um sentimento de vergonha e um desejo A r i s t ó t e l e s 115 de honras uma cornem deste tipo é apenas coragem política nâo a corsem pura e simples Aristóteles também se nega a reconhecer como genuína coragem as ações de um homem motivado primordialmente pela ira ou por um temperamento fogoso O mais impressionante porém é que Aristóteles nem sequer faz alusão no decurso da sua análise à exigência da preservação da cidade ou à motivação do patriotismo Nada revela tão bem podese acrescentar a diferença fundamental entre a concepção aristotélica da virtude cívica e a tradição do republicanismo moderno A intenção de Aristóteles se manifesta com particular clareza em uma passagem na Ética a Eudemo Nesta obra o filósofo não distingue entre dois tipos de homens virtuosos o homem bom agathos que age de modo virtuoso com o intuito de ob ter as coisas naturalmente boas da vida ou seja antes de tudo a riqueza e as honras e o homem nobre e bom kahskagathos que realiza os atos virtuosos por si mesmos ou porque são nobres À primeira categoria ao que parece pertencem os espartanos os exemplos mais evidentes de virtude para a maioria dos gregos EE 8112488 4917 Em uma passagem anterior da mesma obra Aristóteles indica que a maioria dos homens políticos é composta por homens bons neste sentido enquanto nega seu direito de serem assim chamados pois o homem político é aquele que opta por realizar boas ações por si mesmas mas a maioria deles assume este tipo de vida pelo lucro e o engrandecimento pessoal EE 1512162327 Pareceria que a concepção aristotélica de virtude moral longe de apenas ratificar opiniões contemporâneas tem como finalidade até certo ponto serlhes um desafio proposital O termo empregado por Aristóteles para designar o homem de virtude moral e política em sentido estrito foi tomado emprestado do discurso político contemporâ neo no qual portava um forte sabor aristocrático sua melhor tradução para o inglês seria provavelmente gentleman cavalheiro Aristóteles não emprega o termo em sentido político estrito mas a realidade política a que remete tem grande relevância para uma compreensão adequada da estratégia retórica assim como grande parte da argumentação específica dos tratados éticos e políticos Nada revela de modo tão nítido a visão de Aristóteles sobre os pontos fortes e as limitações da moralidade aristocrática como sua incomparável descrição no Livro IV da Ética a Nicômaco das virtudes da magnificência megaloprepeià e magnanimidade megalopsychid as virtudes que tratam respectivamente da grande riqueza e das grandes honras EN Alò Apesar da presumida raridade de seu tipo o homem mnânimo é um elementochave na análise global de Aristóteles tanto por causa de seu potencial papel político como pelo que revela sobre a natureza da simples virtude moral Do ponto de vista da cidade o homem magnânimo tem valor inestimável pelo fato de ser capaz de prestar os maiores serviços todavia se compraz em ver a sua virmde recompensada apenas pela honra sem mencionar que afinal desdenha um pouco a honra que a cidade tem poder de conferir Por razões semelhantes no entanto tais homens tendem a nutrir um descon fortável desapego da cidade e em determinadas circunstâncias podem até tornarse uma ameaça para ela como os exemplos de Aquiles e Alcibíades demonstram de sobra Do ponto de vista da moralidade parece que a magnanimidade em certo sentido 1 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y engloba todas as virtudes o homem m iânimo realiza as ações das virtudes na pleni tude de seu orgulho ou porque desdenha os bens ou prazeres em nome dos quais os homens agem de modo vil A magnanimidade conclui Aristóteles é portanto por assim dizer o coroamento das virtudes engrandeceas e não pode existir sem elas pressupõe assim ao mesmo tempo que aperfeiçoa a qualidade do cavalheirismo J u stiç a e A m iz a d e Se é possível afirmar que a msanimidade constitui o auge da força moral do ponto de vista do indivíduo a justiça constitui o auge da força moral do ponto de vista da cidade Em seu sentido mais geral a justiça é aquilo que produz e preserva a felicidade para a comunidade política e por conseguinte é praticamente idêntica ao cumprimento da lei já que as leis visam garantir o bem comum da cidade oferecendo verediaos sobre todas as esferas da vida humana Porque ou na medida em que as leis impõem a reali zação de todas as virtudes a justiça é a virtude compleu ou perfeiu na medida em que a virtude é exercida em relação a outros homens EÃ5111293301 Se como parece a mianimidade é uma qualidade que até certo ponto confli ta com as necessidades da cidade a justiça na apresentação de Aristóteles não satisfaz de forma óbvia as necessidades do indivíduo Em nítido contraste com o procedimen to de Platão na República Aristóteles não expiou os pontos firacos no entendimento comum de justiça nem tenu demonstrar que a justiça a qual como admite entre todas as virtudes é o bem de um outro ÊÍV51113034 é na verdade digna de ser escolhida por si mesma Contudo da mesma forma a decisão de Aristóteles quan to a respeitar as ambigüidades em torno do entendimento comum de justiça envolve ao mesmo tempo uma depreciação da justiça como motivo para a ação política e um elemento de análise política Se a justiça em seu sentido mais geral nada mais é que a disposição para realizar os atos virtuosos em obediência às leis da cidade a justiça em seu sentido exato ou parcial é a disposição de dar ou tomar apenas uma parcela justa ou igual isori das coisas boas Aristóteles distingue entre vários sentidos de justiça assim entendida EN 525 O primeiro tipo de justiça é aquele exercido na distribuição de honras riqueza ou o que quer que possa ser dividido pelos membros de uma comunidade política A justiça deste tipo não é baseada na igualdade aritmética mas em uma igualdade de proporções entre pessoas e bens a justa distribuição envolve a concessão de partes iguais para pessoas iguais e de partes desiguais para pessoas desiguais Como indica Aristóteles porém a justiça distributiva é essencialmente controversa porque a discri minação entre as pessoas com base no mérito é uma questão política com diferentes regimes dando maior peso às alegações de mérito dos ricos dos virtuosos e dos ho mens livres Aristóteles não fez qualquer esforço para resolver aqui essas controvérsias fundamentais o assunto será abordado na Política O segundo tipo de justiça é aquele que envolve transações que Aristóteles de nomina corretivas Neste sentido a justiça abstrai os indivíduos e aplica uma igual A r is t ó t e l e s 1 1 7 dade aritmética simples aos indivíduos e bens em questão estendese não apenas às transações voluntárias tais como contratos mas a atos involuntários ou criminosos como roubo ou assassinato De um modo geral no entanto a justiça corretiva envolve também uma quantidade importante de discernimento o papel desempenhado por um juiz ou júri nos processos legais Aristóteles também se alonga na discussão de um terceiro tipo de justiça que denomina reciprocidade to antipeponthos Kpstvqa neste sentido parece abranger tanto a simples retaliação por danos sofridos como a permuta de benefícios ou bens Embora seja obscura sua relação precisa com a justiça corretiva a justiça recíproca parece ser concebida por Aristóteles como uma forma mais primitiva de justiça que não requer a discriminação prudente de um íúncionário político ou de um juiz na verdade a reciprocidade parece ser a forma de justiça original ou primária que sustenta todo tipo de associação humana Aristóteles deixa claro porém que a justiça no sentido mais amplo só existe em uma comunidade de homens relativamente livres e iguais cujas relações são reguladas por lei A virtude da justiça é algo característico do Estado e o tribunal é uma insti tuição que pertence e em certo sentido define o Estado É com isso em mente que devemos abordar a discussão notoriamente controversa de justiça natural ou direito natural tophysei dikaiort realizada no Livro V da Ética a Nicômaco JW 57113418 355 Segundo Aristóteles a justiça política dividese em o que é justo por natureza e o que o é apenas por lei ou convenção nomos Aristóteles registra a sua discordância com a visão sofistica de que uma vez que todas as coisas justas estão sujeitas a varia ção ou mudança a justiça só existe por convenção em sua opinião embora seja de feto verdade que as coisas justas assim como todas as coisas humanas estão sujeitas a alterações há contudo coisas justas por natureza Infelizmente Aristóteles não dá um único exemplo de algo justo por natureza Contudo fornece algumas pistas im portantes Uma distinção semelhante afirma adaptase bem a outras questões por natureza a mão direita é mais forte porém é possível que qualquer pessoa possa vir a se tornar ambidestra E compara o convencionado como justo a medidas de grãos que variam de Estado para Estado observando que tais coisas não sáo mais iguais em todos os lugares do que o são os regimes políticos mas só há uma constituição que é por natureza a melhor em todos os lugares A interpretação desse trecho tem sofrido forte influência da tentativa por To más de Aquino e pensadores cristãos posteriores de assimilar a visão de Aristóteles à doutrina da lei natural Todavia Aristóteles pouco incentiva a noção de que existem primeiros princípios imutáveis de justiça que servem embora de maneira remota como guia para a prática real Parece sim que Aristóteles concebe a justiça natural menos como um teto do que como um piso menos como uma aspiração do que como uma base a partir da qual almejar A justiça natural parece relacionarse com a melhor 1 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 8 EN 5611342318 f P 1212532939 ordem política do mesmo modo que a destreza se contrapõe à ambidestria ambas sáo condições necessárias porém não suficientes para a excelência O padrão de excelên cia para a sociedade é fornecido de preferência pela constimição que é por natureza a melhor em todos os lugares constituição esta porém que não pode e não deve ser implementada em todos os lugares por causa da variação irredutível das coisas huma nas Aristóteles parece indicar que ao contrário devese buscar a justiça natural nas mais elementares embora igualmente variáveis necessidades do Estado a preservação de seu regime e a observância de suas leis Os comentários seguintes de Aristóteles sobre a relação entre justiça e retidão EN 510 confirmam de certa maneira esta linha de interpretação A justiça sob a forma do que é legalmente justo é insuficiente como diretriz para a prática porque a lei como tal tem uma generalidade que assegura sua insuficiência em vàiias ocorrências A retidão é a virtude que corrige a generalidade defeituosa da lei por meio de cuidadosa atenção às indicações que é evidente afetam de maneira decisiva a justiça do resultado das ações individuais Aristóteles deixa claro que nada disso constitui um argumento contra a necessidade da lei Todavia é certo que leta a questão sobre a justiça sim ples da lei e da obediência às leis O que mais impressiona porém é Aristóteles não fimdamentar a retidão em uma noção de lei maior ou em princípios de justiça natural O exercício da retidão é ao que parece análogo à prudência dos homens políticos ou cidadãos que atuam em um caso específico ou mesmo um aspeao dela Contudo é impossível compreender a extensão total da depreciação da justiça por Aristóteles sem levar em conta a sua atitude em relação à amizade A discussão da amizade nos livros VIII e DC da Ética a Nicômaco é a mais longa elaboração de uma única questão em toda a obra e é uma das caraaerísticas mais distintii dos ensinamentos éticos de Aristóteles Na linguagem de Aristóteles e de seus contemporâneos amizade philid referese a uma gama de fenômenos mais ampla do que os termos equivalentes hoje En globa não só o a p a amigos mas o amor entre marido e esposa o afeto de pais e filhos e o sentimento de solidariedade entre pessoas pertencentes a uma variedade de associações privadas os cidadãos da mesma cidade e em certas circunstâncias seres humanos sim plesmente Aristóteles pode portanto aigumentar de modo plausível que a amizade parece manter unidos os Estados e dirseia que os legisladores têm mais amor à amizade do que à justiça pois aquilo que visam acima de tudo é à unanimidade que tem pontos de semelhança com a amizade e repelem o fàcciosismo como se fbsse o seu maior ini m E quando os homens são amigos não necessitam de justiça ao passo que os justos necessitam também da amizade e considerase que a mais genuína brma de justiça é uma espécie de amizade 08111552228 O significado político da amizade consiste fundamentalmente na atenuação do apego dos homens a seus interesses particulares em favor de uma partilha espontânea dos bens externos com os outros As possessões dos amigos são comuns segundo o provérbio grego Desta forma a amizade passa a ser um potente reforço da comunhão de interesses que constitui a base de todas as associações humanas A r is t ó t e l e s 1 1 9 Contudo suipreende um pouco constatar que a análise de Aristóteles preocupase menos com a amizade em suas formas mais diretamente políticas do que com a amizade em seu sentido mais eleido Para Aristóteles em geral é possível diferenciar a amiza de de acordo com sua principal m otít o a utilidade o prazer ou a virtude A mais perfeita forma de amizade é a amizade entre homens bons baseada na virtude Neste sentido a amizade que engloba o prazer bem como a utilidade alcança a mais perfei ta identificação entre o próprio bem e o bem dos amigos Aristóteles admite que tais amizades são relativamente raras Mas a relevância do fenômeno emeige de uma análise mais ampla de seu argumento Podese dizer que a amizade soludona na medida em que pode ser resolvida no plano da ação política moral a antinomia entre a moralidade entendida como a perfeição da virtude individual e a moralidade entendida como justí ça A respeito do homem magnânimo Aristóteles afirma que deve ser incapaz de íãzer com que sua vida gire em torno de um outro a não ser de um amigo ENAò 112431 251 A amizade proporciona ao homem magnânimo a satisfação de sua necessidade de honra e comunidade sem comprometer seu apo à virtude Dito de outra forma isso demonstra que o modo de vida do cavalheiro não é afinal inerentemente trico P r u d ê n c ia P o l ít ic a e C iê n c ia P o l ít ic a A discussão sobre a justiça no Livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles se encerra com uma exposição acerca da virtude moral propriamente dita Podese dizer que os livros que se seguem são dedicados a vários aspectos da questão da relação entre virtude moral e conhecimento No Livro VI Aristóteles voltase para uma reflexão so bre as virtudes intelectuais sobretudo a prudência ou sabedoria prática No Livro VII recomeçando retoma o problema da ausência de autocontrole ou fiíiqueza moral akrasut ou seja a incapacidade de agir em conformidade com o próprio conheci mento ou a própria escolha moral devido à interferência da paixão Ambas as discus sões complicam retrospectivamente a análise da virtude moral nos livros anteriores e assinalam a insuficiência da virtude moral em si isto é a disposição habitual para a virtude moral como responsável pelo comportamento moral na sociedade A prudência ou sabedoria prática phronèsis é para Aristóteles a virtude própria da porção deliberativa ou calculadora da parte racional da alma Embora a prudência seja uma virtude intelectual é ao mesmo tempo um aspecto integral da ação moral e não pode existir sem a virtude moral Não se deve confundir a prudência com mera esperteza ou astúcia A tarefe da prudência não é assegurar o bem próprio em si mas ao contrário criar meios adequados para assegurar os fins postulados pelas virtudes morais Isso também implica que a prudência não lida apenas ou mesmo primordial mente com universais a principal preocupação da prudência é adaptar os universais refletidos nas virtudes morais às circunstâncias particulares em que a ação moral deve ocorrer Por conseguinte a prudência depende em alto grau da experiência Por essa razão observa Aristóteles os jovens podem tornarse especialistas em matemática ou geometria mas necessariamente feltalhes prudência como resultado de sua limitada experiência de vida EN6578 13 1 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o ii n c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y A discussão de Aristóteles sobre a relação entre a prudência e a experiência política ou sabedoria política é fundamental para nossos fins Apesar de admitir que esteja em parte correta a visão comum de que a prudência se preocupa com o bem do indivíduo Aristóteles afirma que a experiência poiítica é uma forma de prudência Indica que a pru dência do homem político ou estadista tem duas variedades distintas uma prudência ar quitetônica legislativa e uma prudência prática e deliberativa que se preocupa com os detalhes da política do dia a dia esta prudência política assume duas formas delibe rativa e judicial EN6811412333 Assim Aristóteles deixa implícito que o estadista no sentido verdadeiro é aquele que combina a virtude moral com a inteligência prática experiência e conhecimento das caraaerísticas particulares da sua cidade ou povo Entretanto não haveria também um componente mais estritamente intelectual da experiência política Aristóteles retorna a essa questão no final da Ética a Nicômaco Há ao que parece dois tipos de pretendentes ao conhecimento das coisas políticas os verdadeiros praticantes da política e os sofistas que alegam ensinar a arte política To davia os profissionais da política não fidam nem escrevem sobre essas questões e pa recem incapazes de tornar seus próprios filhos ou amigos especialistas em política por conseguinte seu sucesso seria devido a uma capacidade natural e à experiência e não ao conhecimento Os sofistas por sua vez na maior parte nem sabem do que se trata a sabedoria política ou de que assuntos trata pois em caso contrário não a teriam considerado idêntica ou mesmo inferior à retórica nem imaginado ser fácil legislar por meio de colecionar as leis mais famosas EN 1091180288119 Um pouco antes Aristóteles apontara que os discursos que exortam à virtude são por si mesmos in suficientes para induzir os homens ao cavalheirismo somente a combinação da razão e da compulsão representada pela lei pode fornecer uma estrutura adequada para a habituação à ação virtuosa que exige não só na juventude mas ao longo da vida EN 109 117948022 Ao que parece os sofistas superestimam o poder do discurso ou da razão por si sós de alterar o comportamento dos homens O mesmo erro fimda mental se reflete na sua abordagem da legislação Os sofistas acreditam que legislar é fácil porque pensam que a força da lei reside na sua racionalidade ou que as boas leis são adequadas para qualquer cidade do mesmo modo Para Aristóteles pelo contrário a lei só consegue compelir à obediência pelo hábito e o costume só se estabelece de pois de um tempo 72812692022 Mas isso significa que a questão fundamental não são as leis de uma cidade tanto quanto sua cultura ou caráter político duradouros ou acima de tudo a sua composição sociopolítica e a forma de governo ou o que Aristóteles denomina seu regime ou governo civil politeia Consequentemente prossegue Aristóteles nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislação Por isso talvez convenha estudálo nós mesmos assim como a questão da constituição em geral EN 10911811214 A principal contribuição que a ciência política aristotélica pode dar para a prática da política reside portanto na área da legislação É necessário compreender todo o alcance dessa afirmação pois é de fundamental importância para a compreensão da especificidade da Política de Aristóteles O termo legislação não é usado de modo A r is t ó t e l e s 121 impreciso apenas como sinônimo de política Como indicado pela distinção que faz Aristóteles no Livro VI entre prudência legislativa e política a sabedoria política ou experiência política naquele que pode ser denominado seu sentido operacional exige o conhecimento de uma gama de assuntos de relevância política prátíca Em uma passagem da Retórica Aristóteles identifica cinco áreaschave da deliberação política re ceitas e despesas guerra e paz defesa nacional importações e exportações e legislação A respeito da última delas fez a seguinte observação é nas leis que está a salvação da cidade Portanto é indispensável saber quantas são as formas de governo o que convém a cada uma e por que causas próprias de uma forma de governo ou contrárias a ela se corrompem O estadisu precisa ter alguma íàmíliaridade com substituindo as expressões de Aristóteles pela terminologia moderna o comércio as finanças a defesa e a política externa mas em sua essência essa femiliaridade poderia ser adquirida pela experiência Nâo se trata de uma verdade evidente ou não no mesmo grau no caso da legislação ou de modo mais geral das instituições e práticas legais e costumeiras que definem o regime de uma cidade Como a própria Política vai confirmar de modo am plo a ciência política aristotélica é acima de tudo a ciência dos regimes Não fica daro de imediato o motivo por que deve ser assim mas pdo menos é sugerida uma resposta provisória Em primeiro lugar e talvez com mais premência o es tadista é necessariamente uma criatura de um determinado tempo e lugar não importa a extensão de seu conhecimento de outras cidades e outras formas de organização política é ptovávd que este conhecimento seja incompleto e de segunda mão O estadista tende a tomar como pressuposta a namralidade e permanência do regime que existe aqui e agora e não tem sensibilidade suficiente a acontecimentos aparentemente insignificantes que ao longo do tempo possam afetar de modo drástico a composição política de uma cidade e assim sua forma de governo Além disso é provável que o estadista possua ligações não para com sua cidade e r m e quer dizer a um determinado partido ou classe governante que não sejam totalmente racionais A própria ciência política de Aristóteles pressupõe em contrapartida um esmdo comparativo sistemático dos regimes e de sua evolução ao longo do tempo E Aristóteles ocupa uma posição vantajosa que em essência transcende o partidarismo da vida política Em tudo isso podese acrescentar o que parece ser uma deficiência inerente da filosofia o seu distanciamento da cidade é convertido na base para reivindicar a gratidão da cidade A justificação implícita da filosofia por Aristóteles diante do tribunal da cidade lembra a apologia explícita à filosofia empreendida por Platão ou pelo Sócrates pla tônico Tem sido observado com frequência que a afirmação de Aristóteles de que nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislação obviamente não abre uma exceção para o antecessor e mestre de Aristóteles Na verdade a ob servação parece distorcida a menos que se tenha em mente o significado preciso que Aristóteles atribuí ao termo legislação Na breve crítica que fez às Leis de Platão na 1 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Retórica 14 1359n923 10 Consideremos P 571307119 813072938 Política Aristóteles observa que as Leis pouco têm a dizer sobre o caráter real do regime que apresenta como a mais prática ordem política P 26126442651 A questão da natureza e dos tipos de regime está decerto maciçamente presente na República de Platão Mas a preocupação da República é um regime melhor cuja realização Platão admite ser muito improvável ou mesmo impossível enquanto as Leis cuja atenção se volta mais para o que é possível mal tentam analisar as várias cidades e regimes Qualquer que seja o ponto de vista íinal de Aristóteles sobre a íilosoíia política platô nica parece considerála inadequada por não fornecer de forma acessível em geral os conhecimentos mais necessários para a prática do estadista A diferença essencial entre a ciência política aristotélica e a íilosoíia política pla tônica transparece melhor do que em quaisquer outros nos dois primeiros livros da Política É no Livro I que Aristóteles retoma as questões mais íimdamentais ou teóricas sobre a natureza da cidade e do homem no Livro II dispõese a expor as insuficiências de descrições teóricas anteriores do melhor regime entre eles o tratamento platônico do assunto bem como as limitações dos regimes existentes em geral considerados os melhores Aristóteles fez isso porém não para dar maior clareza teórica a essas ques tões mas a fim de remover os mais intransponíveis obstáculos intelectuais para a com preensão adequada dos requisitos da prática política A C id a d e e o H o m e m O início da Political constitui um paralelo muito próximo ao começo da Ética a Nicômaco Visto que toda cidade é um tipo de associação e que toda associação se bima tendo em vista algum bem porque todos os homens sempre agem tendo em vista al que lhes pa rece ser um bem resulta claramente que se todas as associações visam a um certo bem aquela que é a mais alta de todas e engloba todas as demais é precisamente a que visa ao bem mais alto de todos ela é denominada cidade póltíi ou comunidade política A cidade ipólis é uma espécie de parceria associação ou comunidade koinõnid isto é um grupo de pessoas que partilham ou possuem determinadas coisas em co mum Com base na discussão que abre a Ética a Nicômaco Aristóteles parte do princí pio da existência de um único tipo de parceria que tem mais autoridade do que outros e abraça seus fins ou objetivos particulares pois é a identidade do bem autoritário que caraaeriza a parceria política Devese distinguir a visão de Aristóteles da conhecida opinião de que o Estado age como um mero instrumento das várias associações privadas que constituem a sociedade Seria equivocado supor entretanto que para Aristóteles a sociedade em suas diversas manifestações fosse portanto apenas uma A r is t ó t e l e s 1 2 3 11 NT Sempre que possível não contrariando o texto em Inglês as citações da Política são de Aristóteles Política Texto integral Tradução Pedro Ginstantin Toleno 3 ed São Paulo Martins Claret 2001 serva do Estado A própria distinção entre Estado e sociedade é alheia ao modo de pensar aristotélico a cidade não pode ser identificada com o Estado ou uma forma do Estado e a qualidade de autoridade que Aristóteles lhe atribui nada tem a ver com a soberania jurídica que é essencial para a concepção moderna de Estado Pelo con trário tal qualidade deriva no todo da circunstância de que a cidade e só a cidade se preocupa universalmente com o bem humano integral A não identidade entre a cidade e o Estado é ainda mais evidente no que se se gue de imediato Aristóteles passa a criticar a visão desenvolvida nos escritos tanto de Platão como de Xenofonte de que o poder político ou a sabedoria política são essencialmente o mesmo que a sabedoria que está em jogo na monarquia na economia doméstica e no poder de um mestre sobre os escravos A cidade como uma forma de associação humana difere essencialmente não só das associações subpolíticas de pes soas na família mas também do governo de um rei sobre uma tribo ou povo ethnos Aristóteles demonstra pouco interesse em analisar as organizações políticas contem porâneas de sociedades tribais ou impérios ou em distinguilas do governo monár quico entendido como um regime da pólis mas é importante ter em mente a sua exclusão proposital da PoUtica A cidade se distingue da monarquia propriamente dita sobretudo pelo fato de que a cidade é ou tende a ser uma sociedade de seres humanos que são livres e iguais e diferem em espécie isto é caracterizamse por um elevado grau de especialização econômica P 22126122 34 Esta combinação de liberdade política e das artes é a essência da cidade tal como Aristóteles a concebe A confusão que fàz de Platão entre o governo político e outras formas de governo está intimamente relacionada com o que Aristóteles considera outro erro fundamen tal a defesa do comunismo oferecido por Sócrates na República P 225 ambos re velam uma felha em apreciar a diferenciação das pessoas que é característica da cidade À primeira vista uma cidade cujos cidadãos partilham todas as coisas ou as coisas que normalmente causam divisão entre eles parece superior a uma cidade caracterizada por formas menos completas de partilha Todavia argumenta Aristóteles alcançar a unidade por meio da abolição do casamento e da propriedade comum dos bens é ao mesmo tempo impossível e indesejável Longe de reforçar a amizade entre os cidadãos a abolição do casamento seria diluíla eliminando as ligações primárias da família e a comunização da propriedade destruiria o prazer legítimo que os homens sentem pelo que possuem bem como a virtude da liberalidade sem de modo algum eliminar as causas dos conflitos sobre os bens materiais A cidade não pode e não deve procurar replicar a unidade de interesses que caracteriza as relações entre os membros da família e os amigos Ao contrário a cidade em sua diversidade irredutível deve ser feita uma e comum por meio da educação ou por meio da influência combinada de hábitos filosofia e leis P 2512633540 É o cúmulo da ironia da abordagem que fez Aristóteles de Platão que repreenda o autor da República por negligenciar a filo sofia Mas esta observação é ao mesmo tempo jocosa e muito reveladora da intenção 1 2 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 12 Consideremos também a este respeito P 77 de Aristóteles como será mostrado adiante o que está em jogo é algo completamente diverso da filosofia no sentido estrito do termo Na tentativa de elucidar o caráter específico da cidade Aristóteles voltase para uma análise dos elementos que compõem a cidade e do modo como se desenvolvem 12 1252255339 Existem duas formas de associação que compõem a família a relação entre marido e mulher e aquela entre senhores e escravos refletindo respec tivamente as necessidades naturais de reprodução e preservação Que a escravidão representa uma relação natural entre governante e governado é aqui declarado por Aristóteles este ponto de vista será reafirmado em breve de modo mais aprofunda do e devidamente qualificado A família em geral é uma parceria que atende às necessidades da vida diária A primeira forma de parceria que surge para a satisfação de necessidades não diárias é a aldeia o resultado de uma união de várias famílias A cidade é a parceria completa ou perfeita que emerge da união de várias aldeias e a primeira a atingir a autossuficiéncia Embora o impulso que dá origem à cidade não seja aparentemente em sua essência diferente do que leva à formação da família e da aldeia a cidade se mostra fundamentalmente diferente destas parcerias conforme diz Aristóteles embora passe a existir tendo como meta viver existe tendo como meta viver bem Uma vez que as primeiras parcerias são naturais porém a cidade também seria natural e o homem seria por natureza um animal político O famoso dito de Aristóteles de que o homem é por natureza um animal político deve ser entendido no contexto mais amplo de sua defesa da naturalidade da cidade Aristóteles não quer dizer que os homens se engajam continuamente na atividade política ou que gostariam de fiizêlo Pelo contrário enfatiza em outro momento a inclinação que tem a maioria dos homens para atender a seus assuntos particulares P 641318627 e reconhece que em um sentido importante o homem é por natureza um animal mais conjial do que político na medida em que a família é anterior à cidade e mais necessária do que esta e a reprodução é comum ao homem e aos animais O homem é um animal político em primeira instância no sentido de que os seres humanos tal como certos tipos de animais congregamse em toda parte em grupos maiores do que a família e mesmo quando os homens náo precisam de ajuda mútua ainda assim têm o desejo de viver juntos P3612781920 Em outro sentido no entanto o homem é um animal político em um grau muito mais elevado que as abelhas e os outros animais que vivem reunidos pois somente o homem entre os animais possui fala ou razão Como explica Aristóteles a fida ou razão lógos nos dá a capacidade de distinguir o bem do mal o útil do prejudicial o justo do injusto o homem apenas entre os animais é capaz de discernir o bem e o mal o justo e o injusto e outros sentimentos dessa ordem Ora é precisamente a comunicação desses sentimentos o que engendra a família e a cidade P 121253818 É um erro con siderar a cidade como constituída apenas pelo fato de seus membros compartilharem os bens externos a cidade é uma parceria constituída em seu aspecto decisivo pelo Aristóteles 125 13 PV81211621619 cf EE 12422126 compartilhar de determinada percepção do modo certo ou errado de vida O homem é o animal político por excelência porque é um animal racional e moral Aristóteles contrasta a sua visão da natureza da cidade com uma compreensão alter nativa que de modo surpreendente se assemelha à teoria do liberalismo moderno De acordo com esse entendimento a cidade é uma espécie de aliança entre os seus membros para impedir a injustiça e fecilitar a troca econômica sendo as leis uma mera conven ção e em uma frase que Aristóteles atribui ao sofista Licóforo uma garantia de justiça de uns para outros Para Aristóteles por outro lado quem quer que se preocupe com o bom funcionamento de uma cidade deve dar importância devida à virmde e ao vício qualquer cidade merecedora desse nome deve atentar quanto às virtudes de seus cida dãos Para repetir devese entender que a cidade existe para a vida mas náo para que se viva bem com nobreza ou com felicidade P 39128024816 É somente na cidade portanto que o homem realiza seu potencial para a felici dade compreendida como uma vida de ações em conformidade com a virtude e como a cidade é essencial para a realização do potencial namral do homem a própria cidade é eminentemente natural É preciso ser cauteloso porém ao atribuir a Aristóteles qualquer noção ingênua a respeito da cidade como um organismo natural Há em todos os homens uma tendência natural a tal associação observa Aristóteles todavia aquele que a fundou no princípio foi o maior dos benfeitores As cidades náo cres cem simplesmente sáo fundadas por atos descontínuos de homens específicos Isto é assim porque há aspectos da humanidade que resistem à cidade e seus fins Pois o homem quando atinge esse grau de perfeição é o melhor dos animais mas quando está separado da lei e da justiça ele é o pior dentre todos A injustiça armada é a mais perigosa o homem está provido por natureza de armas que devem servir à prudência e à virtude as quais todavia ele pode usar para fins opostos P 1212532937 Como sugere sua referência neste contexto ao potencial único do homem para o canibalismo e o incesto Aristóteles tem plena consciência da capacidade do homem para o mal isto é para violar as restrições sagradas que são reconhecidas como tal Pelo mesmo motivo Aristóteles está atento para a fragilidade da lei e a necessidade de uma mistura de força ou compulsão em toda cidade A defesa que fiiz Aristóteles da naturalidade da cidade deve ser encarada como uma resposta a uma forte opinião contemporânea segundo a qual a cidade é con trária à natureza e repousa em última análise sobre a força Este argumento sofista conhecido acima de tudo pela República e pelo Górgias de Platão encontra seu mais estranho apoio no fenômeno da escravidão Desta forma Aristóteles demonstra particular interesse em combater a ideia de que a escravidão é cabalmente contrária à natureza Em geral seus intérpretes têm dado atenção insuficiente à finalidade retórica da discussão de Aristóteles sobre a escravidão P 157 e às ambigüidades intencionais de seu aimento Aristóteles reconhece que existe tal coisa como a escravidão con vencional ou seja a escravidão originária de conquistas de guerra Quando define o escravo por natureza como alguém tão diferente dos outros homens quanto a alma do corpo ou o homem do animal como alguém que é capaz apenas de trabalho físico e 126 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y que compartilha da razão somente até o ponto necessário para percebêla e obedecer a ela podese apenas concluir com lógica que Aristóteles quer demonstrar que o escravo natural é inferior a um ser humano normal e por conseguinte que a escra vidão como instituição social é em sua essência convencionada Parece confirmar isso a vontade expressa por Aristóteles de que todos os escravos de seu melhor regime tenham a promessa de liberdade como recompensa pelo comportamento cooperativo bem como por sua observação de que a virtude exigida dos escravos é maior do que a requerida de trabalhadores livres Podese acrescentar que o aparente interesse de Aristóteles em fundamentar a escravidão em uma superioridade da virtude do mestre em vez da simples força fàz total sentido como uma estratégia para a humanização das práticas escravistas contemporâneas A C id a d a n ia e o R e g im e No início do Livro III da Política Aristóteles aborda o argumento de nova ma neira e retoma a questão fundamental da natureza dos regimes Principia com uma discussão acerca da natureza da cidadania prosseguindo a partir daí com uma discus são sobre os tipos básicos de regimes as diferenças entre eles e suas diversas reivindica ções à justiça política O tratamento da monarquia e das leis que se segue de imediato aprofunda o tema amplo da natureza do governo político Aristóteles introduz a questão da cidadania como uma forma de compreender a relação entre a cidade e o rm e A identidade da cidade derivase de modo mais óbvio daqueles que são reconhecidos como os seus cidadãos ipoUtat Todavia não fica realmente claro o que qualifica alguém para a cidadania As definições políticas improvisadas em uso corrente tendem a se fundamentar na cidadania dos pais ou dos antepassados de um indivíduo mas tais definições são é óbvio insuficientes quando um grande número de pessoas é acrescentado ou expulso do grupo de cidadãos em tempos de revolução De um modo geral podese definir o cidadão como aquele que toma parte na tomada de decisões ou no governo seja por de fiito ocupar caigos seja por desfrutar do direito de voto em assembléias públicas ou júris Em última análise a cidadania é uma função do regime aqueles que são cidadãos em uma democracia não o são necessariamente em uma oligarquia Desta forma a identidade da cidade é no final das contas determinada pelo tipo de regime que tem e não por fàtores como a geografia ou a nacionalidade Em seguida Aristóteles aborda a questão da relação entre o bom cidadão e o homem bom P 34 A função básica do bom cidadão é a preservação da parceria política contudo uma vez que é o regime que afinal constitui esta parceria a virtude do cidadão é necessariamente relativa ao regime Além disso uma vez que a cidade é constinuda por pessoas que diferem quanto à natureza de suas ocupações a virtude A r i s t ó t e l e s 127 14 71013303133113125b33607 náo é igual para todos os cidadãos Haveria então algum caso em que a virtude do cidadão coincidisse com a virtude do homem cuja bondade não tem restrições A hi pótese considerada é a do bom cidadão que é ao mesmo tempo um governante pois apenas o governante possui a prudência que é necessária à virtude em seu sentido ple no A fim de evitar malentendidos Aristóteles debca claro que os regimes ou tipos de governo que pertencem à cidade são caraaerizados por uma diluição da diferença entre governantes e governados o governo político propriamente dito consiste em cidadãos governarem e serem governados por sua vez e as virtudes necessárias para o governo na cidade em geral são adquiridas por meio da experiência de ser governado Este não é o caso no entanto da virtude da prudência a única virtude inerente ao governante O argumento de Aristóteles parece implicar a existência de uma classe ou tipo de homens políticos que governam em um sentido mais forte ou mais preciso que o cidadão comum e corpo que governa portanto exigem uma formação em prudência que vai além do que está disponível por meio da experiência da vida política comum Um regime é o ordenamento de uma cidade com relação a seus ofícios espe cialmente aquele que tem autoridade em todas as questões P 361278812 Con forme explicita Aristóteles desde o início de sua discussão embora o regime seja em primeira instância uma organização institucional não pode ser entendido de modo correto apenas em termos institucionais O regime reflete realidades políticas mais fundamentais o que tem autoridade na cidade é em toda parte o corpo governante o corpo que governa é o regime Embora esta não seja de forma alguma a palavra final de Aristóteles sobre o tema da relação entre instituições e grupos ou classes é o ponto de partida indispensável para uma compreensão adequada de sua análise e revela uma afinidade importante entre o pensamento de Aristóteles e o marxismo bem como com a sociologia política moderna A análise dos regimes de Aristóteles é apresentada de início de forma esquemáti ca e como fica logo evidente demasiado simplificada Todos os regimes têm como go vernantes uma poucas ou muitas pessoas e seu objetivo é ou o bem comum da cidade como um todo ou o benefício privado dos governantes Há então seis tipos básicos de regime A monarquia é a forma correta de governo de um homem ou monárquica sendo a tirania aquela que se desvia do padrão o governo de poucos assume o feitio ou de aristocracia assim chamada porque governam uns poucos os melhores homens visando ao bem comum ou de oligarquia e o governo dos muitos em seu formato que desvia do padrão é a democracia enquanto a configuração correta é chamada pelo termo comum a todos os regimes governo civil politeia P Aristóteles deixa claro de imediato porém que a base para a distinção entre os regimes não são apenas os números A diferença essencial entre democracia e oligarquia 1 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 NT Dentre as muitas traduções possíveis para o termo optei aqui por governo civil apoUteia entendida como uma forma de governo temperada pela aristocracia e pela democracia levou ao significado de governo civil e civilidade significa higiene limpeza respeito e educação Mantive a mesma tradução sempre com o termo politeia entre parênteses ao lado não é o tamanho do grupo que governa mas ao contrário a riqueza ou a sua ausência a oligarquia é o governo dos ricos que são em geral poucos e a democracia é o governo dos pobres que são em geral a maioria A distinção é fundamental porque se baseia em modos de vida e concepções de justiça política que divergem em sua essência Oligarcas e democratas concordam com o princípio da justiça distributiva que pessoas iguais devem receber coisas iguais mas discordam quanto ao que constitui a igualdade das pessoas Os primeiros acreditam que a desualdade de riqueza justifica o tratamento desigual para todos os últimos que a igualdade na liberdade exe um tratamento igual em todos os aspeaos Notese que os muitos não baseiam sua reivindicação à justiça política apenas em seu status de seres humanos ou homens livres a igualdade embuti da na reivindicação dos democratas reflae uma igualdade de risco na defesa da cidade contra seus inimigos Esta reivindicação à justiça em nome da virtude militar fica particularmente clara no caso do governo civil em que o direito de portar armamento pesado é praticamente o que define o corpo do governo P 37127914 Na verdade seriam acima de tudo as exigências militares da cidade que explicariam a sua tendência a ser uma parceria entre pessoas livres e iguais e explicariam pelo menos em parte sua tendência a se desenvolver no sentido do governo popular P 4131297228 Aristóteles nos lembra que as reivindicações de justiça política por parte dos gru pos que compõem a cidade são julgadas de modo mais apropriado em termos de sua respectiva contribuição para os fins da cidade A dificuldade é que os grupos que de têm maior poder político na cidade os muitos e os poucos ricos têm direitos muito mais fortes pela contribuição para os meios de atingir a felicidade ou a virtude do que para a felicidade ou a virtude em si Significaria isso então que a autoridade da cidade poderia ser reivindicada com justiça pelo elemento respeitável quer dizer por ca valheiros que são criados para a virtude Aristóteles não nega a força da reivindicação desses homens apenas afirma que o governo exclusivo por parte deles privaria todos os demais reclamantes das honras e prerrogativas que consideram serlhes devidas Desta forma Aristóteles parece sugerir que a participação no governo pelos demais recla mantes é uma questão de conveniência e não um direito Logo em seguida no entan to explicita mais detidamente os argumentos a favor da reivindicação dos muitos e com isso demonstra que há um sentido importante em que os muitos são capazes de contestar as reivindicações dos cavalheiros a partir de seus próprios argumentos Ape sar de nenhum dos muitos como indivíduos ser capaz de atingir a total excelência argumenta Aristóteles pode acontecer que a soma das virtudes de espírito e caráter presentes em muitos indivíduos compense a virtude coletiva de uns poucos homens excelentes assim como um jantar para o qual muitos contribuem pode ser melhor do que aquele preparado por uma única pessoa ou obras musicais e poéticas poderem ser julgadas de forma mais confiável por muitos do que por poucos Os exemplos sugerem o caráter incipiente desta defesa e Aristóteles explicita que o argumento não se aplica a toda espécie de multidão ou a participação nos mais altos cargos em que a virtude individual é tão escassa No entanto Aristóteles se esforça para refutar a depreciação caraaerística do platonismo da competência política dos muitos por meio de uma A r is t ó t e l e s 1 2 9 analogia com as artes os muitos são competentes para julgar os efeitos das políticas elaboradas por outros da mesma forma que o usuário de uma casa pode até pretender ser capaz de julgála melhor do que o arquiteto P 311 A defesa circunscrita da democracia ou governo do povo por Aristóteles deve ser entendida no contexto da sua abordagem do problema geral da justiça política Todos os grupos que tipicamente disputam o poder na cidade têm reivindicações à justiça política que são válidas em certa medida todavia porque os homens são maus juizes em causa própria são constantemente tentados a tornar absolutas essas reivindicações em prejuízo das de outros À primeira vista parece não haver maneira fácil de resolver esse conflito entre reivindicações que parecem ser fundamentalmente incomensuráveis No entanto ocorre que podem ser vistas como comensuráveis de determinada maneira Embora pos sa ser impossível decidir se e até que ponto as contribuições da riqueza ou da virtude sáo mais necessárias para a cidade é possível comparar a riqueza dos oligarcas com a riqueza dos cavalheiros os muitos ou um único indivíduo assim como a virtude do cavalheiro pode ser justaposta à virtude dos muitos ou de um homem excepcional Mas o próprio ato de se contemplar a justiça política nesta perspectiva induz à moderação nas reivindi cações de cada grupo pois pode muito bem acontecer que um determinado grupo seja superado em termos de sua própria reivindicação por um outro grupo tomado como um todo ou por vários grupos tomados de forma coletiva ou esteja sujeito a contestação plausível por um de seus próprios membros P 31213 Não se pode afirmar que Aristóteles forneça uma solução teórica para o problema da justiça distributiva De fato não há razão para duvidar que considere o proble ma como algo que seja suscetível de solução no nível teórico Os diversos grupos que constituem a cidade cumprem funções que são igualmente necessárias no sentido de que é impossível atribuir uma prioridade abstrata para um ou outro deles A cidade não pode existir de forma alguma sem corpos para sair em sua defesa náo pode exis tir como uma comunidade civilizada sem o lazer que cria a riqueza e nâo pode existir como uma cidade em sentido pleno sem virtude Nesse sentido todos os gruposchave da cidade têm de feto uma reivindicação absoluta à justiça política Aristóteles procura náo julgar tais reivindicações mas incentivar uma acomodação prática entre elas com base no reconhecimento do valor de reivindicações concorrentes e grupos rivais Uma das características marcantes da análise de Aristóteles sobre a justiça política é a sua ênfese no indivíduo excepcional ou o melhor homem que em importância política parece de feto equivalente a um grupo ou classe Em virtude da sua preocupação de atenuar o conflito entre reivindicações concorrentes ao governo é surpreendente que Aristóteles demonstre simpatia para com a prática democrática do ostracismo político de indivíduos poderosos na verdade chega mesmo a afirmar que o ostracismo nos regimes derivantes atende náo só os interesses privados do governo como também é justo P 31312842325 Embora Aristóteles não o afirme expressamente o motivo parece ser que esses homens representam uma ameaça fundamental para o governo político como tal O que torna ainda mais desconcertante portanto que Aristóteles abra uma exceção para o indivíduo que se destaca na virtude ou cuja virtude é completamente despro 1 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y porcional em relação à contribuição dos demais cidadãos a única justiça para todos é obedecer a esse homem e fãzer dele o rei permanente em sua cidade Após essa observação Aristóteles voltase para uma análise sistemática do assun to da monarquia P 31417 Grande parte dessa discussão é dedicada a um exame da questão de saber se é mais vantajoso ser governado pelo melhor homem ou pelas melhores leis Aristóteles dá um peso total como em seu tratamento de equidade na Ética a Nicômaco à particularidade deficiente da lei O que decide a questão em favor do governo pelas leis no entanto é serem isentas de paixão Poderseia pensar que o melhor homem é por definição alguém em quem a paixão é controlada pela virtude mas não é este a rigor o caso pois as paixões thymos são como bestas e pervertem os governantes ainda que eles sejam os melhores homens observa Aristóteles ecoando um relevante tema platônico 31612873031 Até mesmo os homens de virtude excepcional são falhos como parece devido à influência nociva de uma paixão ou complexo de paixões que aem ao mesmo tempo como uma fonte vital de apoio para a sua virtude Aristóteles assinala mais uma vez embora de modo discreto a relação problemática entre o cavalheirismo em sua forma mais elevada e as necessidades da cidade Parece ser este o pensamento que explica a guinada inesperada que fez afinal o argumento de Aristóteles a alternativa para a monarquia é afinal não tanto o gover no das leis como o governo de vários homens excelentes que no coletivo são menos vulneráveis aos destemperos da paixão quer dizer a aristocracia Embora Aristóteles esteja disposto a reconhecer a monarquia como um regime adequado para determina dos tipos de sociedades estipula que a realeza pertence às eras mais remotas da cidade Quanto à sua hesitação sobre o assunto do ostracismo podese arriscar a sugestão de que reflete a relutância de Aristóteles em validar o princípio de que a excelência moral ou nobreza deve ser inteiramente subordinada às exigências da justiça política As M v ried ad es d e R eg im es A mais completa exposição do programa subjacente à detalhada análise de Aris tóteles das variedades de regimes no restante da Política ocorre no início do Livro IV Aristóteles começa por comparar a ciência de regimes à arte do instrutor de ginásti ca que precisa preocuparse não só com o tipo de treinamento que é melhor para o melhor tipo de compleição física mas também com os tipos que são os melhores ou aceitáveis para uma vasta gama de compleições físicas imperfeitas Da mesma forma é próprio à ciência dos regimes náo só conceber o regime absolutamente melhor mas identificar quais tipos de regimes são melhores para determinados tipos de cidades e o tipo que é ao mesmo tempo o melhor e o mais adequado ou aceitável para a maioria das cidades Afirma Aristóteles que a maioria dos que manifestam opiniões sobre o regime comete um erro ao menosprezar o que é de feto útil o estudo dos regimes me nos perfeitos porém mais acessíveis e concentrar a sua atenção quer em um melhor regime que está além do alcance da maioria das cidades quer em um r m e como o de Esparta que embora mais acessível dificilmente constitui um exemplo típico dos A r is t ó t e l e s 131 regimes existentes Ao contrário quando se propõe alguma constituição devese fazé lo de modo que seja facilmente adotada a partir da que já se encontra estabelecida bem como tenha aplicação geral visto que reformar uma constituição não dá menos trabalho que estabelecer uma desde o início P 41128914 Atentar para a centra lidade do interesse de Aristóteles pela reforma dos regimes existentes é fundamental para compreender sua abordagem global Ao contrário de uma visão comum de que a análise dos regimes existentes na Política IVVI seja motivada por um interesse em classificação científica e seja em seus fundamentos indiferente às questões de hierar quia ou de valor entre os regimes a análise é guiada desde o início pela ideia de que a concretização do melhor regime ou do melhor regime possível embora na verdade deva ser ambicionada com devoção provavelmente ocorrerá por meio de mudanças incrementais na estrutura das leis e ideias políticas existentes e náo por meio da pro mulgação de esquemas utópicos radicais Há um determinado número de regimes lembranos Aristóteles porque há vá rias partes em qualquer cidade As partes mais importantes e universais são a maioria das pessoas e alguns ricos em conseqüência dizse não raro que existem de fato apenas dois tipos de regime democracia e oligarquia Além de ricos e pobres no en tanto algumas cidades possuem um elemento mediano politicamente significativo isto é uma classe média Além disso ricos e pobres estão longe de serem uniformes em sua composição os pobres podem incluir agricultores artesãos e trabalhadores e dentro destes grupos ocupações em particular podem predominar cada um com um estilo de vida muito diverso em suas implicações políticas e divergências semelhantes caracterizam os ricos e os cavalheiros As diferenças no tamanho ou exclusividade do governo o papel atribuído a outros elementos da cidade e a importância relativa das leis em oposição ao governo pessoal também contribuem para a formação de distintos subtipos de regimes Por exemplo Aristóteles reconhece um subtipo da oligarquia ao qual denomina governo dos poderosos dynasteid um regime que se caracteriza pelo governo pessoal de um pequeno número de pessoas abastadas e faz a distinção entre as formas de democracia que repousam sobre o poder político da classe agrícola e do governo das leis e a democracia radical característica de Atenas em sua fase clássica em que as classes trabalhadoras urbanas apoiadas por receitas do Estado governam sem levar em consideração as leis Não somente são de extrema importância política as diferenças entre tais subtipos de regime elas são por vezes maiores em aspectoschave do que as diferenças que separam os próprios tipos de regimes Assim uma democra cia moderada pode ter mais em comum por exemplo com uma oligarquia moderada do que com uma democracia radical Quando se examinam os subtipos de regime as variedades de regime aparecem mais como pontos em uma só seqüência contínua do que como tipos política ou ideologicamente exclusivos Esta é na verdade a intenção central de Aristóteles um pouco de apagamento das fronteiras entre regimes é essen cial para que uma estratégia de reforma incrementai do regime seja bemsucedida Podese reputar Aristóteles com justiça como o criador da noção de regime mis to que viria a exercer uma poderosa influência sobre o pensamento e prática política 1 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y já bem dentro dos tempos modernos É comum discutir a noçáo aristotélica de regime misto no contexto de seu exame do regime a que denomina governo civil politeid A rigor porém o regime misto na Política é menos um tipo de regime específico do que um reflexo da estratégia que informa a abordagem de Aristóteles para a construção e preservação dos regimes em geral A tarefa prática central a que Aristóteles se propõe na Política é temperar se nâo eliminar o conflito político entre ricos e pobres O governo civil politeid que Aristóteles descreve inicialmente como uma mistura de oligarquia e democracia fornece um tipo de solução para este conflito Mas Aristóteles também experimenta com as possibilidades de reforma no âmbito da estrutura da oligarquia ou democracia como tais além disso trata como uma forma de regime misto nâo apenas o governo civil politeid mas a aristocracia em um sentido fraco do termo um regime no qual a virtude é honrada e os cavalheiros desempenham um papel politicamente significativo mas partilham o poder com os ricos e o povo 471293l20 A descrição do governo civil politeiá por Aristóteles como uma mistura de oli garquia e democracia tem como fim alterar o relato inicial do Livro III em que o go verno civil politeid é apresentado simplesmente como a forma correta ou de espírito público da democracia Os governos civis politeia podem tender tanto em direção à democracia quanto em direção à oligarquia os do último tipo sáo em geral denomi nados aristocracias devido a uma confusão comum do modo de vida dos ricos com o modo de vida dos cavalheiros Em todo caso é a característica de um governo civil politeia de boa mistura que se pode falar dele indiferentemente como democracia ou oligarquia assim como o regime espartano é muitas vezes descrito como uma demo cracia tanto como uma oligarquia ou aristocracia e que conta com a lealdade não apenas de uma maioria mas de todos os grupos da cidade P 489 Uma característica dos ensinamentos políticos de Aristóteles e que é de grande interesse do ponto de vista da atual análise política é o papel que atribuem ao ele mento mediano da cidade na intermediação do conflito entre ricos e pobres Náo basta identificar o regime misto em geral como o regime que é melhor ou mais acei tável para a maioria das cidades Dado que o regime é em última análise não apenas uma determinada organização de cargos públicos mas um modo de vida para a cidade como um todo os regimes que tentassem conciliar os interesses de grupos poderosos e dispersos somente pelos meios institucionais seriam é forçoso em algum sentido construtos artificiais e portanto constantemente sujeitos à instabilidade política Po rém e se fosse possível erigir tal regime em torno de um grupo que agiria ele mesmo para superar as diferenças sociopolíticas e ideológicas que alimentam a instabilidade Esta parece ser a concepção subjacente ao notável e inesperado elogio de Aristó teles à classe média e seu potencial papel político P 411 Parece haver uma ligação entre a virtude entendida como o meio entre os extremos e uma condição medíocre ou média em relação às possessões Aqueles que possuem uma quantidade moderada de propriedades tendem mais a se comportar de modo razoável do que os extremamente ricos ou os extremamente pobres os primeiros tendem à insolência e perversidade enquanto os segundos tendem a mesquinharias e maldades os crimes são originados A r is t ó t e l e s 1 3 3 pela insolência e maldade O elemento mediano tende menos tanto a fúrtarse a go vernar quanto a desejar governar sendo ambas as atitudes prejudiciais para as cidades ao mesmo tempo está bem equipado tanto para governar como para ser governado Em contrapartida aqueles que sáo criados no luxo nunca se habituam a serem gover nados enquanto os pobres tendem a ser humildes ou servis em excesso Assim surge uma cidade não de homens livres mas de senhores e escravos uns são invejosos outros prepotentes e nada pode ser mais fetal à amizade e vida comunitária na cidade Tal relação entre ricos e pobres gera um conflito de fecções e impulsiona o regime tanto na direção da oligarquia estrita quanto dada a incompetência dos próprios pobres em governar da tirania Quando é forte o elemento mediano por outro lado o conflito entre facções é reduzido ao mínimo e o regime é mais estável e duradouro É importante examinar esse argumento em sua devida perspectiva Aristóteles admite que a classe média seja pequena em muitas cidades que o seu papel político é muitas vezes circunscrito em vez de reforçado pela luta entre ricos e pobres e que as circunstâncias internacionais em particular a rivalidade entre Atenas e Esparta tendem a desencorajar ainda mais tal papel Além disso seria incorreto supor que Aristóteles encara a classe média como fonte confiável de apoio para a virtude política O filósofo indica de forma clara que o regime que busca não pressupõe a virtude do tipo que está além do alcance dos indivíduos ou a educação que a incutiria o elemento mediano é caracterizado não tanto pela posse da virtude como pela ausên cia de vícios e por circunstâncias externas fevoráveis à aquisição da virtude Parte do motivo para o aparente entusiasmo de Aristóteles pela classe média por outro lado pode muito bem ser o fato de que a considera terreno fértil para um tipo de virtude ou cavalheirismo que é menos ambíguo para o serviço da cidade do que a virtude ou o cavalheirismo do tipo aristocrático convencional O restante do Livro IV e os dois livros seguintes são preenchidos por um exame mais profundo das instituições políticas das causas do conflito entre as fecções stasis e da mudança política ou revolução metabole e os métodos para instituir e preservar regimes Em seu realismo gritante e domínio seguro das preocupações da política do dia a dia essas páginas encontram poucos paralelos na literatura da teoria política ao mesmo tempo enriquecem e aprofundam a análise dos tipos de regime delineados nos livros anteriores De particular interesse é a disposição de Aristóteles para dar conselhos sobre a preservação dos regimes existentes nâo só para os políticos das democracias e oligarquias imperfeitas mas até mesmo para os tiranos P 51011 É testemunho da flexibilidade singular do filósofo da modéstia de suas expectativas da política e de sua confiança nas possibilidades de reforma Embora em nada indique que os sujeitos de um tirano tenham a obrigação moral ou legal de obedecêlo ou de se abster de tentar derrubálo Aristóteles parece aceitar que existem circunstâncias em que não é viável a mudança em regimes deste tipo por conseguinte qualquer suavização dos rigores do govemo do tira no deve depender de convencêlo de que a preservação de seu r m e o exige Também de grande interesse é o esclarecimento que esse material lança sobre a visão aristotélica acerca da psicologia dos homens políticos Apesar da ênfase que dá 1 3 4 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y à base classista dos conflitos políticos é surpreendente que Aristóteles atribua pouca importância ao papel dos motivos econômicos na poUtica Insiste repetidas vezes que a luta entre ricos e pobres é no fundo náo uma disputa sobre a propriedade como tal mas sobre concepções rivais de justiça e tem bastante a dizer sobre o papel muitas ve zes decisivo desempenhado nos conflitos entre as fiicções nas revoluções pelas paixões como a raiva a arrogância o medo o desprezo o amor e a honra Seu tratamento é particularmente revelador da psicologia das elites aristocráticas e oligárquicas e ilustra de modo convincente as conseqüências políticas náo raro dramáticas que podem re sultar da virtude individual ou de sua ausência O M e l h o r R e g im e A análise de regimes empreendida por Aristóteles compreende como se viu náo só uma variedade de regimes imperfeitos mas também o regime que é simplesmente o melhor para o homem Mas que lugar pode ocupar tal r m e em uma ciência cuja ênfiise recai sobre a prática da política Náo seria afinal como muitos supõem a discussão de Aristóteles sobre o melhor regime nos dois últimos livros da Política um tipo de vestígio da sua herança platônica com pouca ligação orgânica aos argumentos dos livros mais práticos da Política ou mesmo da obra como um todo A primeira resposta para a questão da utilidade do melhor regime é que o melhor regime representa nada mais do que uma tentativa de tornar explícitos os pressupostos e escolhas que subjazem a qualquer reforma dos regimes existentes É irrelevante o fato de que o melhor regime pressupõe uma combinação de circunstâncias ou na verdade algo que pode nunca ter de feto existido a única exigência é que respeite as limitações que são inerentes à condição humana O melhor regime assim entendido prevê na verdade não os critérios para julgar a legitimidade dos regimes existentes mas um modelo ou meta para todas as mudanças políticas A dificuldade com essa explicação é que ainda existe em Aristóteles uma disjun ção de modo algum tão acentuada quanto no caso da República de Platão mas ainda assim significativa entre o melhor regime e praticamente todos os outros regimes contemporâneos O melhor regime de Aristóteles baseiase em uma forma de organi zação social e econômica que no mundo grego parece só ter existido em Esparta e em poucos outros liares um rime que compreende uma única classe de cidadãos que desfíntam de completo lazer para a atividade política e militar e uma classe não livre ou semilivre de trabalhadores sícolas Quando Aristóteles aborda a questão geral da justiça política e suas implicações para a reforma do regime porém parece assumir como norma para as cidades um conjunto alentado de cidadãos livres engajados em atividades econômicas Não somente o melhor regime não parece funcionar como modelo para tais cidades podese argumentar que na verdade funciona no sentido inverso questionando a legitimidade da reivindicação política do elemento popular e assim estimulando a negação de seus direitos de cidacia Apesar do feto de que o melhor r m e não é discutido em conexão explícita com a análise esquemática anterior de tipos de rjme testa pouca dúvida de que o melhor A r i s t ó t e l e s 135 regime é entendido por Aristóteles como uma forma de aristocracia Tratase da aris tocracia no sentido forte do termo o gpvemo sem atenuações de um órgão que é de público dedicado à busca da virtude Se parece estranho o silêncio de Aristóteles acerca da organização política do melhor rm e isto ocorre exatamente porque o melhor regi me não se defronta com os conflitos políticos normais que caraaerizam os rimes que consistem em grupos hetercneos de cidadãos livres O problema central do melhor r m e não é ajustar à justiça política reivindicações parciais e incompatíveis mas sim a educação para a virtude que é o que sustenta sua maior reivindicação à justiça política Podese dizer que a discussão sobre o melhor regime nos livros finais da Política atende a dois fins práticos específicos Em primeiro lugar Aristóteles está atento a exemplo de Platão nas Leis às possibilidades oferecidas pela fimdação de novas cida des em áreas remotas do mundo grego É neste contexto que se deve apreciar o exame detalhado que efetua P 7412 de questões como o tamanho da cidade sua situação e planta e as qualidades de seus habitantes Em segundo a análise que faz Aristóteles da educação e do modo de vida dos cidadãos do melhor regime destinase a fornecer orientações práticas para aristocratas ociosos ou aristocratas potenciais nas cidades já existentes No Livro II Aristóteles desdobrase em detalhes para apontar os defeitos do modo de vida das classes aristocráticas nas cidades destacando Esparta e Cartío que têm a reputação de terem o melhor governo O melhor regime dos livros finais da Política destinase acima de tudo a oferecer um modelo alternativo para o estilo de vida aristocrático para aqueles cujas ideias políticas se formaram pelos exemplos dessas sociedades impressionantes porém falhas Um defeito crítico enfatizado por Aristóteles em sua análise de Espana e Cartago é a preocupação de suas classes governantes com a riqueza Em Esparta a riqueza é secretamente desejada apesar do rigor das leis que entre outras coisas proibiam a exploração de ouro e prata por indivíduos em pane porque as próprias leis inad vertidamente promovem grandes diferenças de riqueza devido a acordos imperfeitos relativos à herança de terras em parte por causa de um viés utilitarista na educação espartana Em Cartago por outro lado com suas tradições comerciais a riqueza é aplaudida abertamente e considerada um prérequisito para a ocupação de cargos pú blicos Aristóteles insiste ao contrário que onde a virtude não está no primeiro lugar tal aristocracia não pode ser firmemente estabelecida P21112734ll Contudo a solução proposta por Aristóteles não é apenas uma variação da austeridade espartana Aristóteles decerto rejeita a alternativa empregada em Cartago de uma nobreza cuja fonuna se baseia no comércio em favor de uma nobreza latifundiária do tipo espar tano Como se verifica sobretudo a partir do prolongado exame do ganhar dinheiro ou nócios chrèmatistike no Livro I Aristóteles está convencido de que a eman cipação da atividade econômica das limitações naturais de um modo agrícola de vida ocasionará um perigoso ímpeto aos anseios dos homens por bens externos Ao mesmo tempo porém não vê qualquer mérito na promoção deliberada de pobreza privada ou pública e reconhece plenamente a necessidade do comércio e do dinheiro Apesar de não ser desejável que a melhor cidade seja ela mesma um porto Aristóteles defende 136 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y uma localização próxima ao mar isto não só fiicilita o comércio mas permite o de senvolvimento do poder naval P76 Entretanto qualquer cidade capaz de sustentar uma frota exige sólidos rendimentos Quanto ao papel da riqueza privada Aristóteles indica ser mais desejável uma quantidade moderada de posses enquanto os males associados à riqueza devem ser atenuados pelo incentivo ao uso comum da riqueza por meio da instituição de refeições comuns da reserva de terras para apoio ao erário público e de uma educação para as virtudes da moderação e da liberalidade O breve exame da questão do tamanho da melhor cidade P 74 revela um aspecto característico dos ensinamentos de Aristóteles Na visão comum a melhor cidade é a maior cidade uma visão que parece íundamentarse na preocupação de que a cidade seja do ponto de vista militar o mais forte possível Aristóteles rejeita tal ideia alegando que é impossível que uma cidade grande seja bem governada Tal ocorre em primeiro lugar simplesmente porque é difícil controlar um grande número de pessoas Pois quem poderá ser o dirigente de uma multidão tão vasta e quem será o seu arauto a não ser que seja um Stêntor O mais fundamental porém é que reflete um comprometimento de funções políticas vitais que resulta de uma falta de conhecimento pessoal dos indivíduos tanto o julgamento quanto a distribuição de cargos de acordo com o mérito exigem que os cidadãos estejam familiarizados com as qualidades uns dos outros Aristóteles conclui que o tamanho ideal da cidade pode ser definido como o maior número possível com vistas à autossuficiência e que ao mesmo tempo esteja contida em um único olhar Devido à importância assumida por essa questão na ruptura com a filosofia políti ca clássica iniciada por Maquiavel é essencial que a posição de Aristóteles não seja mal interpretada Como foi visto Aristóteles não é de forma alguma insensível à necessidade fundamentai de segurança para a cidade Mas nega que a segurança possa ser garantida em última análise somente pela expansão os exemplos de Atenas e Esparta são suficien tes para mostrar que é tão provável que o império cause a ruína de uma cidade quanto a fiJta de recursos militares cf P 7141333425 Em todo caso não faltam a uma pequena cidade estratégias eficazes para sua defesa Aristóteles sugere quatro estratégias que muitas vezes podem ser acionadas ao mesmo tempo e que se reforçam mutuamente treinamento excelente de tropas em coragem e habilidades militares fortificações poder naval ostensivo e alianças Estas últimas são partícularmente dignas de nota pois Aris tóteles de fato mantém aberta a possibilidade de que a melhor cidade pode decidir ou ser forçada a assumir um papel hegemônico e político em relação a outras cidades à maneira de Atenas e Esparta em sua fãse préimperial Todavia Aristóteles reluta em atribuir demasiada ênfiise a essa possibilicUde Como será visto adiante isso reflete a consciência da importância central da orientação externa ou política externa da melhor cidade quanto ao modo de vida da cidade como um todo A r is t ó t e l e s 1 3 7 16 NT Stêntor ou Estentor Vocábulo já dicionarizado em português como estentor Sténtor Estentor arauto grego cuja voz valia por cinqüenta pessoa que tem voz muito forte voz muito forte 17 P 7 6 1327406 cf 14133336342 1 38 H ist ó r ia d a F il o so fia Po lít ic a L eo S tra u ss e J o se p h C ro psey E d u c a ç ã o C u lt u r a e o M e l h o r M o d o d e V id a No início do livro VII ao introduzir o tema do melhor regime Aristóteles desvia se para examinar longamente a questão da melhor forma de vida dos indivíduos e das cidades Esta passagem é de fundamental importância para a compreensão não só das finalidades e significado da discussão sobre educação e cultura que conclui a Política tal como a conhecemos mas do caráter político dos ensinamentos de Aristóteles em geral Não fica evidente de imediato o motivo pelo qual Aristóteles regressa a uma questão que se poderia reputar resolvida nos escritos éticos O filósofo começa por reiterar o seu argumento de que a felicidade deve ser identificada com a vida virtuosa ou mais precisamente de virtude e prudência e ação de acordo com estas e afirma que o que é verdadeiro das pessoas também deve ser verdade para a cidade como um todo Parece no entanto que se pode indagar se a felicidade ou virtude da cidade e do indivíduo são idênticas Pois nos diz Aristóteles até mesmo os que pensam que o melhor modo de vida se baseia na virtude sáo forçados a lidar com uma questão a de se a vida em meio aos negócios e assuntos políticos é ou não é mais adequada do que uma vida inteiramente independente de bens externos ou seja de que uma vida contemplativa a qual é defendida por alguns como o único modo digno de existência a de um filósofo e a de um político parecem ter sido preferidas por aqueles que se dedicaram com maior afinco à busca da viitude tanto em nossos dias quanto em outros momentos históricos P7213242532 Há duas questões que exigem atenção neste contexto se o melhor modo de vida é uma participação ativa na vida política da cidade ou ao contrário aquele característico do estrangeiro e qual regime e qual orienução diathesis da cidade devem ser conside rados os melhores Mas é a última pergunta a questão da política externa do melhor regime que ocupa o primeiro plano da discussão de Aristóteles Segundo ele Há quem acredite que embora o despotismo seja a pior das injustiças o simples exercício de um governo constitucional sobre os cidadãos ainda que justo é um grande impedi mento para o bemestar do indivíduo Outros têm uma visão oposta eles acreditam que a verdadeira vida do homem é a vida prática e política e que todas as virtudes podem ser praticadas tão bem pelos políticos e governantes quanto pelos indivíduos Há também aqueles que são da opinião de que um governo arbitrário e tirânico é a única forma de se alcançar a felicidade de íàto em algumas cidades o objetivo de todas as leis e da consti tuição é dar a alguns homens o domínio sobre os seus vizinhos P 721324364 Aristóteles explicita que tem em mente Esparta em especial como o paradigma da cidade voltada para a guerra a conquista e a dominação dos estrangeiros Parece haver duas alternativas para a orientação espartana o não envolvimento nos assuntos de outras cidades ou uma orientação ativa e política envolvendo no extremo um papel de liderança ou político sobre as cidades aliadas Os modos alternativos de participação na vida política por parte dos indivíduos são intimamente paralelos Os indivíduos podem afestarse da política como o estrangeiro ou o filósofo participar da política de forma política por governar e ser governado alternadamente ou tentar exercer o domínio ou um papel tirânico sobre os seus concidadãos Na verdade porém esse paralelismo é um pouco enganador e a discrepância indi ca o problema com o qual Aristóteles mais se preocupa Ninguém considera o domínio ou tirania um modo de vida respeitável dos indivíduos dentro da cidade Mas parece que a maioria das pessoas supóe que não há diferença entre domínio e papel político quando se trata de estrangeiros e aquilo que os homens afirmam ser injusto e incorreto em relação a si mesmos eles não se enveinham de praticar em relação aos demais Esu parece ser a opinião até mesmo daqueles ou de alguns daqueles que acreditam que o modo de vida ativo e político é o único para um homem isto é para o homem que está interessado em realizar ações nobres e ganhar honra Em outras palavras não parece haver uma instabilidade inerente à ideia de governo em si de tal forma que até mesmo os homens respeitáveis tendem a entender que ter autoridade sobre todos é o melhor O impulso para governar desta maneira como é natural procura um escape na dominação de estrangeiros mas também é um perigo sempre presente dentro da própria cidade e atender ao impulso no exterior poderá ter repercussões em casa como demonstra mais uma vez o exemplo de Esparta P 71413332636 A fim de apreciar a lógica de aparência tortuosa do aimento tal como Aristóte les o desenvolve não devemos nos deixar enganar por seu apelo para a vida filosófica A intenção da discussão não é julgar as respeaivas reivindicações dos modos de vida políticos e filosóficos para o indivíduo No décimo livro da Ética a Nicômaco Aristó teles debta claro que o caminho filosófico de vida é superior para aqueles que são ca pazes dele mas não dá qualquer indicação de que esse feto por si só tenha conse qüências políticas No presente contexto Aristóteles está interessado na vida filosófica somente como modelo ou analogia para fenômenos de grande significado político Em particular oferece a alternativa do não envolvimento na vida política por parte dos indivíduos apenas ou principalmente porque esta alternativa é aquela que goza de determinada reputação política Assim como alguns aristocratas fevoreciam uma vida de atividade política outros sustentando que há mais espaço para a ação por parte dos indivíduos em realizar ações virtuosas mantinhamse aíãstados de qualquer envolvimento na política uma postura em especial apreciada entre os aristocratas que viviam em regimes democráticos como Atenas onde demogos competiam pelo apoio popular e era real a ameaça de expropriação judicial É possível imaginar que essas pessoas estivessem bem representadas entre a platéia imediata de Aristóteles Que solução propõe Aristóteles para esse dilema Porque não está disposto a tolerar o afestamento de homens virtuosos da política Aristóteles conclui de maneira formal que o melhor modo de vida tanto para a cidade como para os indivíduos é a vida prática ou ativa Contudo porque tem preocupação igual em moderar a tendên cia inerente na vida política ou nos homens políticos de buscar o governo por si ou A r i s t ó t e l e s 139 18 P 7213244lb2í 0108117968 sem limites comprometese a redefinir a vida prática ou ativa de tal maneira a alte rar em suas bases a orientação da melhor cidade O estilo de vida ativa argumenta agora não é necessariamente em relação a ouuos assim como os pensamentos não são ativos apenas quando são por causa de algum outro resultado pois antes disso uma vida ativa é feita de especulação e contemplação desde que sejam independentes e completos em si mesmos Na verdade também não se deve dizer que as cidades que se acham isoladas das demais e escolham viver assim sejam inativas pelo menos tanto quanto os indivíduos pois de outro modo o deus e o universo inteiro não poderiam estar em boas condições pois eles não tém ações externas para além das que são pró prias de si mesmos 77313251629 Em um momento posterior no Livro VII Aristóteles retorna a esses temas e os refina Os cidadãos do melhor regime devem ser capazes de desincumbirse dos assuntos políticos e ir para a guerra mas é mais importante que sejam capazes de permanecer em paz e usufruir do lazer Pois assim como a guerra existe para o bem da paz assim a ocupação tem como finalidade o lazer o necessário ou útil por bem do nobre Não mais do que a atividade econômica é atividade política ou militar por si só a finalidade da melhor vida os homens se envolvem em política em última análise pela mesma razão pela qual se envolvem em outras atividades práticas a fim de garantir o lazer e as coisas que são usufruídas no lazer A felicidade no verdadeiro sentido não pertence à ocupação mas ao lazer cf EN 1071177415 Assim o melhor rime depende da presença de uma variedade de virtudes Coragem e perseverança são ne cessárias em apoio das atividades da política e da guerra a moderação e a justiça são necessárias tanto na ocupação como no lazer embora sejam particularmente úteis para os momentos de paz e de lazer já que a guerra compele os homens a serem justos e temperantes ao passo que o desfiutar da boa sorte e do lazer que vem com a paz tende a tornálos insolentes Mas como é evidente essas virtudes não são suficientes pois Aristóteles acrescenta que o melhor regime também vai exigir tendo em vista apenas o lazer a filosofia 771513441134 Será que Aristóteles então afinal devolve o regime para citando sua própria crítica das Leis de Platão o governo dos reisfilósofos como esboçado na República de Platão Não é possível sustentar tal conclusão Aristóteles enceta prodigiosos esforços para demonstrar que o melhor modo de vida para os homens em geral é a vida prá tica ou política e não há nada na educação elaborada nos livros finais da PoUtica que possa sugerir que Aristóteles pressuponha uma capacidade para a filosofia no corpo de cidadãos do melhor regime ou de alguma parte dele Na verdade Aristóteles parece ter defendido que não apenas a filosofia não é necessária mas também constitui um impedimento positivo para os reis governantes ao contrário de uma abertura para os conselhos e a persuasão daqueles que genuinamente filosoíãm Não existe qualquer razão para crer que Aristóteles considerasse o governo dos filósofos como uma real pos 140 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 19 Consideremos P 71413332730 20 Aristóteles fr 647 Rose citado em Temístio Omtio 8128 Dindorf sibilidade política Portanto quando fida de filosofia neste contexto o que parece ter em mente náo é a filosofia no sentido de especulação teórica mas em um sentido mais amplo do termo para o qual cultura é uma aproximação aceitável Quando no Livro II Aristóteles critica Platão por confiar em um sistema institucionalizado de comunismo para assegurar a unidade e a felicidade do regime da República e não na educação o que vem a ser hábito filosofia e leis P 2512633740 não esquece que o próprio Platão se baseara na filosofia e não nas instituições em si O que Aris tóteles quer sugerir é que Platão deveria ter confiado menos na filosofia no sentido estrito do que na filosofia em sentido lato A filosofia neste último sentido consiste sobretudo no cultivo da música e da poesia que é característico do lazer Não é possível examinar de modo adequado aqui a complexa e é evidente in completa discussão de educação e cultura de que se ocupa o restante da Política Para entender essa discussão é essencial apreciar o dilema retórico que Aristóteles enfrenta va na tentativa de tornar palatável para seus orgulhosos e intransigentes interlocutores um argumento que poderia parecer meramente sentimental ou pior complacente Ao apresentar a finição ociosa da literatura e das artes como a finalidade da melhor vida Aristóteles tem o cuidado de apelar para as autoridades tradicionais e ressaltar o caráter não utilitarista da atividade em pauta Em uma inspeção mais minuciosa no entanto fica evidente que Aristóteles também quer argumentar a favor de a educação moral ou intelectual não ser totalmente um assunto para os jovens ou de que a fruição culta de homens maduros deve servir ao mesmo tempo como uma espécie de educação para a virtude Seria possível crer que a necessidade de uma educação desse tipo para os aristocratas do melhor regime fosse excluída por definição No entanto nem mesmo os homens miânimos como nos lembra Aristóteles neste contexto iP 77 132878 são plenamente imunes a paixões destrutivas associadas à parte animada da alma e Aristóteles nos dá a entender que a educação para a forma supe rior de virtude a qual denomina prudência pode ter exigências específicas próprias Não é possível fiizer mais do que adudir às indicações que fornece Aristóteles de que o principal veículo da educação assim entendida é uma poesia trágica concebida para efetuar uma catarse das paixões da alma P 8713421015 Neste como em outros aspectos Aristóteles tenta aperfeiçoar os ensinamentos de Platão somente para melhor realizar sua intenção fundamental L e it u r a s A Aristóteles Ética a Nicômaco Livros I IIIV X Aristóteles PoUtica Livros IIV VIL B Aristóteles Ética a Nicômaco Livros II VIDC Aristóteles PoUtica Livros VVI VIII A r i s t ó t e l e s 141 M arco H jlio C ícero 10643 aC Poucos dos que procuraram apresentar um relato sistemático do desenvolvimento da filosofia política atribuíram grande importância ao pensamento político de Cícero Pela tradição é contemplado como membro do grupo dos pensadores gregos e roma nos menos inspirados e menos estimulantes que trilharam a senda de Platão e Aris tóteles Reputado um diletante ao contrário de um verdadeiro estudioso de filosofia em geral seu pensamento é julgado eclético e tido como nâo caracterizado por grande coerência doutrinária ou profundidade de discernimento Suas obras especificamente políticas Da República e Tratado das Leis têm sido avaliadas como pouco mais do que tentativas ambiciosas de justificar os ideais e as práticas de uma ordem aristocrá tica moribunda Acreditase que seu valor para os estudiosos posteriores resida menos no que ele próprio tem a dizer sobre graves questões da filosofia política do que no relato detalhado que oferece das doutrinas das várias escolas filosóficas gregas atuantes em sua própria época e da adaptação dessas doutrinas para o ambiente político e in telectual radicalmente diferente de Roma Supõese que seu talento especial residiu na habilidade com que sintetizou os ensinamentos divergentes e muitas vezes conflitantes dessas escolas assim divulgandoos sob forma agradável ao gosto romano e adequada para satisfazer às demandas da mentalidade prática romana Há um pouco de verdade nessa avaliação Seu equívoco porém está em não dar a devida importância ao método de Cícero ou a seus objetivos quando abordou assuntos filosóficos do modo como o fez sem falar na substância de seu pensamento Assim sendo este julgamento de Cícero não chega a atingir o tipo de compreensão que é essencial para uma análise adequada Como estadista e autêntico estudioso de filosofia Cícero buscou em seus escri tos pôr o seu considerável talento e experiência como professor de retórica a serviço da filosofia a serviço daquilo que sugeriu ser a mais rica mais generosa e mais gloriosa 1 NA Da Repúblka De republica Tratado das Leis De Legibus dádiva dos deuses imortais para a humanidade Sua tarefa tal como a concebia era a introdução da filosofia em Roma Por filosofia não entendia os ensinamentos dog máticos desta ou daquela escola em particular mas um modo de vida Não era tarefa simples A filosofia é sempre vista com desconfiança e desagrado pela maioria dos homens em especial por aqueles cujo gosto tende mais para o prático do que para o especulativo É mais suspeita ainda quando se acreditam estrangeiras suas origens As dificuldades normais que residem em introduzir algo que em todos os momen tos é contrário ao gosto e ao pensamento popular eram agravadas para Cícero pelo fato de serem esses ensinamentos de origem grega Não podemos ignorar que Cícero necessitava agir de modo cauteloso diante das sensibilidades romanas e fornecer uma justificativa convincente para a existência da filosofia em Roma se desejamos avaliar o grau de prudência com que se sentiu compelido a realizar essa tarefa Ao longo de suas obras Cícero declara pertencer ao Ceticismo Acadêmico ser membro da escola filosófica cuja origem reside na Academia Platônica mas que em sua própria época ressaltava como sua tese fundamental a impossibilidade do conhe cimento absoluto O homem enquanto homem afirmavam os Céticos é limitado a opiniões sobre que é mais ou menos provável Embora o homem possa tentar atingir um grau mais elevado de probabilidade por meio da análise tal como fez Sócrates dos méritos relativos de todas as opiniões nunca em qualquer ponto de sua investigação estará seguro da certeza absoluta O homem deve agir se escolher a ação com o enten dimento de que são problemáticos os princípios que regem a sua ação Embora o ceticismo e a suspensão do julgamento final que implica possam ser defendidos pela filosofia se essas opiniões forem levadas a sério e desenvolvidas até suas últimas conseqüências lógicas pela massa dos homens o resultado poderá muito bem ser desastroso do ponto de vista político É possível que não cause grande pertur bação ao teórico a ideia por exemplo de que falta e faltará sempre uma base com pletamente racional ou defensável ao padrão em geral aceito do que vem a ser justo ou injusto No entanto se tal ideia for incutida de modo nítido na mente das massas de tal forma abalará a confiança popular na validade de tal padrão que parecerá insensata uma fiel adesão a ele ou a qualquer tipo de padrão que repouse sobre uma base tão frágil e fundamentos tão arbitrários Tal entendimento pode induzir a um amplo ques tionamento da verdade e mesmo daqueles princípios que são talvez essenciais para a existência da ordem política por exemplo que o bem comum deve ser preferido pelos cidadãos ao invés de seu bem particular M a r c o T ú u o C íc e r o 143 2 Reproduzido com permissão dos editores de The Loeb Classical Library Marcus Tullius Cicero Laws trans C W Keyes Cambridge Mass Harvard University Press 1928 I p 58 Tusculan Disputations trans J E King Loeb Classical Library Cambridge Mass Harvard University Press 1927 I p 18 3 Tusculan Disputations I 15 II 4 IV 56 4 As doutrinas desta escola sâo examinadas em detalhes em E Zeller The Stoics Epicureans and Scep tics London Longmans Green 1870 e Edwyn Bevan Stoics andSceptics Cambridge W Heffer and Sons 1959 Cícero tínha bastante consciência do potencial para efeitos perturbadores que o ceticismo e talvez a própria íilosoíia teriam sobre a cidade ou seja a comunidade política A verdade nua e crua a verdade filosófica poderia abalar os alicerces de uma determinada ordem política Ao contrário de alguns dos membros menos perspicazes de sua escola Cícero não era capaz de encarar de modo tranqüilo esta possibilidade tinha consciência da fundamental dependência da filosofia por parte da cidade e por tanto da necessidade de que a filosofia se desejasse sobreviver se preocupasse com o desenvolvimento de uma ordem política saudável Só dentro de tal ordem é que poderia existir a filosofia O filósofo sendo isso verdadeiro deve ser guiado por uma compreensão das necessidades da cidade e das conseqüências práticas de seus ensina mentos Não deve arriscar o caos que poderia desencadear um exame público siste mático e implacável dos princípios fundamentais e subjacentes a uma determinada ordem até mesmo uma ordem cujos defeitos lhe parecessem tão radicais sem ter refletido um pouco sobre as alternativas Um governo imperfeito um governo que está longe dos melhores pode ser melhor do que a ausência de governo O filósofo deve começar então pela compreensão do que é possível bem como do que é desejável e direcionar seus esforços por sua vez para a melhoria da saúde de uma determinada ordem política e não para sua destruição A decisão de Cícero por utilizar o diálogo como veículo para seus ensinamentos emerge em parte desta reflexão sobre a relação da filosofia com a cidade e em parte de sua preferência como cético e admirador de Platão o homem mais sábio e mais sábio que a Grécia produziu pelo método socrático A decisão foi ditada afir ma em Disputas Tusculanas por um desejo de esconder suas próprias opiniões de poupar os outros do erro e em cada disputa procurar a solução mais provável O diálogo é uma forma que permite a apresentação e análise de opiniões conflitantes Permite que o escritor foque a atenção sobre os méritos relativos das posições a serem analisadas e ao mesmo tempo sugira em vez de revelar o conteúdo e o sentido de seu próprio pensamento A forma do diálogo permite que o escritor oriente a discussão mas impõe ao leitor o ônus de acompanhar a argumentação até o final Cícero também percebeu como Platão antes dele as possibilidades do diálogo como obra de arte uma obra construída de modo a que cada elemento por exemplo o lugar o tempo as ações e feias dos personagens tenha um papel a desempenhar no avan ço da investigação Somente os leitores cuidadosos serão capazes de detectar a relevância desses toques adicionais e por sua vez serão conduzidos a perceber que os ensinamentos salutares que se encontram na superfície e são compreendidos com facilidade até mesmo pelo leitor desatento não são todo o conteúdo dos ensinamentos que são na melhor das hipóteses verdades parciais Por meio do diálogo Cícero busca enfetizar o que é 1 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 Laws II p 39 6 NT Disputas Tusculanas Tusculanae disputationes 1 Tusculan Disputations V 11 8 Paul Friedlander PlatoAn Introduction London Roudedge and Kegan Paul 1958 p 154170 salutar na política enquanto ao mesmo tempo esconde dos olhos de todos exceto dos estudantes mais aplicados aquelas verdades mais abrangentes que podem tornar difícil ou impossível a vida política para a maioria dos homens Procura desta forma cumprir a sua tareíà tanto para com a íilosoíia quanto para com a ordem política A substância dos ensinamentos políticos específicos de Cícero está contida em dois diálogos Da República e Tratado das Leis Cada diálogo pretende registrar uma conversa anterior entre romanos sobre temas políticos Em Da República a conversa que Cícero afirma relatar teria ocorrido durante um feriado romano no ano 129 aC cerca de 70 anos antes de o diálogo ser escrito A conversa tem a duração de três dias e ocorre entre os homens pertencentes ao Círculo de Cipiáo um grupo cujos membros combinavam realizações como estadistas romanos e seu interesse pela filosofia A obra Da República é constituída por seis livros dois dedicados às conversas de cada dia Cícero aparece e portanto fala em seu próprio nome apenas como o autor dos pre fácios anexados aos livros um três e cinco O Tratado das Leis serve como registro de uma conversa muito mais recente com um só dia de duração entre Cícero Quinto seu irmão e Ático um amigo epicurista Acreditase em geral que o Tratado das Leis também contivesse ou deveria conter seis livros mas apenas a parte maior dos três primeiros livros subsistiu tendose perdido o restante do manuscrito O tempo não foi menos cruel com o manuscrito de Da República Com exceção da parte dedicada ao sonho de Cipiáo e várias citações dispersas pelas obras de autores que conheciam o original por exemplo Agostinho o texto de Da República esteve perdido por mais de sete séculos Restavam apenas fragmentos talvez um terço da obra completa quando uma cópia do manuscrito foi descoberta na Biblioteca do Vaticano em 1820 Em vista do caráter fragmentário dos textos tanto de Da República como de Tratado das Leis e em particular do primeiro aspectos relevantes de qual quer relato do pensamento político de Cícero permanecerão provisórios A questão fundamental que Cícero aborda nestas duas obras é aquela que serviu como fio condutor para a filosofia política clássica como um todo Qual é a melhor or dem política Da República o mais filosófico dos dois diálogos dedicase a responder a esta pergunta o Tratado das Leis a esboçar o quadro jurídico e institucional de tal regime A resposta à questão central por óbvio pressupõe algumas ponderações sobre uma série de questões afins embora as reflexões em si possam não estar incluídas nas obras mais populares e consequentemente menos exaustivas Uma das questões relacionadas a do direito do homem à vida é debatida na in trodução do primeiro livro de Da República A pergunta é Qual é a vida superior a ativa ou seja a vida prática ou política a vida do estadista ou a vida contemplativa ou seja a vida filosófica O interesse de Cícero por esta questão não é apenas teórico mas incentivado pela crescente tendência estimulada entre os romanos por alguns filósofos em especial os epicuristas a denegrir a esfera política e se furtar da participa ção em questões políticas Temos de nos libertar argumentara Epicuro da prisão dos negócios e da política A preocupação de Cícero com os destinos da comunidade política ditava que sua introdução para Da República fosse dirigida à meta prática da M a r c o TÚ U O C fcE R o 145 defesa da vida política Com este fim analisa os argumentos comuns a favor da omis são e admitindolhes um grau de verdade sugere que pouco peso pode serlhes atribu ído quando vistos à luz da responsabilidade do indivíduo tanto para com esta cidade e a sua própria natureza e à luz das glórias a serem conquistadas na esfera pública Além disso argumenta é absurdo supor que a virtude possa existir no vácuo a existência da virtude depende inteiramente de seu uso e seu uso mais nobre é o governo do Estado e a realização de feto náo em palavras daquelas coisas com que os filósofos de seus cantos continuamente atordoam nossos ouvidos O homem que ao mesmo tempo descobriu os princípios da virtude e compeliu outros a viver de acordo com eles isto é o estadista deve ser considerado muito su perior mesmo em sabedoria àqueles que talvez especulem sobre tais questões mas se abstenham de qualquer participação direta nos assuntos políticos A posição de Cí cero neste momento parece inequívoca a vida prática é preferível à vida contempla tiva Contudo apesar do fervor com que Cícero expõe esta opinião existem algumas indicações de que não considera o assunto encerrado Seu louvor no prólogo não foi sem reservas a vida do estadista embora digna de louvor e propícia para a íàma não é totalmente feliz nem é escolhida apenas por si mesma Fica logo evidente que a necessidade e um sentimento de dever são o que motivam esta opção O caráter provisório desta primeira opinião é enfatizado pelo fiito de que a ques tão é reaberta de imediato tão logo começa o diálogo em si Solicitado na cena de abertura a dar seu parecer sobre o relato de que um segundo sol tem sido divisado nos céus Cipião o principal personagem do diálogo manifesta sua preferência pelo que denomina a posição socrática em relação a tais assuntos uma posição que evita per guntas especulativas no pressuposto de que são superiores à razão humana ou então sem importância alguma para a vida do homem Em pouco tempo no entanto Cipião é convencido a abandonar essa atitude Reconhece náo só seu próprio interesse em estudos especulativos bem como a relevância imediata talvez mesmo a necessi dade de tais conhecimentos para o homem de ação mas chega a admitir a completa inadequação de sua ênfase anterior em considerações práticas ou mundanas Quem na verdade se poderá julgar mais rico que aquele a quem nada feita do que sua natureza exige ou mais poderoso do que aquele que obtém tudo pelo que se esforça ou mais feliz do que aquele que é liberado de todas as permrbações da mente ou mais segu ro de sua riqueza do que aquele que possui apenas o que como diz o ditado pode levar consigo ao salvarse de um naufrágio Que poder mais ainda que cargo público que reino pode ser preferível ao estado de alguém que despreza todas as possessões humanas consideraas inferiores à sabedoria e jamais medita sobre qualquer assunto que não seja eterno e divino 146 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Reproduzido com permissão dos editores de The Loeb Classical Library Cicero Repuhlic trans C W Keyes Cambridge Mass Harvard University Press 1928 I p 2 10 Ibid I p 15 11 Ibid pl Tanto aqui como ao narrar seu sonho com o qual se encerra a obra Da República Cipião parece deixar poucas dúvidas de sua preferência pela vida filosófica e não pela vida ativa como a vida da excelência humana A vida política indica o sonho é um dever a ser cumprido pelo homem enquanto vive na Terra Poder e glória as recom pensas terrenas que se derramam sobre o estadista as recompensas de que Cícero fãla em termos tão inflamados no prólogo do primeiro livro são vistas como efêmeras e em última análise sem sentido A verdadeira recompensa para os sacrifícios do estadis ta é a recompensa celestial isto é a vida eterna de felicidade e contemplação que lhe é concedida após a morte Mas ainda há outra posição a ser considerada A vida mais desejável sugere Ci pião em outro ponto de Da pública não é nem apenas contemplativa nem apenas ativa mas aquela que representa uma união de experiência na gestão de grandes ne gócios com o estudo e domínio das outras artes ou seja a vida de um estadista cujos horizontes foram ampliados pela filosofia Embora Cícero não deixe de ser ambíguo ao tratar de toda essa questão não há motivo para duvidar de que essa posição inter mediária constitua sua opinião final pois sugerira antes a incompatibilidade potencial entre as duas opçóes A história da Grécia e de Roma fornece alguns exemplos da queles que de fato combinaram as duas com algum grau de sucesso Por que então Cícero introduz esta terceira possibilidade Sua tarefa iniciai é o restabelecimento da primazia da esfera política Esta restau ração é orientada no entanto por uma consciência das limitações da vida política ou ativa Cícero procura transmitir alguma ideia dessas limitações para aqueles entre seus leitores que são filósofos em potencial e assim revelarlhes a supremacia fundamental da vida filosófica Ao mesmo tempo tenta alertálos de que o filósofo apesar dessas limitações deve preocuparse de modo direto ou indireto com o destino da comu nidade política O que é superior do ponto de vista teórico sugere pode ter de ceder algumas vezes ao que é necessário ao que é uma preocupação imediata e urgente para a maioria dos homens Pois na verdade o nosso país náo nos deu berço e educação sem a expectativa de receber de nós em troca algum sustento por assim dizer nem foi apenas para atender à nossa conveniência que nosso país nos concedeu para nosso lazer um refugio seguro e para nossos momentos de repouso um calmo abrigo O filósofo deve estar preparado em certos momentos para abandonar sua pre ocupação com assuntos eternos e divinos e para devotar seus talentos especiais ao serviço da comunidade política A terceira possibilidade é introduzida não apenas para enfatizar essa dupla responsabilidade mas para oferecer um modelo para os muitos cujos talentos ou inclinações não se voltam na direção da vida filosófica mas que no entanto assumirão importantes funções políticas Tais homens fariam bem em procu M a r c o Túuo C í c e r o 147 12 Ibid III p 46 13 Ibid I p 8 rar a vida que mais se assemelha à melhor embora fique necessariamente aquém dela a vida de ação iluminada pela filosofia Somente depois de lançar alguma luz sobre a questão do direito à vida para o homem é que é dada permissão a Laélio um participante que acredita ser o conheci mento teórico impossível ou pelo menos irrelevante para a situação humana para que introduza a questão do melhor regime A discussão subsequente transcorre ao longo de dois ebcos 1 uma tentativa de resolver a questão no discurso isto é investigar a natureza das coisas políticas e portanto a natureza do melhor regime no plano teórico e 2 uma tentativa de ilustrar pela ação usando como exemplo empírico a república romana tal como existira alguns anos antes de seu próprio tempo o que o discurso ou seja a razão vem tentando esclarecer Por vezes a ênfese colocada sobre essa dualidade ensejou a acusação de que a obra de Cícero é pouco mais que uma racionalização de um regime romano anterior Tal entendimento deixa de lado de início sua afirmação explícita de que a investi gação é dirigida à descoberta de princípios políticos de validade universal princípios destinados a promover um inabalável alicerce para os Estados o fortalecimento das cidades e a cura dos males dos povos Elaboramos leis não para o povo roma no em particular afirma em Tratado das Leis mas para todas as nações virtuosas e estáveis A presença ou ausência de um exemplo empírico não afeta a possibilidade de tal investigação Quanto a usar nosso próprio Estado como padtáo fiz assim náo como auxílio para de finir a melhor constituição o que poderia ser feito sem o uso de qualquer padrão mas para demonstrar por meio de exemplos da história real do maior de todos os Estados aquilo que a razão e o discurso se esforçavam para explicitar Aqueles que acusam Cícero de buscar apenas restaurar a constituição republicana de uma era anterior também ignoram a siestão implícita tanto em Da República como no Tratado das Leis de que mesmo quando estava em seu auge a república romana o modelo ficou aquém do ideal revelado no discurso O código de leis de lineado por Cícero no Tratado das Leis o código do melhor Estado revelado no dis curso não é idêntico ao da república romana em qualquer época da sua história Os participantes do Tratado das Leis enfatiza Quinto não estão apenas ensaiando as leis atuais de Roma mas restaurando antigas leis que se perderam ou criando novas Os desvios específicos daquilo que ocorreu na história são os ditados pela razão o modelo supremo para a lei e a justiça A mescla de antigo e novo que daí resulta representa sua tentativa de fàzer uma ponte entre a tendência popular ou préfilosófica de identificar o bom com o antigo isto é o ancestral ou tradicional e a identificação filosófica do 1 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Laws I p 37 15 Laws II p 05 16 Republic II p 66 17 Law sllçò7 bem com o natural ou seja o que é ditado pela razão Ao aplicar a razão sobre o có digo existente em vez de começar de novo Cícero visa preservar um sentido essencial de continuidade com o passado e portanto o sentido de respeito pelo tradicional que via de regra existe na comunidade política Há é claro determinadas razões práticas para o uso de um modelo empírico À investigação de Cícero que é grega tanto em método quanto em conclusões devia ser dado um caráter romano se pretendia ser agradável ao paladar romano Assim sua tarefa fica simplificada e sua demonstração mais convincente se ao invés da sombria comunidade política imaginária com a qual se diz que Platão lidou pode ilustrar a sua compreensão da natureza das coisas políticas com um exemplo concreto e não apenas qualquer exemplo mas o exemplo romano A investigação propriamente dita começa com a enunciação por Cipião das características essenciais de uma comunidade política A comunidade política é assunto do povo Mas um povo não é uma coleção de seres humanos reunidos ao acaso mas um conjunto de grande número de pessoas que estão de acordo no que diz respeito à justiça e a uma parceria para o bem comum Esta associação deixa de ser uma comunidade política quando deixa de ser guia da pelos fins a justiça e o bem comum para os quais existe Cipião afirma que a comunidade política é natural na medida em que é essencial para a concretização de uma vida feliz e virtuosa A comunidade política emerge não como alguns filósofos sugerem por causa de qualquer debilidade da natureza humana mas por causa de um certo espírito social que a natureza implantou no homem Assim não deve o homem atribuirse como virtude sua sociabilidade que é nele intuitiva O homem não é uma criatura solitária ou isolada mas é impulsionado por sua própria natureza a procurar a companhia de seus camaradas O governo da comunidade política não é menos natural pois sem tal organização a existência é impossível para uma família uma cidade uma comunidade política toda a raça humana a natureza e o próprio universo Quando devidamente constituído tal governo será um reflexo do princí pio hierárquico coextensivo com toda a natureza o ser inferior subordinado em cada caso àquele que lhe é superior O caráter da comunidade política é fundamentalmente determinado pelo re gime em relação aos magistrados ou seja pela forma de governo As três formas simples são a monarquia a aristocracia e a democracia A primeira delas o governo de um é caracterizada pela afeição o título de rei é como o de pai para nós a segunda M a r c o T ú l io C íc e r o 1 4 9 18 Republiclp52 19 Ibid I p 39 20 Ibid 21 Laws III p 3 22 Ibid III p 5 23 Republic I p 54 o governo dos melhores pela deliberação ou pela sabedoria a terceira o governo de todos pela liberdade Embora a monarquia seja julgada como a melhor e a democracia a pior das formas simples cada uma das três pode oferecer um governo honrado e até mesmo estável enquanto a injustiça e a ganância não destruírem o vínculo original da associação Infelizmente cada uma das formas mais simples contém dentro de si não só alguns defeitos mas até mesmo ás sementes da sua própria destruição Nas monarquias os súditos têm uma panidpaçáo muito pequena na administração da justiça e na deliberação nas aristocracias as massas dificilmente podem ter sua parcela de liberdade uma vez que são completamente excluídas das deliberações para o bem co mum e do poder e quando todo o poder está nas mãos do povo muito embora o exerça com justiça e moderação todavia a igualdade que daí resulta é injusta em si uma vez que não permite distinções em hierarquia Diante de cada um se dispõe sua contrapartida deturpada a tirania a oligarquia o governo da multidão desorganizada e a história serve como registro da tendência inevitável de cada um deles degenerar transformandose em seu oposto e este por sua vez ser substituído em algum momento futuro por ainda uma outra forma Assim o poder legislativo do Estado como uma bola é arrancado dos reis pelos tiranos dos tiranos pelos aristocratas ou pelo povo e deste novamente por uma facção oligárqui ca ou um tirano de modo que nenhuma forma de governo singular jamais se mantém por muito tempo Embora seja duvidoso que nem mesmo o estadista iluminado possa interrom per este movimento natural e curso circular de forma permanente é possível que consiga ao menos atrasar esse movimento Tal possibilidade reside na criação de um regime moderado e equilibrado um regime que incorpore uma mistura judiciosa das instituições e dos princípios de cada um dos regimes simples e apresente por sua vez um equilíbrio de direitos deveres e funções O pensamento de Cícero a respeito desta questão fora previsto por vários autores anteriores inclusive Platão e Aristóteles mas seu guia mais próximo na questão do regime misto foi o historiador grego Políbio 205123 aC Este buscando uma explicação para a expansão extremamente rápida quase sem precedentes do poder romano sugeriu que a explicação estava no caráter misto da constituição romana uma mistura tão bemsucedida que seria impossível até mesmo para um nativo determinar com certeza se o sistema como um todo era aristocrático democrático ou monárquico 1 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 24 Ibid I p 43 25 Ibid I p 68 26 Ibid I p 69 II p 5769 27 Polybius The Histories trans W R Paton Loeb Classical Libraiy Cambrice Mass Harvard University Press 1927 VI IIII Pois se fixássemos os olhos sobre o poder dos cônsules a constituição pareceria total mente monárquica e real se sobre o do Senado pareceria novamente ser aristocrática e quando voltássemos os olhos para o poder das massas pareceria nitidamente ser uma democracia A constituição mista tornou possível evitar os defeitos inerentes a cada uma das formas simples Impedia uma concentração excessiva de poder e fornecia um sistema de freios e contrapesos Dentro desse quadro sugeriu Cícero os magistrados têm poder suficiente os conselhos de cidadãos eminentes bastante influência e o povo liberdade suficiente Se analisado com cuidado no entanto o regime misto revela ser em seus aspec tos mais importantes uma aristocracia A organização é planejada de modo a garantir que a aristocracia e portanto o elemento de sabedoria ou deliberação assuma o papel decisório Embora certo poder deva ser atribuído ao povo esperase que a verdadeira autoridade permaneça com o Senado pois a liberdade deve ser concedida de tal ma neira que as pessoas sejam induzidas por muitos dispositivos excelentes a cederem diante da autoridade dos nobres O sucesso desta constituição equilibrada e har moniosa repousa em grande medida sobre a existência de uma aristocracia que possua as qualidades particulares descritas por Cícero no Tratado das Leis A aristocracia suge re ali deve ser livre de desonra e um modelo para os demais cidadãos O exemplo oferecido por esta ordem é decisivo para a saúde total da comunidade política Pois não é tão pernicioso que os homens de elevada posição íãçam o mal embora isso seja ruim suficiente por si só tal como terem tais homens tantos imitadores Pois se voltarmos nossos pensamentos para os primórdios de nossa história veremos que o ca ráter de nossos homens mais proeminentes se reproduziu em todo o Estado qualquer mudança que ocorreu na vida dos homens proeminentes também ocorreu na de todo o povo Se for permitido que degenere a qualidade da aristocracia será extremamente im provável que o regime sobreviva por longo tempo Decerto se revelará incapaz dada tal deterioração de alcançar o fim para o qual existe o cultivo da virtude dos cidadãos Esta exposição dos princípios teóricos subjacentes ao regime misto é seguida pelo relato de Cipião sobre o desenvolvimento e composição interna da república romana antiga o exemplo prático que prometera antes Fica armado o palco para este tratamento histórico por meio da referência feita por Cipião no início do debate a uma declaração feita uma vez por Catão Este último notável estadista romano de M a r c o Túuo Q c e r o 1 51 28 Ib id Y lp n n 29 RepubUc II p 5758 30 Lam II p 30 III p 2425 2838 31 Ibid III p 25 32 Ibid m p 30 33 Ibidm pò uma era anterior atribuíra a superioridade da república ao fato de ser esta baseada no gênio nâo de um homem mas de muitos fundada náo em uma geração mas em um período longo de vários séculos e muitas eras humanas Repousava na sabedoria e experiência coletivas de muitas gerações de homens Suas instituições e práticas de monstraram seu valor passando pela mais rigorosa prova prática o teste do tempo De imediato a tese de Catão remete àquela proposta em data muito posterior pelo estadista inglês Edmund Burke A superioridade da Constituição Britânica a l i mentaria Burke reside no fato de não ser o produto de preparação ou planejamento consciente Nâo se formou a partir de um plano regular ou com qualquer unidade de projeto mas se desenvolveu durante um grande período de tempo e por uma grande variedade de acidentes as partes gradualmente quase imperceptivelmente acomodaramse umas às outras Sua perfeição representa o culminar de um processo natural um processo de crescimento lento contínuo e quase inconsciente A interpretação de Burke representa um afestamento radical da posição dos pen sadores clássicos Esses últimos tomavam como certo que o melhor regime seria o pro duto da razão e do planejamento consciente Há evidências de que o próprio Cícero esteja mais próximo dos clássicos do que de Burke neste assunto A diferença básica entre Cícero e os pensadores gregos anteriores não parece brotar de uma discordância em relação ao princípio a superioridade do planejamento sobre o acaso mas de uma discordância em relação à questão de saber se é mais provável que o melhor plano resulte dos esforços de um único homem sábio ou de uma série de homens sábios Cícero não se limitou a rejeitar a possibilidade de que o melhor Estado poderia ser o produto da sabedoria de um único fundador Concorda com Políbio quanto às reali zações de Licurgo legislador espartano e é neste tom que conclui seu relato sobre as contribuições de Rômulo para o desenvolvimento da ordem romana madura Não percebeis pois que pela sabedoria de um só homem um novo povo não foi sim plesmente trazido à vida e depois desamparado como um bebê chorando no berço mas foi abandonado já adulto e quase na maturidade da idade adulta Mas são raros os homens de tão eminente sabedoria É mais sensato fazer planos tomando por base o que é mais provável É mais provável que haja uma série de ho mens de relativa capacidade podendose esperar que cada um deles aplique algumas das lições da experiência na tarefe de aprimorar o regime passo a passo O relato histórico em si merece exame cuidadoso pois não parece isento de ironia A história asseguranos Cícero em Tratado das Leis distinguese da poesia por suas referências à verdade em vez de à fantasia Há várias sugestões em todo o Da Re pública de que o relato de Cipião sobre as origens romanas fique aquém desse padrão 1 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 34 Republic II p 2 35 The Works o f Edmund Burke London Bohns Standard Dbrary II p 554 V p 25354 36 Ibid II p 307308 37 Republic II p 21 Somos agraciados em determinado ponto com a narrativa da deificação de Rômulo e somos assegurados de que a narrativa deve ser verdadeira porque foi aceita como tal pelos homens do tempo de Rômulo uma época somos informados de cultura e conhecimento quando os homens eram rápidos no escarnecer e rejeitavam com des prezo aquilo que jamais poderia ter acontecido Em apoio a esta última afirmação Cícero apresenta alguns exemplos dos píncaros intelectuais atingidos pelos homens desta era de cultura e conhecimento Contudo os exemplos referemse apenas ao estado dos conhecimentos na Grécia não são oferecidos exemplos que permitam ao leitor avaliar a presença ou ausência de uma cultura similar em Roma Somos obri gados a tirar nossas próprias conclusões Mais adiante como se para orientar nosso julgamento Cipião referese a esses antepassados supostamente cultos e sábios como simples camponeses e somos informados de que longe de serem céticos acerca de tais lendas estavam dispostos a aceitar a de Rômulo apoiados na autoridade de um cam ponês sem instrução Além disso quando o assunto é abordado por motivo diverso em Tratado das Leis Cícero não hesita em rotular a narrativa como uma fiibula A apresentação de Cipião não pretende ser uma simples narrativa mas almeja proporcionar uma imagem idealizada do passado romano uma mistura judiciosa de fiito e fimtasia Teve como intuito demonstrar aos cidadãos a sabedoria e a justiça das origens romanas para mostrarlhes as bases firmes sobre as quais repousa este exemplo romano do melhor regime A apresentação é em sua essência um exemplo proposital da nobre mentira platônica Embora esteja necessariamente aquém da verdade filo sófica um relato tão salutar da fundação da comunidade política pode ser essencial para a coesão e a própria existência da sociedade política A tarefa do estadista como Cícero gostaria que a compreendêssemos repousa não na completa destruição desses mitos tradicionais embora não filosóficos mas em colocar a verdade parcial que po dem conter a serviço das políticas que a razão lhe informa que favorecem o bem da comunidade política O relato histórico de Cipião também serve para sugerir o sentido provisório em que o regime misto é realmente o melhor regime Seu relato indica que o declínio romano começou de fato com a transformação da monarquia em tirania O regime misto só foi introduzido algum tempo após principiar esse declínio Para Cícero bem como para o pensamento clássico em geral o melhor regime sem restrições é aquele em que a sabedoria tem o direito absoluto de governar o govemo absoluto dos sábios a verdadeira aristocracia e afinal o governo absoluto de um só homem preeminente em sabedoria e virmde a verdadeira monarquia é a forma mais desejável de governo O governo da e pela sabedoria foi possível sob os reis romanos mais antigos mas só foi verdadeiro enquanto a monarquia preservou seu caráter distintivo Seu caráter por sua vez depende da existência de uma sucessão de reis bons e sábios e assim do acaso em vez do planejamento Em vista disso a monarquia na prática demonstra ser o menos estável dos regimes simples aquele que primeiro e mais certamente entrará M a r c o T ú u o C í c e r o 153 38 Ibid II p 19 em decadência e essa forma de governo é a mais exposta a mudanças e transtornos porque os vícios de um só podem bastar para precipitála num funesto abismo e de feto bastariam como enfetiza Cícero apenas os excessos de um único rei Tarquínio para tornar o próprio tímlo de rei odioso para o povo romano O relato de Cipião indica que a constituição excelente estabelecida por Rô mulo e mantida pelos romanos por mais de 200 anos entrou em decadência com essa transformação da monarquia em tirania A história romana subsequente é traçada em termos de uma série de tentativas mais ou menos bemsucedidas de controlar as forças desencadeadas por essa transformação O regime misto aparece como uma das tentati vas feitas para satisfezer a sede popular de liberdade ao mesmo tempo que reconquista um espaço para a sabedoria e a virtude características da realeza Cícero advertenos em Tratado das Leis que a tarefe do estadista é determinar não apenas o que é me lhor mas também o que é necessário Uma prova de sua habilidade política é a medida em que compreende os ditames da necessidade e tem sucesso em funcionar dentro da gama de possibilidades que a necessidade lhe permite Onde é impossível o governo absoluto dos sábios o regime misto permite que estadistas tentem garantir o consentimento popular para o governo da sabedoria e portanto aproximemse da quele melhor que é concebível para a maioria das sociedades O regime misto incorpo ra os atributos daquilo que hoje denominamos Estado de Direito Busca incorporar os preceitos do fundador sábio às leis fundamentais do Estado e em seguida garantir que a subsequente administração ou finalização dessas leis será posta nas mãos daque les que menos provavelmente se desviarão delas e mais provavelmente as executarão de acordo com o espírito que as permeia Em Tratado das Leis Cícero esboça em detalhes os elementos essenciais desse código básico e os atributos da classe governante A força particular de tal regime está em sua relativa estabilidade todavia na me dida em que visa construir uma ponte sobre o abismo entre a sabedoria e a aprovação popular repousa sobre uma base precária Esse regime nem sempre é fecil de alcançar e uma vez alcançado é difícil de manter por muito tempo Mesmo esta sqnda op ção esta tentativa de chegar perto dos que são simplesmente melhores pode não ser possível para todos os povos ou em todos os momentos A partir desta análise do melhor regime a discussão se desloca para um exame da afirmação de que é a injustiça e não a justiça que necessariamente subjaz à condução bemsucedida dos assuntos de qualquer Estado Embora negue crer nesses argumen tos Filão outro Cético Acadêmico consente em apresentar a tese em fevor da injus tiça tal como fora apresentada por Caméades 214129 aC um Acadêmico Cético anterior Sua exposição parte de duas premissas principais 1 a justiça é convencional e não natural 2 a justiça é tolice 154 H i s t ó r i a d a F iijO s o fia P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 39 Ibid I p 65 40 Ibid II p 52 41 Laws III p 26 Se a justiça fosse natural sugere no início de seu argumento então tal como a percepção do homem do que é quente ou frio seria igual para todos os homens sempre e em toda parte Na verdade a concepção do homem do que a justiça implica não só varia de nação para nação mas até mesmo de uma época para outra dentro de uma única cidade A justiça não é natural mas sim o produto da sociedade humana e mais especificamente o produto desta ou daquela sociedade humana Não repousa sobre a natureza mas na utilidade não é desejada por si própria mas apenas com base na ponderação Não tem nenhuma estabilidade seu conteúdo depende apenas das circunstâncias Nasce em grande medida do medo do homem de que sem esses mecanismos ele em sua fraqueza seria sempre exposto às depredações de outros especialmente daqueles mais fortes do que ele A segunda e mais fundamental vertente do argumento apresentado por Filão começa com a aceitação provisória da premissa negada anteriormente existe de feto um entendimento comum entre os homens acerca dos ditames básicos da justiça Observálos fielmente porém é contrário à natureza humana pois é raro serem os ditames da justiça idênticos aos da sabedoria e do interesse próprio A sabedoria nos instiga a aumentar os nossos recursos a multiplicar nossa riqueza am pliar nossos limites a governar sobre tantos súditos quanto possível a desfhitar praze res a enriquecermos a sermos governantes e mestres a justiça por outro lado nos ensina a poupar todos os homens a considerar os interesses de toda a raça humana a dar a cada um o que lhes é devido e náo tocar em propriedades siradas ou públicas ou naquilo que pertence a outros Se isso for verdade a justiça não pode ser simplesmente natural pois não se pode esperar de modo racional que o homem ou a comunidade política escolham um curso de ação que apesar de justo seja ao mesmo tempo o cúmulo da tolice Se Roma decla ra Filão tivesse cumprido as exigências estritas da justiça em cada caso não seria agora um império mas ainda uma aldeia miserável A sabedoria aconselha que é a aparência em vez da substância da justiça que deve ser procurada pois assim tornase possível beneficiarse das vantagens decorrentes de uma reputação de justiça evitando as desgra ças que podem acompanhar um cumprimento demasiado rigoroso de suas exigências A defesa da justiça foi confiada a Laélio o mais velho e mais conservador do grupo Infelizmente só restam fragmentos do pronunciamento de Laélio O mais im portante deles é aquele no qual descreve sua concepção ou seja a concepção estoica da lei natural A verdadeira lei é a razão correta de acordo com a natureza é de aplicação universal imutável e eterna chama ao dever por seus comandos e afesta o delito por suas proibi ções E não impõe em vão seus comandos ou proibições sobre os homens bons embora náo tenha qualquer efeito sobre os ímpios É um pecado tentar alterar esta lei nem é ad missível a tentativa de revogar qualquer parte dela e é impossível abolila integralmente M a r c o T ú u o C íc e r o 1 5 5 42 Republic III p 24 Náo podemos ser libertos de suas obrigações pelo senado ou pelo povo e não precisamos procurar além de nós mesmos por um comentador ou intérprete dela E náo haverá leis diferentes em Roma e em Atenas ou leis diferentes agora e no futuro mas uma lei eterna e imutável será válida para todas as nações e em todos os tempos e haverá um mestre e governante isto é Deus sobre todos nós pois Ele é o autor dessa lei o seu propdor e seu juiz executor Embora essa lei náo seja aplicável ou estritamente exeqüível por qualquer agente humano seus comandos nâo podem ser impunemente ignorados O indivíduo que se desvia deles nega o que há de melhor na sua própria namreza e sofre por sua vez o tormento mental que decorre do autodesprezo e da consciência Tal falha por parte da comunidade política sugere Laélio acabará por resultar em sua ruína À afirmativa de Filão de que os caminhos da justiça e da sabedoria necessariamente divergem Laélio contrapõe a afirmação de que fazer o que é justo será sempre a linha de ação mais sábia e mais compensadora Embora em geral se acredite que a posição defendida por Laélio seja também a de Cícero não há razão para crer que este julgue tanto o moralismo estrito de Laélio quanto aquilo que somos tentados a denominar o maquiavelismo de Filão como fun damentalmente inadequados Apesar de ser muito melhor na prática que o Estado procure ser guiado por rigorosas demandas de justiça e não pela concepção de que tais padrões são arbitrários e sem sentido pode ser impossível até para o melhor dos Estados fazer mais do que se assemelhar aos padrões de perfeita justiça Esta é uma das lições que Cipião buscou ensinar ao oferecer um relato do passado romano no segundo livro de Da República Até mesmo o passado deste regime o regime que Ci pião apresenta como o melhor não era livre de injustiças até mesmo os romanos os mais justos dos homens de acordo com Filão não se furtaram a cometer pilhiens e assassinatos A conclusão de Cícero é basicamente a mesma de Platão é provável que o regime perfeitamente justo esteja fora do alcance das possibilidades humanas Suas exigências são demasiado rigorosas O estadista sábio embora procure ser guiado por tais normas em sua prática começará com o entendimento de que é pouco provável dada a namreza do homem e da comunidade política que possam ou venham a ser totalmente atendidas em qualquer Estado Esta concepção de limitações intrínsecas à vida política percorre grande parte do pensamento de Cícero É mais perceptível em particular nas seções de Tratado das Leis em que explora desta vez em seu próprio nome a questão da justiça e a questão do status e do caráter da lei natural A investigação em Tratado das Leis é estimulada pelo desejo de preparar um código adequado para o regime misto o regime do qual falara em Da República A elaboração da legislação positiva que constituirá tal código pressupõe contudo uma investigação muito mais completa essencialmente filosófica de uma série de outras questões 1 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 43 Ibid III p 33 Porque temos de explicar a natureza da Justiça a qual deve ser procurada na natureza do homem também devemos levar em consideração as leis pelas quais tais Estados devem ser governados então temos de lidar com os atos normativos e decretos de nações que já foram formulados e lastrados por escrito e entre todos estes o direito civil como o chamamos do povo romano não deixará de encontrar um liar O primeiro livro de Tratado das Leis é dedicado a essa investigação que produz pratica mente o mesmo entendimento estoico do homem e do universo que subjaz à posição de Laélio em Da República O homem a criatura natural que possui uma alma racional e partilha a feculdade divina da razão com os deuses existe em um universo racional e ordenado Em virtude desta possessão única a razão é capaz de discernir e adaptarse à ordem racional abrangente Na medida em que conseguir isso enquanto a razão lhe servir de guia e governo o homem realiza a sua natureza no mais alto grau e compartilha tanto a lei como a justiça com os deuses Uma vez que a razão é uma possessão comum a todos os homens esta vida mais elevada a vida de acordo com a natureza é acessível pelo menos em teoria a todos os homens não há nenhum ser humano de qualquer raça que se encontrar um guia não poderá atingir a virtude Os ensinamentos de Cícero em Tratado das Leis portanto parecem estar em harmonia com a posição estoica desenvolvida por Laélio em Da República Permanece uma questão em aberto porém se isso ocorre de fato Os comentários de Cícero sobre a lei natural por exemplo são precedidos em Tratado das Leis pela afirmação de que este não está seguro da sua veracidade embora lhe pareçam normal e geralmente corretas Em outro momento Cícero pede aos membros da sua própria escola os Céticos Acadêmicos que não examinem seu argumento muito de perto pois se ataca rem o que pensamos ter construído tão bem devastáloiam por demais Cícero tem bons motivos pata sua preocupação pois os ensinamentos fundamentalmente estoicos que postula como seus em Tratado das Leis repousam em parte em uma compreensão da providência divina e em uma teleologia antropocêntrica que ele próprio analisara e rejeitara em duas outras obras Da natureza dos deuses e Sobre a adivinhação É razoável sierir que essa aparente incoerência tem raízes no feto de que os ensinamentos em Tratado das Leis dirigemse não aos filósofos mas primordialmente a todos os homens decentes e honrados A tarefe imediata é uma questão prática pro mover um inabalável alicerce para os Estados o fortalecimento das cidades e a cura dos males dos povos M a r c o T ú u o C íc e r o 1 5 7 44 Laws I p 17 45 Para detalhes acerca dos ensinamentos estoicos ver E Vemon Arnold Roman Stoicism Cambrid ge Cambridge University Press 1911 46 Im w s I p 30 47 Ibid I p 19 48 Ibid I p 39 49 NT Da natureza dos deuses De Natura Deorum Sobre a adivinhação De Divinatione 50 Ibid I p 37 Por esse motivo desejo ter especial cuidado para não estabelecer princípios fundamentais que não tenham sido analisados com sabedoria e investigados em profundidade É claro que não posso ter esperança de que sejam universalmente aceitos pois tal é impossível mas procuro a aprovação de todos os que creem que tudo o que é correto e honrado deve ser almejado por si mesmo e que nada se estima como um bem a menos que seja louvável em si mesmo ou pelo menos que nada deve ser concebido como um grande bem se não puder ser devidamente elogiado por si mesmo Os argumentos oferecidos em apoio a esses princípios e em grande medida os próprios princípios sáo selecionados tendo em vista o apelo que teriam para tais homens não apenas ou primordialmente com vistas à certeza teórica Se temos em mente as finalidades de Cícero então passa a ser possível compreender a aceitação sem reservas por parte de Ático em Tratado das Leis dos ensinamentos sobre a teologia e a primazia da religião no Estado É perfeita a correção de Ático na qualidade de ci dadão romano ao consentir com esses ensinamentos politicamente salutares embora como filósofo epicurista não pudesse admitir sua solidez teórica Ático e Cícero com partilham sua visão da importância de tais ensinamentos para um inabalável alicerce para os Estados Os princípios estoicos muito embora insuficientes no plano teórico são de magistral adequação para que se concretize este importante objetivo Um outro indício da posição de Cícero e das graves restrições com que adota a dos estoicos refletese no modo como trata a lei natural Laélio ao defender a tese em favor da justiça não teve dificuldade em conciliar as práticas do passado romano com as rigorosas exigências de justiça incorporadas na lei natural além disso não duvidava de que os preceitos da lei natural fossem plenamente acessíveis a todos O relato histó rico de Cipião deixa poucas dúvidas de que Cícero não partilhava desta visão otimista do passado romano nem como fora sugerido antes aceitava a premissa essencial de tal visão ou seja que as rigorosas exigências da justiça admitem perfeita compatibili dade com as da sociedade civil Enfim não tinha total certeza de que todos sejam de modo igual aptos a atingir uma compreensão total da lei natural e do mesmo modo aptos a serem por ela guiados Embora todos os homens possam em princípio adqui rir a sabedoria e a virtude necessárias para a vida de excelência humana a vida segundo a natureza a vida guiada pela razão plenamente desenvolvida poucos de feto o fazem Poucos encontram o guia de quem Cícero falara antes a maioria sucumbe com facili dade aos maus hábitos e falsas crenças às atrações do prazer e do vício Se assim for então é muito possível que as demandas totais da lei natural sejam incompatíveis com as necessidades e reivindicações da sociedade humana tal como a conhecemos Em Da República por exemplo Cícero sugere que a lei dos sábios ou seja as leis naturais absolutas atribuiriam direitos de propriedade apenas com base na habilidade de usar bem a propriedade Seria impossível implementar tal princípio na sociedade civil tal 51 Ibid 52 A II p 1569 53 Ibid I p 2934 47 54 Republic I p 27 1 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y como ã conhecemos A lição é clara a lei natural absoluta e pura pode não ser aplicável à situação humana normal A lei natural à qual as atividades dos homens e dos Estados em geral se submetem deve ser uma versão diluída desta lei verdadeira uma versão cujos padrões serão necessariamente inferiores Visão semelhante está presente na discussão de Cícero sobre as regras de conduta ou ação pessoal em De Officiis Logo fica claro que o padrão discutido ali é aquele que deve reger a conduta dos não sábios e não do homem sábio Embora adequado para guiar a vida da maioria dos homens é inferior àquele padrão mais elevado o padrão da própria natureza que orienta as ações do homem sábio A definição de lei natural proposta por Cícero em vários pontos de Tratado das Leis também possui este caráter duplo No segundo livro por exemplo fala da lei natural no seguinte tom Observo que é a opinião dos homens mais sábios que as leis não são um produto do pensamento humano nem um decreto dos povos mas algo eterno que governa todo o universo por sua sabedoria em comandar e proibir Assim estão acostumados a dizer que as leis são a mente primordial e última de Deus cuja razão dirige todas as coisas quer por compulsão quer por contenção Por conseguinte as leis que os deuses outorgaram à raça humana foram elogiadas com justiça pois são a razão e a mente de um Itlador sábio aplicadas ao comando e à contenção A lei eterna que rege o universo e existe na mente primordial e última de Deus a lei a que tanto Cícero como Laélio se referiram noutro local como a maior razão inerente à natureza não é simples ou necessariamente idêntica à segunda e inferior forma das leis a razão e a mente de um legislador sábio aplicadas ao comando e à con tenção A última deriva da anterior e nela se baseia mas reflete uma compreensão das normas inferiores que são uma parte necessária da vida política A natureza essencial da comunidade política muitas vezes derrota a razão O legislador e estadista sábio irá assim temperar as exigências da justiça pura e da razão pura como fãz Cícero na composição do código adequado ao seu melhor Estado em Tratado das Leis para que se tornem compatíveis com as exigências da sociedade civil Observese naturalmente que esse entendimento não obriga Cícero a abraçar a posição defendida por Filão que a justiça porquanto suas demandas específicas e substanciais não são sempre e em toda parte as mesmas é arbitrária em seus fundamentos que não é natural mas convencio nal A substância da justiça humana apesar de preocupada com o particular e com o dependente de uma variedade de circunstâncias aleatórias não é para Cícero apenas arbitrária Os padrões permanecem embora sua completa realização dada a natureza do homem e a natureza da sociedade política seja extremamente improvável Conti M a r c o T ú u o C íc e r o 1 5 9 55 NT Dos Deveres De Officiis 56 De Officiis I p 78 III p 1117 57 Laws II p 8 58 Republic III p 33 Laws I p 18 59 RepublU II p 57 nuam a servir como guias para a ação humana e devemos sempre procurar chegar o mais próximo possível delas O Tratado das Leis esclarece a questão do status da vida ativa ou política com que se iniciou a investigação em Da República A investigação de Cícero nesses dois livros é voltada para a compreensão da natureza das coisas políticas Procurou como Pla tão antes dele realizar esta investigação mais ampla pela apresentação da natureza da melhor ordem política Um produto da investigação é a compreensão das limitações intrínsecas à vida política Tanto a razão como a justiça devem de algum modo ser diluídas para atender às necessidades da vida prática ou política Aqueles que estão em posição de optar por um dos dois modos de vida a ativa e a contemplativa devem estar cientes deste fato 1 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y L eitu ra s A Cícero Livros I VI Cícero Tratado das Leis De Legibus Livro I B Cícero Da República De republica Cícero Tratado das Leis De Legibus Cícero Dos Deveres e Officiis Livros I III St A gostinho 354430 Santo Tostinho é o primeiro autor a lidar de forma mais ou menos abrangente com o tema da sociedade civil à luz da nova conjuntura gerada pelo surgimento da re ligião revelada e seu embate com a íilosoíia no mundo grecoromano Qmo romano Agostinho herdou e reformulou para sua época a íilosoíia política inaugurada por Platão e adaptada ao mundo latino por Cícero e como cristão modificou essa filosofia para adequála às exigências da fé Desta forma revelase se não como o criador pelo menos como o mais importante expoente na Antiguidade de uma nova tradição de pensamento político caracterizada por sua tentativa de unificar ou conciliar elementos derivados de duas fontes independentes em sua origem e até então desvinculados a Bíblia e a filosofia dássíca Agostinho escreve em primeiro lugar como teólogo não como filósofo É raro que se refira a si mesmo como filósofo e nunca empreendeu uma abordagem metódica dos fenômenos políticos à luz somente da razão e da experiência Seus princípios mais elevados sáo extraídos não da razão mas da Sagrada Escritura cuja autoridade jamais questiona e que considera como a fonte definitiva da verdade a respeito do homem em geral e do homem político em particular No entanto na medida em que a escolha de sua posição reside em uma análise prévia da alternativa mais relevante essa postura pressupõe uma compreensão da filosofia política ou das coisas políticas tal como se revelam para a razão humana desassistida Quase desde o inicio na investigação de tais questões filosóficas os cristãos ha viam desíhitado de um maior grau de liberdade que seus equivalentes judeus ou mais tarde muçulmanos pois ao contrário tanto do judaísmo quanto do islã as outras duas grandes religiões do mundo ocidental o cristianismo não rejeita a filosofia como algo estranho ou apenas a tolera mas procurou desde cedo angariar seu apoio abrin do espaço para a filosofia dentro dos muros da cristandade onde aquela continuou a prosperar com diferentes graus de aprovação e supervisão eclesiásticas Assim Agos tinho reconhece no homem uma capacidade de conhecimento que precede a fé Esse conhecimento obtido sem o auxílio da revelação divina é a invenção e o reduto cor reto dos filósofos p o s Desde então tal conhecimento foi substituído pela fé como norma suprema e guia da vida a qual no entanto não o anulou ou tornou supérfluo Mesmo após a manifestação final da verdade divina na época do Novo Testamento Deus o autor da Revelação Apocalipse não só não proíbe mas categoricamente impõe o uso da razão para adquirir o conhecimento humano Seria tolice pensar que Deus odeia em nós a própria qualidade com a qual nos elevou acima dos animais O conhecimento obtido dessa forma permanece insuficiente mas é válido em si mesmo e é em última análise determinado por Deus como um auxílio para a fé ostinho comparao aos objetos de ouro e prata sorrateiramente apreendidos e reivindicados como posse legítima pelos israelitas no momento de sua saída do Egito De modo mais específico a filosofia serve à fé tanto em si como na sua relação com os incrédulos A fé complementa a revelação divina por fornecer conhecimento e orientação em áreas nas quais a Revelação Apocalipse se cala ou é incompleta Mesmo em assuntos sobre os quais a Revelação Apocalipse realmente fala a filosofia pode ser utilizada como ferramenta para obter uma compreensão maior da verdade divinamente inspirada assim como o conhecimento humano necessariamente imper feito aponta para a fé como sua concretização assim também a fé busca uma compre ensão mais perfeita de seus próprios princípios por meio do uso da razão Além disso embora o Novo Testamento se preocupe primordialmente com o destino eterno do homem tem muito a dizer sobre a condição de governantes e súditos e em geral sobre o modo como se pede que os homens vivam na cidade pois é por suas ações nesta vida que o homem se torna digno da bemaventurança da vida eterna Uma vez que as esferas do espiritual e do temporal constantemente se cruzam e se chocam uma com a outra tornase necessário correlacionálas e qualquer tentativa de fezêlo pressupõe um conhecimento não só da Revelação Apocalipse mas também da filosofia Afinal uma vez que lida com verdades que sáo em princípio acessíveis a todos os homens a filosofia proporciona um denominador comum que engloba fiéis e infiéis Somente por meio da filosofia é o cristão capaz de tornar a sua posição inteligível para os de fora e se necessário combater com suas próprias armas as objeções que levantam contra ela Assim todas essas objeções são feitas para atender a uma finalidade útil na medida em que incentivam um maior esforço em nome da fé e ajudam a afestar a complacên cia engendrada pela posse tranqüila de uma verdade revelada por Deus Não é de admirar portanto descobrir que apesar de seu declarado caráter teoló gico a obra de Agostinho inclui inúmeras considerações de estrita natureza filosófica Ao se retirar essas considerações de seu contexto natural seria possível reconstruir e explanar de modo metódico aquilo que poderia ser adequadamente considerado como a filosofia política de Agostinho No entanto uma vez que o próprio Agostinho ao contrário de Aquino não encara a filosofia como uma disciplina fechada e em seu próprio domínio independente ou uma vez que não lida de fato com a filosofia e 162 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a s L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Epist 120 p 1 3 cf Sermo 433 p 4 2 DeDoctr Christ II p 6061 cf DeDiv Quaest 83 Qu 532 ConfissóesVU p 9 15 3 Sobre 0 LivreArbítrio I p 2 4 I p 3 6 II p 2 6 Sermo 437 p 9 4 Cf Epist 120 p 1 4 De Gen adLitt I p 41 a teologia cxmo ciências separadas parece preferível respeitar a unidade de seu pen samento e apresentar suas opiniões sobre questões políticas como um todo único e coerente governado por princípios teológicos Agostinho é pelo menos tendo como base os textos existentes o escritor mais co pioso do mundo antigo Seu trabalho mais extenso e sua mais importante obra política é A Cidade de Deus Esta no entanto náo se limita à política nem abarca todos os pen samentos mais pertinentes de Agostinho sobre o assunto Para encontrar uma discussão temática da justiça e do direito é preciso voltarmonos acima de tudo para o tratado Sobre o LivreArbitrio e querendo examinar sua posição sobre a polêmica questão do uso do poder secular a fim de reprimir a heresia para as obras contra os donatistas Devemse também especificar as cartas 91 e 138 dirigidas ao pagão Nectário e a Marcelino res peaivamente que oferecem uma defesa lúcida dos pontos de vista de ystinho sobre o patriotismo e a cidadania Há escusado será dizer inúmeras outras obras em que consi derações de ordem política desempenham um papel significativo embora secundário A natureza em grande parte polêmica dessas obras com raras exceções ditadas pelas circunstâncias de uma controvérsia em andamento com os pagãos e os hereges especialmente maniqueus donatistas e pelagianos por vezes torna difícil sua in terpretação Além disso há evidências de que Agostinho compartilhava com seus antecessores tanto psos como cristãos a visão de que toda a verdade em matéria de momento supremo só pode ser salvaguardada se sua investigação for acompanhada de uma reserva prudente na expressão daquela verdade A dificuldade inerente às mais elevadas verdades impede que possam ser tornadas de fócil acesso a todos de modo indiscriminado Não apenas o erro mas a própria verdade pode ser prejudicial na medida em que nem todos os homens têm disposição igual em relação a ela ou preparação suficiente para recebêla A experiência já ensinara que se a filosofia pu desse ser usada para fortalecer a fé talvez em circunstâncias menos fevoráveis cons tituísse um verdadeiro obstáculo a ela Muitas das principais heresias dos primeiros séculos poderiam ser atribuídas ao feto de os autores heterodoxos terem recorrido de modo bemintencionado porém equivocado às doutrinas filosóficas e havia sempre a possibilidade de que ao reafirmar sua pretensão à supremacia a filosofia mais uma vez se transformasse em um inimigo e um rival da fé A simples presença da filosofia no interior do rebanho constituía uma ameaça latente porém constante à ortodoxia cristã e servia como alerta contra a exposição prematura de mentes jovens ou tolas a seus ensinamentos Quem se atreve a lançarse precipiuda e desordenadamente sobre o estudo dessas questões observa Agostinho não se tornará um estudioso mas um curioso não sábio mas crédulo não prudente mas incrédulo Agostinho tenta evitar esses perigos quando escreve de tal forma que satisfeça à curiosidade legítima do estudante mais digno e mais exigente sem prejuízo para a St A g o s t i n h o 163 Cf A Cidade de Deus VIII p 4 Contm Acad II p 4 10 II p 10 24 III p 7 14 III p 17 38 III p 20 43 Epist 1183 p 16 e 20 1184 p 33 De Ordine II p 5 17 cf ibid I p 1131 fé do leitor menos bem informado ou menos perspicaz para quem uma apresentação não científica do dogma é tudo o que é necessário ou possívelA maior parte de suas principais obras dirigese aos cristãos que buscam um conhecimento mais profimdo da verdade revelada por Deus e aos pagãos interessados que possam encontrar nelas um in centivo adicional para abraçar a fé Podese dizer que essas obras constituem ao mesmo tempo uma defesa filosófica da fé cujo aspecto racional enfetiza e uma defesa teológica da filosofia para a qual fornecem uma justificativa com base na Sagrada Escritura Essas obras exploram as semelhanças e diferenças entre a filosofia e a verdade revelada com a finalidade expressa de estabelecer uma harmonia substancial entre os dois bem como a superioridade final da segunda sobre a primeira Têm como intuito fezer com que o aluno que já avançou no conhecimento da fé adquira maior consciência das implica ções de suas crenças e ao mesmo tempo pelejam para remover qualquer obstáculo que poderia restar no caminho de uma aceitação inteligente da verckde revelada por parte do descrente Em conseqüência discutem abertamente os pontos de concordância real ou potencial entre a filosofia e a Revelação Apocalipse e muitas vezes dão apenas uma pequena indicação daqueles pontos em que a reconciliação é francamente impossível Com este fim fezem uso do que o próprio Agostinho denomina a arte de esconder a verdade Para obter compreensão total exigem que se levem em conta não só as de clarações explícitas do autor sobre determinado assunto mas também as questões que estas declarações suscitam de modo tácito ou implícito Devese acrescentar que en quanto alguns dos primeiros Pais da Igreja como Clemente de Alexandria e Orígenes defenderam o emprego de mentiras nobres no interesse comum Agostinho denuncia todas as mentiras saudáveis ou náo como intrinsecamente más e seguindo um pre cedente que alega ter sido estabelecido por Cristo admite apenas formas indiretas de dissimulaçáo tais como omissões e concisáo no discurso Como é muito cuidadoso ao apontar em seu tratado Contra as Mentiras Ocultar a verdade náo é o mesmo que contar uma mentira Todo mentiroso escreve para esconder a verdade mas nem todo aquele que esconde a verdade é mentiroso pois mui tas vezes escondemos a verdade não só por mentir mas por permanecermos calados É pois admissível que um orador e um expositor ou pregador de verdades eternas ou mes mo quem discute ou opina sobre assimtos temporais referentes à edificação da telião e da piedade ocultem a em um momento opormno que possa parecer aconselhável esconder mas nunca é admissível mentir e portanto ocultar por meio de mentiras Agostinho considerava Platáo como o maior dos filósofos pagáos e como o filóso fo cujo pensamento mais se aproxima do cristianismo Vai ainda mais longe ao falar dele como o filósofo que se teria tornado cristáo se tivesse vivido na era cristá No 1 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 7 Cf DeDoctr Christ IV 9 23 Epist 1371 3 e 5 18 Epist 1181 1 etpassim 8 Épút 11 9 Contra Mend X 23 cf De Mend X 17 10 CACidadedeDeusVmAVm5Vll9 11 Comparar De Vera Relig IV 67 e Contra Acad III 17 37 entanto sua principal fonte de informações sobre a filosofia política de Platão não é o próprio Platão a cujos diálogos tinha apenas acesso limitado mas a versão romana e estoicizada de Cícero daquela filosofia tal como se encontra em suas obras Da Repú blica e Tratado das Leis e em menor medida em algumas outras tais como os tratados Da natureza dos deuses e Sobre a adivinhação Na forma em que se apresenta o pensa mento político de ostinho é portanto mais diretamente ciceroniano do que platô nico em conteúdo e expressão Infelizmente tanto Da República como Tratado das Leis de Cícero chegaram até nós em estado mutilado Dos seis livros que originalmente os compunham menos da metade sobrevive em cada caso Não obstante as dificuldades causadas por esta lacuna é evidente que o pensamento de ostinho difere do de seu mestre pagão em três pontos importantes e intimamente relacionados as noções de virtude de monoteísmo e a dicotomia entre religião e política A N a tu re z a d a S o cie d a d e C iv il V irtu d e C r is tã Versus Pagá O núcleo da doutrina política de Agostinho pode ser considerado como formado por seus ensinamentos sobre a virtude ensinamentos que têm suas raízes tanto na tradi ção filosófica quanto bíblica O homem é por natureza um animal social o único dotado de fàla por meio da qual é capaz de se comunicar com outros homens e participar de diversos tipos de relações com eles É só por meio da associação com seus semelhantes e formando com eles uma comunidade política que o homem atinge a perfeição Mesmo no estado de inocência os homens procurariam a companhia um do outro e cuidariam juntos da meta final da existência humana A virtude que caraaeriza o cidadão como ci dadão e comanda todos os cidadãos para a meta ou bem comum da cidade é a justiça A justiça é a pedra angular da sociedade civil É dela que dependem a unidade e a nobreza de qualquer sociedade humana Ao rular as relações entre os homens preserva a paz o bem comum intrínseco à sociedade e a precondição para todos os outros benefícios que a sociedade proporciona Sem paz a tranqüilidade na ordem nenhuma sociedade pode prosperar nem mesmo sobreviver Citando Cícero com aprovação Agostinho defi ne a sociedade civil ou nação como um conjunto de homens associado por um reco nhecimento comum do direito e por uma comunidade de interesses Explica direito como justiça ao invés de lei e insiste em que nenhuma nação pode ser administrada sem justiça pois onde não há justiça não há direito e viceversa Em tudo isso ostinho segue de perto a tradição clássica e enfàtiza a sua vigo rosa concordância com a Sagrada Escritura Sua principal objeção às preocupações dos filósofos piãos referese não tanto à sua doutrina da naturalidade da sociedade civil e da necessidade de justiça dentro dela quanto à sua incapacidade de produzir uma sociedade justa Os filósofos são os primeiros a admitir que seu modelo da melhor e mais desejável cidade é aquele que tem a sua existência no discurso e nas discussões St A g o s t i n h o 165 12 A Cidade de Deus XIX 13 13 A í X IX 21cfII21 privadas e não apenas aquele que pode ser realizado na ação Indicam a justiça como o estado saudável das cidades mas lhes falta a capacidade de garantir sua consecução É impossível negar que as propostas feitas pelos filósofos pelo bem da sociedade e para o seu aperfeiçoamento merecem os maiores elogios mas como medidas concretas suas propostas fracassam redondamente na medida em que a maldade óbvia e inevitável da maioria dos homens se opõe à implementação dessas propostas na comunidade política em geral O lócus por excelência da justiça é a cidade mas é raro e talvez im possível encontrarse nela a justiça Como admitem os próprios filósofos as cidades reais se caracterizam pela injustiça e não pela justiça A fim de reivindicarlhes o título de cidades no verdadeiro sentido da palavra seria necessário omitir da definição de Cícero qualquer referência à justiça ou à virtude As cidades que existem são conjun tos de seres racionais ligados não por um reconhecimento comum do direito mas por um acordo quanto aos objetos de seu amor independentemente da qualidade desse amor ou da bondade ou maldade de seus objetos Todo o argumento pode ser resumido com precisão da seguinte maneira ao insistir que é eminentemente desejável a justiça humana perfeita e ao mesmo tempo que é impossível na prática a filosofia revela suas próprias limitações inerentes proclama desta forma pelo menos de modo implícito a necessidade de complementar a justiça humana por uma forma superior e mais genuína de justiça É importante observar que a tese contrária à filosofia política nâo procede de premissas reveladas as quais os descrentes teriam toda a liberdade de rejeitar ou de fato de premissas estranhas ao esquema clássico Sua força deriva por inteiro do fato de que recorre diretamente a um princípio inerente ao pensamento dos adversários de Agostinho o qual foram obrigados a aceitar muito embora questionas sem a conclusão que este pretendia tirar dele A crítica que fez Agostinho da tradição clássica assemelhase em muitos aspec tos à dos pensadores políticos do início da era moderna a começar por Maquiavel que também discordava dessa tradição com base em sua ineficácia e impraticabilidade Mas em contraste com Maquiavel e seus seguidores Agostinho não pretende aumen tar a eficácia de seus ensinamentos por meio de uma redução das metas e padrões da atividade humana Na verdade suas próprias demandas são ainda mais rigorosas do que as mais rigorosas exigências dos filósofos pios A filosofia política clássica firacas sou não porque por sua teimosa recusa em levar em conta a natureza tão deplora velmente humana do comportamento do homem exija demais da natureza humana mas porque não conhecia e portanto não poderia aplicar o remédio adequado para a fraqueza congênita do homem Adotando um procedimento que é mais típico de Platão que de Aristóteles que em geral prefere lidar com questões morais em seu próprio nível e sem referências explícitas a seus pressupostos metafísicos Agostinho tenta deduzir as normas do com portamento humano de princípios teóricos ou prémorais Sua ordem moral se enraíza 1 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Cf AÍÍÍ 9134 15 A Cidade de Deus XDC 24 explicitamente em uma ordem natural estabelecida pela razão especulativa A justiça no sentido mais elevado prescreve a ordem correta de todas as coisas de acordo com a razão Essa ordem exige a universal e completa subordinação do menor ao maior tan to dentro do homem como fora dele Existe quando o corpo é governado pela alma quando os apetites inferiores são governados pela razão e quando a própria razão é go vernada por Deus A mesma hierarquia é ou deve ser observada na sociedade como um todo e é encontrada quando os indivíduos virtuosos obedecem a governantes sábios cujas mentes são por sua vez sujeitas à lei divina Essa é a harmonia que teria pre valecido se o homem tivesse perseverado no estado de justiça original Nesse estado os homens se beneficiariam de todas as vantagens da sociedade sem nenhum de seus inconvenientes Não teriam sido submetidos a outros homens contra sua vontade e ao invés de disputar entre si pela posse de bens terrenos partilhariam todas as coisas de forma equitativa em perfeita amizade e liberdade A Sagrada Escritura ensina que essa harmonia foi conturbada pelo pecado Por meio do pecado foram despertados a cobiça e o desejo soberbo do homem de afirmar seu domínio sobre seus semelhantes A economia atual é marcada pela anarquia dos apetites mais baixos do homem e por uma invencível tendência para colocar o interes se próprio egoísta acima do bem comum da sociedade É um estado de permanente re volta que tem sua origem na revolta inicial do homem contra Deus O protótipo dessa revolta é o pecado original o pecado cometido por Adão e transmitido de maneira misteriosa a todos os seus descendentes Como resultado a liberdade que o homem um dia usufruiu na busca do bem deu lugar à opressão e à coerção A coerção é visível na maioria das instituições típicas da sociedade civil tais como a propriedade privada a escravidão e o próprio governo que todos se fiizem necessários e são explicados pela incapacidade atual do homem de viver de acordo com os ditames da razãoA própria existência dessas instimiçóes constitui uma conseqüência e um permanente lembrete da situação caída do homem Nenhuma delas fazia parte do plano original da criação e todas são desejáveis apenas como um meio de inibir a propensão do homem para o mal A posse privada dos bens temporais tanto gratifica como refreia a ganância inata e insaciável do homem Ao excluir os outros homens da posse dos mesmos bens re move as condições externas para aquisição ilimitada e por conseguinte a possibilidade dela mas não cura o desejo interior por ela O mesmo é verdadeiro sobre a escravidão e todas as outras formas de dominação do homem pelo homem Mesmo a sociedade civil tal como a conhecemos é uma punição para o pecado Se pode ser considerada namral o é somente em referência à natureza caída do homem Tal como a proprie dade privada também é determinada por Deus como mais uma forma de controlar seu insaciável desejo de dominação Todo governo é inseparável da coerção e portan to despótico O conjunto da sociedade política tornase punitivo e corretivo em sua natureza e finalidade Seu papel é essencialmente negativo castigar os malfeitores e restringir o mal entre os homens pelo uso da força St A g o s t i n h o 1 6 7 16 Cf A Cidade de Deus XDC 21 Contra Faust Man XXII 27 17 Cf A Cidade de Deus XDC 15 A justíça não é nem a tarefe nem o destino comum do homem caído Mesmo o bem que é proporcional à sua natureza racional lhe escapa em sua maior parte O remédio para essa situação não está entre os recursos próprios da natureza humana A salvação do homem inclusive sua salvação política advém a ele não da filosofia como indicara Platão mas de Deus A graça divina e não a justíça humana constitui o laço entre a sociedade e a verdadeira fonte da felicidade Entretanto por definição essa graça é concedida de forma imerecida pode ser recebida pelo homem mas não é merecida por ele pois os méritos do homem são o próprio efeito e não o princípio da graça concedida No estado atual da humanidade a tarefe de garantir a boa vida recai especificamente sobre a Igreja como instrumento de instituição divina e visível da graça de Deus É extrema a limitação do âmbito da sociedade civil em comparação com o que lhe é atribuído pela filosofia clássica Na melhor das hipóteses a sociedade civil pode por sua ação repressiva manter uma relativa paz entre os homens e desta forma assjurar as condições mínimas em que a Igreja é capaz de exercer a sua missão de ensino e de salvação Por si só é incapaz de conduzir à virtude O veredicto de Agostinho sobre o caráter fimdamentalmente imperfeito da jus tíça humana é corroborado e esclarecido por sua análise das leis no Livro I do tratado Sobre o LivreArbítrio Agostinho começa por distinguir nitidamente entre a lei eterna que é a norma suprema da justiça e a lei temporal ou humana que adapta os princí pios comuns da lei eterna às várias necessidades de cada sociedade em particular A lei eterna é definida de fijrma muito geral como a lei em virtude da qual é justo que todas as coisas sejam perfeitamente ordenadas e se identifica com a vontade ou a sabedoria de Deus que direciona todas as coisas a seu fim apropriado Constitui a fonte univer sal de justiça e retidão e dela se origina o que é justo ou bom em outras leis O próprio Deus imprimiu essa lei na mente humana Todos são capazes de conhecêla e devem obedecêla em todos os momentos É também por força da lei eterna que os bons são recompensados e os maus punidos Finalmente a lei eterna é a mesma sempre e em toda parte e não é sujeita a exceções Ao contrário da lei eterna que é totalmente imutável a lei temporal pode sem injustiça variar de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar Como uma lei é promulgada para o bem comum e é necessariamente uma lei justa pois uma lei que não é justa não é uma lei No entanto uma lei temporal pode diferir das outras leis temporais e até mesmo ser contrária a elas Se por exemplo a maioria dos cidadãos de uma determinada cidade fosse virtuosa e dedicada ao bem público a democracia seria uma exigência da justiça e uma lei que impusesse a escolha dos magistrados dessa cidade pelo povo seria uma lei justa Da mesma forma em uma cidade corrupta seria também uma lei justa aquela que estipulasse que apenas o homem virtuoso e capaz 168 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 18 Epist 137517 19 Sobre o LivreArbitrio I 6 15 20 Ibid 5òcS De Vera Relig XXX 58 21 Sobre o LivreArbítrio I 511 de liderar os demais para a virtude fosse nomeado para os cargos públicos Embora se excluam mutuamente ambas as leis derivam sua justiça da lei eterna segundo a qual é sempre bom que as honras sejam distribuídas para os homens virtuosos e não para os homens ímpios pois nem a compulsão nem o acaso nem qualquer emergência jamais tornarão injusta a distribuição equitativa dos bens dentro da cidade Esta lei tempo ral variável é exatamente o que distingue uma cidade de outra e dá a cada uma a sua unidade e especificidade As cidades e os povos nada mais são do que uma associação de seres hiunanos ligados e vivendo sob uma única lei temporal Se a lei temporal é uma lei justa é também em muitos aspectos uma lei imper feita Sua existência tem por fim primordialmente os virtuosos que por sua própria iniciativa aspiram aos bens eternos e estão sujeitos somente à lei eterna mas visa os imperfeitos que ambicionam os bens temporais e sem com justiça somente quando compelidos a fazêlo por uma lei humana Na medida em que leva em conta como deve as necessidades e reivindicações de homens moralmente inferiores a lei temporal representa um ajuste entre o que é mais desejável em si mesmo e que é possível em qualquer momento dado permitindo males menores com a finalidade única de evitar os males maiores e mais flagrantes Sua eficácia tem origem direta no apego do ho mem aos bens terrenos É apenas porque os homens são escravos desses bens terrenos que a lei tem qualquer poder sobre eles Assim de acordo com a justiça estrita só o homem que usa a riqueza de modo justo tem direito à sua posse No interesse da paz e como uma concessão à fraqueza humana porém as leis temporais sancionam a pro priedade privada dos bens materiais não importa o modo como sejam empregados por seu proprietário Ao mesmo tempo por ameaçar privar os homens injustos dos bens que já possuem como punição por suas transgressões as leis temporais agem co mo um impedimento para mais injustiças e asseguram o que pode ser considerado como uma aproximação à atribuição equitativa dos bens temporais O máximo que se pode dizer em nome da lei temporal é que astutamente se aproveita da perversidade do homem para promover e manter uma justiça limitada na sociedade Basta este motivo para tornála indispensável mas a justiça que personifica não passa de uma imagem ou uma diluição da justiça perfeita Mesmo dentro da sua própria esfera e apesar de seus objetivos limitados a lei temporal muitas vezes não consegue alcançar os fins para os quais foi instituída Em primeiro lugar não é ilógico supor que os homens cometam muitas injustiças que não são detectadas e que portanto ficam impunes Digamos que alguém confiou uma grande quantia de dinheiro a um amigo e faleceu de repente sem ter tido a chance de recuperar seu depósito Partindo do princípio de que ninguém está a par da transação St A g o s t in h o 1 6 9 22 Ibid I 61415 23 Ibid 1716 24 Ibid I 512 25 Ibid I 512 26 Ibid I 15 32 cf Epist 1536 26 Sermo 5024 o que impediria que o depositário se assim o desejasse se apropriasse do dinheiro em vez de devolvêlo ao legítimo herdeiro Em segundo mesmo quando se sabe que foi cometido um crime é freqüente a impossibilidade de identificar o criminoso Sábios e bons juizes com facilidade cometem erros Apesar de todas as suas precauções para garantir uma administração correta da justiça inadvertidamente sentenciam homens inocentes à morte Na esperança de apurar a verdade por vezes recorrem à tortura entretanto é freqüente que a tortura pouco mais faça do que causar sofrimento a pessoas inocentes sem fiivorecer a descoberta dos culpados De maneira dramática também revela até que ponto a justiça humana está envolta em trevas Por último e mais importante a lei temporal apenas prescreve e proíbe atos externos Não se esten de aos motivos ocultos desses atos e se preocupa ainda menos com os atos puramente internos tais como o desejo de cometer homicídio ou adultério Por esse motivo se não por outros não se pode afirmar que inspire a virtude A genuína virtude exige não apenas que se executem atos justos mas que sejam realizados pelo motivo certo Isso implica por parte do praticante um desejo para o bem imposto pela lei Deste modo portanto pressupõe que se tenha renunciado ao fluir desmedido dos bens terrenos e ordenado as paixões de acordo com o bem da razão O mero cumprimento da lei temporal não é garantia de bondade moral pois é possível cumprir a lei e ainda assim r por motivos inteiramente egoístas e utilitários A lei permite por exemplo que se mate um agressor injusto em legítima defesa Por assim fezer tem como meta o bem comum e em si é totalmente isenta de paixão Porém o homem que se aproveita da liberdade que lhe é assim conferida poderia fiicilmente estar satisfazendo um desejo egpísta de viiança pessoal neste caso o seu ato embora externamente justo seria moralmente condenável É verdade que ao exigir atos justos de todos a lei temporal predispõe os homens para a aquisição da virtude Contudo pode ir mais longe Ne cessita desu forma ser complementada por uma lei maior e mais secreta ou seja a lei etema que abrange todos os atos do homem incluindo seus atos internos e que por si só é capaz de produzir a virtude e não apenas o que assim parece Até agora o tratamento que ostinho aplica a toda essa questão é análogo ao do Tratado das Leis de Cícero e possui até muitas semelhanças textuais com ele A pare cença termina no momento em que chegamos à questão da providência divina a qual na mente de Agostinho está intrinsecamente ligada à noção de uma lei eterna A dis tância que separa os dois autores neste aspecto manifestase em parte pela divergência na terminologia que empregam Tanto Cícero como Agostinho distinguem a lei eterna ou natural a partir da lei temporal ou humana contudo enquanto Cícero feia habi tualmente da primeira como a lei natural Agostinho deixa transparecer uma nítida preferência pela expressão lei eterna Esta lei eterna não só indica o que os homens 1 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 27 Cf EninPsaL 572 28 Cf A CidadeáeDeusy3ÍL 6 29 Sobre o Livre Arbítrio I 3 8 30 Ibid I 5 13 devem fezer ou evitar se quiserem ser felizes ou bons mas emite ordens e proibições Deve portanto ser acompanhada de sanções adequadas pois caso contrário seria ine ficaz tanto mais que abarca os atos internos da vontade da qual os outros seres huma nos náo são juizes competentes Como é óbvio a partir da experiência que homens inocentes sofrem muitas vezes de forma injusta e que os crimes dos ímpios nem sempre sâo punidos aqui na Terra não se pode conceber a lei eterna sem uma vida futura na qual são corrigidas as injustiças e é restaurada a perfeita ordem da justiça Fica implícita a existência de um Deus justo previdente e onisciente que recompensa e pune cada um de acordo com seu justo merecimento Sendo eterno e perfeito Deus não está sujeito a mudanças nem no seu ser nem em suas ações Não pode adquirir novos conhecimentos e deve saber com antecedência por assim dizer todas as ações a serem realizadas pelos homens através dos tempos c até mesmo seus mais recônditos pensamentos Esta doutrina de sanções divinas estava eivada desde o início de grandes difi culdades teóricas Se assumirmos que Deus sabe todas as coisas antes que venham a existir seguese necessariamente que os homens agem sempre em conformidade com o conhecimento divino mas nessas condições é difícil compreender como se pode pensar que permaneçam livres Estaríamos portanto defronte de duas alternativas nenhuma delas aceitável do ponto de vista da sociedade política Podese afirmar que os homens sejam livres e negar que Deus tenha qualquer conhecimento dos crimes cometidos contra a lei eterna ou dos atos justos efetuados de acordo com ela porém sendo assim a lei eterna fica sem fiador e portanto privada de qualquer meio pelo qual pudesse efetivamente reprimir potenciais infratores e promover hábitos virtuosos Ou então podese insistir na presciência divina e negar o livrearbítrio mas nesse caso os homens não podem mais ser responsabilizados por seus atos as leis perdem sua razão de ser a exortação passa a ser inútil o enaltecimento e a culpa se revelam in significantes e deixa de haver qualquer justíça na distribuição das recompensas para os bons e castigos para os maus enfim é subvertida toda a economia da vida humana Segundo a interpretação de Agostinho Cícero tentou escapar deste dilema ao professar de público e reservadamente negar a doutrina da presciência divina Na muito pública discussão efetuada no tratado Da natureza dos deuses toma partido do piedoso Lucílio Balbo que defende os deuses contra o ateu Cota que os ataca mas em sua obra menos popular Da adivinhação afirma com aprovação e explana em seu próprio nome a teoria que simula rejeitar no tratado anterior Por meio deste sub terfúgio com habilidade evita minar a crença salutar da multidão em recompensas e castigos divinos sem se comprometer com ensinamentos que os instruídos acreditam serem incompatíveis com a liberdade humana e que em todo caso podem dispensar com facilidade pois não precisam de tais incentívos para com justiça Assim con clui ostínho ao tentar fiizer os homens livres ele os torna sacrílegos St A g o s t in h o 171 31 Cf A Cidade de Deus V 9 e 10 32 IbidVS Ao contrário de Cícero Agostinho insiste tanto que Deus sabe todas as coisas an tes que ocorram quanto que os homens fazem por seu livrearbítrio tudo o que sabem e percebem que é feito por eles só porque esta é sua vontade Longe de anular o livre arbítrio o conhecimento de Deus na verdade o institui A resposta à pergunta sobre como reconciliar essas duas perfeiçóes reside na eficácia suprema da vontade divina Deus sabe todas as coisas porque conhece suas causas e conhece suas causas porque sua vontade se estende a todas elas conferindo a cada uma a capacidade não apenas de agir mas de agir em conformidade com a circunstância adequada As causas naturais exercem uma causalidade necessária e as causas voluntárias uma causalidade livre Assim como não existe poder nas causas naturais que não esteja contido em Deus o autor da natureza e não seja concedido por Ele do mesmo modo não há nada na vontade do homem que não seja encontrado em Deus o criador dessa vontade e não possa ser conhecido por Ele Caso contrário seria necessário postular a existência nas criaturas de determinadas perfeiçóes que estão ausentes em Deus a fonte universal de toda a perfeição O que é verdadeiro das causas naturais e voluntárias é também ver dadeiro das causas fortuitas ou acaso Acaso não é apenas um nome para a ausência de uma causa O que os homens denominam acaso é na verdade para Agostinho uma causa latente atribuível a Deus ou às substâncias distintas Ainda poderia ser suscitado um problema em relação ao mal que não pode ser atribuído a Deus como sua causa Mas o fato de que Deus não causa o pecado de modo algum reduz a sua perfeição pois um ato pecaminoso como algo pecaminoso é uma imperfeição explicável apenas em termos de causalidade deficiente Tampouco pressupõe que Deus deva permanecer na ignorância dos pecados que os homens cometem Se Deus sabe o que o homem pode e vai fazer também sabe o que deve ou não fazer É verdade claro que as ações dos homens são realizadas no tempo e assim pertencem ao passado ao presente ou ao futuro Contudo nem isso impede Deus de conhecêlos imutavelmente Uma vez que está acima do tempo e fora dele Deus sabe tudo por toda a eternidade por meio de um conhecimento que não é medido pelas coisas mas é em si mesmo a medida de todas as coisas e de sua perfeição Tendo dito isso Agostinho tem plena consciência da obscuridade que continua a cercar nosso conhecimento da essência divina e de suas operações Sua explicação pode deixar muitas perguntas sem resposta mas por motivos puramente racionais conside ra a sua não mais difícil de aceitar que a de Cícero e tem diante dos olhos a vantagem de tornar possível que os homens não apenas vivam bem mas creiam bem As opiniões de Agostinho sobre a justiça humana e o direito fundeiam e motivam seu julgamento sobre as sociedades do passado e acima de mdo seu julgamento de Roma o último dos grandes impérios e epítome das mais brilhantes conquistas políticas do mundo p o Mais uma vez as bases para sua longa discussão deste assunto foram 1 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 33 Cf ibU XII 68 34 IbidV6 35 C f ibid V 12 lançadas em parte por Cícero Em vez de fimdar uma cidade perfeita no discurso como fizera Platáo Cícero procurou reavivar o interesse pela vida política ao se voltar para o exemplo da antiga república romana De acordo com esta abordem mais tradicional e mais prática foi conduzido a engrandecer as glórias passadas de seus conterrâneos Agostinho por outro lado se propóe a desvendar seus vícios Em lugar algum tais vícios sáo tão evidentes como nas relações de Roma com outras nações Uma vez que nâo há justiça interna na cidade nâo há justiça externa tampouco pois uma cidade que náo está em paz consigo mesma não pode estar em paz com seus vizinhos Os chamados reinos deste mundo são pouco mais que gigantescos latrocínios Diferem das gangues de assaltantes não pela eliminação da cobiça mas pela magnitude de seus crimes e pela impunidade com que os cometem Do ponto de vista essencial da justiça o que fez Ale xandre em grande escala e com uma enorme frota não é melhor do que o feito por um pirata em escala muito menor e com um só navio Mesmo a Roma republicana pela qual Agostinho professa um respeito muito maior do que pela Roma da época imperial está incluída na condenação comum que abarca todas as cidades terrestres Roma nunca foi uma república porque jamais tiveram lugar nela a verdadeira justiça e o direito A seção correspondente de A Cidade de Deus apresentase como uma tentativa de restaurar contrariamente ao embelezamento pelos filósofos e historiadores romanos o que Agos tinho considera como uma imagem verdadeira e fiel da Roma antiga Para diagnosticar o caráter de um povo basta consultar o objeto de seu amor Os antigos romanos não eram justos e sua cidade não era uma verdadeira cidade pois o objeto de sua paixão não era a virtude Sem dúvida os romanos eram mais dignos de admiração do que qualquer uma das nações que subjugaram De modo algum era vil a meta pela qual se empenhavam Enaltecia a coragem e colocava o autossacrifício e a devoção ao país acima de todas as comodidades de uma vida tranqüila e confortá vel Mas mesmo assim tratavase de um objetivo meramente terreno Os esforços despendidos nessa ocupação tinham a marca da grandeza mas não da virtude Roma ela própria a senhora do mundo foi dominada pela ânsia da conquista Seus grandes homens eram na melhor das hipóteses cidadãos proeminentes de uma cidade ruim A maioria deles nem sequer possuía virtudes genuinamente políticas Sua determinação em distinguirse não se alimentava pelo desejo de servir a seus compatriotas mas pela sede de glória pessoal Praticadas por um motivo que era afinal egoísta suas virtudes supostamente heróicas eram na verdade pouco mais do que vícios resplandecentes Na medida em que os romanos renunciaram ao prazer e à satisfeção de seus apetites mais baixos tinham direito a alguma recompensa Deus lhes concedeu essa recom pensa quando permitiu que Roma consolidasse sua supremacia sobre todas as outras St A g o s t i n h o 173 36 Ibid IV 4 37 lbid2 38 7 tó X IX 2 4 c fII2 1 39 Ibid V 13 e 14 40 Ibid V 12 cf XIX 25 nações Assim estendendo suas conquistas aos limites do mundo civilizado Roma foi capaz de satisfazer às suas aspirações mais profundas e atingir a meta implícita em todas as ambições terrenas a dominação universal Mas aqui se encerra a argumen tação Em oposição a uma longa e na altura ainda poderosa tradição cristã apologé tica Tostinho não estaria disposto a admitir que foi atribuído um papel especial ao império romano na economia da salvação e que ao agregar o mundo inteiro em uma comunhão de governo e de leis teria ainda que de longe aberto caminho para o cris tianismo a única religião verdadeira e universal A polêmica de iostinho contra Roma surpreende ainda mais por ser ele alguém que está obviamente impressionado com o espetáculo da antiga grandeza de Roma O relato que fez Tito Lívio dos feitos gloriosos dos Cévolas e Cipiões de Régulo e Fabrício ainda despertava sua iminação e é grande seu deleite em narrar suas faça nhas Embora possam ser reputadas admiráveis por outros padrões essas feçanhas pertencem a um passado irrecuperável cuja memória desperta certa tristeza na mente do espectador mas que o cristianismo condenou para sempre Cristo o sol da justiça eclipsou o brilho dos mais luminosos feróis do mundo antigo Seu advento destruiu para sempre o palco no qual se movia o herói pagão O verdadeiro heroísmo é o cris tão mas já não é mais o mesmo tipo de heroísmo Sua renovação é evidenciada pelo fato de que nossos heróis são chamados de mártires ou testemunhas em vez de heróis Desde então as conquistas dos romanos mais nobres só têm duas finalida des revelam juntamente com as profundezas da ganância humana o caráter efêmero e afinal autoaniquilante de qualquer realização meramente humana e lembram aos cristãos que se os romanos estavam dispostos a se submeter a tais sofrimentos pelos ganhos terrenos eles próprios deveriam estar preparados para fazer ainda mais sacrifí cios em prol de uma recompensa eterna Por seu ataque devastador à virtude p Agostinho mais do que qualquer ou tro é responsável pela depreciação de Roma que se tornou a marca registrada de qual quer discussão sobre a política romana em todo o mundo cristão A melhor maneira de exprimir a mnitude de sua realização talvez seja enfatizar que quase sozinho Agostinho criou uma nova imagem de Roma a qual a partir daquele momento to mou o liar nas mentes de estadistas e escritores políticos da imem elaborada por historiadores romanos e em especial por Tito Lívio o arauto da eterna grandeza de Roma Foi só no Renascimento que se encontrou uma nova tentativa de recuperar o espírito da Roma pagã e seu modo de vida peculiar que jazia sob a pesada e inexorável acusação de A Cidade de Deus 1 7 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a 5 L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 41 IbidW5 42 Ibid XVIII 22 43 Cf ibid II 29 44 7 tó X 21cfV 14 45 Cf ibid V 1618 Epist 138317 O M o n o t e ís m o e o P r o b l e m a d a R e l ig iã o C iv il De acordo com Agostinho o verdadeiro motivo pelo qual o esquema clássico é incapaz de tornar os homens virtuosos e é condenado por suas próprias normas náo é ser irreligioso mas estar intrinsecamente ligado a uma falsa concepção da divindade Esta falsidade é revelada de modo mais evidente no politeísmo pagão Grande parte do que Agostinho escreveu sobre o tema da sociedade civil inclusive toda a primeira parte de A Cidade de Deus é na verdade pouco mais do que uma longa e detalhada crítica da mitologia pa Seguindo Varrão Agostinho divide toda a teologia pa em três formas básicas mítica namral ou filosófica e civil ou política A teologia mítica é a teologia dos po etas Apela diretamente para a multidão e seus vários deuses e deusas são reverenciados por causa dos bens temporais ou vancens materiais que os homens esperam obter de les nesta vida A teologia natural é a teologia dos filósofos e é monoteísta Repousa sobre uma noção verdadeira de Deus e como tal é muito superior tanto à teologia mítica quanto à civil mas permanece inacessível para todos exceto alguns poucos indivíduos excepcionalmente dotados e eruditos e portanto é incapaz de exercer uma influência benéfica sobre a sociedade como um todo A teologia civil como seu nome indica é a teologia oficial da cidade Difere da teologia namral por ser politeísta e da teologia mítica por prescrever a adoração dos deuses pios por conta da vida após a morte e não desta vida É a teologia que todos os cidadãos e em particular os sacerdotes são obrigados a conhecer e administrar Ensina que deus ou deuses cada homem pode ado rar de modo apropriado e que ritos e sacriflícios sagrados lhes são compatíveis Embora a teologia civil imponha o culto de felsos deuses é no entanto mais tolerável do que a teologia mítica pois se preocupa com o bem da alma e não com o do corpo e aspira tornar os homens melhores por favorecer o desenvolvimento das virmdes políticas O mais abalizado expoente da teologia civil romana é Varrão a quem ostinho citando Cícero se refere invariavelmente como um homem de grande perspicácia e erudição O método de ostinho consiste em usar contra si mesmo o testemunho de Varrão a fim de provar a imperfeição da teologia civil Varrão defendeu esta teologia não porque fosse verdadeira mas por ser útil Ele próprio não a aceitava e não levava a sério seus deuses Davao a entender pelo fato de distinguir nitidamente entre a teologia civil e a teologia natural A mesma conclusão é corroborada por uma análise de sua obra Antiguidades na qual o tratamento dos assuntos humanos precede o dos assuntos divi nos Ao adaptar esse sistema Varrão dá a entender que os deuses da cidade não existem independentemente do homem mas são eles próprios os produtos da mente humana É este afirma yostinho o segredo de seu livro Dessa maneira sutil Varrão assinalou St A g o s t i n h o 1 7 5 46 A Cidade de Deus VI 5 cf ibid IV 27 47 Ibid IV 1 rV 31 VI 2 VI 6 VI 8 VI 9 VII 28 48 NT Marco Terêncio Varrão Marcus Terentius Varro 116 aC TI aC Antiquitates rerum humanarum et divinarum sua relutância em dar prioridade ao erro sobre a verdade Se estivesse lidando com o verdadeiramente divino ou com a namreza divina em sua totalidade a qual considerava superior à natureza humana não teria hesitado em inverter essa ordem Sendo assim apenas expressou uma louvável preferência pelos homens em lugar das instimiçóes dos homens ou em suas próprias palavras pelo pintor em lugar da pintura As opiniões de Varrão quanto a este assunto em nada diferiam das de outros filó sofos pagãos e em particular das de Sêneca Porque a filosofia o libertara Sêneca não se abstinha de atacar a teologia civil em seus escritos entretanto tal como Varrão conti nuou a fingir respeitar seus ritos e dogmas sarados Ao se conformar em atos embora nem sempre em palavras com as prescrições daquela teologia demonstrou estar plena mente consciente do fato de estar fiizendo o que a lei determina e não o que agrzda aos deuses Sêneca também não menos que Varrão foi forçado a assumir uma incômoda posição em que devia realizar o que condenava ou devia cultuar o que censurava O próprio Varrão foi mais cauteloso em seu discurso do que Sêneca Por uma nobre consideração pela firaqueza das mentes inferiores não se atreveu a censurar di retamente a teologia civil mas se contentava em revelar seu caráter censurável ao de nunciar sua semelhança com a teologia mítica Sua discussão da teologia civil é em si mesma civil ou política Leva em consideração mais do que Sêneca a necessidade prática de se acomodar às opiniões e aos preconceitos da multidão ou o que dá no mesmo à impossibilidade prática de estabelecer uma ordem política baseada inteira mente na razão ou na natureza Caso Varrão tivesse podido fiandar uma nova cidade teria escrito de acordo com a natureza porém como abordava uma cidade já existente só podia seguir seus costumes Como resultado de um meiotermo entre natureza e convenção podese dizer que sua teologia civil ocupa uma posição intermediária entre a teologia mística que exige muito pouco da maioria dos homens e a teologia natural que exige demais deles Seu nível é o do cidadão como cidadão e representa o único meio viável para que a maioria dos cidadãos obtenha o mais alto grau de virtude de que são capazes sem a graça divina Se por um lado Varrão sentiuse obrigado por razões práticas ou políticas a respeitar em aparência a teologia civil de Roma por outro não tinha tais escrúpulos quando se tratava de sua teologia mítica ou fabulosa na qual encontrava falhas abun dantes e que rejeitava tanto por ser indigna da natureza divina como por ser incom patível com a dignidade humana Ao propagar mentiras sobre os deuses e descrever sua conduta como indecorosa e vil não só os poetas cometem uma injustiça para com eles encorajam a mesma imoralidade entre os homens e contribuem mais do que quais 1 7 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 49 IbidV lA 50 IbidW Q 51 7ó VI 7 VI 8 VI 10 52 Ibid III 4 VI 2 VIL 17 VIL 23 53 Ibid VI 4 cf IV 31 e VI 2 54 Ibid VI 6 quer outros para a corrupção de seus costumes O próprio Varrâo estava de pleno acordo com os filósofos ao demandar a expulsão dos poetas de qualquer cidade bem ordenada Infelizmente a cidade com a qual se preocupava estava longe de ser perfeita Tolerava esta não só a presença dos poetas em seu meio mas na verdade dependia de les para sua sobrevivência Os poetas são ao mesmo tempo um produto da sociedade civil e seus criadores A moral que professam não é idêntica à moralidade antiga nem totalmente diferente dela Na medida em que sua mitologia se sobrepõe à teologia civil deve ser considerada como parte integrante da cidade Em última análise guarda com zelo e perpetua as mesmas fidsidades O paradoxo está em que não raro a teologia mítica demonstra ser tão útil para a cidade quando esta se afasta de suas crenças tradicionais quanto no momento em que os reflete com fidelidade Os poetas divertem o público e são mestres em fazêlos crer na excelência de seu bom gosto O objeto de suas fóbulas é na maior parte o agradável em oposição ao útil ou o nobre Assim sendo suas obras pertencem ao reino do lúdico e não ao dos assuntos sérios O prazer privado e vicário que a maioria dos homens usufrui de seus espetáculos auxilia a compensar as inevitáveis desvantagens da vida política e proporciona uma liberação salutar das tensões que gera Não obstante aparentar o contrário os poetas não são revolucionários Sua ação é no fundo conser vadora a tal ponto que até mesmo suas inovações contribuem de forma indireta para a estabilidade da sociedade civil O simples fato de a cidade não poder prescindir de tais serviços pode ser tomado como mais uma prova de suas próprias limitações e de sua total incapacidade de resolver seus problemas apenas por meios humanos A teologia civil não é apenas semelhante à teologia mítica na medida em que compartilha da razão também se aproxima da teologia natural Muitos de seus en sinamentos podem ser considerados como uma expressão popular ou préfilosófica de uma verdade genuinamente filosófica Muitas vezes podem ser justificados em termos de natureza e de fato foram explicados nesses termos pelos filósofos pos Por exemplo não há nada que impeça alguém de contemplar Júpiter o soberano dos deuses como sinônimo poético de justiça a rainha das virtudes sociais Mas há limites óbvios para tais interpretações A mitologia pagã mesmo em sua forma oficial jamais poderá ser plenamente racionalizada Por esse motivo sua influência sobre as mentes das pessoas é enfraquecida pelo progresso da ciência e pela inevitável embora nem sempre salutar difusão do conhecimento Uma vez que repousa sobre uma base de mentiras plausíveis não pode manterse para sempre Examinado desta perspectiva o politeísmo revelase ao mesmo tempo necessário à sociedade civil e incompatível com o seu desenvolvimento mais elevado Seria possível colocar o argumento em termos um tanto diferentes afirmando que o valor de qualquer sociedade é medido por sua capacidade de promover o bem do intelecto mas na medida em que tem sucesso em 55 Ibid VI 7 56 Ibid VI 8 57 IbidW lcfEpist95 St A gostinho 177 alcançar esse objetivo tende a solapar as próprias bases Nisto reside a falácia do siste ma pagão Por uma necessidade interior e independentemente da influência externa do cristianismo o politeísmo grosseiro da cidade paã deve mais cedo ou mais tarde purificarse por meio da transformação no monoteísmo Não se deve inferir a partir do que foi exposto que Agostinho aceite sem quais quer reservas a doutrina monoteísta dos teólogos naturais Antes de mais nada nem todos os filósofos pagãos compartilham a mesma concepção de divindade Alguns deles inclusive Varrão identificam a alma humana ou sua parte racional com a na tureza divina assim transformando o homem em um deus em lugar de fazer dele um servo de Deus Tal doutrina confunde a criatura com seu criador e é muito questio nável do ponto de vista racional na mesma medida em que a mutabilidade da mente humana não pode ser conciliada com a absoluta perfeição do ser supremo Somente aqueles filósofos que distinguem com clareza entre Deus e a alma ou entre o criador e a sua criação alcançaram a verdade a respeito de Deus O mais eminente entre eles é Platão Permanece sem resposta a indagação acerca do modo como Platão chegou a esse conhecimento Agostinho abandona a questão afirmando que o próprio S Paulo apregoa a possibilidade de que os pagãos passem a ter um conhecimento genuíno de Deus Todavia excetuandose o fato de que por vezes os filósofos erram em seus ensinamentos a respeito de Deus ainda há um elemento crucial que os separa do cris tianismo que é a sua recusa em aceitar Cristo como mediador e redentor Como aque le que busca o conhecimento independente o filósofo é em essência orgulhoso e se recusa a dever sua salvação a quem quer que seja mas tão só a si mesmo Todos os seus esforços são motivados no final das contas pelo autoelogio e pela autoadmiração Com base nisso talvez seja correto dizer que o filósofo é o homem que mais se aproxi ma do cristianismo e ao mesmo tempo aquele que permanece mais longe dele As D ua s C id a d e s e a D ic o t o m ia e n t r e R e u g iá o e P o iít ic a O ataque de Agostinho contra a religião pagã culmina naquela que pode ser considerada como sua contribuição mais singular para o problema da sociedade civil a doutrina das duas cidades A humanidade como sabemos dividese em muitas cida des e nações sendo cada uma delas claramente diferenciada de todas as outras por suas leis seus costumes seus ritos sua língua e seu estilo de vida em geral Porém de modo mais fundamental a Sagrada Escritura distingue apenas dois tipos de sociedades às quais pertencem todos os homens de todos os tempos a cidade de Deus e a cidade terrena É apenas por analogia no entanto que essas sociedades são denominadas 1 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 58 A Cidade de Deus IV 31 VIL 5 VII 6 VIII 1 VIII 5 59 VIII 4 VIII 1012 60 Ibid VIII 12 cf XVIII 41 in fine 61 Ibid V 20 cf Epist 1551 2 62 A Cidade de Deus XIV 1 XIV 4 cidades A cidade de Deus náo é uma cidade independente mas coexiste com outras ci dades e é fundamentada na lei divina tal como a teocracia judaica ou a basileia terre na de Constantino e seus seguidores Tanto a cidade de Deus quanto a cidade terrena se estendem para além das fronteiras de cidades individuais e nenhuma delas deve ser identificada com qualquer cidade ou reino em particular A distinção entre elas corresponde à distinção entre a virtude e o vício com a implicação de que a verdadeira virtude é a virtude cristã O que define um indivíduo como membro de uma ou outra dessas duas cidades não é a raça ou nação que possa reivindicar como sua mas as me tas que busca e que em última análise subordinam todas as suas ações A cidade de Deus não é outra senão a comunidade dos seguidores de Cristo e dos que adoram o Deus verdadeiro É composta inteiramente de homens de Deus e toda a sua vida pode ser descrita como de piedosa aquiescência na palavra de Deus Nela e somente ne la será encontrada a verdadeira justiça Porque o seu padrão é definido no céu e porque o seu perfeito estado só é alcançado na vida após a morte a cidade de Deus é às vezes denominada a cidade celestial mas na medida em que ao unirse a Cristo os homens têm tora a possibilidade de levar uma vida verdadeiramente virtuosa tal cidade já existe aqui na Terra Pela mesma razão não deve ser confundida com a cidade ideal de Platão que não tem existência a não ser no pensamento e na palavra Em contraste com a cidade celestial a cidade terrena é guiada pelo amorpróprio e vive de acordo com o que a Escritura denomina a carne O termo carne no pre sente contexto não deve ser tomado em seu sentido estrito como referência apenas ao corpo e aos prazeres do corpo Em seu uso bíblico é sinônimo de homem natural e abarca todas as ações e desejos do homem na medida em que não são dirigidos a Deus como sua finalidade suprema Isso se aplica não só ao voluptuoso que instala no prazer seu bem mais elevado mas a todos aqueles que se entregam aos vícios e até mesmo ao sábio na medida em que sua busca pela sabedoria é impulsionada por um falso amor a si mesmo e não pelo amor à verdade Em seu sentido mais amplo e abrangente a cidade terrena é caracterizada por sua simulação de total independência e autossuficiência e se apresenta como a antítese da vida de obediência a mãe e guardiã das virtudes e de reverência a Deus Seu predecessor é o impenitente e não remido Caim e sua rebelião contra Deus renova à sua maneira o pecado da desobe diência que Adão cometeu quando transgrediu o comando divino St A gostinho 179 63 NT Basileia palavra empregada no Novo Testamento para indicar o reino do Messias É usada 162 vezes no Novo Testamento onde parece ser sempre traduzida por reino 64 Ó7XVIII2XX 11 65 Ibid XIV 28 cf De Gen odLitt XI 15 66 Cf A Cidade de Deus XIV 2 e 4 67 IbidYSNòe5 68 Ibid XIV 12 69 Ibid XIV 14 Embora iostinho por vezes equacione a cidade de Deus com a Igreja algumas outras declarações suas debtam perceber que nem todos os que sáo membros oficiais da Igreja visível a ela pertencem e inversamente muitas pessoas que náo professam a fé cristã são sem o saber membros de uma mesma cidade sagrada Na verdade quem quer que se dedique à busca da verdade e da virtude pode ser considerado implicita mente um cidadão da cidade de Deus e quem abandona a virtude em íàvor do vício está ipso facto excluído dela Além disso qualquer tentativa humana de discriminar exceto de modo abstrato entre as duas cidades tornase precária pelo fiito de ser im possível saber com alguma objetividade se um homem é ou não de íato vinuoso Podese observar e narrar as ações de outra pessoa mas não se pode atingir o núcleo de onde provêm Mesmo aquele que realiza atos virtuosos não é capaz de determinar com total certeza até que ponto está agindo por virtude na medida em que é fócil enganarse quanto à natureza de seus motivos Estes motivos nâo dizem respeito ape nas ao segredo do coração humano que se poderia revelar caso isso fosse desejado mas à intenção secreta do coração que permanece obscura para todos inclusive o próprio agente Nesta vida portanto para todos os efeitos as duas cidades estão inextrica velmente misturadas como o trigo e o joio da parábola que podem crescer juntos e devem aguardar a época da colheita antes que possam ser separados O feto é que é apenas como membro da cidade de Deus e em virtude da relação com uma ordem que transcende a esfera política que se tem a possibilidade de alcan çar a paz e a felicidade a que aspiram todos os homens mesmo os mais perversos Isso não significa que a cidade de Deus aboliu a necessidade da sociedade civil Sua finalidade não é substituir a sociedade civil mas completála por meio do forneci mento além dos benefícios por ela conferidos dos meios de atingir uma meta que é mais elevada do que qualquer outra a que a sociedade civil possa conduzir A própria sociedade civil continua a ser indispensável na medida em que obtém e administra os bens temporais ou materiais de que os homens precisam aqui na Terra e que podem ser utilizados como instrumentos para promover o bem da alma Assim a cidadania na cidade de Deus não anula mas preserva e complementa a cidadania em uma so ciedade temporal O que é típico da postura de ostinho é muito precisamente a dupla cidadania pela qual um indivíduo é inscrito como membro da cidade de Deus sem deixar de organizar sua vida temporal no âmbito da sociedade civil e de acordo com suas normas Na medida em que este posicionamento retira uma parte essencial da vida do homem da jurisdição da cidade e a reserva para uma autoridade superior tal posição representa um afastamento da tradição clássica mas na medida em que alega 1 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o St r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 70 Eg A Cidade de Deus VIII 24 XIII 16 XVI 2 71 Cf De Ordine II 1029 72 A C idadedeD eusy2L áihidò5yi UyNlW 49 Ad Donat post ColLYl l Contm Duas Epist Petii II 2146 73 Cf A Cidade de Deus XDC 12 74 IbidyjX 7 fornecer a solução para o problema da vida humana procurada em vão pelos filósofos pagãos pode ser vista como um prolongamento e realização daquela tradição A nítida distinção que faz Agostinho entre as esferas da autoridade eclesiástica e civil suscita a questão geral de sua relação e de imediato sugere a possibilidade de um conflito entre elas Na melhor das hipóteses o conflito é resolvido pela coincidência entre sabedoria cristã e poder político É esta a situação que prevalece quando um cristão ocupa um cargo e exerce a sua autoridade em conformidade com os princípios cristãos e para o bem comum de seus súditos Tal é previsto expressamente por Tosti nho no Livro V capítulo 24 de A Cidade de Deus que pode ser lido como um espelho dos príncipes cristãos Tal situação conduz a uma restauração da unidade da cidade no plano do cristianismo e é muitíssimo desejável do ponto de vista do bemestar espi ritual e temporal do homem porém não há qualquer garantia de que prevalecerá ou se vier a ocorrer de que irá perdurar por longo tempo Nada há na obra de Agostinho que indique que previu o triunfo permanente da cidade de Deus na Terra por meio de uma reconciliação definitiva entre os poderes espiritual e temporal Além das afirmações sem reservas que distinguiram e definiram os domínios do espiritual e do temporal e suas respectivas jurisdições não se encontra em ostinho uma teoria detalhada da Igreja e do Estado semelhante às elaboradas supostamente com base em seus princípios durante os séculos que se seguiram Dadas as circunstân cias tão contingentes e imprevisíveis da existência da Igreja no mundo é pouco prová vel que Agostinho tenha de fato contemplado a possibilidade de articular a natureza das relações entre estas duas sociedades de uma forma que não fosse apenas muito geral Há no entanto um aspecto a respeito do qual foi forçado a assumir uma posição definitiva e que merece ser mencionado ainda que apenas por sua importância histó rica a saber o recurso ao chamado braço secular para reprimir os hereges e cismáticos A ocasião foi a controvérsia donatista cujas raízes remontavam ao século III e que paralisou a Igreja no norte da África durante a maior parte do século IV Agostinho começou por defender a persuasão como meio adequado para assegurar o retorno dos dissidentes ao rebanho católico mas opunhase com firmeza a qualquer intervenção por parte da autoridade temporal em um assunto que poderia ser considerado já de início como exclusivamente eclesiástico Os acontecimentos logo evidenciaram que medidas mais drásticas seriam necessárias para que fosse restaurada a ordem em particular porque o cisma assumira na época a aparência de um movimento naciona lista cujo rápido crescimento foi alimentado pelo perene ressentimento que nutria a população nativa na Áfirica contra a supremacia romana A intratabilidade peculiar dos donatistas sua constante agitação e os métodos terroristas a que com fiequência recor riam fizeram deles uma ameaça persistente não só para a unidade religiosa mas para a estabilidade social das províncias do Norte Africano Com relutância e somente de pois de ter esgotado todos os recursos Tostinho concordou em entregar o assunto às St A g o s t i n h o 1 81 75 Ver também A Cidade de Deus V 19 autoridades civis locais Sua decisão de sancionar o uso da força parece ter sido ditada em grande medida pela natureza política da situação e não por argumentos teológicos Ao tomar esta decisão Agostinho expressava sua convicção de que ninguém deve ser constrangido a aceitar a fé contra sua própria vontade Distinguiu com cuidado entre os donatistas que abraçaram o cisma de modo voluntário e aqueles que buscavam a verdade de boafé e eram donatistas apenas por terem nascido de pais donatistas Advertiu também contra a excessiva severidade na punição dos infratores e estipulou que as penalidades deveriam ser mitigadas em favor de todos aqueles que pudessem ser persuadidos a abjurar seus erros Infelizmente seu gesto estabeleceu um precedente cujas conseqüências ultrapassaram em muito quaisquer efeitos que ele mesmo pudes se prever O que era para ele uma mera concessão à necessidade ou no máximo uma medida de emergência destinada a lidar com uma situação específica foi mais tarde invocado como um princípio geral para justificar as represálias da Igreja contra os hereges e apóstatas Sendo este o caso Agostinho pode ser culpado em parte pela per seguição religiosa da Idade Média que veio a ser encarada como um excelente exemplo da desumanidade promovida pela indevida exaltação de padrões morais e se tornou objeto de uma das principais críticas feitas à Igreja durante o período moderno C r is t ia n is m o e Pa t r io t is m o Por motivos exclusivamente políticos a solução de Agostinho para o problema da sociedade civil ficou exposta a uma objeção importante da qual ele próprio ti nha plena consciência e a qual foi repetidas vezes forçado a enfrentar O cristianismo reivindicara seus direitos à superioridade por sua capacidade de tornar os homens melhores e aos olhos dos incrédulos podese dizer que resistiria ou cairia por conta dessa reivindicação Para o observador imparcial no entanto não era de forma algu ma evidente que o cristianismo tivera sucesso onde falhara a filosofia política pagã ou que a sua difusão fosse seguida por uma acentuada melhoria nas relações humanas De fato os distúrbios sociais e políticos que há muito flielavam Roma tanto interna como externamente pareciam ter aumentado e não diminuído apesar de o cristianis mo outrora perseguido e enfim tolerado terse tornado a religião oficial do império sob Teodósio Não é verdade pergunta Agostinho que desde a vinda de Cristo o estado das coisas humanas tem sido pior do que era antes e que os assuntos humanos eram muito mais auspiciosos do que agora Um confronto aberto entre cristãos e pagãos já ocorrera em 382 quando Graciano ordenou que o Altar da Vitória fosse removido do Senado contrariando a oposição da facção pagã liderada por Símaco que sustentava que mais cedo ou mais tarde qualquer desvio significativo dos cultos e práticas tradicionais de Roma revelarseia prejudicial ao império A queda de Roma nas mãos de Alarico e dos godos em 410 acrescentou um clímax dramático à situação 1 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 76 Contra Duas Epist PetiL II 83 184 Epist 431 1 77 En in Psal 1369 Os cristãos foram logo responsabilizados pelo desastre e a antiga acusação de que o cristianismo era hostil ao bemestar da sociedade alastrouse entre a população pagá Foi mesmo para responder a essa acusação que ostinho comprometeuse a escrever A Cidade de DeusJ Roma argumentavase devia sua grandeza ao fevorecimento de seus deuses Ao abandonar esses deuses por uma nova religião incorrera em sua ira e se privou de sua proteção Assim grosso modo o argumento poderia ser combatido ao se mostrar que toda a história romana desde seus primórdios fora marcada por intermináveis guerras e conflitos civis e que uma vez que estes males sociais eram anteriores ao cristianismo a lógica não permitia que fossem atribuídos a ele É óbvio porém que essa popular controvérsia contra o cristianismo apenas em parte desvendava o verdadeiro proble ma cujo caráter era político e não religioso Por trás da crença comum em divindades tutelares jazia a acusação mais grave de que o cristianismo acarretara um declínio na virtude cívica e poderia com toda a aparência de boa razão ser considerado ao me nos indiretamente responsável pela deterioração da fortuna política do império Ao recrutar homens para o serviço de um país maior e mais nobre dividiu a cidade e enfraqueceu sua reivindicação incondicional da lealdade dos seus cidadãos Inevitavel mente a dupla cidadania que impôs a seus seguidores promoveu uma desvalorização de toda a ordem política e tornou mais difícil senão impossível a plena dedicação à cidade e a seu regime Como observa o próprio Agostinho no que concerne à vida dos mortais que se exaure e termina em poucos dias que importa sob cujo domínio morrerá um homem desde que aqueles que governam não o forcem à impiedade e à iniqüidade Pior ainda muitos dos mais característicos ensinamentos da nova fé pareciam entrar em conflito aberto com os sagrados deveres e direitos da cidadania Sua doutrina da fraternidade de todos os homens e de sua igualdade diante de Deus bem como seus preceitos que impóem o amor pelos inimigos e o perdão das ofensas tendiam todos à primeira vista a solapar a força militar da cidade e a subtrair sua for ma mais poderosa de defesa contra inimigos externos Na mente dos contemporâneos de Agostinho o perigo estava longe de ser ilusório Confrontados com a aparente e quase tiica impossibilidade de conciliar o cristianismo com a lealdade a seu país al guns dos próprios amigos de Agostinho por muitos anos recusaram o batismo mesmo depois de terem sido instruídos na fé Podese claro apontar para uma depreciação semelhante do puramente político na filosofia clássica a qual colocou a felicidade ou o bem mais elevado do homem na vida teórica ou filosófica e náo em uma vida de zelosa cidadania Contudo a fi losofia se dirigia a uma elite natural e não a todos os homens Por sua própria essên cia destinavase a permanecer como o reduto de um pequeno número de naturezas St A gostinho 1 8 3 78 Cf Retmctationes II 43 1A Cidade de Deus I 1 79 Epist 911 80 A Cidade de Deus V 17 81 Cf 15114 e 1362 bemnascidas e bemeducadas Por conseguinte pouco perigo havia de que viesse a se tornar uma força política no mesmo sentido que o cristianismo ou de ter o mesmo impacto direto e imediato na vida da cidade De modo típico a resposta de Agostinho a essa objeçáo geral funde argumentos retirados de fontes bíblicas e filosóficas Consiste em dizer em substância que o cristia nismo náo destrói o patriotismo mas o reforça fezendo dele um dever religioso Tan to os profetas do Antigo Testamento como os autores do Novo Testamento ordenam a obediência à autoridade civil e às leis da cidade Resistir a essas leis é desafiar os pró prios mandamentos de Deus na medida em que o próprio Deus reputa como a fina lidade da sociedade civil ser um remédio para o mal e a utiliza como um instrumento de misericórdia em meio a um mundo pecaminoso como ensina S Paulo no capítulo 13 da Carta aos Romanos a qual ostinho menciona diversas vezes neste contexto Assim sendo náo é legítimo alegar o serviço de Deus como motivo para eximirse de responsabilidades cívicas ou recusar a submeterse a governantes temporais Com efeito o cristianismo deve ser entendido acima de tudo como uma fé e nâo como uma lei divinamente revelada que rege todas as nossas ações e opiniões e convocada para substituir as leis humanas de acordo com as quais vivem os homens É compatível com qualquer regime político e em questões temporais não impõe um modo de vida próprio diferente daquele de outros cidadãos da mesma cidade Sua universalidade é tal que pode conviver sem dificuldades com as mais diversas práticas costumeiras As únicas práticas a que se opõe são aquelas que a própria razão denuncia como ma lévolas ou imorais Na verdade por censurar essas práticas e exortar seus seguidores a se absterem delas atende aos mais propícios interesses da cidade O julgamento que faz a respeito das limitações essenciais da sociedade civil não implica não mais que o dos filósofos pagãos um repúdio dessa sociedade Apesar de todas as suas imperfeições manifestas a sociedade civil ainda é o maior bem de seu tipo que os homens possuem Seu objetivo é ou deveria ser a paz terrena a qual buscam também os cristãos Na procura desse objetivo comum cristãos e não cristãos podem unirse e viver juntos como cidadãos da mesma cidade Além disso qualquer desvalorização da pátria se é que se pode mesmo falar de uma depreciação é compensada pelo fato de que o cristianismo exige e muitas vezes obtém de seus seguidores um grau mais elevado de moralidade e virtude Desta forma ajuda a combater o vício e a corrupção que são as verdadeiras causas da fraqueza e do declínio das cidades e nações Por conseguinte deixemos aqueles que dizem ser a doutrina de Cristo incompatível com o bemestar da nação darnos um exército de soldados tais como a doutrina de Cristo exige que sejam que nos deem súditos maridos e esposas pais e filhos mestres e servos reis juizes in fine até mesmo contribuintes e arrecadadores de impostos tais como a religião cristã ensina que os homens deveriam ser e então deixemos que se atrevam a dizer que é 184 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 82 A Cidade de Deus XIX 17 XV 4 prejudicial ao bemestar da nação Ao contrário não lhes permitamos hesitar em admitir que tal doutrina se íbsse obedecida seria a salvação da nação Finalmente é injusto afirmar sem mais reservas que o cristianismo provoca um desprezo pela bravura militar O Novo Testamento náo ordena que os soldados entre guem as suas armas mas ao contrário elogia sua retidão e virtude A imposição de retribuir o mal com o bem não diz respeito tanto às ações externas quanto à disposição interior com que essas ações devem ser executadas Procura assegurar que a guerra se precisa ser travada seja realizada com um fim benevolente e sem crueldade excessiva Os homens são compelidos a todo momento a fàzer o que mais provavelmente be neficiará seus semelhantes Em alguns casos atingese a paz e a punição dos transgres sores com mais fàcilidade e maior perfeição por meio do perdão do que pelo castigo severo enquanto em outros casos dar rédeas à injustiça e permitir que os crimes fiquem impunes seria o mesmo que consentir que os maus persistissem em seu mau caminho O que o cristianismo censura não é a guerra mas os males da guerra tal como o amor pela violência a crueldade vingativa o ódio feroz e implacável a resis tência selviem e o desejo de poder Ao sucumbir a esses males os homens perdem um bem que é muito mais precioso que qualquer um dos bens terrenos que um inimigo pudesse lhes tomar Ao invés de aumentar o contingente dos bons limitamse a expan dir a multidão dos maus Assim sendo são admissíveis as guerras justas que devem ser travadas somente por necessidade e em prol da paz A decisão de empreender uma guerra cabe ao monarca ou governante a quem é confiado o bemestar da nação como um todo Quanto ao soldado raso seu dever é obedecer a ordens Ele próprio não é responsável pelos crimes que possam ser cometidos em casos em que não está claro se as ordens são justas ou injustas Embora concorde que haveria menos conflitos entre os homens se todos compar tilhassem a mesma fé Agostinho jamais concebeu a paz universal como uma meta que pode ser alcançada nesta vida nem tampouco tirou desse monoteísmo a con clusão de que todos os homens devem unirse politicamente de modo a formar uma sociedade mundial única O único trecho em que o problema é retomado de modo explícito apresenta a situação mais feliz da humanidade e a mais propícia à virtude tal como aquela em que as cidades pequenas ou pequenos reinos existem lado a lado em vizinhança harmoniosa Mesmo tal situação porém jamais será concretizada de modo pleno ou definitivo Quer os homens gostem ou não a guerra é inevitável Os maus travam guerras contra os justos apenas porque assim o querem e os justos St A gostinho 1 8 5 83 Epist 138215 cf Epist 1375 20 e Epist 913 84 Epist 1894 Contra Faust Man XXII 75 85 Cf EHÍ 13821314 86 Cf Contra Faust Man XXII 74 Epist 1382 12 87 Contra Faust Man XXII 75 88 Epist 1895 89 A Cidade de Deus W 5 guerreiam cxintra os ímpios pmque precisam fiizêlo Em ambos os casos as cidades independentes e pequenos reinos afinal acabam por dar lugar a grandes reinos estabe lecidos por meio da conquista dos mais fracos pelos mais fortes O melhor que se pode esperar na prática é que a causa dos justos triunfe sobre a dos injustos pois nada é mais prejudicial para todos inclusive os próprios malfeitores que a prosperidade des ses últimos que a usarão para oprimir os bons As observações de Agostinho nesse sentido não se dirigem tanto contra seus críti cos p o s quanto a seus correligionários e em alguns casos seus próprios discípulos Vários autores cristãos proeminentes desse período Eusébio Ambrósio Prudêncio e Orósio entre eles interpretaram em sentido literal ou temporal determinadas pro fecias do Velho Testamento relacionadas às bênçãos da era messiânica e previram uma era de paz e prosperidade sem precedentes sob os auspícios do cristianismo e como resultado direto de seu florescimento como religião mundial que une todos os ho mens no culto ao verdadeiro Deus Alguns desses autores chegaram a comparar as perseguições cristãs cujo número fora de modo um tanto arbitrário calculado em dez às dez pragas do Egito e deduziram desse paralelo que a Igreja não teria mais de suportar tantas dificuldades até a grande perseguição do final dos tempos anunciada pela Sagrada Escritura Para o cristão foi prometido o melhor dos dois mundos pois de acordo com a interpretação proposta não só o cristianismo oferecia a expectativa da bemaventurança eterna no céu como também fornecia a resposta ao problema mais urgente do homem aqui na Terra Agostinho descarta todas essas interpretações por serem ardilosas mas não terem fundamento na Escritura e serem contrárias a seus ensinamentos Não nega que a arte e a indústria humanas realizaram maravilhosos e espantosos avanços no decorrer do tempo mas acrescenta em seguida que este progresso material e intelectual não se faz necessariamente acompanhar por um aumento correspondente da bondade moral pois se essas invenções beneficiam o homem podem também ser usadas para destruí lo Também rejeita de imediato a visão de que os males desaparecerão ou mesmo diminuirão com a passiem do tempo Deus sendo todopoderoso poderia decerto extirpar todo o mal mas não sem a perda de um bem maior para a humanidade De maneira particular os males que Deus permite contribuem para o avanço espiritual do homem Servem como prova para os justos e castigo para os maus Da mesma forma assaram que Deus será amado por Si mesmo e não apenas pelas vannens materiais que revertem para os homens como conseqüência de suas boas ações e a imposição ao homem da necessidade de superar esses males tanto dentro como fora de si permite Ihe atingir um nível cada vez mais elevado de virtude e perfeição moral 186 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 90 Ibid IV 3 XIX 7 91 Aídí XVIII 52 92 Ibid XXII 24 93 Ibid I 29 XXII 22 e 23 De modo mais geral os males da existência humana sáo eles mesmos parte de um plano global que Deus executa entre os homens Nesta medida podese dizer que sáo ra cionais mas sua racionalidade supera a razão humana Além do simples fato registrado pela Sagrada Escritura de que a história s e seu curso não em cidos mas ao longo de uma linha reta que aça por etapas sucessivas para atingir um objetivo preestabele cido e que com a vinda de Cristo entrou na sua fese final há muito pouco ou nada que revde o significado interno ou os propósitos dos acontecimentos humanos Para o observador na Terra esses eventos conservam sua obscuridade fimdamental mesmo após terem ocorrido Apreciada em sua totalidade a vida das sociedades terrenas se revela não como uma progressão ordenada procursus em direção a um fim determinado mas como um processo simples excursus pdo qual as duas cidades cumprem sua existência terrena com sua mistura característica de sucessos e fiacassos mas sem garantia de salva ção neste mundo pois só no paraíso foi prometido o que na Terra buscamos O cristianismo como o entende Agostinho de fato fornece uma solução para o problema da sociedade humana mas não uma solução alcançada ou alcançável por meio da sociedade humana Tal como a dos filósofos clássicos embora de maneira diversa esta solução continua a ser transpolítica em sua essência L e it u r a s A St Augustine The City of God Trans Marcus Dods New York Modem Library 1950 Bk XIX St Augustine ZeOm91 e 138 ViSáaSeàASelectlÀbmryofdjeNiceneandPostNiceneFatherstfthe Christian Church v I The Confessios and Letters fSt Augustine Grand Rapids Eetdmans 1956 B St Augustine The City of God Viss 11 2122 IVVIIIXrV 14 1115 28 St Augustine On Free Will Tians John H S Burleigh The Library of Christian Classics v VI Augus tine Earlier Writin Philadelphia The Westminstet Press 1953 Bk I St Agostinho 187 94 Cf ite XII 1121 95 Cf De Catech Rud XXII 39 DeGen contra Man I 2324 A Cidade de Deus XXII 30 in fine 96 Ver a carta de j stin h o a Firmo C Lambot ed Retnie Berudictine 51 1939 p 212 Também A Cidade de Deus XV 21 XDC 5 Retractationes II 432 97 En in Psal 486 A lfarábi A circa 870950 Alfarábi alFãrãbi foi o primeiro filósofo que tentou confrontar relacionar e tanto quanto possível harmonizar a filosofia política clássica com o islá uma religião revelada por um profeta legislador Maomé sob a forma de lei divina que organiza seus seguidores em uma comunidade política e determina suas crenças bem como estabelece princípios e normas detalhados para sua conduta Ao contrário de Cícero teve de enfrentar e resolver o problema da introdução da filosofia política clássica em um ambiente cultural radicalmente diferente ao contrário de Agostinho não dispu nha de uma esfera relativamente livre nesta vida terrena em cuja organização a filosofia política clássica pudesse aplicarse inconteste mas precisava enfirentar e resolver o pro blema do conflito entre as reivindicações da filosofia política e da religião por todos os aspectos da vida do homem A relevância da posição que ocupa Alfiuábi na história da filosofia política con siste em sua recuperação da tradição clássica e em tornála inteligível dentro do novo contexto fornecido pelas religiões reveladas Seus escritos mais conhecidos são as obras políticas preocupadas com os rimes políticos e com a obtenção da felicidade por meio da vida política Essas obras apresentam o problema da harmonia entre a filosofia e o islã sob nova perspectiva a da relação entre o melhor regime em particular segun do o entendimento de Platão e da lei divina do islã Sua posição na filosofia islâmica corresponde à de Sócrates ou Platão na filosofia grega pois é possível afirmar que sua principal preocupação é a relação entre a filosofia e a cidade Alfiuábi instituiu uma tradição que dependia dele e através dele de Platão e Aristóteles para encontrar uma abordagem filosófica aplicável ao estudo e compreensão dos fenômenos políticos e religiosos Suas obras inspiraram homens como Avicena Averróis e Maimônides que o admiravam como seu segundo mestre depois de Aristóteles e foi o único pensador pósclássico cuja autoridade conquistou seu respeito lado a lado com os antigos C iê n c ia D iv in a e C iê n c ia P o l ít ic a Notáveis são as diversas semelhanças que existem entre algumas das característi cas fundamentais do islã e do bom regime conjeturado pela filosofia política clássica em geral e por Platão nas Leis em particular Ambos se iniciam com um deus como a causa primordial da legislação e consideram as crenças corretas sobre os seres divinos e o mundo da natureza como essenciais para a constituição de um bom regime político Em ambos essas crenças devem refletir uma imagem adequada do cosmos tornar acessível aos cidadãos em geral e de forma que possam compreender a verdade sobre as coisas divinas e sobre os mais elevados princípios do mundo ser propícias à ação virtuosa e fazer parte do aparato necessário para a obtenção da felicidade suprema Ambos consideram ser as funções do fimdador e legislador e após este de seus su cessores na liderança da comunidade de importância absolutamente central para sua organização e preservação Ambos se preocupam com a dádiva e a preservação das leis divinas Ambos se opõem à visão de que a mente ou alma é derivada do corpo ou é ela mesma corpórea uma visão que corrói a virtude humana e a vida comunitária e à piedade timorata que condena o homem a se desesperançar da possibilidade de algum dia compreender o significado racional das crenças que é convocado a aceitar ou das atividades que é chamado a realizar Ambos direcionam os olhos dos cidadãos para uma felicidade que está além das suas preocupações terrenas Finalmente ambos rele gam a arte do jurista e do teólogo apologético para a posição secundária de preservar a intenção do fundador e de sua lei e de construir um escudo contra ataques As relevantes obras políticas de Alfarábi A Cidade Virtuosa A Religião Virtuosa e O Repme Político constituem um ponto de encontro entre o islã e a filosofia política clássica em que essas afinidades e não as eventuais diferenças ou conflitos ocupam o primeiro plano Ao enfatizar tais afinidades e incentivar ou mesmo forçar tanto o islã como a filosofia a darem um passo cada um na direção do outro pretende evidenciar os elementos comuns em ambos e incentivar e orientar seu leitor muçulmano para que venha a entender os aspectos caraaerísticos da filosofia política clássica Tal se revela antes de tudo pelo próprio estilo dessas obras e pelo modo como foram engen dradas Estilisticamente assemelhamse tanto aos códigos legais quanto aos tratados filosóficos Consistem principalmente em proposições afirmativas sobre os atributos de Deus a ordem do mundo o liar do homem nele e a maneira como uma boa sociedade deve ser organizada e conduzida u padrão comum às Leis de Platão e ao Alcorão muitas dessas afirmações são antecedidas por prelúdios que abrem caminho para a promulgação de sólidas leis que regulam a conduta dos governantes e prescrevem as crenças e ações dos cidadãos Embora náo sejam tratados filosóficos ou políticos ou promulgação de leis específicas no sentido estrito essas obras contêm os resultados das investigações filosóficas e políticas apresentados de forma útil para a prática como base para a formulação de um plano para organizar um bom regime político São obras cuja forma e intenção podem ser compreendidas com facilidade por um leitor muçulmano comprometido com a aceitação de uma visão verdadeira do mundo em geral e com a obediência às leis que promovem a virtude e conduzem à A lfa rAb i 1 8 9 Alíãrabi The Enumeration ofthe Sciences ed Osman Amine 2 ed Cairo Dãr alFikr alArabi 1949 v The Virtueus ReUgion MS Leiden Cod Or No 1002 fbls 53v54v felicidade suprema Mas também estão em conformidade com a intenção da filosofia política clássica na medida em que têm por objetivo apresentar uma explicação racional e convincente do mundo expressa em termos compreensíveis para os cidadãos Cumprem uma tarefa prática importante na medida em que indicam com sua publicação a possi bilidade de uma compreensão racional que não destrói mas conserva e explica as crenças e ações prescritas pela lei revelada e realizam um trabalho preparatório na medida em que apontam uma direção em que se pode buscar essa compreensão racional As obras políticas de Alfiirábi constituem um novo gênero na literatura política islâmica Com habitual cautela com discrição o autor se abstém de citar diretamente interpretar ou mesmo referirse ao Alcorão a Maomé ou a questões religiosas espe cíficas do islã Todavia é inconfundível a primeira impressão que as obras de Alfarábi deixam em seus leitores o autor tem a intenção de permitir que seus correligionários e na verdade todos os que comungam das religiões reveladas percebam a vasta área de harmonia que existe entre sua lei divina e a intenção prática da filosofia política clás sica Esses leitores podem ora enxergar na sua lei divina uma realização prática das doutrinas dos mais proeminentes sábios da Antiguidade Podem dedicarse ao estudo desses filósofos não apenas com o intuito limitado de defender suas próprias crenças e práticas ou com o propósito negativo de assegurar a si mesmos que a compreensão racional é impotente perante a autoridade superior da revelação e da lei divina mas para elevarse acima do estado servil de crédulos cegos e para descortinar as intenções secretas da revelação e da lei divina para iluminarse por meio da compreensão da tradição mais respeitável da sabedoria humana a respeito da sabedoria da sua religião Alfarábi oferecelhes nessas obras a possibilidade de assumir uma nova atitude para o estudo das obras de Platão e Aristóteles Encorajaos a não mais considerar esses filósofos como os criadores de uma tradição estrangeira capaz de solapar suas crenças e virtudes sociais ou como uma tradição que deveriam estudar com o objetivo de refu tála e combatêla Faz com que compreendam que esta tradição pertence a eles tanto quanto aos gregos e que devem fazêla sua pois se interessa pelas questões mais caras a seus corações e mentes Dálhes a esperança de uma melhor compreensão de sua mais elevada questão política e religiosa os temas que constituem a essência da sua religião e seu modo de vida que os distinguem de seus ancestrais pagãos e lhes propiciam sua reivindicação exclusiva de superioridade sobre outras comunidades O R e g im e V ir t u o s o O tema central dos escritos políticos de Alfarábi é o regime virmoso a ordem política cujo princípio orientador é a realização da excelência humana ou virtude O autor concebe a ciência humana ou ciência política como a investigação sobre o ho mem na medida em que este se distingue de outros seres naturais e de seres divinos buscando compreender sua natureza específica o que constituí a sua perfeição e o modo como pode atingila Ao contrário de outros animais o homem não se torna perfeito apenas por meio dos princípios naturais presentes nele e ao contrário dos 1 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y seres divinos não é eternamente perfeito mas precisa atingir a perfeição por meio da atividade que provém da compreensão racional da deliberação e da escolha entre as diversas alternativas que lhe são sugeridas pela razão A presença inicial da capacidade para o conhecimento racional c da escolha a ele vinculada é a perfeição primeira ou natural do homem a perfeição com que nasce e não escolhe Para além daí a razão e a escolha estão presentes no homem a íim de que sejam usadas para atingir sua meta ou a maior perfeição possível à sua natureza Esta perfeição maior é idêntica à suprema felicidade à sua disposição A felicidade é um bem desejado por si mesmo nunca se deseja alcançála para conquistar algo mais por meio dela e não há nada maior além dela que o homem possa alcançar Todavia a felicidade não pode ser alcançada sem primeiro ser conhecida e sem a realização de determinadas atividades disciplinadas corporais e intelectuais úteis ou que conduzem à conquista da perfeição São estas as atividades nobres A distinção en tre as atividades nobres e vis é assim guiada pela distinção entre o que é útil e o que impede a perfeição e a felicidade Para realizar bem uma atividade com facilidade e de forma ordenada é necessária a formação do caráter e o desenvolvimento de hábitos que tornem possíveis tais atividades São as virtudes as formas e estados de caráter das quais emanam essas nobres atividades não são bens por si mesmas mas bens apenas em prol da felicidade A distinção entre virtude e vício pressupõe um conhecimento do que é a perfeição humana ou felicidade bem como a distinção entre as atividades nobres e vis O regime virtuoso pode ser definido como o regime em torno do qual se agregam e cooperam os homens com o objetivo de se tornarem virtuosos realizarem atividades nobres e alcançarem a felicidade Distinguese pela presença do conhecimento da per feição última do homem da distinção entre os nobres e os vis e entre as virtudes e os vícios e do esforço conjunto dos governantes e dos cidadãos para ensinar e aprender tais coisas e desenvolver as formas virtuosas ou estados de caráter dos quais emergem as atividades nobres que contribuem para alcançar a felicidade A conquista da felicidade significa a perfeição da potência da alma humana que é específica do homem de sua razão Esta por sua vez exige disciplinar os desejos infe riores para cooperarem e auxiliarem a razão na realização de sua atividade apropriada e também na aquisição das mais elevadas artes e ciências Tal disciplina e aprendizado podem ser conquistados apenas por aqueles raros que possuem os melhores dons natu rais e que têm também a sorte de viver em condições nas quais se podem desenvolver as virtudes necessárias e realizar as atividades nobres Os demais homens só podem alcançar certo grau desta perfeição e o ponto que conseguirão atingir no grau de per feição de que são capazes é influenciado de modo decisivo pelo tipo de regime político em que vivem e pela educação que recebem No entanto todos os cidadãos do regime virtuoso devem ter algumas noções em comum sobre o mundo o homem e a AÚda po A l f a r á b i 1 9 1 The Virtuous City ed Fr Dieterid Leiden Brill 1895 p 46 cf ThePoüHcdRepme Hydeiabad Dãirat alMaãrif alUthmânlyyah 1345 A H p 4245 48 Ytnmm City p 46 cf The Political Repme p 4344 lítica Contudo divergirão no que diz respeito ao caráter desse conhecimento e por tanto no que diz respeito à sua quota de perfeição ou de felicidade Podem dividirse em geral nas três classes seguintes 1 Os sábios ou filósofos que conhecem a natureza das coisas por meio de provas demonstrativas e por suas próprias percepções 2 Os seguidores daqueles que conhecem a natureza das coisas por meio das demonstrações apresentadas pelos filósofos e que confiam no discernimento e aceitam o julgamento dos filósofos 3 Os demais cidadãos os muitos que conhecem as coisas por meio de similitudes algumas mais outras menos adequadas dependendo de seu status como cidadãos Essas classes ou níveis devem ser ordenados pelo governante que deve tam bém ordenar a educação dos cidadãos atribuirlhes as suas funções especializadas instituir suas leis e comandálos na guerra Deve procurar pela persuasão e coerção desenvolver em cada um as virtudes de que é capaz e ordenar hierarquicamente os cidadãos para que cada classe possa alcançar a perfeição de que é capaz e ainda assim servir à classe acima dela É desta maneira que a cidade tornase um conjimto seme lhante ao cosmos e os seus membros cooperam para atingir a felicidade O regime virtuoso é um regime monárquico ou aristocrático não hereditário em que o melhor governo com os demais cidadãos divididos em grupos que dependendo de seu status são governados e por sua vez governam até chegarse ao grupo mais inferior que só é governado O único critério para a classificação de um cidadão é o caráter da virtude de que é capaz e que tem capacidade de desenvolver por meio de sua participação no regime e pela obediência a suas leis Como o próprio regime os seus cidadãos são virtuosos primeiro porque possuem ou seguem aqueles que possuem similitudes corretas do conhecimento dos seres divinos e naturais da perfeição humana ou da felicidade e dos princípios do regime concebido para auxiliar o homem a atingir esta felicidade e segundo porque agem de acordo com esse conhecimento pois seu caráter é formado com vistas à realização das atividades conducentes à felicidade Uma vez que estejam esclarecidas as principais características do rime virtu oso passam a ser relativamente simples a compreensão das principais características e a classificação de todos os outros regimes Alferábi divideos em três grandes tipos 1 Os regimes cujos cidadãos não tiveram a oportunidade de adquirir qualquer co nhecimento sobre os seres divinos e naturais ou sobre a perfeição e a felicidade Estes são os regimes ignorantes Seus cidadãos buscam metas inferiores boas ou más no completo olvido da verdadeira felicidade 2 Os regimes cujos cidadãos possuem o conhecimento dessas coisas mas não agem de acordo com suas exigências Estes são os regimes perversos ou imorais Seus cidadãos têm a mesma opinião que os do regime virtuoso todavia seus desejos não atendem à porção racional deles mas os desvia para a procura das metas inferiores buscadas nos regimes ignorantes 3 Os regimes cujos cidadãos adquiriram algumas opiniões sobre tais coisas mas opiniões falsas ou cor rompidas ou seja opiniões que alegam ser sobre os seres divinos e naturais e sobre a verdadeira felicidade quando na verdade não o são As similitudes apresentadas a tais cidadãos são portanto falsas e corruptas e assim são também as atividades prescritas para eles Estes são os regimes que foram desencaminhados ou os regimes equivocados 1 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o iin c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Os cidadãos desses regimes não possuem o verdadeiro conhecimento ou as similitudes corretas e buscam eles também as metas inferiores dos rimes ignorantes Os r mes equivocados podem ter sido fundados desfâ forma Este é o caso dos regimes cujo governante supremo é alguém que está sob a ilusão de ter recebido a revelação sem têlo feito e quanto à qual emprega deturpações enganos e ilusões Mas também podem ter sido regimes originalmente virtuosos que foram alterados pela introdução de pontos de vista e práticas felsos ou corrompidos Todos esses tipos de regimes se opõem ao regime virtuoso porque lhes fàlta seu prin cípio orientador que é o conhecimento e a virtude verdadeiros ou a formação do cará ter para as atividades conducentes com a verdadeira felicidade Ao contrário o caráter dos cidadãos é formado com vistas a alcançar uma ou mais das metas inferiores Tais metas são estimadas por Alfarábi como seis e cada um dos tipos gerais já menciona dos pode ser subdividido de acordo com a meta que nele predomina 1 O regime da necessidade ou o regime indispensável no qual o objetivo dos cidadãos limitase às necessidades básicas da vida 2 O regime vil oligarquia no qual o objetivo último dos cidadãos é a riqueza e a prosperidade por si mesmas 3 O regime ignóbil cujos ci dadãos têm como objetivo o gozo dos prazeres sensoriais ou imsinários 4 O r m e de honra timocracia cujos cidadãos visam ser honrados louvados e glorificados pelos demais 5 O regime de dominação tirania cujos cidadãos visam oprimir e sujeitar os demais 6 O regime de associação compartilhada democracia cujos cidadãos têm como objetivo principal serem livres para fazer o que bem entenderem O R e i F il ó s o f o e o L e g is l a d o r P r o f e t a Combinar a ciência divina e a ciência política é enfetizar a importância política de convicções sólidas sobre seres divinos e sobre os princípios do mundo Vimos que tanto o islã como a filosofia política clássica estão de acordo sobre esta questão Os muçulmanos acreditavam que a principal justificativa para sua existência como comu nidade distinta era a revelação da verdade sobre as coisas divinas a Maomé e que se este não tivesse vindo a eles com esta mensagem teriam continuado a viver na miséria e incerteza sobre seu bemestar neste mundo e no próximo Era também devido a tais considerações que Platão acreditava que os reis deveriam tornarse filósofos ou reis fi lósofos Uma vez que a procura pelo melhor rime atinge a necessidade de combinar ciência divina e ciência política tornase necessário que o governante combine a arte de governar com a da profecia ou da filosofia O governante profeta ou o governan te filósofo é o ser humano que oferece a solução para a questão da concretização do melhor regime e as funções do governante profeta e do governante filósofo sob este aspecto parecem ser idênticas Alfarábi 193 Virtuous City p 63 cf The Political Regime p 74 Alfiirábi começa sua discussão sobre o governante supremo dando énfàse à função comum do governante filósofo e do governante profeta como governantes que são o elo entre os seres divinos superiores e os cidadãos que não têm acesso direto ao conhe cimento desses seres Este governante supremo é o mestre e guia que dá a conhecer aos cidadãos o que é a felicidade que desperta neles a determinação de fàzer o que for necessário para atingila e que não precisa ser governado por um homem em coisa alguma Deve possuir conhecimento não precisar de nenhum outro homem para guiálo ter excelente compreensão de tudo o que deve ser feito ser excelente em guiar todos os outros naquilo que sabe ter a capacidade de fàzer os outros desempenharem as funções para as quais estão aptos e ter a capacidade de determinar e definir o tra balho a ser executado por outros e direcionar esse trabalho para a felicidade Evidente mente essas qualidades demandam não só os melhores dotes naturais mas também o pleno desenvolvimento da fiiculdade racional De acordo com a psicologia aristotélica tal como Alferábi a apresenta em suas obras políticas a perfeição da fàculdade racional consiste em sua correspondência ou união com o Intelecto Ativo O governante supremo deve ser um homem que põe em prática sua fàculdade racional ou que está em união com o Intelecto Ativo Este homem é o verdadeiro príncipe de acordo com os antigos é o único de quem se deve dizer que recebe a revelação Pois o homem recebe a revelação somente quando atinge esse status isto é quando já não há intermediário entre ele e o Intelecto Ativo Ora uma vez que o Intelecto Ativo emana do ser da Causa Primeira Deus podese dizer por esse motivo que é a Causa Primeira que pioduz a revelação para este homem por meio da mediação do Intelecto Ativo O governo deste homem é o governo supremo todos os demais governos humanos são iníêrioies a ele e dele derivam Esse governante supremo é a fonte de todo o poder e conhecimento no regime e é por meio dele que os cidadãos tomam conhecimento do que devem saber e fazer Assim como Deus ou a Causa Primeira do mundo dirige tudo o mais e como tudo o mais é direcionado para Ele deve ocorrer o mesmo na cidade virtuosa de forma or denada todas as suas partes deveriam em suas atividades seguir o exemplo das metas de seu governante supremo O governante supremo possui poderes ilimitados e não pode ser submetido a qualquer ser humano ou regime político ou leis Tem o poder de confirmar ou revogar leis divinas anteriores de promulgar novas e de alterar para ou tra uma lei que tivesse instituído em algum momento se julgar melhor assim fàzêlo Somente ele tem o poder de ordenar as classes de pessoas no regime e de atribuirlhes seus níveis E é ele quem lhes oferta o que precisam saber 194 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 5 The Potíticd Regime p 4849 6 Ibid p 4950 7 Virtuous City p 5657 cf Political Regime p 5354 8 Political Regime p 5051 Para a maioria das pessoas esse conhecimento tem de assumir a forma de uma representação imaginativa da verdade em vez de uma concepção racional dela Tal ocorre porque a maioria das pessoas não é dotada ou não pode ser treinada para conhecer as coisas divinas em si mas é capaz apenas de compreender suas imitações que devem ser adaptadas para caber em seu poder de compreensão e em suas condi ções e experiência específicas como membros de um determinado regime A religião é um desses conjimtos de representações imaginárias sob a forma de uma lei divina instituída para um determinado grupo de homens e necessária devido à incapacidade da maioria dos homens de conceber as coisas de forma racional e à sua necessidade de acreditar na imitação de seres divinos e da felicidade e da perfeição tal como lhes é apresentada pelo fundador de seu regime O fundador não deve portanto apresentar uma explicação racional ou conceituai de felicidade e dos princípios divinos só para os poucos mas também representar ou imitar adequadamente essas mesmas coisas para os muitos Todos os cidadãos devem aceitar e preservar aquilo que ele lhes confia os que persem a felicidade tal como a entendem e aceitam os princípios divinos tal como os conhecem são os sábios e aqueles em cujas almas se encontram estas coisas sob a forma de imagens e que as aceitam e as seguem como tais são os fíéis Até aqui Alferábi cria uma identificação entre o governante profeta e o gover nante filósofo Ambos são governantes supremos absolutos e ambos têm autoridade absoluta no que diz respeito a legislar sobre crenças e ações Ambos adquirem essa autoridade em virtude da perfeição de suas faculdades racionais e ambos recebem a revelação de Deus por meio da interferência do Intelecto Ativo De que maneira então o governante profeta difere do governante filósofo A primeira e principal qualificação que o governante do regime virtuoso deve possuir é um tipo especial de conhecimento das coisas divinas e humanas Ora o homem possui três faculdades para o conhecimento sensação imaginação e razão teórica e prática e estas se desenvolvem nele nessa ordem A imiginação tem três funções 1 Age como um reservatório de impressões sensíveis após o desaparecimento dos objetos sensórios 2 Combina impressões sensíveis para formar uma imagem sensível complexa 3 Produz imitações Tem a capacidade de imitar todas as coi sas não sensíveis desejos humanos temperamento paixões por meio das impressões sensíveis ou de determinadas combinações delas Mais tarde quando se desenvolve a feculdade racional e o homem começa a compreender o caráter a essência ou a forma dos seres naturais e divinos a feculdade da imaginação recebe e imita essas formas racionais também isto é representaas sob a forma de impressões sensíveis Neste aspecto a imsginação é subordinada à faculdade racional e depende dela para obter os originais que imita não tem acesso direto à essência dos seres naturais e divinos Além disso nem todas as imitações que febrica são cópias perfeitas algumas A lfa rXb i 1 9 5 9 Ibid p 56 10 NT Todas as citações nestas notas referemse aos textos em árabe algumas das obras mencionadas foram traduzidas para o inglês As traduções que reproduzem a paginação dos textos árabes são enumeradas na lista de Leituras no final deste capítulo As traduções para o inglês no correr do capítulo foram feitas pelo autor podem ser mais verdadeiras e mais próximas aos originais outras defeituosas em al guns aspectos e outras ainda extremamente íàlsas ou enganosas Finalmente apenas a íàculdade racional que apreende os próprios originais é que pode julgar o grau de veracidade dessas cópias e de sua semelhança com os originais A faculdade racional é a única feculdade que tem acesso ao conhecimento dos seres divinos ou espirituais e deve exercer um controle rigoroso para garantir que as cópias oferecidas pela facul dade imaginativa sejam imitações boas ou aceitáveis Pode acontecer em casos raros que esta faculdade imaginativa seja tão poderosa e perfeita que supere todas as outras faculdades e passe diretamente a receber ou formar imagens de seres divinos Este caso raro é o caso da profecia Nâo é impossível que o homem quando seu poder imaginativo atinge a perfeição máxi ma deva receber em suas horas de vigília do Inteleao Ativo as imitações de inteligíveis distintos imateriais e todos os outros seres nobres sagrados e os divise Em virtude dos inteligíveis que recebeu terá assim o poder de profecia sobre as coisas divinas Este então é o mais perfeito estico alcançado pelo poder da imaginação e mais perfeito estágio que o homem atinge em virtude de seu poder imaginatívo A descrição da natureza da profecia portanto conduz à distinção entre a facul dade da imiinação e a faculdade racional Explica a possibilidade da profecia como a perfeição da feculdade da iminação e essa imnação é por pouco capaz de dispen sar a faculdade racional e receber as imagens de seres divinos diretamente e sem a me diação desta última Há dois poderes por meio dos quais o homem pode comunicarse com o Intelecto Ativo sua imaginação e sua feculdade racional ou o seu intelecto Quando se comunica com o Intelecto Ativo por meio de sua imaginação é um pro feta que adverte sobre o que vai acontecer e que informa sobre o que está acontecendo agora enquanto quando se comunica com o Intelecto Ativo por meio de sua facul dade racional é um homem sábio um filósofo e tem inteligência completa Parece então que se pode dizer que tanto o governante profeta como o gover nante filósofo possuem a qualidade de conhecimentos necessária para serem o go vernante supremo da cidade virtuosa ou que são possíveis dois tipos de regimes igual mente virtuosos um governado por um profeta sem filosofia e o outro governado pelo filósofo sem profecia Todavia em seus escritos políticos Alfarábi nem sequer examina a possibilidade de um regime virtuoso governado por um profeta que não possua uma íàculdade racional desenvolvida A distinção entre a profecia e a filosofia é psicológica e é útil para a compreensão da natureza da profecia e da filosofia respec tivamente Mas ao discutir a qualidade dos conhecimentos exigidos pelo governante supremo Alfàrábi é explícito em exigir a perfeição de ambas as fàculdades o gover nante supremo não é chamado de profeta perfeito ou filósofo perfeito mas de ser humano perfeito Para começar com o filósofo até mesmo a filosofia ou a sabedoria 1 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Virtuous City p 52 12 Ibid p 5859 que busca permanecem incompletas enquanto náo dispõe da maestria perfeiu da imi ução do conhecimento racional ou teórico que possui a fim de transmitilo aos jovens ou apresentálo à multidão Esta falta tornase um defeito fundamental quando ele se depara com a tarefa de governar e educar uma cidade Seus próprios atributos como filósofo isto é como alguém que se dedica ao conhecimento teórico independente mente de seu emprego ou relação com a cidade desqualificamno como governante Não é possível ser governante filósofo sem o poder da imaginação do qual o profeu é o representante mais exímio Quanto ao profeu enquanto seu poder imiinativo parece tornálo particular mente apto para governar o funcionamento de sua imaginação não usufrui do bene fício do controle racional faltalhe a verificação constante do grau de veracidade ou verossimilhança das imitações produzidas por seu poder de imaginação uma função que somente a faculdade racional pode executar O melhor governante para a cidade virtuosa deve ser portanto um governante filósofo profeta Alfarábi não diz se o profe ta Maomé foi também filósofo mas exige a combinação da profecia e da filosofia ou o exercício da iminação e dos poderes racionais no governante supremo da cidade vir tuosa A filosofia ou sabedoria é indispensável pau governar unu cidade virtuosa Se acontecer a qualquer momento que a sabedoria não tenha qualquer participação no governo e a autoridade governante tiver preenchido todas as outras condições a ci dade virtuosa continua sem um príncipe o governante que cuida dos negócios desta cidade não será um príncipe e a cidade estará vulnerável à perdição Assim se não ocorrer que haja um homem sábio para associarse a ele então após algum tempo a cidade decerto perecerá L e i e S a b e d o r ia d e V id a A sabedoria ou filosofia é uma condição indispensável para a fundação e sobrevi vência da cidade virtuosa A profecia por outro lado é indispensável para a fundação de uma cidade virtuosa mas não para sua sobrevivência Ao enumerar as qualidades do governante supremo ou do fundador da cidade virtuosa Alfiirábi estipula a coinci dência de excelentes faculdades racionais e proféticas Esta exigência é imposta para a organização da cidade virtuosa como comunidade política isto é o fato de que deve ser composta por dois grandes grupos 1 os poucos que são filósofos ou a quem é possível dirigirse por meio da filosofia e a quem se pode ensinar as ciências teóricas e portanto o verdadeiro caráter dos seres divinos e naturais tal como são 2 os muitos que por lhes faltarem os dotes naturais necessários ou por não terem tempo suficien te para o treinamento não são filósofos que vivem pela opinião e persuasão e para quem o governante deve imitar tais seres por meio de similitudes e símbolos A l f a r á b i 1 9 7 1 3 Ibidp6 Enquanto é possível fezer com que os poucos entendam racionalmente o signi ficado da felicidade e da perfeição humanas e a base racional ou justificação das ativi dades virtuosas que conduzem o homem ao seu fim último os muitos são incapazes de tal entendimento e têm de ser ensinados a realizar essas atividades por persuasão e compulsão ou seja por explicações que poderiam ser entendidas por todos os cida dãos independentemente de sua capacidade racional e por recompensas e punições prescritas de um tipo tangível imediato O governante supremo ensina os poucos com sua autoridade de filósofo e apresenta similitudes e prescreve recompensas e punições para os muitos com sua autoridade de profeta Para serem acreditadas e praticadas por muitos essas similitudes e prescrições devem ser formuladas pelo profeta e aceitas pe los cidadãos como verdadeiras fixas e permanentes isto é os cidadãos devem esperar recompensas e punições definidas para a crença e a descrença e para a obediência e a desobediência A feculdade profética culmina então em promulgar leis relativas tanto às crenças quanto às práticas dos muitos e o profeta que assume esta função tornase um profeta legislador A feculdade racional em contrapartida culmina no ensino das ciências teóricas para os poucos Em seu resumo das Leis de Platão Alfiuãbi também entendeu afirmar Platão que esses poucos virtuosos não têm qualquer necessidade de práticas e leis fixas no entanto são muito felizes Leis e práticas fixas são necessárias somente para aqueles cuja moral é deturpada É somente do modo como são encaradas pelos sujeitos que as leis se tornam fixas e de autoridade divina inquestionável Vimos que o governante supremo do regime virtuoso é senhor e não servo da lei Não apenas homem algiun o governa como tam pouco é regido pela lei É a causa da lei que cria revoga e altera como bem entende Possui essa autoridade por causa de sua sabedoria e sua capacidade de decidir o que é melhor para o bem comum em determinadas condições e podem ocorrer situações nas quais alterações da lei não sejam apenas salutares mas imprescindíveis para a so brevivência do regime virtuoso Ao fezêlo o governante supremo deve ter extrema cautela para não perturbar a fé dos cidadãos em suas leis e deve levar em conta os efeitos adversos que têm as modificações ao serem incorporadas à lei Deve fazer uma cuidadosa avaliação das vantagens de mudar a lei contra as desvantagens de tais al terações Assim deve possuir não só a autoridade para modificar as leis sempre que necessário mas também a perícia de minimizar o risco das alterações para o bemestar do regime Porém uma vez que constata que é necessário alterar a lei e toma as devidas precauções não há dúvida quanto à sua autoridade para mudar a lei Portanto en quanto viver a íàculdade racional tem soberania e as leis são preservadas ou alteradas em função de seu julgamento como filósofo É esta coincidência de filosofia e profecia na pessoa do governante que garante a sobrevivência do regime virtuoso Enquanto os governantes que possuírem estas qua lidades se sucederem sem interrupção prevalecerá a mesma situação 1 9 8 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 14 Platds Laws ed Franciscus Gabrieli London Waibuig Instítute 1952 p 41 O sucessor será aquele que decidirá sobre o que seu antecessor deixou em abeno E não apenas isso Pode mudar grande parte do que seu antecessor legislara e tomar uma deci são diferente a respeito quando entender que é o melhor em seu tempo não porque seu antecessor tivesse cometido um erro mas porque decidira de acordo com o que era me lhor em seu próprio tempo e o sucessor decide de acordo com o que é melhor para um momento posterior Caso seu antecessor pudesse observar as novas condições também modificaria sua própria lei É muito rara a coincidência entre filosofia e profecia e o acaso nem sempre favo rece o regime virtuoso por tornar disponível um homem que possua todos os dons na turais necessários e cuja formação evidencie ser bemsucedida Assim surge a questão de saber se a cidade virtuosa pode sobreviver na ausência de um homem com todas as qualificações exigidas do governante supremo e em particular as da filosofia e da pro fecia Admitindo que a melhor configuração possível exija a existência de todas essas qualificações em um homem que deve governar seria possível o regime originado por tal governante sobreviver em sua ausência A única qualificação que Alferábi está dis posto a abandonar em4 Cidade Virtuosa é a profecia mas mesmo assim só se forem tomadas providências para a presença de substitutos adequados para a legislação profé tica Os substitutos consistem em 1 o conjunto de leis e costumes estabelecidos pelos verdadeiros príncipes e 2 uma combinação de novas qualidades no governante que o fazem dominar a arte da jurisprudência isto é o conhecimento das leis e costumes de seus antecessores a disposição de sua parte para obedecer a essas leis e costu mes ao invés de mudálos a capacidade de aplicálos às novas condições pela dedução de novas decisões a partir das leis e costumes consagrados ou a descoberta de novas aplicações para eles e a capacidade de reiir a cada nova situação para a qual não há decisões específicas disponíveis por meio da compreensão da intenção de legisladores anteriores e não pela promulgação de novas leis ou por uma alteração formal das an tigas No que concerne às leis este novo governante é um jurista legislador em lugar de um profeta legislador Deve porém possuir todas as outras qualidades incluindo a sabedoria ou filosofia que o capacitam a discernir e promover o bem comum de seu regime no período específico durante o qual governa No caso de não existir qualquer ser humano que possua todas essas qualificações então Alfiuábi sugere uma terceira possibilidade um filósofo e um outro homem que possua as demais qualidades com exceção da filosofia devem governar em conjunto Caso nem isso seja atingível sugere afinal um governo comum de um determinado número de homens que possuam essas qualificações em separado Contudo esse go verno comum não afeta a presença dos requisitos necessários mas apenas sua presença em um só homem Desta forma a única qualificação cuja própria presença pode ser dispensada é a profecia Os substitutos da profecia são a preservação das leis antigas e a capacidade de descobrir novas aplicações para as leis antigas Para promover o bem co mum e a preservação do regime sob novas condições à medida que surgem nem a coin A l f a r á b i 1 9 9 1 5 Virtuous ReUn fo i 5 4 r cidênciã entre a íilosoíia e a profecia no mesmo homem nem a coincidência da filosofia e da jurisprudência revelamse condições indispensáveis Basta a filosofia estar presen te na pessoa de um filósofo que governe em conjunto com outro homem ou grupo de homens que possuam entre outras coisas a capacidade de criar novas aplicações para as leis antigas Ao contrário da profecia não se pode prescindir da filosofia e nada po de tomar seu lugar Ao contrário da ausência da profecia a ausência da íilosoíia é fatal para a existência do regime de virtuoso Não existe substituto para a sabedoria de vida A G u e r r a e o s L im it e s d a L e i Além da filosofia e da profecia ou então a proficiência na arte de jurisprudência há uma terceira qualificação indispensável que deve estar presente no governante do regime virtuoso ou em um dos grupos que o governam em conjunto a saber ousadia e virtude guerreira Esta qualificação é necessária para o cumprimento da responsa bilidade do governante como educador supremo de todos os cidadãos ou seja para formar e aperfeiçoar seu caráter moral Uma vez que nem todos os homens podem ser convencidos ou incentivados a realizar atividades virtuosas por meio de discursos persuasivos e apaixonados não é suficiente o método da persuasão ou do consenti mento Tal como fãz o pai com seus filhos e o professor com os jovens na escola assim o governante tem de usar a força e a coerção para com aqueles que por natureza ou por hábito não podem ser educados ou persuadidos de forma espontânea a obedecer à lei Por conseguinte o governante precisa empregar dois grupos de educadores um grupo que educa os cidadãos pela persuasão e por meio de argumentos e um grupo de guerreiros para coagir os preguiçosos os ímpios e os incorrigíveis a obedecerem às leis pela força O governante supremo ou os governantes devem liderar dirigir e supervi sionar as atividades dos dois grupos Para comandar o segundo grupo devem possuir uma natureza ousada e sobressair na arte da guerra A natureza e a extensão da coação e força a serem aplicadas dentro de um deter minado regime depende do caráter dos cidadãos quanto mais virtuosos forem menos necessidade haverá de aplicar força Mas há casos em que o governante pode ter de con quistar toda uma cidade e fbrçála a aceitar sua lei divina ou virtuosa ou em que o uso da força poderia encurtar em muito o tempo necessário para estabelecer sua lei enquanto a questão da persuasão é demasiado incerta e as suas perspectivas demasiado longínquas A coerção é legítima dentro do regime no que diz respeito aos cidadãos cuja natureza é intratável ou que têm maus hábitos e com relação a uma cidade inteira como um prelúdio para a criação de uma nova lei divina onde esta esteja ausente A força física a opressão ou a guerra são um elemento fimdamental da lei e um dos prelúdios básicos para estabelecêla Alfarábi parece favorecer não apenas a guerra defensiva mas também a guerra ofensiva e fàla da guerra conduzida pelo governante do regime virtuoso como uma guerra justa e de seus propósitos bélicos como um objetivo virtuoso Ademais embora como Platão e Aristóteles Alfàrábi considere a cidade a pri meira ou menor unidade que constitui um todo político e em que o homem pode atingir 200 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey sua perfeição política ao contrário deles não parece considerar a cidade também como a maior unidade possível em que se pode esperar o florescimento do regime virtuoso Ao contrário fàla de três associações humanas perfeitas A de maiores dimensões é a asso ciação de todos os homens em todo o mundo habitado a intermediária é a associação de uma nação com uma parte do mundo habitado e a menor é a associação dos habitan tes de uma cidade em uma porção de terra habitada por uma nação Se combinarmos seus ensinamentos sobre a guerra e a conquista justas ou virmosas com a ideia de uma associação humana perfeita que se estende por todo o mundo habitado podemos ser levados a concluir que Alfarábi modificou deliberadamente os ensinamentos de Platão e Aristóteles no que se refere a luna questão importante com a intenção de fornecer uma justificativa racional pata o conceito islâmico de guerra santa cujo objetivo era propagar a lei divina em todos os cantos da Terra e que defendia uma guerra de civilização pela qual uma nação mais avançada justifica a conquista de nações mais atrasadas ou que pregai a ideia de um estado universal ou mundial Essas conclusões devem sra ser analisadas à luz das opiniões de Alfarábi acerca da guerra e do caráter da lei Alfarábi menciona duas visões extremas da guerra A primeira é a visão de que subjugar e dominar os outros é o estado natural do homem e de que a guerra é portan to a única conduta universalmente justa A segunda é de que o estado natural do ho mem é a paz universal e a coexistência pacífica é portanto a única conduta justa Esta última visão pode por sua vez ter o corolário de que somente na guerra defensiva na guerra forçada pela conduta anormal de um inimigo guerreiro existe uma causa justa para se pegar em armas Estas são segundo Alferábi as opiniões dos habitantes das cidades ignorantes e equivocadas que se opõem ao regime virtuoso Estas dão ori gem a dois tipos de regimes tiranias e regimes amantes da paz Estes últimos não são considerados suficientemente importantes e é evidente que sua opinião embora incorreta não é perigosa De qualquer forma Alferábi não os inclui na lista como uma subdivisão principal dos regimes que se opõem ao regime virtuoso o que se deve em parte ao feto de que ao contrário da guerra a paz não é uma das principais metas persqidas pelos homens mas um meio para outros fins como o prazer ou o ganho A guerra as conquistas a subjição e escravização de outros e a tirania sobre eles são em contrapartida uma das metas supremas perseguidas pelos homens Dão origem ao regime tirânico em que os homens se associam uns com os outros parti cipam de atividades bélicas elaboram suas leis e ordenam seu regime com o objetivo principal de escravizar um ao outro ou a outros regimes Náo escravizam e matam para atingir outros fins mas para atender a uma finalidade suprema comum a todos eles o amor pela tirania De fato os maus regimes ao buscar outras metas tais como a riqueza honra ou prazer em muitos casos são transformados em tiranias quando estes outros fins são alcançados A satisfeção desses desejos parece libertar os cidadãos de regimes maus para buscar o pior mal de rimes ignorantes e equivocados isto é a A l f a r á b i 2 0 1 16 Ver adiante p 289ÍF 17 Virtuous City p 7580 visáo dc que a tirania é o bem A guerra como um fim em si mesma é para Alfarábi o vício supremo que não pode ter lugar no regime cuja meta é a suprema virtude Tendo utilizado as vantigens da guerra e da compulsão para estabelecer sua lei di vina e refrear os maus e os incorrigíveis o governante do regime virtuoso deve voltarse para a promoção da amizade entre os cidadãos e à tarefe pacífica de persuasão e livre consentimento Para convencer a maioria dos cidadãos tem de produzir similitudes dos seres divinos e naturais e da virtude e da felicidade que sejam adequados em relação à sua proximidade com as formas originais dessas coisas mas que também sejam adequadas no que diz respeito àqueles que devem ser persuadidos por elas As similitudes devem ter alguma relação com a natureza a experiência passada e os há bitos dos cidadãos Ao contrário da atividade bélica a persuasão pacífica exige que o legislador feça concessões ao caráter dos governados ao seu grau de preparação para as leis virtuosas às diferenças entre eles e ao ponto até o qual os cidadãos podem ser aperfeiçoados Estas são as condições prélegais que o legislador não cria mas deve pressupor e que não pode mudar exceto de forma limitada e mesmo gradativa Além disso o legislador não pode produzir similitudes e utilizar métodos persu asivos projetados para atender à natureza peculiar e hábitos de cada cidadão individu almente a lei não pode tratar cada homem como um caso em si mesmo Devem ser prescritas crenças e práticas gerais para todos os cidadãos as quais devem corresponder ao seu caráter distintivo como um grupo Entretanto o que é adequado para um gru po e por conseguinte justo em relação a ele pode ser inadequado para outro grupo e por conseguinte injusto em relação a ele Legislar para todos os homens com respeito pela natureza humana ou pelo que têm em comum significa ser injusto para com a maioria se não para com todos os homens Ponanto se de feto o mundo habitado é dividido em nações e cidades e esta divisão não se baseia em distinções arbitrárias mas em distinções naturais ou distinções que são de alguma forma relacionadas com a natureza tais distinções poderiam estabelecer os limites dentro dos quais poderiam ser prescritas crenças e práticas gerais que sejam ao mesmo tempo eficazes e justas Alferábi qualifica sua declaração sobre as três associações perfeitas a cidade a nação e a associação de todos os homens em todo o mundo habitado com a obser vação de que a associação de todos os homens em todo o mundo habitado é dividida em nações As nações são distintas umas das outras por duas coisas naturais a con figuração natural e o caráter natural e por algo que é um composto é convencional mas tem uma base nas coisas naturais a saber a linguagem Essas distinções são o produto de diferenças geográficas entre as diversas partes da Terra temperatura alimentos e assim por diante que por sua vez influenciam o temperamento de seus habitantes Mas embora constituam a nação como uma unidade natural essas seme lhanças nacionais naturais não constituem uma ligação política suficiente em prol da qual os membros de uma nação deveriam gostar ims do outros ou não gostar de outras 2 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 8 lhe PoUticd Regime p 4 0 nações Os objetos próprios para os gostos e desgostos sáo as perfeiçóes ou as virtudes e estas náo são oferecidas pela natureza mas pelo Intelecto Ativo pela ciência e pela legislação A nação por sua vez dividese em cidades ou cidadesEstados que se dife renciam por seus regimes e leis Apenas a cidade é comparada por Alferábi ao corpo vivo perfeito Os órgãos do corpo vivo não apenas cooperam para um fim comum ocupam diferentes níveis dos quais cada um é perfeito quando executa sua fimção própria seja ela subordinada ou superior e todos são regidos pelo mais perfeito óio Aplicada à nação e à associação de todos os homens em todo o mundo habitado essa similitude exigiria a subordinação das cidades uma à outra e das nações entre si de acordo com seu grau de perfeição Todavia Alfiirábi jamais menciona a subordinação como legítima salvo dentro de uma só cidade e as cidades opostas à cidade virtuosa não são investigadas com vistas a serem subordinadas a uma cidade virtuosa mas a serem transformadas em tal cidade Uma nação virtuosa não é um grupo de cidades governado por uma cidade virtuosa ou perfeita mas a nação com a qual cooperam todas as suas cidades em relação às coisas por meio das quais a felicidade é alcançada e a associação de todos os homens em todo o mundo habitado é virtuosa somente quando as nações nele cooperam para alcançar a felicidade A comunidade virtuosa de todos os homens pressupõe nações virtuosas e a nação virtuosa por sua vez pressupõe cidades virtuosas Esse exame do caráter e da função específicos da faculdade profética e da lei di vina aponta para a conclusão de que a religião deveria ser particularmente sensível às limitações impostas pelas diferenças naturais e convencionais entre as nações e cidades Se uma religião ou lei divina não é espúria obscurantista ou fanática não favorece mas suprime e transcende as metas perseguidas em regimes ignorantes incluindo a tirania e as substitui pelas metas que podem ser procuradas somente por meio da crença em similitudes adequadas ou salutares de seres divinos e naturais e por meio de co mandos e proibições que promovam a virtude e a felicidade em um determinado grupo pronto para sua mensíem Deveria portanto abandonar a meta do regime tirânico cujo objetivo é a tirania absoluta e universal e restringir o uso da força àquele que for necessário para estabelecer um novo regime e conter os maus e os incorrigíveis desse regime Caso contrário será forçado a legislar crenças e práticas que possam ser aceitas e praticadas por todos os homens ou seja baixar seus padrões para se confor mar com a capacidade natural da esmsdora maioria dos homens em vez de defender aqueles que ajudam a cidade ou nação relativamente boa a alcançar a verdadeira virtu de ou felicidade O objetivo alternativo de promover a virtude ou a felicidade entre os melhores ou os eleitos em cada cidade e nação é eliminado porque esta não é a função própria da religião mas da filosofia Lembramos a distinção que faz Alfarábi entre as funções da profecia e da filosofia no regime virtuoso Aos poucos que são dotados de natureza rara e recebem treinamento adequado são oferecidas não similitudes mas o conhecimento teórico dos próprios seres divinos e naturais e da virtude e da felicida de enquanto as crenças e práticas legisladas na lei divina têm como alvo os muitos A u a r á b i 2 0 3 1 9 Virtuous City p 5 4 Ora as distinções naturais e quase naturais entre as cidades e as nações náo pre cisam erigirse em uma barreira contra a transmissão de conhecimentos teóricos Tal conhecimento pressupõe a presença de uma tradição de investigação teórica e de indi víduos raros mas uma vez que estas condições sejam atendidas pode ser livremente transplantado de uma cidade para outra e de uma nação para outra A comunidade universal dos homens superiores de cada cidade e nação ou dos reis sem coroa da humanidade não é uma comunidade dos que creem em um determinado conjunto de dogmas É a comunidade de amantes da única e verdadeira sabedoria Pela sua própria natureza de acordo com Alfarábi uma religião não pode servir de base para essa comunidade A religião surge por causa da incapacidade dos muitos de compre ender o verdadeiro caráter dos seres e da felicidade humana Remedia esta situação ao apresentarlhes similitudes que levam em conta as limitações de seu entendimento e suas características naturais e convencionais como um grupo distinto Da mesma forma porque são invariáveis os verdadeiros princípios da natureza e os verdadeiros princípios políticos são também inflexíveis e não podem eles mesmos ser ajustados para o grau de compreensão e o caráter particular de um grupo político distinto Si militudes em contraste podem ser adaptadas para essa finalidade pois podem estar mais próximas ou mais distantes da realidade Além disso pode haver uma grande quantidade de boas similitudes da mesma realidade Essas similitudes são todas boas ou virtuosas se conseguirem tornar bons ou virtuosos os membros do grupo político em particular para os quais foram projetadas Consequentemente pode haver várias nações virtuosas e várias cidades virtuosas cujas religiões sejam diferentes A aborda gem de Alfarábi para com a religião conduz a uma ciência filosófica das leis divinas Ao apresentar as leis divinas a jurisprudência e a teologia como partes da ciência política indica a possibilidade de uma discussão neutra de todas as religiões ou seitas e das características comuns a todas elas A D e m o c r a c ia e o R e g im e V ir t u o s o Dos seis regimes que se opõem ao regime virtuoso o primeiro e o último ou seja os regimes da necessidade e da democracia ocupam a posição privilegiada de fornecer o mais sólido e melhor ponto de partida para o estabelecimento do regime virtuoso e para o governo de homens virtuosos O regime da necessidade como contrapartida da cidade de suínos na República de Platão oferece a oportunidade para introduzir um regime virtuoso entre os cidadãos que ainda não estão corrompidos pelo amor ao dinheiro ou à honra pela entrega aos prazeres ou pelo desejo de glória Mas uma vez que todos esses existem na democracia não fica claro à primeira vista que contribui ção poderia dar a democracia ao regime virtuoso 2 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 The Political Regime p 56 Virtuous City p 70 21 Ver adiante p 278 Seguindo a descrição de Platão República VIII Álferábi estabelece o primeiro princípio da democracia isto é da democracia pura ou da democracia extrema as sim denominada por Aristóteles como a liberdade e chama o rime democrático também de regime livre A liberdade significa a capacidade de todos buscarem tudo o que desejam e terem liberdade para fàzer tudo o que achatem conveniente na busca da satisfação de seus desejos O segundo princípio é a igualdade a qual significa que nenhum homem é superior a outro em coisa alguma Estes dois princípios definem os alicerces da autoridade a relação entre o governante e o governado e a atitude dos cidadãos uns para com os outros A autoridade só se justifica com base na preservação e no incentivo à liberdade e à igualdade Quaisquer que sejam as realizações do gover nante ele governa somente pela vontade dos cidadãos não importando até que ponto sejam governante ou governados desprovidos de talento o governante deve atender os desejos dos governados e satisfàzer seus caprichos Os cidadãos respeitam apenas aqueles que os conduzem à liberdade e à realização do que quer que lhes permita a fruição de seus desejos aqueles que preservam esta liberdade e lhes possibilitam usu fruir seus desejos diferentes e conflitantes e que os defendem contra inimigos externos Se tais homens são capazes de executar essas funções e ainda se manterem satisfeitos eles próprios com as necessidades básicas da vida então são considerados virtuosos e são obedecidos Os demais governantes são funcionários que prestam serviços pelos quais recebem homenagens ou remunerações financeiras adequadas e os cidadãos que lhes pagam por esses serviços consideramse por isso superiores a esses governantes a quem apoiam Esse também é o caso daqueles a quem o público permite governar ou porque simpatizam com eles ou porque querem recompensálos por um serviço pres tado por seus antepassados Apesar dessas diferenças uma investigação mais profimda do regime democrático revela que em última análise de fiito não há governantes e go vernados há uma vontade suprema que é a dos cidadãos e os governantes são instru mentos a serviço dos desejos e anseios dos cidadãos Ao contrário dos outros cinco regimes não há um objetivo único ou domi nante cobiçado ou almejado pelos cidadãos do rime democrático Formam estes inumeráveis grupos similares e dissimilares de caráter diverso com uma variedade de interesses objetivos e desejos No que se refere às suas metas a democracia é um re gime composto vários grupos intentando metas que caracterizam os outros regimes existem lado a lado e adotam diferentes modos de vida formam uma conglomeração cujas partes diferentes se entrelaçam umas com as outras e são livres para cumprir suas finalidades distintas de forma independente ou em cooperação com outros Visto como o regime democrático torna possível preserva protege e promove todos os tipos de desejo todos os tipos de homens vêm a admirálo e considerálo como o estilo de vida feliz Passam a apreciar a democracia e a gostar de viver nela Um grande número migra para a democracia vindo de diferentes nações e residentes e estrangeiros se encontram se misturam e se casam O resultado é a maior diversidade possível entre os tipos de caráter natural criação formação e estilo de vida todavia to dos os tipos de homens são incentivados ou têm permissão para obter o que desejam A l f a r á b i 2 0 5 na medida em sua capacidade o admite Um regime democrático verdadeiramente desenvolvido apresenta um espetáculo colorido de infinita diversidade e luxo Mas isso significa que dentre todos os regimes que se opõem ao regime virtuoso o regime democrático contém a maior quantidade e variedade de coisas boas e más e quanto mais se expande e se aperfeiçoa mais bondade e maldade nele se encon tram Por conseguinte também abrange diversas partes da cidade virtuosa Alferábi menciona em especial a possibilidade do suipmento de homens virtuosos e da pre sença de homens sábios retóricos e poetas ou seja homens que lidam com a ciência demonstrativa a persuasão e a imitação em todos os tipos de coisas Se o regime da necessidade contribui com cidadãos incorruptos por desejos e prazeres não essenciais o regime democrático cujos cidadãos são na maioria corrompidos pelo luxo oferece as ciências e artes altamente desenvolvidas essenciais para o estabelecimento do regime virtuoso E na ausência do regime virtuoso em que essas ciências e artes têm a maior oportunidade de se desenvolverem na direção certa o regime democrático é o único regime que oferece ampla oportimidade para seu desenvolvimento e permite que o filósofo satisfeça seus desejos com relativa liberdade L e it u r a s A Alfarabi The Political Regime in Medieval Political Philosophy Ed Ralph Lerner and Muhsin Mahdi New York The Free Press 1963 Selection 2 p 3976 Alferabi The Enumeration of the Sciences in ibid Selection 1 chap v Alfàrábi PLttos Laws in ibid Seleaion 4 Introduction and Discourses III Alferabi The Attainment ofHappiness in Alfarabis Philosophy ofPlato andAristotle Trans Muhsin Mahdi New York The Free Press 1962 Part I Aliàrabi The Philosophy ofPlato in ibid part II 2 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y M oisés M aimônides 11351204 Uma discussão da filosofia política judaica medieval parece enfrentar uma dificul dade grave talvez intransponível Haveria sequer um motivo para supor que exista tal disciplina Há poucos elementos na atual literatura histórica que sugiram isso Quan do figuram nas atuais histórias se tanto os filósofos judeus medievais marcam sua presença sobretudo pela posição que ocupam na cronologia como elos na corrente de transmissão de ideias São negligenciados de modo ainda mais evidente nas histórias do pensamento político os autores judeus medievais parecem ser reputados irrelevan tes Não seria difícil encontrar um motivo plausível para este menosprezo um povo que por mais de um milênio foi incapaz de levar uma vida política autônoma e que em grande parte foi categoricamente excluído do governo e da administração pública não é uma fonte provável de reflexão política independente Todavia a despeito de sua grande plausibilidade esta hipótese é fiJsa a realidade é que são discutidos nas obras dos judeus medievais problemas reconhecíveis como inerentes ao campo da filosofia política A especulação acerca dos assuntos políticos nunca foi um terreno exclusivo dos estadistas e dos cidadãos de pleno direito Podemos ir mais longe na tentativa de entender por que os judeus medievais pre ocupavamse com a filosofia política Para começar a Diáspora ou dispersão dos israe litas foi considerada como uma situação anormal pelos próprios judeus já na época de Filão m 54 dC Em termos tradicionais não políticos o exílio era visto como uma punição divinamente ordenada para a iniqüidade do povo lao certo como a pecami nosidade acarretara a destruição da nação judaica assim também o arrependimento propiciaria sua restauração Ninguém seria capaz de prever quando chegaria ao fim essa situação anormal mas jamais houve dúvidas de que chegaria ao fim Deste ponto de vista pelo menos a reflexão sobre questões políticas não era considerada como um exercício absolutamente árido Um impulso mais forte para a especulação desse tipo seria encontrado nas preocupações de estudiosos judeus da Torá e do Talmude Ao contrário da escolástica cristã a filosofia política medieval judaica desenvolveuse no contexto de uma revelação divina que assumiu a forma de lei e não de dogma ou fé Esta lei como pode observar qualquer leitor do Pentateuco visa prescrever e regula mentar até o mais ínfimo detalhe a conduta e as crenças de toda mna comunidade O fator crucial não é apenas que os assuntos políticos tenham papel de destaque tanto na Torá como no Talmude ainda mais importante como estímulo à investigação política e como fator que determinou em parte o modo como foi conduzida tal investigação é a natureza legislativa dessas obras Pelo menos por essas razões os homens devotaram se a examinar questões políticas em um momento em que havia pouca coisa na vida cotidiana que indicasse serem úteis ou adequadas tais especulações No entanto outra dificuldade não menos desconcertante surge quando nos voltamos para as obras dos estudiosos judaicos medievais Não parecem ter escrito tratados políticos em si e náo existe de fato muito material caracterizado como um tratamento temático de fôlego acerca de assuntos políticos Via de regra a filosofia política judaica medieval advém de uma discussão de algum outro tema a interpreta ção da Bíblia as principais características da lei divina o significado de determinados termos bíblicos a reformulação sistemática da legislação talmúdica a defesa do juda ísmo Já foi apontado o motivo para isso as próprias circunstâncias mencionadas que entre outras impulsionaram alguns estudiosos judeus para a filosofia política também afetaram o modo como filosofaram ou como apresentaram seus ensinamentos A apre sentação não temática de sua filosofia política deriva em parte da necessidade dos filósofos judeus tal como seus contrapartes muçulmanos de justificar sua atividade filosófica perante o tribunal da lei revelada Nenhum deles teria ousado começar um trabalho com a pergunta que abre a Summa Theologica Se além das disciplinas filo sóficas ainda é necessária qualquer outra doutrina No judaísmo ainda mais que no islã a defesa da filosofia precisava ser feita e conquistada antes que se pudesse filosofar em público Dito de outra forma aquilo que vulgarmente se diz ser a principal preocupação da filosofia política medieval de monstrar a harmonia entre os ensinamentos revelados e os ensinamentos de Aristóteles pressupõe a legitimidade do filosofar Como ficou evidente a partir do capítulo sobre Alfarábi estabelecer a legitimidade da atividade filosófica requer argumentos que nâo derivam nem dos ensinamentos revelados nem dos ensinamentos aristotélicos A pri meira necessidade era entender a lei revelada de forma que permitisse e até mesmo demandasse a filosofia No que concerne ao judaísmo o esforço decisivo nesta tarefà foi realizado por Moisés ben Maimón Maimônides Sua predominância na filosofia judaica medieval é tal que se pode sem injustiça imerecida para com os outros con ceber seus ensinamentos como o núcleo e levar em conta outros pensadores judeus onde aprofundam ou se desviam de seus ensinamentos políticos em algum aspecto significativo Ao considerar seus ensinamentos políticos é bom lembrarse de que de modo algum a filosofia constitui o núcleo da religião judaica A filosofia surgiu muito tardiamente no judaísmo e jamais alcançou um status que lhe proporcionasse aceita ção irrestrita No entanto de acordo com o plano desta obra a presente discussão se limitará à filosofia política propriamente dita A fim de discutir os objetos e o caráter da lei devese partir de uma compreensão dos seres em prol dos quais são elaboradas as leis Assim fàz Maimônides em seu Guia dos Perplexos analisa a necessidade das leis antes de apresentar sua discussão temática 2 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y delas Dentre todas as espécies é o homem e o homem apenas que é estritamente um animal poUtico De fato há animais aos quais podemos corretamente denominar sociais mas nenhum outro animal além do homem necessita da reflexão ou da ptesdênda a fim de sobreviver Se fosse permitido que o homem levasse a vida dos animais pereceria de imediato isolado suas fiiculdades animais estariam muito aquém do que é necessário para sua sobrevivência É somente através de sua feculdade racional por meio da qual exerce o pensamento e a ptesdênda que o homem pode realizar o que é necessário para a autopreservação Alimento abrigo vestuário mdo isso exige o emprego de alguma arte sobre as matériasprimas da natureza a fim de preparálas para o uso do homem Uma vez que as artes por sua vez pressupõem o uso de ferramentas e a existência de ho mens capazes de utilizálas seguese que a sobrevivência do homem depende da divisão do trabalho e de uma organização social ordenada em que cada indivíduo pode dedicar se a uma tarefe em particular na certeza de que sua contribuição para a preservação de seus companheiros é correspondida pelas contribuições deles para sua preservação A necessidade dos homens de viver em uma sociedade organizada é reforçada pela variedade de grandeza única predominante entre eles pois a gama de diferenças de comportamento é tão extrema que dois indivíduos podem dar a impressão de per tencerem a duas espécies diferentes Diante de tal variedade os homens não seriam capazes de viver juntos sem a supervisão e o controle de alguém que reprimisse e moderasse os excessos individuais Assim como a natureza do homem parece exigir a sociedade assim a perfeição da sociedade exige um governante que meça as ações dos indivíduos aperfeiçoando o que é deficiente e reduzindo o que é excessivo e que pres creva ações e hábitos morais para que todos os pratiquem sempre da mesma forma até que a diversidade natural esteja oculta por muitos pontos de acordo convencionados e assim a sociedade tornase bemordenada Os meios pelos quais se fez desaparecer essa variedade natural é a lei Essa lei que Maimônides afirma ter uma base no que é natural embora não sendo natural deve ser examinada em mais detalhes As próprias circunstâncias que demandam uma legislação suscitam sua preocupa ção tanto com ações quanto com opiniões Mas há uma multiplicidade de leis humanas e divinas e este feto apenas sem mencionar seu caráter mutuamente exclusivo exige que sejamos capazes de distinguir um tipo de lei do outro Considerando os possíveis objetos de legislação Maimônides conclui que correspondem à dupla perfectibilidade dos seres humanos a perfeição do corpo e a perfeição da alma Uma lei pode preocupar se apenas com o estabelecimento da boa ordem na cidade Tentaria evitar maus procedi mentos por pane dos cidadãos pela restrição e direcionamento de suas ações procuraria abolir a injustiça e assegurar a tranqüilidade pública procuraria inculcar certas qualida des morais na população qualidades que fecilitam a vida social pacífica procuraria pos sibilitar que os homens alcançassem a felicidade ou mais precisamente que alcançassem o que o legislador imsna como felicidade O único objetivo dessa lei é o bemestar do M o is é s M a im ô n id e s 2 0 9 1 Moses Maimônides Guide ofthe Perplexed I 72 III 27 2 Ibid I I 40 corpo Sua preocupação total com a boa ordem da cidade é equilibrada por sua absoluta indiferença pelo tipo de opiniões dominantes na cidade desde que estas sejam compatí veis com a vida civil pacífica Maimônides chama essa lei de nomos Em contraste a lei pode procurar promover ambas as perfeições do homem tal como o nomos prescreveria as medidas necessárias para uma vida social decente per mitindo assim que os homens não apenas preservassem a si mesmos mas vivessem no melhor estado corpóreo possível Indo além disso pretenderia promover uma perfeição correspondente da alma inculcando opiniões corretas em cada um de acordo com sua capacidade individual Essa preocupação com o bemestar da alma assim como a do cor po esse esforço para desenvolver a compreensão de cada homem de mdo o que existe tanto quanto for possível é a característica distintiva de uma lei divinamente revelada Em suma Maimônides distingue entre um nomos cujo objeto é a felicidade imagi nária e uma lei divina cujo objeto é a verdadeira felicidade Mas a própria possibilidade de assegurar este objetivo mais nobre ou seja de aperfeiçoar as almas dos homens ajudandoos a adquirir opiniões corretas está condicionada à obtenção do bemestar do corpo Embora possam ser inferiores quanto à sua dignidade as necessidades do corpo e por extensão a ordem descendente da sociedade o que torna possível que tais necessidades sejam atendidas têm prioridade no tempo O bemestar político é a condição indispensável para a suprema perfeição do homem Para Maimônides a perfeição do homem está muito distante de qualquer preocu pação com o corpo Os assuntos que figuram com preeminência em todos os códigos le gislativos as ações humanas e as qualidades morais não fazem parte dela A perfeição do homem consiste ao contrário na sua obtenção de opiniões corretas opiniões às quais é conduzido pela especulação e que estabelece como verdadeiras por meio das ciências teóricas As leis ocupam uma posição de importância crucial pois suas prescrições or denam a vida dos homens de tal forma que lhes permite exercer sua perfeição máxima Uma vez que a vida social é tornada possível os homens podem devotarse à única atividade privada que lhes permitirá atingir sua finalidade correta Em certo sentido é verdade que as leis ou o estudo das leis é uma coisa pequena Mas em outro sentido é o grande bem que a divindade fez transbordar sobre o mundo Todas as ações prescritas pela lei divina sejam atos de culto ou úteis hábitos morais destinamse a regular as rela ções sociais dos homens Maimônides observa repetidas vezes que as prescrições deste tipo não partilham da dignidade da finalidade mais elevada do homem mas são apenas os preparativos ainda que necessários para a consecução desse fim De modo algum é reduzida a importância da lei por essa visão Na verdade poderíamos dizer que para Maimônides a mais elevada forma de revelação é a mais elevada em virtude da sua natureza jurídica Deus fez Sua vontade manifesta aos ho 2 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 Ibid I I 40 III 27 4 Ibid II 3940 III 27 5 Ibid III27 6 Ibid III 2728 54 Code Yesodei haTorah ivI3 mens tanto antes como depois de Moisés mas as profecias dos outros homens diferem radicalmente das de Moisés A diferença é tão grande um deles era tão superior aos demais que Maimônides declara que o termo profeta não pode ser aplicado a ambos com o mesmo significado A discussão detalhada sobre a superioridade da profecia de Moisés é reservada para as obras jurídicas de Maimônides o Comentário sobre a Mish náeo Código é apenas mencionada no Guia7 No entanto sua intenção no Guia leva Maimônides em pelo menos mais duas ocasiões a fazer uma distinção maior entre a profecia de Moisés e a dos outros profe tas Os profetas anteriores por exemplo Abraão ou Noé foram abordados por Deus no que diz respeito exclusivamente a seus assuntos particulares o fim em vista era a perfeição de si mesmos e de seus descendentes Enquanto Abraão de fiito dirigiuse a outros homens também o seu apelo a eles consistia em discursos eloqüentes e provas especulativas por meio das quais esperava instruir os homens na verdade que apreen dera Em suma o que Abraão recebeu de Deus não tinha a forma de lei seus esfor ços de persuasão não dispunham de meios para compelir O caráter essencialmente privado de todas as profecias anteriores a Moisés significa que não houve qualquer tentativa explícita por parte daqueles profetas para forjar ou aperfeiçoar uma ordem social e política A distinção fundamental entre as profecias mosaicas e prémosaicas é precisamente esta o que foi dado a Moisés tinha a forma de lei Nenhum de seus an tecessores conhecidos jamais se apresentou ao povo e declarou Deus me enviou a vós e me ordenou que vos dissesse tais e tais coisas Ele vos proibiu de fiizer isso e ordenou que fizésseis aquilo Embora os profetas anteriores a Moisés instruíssem o povo sua convocação para o povo não assumiu a forma de legislação divina os profetas que se seguiram a Moisés estavam preocupados principalmente em induzir o povo a obedecer à sua lei O que distingue Moisés e destaca sua superioridade em relação aos profetas que o precederam e sucederam consiste em ser ele o único profeta legislador Daí resulta que a lei mosaica é a única lei divina ou pelo menos a única lei divina perfeita embora alguns homens possam continuar a profetizar e apreender ver dades sobre Deus e os anjos Da mesma forma consequentemente para Maimônides essa lei divina de Moisés é imutável e inalterável Em seu caráter de lei não dá atenção ao caso isolado ou raro não pode preocuparse com o ser humano específico que sofre por causa da generalidade da lei De fato como já observamos é parte dos objetivos da lei obscurecer a diversidade natural dos homens pela imposição de uma espécie de harmonia convencionada que promove a paz cívica A lei deve ser absoluta e universal em suas prescrições e proibições muito embora o que a lei exige seja adequado somen te na maioria dos casos e apesar de mudarem os tempos e as circunstâncias Negar esse princípio e tentar moldar a legislação segundo o padrão da medicina na qual se toma em devida conta as características particulares do indivíduo implicaria a corrupção de toda a tessitura da lei M o is é s M a im ô n id e s 211 Guide II 35 Cf Commentary on the Mishmh Sanhedrin X Introduction anicle 7 and Code Yesodei haTorah vii6 Guide 163 II 39 Code Deoth i7 Ao contrário de Alíarábi a quem considerava inferior apenas a Aristóteles entre os filósofos Maimônides náo discute de modo explícito a possibilidade do governo da sabedoria de vida em lugar de leis escritas fixas Quando as circunstâncias o exigem os regulamentos precautórios podem ser fixados pelo Grande Tribunal de Justiça que representa o julgamento dos homens de saber de um determinado período tais regu lamentos assumem a forma de acréscimos permanentes à lei divina No caso extremo as prescrições ou proibições da lei divina podem ser temporariamente suspensas pelo Grande Tribunal de Justiça Mas afora essas exceções ninguém pode efetuar qualquer mudança na lei divina essa lei permanece intacta e inalterável o exemplo único e perfeito de seu tipo Essa conclusão de Maimônides é negada de modo peremptório por José Albo d 1444 Em seu Livro dos Princípios no qual distingue os vários tipos de lei e exami na os princípios da lei divina Albo verifica que tem havido uma série de leis divinas Cita como exemplos as leis de Adão Noé Abraão e Moisés com a clara implicação de que esta lista pode não ser exaustiva Pelos mesmos motivos por que um só nomos não seria adequado para todos os homens do mundo uma só lei divina seria tam bém inadequada para todos os homens em toda parte Os temperamentos humanos diferem cabalmente devido à hereditariedade e ao habitat e estas diferenças por sua vez implicam diferentes costumes e convenções Após análise as leis divinas revelarão determinados princípios fimdamentais compartilhados por todos eles indicativos da unidade do doador dessas leis e ao mesmo tempo grandes diferenças em suas prescrições detalhadas que refletem a heterogeneidade dos destinatários dessas leis As leis divinamente reveladas podem coexistir em qualquer momento dado embora difiram na abrangência e rigor de seus regulamentos A lei de Noé e a lei de Moisés por exemplo são igualmente divinas ambas conduzem à felicidade humana embora em graus diferentes O fato de uma lei divina ser suplantada por outra lei divina para um povo em particular náo revela nenhum defeito ou alteração no doador e nâo cons titui de forma alguma prova de que as opiniões mudam O que mudou foi o caráter dos destinatários Como um médico ou professor que sabe que aquilo que é bom em um determinado momento não será suficiente para sempre Deus dá uma lei divina apenas com vistas a preparar os homens para um sistema mais rígido A sucessão de leis divinas no mundo efemou grandes mudanças no que é permitido aos homens e o que é proibido a eles estas alterações têm sido feitas para se harmonizar com a mudança dos tempos e com a mudança do caráter humano Albo não vê motivo para pensar que tais alterações na lei divina não possam ocorrer de novo permitindo algumas coisas que agora são proibidas Não só nega que haja qualquer evidência para a alegação de Maimônides de que a imutabilidade é uma raiz da lei mosaica mas nega que haja qualquer prova ou qualquer necessidade de con siderar a lei divina em geral ou a lei mosaica em particular como fundamentalmente 2 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Guide II 3940 I I I 34 4146 10 Joseph Albo Book ofRoots I 4 25 III 1314 imunes a alterações ou revogação É seguro afirmar apenas que a crença na veracidade da missão de Moisés implica a crença de que a lei mosaica não será alterada ou suplan tada por outra lei divina apresentada por um outro profeta A filosofia política judaica como a do islã atribuía uma importância muito gran de à profecia Ao contrário de Tomás de Aquino cujas discussões da profecia não fazem qualquer menção à lislação Maimônides considera que o profeta exerce uma íimção política decisiva A crença na lei divina pressupõe uma crença incondicio nal na profecia pois se não há profeta não pode haver lei divina Podese afirmar isso de outra forma uma vez que a sobrevivência humana depende da existência da sociedade e como a sociedade se baseia numa harmonia que deve ser imposta sobre temperamentos humanos opostos a sabedoria divina dotou determinados indivíduos humanos com a faculdade de governar Incluídos nesta ordem de homens que têm a capacidade de governar outros estão determinadas ordens de profetas Em suas mani festações mais perfeitas a inspiração do profeta atende a fins públicos ou políticos ao contrário de uma finalidade privada Experimentalmente podese dizer que tais metas sejam o aperfeiçoamento da ordem social Após rever a definição de profecia de Mai mônides voltaremos a examinar a relação entre os objetos da lei divina e o objeto da mais elevada forma de profecia Os ensinamentos de Maimônides sobre a profecia são idênticos aos dos filósofos islâmicos em quase todos os aspectos relevantes O próprio Maimônides distingue três opiniões no que se refere à profecia que são iguais às daqueles que admitem a existência da deidade A primeira é a do vulgo sejam eles psos ou judeus Deus es colhe quem quer que deseje e o transforma em profeta Segundo essa visão as únicas precondições para a profecia são uma certa bondade e sólida moralidade A sunda opinião é identificada por Maimônides como a dos filósofos a profecia é o resultado natural de um indivíduo perceber em si a mais elevada perfeição que é potencial em toda a espécie humana Se um homem superior atingiu a perfeição em suas qualidades morais e racionais e em sua faculdade imaginativa e se foi submetido a preparação adequada deve necessariamente tornarse profeta A terceira é a opinião de nossa lei tal como a segunda opinião sustenta que o natural é que todos os que estão aptos por sua disposição natural e que treinam a si mesmos em sua educação e estudos tornarseão profetas Segundo Maimônides o equipamento e a formação naturais são condições necessárias mas não como o são de acordo com os filósofos suficien tes para a profecia um homem pode estar apto e preparado para a profecia porém milagrosamente não se tornar profeta A profecia é definida como um transbordamento de Deus para a faculdade racio nal do homem e mais tarde em direção à sua faculdade imaginativa Para receber essa emanação divina o homem deve ter atingido a máxima perfeição da razão da moral e M o is é s M a im ô n id e s 2 1 3 11 I I I 1416 cf 19 12 C f eg Summa contra Gentiles íii154 13 Guide II 37 40 III45 da imaginação que é possível para a espécie humana Seu intelecto é aperfeiçoado por meio do estudo das ciências especulativas deve ser aperfeiçoada a disposição natural original de sua imaginação não pode ser sanado um defeito natural desta sua mo ral é aperfeiçoada por meio de uma preocupação consciente e habitual com as coisas nobres e divinas e através da libertação de seus pensamentos de qualquer desejo de prazeres físicos e de dominação sobre os outros Aquele que atingiu essas perfeições é o homem de tipo mais elevado Não pode existir maior perfeição na espécie humana um profeta como tal é superior ao mais sábio filósofo Antes de passar à discussão da profecia por Maimônides é necessário traçar a rela ção entre esta perfeição tríplice e a função do profeta A crença na lei divina pressupõe a crença na profecia porque a revelação da lei ocorre por meio da instrumentalidade do profeta A lei divina como vimos visa assegurar dois grandes objetivos o bemestar do corpo e o bemestar da alma ou em outras palavras a ordenação decorosa da socie dade e a aquisição de opiniões corretas e verdadeiro conhecimento por meio da espe culação A lei divina é dirigida a um grande número de homens mas eles são desiguais nas suas capacidades de compreensão e de aperfeiçoamento a lei divina deve de alguma forma dirigirse a uma grande variedade de tipos humanos e deve de algu ma forma ser apropriada para uma grande variedade de situações humanas Essas dificuldades são resolvidas por meio das caraaerísticas do mensageiro di vino ou profeta que comunica a lei divina aos homens Por causa da perfeição de seu inteleao o profeta tem conhecimento direto de verdades especulativas Ao contrário dos filósofos não precisa recorrer a premissas e inferências a fim de compreender Mais do que isso o profeta é capaz de compreender direta e imediatamente o que os ho mens não proféticos só alcançam de maneira incompleta ou não são capazes de alcan çar O homem como homem é limitado ao conhecimento direto do mundo sensível ao seu redor Assim por exemplo enquanto os ensinamentos de Aristóteles a respeito deste mundo sublunar estão corretos em todos os aspectos seus ensinamentos sobre o mundo superior o mundo além da esfera lunar o mundo de Deus e dos anjos não é perfeitamente correto Aqui só o profeta tem conhecimento direto O profeta então é superior ao filósofo exatamente naquele aspecto em que o filósofo é superior a todos os homens não filosóficos A perfeição moral que Maimônides cita como outra condição da profecia está ligada de modo mais direto à superioridade intelectual do profeta pois enquanto o desejo de conhecimento especulativo e sua obtenção até certo ponto não dependem da perfeição moral a preocupação com os prazeres sensuais desvia os pensamentos do homem do mundo superior O profeta se distingue dos outros homens por sua com pleta devoção às coisas divinas Interessado apenas no conhecimento da deidade e na reflexão sobre Suas obras e sobre o que se deve crer com relação a isso um homem 2 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Ibid I I 32 36 cf 23 15 Ibid I I 22 38 cf I Introduction perfeito desse tipo verá somente Deus e Seus anjos Mais do que qualquer outro homem o profeta devotase totalmente à compreensão de tudo o que existe Em virmde da perfeição de seu intelecto o profeta é o mestre de todos os homens Mas não se podem ensinar todos os homens da mesma fornu eles não têm igual capa cidade de receber do profeta as verdades especulativas que este apreendeu a respeito de Deus e dos anjos De íato o conhecimento devastador que o proíèta atingiu confundiria e desnortearia a todos menos o inteleao mais perfeito Esse conhecimento ou pelo menos suas conclusões gerais deve ser apresentado aos homens em particular aos ho mens não filosóficos de maneira que possam entendêlo Por meio de sua imaginação perfeiu que por meio de seu inteleao recebeu uma emanação divina o profeta é capaz de representar essas verdades especulativas por metáforas Esta apresentação metafórica do conhecimento teórico deriva da compreensão prática do profeta Maimônides interpreta o versículo de Provérbios Como maçãs de ouro em sal vas de prata assim é a palavra dita a seu tempo à luz dessa análise da profecia Explica o versículo da seguinte forma uma frase pronunciada com vistas a dois significados é como uma maçã de ouro revestida de filigrana de prata com furos diminutos Seu significado externo deveria ser tão belo quanto a prata ao passo que seu significado interno deveria ser ainda mais belo sendo em comparação com o exterior como o ouro é para a prata Seu significado externo deveria fornecer algum indício do que se encontra por dentro embora o observador distraído vá confundilo com uma maçã de prata Se considerarmos as parábolas que abundam nos discursos dos profetas veremos que possuem tanto um significado externo como um sentido interno O significado externo contém a sabedoria que é útil em muitos aspectos entre os quais o bemestar das sociedades humanas Seu significado interno contém a sabedoria que é útil para as crenças relativas à verdade tal como ela é Essa perfeição inteleaual que qualifica o profeta para ser o mestre de todos os homens encontra correspondência naquela perfeição de sua imaginação que o qualifica para ser o líder dos homens O profeta é o homem que tem perfeita compreensão teórica e prática Essa doutrina pode ser expressa em outras palavras como resultado de seu in telecto perfeito e imaginação perfeita o profeta reúne em si os traços de homens que atingiram a perfeição em apenas uma ou outra faculdade A emanação divina afeta somente a feculdade racional no caso dos homens de ciência que estão envolvidos na especulação Afeta somente a feculdade imaginativa no caso da classe de homens que governam as comunidades políticas os legisladores os adivinhos e assim por diante Tal como a classe referida antes personifica o entendimento teórico assim esta última representa o entendimento prático Ao receber um transbordamento divino que afeta tanto seu perfeito intelecto como sua perfeita imsinação o profeta se torna a um só tempo filósofo e estadista bem como legislador e adivinho Mais exatamente a união de ambas as perfeiçóes permite que o profeta supere qualquer um dos homens não M o is é s M a im ô n id e s 2 1 5 16 Ibid I I 36 17 Ibid I Introduction III28 proféticos Como o emissário da lei divina o profeta se torna o mestre dos homens e por conseguinte também dos filósofos tornase o líder dos homens e por conseguin te também dos governantes das comunidades políticas É com o objetivo específico desta funçáo política da profecia que Maimônides fala da necessidade do profeta de ter altamente desenvolvidas as faculdades da coragem e da divinaçáo Sua ascensáo ao conhecimento das coisas divinas é seguida por uma descida com qualquer que seja o decreto do qual o profeta foi informado com vis tas a governar e ensinar o povo da Terra Em virtude da sua superioridade o profeta é obrigado a profetizar ou seja a instruir os homens em assuntos práticos ou em ma térias especulativas Incapaz de resistir ao transbordamento divino que os impele os profetas se veem expostos a graves perigos por parte dos injustos e dos desobedientes a quem dirigem seu apelo A coríem é portanto um prérequisito indispensável para todos os profetas Quando presente em sua forma mais desenvolvida o indivíduo solitário tendo apenas o seu cajado dirigiuse com ousadia ao grande rei para salvar uma comunidade religiosa da aflição da escravidão e não tinha medo ou temor por que foi dito a ele Eu estarei contigo Já mencionamos a discussão de Maimônides do homem como animal político Aquilo que exige a sociedade exige igualmente a lei para governar a sociedade Que certos indivíduos humanos possuem a faculdade de governar é um sinal da sabedoria divina na perpetuação da espécie No primeiro nível daqueles que Maimônides cita como possuidores desta faculdade está o profeta ou aquele que traz o nomos Estes homens proclamam a lei a aplicação da lei proclamada é a província do rei É assim que o profeta surge não só como mensageiro divino mas como legislador e fundador de uma sociedade política Para explorar melhor esse papel do profeta devemos nos voltar para a discussão de Maimônides da lei dada por esse indivíduo solitário Moisés Em uma declaração sobre a ciência política que ocorre em seu Tratado sobre a Arte da Lóca Maimônides após constatar que os filósofos escreveram muitos livros sobre ciência política afirma Nestes tempos tudo isso quero dizer os regimes e os nomoi foram dispensados e os homens são regidos por comandos divinos Ao dizer isso sugere que os ensinamentos práticos dos filósofos em questões que tenham a ver com política são agora supérfluos Maimônides não faz essa inferência com relação às obras dos filósofos sobre a ética e a filosofia política A mudança que tornou supérfluos os ensinamentos políticos práticos dos filósofos nestes tempos é a predominância da religião revelada Sua afirmação evidencia a importância política decisiva da lei divina A discussão de Maimônides da lei mosaica no Guia dos Perplexos apoia esta interpreta ção A lei divina visa garantir o bemestar tanto do corpo como da alma Ao visar a esses objetivos a lei mosaica trata de assuntos políticos de questões que têm a ver com o governo dos homens de modo extenso preciso e detalhado a Torá entretanto fàla apenas de forma resumida da matéria especulativa Em outras palavras uma vez que a 18 Ibidl5llò7ò45 19 Ibid I I 40 2 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Torá é o repositório de todas as informações necessárias que têm a ver com o governo da família e o governo da cidade nâo há necessidade aqui de se voltar para as obras dos filósofos em busca de orientação É apenas porque a Torá trata de forma concisa essas opiniões corretas através das quais os homens podem atingir a sua perfeição maior que os indivíduos que estão equipados para fàzêlo precisam direcionar sua atenção para as ciências teóricas A questão decisiva é que Maimônides considera a lei dada pelo mais eletdo profeta como sem dúvida superior à lei do filósofo A cidade fundada pelos filó sofos e governada sjmdo as suas leis é inferior à cidade fundada por um profeta e go vernada segundo as suas leis pois o filósofo legislador é inferior ao profeta legislador Anteriormente quando discutimos a relação entre os objetos da revelação e o objeto da profecia concluímos de modo experimental que a meta do profeta era aper feiçoar a ordem social Podese agora contemplar esta afirmação como insuficiente A lei divina destinase a conduzir os homens a opiniões corretas sobre Deus e os anjos mas fàz isso primordialmente pela apresentação de conclusões Seu principal esforço é voltado para estabelecer determinado tipo de comunidade política Se refletirmos sobre as ações dos Patriarcas e de Moisés fica claro que a meta de seus esforços durante sua vida foi produzir uma comunidade religiosa que conhecesse e adorasse a Deus O obje to da revelação o grande bem que Deus faz sobrevir ao mundo sublunar é a fundação de uma comunidade religiosa perfeita Este objetivo só pode ser alcançado se as mentes e as ações de todos os homens puderem ser alcançadas por essa revelação Se deve ser cumprido o propósito divino a revelação deve assumir a forma de lei uma lei perfei ta que funcione como a constituição por assim dizer da nação perfeita Além disso a revelação deve ser apresenuda de forma a que todas as pessoas inclusive os jovens e as mulheres possam compreendêla É por isso que a Torá feia de acordo com a língua dos filhos do homem É por isso que é necessário um homem da mais extrema perfei ção do intelecto e da imsinação pata proclamar a lei perfeita A mais elevada brma de profecia é a lislativa e Moisés é o maior profeta porque sua profecia é a única profecia legislativa genuína O maior profeta é o fundador e legislador da cidade perfeita É típico dos ensinamentos de Maimônides enfetizar mais as considerações po líticas que as explicações milirosas Esta tendência fica evidente não apenas em seus ensinamentos sobre a profecia mas também em suas discussões de dois temas rela cionados a monarquia e a era messiânica em seu Código legal O título hebraico do Código Mishnê Torá Repetição da Torá é a expressão tradicional que designa o quinto livro da Bíblia O livro do Deuteronômio reafirma e incrementa a legislação dos três livros precedentes preocupase com as necessidades de um povo que já não vaga pelo deserto e não mais é protegido e cuidado pela divina providência extraordi nária mas que ao contrário habita sua própria terra e se confronta com problemas decorrentes da agricultura dos conflitos internos e da agressão externa O Código de Maimônides tem caráter similar nele são retomadas as leis da Torá e do Talmude M o is é s M a im ô n id e s 2 1 7 20 Ibid III 2728 51 54 Treatiseon iheArtofLogfc xiv 21 Guide I 33 III 51 Code Yesodei haTorah ivl3 sem se limitar às leis aplicáveis à vida na Diáspora A Mishnê Torá de Maimônides tal como a de Moisés preocupase com as necessidades práticas de um Estado real isto é o Estado judeu antes da Diáspora e depois da vinda do Messias A monarquia é obrigatória em Israel é uma necessidade sancionada ou melhor comandada pela lei divina Segundo Maimônides o principal motivo para a nomeação de um rei é que ele faz julgamentos e trava a guerra A guerra está intimamente ligada à monarquia dos 23 mandamentos discutidos na seção do Código intitulada Leis Rela tivas aos Reis e suas Guerras apenas cinco não tratam de algum aspecto da lei militar enquanto todos os capítulos dedicados aos demais cinco mandamentos que regulam a escolha e o modo de vida do rei fazem alusão à guerra de modo mais ou menos franco Depois de subjugar as nações contra as quais a Bíblia obriga à guerra o rei tem liberdade para travar guerras permissivas contra as outras nações a fim de ampliar as fronteiras de Israel e para aumentar a sua grandeza e fama O rei tem também poder avassalador de julgamento ao contrário dos tribunais que são cerceados pelas garantias processuais em casos de pena capital Sempre que uma situação extrema o exigir o rei pode sentenciar à morte muitos infratores em um único dia e em seguida pendurálos para exibição durante o tempo que lhe aprouver para instilar o medo Não obstante essas prerrogativas do cargo o rei continua a ser subordinado ao cumprimento da lei e em vista disso subordinado ao legislador e aos intérpretes dessa lei Sua função é subsidiária à do profeta ou legislador o rei obriga o povo a observar a lei divina ou o nomos estabelecido por esses homens O medo e o temor que inspira e os fatores dissuasivos que tem à sua disposição estão a serviço dos juizes De diversas maneiras Maimônides sugere muito fortemente que o rei náo é de fato o primeiro ho mem da nação Afirma de modo explícito que o rei está sujeito à lei e por conseguinte aos tribunais de justiça Chama a atenção para a subserviência do rei à palavra proferida por Deus ao comando de Deus tal como expresso pelo profeta De fato até mesmo os maiores dos reis aqueles que como Davi e Salomão foram inspirados para fàlar de assuntos governamentais e divinos mesmo esses atingiram apenas os primeiros degraus que conduzem à profecia Os maiores reis estão abaixo dos profetas A análise feita por Maimônides da monarquia como instituição política e militar é bastante amenizada por Isaac Abravanel 14371508 Este de modo similar rejeita a visão de Maimônides do profeta como filósofo estadista Inspirandose na Nonagési ma Epístola de Sêneca Abravanel constrói seu argumento sobre premissas fundamen talmente antipolíticas Para ele a sociedade política como tal é uma artificialidade A fundação de cidades a instituição da propriedade privada a subdivisão da raça humana em nações são todas o produto da rebelião contra a ordem natural e divina No início os homens viviam em estado de inocência nos campos todos desfrutavam os bens da natureza em comum os homens viviam em um estado de liberdade e igual dade Abravanel encontra um paralelo com este estado natural na vida dos Filhos de 218 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 22 Guide II40 45 III 41 Code Mekkhim il 8 iii1710 ivlO vl Israel durante suas andanças pelo deserto quer dizer em uma vida marcada por uma contínua proteção milagrosa por Deus A vida política representa uma revolta contra Deus Não surpreende que Abravanel quase sozinho entre os comentaristas medievais judeus negue que a Bíblia em Deut 1714 s tenha feito a monarquia obrigatória em Israel Sustenta que a monarquia é uma transgressão que no próprio ato de investir um homem com um título real o povo abandona os comandos do Senhor o pecado jaz em sua rejeição do reino divino e na escolha pelo reino humano O melhor que se pode dizer sobre a monarquia é que a lei divina a permitiu reconhecendoa como um ato do instinto do mal no homem e levando em conta essa ífaqueza humana Apesar de seu julgamento adverso sobre a utilidade e conveniência da monar quia Abravanel afirma que o próprio governo da nação judaica culmina no governo monárquico Considera esse governo composto daquilo que na doutrina cristã é co nhecido como as duas espadas temporal e espiritual cada um desses governos por sua vez contém elementos democráticos aristocráticos e monárquicos No topo do regime temporal misto está um homem como Moisés Moisés foi o primeiro rei a reinar sobre Israel À frente do governo espiritual está um profeta Os elementos predominantes do Estado judeu no relato de Abravanel são os sacerdotes e os profe tas Embora o profeta seja um governante não é propriamente felando um político O maior profeta Moisés teve de aprender como oianizar a administração da justiça com um gentio que não era profeta Üetro Isso sugere que para Abravanel ao con trário de Maimônides o governo do profeta não é uma preocupação adequada para a filosofia política Para Abravanel a profecia sendo um dom divino é sobrenatural o profeu é suprapolítico Bebendo na fonte dos escritores cristãos escolásticos em particular daqueles cujos pontos de vista são papistas ao extremo Abuvanel chega a conclusões que estão em udical desacordo com as de Maimônides acerca da forma ideal de governo Em liar de um líder que incorpou os traços tanto do filósofo como do rei Abuvanel consideu que o governante idd um é o rei sacerdote A sobriedade dos ensinamentos de Maimônides a respeito do Messias contrasta de modo acentuado tanto com os temas lendários dos quais se ocupau a tudição ju daica anterior quanto com a especulação apaixonada sobre os milagres a serem realiza dos que caucteriza os escritos messiânicos de Abuvanel Vale ressaltar que a discussão temática do Messias está localizada nos capítulos finais da seção 14 e última do Código que tu u das leis que versam sobre os reis e as suas guerras A tese fimdamental de Maimônides é de que a eu messiânica se distingue do presente apenas pela mudança no status político do povo judeu Que não se imagine que nos dias do Messias qual quer coisa no mundo vá mudar a sua forma ou haverá qualquer tipo de inovação na criação O mundo permanecerá tal como é O caráter não miuculoso da eu mes siânica é enfetizado por Maimônides de diversas maneiras Nesta parte do Código o Messias parece ser em primeiro lugar um rei nem uma vez sequer é aqui mencionado como profeu Falando de Bar I h b a o líder da revolu juthdca contu os romanos M o is é s M a im ô n id e s 2 1 9 23 Comentário sobre Gen 111 ff Exod 1813 íF Deut 1714 f I Sam 86 ff I Reis 1 e 3 em 132 dC Maimônides o chama de o rei que foi considerado o Rei Messias Somente quando Bar Kochba foi morto é que os sábios judeus se deram conta de que tinham cometido um erro em assim considerálo Maimônides não menciona aqui qualquer reivindicação que Bar Kochba pudesse ter em razão da capacidade de profe tizar e nega cabalmente que qualquer ação milírosa seja necessária para autenticar o Messias A questão é ao contrário reduzida ao sucesso político e militar o Messias de Maimônides é um libertador bélico cuja principal tarefa é romper os grilhões de Israel e restaurar a antiga ordem política A tendência dos ensinamentos de Maimônides é oporse à noção tradicional do Messias como um profeta que realiza milagres e às especulações mais fantásticas sobre a era messiânica O ponto até onde vai Maimônides ao dar uma interpretação política sobre o destino futuro e passado do povo judeu pode ser descortinado em sua carta aos rabinos do sul da França a qual mostra por que os judeus perderam seu reino e foram em seguida dispersos Segundo a visão tradicional o exílio é um castigo infligido por Deus por um pecado Entendiase pecado como a idolatria ou na sua manifestação mais comum a astrologia Os judeus na época de seu reinado preocupavamse com a astrologia Erraram e foram atraídos por tais assuntos imaginando que fossem re nomada ciência e de grande utilidade Não se ocuparam com a arte da guerra ou com a conquista de terras mas imaginaram que esses estudos iriam ajudálos Portanto os profetas os chamaram de tolos e parvos E eram tolos de fato pois buscavam coisas confusas que não trazem proveito Maimônides não ensina aqui que a astrologia seja uma transgressão da lei divina a ser punida pela intervenção direta de Deus Sugere ao contrário que a parvoíce traz a sua própria punição Ao dedicar seu tempo e energia a uma confusão inútil os antigos judeus prepararam sua própria queda O relato de Maimônides da futura restauração do Estado judeu é modelado por esta análise de sua queda O libertador guerreiro que recebe o título de Rei Messias é conhecido por seus atos políticos e militares e confirmados por seus sucessos vitórias políticas e militares Em poucas palavras o Messias é um Bar Kochba bemsucedido ou mais exatamente um filho de Davi um general e náo um profeta O sucesso político no entanto não é um fim em si mesmo mas está a serviço de algo mais elevado Na proporção em que Maimônides considera o fim mais elevado como natural ou pertinente à capacidade humana atribui grande importância à razão e à política Os males que afligem esta vida emanam dos objetivos desejos opiniões e cren ças dos homens e todos estes derivam de alguma ignorância fundamental A visão de paz universal em Isaías 11 depende de um verdadeiro conhecimento de Deus Porque através da cognição da verdade a inimizade e o ódio são removidos Os dias do Mes sias serão diferentes do presente pelo fato de que os judeus voltarão à sua terra ancestral com o auxílio de lun líder militar vitorioso e os homens deixarão de ferir um ao outro por ignorância Essas duas mudanças estão relacionadas pois uma das tarefas do Messias conquistador é preparar o mundo inteiro para servir ao Senhor em harmonia O Mes sias mostra ao mundo o verdadeiro caminho mas não através de m ilhes ele trava as batalhas do Senhor e é vitorioso A era messiânica é de feto um objeto de esperança 220 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey mas a meta que então terá sido alcançada não é a finalidade mais elevada do homem mas sim o estabelecimento de certas precondiçóes políticas para este fim a ação política em geral está a serviço do mundo do porvir A restauração do governo político para Israel significa que podem voltar a ser respeitadas essas leis intimamente ligadas à vida do povo na Palestina livres da opressão tirânica os judeus podem devotarse ao estudo despreocupado da Torá e de sua sabedoria Como resultado está aberto o caminho para a recompensa total final o bem supremo a vida no mundo vindouro Aqui Maimô nides relaciona o mundo vindouro com a imortalidade da alma que busca como algo natural uma vida dedicada à aprendizagem e à piedade A possibilidade de alcançar o bem supremo aparece como uma conseqüência do sucesso político É digno de nota que a filosofia política judaica medieval pouco fala da lei natural se é que a menciona Mas o problema indicado pelo termo lei natural é tratado de modo geral sob a forma de pergunta Há leis racionais distintas da lei revelada O locus classicusyxáaico para esta distinção está no Livro de Doutrinas e Crenças de Saadia Gaon 892928 Saadia feia de início a respeito de uma classe de mandamentos divinos cuja necessidade é ditada pela razão Essas leis divinas racionais podem ser classificadas como impositivas do culto divino proibitivas da idolatria e proibitivas dos atos de injustiça A aprovação e desaprovação das açôes específicas que são o ob jeto dessas leis são implantadas em nossa razão desta forma a especulação fornece uma confirmação independente de sua necessidade Os ditames categóricos das leis reveladas por outro lado não têm essa verificação independente Aparentemente ao repetir sua discussão Saadia íala de leis racionais que são sugeridas pela sabedoria Este segundo debate apresenta um relato simplificado da utilidade social das leis racionais Essas leis são agora enumeradas como a prevenção dos homicídios a proibição do adultério a proibição do roubo e a imposição de falar a verdade A razão é neutra ou se cala a respeito de questões tais como festas religiosas ou a proibição de ingerir deter minados alimentos ou do casamento dentro de determinados graus de parentesco No entanto a maioria das leis reveladas tem alguma utilidade prática evidente De acordo com Saadia a revelação profética é necessária para estabelecer ambas as classes de leis as racionais e as reveladas Enquanto a razão por si só é suficiente para formular os mandamentos racionais é incapaz de estabelecer todos os pormenores concretos da legislação Assim por exemplo a razão considera correto que todos os crimes sejam punidos de acordo com sua medida mas não define a sua medida A revelação é ne cessária para resolver esses detalhes sem o que os homens jamais concordariam com coisa alguma além dos princípios gerais Em sua discussão desse problema Maimônides não só assume uma posição con trária aos ensinamentos de Saadia ou de uma parte deles mas também até certo ponto distanciase da visão tradicional ortodoxa Na carta já referida Maimônides de clara que no Guia ofereceu motivos claros para todos os mandamentos bíblicos Em M o is é s M a im ô n id e s 2 2 1 24 Guide I I I 11 Code Teshubah ix Melakhim xi 1 34 xii 1 4 Letter on Astrology 25 Saadya Gaon Book ofDoctrines and Beliefi III 23 silêncio rejeita a visáo ortodoxa de que é uma boa coisa que a Bíblia não indique as ra zões subjacentes a seus mandamentos a obediência total de acordo com a religião tra dicional exige a aceitação de um mandamento sem conhecer ou buscar o motivo pa ra ele Todavia ao sugerir que cada mandamento tem o seu motivo e que seu motivo está ao alcance do intelecto humano Maimônides está ainda muito longe de admitir a possibilidade de mandamentos racionais Observa que as proibições contra as ações que são em geral consideradas como más tal como o derramamento de sangue o roubo a ingratidão e o desrespeito para com os pais são chamadas de mandamentos pelos sábios judeus Alguns de nossos sábios posteriores tem em mente Saadia entre outros que sofreram da doença dos Mutakallimün teólogos muçulmanos dialéticos chamaramnos mandamentos racionais Qual é então o status dos princípios morais Em seu Tratado sobre a Arte da Ló gica Maimônides descreve como meramente convencionais ou aceitas em geral as afir mações de que descobrir as partes íntimas é vil e de que compensar um benfeitor com generosidade é nobre No Guia dos Perplexos afirma que apenas os dois primeiros man damentos do Decálogo aqueles que proclamam a existência e a unicidade de Deus são cognoscíveis pela especulação humana desassistida Os demais mandamentos não têm qualquer fundamento racional pertencem à classe de opiniões em geral aceitas e adotadas em virtude da tradição Em dado momento Maimônides declara que o que é inato no homem prescreve boas ações e condena as más o homem é recompensado ou punido de acordo independentemente dos comandos específicos de um profeta Mas isso não quer dizer que tais prescrições e proibições sejam racionais Por força de seu intelecto o homem só conhece a distinção entre verdade e falsidade A distinção entre o nobre e o vil princípio moral pertence à classe das coisas em geral aceitas como conhecidas mas não à classe de coisas conhecidas pelo intelecto São apenas as últimas que permanecem verdadeiras de modo imutável Os princípios da moralidade por outro lado são na melhor das hipóteses apenas prováveis Maimônides sugere que o status das virtudes morais é derivado de sua importância na manutenção da paz no mundo A virtude moral também é necessária para a perfeição última do homem isto é a compreensão teórica uma vez que a preocupação com os prazeres dos sentidos ou o desejo de dominação sobre os outros seriam um obstáculo a tal perfeição Mas é principalmente tendo em vista a sua função política que Maimônides compreende as virtudes morais Estigmatizar como enfermos aqueles que afirmaram a existência de mandamentos racionais e seus esforços estudados para apontar para a função política e de caráter convencional do princípio moral constitui uma negação tácita de que a lei natural seja estritamente falando racional Judá Halevi 10851141 é entre os escritores judeus talvez o crítico mais pro eminente dos filósofos Seus ensinamentos positivos baseiamse de forma global na revelação aqui porém a discussão limitase apenas ao que afirma acerca dos filósofos 2 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 26 Guide 12 II 33 36 III17 Lo viii Eight Chapten iv vi Cf Guide II40 III 2728 46 Em seu diálogo o Kuzari declara a existência de nomoi racionais porém o resultado final de seu argumento é algo muito diverso da lei natural de digamos Tomás de Aqui no Halevi designa pelo termo nomoi racionais tanto os códigos humanos dos p o s como por exemplo as Leis de Platáo quanto a estrutura indispensável de qualquer código elaborado pelo homem ou divino Para sermos mais exatos identifica por um lado a parte do código do filósofo que r a conduta social do filósofo para com os náo filósofos com aquele conjunto de normas que prescrevem a moralidade mínima neces sária até mesmo para a forma mais inferior de vida comunal pelo outro e denomina ambos nomoi racionais Por meio de sua identificação dos dois Halevi sugere que as porçóes governamentais do código do filósofo são apenas meios para o fim mais elevado da especulação e desta forma não devem ser compreendidas como normas categóricas mas ao contrário como normas de conduta prudentes que na sua maioria são válidas De modo semelhante sugere que íàltam validade e universalidade universais ao arca bouço indispensável a todo código ou poderseia dizer a toda lei natural Sugere ainda da mesma forma que uma lei natural ou código moral que se apliquem igual mente a filósofos que vivem na sociedade política e a um bando de ladrões não criam obrigatoriedade absoluta junto aos homens nem são verdadeiramente racionais A rejeição da noção de uma lei natural racional por Halevi e Maimônides é apre sentada com grande franqueza por José Albo Embora Albo fale inequivocamente de uma lei natural sua descrição dela é mais próxima da de Hobbes do que da de Aquino Em conteúdo a lei natural de Albo assemelhase à segunda formulação das leis racio nais incorpora aquele mínimo de controle social sem o qual os homens seriam incapa zes de viver juntos A lei natural de Albo preocupase com uma justiça rudimentar que impede os homens do roubo assalto e assassinato É uma lei que não se preocupa com o que é nobre e se cala sobre a adoração divina A lei natural de Albo corresponde de forma grosseira à segunda Tábua do Decálogo se não considerarmos o décimo man damento Tal como os nomoi racionais de Halevi voltase apenas para a perfeição do corpo Albo sugere que esta lei natural não é totalmente necessária para que o homem viva na sociedade política mais ainda sugere que a validade desta lei natural depende de sua instituição por um indivíduo humano Ao apontar a possibilidade de vida fora da cidade Albo lança dúvida sobre o caráter obrigatório da lei natural Ao distinguir mais ainda entre o objetivo desta lei natural e a perfeição que é própria do homem Albo com efeito nega que a lei natural seja estritamente falando natural Este pon to quanto ao qual concordavam os filósofos políticos medievais judeus foi reafirmado para o mundo cristão por Marsílio de Pádua M o is é s M a im ô n id e s 2 2 3 27 K uzari II 48 III7 IV 19 28 Roots 1 57 III726 2 2 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y L e it u r a s A Maimônides Moses Guide ofthe Perplexed in Medieval Political Philosophy Ed Ralph Lerner and Muhsin Mahdi New York The Free Press 1963 Selectíon 12 Part I diap 71 Part 11 chaps 32 364045 Part III chaps 2728 34 B Maimônides Moses Treatise on the An of Logic in ibid Selectíon II Chap xiv Maimônides Moses Letter on Astrology in ibid Selectíon 13 Alho Joseph Book ofRoots in ibid Selectíon 14 Bk I chaps 510 Abravanel Isaac Commentary on theBible in ibid Selectíon 15 Gen 1119 Exod 181327 Deut 171415 I Sam 847 I Reis 31012 s Tomás d e Aquino A 12251274 Tomás de Aquino ocupa uma posição única na história do pensamento político como o mais ilustre de todos os aristotélicos cristãos Sua carteira literária coincide em linhas gerais com o grande impaao da obra de Aristóteles no mundo ocidental e em alguns casos com o momento inicial de seu resgate Tanto a Política como o texto completo da Ética em particular foram os primeiros a ser traduzidos para o latim du rante sua vida Através de seus comentários detalhados sobre quase todos os principais traudos aristotélicos e da ampla utilização que fàz dos textos aristotélicos em sua obra teológica Aquino fez mais do que qualquer outro para estabelecer Aristóteles como a principal autoridade filosófica do Ocidente cristão Para melhor entender sua filosofia política própria convém apreciála como uma modificação da filosofia política de Aris tóteles à luz da revelação cristã ou de modo mais preciso como uma tentativa de inte grar Aristóteles a uma tradição anterior do pensamento político ocidental representada pelos Pais da Igreja e por seus seguidores medievais e composta na maior parte por elementos retirados da Bíblia da filosofia platônicoestoica e do direito romano O esforço de Aquino para reinterpretar Aristóteles com base na fé cristã e para reformar a teologia cristã em termos de filosofia aristotélica pode ser comparado ao dos filósofos islâmicos e judaicos da Idade Média que também consideravam Aristóteles como o maior dos filósofos pagãos e que de modo semelhante se defrontavam com o problema de harmonizar a filosofia grega e a religião revelada Aquino compartilhava a herança desses filósofos islâmicos e judeus que incluía o Organon a Metafísica e a Física juntamente com vários outros tratados de filosofia namral e a Ética a Nicômaco Como eles estava em dívida para com Aristóteles pela distinção entre ciência especu lativa e ciência prática bem como pela divisão da ciência prática em ética economia e política Mas enquanto a filosofia namral de Aquino sua ética e sua filosofia política foram todas inspiradas por Aristóteles a filosofia política do islã e das comunidades judaicas que viviam em países islâmicos baseavamse predominantemente na Repúbli ca e nas Leis de Platão Ambas essas obras haviam sido traduzidas para o árabe já no século X pelo menos mas só vieram a circular no Ocidente no século XV Alfarábi escreveu comentários sobre a República e as Leis e Averróis escreveu um comentário sobre a República Não se conhece nenhum comentário árabe ou judeu sobre a Política de Aristóteles produzido na Idade Média enquanto nada menos que sete comentários foram escritos sobre esta obra por autores cristãos desde o momento da primeira ver são latina do texto ca 1260 até o íinal do século XIII É possível e até provável que esta primeira e mais evidente diferença entre as tradições cristã e judaicoárabe devase a outros fatores além do mero acidente histórico da disponibilidade ou indisponibilidade das fontes literárias em causa seja no mundo latino ou no árabe As evidências disponíveis sugerem que a Política de Aristóteles fora traduzida para o árabe mais cedo mas seja como for seu conteúdo era conhecido pe los filósofos islâmicos e judeus através de excertos da obra bem como através da Ética a Nicômaco e de outras obras aristotélicas Da mesma forma a existência de parte da essência da República e das Leis era conhecida dos autores ocidentais por meio da Polí tica de Aristóteles e de adaptações romanas e cristãs anteriores ou de discussões sobre as obras de autores como Cícero e Agostinho No entanto ao contrário do que se fezia em geral em casos semelhantes nenhum dos dois grupos parece terse esforçado muito para obter cópias ou traduções dos textos que faltavam Baseandose nesses e outros indícios é razoável supor que o uso da Política pelos autores cristãos e da República e das Leis por filósofos árabes e judeus foi ao menos em parte resultado de uma escolha ponderada ditada pelas circunstâncias da vida poUtica nessas diferentes comunidades religiosas Sabemos por Alfarábi que suas próprias obras tinham como motivação um in teresse de apresentar a filosofia a uma sociedade da qual esta estava ausente ou de restaurála quando toldada ou destruída A situação específica para a qual essas obras se voltam requeriam uma defesa pública da filosofia ou sua justificação perante o tribu nal da opinião comumente aceita e da crença religiosa Impunha ou atraía uma abor dagem para o estudo da política que consegue conviver ou tenta superar a hostilidade inata das instituições políticas e religiosas para com qualquer ciência que questiona e ao fazêlo ameaça minar seus alicerces Assim apresentava um claro parentesco com a situação confrontada por Platão cuja íilosoíia desenvolveuse ela mesma dentro de um contexto predominantemente político Ao contrário de Alfarábi e seus sucessores raramente foi Aquino forçado a lidar com uma propensão antifilosófica por parte das autoridades eclesiásticas Para ele como cristão seria simples assumir a filosofia sem se envolver publicamente em qual quer argumento fevorável ou contrário a ela Não só a filosofia já era credenciada no Ocidente com a sanção oficial do Direito Canônico mas se exigia algum conhecimen to dela de todos os esmdantes de teologia É típico da sociedade cristã da Idade Média em contraste com as comunidades islâmica e judaica que seus clérigos fossem também escolásticos Nas obras de Aquino é a teologia que precisa de justificação diante do tribunal da razão ou da filosofia O primeiro artigo de sua obra mais conhecida a Sum ma Jheologiae não pergunta se o estudo da íilosoíia é admissível e desejável mas se além das disciplinas filosóficas é necessária outra ciência ou seja a doutrina sagrada 2 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Alfiuábi A Busca da Felicidade 63 Também esclarecedor do mesmo ponto de vista é o fato de que as razões que Maimôni des invocara para justificar a ocultação de verdades filosóficas da multidão puderam ser empregadas por Tomás de Aquino para mostrar ao contrário por que além de verda des sobrenaturais Deus escolheu revelar determinadas verdades naturais ou verdades que são acessíveis à razão humana e à experiência desassistidas7 Esta situação peculiar parece ter gerado uma preferência pela Política de Aristóteles o que pressupõe maior concordância entre a filosofia e a cidade e por conseguinte maior abertura para a filosofia por parte da cidade do que na República de Platão O estatuto canônico que a filosofia desfintava no mundo cristão ajuda a explicar ao mesmo tempo por que Aquino foi capaz de descartar como desnecessário ou irrelevante o esoterismo comum a grande parte da antiga tradição filosófica e propositalmente simulada por muitos dos Pais da Igreja com cujas obras estava fiuniliarizado É impossível no entanto explicar no todo o firme caráter platônico do pen samento político judeuárabe e o firme caráter aristotélico do pensamento político cristão pela simples menção do fato de que a filosofia era em geral aceita na sociedade cristã enquanto era muitas vezes desaprovada ou rejeitada pelas comunidades islâmi ca e judaica da Idade Média É preciso peipmtar ainda em primeiro lugar como a filosofia veio a ser recebida pelo cristianismo e por que o aristotelismo de Aquino e de seus discípulos veio a substituir o platonismo dos Pais da Igreja como a forma tradi cional da teologia cristã Em última análise a chave para este problema mais profundo deve ser procurada na diferença entre o cristianismo e o islamismo ou o judaísmo e as sociedades religiosas e políticas A caracterísdca mais marcante do islã e do judaísmo é que ambos se apresentam acima de tudo como Leis divinamente reveladas ou como ordens sociais de total abrangência que regulam todos os segmentos da vida pública e privada dos homens e inibem desde o início qualquer esfera de atividade em que a razão possa íir independentemente da lei divina O cristianismo por outro lado emerge como uma fé ou doutrina sagrada que exige o respeito a um conjunto de crenças fundamentais mas de resto debta seus seguidores livres para organizar sua vida social e política em conformidade com normas e princípios que não são espe cificamente religiosos Esta diferença básica está em sintonia com a diferença que se observa em relação à ordem das ciências siradas dentro de cada comunidade religiosa A mais elevada ciência do islã e do judaísmo era a jurisprudência fiqh sobre a qual recaía a tarefe vital da interpretação aplicação e adaptação das prescrições da lei divina e à qual a teologia dialética kalam sempre teve nítida subordinação No cristianis mo a mais elevada ciência era a teologia cujo enaltecimento em muito ultrapassava qualquer prestígio atribuído à especulação teológica nas tradições judaica e árabe A mesma diferença crucial acarretava a conseqüência de que a sociedade cristã e só ela s T o m á s d e A q u in o 227 2 Summa Contm Gentiles I 4 Summa Theoíogjuu I qu 1 a 1 III qu 99 a 2 ad 2 De Veritate qu 14 a 10 Maimônides Guia dos Perplexos I 34 3 In Lih de Divinis Nominibus Pioemium 2 Cf In Boethium de Trinitate qu 2 a 4 Summa Theo logfoe III qu 42 a 3 era governada por dois poderes distintos e dois códigos legais distintos um eclesiástico ou canônico e outro civil cada um com sua própria esfera de competência e em prin cípio cada um usufruindo relativa liberdade de interferência por parte do outro Ao primeiro cabia a tareia de orientar os homens para o seu fim sobrenatural ao segundo o de direcionálos para o seu fim terreno ou temporal Como resultado era possível em geral estudar os fenômenos políticos apenas à luz da razão sem direta contestação da autoridade religiosa estabelecida e sem correr o risco de um confronto aberto com ela Em decorrência disso questões específicas tais como a origem das leis divinas e humanas a relação entre as duas e a comunicação das leis divinas por meio de profecia ou revela ção que como observa Avicena sáo discutidos como temas políticos por Platão mas náo por Aristóteles náo eram mais consideradas tão pertinentes para os filósofos cristãos como tinham sido para seus contrapartes muçulmanos e judeus Em suma a própria es trutura da sociedade cristã com sua distinção clara entre as esferas espiritual e temporal ostentava uma grande afinidade com a maneira restrita e de relativa independência com que as questões políticas são tratadas na Política de Aristóteles As observações feitas até agora a respeito das características gerais da filosofia po lítica dentro das tradições judaicoárabe e cristã apontam para um problema final que era de suma importância para ambos os grupos a questão da relação entre filosofia e religião revelada A solução de Aquino para este problema se propõe a fazer justiça para com as reivindicações da razão bem como as da Revelação Difere daquela da maioria dos filósofos muçulmanos que apesar de aparentemente proclamarem a supremacia da Lei consideravam a filosofia como a ciência perfeita e o único juiz da verdade reve lada da mesma forma diverge da de Agostinho e de seus demais antecessores cristãos que tendem a discutir todos os problemas humanos à luz do fim último do homem tal como é dado a conhecer por meio da Revelação e em cujas obras as ciências ter renas na medida em que são cultivadas fazem parte de um conjunto integrado ou único de sabedoria iluminada pela fé Aquino começa por fazer uma clara distinção entre os domínios da fé e da razão ou entre a filosofia e a teologia cada uma delas sendo concebida como uma ciência completa e independente A primeira atua à luz dos princípios naturalmente conhecidos e autoevidentes e representa a perfeição da compreensão pelo homem da ordem natural do universo Culmina na metafísica ou filosofia primeira que reina suprema em seu próprio domínio e não é destronada pela teologia como a rainha das ciências humanas Mesmo sem a graça divina a natureza é completa em si mesma e possui sua própria perfeição intrínseca pelo fato de que tem dentro de si mesma aquilo por meio de que é capaz de atingir o seu fim ou voltar ao seu princípio A teologia por outro lado oferece uma explicação abrangente do início e fim de todas as coisas tal como aparecem à luz da Revelação divina Suas premissas são derivadas da fé e ela faz uso das doutrinas filosóficas que possam ser relevantes para seus propósitos não realmente como princípios mas como instrumentos em sua investigação metódica do conteúdo da Revelação 2 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Avicenna On the Divisions o f the Rational Sciences in R Lerner e M Mahdi eds Medieval Politi cal Philosophy a Sourcehook New York 1963 p 97 Summa Contra Gentiles II 4 Summa Theologiae I qu 1 a 67 Longe de destruir a natureza a graça divina a pressupõe e aperfeiçoa alçandoa para um fim que é mais elevado do que qualquer outro a que poderia aspirar pelos seus próprios meios Por conseguinte entre as verdades da Revelação e o conhecimento ad quirido pelo uso exclusivo da razão e da experiência há uma distinção mas não pode haver discordância fundamental A harmonia preestabelecida entre as duas ordens se fiindamenta teoricamente no pressuposto de que Deus o revelador da verdade divina é também o autor da natureza Qualquer discrepância entre a Bíblia e os ensinamentos dos filósofos remonta à imperfeição da mente humana que ou interpretou incorreta mente o que é dado pela Revelação ou errou em sua busca pela verdade natural A alma humana é a mais firaca das substâncias intelectuais Todos os conhecimentos do homem se originam com os sentidos e são obtidos por abstração das coisas sensíveis Como tais englobam uma multiplicidade de conceitos e apresentam necessariamente um caráter fragmentado e digressivo O que distingue o homem como ser inteligente é a razão distinta do inteleao ou do fato de que o homem não compreende a verdade de modo intuitivo e de uma só vez mas c h a ela aos poucos por meio de um complexo processo racional pelo qual a mente passa de forma ordenada do conhecido para o desconhe cido Por causa das diferenças individuais decorrentes da sua natureza corpórea nem todos os homens possuem os mesmos dons intelectuais nem têm disposição igual para a obtenção do conhecimento Também não há qualquer garantia de que o mais talentoso dentre eles de forma geral tenha à sua disposição o lazer ou os meios para se dedicar inteiramente à busca da verdade Além disso embora o mal moral ao qual o homem é sempre propenso não comprometa de imediato a sua faculdade de raciocínio ou dimi nua sua capacidade de aprender torna a aquisição da ciência extrinsecamente mais árdua pela desordem que provoca em seu apetite Dadas as limitações intrínsecas da mente humana e os obstáculos externos com os quais deve lutar na sua busca pelo conhecimen to não é de estranhar que até mesmo os filósofos caíssem em erro e discordassem entre si Na medida em que ficam aquém da verdade por vezes seus ensinamentos estão em desacordo com a fé mas a verdade é que nem a própria razão é capaz de demonstrar a impossibilidade da Revelação nem pode provar a sua real possibilidade O máximo que pode ser dito do ponto de vista de Aquino é que os argumentos fornecidos pelos filó sofos contra a Revelação divina como um todo ou qualquer parte dela jamais oferecem qualquer comprovação de que a mente seja forçada a concordar com eles Apesar de Aquino reputar a filosofia aristotélica como a mais perfeita expressão da verdade natural e como a filosofia mais congruente com a verdade do cristianismo só foi plenamente capaz de coordenar essa filosofia com a fé cristã ao transformála s T o m á s d e A q u in o 2 2 9 6 Summa Contra Gentiles I 7 De Veritate qu 14 a 10 ad 7 and ad 9 7 Summa Theoloae I qu 85 a 3 Summa Contra Gentiles II 98 Commentary on the Posterior Analytics Proemium n 4 8 Summa Jheologiae I qu 76 a 5 Quaest Disp de Anima a 8 De Maio qu 5 a 5 In II Sent Dist I qu 2 a 5 9 Summa Jheologiae III qu 85 12 10 Summa Contra Gentiles I 9 tanto em conteúdo como em espírito Para os fins do presente artigo o melhor modo de ilustrar a natureza exata dessa transformação talvez seja mencionar o íàto de que enquanto Aristóteles nunca menciona a lei natural mas fala apenas do direito natural Aquino em geral passou a ser considerado como o expoente clássico da teoria do direito namral no Ocidente C r is t ia n is m o e P o l ít ic a A N a t u r e z a d o R e g im e P o l ít ic o A pedra fimdamental da filosofia política de Aquino é a noção aristotélica de na mreza Mais do que todos os outros animais o homem é um ser político e social A sociedade civil é natural para ele não como algo dado por natureza mas como algo a que é propenso por namreza e que é necessário para a perfeição de sua namreza racio nal O homem o produto mais extraordinário da namreza é trazido ao mundo mais desamparado e carente do que qualquer outro animal descalço despido e desarma do Em vez disso a natureza forneceulhe a razão a fala e as mãos com os quais com o tempo é capaz de prover a sua subsistência e satisíàzer às suas necessidades na medida em que surjam Está além da capacidade do indivíduo no entanto obter tudo o que é necessário para seu sustento A fim de sobreviver durante os anos que precedem o desenvolvimento da razão e a aquisição de habilidades manuais bem como para viver de forma mais conveniente nos anos posteriores o homem depende necessariamente da ajuda que recebe de outros homens A primeira sociedade a que pertence e sem a qual não poderia viver muito menos viver bem é a família cujo objetivo específico é satisfazer às necessidades da vida e assim garantir tanto a preservação do indivíduo como a da espécie As várias associações que compreende a do homem e da mulher de pais e filhos do amo e do escravo são todas voltadas para o mesmo fim A ciência ou arte que tem como objeto a gestão adequada da família é a economia ou economia doméstica cujo principal objeto é a aquisição e administração dos gêneros alimentícios e mercadorias que são utilizados ou consumidos pelos membros do pregado familiar Mas a família sozinha não pode fornecer todos os bens materiais de que o ho mem necessita para o seu sustento e sua proteção nem é capaz de conduzir todos os seus membros à perfeição da virtude As injunções paternas que dependem para sua eficácia do amor natural entre pai e filho são em geral suficientes para assegurar que os jovens generosos de espírito se comportem de modo adequado mas são de uso limitado no caso das almas vis sobre as quais a persuasão tem pouco ou nenhum efeito e que precisam ser cosidas pelo medo da punição A associação humana de verdadeira au tossuficiência a única capaz de assegurar as condições de virtude e de satisfazer a todas 2 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 On Kinhip I 1 4 12 On Kingphip I 1 5 Summa Theologiae I qu 76 a 5 ad 4 13 Summa Theologiae III qu 95 a 1 Commentary on the Ethics I Lea 1 n 4 X Lect 14 n 213942 as necessidades terrenas do homem bem como às suas aspirações é a cidade A cidade é a obra mais perfeita da razão prática Apesar de ser menos natural que a iàmíliã do pon to de vista da sua forma tal como evidencia o feto de que sua estrutura apresenta uma variedade maior de uma sociedade para outra que a família é no entanto consíada a um fim mais elevado e mais abrangente Como uma sociedade perfeita engloba todas as outras associações que os seres humanos são capazes de constituir inclusive a femília cujo fim subordina ao seu próprio que é o bem humano completo Só no âmbito da sociedade civil é que o homem pode alcançar a plenitude da vida tanto que o homem que leva uma vida solitária longç da companhia de seus semelhantes ou fica aquém da perfeição humana tal como um animal ou já ultrapassou essa perfeição e alcançou um estado de autossuficiência semelhante ao de um deus Tal como o corpo humano ao qual tanto é comparada a cidade é composta de uma multiplicidade de partes heterogêneas cada uma das quais tendo sua própria ta refe ou função específicas Uma vez que a parte individual é muitas vezes movida por paixões e desejos que não coincidem com os de outras partes é essencial que em uma cidade haja uma autoridade única cuja tarefe adequada seja cuidar do bem comum e manter a ordem e unidade entre os seus vários componentes A autoridade política é o elemento determinante da cidade ou sua forma como Aristóteles a denominara por analogia com a doutrina da matéria e da forma como os princípios constitutivos dos seres naturais Uma cidade sem regime é como um corpo sem alma na medida em que não se pode sequer felar dela é uma cidade só no nome Assim se a cidade é natural a autoridade política que é indispensável para ela também é natural ao contrário da escravidão que para Aquino e para a tradição cristã antes dele não está enraizada na natureza do homem enquanto homem mas na natureza decaída do homem A auto ridade política dire da escravidão na medida em que constitui um governo de homens livres sobre homens livres e tem como seu objeto o bem de todos os cidadãos que como homens livres existem por si mesmos O escravo por outro lado existe por causa de outro e portanto não é governado para seu próprio bem mas para o bem de seu amo Decorre do que foi dito acima que a cidade é mais que a soma de suas partes e seu fim total mais do que a soma dos interesses particulares dos seus membros Com certe za essa meta não é diferente da meta do homem sozinho mas uma vez que o homem sozinho depende da cidade para o seu pleno desenvolvimento o fim da cidade assume a natureza de um bem comum isto é de um bem que embora numericamente uno é todavia partilhado por todos os cidadãos daquela cidade Assim como o todo é mais importante do que a parte e anterior a ela como aquilo a que a parte é ordenada e sem o que não poderia existir assim a cidade é anterior ao indivíduo na ordem de causalidade final e seu bem é maior em dignidade e mais divino que aquele de cada s T o m á s d e A q u in o 2 3 1 14 Summa Theologiae III qu 90 3 ad 3 15 Commentary on thePoIitics I Lea 1 n 39 Commentary on theEthia I Lea 1 n 4 16 Summa Theologiae I qu 96 34 qu 92 a 1 ad 2 On Kinphip I 1 910 17 In IVSent Dist 49 qu 1 a 1 qu 1 sol 1 ad homem tomado por si só É paradoxal à primeira vista mas não incoerente dizer como Aquino que o bem comum da cidade é em si o bem correto embora obvia mente não o bem privado do cidadão Como um bem correto é o objeto de uma propensão que é mais forte do que aquilo que impulsiona o cidadão a procurar o seu bem privado Assim no caso de um conflito entre o bem comum e o bem privado o primeiro como é natural tem precedência sobre o segundo Isso explica por que em casos de extrema necessidade um homem irá sacrificarse de modo espontâneo pela cidade da mesma forma que sacrificaria uma das mãos pelo bem de todo o corpo O bem comum e a finalidade da autoridade política são em primeira instância a paz ou a harmonia das diferentes partes que se combinam para formar a cidade A paz existe quando cada parte é ajustada ao todo e funciona com razoável tranqüilidade dentro dele Mas esta unidade fundamental juntamente com a capacidade de neutra lizar as forças que ameaçam destruíla representa apenas a condição mínima em que a cidade é capaz de subsistir É o objetivo menor e não o maior ao qual podem devotar se suas energias Acima e além da mera sobrevivência a cidade tem como finalidade a promoção da boa vida ou da virtude de seus cidadãos A experiência revela que individual e coletivamente os homens são atraídos por uma variedade de bens tais como a riqueza a honra a liberdade ou a virtude e alguns dos quais são sem dúvida mais nobres que outros O objetivo ou objetivos que uma determinada cidade de feto persegue são determinados primordialmente pelos homens que têm a última palavra nessa cidade e desta forma constituem o seu regime O regime nesse sentido nada mais é senão o modo de vida de uma cidade com especial referência à maneira como o poder político é distribuído dentro dela O que distingue uma cidade de outra e lhe confere sua nobreza ou grandeza específica é exatamente o regime pelo qual se rege O melhor regime ou a questão de quem deve governar a cidade desponta assim como o tema central da filosofia política Posto que os homens diferem entre si em muitos aspectos mas sobretudo com relação à sua capacidade de conhecimento e virtude e visto que por natureza o inferior é subordinado ao superior é lógico que o melhor homem deve governar os outros e que os cargos administrativos devem ser distribuídos de acordo com a virtude O regime mais desejável em si tanto por motivo da unidade como da nobreza das finalidades a que se propõe é a monarquia ou o governo incondicional de um único homem sábio para o bem da virtude Mas se a monarquia absoluta é teoricamente o melhor dos regimes é também o que está eivado dos maiores perigos Devido aos vas 2 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 18 Summa Contra Gentiles III 17 Cf Commentary on the Ethics I Lect 2 n 30 19 Summa Contra Gentiles III 24 Summa Theologiae IIII qu 47 a 10 ad 2 20 Summa Theologúte I qu 60 a 5 Quodlihetum I qu 4 a 8 21 On Kingship 12 17 Summa Theologiae I qu 103 a 3 Summa Contra Gentiles IV 764 Com mentary on the Ethics III Lect 8 n 474 22 On Kinhip II 3 106 II 4 1178 Commentary on the Ethics I Lect 1 n 4 23 Commentary on the Politics II Lect 6 n 226 Lect 17 n 341 24 Summa Theologme I qu 96 a 3 tos poderes conferidos a ele o rei a menos que seja um homem de excepcional virtu de pode corromperse e seu govemo pode com fecilidade denerar em tirania a qual em condições normais é o pior de todos os governos uma vez que por sua própria natureza é o que mais se distancia do bem comum7 Além disso náo é tão fácil que a maioria das pessoas reconheça a virtude em comparação com as qualidades mais evi dentes embora menos genuínas tais como a riqueza ou o nascimento nobre É uma questão de observação comum que os homens politicamente sábios e virtuosos nem sempre e talvez nem em geral sejam reconhecidos como tal por outros homens dos quais a maioria tem pouco conhecimento real da sabedoria ou da virtude Tampouco é admissível supor que seria facil persuadir a multidão insensata a aceitar um homem de perfeita virtude como seu único governante pois é presumível que os interesses em nome dos quais se esperaria que governasse contrariariam os interesses menos nobres da mesma multidão Se nada mais a unidade da cidade exige que as reivindicações conflitantes dos vários elementos dentro dela sejam levados em consideração e recon ciliados dentro dos limites do possível Em todos ou quase todos os casos as demandas da sabedoria e da excelência devem ser combinadas com as do consentimento Isso significa que para objetivos muito concretos o melhor regime é o chamado regime misto ou o regime que combina de forma harmoniosa as melhores características da monarquia da aristocracia e da organização política Em apoio a essa solução clássica dpica Aquino poderia apontar um precedente sarado o da organização política he braica antiga na qual a autoridade de Moisés e de seus sucessores era equilibrada pela de um grupo de anciãos escolhidos entre o povo em geral A estabilidade e a eficácia deste regime ou a propósito de qualquer regime são asseguradas da melhor forma pelo domínio da lei a qual se torna na maior parte do tempo uma necessidade prática devido à escassez habitual de homens sábios e aos abusos aos quais o governo por decreto é inerentemente exposto Uma vez que nunca são muito numerosos os homens sábios é mais ácil encontrar uns poucos que sejam capazes de elaborar boas leis do que encontrar muitos que sejam capazes de julgar em casos individuais Os legisladores também têm mais tempo para deliberar e estão em melhor posição para avaliar todas as diferentes fiicetas de um problema do que o homem que se depara com a necessidade constante de tomar decisões sumárias Final mente é menos provável que seu julgamento anuviese por seu envolvimento pessoal nas questões sobre as quais é obrigado a se manifestar na medida em que as leis são propostas universalmente e levam em conta os eventos futuros As leis são o instru mento privilegiado da política e sua posição em relação às obras do homem é como a de universais para particulares É através delas mais do que por qualquer outra inter ferência que o governante promove a justiça e a bondade moral entre os cidadãos A s Tomás d e Aquino 233 25 On íSngship I 23 Summa Theologjúte III qu 105 a 1 ad 2 26 Commentary on thePohtia II Lect 5 n 212 27 Summa Theologiae III qu 105 a 1 O Kinphip I 6 42 28 III qu 951 ad 2 vinude moral é adquirida precisamente pela repetição dos atos que a lei prescreve ou pela vida habitual e pela educação sob boas leis Daí a importância da legislação que assume um caráter arquitetônico e constitui o ato mais importante da arte política Permanece o feto de que as leis são promulgadas executadas e sempre que necessário alteradas pelos homens Em uma palavra são elas próprias os produtos do regime em que se originam Somos assim levados de volta para a noção de regime como fenô meno político fundamental e tema norteador da filosofia política Até aqui a filosofia política de Aquino parece harmonizarse de forma substan cial com a de Aristóteles da qual ostensivamente deriva Uma análise mais atenta no entanto revela que ao assumir a concepção de Aristóteles sobre a natureza política do homem e da vida humana Aquino modificoua profimdamente sob a influência do cristianismo e do estoicismo e como conseqüência do alto grau de clareza e de cer teza que ambas essas tradições atribuem à noção de Deus como legislador A excelência humana já não é definida ou circunscrita pelas condições da vida política Através do conhecimento da lei natural o homem concorda diretamente com a ordem comum da razão para além da ordem política à qual pertence como cidadão de uma determinada sociedade Ao compartilhar dessa lei descobrese junto com todos os outros seres in teligentes um membro de uma comunidade universal ou cosmopolis governada pela providência divina e cuja justiça é muito superior à de qualquer outro regime humano A dissociação implícita em tal ponto de vista entre o melhor regime humano e a ordem social perfeita é ainda mais acentuada pelos ensinamentos cristãos e tomistas segundo os quais toda ordem natural é por sua vez sujeita à ordem da graça ou lei divina Por conseguinte o melhor regime não é simplesmente como era para Aristóteles obra do homem ou da razão prática guiada pela filosofia É sinônimo do reino de Deus e é real ou obtenível em todos os tempos por meio da graça salvadora de Deus A sociedade civil deixa de ser a única responsável pela totalidade da Adrtude moral e é ela própria julgada por um padrão mais elevado com o qual as ações humanas devem estar em conformidade universal Tornase parte de um amplo conjunto que abarca todos os homens e todas as cidades e é por isso mesmo privada de seu status privilegiado como o único horizonte que limita o âmbito da atividade moral do homem define as metas a que pode aspirar e determina a ordem básica de suas prioridades O caráter transpolítico da doutrina tomista revelase entre outras coisas pelo modo como Aquino separa a moral e a ciência política O Comentário sobre a Ética fez grande esforço para destacar que a unidade da família ou da cidade não é uma unidade orgânica mas uma unidade de ordem apenas e por conseguinte que cada um dos membros dessas sociedades mantém uma esfera de ação que é diferente daquela do todo A partir desta observação Aquino chega à conclusão de que a ética a economia e 234 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 29 Commentary on theEthics X Lect 14 II Lect 1 n 251 Summa Theologjae III qu 92 a 1 30 Commentary on the Ethics VI Lect 7 n 1197 X Lect 16 n 2165 31 Summa Theologae III qu 72 4 Cf III qu 21 a 4 ad 3m qu 91 a 1 On Kinghip II 1 94 DePerfictione Vitae Spiritualis 13 a política não constituem uma ciência composta de tiês panes mas três ciências sepa radas e especificamente distintas com isso investindo tanto a ética como a economia com uma autonomia que não possuem no esquema aristotélico Esses ensinamentos encontram um paralelo significativo na discussão de Aquino sobre o direito natural que faz parte de seu tratado sobre a justiça particular e segue a tradição de Ulpiano e dos juristas romanos que trataram do direito natural como uma divisão do direito privado em vez da de Aristóteles na qual a questão do direito natural é abordada inteiramente dentro do contexto da justiça legal Ao discutir a disposição do cidadão virtuoso para dar sua vida por seu país Aquino observa que tal ato seria o objeto de uma inclinação natural se o homem fosse por natureza parte da sociedade pela qual se sacrifica É dado a entender por essa observação que o relacionamento do homem para com uma determinada sociedade civil enquanto distinta de outras sociedades ci vis não é natural apenas mas adquirida Apesar de Aquino concordar com Aristóteles que o homem que se isola da sociedade e dos negócios de seus semelhantes ou é sobre humano ou menos do que humano seu exemplo de pessoa superior cuja perfeição ex cede os limites da sociedade civil não é o do filósofo a quem é provável que Aristóteles tivesse em mente mas o de S Antônio um eremita do século III notório entre outras coisas por sua oposição à filosofia Finalmente para citar apenas mais um exemplo Aquino interpreta a afirmação de Aristóteles de que a turtude moral é relativa ao regi me como uma referência à relativa bondade do homem como cidadão não à sua bon dade absoluta enquanto homem Esta última é considerada inseparável da sabedoria prática cujos princípios fundamentais são naturalmente conhecidos e compreendidos por todos independentemente do regime político Nessas circunstâncias a noção de melhor regime como a condição básica e indispensável para a felicidade dos indivíduos e das cidades perde a sua suprema importância tal como a perde a filosofia política em si da qual o melhor regime depende para sua efetivação A V ir t u d e M o r a l e as L e is N a t u r a is Tanto a base teórica como as implicações práticas da posição tomista são bem discerníveis no tratamento que dá Aquino às virtudes morais Esse tratamento pode ser descrito como uma tentativa de definir como o homem deve agir em função daqui lo que é ou de sua natureza racional Como tal apela diretamente a princípios que não são inerentes à ciência moral mas foram tomados de empréstimo da ciência natural a s Tomás d e Aquino 235 32 Commentary on the Ethics I Lect 1 n 56 VI Lea 7 n 1200 Summa Theologúu IIII qu 47 a 11 s c 33 Summa Theologiae IIII qu 57 34 Summa Theologiae I qu 60 a 5 35 Commentary on the Politics I Lect 1 n 35 Athanasius Life ofAnthony 72ss 36 Commentary on the Politics I Lect 3 n 376 Cf Summa Theologiae III qu 92 a 1 corp e ad 4 lII qu 58 a 4 que devidamente pertencem Pressupõe assim por parte do leitor uma compreen são abalizada da natureza do homem e de sua finalidade natural tal como apreendidas pelo intelecto especulativo De modo geral apresenta um aspecto mais doutrinário ou mais estritamente dedutivo do que o de Aristóteles Em certa medida a diferença entre os dois autores já está evidente no Comentário sobre a Ética de Aquino Nos livros II a V da Ética Aristóteles apenas lista 11 virtudes morais sem indicação precisa quanto à razão para a ordem em que são apresentadas e pouco ou nenhum esforço fãz para relacionar essas virtudes à alma humana e a seus diferentes elementos Sua discussão fica apenas no plano da virtude moral e se limita a uma elucidação dos fenômenos morais tal como se revelam aos homens decentes e ho nestos distintos dos filósofos Seu destinatário típico é o cavalheiro ou o homem de bons hábitos morais e opiniões que pressupõe tacitamente a decência e não precisa ser convencido da superioridade intrínseca da vida moral sobre a vida imoral Seu objeti vo declarado é o de esclarecer e articular o que o homem bemnascido e bemeducado já sabe de maneira confusa e aceita com base em sua própria experiência e educação mas sem qualquer consciência de seus pressupostos teóricos Em conformidade com essa finalidade eminentemente prática abstémse de qualquer referência expressa às premissas especulativas sobre as quais em última análise se fundamenta a moral mas cujo conhecimento tem apenas remota utilidade para a pessoa que está mais preocu pada com a real prática da virtude do que com uma compreensão profunda de suas raízes na natureza humana Assim como se pode ser um bom carpinteiro sem ter estu dado a ciência da geometria do mesmo modo se pode ser um bom homem sem se ter engajado em um estudo científico dos atos humanos Em termos simples a questão que a discussão como um todo suscita é o que é um homem bom e não por que se deve ser um homem bom A resposta que fornece para essa pergunta extrai seu principal apoio do destaque que a moralidade alcança na mente do homem para quem a bondade moral tornouse por assim dizer uma segunda natureza e não do conheci mento que pode ser obtido por meio de uma investigação filosófica do homem como ser natural O relato culmina com uma descrição da magnanimidade e da justiça as duas virmdes gerais que resumem ou definem a perfeição do homem como indivíduo e como ser social respectivamente A interpretação de Aquino das seções correspondentes da Ética vai além do que está explícita ou implicitamente contido no texto por trazer à luz os motivos que se supõe justificarem o método de procedimento de Aristóteles Coragem e moderação têm como matéria adequada o que Aquino chama de pabtões primárias tais como a raiva e a luxúria Em seguida vêm as virtudes relacionadas com as paixões secundárias que podem ser relativas tanto a bens quanto a males externos ou a ações externas Ao primeiro grupo pertencem a liberalidade e a munificência que regulam a utilização da riqueza as virtudes relacionadas à honra das quais a principal é a magnanimidade e a moderação Ao segundo grupo pertencem a cordialidade a simplicidade e a perspicácia 236 H istória da Filosofia P o iítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 37 Cf Summa Theologiae I qu 60 a 5 cortês Estas por sua vez sáo seguidas pela justiça que tem como objeto as açóes ex ternas em si em oposição às paixões internas com a qual todas as virtudes anteriores se relacionam A ordem em que essas virtudes são examinadas por Aristóteles encontraria sua razão de ser no fato de que as paixões primárias por tratarem dos bens que têm relação direta com a preservação da vida ou dos males que ameaçam a sua destruição prevalecem sobre as paixões secundárias que se preocupam com bens menos vitais e também com o fato de que uma vez que as ações se originam nas paixões é compre ensível que o tratamento das últimas preceda o das primeiras Perguntase porém em que medida a explicação científica de Aquino independentemente de seus mé ritos intrínsecos respeita o teor do texto de Aristóteles Para começar a distinção que estabelece entre as paixões primárias e secundárias conduz a uma maior valorização da coríem e da moderação em detrimento de outras virtudes mais espetaculares porém menos necessárias e menos comuns tais como a munificência e a magnanimidade que podem ser consideradas como um dos focos principais da discussão de Aristóteles sobre a vida moral Além disso a interpretação proposta introduz na discussão um princípio analítico que é estranho se não ao pensamento de Aristóteles pelo menos à maneira peculiar em que as questões morais são abordadas na Ética Esta conclusão é confirmada de maneira ainda mais impressionante na Summa Theoloae o tratado de Aquino sobre a virtude moral em que a classificação aristotélica é totalmente abandonada em fevor de um arcabouço platônicoestoico modificado que reduz todas as virtudes morais às quatro chamadas virtudes cardeais da temperança coragem justiça e prudência Cada uma dessas virtudes é ligada a uma ou outra das potências da alma a qual determina e cujas operações aperfeiçoa A temperança tem como seu sujeito a parte apetitiva ou concupiscível na qual introduz a ordem da razão principalmente por meio da imposição das restrições adequadas sobre o desejo do ho mem para os prazeres associados aos sentidos do tato e do paladar A coragem é a virtude que purifica a parte impetuosa ou irascível e capacita o homem a superar os medos que poderiam impedilo de buscar o bem racional A justiça encontrase na vontade e rula todos os aspectos das relações do homem com outros homens Por todas estas três virtu des o homem é devidamente ordenado para seu fim natural ou para o bem ditado pela razão Mas além de voltarse para o fim correto o homem deve ser também capaz de deliberar escolher e prescrever os meios que conduzam a este fim Esse é o papel da pru dência que é uma virtude intelectual na medida em que tem a razão como seu sujeito mas que também está incluída entre as virtudes morais na medida em que seu exercício apropriado depende da purificação do apetite pelas três virmdes anteriores Todas as outras virtudes morais são agrupadas sob uma ou outra dessas quatro virtudes em geral quer como partes subjetivas partes em potencial ou partes inte grantes As partes subjetivas são as diversas espécies em que pode ser dividida uma de terminada virtude de acordo com a matéria de que trata A prudência do governante s Tomás de Aquino 237 38 Commentary on the Ethics III Lect 14 n 528 39 Cf Summa Theologiae III qu 61 por exemplo supera a do súdito simples e difere especificamente dela pelo feto de que se desdobra para o bem comum de toda a cidade ou reino todavia ambas estão de acordo com a definição de prudência da qual constituem duas formas distintas e completas As partes potenciais são as virtudes que lidam com algum ato ou matéria secundários da virtude principal e por conseguinte não contêm em si toda a essência ou o poder dessa virtude como é o caso por exemplo da liberalidade e da amizade cuja matéria embora não seja coextensiva com a da justiça recai dentro do mesmo campo uma vez que tem a ver com a ordenação correta das relações entre os homens As partes integrantes não são virtudes completas em si mesmas mas representam os vários elementos que contribuem para a formação de uma virtude completa Assim memória criatividade cautela circunspeção e afins são todos componentes necessá rios para um único ato perfeito de prudência Desta maneira constituise de modo gradual um catálogo de virtudes morais que é ao mesmo tempo completo e evidente mente enraizado em uma análise teórica da natureza e das partes da alma humana Compreenderemos o significado mais amplo do procedimento analítico de Aqui no se nos dedicarmos a uma reflexão sobre as dificuldades específicas suscitadas pela doutrina aristotélica da virtude moral como uma média entre dois extremos Como as ações humanas podem desviarse da norma da razão quer por excesso ou por defei to o comportamento virtuoso ou racional exige que ambos os extremos sejam evitados e que a média correta seja observada em todos os momentos Na maior parte das vezes a média em questão é relativa ao sujeito ou ao agente e pode ser verificada apenas com referência às circunstâncias específicas de uma determinada ação incluindo o próprio agente A razão diznos por exemplo que a comida e a bebida são necessárias para a vida mas não pode especificar a não ser da forma mais geral o quanto este ou aquele homem deve comer e beber O que é demais para um homem pode não ser suficiente para outro e viceversa o que é adequado em determinadas circunstâncias ou em um determinado momento pode ser inadequado e digno de condenação moral em outros momentos e em circunstâncias diferentes É fecil imaginar uma situação em que a própria virtude possa aconselhar que se aja de forma contrária às normas de conduta vigentes ou das que têm a aprovação geral Surge logo uma pergunta no entanto rela tiva ao princípio à luz do qual deve ser tomada uma decisão desse tipo É característico da abordem empírica de Aristóteles que a sua discussão deste problema não aluda a qualquer norma fora da esfera da moralidade ou a qualquer fim transmoral a que se poderia recorrer a fim de justificar ocasionais desvios do governo comum A Ética não declara expressamente que a média da razão é a média tal como um homem prudente que é por assim dizer uma lei em si mesma poderia determinála Mas embora essa solução possa ser considerada adequada para fins de ação obviamente deixa algo a 2 3 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 40 Summa Theologiae IIII qu 47 a 11 qu 48 a 1 qu 50 a 12 41 Summa Theologiae IIII qu 80 a 1 42 Summa Iheolopae IIII qu 49 43 Cf Aristóteles Ética II 6 desejar do ponto de vista teórico e de feto dá como comprovada a questão uma vez que pouco mais fez que sugerir que a média correta é a média conforme estabelecida por um homem prudente o qual é ele próprio definido como uma pessoa que habi tualmente escolhe a média correta A mesma dificuldade é encontrada quando se examina a doutrina aristotélica da verdade prática A verdade prática no sentido pleno da expressão ou referindose à ação em uma situação específica não é apenas uma questão de conhecimento Exige que se leve em conta não apenas a natureza de um determinado ato mas também as diversas circunstâncias que o rodeiam Mas essas circunstâncias sâo inúmeras e literal mente impossíveis de avaliar Se de modo a agir de forma virtuosa o homem fosse obrigado a conhecer todas as circunstâncias relevantes para suas ações nunca seria capaz de se mover ou de se abster de se mover Resulta então que um juízo prático ou prudente pode ser objetivamente incorreto e no entanto moralmente correto Uma pessoa que por engano e sem qualquer negligência da sua parte ministre o medica mento errado a um paciente realiza um ato moralmente bom embora possa acarretar graves danos Na verdade mesmo se fosse possível uma avaliação completa e rigorosa dos fetos objetivos de uma situação concreta ainda não seria suficiente para assegurar o caráter moral da ação pessoal A verdadeira virtude exige que se siga o bem de acordo com o modo do bem e não apenas de acordo com o modo de pensar Isso implica por parte do agente em um desejo habitual para o bem tal como se revela e é conhecido por ele As questões que solicitam a atenção de um homem de moral não são questões que possam ser levantadas de maneira objetiva e imparcial apenas são inseparáveis do autor da pergunta e as respostas resistem à análise apenas em termos de razão Em palavras um tanto diferentes a verdade do juízo prático é medida pela conformidade da mente com o apetite purificado em oposição à verdade do juízo especulativo que é medida pela conformidade da mente com o que é ou com o seu objeto Mas se é assim todo argumento como indica corretamente Aquino mais uma vez parece ser circular a verdade ou razão correta em questões práticas depende da concordância entre uma ação específica e o apetite purificado que é em si determinado pelo fato de estar de acordo com a razão correta Ao tentar resolver esse duplo problema Aquino mais uma vez explicita aquilo que na melhor das hipóteses Aristóteles deixara apenas implícito Apesar de esboçada no Comentário sobre a Ética sua proposta encontra sua expressão mais detalhada e completa no íamoso tratado sobre a lei da Summa Theologiae Sua originalidade é indicada pelo fato de não ter equivalente em Aristóteles e contar para a maior parte de sua substância com as teorias do direito natural anteriores de Cícero e de Agostinho Em suma consiste em mostrar que embora seja verdade que a escolha dos meios s Tomás d e Aquino 239 44 Aristóteles Ética 116 11071 45 Commentary on the Ethics VI Lect 2 n 1131 Cf Summa Theologiae I qu 1 a 6 ad 2 qu 14 a 16 Aristóteles Ética X 5 11764 segs 46 Summa Theologiae III qu 90108 para alcançar um determinado fim seja tareia da razão o fim que o homem persegue como ser moral já lhe é designado por natureza e précontido em seu desejo inato por esse fim A natureza deve ser entendida precisamente como o princípio intrínseco de uma propensão determinada e necessária ou como Aquino a define alhures um compartilhar da arte divina por meio da qual até os seres não racionais são forçados a agir conforme a razão Como o próprio homem é um ser natural existe nele antes de qualquer deliberação uma propensão de todo o seu ser para o fim ou fins a que como todos os outros seres naturais é ordenado de modo uniforme Assim como uma substância naturalmente procura a sua própria preservação como animal comparti lha com outros animais um desejo natural para a procriação e educação dos filhos e como ser racional é naturalmente propenso a bens humanos específicos tais como a vida política e o conhecimento da verdade Justamente porque é dotado de razão o homem participa da ordem da providên cia divina de modo mais perfeito que todos os outros seres naturais Através do conhe cimento que tem de seu fim e das propensóes naturais que revelam sua existência fica de imediato consciente dos princípios gerais que regem sua conduta Como ditames da razão prática esses princípios constituem uma lei promulgada pela própria natu reza que lhe permite distinguir entre o certo e o errado e serve como critério infalível da bondade ou maldade de suas ações Seus preceitos mais universais compõem o objeto de um hábito especial ao qual Aquino denomina consciência ou de modo mais correto sindérese que é paralela ao hábito das primeiras e autoevidentes premissas das quais provêm todas as manifestações na ordem especulativa O uso exclusivo das palavras consciência suneidêsis e sindérese que não ocorrem em Aristóteles mas sim na tradição grega posterior e na tradição cristã inicial através das quais foram transmitidas aos autores da Idade Média já é sintomático do sabor não aristotélico dos ensinamentos tomistas sobre este assunto Há mais porém Uma vez que são considerados leis no sentido estrito e próprio do termo os princípios morais em questão assumem um caráter obrigatório que não tinham para Aristóteles e para a tradição filosófica em geral Porque a lei natural não apenas recomenda ou desencoraja determinadas açóes como intrinsecamente nobres ou vis mas as comanda ou proíbe sob pena de represálias se não nesta vida pelo menos na próxima Assim é nítida a pressuposição tanto da imortalidade pessoal da alma humana como da exis tência de um Deus onisciente e onipotente que governa o mundo com sabedoria e equidade e em cujos olhos todas as ações humanas individuais são ou meritórias ou 2 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 47 Commentary on the Physics II Lect 1 e Lect 14 n 268 Commentary on the Ethics I Lect 1 n 11 Cf Commentary on the Metaphysics V Lect 5 48 Summa Theologiae III qu 94 2 49 Summa Theologiae III qu 91 2 50 Summa Theologiae I qu 79 a 1213 III qu 19 a 56 De Veritate qu 16 in IlSent Dist 24 qu 2 a 3 O emprego da palavra sindérese suntêresis literalmente conservação neste contexto pode deverse inicialmente a uma transcrição equivocada de suneidêsis consciência em um tre cho de ampla circulação do Comentário sobre Ezequiel 14 de S Jerônimo merecedoras de castigo Qualquer violaçáo de seus preceitos revela mais do que um afastamento da razão ou uma simples ausência do bom gosto pois traz a marca de uma ofensa contra Deus o doador e íiador da lei natural que além da perda desses bens internos como a felicidade e a virtude dos quais o pecador se priva inflige sanções externas de acordo com a gravidade do delito Dentro desse contexto toda a vida moral do homem adquire uma orientação completamente nova deixa de ser entendi da apenas em termos de plenitude ou realização humanas e passa a ser em última ins tância uma questão de cumprimento voluntário e grato de uma lei divina autorizada e incondicionalmente compulsória Devese acrescentar de pronto que a lei natural fornece apenas as normas mais gerais para o comportamento humano ou as fundações inabaláveis sobre as quais re pousa o conhecimento que tem o homem da ordem moral A lei representa o primei ro mas nem por isso suficiente governo da razão entre os homens Apenas seus mais elevados princípios são conhecidos por todos sem exceção e mesmo estes são em geral amplos demais para serem de uso imediato na orientação das ações de cada um Preci sa portanto ser complementada por outra lei a qual é formulada através do esforço e da dedicação humanos e por esse motivo é chamada lei humana Os preceitos da lei humana decorrem eles próprios do direito natural quer por meio de determinações específicas de uma regra geral quer de conclusões a partir de princípios indemonstrá veis A lei natural por exemplo prescreve que Deus deve ser honrado e adorado mas o culto divino implica a realização de determinados atos ou ritos que podem variar de acordo com o tempo e o lugar e que devem ser especificados pela razão humana Da mesma forma a partir do princípio geral de que se deve abster de ofender a outros a razão infere que não se deve matar roubar ou cometer adultério Escusado será dizer que nem todos esses princípios comportam as mesmas provas ou induzem à mesma necessidade Na maioria dos casos sua universalidade é limitada pela deformidade ou extrema contingência da matéria à qual se referem não menos do que pela imperfeição e pela instabilidade relativas da natureza humana As ações humanas sempre envolvem pormenores e sua moralidade pode ser afetada por qual quer uma das inúmeras circunstâncias pelas quais se fazem acompanhar Via de regra a justiça exige que um objeto emprestado ou depositado seja devolvido a seu proprie tário mas isso não quer dizer que alguém tenha a obrigação moral de entregar um carregamento de armas para uma pessoa que pretende trair seu país Além disso nem todos os homens são capazes do mesmo grau de virtude ou perfeição moral seja por motivo de idade disposição natural ou hábitos previamente adquiridos Um princípio moral que faz exigências impossíveis e portanto absurdas sobre um determinado súdito ou grupo de súditos deve ser alterado para se adequar à situação à qual é apli S Tomás de Aquino 241 51 Summa Theolopae III qu 18 a 9 qu 21 a 4 qu 96 a 4 qu 98 a 5 qu 99 a 1 e 5 qu 100 a 2 52 Summa Theologiae III qu 71 6 ad 5 Summa Contra Gentiles IV 140 53 Summa Theologiae III qu 9512 qu 91 a 2 ad 2 cado Quanto mais específico o princípio mais variável e menos infalível se torna Por esse motivo a ciência moral ao contrário das ciências naturais oferece pouca certeza e deve contentarse em apresentar a verdade em termos gerais e esquematizados A pergunta decisiva então e a real controvérsia entre Aquino e Aristóteles não é se os princípios morais estão sujeitos a alterações mas se há quaisquer princípios morais de que nunca é permitido desviarse e que conservam o seu caráter obrigatório mesmo nas mais extremas situações Enquanto Aristóteles diz apenas que todos os direitos naturais são variáveis Aquino distingue entre os preceitos comuns ou primá rios da lei natural os quais todos os homens devem respeitar em todos os momentos e seus preceitos adequados ou secundários que estão sujeitos às variações impostas pelas circunstâncias Os primeiros diferem dos últimos tanto pelo seu maior grau de cognoscibilidade como por sua maior proximidade ao fim natural do homem Tal é o caso das prescrições contra o assassinato o adultério e o roubo que não sofrem ne nhuma exceção humana e de que só Deus como o autor da lei natural pode dispensar em certos casos como fez quando ordenou que Abraão matasse seu filho Isaac A esta categoria de leis universais válidas pertencem todos os mandamentos do Decálogo inclusive as prescrições contra a idolatria e o uso do nome do Senhor em vão que ao contrário dos preceitos cerimoniais e judiciais do Antigo Testamento não foram revogados pela Nova Lei A mesma distinção entre os preceitos primários e secundários é tomada como pressuposto pelo tratamento que dá Aquino à controversa questão da justificabilidade ou inculpabilidade de ações imorais realizadas sob coação Aristóteles abandonou a questão ao dizer de modo um tanto inconcluso que há talvez alguns atos odiosos com os quais não se deve consentir mesmo ao preço da morte após os sofrimentos mais terríveis e encerrou sua discussão com a afirmação de igual ambigüidade de que o louvor e a culpa são concedidos àqueles que cedem à compulsão e àqueles que não o fazem Ao comentar esta passagem Averróis explica que a afirmação de Aristóteles está relacionada ao fato de que o homem que sucumbe à coerção pode ser responsabili zado em um lugar mas nâo em outro sugerindo que quando a tortura física ou moral extrapola os limites da resistência humana comum a distinção entre ações corretas e incorretas passa a ser de modo geral uma questão de mandamento positivo Aquino por outro lado interpreta a palavra talvez em seu sentido retórico e não literal Afir 2 4 2 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 54 Summa Theologiae III qu 94 a 4 qu 96 a 2 IIII qu 57 a 2 ad 1 55 Commentary on the Ethics I Lect 3 n 35 II Lect 2 n 2589 56 Aristóteles Ética v 71 13425 s 57 Summa Theologiae III qu 94 5 ad 2 qu 97 a 4 ad d qu 99 a 3 ad 2 e a 4 qu 100 a 8 ad 3 Suppl qu 65 a 1 Cf também III qu 100 a 1 e qu 104 a 1 ad 3 onde dizse que o dever de amar e hontar a Deus ou as injunções contra a idolatria e tomar o nome do Senhor em váo enquanto parte da lei natural devem sua certeza náo apenas à razáo humana mas à razáo humana instruída por Deus ou informada pela fé 58 Aristóteles Ética III 1 11102433 59 Averróis In Moralia Nicomachia Expositio Veneza 1562 p 3 1 1 ma com ênfase que determinadas ações devem ser totalmente condenadas e como corroboraçáo cita o exemplo de S Lxurenço que preferiu a morte pelo fogo em lugar de fàzer sacrifícios aos ídolos Assim interpreta a observação final de Aristóteles como se significasse não que a vítima da coação pode às vezes ser perdoada ou digna de piedade tal como estava implícito no texto aristotélico mas que jamais pode escapar da culpa ou da condenação Uma vez que a lei que proíbe tais ações representa as intenções do legislador assim como o bem comum da sociedade para a qual essa intenção em princípio se dirige nunca pode ser posta de lado pelo fiito de que o próprio legislador teria permi tido que fosse transgredida em nome de uma lei maior se tivesse tido consciência das circunstâncias imprevistas que tornam a sua observância indesejável em uma situação particular Os princípios mais gerais da lei natural são portanto diretamente aplicá veis à sociedade humana e não têm de ser diluídos para se operacionalizar É elimina da de uma vez por todas a possibilidade de que o bem comum ou a preservação da sociedade possam por vezes compelirnos a agir de forma contrária a esses princípios Entre as exigências da justiça e da sociedade civil existe uma harmonia fundamental e necessária A ordem social perfeita existe ou é capaz de existir de fato e não apenas no discurso A justiça civil não apenas aproxima da justiça no sentido absoluto mas de fàto coincide com ela Do mesmo modo a perfeição do homem como indivíduo acaba por ser idêntica à sua perfeição como cidadão Como conseqüência a justiça civil e a coragem as duas virtudes relacionadas de modo mais estreito com o bemestar da cidade adquirem um novo e mais nobre status A controvérsia entre a justiça e a nuanimidade é decidida em íàvor da justiça que emerge como a mais elevada das virtudes morais sem qualquer restrição Pelo mesmo motivo Aquino é capaz de remover a ambigüidade inerente no tratamento da coragem por Aristóteles e fidar de forma inequívoca da corjem como a virtude que se preocupa acima de tudo com a morte que se enfrenta na defesa do país A solução harmônica que propõe para o problema da sociedade civil também elimina a necessi dade de mentiras nobres tanto mais que a crença nos deuses da cidade equivocada porém salutar é substituída pela aceitação do Deus único e verdadeiro a qual se torna uma exigência da lei natural A sabedoria pode doravante governar sem recorrer à mentira A ausência antes observada de qualquer real esoterismo nos ensinamentos políticos de Aquino é explicada não só pela reabilitação da filosofia no mundo cristão mas de modo mais radical através da reconciliação que a posição tomista presume entre as exigências da justiça e da sociedade civil s Tomás de Aquino 243 60 Commentary on the Ethics III Lect 2 n 3957 61 Summa Theologiae III qu 100 a 8 62 Commentary on theEthia V Lea 11 n 1003 Summa Theologiae III qu 92 a 1 ad 3 63 Summa Theologiae III qu 66 a 4 IIII qu 58 a 12 64 Commentary on theEthia III Lea 14 n 537 Essa reconciliação encontra uma de suas mais claras ilustrações na reinterpretação que faz Aquino da doutrina aristotélica da escravidão legal De acordo com o direito romano e os princípios ào jus gentium Aquino defende não apenas a necessidade mas a justiça dessa prática que apresenta como benéfica tanto para o conquistador como para o conquistado uma vez que poupa a vida do último e garante para o primeiro os serviços de uma população subjugada Sobre este ponto seus ensinamentos estão mais uma vez em desacordo com os de Aristóteles que contempla a servidão dos homens que não são escravos por natureza como um mal necessário justificado pelas demandas superiores e mais prementes da sociedade como um todo e por conseguin te como mais uma indicação do caráter irremediavelmente defeituoso e autocontradi tório da justiça humana no plano da sociedade civil FÉ B íb u c a e F il o s o f ia A doutrina da lei natural de Aquino constitui exemplo primoroso do nível moral e político da síntese tomista entre a fé bíblica e a filosofia aristotélica Como uma lei da natureza a lei natural compartilha da razão e não pode ser reduzida apenas à von tade de Deus As ações que ordena ou proíbe são intrinsecamente boas ou más não são boas ou más somente por serem impostas ou proibidas por Deus Como lei no entanto também contém uma referência explícita à vontade de Deus da qual provém sua força motriz Assim fica a meio caminho entre a doutrina do direito natural da tradição filosófica não religiosa por um lado e do voluntarismo estrito da tradição religiosa não filosófica do outro Distinguese desta última por definir a lei como em essência um ato da razão e não da vontade e difere da primeira por conceber Deus não só como a causa final do universo ou o motor imóvel que move todas as coisas pela atração que exerce sobre elas mas como legislador e causa eficiente que produz o mundo do nada e por seus comandos ativamente direciona todas as criaturas para o seu fim designado O pontochave desta questão e em torno do qual parece revolver a disputa entre a filosofia e a religião revelada mostra ser em última análise a oposição entre a doutrina bíblica da criação e a doutrina filosófica da eternidade do mundo Aquino empenhase para preencher a lacuna entre uma posição e outra não por atribuir ao filósofo pagão a noção de criação divina como fizeram alguns dos comen taristas aristotélicos anteriores mas por sustentar que os motivos aventados por Aristó teles em favor da eternidade do mundo são na melhor das hipóteses apenas prováveis De modo geral seu argumento tende a acompanhar os Tópicos de Aristóteles em que a eternidade do mundo é apresentada como um problema dialético ou como pertencen te à classe dos problemas que a razão não pode resolver em vez do tratado Sobre o Céu que trata do mesmo problema de um ponto de vista científico e deixa pouca dúvida 244 H istória da Filosofia P o lítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 65 Commentary on the Politics I Lect 4 n 75 e 79 acerca da posição final de Aristóteles sobre o assunto Se a visão de que o mundo é eterno não pode ser provada nem refutada pela razão natural não se pode afirmar que os ensinamentos da Revelação estejam em contradição direta com os da filosofia O conflito entre os dois ensinamentos é atenuado ainda mais e em parte obscurecido pela rejeição de Aquino da disjunção entre a eternidade do mundo e sua criação por Deus pois segundo Aquino mesmo se o mundo fosse eterno ainda teria sua origem no livrearbítrio de Deus O que a doutrina da criação traz implícito em sua essên cia afinal não é o vir a ser do mundo e concomitantemente do próprio tempo em um dado momento no passado não importa se próximo ou remoto mas a contingên cia radical de todos os seres a não ser Deus e sua total dependência de Deus para sua existência Essa doutrina encontra sua expressão metafísica na doutrina tomista típica da distinção real entre essência e existência em todos os seres exceto Deus Contudo não é menos verdade que ao atribuir causalidade eficiente a Deus Aquino seja obrigado a preservar ou restabelecer a distinção entre o intelecto e a von tade de Deus Embora essa distinção deva ser considerada como uma distinção de razão e não de forma alguma uma distinção real ainda assim tem o efeito de dar maior destaque à vontade de Deus do que a doutrina aristotélica de Deus como puro intelecto ou como o pensamento que só pensa a si Esta conclusão é reforçada pelos motivos que Aquino alega para explicar por que assumindo a possibilidade teórica de uma criação eterna Deus produziu o mundo no tempo em vez de a partir de toda a eternidade a não eternidade do mimdo deixa mais evidente que todas as coisas devem sua origem a Deus dissipa quaisquer dúvidas que restem sobre o fato de que Deus não cria por necessidade mas por um ato de seu livrearbítrio e finalmente manifesta com abundante clareza o poder infinito de Deus na medida em que a criação implica um dom total do ser de que só Deus que possui a plenitude do ser é capaz O im pacto de longo alcance de tal doutrina pode ser vislumbrado embora de modo parcial e inadequado por meio da ênfase unilateral que foi colocada na vontade e no poder dentro do pensamento filosófico e político moderno Mesmo que se aceitasse a interpretação de Aquino e se admitisse que os ensi namentos de Aristóteles não são incompatíveis com o dogma cristão ainda poderia ser suscitada uma questão quanto a saber se ao inserir os pontos de vista morais e políticos de Aristóteles em um quadro teológico ou complementálos com ensinamen tos baseados na Revelação Aquino não alterou seu caráter original em profundidade A questão da diferença entre os dois autores não é eliminada de vez pela sugestão ocasional de Aquino de que Aristóteles lida primordialmente com a felicidade do ho mem nesta vida enquanto o cristianismo se preocupa sobretudo com a felicidade do s TomAs de Aquino 245 66 Summa Theohgfiie I qu 46 esp a 1 Summa Contra Gentiles II 3038 Aristóteles Tópicos 1 11 I0416 Sobre o Céu I 24 e 1012 III 2 67 Summa Theologfoe I qu 46 a 2 corp e ad l 68 Summa Theologiae I qu 3 a 4 Summa Contra Gentiles I 22 69 Summa Contra Gentiles II 38 15 homem na vida futura pelo simples motivo de que Aristóteles trata a felicidade desta vida como a única felicidade e guarda um silêncio ininterrupto sobre o tema crucial da imortalidade pessoal da alma A mudança de perspectiva efetuada pelo acréscimo de uma dimensão sobrenatural à especulação aristotélica não é menos importante por ser menos visível Para perceber esta mudança basta apenas refletir por exemplo sobre o que acontece com a magnanimidade quando combinada com a humildade uma vir tude não encontrada em Aristóteles ou sobre o que acontece com a coragem quando a vida na Terra é examinada dentro da perspectiva mais ampla do destino eterno do homem pois decerto o cristão que espera uma recompensa celestial em caso de mor te no campo de batalha não é inspirado por sentimentos idênticos aos do cidadão he roico que não tem essa certeza e percebe que ao pôr em perigo sua vida por uma causa nobre arriscase à perda definitiva e irreparável de tudo o que é caro aos homens Formulado em termos mais amplos o problema básico tem a ver não tanto com a concordância ou discordância entre o conteúdo da Revelação e os ensinamentos da filosofia quanto com o contraste entre a fé e a filosofia vistas como o motivo para modos de vida total e essencialmente divergentes Não se pode ser guiado a um só tempo por duas normas diversas e igualmente impositivas A aceitação da supremacia da vida de fé ou de devota resposta à palavra revelada por Deus implica necessariamente a destruição da filosofia em seu sentído original ou o que dá no mesmo a reposição da ordem na tural composta por filósofos e não filósofos por uma ordem sobrenatural baseada na dis tinção mais fundamental entre os verdadeiros crentes e não crentes Afinal o abismo que separa o erudito Tomás de Aquino do erudito Aristóteles é infinitamente maior do que aquele que separa o erudito Tomás de Aquino do simples mas piedoso Antônio A análise anterior apresenta a verdadeira natureza da revolução iniciada por Aquino na teologia cristã Contrário ao que muitas vezes é dito Aquino não batizou Aristóteles Na verdade declarou inválido o batismo conferido a ele por seus primeiros comentaristas e negoulhe admissão à plena cidadania na Cidade de Deus Ao con trário ao atribuir a sua filosofia um papel subserviente fez dele um servo ou escravo daquela Cidade À luz dos próprios princípios morais de Aquino esse tratamento não é injusto dado que em troca de sua contribuição para a teologia cristã Aristóteles recebeu se não o dom da graça pelo menos a graça de viver A prova é que enquanto foi afinal banido do islamismo e do judaísmo encontrou um lar permanente no Ocidente cristão O lugar de honra que passou a ocupar na tradição cristã como o representante por excelência dos feitos mais gloriosos da razão natural é testemunha eloqüente da inovação e arrojo do feito de Aquino O sucesso desse feito devese acrescentar nunca foi total ou inconteste Devido à sua ousadia Aquino entrou em conflito com os dois mais poderosos embora desi guais em número grupos no Ocidente Despertou o antagonismo dos teólogos tra dicionais que se ressentiam da intrusão de um pagão incorrigível no rebanho cristão 246 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 70 Commentary on the Ethics I Lect 4 n 4 III Lect 18 n 588590 Commentary on the Politics II Lect I n 170 Cf Summa Contra Gentiles III 48 e reprovavam Aquino por ter rompido a unidade da sabedoria cristã e provocou a ira dos filósofos recémemancipados os chamados averroístas latinos que se opunham à escravização da própria filosofia à qual poderiam dar o crédito por têlos libertado O delicado equilíbrio que foi capaz de estabelecer entre os extremos da fé e da razão foi desestabilizado menos de três séculos mais tarde por dois acontecimentos revolucioná rios os quais teria desaprovado mas que de modo longínquo preparou ou facilitou Um deles é o repúdio por Lutero da igreja aristotélica em nome de uma forma que supunha mais pura e menos mundana do cristianismo O outro é o repúdio por Maquiavel tanto de Aristóteles como da Igreja em nome de um ideal que não era nem clássico nem cristão mas enfaticamente moderno L e it u r a s Aquino jamais escreveu um tratado versando de forma exclusiva e abrangente sobre o tema da política Seus ensinamentos sobre esses assuntos e outros diretamente relacionados encontramse sobre tudo nas seções sobre a lei e sobre a virtude moral da Summa Jheologiae e em trechos paralelos da Summa Contra Gentiles e outras obras teológicas São expostos de modo metódico embora a partir de um ponto de vista limitado no breve tratado Sobre a Monarquia escrito a pedido do Rei de Chipre Finalmente podem ser recolhidos de forma um pouco mais incidental entre seus comentários sobre a Ética e sobre os dois primeiros livros e meio da Política de Aristóteles Devese observar que o restante dos comentários sobre a Política na tradição manuscrita e as edições impressas dessa obra foram escritas não pelo pióprio Tomás de Aquino mas por seu discípulo Pedro de Auveigne A Summa Iheologae ou Summa Theologica como é chamada às vezes não é um tratado no sen tido comum da palavra de acordo com a forma dos tratados aristotélicos digamos assim Porque o seu método de procedimento é em geral desconhecido para o leitor moderno podem ser necessárias algumas palavras de explicação em relação a ela O trabalho como um todo é dividido em trés partes A primeira parte tem como tema geral Deus e a criação A parte dois contém uma exposição da teologia moral de Tomás de Aquino e se divide em duas panes a primeira é dedicada a um tratamento do fim último do homem e dos princípios das ações humanas em geral quer intrínsecos as virtudes e vícios ou extrínsecos a lei a graça a segunda trata principalmente das virtudes e vícios em particular A pane trés trata no todo de Cristo e dos sacramentos ou do modo como na atual economia da salvação o homem retorna a Deus Cada uma dessas três panes se divide em uma série de perguntas e cada pergunta em uma série de artigos que seguem de modo uniforme o padrão da assim chamada questão disputada Os artigos individuais recebem um título sob a forma de uma peiunta que é seguido de imediato por uma enu meração das objeções mais imponantes ou mais relevantes para a tese defendida no artigo Em seguida Aquino coloca a sua própria posição com o apoio de uma autoridade reconhecida tal como uma citação das Escrimras dos Pais da Igreja de Aristóteles ou de Cícero e passa a demonstrar essa posição por meio de aiumentos teológicos ou filosóficos no corpo do artigo O artigo termina com uma resposta ponto por ponto às acusações feitas no início Os comentários de Aquino sobre Aristóteles penencem a um gênero literário conhecido na Idade Média como o commentarium ad litteram ou comentário literal distinto das paráfrases simples ou glosas comumente empregadas por seus antecessores latinos Caracterizamse pelo extremo cuidado bem como pela simpatia com que o texto de Aristóteles é escrutinado O tema de cada obra e o modo de procedi mento a ser adotado para lidar com ele é indicado quer em um preftcio ou no início do comentário em si Aquino em seguida divide e subdivide o texto de Aristóteles com o propósito de revelar sua estrutura global juntamente com a relação de cada parte do seu contexto imediato e para com o todo O comentá rio segue a ordem dos livros em que a tradição divide os tratados de Aristóteles e os quebra em sarnentos s Tomás de Aquino 247 menores de comprimento variável dos quais cada um constitui o objeto de uma única lectio ou liçáo Finalmente cada unidade de pensamento ou subdivisão final dentro desses sarnentos é explicada de forma breve ou com mais detalhes de acordo com o que as circunstâncias demandem O objetivo geral do comentário é interpretar o texto de Aristóteles de forma precisa e objetiva náo acrescentarlhe ou desenvolver a partir dele um ensinamento filosófico original Sempre que necessário o comentário esclarece o significado das palavras mais importantes e dá seus equivalentes latinos Indica em relação a cada ponto específico a natureza precisa do argumento utilizado por Aristóteles Em alguns casos fornece as razões que úndamentam tacitamente as suas declarações ou explicita o que estava apenas implícito no texto original Em raras ocasiões chama a atenção para a diferença entre os ensinamentos de Aristóteles e da Bíblia Quaisquer dificuldades ambigüidades ou aparentes contradições no texto são elucidadas por meio de hipóteses plausíveis baseadas em princípios que são os do próprio Aristóteles e que são retirados de preferência de uma mesma obra Em que medida as interpretações de Tomás permane cem fiéis em todos os momentos não só à letra mas ao espírito de Aristóteles é como se poderia esperar uma questão que tem suscitado debate entre os estudiosos Seja qual for a resposta para essa peigunta não se pode negar que tanto individual como coletivamente seus comentários revelam uma extraordinária compreensão e domínio de todo o corpus da obra de Aristóteles A Ihomas Aquinas On Kinhip to the King o f Cyprus Translated by Gerald B Phelan and revised by I Th Eschmwn Toronto The Pontificai Institute of Mediaeval Smdies 1949 Book I Thomas Aquinas Summa Theoloffca Dterally Translated by the Fathers of the English Dominican Province 3 v New York Benziger Brothers 1947 III qu 9097 qu 100 qu 105 a 1 ffom the tteatise on law IIII qu 47 and 50 from the treatise on pmdence IIII qu 5758 from the treatise on right and justice Thomas Aquinas On the Truth o f the Catholic Faith Summa Contra Gentiles Newly Translated with an Introduction by Anton C Pegis Garden City Image Books 1955 Book I Chaps 17 B Thomas Aquinas Commentary on the Nicomachean Ethics Translated by C I Litzinger Chico Henry Regnery Company 1964 Book I Lect 13 Book IV Lect 811 Book V Book VI Lect 7 BookX Lect 916 Thomas Aquinas Commentary on the Politics ofAristotle Proemium Book I Lect 1 Book III Lect 16 Medieval Political Philosophy A Sourcebook Edited by R Lerner and M Mahdi with the coUaboration of E L Fortin New York The Free Press 1963 p 298334 2 4 8 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey M arsíuo d e Pádua circa 12751342 Marsílio cuja principal obra intitulase Defensor da Paz 1324 foi um aristo télico cristão Porém são profundas as diferenças entre seu cristianismo e seu aristote lismo e as crenças do mais célebre aristotélico cristão Tomás de Aquino Marsílio por assim dizer vive em um mundo diferente de Tomás Em todo o Defensor menciona Tomás apenas uma vez mas mesmo assim quando afirma citálo na verdade cita apenas as palavras de um outro abalizado autor cristão inseridas por Tomás com o nome desse autor em uma compilação Tomás aceitara o tradicional governo eclesiás tico da Igreja Romana Marsílio admite que a classe sacerdotal cristã seja divinamente estabelecida independentemente do laicato cristão ambos sendo parte da ordem cris tã mas nega que a hierarquia eclesiástica seja divinamente estabelecida De acordo com ele em essência todos os sacerdotes cristãos são iguais em todos os aspectos no que se refere ao direito divino Também nega que qualquer sacerdote mesmo que seja bispo ou papa tenha por direito divino qualquer um dos seguintes poderes o poder de comandar ou de coagir o poder de decidir se e como será exercida a coação contra apóstatas e herdes sejam eles sujeitos ou príncipes e o poder de determinar de forma juridicamente vinculativa o que é ortodoxo e o que é herético Contudo não podemos examinar a doutrina da Igreja de Marsílio embora fosse esta da maior importância política em particular durante a Reforma pois tal doutrina pertence à te ologia política e não à íilosoíia política Ao acatarmos esta distinção não adulteramos os ensinamentos de Marsílio pois ele próprio distingue em toda a sua obra os ensina mentos políticos demonstrados por manifestação humana dos ensinamentos polí ticos revelados por Deus de modo imediato ou mediato de tal forma que são aceitos pela fé simples como distintos da razão Com isso não se n que o princípio da sua doutrina sobre o sacerdócio cristão forneça a chave para quase todas as dificuldades que abundam em sua obra pois esse princípio explica o seu único desvio explícito dos ensinamentos de Aristóteles Marsilius of Padua The D fender ofthe Peace trans with an introduction by Alan Gewirth New York Columbia University Press 1956 II 1324 169 parágrafo de Dictio II Ibid I 92 Quanto aos princípios da íilosoíia política Marsílio revelase um rigoroso segui dor de Aristóteles o filósofo divino ou o sábio pagão Concorda com Aristóteles de modo inequívoco a respeito da finalidade da nação a nação existe em prol da boa vida e a boa vida consiste em exercer as atividades adequadas para tornarse um ho mem livre ou seja consiste no exercício das virtudes da alma prática bem como as da alma especulativa Enquanto a felicidade prática ou cívica parece ser a meta dos atos humanos na verdade a atividade do metafísico é mais perfeita que a atividade do príncipe que é o homem ativo ou político por excelência Marsílio concorda com Aristóteles de maneira explícita quanto à questão de os objetivos da nação constitu írem o fundamento para os demais tipos de causas materiais formais e móveis da nação e de suas partes Expressa sua concordância com ele em vários outros aspectos Faz apenas uma ressalva contra Aristóteles ele não conhecia uma doença muito grave da sociedade civil um mal o inimigo comum da raça humana que deve ser erradi cado A falta deste conhecimento não desabona a suprema sabedoria de Aristóteles O filósofo não conhecia a pestilência em questão porque não poderia conhecêla já que era resultado acidental de um milíre que não poderia ter sido previsto sequer por um homem ainda mais sábio que o milagre Este milagre é a revelação cristã e a doença grave surgiu a partir de reivindicações da hierarquia cristã de modo algum apoiadas pelas Escrituras reivindicações que culminam na noção da plenitude do poder papal Marsílio declara que esta é a única doença política da qual se ocupará uma vez que as demais foram examinadas de forma adequada por Aristóteles Não se deveria por tanto sequer nutrir a esperança de encontrar uma apresentação completa da filosofia política no Defensor A obra surge como uma espécie de apêndice à porção da PolíHca de Aristóteles da qual se pode dizer que analisa as doenças da sociedade civil Todavia o desconhecimento por Aristóteles de uma única doença embora ex cepcionalmente grave da sociedade civil é apenas o avesso de seu erro fundamental ser pagão Esse erro porém afeta sua filosofia política de modo direto em apenas um ponto os ensinamentos a respeito do sacerdócio vristóteles não conhecia o verdadei ro sacerdócio cristão mas apenas os falsos sacerdócios pagãos Isso não significa que seus ensinamentos a respeito do sacerdócio sejam totalmente incorretos Pelo contrá rio dentro da filosofia política esses ensinamentos estão na maior parte corretos Discerniu com nitidez que o sacerdócio é um elemento necessário à nação e até mes mo uma parte nobre dela mas não pode ser uma parte dominante os sacerdotes não podem ter o poder de governar ou julgar Também descortinou com clareza que não se pode deixar de forma geral e global à escolha dos indivíduos tornaremse sacerdotes ou não o número de sacerdotes bem como suas qualificações e em es pecial a admissão de estrangeiros ao sacerdócio na nação estão sujeitos à decisão do 250 H istória d a Filosofia P o lítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 3 Ibid I 112 início e 1615 final 4 Ibid I 41 17 II 304 final cf I 69 primeiro parágrafo 5 AídíI 135 7 193 e 813 governo desta A revelação cristã não contradiz esses ensinamentos demonstrados já que a revelação está sem dúvida acima da razão mas não é contrária a ela E isso não é tudo Aristóteles de feto não conhecia o verdadeiro fundamento do sacerdócio que só pode ser a revelação divina Conmdo se não Aristóteles de qualquer modo outros filósofos que como filósofos não acreditam em outra vida elaboraram ou aceitaram leis supostamente divinas acompanhadas de sanções em outra vida porque acreditavam que tais sanções induziriam os não filósofos a evitar os vícios e cultivar as virtudes nesta vida O cristianismo é uma lei verdadeiramente divina e a fé cristã em castigos e recompensas depois da morte é a verdadeira fé com base na fé cristã pode se então de feto afirmar que a nação é guiada tanto para esta felicidade neste mundo como para a bemaventurança no outro Entretanto uma vez que o outro mundo não pode ser conhecido ou demonstrado a filosofia política deve concebêlo como um meio postulado para inspirar este mundo Além disso enquanto o cristianismo se pre ocupa exclusiva ou essencialmente com a outra vida também faz com que o destino dos homens no outro mundo dependa do modo como viveram neste mundo e tam bém defende que a crença em castigos e recompensas após a morte é salutar também do ponto de vista político O raciocínio dos filósofos pos é portanto verdadeiro e assim podese dizer que fez parte dos ensinamentos políticos demonstrados De qualquer forma esse raciocínio conduz ao conceito filosófico aceito por Marsílio da seita como sociedade constituída pela crença em uma lei divina singular ou por uma religião singular este conceito abrange do mesmo modo todas as leis que se supõem ser e que são de feto divinas pois a verdade da verdadeira religião escapa à íilosoíia como filosofia Este conceito de seita neutro do ponto de vista religioso é uma parte essencial da ciência política de Marsílio tal como fora da ciência política da Alfará bi Induz ao conceito racional de sacerdócio segundo o qual os sacerdotes são em essência professores e não governantes ou juizes a função essencial dos sacerdotes em qualquer lei divina é ensinar uma doutrina salutar relativa à vida após a morte ou de modo mais geral ensinar a lei divina na qual sua sociedade por acaso acredita Os sacerdotes são os únicos professores que como professores constituem uma parte da nação De acordo com a Política de Aristóteles os sacerdotes são na verdade uma das seis partes da nação mas sua função não consiste em ensinar A divergência entre Mar sílio e Aristóteles neste ponto no entanto não se baseia em um malentendido Marsílio afastase da letra e não do espírito de seu mestre Ao afirmar que o sacerdócio é a única parte da nação que se devota primordialmente ao ensino destaca o que é mais relevante o feto de que segundo Aristóteles os filósofos longe de serem a parte governante da melhor nação como seriam de acordo com Platão não são sequer M arsíuo d e pádua 231 6 Ibid I 51 1510 1912 final II 14 89 chiando no final 305 patágtaíb 2 7 óííí1434 511 103 8 Ibid I 52 3 13 103 II 84 final Mas cf o sentido pejorativo de seita em II 1617 Ver anteriormente p 224 9 Ibid I 512 194 102 22 ed PrevitéOrton e 5 início II 610 final 106 2013 Observese que Marsílio não cita Deut 3310 como tais uma parte de qualquer naçáo pois a meta da nação como nação não é a perfeição especulativa as cidades e os Estados não filosofam O fato de que os filósofos pagãos em geral e Aristóteles em particular apri moraram o ensino racional acerca do sacerdócio não significa que sejam verdadeiros todos os ensinamentos de Aristóteles sobre este assunto Segundo Aristóteles a ação do sacerdote é menos nobre ou perfeita que a ação do governante contudo na lei dos cristãos e só nessa lei a ação do sacerdote é a mais perfeita de todas Segundo Aristóteles só os idosos da classe superior deveriam ser sacerdotes outro pormenor que é negado pelo cristianismo Finalmente segundo Aristóteles os sacerdotes são apenas cidadãos porém uma vez que os sacerdotes cristãos deveriam imitar a Cristo e por conseguinte viver em pobreza e humildade evangélicas ficaria aparente que não deveriam ter nada a ver com as coisas que são de César As doenças da nação que Aristóteles discutira póem em perigo este ou aquele tipo de governo ou tornam impossível um bom governo Entretanto na opinião de Marsí lio a doença com a qual o Defensor se preocupa impossibilita qualquer governo pois destrói a unidade do governo e da ordem jurídica ou acarreta a anarquia permanente já que consiste na crença de que o cristão está sujeito neste mundo a dois governos o espiritual e o temporal que estão fadados a entrar em conflito Essa doença põe em perigo não só a boa vida ou os frutos da paz em prol dos quais existe a nação mas a própria vida ou a própria paz que são apenas a condição embora a condição neces sária para a realização do verdadeiro objetivo da nação Daí se vê como é oportuno o título da obra de Marsílio o livro é um defensor não da fé mas da paz e de nada mais além da paz não para repetir porque a paz é o bem maior ou o único bem político mas porque sendo um tratado destinado à sua época preocupase em essência com a doença da época É este o motivo pelo qual Marsílio deixa entrever que reduz suas expectativas Desta forma furtase da questão acerca do melhor regime sem de modo algum negar a sua importância qualquer regime é melhor que a anarquia Portanto preocupase mais com a lei apenas com a lei como lei do que com as boas leis ou as melhores leis e com o governo apenas do que com o melhor governo Assim satisfaz se apenas com o consentimento como critério para a legitimidade ao contrário do nível de consentimento Aristóteles por assim dizer precaverase contra a situação embaraçosa de Marsílio Quando este afirma com efeito que a lei como lei não pre cisa ser boa ou justa enquanto a lei perfeita deve ser justa está em total acordo com a observação de Aristóteles de que um governante não é menos governante porque governa de modo injusto ou com o uso lingüístico de Aristóteles ou mesmo do senso comum que nos autoriza a falar de leis más ou injustas sem mencionar o fato de que quando Aristóteles opõe a escravidão por natureza à escravidão pela lei decerto ao di zer lei não quer dizer uma lei justa Apesar de com frequência ou na maior parte das vezes esquivarse do fato de que a nação é ordenada para a virtude Marsílio e em total acordo com a advertência de Aristóteles de que quase todas as cidades não estão 252 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a s L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 10 Ibid I 5113 II 1314 241 final 304 parágrafo 1 final preocupadas com a virtude um comentário que não impede Aristóteles de chamar essas más cidades de cidades A única reserva de Marsílio contra Aristóteles subsistia quanto às conseqüências imediatas do fàto de Aristóteles ser pagão Só por acidente concernia à filosofia política ou à doutrina política racional Ainda assim segundo Aristóteles o melhor governo ci vil é o governo dos cavalheiros que governam sua cidade uma sociedade relativamente pequena e estão habilitados a fezêlo porque são homens de fortuna Como pode riam tais homens ser cogitados para serem governantes de uma sociedade cristã onde teriam de governar sacerdotes cristãos e portanto a Igreja Pois em uma sociedade cristã a atividade do sacerdote é mais nobre que a do governante Além disso a Igreja é universal Finalmente os melhores homens da cristandade ou seja os melhores cris tãos devem viver em pobreza evangélica Este foi o problema que Marsílio acreditava ter de resolver e ter resolvido A questão de como conciliar o princípio aristotélico os homens dedicados à atividade prática mais nobre deveriam governar por direito próprio com o princípio cristão a atividade do sacerdote é mais nobre do que a do cavalheiro parece ter sido resolvida da forma mais clara e simples pela doutrina da plenitude do poder papal Marsílio evita essa conclusão dentro dos limites da filosofia política ao ensinar que em cada nação a autoridade política fundamental não é o governo ou a parte governante mas o legislador humano e que o legislador humano é o povo todo o conjunto dos cidadãos Para expressar isso na linguagem de Rousseau Marsílio afirma que o único soberano legítimo é o povo mas que o soberano deve ser distinto do governo Assim consegue subordinar os sacerdotes cristãos ao laicato a aristocracia cristã ao populus ou demos cristão Mas ao tomar essas medidas parece desviarse de modo flagrante dos ensinamentos de seu venerado mestre o qual se pode dizer que identificava o soberano com o governo e acima de tudo preferia a soberania ou o governo dos cavalheiros aristocracia à soberania ou governo do povo democracia Marsílio não se livra da dificuldade pela aceitação das afirmações de Aristóteles segundo as quais a democracia ou governo do vulgo é um mau regime e os agricul tores artesãos e ganhadores de dinheiro que constituem o vulgo não são no sentido mais estrito parte da nação Ao contrário aumenta a dificuldade por atribuir a Aris tóteles o suinte ensinamento o poder legislativo deve estar inteiramente nas mãos do conjunto de cidadãos o governo deve ser eleito por todo o conjunto dos cidadãos e deve prestar contas a ele o governo deve governar na estrita observância das leis e se transgredir uma lei será passível de punição pelo conjunto de cidadãos Este ensi namento atribuído a Aristóteles é muito mais democrático do que o verdadeiro ensina mento de Aristóteles dentre todo o conjunto dos cidadãos como Marsílio o entende é o vulgo que deve desempenhar um papel muito grande para não dizer decisivo A argumentação a fàvor do vulgo com a qual Marsílio apoia o seu ensinamento é de M a k s íu o d e P á d u a 253 11 Ibid I 11 84 1045 151 17 II 45 89 28 final PoUtica 1255 1315 1276 13 1282 713 1324 79 1333b 5ss 01180 2435 fato quase idêntica ao argumento em favor da democracia que Aristóteles relatara e examinara no contexto de sua ascensão dos regimes defeituosos à aristocracia ou mo narquia Marsílio por sua vez não se cansa de fazer citações explícitas de Aristóteles quanto a este tema embora não sem equívocos peculiares Ainda mais peculiar é seu completo silêncio neste âmbito acerca da argumentação antidemocrática de Aris tóteles Marsílio relata ainda a argumentação antidemocrática mas omite qualquer referência a Aristóteles Cita apenas uma autoridade para a posição antipopulista as palavras do sábio rei Salomão segundo as quais é infinito o número dos tolos Marsí lio não citara nenhuma passem bíblica em seu raciocínio populista assim nos deixa perplexos por um momento fazendonos pensar que a Bíblia ou ao menos Salomão poderia fevorecer a aristocracia No entanto descarta essa possibilidade ao sugerir que ao dizer tolos o sábio quisesse mencionar talvez os infiéis que por mais sábios que sejam nas ciências do mundo são contudo de todo insensatos já que segundo Paulo a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus A partir disso seguese que o homem fiel e por conseguinte tanto mais a multidão dos fiéis é verdadeiramente sá bia e portanto perfeitamente competente para fazer leis e eleger reis e magistrados Há pelo menos uma outra observação de Marsílio que revela que sua crença na competência do povo em geral deu origem à sua preocupação não com a autoridade como tal mas com a autoridade na cristandade Afirma com efeito que a necessidade de dar à multidão o poder de legislar e de eleger magistrados é menos evidente que a ne cessidade de confiar à multidão o poder de eleger sacerdotes e removêlos de seus cargos sacerdotais pois o erro na eleição de um sacerdote pode levar à morte eterna e a grandes prejuízos nesta vida Tais danos consistem na sedução das mulheres durante as conver sas secretas em que confessam seus pecados ao sacerdote É óbvio que o mais simples cidadão e sem dúvida portanto a multidão fiel é capaz de julgar a confiabilidade de qualquer sacerdote individual em tais questões assim como o seriam os homens mais sábios do mesmo modo a multidão simples pode até estar mais bem informada acerca de tais assuntos que os eruditos Marsílio também sugere que é infalível o conjunto dos fiéis que é guiado em suas deliberações pelo Espírito Santo ao contrário do conjunto de cidadãos como meros cidadãos De longe o argumento mais importante a favor do governo popular no entanto é fornecido pelo exemplo da Igreja em sua forma mais pura na qual não havia ainda príncipes cristãos e a Igreja consistia com exclusividade em sacerdotes e na multidão de leigos que eram seus súditos Justamente naquela épo ca Igreja significava apenas todo o conjunto dos fiéis de forma que todos os cristãos eram eclesiásticos Donde a tradicional distinção entre o povo e o dero deve ser revista de modo radical em favor do povo De acordo com as práticas da Igreja primitiva a eleição para todos os cargos sacerdotais é província de toda a multidão dos fiéis Esse raciocínio não é enfraquecido mas reforçado pelo fato de que na própria Igreja pri mitiva a multidão era incivilizada e inexperiente se mesmo nessa época os bispos eram 254 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 12 Definder I 51 13 83 11 esp 116 1234 13134 II 171012 213 e 9 final PoUtica 1281 40 segs esp 1281 2325 muitas vezes eleitos pelo povo tal procedimento é ainda mais adequado após a fé ter lançado raízes tanto nos súditos quanto nos príncipes Voltemos ao âmbito da filosofia política e examinemos um pouco mais de perto a doutrina de Marsílio sobre o legislador humano Dois capítulos inteiros de um total de 52 são dedicados à exposição às provas e à defesa dessa doutrina São apresenta das três provas às quais se acrescenta uma quarta mas a quarta prova é nas palavras dele pouco mais que um resumo das três primeiras 1 O poder legislativo deveria pertencer àqueles de quem só as melhores leis podem nascer mas este é o conjunto de todos os cidadãos uma das razões para isso é que ninguém prejudica a si mesmo em sã consciência e portanto podemos acrescentar quando cada um pensa em seus interes ses não serão esquecidos os interesses de ninguém ou serão devidamente atendidos os interesses de todos 2 O poder legislativo deveria estar nas mãos apenas daquele que pode melhor garantir que serão observadas as leis promulgadas mas este é o conjunto de todos os cidadãos pois cada cidadão tem maior respeito pela lei que pareça ter sido imposta por ele mesmo ainda que nâo seja boa o motivo para isso é que cada cidadão nâo apenas é um homem livre ou seja não é sujeito a um mestre mas também deseja ser um homem livre Podemos observar que esse argumento acarreta uma dificuldade nunca discutida por Marsílio acerca da lei dada por Deus e que por conseguinte nem sequer em aparência pode ser considerada autoimposta 3 O que pode beneficiar e prejudicar a cada um e por conseguinte a todos deveria ser conhecido e ouvido por todos de forma que todos e cada um pudessem alcançar o benefício e repelir o mal A defesa da doutrina é expressa em três argumentos que são na sua maioria retirados do raciocínio populista relatado por Aristóteles Na segunda parte do último grupo de argumentos Marsílio ilustra o perigo de confiar o poder legislativo a poucos ou a um com uma referência ao caráter oligárquico ou tirânico do direito canônico Assim a tese populista de Marsílio parece derivar de seu anticlericalismo Marsílio atribui o poder político fundamental o poder do legislador humano não apenas ao conjunto de todos os cidadãos mas ao conjunto de todos os cidadãos ou a sua parte mais forte ou superior Pela parte mais forte ou superior decerto não quer dizer a maioria irrestrita A parte mais forte ou superior que por assim dizer substitui o conjunto de todos os cidadãos deve ser entendida tanto em termos de nú mero como de qualidade de modo que o vulgo não fique de todo à mercê das pessoas melhores nem as últimas inteiramente à mercê das primeiras O esquema esboçado por Marsílio poderia ser denominado governo civil uma média entre oligarquia e democracia se nâo fosse o fato de que o governo civil é uma forma de governo en quanto Marsílio fàla do soberano como sendo distinto do governo Além disso enquanto em uma democracia no sentido de Aristóteles as pessoas comuns partici pam plenamente da deliberação e da jurisdição Marsílio reserva essas funções para o governo ou o grupo governante distinto do conjunto de todos os cidadãos ou para a M arsílio d e Pádua 255 13 Drfender II 23 158 161 e 9 início 175 7810 283 17 14 Ibid 1 12131123913 início 2411 2619 2829 parte mais forte ou superior Acima de tudo como Marsílio já revela de modo explí cito nos capítulos dedicados à definição do legislador humano este pode delegar seu poder legislativo a um ou a vários homens Marsílio permite assim que a soberania do povo permaneça dormente por completo Ao mesmo tempo em que proclama a virtude transcendente de todos que têm participação efetiva na legislação descarta essa participação como irrelevante É preciso ir mais longe e dizer que desmente o próprio princípio da soberania popular Compara a posição da parte governante no organismo político à do coração no corpo humano tratase da parte que molda as outras partes do organismo político Mas se assim é a parte governante não deriva de um soberano preexistente o legislador humano ou o povo ou seja o conjunto constitmdo por to das as partes do organismo político em suas proporções corretas mas é ao contrário a causa para o suposto soberano De acordo com isso Marsílio compara a posição da parte governante na comunidade à do primeiro motor do universo isto é à do Deus aristotélico que com certeza náo está sujeito às leis elaboradas pelas outras partes do universo Em uma palavra Marsílio retorna à visáo aristotélica segundo a qual o legis lador humano o soberano é idêntico à parte governante o governo ou segundo a qual a parte mais forte ou superior é idêntica à parte governante pois em toda ordem política estável a parte governante quer se trate de um homem alguns ou muitos é por óbvio a parte mais forte ou superior Marsílio ainda identifica de modo explícito o governante com o legislador por exemplo ao chamar de legisladores os imperadores romanos Não encerra o argumento com a afirmação de que o legislador humano pode dar ao governante a plenitude do poder Chega a dizer que o governante deve a sua posição ao legislador humano ou a qualquer outra vontade humana o governante pode dever a sua posição à sua própria vontade Se a parte governante é o legislador não pode de forma simples ser sujeita à lei Mesmo em uma república onde o legislador náo é um indivíduo e por conseguin te nenhum indivíduo está de forma alguma acima da lei às vezes é necessário que um ministrado como indivíduo aja de modo ilegal a fim de salvar a república tal como fez Cícero ao sufocar a conspiração catilinária Quando Marsílio sugere que o governante está sujeito apenas à lei divina não devemos esquecer que segundo ele a lei divina como tal não é cognoscível pela razão humana nem como tal tem poder coercitivo neste mundo Além disso se a parte governante o governo é o legislador o soberano o governo não está sujeito a punição em caso de má conduta pelo mesmo motivo pelo qual o povo soberano na hipótese populista não está sujeito a punição Em suma apesar do seu tom dogmático os ensinamentos populistas de Marsílio se re velam embora de maneira diversa tão provisórios ou hesitantes quanto o argumento democrático na Política de Aristóteles 2 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 Ibid I 51 7 81 124 II 28 48 87 16 Ibid I 44 13 20 85 102 123 13 final 14 cabeçalho e final 1556 1621 179 II 54 149 porção inferior 86 212 304 485 1921 um dos dois parágrafos centrais do capítulo III 213 Defensor Minor cap 3 início Política 1296 1416 17 Defender I 143 154 2613 Cf II 315 e 306 A característica do Defensor da Paz visto como um tratado de filosofia política é que estabelece com muita ênfase e literalmente ao mesmo tempo contesta a doutrina da soberania popular Qual é o significado dessa extraordinária contradição sobre os próprios fundamentos da sociedade política Qual é o significado da vacilação de Mar sílio entre o populismo e o que se pode chamar de absolutismo monárquico Podese dizer que Marsílio fica do lado do povo quando se entende o povo em oposição ao clero e a nada mais e que toma o partido dos imperadores romanos antigos ou medie vais contra os papas Em outras palavras a contradição desaparece quando se supõe como têm feito alguns estudiosos que é apenas o anticlericalismo e nada mais que inspira o Defensor Para seu argumento anticlerical Marsílio necessitava de uma base populista pois teve de apelar ao Novo Testamento contra as opiniões arraigadas sobre a Igreja Se por um lado o Novo Testamento dá forte apoio à demanda de submissão por parte de monarcas absolutos ou déspotas não dá suporte à sugestão de Marsílio de que somente os governantes seculares cristãos distintos dos sacerdotes deveriam governar a Igreja em tudo o que afeta o destino dos homens neste mundo punição dos hereges e apóstatas excomunhão propriedade e assim por diante mas aparente mente o Novo Testamento dá algum suporte à visão de que as decisões quanto a tais assuntos repousam em todo o corpo dos fiéis distintos dos apenas sacerdotes Todo o conjunto dos cidadãos de Marsílio é apenas a contrapartida filosófica ou racional de todo o conjunto dos fiéis e tal contrapartida é necessária a fim de fornecer a seu anticlericalismo a mais ampla base possível tanto a razão como a revelação depõem contra o governo dos sacerdotes Esta explicação implica que a autocontradição fun damental que é característica do Defensor é resultado consciente de uma estratégia consciente São defensáveis tanto a explicação como suas implicações todavia não explicam determinadas características dos ensinamentos populistas de Marsílio nem o caráter essencial de estratégias tais como as com justiça atribuídas a Marsílio Não dão conta da segunda porque não são suficientes para conceber Marsílio como um político ou advogado de defesa talvez hábil mas um tanto inescrupuloso Para encontrarmos uma saída para essa dificuldade examinemos uma doutrina de Marsílio que não é afetada pela teologia política ou por preocupações antiteológi cas sua doutrina da monarquia Afirma ele que a monarquia seria talvez a melhor forma de governo mas fãz o que pode para scutir a questão de saber se é preferível a monarquia hereditária ou a eletiva Dedica a esse tema apenas um capítulo mas esse capítulo é mais longo que os dois capítulos tomados em conjunto que aparentemente destinamse a lançar as bases para a soberania popular Decide a fiivor da monarquia eletiva entendida de modo estrito ou seja de uma monarquia em que é eleito o mo narca e não um monarca e seus descendentes Esta decisão pode ter conquistado as boas graças do papa mas com maior probabilidade do imperador alemão que na quele momento travava uma dura batalha contra o papa e logo se tornou o protetor de Marsílio não lhe teria angariado as simpatias do rei francês por exemplo Ainda M arsílio d e PXdua 257 18 Ibid I 957 153 final 16 II 242 assim foi necessária para o sucesso de sua empreitada que tinha por objetivo a erra dicação da plenitude do poder papal e de tudo o que o recordasse para conquistar a boa vonude de todos os príncipes seculares Portanto podese supor que sua preferên cia pela monarquia eletiva sobre a monarquia hereditária pertence a seus ensinamentos políticos finais ou relevantes Certamente nunca contradiz essa preferência como con tradiz a doutrina da soberania popular Seu argumento a fiivor da monarquia eletiva pode ser reduzido a uma única consideração A qualidade mais importante do gover nante é a prudência pois a infinita variedade dos assuntos humanos não permite uma rulação adequada por meio das leis e a prudência náo se herda A prudência isto é a sabedoria prática em oposição à mera esperteza nâo é separável da virtude moral e viceversa A prudência é também e em especial necessária para a elaboração de leis boas e justas Embora a prudência seja portanto de extrema importância é rara a natureza gerou apenas uma parte da raça humana com capacidade para a prudência e menos homens ainda realizam essa potencialidade A consideração precedente não implica que seja ilegítima a monarquia hereditária significa apenas que a realeza hereditária é como tal inferior à monarquia eletiva A realeza hereditária pode até ser preferível à monarquia eletiva na maioria dos países em todos os momentos e em todos os países no início de sua vida política quando todos os homens são ainda inciviliza dos Pois na maioria dos países em todos os momentos e em todos os países em seus primórdios ou na sua decadência a prudência é por assim dizer o melhor reduto de uma única família e não há portanto eleitores prudentes A monarquia eletiva é su perior à monarquia hereditária porque a primeira é adequada para uma nação perfeita e civilizada enquanto a segunda é adequada para uma sociedade ainda imperfeita ou irremediavelmente incivilizada Ora essa mesma reflexão leva à conclusão de que para uma nação perfeita ou civilizada o governo de vários homens prudentes ou seja a aristocracia ainda é mais adequado até mesmo que a monarquia eletiva pois não há nenhuma razão por que se existe na nação uma quantidade de homens prudentes como é o caso em uma nação perfeita todos exceto um sejam sempre privados da maior honra aqueles que foram injustamente privados de seu quinhão no governo com justiça se envolveriam em sublevaçóes Marsílio dedica todo um capítulo para demonstrar que a unidade indis pensável do governo não é comprometida de forma alguma se o governo consistir em vários homens em vez de um só Não só a monarquia hereditária mas a monarquia como tal é adequada apenas em momentos e lugares onde haja uma extrema escassez de homens que estejam aptos a governar uma nação como por exemplo talvez em Roma no final da república A monarquia é o tipo adequado de governo na família e não na sociedade civil perfeita O fato de que a aristocracia distinta da monarquia só é possível sob as condições mais fiivoráveis e por conseguinte muito raramente em nada contradiz o fàto de que é o rime mais natural Se os sacerdotes fossem como deviam ser aipunenta Marsílio o conselho geral da Igreja poderia consistir apenas em 258 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 19 Ibid 1 71 94710 113 421415 142710 151 161124 esp 1617 sacerdotes pois o mais importante requisito para a participação em tal assembleia é um profundo conhecimento da lei divina ou seja a mais elevada forma de sabedoria mas os sacerdotes não são como deveriam ser Isso eqüivale a dizer que em princípio é preferível a aristocracia ou governo do sábio apenas porque a Igreja já não é mais uma aristocracia mas é agora uma oligarquia como Marsílio não se cansa de repetir necessita de correção pela melhor parte do laicato e o laicato é na Igreja o elemento popular Dentro de seu aiumento populista Marsílio indica que a elaboração e análise das leis é assunto próprio dos homens prudentes os demais membros da socie dade são de pouca utilidade nesta matéria e só seriam perturbados no exercício do seu trabalho essencial se fossem chamados a realizar mais do que efetuar uma ratificação formal das leis Essa ratificação popular das leis parece de fato ser desejável uma vez que é provável que torne a multidão mais propensa a obedecer às leis Podese dizer que a própria oscilação de Marsílio entre o populismo e a monar quia absoluta indica a aristocracia como a média correta entre estes dois extremos defei tuosos O que depõe a fevor do poder legislativo dos reis absolutos redunda também em benefício de um governo soberano que consiste nos homens prudentes de uma cidade dos quais cada um deve sua posição à cooptação por seus pares e não à eleição popular e o que depõe a favor do poder legislativo da parte mais forte ou superior do conjunto de todos os cidadãos redunda em benefício da que é na verdade a parte mais for te ou superior em toda cidade que não é ou demasiado jovem ou pequena demais ou então velha ou grande demais para a excelência política a saber os cidadãos mais prudentes e virtuosos Marsílio abstémse de argumentar em favor da monarquia enquanto argumenta com ênfase em fiivor da soberania popular o rime que favo rece é um pouco mais próximo não da democracia de feto mas do governo civil que da monarquia Ao mesmo tempo seu argumento populista aponta por meio de seus defeitos gritantes por exemplo do governo civil para uma aristocracia que seja aceitável para a multidão não só por causa das qualidades inerentes a uma verdadeira aristocracia como o governo dos cidadãos mais prudentes e virtuosos mas também porque respeita a suscetibilidade da multidão Marsílio apresentou o argumento em fevor da aristocracia da forma mais branda possível porque este argumento não for nece uma base ampla o bastante para a política anticlerical que considerava como de longe a tarefe mais uiente para a sua época Além disso o argumento em fevor da aristocracia teria redundado na opinião da maioria dos seus contemporâneos em be nefício do clero pois quando se demonstra que o poder político pertence por direito aos mais sábios parece decorrer daí que pertence menos aos versados em sabedoria humana que aos versados em sabedoria divina M a h s íu o d e P á d u a 259 20 NT Eclesiastes 115 The perverse are hard to be corrected and the number of fools is infinite O que é torto náo se pode endireitar o número de loucos é infinito 21 Ibid I 22 34 910 115 final 122 138 149 1619 2123 17 II 202 final e 1314 cf II 315 com 306 Gewirth loc cit I 254 O emprego de regnum sirido em I 2 íãz esperar uma tendência monarquista maior do que a que Marsílio tem de fato A estratégia que Marsílio empregou pode ser explicada pela impossibilidade po lítica que eqüivalia a uma impossibilidade física de ventilar a questão política fun damental Sua consciência poderia estar tranqüila por ter procedido como fez pois estava convencido de que era impossível ou indesejável um governo de sacerdotes Pois segundo ele o Novo Testamento não só não autoriza o governo pelos sacerdotes em particular nos assuntos seculares mas categoricamente o proíbe Na lei cristã e só na lei cristã a ação do sacerdote como sacerdote é a mais perfeita de todas Mas essa ação requer um espírito e um modo de vida que são incompatíveis com o governar pois exige o desprezo pelo mundo e a mais extrema humildade Cristo excluiu a si mesmo e aos apóstolos de todas as formas de governo do mundo Paulo proibiu todos os sacerdotes de se envolverem em qualquer questão secular que fosse pois ninguém pode servir a dois senhores O Novo Testamento reconhece nos mais fortes termos o dever de obediência ao governo humano pois este não traz debalde a espada não tanto para a defesa da pátria quanto é vingador para castigar o que faz o mal e o Novo Testamento atribui ao orgulho pecaminoso a opinião de que os maus governantes ou amos podem ser desobedecidos Os escravos cristãos não estão autorizados a exigir que lhes seja dada a liberdade após seis anos de servidão como sucedeu com os escravos hebreus pois a lei em questão no Velho Testamento adquire no cristianismo um significado puramente místico A humildade e o desprezo pelo mundo podem dessa forma associarse com perfeição à obediência sincera aos mestres do mundo Ainda assim dentro dos limites da filosofia política Marsílio deve dar ênfase a pontos um pouco diversos daqueles enfatizados pelas mais elevadas autoridades cristãs Chega quase ao ponto de defender os governantes pagãos contra a palavra de Cristo que diz serem os amos de seus súditos De acordo com Paulo apenas aqueles que sâo desprezíveis na Igreja ou seja aqueles que possuem a sabedoria das coisas que não são espirituais devem ser juizes em assuntos deste mundo As exigências do Sermão da Montanha não podem ser reconciliadas com o status e as funções dos governadores 260 H istória da Filosofia P olítica 5 Leo Strauss e Joseph Cropsey 22 NT Romanos 134 For he is the minister of God to thee for good But if thou do that which is evil be afraid for he beareth not the sword in vain for he is the minister of God a revenger to execute wrath upon him that doeth evil Porque ela é ministro de Deus para teu bem Mas se fizeres o mal teme pois náo traz debalde a espada porque é ministro de Deus e vingador para castigar o que faz o mal 23 NT Coríntios 124 Not that we lord it over your faith but we work with you for your joy be cause it is by faith you stand firm Náo é que sejamos os amos de vossa fé mas somos colaboradores para a vossa alegria porque é pela vossa fé que estais em pé 24 NT 1 Coríntios 12729 No God chose those who by human standards are fools to shame the wise he chose those who hy human standards are weak to shame the strong those who by human standards are common and contemptible indeed those who count for nothing to reduce to noth ing all those that do count for something so that no human being might feel boastflil before God Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo pata confundir as sábias e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes e Deus escolheu as coisas vis deste mundo e as despre zíveis e as que náo sáo para aniquilar as que sáo para que nenhuma carne se glorie perante ele e de seus súditos laicos A comunidade cristá perfeita era a comunidade de Cristo e dos apóstolos em que havia comunháo de bens mas essa comunidade era imperfeita em outros aspectos uma vez que estava destinada a tornarse universal mas todavia náo foram tomadas providências para sua unidade no fúmro quando viria a se tornar uma grande sociedade poderia tornarse perfeita apenas por meio dos atos dos prínci pes cristãos Somos tentados a expressar o pensamento de Marsílio ao afirmar que foi a natureza que aperfeiçoou a graça ao invés de a graça que aperfeiçoou a natureza Vai ele ainda mais longe ao indicar que existe uma oposição entre o governo humano e a providência divina a primeira recompensando neste mundo os justos e os íàzedores de boas ações e a última infligindolhes sofirimento neste mundo Marsílio indica a peculiaridade da lei cristã ao afirmar que a crença no futuro julgamento de Deus isto é uma crença que o cristianismo compartilha com todas as outras religiões induzi ria os sacerdotes cristãos a não defraudarem os pobres enquanto a crença na religião cristá induziria os padres cristãos a viverem na pobreza A pobreza evangélica é de fato segundo ele o concomitante inevitável do desprezo radical por este mundo ou da humildade radical Dentro dos limites da razão humana porém a riqueza assim como a honra desponta como algo bom uma vez que é necessária para o exercício da virtude moral Porém de acordo com os ensinamentos cristãos a pobreza voluntária é tão necessária para a perfeição que aqueles que não vivem em pobreza voluntária são maus cristãos Apesar disso Marsílio pode queixarse de que os papas não demons tram a devida gratidão por terem sido elevados pelos imperadores romanos da extrema pobreza para uma abundância de bens temporais Parece pressupor que a moral cristã e a moralidade terrena do cavalheiro contradizemse uma à outra ou que a revelação não está apenas acima da razão mas contra a razão Este pode ser um motivo pelo qual considerava a lei do Novo Testamento como especialmente difícil de cumprir Marsílio tem sido por vezes celebrado como um defensor da liberdade religiosa Todavia não vai além de suscitar a questão de saber se é permitido cosir hereges ou infiéis enquanto indica no mesmo contexto que não deseja dizer que tal coerção é inapropriada N de fiito que tal coerção possa ser exercida neste mundo com base na lei divina Pois de acordo com Marsílio nenhuma lei divina como tal tem qualquer poder coercitivo neste mundo a não ser por força de uma lei humana que determina ser criminoso transgredir a lei divina em questão Além disso de acordo com a lei divina cristã que naturalmente condena a heresia e a infidelidade e reforça essa condenação pela ameaça de punição na outra vida um homem que crê por ser coagido não é um verdadeiro crente além disso sacerdotes cristãos não receberam qualquer poder coercitivo de Cristo Apesar disso o legislador cristão humano não M a r s íl i o d e PA dua 261 25 Ibid I 103 122 II 413 512 45 8 parrafo 1 910 12 112 7 2824 462 9 304 pairafo 1 íinal 26 Ibid II 46 1328 1778 221 inído 1516 244 272 426 parágrafo 2 Gewirth oc cit 1 81 27 Ibid I 63 6 1521 16 II 114 1316 23 final24 2612 inído como cristão mas como legislador humano pode usar a coerção contra os hereges e infiéis neste mundo Podese exemplificar esse direito com o seguinte paralelo a lei divina cristã proíbe a embriaez mas como tal nâo exige que essa coerção seja usada neste mundo contra os bêbados todavia não impede o legislador humano de proibir a embriaguez sob pena de punição neste mundo De modo semelhante o legislador humano pode exigir o cumprimento da sobriedade religiosa isto é a ortodoxia Se o fàz ou não depende de seu julgamento sobre a heresia por exemplo Pode ser guiado pela comparação bíblica da heresia com a fornicação e por conseguinte permitir a heresia da mesma forma que permite a fornicação embora a fornicação também seja proibida pela lei divina cristã Ou pode ser guiado pela comparação bíblica da heresia com a le pra e por conseguinte tomar medidas coercitivas contra os hereges em conformidade com os conselhos de peritos os sacerdotes assim como toma medidas coercivas contra os leprosos em conformidade com os conselhos de especialistas os médicos Também pode ser guiado pelos fàtos de que o Novo Testamento decerto permite a excomunhão e de que a excomunhão sem dúvida afetará o excomungado nesta vida Entretanto independentemente de qualquer preocupação teológica isto é de qualquer aspecto peculiar à lei divina cristã é claro que se a crença no julgamento divino no outro mundo é favorável à conduta virtuosa neste mundo como admitiram até mesmo os filósofos pagãos não é inadequado que o legislador humano proteja essa crença e seus corolários pela proibição de discursos que possam subverter essa crença Esta conclusão não é contrariada pelo ensinamento de Marsílio de que o governo hu mano se preocupa apenas com atos transitórios distintos dos atos imanentes De acordo com essa distinção que pode ter sido sugerida a Marsílio por uma passagem no Livro das Definições de Isaac Israeli sâo imanentes os atos de nossos poderes cog nitivo e apetitivo que como pensamentos e desejos permanecem dentro do isente e náo sáo realizados por meio de qualquer dos membros localmente movidos do corpo enquanto sáo transitórios os demais atos desses poderes Em outras palavras o governo humano preocupase apenas com atos cuja realização pode ser comprovada mesmo que aquele que cometeu o ato em questão negue têlo cometido Disso se segue que os discursos são atos transitórios Uma vez que discursos subversivos do tipo indicado podem fazer mal aos outros e à comunidade como um todo sua proibição de acordo com Marsílio é evidentemente competência do legislador humano Marsílio de certo não pregava uma desobrigação da religião Qualquer lei divina perderia muito do seu valor se todos a ela sujeitos fossem livres para entender as suas promessas e ameaças como lhes aprouvesse A lei divina cristã em particular com sua ênfese na fé como condição necessária para a salvação eterna teria sido dada em vão teria sido dada para a perdição eterna dos homens se Cristo não ti 262 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 28 Ibid I 1037 II 56 7 154 2326 e 157 28 61113 88 925 103 7 9 132 final 29 Ibid I 54 7 II 24 3 85 911 104 9 178 chegando ao final Gewirth loc cit I 284 Ver também anteriormente p 174 segs vesse cuidado para que o verdadeiro sificado de sua divina lei fosse acessível a todos os cristãos A unidade indispensável da fè é determinada de forma juridicamente vincu lativa pela Igreja universal ou católica isto é por todo o conjunto dos fiéis na medida em que é o fiel legislador humano que autoriza as assembléias gerais e outoi poder coercitivo às suas decisões Esta precaução não causa qualquer dificuldade quando há um único legislador humano da fè cristã cuja jurisdição se estende por todo o mundo Tal legislador de acordo com um ditame adotado por Marsílio era o povo romano ou alternativamente o imperador romano Marsílio tenta preservar essa dignidade para os imperadores romanos de sua época Entretanto não c o n s te esconder de si mesmo ou de seus leitores o fàto de que existiam em sua época diversos lsladores humanos fiéis que não reconheciam um superior ou que eram independentes um do outro Assim sendo não havia mais garantia da unidade da fè exceto dentro das fronteiras de cada um dos reinos ou nações independentes Por consiinte Marsílio considera aconselhável que os vários soberanos cristãos concordem em reconhecer o bispo de Roma como o pastor universal mas em sua opinião não são obrigados a fàzêlo No entanto ressalva um pastor universal ou bispo universal é menos necessá rio que um príncipe universal pois um príncipe universal é por óbvio mais capaz de manter os fiéis na unidade da fé que um bispo universal Como cristão Marsílio parece então ser compelido dadas suas premissas a exigir que a sociedade política seja universal no sentido estrito e não apenas de modo simulado ou por cortesia tal como fora o império romano mesmo no auge do seu poder para que possa cumprir suas obrigações para com a fé cristã Parece ser compelido ou seja parece abandonar os últimos vestígios de sua doutrina da soberania popular ou da preferência aristotélica pela aristocracia que essa doutrina em parte representa pois não são viáveis nem a democracia nem a aristocracia tal como entendidas por Marsílio e Aristóteles a não ser em sociedades muito pequenas Todavia apesar ou por causa de tudo isso Mar sílio nega que seja necessário um príncipe universal Pois a Escritura não demanda um império secular universal Ainda menos o fitz a razão a paz entre os homens tem garantias suficientes podemos entender que isso significa que a paz é assegurada da única maneira possível se existe unidade de gpverno dentro de determinadas nações ou reinos Em sua única discussão temática da questão acerca da conveniência de um estado do mundo Marsílio recusase a resolver o impasse Referese às dificuldades que obstruem o governo mundial causadas pela distância e pela fàlta de comunicação entre as várias partes do mundo bem como pelas diferenças entre idiomas e as extre mas variedades de costumes Referese à visão segundo a qual todas essas coisas que separam os homens podem ser devidas a uma causa celestial ou seja à natureza que incita os homens por meio desses fatores desregadores às guerras a fim de evitar a superpopulação Marsílio deixa claro que se não fosse pelas guerras e epidemias a superpopulação seria inevitável se a espécie humana não teve princípio e não terá fim M arsíuo de Pádua 263 30 1 1910 II 1328 172 188 parágrafos 12 e final 1913 2012 211113 226 810 249 12 2546 91518 2827 308 Defensor Minor caps 7 e 12 ou seja se existe uma geraçáo eterna ou se for eterno o universo visível A doutrina aristotélica da eternidade do universo visível é irreconciliável com a doutrina bíblica da criação do mundo A doutrina aristotélica da geração eterna é irreconciliável com a doutrina bíblica de que houve um primeiro homem uma doutrina que é a premissa das doutrinas bíblicas de que nossos pais caíram e de que portanto o homem precisa de redenção Marsílio não declara que é verdadeira a doutrina aristotélica Tampouco afirma que é falsa porque contraria as doutrinas mais fundamentais e mais manifestas da Bíblia Desta forma o leitor só pode conjeturar se Marsílio era crente ou incrédulo até que examine a discussão que apresenta no 38 capítulo do Defensor II 19 sobre questão relativa aos fundamentos da crença na verdade da Bíblia Dentro dos limites da filosofia política a oposição tácita de Marsílio a Tomás de Aquino revelase de modo mais evidente em seus ensinamentos a respeito da lei natural ou do direito natural Marsílio nega que haja tuna lei natural propriamente dita Pressu põe que a razão não conhece outro legislador além do homem e por conseguinte que todas as leis propriamente ditas são leis humanas a razão é de fato capaz de discernir o que é honroso o que é justo e o que é vantajoso para a sociedade Conmdo tais per cepções não são como tais leis Além disso não são acessíveis a todos os homens e por conseguinte não são admitidas por todos os Estados por esse motivo não podem ser denominadas naturais Há de fato determinadas regras a respeito do que é honroso ou justo que são admitidas em todas as regiões e além disso seu cumprimento é exigido em quase toda parte essas rras podem assim metaforicamente ser denominadas direitos namrais Apesar de serem admitidas de modo universal ou em geral não são naturais em essência pois não são ditadas pela razão correta O que é universalmente admitido não é racional e o que é racional não é universalmente aceito Entre as regras que podem ser denominadas metaforicamente direitos naturais Marsílio cita a regra de que a prole humana deve ser criada pelos pais até uma certa idade e pode ter considerado essa regra como racional sem restrições pois Aristóteles afirmara que não se deveriam criar crianças deformadas De modo mais amplo se as guerras são necessárias por natureza para evitar a superpopulação a distinção entre as guerras justas e injustas perde muito de sua força e esta momentosa ressalva às regras da justiça não pode deixar de comprometer a racio nalidade das rras de justiça que de modo universal ou em geral se admitem vigorar dentro da nação Em outras palavras as regras de direito universalmente admitidas não são racionais porque existe uma necessidade natural de transgredilas ou uma vez que o homem não tem liberdade de vontade na medida em que tanto a opinião popular como os ensinamentos da revelação o afirmam Podese melhor entender a negação de Marsílio da lei natural se principiarmos com o fato de que nega implicitamente a existência dos primeiros princípios da razão prática É obscuro na Ética de Aristóteles o estado cognitivo dos primeiros princípios de ação Um modo de remover esta obscuridade o preferido por Averróis e Dante é 264 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 31 Drfender 170 W 285 32 Ibid 1 1037 1223 144 156 final 1913 II 83 1278 entender que os melhores princípios da ação e portanto também da política são for necidos pela razão teórica ou ciência natural é a ciência natural que debta claro qual é o fim do homem Debcase que o fim do homem seja a perfeição de sua mente isto é o pensamento real do metafísico enquanto metafísico O indivíduo humano que é capaz de buscar esse fim então será capaz de deliberar como em sua situação pode alcançar este fim Esta deliberação um ato de razão prática em muitos pontos diferirá de indivíduo para indivíduo mas há determinadas regras universais de conduta que todos os homens devem cumprir se desejarem tornarse perfeitos como homens de especu lação Essas regras no entanto nâo são universais estritamente falando uma vez que apenas uma minoria de homens é por natureza capaz da vida contemplativa Entre tanto há também um fim que todos os homens são capazes de buscar a perfeição de seus corpos Esta perfeição inferior ou maior exige dentre outras coisas segurança na sociedade política e por meio dela Aqui se imiscui uma profimda ambigüidade a sociedade política é necessária embora de formas diferentes em prol tanto da maior perfeição do homem como de sua perfeição teórica máxima Seja como for a so ciedade política por sua vez exige uma variedade de partes agricultores artesãos homens de bens soldados padres governadores ou juizes e uma determinada ordem dessas partes Exige para seu bemestar que os legisladores e os governadores ou jui zes possuam prudência e se não todas pelo menos algumas das virtudes morais em particular a justiça Em concordância com o procedimento de Aristóteles na Política Marsílio deduz a necessidade dessas virtudes da finalidade da sociedade civil e deduz a necessidade dessa finalidade dos demais fins ou fim do homem Ou seja desviandose do procedimento que Aristóteles adotara em sua Ética por motivos educativos ou prá ticos Marsílio não toma essas virtudes como fundamentais como dignas de escolha por si mesmas É porque Marsílio trata a prudência e as virtudes morais menos como dignas de escolha por si mesmas que como subservientes aos dois fins naturais indica dos que sua ciência política é demonstrativa de modo mais óbvio e mais enfático que a ciência política de Aristóteles Marsílio comenta muito menos do que Aristóteles mesmo em sua Política o fim maior que é natural ao homem Pelos motivos anteriormente indicados moderou suas aspirações Sua doutrina da nação é uma reminiscência do que é sugerido na Re pública de Platão a respeito de a cidade de suínos ser a verdadeira cidade Sua doutrina do direito humano é uma reminiscência da sugestão de Maimônides conforme a qual a lei humana não atende a nenhum fim maior do que a perfeição do corpo do homem enquanto a lei divina ocasiona a perfeição do corpo e da mente Porém Maimôni des defendia que a lei divina é em sua essência racional e não como afirma Tomás suprarracional Podese dizer que Marsílio combina a visão de Maimônides da lei hu mana com a visão de Tomás da lei divina e desta forma chega dentro dos limites da filosofia política à conclusão de que a única lei propriamente dita é a lei humana que M a r s íl i o d e P á d u a 265 33 Ibid I 69 113 142 67 Dante De Monarchia I 14 34 República 372 67 Guia dos Perplexos II 40 e III 27 é voltada para o bemestar do corpo Até certo ponto Marsílio foi induzido a adotar essa visáo por seu anticlericalismo Quando a paixão antiteológica induziu um pen sador a dar o passo extremo de questionar a supremacia da contemplação a íilosoíia política rompeu com a tradição clássica e sobretudo com Aristóteles adquirindo um caráter inteiramente novo O pensador em questão foi Maquiavel L e it u r a s A Maisilius of Padua The D fender ofthe Peace Trans with an introduction by Alan Gewirth New York HarperTorch Books 1967 Discourse I chaps ixiii Discourse II chap xii secs 312 B Marsilius of Padua The D fender o f the Peace Discourse I chaps xivxix Discourse II chaps viii xii secs 121333 exix 266 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y N icoiau M aquiavel 14691527 Em geral íàlamos de virtude sem usar a palavra mencionando ao contrário a qualidade de vida ou a grande sociedade ou a ética ou mesmo a retidáo Mas sabemos o que é virtude Sócrates chegou à conclusão de que para um ser humano o maior bem é fazer discursos cotidianos sobre a virtude pelo que parece sem jamais encontrar uma definição que proporcionasse completa satisíação No entanto se bus carmos uma resposta mais elaborada e menos ambígua para esta questão de fiito vital devemos nos voltar para a Ética de Aristóteles Lemos ali entre outras coisas que existe uma virmde de primeira ordem denominada magnanimidade o hábito de reivindicar honras para si mesmo com o entendimento de que se é digno delas Também se lê que o sentimento de vergonha nâo é uma virmde o sentimento de vergonha é adequado para os jovens que devido à sua imaturidade não podem deixar de cometer erros mas não para homens maduros e bemeducados que apenas íàzem sempre o que é correto e adequado Por mais maravilhoso que seja tudo isso recebemos uma mensagem muito diferente vinda de um ponto muito diverso Quando o profeta Isaías recebeu a sua vocação foi acachapado pela percepção de sua indignidade Sou um homem de lábios impuros no meio de um povo de lábios impuros O que eqüivale a uma con denação implícita da magnanimidade e uma defesa implícita do sentimento de ver gonha O contexto fornece o motivo santo santo santo é o Senhor dos Exércitos Não há santo deus para Aristóteles e os gregos em geral Quem está certo os gregos ou os judeus Atenas ou Jerusalém E como fazer para descobrir quem está certo Não deveríamos admitir que a sabedoria humana seja incapaz de resolver esta questão e que toda resposta se baseia em um ato de fé Mas não constitui esta a mais completa e NT Isaías 65 TTien said I Woe is me for I am undone because I am a man of unclean lips and I dwell in Ae midst of a people of unclean lips for mine eyes have seen Ae King Ae Lord of hosts Então disse eu Ai de mim Pois estou perAdo porque sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios os meus oAos viram o Rei o Senhor dos Exércitos NT Isaías 6 18 Holy holy holy is Ae Lord of hosts The whole earA is foll of His glory Santo Santo Santo é o Senhor dos Exércitos toda a terra está cheia da sua gjória definitiva façanha de Atenas Pois uma filosofia baseada na fé já não é filosofia Talvez seja esse conflito não resolvido que vem impedindo o pensamento ocidental de ter descanso Talvez seja este conflito que está por trás de um tipo de pensamento que é filosófico mas na verdade já não é mais grego a filosofia moderna É na tentativa de entender a filosofia moderna que nos deparamos com Maquiavel Maquiavel é o único pensador político cujo nome está em uso corrente para desig nar um tipo de política que existe e continuará existindo independentemente de sua influência uma política guiada com exclusividade por questões de conveniência que usa todos os meios legais ou ilegais ferro ou veneno para atingir sua meta sendo esta o engrandecimento de um país ou pátria mas também usando a pátria a serviço do autoengrandecimento do político ou estadista ou partido de cada um Entretanto se esse fenômeno é tão antigo quanto a sociedade política em si por que leva o nome de Maquiavel que pensava ou escrevia há tão pouco tempo atrás cerca de 500 anos Ma quiavel foi o primeiro a defendêlo publicamente em livros com o seu nome nas pinas do título Maquiavel o fez publicamente defensável Isso significa que a sua realização detestável ou admirável não pode ser entendida em termos de política em si ou da his tória da política digamos em termos da Renascença italiana mas apenas em termos de pensamento político de filosofia política de história da filosofia política Maquiavel parece ter rompido com todos os filósofos políticos anteriores Há convincentes evidências que sustentam esta tese Todavia sua maior obra política tem a pretensão aparente de suscitar um ressurgimento da antiga República Romana longe de ser um inovador radical Maquiavel é um restaurador de algo velho e esquecido Para nos orientarmos vamos primeiro lançar um olhar sobre dois pensadores pósmaquiavélicos Hobbes e Spinoza Hobbes considerava totalmente nova sua filoso fia política Mais do que isso negava que existisse antes de sua obra qualquer filosofia política ou ciência política digna desse nome Consideravase o fundador da verdadei ra filosofia política o verdadeiro fundador da filosofia política Sabia é claro que já existia desde Sócrates uma doutrina política que reivindica ser verdadeira Mas essa doutrina era segundo Hobbes um sonho e náo ciência Considerava Sócrates e seus sucessores como anarquistas na medida em que permitiam uma apelação contra a lei da Terra o direito positivo a uma lei maior a lei natural assim promoviam uma de sordem em absoluto incompatível com a sociedade civil Segundo Hobbes por outro lado a lei maior a lei natural comanda por assim dizer uma coisa e apenas uma coisa a obediência incondicional ao poder soberano Náo seria difícil demonstrar que essa linha de raciocínio é contrariada pelos próprios ensinamentos de Hobbes de qualquer modo náo atinge as raízes da questão A grave objeção de Hobbes a toda a filosofia política anterior emerge de modo mais evidente nesta declaração Aqueles que escre veram sobre a justiça e a política em geral invadem uns aos outros e a si mesmos com a contradição Não há maneira de reduzir esta doutrina às regras e à infidibilidade da razão mas primeiro estabelecer esses princípios como fundação tais que a paixão não desconfiando não poderá procurar substituir e depois construir a partir disso a verda de dos casos na lei da natureza que até então tinha sido construída no ar de forma 268 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y gradual até que o todo seja inexpugnável A racionalidade dos ensinamentos políticos consiste em que sejam aceitáveis para a paixão em serem agradáveis à paixão A paixão que deve ser a base dos ensinamentos políticos racionais é o medo da morte violenta À primeira vista parece haver uma alternativa a ela a paixão da generosidade ou seja a glória ou oipilho de parecer não necessitar fiJtar com a palavra mas essa é uma generosidade muito raro encontrada para ser presumida em particular nos que bus cam a riqueza o mando ou o prazer sensual que são a maior parte da humanidade Hobbes tenta ediíicar sobre as bases mais comuns em um terreno que é reconhecida mente baixo mas tem a vantiem de ser sólido enquanto os ensinamentos tradicionais foram construídos no ar Com esta nova base portanto deve ser reduzido o status da moralidade a moralidade nada mais é do que o pacifismo inspirado pelo medo A lei moral ou lei natural é entendida como derivada do direito da natureza o direito de autopreservação o feto moral fundamental é um direito não um dever Esse no vo espírito tornouse o espírito da era moderna incluindo a nossa própria era Esse espírito foi preservado apesar das modificações importantes que sofreu a doutrina de Hobbes nas mãos de seus grandes sucessores Locke ampliou a autopreservação para a autopreservação confortável e assim lançou as bases teóricas para a sociedade aquisi tiva Contra a visão tradicional sqndo a qual uma sociedade justa é uma sociedade em que governam os homens justos afirma Kant Por mais dificil que possa parecer o problema do estabelecimento do Estado a ordem social justa é solúvel mesmo para uma nação de demônios desde que tenham juízo ou seja desde que sejam argutos calculistas Descortinamos esse pensamento dentro dos ensinamentos de Marx pois os proletários de quem tanto espera certamente não são anjos Ora apesar de a revolução encetada por Hobbes ter sido preparada de modo decisivo por Maquiavel Hobbes não fez referência a Maquiavel Esse feto exige uma análise mais aprofundada Hobbes é de certa forma um mestre de Spinoza No entanto Spinoza abre o seu Tratado Político com um ataque aos filósofos Os filósofos diz ele tratam as paixões como vícios Ao ridicularizar ou lamentar as paixões elogiam e revelam sua crença em uma natureza humana não existente concebem os homens não como são mas como gostariam que fossem Por conseguinte seus ensinamentos políticos são inteiramente inúteis Bem diferente é o caso dos politici que aprenderam com a experiência que haverá vícios enquanto houver seres humanos Por conseguinte são muito valiosos seus ensinamentos políticos e Spinoza constrói seus ensinamentos sobre os deles O maior desses politici é o mais arguto ílorentino Maquiavel É o ataque mais brando de Maquiavel sobre a filosofia política tradicional que Spinoza assume de modo integral e traduz para a linguagem menos reservada de Hobbes Quanto à frase haverá vícios enquanto houver seres humanos Spinoza tomoua emprestada de modo implícito de Tácito na boca de Spinoza eqüivale a uma rejeição incondicional da crença em uma era messiânica a vinda da era messiânica necessitaria da intervenção divina ou de um milíre mas de acordo com Spinoza os milces são impossíveis A introdução de Spinoza para o seu Tratado Político é obviamente inspirada no capítulo 15 do Príncipe de Maquiavel Ali diz Maquiavel N icolau Maquiavel 269 Como sei que muitos já escreveram a respeito sobre como os príncipes devem gover nar duvido náo ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto mormente quando disputarei essa matéria à orientação já por outros dada Mas sendo minha intenção escrever algo de útil para aquele que por isso se interessa pareceume mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fàtos e não à iminação deles pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como a terem realmente existido Há tão grande Astância entre como se vive e como se deveria viver que aquele que abandone o que se fez por aquilo que se deveria fezer acarretará antes sua ruína do que sua preservação pois o homem que queira em todos os seus atos fezer o bem perderseá em meio a tantos que não são bons Donde é necessário ao príncipe que queira manterse aprender a ser capaz de não ser bom e usar ou da bondade ou absterse dela sundo impõe a ocasião C h a reinos ou repúblicas imagjnados aquele que se orienta pela virtude para de preender como o homem deve viver Foi exatamente o que fizeram os filósofos clássicos Assim chegaram aos melhores rimes da República e da PoUtica Entretanto quando se íàla de reinos imnários Maquiavel pensa nâo só nos filósofos pensa também no reino de Deus que de seu ponto de vista é um conceito de visionários pois como afirmou seu discípulo Spinoza a justiça impera somente onde governam homens justos Mas para ficar com os filósofos estes consideravam a atualização do melhor rime possível mas extremamente improvável Segundo Platão sua efetivação depende de modo literal de uma coincidência uma coincidência muito improvável a coincidência da filosofia e do poder político A implementação do melhor reme depende do acaso ou Fortuna ou seja de algo que em essência está fora do controle humano De acordo com Maquiavel conmdo a Fortuna é uma mulher que como tal deve ser golpeada e espancada para ser refreada a Fortuna pode ser conquistada pelo tipo certo de homem Há uma conexão entre esta posmra quanto à Formna e a orientação segundo a qual tantos vivem redu zindo os padrões de excelência poUtica garantese a realização do único tipo de ordem poUtica que em princípio é possível No jaigão pósmaquiavélico o ideal do tipo certo tomase necessariamente real o ideal e o real necessariamente conveigem Este modo de pensar teve surpreendente sucesso se a ém afirma hoje que não há nenhuma garantia para a atualização do ideal teme ser chamado de cínico Maquiavel não está preocupado com a forma como os homens vivem apenas com o intuito de descrevêla sua intenção é antes com base no conhecimento de como os homens vivem ensinar os príncipes como devem governar e até mesmo como devem viver Desta maneira Maquiavel reescreve por assim dizer a Ética de Aristóteles Até certo ponto admite que é verdadeiro o ensino tradicional os homens são obrigados a viver de modo virtuoso no sentido aristotélico Mas n que a vida virtuosa seja feliz ou leve à felicidade A liberalidade se usada como se a deve usar prejudicao porque se usada virmosamente e como se deve usála o príncipe arruinarseá a si mesmo e será obrigado a governar seus súditos pela opressão a fim de obter o dinheiro necessário A avareza o oposto do liberalismo é um dos vícios que permitem a um príncipe governar Um príncipe deve ser liberal no entanto com a propriedade dos outros pois assim aumenta sua reputação Considerações semelhantes se aplicam à 270 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y compaixão e seu oposto a crueldade Desta forma Maquiavel é levado a indagar se é melhor para um príncipe ser amado do que ser temido ou viceversa É difícil ser amado e temido ao mesmo tempo Uma vez que é preciso portanto escolher devese escolher ser temido ao contrário de ser amado pois ser amado depende de outros enquanto ser temido depende de si mesmo Mas é preciso evitar ser odiado o príncipe evitará ser odiado ao se abster da propriedade e das mulheres de seus súditos em particular de sua propriedade por quem os homens têm tanto amor que se ressentem menos do assas sinato de seu pai que da perda de seu patrimônio Na guerra a reputação de crueldade não fàz mal algum O maior exemplo é Aníbal que sempre foi obedecido de modo tácito por seus soldados e nunca teve de lidar com motins depois das vitórias ou após as derrotas Isso não poderia resultar de outra coisa senão de sua desumana crueldade que aliada às suas infinitas virtudes o tomou sempre venerado e terrível no conceito de seus soldados sem aquela cmeldade as virtudes não lhe teriam bastado para surtir tal efeito Escritores nisso pouco ponderados admiram de um lado essa sua atuação e de outro condenam a principal causa dela Notamos que a cmeldade desumana é uma das virmdes de Aníbal Outro exemplo de cmeldade bem usada está na pacificação da Romanha por César Bóigia A fim de pacificar aquela província confiou seu coman do a Ramiro de Orco homem cmel e diligente e deulhe os mais amplos poderes Ramiro obteve sucesso em pouquíssimo tempo angariando grande reputação Porém em seguida César entendeu não ser mais necessário esse poder excessivo o qual podia reverterlhe em ódio sabia ter sido este o resultado das rigorosas medidas tomadas por Ramiro César desejava portanto demonstrar que se alguma cmeldade fora cometida não fora por ele mas como conseqüência da natureza implacável de seu subordinado Portanto fez com que o colocassem certa manhã cortado em dois pedaços na Piazza da cidade principal com um pedaço de pau e uma faca ensangüentada a seu lado A ferocidade desse espetáculo induziu na população um estado de satisfação e estupor Logo o novo dever de Maquiavel exige o uso criterioso e vigoroso tanto da virmde como do vício de acordo com as exigências das circunstâncias A alternância criteriosa entre a virmde e o vício é a virtude virtii em sua acepção da palavra Ele divertese e creio eu a alguns de seus leitores com o uso da palavra virmde tanto no sentido tradicional quanto em seu sentido próprio Por vezes distingue entre virtü e bontà Essa distinção foi de certa forma preparada por Cícero ao asseverar que os homens são chamados de bons por conta de sua modéstia temperança e acima de mdo justiça e manutenção da fé stintas de coragem e sabedoria A distinção que fàz Cícero entre as virmdes por sua vez nos faz lembrar da República de Platão em que a temperança e a justiça são apresentadas como as virmdes exigidas de todos enquanto a cotejem e a sabedoria são exigidas apenas de alguns A distinção de Maquiavel entre a bondade e outras virtudes tende a se tornar uma oposição entre a bondade e a virmde enquanto se exige a virtude de governantes e soldados a bondade é necessária ou ca racterística da multidão envolvida em ocupações pacíficas a bondade passa a signifi car algo como uma obediência ao governo gerada pelo medo ou mesmo uma vileza Em diversos trechos do Príncipe Maquiavel fida da moralidade do mesmo modo como os homens decentes têm fàlado acerca disso em todos os tempos Soluciona N ic o l a u M a q u ia v e l 2 7 1 a contradição no capítulo 19 em que discute os imperadores romanos que vieram depois do imperador filósofo Marco Aurélio chegando até Maximino O ponto alto é sua discussão sobre o imperador Severo Severo pertencia ao grupo dos imperadores que foram mais cruéis e rapaces Todavia tão grande era sua virtude que pôde sempre reinar com felicidade pois bem soube usar as figuras da raposa e do leão naturezas essas que um príncipe deve imitar Um príncipe novo num principado novo não pode emular as ações do bom imperador Marco Aurélio nem é necessário que copie as de Severo mas deve retirar de Severo aquelas parcelas que são necessárias para fundar seu Estado e de Marco aquelas que são apropriadas e gloriosas para a preservação de um Estado já estabelecido em bases firmes O tema principal do Príncipe é o príncipe totalmente novo em um Estado completamente novo isto é o fundador E o modelo para o fundador como fundador é Severo um criminoso de extrema inteligência Isto significa que a justiça não é exatamente como dissera ostinho o regnorum fundamentum o fundamento da justiça é a injustiça o fundamento da moralidade é a imoralidade o fundamento da legitimidade é a ilegitimidade ou a revolução o flmdamento da liberdade é a tirania No início não há Terror Harmonia ou Amor mas há decerto uma grande diferença entre o Terror por si mesmo em prol de sua perpetuação e o Terror que se limita a lançar as bases para o grau de humanidade e liberdade que é compatível com a condição humana Mas essa distinção é na melhor das hipóteses apenas sugerida no Príncipe A mensagem consoladora do Príncipe é transmitida no último capítulo que é uma exortação dirigida a um príncipe italiano Lourenço de Médici para tomar a Itá lia e libertála dos bárbaros isto é dos franceses espanhóis e alemães Maquiavel diz a Lourenço que não é muito difícil a libertação da Itália Uma das razões que oferece são acontecimentos extraordinários sem exemplo emanados de Deus o mar se abriu uma nuvem revelou o caminho a pedra verteu água choveu o maná Os aconteci mentos sem exemplo têm de fato um exemplo os milagres após a libertação de Israel da escravidão egípcia O que Maquiavel parece sugerir é que a Itália é a terra prometida para Lourenço Mas há uma dificuldade Moisés que conduziu Israel para fora da casa da servidão em direção à terra prometida não atingiu essa terra morreu às suas portas Maquiavel assim profetizou de modo ameaçador que Lorenzo não libertaria a Itália sendo um dos motivos disso o fiito de que lhe faltava a virtíi extraordinária necessária para conduzir essa grande obra até sua consumação Entretanto há mais nos aconte cimentos extraordinários sem exemplo embora nada se saiba além do que Maquiavel afirma sobre eles Todos esses eventos extraordinários ocorreram antes da revelação no Sinai O que profetiza Maquiavel portanto é a iminência de uma nova revelação a revelação de um novo Decálogo O portador dessa revelação é claro não é o medíocre Lourenço mas um novo Moisés Esse novo Moisés é o próprio Maquiavel e o novo Decálogo são os ensinamentos inteiramente novos sobre o príncipe inteiramente novo em um Estado inteiramente novo É verdade que Moisés era um profeta armado e que Maquiavel pertence aos desarmados que necessariamente se arruinam A fim de encontrar a solução para essa dificuldade é preciso voltarse para a outra grande obra de Maquiavel os Discursos sobre os primeiros dez livros de Tito Livio 272 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey Todavia se nos voltarmos do Príncipe para os Discursos a fim de encontrar a so lução para as dificuldades não resolvidas no Príncipe ficamos entre a cruz e a espada Pois os Discursos são de compreensão muito mais difícil que o Príncipe É impossível demonstrar isso sem primeiro induzir no leitor uma certa perplexidade mas esta é o começo da compreensão Vamos começar pelo início a Dedicatória Epistolar O Príncipe é dedicado ao pa trão de Maquiavel Lourenço de Médici Maquiavel que se apresenta como um homem da condição mais inferior vivendo em um lugar humilde fica tão estupefiito pela gran deza de seu mestre que considera o Príncipe embora este seja bem mais precioso como inno da presença de Lourenço Recomenda sua obra com a observação de que é um volume pequeno que o destinatário pode entender em um curto espaço de tempo em bora incorpore mdo o que o autor veio a saber e compreender em muitos e muitos anos e correndo grande perigo Os Discursos são dedicados a dois jovens amigos de Maquiavel que o instigaram a escrever o livro Ao mesmo tempo o livro é um gesto de gratidão de Maquiavel pelos benefícios que recebeu de seus dois am s Dedicara o Príncipe a seu mestre na esperança de receber fevores dele E não sabe se Lourenço dará qualquer atenção ao Príncipe ou se não ficaria mais satisfeito em receber um cavalo de excepcional beleza De acordo com mdo isso deprecia na Dedicatória Epistolar aos Discursos o cos tume que cumprira na Dedicatória Epistolar ao Príncipe o costume de dedicar os livros a príncipes os Discursos não são dedicados aos príncipes mas aos homens que merecem ser príncipes Se Lourenço merece ser príncipe é uma questão em aberto Essas diferenças entre os dois livros podem ser ilustradas pelo íato de que no Príncipe Maquiavel evita determinados termos que utiliza nos Discursos O Príncipe omite a menção à consciência ao bem comum aos tiranos isto é a distinção entre reis e tiranos e ao céu do mesmo modo no Príncipe nós nunca significa nós os cristãos Podese mencionar aqui que Maquiavel não se refere em nenhuma das duas obras à distinção entre este mundo e o outro ou entre esta vida e a próxima nem menciona nas duas obras o diabo ou o inferno acima de tudo nunca menciona em nenhuma das duas obras a alma Passemos agora ao texto dos Discursos Sobre o que versa Que tipo de livro é Não existe essa dificuldade quanto ao Príncipe O Príncipe é um espelho dos príncipes e os espelhos de príncipes eram um gênero tradicional Em conformidade com isso todos os títulos dos capítulos do Príncipe são escritos em latim Isso não é negar mas ao contrário salientar o fiito de que o Príncipe transmite ensinamentos revolucioná rios sob uma aparência tradicional Mas essa aparência tradicional está ausente dos Discursos Nenhum dos títulos de seus capítulos é escrito em latim embora a obra trate de um assunto remoto e tradicional a Roma antiga Além disso o Príncipe é razoavelmente fácil de entender porque tem uma organização de razoável clareza A organização dos Discursos no entanto é de extrema obscuridade tanto que somos tentados a perguntar se há de fato algum planejamento além disso os Discursos se apresentam como dedicados aos 10 primeiros livros de Tito Lívio Estes vão desde os primórdios de Roma ao momento imediatamente anterior à Primeira Guerra Púnica N i c o l a u M a q u ia v e l 273 ou seja até o ápice da República Romana incorrupta e antes das conquistas romanas fora da Itália continental Porém nos Discursos Maquiavel trata em certa medida do conjunto da história romana tal como abarcada pela obra de Tito Lívio o livro de Tito Lívio é composto de 142 livros e os Discursos consistem em 142 capítulos A obra de Tito Lívio conduz até a época do imperador Augusto isto é os primórdios do cristianismo De qualquer forma os Discursos mais de quatro vezes mais extensos que o Príncipe parecem ser muito mais abrangentes do que o Príncipe De modo ex plícito Maquiavel exclui apenas um assunto dos Discursos Como é perigoso íàzer de si o cabeça de algo novo que a muitos concerne e como é difícil empenharse nisso e realizálo e após seu término mantêlo seria discutir um assunto por demais longo e exaltado reserváloei portanto para um local mais apropriado Todavia é preci samente este longo e exaltado assunto que Maquiavel discute de modo explícito no Príncipe Devese considerar náo haver coisa mais difícil para cuidar nem mais du vidosa a conseguir nem mais perigosa de manejar que se tornar chefe e introduzir novas ordens É verdade que Maquiavel não fida aqui em manter Tal manutenção como aprendemos nos Discursos é mais bemfeita pelo povo enquanto a introdução de novos modos e ordens é mais bemfeita pelos príncipes A partir daí podese tirar a conclusão de que o tema característico dos Discursos diferentemente do que ocorre no Príncipe é o povo uma conclusão de forma alguma absurda mas nitidamente insuficiente para que ao menos se comece a entender a obra O caráter dos Discursos pode ser ilustrado com dois exemplos de outro tipo de dificuldade Em II 13 Maquiavel afirma e de certo modo prova que a elevação do indivíduo de uma posição baixa ou abjeta até outra superior ocorre por meio da frau de e não da força Foi isso o que fez a República Romana em seus primórdios Antes de fàlar da República Romana porém Maquiavel fida de quatro príncipes que se elevaram de uma posição inferior ou abjeta para outra superior Fala mais longamente de Ciro o fundador do império persa cujo exemplo é o mais relevante Ciro subiu ao poder por ter ludibriado o rei da Média seu tio Porém se era para começar o sobrinho do rei da Média como se pode dizer que se elevou a partir de uma posição inferior ou abjeta Para ressaltar este ponto Maquiavel menciona em seguida Gian Galeazzo que por meio de fraude tomou o Estado e o poder de seu tio Barnabé Visconti Galeazzo era também de início o sobrinho de um príncipe reinante náo sendo possível afirmar que se elevou a partir de uma posição inferior ou abjeta O que deseja então Maquiavel assinalar quan do se expressa de forma tão enigmática Em III 48 quando se vê um inimigo cometer um grande erro é preciso acreditar que existe fiaude por trás diz o título do capítulo no corpo do texto Maquiavel vai além e salienta que sempre haverá fraude por trás No entanto logo depois no exemplo principal Maquiavel aponta que os romanos certa feita cometeram um grande erro por desespero isto é de forma não fraudulenta Como é possível lidar com as dificuldades que enfrentamos nos Discursosi Volte mos ao título Discursos sobre os primeiros dez livros de Tito Lívio O título não é correto no sentido literal mas é seguro dizer que a obra consiste basicamente em Discursos so bre os 10 primeiros livros de Tito Lívio Observamos ainda que os discursos não têm 274 H istória da Filosofia P o iítica Leo Strauss e Joseph Cropsey um plano claro talvez o plano se revele quando levarmos a sério o fiito de que a obra é dedicada a Tito Lívio talvez Maquiavel acompanhe Tito Lívio ao acatar a ordem liviana Mais uma vez isto nâo é apenas verdadeiro mas é verdade se for entendido de forma inteligente o uso e o nâo uso de Tito Lívio por Maquiavel é a chave para a compreensão da obra Maquiavel usa Tito Lívio de várias maneiras às vezes emprega de modo tácito uma história liviana às vezes se refere a este texto às vezes menciona Tito Lívio pelo nome às vezes o cita em latim mencionando ou não mencionando seu nome O uso e o não uso de Tito Lívio por Maquiavel pode ser ilustrado pelo fato de que não cita Tito Lívio nos 10 primeiros capítulos que o cita nos cinco capítulos seguintes e novamente não o cita nos 24 capítulos finais Compreender as razões por trás desses fatos é a chave para a compreensão dos Discursos Não é possível tratar essa questão dentro do espaço de que disponho mas vou abordála por meio da seleção de cinco capítulos ou quase capítulos proémío I proê mio II II 1 1 26 e II 5 No proêmio ao capítulo I Maquiavel nos informa que descobriu novos modos e ordens que trilhou uma estrada que jamais fora percorrida antes Compara sua reali zação à descoberta de mares e terras desconhecidos apresentase como o Colombo do mundo moral e político O que o impulsionou foi o desejo natural que sempre tivera de fazer aquelas coisas que em sua opinião trouxessem benefício a todos Portanto é com coragem que enfienta os perigos que o aguardam Quais são esses perigos No caso da descoberta de mares e terras desconhecidos o perigo consiste em procurá los uma vez que se tenha encontrado as terras desconhecidas e voltado para casa encontrase a segurança No caso da descoberta de novos modos e ordens contudo o perigo consiste em encontrálos isto é em revelálos de público Pois como nos diz Maquiavel é perigoso ser o cabeça de algo novo que afete muitos Para nossa grande surpresa logo em seguida Maquiavel identifica os novos mo dos e ordens com os da Antiguidade sua descoberta é apenas uma redescoberta Men ciona a preocupação contemporânea com frtmentos de estátuas antigas que são tidos em grande honra e usados como modelos para escultores contemporâneos É ainda mais surpreendente que ninguém pense em imitar as mais virtuosas ações de antigos reinos e repúblicas com o resultado lamentável de que não resta qualquer vestígio da antiga virtude Os advogados dos dias atuais aprendem seu ofício com os antigos advogados Os médicos nos dias de hoje baseiam suas decisões na experiência dos antigos médicos Portanto é ainda mais surpreendente que em assuntos políticos e militares os príncipes e as repúblicas atuais não recorram aos exemplos dos antigos Isso resulta não tanto da firaqueza à qual a religião de hoje impeliu o mundo ou do mal que fez o lazer ambicioso a tantos países e cidades cristãos como de uma compreensão insuficiente das histórias e em especial a de Tito Lívio Em conseqüência os con temporâneos de Maquiavel acreditam que a imitação dos antigos não é apenas difícil mas impossível Tratase porém de evidente absurdo a ordem natural incluindo a natureza do homem é a mesma da Antiguidade N i c o l a u M a q u ia v e l 275 Entendemos agora por que é perigosa a descoberta de novos modos e ordens que é apenas a redescoberta dos antigos modos e ordens Essa redescoberta que acarreta as demandas de que a virtude dos antigos seja imitada pelos homens de hoje é contrária à religião de hoje é esta religião que ensina que a imitação das antigas virtudes é im possível que é moralmente impossível pois as virtudes dos pagãos são apenas vícios resplandecentes O que Maquiavel terá de realizar nos Discursos não é apenas a apre sentação mas a reabilitação da antiga virtude diante da crítica cristã Entretanto com isso não fica resolvida a dificuldade causada pelo fato de que a descoberta de novos modos e ordens é apenas a redescoberta dos antigos modos e ordens Esse aspecto porém é claro Maquiavel não pode tomar como ponto pacífico a superioridade dos antigos é preciso comprovála Assim sendo deve primeiro encon trar um território comum aos admiradores e detratores da Antiguidade Esse território comum é a veneração da Antiguidade seja bíblica ou pã Maquiavel parte da premis sa tácita de que o bom é o velho e por conseguinte de que o melhor é o mais velho Desta forma é conduzido primeiro ao antigo Egito que floresceu na mais remota An tiguidade Contudo tal atitude não é muito produtiva já que pouco se sabe do antigo Egito Maquiavel se conforma portanto com o mais antigo que é bastante conhecido e ao mesmo tempo propriamente seu a Roma antiga Todavia não há evidências de que a Roma antiga seja digna de admiração em todos os aspectos importantes Há for te argumentação a ser apresentada e que já o fora quanto à superioridade de Esparta sobre Roma Desta forma Maquiavel precisa comprovar a autoridade da Roma antiga O modo como o faz lembra a maneira pela qual os teólogos anteriormente determina vam a autoridade da Bíblia contra os incrédulos Contudo a Roma antiga não é um livro como a Bíblia Todavia ao determinar a autoridade da antiga Roma Maquiavel firma a autoridade de seu historiador chefe Tito Lívio e com isso do livro A história de Tito Lívio é a Bíblia de Maquiavel Daí se segue que Maquiavel não pode dar início a seu uso de Tito Lívio antes de demonstrar a autoridade de Roma Maquiavel começa a citar Tito Lívio na seção sobre a religião romana I 1115 No capítulo anterior contrastara César como o fundador de uma tirania com Rômu lo como fundador de uma cidade livre A glória de César se deve aos escritores que o celebraram porque seu julgamento estava corrompido por seu extraordinário sucesso a fundação do governo dos imperadores os imperadores não permitiam que os escri tores falassem de César com liberdade Todavia os escritores livres sabiam como con tornar essa limitação culpavam Catilina a infeliz prefiguraçâo de César e celebravam Bruto inimigo de César Porém nem todos os imperadores eram ruins O período dos imperadores Nerva até Marco Aurélio foram tempos áureos em que todos podiam nutrir e defender qualquer opinião que quisessem áureos são os tempos em que o pensamento e a expressão do pensamento não são limitados pela autoridade Essas observações constituem com efeito a abertura do tratamento da religião romana por Maquiavel Ali trata a religião pagã pelo menos como igual à religião bíblica enquanto religião O princípio de toda religião é a autoridade ou seja exatamente aquilo que Maquiavel questionara pouco antes Entretanto para a classe governante da Roma 276 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y antiga a religião não era uma autoridade utilizavam a religião para fins políticos e o faziam do modo mais admirável O elogio da religião da Roma antiga subtende para além de uma simples insinuação uma crítica da religião da Roma moderna Maquiavel elogia a religião da Roma antiga pela mesma razão por que os escritores livres sujeitos à autoridade dos césares elogiaram Bruto não podia culpar abertamente a autoridade do cristianismo à qual estava sujeito Assim se a história de Tito Lívio é a Bíblia de Maquiavel é também sua antiBíblia Depois de comprovar a autoridade da Roma antiga e demonstrar sua superio ridade aos modernos por meio de muitos exemplos Maquiavel começa a aludir aos defeitos de que sofreu Somente a partir deste ponto é que Tito Lívio ou seja um livro se distingue de Roma como sua autoridade exclusiva Entretanto pouco antes do final do Livro I Maquiavel questiona abertamente a opinião de todos os escritores inclusive Tito Lívio sobre um assunto da maior importância Conduznos assim passo a passo até o entendimento do motivo por que são novos os modos e ordens antigos que redescobriu 1 Os modos e ordens da Roma antiga foram estabelecidos sob a pressão das circunstâncias por tentativa e erro sem um plano coerente sem a compreensão de seus motivos Maquiavel fornece esses motivos e por isso é capaz de corrigir alguns dos antigos modos e ordens 2 O espírito que dinamizava os velhos modos e ordens era a veneração da tradição da autoridade o espírito de piedade enquanto Maquiavel é galvanizado por um espírito inteiramente diverso O progresso da aigumentação é indicado com grande clareza no L íaito I Enquanto começa com os maiores elogios à Antiguidade mais remota o Livro I termina com a expressão muito jovem muitos romanos comemoraram seus triunfos sànàa ovanissimi Estamos assim prontos para compreender o proêmio do Livro II Ali Maquia vel questiona com franqueza o preconceito em favor dos tempos antigos os homens sempre elogiam os tempos antigos e acusam o presente mas nem sempre com razão Na verdade o mundo sempre foi o mesmo a quantidade de bem e de mal é sempre a mesma O que muda são os diferentes países e nações que têm tempos de virtude e tempos de degenerescência Na Antiguidade a virtude residiu primeiro na Assíria e afinal em Roma Após a destruição do Império Romano a virtude renasceu ape nas em algumas partes dele em particular na Turquia Desta forma alguém que nasceu em nosso tempo na Grécia e que não se tornou turco com sensatez culpa o presente e elogia a Antiguidade Em conseqüência Maquiavel tem total justificativa para louvar os tempos dos antigos romanos e culpar seu próprio tempo não resta qualquer traço da antiga virtude em Roma e na Itália Portanto exorta os jovens a imitar os antigos romanos sempre que a fortuna lhes der a oportimidade de fazêlo isto é realizar o que fora impedido de efetuar pela perversidade dos tempos e da fortuna A mensagem do proêmio ao Livro II poderia parecer muito insignificante pelo menos quando comparada com a do proêmio ao livro I Tal se deve ao fato de que o proêmio ao Livro I é a introdução a toda a obra enquanto o proêmio ao Livro II é apenas a introdução ao Livro II e em particular aos primeiros capítulos do Livro II Ali Maquiavel primeiro diverge de uma opinião de Plutarco a quem chama de um N ic o l a u M a q u ia v e l 2 7 7 autor de peso nunca aplica esse epíteto a Tito Lívio uma opinião compartilhada por Tito Lívio e até mesmo pelo próprio povo romano a opinião de que os romanos adquiriram seu império por meio da fortuna e não por meio da virtude Antes da con quista romana toda a Europa era habitada por três povos que defendiam sua liberdade de modo obstinado e que se governavam com liberdade ou seja como repúblicas Por conseguinte Roma necessitou de excessiva virtude para conquistálos Como então se explica que nos tempos antigos esses povos amavam a lib e r te mais do que hoje De acordo com Maquiavel tal se deve em última análise à diferença entre a a n t relião e nossa relido Nossa religião considera como o bem maior a humildade a abjeção e o menosprezo pelas coisas humanas enquanto para a antiga religião o bem mais eledo estava na grandeza de espírito na força do corpo e em todas as outras coisas propensas a fortalecer os homens Contudo o desarmamento do mundo e do próprio céu se deve em última análise à destruição do Império Romano de toda a vida republicana Além de sua excessiva virtude o sundo motivo para a grandeza de Roma era sua liberal ad missão de estrangeiros como cidadãos Todavia essa política expõe o Estado a grandes perigos como sabiam os atenienses e em particular os espartanos que temiam que a agregação de novos habitantes corrompesse os antigos costumes Devido à política ro mana muitos homens que jamais conheceram a vida republicana e não se importavam com ela ou seja muitos orientais tornaramse cidadãos romanos Assim a conquista romana do Oriente concluiu o que a conquista do Ocidente começara E assim sucedeu que a República romana era por um lado o extremo oposto à república cristá e por outro a causa da república cristã e até mesmo seu modelo O Livro III nâo tem proêmio mas seu primeiro capítulo tem função de proê mio Por meio desta ligeira irregularidade Maquiavel salienta o feto de que o número de capítulos dos Discursos é ual ao número de livros na história de Tito Lívio e a história de U to Lívio como mencionamos antes estendese desde a origem de Roma até a época do suipmento do cristianismo O título do primeiro capítulo do Livro III tem o seguinte teor Se alguém deseja que vivam por muito tempo uma seita ou uma república é preciso trazêlas muitas vezes de volta a seu início Embora o título só fale de seitas e repúblicas o capítulo em si trata de repúblicas seitas e reinos as seitas quer dizer as religiões ocupam posição central Há um limite imposto pelo céu para o curso de todas as coisas do mundo No entanto atingem esse limite apenas se forem mantidas em ordem e isso significa que são muitas vezes trazidas de volta às suas ori gens pois em suas origens devem ter tido algo de bom caso contrário não teriam an gariado sua reputação em primeiro lugar nem crescido Maquiavel prova sua tese no que concerne às repúblicas primeiro pelo exemplo de Roma que recuperou uma nova vida e nova virtude depois de sua derrota pelos gauleses Roma em seguida retomou a prática da religião e da justiça isto é as antigas ordens em particular as da religião devido a cuja negligência adviera o desastre A recuperação da antiga virtude consiste na reimposição do terror e do medo que no início fizeram bons os homens Maquia vel portanto explica o significado fundamental de seu interesse pela recuperação de antigos modos e ordens os homens eram bons no início não por causa da inocência 278 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey mas porque foram tomados pelo terror e pelo medo pelo terror e medo inicial e radical no começo não há Amor mas Terror os ensinamentos inteiramente novos de Maquiavel se baseiam nessa suposta percepção que antecipa a doutrina de Hobbes do estado da natureza Maquiavel voltase em seguida para a discussão das seitas ilustra sua tese com o exemplo da nossa religião Se nossa religião não tivesse si do levada de volu às suas origens ou princípios por S Francisco e S Domingos teria sido completamente extinta pois pela pobreza e pelo exemplo de Cristo trouxeram essa religião de volta à mente dos homens onde já estava extinta e essas novas ordens eram tão potentes que são elas o motivo pelo qual a imoralidade dos prelados e dos chefes da religião não arruinam nossa religião pois os franciscanos e os dominicanos vivem ainda na pobreza e têm crédito tão grande com os povos por causa da confissão e das pregações que convencem as pessoas de que o mal é fàlar mal do mal e que é bom viver em obediência aos prelados e se os prelados pecam deixar que Deus os puna Assim os prelados fàzem tanto mal quanto podem pois não temem a punição que não veem e na qual não acreditam Essa inovação portanto manteve e mantém essa religião Aqui o retorno ao início foi obtido por meio da introdução de novas ordens sem dúvida Maquiavel o afirma porque não acreditava que as reformas franciscanas e dominicanas eqüivalessem a uma simples restauração do cristianismo primitivo pois essas reformas deixaram intacta a hierarquia cristã Contudo é necessária a introdução de novas ordens também nas repúblicas como saliena Maquiavel no capítulo final dos Discursos a restauração dos modos e ordens antigos eqüivale em todos os casos incluindo o do próprio Maquiavel à introdução de novos modos e ordens No entan to existe uma grande diferença entre a renovação fnmciscana e dominicana e as reno vações republicanas estas últimas sujeitam toda a república incluindo o protagonista ao terror e ao medo iniciais exatamente porque resistem ao mal porque punem o mal de forma visível e por conseguinte com credibilidade O comando ou conselho cristão para que não se resista ao mal se baseia na premissa de que o começo ou o princípio é o amor Esse comando ou conselho só pode levar à desordem extrema ou ainda à evasão A premissa no entanto se transforma no seu extremo oposto Vimos que o número de capítulos dos Discursos é significativo e foi escolhido a propósito Assim podemos ser induzidos a perguntar se não é também significativo o número de capítulos do Príncipe O Príncipe é composto por 26 capítulos Vinte e seis é o valor numérico das letras do nome ssrado de Deus em hebraico do Tetragrama Mas será que Maquiavel sabia disso Não sei Vinte e seis é igual a duas vezes 13 Hoje e há bastante tempo o número 13 é considerado aziago mas nos tempos antigos era tido ao mesmo tempo e até mais como um número de sorte Assim 13 vezes pode significar tanto boa sorte como má sorte e portanto tudo junto sorte fortuna Podese argumentar a fàvor da visão de que a teologia de Maquiavel pode ser expressa pela fórmula Deus sive fortuna distinta de Deus sive natura de Spinoza ou seja que Deus é a fortuna que deveria estar sujeita à influência humana imprecação Entretan to comprovar isso exigiria um argumento demasiado longo e exaltado para a presen te ocasião Vejamos portanto se não podemos conseguir alguma ajuda de um exame N icolau Maquiavel 279 do capítulo 26 dos Discursos O título do capítulo é o seguinte Um novo príncipe em uma cidade ou um país tomado por ele deve fazer tudo de novo O tema do ca pítulo é então o novo príncipe em um novo Estado ou seja o tema mais elevado do Príncipe No final do capítulo anterior Maquiavel dissera aquele que pretende estabe lecer um poder absoluto que os autores chamam tirania deve renovar tudo O tema de nosso capítulo é portanto a tirania mas o termo tirania jamais ocorre nesse capí tulo a tirania é evitada no capítulo 26 dos Discursos do mesmo modo como é evitada no Príncipe que consiste em 26 capítulos A lição do capítulo em si é essa um novo príncipe que pretende estabelecer o poder absoluto em seu Estado deve fàzer tudo de novo deve estabelecer magistraturas novas com novos nomes novas autoridades e homens novos deve fàzer os ricos pobres e os pobres ricos como fez Davi quando se tornou rei qui esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes Em suma o novo príncipe não deve dekar nada intocado em seu país e não deve haver qualquer status ou riqueza que seus possuidores não reconheçam como devidos ao príncipe Os modos que deve empregar são os mais cruéis e hostis não só a toda a vida cristã mas até mes mo a toda vida humana de modo que todos devem preferir viver como um homem comum e não como um rei com uma tão grande ruína de seres humanos A citação la tina que ocorre neste capítulo é assim traduzida na versão revista Ele encheu de bens os fàmintos e despediu vazios os ricos A citação fàz parte do Magnificat a oração de agradecimento da Yitgem Maria depois de ter ouvido do anjo Gabriel que daria à luz um filho a ser chamado de Jesus aquele que encheu de bens os fàmintos e despediu vazios os ricos não é outro senão o próprio Deus No contexto deste capítulo isso significa que Deus é um tirano e que o rei Davi que fez os ricos pobres e os pobres ricos era um rei piedoso um rei que sqia os caminhos do Senhor porque procedeu de maneira tirânica Devese notar que esta é a única citação do Novo Testamento que ocorre nos Discursos ou no Príncipe E esta única citação do Novo Testamento é usada para expressar uma terrível blasfêmia Podese dizer em defesa de Maquiavel que a blasfêmia não é pronunciada de modo expresso mas apenas insinuada No entanto esta defesa longe de ajudar Maquiavel piora a situação e por este motivo quando um homem pronuncia abertamente ou vomita uma blasfêmia todos os homens de bem tremem e se afàstam dele ou o castigam de acordo com seus merecimentos o pecado é seu por completo Mas uma blasfêmia oculta é por demais insidiosa não somente porque protege o blasfemo contra o castigo por meio do devido processo da lei mas acima de tudo porque praticamente obriga o ouvinte ou leitor a pensar a blasfêmia por si mesmo e assim tornarse cúmplice do blasfemador Maquiavel portanto esta belece uma espécie de intimidade com seus leitores por excelência a quem chama de os jovens induzindoos a pensar em coisas proibidas ou criminosas Tal intimidade parece também ser estabelecida por todo procurador ou juiz que a fim de condenar o criminoso deve pensar pensamentos criminosos mas essa intimidade é abominada pelo criminoso Maquiavel como sempre intentao e o deseja Esta é uma parte im portante de sua educação dos mais jovens ou para usar a expressão consagrada pelo tempo de sua corrupção dos jovens 2 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Se o espaço permitisse poderíamos analisar com proveito outros capítulos dos Discursos cujos números são múltiplos de 13 Vou examinar apenas um deles Livro II capítulo 5 O título deste capítulo é o seguinte Que a mudança de seitas e linguens juntamente com as inundações e prsas destrói a lembrança das coisas Maquiavel começa este capítulo discordando de certos filósofos expondo uma objeção a suas te ses Os filósofos em questão afirmam que o mundo é eterno Maquiavel acredita ser possível redarguirlhes da seguinte forma se o mundo fosse tão velho como alegam seria razoável que houvesse lembranças de mais de cinco mil anos isto é a memória que temos graças à Bíblia Maquiavel se opõe a Aristóteles em nome da Bíblia Mas continua seria possível íàzer uma réplica se não se percebesse que as lembranças dos tempos são destruídas por causas diversas em parte originadas por seres humanos em parte originadas no céu Maquiavel reíutou em seguida uma suposta contestação de Aristóteles ao mais conhecido argumento antibíblico dos aristotélicos Prossegue da siinte maneira as causas originárias de seres humanos são as mudanças das seitas e da linguagem Pois quando emerge uma nova seita isto é uma nova religião sua pri meira preocupação é a fim de angariar respeito extinguir a antiga religião e quando aqueles que estabelecem as ordens das novas seitas têm um idioma diferente destroem com facilidade a antiga seita Percebese isso ao se avaliar o procedimento usado pela seita cristã contra a seita dos gentios a primeira arruinou todas as ordens todas as ce rimônias dos gentios e destruiu toda a memória daquela antiga teologia É verdade que não conseguiu destruir de todo o conhecimento dos feitos realizadas pelos homens de excelência no meio dos gentios e isso se deveu ao fato de que preservou a língua lati na que os cristãos foram forçados a usar para escrever a sua nova lei Pois se tivessem sido capazes de escrever essa lei em uma nova língua não restaria qualquer registro das coisas do passado Basta ler as atas de S Gregório e dos outros líderes da religião cristã para perceber a grande obstinação com que perseguiram todas as antigas lembranças queimando as obras dos poetas e dos historiadores arruinando as imagens e danifi cando todos os outros sinais da Antiguidade se tivessem unido a essa perseguição uma nova língua mdo teria sido esquecido em curtíssimo tempo Por meio desses extra ordinários exageros Maquiavel delineia o contexto de sua própria obra em especial a sua recuperação de seu estimado Uto Lívio de cuja história a maior parte se perdeu devido à maldade dos tempos 12 Além disso aqui contrastam em silêncio a con duta dos cristãos e a dos muçulmanos cuja nova lei foi escrita em uma nova língua A diferença entre os cristãos e os muçulmanos não é que os cristãos tivessem um maior respeito pela Antiguidade p s que os muçulmanos mas que os cristãos não conquis taram o Império Romano do Ocidente tal como os muçulmanos conquistaram o do Oriente pelo que foram forçados a adotar a língua latina e assim em certa medida a preservar a literatura da Roma pa desta forma preservando seu inimigo mortal Pouco depois Maquiavel afirma que essas seitas mudaram duas ou três vezes em cinco ou seis mil anos Assim determina o tempo de vida do cristianismo o máximo seria de três mil anos o mínimo de 1666 anos Isso significa que o cristianismo poderia chegar ao fim cerca de 150 anos após os Discursos terem sido escritos Maquiavel não N ic o ia u M a q u ia v e l 2 8 1 foi o primeiro a se envolver em especulações deste ripo cf Gemisto Pletão que era muito mais confiante ou perspicaz que Maquiavel Contudo o ponto mais importante atestado por Maquiavel com essa declaração é que todas as religiões incluindo o cristianismo têm origem humana não celeste As alterações de origem celeste que destroem a memória das coisas são as pnas a fome e as inundações o celeste é o natural o supranatural é humano Não é original a essência do que diz ou siere Maquiavel a respeito da religião Como indica seu uso do termo seita para referirse à relido Maquiavel segue o cami nho do averrofemo isto é daqueles aristotélicos medievais que como filósofis se recusa ram a íãzer quaisquer concessões à religião revelada Embora não seja original a essência dos ensinamentos religiosos de Maquiavel é muito engenhosa sua maneira de colocálos Não reconhece de fiito nenhuma teolc além da teo lc civil a teologia a serviço do Estado e a ser utilizada ou não utilizada pelo Estado conforme sirirem as circunstân cias Indica que podem ser dispensadas as religiões se houver um monarca fisrte e capaz Essa afirmativa implica de fato que a religião é indispensável nas repúblicas Os ensinamentos moraispolíticos dos discursos são em essência os mesmos do Príncipe mas com uma diferença importante os Discursos apresentam de modo potente a tese em fàvor das repúblicas ao mesmo tempo que instruem tiranos em potencial sobre como destruir a vida republicana Todavia testam poucas dúvidas de que Maquiavel preferia as repúblicas às monarquias tirânicas ou nâo Odiava a opressão que não está a serviço do bemestar do povo e por consuinte de um governo eficaz em particular de uma justiça punitiva imparcial e insuscetível Era um homem generoso embora sabendo muito bem que o que passa por generosidade na vida política é na maior parte do tem po nada mais que saz maquinação que como tal merece ser elogiada Nos Discursos manifestou de modo mais daro sua preferência por meio de seus louvores a M Fúrio Camilo Camilo fora muito elogiado por Tito Lívio como o sundo Rômulo o segun do fundador de Roma um praticante por demais consciente das observâncias religiosas c h mesmo a fidar dele como o maior de todos os imperatores mas provavelmente com isso quer dizer o maior de todos os comandantes até o tempo de Camilo Maquia vel no entanto chama Camilo de o mais prudente de todos os capitães romanos fàz o elogio tanto por sua bondade quanto por sua virtude sua humanidade e integridade como boas e sábias resumindo como um homem de grande excelência Tem em mente sobretudo sua serenidade o feto de que mantinha o mesmo estado de espírito na boa e na má fortuna quando salvou Roma dos gauleses e assim mereceu glória imortal e quando foi condenado ao exílio Maquiavel atribui o modo como Camilo se mantinha acima dos caprichos da fortuna a seu excepcional conhecimento do mundo Apesar de seus méritos extraordinários Camilo foi condenado ao exílio Em um capítulo especial III 23 Maquiavel discute os motivos para tal condenação Com base em Uto Lívio enumera três motivos Porém se não me engano Tito Lívio jamais mencionou esses três motivos juntos como causas do exílio de Camilo Aqui na verdade Maquiavel não s e Uto Lívio mas Plutarco Entretanto fez uma alteração característica atribui a posição central ao feto de que em seu triunfo Camilo teve seu carro triunfei puxado por quatro 2 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y cavalos brancos desta forma comentou o povo que por oigulho tivera a intenção de igualarse ao deus sol ou como afirma Plutarco Júpiter Tito Lívio diz Júpiter et sot Acredito que este chocante ato de superbia constituiu aos olhos de Maquiavel um sinal da nunanimidade de Camilo O extremo orgulho de Camilo revela como Maquiavel decerto sabia que existe uma grandeza além da grandeza de Camilo Afinal de contas Camilo não era um fun dador ou descobridor de novos modos e ordens Para dizer isso de modo um pouco diferente Camilo era um romano da mais alta dignidade e como Maquiavel demons trou de modo mais evidente em sua comédia La Mandragola a vida humana também requer leveza Nesta elogia o Magnífico Lourenço de Médici por ter juntado gravida de e leveza em uma combinação quase impossível combinação esta que Maquiavel estimava louvável porque ao mudar da gravidade para a leveza e viceversa imitase a natureza que é mutável Não é possível deixar de incU como se deve julgar de modo razoável os en sinamentos de Maquiavel como um todo A maneira mais simples de responder a essa pergunta parece ser a seguinte O escritor a quem Maquiavel se refere e a quem reverencia com maior frequência com a óbvia exceção de Tito Lívio é Xenofonte No entanto referese a apenas dois dos escritos de Xenofonte A Educação de Ciro e Hiero Não se detém em seus escritos socráticos ou seja o outro polo do universo moral de Xenofonte Sócrates Na opinião de Xenofonte Maquiavel suprime a melhor parte Podese dizer com sjurança que não há nenhum fenômeno moral ou político que Maquiavel soubesse ou por cuja descoberta fosse famoso que não fosse plenamente conhecida por Xenofonte para não felar de Platão e Aristóteles É verdade que em Maquiavel tudo aparece sob uma nova luz mas isso se deve não a um alargamento do horizonte mas a um estreitamento dele Muitas descobertas modernas sobre o homem têm a mesma natureza Maquiavel tem sido muitas vezes comparado aos sofistas Maquiavel nada diz a respeito dos sofistas e dos homens comumente conhecidos como sofistas No entanto diz algo sobre esse assunto embora de modo indireto em sua Vida de Castruccio Cas tracani uma obra diminuta e encantadora contendo uma descrição idealizada de um condottiero ou tirano do século XIV Ao final dessa obra registra uma série de ditos espirituosos proferidos ou ouvidos por Castruccio Quase todos esses ditos foram to mados de empréstimo por Maquiavel da obra Vidas dos filósofos famosos de Diógenes Laércio Maquiavel muda os ditos em alguns casos a fim de tornálos adequados a Castruccio Em Diógenes está registrado que um filósofo antigo afirmou que gostaria de morrer como Sócrates Maquiavel apropria esse dito para Castruccio embora este preferisse morrer como César A maioria das declarações registradas no Castruccio tem origem em Aristipo e Diógenes o Cínico As referências a Aristipo e Diógenes não considerados sofistas poderiam guiarnos de modo proveitoso se estivéssemos inte ressados na questão daquilo que os estudiosos denominam as fontes de Maquiavel Perto do final da Ética a Nicômaco Aristóteles feia do que se pode chamar da filosofia política dos sofistas Sua principal asserção é de que os sofistas identificavam N ic o l a u M a q u ia v e l 2 8 3 ou quase identificavam a política com a retórica Em outras palavras os sofistas acre ditavam ou tendiam a acreditar na onipotência do discurso Maquiavel decerto não pode ser acusado desse erro Xenofonte fala de seu amigo Proxenos que comandou um contingente na expedição de Ciro contra o rei da Pérsia e que era aluno do mais famoso retórico Górgias Xenofonte afirma que Proxenos era um homem honesto e capaz de comandar cavalheiros mas não foi capaz de instilar medo nos seus soldados foi incapaz de punir aqueles que não eram cavalheiros ou até mesmo de repreendêlos Porém Xe nofonte que foi discípulo de Sócrates mostrouse um comandante de grande sucesso exatamente porque sabia controlar tanto os cavalheiros como os não cavalheiros Xeno fonte o discípulo de Sócrates não tinha ilusões quanto ao rigor e a aridez da política quanto aos ingredientes da política que transcendem o discurso Neste aspecto impor tante Maquiavel e Sócrates constituem uma frente única contra os sofistas L eitu ra s A Maquiavel Nicolau O príncipe B Maquiavel Nicolau Discursos sobre os dez primeiros livros de Tito Lívio 284 H istória da Filosofia P olítica a Leo Strauss e Joseph Cropsey M artinho L utero 14831546 JoÂo C alvino 15091564 Os grandes reformadores Martinho Lutero e João Calvino não se viam como fi lósofos ou políticos mas em essência como teólogos e estudiosos da Palavra de Deus Desta forma não devemos esperar que apresentem uma filosofia política abrangente ou uma teoria geral da política pois não consideravam esta como a tarefa para a qual foram chamados No entanto a Reforma da Igreja exigia a formulação de uma posição teológica geral o que inelutavelmente incluiria algumas afirmações centrais sobre política c filosofia política Assim ainda que a contrsosto os dois reformadores fo ram convocados a dar muitos conselhos políticos concretos em situações práticas e até mesmo a envolverse em atividades políticas nas quais as suas opiniões políticas foram desenvolvidas e postas à prova Concebem suas afirmações políticas como diretamente decorrentes das suas premissas teológicas e como derivadas da mesma fonte as Síra das Escrituras Seus ensinamentos políticos só podem ser entendidos de modo correto à luz de sua teologia pois não foram elaborados para serem vistos de forma isolada Abreviações Weimarer Ausgabe das Obras de Martinho Lutero P E Philadelphia Edition of The Works o f Martin Luther 6 v in English Philadelphia A J Hol man Company 19151932 AEAmerican Edition ofLuthers Works Ed Jaroslav Pelikan and HelmutT Lehman Cinqüenta e cinco volumes em processo de publicação pela Concordia Publishing House St Louis e Muhlen beig Press Philadelphia CR Corpus Refbrmatorum no qual as obras de Calvino editadas por Baum Cunitz e Reuss com preendem 59 volumes Brunswick 18631900 Ins Calvin Institutes ofthe Christian Religion As citações em iiês a nâo ser que iníbnnado em contrário sâo da tradução de Henry Beveridge London James Clarke Co 1949 Sua principal preocupação com a política é definir sua esfera adequada e situála em relação a seu contexto Mas é impossível determinar a fronteira entre teologia e filosofia política sem dizer muito sobre ambos e apesar de Lutero e Calvino tomarem a teologia bíblica como seu ponto de partida é inevitável que estejam envolvidos em dizer muito sobre a natureza e a função da política Discutem temas como o lugar do governo secular em relação ao esquema da salvação divina a conexão entre o pe cado e a autoridade temporal as relações entre lei divina lei natural e lei positiva as numerosas implicações da doutrina cristã do homem a Igreja e o Estado os limites do poder político os deveres mútuos de governante e súditos e assim por diante Em suma a maior parte das grandes questões da filosofia política é pelo menos aventada muito embora algumas vezes apenas para indicar quais ferramentas razão tradição experiência consciência ou as Sagradas Escrituras sáo adequadas para o tratamento de um determinado problema Lutero e Calvino estão em polos opostos no que se refere a seu temperamento e modo de expressão Lutero é extravagante vivo impulsivo muito agradável de ler mui tas vezes exerando a sua verdadeira posição ou contrariando o que dissera em outro liar a fim de apresentar um aspeao com maior força Não escreveu uma exposição abrangente de sua teologia e seus ensinamentos políticos precisam ser recolhidos a partir de tratados para os tempos tratados teológicos comentários sermões e até mesmo hi nos Apesar de algumas gritantes contradições e exageros na superfiície há uma profunda unidade básica e coerência em seu pensamento sua teologia política é engendrada com grande cuidado e em geral é consistente mesmo que por vezes ardculada de modo enganoso Calvino é mais contido seco lúcido e sistemático em seus escritos Sua obra Institutos da Religião Cristã que escreveu pela primeira vez quando tinha apenas 25 anos mas revisou e expandiu em sucessivas edições até 1559 é uma das maiores e mais influen tes obras de teologia sistemática de todos os tempos Em sua forma final é a expressão definitiva de sua teologia embora muitos detalhes possam ser acrescentados a partir de seus volumosos sermões palestras comentários e correspondências Apesar de algumas significativas divergências teológicas e políticas Lutero e Cal vino concordam entre si de modo amplo e geral Acatam as mesmas autoridades adotam quase o mesmo método e a estrutura e a maior parte das conclusões de seu pensamento são semelhantes o bastante para nos autorizar a tratálos em conjunto apontando as diferenças na medida em que ocorrerem A A B a se pa ra u m a T e o l o g ia d a P o u t ic a 1 Justificação pela Fé A raiz e núcleo de toda a teologia reformada é a doutrina da justificação pela fé apenas Tudo o que é característico dos ensinamentos de Lutero e da Reforma pode ser rastreado até uma convicção da perversidade radicai do homem e de sua total aliena ção de Deus por causa da imensidão de seu pecado junto com a rejeição das soluções 286 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y correntemente aceitas para o problema do perdão e da reconciliação Os reformadores foram muitíssimo além da simples denúncia dos abusos mais óbvios do sistema de indulgências e naram os próprios termos em que eram colocados o problema do pecado e da redenção pela Igreja Romana Tanto Lutero como Calvino acreditam na total depravação do homem Com isso não querem dizer que nada que o homem faça possa ser bom no sentido cor rente do termo mas que mesmo aquelas que o homem percebe como boas obras são inadequadas de modo total e comovente quando avaliadas pelo padrão de retidão que Deus exige de Seus servos O mal que fiizemos é a expressão normal da nossa natureza humana corrompida e nossa própria responsabilidade mas qualquer bem que possamos fezer é Deus saindo através de nós um dom da livre graça de Deus pelo qual não podemos reivindicar mérito É ridículo pensar em invocar as nossas boas obras diante de Deus Onipotente pois é desesperançada a trivialidade desse ato em virtude da condenação de nosso pecado que exige a justiça divina essas mesmas obras são sem exceção conspurcadas por nossa corrupção e maldade e além disso se são boas é porque a bondade reside em Deus e não em nós Todos os homens estão igualmente sob a condenação de Deus Nem mesmo os santos escreveu Calvino são capazes de realizar uma obra que se julgada por seus méritos não seja merecedora de condenação O perdão e a paz com Deus não podem ser obtidos ou ganhos pelo homem ou pelo que quer que feça por si mesmo Os reformadores rompem com a tradição medieval não só por sua colocação mais radical do problema do pecado e da condição caída do homem mas também pela solução que apresentam Somos justificados diante de Deus alegam não pelas obras ou pelos méritos dos santos distribuídos por meio das indulgências mas sola fide somente pela fé a fé é uma dádiva divina e não algo que o homem possa criar para si mesmo Não significa apenas que o homem deve aceitar determinadas afirma ções doutrinárias mas ao contrário que seu único recurso diante do julgamento de Deus é admitir sua total impotência e a total jusdça de sua condenação e em seguida entregar todos os seus pecados a Cristo e confiar na Sua obra para acercarse do trono da Graça revestido da santidade alienígena extraterrena do próprio Cristo Nossa justificação é uma dádiva imerecida gratuita para a qual todas as nossas próprias rea lizações são simplesmente irrelevantes A única retidão dos homens que não se dissolve na presença de Deus é a retidão passiva que é dada livremente por Deus com a fé 2 A Autoridade das Escrituras Ao assim aipunentar Lutero e Calvino retomam aos ensinamentos de S Paulo e S Agostinho e rejeitam quase toda a teologia medieval como pelsana ou seja aquela que acredita que o homem pode de alguma forma obter a sua salvação por M a b t in h o L u t e r o e J o Ao C a lv in o 2 8 7 2 John Calvin Ins III xiv 9 3 Martin LuAer Commentary on Galatians ed P S Watson London James Clarke Co 1953 p 39 etc seus próprios esforços Esta ruptura com a escolástica sobre a questão da justificação é o ponto de partida da reflexão teológica da Reforma Lutero diverge de toda a tradição teológica medieval quando já em 1517 escreve É fãlso afirmar que a vontade pode por natureza conformarse para corrigir o preceito É preciso reconhecer que a von tade não é livre para empenharse por tudo o que for declarado bom O homem por natureza não é capaz de querer que Deus seja Deus Na verdade ele próprio quer ser Deus e não quer que Deus seja Deus Tais considerações o levam direto a uma questão mais acadêmica Praticamente toda a Ética de Aristóteles é o pior inimigo da Graça Nenhuma forma silogística é válida quando aplicada a termos divinos Todo o Aristóteles está para a teologia como a escuridão para a luz A incapacidade de tratar a condição caída do homem com adequada seriedade argumentou Lutero levara os teólogos a depositar exjerada confiança na razão A ver dadeira distinção e contraste entre revelação e razão teologia e filosofia fora perdida por exemplo na síntese tomista A razão fora considerada pelo menos em algumas de suas operações como isenta dos efeitos da Queda a natureza e a Graça foram tornadas complementares assim evitando o problema de que a única natureza que podemos co nhecer é a natureza caída a natureza em constante rebelião contra a Graça A redenção da natureza requer o restabelecimento de sua condição incorrupta não sua concreti zação pela adição de uma sobrenatureza Lutero exibe uma substancial concordância com a relação entre a razão e a revelação de Occam e dos nominalistas mas afinal os rejeita também como os pelianos que não só obscureceram o Evangelho mas o afastaram de todo e nas profundezas enterraram a Cristo como resultado de uma visão das potencialidades do homem que está em desacordo com as Escrituras Se a razão não pode fornecer uma ferramenta adequada para o tratamento das questões da divindade o que resta da teologia Deveria a Rainha das Ciências desapa recer deixando para trás de si nada além de um sentimento disforme de piedade A resposta dos reformadores foi inequívoca o único critério da verdade teológica deve ser a Palavra revelada de Deus tal como expressa nas Sagradas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos Só assim pode a teologia escapar da exagerada confiança na nam reza caída ou na razão corrompida Nem a tradição da Igreja nem o filosofar humano devem ser contra as Escrituras A teologia reformada é a teologia bíblica em essência nada mais do que uma exposição dos ensinamentos claros das Escrituras Calvino por exemplo disse de suas Institutos que estavam destinadas a serem apenas a soma do que achamos que Deus quer nos ensinar em Sua Palavra A autoridade das Escrituras é autoautenticadora pois apresentam evidência tão clara de sua verdade como as coisas brancas e pretas o fazem de sua cor ou coisas doces e amargas o fazem do seu 2 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 Luther Disputation against Scholastic Theology Clauses 6 10 17 AE XXXI 4 segs 5 Ibid Clauses 41 47 50 6 Luther Galatians p 130 7 Calvin Prefacio à edição francesa de Institutes sabor e essa autoridade é ainda garantida ao íiel pela obra do Espírito Santo em seu coração É o claro sentido das Escrituras evidente para qualquer homem imparcial ao contrário de qualquer interpretação alegórica ou espiritualizada que é a regra suprema da vida e da doutrina Os reformadores acusam seus adversários não só da introdução de autoridades estranhas na teologia além das Escrituras e de subordinar a Palavra de Deus ao julgamento da Igreja mas também de se recusarem a se sujeitar a seu sentido simples mas ao contrário de tratar a Bíblia como se fosse um nariz de cera que pode ser puxado à vontade Entendida de modo correto afirmam os reformadores toda a Bíblia apresentase como uma unidade de testemunho da revelação de Deus em Cristo livre de obscuridades e ambigüidades Há uma distinção entre Lutero e Calvino em sua doutrina das Escrituras mas está longe de ser formulada de modo explícito e só pode ser apreendida em termos gerais a partir de suas diferentes abordagens da exegese Quando Lutero procura encontrar uma regra de vida nas Escrituras seu entendimento tende a ser negativo as Escrituras definem os limites dentro dos quais se deve buscar a orientação positiva na razão na tradição ou na história A principal preocupação das Escrituras é chamar os homens à salvação em Cristo mas no que concerne à vida neste mundo atuam primordialmen te de modo negativo e exigem que sejam complementadas a fim de que se obtenha luna ética adequada Calvino por outro lado busca nas Escrituras um padrão de vida e ação que seja de inequívoca positividade Enquanto Lutero entende que as Escrituras apontam para uma relação com Cristo que pode ser expressa em muitos modos de vida Calvino tende a procurar a regra única e imutável da obediência cristã Esta dis tinção na doutrina das Escrituras porém está longe de ser absoluta e não deve ser de masiado enfatizada A mesma diferença é expressa com maior clareza no modo diverso como os dois reformadores abordam a questão dos usos da Lei qv No entanto é provável que essa discordância seja uma das fontes do maior radicalismo da preo cupação de Calvino com a forma e o funcionamento da Igreja e do Estado e da maior deferência com que Lutero trata a razão e a tradição ao discutir essas questões Ao menos pelo motivo de que a Bíblia contém uma infinidade de passíens que se preocupam com a política é evidente que Lutero e Calvino como teólogos bíblicos devem ter uma doutrina política em que comentem os ensinamentos das Escrituras sobre o governo a obediência e assim por diante e a relacionem aos problemas da épo ca Nem Lutero nem Calvino alegam ser pensadores originais Pensam em si mesmos apenas como testemunhas da verdade que está disponível para todos os homens nas Sagradas Escrituras Em seu entendimento sua função é somente tomar as passiens relevantes para qualquer assunto e interpretálas correlacionálas e comentálas diante das necessidades do momento Em matéria de política e governo da Igreja a necessi M a s t in h o L u t e r o e J o ã o C a l v in o 2 8 9 8 Calvin Ins I vii 2 9 Luther PE I 367 10 Luther The Bondage ofthe Will trans J I Parker e D R Johnston London James Clarke Co 1957 p 7074 dade mais urgente é a recuperação das ordenações antigas verdadeiras e apostólicas e para isso a Bíblia é o único guia 3 Justificação e Ética Tem sido argumentado com frequência que a doutrina da justificação pela fé apenas com sua negação da validade diante de Deus dos juízos de valor humanos tor na impossível qualquer contemplação séria da ética e da política Se em última análise ou seja na presença de Deus as boas obras não podem ter mérito por que ser bom Teria sido toda a base da moralidade de feto destruída Não se trata disso muito pelo contrário é a resposta dos reformadores Quando um homem se sabe justificado pela fé apenas a sua fé necessariamente tornase ativa no amor a seu vizinho Não nos tornamos bons por fazer boas ações mas por termos sido feitos bons praticamos o bem Os reformadores nunca entendem a fé como mero assentimento passivo a uma série de proposições Portanto quando dizem que as boas obras sáo proibidas quando pregamos a fé apenas é como se eu Assesse a um homem doente Se você tivesse saúde você teria o uso de todos os seus membros mas sem saúde as obras de todos os seus membros náo sáo nada e ele quisesse inferir daí que eu houvesse proibido o trabalho de todos os seus membros enquanto pelo contrário isso significa que deve primeiramente ter saúde que fará fun cionar todas as obras de todos os seus membros Assim também a fé deve estar em todas as obras do artesão mestre ou capitão ou náo são nada As obras do homem fiel têm um valor especial porque são desinteressadas ele serve a Deus e ao próximo por eles mesmos não porque espera assim obter a salvação para si as normas éticas não são revogadas mbora sejam irrelevantes para a questão da salvação são no entanto dadas e estabelecidas por Deus com um objetivo e há uma outra esfera o mundo em que a sua validade adequada permanece totalmente intacta A retidão dos que são justificados nas palavras de Lutero a retidão passiva é algo com que somos dotados mas não podemos adquirir Mas há também uma retidão ativa não menos necessária e ordenada por Deus mas limitada por assim dizer à esfera do mundo O homem justificado é aceito por Deus em Cristo como um homem que age com retidão mas é importante lembrar que isso não o torna sem pecado ou moralmente perfeito aos olhos dos homens embora a justificação com certeza sempre se esforce para expressarse em atos de amor O cristão e o estadista cristão vive em dois reinos e em ambos deve servir a Deus muito embora de formas diferentes Devemos nos voltar ora para uma reflexão mais ampla acerca dos ensi namentos dos reformadores sobre estes dois reinos pois é de importância cabal para seu pensamento político 2 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 LuAer Disputation against Scholastic Theology Clause 40 AE XXXI 4 segs 12 LuAer A Treatise o f Good Works PE I 199 B Os D o is R e in o s 1 A Dupla Cidadania do Homem O homem é súdito de dois reinos dc acordo com Calvino e Lutero Observemos que no homem o governo é duplo um espiritual por meio do qual a consciência é formada para a piedade e a adoração divina o outro civil pelo qual o indi víduo é instruído nos deveres que como homens e cidadãos somos obrigados a cumprir Estas duas formas comumente recebem os nomes adequados de jurisdição espiritual e temporal sugerindo que o tipo anterior referese à vida da alma enquanto o segundo diz respeito às questões da vida presente não apenas alimentação e vestuário mas a pro mulgação de leis que exigem que o homem viva entre seus semelhantes de maneira pura honrosa e moderada O primeiro tem sua sede dentro da alma o último somente regula a conduta externa Denominamos a um o reino espiritual ao outro o reino temporal Em suma o homem pertence tanto à terra como ao céu ao temporal e ao eterno é sujeito à lei secular e recebedor do Evangelho eterno um ser capaz tanto de razão como de fé No reino espiritual é totalmente livre no reino temporal encontrase em total sujeição É ao mesmo tempo membro da Igreja o Corpo eterno de Cristo e sujeito à autoridade temporal dos magistrados e leis seculares É instruído no reino temporal em grande parte pela razão a tradição e a autoridade das grandes mentes do passado e no reino espiritual pela Palavra de Deus tal como registrada nas Sagradas Escrituras A clara distinção entre essas duas esferas é uma das principais e contínuas tarefas da teologia mas está longe de ser fócil Os dois reinos não são apenas a Igreja e o Esta do como sugeriram muitos pensadores medievais Não efetuar a distinção ou colocar uma divisão incorreta leva a confusão e desgraça em ambos os reinos como veremos adiante com maiores detalhes Aquele então que é capaz de julgar de modo correto entre a lei e o Evangelho que dê graças a Deus e saiba que é de fóto divino 2 A Relação entre os Dois Reinos Embora se devam distinguir de modo daro os dois reinos não devemos pensar que não têm qualquer relação um com o outro ou sejam totalmente independentes e autossuficientes Assim como a Escócia e a Inglaterra estiveram entre 1603 e 1707 com exceção do período de Cromwell unidas na pessoa da coroa ao mesmo tempo que mantinham seus governos distintos assim os reinos espiritual e temporal em bora distintos entre si têm o mesmo soberano Ambos são reinos de Deus ambos expressões de seu cuidado e preocupação para com os homens Em certo sentido poderíamos dizer que são complementares embora devamos ter o cuidado de mostrar o que queremos dizer com isso a fim de evitar confusão com ideias medievais que os reformadores renegaram Deus nos dá Suas boas dádivas tanto por intermédio do M a r t i n h o L u t e r o e Jo A o C a lv in o 291 13 Calvin Ins III xfac 15 14 Luther Galatians p 122 príncipe como do pregador e cada um de sua própria maneira aponta para o céu O governo espiritual nos leva a amar a Deus o governo temporal nos conduz a servir os nossos vizinhos Mas o amor a Deus e o serviço ao próximo sáo em última análise táo unidos que é impossível fazer uma coisa sem ao mesmo tempo fezer também a outra Tanto a lei como o Evangelho a razão e a fé o Estado e a Igreja a filosofia e as Escrituras são necessários para a vida neste mundo Apesar daquilo que muitas vezes parece ser conflito e desarmonia sabemos que os dois reinos caminham juntos e são complemen tares Mas essa união só será plenamente realizada na consumação de todas as coisas quando os dois se tomarão lun só e enquanto isso a distinção deve ser mantida com cuidado para que se evite peiosa confusão Ora esses dois tal como os dividimos de vem sempre ser examinados em separado Quando avaliamos um deles devemos trancar nossas mentes e não permitir que pensem no outro A fronteira entre os dois reinos é uma divisão dentro de cada homem Analisados de modo correto os dois governos operam na maior parte em diferentes territórios por meios diferentes e para diferentes fins e em conseqüência a questão da superioridade de um sobre o outro não pode ser discutida com sensatez Os dois devem colaborar e o fezem é verdade mas apenas de tal forma que não confúndam a sua separação e igualdade perante Deus Mas está longe de ser fecil manter a distinção correta pois o diabo não para de tramar e entretecer esses dois reinos em um só a fim de trazer o caos e o desastre para a Terra Sua ação se dá por meio da presunção humana ou do idealismo humano Por um lado o poder secular pode procurar controlar a Igreja e ditar o que deve ser crido e ensinado ou o papa pode procurar afirmar que toda autoridade terrena flui por meio dele Tais pessoas observa Lutero querem ser o próprio Deus e não serviLo ou subordinarse a Ele A Lei e o Evangelho podem ser confundidos quer por bandos de camponeses assassinos e ladrões que minam a autoridade legal em si quer pelo papa que não apenas mistura a lei com o Evangelho mas que do Evangelho fez simples leis sim e tais são apenas cerimoniais O papa também confunde e mistura questões políticas e eclesiásticas o que é uma confusão infernal e diabólica Por outro lado há cristãos ingênuos e idealistas que tentam introduzir o Evangelho em esferas em que só a lei é adequada os entusiastas e fenáticos religiosos com destaque para os anabatistas que não podem ver a mão generosa de Deus no mundo temporal e assim tentam integrar o secular ao espiritual pelas mais louváveis razões Também eles estão enganados e embora involuntariamente são tentes da confusão do diabo Um homem que se aventurasse a governar uma comunidade inteira ou o mundo com o Evangelho seria como um pastor que deve colocar juntos em um rebanho lobos leões águias e carneiros e dizer Sirvamse e sejam bons e pacíficos entre vós o rebanho está 2 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 Calvinr IV XX 2 16 Ibid III xix 15 17 Luther Commentary on Psalm 101 AE XIII 194 18 Ibid p 195 19 Luther Gaktiam p 123 abeno há comida em abundância não tenham medo de cães ou porretes As ovelhas decerto manteriam a paz e permitiriam que fossem alimentadas e governadas em paz mas não viveriam muito tempo Agindo por meio dos presunçosos e dos ingênuos o diabo consegue o que quer O povo os bispos e todo o papado deveriam cuidar do Evangelho e das almas Mas ao contrário governam nos assuntos mundanos travam a guerra e buscam a riqueza tem poral o que em sua astúcia deleitamse em íàzer Igualmente os monarcas seculares de veriam cuidar de seu governo mas ao invés Asso comparecem à Igreja ouvem a Missa e são de todo espirituais Assim neste exato momento estão imiscuídos em questões do Evangelho e seguindo o exemplo do papa estão proibindo o que Deus ordenou como por exemplo ambos os tipos no Sacramento a liberdade cristã e o casamento Em geral os resultados dessa virtude sâo evidentes também nas dietas imperiais desta forma os assuntos essenciais são adiados ou muitas vezes simplesmente omitidos É preciso no entanto acrescentar que Lutero certas vezes transgride suas pró prias convicções como quando argumenta que se cada homem tivesse fé náo haveria necessidade de mais leis desta forma de modo ilegítimo transferindo a doutrina do Evangelho relativa à liberdade espiritual para a ordem civil com o pretexto de que o homem de fé pode ter total independência do governo secular neste mundo 3 A Igreja e o Estada Os dois reinos não são idênticos à Igreja e ao Estado mas o governo político per tence por completo ao domínio temporal e é criado apenas para os fins da presente vida transitória Embora possa mostrar ao homem sua necessidade de perdão não pode mediar a justificação como pode a Igreja No entanto é uma instituição neces sária em um mundo caído criado por Deus como um instrumento de Sua vontade e que extrai sua autoridade diretamente dEle não por meio do papa da Igreja ou do homem Neste aspecto os reformadores concordam com os teóricos antipapistas medievais tais como Wyclif e com Marsílio e Occam exceto na medida em que esses pensadores falavam da soberania popular O governo temporal para os reformadores bem como para os antipapistas medievais tem uma dignidade muito real Lutero considera que com esta ênfese está restaurando algo há muito perdido por causa da confusão medieval entre os dois reinos de modo que pode escrever Poderia vanglo M a r t in h o L u t e r o e J o ã o C a lv in o 2 9 3 20 LuAer Secular Authority to what extent it should be obeyed PE III 237 21 LuAer Psalm 101 AE XIII 174 22 LuAer O f Good Works PE I 199 Calvin Ins III xix 15 23 O termo o Estado é usado aqui e em todo este capítulo simplesmente como sinônimo de go verno civil 24 Calvin Sermon I Tim 61316 CR LIII 618 riarme de que desde o tempo dos Apóstolos a espada temporal e o governo temporal nunca foram de forma táo clara descritos ou tâo enaltecidos como por mim O termo Igreja é um tanto ambíguo Pode ser usado para se referir à Igreja Vi sível isto é o corpo empiricamente discernível dos batizados organizado em conjunto para a adoração instrução e irmandade e subordinado às autoridades religiosas um gru po que contém muitos que não estão de feto entre os Eleitos de Deus e que pode até mesmo excluir de sua companhia alguns dos Eleitos um corpo que é manifestamente imperfeito e mutável Ou pode referirse à Igreja Invisível o Corpo de Cristo eterno ao qual pertencem só os Eleitos aqueles que são justificados pela fé cuja verdadeira compo sição é conhecida somente por Deus A Igreja Invisível é incorruptível eterna e idêntica à da comunhão dos santos Ambos os reformadores seguiram Xdif e Marsílio ao negar que a Igreja deve ser pensada como a hierarquia eclesiástica ou a classe sacerdotal Todos os cristãos pertencem ao estado espiritual e o ministério ou classe sacerdotal é apenas uma íimção específica dentro do sacerdócio corporativo de todo o corpo de fiéis Embora tanto Lutero como Calvino insistissem energicamente na independên cia mútua entre Igreja e Estado é importante perceber que com isso querem dizer coisas bastante diferentes Lutero como Wyclif e Hus antes dele enfatiza muito a invisibilidade da Igreja e não se preocupa demais com a sua independência terrena exceto com relação à doutrina à pregação e aos sacramentos O governo secular pode organizar a comunidade política externa da Igreja como lhe parecer mais conveniente pode fazer o que bem quiser com os bens da Igreja e as autoridades temporais se cristãs podem até ser reconhecidas como bispos com autoridade sobre os assuntos externos da Igreja visível afora os três aspectos supramencionados Calvino por outro lado insiste muito mais na visibilidade da Igreja Para ele a verdadeira forma de organização da Igreja bem como a doutrina verdadeira encontramse nas Escrituras que também dão orientação positiva para o comporta mento exterior dos homens cristãos O controle sobre a moralidade externa não pode ser entregue de todo ao Estado a Igreja também deve exercer sua disciplina com suas próprias sanções peculiares sobre seus membros destacandose a excomunhão e mesmo que sejam governadores ou governantes na esfera secular como cristãos estão sujeitos à disciplina da Igreja Disciplina e comunidade política são para Calvino as fontes primordiais da Igreja e pertencem à essência da fé Tanto Igreja como Estado preocupamse com a manutenção da moralidade externa mas procedem de diferentes formas adequadas às suas diferentes naturezas Para Lutero disciplina e comunidade política sáo indiferentes no que tange o reino da salvação 294 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 25 Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 35 26 Wyclif Select English Works ed Amold III 447 Tractatus de Ecclesia ed Loserthnífw Calvin Prefatory Address ofthe Institutes to the King ofFrance sec 6 etc Luther To the Christian Nobility of the German Nation PE II 61 segs 27 Luther To the Christian NohiUiy o f the German Nation p 68 28 Calvin Ins IV i 7 29 Ibid xi 1 3 xii Vemos então que tanto Lutero como Calvino insistem na independência entre Igreja e Estado mas traçam a linha divisória entre essas duas hierarquias em pontos muito diferentes O território em disputa cobre a maior parte do funcionamento ter reno da Igreja e noudamente a forma de oianização externa da Igreja Para Lutero poucas orientações de caráter vinculatório quanto ao governo da Igreja são encontra das nas Escrituras o que o predispõe a aceitar grande parte do que é tradicional ou parece ser vantajoso nas circunstâncias Para Calvino a comunidade política da Igreja deve conformarse às Escrituras e nem a tradição nem o governo temporal devem ter permissão para exercer autoridade nessa área Ora se essa área controversa for entregue ao Estado como quer Lutero tornase cada vez mais difícil para a Igreja manter a sua própria autonomia ou melhor teonomia mesmo dentro do que Lutero reconhecia como a esfera própria da Igreja E se for concedida a esu última como quer Calvino a Igreja será constantemente tentada a ampliar a esfera da disciplina de modo a afir mar sua superioridade e autoridade sobre o Estado Em tese embora nem sempre na prática ambas as tentações são rejeitadas pelos reformadores Embora divirjam na delimitação das duas esferas concordam que são se paradas e não devem ser confundidas Mas isso não significa que a Igreja e o Estado não devam cooperar Cada um é auxiliado em seu trabalho correto pela existência e apoio do outro A ordem civil é necessária para o bemestar da Igreja escreveu Calvino como título do capítulo sobre o governo dvil na primeira edição das Institutos e por outro lado a existência de uma Igreja pura é itajosa para o Estado pois todos confessam que nenhum Estado pode ser estabelecido com êxito a menos que a piedade seja sua primeira preocupação Igreja e Estado são como os gêmeos de Hipócrates quando um deles está doente o outro adoece também e só juntos é que podem ter saúde Podemos preencher alguns dos detalhes da cooperação entre Igreja e Estado ao contemplar as funções que Lutero e Calvino atribuem aos poderes espirituais e tem porais respectivamente Para ambos reformadores o governo temporal preocupase não apenas com a manutenção da vida social e da moral externa mas também tem responsabilidade pela manutenção da verdadeira adoração e serviço de Deus O Es tado tem o direito e de fiito a obrigação se for necessário de purificar e reformar a Igreja de acordo com a Palavra de Deus restaurandolhe a forma da verdadeira Igreja uma parte essencial da qual devemos lembrar é a independência da Igreja e sua dis tinção do poder secular Esta afirmativa pode parecer negar a separação entre Igreja e Estado mas dois aspectos devem ser observados em primeiro liar a ingerência do poder secular no reino próprio da Igreja não importa como se define esse reino é uma ação emergencial e não uma característica regular e em segundo lugar a autoridade temporal está habilitada a intervir apenas para restaurar para a Igreja o Cristianismo do Novo Testamento O príncipe piedoso é obrigado a restaurar a forma e a função que a Igreja tem nas Síradas Escrituras caso contrário sua intervenção é totalmente M a r t in h o L u t e r o e J oAo C a l v in o 2 9 5 30 Ibid XX 9 31 GJvin HomiUes on I Samuel 38 CR XXDC 659 íltim a A relação adequada e normal entre Igreja e Estado é o apoio e encorajamen to mútuos entre dois iguais O Estado portanto tem uma dupla função Tem deveres tanto para com a co munidade civil como para com a Igreja Tanto Lutero como Calvino veem o governo primordialmente como um dique contra o pecado ou um remédio para os vícios Lutero reluta um pouco como teólogo em dizer muito sobre como o Estado deve re primir o mal exceto nos termos mais gerais mas Calvino náo hesita em entrar em de talhes precisos o governo temporal existe para adaptar nossa conduta à sociedade hu mana para adequar nossos costumes à justiça civil para conciliarnos uns aos outros para acalentar a paz e a tranqüilidade geral Deve cuidar dos pobres deve erguer escolas e pagar os professores deve cuidar das universidades e assim por diante Com relação à Igreja visível o Estado deve fornecer apoio material para os pastores e o culto da comunidade cristã deve promover e manter o culto extemo de Deus de fender a sã doutrina e a condição da Igreja Deve cuidar para que nenhuma idolatria nenhuma blasfêmia contra o nome de Deus nenhuma adúnia contra a Sua verdade nem outras ofensas à religião brotem e sejam disseminadas entre o povo em suma que uma forma pública de relão possa existir entre os homens Mas o Estado não tem poder de arbítrio ou o direito de decidir o que é a sã doutrina ou a verdadeira Igreja Em tais assuntos deve aterse ao ensino claro da Palavra de Deus Contudo mesmo que os ensinamentos das Sagradas Escrituras sejam tão inequívocos como acredita Calvino é difícil aiumentar que no nível prático cons manter a distinção entre Igreja e Estado de modo tão claro quanto deveria de acordo com suas próprias premissas Sempre foi difícil separar com clareza as esferas da Igreja e do Estado e Lutero e Calvino como vimos não concordam inteiramente no que se refere a esta questão Ambos porém restringem a Igreja de modo muito mais rigoroso que o padrão medie val e o fàzem com o fundamento de que só assim pode a Igreja ser a Igreja e o Esudo ter a dignidade e autoridade que são corretamente os seus Não desejam ser ligados à doutrina das duas espadas ou a qualquer tipo de cesaropapismo Só pode haver uma espada e esta pertence apenas ao governo secular O governo espiritual nega sua pró pria natureza quando usurpa a função própria do governo secular e o inverso também é verdadeiro Em um sentido mais profundo Igreja e Estado juntos formam uma uni dade na medida em que ambos são expressões da soberania de Deus mas é um erro desastroso tentar concretizar essa unidade de modo prematuro Igreja e Esudo devem colaborar é verdade mas apenas como servos de Deus sepaudos porém iguais 4 Teologia e Política A teologia e o ensino laico como a Igreja e o Esudo devem restringirse às suas esferas adequadas Nem a teologia nem a filosofia são agora a Rainha das Ciências 2 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 32 Calvin Ins IV xx 2 33 Calvin Letter to the King ofEngland CR XTV 40 34 Calvin Commentary on Isaiah CR XXXVII 211 Ins IV xx 2 3 mas cada uma delas é uma rainha dentro dos limites de seu próprio terreno O teólo go náo pode pretender ser uma autoridade em tudo deve reconhecer as limitações de sua competência Por que deveria eu ensinar um alfaiate a fàzer um terno pergunta Lutero Ele sabe fazêlo por contra própria Vou apenas dizerlhe como fàzer bem o seu trabalho de maneira cristã O mesmo acontece com o príncipe Vou apenas dizer Ihe que deve agir como cristão A teologia ocupase de questões de fé e sua autoridade são as Sagradas Escrituras que em sentido algum se propõem ser um livro didático para os políticos como não o são para o alfàiate Nos escritos apostólicos não devemos procurar uma exposição diferente dessas questões pois seu objetivo não é estabelecer uma comunidade políti ca mas fundar o reino espiritual de Cristo No entanto é preciso que o teólogo diga ao político que deve agir como cristão e as Sagradas Escrituras têm muito a dizer sobre o comportamento dos governantes Nem Lutero nem Calvino hesitavam muito em aconselhar e repreender governantes muitas vezes em termos muito francos A limitação que colocam sobre a teologia pa rece ser esta a teologia não pode oferecer orientação infelível para todos os dilemas da vida política nenhum modelo universalmente válido de sociedade ideal e o teólogo como tal não tem nenhuma qualificação específica para o exercício do poder político Tais questões não podem ser mais do que periféricas à teologia A teologia não pode substituir a arte ou a ciência da política A filosofia política não pode ser absorvida pela teologia tal como o Estado não pode ser absorvido pela Igreja Deveria porém haver uma espécie de diálogo mesmo que apenas para garantir que nenhum dos dois ultra passasse os limites Que a filosofia política jamais sugira que pode penetrar no reino celestial de Deus nem a teologia que pode governar o reino deste mundo Se a orientação política a ser recebida pela teologia e pela Sirada Escritura é necessariamente limitada e insuficiente a quem devemos recorrer para obter orienta ção A atividade política dizemnos é baseada na razão e não na revelação Conforme explica Lutero Deus fez o governo secular sujeito à razão porque não terá jurisdição sobre o bemestar das almas ou questões de valor eterno mas apenas sobre os bens corporais e temporais que Deus colocou sob o domínio do homem Por esse motivo nada é ensinado no Evan gelho sobre como deve ser mantido e regulado o governo secular exceto que o Evangelho ordena que o povo honreo e não se lhe oponha Portanto os infiéis podem fàlar sobre tais assuntos e ensinálos muito bem como já o fizeram E para dizer a verdade são muito mais hábeis em tais assuntos que os cristãos Quem quiser aprender e tomarse sábio no governo secular que leia os livros e escritos pagãos M a r t in h o L u t e r o e J oAo C a l v in o 2 9 7 35 Luther m lOiü 38010 36 Calvin Ins TV xx 12 37 Luther Psam lOI AE XIII 198 Se desejarmos orientação na política devemos nos voltar não tanto para as Escri turas como para a experiência para a razão que generaliza a história sagrada e profana a tradição e a íilosoíia O próprio Aristóteles a quem Lutero rotulou como esse pagão maldito vaidoso embusteiro quando avaliou sua influência sobre a teologia torna se uma autoridade de grande reputação quando é político o assunto em debate Estou convencido de que Deus deu e preservou livros pãos tais como os dos poetas e historiadores como Homero Demóstenes Cícero Tito Lívio e mais tarde os melhores juristas de antanho para que os pagãos e ateus também possam ter seus profetas apóstolos e teólogos ou pastores para seu gpverno secular Assim tinham eles Homero Aristóteles Cícero Ulpiano e outros tal como o povo de Deus tivera seus Moisés Elias Isaías e outros e seus imperadores reis e príncipes como Alexandre Augusto etc foram seus Davis e Salomóes Mas a capacidade de governar bem não é apenas o resultado do estudo dos livros e exemplos corretos A razão e o juízo político não foram distribuídos igualmente entre os homens Governar é uma arte especializada para as quais são necessários extraor dinários dotes pois não é apenas uma questão de seguir regras e princípios Mujto poucos são os inovadores políticos verdadeiramente originais os viri heroici o político médio é obrigado apenas a remendar e cerzir e ajudar a si mesmo com leis provérbios e exemplos dos heróis tal como registrados nos livros C O Q u e é o H o m e m 1 Corrupção O homem como já vimos é um ser caído Criado originalmente à imsem de Deus rebelouse contra seu Criador e pela Queda esta imagem sofreu radical distor ção tornandose impossível de reconhecer O homem a criatura de Deus que estava destinada a desfrutar da comunhão permanente com o seu Criador tornouse distante e alienado Onde deveria haver ordem encontrase ora a desordem onde estaria a harmonia a contenda Desde a Queda o homem pertence a dois reinos e não um e em ambos se vislumbram as conseqüências deletérias da corrupção e do pecado Por nutrirem tais opiniões os reformadores com justíça suspeitam da grande escuridão dos filósofos que procuraram um edifício em uma ruína e instalaram a organização na desordem Uma teoria da natureza humana derivada da observação empírica não pode deixar de projetar uma imagem radicalmente falsa que se baseia no homem caído que pela namreza corrompida não tem nem preceitos corretos 2 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 38 LuAer To the Christian Nobility ofthe German Nation PE II 146 39 LuAer Psalm 101 AE XIII 199 40 Ibid p 164 41 Calvin Ins I xv 8 nem boa vontade Uma doutrina racional a priori da natureza humana por outro lado não estaria em melhor situação pois estaria envolvida na corrupção e limitação da razão humana A razão e a observação podem revelarnos muitos fetos interessantes e úteis mas são totalmente incapazes de construir uma teleologia válida Por si só não podem dizernos nada de valor sobre a origem e o destino do homem Podem descrever a ruína e até mesmo instruirnos sobre como mantêla e conservála e esta é uma função importante e útil mas somente a revelação pode descrever o edifício concluído e supervisionar sua restauração Mas o que queremos dizer quando dizemos que a razão foi corrompida Calvino entra em uma polêmica com os filósofos que diz ele em geral afirmam que a razão habita na mente como uma lâmpada que lança luz sobre todos os seus conselhos e como uma rainha rege a vontade que é tão imptnada de luz divina que se torna capaz de prestar consultoria para os melhores e tão dotada de vigor que é capaz de comandar de modo períèito e pelo contrário o juízo é embotado e míope rastejando entre os objetos inferiores e nunca atingindo a verdadeira visão que os apetites quando obedecem a razão e não se deixam sujeitar pelo juízo são transportados para o esmdo da virmde mantêm uma rota constante transfbrmamse em vontade mas quando escravizados pelo juízo são corrompidos e depravados de modo que deneram em luxúria Essa posição deve ser rejeitada por dois motivos ambos em grande parte basea dos na imitem detalhada da depravação humana percebida pela experiência cristã Por um lado embora a razão seja muitas vezes correta em afirmações genéricas via de regra é pervertida de modo sutil pelo orgulho e egoísmo nos conselhos particulares que dá e por outro lado existe no homem caído uma batalha constante entre a razão e a von tade O bem que eu queria que não feço mas o mal que não quero esse feço A vontade é escravizada e está em inimizade com a razão correta a razão tem objetivos elevados mas rápido se desvia para a futilidade Rejeitando assim o dogma comum de que o homem foi corrompido somente na parte sensual da sua natureza que a razão permaneceu inteira e pouco foi prejudicada Calvino retorna à doutrina das Escrituras e aos ensinamentos de S Agostinho No entanto acusar o intelecto de permanente cegueira de modo a nâo atribuir Ihe qualquer inteligência de qualquer tipo é repugnante não só para a Palavra de Deus mas para a experiência comum Embora a razão humana não seja confiável em teologia e seja um guia inadequado na esfera da salvação e em tais assuntos fra casse antes de atingir seu objetivo caindo de imediato na vaidade ainda tem seu liar correto e produz resultados importantes quando preocupada com objetos infe M a r t in h o L u t e r o e J o Ao C a l v in o 2 9 9 42 Luther Disputation against Scholastic TheoUgy Clause 34 AE XXXI 4 segs 43 Calvin Ins II ii 2 44 Ibid 4 45 Ibid 12 46 Ibid riores isto é os assuntos da esfera secular Como exemplos Calvino aponta questões de política e economia todas as artes mecânicas e as artes liberais Calvino em seguida faz a afirmação um tanto surpreendente de que uma vez que o homem é por natureza um animal social é disposto pelo instinto natural a valorizar e preservar a sociedade e portanto vemos que as mentes de todos os homens têm impressões de ordem civil e honestidade Desta forma Calvino parece argu mentar que os instintos sociáveis são um dos vestígios da imagem de Deus a verda deira natureza do homem que lhe é legada A total depravaçâo do homem diante do trono de Deus não significa que Deus lhe tirou todos os recursos para a vida no reino temporal No entanto náo se pode confiar que o homem caído use de modo correto sequer as quantidades de razão e instinto sociável que lhe foram legadas 2 Coerção Uma vez que o homem é alienado de Deus e hostil a Ele é preciso que seja co ibido para que seja possível a vida neste mundo O orgulho e o egoísmo do homem que o separam de Deus são ao mesmo tempo as raízes do conflito da hostilidade e da alienação entre os homens Fossem suficientes a razão a consciência a educação a harmonia e a iluminação do homem e não haveria necessidade de coerção Porém uma vez que o homem caído pouco sabe sobre Deus justiça ou bondade e uma vez que se recusa até mesmo a suir a luz que lhe resta a coerção precisa ser a base neces sária da vida social Todos os homens mesmo os homens justificados são pecadores que no reino terrestre têm de ser forçados a obedecer A obediência à autoridade é em si como veremos em detalhe um bem e é o único fundamento sobre o qual pode ser construída uma vida política e social estável O homem na sua inocência original não precisava de governo mas o homem caído deve ser subordinado e forçado a uma conformidade exterior com as regras necessárias da vida social pois se não é gover nado supera em ferocidade de longe todos os animais selvagens A coerção é ao mesmo tempo um fireio sobre o pecado um lembrete constante da natureza divina da lei moral e o meio pelo qual Deus em Sua misericórdia oferece ao homem a grande bênção da vida social pacífica D A A u t o r id a d e e s e u s L im it e s 1 O Estado como Servo de Deus Lutero e Calvino lutam em três frentes na tentativa de delimitar e descrever o governo secular Em primeiro lugar devem oporse aos fimáticos tal como os ana batistas que negam que haja lugar para o governo civil e emancipam os cristãos de 3 0 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ín c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 47 Ibid 13 48 Ibid Cf Luther Galatians p 490 49 Calvin CR XXX 487 qualquer tipo de obrigação para com o poder secular Em segundo devem refutar as reivindicações do papado para a absorção do poder secular pela Igreja Finalmente precisam refrear as pretensões dos governantes a quem Deus TodoPoderoso enlou queceu Acreditam que de fato têm o poder de comandar que seus súditos façam o que ordenarem presunçosamente puseramse no lugar de Deus assenhorandose da consciência dos homens e da fé e mandando o Espírito Santo para a escola de acordo com seus cérebros loucos Contra a opinião anabatista Calvino e Lutero provam teologicamente a neces sidade de governo civil como vimos Contra o papa têm de provar a autonomia do Estado sob Deus E contra os príncipes presunçosos precisam demonstrar a autono mia da Igreja sob Deus Já vimos um pouco dos argumentos dos dois reformadores em favor da neces sidade os limites e a independência do governo temporal A soberania de Deus no mundo é total A necessidade de governo temporal é correlativa à necessidade de que a vontade de Deus seja observada entre os homens pecadores seus limites são defini dos pelo fato de que a autoridade política é uma autoridade delegada subordinada e dependente da soberania de Deus sua autonomia terrena emerge de sua dependência direta da Vontade de Deus Em suma todo o poder político emana de Deus para servi Lo não há autoridade que não venha de Deus e as que existem foram ordenadas por Deus Ele o governante é o ministro de Deus Romanos 1314 Temos de estabelecer firmemente a lei secular e a espada para que ninguém duvide de que está no mundo pela vontade e ordem de Deus A origem do governo secular reside na vontade misericordiosa de Deus em proteger o homem de todas as conseqüências de sua desobediência e não na necessidade humana Sua autoridade é uma autoridade delegada por Deus e não pelo povo No pensamento de Lutero e Calvino não há absolutamente nenhum espaço para qualquer tipo de contrato social ou noção de soberania popular O governo secular é um comando de Deus para o bemestar dos homens em um mundo caído Nunca em caso algum deve ser entendido como um artefato de governo humano ou como sendo baseado no consentimento Deve sem pre responder a Deus pelo uso de seu poder e nunca apenas ao povo O Estado então é servo e operário de Deus na Terra É ali colocado para expressar o cuidado de Deus para com os homens para punir os maus e proteger os bons e para o bemestar da Igreja A coerção e o controle não são em si a razão de ser total nem o fim último do governo temporal Este existe para permitir ao homem uma maior aproximação à vida boa que é possível em um mundo caído Podemos dizer que serve o homem mas seria demasiado enganoso dizer que é o servo do homem Do ponto de vista do homem tem direito a todo o respeito pois ao lado do ofício da M artinho Lutero e J o ã o Calvino 3 0 1 50 Luther On Secular Authority PE III 230 51 Ibidp2ò 52 Calvin Commentary on Romam Edinburgh Calvin Translation Society 1844 1849 on 134 53 Luther On Secular Authority PE III 245 Calvin Ins IV xx 2 3 pregação é o mais elevado serviço de Deus e o mais útil ofício sobre a Terra Pode até mesmo ser chamado divino pois os governantes sugerem Lutero e Calvino sáo até algumas vezes chamados de deuses nas Escrituras p ex no Salmo 82 2 Formas de Governo A questão da forma e estrutura que o governo secular deve assumir como servo de Deus encontrase na fronteira delicada entre teologia e íilosoíia política e tanto Calvino como Lutero mostram sinais de malestar quando se sentem obrigados a íãlar sobre o assunto Obviamente algumas ideias teológicas e bíblicas são relevantes e mesmo necessárias para o tratamento desta questão mas é óbvio também que outros critérios além das Escrituras são adequados do ponto de vista funcional A clareza da divisão entre teologia e filosofia se turva pela tensão entre a negação dos reformadores de sua competência como teólogos nesta área e sua clara convicção de que mais uma vez como teólogos têm uma contribuição indispensável a dar para a discussão A legitimidade de sequer perguntar qual é a melhor forma de governo preocu pava Calvino em particular As autoridades sob as quais vivemos são servas de Deus ordenadas por Ele e isso torna presunçoso suscitar a questão de seu direito O fato de que existem é prova de que Deus as instalou no poder e portanto têm direito ao respeito e à obediência É bastante impróprio para o cidadão comum suscitar ques tões abstratas de direito E o empirismo astuto de ambos os reformadores se revela de modo nítido quando questionam o valor da especulação racional sobre esta ques tão A resposta depende das circunstâncias E embora o governo como tal seja um bem indispensável as várias formas de governo têm dentro de si tantas possibilidades para o bem e o mal que é praticamente impossível discernir qual é a melhor Este assunto é de fato periférico para os reformadores É essencial algum tipo de governo para a vida social e um bom governo pode trazer muitas bênçãos tem porais para os homens Contudo mesmo a mais cruel das tiranias pagãs é impotente para extinguir a chama da fé No entanto ambos os reformadores vão além de dar conselhos aos governantes sobre o modo como devem comportarse como cristãos e aportam percepções teológicas pertinentes ao problema de qual é a melhor forma de Estado Param antes de construir um estado ideal em parte porque não veem isso como a função do teólogo ou do cidadão privado em parte porque suspeitam que um projeto como este seja presunçoso e tenda a uma glorificação do Estado em si e a uma desconsideração de sua função transitória e limitada A doutrina da perversidade do homem é a principal contribuição da teologia neste campo e atua como um freio sobre qualquer tipo de utopia Entretanto são radicalmente diferentes as conseqüên cias detalhadas a que chegam Lutero e Calvino a partir deste princípio 3 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 54 Luther Commentary on Psalm 82 AE XIII 51 Cf Ins IV xx 25 55 Calvin Ins IV xx 8 Romans 1313 Commentary on I Peter Edinburgh Calvin Ttanslation Society 1855 on 21314 Luther A TreatiseofGoodWorks PE I 263264 Lutero percebe a corrupção da natureza humana como inevitavelmente ampliada em uma coletividade e por conseguinte como um argumento poderoso em fàvor do governo monárquico Se é preciso sofrer injustiça é melhor sofrêla dos governantes de que os governantes sofreremna de seus súditos Pois a multidão não tem moderação e não a conhece e a cada indivíduo aderem mais de cinco tiranos Ora é melhor sofrer a injustiça de um tira no isto é a partir do governante do que de inúmeros tiranos ou seja da multidão Lutero náo distingue de fàto entre a democracia e o governo da multidão que enxerga como a negação de todo governo ordenado A multidão não pode jamais ser ou cristã ou verdadeiramente razoável A fé a justiça e a razão podem pertencer a indivíduos mas nunca à multidão que em tudo se excede A monarquia permite a possibilidade de que governe um príncipe cristão justo e razoável porém mesmo a tirania e a irracional selvageria de um mau príncipe não pode ser tão ruim quanto o domínio da multidão O respeito e a obediência para com a autoridade secular é um prérequisito da vida social estável mas não pode sobreviver no ambiente da democra cia A monarquia é a melhor forma de governo mas não necessariamente a monarquia absoluta pois Lutero não hesita em colocar limites morais e religiosos sobre o exercício do poder político e está disposto a reconhecer o valor das travas constitucionais tais como as da Dieta Imperial visàvis o Imperador sobre o monarca A partir do princípio da depravaçâo do homem Calvino chega a sua primeira conclusão que os governantes devem ser governados ou em outras palavras que de veria haver algum sistema de freios e contrapesos Assim embora admita que todas as formas de governo têm pontos fracos e susceptíveis de perversão dá preferência a algum tipo de governo aristocrático quer com base na chancela popular ou não por que devido aos vícios ou defeitos dos homens é mais seguro e mais tolerável quando vários governam para que possam assim mutuamente resistir instruir e admoestar uns aos outros e se alguém estiver disposto a ir longe demais os demais serão os cen sores e mestres que refrearão seu excesso Calvino não crê que freios e contrapesos no exercício do poder político agindo dentro do governo sejam capazes de de alguma forma enfraquecer a soberania de Deus na verdade são um freio constante para ten dência inerente aos governantes de presunção contra Deus e tirania sobre os homens A liberdade e uma constituição republicana são grandes bens Mas são dádivas de Deus e não podemos exigilas ou definilas ou tentar obtêlas por nós mesmos O cristão não deve ser um revolucionário utópico Calvino valoriza a eleição popular com salvardas contra o excesso A eleição é uma característica da Igreja devidamen te ordenada e também um grande privilégio e responsabilidade quando é ampliada para a esfera do governo secular Mas em nenhum dos dois casos Calvino idolatra M artinho Lutero e J oAo Calvino 3 0 3 56 Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 45 57 Ibid p 4548 50 On Secular Authority PE III 237 Psalm 101 AE XIII 16061 58 Calvin Ins IV xx 8 Cf Sermons on Deuteronomy CR XXVII 45360 a democracia e não vê utilidade nas noções de soberania popular Na Igreja uma eleição conduzida de modo adequado pode ir além de reconhecer o chamado anterior de Deus sobre um indivíduo para um ministério específico e no Estado o processo eleitoral é da mesma maneira o simples reconhecimento de que Deus elevou uma pessoa adequada para um determinado cargo O poder e a autoridade emanam de Deus e não dos eleitores e um m estrado eleito tem direito a obediência e respeito em nada inferiores ao de um soberano hereditário A liberdade e o direito de eleger seus próprios governantes são bons mas não de importância máxima pois como Calvino insiste em nos lembrar Não importa qual sua condição entre os homens nem sob que leis vive já que neles o Reino de Cristo não existe 3 Que Toda Alma Esteja Sujeita às Autoridades Superiores Uma vez que a autoridade política é serva e representante de Deus por lhe ser mos obedientes estamos sendo obedientes ao próprio Deus Os homens deveriam obedecer aos governantes como Seus ministros e sujeitarse a eles com todo o temor e reverência como diante do próprio Deus Um mau magistrado até mesmo um tirano deve ser obedecido O direito do príncipe à obediência nâo está condicionado a seu cumprimento de seus deveres para com seus súditos tal como em Occam e Marsílio nem mesmo depende de sua situação diante de Deus cujo procurador é tal como em Wyclif Devemos a nossos governantes não apenas nossa obediência mas também nossas preces e notese nossa crítica franca caso seja necessária Este dever de obediência é formulado de modo claro nas Escrituras Sagradas como em Roma nos 13 Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores Por isso quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação Pelo que é necessário que lhe estejais sujeitos não somente por causa da ira mas também por causa da consciência Este comando claro e inequívoco de Deus expresso nas Escrituras Sagradas é concebido em si mesmo como um motivo plenamente adequado para a obrigação da obediência Entretanto muitos motivos subordinados são citados por Lutero e Calvino para mostrar que aqui a vontade de Deus coincide com o bem do homem Nenhum governo pode ser de todo ruim e qualquer governo conquanto corrupto é melhor do que nenhum governo A forma de governo civil independente da defor midade e da corrupção que possa ter é sempre melhor que a ausência de autoridade principesca Assim como o mau comportamento de uma das partes em uma deter minada situação não justifica a ruptura do instituto do casamento assim o mau com portamento do príncipe não justifica a rebelião que é interpretada como um ataque 3 0 4 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 59 Calvin Ins IV iii 1315 60 Ibid XX 1 61 Luther Psalm 82 AE XIII 44 62 LuAer WA LII 189 Calvin Commentary on Psalm 82 on vs 2 63 Calvin Commentary on 1 Peter on 214 ao governo como tal Em segundo lugar cada povo recebe o governo que merece um bom governante manifesta a graça de Deus um tirano Sua ira Devemos ser gratos por um bom governo mas nenhuma tirania pode expressar um juízo maior do que merecem nossos pecados Em terceiro sofrer a injustiça náo destrói a alma de ninguém ao contrário melhora a alma embora cause perda sobre o corpo e a propriedade mas cometer injustiça por exemplo resistir isso destrói a alma embora se possam obter todas as riquezas do mundo Pois o poder temporal náo pode causar nenhum dano pois nada tem a ver com a pregação e a fé e os três primeiros Mandamentos A obediência a um governante injusto pode ser uma cruz que devemos carregar neste mundo Retribuir o mal com o mal seria para o cidadão comum desobedecer a Deus e prejudicar sua própria alma A resistência envolve a usurpação desautorizada do poder de julgamento e condenação de Deus e é portanto ilegítima cf seção F23 adiante Finalmente na obediência reside o fundamento necessário para toda a vida social estável Lutero não se envergonha de pintar até os tártaros e os persas como exemplos de quanto contribuem para a construção de sociedades fortes e saudáveis os hábitos de obediência profundamente arraigados Porém apesar de tudo o cristão pode rir na cara do tirano no momento exato em que o obedece pois sabemos que se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer temos de Deus um edifício uma casa não feita por mãos eterna nos céus II Coríntios 51 ou como proclamou Lutero em um de seus grandes hinos Sim que a Palavra vencerá Sabemos com certeza E nada nos assustará Com Cristo por defesa Se temos de deixar Parentes bens e lar Embora a vida vá Por nós Jesus está E darnosá Seu reino 4 Devemos Obedecer a Deus e não aos Homens Não se deve entender a doutrina de obediência dos reformadores apenas como uma interpretação de Romanos 13 para atingir um equilíbrio e evitar distorcer o testemunho das Escrituras devemos atentar também para trechos como as palavras de Pedro perante o conselho Importa antes obedecer a Deus que aos homens Atos 529 É relevante determinar quando se pode ou deve desobedecer as autoridades M a r h n h o L u t e r o e J oAo C a lv in o 3 0 5 64 Luther A Treatise o f Good Works PE I 263 65 Luther Eirifeste Burg trans Thomas Carlyle 66 NT Hindrio Adventista do Sétimo Dia Tatuí SP Casa Publicadora Brasileira 6 ed 2009 superiores uma vez que a desobediência às autoridades constituídas não é uma ques tão superficial como vimos A decisão não pode ser deixada nas mãos de caprichos individuais nem ao indivíduo oísta A injustiça a tirania e a opressão em si não constituem desculpas para a desobediência Também não estamos autorizados a deso bedecer porque a obediência nos causará sofrimento No entanto somos sujeitos aos homens que nos governam mas somente no Senhor Se comandarem algo contrário a Ele não Úies daremos a menor atenção Não se justifica violar o daro mandamento de Deus a fim de obedecer aos homens Na elaboração das implicações deste posicionamento é importante não esquecer a distinção entre os dois reinos Um magistrado que se recusasse a condenar um cri minoso alegando que Cristo disse Não julgueis para que não sejais julgados não es taria obedecendo a Deus e nem aos homens estaria apenas confimdindo o Evangelho com a lei Estaria na verdade desobedecendo a lei divina do amor expressa de forma adequada a sua situação Mas Lutero dá dois exemplos específicos de situações em que seria permitida a desobediência A primeira é quando somos chamados a cometer um ato de clara injustiça contra outros Assim se um príncipe desejasse entrar em guerra e sua motivação fosse manifestamente injusta não deveríamos suilo nem auxiliálo uma vez que Deus ordenou que não devemos matar nosso próximo nem cometer injustiça contra ele Da mesma brma se nos ordenasse dar felso testemunho roubar mentir ou enganar e assim por diante Aqui devemos desistir de bens honras corpo e vida para que prevaleçam os mandamentos de Deus Devemos sofirer a injustiça sem reclamar mas em hipótese alguma nos tornar mos parceiros dela e a norma a ser aplicada para determinar o que é justo é a lei divina e natural apresentada de modo perfeito nas Escrituras e aplicada pela razão e pela cons ciência a situações específicas O segundo caso de desobediência justificável é quando os poderes seculares extrapolam sua esfera própria e ousam prescrever em questões de crença e culto contrariamente à Palavra de Deus assim assenhorandose da consciên cia dos homens e da fé e mandando o Espírito Santo para a escola de acordo com seus cérebros loucos Neste caso não lhes daremos a menor atenção E mais uma vez devese nour que o critério para a desobediência justificável não é apenas a consciência pessoal do indivíduo nem seus sentimentos piedosos nos quais não se deve confiar a menos que sejam enraizados na Palavra de Deus Contudo enquanto a desobediência é permissível e de fato obrigatória em tais situações a resistência violenta nunca é Resistir à espada seria confundir os dois reinos presumindo que o reino espiritual encontre justificativa em assumir a espada que devidamente só pertence ao reino temporal Na ausência de qualquer teoria de 3 0 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph C ropsey 67 Calvin Ins IV xx 32 Italics supplied 68 LuAer OfGood Works PE I 271 69 LuAer On Secular Authority PE III 230 contrato social soberania popular ou governo por consentimento não há íimdamen tos para os súditos tentarem mudar o governo por meio da violência Os comandos do governante temporal que forem claramente contrários à Palavra de Deus serão em si mesmos ilegítimos mas nem mesmo uma concatenação de tais atos destrói a autoridade do governo como tal ou justifica a rebelião ou mesmo a ameaça da força como Calvino sempre assinalou de modo categórico em suas cartas aos protestantes franceses perseguidos A desobediência referese a comandos específicos a resistência visa a derrubada da autoridade O que então deve fazer o cristão quando confrontado por um governo que constantemente tenta obrigálo a desobedecer a Palavra de Deus e o persegue por seus escrúpulos Três possibilidades lhe estão abertas Em primeiro lugar se a desobediência envolve grande sofrimento pode ser possível fugir para outro estado menos tirâni co obedecendo a determinação de Mateus 1023 Quando porém vos perseguirem numa cidade frigi para outra Em segundo se a fuga é por uma razão ou outra desa conselhável ou impossível devese simplesmente sofrer recusandose tanto a obedecer os comandos ilegítimos como a desobedecer a Deus por resistir com violência à auto ridade secular Em terceiro tanto Lutero como Calvino debtam uma pequena brecha que parece apresentar uma justificação condicional para a resistência em determinadas circunstâncias bem definidas Lutero ao menos no fim da vida estava preparado para admitir que o direito positivo imperial possibilitou conceber a resistência legítima ao imperador por parte dos príncipes eleitores em um determinado número de casos Calvino por sua vez argumenta no mesmo sentido Ora se houver alguém que hoje for eleito magistrado nomeado para moderar a licen ciosidade dos príncipes como os éforos que um dia puseramse contra os reis esparta nos ou os tribunos do povo contra os cônsules romanos ou os arcontes contra o Sena do ateniense e possivelmente é o mesmo poder que os Três Estados empregam hoje em todos os reinos sempre que se reúnem como uma assembleia de notáveis então longe mim de proibirlhes suportar em sua função oficial a feroz licenciosidade dos Príncipes que se conspirarem indefesos na opressão do Príncipe e tormento dos cidadãos mais humildes eu os declararia culpados de violação criminosa da fê porque enganosamente traem a liberdade do povo do qual se sabem os guardiões desados por Deus preciso entender bem esta breve passagem que viria a ter conseqüências fu nestas para o desenvolvimento posterior do pensamento político calvinista Os ms trados subordinados fezem parte do governo civil mas mesmo se eleitos não são de modo algum os representantes da soberania popular Sua autoridade como a do prín cipe vem de Deus e deixar de usála para a sua finalidade pretendida de assegurar o bem comum mesmo quando implicar uma resistência ao monarca é ser desobediente a Deus e atrair seu julgamento Sequer é feita a pergunta se o povo em geral tem direito M a r t i n h o L u t e r o e J o ã o C a lv in o 3 0 7 70 NTi Dêmarchos Archontes ou Arcontes do povo 71 Calvin Ins IV xx 31 trans D E a apoiar pela força os magistrados subordinados ou a assembleia política contra a monarquia Calvino consideraria esta uma questão muito difícil de responder Aqueles que sofrem com paciência sob um tirano injusto devem lembrarse de que Deus é seu juiz e que este não pode escapar da condenação de Deus O modo como este julgamento é expresso será apresentado na seção F 5 Tolerância É impossível descobrir nos escritos de Lutero uma abordagem coerente para a questão da tolerância e da liberdade religiosa Mesmo se pudéssemos com justiça asseverar que seu pensamento se desenvolve em geral a partir de uma tolerância razo ável da dissidência em seu período inicial chegando a uma veemente adesão à perse guição na parte final de sua vida ainda sobejam contradições e é impossível interpretar a maioria de suas afirmações sobre esta questão como algo além de reações impulsivas e muitas vezes impensadas a situações particulares Lutero nega aos papistas o direito de perseguilo e ao mesmo tempo se regozija em ser perseguido pois esta é uma marca necessária da verdadeira Igreja Não tenho medo porque muitos dos grandes perseguemme e me odeiam Pelo contrário sou consolado e fortalecido já que em todas as Escrituras perseguidores e inimigos em ge ral estão errados e perseguidos certos A maioria sempre apoia a mentira e a minoria a verdade Todavia mais tarde quando a maioria o apoiava este princípio foi des cartado e Lutero não hesitou em defender com as palavras mais duras a perseguição de indivíduos dissidentes como Carlstadt e Münzer ou grupos como os camponeses anabatistas rebeldes e os judeus No período inicial falou muito da necessidade de deixar a Palavra livre para realizar sua própria obra e da impossibilidade da fé imposta e por este motivo defendeu a tolerância geral com a convicção de que prevaleceria a verdade A tolerância da heresia acreditava poderia avivar ao invés de enfiaquecer a fé O Espírito escreveu que os jebuseus e cananeus deveriam ser deixados na terra prometida para dar aos israelitas prática na guerra Isso se refere aos hereges E a tolerância deve ser concedida até mesmo aos judeus 3 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 72 As atitudes dos reformadores quanto à tolerância sáo apresentadas e discutidas com grande discer nimento e equilíbrio nas obras de R H Bainton em particular em seu artigo a respeito do de senvolvimento e a coerência da atimde de Lutero quanto à liberdade religiosa The Oevelopment and Consistency of Luthers Attitude to Religious Dberty The Harvard Theological Review v XXII n 2 na introdução de sua edição da obra de Castellio Conceming Heretics New York Co lumbia University Press 1935 bem como em seus livros The Tmvail o f Religious Liberty London Lutterworth Press 1953 e Hunted Heretic The Life and Death ofM ichael Servetus 15111553 Boston Beacon Press 1953 Os parágrafos que se seguem dependem muito dessas obras das quais são feitas muitas citações 73 WA 7317 1521 74 m 1624 f 1518 75 WA 2336 1523 Sua atitude para com os judeus seguidores de Roma e seitas dissidentes enrije ceuse com rapidez e suas justificativas da perseguição assumem várias formas muitas vezes contraditórias Em Sermão das boas obras 1520 estabelece que um príncipe é um exemplo para o povo pois o povo simples crerá como ele É portanto seu dever crer e manter a verdadeira religião e o príncipe não tem poder para decidir qual é a verdadeira religião No Comentário sobre o Salmo 86 1530 discute quais hereges devem ser perseguidos e conclui que o poder secular deveria punir aqueles que por motivos religiosos negam a dignidade e a autoridade do governo civil e também aque les que negam as doutrinas que se encontram evidentes nas Escrituras e são aceitas em toda a cristandade pois se trata de uma blasfêmia Ao falar do conflito entre luteranos e católicos romanos Lutero convida o governante secular a julgar entre eles com base nas Escrituras e a ordenar que o partido não bíblico simplesmente mantenha silêncio Entretanto por vezes Lutero é muito mais abrangente e sanguinário em suas exigên cias para a punição de seus adversários Certas vezes íàla sobre a pena de morte para os papistas e os anabatistas outras defende que é suficiente o banimento De qualquer forma porém a Palavra deve ser apoiada pela espada do magistrado civil Algumas das afirmações de Lutero podem ser descartadas como óbvios exageros retóricos porém seria bastante difícil argumentar que nesta matéria Lutero não cria uma confusão infernal entre os dois reinos que distingue de modo tão claro em outros lugares A posição de Calvino é muito mais estável que a de Lutero É dever do mstrado cristão agir contra a heresia mesmo que não seja abertamente sediciosa ou blasfema O magistrado é o tenente ou representante de Deus e portanto deve manter a honra de Deus por todos os meios a seu alcance Pois a heresia é em si é um delito contra a so ciedade cristã e como um ataque direto sobre a honra de Deus é mais abominável que o pior crime cometido por um homem contra outro Erradicar a heresia é uma exigência não só do direito natural como uma tentativa de minar a sociedade como do direito romano especificamente nas medidas contra donatistas e maniqueístas incluídas no Có digo de Justiniano mas é um requisito específico das Soadas Escrituras pois Deus deixa daro que o fàlso profeta deve ser apedrejado sem piedade Devemos esmsar sob o nosso calcanhar todas as paixões da natureza quando está em questão Sua hoiun A partir da perseguição dos santos nas mãos dos governantes ímpios nem Cal vino nem Lutero chegaram à condusão de que um príncipe piedoso devesse tolerar todo tipo de opinião Em seu pensamento não há qualquer vestígio de relativismo ou indiferença que é muitas vezes a base para a tolerância Tampouco é a sua doutrina dos dois reinos outra maneira de afirmar o moderno conceito de separação entre Igreja e Estado A verdade é conhecida e sua preservação contra as agressões do ceticismo é uma questão de vida ou morte com a qual tanto a Igreja como o Estado cada um de sua própria maneira deve preocuparse Nenhuma concessão é possível quando a própria verdade está em jogo M a r t in h o L u t e r o e J o ã o C a l v in o 3 0 9 76 PE I 265 1520 77 AE XIII 61 segs 78 Calvin Commentary on Deuteronomy cap xiii E A L e i Lutero e Calvino reconhecem três tipos de lei a lei divina dada diretamente por Deus na revelação a lei natural que está disponível para e vincula todos os homens e a lei positiva devidamente promulgada e aplicada pela autoridade secular competente Vamos discutir cada uma por sua vez 1 A Lei de Deus A lei divina é eterna imutável e absoluta É a norma suprema e objetiva peran te a qual todas as açóes humanas devem ser julgadas expressa de modo conciso no Decálogo e elaborada em outros pontos das Sagradas Escrituras É dada por Deus de acordo com Lutero com dois objetivos conhecidos tecnicamente como os usos da lei e a estes Calvino acrescenta um terceiro Em primeiro lugar como revela a justiça de Deus e Suas exigências sobre o homem condena pelo pecado e aponta para a necessidade de perdão A lei neste seu uso teológico funciona como uma espécie de espelho mostrando cada homem em si como de feto é em sua depravaçâo e peca minosidade e eliminando a falsa autocompreensão baseada no orgulho Em segimdo a lei serve para impedir que os pecadores cometam o mal escancarado e adquiram a retidão forçada e exortada necessária para o bem da sociedade Em terceiro e aqui Calvino e Lutero divergem para os fiéis é o melhor instrumento a permitirlhes que diariamente aprendam com a maior verdade e certeza que é a vontade do Senhor que aspiram seguir e para confirmálos neste conhecimento Deveriam todas as prescrições legais encontradas nas Escrituras ser consideradas leis divinas obrigatórias para o homem Lutero e Calvino como a maioria dos demais pensadores cristãos mas em oposição a determinados sectários extremistas distinguem entre leis restritas pelo tempo e a eterna lei divina Lutero e Calvino não hesitam em declarar que a lei cerimonial e a maior parte da detalhada legislação econômica e social encontrada no Antigo Testamento pertencem à primeira categoria e portanto sâo ob soletas A lei cerimonial e ritual foi revogada pela Obra de Cristo tal como argumenta a Epístola aos Hebreus e não há nenhuma obrigação para que tentemos reproduzir nos tempos modernos a comunidade política ou código jurídico da antiga Israel São elas decerto úteis e instrutivas como exemplos de organizações políticas íradáveis a Deus mas são condicionadas pelo tempo e pelo meio ambiente e simplesmente não são aplicáveis agora Temos aqui um caso especial de sistema social e econômico do qual muito se pode aprender mas que nunca foi feito para ser servilmente copiado Deve ser considerado tal como grande parte do restante da Bíblia uma espécie de comentário sobre o Decálogo A orientação geral sobre assuntos como a relação entre a Igreja e o Estado pode ser encontrada tanto no Antigo como no Novo Testamento e neste sentido a Bíblia é a fonte da velha ordem que deve ser recuperada E quanto 310 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 79 Luther Galatians p 297 s Calvin Ins II vii 812 à forma extrema da Igreja onde Lutero encontra a estrutura da Igreja do Novo Tes tamento pelo menos em grande parte limitada pelo tempo Calvino encara a Igreja Apostólica tal como descrita na Bíblia como um modelo detalhado da verdadeira forma da Igreja Obviamente nestas questões estâo sendo aplicados critérios externos às Escrituras a fim de decidir o que é limitado pelo tempo e o que é absoluto Ambos os reformadores rejeitam de modo enfetico qualquer concepção do di reito de padrão duplo do tipo aceito na Igreja medieval Não existem diversas regras de vida mas uma só rra perpétua e inflexível Todos os homens são chamados para a perfeição e todos os homens estão sob o julgamento da lei deixada de lado a velha distinção entre leis que são obrigatórias para todos os homens ou todos os cristãos e os conselhos de perfeição que guiam o religioso os adetas do Espírito O convite para a perfeição está no cerne da lei mas ao longo dos séculos fora obscurecido prin cipalmente por uma má compreensão da justificação a qual assumia que a salvação era possível simplesmente pela obediência a uma série de regulamentos externos Dessa forma Cristo é visto como o melhor expositor da lei divina pois restituiu sua integri dade mantendoa e purificandoa quando obscurecida pela fidsidade e contaminada pela levedura dos fariseus Contudo afirmar a unidade e a universalidade da lei não é negar que as obrigações particulares variem em relação à função muitas vezes a confusão emerge da tentativa de universalizar padrões que são na verdade adequados somente no exercício de uma função específica na sociedade As mesmas obrigações específicas não são vinculatórias para o homem em todas as suas várias funções oficiais e particulares Como estadista ou carrasco um homem pode ser chamado a realizar atos que seriam errados e impróprios quando agisse como pai ou cidadão comum A doutrina moral de Jesus de modo geral lida com a moralidade privada e não foi con cebida para ser aplicada de outra forma Entretanto os padrões funcionais variáveis por meio dos quais é expressa a lei de Deus só estão em conflito na aparência pois o amor é a rainha e senhora de todas as leis e em situações específicas toda lei deve ser testada pela regra da caridade pois este é o cerne de toda a lei verdadeira A lei divina é um convite para a perfeição e santidade mas a perfeição não é inatingível pelo homem caído e portanto a lei deve apontar além de si mesma para o perdão e expiação oferecidos no Evangelho 2 A Lei da Natureza A lei natural é em última análise tanto para Lutero como para Calvino idêntica à lei divina Ao contrário de Aquino e da maioria dos escolásticos os reformadores não falam do direito natural como aperfeiçoado ou completado por uma lei sobrenatu ral Existe apenas uma lei mesmo que possa ser contemplada de diversos pontos de vista A lei tem um uso racional condenar o pecado e apontar para o Evangelho e M artinho Lutero e J oAo Calvino 311 80 Calvin Ins II vii 13 81 Ibid viii 7 um uso civil coibir a imoralidade pública e para Calvino também um terceiro uso entre os redimidos mas a lei em si é sempre única e inalterável Porém a relaçáo entre a lei divina e a lei da natureza tal como a conhecemos não é uma simples identidade É importante observar que com o termo natureza neste contexto entendese a natureza incorrupta e ordenada do homem e do mundo antes da Queda Objetivamente considerada a lei da natureza é a lei de Deus absoluta in condicional e obrigatória para todos os homens Ao contrário da lei revelada de Deus que foi dada a um povo em particular a lei da natureza é em princípio cognoscível por todos os homens É a regra verdadeira e eterna da retidão apresentada aos homens de todas as nações e todos os tempos que pautam suas vidas em conformidade com a Vontade de Deus Pois embora os gentios náo tenham recebido a lei escrita de Moisés todavia receberam a lei espiritual que está estampada em todos tanto judeus como gentios e para com a qual também todos estão obrigados Entretanto uma vez que a corrupção se estende não só à vontade do homem mas também a sua razão e consciência é prejudicado seu entendimento da lei natural Assim há uma diferença e até mesmo algumas vezes um conflito entre a lei divina e a lei natural compreendida e interpretada pelo homem caído O pecado e a corrupção revelamse em constantes tentativas do homem de revisar e alterar a lei da natureza a fim de tornála menos adversa a sua vontade e desejos caídos O pecado obscurece e tolda sua compreensão da lei da natureza de tal modo que a lei divina é revelada para remover as evasões introduzidas pela natureza caída do homem Isso é válido para as duas tábuas da lei Com relação à primeira tábua a medida da lei natural disponível para o homem caído ensinalhe apenas que deveria adorar e servir a Deus mas o que isso envolve como deve servir a Deus e quem é o verdadeiro Deus só pode agora encontrar na lei divina revelada No que diz respeito à segunda tábua um bom exemplo do modo como a lei divina expande esclarece e purifica a lei natural adulterada ou atrofiada é fornecido pela questão da obediência Todo homem perceptivo considera por demais absurdo submeterse a uma dominação injusta e tirânica com a condição de que de algum modo possa ser derrubada e só existe uma opinião predominante entre os homens que é o papel de uma mente abjeta e servil suportála com paciência o papel de uma mente nobre e arrojada revoltarse contra ela Na verdade a vingança por injustiças nâo é considerada pelos filósofos como um vício Porém o Senhor que condena esse espírito demasiado soberbo prescreve a seu povo aquela paciência que a humanidade considera deplorável 3 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 82 ééIVxx 15 83 Luther Romerhrirf 3715 84 Calvin Ins II ii 24 O orgulho perverteu a lei natural subjetiva de modo que a lei divina promulgada pela autoridade tornouse o meio necessário para a restauração da lei objetiva e abso luta da natureza Como descobrir a lei da natureza e aplicála em situações específicas A lei não é inata no homem como tal mas é um padrão externo objetivo estabelecido por Deus passível de ser descoberta pelo menos em parte pelo uso da razão ou em Calvino razão e consciência em colaboração Alguns homens podem ser mais razoáveis do que outros mas nunca é fiicíl encontrar a lei natural Sua descoberta exige cuidadosa reflexão e ponderação de todos os problemas pois a nobre gema denominada direito natural e razão é rara entre os filhos do homem 3 A Lei do Estado A lei do Estado tem como finalidade apenas a manutenção da conformidade exterior com a moral e a disciplina necessárias para a vida social Está relacionada é verdade com a lei divina natural mas não é dedutível diretamente dela A lei divino natural por assim dizer estabelece os limites dentro dos quais o estadista pode de cretar as leis que lhe pareçam mais adequadas à luz das circunstâncias e necessidades políticas A razão a razão caída deve produzir a legislação que as condições parecem exigir sem entrar em conflito com a lei de Deus Entretanto se é verdade que cada nação tem liberdade de promulgar as leis que julga serem benéficas ainda assim estas devem sempre ser testadas pela lei do amor de modo que embora variem quanto à forma sigam o mesmo princípio A lei positiva deve ser obedecida mesmo quando está evidentemente longe de ser perfeita salvo em situações extremas como as discutidas na secção D 4 Lutero em bora defenda esta obrigação de obediência tem um desprezo viril pela lei meramente positiva é a lei doente contra a lei saudável da natureza Sua rigidez inelutável torna inadequada a lei civil Tudo o que é feito com o poder da natureza resulta muito bem sem qualquer lei po sitiva na verdade esta se sobrepõe a todas as leis Contudo se a natureza felhar e for preciso ar de acordo com as leis isso eqüivale apenas a menAgar e remendar nada mais é alcançado além do que é inerente à natureza doente É como se eu criasse uma legra gçral de que como refeição devese comer dois páezinhos e beber um copo pequeno de vinho Se um homem saudável sentase à mesa pode mmto bem consumir quatro ou seis páezinhos e heber uma jarra ou duas de vinho desta forma esse homem necessita de mais do que a lei estipula Entretanto se uma pessoa doente sentase à mesa comerá meio pãozinho e beberá três colheres de vinho Desse modo não cumprirá esta lei além do que permite sua condição enferma ou morrerá se tiver de respeitar esta lei M artinho Lutero e João Calvino 3 1 3 85 Luther Psalm 101 AE XIII 161 86 Calvin Ins IV xx 16 87 LuAer Psalm 101 AE XIII 163 Legislar é tarefa complicada e insatisfatória e muito poucos sáo aqueles que estão devidamente equipados para legislar de tal forma que Aqui é preciso remendar e cer zir e lançar mão das leis ditos e exemplos dos heróis tal como registrados nos livros Assim devemos continuar a ser discípulos daqueles mestres silenciosos a que denomi namos livros Todavia nunca agimos tão bem quanto lá está registrado rastejamos e nos sarramos a eles como a um banco ou uma bengala Seguese que a legislação é uma arte especializada que exige habilidade e em cujos detalhes o teólogo como tal não tem competência relevante Este princípio juntamente com a rejeição do Direito Canônico pelos reformadores traz algumas conseqüências radicais em Lutero Qual é o procedimento correto para nós hoje em matéria de casamento e divórcio Afirmei que este assunto deveria ser deixado para os advogados e estar sujeito ao governo secular Pois o casamento é um fàto bastante secular e exterior tendo a ver com esposa e filhos casa e lar e com outros assuntos que penencem à esfera do governo todos os quais fòram totalmente submetidos à razáo Gênesis 128 Portanto náo devemos interferir com o que decidem e prescrevem o governo e os homens sábios com base nas leis e lu razão Cristo náo age aqui Mateus 53132 como advogado ou governador para pro mulgar ou impor qualquer rulamentação para a conduta exterior F P o l ít ic a c o m o V o ca çã o 1 O Homem e seu Chamado Todos os homens recebem dois tipos de chamados de Deus Por um lado todos os homens apesar de pecadores são chamados à salvação ao reino eterno de Deus Quanto à salvação todos os homens são iguais todos igualmente exigindo o livre per dão de Deus Porém no que diz respeito à vida neste mundo a igualdade desaparece e é substituída por hierarquia e status e os homens encontramse em diversos postos ou vocações onde são obrigados a servir a Deus por meio do serviço ao próximo Tanto Lutero como Calvino rejeitam qualquer possibilidade de uma vocação reli giosa em que o serviço de Deus possa ser isolado do serviço aos semelhantes Cada homem tem diversas fiinçóes diferentes na sociedade que devem ser entendidas como vocações divinas Um homem por exemplo pode ter vocações de marido pai agri cultor e cidadão cada uma com seus deveres e obrigações específicos Em cada um a vocação age como uma trava sobre o egoísmo do homem obrigandoo a olhar para fora e cuidar de seus semelhantes assim como de si mesmo O cuidado de Deus para com a humanidade é expresso basicamente por meio de Sua colocação dos ho mens em vocações em cada uma das quais são instigados a cuidar de seus semelhantes e se tornam de forma consciente ou não máscaras ou véus do próprio Deus os instrumentos de Seu amor 3 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 88 Ibid p 164 89 Luther Commentary on the Sermon on the Mount AE XXI 93 Ora enquanto as vocações sâo boas em si mesmas os homens podem abusar de suas vocações e muitas vezes o àzem ao nâo cumprir os deveres correspondentes ou ao íàzêlo de modo inadequado Mais uma vez grande confusão e desordem são causadas se as vocações não forem mantidas separadas e distintas Seria totalmente errado por exemplo que um mestrado fosse tão rígido e rigoroso em suas relações particulares quanto é forçado a ser quando age na sua íimção judicial Nem devemos impulsionados pela ambição ou pabcão pelas novidades abandonar a vocação em que nos encontramos em prol de outra Isto seria presunção e é só por nossa conta e risco que negligenciamos os deveres que Deus colocou em nossas mãos a fim de procurar algo diferente Este en sinamento salvaguarda a estabilidade da sociedade e reduz a ambição pecaminosa mas não se deve permitir que entre em conflito com o fiito de que muitas vezes o próprio Deus chama os homens para novas funções e Seu chamado nunca deve ser desprezado Em tudo o chamado do Senhor é a fundação e o início da ação correta A vocação do estadista é um chamado divino que deve ser honrado de modo especial pelos homens Como qualquer outro homem na sua vocação o estadista é a máscara ou véu de Deus mas tem direito a singular honra porque é em sentido particular o procurador de Deus No que se refere aos homens na vida política são representantes de Deus Ora é verdade que cada homem é obrigado a obedecer às injunções da lei Mas Deus cuja natureza é amor não é obrigado por esta lei e muitas vezes Seu amor se expressa de maneiras que parecem ser contrárias à lei a que são obrigados os indivídu os Por meio da vocação Deus com frequência obriga os homens a realizar ações que parecem ser contrárias à lei mas na verdade em um nível diferente são expressões da lei do amor Isso fica muito evidente na vocação para a política onde o estadista é obrigado em certas ocasiões em aparente contradição tanto com a lei e com o Evan gelho a recorrer à força coerção e violência Porém A mão que empunha a espada e mata com ela não é mais então a mão do homem mas a mão de Deus que enforca tortura decapita trucida e luta Todas essas são Suas obras e Seus julgamentos E A Lei do Senhor piofbe tnatan mas paia que o assassinato não fique impune o pióprio Lislador põe a espada nas mãos de Seus ministros Por isso é íãdl concluir que nesta matéria não estão sujeitos à lei comum pdo que embota o Senhor ate as mãos de todos os homens ainda assim Ele não ata sua justiça que exerce pelas mãos dos magistrados tal como quando um príndpe proíbe todos os seus súditos de espancarem ou ferirem quem quer que seja ele no entanto não proíbe seus íundonários de executarem a justiça que tenha especialmente confiado a eles M artinho Lutero e Joâo G uvino 315 90 Calvin Ins III x 6 Cf Commentary on the Harmony o f the GospeU Edinburgh Calvin Transla tion Society 184546 under Matt 2221 and Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 34 Commentary on the Sermon on the Mount AE XXI 23 91 Luther Whether Soldiers too can be Saved PE V 36 92 Calvin Ins IV xx 10 A partir da palavra Therefore no texto em inglês esta citação só é en contrada na edição francesa de 1541 É importante ressaltar que esta distinção entre a moralidade privada e a voca cional não implica que não sejam intimamente relacionadas e conexas O estadista não é emancipado de todo o rigor da chamada para a perfeição no que se refere a sua vida privada nem lhe é dada carta branca para suas ações oficiais A ambas embora por vezes de maneiras diferentes e aparentemente discordantes deve expressar o amor e a justiça de Deus 2 O Julgamento de Deus O estadista embora possa ser um deus no campo da política no que tange aos outros homens com direito a obediência respeito e honra aos olhos de Deus é apenas mais um pecador Sua autoridade e sua dignidade são emprestadas e de íàto não pertencem a ele mas a Deus Sua posição lhe traz a especial tentação de supor que os dons que lhe foram confiados são seus para serem utilizados como lhe aprouver e tem dificuldade em aceitar sua dependência e submissão a Deus Porém caso venha a tornarse presunçoso nâo será digno de comparação a um piolho ou uma larva ou qualquer outro verme pois os piolhos ainda são criaturas de Deus enquanto ele é um vilão que foi designado por Deus Seu tenente mas sempre zomba e se esquece do Senhor seu soberano Como se expressa o julgamento de Deus sobre o presunçoso e isso significa no que se refere aos homens governantes injustos e tirânicos Embora seja certo que será julgado na eternidade é verdade também que o juízo de Deus é expresso na história Lutero de modo característico simplifica demais sua verdadeira posição quando ar gumenta que sempre se passa e sempre se passou que aqueles que começam a guerra sem necessidade são derrotados pois admite em outro lugar que o julgamento de Deus nâo se expressa em termos tão simples Todavia a recompensa está no bojo da história e por exemplo tiranos correm o risco de que por decreto de Deus seus súdi tos podem sublevarse e assassinálos ou expulsálos Esse fiito não deve ser enten dido como de alguma maneira justificativa para a resistência Aqueles que se rebelam são portanto culpados diante de Deus Mas a instrumentalidade dos ímpios pode ser em prda por Deus enquanto Ele continua livre de toda mácula Se todos os seus súditos fossem cristãos fiéis o governante não precisaria temer uma insurreição mas já que é impossível que seja assim é prudente acautelarse da ira de Deus expressa pela violência dos ímpios As obras da providência de Deus não dependem da fideli dade dos homens Ou talvez Deus possa incitar nações e governantes estrangeiros a subjugar o príncipe injusto 316 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 93 CR XLI 395 94 LuAer Whether Soldiers too can be Saved PE V 37 95 Ibid p 48 96 Calvin Cabeçalho de Ins I xviii Assim Ele domou o poder de Tiro pelos egípcios a insolência dos egípcios pelos assírios a ferocidade dos assírios pelos caldeus a confiança da Babilônia pelos medos e persas Ciro já tendo antes conquistado os medos enquanto subjugou e puniu a ingratidão dos reis de Judá e de Israel e sua ímpia contumácia após toda sua bondade uma vez pelos assírios outra pelos babilônios Ou Deus pode cercear o tirano pelos magistrados subordinados como vimos ou por um Herói 3 O Herói A política segundo Lutero é normalmente uma questáo de remendar e cerzir Como se pode bem entender mais cedo ou mais tarde a vestimenta se desgasta e precisa de renovação A última eapa de decadência é em geral insuportável tirania e opressão e o agente de renovação o destruidor da velha vestimenta e alfeiate da nova é denominado Wündennann ou vir heroicm Embora seja presimçoso que indivíduos tentem derrubar a autoridade estabelecida ou reconfigurar o Estado Deus coníia a determinados indivídu os em certos momentos essa vocação especial Exemplos de homens que receberam este chamado são Sansão Davi Jeheoiada Ciro Temístocles Alexandre o Grande Augusto e Naamã todos eles o que talvez seja significativo não cristãos O herói recebe seu comando direto de Deus que o instrui e orienta de modo constante Quando Davi queria vencer Golias queriam ensinálo puseramlhe a armadura e o equiparam Sim senhor Mas Davi náo podia usar esa armadura Tmha em mente ou tro mestre e matou Golias antes que pudesse saber como o realizar Pois náo era um aprendiz tampouco treinado que era nesta arte era um mestre treinado para isso pelo próprio Deus O herói não está sujeito às leis e regras que são obrigatórias para os homens co muns ou mesmo os governantes comuns Tem o poder de liderar uma rebelião e o povo pode seguirlhe com justiça É dotado de raros dons de razão e compartilha do co nhecimento de Deus para que possa até mesmo prevalecer sobre a lei ou pelo menos aperfeiçoála pois é ele mesmo a lei viva Sob o seu regime a tirania é destruída tudo melhora e uma nova era se inaira Mas não serve de modelo para as pessoas comuns e ai do homem que sem um chamado especial de Deus tenta imitar o herói O herói de Lutero não pode com justiça compararse ao superhomem de Niet zsche nem tampouco ao herói de Carlyle O fato de ser isento da lei e de que seu po der de inovação e de restauração emanam não de si mesmo mas de ter sido escolhido por Deus e de sua dependência direta de Deus A glória o navio de guerra o poder e a soberania pertencem a Deus e não a ele Seus dons preeminentes são de fato dádivas M a r t i n h o L u t e r o e J oAo C a lv in o 3 1 7 97 Ibid IV XX 30 98 Luther Psalm 101 AE XIII 156 e não devem sugerir uma isenção da mácula do pecado original Como prova disso Lutero aponta que a maioria dos heróis tendo realizado sua obra acaba por terminar mal finalmente cedendo ao pecado da presunção Calvino recusandose a assumir uma visão tão sombria quanto a de Lutero a respeito das potencialidades do governo secular vê o herói apenas como um Provi dencial Libertador da opressão A renovação não é sua função primordial pois este é um aspecto perfeitamente normal da atividade política Uma vez que a política não é somente uma questão de remendar e cerzir não é necessário um alfaiate especial enviado por Deus para a confecção de uma roupa nova L e it u r a s A Luther Martin Commentary on Psalm 101 v XIII p 146 segs áa American Edition o f Luther s Works Ed Jaroslav Pelikan e Helmut T Lehmann St Louis Concordia Publishing House e Philadel phia Muhlenbuig Press 1956 Calvin John Institutes o f tie Christian Religion Ed J T McNeill Trans F L Batdes Library o f Christian CÁurici Philadelphia Westminster Press 1959 II ii 14 1216 2224 III xk 15 IV xx B Luther Martin The Open Letter to the Christian Nobility ofthe German Nation The Works o f Martin Luther 6 v Philadelphia A J Holman Company 191532 v II p 61 segs Luther Martin Secular Authority To what Extent it Should be Obeyed in ibid v III p 223 segss Luther Martin Whether Soldiers too can be Saved in ibid v V p 32 s s Calvin John Institutes I xv 4 68 IV x 112 xi Calvin John Commentary on Romans Edinburgh Calvin Translation Society 1844 1849 On Ro mans 1315 Calvin John Commentary on the Harmony o f the Gospels Edinburgh Calvin Translation Society 184546 On Matt 531 Matt 265256 3 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y R ichard H ooker 15531600 A grande obra de Hooker Ofthe Laws of Ecclesiastical Polity As Leis da Política Edesiástíca foi concebida como um amplo ataque à posição dos calvinistas puritanos da época Conmdo devemos observar que esta posição puritana de diversas maneiras um tanto inconsistentes divergiam da posição do próprio Calvino Os puritanos na Inglater ra os huguenotes na França e Knox e seus seguidores na Escócia alegavam ser discípulos de Calvino e atribmam grande autoridade a seus escritos Entretanto na verdade altera ram grande parte do sistema doutrinário de seu mestre em particular seus ensinamentos políticos e ao enfatizar determinados aspeaos negligenciar outros e introduzir conceitos alheios produziram uma teologia política distinta e muito menos coerente O cerne de suas inovações está em um completo menosprezo pela validade da razão humana mesmo nas esferas que Calvino reconhecera como próprias dela junta mente com a afirmação da autoridade exclusiva e da total adequação das Siradas Es crituras como guia em todas as coisas John Knox por exemplo não demonstrou em seu The First Blast ofthe Trumpet against the Monstrous Regiment ofWomen A Primeira Rajada da Trombeta contra o Monstruoso Regimento das Mulheres 1558 qual quer desconforto em defender quase inteiramente com argumentos bíblicos a estrita proposição política e jurídica de que mulher alguma pode assumir o poder político Os puritanos ingleses por sua vez sugeriram como um princípio para a orientação do Parlamento que nada fosse feito nesta ou em qualquer outra matéria mas aquilo para o que temos a garantia expressa da Palavra de Deus Tais declarações retiram todos os limites da autoridade das Escrituras e deixam a razão autônoma sem lugar ou função Como resultado dessa inovação sofre uma mudança o entendimento do que são as Escrituras Já não são mais apenas um registro dos poderosos atos de Deus aos quais se prende a fé a matériaprima do dogma o guia para a imitação de Cristo o arauto da salvação o vaso de barro no qual se encontra o tesouro de Deus São 1 Na edição de Laing das obras de Hooker Edinburgh 1846 v IV 2 The First Admonition to ParUament in Puritan Manipstoes ed Frere and Doilas London 1907 Citado por A P DEntreves The Medieval Contribution to Political Thout Oxford Oxford Uni versity Press 1939 p 104 entendidas agora como um compêndio de total infalibilidade e adequação para a orientação moral e política um livro texto em que o estadista aprende como governar o filósofo como escapar das ilusões da razão corrompida Quase desaparece o elevado grau de perspicácia crítica com o qual Lutero e Calvino abordaram as Escrituras que é substituído por um novo tipo de bibliolatria Tal mudança tornou quase inevitáveis as declarações teocráticas A Igreja é a guardiã da Palavra de Deus e é dever de seus ministros pregála Ainda uma vez que esta Palavra é o único guia seguro na política como em tudo mais os reis e os magis trados devem submeterse à orientação da Igreja e de seus ministros em todas as coisas Thomas Cartwright o clérigo puritano contra cujas obras se volta uma porção consi derável At As Leis da Política Eclesiástica estava mais distante do que se dava conta dos ensinamentos de seu mestre Calvino quando escreveu que os reis deveriam lançar de si suas coroas diante da Igreja e lamber a poeira de seus pés Mas foi a questão da resistência que desvelou o conflito entre Calvino e seus suces sores A siestão de Calvino longe de inequívoca de que os magistrados subordinados podem limitar o poder dos reis embora baseada mais no direito constitucional do que na autoridade das Escrituras veio a ser a bandeira que os calvinistas radicais pregaram em seu mastro O Vindiciae contra Tyrannos escrito por um huguenote francês desco nhecido no último quarto do século XVI afirmava que mesmo que apenas um magis trado estivesse preparado para resistir a um daqueles reis que jogam com o pobre povo como se fossem bolas de tênis era dever de todos os súditos cristãos pegar em armas para derrubar o tirano Em defesa do direito e na verdade da obrigação de resistência o autor do Vindiciae argumenta que o Antigo Testamento mostra que a sociedade política se baseia em dois convênios ou contratos o que existe entre Deus o rei e o povo cons tituindo um Povo de Deus o outro entre o rei e o povo segundo cujos termos o povo promete obedecer e o rei governar com justiça A Bíblia afirma o Vindiciae mostra que a soberania é conferida por Deus ao povo e somente delegada por eles ao monarca e magis trados Com base em premissas semelhantes Knox escrevendo a seus seguidores na Es cócia afirmara enfaticamente o direito de revolta contra um príncipe ímpio e apelou até para os comuns para o repúdio ao tirano Velhas ideias filosóficas tais como a soberania popular e o contrato que eram corriqueiras na Idade Média mas foram rejeitadas pelos reformadores reapareciam ora em uma nova roupem aparentemente bíblica As Sagradas Escrituras e Calvino eram ainda as autoridades declaradas mas agora o tom e a terminologia eram muitas vezes bem diversos Os piedosos eram ora chamados não tanto ao sofrimento e à obediência passiva quanto à criação em toda parte de nações cristãs na Terra apesar de todas as dificuldades e oposição Foi contra tal radicalismo bíblico que Hooker lançou seu poderoso contraata que Poderia ter apelado para Calvino contra os calvinistas o que de fato fez algu 3 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 EmsenReplyeto anAnstvere57ò 4 Calvin Institutes IV xx 31 mas vezes mas náo era calvinista e não estava interessado apenas em ganhar pontos no debate Para ele não era definitiva a autoridade de Calvino Nem poderia ele entrar em polêmicas com base em um entendimento comum da autoridade das Escrituras pois não podia admitir que nas Escrimras todas as coisas que precisam ser feitas devem necessariamente estar contidas Grande parte do que queria dizer referiase a assuntos em que alegava as Escrituras não eram segundo ele a única autoridade Em matéria de governo eclesiástico e civil por exemplo deve haver um apelo à razão pois não existe ainda nenhum método conhecido para determinar aspeaos contenciosos sem o uso da razão natural e até mesmo Cristo empregava Sua razão ao aipimentar Na esfera na tural pelo menos a razão e os grandes arrazoadores do passado devem ter autoridade adequada Assim Hooker vêse capaz de invocar livremente contra seus opositores as autoridades da Antiguidade destacandose os Pais e os escolásticos sobremdo Aquino Uma vez que os puritanos optaram por argumentar não podiam escapar da razão por meio da invocação da autoridade absoluta das Escrituras ou da fé As Leis da Política Eclesiástica é uma obra longa constituída por oito livros que cobrem uma área imensa Os cinco primeiros livros foram publicados durante a vida de Hooker mas os três restantes tiveram de esperar pela publicação até a metade do século seguinte Não há dúvida hoje sobre a autenticidade desses três livros embora o Livro VI tal como o conhecemos seja apenas um fiagmento Do ponto de vista do estilo a Política Eclesiástica é uma obra em prosa e é proravelmente a primeira grande obra de filosofia e teologia a ter sido escrita em inglês Embora polêmica sua intenção original todavia classificase como uma importante obra de filosofia política pois se eleva acima dos conflitos imediatos alcançando permanentes questões de princípios No Livro I Hooker tomando como base principal a autoridade de Tomás de Aquino expõe os fundamentos metafísicos de seu pensamento Não é enganoso su gerir que coloca a metafísica no liar que os reformadores deram à dogmática em seu pensamento político O mundo assevera é um cosmos ordenado em que tudo funciona em prol de uma finalidade adequada a ele Todo fim é em si um meio para algum outro fim exceto o fim último o summum bonum Deus quem é o bem em si mesmo e não pode ser um meio para qualquer outro bem Este cosmo é regido pela lei que se define como uma regra diretiva para a bondade de operação dada por um superior Mas o ser de Deus é uma espécie de lei em Sua obra pois aquela perfeição que Deus é dá perfeição àquilo que Ele fàz A lei estabelecida por Deus R ic h a r d H o o k e r 3 2 1 5 Eg Richard Hooker The Lam tfEcclesiastical PoUty Prefàce iii 4 6 T m w s II viü 5 Cf III vii 2 7 Ibid III viü 17 8 Ibid II iv 7 vii 4 9 Sobre a autenticidade dos livros VIVIII ver R A Houk Hookers Ecclesiasticd Polity Book VIII New York Columbia University Press 1931 eC J Sisson The Judicious Marriage ofMr Hooker and the Birth ofthe Im w s ofEcclesiastical Polity Cambridge Cambridge University Press 1940 10 laws I viü 4 11 Ibid ú l por Si mesmo e todas as outras coisas é a lei eterna e dela emanam todas as outras leis Esta lei eterna nâo é uma expressão de uma vontade arbitrária de Deus mas é razoável pois a razão é inerente à Divindade Assim Hooker rejeita já de início o voluntarismo dos nominalistas e reformadores A razão está no cerne das coisas e é sempre dirigida para o bem pois a bondade é a essência de Deus Os atos e decretos de Deus são sempre bons e razoáveis e esta bondade razoável de Deus se expressa através das várias leis que vinculam todas as coisas criadas e são derivadas da lei eterna Essas leis assumem formas diferentes em relação aos seres e às operações sobre as quais vigoram A lei natural liga todas as coisas da criação A lei celeste referese aos anjos A lei da razão obriga todas as criaturas racionais que são também vinculadas pela lei di vina que se faz conhecida através da revelação A lei humana é a lei promulgada pelos homens e derivada da lei racional ou divina Todas essas leis derivadas juntas formam uma Segunda Lei Eterna Algumas podem ser transgredidas e daí nasce o mal que no entanto não pode transformar o cosmos em caos pois o mal e o pecado são no mínimo permitidos por Deus e podese dizer que são abrangidos pela primeira lei eterna o imutável propósito de Deus O homem tal como todas as outras coisas da criação busca necessariamente sua perfeição Todos os homens buscam a bondade pois o mal não pode ser desejado como tal A perfeição que o homem procura assume uma forma tripla sensual ou física intelectual e espiritual Cada modo de perfeição é naturalmente desejado pelo homem mas a perfeição espiritual a visão beatífica que é a coroa do esforço do homem é atin gível apenas por meios sobrenaturais providenciado por Deus para corrigir os danos causados pela Queda A natureza e a sobrenatureza são duas ordens complementares a que o homem pertence Desta forma sua perfeição deve ser natural e sobrenatural Como sabe o homem qual é a sua perfeição O bem é conhecido por meio da razão ou aceitação geral isto é a razão de muitos Ao seguirmos a razão estamos de fato seguindo os mandamentos de Deus É a vontade e não a razão do homem que é corrompida pelo pecado pois a razão aponta claramente para uma perfeição que o ho mem caído se acha incapaz de alcançar por si mesmo A natureza pode leválo até a certo ponto mas a ajuda sobrenatural será necessária para que atinja a verdadeira felicidade O homem portanto é refieado por várias leis diferentes Como um organismo físico ou sensual funciona de acordo com o mesmo tipo de lei que obriga todas as coisas da criação como um ser inteligente é obrigado pela lei da razão como uma 3 2 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 12 Ibid 4 6 iii 4 13 Ibid ii 4 5 iii 4 14 Ibid ii 4 xi 2 15 Ibid iii 1 16 viii 1 vii 6 17 Ibid xi 4 18 Ibid xii 1 3 XV 2 19 Ibidviii 1 20 Ibid vii 3 alma eterna é obrigado pela lei sobrenatural E dentro deste esquema básico Hooker percebe muitas subdivisões e modos mistos de lei As muitas funções do homem têm cada uma sua própria lei e há muitas autoridades diferentes que podem impor leis em várias esferas Há a lei sobrenatural a lei moral a lei política a lei eclesiástica e a lei das nações cada uma produzida por um legislador diferente Todas essas leis são fundamentalmente as leis de Deus e derivam da lei eterna mas a autoridade para promulgar algumas delas é delegada por Deus aos homens ou às sociedades enquanto em outras o próprio Deus é não só o legislador como o fiscal Dentro desse sistema de leis é preciso distinguir o mutável do imutável A lei eterna é imutável e é a expressão direta da razão e da vontade de Deus Mais uma vez são eternas as leis que são as formulações das grandes verdades dogmáticas da fé cristã Se quisermos saber se uma lei pode ser alterada devemos examinar em cada caso a finalidade que atende A lei judaica cerimonial é revogada por exemplo porque a finalidade do sistema de sacrifícios foi cumprida com a vinda de Cristo Assim são mutáveis até mesmo al gumas leis estabelecidas por Deus Alguns assuntos são indiferentes e estão sujeitos inteiramente aos legisladores humanos outros estão sujeitos à imutável lei divina ou às leis naturais No que tange às leis feitas pelos homens a mudança é sempre possível seja para aumentar sua eficácia em alcançar um fim desejado ou para abandonálas quando uma meta específica é alcançada ou não mais desejada Mas a mudança da lei é sempre perigosa e inquietante e deve ser abordada com cautela mesmo que às vezes seja neces sária Tanto no fazer como na modificação das leis a lei eterna deve ser o guia A vantagem imediata e controversa dessa análise da lei é sua crítica à posição puritana extrema de que só há uma lei verdadeira a de Deus que se encontra clara mente nas Escrituras e que rege toda a vida do homem Desta tese dependiam todas as radicais reivindicações puritanas que ofendiam o conservadorismo de Hooker O propósito fundamental das Escrituras segundo ele é ensinar deveres sobrenaturais e para este fim são perfeitamente suficientes Mas a ordem natural e a sobrenatural se complementam A conquista da felicidade depende do cumprimento tanto dos deve res naturais como dos deveres sobrenaturais Os primeiros são descobertos em prin cípio pela razão mas os últimos como resultado da Queda estão além do alcance da razão Assim a razão natural e as Escrituras ambas em conjunto e não isoladamente nenhuma das duas é tão completa que para a felicidade eterna não precisemos do co nhecimento de mais nada Não se nega assim que há muitas coisas nas Escrituras que de fato referemse aos deveres naturais e não aos sobrenaturais nem ainda que R ic h a r d H o o k e r 3 2 3 21 Ibid xvi 5 22 7óí7 11 X 4 I XV 1 23 Ibid IV xiv 1 24 Ibid I xvi 2 IV xiv 1 2 V vii 1 25 7íi7IxivI llv iii5 26 Ibid I xiv 5 as Escrituras possam muitas vezes corrigir raciocínios fiJhos mas aíirmase apenas categoricamente que a posse das Escrituras náo nos livra do árduo processo de racio cínio para descobrir os nossos deveres em matéria de política e moral A perfeição das Escrituras é relativa a sua finalidade sobrenatural e é enganoso procurar só nelas um ideal absoluto político eclesiástico ou moral ou tratálas como a autoridade final em cada decisão trivial Tal procedimento na verdade degrada as Escrituras e cega o homem a seu sentido correto As Escrituras pressupõem ao contrário de substituir as leis naturais e racionais Os homens são por natureza livres e iguais mas uma vida que não é social é uma existência embrutecida em que o homem não pode avançar rumo à perfeição Desta forma os homens têm uma inclinação natural para a sociedade A vida social é fundada sobre essa inclinação e em um contrato social uma ordem expressa ou secre tamente acordada referindose ao modo de sua união ao viverem juntos A manuten ção da sociedade exige o governo cuja função é coibir as disputas restringir o mal e harmonizar os interesses conflitantes dos homens Mas o governo tem como objetivo não apenas a manutenção da vida social por meio da coerção também se preocupa com a busca pelo mmmum bonum Assim Hooker divisa a organização política não apenas como remédio para os pecados humanos uma conseqüência da Queda mas também como uma condição para a perfeição humana no sentido cristão e não aristotélico Sobre esta questão firmase tanto na tradição clássica como na cristã Tanto o conhecimento que tem a razão da natureza do homem e o conhecimento de sua depravaçâo decorrentes da revelação revelam a necessidade do Estado O gover no como a sociedade é baseado em um contrato e o mais legítimo poder político emerge do consentimento embora este possa assumir diversas formas Um homem pode consentir de modo pessoal e explícito pode dar o seu consentimento por meio de representantes devidamente nomeados ou o consentimento pode ser pressuposto em função do uso tradicional Entretanto apesar de o consentimento ser a melhor base para o poder político nem todo o poder político precisa ser enraizado no con sentimento Um conquistador por exemplo tem poder sobre aqueles que subjugou limitado apenas pela lei de Deus e a lei das nações E há homens que são especialmente chamados por Deus e exercem o poder por puro direito divino Mas o poder que no início baseavase na conquista ou na lei divina pode no decorrer do tempo vir a ser livremente aceito de tal forma que na realidade se não em origem tomase governo 324 H istória da Filosofia Poiítica Leo Strauss e J oseph C ropsey 27 Ibid xiií 2 II viü 5 28 Ibid I XV 4 II viü 6 29 Ibid I X 1 30 IbidtVl ii 18 31 Ibid VIII ü 18 32 Ibid I X 3 33 Ibid 8 VIII ii 9 vi 8 34 W VIII ü 5 por consentimento Seja qual for a origem do poder político os que governam sáo tenentes de Deus e sua autoridade mesmo que delegada pelo povo é dEle Normalmente entáo o poder político pertence ao povo e é confiado ao governo por contrato e consentimento Esta é de longe a melhor forma de poder Tal poder é limitado pelos termos do pacto de submissão original ou se estes não forem co nhecidos ou tenham caído em desuso simplesmente pelo que se tornou aceitável pela tradução da sociedade Os atos legítimos das autoridades civis são os atos de toda a comunidade e expressam o que poderíamos estar inclinados a chamar de vontade universal Não compete aos cidadãos ou facções buscar isenção daquelas que são de fato suas próprias ações Sendo a natureza humana o que é buscando a perfeição mas no entanto cor rupta e cega pelo pecado algum tipo de governo é necessário Mas há muitos tipos de governo e a natureza deixa a escolha como uma coisa arbitrária O profundo respeito de Hooker pelo que quer que seja estabelecido e tradicional tem o efeito de impedir que fale muito sobre a melhor forma de governo O melhor dificilmente será alcançado e tentativas precipitadas para alcançálo muitas vezes fazem mais mal do que bem Não é uma coisa trivial mexer com a ordem estabelecida Hooker decerto tem suas preferências em geral está satisfeito com o Acordo Isabelino tanto do ponto de vista da política como da religião Acreditava que uma monarquia devidamente limitada aliada a uma Igreja governada por bispos ambos governando por consenti mento seria a melhor organização possível mas hesitava em sugerir que tal organiza ção fosse aplicada em outros lugares ou em circunstâncias diferentes Grande parte da Política Eclesiástica é dedicada a uma importante discussão das relações entre Igreja e Estado Os princípios de governo eclesiástico como aqueles da sociedade civil devem ser descobertos pela razão Contra a alegação de Cartwright de que a disciplina da Igreja de Cristo que é necessária para todos os tempos é entregue por Cristo e estabelecida nas Escrituras Sagradas deve ser obtida a partir daí e daí apenas E aquilo que repousa sobre outras fundações deve ser considerado ilegal e falsificado Hooker afirma categoricamente que os assuntos de política da Igreja ao contrário de questões de dogma devem ser decididos pela simples razão guiada é ver dade pela lei da natureza e sem infringir as proibições bíblicas As Escrituras permitem R ic h a r d H o o k e r 3 2 5 35 IbidU 36 Ibid 6 37 Ibid 5 9 I x 3 38 fó7VIII ii 11 39 Ibid Preface v 2 40 óIx 5cfIIIii 1 41 Ibid V ix 12 IV xiv 12 V vii 1 3 42 Ibid III xi 16 43 Thomas Cartwright e outros A Directory o f Church Government sentenças de abertura um grande campo de variação e são completamente inadequadas se encaradas como um guia em questões específicas de governo civil Igreja e Estado não podem ter separação rígida acreditava Hooker A religião auxilia e incentiva tanto os súditos como os governantes no exercício de suas respecti vas funções É a fonte da justiça e da harmonia A religião praticamente qualquer religião é útil na política mas não é adequado pensar na religião como um simples dispositivo político ou sugerir com Maquiavel que a melhor religião é aquela que é mais útil para a concretização de determinadas metas políticas No entanto a religião cristã é ao mesmo tempo a religião verdadeira e também em última análise a mais útil na política pois cerceia as ambições egoístas dos estadistas e as inquietações rebel des dos súditos Dado que o Estado é uma condição para que o homem alcance sua perfeição e essa perfeição culmina com o sobrenatural em todas as nações as coisas espirituais acima das temporais devem ser providenciadas Nas nações onde os cris tãos são uma minoria a Igreja é inevitavelmente separada do Estado pois a cidadania não implica pertencimento a uma igreja Porém em comunidades cristãs Igreja e Estado têm a mesma substância o mesmo conjunto de pessoas mas devem ser vistos como diferentes acidentes ou funções A Igreja e o Estado mantêm entre si uma relação muito semelhante a que existe entre fé e razão A Igreja complementa o Estado e juntos guiam o homem em direção ao seu destino sobrenatural O Estado está pre ocupado com a vida boa do homem mas isso implica necessariamente que o Estado deveria ter uma preocupação para com a Igreja e para com a verdadeira religião Neste ponto cessa a concordância com Aquino Tanto na Igreja como no Estado argumenta Hooker a soberania em todos os assuntos que não são matéria da revelação divina direta pertence a todo o conjunto de membros É tão enfiitíco quanto Wyclif ou Lutero ao negar que a autoridade na Igreja pertence apenas por direito divino ao papa ou à hierarquia O poder sobre assuntos religiosos externos é confiado a todo o corpo dos fiéis embora possa também ser delegado por eles a um homem ou a alguns homens Na Igreja como no Estado o governo é por consentimento Em uma nação cristã o contrato social pelo qual o poder é confiado às autoridades políticas é também entendido de modo religioso de tal forma que é comum e bastante natural que o poder supremo em questões eclesiásticas tanto quanto em questões civis seja concedido à mesma pessoa ou pessoas As Saradas Escrituras não condenam tal arranjo como pensavam os puritanos e Calvino A ideia de uma nação cristã é desconhecida do Novo Testamento enquanto no Velho encontramos os poderes eclesiástico e civil unidos em Israel 3 2 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph C ropsey 44 Laws III ix 12 45 IbidV l 46 Ibid ii 34 47 Ibid VIII i 4 iii 2 V Ixxvi 4 48 Ib id y illi5 49 Ibid i 8 50 Ibid 1 514 18 iii 2 6 iv 9 Os ensinamentos de Hooker sobre a relaçáo entre a Igreja e o Estado suscitam a questão da tolerância de forma peculiarmente embaraçosa Sua concepção da Igreja visível é abrangente e ele não está disposto a afirmar que os hereges e os seguidores de Roma estejam mesmo que enganados fora da Igreja em um sentído final As questões absolutamente essenciais para a salvação são na sua maior pane quase auto evidentes e a maioria das disputas entre os cristãos dizem respeito a doutrinas que são em maior ou menor medida indiferentes à salvação Mas o Estado como vimos não pode ficar alheio a questões de religião embora sua preocupação principal seja inevi tavelmente a obsercia externa e a profissão de fé Não se pode tornar realidade por decreto uma doutrina que era fidsa antes embora possa criar um dever que não existia antes As leis humanas não podem obrigar um homem a crer mas podem e obrigam os homens a iirem como se cressem As leis humanas obrigam apenas exteriormente mas em muitas circunstâncias é inconveniente para a unidade pública que determina das opiniões sejam expressas ou postas em prática As autoridades civis devem cuidar da manutenção da verdadeira religião mas não têm o direito de decidir o que é a religião pura e em qualquer caso não é possível fezer cumprir as opiniões religiosas Dentro da Igreja portanto um considerável grau de diversidade doutrinária é inevitável e deve ser tolerado Contudo por outro lado as autoridades civis são encarrdas da manuten ção de uma ordem social estável da harmonia e da unidade da Igreja e do Estado Não podem tolerar ações que subvertam essas coisas litígios que dividam a sociedade em facções beligerantes ou a expressão de opiniões que são susceptíveis de incitar as pessoas a açóes ilegais ou antissociais Opiniões e sentimentos privados não podem ser controla dos e portanto devem ser tolerados Porém na medida em que opiniões e sentimentos são expressos de público ou dão orem a ação caem dentro do âmbito apropriado da lei humana e a tolerância deve ser limitada em consideração pelo bem comum O ponderado Hooker era contrário a todas as persqiçóes religiosas mas a tolerância incondicional lhe parecia uma impossibilidade política e teológica L e it u r a s A Hooker Richard The Lam ofEcclesiastical Polity in Hookers Works Ed John Keble Rev R W Church and Francis P s 7th ed 3 v Oxford Oxford University Press 1888 Bk I chaps iiv viü xxii xvxvi bk V chaps iii bk VIII chaps iiii B Hooker Richard The Lam ofEcclesiastical Polity Prefàce bks I II chaps viivüi bk VIII Richard H ooker 3 2 7 51 Ibid III i 1011 Sermon on Justification 52 Lam Prelàce üi 2 53 Ibid VIII vi 5 V bdi 15 Ixviii 7 F rancis Bacon 15611626 Para Francis Bacon barão de Verulam visconde de Saint Alban nada no inundo era mais importante ou de maior valia investigar que o problema da íilosoíia política a natureza do melhor Estado ou modelo de nação Para ser mais exato o que de mais precioso há na Terra resulta da reunião da mente do homem com a natureza das coisas Essa reunião teria lugar de fato quando a mente do homem pudesse subjugar a natureza de modo a forçar a natureza a produzir o artefato humano mais próximo da perfeição a comunidade que Bacon delineou em New Atlantis Nova Atlântida Embora Nova Atlântida seja a obra política mais importante de Bacon só podemos discernir sua importância se percebermos que os assuntos políticos significavam muito mais para ele do que normalmente se admite Para nos convencermos disso devemos entender a prática expressa de Bacon de utilizar antigas palavras e expressões para descrever coisas novas Bacon nega por exemplo que exista uma quinta essência Quinta essência é a denominação dada a um elemento das estrelas e das regiões celestiais diferente dos quatro elementos conhecidos água terra ar e fogo Este modo de encarar o firma mento que pode ser atribuído a Aristóteles é tratado com grande desprezo por Bacon que chama o céu de Aristóteles de um céu fantástico No entanto em um diálogo intitulado Advertisement touching an Holy War um dos personagens de Bacon sugere que o Sócrates do diálogo um homem chamado Eupólis pode ser a quinta essência Eupólis significa a boa cidade ou talvez de modo mais claro o país bem gover nado O que Bacon nega aos céus um quinto elemento ou essência parece conceder ao país bem governado Sua verdadeira rixa com Aristóteles então não é que Aristó teles tenha sugerido algo fantástico mas que procurou o fentástico no lugar errado 1 Cf abertura de Francis Bacon Instaurado Magna com New Atlantis Ed A B Gough Oxford Blackwell 1915 p 13 2 Advancement ofLeaming IIvii2 paragrafeçâo de acordo com a 5 edição de Oxford Ed W A Wright Oxford Oxford University Press 1900 O verdadeiramente fantástico encontrase de feto no mundo político do homem o mundo criado pelo homem Há uma outra expressão antiga causa final que Bacon utiliza para descrever algo novo A causa final é a finalidade para a qual as coisas existem e Bacon afirma que a busca por causas finais corrompera a filosofia natural Trata esta busca de modo tão desdenhoso quanto trata a busca pela quinta essência Todavia náo é com me nosprezo que Bacon admite que a busca por causas finais pode ser legítima quando se trata de coisas humanas Uma compreensão total desta busca conduz à noção de que homem é aquilo em torno do que se concentra o mundo no que diz respeito às causas finais Decerto discutir as causas finais como sendo compreensíveis apenas nas coisas humanas presumivelmente as coisas feitas pelo homem é mudar de modo ra dical o sentido das causas finais A causa final aquela pela qual todas as coisas existem são as coisas que o homem cria e a melhor coisa que o homem pode criar é a melhor nação a nação da Nova Atlântida a terra feliz a terra de todas as coisas terrenas mais dignas de conhecimento Tal coisa porém nâo existe exceto na mente de Bacon e em princípio foi construída por ele Resta para a humanidade construíla na prática O feto de que as coisas mais elevadas dependem da construção humana é um sinal da elevação do que é feito pelo homem o artificial sobre o natural A filosofia natural de Bacon era materialista e era semelhante àquele materialismo antigo em especial o mate rialismo de Demócrito que reconhecia como sua herança intelectual Poucos dos que o seguiram no entanto perceberam seu próprio reconhecimento exceto Shaftesbury Embora os ensinamentos materialistas e ateus de Demócrito conduzissem de modo natural a uma n ção da produtividade de qualquer busca por causas finais por si sós não eram capazes de conduzir à criação de causas finais humanas ou políticas Como ma terialismo o de Bacon é totalmente inovador na medida em que define uma finalidade humana suprema possível embora uma finalidade afetada pelo que hoje chamamos de utopismo A formulação de Bacon embora nova era influenciada pela obra de dois filósofos políticos que o precederam Maquiavel e Giordano Bruno Bacon parece aceitar a formulação de Maquiavel de que a filosofia política deve concentrarse no que os homens fezem e nâo no que deveriam fezer Como Maquiavel tomou como ponto de partida a situação extrema Bacon acreditava que a natureza era mais verdadeira e intelvel quando importunada e torturada por meio de expe rimentos tal como Maquiavel via a origem da boa ordem política nos extremos na violência e no crime Os homens sáo feitos de desejos e desses desejos se originam os Francis Bacon 3 2 9 Descriptio Glohi InteUectualU in Works Ed J Spedding R L Ellis and D D Heath Boston Little Brown 1861 VII 313 Holy War Works XIII 191 íF Novum Organum 148 e II2 Redargutio Works VII 52 esp Prometheus in De Sapientia Vete rum A Sabedoria dos Antigos Works XIII 44 ff Ver especialmente Cogitationes de Natura Rerum e Principiis atque Originibus Works V 203 ff e 289 ff Ver também as fábulas Cupid e Coelum in De Sap Vet Cf Shaftesbury Characteristics Miscellany II2 1732 ed III 69 Estados e as nações O homem possui uma mente e com essa mente pode dominar a namreza mas apenas por meio da submissão a ela e por tentar entendêla em sua íbrma mais irregular nas maravilhas e nos milses A submissão à natureza permite ao homem conquistar a natureza O próprio homem não tem um objetivo ou fim natural o cosmos é estranho e incompreensível O guia para todas as coisas está no apetite que está em todas as coisas para acolher e para expulsar Como Maquiavel Bacon foi um hedonista mas um hedonista que rejeitava as conclusões apolíticas do hedonismo dássico Quando Maquiavel fala em concentrarse no que os homens íàzem e não no que devem fàzer no entanto compara o seu próprio procedimento com o dos criadores de nações imaginárias Bacon conquanto elogie essa afirmação de Maquiavel criou ele mesmo uma nação imiinária A importância deste fàto surge quando percebe mos que assim como Bacon devia a Maquiavel seu ponto de partida a trajetória que assumiu seu pensamento político era completamente diversa O fato de que as obras políticas mais importantes de Bacon não são nem obras sobre a natureza do príncipe nem discursos sobre a história antiga mas que uma delas Sabedoria dos Antigos é uma análise dos mitos antigos e a outra Nova Atlântida uma refutação do mito platôni co revda algo sobre a diferença entre Bacon e Maquiavel Antes de examinarmos a im portância desses mitos porém devemos reconhecer que no ponto exato de seu início no próprio arcabouço do plano de Bacon há uma divergência quanto a Maquiavel A importância da fàma ou glória o fim pelo qual o egoísu realiza atos altruístas é para Maquiavel avassaladora Bacon porém parece oscilar entre o amor pela fàma ou pela sabedoria como a mais elevada paixão e fiuna ou a sabedoria como o bem maior Essa hesiução é apenas aparente no entanto pois aqueles que desejam a verdadeira fàma atingemna somente como amantes da sabedoria É como se Bacon dissesse a Maquiavel que as coisas pelas quais os homens são mais gratos não são os feitos dos heróis nem mesmo os atos dos fundadores de nações As coisas pelas quais os homens são gratos são as que mais aliviam a condição do ho mem uma finse baconiana ou seja as invenções É verdade que nos ensaios popula res Bacon referese aos fundadores de Estados e nações como os primeiros marechais da honra soberana porém em escritos mais recônditos aponta que os antigos fizeram deuses dos inventores enquanto fizeram dos heróis apenas semideuses Além disso se nem sempre se prestou tal honra é porque tem havido muito poucos inventores e seu trabalho tem sido na maior parte acidental Neste respeito os animais fizeram me lhor do que os homens Não admira que Bacon tomasse emprestado da antiga religião do Egito grande parte do simbolismo da Nova Atlântida sugerindo pelo menos algo que mais franco Bruno afirmara abertamente embora talvez de modo menos eficaz O Egito que para os cristãos representava a escuridão do mundo material era objeto de grande admiração um local onde as feras que criavam as invenções recebiam o que 3 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Works II 254 III 31 45 77 VI 327 DC 211 XII 119 213 275 318 XIII 124 222 Ver também a fíbula Sphinx in De Sap Vet mereciam Na própria utopia de Bacon além disso as estátuas são para os inventores não para os heróis Um dos objetivos práticos dos ensinamentos de Bacon é promover as invenções A antiga suspeita quanto ao progresso tecnológico é substituída por algo semelhante à fé no progresso tecnológico Teria esta como resultado as invenções cuja criação exe um novo método o método Novum Organum Novo Método de Bacon que é em princípio o método da ciência natural moderna Do ponto de vista político era necessário um verdadeiro Novo Exército Modelar dos seguidores de Bacon que estavam preparados para experimentar e tinham fé náo apenas em seus resultados científicos mas também nos benefícios políticos desses resultados Os ensinamentos de Bacon exigiam seguidores do mesmo modo que os de Maquiavel porém de um tipo diverso Nâo se tratava de um exército de estadistas mas de um exército de inven tores Náo havia uma razão determinante para acreditar que os seguidores de Bacon entenderiam seus ensinamentos Nem sequer era necessário que o fizessem A velha distinção entre filósofos e náo filósofos seria substituída por uma nova tripla distinção entre filósofos especialistas e o público Ensinamentos que resultam em invenções de mandam um grande conjunto de especialistas ou técnicos indivíduos que por causa da experiência compartilhada e do que hoje é chamado de pesquisa coletiva podem ajudar a melhorar muito a condição do homem Essas pessoas não têm de saber a ver dade sobre o cosmos ou sobre o homem Realmente não teriam de entender a filosofia política de Bacon mas apenas os métodos por meio dos quais as invenções poderiam ser realizadas É daro teriam de ser subordinadas àqudes que entendem que as in venções realmente contribuiriam para o alívio da condição do homem uma vez que as invenções também podem ser destrutit Bacon tinha suas próprias técnicas para impedir que as invenções destrutivas triunfassem sobre as construtivas O feto de que essas técnicas de proteção não existem hoje em dia não precisa ofuscar o julgamento superior de Bacon ao adotálas Os próprios inventores tinham de ser especializados no método Portanto a ênfese de Bacon sobre o método marca seu afestamento da fi losofia política de Maquiavel Sem negar a sublimidade do estadista Bacon sugere que os métodos que apresenta podem tornarse métodos para todas as invenções humanas incluindo as invenções políticas Embora Bacon não diga que a diplomacia será mais fócil quando auxiliada pela invenção moderna a conclusão decorre da certeza de que o método da Novum Organum pode ser aplicado a todo o conhecimento humano A fim de que as invenções se multipliquem Bacon teve de convencer os pode rosos de que as invenções eram politicamente inocentes Fez uma distinção entre o conhecimento puro da natureza e o conhecimento orgulhoso do bem e do mal e Francis Bacon 3 3 1 8 Essitys 33 Honour and Reputadon Todos os ensaios são numerados de acordo com a última edi ção editada por Bacon pessoalmente Bacon alterou a numeração de edições anteriores Ver também Works VI 143 Prometheus in De Sap Vet New AiLtnüs passim Novum Organum 1129 9 Alfted N Whitehead Science in the Modem World New York Macmillan 1925 p 60 IF 10 Novum Organum I 79 80 120 IF New Atlantis passim tentou proteger seu próprio conhecimento não só das conseqüências da doutrina da Queda mas também da perseguição Todavia está claro que se há uma passagem do método científico de Bacon para todo o conhecimento humano em todos os seus ramos deve haver invenções que não são politicamente inocentes Em última análise o conhecimento puro da natureza afeta e deve influenciar o conhecimento orgulhoso do bem e do mal Todavia quando pedidos são feitos a reis e patronos os candidatos devem expressarse com grande cuidado para que os reis e patronos não percebam o caráter revolucionário de suas propostas O próprio fato de que Bacon considerava que seus ensinamentos resultariam em invenções significava que tais ensinamentos deve riam ter um grande número de seguidores e que esses seguidores deveriam ter grande aprovação do público Não tanto para proteger a si mesmo como para proteger seus ensinamentos Bacon hesitou em enunciar de modo claro a sua filosofia política Até certo ponto não podia explicitála pois embora houvesse algumas coisas que consi derava resolvidas tais como a correção de seu método havia outros aspectos que não poderiam ser conhecidos até que as invenções que estavam para ser feitas realmente tivessem êxito em aliviar a condição do homem Por exemplo Bacon tinha grandes es peranças no futuro da medicina não só para a saúde mas também para a longevidade Se a vida humana pudesse ser libertada da morte natural e Bacon certamente sugeriu essa possibilidade as conseqüências difíceis de prever dessa liberdade obrigariam a algumas reservas quanto a quaisquer ensinamentos políticos definitivos Havia determinados aspectos relativos aos ensinamentos políticos finais que Ba con de fato afirmava conhecer Um deles é que o método científico resultando em invenções obrigava a uma visão da história bastante diferente daquela de Maquiavel Desse ponto de vista Bacon parece estar em dívida com Giordano Bruno filósofo que raramente menciona O feito que traz fama ao herói é limitado pelo tempo náo importa o que se possa dizer da fama em si O herói ajuda a seu país e o país pode ter ascensão e queda As invenções ao contrário pertencem à humanidade e permanecem com a humanidade Transcendem o que foi chamado de eterno retorno e Bacon se guindo Bruno considerava seu dever refutar a afirmação de eterno retorno A doutrina do eterno retorno referiase ao ciclo de nascimento crescimento decadência e morte e se referia a esse ciclo nas plantas e nas estações do ano tal como na vida humana e nos Estados e nações Todas as coisas humanas eram consideradas transitórias e essa visão que observa o ir e vir do verde na primavera era tida como natural por Bacon Embora fosse natural estava errada Era a principal fonte de desespero para o homem em relação ao futuro Entre os motivos de esperança para o futuro Bacon enumera com particular ênfiise o abandono da aceitação natural da recorrência pelo homem 3 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Ver Advancement ofLeaming I 12 Ver especialmente Historia Vitae etMortis Works III 331502 Os ciclos náo seguem seu curso e a grande era da modernidade a própria era de Ba con é mais grandiosa que a grande era da Antiguidade A ideia de que a grandeza da modernidade deve desafiar os ciclos que têm domi nado o pensamento histórico é uma ideia da qual Giordano Bruno estava consciente e a qual aparentemente lhe deu alento durante seus dias de perseguição Bruno falava sobre os fiutos da ciência moderna e acreditava que sua descoberta do universo infinito seria uma ajuda substancial na colheita desses frutos Em uma célebre fábula os homens cegos pela inépcia humana na compreensão o divino são curados da cegueira e adqui rem uma clarividência maior que a anterior em relação às mudanças humanas O bem e o mal podem ainda alternarse mas por causa da nova ciência de Bruno cada bem será um pouco melhor do que o último bem e cada mal um pouco menor do que o mal anterior Assim Bruno contrapõe seus próprios ensinamentos que trazem a tolerância em matéria de opinião justamente porque trazem unidade em matéria de ciência com as façanhas de Colombo e seus seguidores que insistem em impor suas próprias crenças aos outros Bruno esperava encontrar uma saída para a força inelutá vel da mudança humana Na busca dessa saída Bacon foi seu discípulo Enquanto Bruno acreditava porém que para transcender as mudanças recor rentes nas coisas humanas seria necessário chocar os homens e destruir o poder dos aristotélicos cristãos que dominavam a escolas Bacon acreditava que a paz civil so zinha poderia trazer o progresso científico e portanto o progresso político Assim comparavase a certo moleiro que rezava pela paz entre os salgueiros pois quando o moinho de vento labora o moinho dua labuta menos O moinho de vento na metáfora de Bacon a controvérsia religiosa era mais barato e mais fácil de operar que o moinho dágua que representava o avanço da ciência Bacon entendia que o progresso necessitava da experiência conjunta e da pesquisa coletiva que por sua vez exigiam instituições de ensino bem fornidas as quais por sua vez exigiam a paz civil Para promovêla ensinou o que pode ser chamado de uma filosofia política provisória Não usa o termo moral provisória usado mais tarde por Descartes mas defende um caminho moral e político que é certamente calculado para servir aos homens até chegarem à ilha utópica da Nova Atlântida Esse caminho político é provisório tanto na prática como na teoria No aspecto anterior é claro nâo há nada de novo nele Os filósofos políticos sempre perceberam F r a n c is B a c o n 3 3 3 13 Ver Bruno On the Infinite Universe and Worlds uma tradução foi reproduzida em DoroAea W Sii er Giordano Bruno His Life and Ihought pSIew York Henry Schuman 1950 p 24345 283285 ff OpereItahane Ed G Gentile Bari Laterza 192527 I 24 íF II 23 86 Eroici Furori na edi ção de Michel com tradução francesa DesFureursHérotques Paris 1954 1142057 311 Bacon Novum Organum I 84 92 14 Sobre os nove homens cos ver Eroiá Furori p 415 íF para o trecho sobre Colombo ver Certa de la Ceneri in Opere Italiane I 24 15 Paz entre os salgueiros vem da carta de Bacon de 10 de oumbro de 1609 paraToby MatAew a quem Bacon enviara parte de Instaurado Magna É concebível que a carta feça referência à intenção da obra A carta pode ser encontrada em diversas coleções dos escritos de Bacon que os homens tinham de viver em suas próprias sociedades que podem não ser as me lhores sociedades possíveis A visáo de Bacon era nova porque negava a possibilidade de imaginar a melhor ordem política antes que grandes progressos fossem atingidos na conquista da natureza Esse progresso permitiria que os homens soubessem o que poderiam desejar ou seja iria revelarlhes até onde poderiam chegar na previsão do bem para o homem Bacon situandose à frente da revolução científica precisava portanto professar ignorância do bem final para o homem Alegava saber o sufi ciente no entanto a partir do caráter alienígena do cosmos e da possibilidade de conquistar a natureza por meio de seu método aperfeiçoado para ter certeza de que os homens poderiam aprender o que desejassem e que isso de maneira geral seria bom Embora tivesse alguma percepção de sua própria utopia grande parte de seu trabalho preocupase com o Estado ou a nação que conduziriam o homem a esta utopia Sa bendo o quanto o conflito civil e religioso perturbaria a ciência Bacon procurou unir a liberdade aos costumes ou tradição Seus ensinamentos provisórios podem desta for ma ser caracterizados como conservadores e resultando na manutenção e ampliação de três instituições Coroa Igreja c Império No que se refere às duas primeiras pouco precisa ser dito Bacon era monarquista porque havia monarquia porque esta propiciava tempo para que cidadãos privados se dedicassem à política à filosofia e à ciência e porque era conveniente escrever sob um monarca para quem os escritos de Bacon se assemelhavam à paz de Deus excediam todo o entendimento O que se passa por entendimento se configura também como censura e se um monarca não é mais perspicaz que James I a monarquia pode muito bem associarse à liberdade Náo há certeza se Bacon era de fato monarquista que tivesse a prerrogativa em táo alta conta quanto alegava No que se refere a seu anglica nismo Bacon tinha consciência de que a Igreja Anglicana era a dos politiques na Grã Bretanha as pessoas que queriam derrubar as controvérsias religiosas e unir as nações Percebia sua liderança como menos intolerante que a dos puritanos ou católicos de tal forma que afirmava que essa igreja resolvera as controvérsias religiosas para sempre Há é claro um motivo mais profundo para a sua adesão Obviamente alguém que entende as causas finais e as quinta essências como relacionadas apenas com as coisas que o homem cria deve perceber seus próprios ensinamentos como divorciados da teologia A própria alegação de Bacon de que o conhecimento da natureza pode contornar a Queda pois não é o conhecimento da natureza que foi condenado pela Queda mas o conhecimento orgulhoso do bem e do mal iria afastálo naturalmente das controvérsias religiosas A Igreja que permitisse a separação entre filosofia e teo logia seria considerada por Bacon como a Igreja cristã que estaria mais próxima da verdadeira Igreja Bacon percebia esta separação na Igreja Anglicana e nâo na Igreja Romana pois acreditava ele era muito grande o poder dos escolásticos de dominar o conhecimento Também tentou porém fazer mais tolerante a Igreja da Inglaterra Foi 3 3 4 História da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 16 Provavelmente as mais fortes expressões de nossa ignorância do que desejamos está em Redargutio Works VIL Ver t a m b é m Organum I 70117 12022 poupado da necessidade de se juntar à queixa de Bruno de que o conhecimento era do minado pelo vulgo pois acreditava que na Inglaterra o problema fora resolvido O imperialismo de Bacon é um pouco mais complexo Embora tanto seu mo narquismo como seu anglicanismo possam ser considerados prudentes seu imperia lismo era ousado É talvez a única prova em seus ensinamentos provisórios para sua própria afirmação maquiavélica de que o caminho do meio útil em todas as outras atividades é funesto em política Para Bacon era um dever ampliar os limites do im pério um dever que fora negligenciado na filosofia política anterior à sua Não é difícil imaginar o que causa tal concepção de dever aos tradicionais princípios políticos Um dever de imperialismo implica que as melhores sociedades não são cidades pequenas mas grandes impérios Atribui valores à grandeza não só em termos de poder mas também em termos de tamanho Naçóes com populações em crescimento como a GrãBretanha tiveram melhores oportunidades para a grandeza do que países com populações pequenas populações que não puderam manter seus impérios como a Espanha O cumprimento de tal dever exige uma conduta mais agressiva que justa e a coragem em si passaria a ser a virtude da guerra independente da justiça da guerra Na verdade a busca da guerra justa um problema tão significativo para os escolásticos e para Grócio contemporâneo de Bacon assume um sentido completamente diverso em Bacon quando caracteriza uma guerra apreensiva ou o que é popularmente cha mado de guerra preventiva como uma guerra defensiva e justa Qualquer guerra contra qualquer nação que se empenha em conquista como a Turquia ou a Espanha seria então uma guerra justa porque seria uma disputa acerca de uma apreensão de guerra Em outras palavras se uma nação A cumprir seu dever ampliando seu impé rio a nação B observando tal ampliação estará cumprindo seu dever ao entrar em guerra contra a nação A Talvez seja essa a forma baconiana da doutrina do estado da natureza entre soberanos e em um estado de natureza a ação é egoísta e a solução imperialista O próprio conceito de guerra justa parece entrar em colapso diante da solução imperialista para o problema Quando Bacon afirma que o problema da extensão do império é negligenciado na filosofia política podemos perguntar com justiça por que parece ele não levar em conta o modo como Maquiavel trata da questão Maquiavel aprovava ações belicosas e metas imperialistas e os precedentes históricos que mais enfaticamente apresenta para a emulação dos fundadores dos modos e ordens é a Roma guerreira e imperial Toda via Bacon considerava o estudo e a discussão do dever de expandir o império como um estudo a que não se dava a devida atenção Não é de todo fiicil entender por quê F r a n c is B a c o n 3 3 5 17 VercspecialmenreEifígif317 8Advancement fLeam ingW O yáotASpeáàsagLifiand Letters o f Lord Bacon reproduz o Advertisement touching the Establishment o f the Church o f England que Bacon náo publicou I 74 ff Ver também cartas em I 48 III 4850 V 373 18 Ver Essay 29 e True Greatness ofthe Kingdom ofBritain Works XIII 231 ff Quanto ao imperia lismo como um dever ver a traduçáo latina do Essay 29 in De Augmentis Scientiarum Works III 120 ver também o texto sobre a Guerra Espanhola em Life and Letters VIII 483 Holy War está em Works XIII 191 ff A declataçáo acerca do caminho do meio é de ZV Sap Vet Icarus A única diferença clara entre o imperialismo de Bacon e o de Maquiavel diz respeito à importância do poderio naval O imperialismo de Bacon é enfaticamente um imperia lismo naval o que o de Maquiavel náo é A diferença parece ser muito pequena mal justificando a alegaçáo de Bacon de ter sido o primeiro a considerar o imperialismo como um dever cívico Devemos nos lembrar entretanto que o tipo de pessoas que poderia promover um imperialismo naval de sucesso tratavase por volta de 1600 de homens novos Eram estes o tipo de pessoa que poderia seguir os conselhos que Ba con espalhara de modo táo liberal em seu Advancement ofLeaming a fim de aprender a conviver no mundo praticar as artes da retórica e da gestão de negócios e a arte do cortesão Eram aqueles que poderiam trazer as comodidades e luxos dos cantos mais remotos da Terra para as lojas de Londres Eram homens que não se envergonhavam da usura que Bacon defendeu Eram aqueles que podiam pensar no imperialismo em termos de ganho econômico ao contrário de em termos de um poder despótico Eram os verdadeiros representantes do espírito do capitalismo para o qual contribuiu Bacon pelo menos tanto quanto Calvino e talvez mais O imperialismo de Bacon era de certa forma uma ligação entre os seus ensi namentos provisórios e definitivos porque sozinho dentre os sustentáculos de seus ensinairientos provisórios era o que abria caminho para o novo homem Dirigiase menos a reis príncipes e clérigos que aos comerciantes A sociedade agressiva de Bacon era uma sociedade povoada por aqueles que aceitavam ser guiados por sua arquitetura da fortuna por recomendações sobre como se dar bem no mundo um estudo que acreditava ter sido esquecido pelos escritos políticos anteriores Essas pessoas deveriam ser os baluartes do novo imperialismo naval Eram para o homem a nau que trans portaria a humanidade para a Nova Atlântida Essa nau seria primordialmente uma nau britânica e Bacon concebia a realização de sua utopia principalmente como uma conquista britânica A GrãBretanha estava madura para a guerra justa Possuía a raça mais guerreira dos homens O reino dos céus era como um grão de mostarda uma pequena semente da qual cresceria uma grande árvore A ideia de imperialismo foi uma das que Bacon comparou com a semente de mostarda A partir da pequena semente que era a GrãBretanha germinaria um grande império Não íàríamos total justiça a Bacon no entanto se imíinássemos que seu im perialismo fosse um objetivo estreito para uma nação Sua qualidade agressiva fora concebida com uma finalidade muito mais importante que o imperialismo britânico a saber para o domínio da humanidade sobre a natureza Essa qualidade pode muito bem ter sido o elo entre os ensinamentos provisórios e definitivos Esses ensinamen tos definitivos só foram concluídos em parte nos próprios escritos de Bacon mas esperavase que transcendessem tanto o tempo como o lugar A transcendência nos leva de volta para o problema dos velhos mitos A Sabedoria dos Antigos De Sapientia Veterum é uma coleção de fábulas antigas com interpretações do próprio Bacon Que 3 3 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 19 Ver em geral a discussão sobre a arquitetura da fortuna em Advancement o f Leaming II xxiii Ver também Essays 34 36 41 e as citações no n 18 Bacon a considerava como uma obra muito importante é indicado por sua declaração no Prefacio de que mesmo em seu próprio tempo quem quer que tivesse uma nova verdade a apresentar teria de apresentála exatamente dessa maneira Embora fingindo interpretar velhos mitos ou fábulas Bacon na verdade apresenta seus próprios ensi namentos tanto quanto a estrutura do mito permite a invenção As fábulas antigas são consideradas como uma permuta entre a mais remota antiguidade que está enterrada no esquecimento exceto pelo que nos diz a Bíblia e os assuntos históricos Esta liga ção entre as coisas históricas e as primeiras coisas constitui porém algo mais pois como indica a comparação bíblica tratase de um elo entre as coisas divinas e as coisas humanas Como porém a única divindade que pode ser compreendida é a divindade criada pelo homem as fábulas antigas são apresentadas como o caminho para a divin dade por meio do estudo e da conquista da natureza Na verdade não importa se os autores préhoméricos das fábulas pensavam ne las do mesmo modo que Bacon se viam por exemplo a corte a Juno como a busca do conhecimento político a procura de Eurídice como a busca pela filosófica ou os enigmas da Esfinge como a fonte da distinção baconiana entre o reino da natureza e o reino do homem Ao contrário dos relatos bíblicos esses contos representam um modo mais natural de encarar o homem e o mundo e sugerem que se não fosse por Aristóteles e pelo cristianismo talvez não fosse necessário esperar por Bacon até que o homem pudesse criar a sociedade que conquistou a natureza Bacon segue Bruno quando afirma que a época atual é a Antiguidade a era antiga do mundo quando os homens sabem mais que aqueles que eram chamados os antigos Todavia o mito de maior importância para Bacon é por um lado de sua própria criação por outro uma refiitação do mito platônico e se encontra na Nova Atlântida Esta obra é uma descrição de uma utópica ilha no Pacífico e formalmente é incom pleta Termina de modo abrupto no final de uma descrição da instituição denomi nada Casa de Salomão a mais importante e poderosa do território uma academia de cientistas Alguns autores concluíram que Bacon se cansou da obra e não se preocupou em terminála Deuse ao trabalho porém de traduzila para o latim em benefício de outras terras e embora essa tarefe não fosse tão momentosa para Bacon como o seria para outros ele a teria realizado somente se acreditasse que a obra tinha algum mérito Bacon deixou incompleta uma série de obras inéditas A Nova Atlântida não é uma delas A obra aliás pretende ser uma refutação de um diálogo platônico o Critias que também é formalmente incompleto Quando entendermos por que a Nova Atlântida é formalmente inacabada teremos dado um passo em direção a sua compreensão A Nova Atlântida difere de forma radical de algumas das ilhas utópicas que a precederam como a Utopia de Thomas More Diziase que a descoberta desta última dependia do acaso e não se podia revelar onde encontrála Os que rumavam para a Nova Atlântida também dependiam do acaso mas uma vez que avistassem a ilha seu F r a n c is B a c o n 3 3 7 20 De Sap Vet Works XII 427 IF e XIII 1 ff acesso era facil e a terra era divisada de manhã à noite tal como os filhos de Israel per ceberam à noite que o Senhor os conduzira para fora do ito e na manhã seguinte veriam a glória do Senhor É muito claro que Bacon tencionava que a Nova Atlântida representasse a Terra Prometida Dálhe o nome de terra feliz terra abençoada uma terra de anjos Afirma que na língua dos nativos é chamada de Bensalem o que significa o Filho Perfeito As imagens marítimas de Bacon além disso represen tam o triunfo da navegação e por conseguinte da ciência Ao contrário de A Tempes tade ou Péricles de Shakespeare em que as imagens marítimas mais importantes são caracterizadas por tempestades na Nova Atlântida os viajantes singram para a ilha em mar calmo A imagística é comparável ao sugerido pela frase a paz entre os salgueiros Assim exigia a utopia moderna A história da Atlântida uma ilha em algum lugar no Ocidente tal como chega a nós através de Platão é a história de um paraíso tecnológico O povo de Adântida corrompido pelo luxo lutou contra uma velha Atenas com nove mil anos de idade quando se supõe que Sólon contou sua história foram derrotados e seus exércitos não retornaram Mais tarde a ilha foi punida por Zeus com o extermínio e se tor nou um banco de areia que impossibilitava a navegação Ao contrário da Adântida que foi destruída por um terremoto para nunca reviver a velha Atenas pereceu em um dilúvio sobrevivendo o povo das montanhas que mais tarde construiu uma nova Atenas Bacon deliberadamente vira de cabeça para baixo o mito de Platão Admite que foi destruída a antiga Atlântida mas por um dilúvio sugerindo que lá também o povo da montanha sobreviveu e mais tarde construiu as civilizações inca e asteca A Nova Adântida como a antiga Atenas derrotou um exército adântico mas lhe deu um tratamento mais humano que os atenienses e lhes permitiu retornar para casa A Nova Atlântida além disso sobreviveu a um dilúvio Possuía algo que a antiga Atenas não possuía um meio de sobreviver aos dilúvios Possuía a ciência baconiana e com o auxílio dela foi capaz de transcender as vicissitudes do tempo Ao dizer vicissitu des Bacon referiase tanto às catástrofes naturais como à decadência política A Nova Adântida é um regime transhistórico e Bacon utílizao para negar a visão comparti lhada até mesmo por Maquiavel de que as sociedades vão e vêm Bensalem não vai e vem Sua própria idade contraria a visão cristã da idade do mundo que prevalecia na época de Bacon ou seja menos de seis mil anos Ao chegarem à ilha os viajantes são primeiramente advertidos embora se apro ximem de Bensalem doentes e na penúria de que não devem aportar Depois de uma breve inquisição sobre seus costumes porém são autorizados a desembarcar e permanecer em terra São apresentados à estranha ilha por um sacerdote cristão que é o Governador da Casa dos Estrangeiros Este discute o milagre que levou a Bíblia a Bensalem e as maneiras como Bensalem desconhecida da Europa sabe a respeito da Europa Por meio de expedições secretas Bensalem aprende as coisas da Europa que lhes parecem valer a pena conhecer as invenções e o progresso das ciências O governador conta também aos viajantes sobre o passado quando o famoso monarca de Bensalem o rei Solomona fimdou a instituição denominada Casa de Salomão Os 338 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a 5 L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y viajantes ficam conhecendo um comerciante judeu chamado Joabin que ocupa po sição claramente superior na hierarquia de Bensalem em relação ao sacerdote cristão Joabin explicalhes o mais importante festival de Bensalem chamado a festa deTirsan ou pai de fiunília e contrasta favoravelmente os costumes nupciais de Bensalem com os da Europa Apresentalhes um funcionário ainda mais importante um dos Pais da Casa de Salomão Este funcionário porta trajes dignos do sumo sacerdote do Antigo Testamento locomovese com uma esplêndida carruem e abençoa o povo de ma neira que lembra Cristo ou o papa Também consente em falar com um dos viajantes e o próprio narrador do conto é escolhido para esta honra O funcionário descreve a organização e as funções da Casa de Salomão obviamente o corpo dirigente da ilha e dá ao narrador permissão para divulgar em prol de outros Não fidta dramaticidade à história de Bensalem A ilha pouco é afetada pelo que fazem os viajantes mas estes no decorrer da narrativa sofrem grande transformação Chegam a uma ilha abençoada porém inóspita que os salva mas não os acolhe Não sabem se verão a Europa de novo mas quando recebem permissão para ficar e quan do ficam sabendo da conversão de Bensalem ao cristianismo querem aí permanecer Todavia não estão prontos para ficar e a discussão dos festivais do papel e do governo da Casa de Salomão representa uma espécie de iniciação São enrijecidos para a vida na utopia No decorrer da aclimatação dos viajantes ou o que pode ser chamado mais propriamente de sua conversão a liderança passa do capitão de seu navio ou homem principal do grupo para o narrador que é visivelmente o homem mais culto a bordo Sua noção de governo deve aproximarse da que prevalece na própria Bensalem antes que os viajantes estejam prontos para se tornarem cidadãos de Bensalem A mudança parece ser o processo pelo qual a sociedade ocidental e cristã é transformada em so ciedade universal Os nomes as imsens de Bensalem são extraídos de uma variedade de fontes Enquanto a viagem em si é uma viagem para o ocidente as imagens são predominantemente orientais e são provenientes da Palestina Egito Pérsia Ao sugerir que se pode ir para leste viajando para oeste Bacon aponta que as vicissitudes do espaço bem como do tempo podem ser transcendidas pelo regime bem governado A autenticidade do milagre que levou a Bíblia para a cidade de Ren flxsa da natureza das ovelhas em Bensalem antes de ser levada para o Ocidente é atestada por um membro da Casa de Salomão Sua reivindicação do poder de julgar baseiase em seu conhecimento da filosofia natural e os ensinamentos bíblicos são aceitos apenas na medida em que estão de acordo com os ensinamentos universais da filosofia natural O que se segue politicamente é o poder quase absoluto da fraternida de científica da academia da Casa de Salomão O exercício do poder colegiado necessitava porém do apoio de um aliado A Casa de Salomão poderia decidir que invenções podem ser oferecidas ao Estado e quais não o podem Sabemos bem hoje como previu Bacon que uma ciência que procura imitar o raio deve ter alguma proteção contra seu uso e abuso A própria sociedade F r a n c is B a c o n 3 3 9 21 A frase vem de Redargutio Works VII 93 teria de instituir determinadas salvaguardas Sáo estas de dois tipos a salvíuarda do poder colegiado que ao decidir que invenções podem ser reveladas limita o conheci mento público e a salvaguarda do poder paternal que reforça a virtude Poderíamos denominálas a salvaguarda da ignorância pública e a salvaguarda do espírito público Quanto a este último a Nova Atlântida de Bacon parece sierir uma determinada religião civil um de cujos festivais é a festa de Tirsan Tirsan é um pai de íàmília que possui 30 descendentes vivos com idade superior a três anos Sua festa é uma mistura de festas pagãs mas difere da celebração comum da abundância pois é uma recom pensa para a longevidade bem como para a fertilidade Seus símbolos lembram Osíris e ísis divindades egípcias Propicia a união entre a piedade ou reverência para com a idade e a natureza ou reverência para com a fertilidade e abundância O próprio Tir san recebe não só honras mas também poderes Bacon coloca grande êníàse no caráter monogâmico de Bensalem chamandoa a Virgem do Mundo outrora a designação de ísis mas incompreensível numa utopia femosa pela fertilidade Sua importância reside no caráter grave da festa de Tirsan bem como dos demais festivais de Bensalem Em outros lugares Bacon distingue entre os sentimentos que são naturais a todos os homens e os sentimentos perturbados que é como chama as paixões Uma vez que a festa de Tirsan glorifica os sentimentos imperturbáveis é uma celebração náo apenas da idade e da fertilidade mas também da virtude Suas recompensas são recompensas ofertadas pelos verdadeiros governantes de Bensalem os Confrades da Casa de Salo mão para aqueles cujos prazeres são íiéis e simples A importância política da íèsta de Tirsan reside na união do antigo poder patriar cal com a nova e vigorosa ciência A religião civil acrescentando devoção à ciência torna seguro o governo da ciência ao mesmo tempo os governantes precisam assegu rar a religião civil por meio das obras da ciência O progresso convenceria os homens do valor da virtude Se todos os homens são guiados por afeições mas as afeições que contribuem para a vida boa são aquelas que livram a mente das perturbações então a melhor vida é a vida filosófica a vida mais livre de perturbações e em especial da mais poderosa fonte de perturbação ou seja a superstição Nessa visão Bacon seguia Lu crécio mas foi mais longe na tentativa de construir uma sociedade na qual os cidadãos cm geral pudessem ser relativamente livres de perturbações Sua liberdade porém dependeria não do conhecimento mas da ilusão Enquanto Bacon afirmava que sua ciência muito íária para nivelar as mentes dos homens também deixava claro que só poderia ser entendido por todos em termos de obras A totalidade dos homens jamais compreenderia realmente a ciência baconiana Enquanto o poder paterno é definitivamente subordinado ao poder coliado sur ge para substituir o poder real É o Estado não o rei que dá aos viajantes permissão para permanecer em Bensalem e Elizabeth I opunhase à utilização da palavra Estado Os reis são mencionados na Nova Atlântida mas o governo dos reis fenece Aqueles que 340 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 22 Cf Novum Organum I 122 com I 128 governam alcançam ou se aproximam das formas de imortalidade reconhecidas como possíveis por Bacon Tirsan alcança a imortalidade que acompanha a reneraçáo e se aproxima da imortalidade corpórea que transcende a morte Os Confrades da Casa de Salomão podem alcançar a imortalidade que vem da fiuna Estes últimos compõem um conjunto muito restrito que representa uma pequena finção da população Quando os viajantes são informados de que um dos Pais da Casa de Salomão visitará a cidade onde estão hospedados são informados também de que há 12 anos a população da cidade não vê um desses pais Embora o recrutamento náo seja feito de acordo com o nascimento e a participação no grupo dominante seja nesse sentido democrática é enorme a dis tância entre o governante e o cidadão Há aparentemente 36 pais e confrades Bacon tinha tanta certeza do acordo entre os confrades quanto à verdade científica e sua utili dade apropriada que não propôs que a casa tivesse um número ímpar de membros nem tentou fàzer com que sempre fosse possível a maioria O que impediria um membro do grupo dominante de tentar tomar o poder de oferecer ao Estado invenções perigosas O que impediria as pessoas de exigilas numa crise nacional Bacon pouco nos diz a respeito Há um elemento de fé na construção de sua utopia como há em geral no pensamento utópico moderno uma fé de que pode ser preservada uma tripla distinção entre filósofos especialistas e o público em geral A preservação dessa distinção pressupõe que os especialistas respeitem os filóso fos e sejam guiados por eles ou que o conhecimento permanecerá subordinado à sabe doria Sob tais condições os homens nâo insensibilizariam seus cérebros para propagar o comunismo ou dividir o átomo para destruir mundos pois o conhecimento seria mantido a serviço do bem do homem Conhecer o bem do homem pode exigir maior conhecimento dos sentimentos do que possuía Bacon mas este afirmou conhecer pelo menos os modos de vida que a sociedade de Bensalem protegeria e asseguraria Devemos agora compreender mais claramente a tentativa de refutação de Platão O Crítias termina abruptamente quando Zeus reúne os deuses para lhes falar de um lugar de onde poderiam ver todo o mundo do devir Conclamaraos para punir a Adântida e presumivelmente seu discurso não escrito lidaria com esse castigo e com a destruição da Adântida A obra de Bacon também termina com um discurso mas o discurso é pro ferido Não é sobre a destruição de algo que vem a ser e termina mas sobre como evitar a destruição Náo é enunciado por Zeus mas é quase divino o homem que o profere Abençoa o povo de forma semelhante à de Cristo ou de um papa sua confraria tem o poder da adivinhação natural e ele olha para a humanidade com compaixão Com seus antecessores criou uma nação de onde também divisam porém transcendem o mundo do devir Conhece os segredos de Zeus e pode revelálos Omite porém algumas coisas porque não pode enunciálas pois a filosofia natural só pode resultar totalmente na filo sofia política quando o homem descobrir como imitar o raio Os meios pelos quais os Confrades da Casa de Salomão veem o mundo do devir se apresentam sob a forma de liberdade de viajar Bensalem é na verdade uma socie dade fechada São adotadas restrições de viagem que correspondem bem de perto às encontradas nas Leis de Platão As viagens por Capricho tão necessárias para alcançar Francis Bacon 341 a Nova Atlântida são proibidas nessa sociedade uma vez que se chega a ela Tal como nas Leis o contacto com a imperfeição poderia corromper até mesmo Bensalem As viagens entâo sáo restritas aos mais elevados e aos mais sábios neste caso chamados de Mercadores da Luz Enquanto os viajantes platônicos procuram os homens divi namente guiados que podem ser criados em países corruptos bem como nos incor ruptos os viajantes baconianos buscam a luz Isso sugere é claro que a ciência euro peia uma ciência que para Bacon dependia do acaso pode ter algo a ensinar a uma ciência que depende de um domínio sistemático sobre a natureza Só os mais sábios entretanto percebem e escolhem os benefícios da ciência acidental Como Bensalem tende a se tornar uma sociedade universal a ciência deliberada irá retirar tudo o que puder da ciência acidental e serão eliminados os perigos da corrupção externa O que aconteceria então com o espírito mercantil e imperialista dos ensinamen tos provisórios de Bacon Embora Bensalem seja opulenta é uma sociedade hospita leira que mantém um ritmo bastante descansado Através da mistura de ciência jovem e sociedade antiga é capaz de temperar seu luxo com simplicidade e obediência Tal sociedade não é aquela que costumamos associar com a supremacia do comércio e tem pouca semelhança com a GrãBretanha faminta comercial Parece que o espírito do comércio e na verdade o espírito do imperialismo já não são necessários para a frui ção da ciência baconiana A ciência iria fornecer o luxo associado ao comércio e a uni versalidade de Bensalem tornaria desnecessário o espírito agressivo do imperialismo Bensalem é uma sociedade pacífica Enquanto Bacon certamente não tivesse su perstições finge não copiar a Roma guerreira como fez Maquiavel mas uma religião civil mais pacífica a do p d o Osíris Além disso Bensalem aparentemente não trava guerras há muitos anos uma vez que parece conhecer o resto do mundo apenas através de seus Mercadores da Luz O rei cujas forças certa vez derrotaram a antiga Adântida chamavase Altabin o que sugçre em sua origem latina que era duas vezes elevado Esse rei permitiu que seus inimigos voltassem para casa com a promessa de não lutar novamente contra a Nova Atlântida uma promessa que Maquiavel teria considerado louca c que Bacon parece ter considerado tola pelo menos O rei era eleo por suas qualidades de estadista e por sua humanidade Após Altabin e com a criação da Casa de Salomão os governantes que emergiram eram três vezes sublimes o que é sugerido pela figura mítica de Hermes Trismegisto três vezes elevado Eram elevados também por sua sabedoria Sob seu governo os armamentos de Bensalem prosperaram incluindo até mesmo incêndios que nunca se apagam canhões mais violentos imitações do voo dos pássaros e navios que se movem debaixo da água O que quer que já tenha sido feito com esses instrumentos terríveis não há nenhuma indicação de que os governantes de Bensalem os tenham usado Possuíamnos porque Bensalem com a sua estranha religião civil e sua utopia hedonista teria necessitado de poderosas defesas em um mundo hostil Mas Bensalem parece não ter travado guerra alguma desde Altabin É possível entender melhor o que acontece com o espírito quando examinamos dois outros tratamentos do problema Um deles se encontra na discussão de Bacon a respeito do mito de Perseu em Sabedoria dos Antigos Supostamente a fiibula trata 342 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey da guerra mas o tratamento de Bacon dedicase na íntegra a uma cruzada e nada diz sobre a guerra defensiva apenas Na verdade a interpretação da fábula parece ser a descrição de uma cruzada cristã e de uma contracruzada ou guerra defensiva pelos opositores do cristianismo A guerra é menos uma guerra real que uma campanha de proselitismo terminando com uma vitória sobre as mentes dos homens É provável que mais importante que o tratamento desta íábula seja o diálogo sobre a Guerra Santa que é como a Nova Adântida formalmente incompleto O diálogo começa com uma discussão sobre a guerra contra os infiéis e se essa guerra é uma guerra jus ta e termina com recomendações para a guerra contra o não natural O cético do diálogo um cortesão denominado Polião sugere que se os interlocutores realmente querem travar uma guerra santa devem organizála como uma cruzada e encontrar um papa chamado Urbano para conduzila já que um Urbano realizou a Primeira Cruzada O nome Urbano referese à palavra latina para cidade mas passou a signi ficar não apenas qualquer cidade mas a melhor cidade Roma O nome do Sócrates do diálogo Eupólis referese também à melhor cidade mas grega não romana A cruzada que Bacon defendia a única guerra santa que poderia de fato apoiar era a cruzada conduzida pela melhor cidade ou país bem governado quer seja denominada Eupólis ou Bensalem Náo é eliminada a possibilidade de que essa guerra santa possa ser realmente um conflito armado mas a guerra santa é em princípio uma cruzada para a emancipação do mundo das tradições obscurantistas A guerra santa além disso resolve o problema várias vezes suscitado na Sabedoria dosAntiffs o problema da relação entre íilosoíia natural e íilosoíia política Orfeu viajou para o inferno para recuperar sua esposa Eurídice Salvoua mas olhoua prematura mente quando a conduzia para a luz Então voltouse para os animais e as pedras evi tando a companhia das mulheres e subjiou a floresta com sua lira Foi bemsucedido nisso até que as mulheres da Trácia abaíáram sua música com o seu ruído revoltado e o mataram Orfeu diz Bacon era um homem maravilhoso e totalmente divino Era um filósofo completo A filosofia completa significava para Bacon a filosofia natural e a filosofia política Os poderes das trevas representavam a natureza e não fosse por sua impaciência Orfeu teria dominado a natureza e resgatado Eurídice que representa as coisas com as quais se preocupa a filosofia Sua incapacidade de fazêlo trouxe me lancolia um sentimento não adequado à filosofia Mesmo em sua melancoUa porém Orfeu subjugou outras forças estranhas animais e pedras tal como os homens fimdam Estados e nações Essa subjugação porém era temporária como devem ser temporários os Estados íundados sem a inteireza da filosofia natural O ruído das mulheres da Trácia era forte demais para Orfeu As mulheres da Trácia eram seguidoras de Dionísio e não representavam apenas o delírio mas principalmente o delírio religioso Era esta a mais violenta das paixões e a mais propensa a destruir a nação O que teria acontecido se Orfeu não tivesse sido impaciente Teria conservado Eurídice mas teria ainda subjugado os animais e as pedras E teria necessitado competir com as mulheres da Trácia Na íábula existem três forças estranhas que representam a natureza os poderes infernais o homem animais e pedras e os ritos religiosos que os Francis Bacon 343 homens cxiatam as mulheres daTiáda As duas primeiras podem ser subjugadas a ter ceira teria de ser destruída Eurídice no entanto a quem o filósofo ama também deve representar a humanidade A estrada que Orfeu toma conduz por meio da contempla ção aos mais obscuros e mais recônditos stedos da natureza Em seguida conduz de volta para a luz levando consigo a humanidade Há certa ambigüidade na siestão de que há duas imitações da humanidade na fiibula mas Bacon não inventou a fábula e teve de utilizála tal como a encontrou Sem dúvida se Eurídice representa as coisas com as quais a filosofia se preocupa como diz Bacon então representa as causas finais e estas nos ensinamentos de Bacon só podem ser relacionadas à humanidade A ciência da política diz Bacon em outro lugar é uma ciência secreta não só porque é dificil conhecêla mas porque não é digna de ser proferida Isso significa que enquanto o conhecimento é apenas difícil o ensino é também em certo sentido ver gonhoso A razão pela qual o conhecimento político é vergonhoso é que pode destruir grande parte daquilo que os homens prezam se não for transmitido com cuidado e prudência Assim em outra fábula Bacon íàla da nudez no sentido de segredos políti cos e na Nova Atlântida a nudez dos futuros noivos pode ser entendida como relativa à vergonha da política Aqui Bacon se refere aos cuidados de Orfeu para com sua própria esposa Com seu retomo ele conquistaria ou governaria a humanidade Não seria então possível que as flautas das mulheres da Trácia abafassem sua lira Em outras palavras uma vez que o domínio da natureza uma meta universal tivesse sido alcan çado poderia ser criada a sociedade universal e o homem poderia ter a sua utopia No entanto a melancolia de Orfisu não é necessariamente apenas o resultado de seu desespero Somos informados de que os olhos do Pai da Casa de Salomão de monstravam que tinha compaixão pelo homem Ainda em outra obra Refutation of Philosophies o filósofo fálando diante de um congresso internacional também tinha olhos de compaixão para com o homem Por que seria isso necessário dentro da utopia Bacon parece ter notado algo que nem todos os seus sucessores observaram A humanidade pode acreditava ele livrarse das velhas superstições religiosas Mas novas instituições civis teriam de ser colocadas em seu lugar e apenas uns poucos homens seriam realmente livres porque muito poucos homens poderiam ser verdadeiramente sábios A universalidade dos sentimentos humanos por meio da qual a filosofia deve orientar seu curso não conduz no pensamento de Bacon à inferência da igualdade natural Pode haver grande valor em aliviar a condição do homem em minimizar a pobreza e a doença Todavia ainda se deve ter compaixão pelo homem cujo destino é miserável pois há algo mais importante que o homem não pode ter talvez a felicidade talvez a sabedoria talvez Deus L e it u r a s A Bacon Francis Nova Atlântida 344 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph C ropsey 23 WorksYl59 F r a n c i s B a c o n 345 Bacon Francis Sdedoria dos Antigas Preíacio Fábulas 11 Orpheus 16 Junos Suitor 26 Pro metheus Bacon Francis Essay 29 O f the True Greatness of Kingdoms and Estates B Bacon Francis Sabedoria dos Antigos Fábulas 1 Cassandra 5 Styx 7 Perseus 10 Acteon and Pentheus 6 Pan 12 Coelum 22 Nemesis 24 Dionysus 28 Sphinx Bacon Francis History ofthe Reign ofHenry VII Bacon Francis Advertisement touching an Holy War Bacon Francis Ofthe True Greatness ofBritain Bacon Francis Essays 6 Simulation and Dissimulation 10 Love 11 O f Great Place 13 Good ness and Goodness of Nature 14 Nobility 16 Atheism 17 Superstition 19 Empire 41 Usury 51 Factions 55 Honour and Reputation 58 Vicissitude of Ihings Bacon frssrás Advancement fLeam ing in SelectedWritin New York Modem Library 1955 Bkll p 34578 seçáo sobre Civil Knovdedge H ugo Grócio 15831645 Hugo Grócio era cidadão holandês Um verdadeiro prodígio de aprendizagem bem como homem de ação foi diplomata advogado ministrado estudioso e profes sor mas em essência tratavase de um jurista Considerava sua maior obra o De Jure Belli ac Pacis 1625 ou Das Leis da Guerra e Paz como um tratado jurídico não como um tratado de teoria política e distinguiu explicitamente suas intenções como jurista das intenções de Aristóteles na Política como as de um cientista político A obra de Grócio não é porém apenas um tratado sobre o direito positivo Nem se limita a despeito de seu título ao tratamento da lei da guerra e da paz quer dizer o direito internacional tal como o conhecemos hoje Vem a ser pelo contrário como indica seu subtítulo um tratado geral sobre as leis da natureza e das nações jus rutturae et gentiuni e sobre os principais aspectos do direito público jus publicuni Embora seja verdade que Grócio enfoque a lei da guerra e da paz sempre coloca este ramo específico da jurisprudência dentro do âmbito de uma análise jurídica geral do direito e do governo No que se refere à história da teoria política portanto a obra de Grócio é rele vante porque em primeiro lugar é um excelente exemplo de ensinamentos jurídicos em oposição a ensinamentos especificamente filosóficos ou teológicos a respeito da po lítica em segundo é um exemplo magnífico dos numerosos tratados de direito públi co natural escritos por juristas e teólogos da Europa Ocidental a partir do século XVI e ao longo do século XVIII Outros exemplos importantes de tais obras são Tractatus de legibus ac Deo Legislatore Tratado sobre as leis e Deus como Legislador 1612 do jesuíta espanhol Francisco Suárez De jure naturae et gentium Sobre o direito da natureza e das nações 1672 do jurista alemão Samuel Pufendorf e Jus Gentium O direito das nações 1758 do diplomata suíço Emmerich de Vattel A importância prática de tais obras pode ser aquilatada pelo fato de que Grócio Pufendorf Vattel e outros se constituíram em autoridades para estadistas e advogados inclusive os pais íundadores dos Estados Unidos 1 Hugo Grotius The Law ofWar andPeace Prolegomena 57 IIix8 A ideia de que o homem é por natureza um animal racional e social é o princí pio central do tratado de Grócio A obra começa com uma reafirmação da luta secular entre o convencionalismo clássico e o direito natural clássico Grócio atribui a tareia de defender a tese do convencionalismo a Carnéades que foi líder da Academia tardia em Atenas Grócio faz com que Carnéades argumente que os homens têm imposto leis a si mesmos por motivos de conveniência e autoproteção que tais leis necessariamente variam de lugar para lugar que não existe uma lei natural estritamente falando por que todos os homens são impelidos por seus desejos naturais para fins que em última análise só são vantajosos para si mesmos e que consequentemente não há justiça que seja natural ao homem A esta doutrina que também era aceita pelos epicuristas Gró cio contrapõe o que é basicamente uma doutrina estoica Ou seja principia por aceitar a tese de que os homens são no início de sua vida impelidos pelo desejo natural ape nas para a preservação de seu próprio ser o que se distingue de serem impelidos pelo prazer ou pela dor Entretanto nega que esse desejo constitui a qualidade que define o homem Realmente para Grócio o desejo original de preservar a própria constituição natural é de íàto uma tentativa instintiva ou inconsciente de se realizar plenamente a própria natureza crescer e se desenvolver como um ser racional A faculdade racional que define o homem porque o distingue decisivamente de todos os outros animais é mais nobre e mais natural que qualquer um dos desejos naturais originais E é a faculdade racional por sua vez que percebe que a justiça é uma virtude um bem em si e por si independentemente de quaisquer considerações de interesse próprio ou conveniência Assim os homens são naturalmente impelidos a buscar a sociedade com seus semelhantes por natureza vêm a possuir o discurso e a razão e se inclinam por natureza a se comportar de forma justa muito embora seja verdade que de feto muitos homens nem sempre sigam sua verdadeira natureza É a partir deste conceito central do homem como animal racional e social que Grócio compreende o direito e a sociedade política O direito jus em seu sentido pri mário é o que é justo O direito assim entendido tem segundo Grócio um sentido negativo em vez de positivo é o que não é injusto O que é injusto é qualquer coisa que esteja em conflito com a natureza da sociedade entre os seres dotados de razão Assim para Grócio que fez referência a Cícero e Sêneca para sustentar sua afirmação os homens agem com justiça somente quando agem em conformidade com a sua atra ção e desejo naturais pela sociedade Por exemplo uma vez que roubar o que pertence aos outros destrói toda a confiança e portanto destrói a sociedade roubar é contra a ordem natural à qual pertence o homem Um segundo significado de direito é uma qualidade das pessoas ou pertencente a elas e que em geral referese ao poder legítimo de possuir ou fezer alguma coisa Tipos de direitos são a liberdade ou o poder sobre si mesmo o poder de um senhor sobre o escravo o poder de um pai sobre seu filho e o poder sobre a propriedade Os direitos em cada caso são de feto leis objetivas que definem como pode ser exercido H u g o G r ó c i o 347 Ibid Prolcmena 3101630 Iii50 o poder em questão e em alguns casos a própria lei da natureza especifica o direito Por exemplo a lei da natureza permite que uma pessoa mate um ladrão que esteja fugindo com bens roubados se náo for possível recuperálos de outra forma Mas é importante apontar que ao fazer com que esse segundo sentido de direito seja rela tivo especificamente à pessoa abstrata personà Grócio para muitos juristas seus contemporâneos afastouse significativamente do sentido tradicional ou romano do termo direito ijus Além disso temse defendido nos últimos anos que essa se gunda definição de direito por Grócio é precursora da característica ideia moderna de direitos subjetivos a qual sustenta que a pessoa possui direitos intrínsecos simples mente como ser humano e não por incorporar determinadas qualidades objetivas tais como as do governante do pai ou do proprietário Mesmo assim entretanto devese dizer também que Grócio só percorre uma curta distância em direção à ideia completa de direitos subjetivos a afirmação especificamente filosófica dessa ideia e portanto do individualismo tal como o conhecemos na idade moderna começa com Thomas Ho bbes cuja primeira grande obra De Cive Do cidadão foi publicada menos de duas décadas depois da obra de Grócio O terceiro significado de direito é lei isto é regras para a ação que obrigam ao que é correto e que trazem consigo alguma sanção Tendo definido três sentidos áejus ou direito Grócio em seguida divide o direi to no sentido de lei em dois tipos natural e volitiva O primeiro tipo a lei natural jus naturalè é definido em relação à natureza essencial do homem como um ditame da justa razão que indica que um ato estando ou não em conformidade com a natureza racional tem em si uma qualidade de baixeza moral ou necessidade moral e que em conseqüência tal ato ou é proibido ou imposto pelo autor da natureza Deus Con tudo para que náo pensemos por causa da última cláusula que a própria lei natural depende apenas da vontade de Deus Grócio afirma nos Prolegomena que a lei natu ral seria válida mesmo que não houvesse Deus ou se os assuntos dos homens não fossem de nenhum interesse para Ele Esta afirmação que Grócio notese bem de pronto re conhece como blasfêmia constitui um indício de que é concebível para Grócio uma dessacralização da lei natural sem que isso necessariamente destrua sua validade essen cial como regra da razão para as criaturas racionais Entretanto mesmo esta declaração cautelosa por sugerir a possibilidade da independência da lei natural tanto da teologia revelada como da teologia natural foi interpretada por vários dos contemporâneos de Grócio como sinal decisivo de uma ruptura com as doutrinas medieval e clássica Em essência o aspecto com que nos preocupamos aqui é que a sugestão de Grócio sobre a possibilidade de uma lei natural secularizada ainda ser totalmente vinculatória sobre o homem era no início do século XVII multo controversa embora náo excepcional A doutrina que o homem e a ordem política dependiam da ordem divina era ainda para a maioria dos juristas bem como para os teólogos o cerne da lei natural 3 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibid ilO Grócio oferece duas provas da existência da lei natural A primeira ocorre a prio ri isto é demonstra a concordância necessária entre um ato ou coisa com a natureza racional e social do homem Esta prova apesar de muito difícil é a base de um deter minado conhecimento daquilo a que os homens sâo obrigados por sua natureza intrín seca pois tal prova fundamentase estritamente no raciocínio acerca dessa natureza A segunda prova é a posteriori ou seja fundamentase no fornecimento de indícios daquilo que todas as nações ou pelo menos os homens instruídos de todas as nações civilizadas acreditam ser obrigatório para todos os homens No desenvolvimento des ta prova Grócio faz referência a Cícero no sentido de que a concordância de todas as nações sobre um determinado assunto deve ser considerada como uma lei da natu reza e a Aristóteles no sentido de que a fim de descobrir o que é natural devemos procurar entre aquelas coisas que de acordo com a natureza estão em boas condições não entre aquelas que são corruptas Além disso ao estender a prova a posteriori para princípios específicos da lei natural Grócio cita dezenas de exemplos e argumentos retirados dos escritos dos antigos filósofos historiadores poetas retóricos e teólogos bem como da Bíblia Ao íàzêlo Grócio toma como base para seu próprio argumento a ideia do consensus gentium ou acordo entre os povos pois como argumenta quando tantos homens instruídos e sábios que também representam diferentes nações como os judeus os gregos os romanos e assim por diante afirmam os mesmos princípios como sendo verdadeiros ou corretos deve ser devido ao funcionamento de uma causa universal Essa causa deve ser ou uma conclusão correta elaborada a partir dos pró prios princípios da natureza por esses homens instruídos ou um acordo mútuo da humanidade civilizada Em qualquer dos casos essas provas servem para confirmar aquilo que é em princípio detectável por meio da prova a priori a respeito da natu reza do homem do direito e da sociedade política O segundo tipo de lei é a volitiva Dividese em lei humana e lei divina A lei vo litiva humana é de três típos O primeiro é a lei que não depende diretamente do poder civil é menos abrangente que a lei municipal ou dvil e indui os comandos de um pai um mestre e todos os comandos semelhantes O segundo é a lei munidpal ou civil jtis civilè que emana do poder dvil e que portanto regula as relações dos homens e das coisas em uma determinada sociedade política O terceiro é a lei das nações jusgentium que recebe sua força vinculatória a partir da vontade de todas as nações ou de muitas delas A lei das nações se distingue da lei natural não pela matéria mas pelo feto de ser mutável ao passo que a lei natural é imutável e pelo feto de ser baseada na vontade e não apenas no que é interpretado pela razão como em conformidade com a natureza ra cional e social do homem Essas distinções e sua importância podem ser compreendidas tomandose um exemplo a questão da responsabilidade pelas ações Grócio afirma que de acordo com a lei natural estrita ninguém é responsável pelos atos de outro exceto no caso limitado em que uma pessoa herda os bens de outra No entanto a lei das nações isto é a lei desenvolvida pela vontade de todas as nações ou muitas nações alterou H u g o G r ó c i o 349 4 Ibid 12 este princípio rigoroso no sentido de que todos os indivíduos de uma sociedade política sáo responsáveis pelas dívidas do governante e considerase que seus bens têm a incum bência de cumprir essas obrigações O motivo que Grócio oferece é que a menos que esta concessão seja feita os governantes porque passariam a ser responsáveis sozinhos por seus atos seriam incentivados a ações licenciosas já que na prática seus bens seriam imunes à apreensão como pamento de indenizações E do outro lado aqueles junto a quem o governante tem dívidas estariam assim injustamente privados de reparação a menos que impostos possam ser cobrados dos bens de seus súditos Em contraste com sua análise e definição extremamente complexas e detalhadas da natureza e dos tipos de lei o tratamento que Grócio aplica aos fenômenos mais especifi camente políticos tais como a natureza e as origens da sociedade política ou a natureza e o exercício do poder político é bastante incompleto e dependente da autoridade de filósofos historiadores juristas e assim por diante Por exemplo quando Grócio define lei municipal jus civile indica que emana do poder civil potestas civilis que o poder civil é o poder que governa sobre a ordem civil ou estado civitas e que a ordem civil é uma associação completa civitas coetusperfictus reunida para o usufiruto dos direitos e pelo interesse comum Mais tarde quando trata de modo um pouco mais aprofimdado o poder civil Grócio fica satisfeito no que se refere ao sentido ou finalidade da ordem civil ou estado em remeter o leitor à sua proposição de que a ordem civil é uma associa ção perfeita perfictus coetus Mas não oferece quase nenhum argumento independente quanto ao que exatamente quer dizer com isso e por que é assim O motivo parece ser primeiro que Grócio como jurista está menos preocupado com estas questões do que com questões sobre a natureza da lei sobretudo na sua relação com as operações do poder civil e segundo que simplesmente aceita duas ideias clássicas gerais 1 que só dentro da ordem civil pode o homem realizar plenamente o potencial de sua natureza racional e social e 2 que as regras como tais são tão namrais e necessárias para o corpo civil como é o governo da razão necessário e natural para o corpo humano Este último aspecto é demonstrado de maneira impressionante pelo modo como Grócio trata do poder civil e suas partes baseiase fundamentalmente nos conceitos e distinções de Aristóteles tal como apresentados na PoUtica e na Ética Assim Grócio explica que o poder civil tem três aspectos ou ramificações O primeiro ramo referese à elaboração geral das leis tanto seculares como religiosas e é denominado arqui tetônico pois encarna o aspecto abrangente e diretivo do poder civil O segundo concerne os interesses particulares da sociedade que são de natureza pública Tais in teresses são travar a guerra celebrar a paz e assinar tratados a cobrança de impostos e o exercício do direito de domínio eminente sobre a propriedade privada dos cidadãos Deste ramo diz Grócio que Aristóteles o denomina o ramo político propriamente dito ou o ramo que delibera sobre políticas específicas e sobre a reformulação de 3 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 Ibid 14 6 Ibid iii7 7 Cf Aristóteles Ética VI viii que Grócio cita decretos específicos O terceiro ramo do poder civil diz respeito aos interesses privados dos cidadãos e às possíveis controvérsias que possam surgir entre eles Sua função em contraste com a elaboração de leis gerais ou a deliberação sobre determinadas políticas públicas é o julgamento de conflitos entre interesses privados pelo poder público Por isso é chamado de ramo judicial O conceito de Grócio de natureza e do locus do poder supremo summa potestas na ordem civil também o liga à tradição clássica e o separa da ideia moderna de sobe rania tal como esta emerge nos escritos de pensadores como Hobbes Embora o po der supremo seja definido inicialmente como o poder cujas açóes não estão sujeitas ao controle legal de outro e não pode ser anulado pela ingerência de outra vontade huma na também é verdade que toda sociedade política e portanto o seu poder supremo é sujeita às limitações estabelecidas pela lei natural e pelo direito das nações Como diz Grócio a mãe da lei municipal é a obrigação que decorre do consentimento contudo uma vez que a obrigação decorrente do consentimento deriva sua força da lei natural sobretudo aquela parte da lei natural que impõe que os homens vivam na sociedade civil e sejam guiados pelas regras da justiça a própria natureza pode ser considerada a bisavó da lei municipal Também declara que estão equivocados aqueles que argu mentam que o padrão de justiça que é aplicável no caso de indivíduos é inaplicável a uma nação ou a um governante Tal visão é apenas uma aplicação particular de uma falsa doutrina da lei que não consegue perceber que a lei não se funda apenas na con veniência mas na justiça natural também Embora seja verdade que no caso da maioria dos estados é o benefício ou bem daqueles que são governados que é a principal preocupação ao avaliar se o poder su premo está constituído do modo devido isto não significa que em última análise o poder supremo resida nos governados ou que haja uma relação de dependência mútua entre governantes e governados Pelo contrário em uma monarquia por exemplo a posse do poder supremo significa em essência a posse de direitos e poderes que são inerentes à função daquele que governa De fato é bem possível que o rei possa inter pretar mal esses direitos e usar esses poderes de modo indevido Entretanto Grócio se opõe com vigor à conclusão de que com isso o povo tenha automaticamente o direito de assumir o poder supremo ou destronar o rei Assim a rigor o direito geral de revolução não existe a finalidade da sociedade civil sendo a tranqüilidade pública essa finalidade necessariamente prevalece até mesmo sobre o direito de proteger a si mesmo contra o abuso do poder pelo governante Desta forma os descaminhos do poder supremo devem em geral ser suportados mesmo que não se deva se possível cometer atos que sejam contra a lei natural mesmo que sejam comandados pelo poder supremo E aqui Grócio de modo típico para ele reverte para a autoridade da anti guidade quando menciona Cícero que afirma Para mim em quaisquer condições a paz entre os cidadãos parece ser mais vantajosa que a guerra civil H u g o G r ó c io 3 5 1 8 The Law ofWar and Peace Prolegomena 1523 9 IhidM9 Grócio procura de modo constante fezer uma distinção entre a natureza do poder supremo em si e a posse absoluta dele Assim em alguns casos e sobretudo no caso da monarquia hereditária absoluta o poder supremo tem direito de plena propriedade Isso significa que quando um povo assim governado é transferido de um monarca para outro não se trata estritamente falando de uma transferência de indivíduos mas do direito perpétuo de governálos em sua totalidade como um povo Contudo em outros casos na verdade talvez a maioria dos casos não se detém o poder supremo de modo absoluto Esse é o caso de um rei que tem o poder supremo porque este lhe foi conferido pela vontade do povo Mesmo nesse caso po rém o exercício efetivo do poder supremo uma vez concedido é pleno O poder supremo é em princípio uma unidade ou é indivisível e é constituído pelas partes anteriormente enumeradas como constitutivas dos três ramos do poder civil Na verdade porém existem numerosos exemplos históricos em que o supremo poder é dividido Um exemplo notável seria Roma sob os imperadores onde ocorreu que um imperador administrava o Oriente e outro o Ocidente e até que três impe radores governavam o império inteiro com três divisões Um tipo diferente de divisão pode ocorrer quando um povo na escolha de um rei reserva para si determinados poderes e confere outros ao rei absoluto Assim na época de Probo em Roma o senado confirmava as leis promulgadas pelos imperadores julgava recursos nomeava procônsules e designava oficiais militares para os cônsules Ainda um terceiro tipo de divisão é citado a partir do relato feito nas Leis de Platáo em que como os heráclidas fundaram Argos Messene e Esparta os reis desses Estados eram obrigados a governar de acordo com as disposições legais que haviam sido previamente estabelecidas Finalmente em geral Grócio segue a ideia de Aristóteles de que a ordem civil ou o estado mudam de um tipo para outro tal como quando há uma mudança da aristocracia para a democracia ou da democracia para a monarquia porém distingue essa questão política da questão jurídica de como as leis e o governo se relacionam entre si no que diz respeito à definição do poder supremo Precisamos agora examinar brevemente a aplicação por Grócio dos princípios gerais definidos anteriormente à questão da guerra justa que é o tema principal de sua doutrina do direito internacional A questão crucial é se a guerra pode ser verdadeiramente justa Grócio responde de modo afirmativo alegando os princípios gerais da natureza do homem e da socie dade e sustentando esses princípios com citações completas e exaustivas da história tanto sacra como secular do jus gentium e da lei divina volitiva quer dizer a Bíblia A ideia central de seu argumento é que nem todo o uso da força é proibido pela lei natural e volitiva mas só o uso da força que está em conflito com os princípios da so ciedade isto é que tenta apoderarse dos direitos ou bens de outrem Assim a guerra pode ser travada com justiça mas apenas para obter ou restabelecer o fim natural do homem que é a paz ou uma condição de vida social tranqüila e não para o autoen grandecimento pessoal ou coletivo Contudo esse tipo de definição do âmbito da 3 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y guerra justa em oposição à guerra injusta é demasiado genérico para servir como um guia efetivo Grócio deve portanto estabelecer com o seu habitual nível de detalha mento as diversas categorias de guerra justa e injusta Quanto às guerras justas dividemse estas em duas categorias gerais aquelas travadas em defesa da propriedade individual e aquelas travadas para punir injustiças e infligir punição merecida O tratamento da primeira catoria exige que Grócio entre em uma elaborada discussão a respeito da origem e dos tipos de propriedade pois é apenas ao saber o que pertence a quem que se pode decidir quando uma guerra é justa O tratamento da sjunda categoria exige que exponha a natureza dos pactos contratos e promessas pois só sabendo o que é devido a quem é que se pode decidir quando uma guerra é justa com relação a essas questões Como ilustração da doutrina de Grócio sobre a guerra justa é instrutivo conside rar seu argumento relativo à aplicação da lei natural a casos em que um governante em particular não tenha sido diretamente lesado pela depredação de outro O princípio que se impõe diz Grócio é que os governantes são livres para atender aos interesses da sociedade humana punindo aqueles que excessivamente violam a lei natural em bora nenhum dano direto tenha sido causado àqueles que aplicam a punição Grócio deriva esse princípio do fato de que aqueles que detêm o poder civil não estão sujeitos a nenhum outro poder legal todavia estão obrigados a obedecer e fezer cumprir a lei da natureza sempre que possível Referese então a Sêneca no sentido de que se um homem não ataca o meu próprio país mas contudo é um ferdo pesado para o seu próprio e apesar de distante de meu povo aflige o seu próprio tal degradação da men te no entanto o afesta de nós cita a autoridade de Aristóteles para a proposição de que contra homens que são verdadeiramente bárbaros a guerra é sancionada pela natureza isto é que uma guerra de civilização é em circunstâncias extremas justa Ao adotar esta posição Grócio explicitamente discorda dos escritores dos séculos XV e XVI tais como Francisco de Vitória que ensinara que quem aplica a punição deve ou ter sofrido um dano contra sua própria pessoa ou Esudo ou ter jurisdição sobre aquele que foi atacado A diferença básica e tratase de uma diferença que liga Grócio mais aos escritores da Antiguidade clássica que aos modernos como Hobbes ou teólogos como Vitória é que para Grócio o poder de punir é derivado não só da jurisdição civil mas da própria lei natural A obra de Grócio apareceu como já observamos menos de duas décadas antes de De Cive 1642 de Ihomas Hobbes Contudo apesar dessa proximidade no tempo e apesar de uma concordância superficial tais como o uso comum do conceito de Tei natural o feto é que Grócio ainda se pauta principalmente pelos clássicos da Antigui dade ao passo que Hobbes de modo explícito se propóe a algo novo O desacordo fundamental é relativo à questão de saber se o homem é de fato por natureza um animal racional e social ao nos voltarmos para Hobbes voltamonos para o iconoclas ta que expressa a essência da visão moderna do homem e da lei natural H u g o G r ó c i o 353 10 Ibid IIxx40 354 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y L eitu ra s O melhor texto de Das Leis da Guerra e Paz em inglês é a tradução da obra de Grócio elaborada como parte da série intitulada Classics of International LaV patrocinada pelo C am e Endowment for International Peace A tradução por Francis W Kelsey é completa e foi publicada em 1925 por Cla rendon Press Oxford A Grotius H i The Law ofWar and Peace Prolegomena secs 12522283039424550 5758 bk I chap i secs 113 chap ii sec 1 chap iii sec 5 par 7sec 7 sec 8 pais 161314 sec 9 secs 1314 sec 16 par 1 sec 17 sec 24 chap iv sec 1 par 3 sec 2 par 1 sec 7 pars 12 B Grotius Hugo 7feíaTíaríí7VKeProlmenabklchapichapii secs 146 chap iii secs 19131724 chap iv bk 11 chap i sec 1 pars 12 secs 23 sec 11 sec 17 chap ii secs 12 chap iii secs 14 chap v secs 1579 2729 chap vlii sec 1 chap x sec 1 chap xi secs 13 chap xii secs 712 chap xiv secs 16 9 chap xv secs 13 chap xx secs 14 18 40 48 chap xxii secs 1311 bk 111 chap 1 secs 13 chap ii secs 12 chap iii secs 14 6 21804789 T homas H obbes 15881679 Hobbes fãz uma apresentação temática de sua filosofia política em três livros The Elements of Law Elementos do direito 1640 De Cive O cidadão 1642 e Leviathan Leviatã 1651 As mais evidentes diferenças entre esses livros referemse ao desenvolvimento e à elaboração da doutrina teológica dos últimos livros Podese conceber que as intenções de Hobbes tenham sido duplas 1 assentar pela primeira vez a filosofia moral e política sobre uma base científica e 2 contribuir para a concretização da paz cívica e da amizade e para a criação de uma disposição na humanidade para o cumprimento de seus deveres cívicos Para Hobbes estavam intimamente ligadas essas duas intenções teórica e prática A última delas a intenção cívica ou civilizatória identifica Hobbes com a tradição da filosofia política que o associava aos nomes de Sócrates Platão Aristóteles Plutarco e Cícero Toda esta tradi ção porém segundo Hobbes fracassara tanto em sua busca pela verdade como em sua incapacidade de conduzir os homens à paz A enfática ruptura de Hobbes com a tra dição foi preparada de modo decisivo por Maquiavel e após Maquiavel por Bacon De acordo com Maquiavel os clássicos fracassaram porque procuravam atingir metas por demasiado elevadas Porque baseavam suas doutrinas políticas no exame das mais elevadas aspirações do homem a vida virtuosa e a sociedade dedicada à promoção da virmde tomaramse ineficazes nas palavras de Bacon criaram leis imaginárias para nações imsnárias O realismo de Maquiavel fundase em um consciente rebaixa mento dos padrões da vida política tomando como o objetivo desta não a perfeição do homem mas as metas inferiores de fato almejadas pela maioria dos homens e pela maioria das sociedades da época Esquemas políticos elaborados de acordo com os motivos inferiores porém mais fortes dos homens têm possibilidade muito maior de serem realizados que as utopias dos clássicos No entanto ao contrário de Maquiavel Hobbes desenvolveu um código de lei moral ou natural a lei natural como uma lei moralmente vinculatória que determina os fins da sociedade civil Contudo suindo o realismo de Maquiavel retirou de sua doutrina da lei natural a ideia da perfeição do homem Tentou deduzir a lei natural daquilo que é mais forte na maioria dos ho Ihomas Hobbes Leviathan Everymans Library New York Dutcon 1950 cap xi p 79 A ortografia foi modernizada para as citações em inglês neste capítulo mens na maioria das vezes não a razão mas a pabcão Por causa daquilo que entendia como sua descoberta das verdadeiras raízes do comportamento humano seu cxmhe cimento da natureza humana e sua conduta científica Hobbes acreditava que tivera sucesso onde todos os outros ífacassaram que foi o primeiro filósofo político verdadei ro De acordo com essas convicções recomendou que seus livros fossem adotados nas universidades como abalizados e continuamente atacava as doutrinas de Aristóteles cujas opiniões são neste dia e nessa região de maior autoridade que quaisquer outros escritos humanos tanto como subversivas e íalsas Para Hobbes o conhecimento científico significava conhecimento matemático ou conhecimento geométrico Até agora escreveu a geometria é a única ciência cujas conclusões são indiscutíveis O termo geometria foi por vezes utilizado por Hobbes para designar todas as ciências matemáticas o estudo do movimento e da força a física matemática bem como o estudo das figuras geométricas A íilosoíia ou ciência pro cede de duas maneiras 1 pelo método compositivo ou de modo sintético por um raciocínio a partir das causas primeiras e produtivas de todas as coisas até seus efeitos aparentes ou 2 pelo método resolutivo ou analítico pelo raciocínio a partir de efei tos aparentes ou fiitos relevantes até as possíveis causas de sua produção Os primeiros princípios de todas as coisas são definidos por Hobbes como corpo ou matéria e movi mento ou mudança de posição qualquer parte do universo é corpo e aquilo que não é corpo não é parte do universo E porque o universo é tudo aquilo que não é parte dele não é nada De acordo com o modo de proceder sintético ou geométrico principia ríamos com as leis da íísica em geral a partir delas deduziríamos as paixões as causas do comportamento individual dos homens e das pabcões deduziríamos as leis da vida social e política No entanto é por meio do método analítico a análise da experiência sensorial que chegamos a definições adequadas dos primeiros princípios em si O método analítico tem relevância especial para a íilosoíia política Pois Hobbes esperava que a ciência moral e civil que elaborara fosse convincente não apenas para os filósofos naturais mas também para qualquer homem que aspire a raciocinar o suficiente para governar sua íámília particular Essa expectativa é razoável porque os fiitos em que sua análise se baseia são conhecidos por todos os homens normais por meio da experiência Hobbes convida seu leitor a testar a verdade do que escreveu pelo autoexame e por uma análise que decida se o que Hobbes diz sobre as paixões pensamentos e inclinações naturais da humanidade se aplica a ele então ao aprender a ler e conhecer a si mesmo por meio da símilitude entre as paixões e situações será capaz de desvendar as paixões e os pensamentos de todos os outros homens Embora a concepção de método científico de Hobbes tenha influenciado suas formulações apre sentação e análise da experiência humana o autor indica que não é sua concepção de ciência mas sua compreensão da experiência précientífica comum que devemos exa minar a fim de determinar a verdade e a importância de sua íilosoíia política Sugere 3 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ver p ex Leviathan chap xxxi final e The Elements o f Law Ed Ferdínand Toennies Cam bridge Cambridge University Press 1928 1171 que a adequação e a retidão de seus julgamentos ou percepções do que são as expe riências humanas fundamentais podem ser contempladas e compreendidas indepen dentemente de sua física O comportamento humano segundo Hobbes deve ser entendido primordial mente em termos de uma psicologia mecanicista das paixões das forças no homem que por assim dizer o empurram por detrás não deve ser entendido em termos das coisas que se poderia pensar que atraem o homem para a frente as finalidades do homem ou o que para Hobbes seriam os objetos das paixões Estes afirma Hobbes variam de acordo com a constituição e a educação de cada homem e são muito fáceis de disfarçar Além disso o bem e o mal as palavras com que os homens caracterizam os objetos de seus desejos e aversões são relativas estritamente ao uso humano das palavras não há nada que o seja simples e absolutamente nem há qualquer regra comum do bem e do mal que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos O que os homens realmente querem dizer quando afirmam que algo é bom é que isso lhes agrada Todavia também é verdade que como as paixões resultam em ações os homens são guiados por sua imaginação e por suas opiniões sobre o que é o bem e o mal mas os pensamentos não têm controle sobre as paixões ao contrário porque os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias que vão ao exterior procu rar o caminho para as coisas desejadas Hobbes estava de acordo com a tradição oriunda de Sócrates e incluindo Tomás de Aquino de que os objetivos e caráter da vida moral e política devem ser deter minados com referência à natureza à natureza humana em particular No entanto determinou a forma como a natureza estabelece as normas para a política de modo muito diverso da tradição ou seja por meio da construção de uma teoria do estado de natureza A teoria do estado de natureza deduzida afirma Hobbes das paixões do homem é uma forma de lidar com o antigo problema psicológico um problema de importância decisiva para a filosofia política o homem é por natureza social e políti co Hobbes nega que o homem seja por natureza social e político Os motivos desta negativa são evidenciados pela teoria do estado de natureza a condição prépolítica na qual os homens vivem sem governo civil ou sem um poder comum sobre eles que os mantenha sob o medo Se o homem não é por natureza social e político então todas as sociedades civis devem terse originado dos estados présociais e prépolíticos da natureza ou seja o T h o m a s H o b b e s 3 5 7 3 The Metaphysical System f Hobbes seleaed by Mary W Calkins Chico Open Court 1948 Conceming Body caps i e ii esp vi7 Leviathan cap xxxiv p 33941 cap xlvi The Introduction p 45 A Review e Conclusion p 627 Não é fácil determinar se Hobbes entendia seu materialis mo como simplesmente verdadeiro ou seja como metafísico ou como metodológico ou seja uma assunção necessária para proceder de modo científíco 4 Leviathan cap vi C f Elements 17111011 5 cap vi p 41 cap viii p 59 6 De Cive The Citizen The English Works of Thomas Hobbes Ed Molesworth 183945 v II cap i2 ver especialmente a nota estado de natureza deve ter existido entre os progenitores de todos os homens que agora vivem na sociedade civil Hobbes náo acreditava que jamais tivesse havido tal es tado em todo o mundo mas dizia que em muitos lugares da América hoje durante as guerras civis e entre soberanos independentes tal estado de íato existe A questão histórica porém não é muito importante para Hobbes O estado de natureza é dedu zido das paixões do homem e tem como intuito revelar e esclarecer o que precisamos saber sobre as inclinações naturais do homem a fim de estabelecer o tipo correto de ordem política Serve primordialmente para determinar os motivos as finalidades ou as metas pelos quais os homens constituem sociedades políticas Conhecendose essas finalidades o problema político tornase uma questão de como organizar o homem e a sociedade a fim de alcançar as metas do modo mais eficiente Qual seria a condição do homem se nâo houvesse sociedade civil Como os ho mens se relacionariam entre si Em primeiro lugar argumenta Hobbes os homens são muito mais iguais quanto às fiiculdades do corpo e da mente do que se admite A igualdade mais importante é a mesma capacidade que todos os homens têm de matar uns aos outros A importância desse fato está em que a maior preocupação dos homens é a sua própria preservação A autopreservação por sua vez é mais importante porque o medo o medo da morte violenta é a paixão mais poderosa A igualdade de capaci dade leva à igualdade das esperanças e à competição entre os homens entre todos os que desejam as mesmas coisas Essa inimizade natural é intensificada pela suspeita ou desconfiança que os homens sem governo têm em relação uns aos outros na medida em que preveem como cada um gostaria de privar os demais de quaisquer bens que possuam incluindo a vida de modo que cada um é levado a pensar em subjugar todos os demais até que não reste poder capaz de ameaçar sua segurança Ao contrário do que é afirmado nos livros dos antigos filósofos morais elucida Hobbes a felicidade ou satisfação consiste em um ininterrupto progresso do desejo de um objeto para o desejo de outro Uma vez que é assim o que os homens buscam sempre é algum meio de as segurar a realização de seus desejos futuros Os homens não só procuram adquirir mas também assegurarse de uma vida de contentamento para si mesmos Assinalo assim assevera Hobbes em primeiro lugar como tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte O problema da vida civil é ainda mais complicado pela presença em nossa na tureza do amor pela glória ou orgulho ou vaidade A todos os prazeres que não são físicos ou sensuais Hobbes denomina os prazeres da mente Todos estes são direta ou indiretamente derivados da glorificação A glorificação se baseia nas boas opiniões que um homem bom ouve ou tem de si mesmo ou de seu poder As opiniões são sem pre baseadas em comparações com outros Todo homem deseja que outros o valorizem como ele se valoriza e consequentemente ao menor indício de desprezo e desvalori zação dispõese a destruir aqueles que o menosprezam Mesmo quando os homens se reúnem para o lazer e a recreação procuram esses prazeres principalmente nas coisas 3 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Leviathan cap x i p 7 9 8 0 que provocam o riso E o riso explica Hobbes é causado pela glória súbita por se estar satisfeito por um ato próprio repentino ou pela visáo de alguma coisa deformada em outra pessoa devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos Esse quadro sombrio não é atenuado por qualquer referência a um senso de honra ou nobreza Honra e desonra entendidas da forma correta segundo Hobbes nada têm a ver com justiça ou injustiça A honra nada mais é que um reconhecimento ou opinião do poder de alguém ou seja a superioridade em particular o poder que tem alguém de ajudar ou prejudicar a nós mesmos Mesmo a admiração é definida por Hobbes como a concepção que temos de outro ser que tendo o poder de nos fazer o bem ou nos ferir não nos desejam fazer mal A ênfase não recai na admiração ou no amor mas no medo Estas três grandes causas naturais da discórdia entre os homens a competição a desconfiança e a glória fazem do estado de natureza de íato um estado de guerra e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens Em tal estado os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua pró pria força e sua própria invenção Numa tal situação não há lugar para a indústria pois seu fruto é incerto consequentemente nâo há cultivo da terra nem navegação nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar náo há construções confortáveis nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força náo há conhecimento da iàce da Terra nem cómputo do tempo nem artes nem letras náo há sociedade e o que é pior do que tudo um constante temor e perigo de mone violenta E a vida do homem é solitária pobre sórdida embrutecida e curta Além disso não há recurso à justiça no estado de natureza nada ali pode ser injusto pois a justiça e a injustiça existem tâo somente em termos de uma lei anterior e náo há lei fora da sociedade civil Em suma o homem não é social por natureza ao contrário a natureza dissocia o homem O estado da sociedade civil portanto é convencionado desde suas raízes Isso não significa que não estejam presentes nos homens certos impulsos ou forças naturais que o impelem para a vida civil Contudo significa que as forças antissociais são naturais na mesma medida e quando não são abrandadas pela convenção são ainda mais poderosas que as forças que promovem a vida civil Em vez de servir como um guia direto para a bondade humana a natureza indica aquilo de que o homem tem de íugir O único aspecto redentor do estado de natureza é a possibilidade de sair dele Com Hobbes já estamos em um ambiente favorável à ideia da conquista da natureza O medo da morte o desejo de conforto e esperança de obtêlo por meio de sua indústria inclinam os homens à paz A razão agindo junto com essas paixões de medo desejo e esperança sugere regras para a convivência pacífica Ao comparar essas pai xões com as três grandes causas naturais para a inimizade humana percebemos que o medo da morte e o desejo de conforto estão presentes tanto entre as inclinações para a T h o m a s H o b b e s 359 8 Ibid cap xiii p 1034 paz como entre as causas para a inimizade a vaidade ou o desejo de glória está ausen te do primeiro grupo A tarefa da razão é portanto descobrir meios de redirecionar e intensificar o medo da morte e o desejo de conforto de modo a dominar e anular os efeitos destrutivos do desejo pela glória ou oigulho Ao compreender a namreza humana de modo mecanicista tornamonos capazes de manipulála e afinal esta é a esperança de Hobbes de conquistála Hobbes denomina essas regras da razão de Leis da Namreza a Lei Moral e às vezes os ditames da razão Ao utilizar esses nomes admite que se dobra diante do uso tradicional para ele as regras são apenas conclusões ou teoremas referentes ao que conduz à autopreservação A rigor são leis somente os comandos do soberano civil Essas regras no entanto na medida em que são ordena das por Deus nas Escrituras podem ser denominadas leis Todas as leis da natureza e todos os deveres ou obrigações sociais e políticos deri vam do e são subordinados ao direito da namreza o direito de autopreservação do indi víduo Na medida em que o liberalismo moderno ensina que todas as obrigações sociais e políticas derivam e estão a serviço dos direitos individuais do homem Hobbes pode ser considerado como o fimdador do liberalismo moderno Podese esperar que rras e instituições sociais morais e políticas a serviço dos direitos individuais sejam muito mais eficazes que os sistemas utópicos de Platão e Aristóteles Pois os próprios direitos indi viduais derivam das pabtões e desejos egoístas mais poderosos dos homens o desejo por luna vida confortável e o mais poderoso de todos porque é o medo daquilo que é o pior de tudo o medo da morte violenta a paixão subjacente ao direito de autopreservação Uma vez que os direitos são sustentados pelas paixões em certo sentido seu cumprimen to pode ser autoimposto Na medida em que caem em descrédito os fimdamentos das doutrinas tradicionais de restrição moral e desprezo para com o egoísmo está aberto o caminho para uma nova legitimação ou santificação do ísm o hiunano O direito da natureza é a liberdade sem culpa para fazer ou deixar de fazer tudo o que se pode para preservar a própria vida O direito a um fim também implica um direito aos meios para esse fim Porque os homens diferem em inteligência e prudên cia alguns entendem melhor que outros as exigências da preservação Todavia para Hobbes essas diferenças intelectuais não são determinantes Independentemente de sua inteligência argumenta Hobbes homem algum tem interesse suficiente na pre servação de outros por conseguinte no estado de natureza cada homem deve ser o único juiz dos meios necessários para sua própria preservação Portanto cada homem tem o direito natural a todos os meios que julgue necessários a sua preservação Na inimizade universal do estado de natureza nada que não esteja sob o poder próprio de um homem pode ser considerado um perigo para a sua preservação e desta forma não há nada que não possa ser considerado como um meio para sua preservação Por conseguinte neste estado todo homem tem direito a mdo Ninguém está seguro em tal estado As leis naturais distintas dos direitos da natureza são os preceitos da 9 Ibid cap xiii 10 Elements 1146 360 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y razão que instruem os homens quanto ao que devem fazer para evitar os perigos à sua própria autopreservação que derivam igualmente de seus direitos naturais e de seus desejos irracionais Para assegurar sua autopreservação a primeira lei fundamental da natureza or dena que os homens procurem a paz e se defendam contra aqueles de quem a paz não pode ser obtida Todo o restante da lei moral as leis da natureza é direcionado para o estabelecimento das condições de paz A primeira lei da natureza derivada da lei fundamental é que cada homem deve estar disposto a se desfazer de seu direito a todas as coisas quando os outros também assim estiverem dispostos e deveria ficar satisfei to tão somente com a mesma liberdade contra outros homens quanto permite que outros homens tenham contra ele mesmo Este estabelecimento múmo de direitos é realizado por aquilo que veio a ser conhecido como o contrato social A sociedade civil é constituída pelo contrato social no qual cada um dentre uma multidão de homens se obriga por contrato com cada um dos demais a não resistir aos comandos do ho mem ou conselho que reconheceram como seu soberano Cada homem só celebra um contrato com vistas ao que é bom para si mesmo e sobretudo com vistas à surança e à preservação de sua vida Portanto não se pode presumir que alguém tenha aberto mão contratualmente desses direitos cuja perda anularia o objetivo de todos os con tratos Por exemplo não se pode conceber que alguém tenha desistido de seu direito de resistir a quem quer tente priválo de sua vida Quando um homem por contrato ou pacto abre mão ou renuncia a qualquer direito é obrigado ou compelido a não impedir aqueles a quem concedeu ou cedeu esse direito de usufruírem os benefícios desse direito Em outras palavras de acordo com a próxima lei da natureza os homens devem cumprir seus pactos Se este prin cípio não se sustenta a própria sociedade se dissolverá Este princípio fidelidade aos contratos de acordo com Hobbes é a base de toda a justiça e injustiça pois onde não há pacto precedente nenhum direito foi cedido ou transferido e todo homem tem direito a tudo Assim a injustiça ou o dano nada mais é que o descumprimento dos pactos o exercício de um direito do qual a pessoa já abriu mão legalmente Toda a legislação genuína então vem a ser uma forma de autolegislação e os danos são como uma autocontradição uma disposição de fezer aquilo que alguém já se propôs a não fazer Todos os deveres e obrigações para com os outros derivam de pactos Mas pactos ou contratos em que uma ou ambas as partes prometem realizar algo no futuro dependem da confiança Não há confiança e não há pacto válido quando há um receio razoável de descumprimento por qualquer uma das partes Não há confian ça no estado de natureza Portanto antes de ser correto empregar os termos justo ou injusto deve haver algum poder coercitivo o soberano que pode obrigar da mesma forma todos os contratantes a cumprirem os pactos O soberano deve cuidar para que o terror da punição seja uma força maior do que a atração de qualquer benefício que poderia advir de uma violação do pacto Não se apela a qualquer força moral a T h o m a s H o b b e s 361 11 Ibid 1162 De Cive chap iii3 fim de criar condições de confiança mais uma vez o medo é a paixão a ser invocada Segundo Hobbes o cálculo inteligente do autointeresse é tudo o que é necessário para fàzer justo um homem O fato de que age sob coação não fàz dele menos justo pois o interesse próprio é a única base da moralidade Uma das conseqüências deste tipo de raciocínio é uma ampliação da noção tradicional de guerra justa Para Hobbes tal como para Bacon não é necessária a intenção de corrigir um dano prévio para justifi car a guerra basta o critério subjetivo o medo da força de uma nação vizinha Hobbes visava diretamente a ideia de justiça distributiva de Aristóteles A doutri na de que alguns homens por natureza são mais dignos de comandar e outros mais dignos de servir é a base da ciência política de Aristóteles escreveu Hobbes A dou trina é íálsa porque no estado de natureza todos os homens são iguais a desigualdade ora encontrada entre os homens foi introduzida pelas leis civis Além disso a dou trina é perigosa porque contribui para o orgulho A justiça distributiva concebida dc modo adequado é a justiça de um árbitro e consiste não em distribuir a cada um proporcionalmente a suas virtudes c vícios mas em tratar todos como iguais Pois ex plica Hobbes se a natureza fez os homens iguais essa igualdade deve ser reconhecida Mesmo que a natureza os fizesse desiguais os homens sempre se considerarão iguais e portanto só aceitarão termos de paz em igualdade de condições Desta forma pelo bem da paz essa igualdade deve ser admitida mesmo que não exista Por conseguinte constitui uma lei da natureza que todos os homens reconheçam uns aos outros como iguais por natureza As diferenças naturais entre os homens são portanto inexistentes ou politicamente irrelevantes Um objetivo domina a discussão de Hobbes sobre as leis da natureza tomar os homens sociáveis e pacíficos e assim eliminar ou reduzir ao mínimo o atrito o ressentimento e a hostilidade gerada entre os homens pelo orgulho pela parcialidade e pelo amorpróprio excessivo em geral Entre as leis da natureza estão regras para a arbitrem de controvérsias e para a distribuição imparcial de bens em disputa É proibida a ingratidão Não devem ser permitidas as manifestações de ódio desdém ou desprezo nem mesmo por parte de juizes para com criminosos con denados Para que não se pense que nem todos os homens são capazes de compreen der todas essas leis da namreza Hobbes afirma que todas podem ser compreendidas mesmo pelos muito negligentes ou demasiado ocupados para aprendêlas por meio da seguinte regra Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti A lei moral não é voltada para o aperfeiçoamento de nossas naturezas Aristóteles estava errado quanto à virtude e ao vício Porque suas opiniões eram apenas as opiniões vigentes durante seu próprio tempo e ainda aceitas pela maioria dos homens iletrados afirmou Hobbes não é provável que fossem muito precisas A virtude se significa algo além da potência de um homem tratase do hábito de íàzer o que conduz a nossa própria autopreservação bem como a sua condição fundamental a paz o vício é o contrário 362 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 12 Leviathan cap xiv p 1078 cap xv p 12813031 cap xxvii p 251 cap xiii p 43536 cap xxvi p 23132 13 Elements 74eò3 O defeito fundamental das leis namrais os ditames da razão é que obriga os homens somente no que se refere a sua consciência e as ações e vontades dos homens são determinadas não pela consciência ou razão mas pelo medo de punição e pela esperança de recompensa Existe o medo de poderes invisíveis Deus ou deuses no estado de natureza mas esse medo não é suficientemente potente O que é necessá rio segundo Hobbes é o estabelecimento de condições que de feto tornam sjura a obediência às leis naturais caso contrário aquele que obedece a tais regras só se coloca à mercê dos que não as obedecem Em suma o govemo civil ou político os poderes visíveis são necessários A segurança exige em primeiro lugar a cooperação de muitos homens uma multidão grande e poderosa o bastante tanto para tornar perigosa a violação dos pactos e a invasão dos direitos uns dos outros como para proporcionar uma defesa contra os inimigos estrangeiros Não há limite definido para o tamanho de uma sociedade civil Deve ser grande o suficiente para dissuadir qualquer inimigo de arriscar a guerra e portanto depende do tamanho do inimigo Estes requisitos e os elementos antissociais da natureza do homem indicam que a unidade alcançada por meio do consentimento muitas vontades concordando com um só objetivo um bem comum não é suficiente para unir os homens A sociedade política ou a nação exige uma verdadeira unidade ou união Esta união tal como a justiça e a injustiça é definida por Hobbes em termos jurídicos A nação deve ser constituída como uma pessoa jurídica por uma grande multidão de homens cada um dos quais pactua com todos os demais quanto à vonta de desta pessoa jurídica civil ou artificial ser a sua própria vontade Esta pessoa jurí dica o soberano é a nação Em termos práticos isto significa que cada súdito deve conceber todos os atos do poder soberano como seus próprios atos toda a lislação do soberano como a sua própria autolegislação De feto o poder soberano o poder de representar e comandar as vontades de todos pode ser atribuído a um homem ou a um conselho Hobbes foi o primeiro a definir a nação como uma pessoa Achou isso necessário pelos suintes motivos Dado que a única obrigação legítima é em última análise a autoobrigação a liberdade do homem no estado de natureza deve sobre viver de alguma forma em sua submissão ao governo pois ninguém tem qualquer obrigação que não derive de algum de seus próprios atos visto que todos os homens são por natureza igualmente livres Isso é conseguido por meio das ficções lais de que o soberano é uma pessoa com uma vontade que pode representar as vontades de todos os seus súditos e que a lislação do soberano é a autolislação do súdito Por meio dessa união os poderes e feculdades de todos os súditos podem ser levados a contribuir plenamente para a manutenção da paz e da defesa comum O contrato social tem duas partes 1 um pacto de cada membro do futuro oiganismo civil com cada um dos outros para reconhecer como soberano qualquer homem ou assembleia de homens com quem a maioria deles concordar 2 a votação T h o m a s H o b b e s 363 14 Leviaéan cap xiv p 117 13 Ibid cap xxi p 183 que determina quem ou o que será o soberano Todos aqueles que náo sáo partes do contrato permanecem em estado de guerra e sáo portanto inimigos dos demais A validade do paao não é de forma auma afetada por ter sido celebrado sob coação medo da morte e da violência ou não O corpo político afirma Hobbes pode ser criado namralmente bem como por instituição Todo governo paterno e despótico emei da primeira forma por medo do próprio soberano por exemplo quando este é o vencedor na guerra todo o govemo por instituição emerge do medo mútuo dos indivíduos O medo é o motivo em ambos os casos As duas fimdações são igualmente legítimas não há diferença no que se refere ao direito entre a fimdação pela conquista e a fimdação pela instituição Na aquisição da soberania por conquista não íàz diferença se a guerra foi uma guerra justa ou não Uma vez que ninguém pode realmente transferir a sua força e fiiculdades para outro o contrato social de fàto obriga todos a não resistirem à vonude do poder soberano É óbvio que nem todos os cidadãos participaram de tal pacto mas quem vive em uma nação que aceita a proteção do governo do soberano deve ser considerado como alguém que tacitamente aceitou o paao Pelo que parece para Hobbes a exatídão na vida política que corresponde à precisão matemática em assuntos teóricos é a precisão jurídica E assim como as controvérsias são resolvidas na matemática assim é evidente Hobbes esperais que as controvérsias políticas que sem pre perturbaram a paz do mundo político poderiam ser postas de lado por uma dedução precisa a partir do contrato social dos direitos e deveres do soberano e do súdito O contrato social só é vinculatório quando é atingida a finalidade pela qual é ce lebrado a segurança A obediência é trocada pela proteção Não que os homens jamais possam estar completamente seguros contra danos por outros Basta que cada cidadão saiba que qualquer um que pretenda prejudicálo tenha mais medo da punição pelo soberano do que tem a ganhar com o seu crime O primeiro direito do soberano é o direito de punir ou o direito de exercer o poder de polícia Tal decorre da renúncia fimdamental do direito de resistência acor dado por todos os cidadãos Nenhum súdito pode ser libertado de sua sujeição pela alegação de que o soberano tenha cometido uma violação do paao pois o soberano não celebrou paao com nenhum súdito os súditos pactuaram somente entre si Uma vez que o soberano não pactuou com ninguém só ele tem o direito a todas as coisas que possuíam todos os homens no estado de natureza Por conseguinte não pode nem causar dano a ninguém nem cometer injustiça visto que a injustiça ou o dano no sentido estrito ou jurídico nada mais é que o não cumprimento do pacto assumindo um direito que já fora cedido por meio do pacto Além disso uma vez o soberano representa a vontade de cada um dos súditos quem acusa o soberano de dano está acusando a si mesmo e é impossível fezer injustiça contra si mesmo Desta forma de modo algum pode o soberano ser punido justamente por seus súditos O direito de íàzer a guerra e a paz que inclui o direito de cobrar impostos e de obrigar os cida dãos a pegarem em armas para a defesa de seu país também é incorporado ao sobera no pois esses direitos devem estar nas mãos do mesmo poder que pode punir aqueles que não querem obedecer 364 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y O poder legislativo também deve estar nas mãos do soberano pelo mesmo mo tivo os homens não obedecem aos comandos daqueles a quem nâo têm motivo para temer O poder da espada o poder punitivo e o poder legislativo devem estar nas mesmas mãos As leis civis de cada nação não sâo nada além dos comandos do sobe rano civil Prescrevem de que bens um homem pode usufruir isto é definem o que é e o que não é propriedade privada Determinam que ações um homem pode realizar sem ser molestado por seus semelhantes isto é prescrevem o que é bom mau justo injusto honesto e desonesto Contribuem para a paz ao tentar resolver todas as ques tões controversas antes que surja a controvérsia O poder judicial pelo mesmo motivo que o poder lislativo também está com prometido com o soberano Porque o soberano deve ser capaz de determinar os meios para exercer suas fimçóes o poder executivo e o poder de nomear todos os conselheiros ministros magistrados e fimcionários também está investido nele Além disso porque todas as ações voluntárias dos homens dependem de suas vontades e suas vontades de pendem de suas opiniões sobre o bem e o mal ou da recompensa e punição que rece berão por agir ou omitirse o soberano deve ser o juiz de todas as doutrinas e opiniões que podem ser comunicadas aos cidadãos O critério para a censura é que doutrinas são favoráveis e quais incompatíveis com a paz Este poder de censura absoluta também se aplica às opiniões religiosas Na realidade a religião é definida por Hobbes com vistas a este poder Tanto a religião como a superstição são definidas como o medo do poder invisível O que as distingue é que a primeira é permitida pela autoridade pública a última não As opiniões que segundo Hobbes mais perturbaram a paz do mundo cris tão são as opiniões que levam os cidadãos a ctetem que devem obediência a outros além daqueles a quem está reservada a suprema autoridade civil Retomaremos este assunto em nossa discussão sobre os ensinamentos de Hobbes acerca do cristianismo É evidente a partir dessa lista de poderes que o poder do soberano é absoluto ou seja nenhum poder maior pode ser concedido pelos homens a qualquer homem O soberano não é obrigado a obedecer às leis civis pois são estas apenas seus coman dos dos quais pode liberarse a seu belprazer Ninguém pode reivindicar quaisquer direitos de propriedade contra ele pois toda a propriedade é derivada das leis ou seja da sua vontade Contrariar a vontade do soberano em qualquer caso particular seria o mesmo que se opor aos fundamentos de toda a propriedade e portanto autodes trutivo Quando os cidadãos têm permissão para mover uma ação judicial contra a autoridade suprema a questão nâo pode ser se o soberano ou seus ministros tinham o direito de fazer o que foi feito mas sim o que a vontade do soberano de fiito determi nou quanto a essa matéria Que o poder absoluto está realmente implícito em todos os governos pode ser percebido pelos casos de generais a quem são temporariamente concedidos poderes absolutos em tempos de guerra Apenas o detentor do poder ab soluto pode conceder um poder absoluto mesmo que temporário E quando por exemplo uma assembleia constituinte prescreve limites aos poderes de um governo o exercício do poder de limitação constitui em si um exercício de poder absoluto Não é válida a objeção de que esse poder absoluto nunca foi reconhecido pelos cidadãos T h o m a s H o b b e s 365 em lugar algum como geralmente não o são os argumentos da prática pois a prática pode ser uma prática defeituosa A arte de fazer e manter nações consiste em seguir determinadas regras tão bem definidas quanto as regras da aritmética e da geometria Hobbes acreditava ser o primeiro a descobrir essas regras Determinados direitos do súdito são inalienáveis ou seja não podem ser trans feridos ou abdicados por meio de um pacto Pois não há obrigação do homem que não resulte de algum ato de sua autoria e presumese que cada ato próprio vise algum bem para si mesmo portanto nenhum contrato incluindo o contrato social deve ser interpretado de modo a priw um homem da condição de todo o bem para si mesmo de sua vida ou dos meios para garantilos Todo homem pode justamente desobedecer qualquer ordem para matar ou fèrir a si mesmo ou para absterse de ao de que necessite para viver O direito à autopreservação permanece inviolável Porém não são os soldados obrigados a sacrificar suas vidas na guerra E não é em certo sentido o medo da morte violenta a base de toda a legitimidade e portanto um motivo suficiente para justificar a desobediência civil Hobbes enfrentou esse problema e concluiu que fugir da batalha por medo é desonesto e coAude mas não injusto É tarefa do soberano assegurar que o medo da deserção supere o medo da batalha Desobedecer ao comando do soberano para lutar contra um inimigo não é injusto se um homem encontrar um substimto à altura É justo que um homem condenado resista ao carrasco que cumpre seu dever legal Ne nhum homem em um julgamento criminal é obrigado a depor contra si mesmo pois nenhum pacto incluindo o pacto fundamental pode obrigar um homem a prejudicar a si mesmo Nenhum homem é obrigado por exemplo a executar seus próprios proge nitores ou um benfeitor ou cometer qualquer ato que seja tão vergonhoso que o fizesse tão desgraçado e desprezado que se cansasse da própria vida É evidente que essas liberdades invioláveis dos cidadãos podem ser ampliadas e interpretadas como sendo o padrão que distingue o bom do mau soberano ou seja como capazes de proporcionar aos cidadãos padrões pelos quais poderiam legitimamente criticar julgar e assim enfraquecer a autoridade soberana Se lhes fosse dada forma ins timcional poderiam conduzir a uma soberania limitada Hobbes tentou o quanto pôde protrse contra o princípio revolucionário inerente a todas as tentativas de estabelecer princípios de govemo aquele que estabelece os princípios que justificam a autoridade com esse mesmo ato estabelece padrões para justificar a alteração ou supressão dessa autoridade quando se afasta desses princípios Apesar dessas exceções à obrigação de obe diência ao soberano permanece o direito absoluto do soberano ele pode legitimamente punir com a morte qualquer recusa ou resistência não importa até que ponto sejam justas Se o soberano exerce seu direito contra a razão correta no entanto ele como todo homem no estado de natureza peca contra as leis naturais e portanto é responsável perante seu autor Deus por sua iniqüidade Além disso admite Hobbes há um deter minado castigo natural para o governo negligente a saber a rebeldia 366 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 16 Ibid cap XV p 12830 cap xxi cap xxviii p 25859 De Cive cap vil3 Em todas as matérias em que as leis se calam o súdito tem o direito de fezer ou tolerar segundo sua vontade E às vezes prudentemente um soberano pode eximirse de exercer o seu direito mas isso em nada diminui o direito Não há nenhuma razão válida para que os soberanos desejem oprimir seus súditos pois a força dos soberanos depende diretamente da força e bemestar de seus súditos Decerto admitia Hobbes esse poder absoluto não deve ser abusado mas não há nenhuma situação de vida humana sem inconvenientes Entendese que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e apenas enquanto dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegêlos E não há como evitar o feto de que aquele que tem poder de proter a todos também tem poder para oprimir a todos Seguindo o livro de Jó Hobbes comparou o soberano ao Leviatã a quem Deus chamou de Rei dos Orgulho sos Somente o maior dos poderes terrestres pode governar o orgulho do homem O Leviatã de Hobbes é também como um Leviatã na medida em que governa as mentes dos homens e esmaga e arranca pela raiz as sementes do orgulho humano Existem três tipos de nações diferindo na medida em que divergem seus respecti vos poderes soberanos Quando o poder está comprometido com um homem o governo é uma monarquia quando o compromisso é com uma assembleia de homens na qual todo cidadão tem o direito de voto é uma democracia quando o compromisso é com uma assembleia na qual apenas parte dos cidadãos tem o direito de voto é uma aris tocracia Os antigos autores gregos e romanos também distinguiam entre bons e maus governos Chamavam de tirania o mau governo por um homem de anarquia o governo ruim pelo povo ou por muitos oligarquia o governo ruim de poucos Bons e maus go vernos distinguiamse consoante os governantes governarem principalmente em prol do bem comum ou da vantm comum ou em prol de suas próprias vantagens egoístas Estas distinções morais sjmdo Hobbes são ineficientes Indicam apenas o gosto ou desgosto subjetivo de quem os usa Aqueles que não gostam da monarquia chamamna de tirania igualmente anarquia é o nome que se dá à democracia da qual não se gosta oligarquia o nome da aristocracia execrada Esta rejeição do que Hobbes denomina a distinção aristotélica entre os governos que governam em beneficio dos súditos e aqueles que governam em beneficio dos governantes àz com que a distinção entre um tirano e um monarca legítimo seja politicamente sem sentido Tanto súditos como governantes aiumenta Hobbes compartilham em igual medida os primeiros e maiores benefícios de todo governo a paz e a defesa Todos sofirem da mesma maneira a maior desgraça a guerra civil e a anarquia Dado que a força e o poder do governante sempre dependerão da força e poder de seus súditos ambos sofirem as mesmas desvanuens se o governante enfraquece os indivíduos ao priválos de dinheiro e bens Uma base mais profunda talvez para rejeitar a distinção era a crença de Hobbes de ser possível esperar que nenhum governante ou detentor da soberania buscasse van uens próprias vantagens para a fiunília e amigos tanto quanto e até mais que as vantagens para o público Com base na redução hobbesiana do bem e do mal ao prazer T h o m a s H o b b e s 367 17 Leviathan cap xxi p 187 e à dor e sua doutrina da soberania tornamse muito menos importantes as eternas controvérsias políticas sobre qual é a melhor forma de governo Essas controvérsias estavam necessariamente ligadas à questão acerca de quais fins gerais deve buscar a sociedade civil por exemplo a liberdade o império ou a riqueza Ao contrário das doutrinas errôneas de Aristóteles e Cícero e de outros autores gregos e romanos que segundo Hobbes eram parciais ao governo popular em cada forma de governo são iguais o poder do governo e a liberdade do cidadão A soberania é absoluta em cada nação O objetivo ou finalidade de cada forma de governo é a mesma paz e segurança As questões decisivas políticas ou práticas tendem a se tornar questões técnicas ou ad ministrativas tais como em que tipo de administração dos poderes soberanos atingese a paz e a segurança de maneira mais conveniente Uma vez que aqueles que têm a autoridade soberana sendo homens estarão sempre mais preocupados com seus interesses privados o interesse público será mais bem atendido onde estiver mais intimamente ligado a interesses privados Isso ocorre com a monarquia que é portanto a melhor forma de governo Na democracia onde cada homem detém uma parte da soberania é o maior possível o número de pessoas capazes de enriquecerem e servirem a si mesmas à custa do interesse público Em uma monarquia só pode haver um Nero em uma democracia pode haver tantos Neros quanto há oradores que lisonjeiam a multidão O monarca pode promover pessoas indignas mas muitas vezes não o fiiz Em uma democracia não pode ser evitada a promoção de pessoas indignas Pois dentro da democracia há sempre uma forte con corrência entre os oradores populares ou demagogos e o poder de cada um demsogo depende de seu poder de controlar e distribuir patrocínio Aqueles que não se esfor çarem para beneficiar e atrair tantas pessoas quanto possível dignas e indignas para o seu lado ou facção serão logo esmjados por aqueles que o conseguirem A partir daí fica íácil entender o principal defeito da democracia a tendência de gerar íacções e guerras civis Neste quesito a aristocracia fica em algum lugar entre as outras duas formas Tornase melhor quanto mais se aproxima da monarquia pior quanto mais se aproxima da democracia Quanto ao exercício efetivo do poder soberano podese duvidar que a democracia seja de feto algo diverso de uma aristocracia de oradores ou uma monarquia temporária de um só orador Aqueles que se queixam da falta de liberdade sob a monarquia não compreendem o que realmente desejam Pois as liber dades de um súdito tal como definidas pela doutrina da soberania são as mesmas em todos os governos contudo em uma democracia os acusadores da monarquia seriam os governantes bem como os súditos Não almejam a liberdade mas o domínio ou o poder e as honras que a acompanham A verdadeira causa de sua insatisfeçáo é que a monarquia privaos da oportunidade de exibir sua sabedoria conhecimento e elo qüência na deliberação ou encenação de deliberação sobre assuntos da maior impor tância O amor à liberdade segundo Hobbes acaba por ser apenas uma máscara para o desejo de louvor para a vaidade Apesar dessas críticas e de outras como a irresolução 368 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 18 De Cive cap x 2 e x 16 19 Ibid cap X esp x7 x8 e xl5 de conselhos divididos a dificuldade de agir de modo secreto e assim por diante a democracia ocupa uma posição bastante privilegiada dentro da estrutura baseada na ideia do estado de natureza e da doutrina da soberania Podese analisar este aspecto como se segue A instituição da monarquia ou da aristocracia exige a nomeação ou designação oficial prévia de determinadas pessoas como soberano A democracia entretanto pode ser instituída diretamente pelos indivíduos entre si Por conseguinte a forma original ou a primeira forma de todos os governos instituídos é a democracia Uma vez que todos os homens no estado de natureza têm direitos iguais e que em última análise todas as obrigações legítimas são autoobrigação a primeira parte do contrato social a fim de ser vinculatória deve ser um acordo de cada homem com todos os outros homens para aceitar como soberano a pessoa ou pessoas designadas por uma maioria de todos eles Este primeiro acordo de cada homem com todos os outros homens constitui a multidão como um povo democrático o ato de nomeação do soberano cada homem tendo um voto igual é um ato democrático Poderíamos dizer que o único procedimento democrático é coerente com a igualdade dos homens no estado de natureza De acordo com um princípio muitas vezes enunciado por Hobbes quem quer que tenha o poder de dispor da soberania é o verdadeiro soberano podese dizer que o povo como um povo democrático é o soberano fimdamental de cada nação instituída Hobbes protegiase contra esta conclusão por meio da abordagem de um argumento mais fundamental a saber como todos os contratos dependem do con sentimento dos contratantes podem ser dissolvidos pelo mesmo consentimento Por conseguinte o povo ao retirar seu consentimento pode dissolver o governo Primeiro de tudo responde Hobbes o contrato original obriga cada homem a todos os outros náo à maioria mesmo que uma maioria esmagadora Enquanto um só homem discor dar da dissolução do contrato os demais não têm o direito de dissolvêlo Não se pode imaginar afirma Hobbes que todas as pessoas sem exceção se uniriam contra o poder supremo Mas há uma obrigação distinta do próprio soberano pois cada homem ao concordar em reconhecer os atos do soberano como seus próprios transferiu ao sobe rano seu direito natural de usar seus poderes como lhe aprouvesse Não pode retirar o que pertence agora ao poder supremo sem cometer injustiça contra o soberano Os tradicionais argumentos em favor do regime misto ou governo limitado são rejeitados por Hobbes por se basearem em um conhecimento insuficiente do que é uma verdadeira união Quando por exemplo a soberania é supostamente dividida entre um executivo monárquico um poder judicial aristocrático e um corpo popular que contro la as finanças a liberdade do súdito é tão restrita quanto pode ser em qualquer governo enquanto os três ramos estiverem de acordo A vanuem de tal divisão de poderes então residiria no desacordo ou controle mútuo dos três poderes mas essa divergência segundo Hobbes constitui a guerra civil e a dissolução do governo Hobbes reconhecia que muitos governos duram muito tempo com a crença equivocada de serem governos T h o m a s H o b b e s 3 6 9 2 0 Ibid cap v i2 0 desse tipo Contudo nas monarquias limitadas e nas ditaduras temporárias conhecidas na história os verdadeiros soberanos nâo eram os monarcas mas as assembléias que limitavam os monarcas Um corpo político genuíno argumenta é constituído náo por acordo ou concórdia mas peü união pela aproximação das vontades e assim da força e do poder de todos na vontade de uma pessoa jurídica o soberano A verdadeira monarquia segundo Hobbes é a monarquia hereditária pois o verdadeiro soberano de uma monarquia eletiva é o colégio eleitoral A principal difi culdade para as monarquias é o problema da sucessão em particular o problema de quem deve apontar o sucessor do rei O atual possuidor da soberania deve determinar seu sucessor Hobbes elabora regras detalhadas sobre o que deve ser entendido como a vonude do monarca caso não tenha mencionado expressamente quem deve herdar seu poder Prossegue falando de modo geral a partir do pressuposto de que o parente mais próximo é o mais próximo em afeto e assim deve ser entendido como sucessor Hobbes define a lei em termos de vontade não de razão Os conselhos por ou tro lado baseiamse em razões razões deduzidas dos benefícios a serem obtidos pelo aconselhado O conselheiro tem como meta o bem de outro ou finge têla Mas a lei é comando e não conselho e um comando que deverá ser obedecido apenas porque exprime a vontade daquele que manda Como o objeto da vonude de cada homem é algo de bom para si mesmo cada comando tem como objetivo o bem daquele que man da A lei é um comando dirigido a alguém que tenha sido obrigado a obedecer an teriormente um comando de a é m que já tenha adquirido o direito de ser obedecido O direito civil é um desses comandos emitidos pela nação o soberano Mais plena mente as leis civis são aquelas regras comandadas pela nação para cada súdito por meio de algum sinal suficiente da sua vontade que deverão ser utilizadas pelos súditos para distinguir o certo do errado Os ensinamentos políticos de Hobbes as leis natu rais em si são apenas conselhos até que comandadas por um soberano civil O costume em si não tem poder para criar leis A lei consuemdinária deriva sua autoridade do consentimento tácito do soberano amai Diziase que o direito comum e o direito do capital eram guiados pelo padrão da razão correu um padrão que por ser considerado independente e superior a toda autoridade política poderia ser e foi utilizado pau refrear e questionar os atos irracionais de todas as autoridades civis Ho bbes reinterpreta o entendimento tradicional do direito comum de tal forma a tornar impossível o recurso a qualquer autoridade superior ao soberano civil Concorda com os advogados que a lei nunca pode ser contra a razão Mas a razão de quem pergunu Não a razão de estudiosos ou sábios ou juizes subordinados mas a razão dessa pessoa artificial a nação responde Em sua discussão sobre o direito comum Hobbes não distingue a razão da nação de sua vontade Em cada decisão justa o juiz referese à razão que impulsiona o soberano que ocupa o trono a fezer ou autorizar a lei que re gula o caso em apreço o juiz não recorre às razões que influenciaram o soberano sob o qual a lei em questão foi promulgada A abordagem de Hobbes parece levar à ideia da supremacia absoluta da atual lei estatutária O cânone da Igreja ou a lei eclesiás tica também é lei mas somente na medida em que é constituída pelo soberano civil 3 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Todas as leis é claro exigem intérpretes isto é juizes para aplicar as leis aos casos particulares O soberano é o intérprete supremo da lei e constitui igualmente a todos os intérpretes subordinados ou juizes Nada que os mortais criam diz Hobbes pode ser imortal No entanto com a ajuda de um arquiteto muito hábil as nações podem ser construídas de modo a im pedir que pereçam de distúrbios internos Hobbes descreve as forças da natureza do homem que sempre tenderam para a dissolução da paz e da ordem civil Todavia essas forças não serão neutralizadas pela reforma moral por apelos ao que fora considerado como a porção mais nobre da natureza do homem Hobbes apela ao contrário ao au tointeresse esclarecido c com base no conhecimento e manipulação dos mecanismos das paixões apoiase na concepção do tipo correto de instituição Não havia necessi dade para ele como houve para Aristóteles dc distinguir os tipos e níveis de povos a íim de determinar que tipo de governo é apropriado para cada um deles Hobbes tem em visa a elaboração de um sistema de governo que seria correto para todos os tempos povos e lugares Ao construir seu edifício sobre o menor denominador comum da motivação humana poderia esperar que se mantivesse firme em qualquer lugar c cm todo lugar Pois quando são dissolvidas as nações não por violência externa mas por desordem intestina a causa não reside nos homens enquanto matéria mas enquanto seus obreiros e organizadores Um grande erro é muitas vezes cometido no início de uma nação quando os homens a íim de obter um reino se contentam com menos poder do que é necessá rio para a manutenção da paz e a defesa Então quando a segurança pública exige o exercício desses poderes renunciados sua retomada aparece como um ato de injustiça Isso por sua vez dispõe um grande número de homens à rebelião e conivência com potências estrangeiras que sempre recebem bem a oportunidade de enfraquecer seus vizinhos Assim a promessa de Guilherme o Conquistador de não violar a liberdade da Igreja levou à deserção de Tomás Beckett e sua obtenção do apoio do papa contra Henrique II E porque nem o Senado nem o povo de Roma reivindicavam todo o poder desenvolveramse as sedições dos Gracos depois as guerras entre o Senado c o povo sob Mário e Sula e César e Pompeu e finalmente o próprio governo popular em Roma foi destituído e a monarquia foi instituída Assim é uma violação dos seus deveres que o soberano abra mão de qualquer de seus direitos Além disso é uma violação de seus deveres permitir que o povo seja mal infor mado ou desconheça as bases para os direitos do soberano A primeira tarefe a este respeito é purgar a nação do veneno das doutrinas sediciosas O primeiro grupo de T h o m a s H o b b e s 371 21 Para um confronto entre a jurisprudência hobbesiana e a tradicional compare o cap xxvi Do direito civil do Leviathan com Tomás de Aquino Summa Theologca III Qq 9097 publicada pela Henry Regnery Co como Treatise on Law em oposição à qual o capítulo de Hobbes pode ter sido escrito Ver também seu A Dialogue between a Philosopher and a Student ofthe Common Laws ofEngland The English Works of Thomas Hobbes Ed Molesworth VI 22 Leviathan cap xxix p 27576 doutrinas sediciosas originase principalmente das palavras de sacerdotes ignorantes que mal interpretando as Escrituras induzem os homens a pensar que a santidade e a razáo natural náo podem ficar juntas Ensinam que todo indivíduo privado é o juiz de ações boas e más Isso é verdade no estado de natureza mas na sociedade civil o direito civil e o soberano são a medida e os juizes do bem e do mal Uma segunda doutrina repugnante para a sociedade civil afirma que é pecado aquilo que o homem fiiz contra a sua consciência incluindo o que lhe ordena seu sobe rano Se o ato ordenado é pecaminoso é pecado do soberano e é ele o responsável pelo ato perante Deus O pecado não é do súdito Pelo contrário o pecado é a desobediên cia ao soberano Pois por desobedecer o súdito arroga para si o conhecimento e julga mento do bem e do mal sendo na verdade a mesma coisa tanto a consciência quanto o julgamento Em terceiro lugar na ordem está a doutrina de que a fé e a santidade nâo devem ser atingidas pelo estudo e pela razão mas sim por inspiração sobrenatural ou infusão Se esta doutrina for aprovada afirma Hobbes não compreende ele por que razão todos os cristãos não seriam também profetas ou por que razão alguém deveria seguir como regra de ação a lei de seu país em vez de sua própria inspiração Ao mesmo tempo essa doutrina leva os homens a se estabelecerem como juizes do bem e do mal Depois há aquele grupo de sofismas eloqüentes elaborados por Aristóteles Platão Cícero Sêneca Plutarco e os demais mantenedores das anarquias grega e romana os sofismas assumidos pelos advogados para servirem a seus próprios interesses tal como a doutrina de que os soberanos estão sujeitos às suas próprias leis que a autoridade suprema pode ser dividida que os indivíduos particulares têm di reitos absolutos sobre a propriedade os quais excluem a interferência do soberano e finalmente a doutrina também propagada por muitos sacerdotes de que o tiranicídio é lícito e até louvável Esta última afirmação eqüivale a dizer de acordo com Hobbes que é legal que os homens se rebelem contra seus reis e os assassinem conquanto que primeiro os chamem de tiranos Finalmente há a doutrina enraizada no receio da escuridão e dos espíritos e retirada da escuridão das distinções da escola a doutrina da divisão do poder civil ou temporal do poder espiritual ou fimtasmagórico Em sua discussão teológica Hobbes tenta provar pelas Sagradas Escrituras que essa distinção não tem nenhum significado e que nenhum homem pode servir a dois senhores Não basta eliminar as opiniões sediciosas e íàlsas O soberano tem como dever íàzer com que as verdadeiras bases pata seus direitos sejam ensinadas ao povo Isto significa em primeiro lugar adotar nas universidades os livros de Hobbes como os textos mais abalizados sobre moral e política Aparentemente Hobbes considerava o seu projeto como uma meta educacional de longo alcance pois segundo ele próprio não estava muito interessado em saber se seus livros seriam adotados no dia de hoje No entanto ansiava para que seus livros fossem oficialmente recomendados por algum soberano para o ensino nas universidades as fontes da doutrina moral e civil Devese começar elu cidava com a mente dos jovens não corrompidas pelas doutrinas de Atenas e de Roma 3 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 23 Ibid cap xxix Aqueles que são instruídos de modo adequado quando deixarem as universidades como pregadores nobres homens de negócios e advogados no exercício da sua atividade diária transmitirão os verdadeiros fundamentos do direito civil para o povo As dificuldades na maneira de ensinar o povo são em geral superestimadas acreditava Hobbes Pois antes de mdo não é muito difícil aprender aquilo que apela para nossos próprios interesses egoístas e em segundo lugar em um julgamento recordativo do modo como Maquiavel avaliava o povo observa Hobbes que o povo não tem o orgulho e a ambição que obstrui a mente dos ricos dos poderosos e daqueles cuja reputação é de serem instruídos Apesar de sua exaltação da soberania e da monarquia Hobbes é evidente espera que algum dia suas doutrinas se tornem populares Nada de muito positivo foi dito sobre a boa sociedade pela qual ansiava Hob bes uma vez que estejam firmes as condições de paz A ênfiise de Hobbes recai sobre situações extremas como a guerra civil quando toda a lei e a ordem entram em co lapso sobre os perigos para a paz resultantes das tentativas de questionar e restringir a autoridade do soberano sobre padrões negativos em vez de positivos Todavia por óbvio Hobbes ansiava por um regime muito mais moderado do que sugeriria seu total apoio ao poder soberano Em primeiro lugar ansiava por uma sociedade não imperialista Isso no entanto é incompatível com sua doutrina de que os soberanos e nações independentes estão necessariamente em um estado de natureza com relação um ao outro e portanto por natureza obrigados a fazer todo o possível para subjugar ou enfraquecer seus vizinhos Essas políticas são incompatíveis enquanto não houver um estado mundial Contudo também ansiava por um estado com leis de incentivo à agricultura e à pesca leis contra a ociosidade e despesas e consumo excessivos e leis para incentivar e valorizar a indústria a navegação e as ciências mecânicas e matemá ticas Os encargos públicos devem ser distribuídos por igual Os homens devem ser tributados de acordo com o que gastam ou consomem a frugalidade deve ser recom pensada o desperdício luxuoso desencorajado e cada homem deve pagar ao esudo proporcionalmente aos benefícios que obtém com sua proteção Haverá igualdade perante a lei sanções rigorosas contra juizes corruptos e fácil acesso aos tribunais de apelação A segurança do povo é a lei suprema e a segurança deve ser entendida como incluindo todos os contentamentos e deleites da vida que um homem pode obter de modo legal sem prejudicar a nação A paz da sociedade civil depende de o soberano possuir o poder de vida e morte sobre seus súditos Se os homens acreditam que há outros poderes capazes de conceder recompensas maiores que a vida e infligir castigos maiores que a morte obedecerão a esses poderes e a autoridade do soberano será destruída A vida eterna e o tormento eterno ou morte eterna são bens e males maiores que a vida natural e a morte natural Porque ou enquanto segundo Hobbes os homens acreditarem no poder de outros homens na qualidade de ministros de poderes invisíveis concederlhes a felicidade T h o m a s H o b b e s 3 7 3 24 Ibid cap xxx p 28896 De Cive chap xiii9 25 Leviathan cap xxx p 296 ff e De Cive cap xiii esp xiii 14 eterna ou o tormento eterno a teologia não pode ser separada da íilosoíia política Devemos nos limitar a um esboço da teologia cristã de Hobbes omitindo as numero sas passens das Sagradas Escrituras que cita como autoridades Apesar de desde a criação Deus governar a todos os homens por meio do poder da natureza o reino de Deus na maioria dos textos das Escrituras ao contrário da interpretação da maioria dos teólogos signiíica um reino político com súditos defi nidos os judeus Adão e todos aqueles que viveram até o dilúvio e Noé e sua família após o dilúvio receberam ordens diretas de Deus por meio de sua voz O primeiro no reino de Deus por aliança foi Abraão com quem Deus fez um contrato oferecendo a Abraão a terra de Canaã como possessão eterna em troca de sua obediência e da obedi ência de sua descendência Assim Deus foi instituído como soberano civil dos judeus Deus precisava íalar apenas a Abraão o pai senhor e soberano civil de sua fiunília pois as vontades de todos os seus fiuniliares e de sua descendência estavam contidas em sua vontade Como a fiunília e descendência de Abraão receberam comandos positivos de Deus pela voz de seu soberano terreno Abraão assim em cada nação aqueles sem re velação sobrenatural em contrário devem obedecer às leis de sua própria soberania em todos os atos externos e profissões de religião Cada soberano como fez Abraão tem o direito de punir qualquer um que simule uma revelação privada para se opor às leis Assim como Abraão em sua família somente o soberano de uma nação cristã pode ser o intérprete autêntico da Palavra de Deus O contrato de Deus foi renovado com Isaac e Jacó mas foi suspenso enquanto os judeus estavam sob a soberania do Egito O contrato foi renovado novamente por Moisés no Monte Sinai Já que Moisés não poderia herdar autoridade de Abraão sua autoridade era íúndamentada no con sentimento do povo e em sua promessa de lhe obedecer Mais uma vez apenas Moi sés como soberano civil sob Deus foi chamado para Deus mas não Aarão o sumo sacerdote nem qualquer outro sacerdote nem a aristocracia de 70 anciãos nem o povo Por Moisés ter lançado o bezerro feito por Aarão e pelo controle de Moisés da queles que profetizavam no acampamento ficou demonstrado que todos os sacerdotes e profetas em uma nação cristã derivam sua autoridade a partir da aprovação e da au toridade do soberano O reino era um reino sacerdotal Moisés governou como sumo sacerdote de Deus e seu viceregente sobre a Terra O reino foi herdado por Aarão e depois por seu filho Eleazar Após a morte de Josué e Eleazar foi dito que não havia rei em Israel Isso era verdade apenas na medida em que se referia ao exercício do poder soberano O direito de governar o poder soberano ainda residia no sumo sacerdote Os poderes dos juizes eram extraordinários poderes temporários ou emergenciais Ao depor Samuel o sumo sacerdote o povo depôs o reino peculiar de Deus e instituiu uma monarquia do tipo normal O tratamento que Salomão dispensou a Abiatar sua dedicação do templo e toda a história bíblica demonstram que desde a primeira ins tituição do reino de Deus até o cativeiro a supremacia da religião estava nas mesmas mãos que a soberania civil e o ofício de sacerdote depois da eleição de Saul não era 374 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 26 Leviathan epístola dedicatória cap xv final cap xxxviii início De Cive cap xvii 27 magisterial mas ministerial Durante o cativeiro os judeus náo tinham nação alguma e depois de seu regresso tornouse tão corrompida que nada se pode concluir de sua confusão tanto na nação quanto na religião a respeito desse tempo É tripla a missão do nosso Abençoado Salvador o Messias escreveu Hobbes Redentor Mestre e Rei Cristo na Terra foi Redentor e Mestre mas não Rei Jamais fez o que quer que fosse para questionar as leis civis dos judeus ou César nem deu a qualquer outra pessoa autorização para fàzêlo Deverá ser rei só após a ressurreição geral o reino que reivindicou estará em outro mundo De fato nunca comandou ninguém Como Redentor foi sacrificado para redimir os pecados dos homens e como Mestre aconselhou os homens sobre o caminho para a salvação ou seja a vida eterna O significado da Santíssima Trindade é que a pessoa de Deus foi representada em três momentos diferentes e em três ocasiões diferentes Moisés representava a Deus Pai Cristo a Deus o Filho e os apóstolos e seus sucessores ao receber e transmitir o Espírito Santo representavam a Deus o Espírito Santo Enquanto não houve nação cristã nenhum soberano civil converteuse ao cristianismo o poder eclesiástico esteve nas mãos dos apóstolos e daqueles a quem ordenavam como ministros Não tinham poder de comando sua missão era apenas instruir e aconselhar os homens a crerem e terem fé em Cristo Que Jesus é o Cristo é o único artigo de fé necessário ao cristão Se comandado por um soberano infiel a professar o contrário com sua língua não é necessário o martírio mas a confissão é apenas algo externo um sinal de obediência à lei Se comandado pelo soberano a realizar atos tais como adorar fidsos deuses que na verdade negam o Senhor o pecado não é do súdito que obedece mas do soberano Nunca é justo que os cristãos ou qualquer outra pessoa tentem depor o rei mesmo que infiel ou herege uma vez que tenha sido estabelecido pois isso seria uma violação da fé e assim contrário à lei da natureza que é a lei eterna de Deus O primeiro imperador cristão foi Constantino que foi também o supremo bis po de Roma assim como todos os soberanos cristãos são bispos supremos em seus próprios territórios Esta missão pertence à essência da soberania Hobbes desenvolve longos argumentos em particular contra os escritos do Cardeal Belarmino para se opor às reivindicações dos papas de Roma Todos os sacerdotes em uma nação cristã são apenas os ministros do soberano obtendo dele o sumo sacerdote sua autoridade Sempre que um estrangeiro tem autoridade para nomear professores ou sacerdotes fãz isso apenas com a autoridade do soberano em cujos domínios o ensino ou o ministério ocorrem Na verdade a igreja tal como a palavra é usada na Bíblia significa nada mais do que uma nação cristã De tudo isto fica claro que é fidsa a distinção entre o governo espiritual e o temporal Todo governo nesta vida tanto do estado como da religião é temporal e está sob o comando de um soberano civil Hobbes diz que a doutrina relativa ao Reino de Deus tem tanta influência sobre o reino do homem que não deve ser decidida por todos mas somente por aqueles que T h o m a s H o b b e s 3 7 5 27 Leviathan chaps xlxliii Cf cap xxii p 18990 e 200 têm o poder soberano No entanto escreve uma vez que seu próprio país está em estado de guerra civil e a autoridade está indecisa formulará sua própria doutrina em caráter experimental O Reino de Deus onde os homens gozarão a vida eterna será um reino sob Cristo aqui na Terra e no momento da ressurreição geral O Inferno tam bém está na Terra e Satanás é um inimigo terreno da Igreja Os tormentos do Inferno significam metaforicamente aquele sofrimento mental a inveja causado pela visão de outros que usufruem a felicidade eterna que os atormentados perderam por causa de sua incredulidade e desobediência Os pecadores também sofrerão dores corporais e morrerão uma segunda morte Pois o fogo eterno e a morte eterna não significam que ao atormentado será concedida a vida eterna ou quais tormentos eternos exigiriam Significa ao contrário que o fogo arderá para sempre e que não faltará um suprimento de pecadores a serem atormentados e mortos porque os pecadores comerão beberão gerarão e morrerão eternamente após a ressurreição tal como antes Na verdade sob a interpretação de Hobbes tornase difícil entender de que modo é alterada a vida dos pecadores pela ressurreição Desta forma a morte eterna passa a não ser pior que a morte natural nem mesmo igualmente ruim É evidente que a conclusão geral a que Hobbes desejava que os leitores de sua teologia chegassem era que de fato não havia qualquer diferença essencial entre a Palavra de Deus revelada nas Escrituras e a palavra de Hobbes transmitida em sua filosofia política No entanto somos forçados a in d s se Hobbes acreditava na verdade de sua teologia De fato afirma Hobbes a respeito de Deus que é evidente que lhe devemos atribuir existência pois ninguém quererá venerar aquilo que julga não existir Contudo a relação entre verdade e veneração ou honra não é de forma alguma inequívoca Porque escreve ele todas as palavras e ações que indicam receio de ofender ou desejo de agradar são culto quer aquelas palavras e ações sejam sinceras quer sejam fingidas e porque apa recem como sinais do ato de honrar são também geralmente chamadas honra Devido a essas e muitas outras declarações Hobbes ainda em vida adquiriu fama como ateu Talvez a conclusão mais caridosa derivada de sua teologia seja que em seu deste mido zelo na destruição de todas as opiniões que acreditava serem hostis a uma com preensão adequada dos direitos e deveres do homem Hobbes demonstrou que para ele nada era mais sagrado que a busca e a promulgação da verdade filosófica L e it u r a s A Hobbes Thomas Leviathan Chaps xiiixv xvüxviií xxi xxiv xxvixxx xlvi 6 Hobbes Thomas Leviathan Chaps vi xxii xvi xix xx xxiixxiii xxv xxxixxxii xxxv xliii 3 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y caps xxxviii e xliv cap xxxi p 312 cap xiv p 570 cap xii cap xlv cf cap xxvii p xiii p 104 cap xxxix p 406 cap xiii p 435 cap xl p 417 o 24950 René D escartes 15961650 Descartes é celebrado como o fundador da íilosoíia moderna porém jamais da moderna filosofia poiítica Inaugurando uma nova era aparenta um surpreendente isolamento da anterior tradição política moderna fundada por Maquiavel nunca se quer aventou uma discussão temática das questões políticas Isso sugere que a moderna íilosoíia e a íilosoíia política moderna têm origens independentes e talvez divirjam em suas intenções É possível vislumbrar contudo uma ligação entre Descartes e a moder na tradição política ao examinarmos sua relação com Francis Bacon o primeiro grande defensor confesso da política maquiavélica voltada para o domínio da fortuna ou da natureza nos assuntos humanos Emulando até mesmo a linguagem de Bacon Descar tes afirmou que a íilosoíia baseada em um novo método e voltada para o domínio e a posse da natureza conquistaria maior glória para a íilosoíia e maiores benefícios para a sociedade Desta forma seus ensinamentos políticos versam em princípio sobre a premente necessidade política de estabelecer relações harmoniosas entre a íilosoíia ou ciência e a sociedade ou com a versão iluminista dessa relação a relação dominan te nos tempos modernos Assim dAlembert um dos principais impulsionadores do Iluminismo francês pode declarar na Encyclopédie 1751 que Descartes lançou as fundações para um governo mais justo e mais feliz do que jamais se viu Os ensinamentos políticos de Descartes íicam parcialmente toldados pela notória cautela de sua maneira de escrever compus minha íilosoíia de forma que não chocas se ninguém e para que possa ser recebida em qualquer lugar mesmo entre os turcos Sua prudência fica evidente no íato de que nunca publicou em seu próprio nome louvores ou acusações a qualquer filosofia política mas apenas um elogio anônimo de Imtauratio magna Grande restauração e de New Atlantis Nova Adântida de Ba con ao passo que em cartas particulares aceitou o preceito principal de Maquiavel 1 J dAlembert Discoursprélimimire de 1Encydopidie ed L Ducros Paris 1930 p 104 2 R Descartes Oeuvres ed C Adam e P Tannery Paris 1910 V 159 As referências sáo a esta edição se o texto original náo estiver disponível na edição Pléiade Oeuvres et Lettres ed A Bridoux Paris 1952 nada de ruim observando em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e acreditava que a política e o pensamento de Hobbes em seu De Cive O cidadáo eram superiores à sua metafísica Os ensinamentos políticos de Descartes fezem parte da ciência moral maior e mais perfeita que é a meta geral da filosofia Toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica ou seja o conhecimento de Deus e da alma humana o tronco é a física e os ramos que brotam do tronco são todas as outras ciências mas principalmente a medicina a mecânica e a moral Assim como não é das raízes nem do tronco das árvores que se colhem os frutos mas somente a partir das extremidades de seus galhos assim a principal utilidade da filosofia depende de seus elementos os quais só se podem aprender no final O ramo principal é a ciência moral perfeita a qual pressupondo um conhecimento completo das demais ciências é o último grau da sabedoria Todavia sabese de modo quase universal que em parte alguma de seus escritos publicados ou não se pode encontrar a ciência moral perfeita de Descartes Essa dificuldade é inseparável de outra que emerge do exame da árvore do conhecimento O homem é incluído duas vezes uma como a segunda raiz metafí sica e outra como o galho mais elevado Porém em cada uma das versões publicadas de sua metafísica Descartes trata primeiro da alma humana e depois de Deus Além disso a símile omite qualquer referência nas raízes ao princípio metafísico coevo da alma a saber a substância corpórea da qual presumese deve crescer o tronco Por conseguinte a símile poética da árvore do conhecimento é enganosa no que se refere à sua parte menos visível Em seguida somos forçados a procurar um argumento não poético segundo o qual o homem é o início e o fim da árvore do conhecimento e a ciência moral per feita sua principal utilidade É somente no Le Discours de la méthode Discurso do método 1637 que Descartes oferece uma descrição de sua filosofia do início ao fim e de todas as partes em sua verdadeira ordem No entanto hoje esta obra é em geral menosprezada devido a seu caráter popular Todavia é precisamente sua retórica popu lar que constitui o primeiro sinal de que somente o Discurso trata das dificuldades pecu liares da meta suprema de Descartes a ciência moral perfeita só terá plena existência por meio de uma cooperação sem precedentes entre a filosofia política e o público Descartes escreve que principiou com a opinião de seus professores jesuítas de que o estudo trará um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida Pelo critério da utilidade analisou e rejeitou os ensinamentos das escolas e de toda a filosofia antiga Excluiu uma só a ciência a matemática o que o surpreendia era que o edifício mais nobre não fora erigido sobre os fundamentos firmes e sólidos da matemática Em lugar do espanto diante das perplexidades fundamentais com que se defronta a mente e que constituiu o início da filosofia para os antigos Descartes coloca 3 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 AT XI 320 Pléiade 1245 AT IV 67 4 Pléiade 566 5 Ibid 127128130 o assombro ante uma até então inimaginável possibilidade de que a criatividade hu mana banirá o espanto revelarvosei segredos tão simples que daqui em diante de nada vos assombrareis quanto à obra de nossas mãos Em contraste com a matemáti ca a filosofia que deveria prover os fundamentos das ciências é totalmente ques tionável inútil e incerta A teologia termo que Descartes emprega aqui e em toda parte para indicar tão somente a teologia revelada ensina a ganhar o céu ao qual aspira tanto quanto qualquer outro Entretanto as verdades reveladas estão acima de nossa inteligência por conseguinte não constimem um conhecimento claro e se guro útil para a vida As únicas obras morais que Descartes chega a mencionar em sua crítica da tradição são os escritos dos pagãos também lhes faltam fundações Descartes se opõe ao objetivo da tradição clássica já que abandona as especu lações ou a busca do conhecimento em si mesmo em fiivor de um conhecimento útil A justificativa para que rejeite a visão clássica está no tratamento que aplica à única disciplina de sua crítica que discute o fim do homem Os escritos dos pagãos compreendem os ensinamentos morais dos estoicos em particular mas também os da filosofia política platônica e aristotélica Enquanto os escritos pagãos contêm mui tas exortações à virmde que são muito úteis os palácios requintados e magníficos da virmde são construídos sobre a areia e a lama Aquilo a que os pagãos davam tão belo nome ou seja a virtude é muitas vezes apenas insensibilidade ou orgulho ou desespero ou parricídio A virtude pagã que pretendia ser uma média e a ex celência do homem é portanto muitas vezes um extremo um extremo desumano presunçoso pobre de espírito e até mesmo criminoso Como extremos as virtudes pagãs não se distinguem das paixões Não há nada em que o caráter defeituoso das ciências que recebemos dos antigos apareça de modo mais claro do que no que escre veram sobre as paixões Descartes substituiu a distinção dos antigos entre as paixões e as virmdes pela distinção entre as boas e más paixões A base da antiga distinção era a ideia de que a alma tem partes de que certas partes são capazes de ouvir e obedecer à razão e que por meio delas a razão pode estabelecer e governar uma hierarquia natural dentro da alma A razão é autônoma pois tem seu objeto próprio ou porque todos os homens por namreza desejam o conhecimento independentemente da utilidade do conheci mento Descartes rejeita esta visão de uma ordem natural da alma os antigos não per ceberam a aguda dependência da mente ou razão das paixões ou do temperamento e da disposição dos óigãos do corpo Esta dupla reflexão de Descartes acerca do poder das paixões e da promessa da ma temática conduz diretamente a seu aigumento em favor de um novo método o qual vem R e n é D e s c a r t e s 379 6 Ibid 885 7 Ibid 130 8 Ibid 130 9 Ibid 695 10 Ibid 168169 a ser ao mesmo tempo sua reflexão política íundamental Uma vez que as virtudes são substituídas por certas paixões o que é útil para a vida deve ser entendido como aquilo que atende aos fins das paixões Dentre as paixões no entanto devem ser estabelecidas distinções entre as paixões boas e más úteis e inúteis nobres e ignóbeis De modo mais preciso o que é necessário é uma paixão abrangente ou uma paixão que possa fornecer um princípio de ordem para as demais paixões por conseguinte necessariamente a pai xão capaz de dominar as outras paixões Esta paixão mais útil será assim a paixão mais nobre e a paixão dominante mais perfeita Descartes inicia seu argumento em íàvor do método com o princípio de que não existe tanta perfeição nas obras formadas de várias peças e feitas pela mão de diversos mestres como naquelas em que um só trabalhou O que é feito por inteiro por um mestre está inteiramente sob o poder desse mestre desta forma principia como os estoicos com o que está inteiramente em nosso próprio poder sem se restringir aos pensamentos da própria pessoa Seu princípio é articulado por meio de uma série de exemplos de mestres que culmina com a razão como uma for ma de domínio Porém uma vez que é a vontade de alguns homens usando a razão que conduz ao perfeito domínio a razão está a serviço da vontade ou como dirá Descartes mais tarde da paixão suprema que denominou generosidade Os exemplos são sete 1 o único arquiteto de um edifício 2 o único enge nheiro dos edificios de uma cidade 3 o caso geral do único legislador prudente que fornece leis a um povo 4 o caso especial do legislador divino único Deus que fez as ordenanças do estado da verdadeira religião ou da cristandade que deve ser incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros 5 o caso especial do único legislador humano pagão de Esparta o único legislador humano a ser sempre elogiado por Descartes muito embora várias leis de Esparta fossem bastante impróprias e até mesmo contrárias aos bons costumes 6 os raciocínios simples feitos naturalmente por um único homem de bom senso e 7 o caso final e hipotético de um único homem que desde a infencia possuía o uso perfeito de sua razão desassistida não afetada por apetites ou preceptores A série de exemplos é ascendente elevase das artes práticas inferiores relativas às coisas inanimadas até a prática culminante incluindo a divina a prática da jurisprudên cia e daí para o mais elevado poder teórico o emprego da razão humana desassistida Uma vez que todos os mestres são autores de obras as obras devem incluir o mais alto uso da razão o domínio é neutro quanto à distinção entre pensar e fezer filosofia e techné Doravante a íilosoíia será descrita tal como o fora antes por Bacon como arqui tetura é enganadora a símile orgânica da árvore do conhecimento O primeiro signi ficado de perfeição na série é a unidade da obra decorrente da unicidade do mestre A este significado Descartes acrescenta um segundo a magnitude do assunto a partir do qual o mestre realiza sua obra Portanto para Descartes o domínio será tâo abrangente quanto a série ou um domínio teórico do todo ou da natureza o objeto de maior mag 3 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Ibid 132 12 Ibid 133134 nitude que compreenda também o maior domínio prático a jurisprudência da maior magnitude A ciência política a arte arquitetônica ou arte mestre de acordo com Aris tóteles é substituída pela filosofia entendida como domínio teórico ou arquitetura À unidade e à mjnitude Descartes acrescenta como exemplo final um terceiro motivo de perfeição ou seja a fonte dentro do mestre da qual procede o perfeito domínio o uso da razão humana desassistida Todos os três motivos assumem seu lugar na definição da paixão mestre que Descartes denomina a maior virtude a generosidade a sensação em si mesmo de uma resolução firme e constante de nunca falhar na própria vontade de empreender e executar todas as coisas que se julga serem as melhores que é buscar perfeitamente a virtude É evidente que a palavra generosidade náo tem o sentido de liberalidade de seu equivalente em inglês Todavia o último exemplo é hipotético o mestre que desde a infância possui o uso perfeito de sua razão desassistida não afetada por apetites ou preceptores A res peito de si mesmo Descartes observa que deve ao acaso e não à virtude o fato de estar suficientemente livre das paixões para que fosse capaz de refletir desde o início de suas principais ponderações no Discurso e nas Meditações Quanto a seus preceptores fala da religião na qual fora instruído desde a infância Deve portanto encontrar um procedimento ou um método que expurgue a mente de todas as opiniões e crenças que dependem de apetites e preceptores Somente a construção de um método e não o uso natural da razão natural pode superar a desproporção natural entre a taxa de cres cimento dos apetites ou paixões e a da razão Pois os preconceitos que desde o início da infância recebemos de nossos apetites ou paixões governam nossas percepções sen soriais e não podem ser corrigidos pela razão que naturalmente serve a essas paixões Por conseguinte toda a filosofia anterior que começou com a percepção sensorial e sofria a falta de um método para purgar a mente dos preconceitos obrigatoriamente foi pervertida O método é capaz de dominar os defeitos naturais ou desproporções da natureza do homem ao tomar a matemática como modelo o que é correto porque esta não deve nada aos sentidos ou ao corpo Mas para ter domínio global bem como para dominar o corpo o método deve tornarse um domínio abrangente de todo o corpo ou seja a física matemática O fato de que o mais elevado exemplo de domínio ou generosidade por Des cartes inclui necessariamente a política ou jurisprudência evidenciase em seu todo a partir da reflexão que se segue acerca das reformas A primeira regra do método demanda a rejeição de todas as opiniões que náo são claras e distintas ou a reforma das opiniões incertas que são as fundações da própria vida do indivíduo Em contras te com essa reforma particular Descartes pergunta se é conveniente que os estados e as nações sejam reformados por um indivíduo particular e se é conveniente se tal reforma é legítima e possível Contudo as opiniões das quais um indivíduo particular deve necessariamente duvidar são também as opiniões dominantes ou constitutivas e portanto as fundações dos estados R e n é D e s c a r t e s 3 8 1 13 Ibid 76876 14 Ibid 134135 A conexão entre reforma particular e pública evidenciase de modo peculiar no feto de que a reforma particular de defeitos no corpo das ciências pode conduzir e talvez devesse fezêlo à reforma na ordem estabelecida nas escolas para o ensino das ciências e as escolas são o repositório abalizado das opiniões que constimem as fundações dos grandes oiganismos isto é os estados e nações Descartes portanto concorda com a visão clássica de que a opinião é o elemento da sociedade o tendão que lhe dá unidade e movimento Desta forma seria inevitável que a publicação de sua reforma particular suscitasse uma questão acerca de ele pretender ou não uma reforma pública mais uma vez Descartes concorda com os clássicos que a indição filosófica quando tornada pública tende a corroer o aspecto da opinião em que vive a socieda de Além disso o perigo para a opinião fundamental da sociedade é inédito no caso da filosofia de Descartes pois seu método exige a extinção geral de todas as opiniões que não têm a certeza da matemática No entanto Descartes publicou seu método chegando mesmo a redigilo de maneira popular e na língua vulgar pelo que sinalizou que pretendia uma reforma pública Permanece obscura a intenção política de Descartes no Discurso sem ao menos um breve esclarecimento das três principais características de sua retórica Acreditase muitas vezes que Descartes seja um conformista político pois sua moral provisória começa assim a primeira rra foi obedecer às leis e costumes de meu país manten do sempre a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância Sem considerar o caráter provisório do governo é menos firequente observarse que no meio do mesmo parirafo Descartes afirma que na corrupção de nossa moral são poucas as pessoas que queiram dizer tudo em que acreditam Foi forçado a acres centar essas regras da moral provisória porque caso contrário pedagogos e outros diriam dele que não tem religião e fé e procura derrubar todos com seu método Esse caráter prudente de sua retórica tolda o sentido da principal característica literária do Discurso Assim como o argumento sobre o domínio supremo leva à minha ma neira à maneira do Descartes individual que é inédita irrepetível e que prescinde da repetição assim o ato de publicação é inteiramente singular A forma do Discurso é portanto a de uma autobiografia do primeiro e definitivo fundador da filosofia Sua terceira característica retórica sua popularização da filosofia tornase compreensível quando se percebe em que sentido o fundador necessita de não filósofos Primeiro o ato de publicação de Descartes tem como premissa a conveniência da reforma dos estados existentes o que é evidente a partir de sua diversidade apenas mas em última análise tem como premissa a conveniência de uma reforma perma nente das relações entre a filosofia e o público Uma vez que a diversidade apenas tor na evidente a imperfeição haverá somente um bom r m e caracterizado pela perfeita relação entre a filosofia e o público Suas críticas específicas contra a sociedade con temporânea indicam o caráter geral da reforma permanente A autoridade principal 15 Ibid 141 16 AT V 178 3 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y para as fundações existentes engendra a guerra civil as controvérsias entre as esco las cuja insensatez torna mais tacanhos e obstinados aqueles que nelas praticam são possivelmente as principais causas das heresias e dissensões que assolam o mundo Toda a reflexão sobre o domínio o famoso dia de Descartes à beira dc um fogão começa com uma referência às guerras na Alemanha e termina com uma referência à guerra na Holanda é estruturada pelas guerras pósReforma entre os poderes católicos e protestantes da Europa O estado da vetdadeira religião ou cristandade revela não só a unidade de seu fundador mas sua autodisjunção Para Descartes a questão da legitimidade da reforma pública por indivíduos par ticulares está subordinada à questão de sua possibilidade pdo simples motivo de que a fortuna constitui um direito ao poder político legítimo Descartes não poderia de maneira alguma aprovar esses temperamentos perturbadores e inquietos que não sen do chamados nem pdo nascimento nem pela fortuna à administração dos negódos públicos não debtam de neles realizar sempre em teoria alguma nova reforma Essa incomum constrição das bases da Intimidade à fortuna e ao nascimento é ainda mais surpreendente se considerarmos a fortuna como uma rdvindicação de 1 midade se a fortuna legitima então qualquer tentativa de tomada do poder tem a pers pectiva de indmidade uma vez que um indivíduo não pode saber antes do sucesso foi a fortuna que o chamou à administração dos nódos públicos Uma vez que o acaso ou fortuna colocaram Descartes no caminho certo para a descoberta das verdadeiras fundações seu projeto é abençoado com a letimidade desde seus primórdios Para demonstrar a legitimidade do dormnio supremo Descartes precisa demonstrar a viabi lidade do domínio total da fortuna Entretanto é preciso rejeitar totalmente a opinião vulgar dc que existe fora de nós uma Fortuna que fàz as coisas acontecerem ou não acon tecerem Tal como ocorre com Maquiavel cuja marca sobre o modo como Descartes trata a deusa Fortuna é inconfundível é a natureza que deve ser dominada Contudo a questão imediata é somente a dificuldade de reforma pública por um indivíduo parti cular será resolvida por Descartes por meio da atração do poder para todos os homens sobre os frutos de sua íilosoíia e pela estratégia usada para anunciálos Uma vez que sejam conhecidos os princípios gerais da física o projeto de Des cartes se torna uma filosofia prática muito útil para a vida e que pode suplantar a íilosoíia especulativa que se ensina nas escolas Ao se tomarem senhores e possuido res da natureza os homens podem inventar uma infinidade de artifícios que permi tiriam usufruir sem custo algum os frutos da terra c todas as comodidades que nela se encontram Os frutos da árvore do conhecimento anularão as conseqüências da Queda no jardim ou com efeito com mais precisão negarão sua verdade O Discurso culmina em seguida com a promessa de um paraíso na Terra ou imita a obra de Ba con sobre o método o Novum organum cujo subtítulo referese ao reino do homem 17 Pléiade 568 18 Ibid 135 19 Ibid 168 R e n é D e s c a r t e s 3 8 3 A ciência que conduz à felicidade humana não é o estudo tradicional da excelência da alma a ciência moral e política e menos ainda a teologia que ensina a ganhar o céu mas a medicina a ciência do corpo A saúde é sem dúvida o primeiro bem e a base de todos os outros bens desta vida A medicina é também o meio para o prolongamento da vida porém acima de tudo é a ciência que produz a sabedoria o fruto final o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos óios do corpo que se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui creio que é na medicina que se deve procurálo Para governar as relações entre a sociedade e a filosofia que promete tais frutos Descartes afirma que há uma lei que nos obriga a procurar no que depende de nós o bem geral de todos os homens Esta lei a única obrigação categórica jamais expressa por Descartes é apresentada apenas uma vez em seus escritos e mmca é oferecido um argumento que a sustente Descartes declara que a lei obrigavao a publicar a sua filosofia para que náo pecasse mas jamais reivindicou ter extraído a lei de verdades reveladas Para dar conta dessa surpreendente mistura de afirmação ousada e silêncio retumbante observamos em primeiro lugar que Descartes invoca a lei somente após ter descoberto noções gerais de física não concebia sua metafísica que continha o que alegava serem as primeiras provas demonstrativas da existência de Deus e de suas perfeições como portadora de suficiente benevolência para o público a ponto de demandar sua publicação Com efeito imediatamente após expor a sua metafísica no Discurso Parte IV voltase para sua física por meio da qual acreditava haver des coberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo quanto aprendera até então ou mesmo esperava aprender No contexto da discussão da sua publica ção no Discurso Parte VI Descartes tacitamente reformula a lei como uma obrigação apenas hipotética que o b r aqueles que desejam o fim ou os frutos da nova filosofia a buscarem os meios para esse fim Os meios são as experiências necessárias ou a troca de experiências entre pessoas qualificadas ou as condições políticas que sancionarão e promoverão essa troca O caráter hipotético da obrigação aparece na promessa de Descartes de que iria mostrar tão claramente a utilidade que podia resultar para o pú blico de sua filosofia que obrigaria a todos aqueles que desejam o bem dos homens ou seja todos aqueles que são em verdade virtuosos e não apenas por hipocrisia nem apenas por princípio tanto a comunicarme as experiências que já tivessem realizado como a me ajudar na pesquisa das que ainda há por fàzer O bem dos homens o termo perde o sentido de comunidade de o bem co mum agora compreende principalmente o que todos os homens sempre buscaram como indivíduos ou através da sociedade ou seja a satisfàção das necessidades confor to saúde e vida longa e esta visão drasticamente reduzida do bem comum é o padrão da 384 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 Ibid 168169 21 Ibid 168 22 Ibid 154 23 Ibid 171 virtude Assim Descartes em comum com os fundadores da filosofia política moderna inverteu a relação da virtude e do bem comum tal como entendida pelos clássicos e ao fezêlo reviu os dois conceitos A lei da benevolência é duplamente hipotética na medida em que nos obriga a buscar o meio somente se aceitamos a conveniência do fim da utilidade mas também apenas se estiverem disponíveis os verdadeiros meios a verdadeira física ou a ciência dos fratos Esta lei tem seu locus portanto não primor dialmente nas relações dos cidadãos entre si ou com o soberano mas nas relações recí procas entre a filosofia ou ciência e a sociedade Por este motivo contudo ainda mais pelo motivo adicional de que a filosofia ou ciência deve ser o principal doador e a socie dade o beneficiário da utilidade para o público Descartes não ofereceu qualquer ensi namento sobre a justiça ou o direito natural A generosidade a mais elevada virmde de filósofos ou cientistas exclui ou substitui a justiça porque se baseia em uma visão da alma diversa daquela dos mestres do direito namral quer antigos ou modernos A iniciação de Descartes em um novo método completase por uma física mate mática que o obrigou a confrontar o status da alma e de seu conhecimento tecendo o argumento metafísico apresentado de modo mais abrangente nas Meditações 1641 Descartes opta por duvidar de forma absoluta ou melhor rejeitar de forma absoluta qualquer opinião ou fonte de opinião que revelasse um mínimo grau de dúvida a fim de estabelecer fundações para o edifício da ciência Na seqüência essa demanda re mmbante pela dúvida universal é cuidadosamente limitada nos Princípios I n 10 é negada sua universalidade Leibniz observou que a exigência de duvidar de todas as coisas talvez tenha o intuito de estimular o leitor moroso por meio da novidade A dúvida é um procedimento criado para eliminar nossa confiança natural nos sentidos e nas imiens que daí derivam parte do que Descartes chama de o ensino da nature za e passou a ser chamado de a atitude natural Para testar a capacidade de duvidar daquilo que não depende da confiança nas imagens em particular a matemática que não pertence à opinião Descartes invoca um Deus que tudo pode e portan to pode felsear os raciocínios mais autoevidentes isto é que o resultado da soma de dois mais três são cinco Uma vez que Deus nesta concepção de onipotência pode suspender o princípio da contradição todo o raciocínio humano teria encontrado seu fim a menos que a perfeição de Deus necessariamente excluísse tal logro Visto como o conhecimento de Deus ainda não está disponível ou porque Deus não passa de uma opinião antiga que não oferece motivo real para dúvida Deus é substituído por um Gênio Mau que não é onipotente e não compromete a matemática nem o raciocínio que independe de confiança nas imagens A ideia subjacente à ficção poética do Gênio Mau é introduzida pela apresentação da visão do ateu de que o homem e seu pensamento são o resultado de um destino cego ou do acaso ou de uma série contínua de causas antecedentes O ponto de vista ateu é muitas vezes considerado como um motivo mais radical para a dúvida de que o Deus onipotente e possivelmente mau porque Descartes assevera que quanto menos poderoso é o autor do homem maior é a probabilidade do erro humano Todavia esta afirmação diz respeito somente às diferenças de poder e por conseguinte não é R e n é D e s c a r t e s 3 8 5 uma cximparação com um Deus possivelmente mau Uma vez que é tâo repugnante para um Deus perfeito permitir que sejamos enganados algumas vezes quanto fazêlo sempre e náo se pode duvidar que às vezes permita que sejamos enganados o perigo divino para o saber humano permanece como uma grave dificuldade ao longo das Me ditações No contexto da dúvida a suposição do ateu serve para questionar a harmonia do conhecedor c do conhecido o que parece implicar que o todo é governado pela in teligência Contudo a dúvida cartesiana dá um passo além das rejeições prémodernas a uma inteligência dominante quando abandona também a confiança na harmonia das imagens dos sentidos e seus objetos As imsens podem ser totalmente enganosas a vida é um sonho pode descrever a situação natural a natureza indiferente a nosso desejo ou necessidade de saber é personificada pelo Gênio Mau Examinada mais de perto a confiança natural na semelhança da imagem à coisa fora rejeitada pela natureza matemática ou não empírica dos conceitos científicos de extensão figura ffanàeza et cetera Todavia afirmar a dessemelhança entre a imagem e a coisa parece implicar a existência de coisas fora do inteleao com a qual são compa radas e o conhecimento de sua existência parece depender da imicm Não exigiria a rejeição da tese da semelhança ou do ensino da natureza confiança na natureza no que diz respeito à tese da existência como Descartes por vezes sugere No entanto nas Meditações Descartes costuma tratálas como portadoras dc igual dubiedade Desta forma a tese da existência ou a grande inclinação para crer que os corpos existem demanda em última análise a bondade de Deus como garantía da sua aceitabilidade Se contestamos que a mesma garantia parece estar disponível para assegurar nossa íbrte tendência a crer que as coisas lembram as nossas imíens apesar de tudo teríamos de reconhecer que isso transgrediria as exigências da ciência cartesiana O Gênio Mau torna duvidosa a existência de todas as coisas externas ou do corpóreo incluindo o corpo do cético e a fortiori por implicação a tese da semelhança Somente estas duas teses são postas em dúvida dentro dos limites da dúvida universal Pela lógica é possí vel duvidar da existência do corpóreo ou da matéria de íato no dizer de Hume ou do ensino da natureza enquanto afirma a existência do cético é mesmo necessário afirmar tal existência Por conseguinte esta proposição eu sou eu existo é necessariamente verdadeira cada vez que eu a pronuncio ou que a concebo em minha mente Posto que o conhecimento de que eu sou não depende para sua verdade do conhecimento do corpo ou de qualquer conhecimento da natureza ou do ser possui uma prioridade epistemológica cm relação a qualquer afirmação posterior do tipo metafisico Este princípio é o ponto de Arquimedes punctum Archimedis que estabelece a existência do eu sapiente dentro do todo cuja inimizade é superada pela fisica ma temática ou pelo domínio da natureza Somente após a determinação deste princípio é que Descartes inds o que é a mente ou o pensamento o cogito é portanto anterior a c independente de qualquer determinação da materialidade ou imate rialidade da mente humana Descartes comprometeu a autonomia absoluta do ego pensante dc acordo com a maioria dos estudiosos contemporâneos ao dedicarse a provar a existência de um Deus onipotente que é dotado de um número infinito 386 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y de perfeições infinitas Deus é portanto o primeiro princípio ou causa de todas as coisas e portanto do homem e do conhecimento do homem Descartes fez quase insuperável a dificuldade de interpretar sua metafísica ao também afirmar que a mente humana finita nâo pode vir a conhecer algo infinito e concluir portanto que Deus é incompreensível A resolução destas dificuldades vai variar na medida em que se concorda com a maioria dos estudiosos contemporâneos quanto ao fato de que Des cartes publicou seu pensamento essencial com toda a firanqueza ou com pensadores mais antigos como Leibniz que afirmou Descartes tomou cuidado para não falar de modo tão claro quanto Hobbes mas náo podia deixar de revelar suas opiniões de passagem com um modo de expressarse que não seria compreendido exceto por aqueles que analisam em profundidade estes tipos de assuntos Seja como for Des cartes jamais reivindicou derivar o conhecimento de Deus de um conhecimento dos deveres ou direitos do homem enquanto das infinitas perfeições de Deus de fato alegou derivar as leis da natureza O aipunento metafísico de Descartes forneceulhe uma fonte para compreensão da alma que sustenta a sua teoria da generosidade A segunda fonte para sua visão da alma é a física ou o remédio que trata a máquina do nosso corpo apresentada de modo mais amplo em sua publicação final As paixões da alma 1649 Segundo seu aipimento metafísico o livrearbítrio é uma fimção da mente ou da alma uma substância imaterial distinta da substância corpórea todavia capaz de agir sobre a substância corpórea especificamente sobre o corpo humano de um modo que ad mitese Descartes não explicou de maneira adequada Este ponto de vista metafísico refletese na primeira parte da definição de generosidade que é o conhecimento de que nada pertence realmente ao homem além de sua livre disposição de suas von tades nem qualquer razão pela qual deva ser elogiado ou culpado exceto se as usar bem ou mal No entanto de acordo com o argumento físico o calor do coração é o princípio corpóreo de todos os movimentos da máquina de nosso corpo enquanto a causa primeira do erro dos antigos é a crença de que a alma dá movimento ao corpo Por conseguinte o argumento metafísico repetiria o erro antigo No argumen to físico o pensamento ou consciência é a percepção dos movimentos dos espíritos animais totalmente corpóreos consciência esta que Descartes não explicou de modo adequado e a vontade não é livre mas sofre a ação das paixões o principal efeito de todas as pabcões nos homens é que incitam e dispõem sua alma para determinar as coisas que preparam o corpo Esta segunda perspectiva ou perspectiva física reflete se na segunda parte da definição de generosidade que o homem é sensível em si mesmo de uma firme e constante resolução nunca falha por sua própria vontade em empreender e executar todas as coisas que julga serem as melhores o que consiste em buscar perfeitamente a virtude Resolução Descartes entende como uma espécie de coragem que é um certo calor ou imitação dos espíritos animais que dispõem a R e n é D e s c a r t e s 3 8 7 24 295 579580 AT VII 9 25 G W Leibniz Philosophischer Briefwechsel I 506 alma poderosamente para devotarse à execução das coisas que procura fezer Este ponto de vista fisiológico da alma melhor explica o motivo pelo qual Descartes pode dizer que feia como físico em As Paixões da Alma cuja primeira parte trata de toda a natureza do homem Henry More filósofo inglês do século XVII abertamen te admitiu a interpretação fisiológica da alma cartesiana doutrina que denominou nulibismo Não importa como avaliamos essas alternativas podemos dizer que a generosi dade é a consciência da própria identidade na qualidade da própria vontade ou reso lução A liberdade da vontade em certa medida nos torna semelhantes a Deus tor nandonos senhores de nós mesmos desde que por covardia não percamos os direitos que Ele nos dá Uma vez que a covardia priva o homem de direitos estes pertencem ao corajoso ou resoluto por conseguinte ao generoso em particular Entretanto a covardia tem alguma utilidade quando nos exime de tomar as dores que possamos ser instigados a tomar por motivos prováveis se outros motivos mais certos que as leva ram a serem julgadas inúteis não animassem essa paixão Por conseguinte motivos muito precisos podem talvez privar o generoso dos seus direitos dados por Deus Seja como for nenhum aigumento nem qualquer base bíblica é jamais oferecido por Descartes para a existência desses direitos nem jamais os menciona de novo O significado político da generosidade surge por contraste com a virtude aristoté lica da manimidade da qual a generosidade é uma versão revista de acordo com Descartes A msanimidade é um hábito cultivado ou uma disposição da alma en quanto Descartes escolhe o novo nome generosidade justamente porque não é cul tivada mas um temperamento ingênito ou congênito pelo menos em parte fisiológico Mentes generosas ou mentes fortes e nobres têm sua força a partir do nascimento ou por natureza por consjuinte são senhores por natureza uma nobreza natural ou aristocracia Enquanto a magnanimidade para Aristóteles era uma virtude moral abran gente e portanto distinta e inferior à virtude teórica a generosidade em Descartes é simplesmente a maior virtude uma vez que seu objetivo supremo é o domínio da na mreza através da física matemática tornase duvidosa a própria distinção entre teoria e prática A magnanimidade compreende e pressupõe outras virmdes por conseguinte em particular a virmde da justiça e é portanto uma espécie de ornamento das outras virmdes A generosidade por outro lado não pressupõe as outras virmdes e Descartes não menciona a justiça como uma virmde ou paixão a generosidade é ao contrário a 3 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i in c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 26 Pléiade 696697698715768769 AT XI 326 27 PhilosophicalWritin ofHenry More ed F I MacKinnon Oxford Oxford University Press 1925 18396 Descartes o príncipe dos nulibiscas zombando de seus leitores com sua sutileza jocosa defendia que existem espíritos incotpóreos mas se evidenciava que o íâzia somente por via de um escarnecer oblíquo e estreito de sua existência afirmando que de feto existem mas em suida furtiva e astutamente nandoo pela declaração de que náo estáo em lugar algum ou null ibi 28 Pléiade 768 29 Ibid 779 30 Aristóteles él Aí 1124a chave para todas as virtudes Assim sendo Descartes náo oferece qualquer tipo de ensino do direito natural Em contraste com os antigos a ausência de qualquer ordem natural da alma impedia um ensino tradicional do direito natural Descartes compar tilhava com Hobbes o principal fundador da moderna doutrina do direito natural a visão de que a razão serve às paixões No contexto determinante da comparação entre o homem e os animais a razão é um instrumento universal o que distingue o homem dos animais é um meio único não um fim específico diverso Porém em contraste com Hobbes Descartes examina a sociedade política a partir da perspectiva das mentes fortes ou generosas cujo sentido da força de sua resolução a sua mais forte paixão é exclusiva delas Por conseguinte rejeitou a perspectiva igualitária de Hobbes em O cidadão segun do a qual a paixão pela autopreservação é a maior paixão de todos os homens e portanto o fundamento da lei natural A generosidade é uma paixão ou virtude política não apenas porque seu objeto é aquele domínio da natureza que produz bens para todos os homens O conhecimento da generosidade é a parte principal daquela sabedoria ou ciência moral perfeita que ensina o homem a ser o senhor das paixões e portanto a apreciálas por meio do que o homem experimenta as maiores doçuras de sua vida Epicuro náo estava errado quando ponderava em que consistia a bemaventurança ao concluir que se trata do prazer em geral No entanto a satisfação e contentamento da consciência da própria força no domínio da natureza não são incompatíveis com o prazer da glória concedida por outros pelos resultados benevolentes do domínio as maiores recom pensas filosóficas e políticas podem coincidir na mesma alma Descartes não professa desprezo pela glória como o fizeram os cínicos e a tradição epicurista A busca pela glória pode realmente perturbar o contentamento ou repouso da mente mas a gló ria como respeito pelo povo ou vulgo pela exterioridade de nossas açóes também é perseguida em prol da segurança e por conseguinte do repouso A verdadeira glória é o reconhecimento de outras mentes fortes e nobres pela benevolência do que não é visível externamente a perfeita ciência moral ou sabedoria É um motivo para se estimar a si mesmo perceber que se é estimado pelos outros A autoestima primor dial ou generosidade é portanto reforçada pelo apreço ou glória que é concedida pela benevolência e a benevolência assim entendida tornase o substituto da justiça A reforma de Descartes começa com a transformação da filosofia no projeto de domínio da natureza da virtude na ciência das paixões e da virtude teórica e prática perfeita em uma só paixão virtuosa a generosidade Uma vez que o domínio da na tureza é um meio para um fim prático para todos os homens a filosofia deve ter uma nova relação com a sociedade A relação é um composto formado por uma ameaça aos R e n é D e s c a r t e s 3 8 9 31 Pléiade 774 32 Ibid 165 33 Ibid 795 34 Ibid 99lò 792 35 Ibid79 fundamentos tradicionais da sociedade e uma promessa de benevolência pelos frutos do domínio da natureza Todavia este risco é redimido pelo fato de que a dúvida universal que o método exige está tão longe de duvidar da opinião de que o bom é o útil que de fato é baseada nesta opinião e o útil é necessário para todas as socieda des sempre Portanto o projeto de Descartes pode ser acolhido por todas as socie dades exceto aquelas baseadas na virtude tradicional ou piedade ou é relativamente neutro quanto às diferenças entre os tipos de regimes O apoio ao projeto da ciência pelos regimes mais liberais bem como pelos regimes mais tirânicos nos tempos mo dernos oferece indícios dessa neutralidade Primordialmente por este motivo Descar tes nunca articulou uma concepção do melhor regime A convergência das metas da íilosoíia e da sociedade não é destruída pelo fato de que o útil buscado pelas mentes generosas não se confunde com o útil buscado pela sociedade Porque a sabedoria final das paixões e o prêmio da glória procurados pelos generosos exige os mesmos meios ou seja o avanço da ciência que é necessário para alcançar os frutos úteis procurados pela sociedade A premissa fundamental da harmonia entre a íilosoíia e a sociedade é que todos os homens são governados pelas paixões Os meios comuns o avanço da ciência não podem ser alcançados sem uma certa transformação ou nova legislação das instituições sociais A ciência só poderá avançar se a livre troca de experiências ou livre comunicação for sancionada dentro das fron teiras da sociedade e também entre as sociedades cumprirá sua promessa somente se a sociedade também promover a ciência pela dotação dos cientistas com segurança rendi mentos e deferência Esta livre troca não pode ser limitada à troca de conhecimentos as sociedades ou mais precisamente as autoridades políticas não são jmzes competentes do conhecimento Por conseguinte a sociedade não deve apenas sancionar os competen tes ou cientistas como juizes mas deve sancionar todas as comunicações de doutrinas A sociedade por conseguinte necessariamente abre mão do controle de suas opiniões ou seja de suas fundações pois as opiniões dominantes da sociedade são necessariamente afetadas pela livre comunicação de doutrinas Além disso a sociedade será afetada em profundidade pela infinidade de artifícios ou tecnologia da ciência A sociedade não pode ter o conhecimento da ciência mas só a crença na benevolência da ciência Entre tanto uma vez que a sociedade na sua origem não tivera conhecimento da benevolência da ciência nem de suas necessidades sociais foi preciso que Descartes seguindo Bacon iluminasse a sociedade em relação a ambos Podese dizer que Iluminismo tem três significados É um tipo de ação política sem precedentes empreendida pelos fundadores da íilosoíia moderna e continuada pela maioria de seus seguidores que forja o vínculo entre a íilosoíia ou ciência e a so ciedade na empreitada comum do domínio da natureza Também se pode dizer que é a retórica empregada para forjar o elo e as relações estabelecidas por ele Uma vez que a condição ótima do progresso da ciência exige a colaboração de cientistas de vá rios países e por conseguinte a liberdade de comunicação entre eles e exige também a difusão do conhecimento das condições do avanço da ciência o Iluminismo implica sociedades abertas ligadas umas às outras na empreitada comum do domínio da 3 9 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y natureza É essencialmente antitético a qualquer sociedade ou elementos de uma sociedade que buscam o cultivo autônomo e preservação de sua própria moralidade e modo de vida Assim o Iluminismo é por intenção uma política universal poten cialmente de magnitude global e a primeira de origem filosófica Por ser uma combinação de uma promessa e uma ameaça a retórica do Iluminis mo semeia a discórdia na sociedade tanto no momento da sua criação como após sua vitória Descartes indica a promessa do Iluminismo a três tipos de homens No Discur so apela em especial aos homens de bom senso ou ao público um amplo espectro mediano da humanidade que se julga adequadamente equipado com bom senso o qual Descartes provisória e enganosamente equaciona à razáo A verdade subjacente a esta bajulação é que os homens de bom senso raciocinam bem em matérias que lhes dizem respeito em particular e em relação às quais os erros de julgamento castigam nos logo em seguida sua racionalidade está enraizada em seus interesses próprios ou de autopreservação no aqui e ora mas não naquilo que os punirá em outra vida A retórica de Descartes anuncialhes que são os beneficiários do projeto que produz os frutos da terra sem dor e das condições sociais do sucesso do projeto São os aliados naturais do segundo grupo as mentes generosas ou os cientistas que constró em sobre suas fundações e os philosophes que propagam sua reforma Podese distinguir um terceiro grupo os dirigentes políticos em si que necessariamente dão boas vindas à defesa por Descartes de conhecimentos úteis para a sociedade bem como a sua oposição às ambições políticas dos reformadores que acreditam que Deus lhes deu graça e zelo suficiente para serem profetas Descartes convida esses grupos a se unirem em oposição comum contra os ad versários que extraem suas crenças dos livros antigos suas histórias e suas fábulas Juntamente com reformadores e profetas coloca aqueles que acreditandose de votos e grandes amigos de Deus embora na verdade apenas fenáticos e supersti ciosos cometeram os maiores crimes que podem ser cometidos por homens como trair cidades matar os príncipes e exterminar povos inteiros só porque não acatam suas opiniões O apoio popular a esses líderes zelosos vem dos espíritos fracos um termo usado repetidamente por Descartes para designar aqueles que são propensos à superstição e cujas consciências são agitadas por arrependimentos e remorsos do tipo humano que mais se opõe aos espíritos fortes e nobres Mas esses últimos têm um recurso disponível a ciência das paixões mesmo os espíritos mais débeis poderiam adquirir um império mais absoluto sobre todas as suas paixões se empre gassem indústria suficiente para treinálos e conduzilos Apoiando os zelosos está a autoridade da escola ou escolástica os monges fornecem a possibilidade para todas as seitas e heresias através de sua teologia ou seja sua escolástica que antes de tudo R e n é D e s c a r t e s 3 9 1 36 Ibid 131133 37 Ibid 168 38 Ibid 1244141142 39 Ibid 722 deve ser exterminada Por causa desta aliança de amigo contra inimigo dAlembert podia considerar Descartes como um chefe de conspiradores que primeiro tiveram a coragem de se levantar contra um poder despótico e arbitrário No entanto a retórica iluminista de Descartes necessita derrotar inimigos mais fundamentais para garantir o êxito duradouro de seu projeto Náo só seus preceptores ou os livros da cristandade latina corrompem a razão natural mas assim também o fezem os livros gregos e latinos Descartes deixou claro que seus únicos rivais no plano de seu empreendimento ou aqueles cujos escritos possuímos que procuraram as primeiras causas e os verdadeiros prindpios eram Platão e Aristóteles Assim aqueles cujos preconceitos mais se opõem a seu projeto são aqueles que mais estuda ram a íilosoíia antiga Sua retórica tem portanto a íúnção de combater toda a tradição humanista do conhecimento a qual simplesmente exigia que Descartes se opusesse à tradição Uma vez que a concepção de que o bom é o velho ou o tradicional nunca pode ser totalmente erradicado a retórica iluminista tem uma íiinção permanente de discórdia social Descartes conseguiu voltar contra os clássicos o questionamento da identidade do bom e do antigo pela íilosoíia clássica uma vez que os identificava com o velho ou o tradicional A tradição clássica parecialhe tal como para Stevin e Grócio uma corrupção da sabedoria da juventude dourada do mundo em algum siècle sage présocrático Como Descartes sabia que uma crença filosófica menos precisa sobre o todo é necessária como base para a sociedade procurou fornecer um substituto para a tradição que promovesse o projeto de ciência Por meio de uma científica fábula do mundo ou pelo que pretendia ser uma explicação científica da gênese dos céus e da Terra do universo visível e todos os seus fenômenos estabeleceu a crença de que a ciên cia é senhora do todo e pela promessa do progresso da ciência em direção a benefícios infinitos Descartes e Bacon estabeleceram a ideia de progresso ou a crença de que o bem é o íúturo cuja benevolência nada deve à tradição à natureza ou a Deus Não foi Descartes mas Bacon quem primeiro propôs um projeto que pro metia a máxima benevolência para a sociedade por meio de um método universal e portanto inaugurou a política do Iluminismo Podese dizer que Descartes seguin do Bacon aceitou porém reviu a anterior íúsão de Maquiavel da maior glória ou domínio com a maior benevolência por meio de ensinamentos políticos dedicados ao domínio do acaso ou da natureza nos assuntos humanos Foi inicialmente o re alismo de Maquiavel que ensinou que a razão não busca por natureza a verdade pura mas serve às paixões ou que a força natural do julgamento do homem não é suficiente como dizia Bacon e por conseguinte a razão deve ser equipada com o artefato do método ou que a razão deve ser conduzida pela obra ou pela arte do método como afirmou Descartes É precisamente a crítica incipiente de Maquiavel das impurezas da razão natural que exigia que a natureza fosse remediada ou melhor 3 9 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 40 ATV 176 41 Pléiade 179 562 564 879 884 42 Ibid 560 562 564 AT 373376 dominada pela ane ou pela construção de um método Se por um lado Maquiavel acreditava que o entendimento do homem deve abaixarse de modo a incluir o do animal a fím de ascender ao domínio da natureza humana por outro Bacon pensava que o próprio domínio inicial do entendimento humano deve ser adquirido por uma descida para aprender com as artes mecânicas de modo que a ascensão para o domínio de toda a natureza fosse feita como que por máquinas Por conseguinte com base no realismo de Maquiavel Bacon tentou ultrapassálo como ficou nitidamente eviden te no Novum Organum Livro I seção 129 Pois envidar esforços para estabelecer e ampliar o poder e o domínio da própria raça humana sobre o universo por meio de um método universal é mais benevolente que o ensino dos modos e ordens políticos Os benefícios das descobertas podem estenderse a toda a raça humana os benefícios civis apenas a determinados lugares os últimos não duram mais que algumas eras os primeiros por todos os tempos as reformas civis em geral começam com a violên cia mas as descobertas conferem benefícios sem causar sofrimento a ninguém Este argumento em sua totalidade é uma parte germinal do projeto de Des cartes A genealogia do projeto de Descartes é visível em particular nas declarações surpreendentemente semelhantes da doutrina sobre a reforma dos órgãos políticos por um indivíduo particular no Príncipe Capítulo VI no Novum Organum Livro I seção 129 e no Discurso Parte 11 Segundo Descartes Bacon não percebia com clareza suficiente que o novo método deve ser matemático para ser correto ou siste mático ou que exigia uma nova matemática e física matemática e uma determinação correspondente da alma Com essas momentosas emendas mas sobre as fundações lançadas por Maquiavel Descartes tornouse o fundador da filosofia moderna L e it u r a s A Descartes René Discourse on Method Trans L J Laileur New York Liberal Arts Press 1951 B Descartes René Medimions Trans with introduction by L J Lafleur New York Liberal Arts Press 1951 R e n é D e s c a r t e s 3 9 3 43 Para esses passos ver em panicular J Klein Mathematical Jhought and the Origjn o f Álgebra Cam bridge London 1968 197211 J ohn M ilton 16081674 Quando estudante em Cambridge John Milton pronunciou sete discursos em latim que refletem como seria de esperar levando em conta seu estilo e idioma náo só a extensão de suas leituras dos autores da Antiguidade clássica mas também até que ponto ainda menino já aceitava com consciência sua autoridade como mestres Mais tarde quando se atreveu a infringir a lei relativa às licenças para impressão e no mesmo ato aconselhar o Parlamento quanto à necessidade de revogála deu a seu discurso que se tornaria sua mais famosa obra em prosa o título àeAreopagitica Are opitica assim lembrando a seus destinatários o exemplo clássico de Isócrates e do areópago ateniense Milton buscava reformar a educação inglesa ao moldála s n d o as escolas antigas e famosas de Pitágoras Platão Isócrates Aristóteles e outras tantas Durante quase 20 anos propôs e defendeu um ensino político intencionalmente deri vado das doutrinas e instituições da Grécia e Roma antigas Insistia também no entanto que não se tratava de introduzir algo totalmente estranho à tradição inglesa de revolucionála a fim de recomeçar por meio da insti tuição do govemo a partir de princípios inteiramente novos De fato aiumentou em sua obra política mais abrangente The Ready and Easy Way to Establish a Free Commonwealth A maneira mais rápida e mais fecil de estabelecer uma comunidade nacional livre que não era sequer necessária a introdução de modelos exóticos havia exemplos suficientes no passado inglês Milton já escrevera antes em um traudo antiepiscopal Não há governo civil conhecido nem o espartano nem o romano embora ambos por tal aspecto tanto elogiados pelo sábio Políbio mais divina e har moniosamente afinados com maior igualdade equilibrados tal como se o fossem pela mão e balança da justiça do que é ou era a nação inglesa onde sob um monarca livre e desimpedido os homens mais nobres mais dignos e mais prudentes com plena aprovação e suffio do povo têm em seu poder a determinação suprema e final dos mais elevados assuntos O f Refbrmation in England The Compleu Works f John Milton ed F A Fanetson New York Coliunbia University Press 19311938 III i 63 Citado doravante como Works A ortografia fbi modernizada nas citações em inglês A virtude desta comunidade nacional livre consistia em parte no fato de que possma uma constituição mista não era uma monarquia aristocracia ou democracia mas uma mistura que reconhecia as pretensões de cada uma delas um equilíbrio divina e harmoniosamente afinado As melhores e menos bárbaras nações têm por objetivo uma certa mistura e temperamento compartilhando as diversas virtudes de vários outros estados Embora Milton viesse a se tornar inimigo declarado da monarquia logo adotando ideias totalmente republicanas e portanto quanto a isto mais coerentes com o espírito de seus modelos clássicos do que com a tradição inglesa seu apego à ideia da constituição mista mantevese fixa ao longo de sua carreira política Uma política propo sitalmente derivada da antiga Grécia e Roma é uma política constitucional e a causa do governo constitucional a causa que a Inglaterra foi escolhida por Deus para fomentar no mundo do século XVII nâo contava com maior defensor que John Milton Mesmo no último instante que antecedeu a restauração da monarquia e com ela a prelazia quando a boa e velha causa parecia estar íádada ao insucesso foi Milton que insistiu ser simples e claro o caminho para uma nação livre e se o povo deixando de lado o preconceito e a impaciência de forma judiciosa e calma agora considerar o seu próprio bem tanto religioso como civil sua própria liberdade e os únicos meios para tal ele ger homens não dependentes de uma única pessoa isto é de um rei ou câmara dos lordes a tarefe estará cumprida pelo menos os alicerces firmemente plantados para uma nação livre e também boa parte erguida da estrutura principal A tarefe aqui é compre ender a configuração e a finalidade dessa comunidade nacional livre Muito embora não seja quem deu origem à doutrina da constituição mista ou mais precisamente neste caso do estado misto nenhum nome está mais intimamente ligado a ela do que o do historiador grego Políbio Em sua famosa descrição da cons tituição romana descrição esta precedida por um comentário um tanto enigmático a esse respeito Políbio parece combinar a ideia da constituição mista de Platão e Aristó teles com uma nova ideia a da divisão do poder Se por um lado a mistura de Aris tóteles era uma combinação de oligarquia e democracia obtida pela concessão do poder político à classe média e mais moderada em um esforço para alcançar a moderação a mistura romana de Políbio parece incluir elementos da monarquia aristocracia e de mocracia cada uma exercendo uma parte do poder do estado e cada uma associada a uma determinada instituição a monarquia ao consulado a aristocracia ao senado e a democracia de modo um tanto vago às assembléias populares Sem entrar na ques tão das intenções de Políbio devemos tentar compreender o que o próprio Milton pretendia dizer com o termo Quereria indicar como Aristóteles no quarto livro da Política um regime que combina a democracia e a oligarquia de modo a evitar as des vantagens de cada uma e combinar as vantagens de cada uma e todavia possui um corpo de cidadãos indiviso que é em última análise soberano em todos os aspectos ou indicaria com isso um regime em que o cômputo total do poder político é dividi do em elementos monárquicos aristocráticos e democráticos J o h n M il t o n 3 9 5 2 Ibid 3 The Ready andEasy Way to Establish a Free Commonwealth Works VI 125 Milton não era um mero espectador dos extraordinários acontecimentos políti cos de sua época era defensor ativo tanto da causa do Parlamento contra Carlos I e posteriormente de Cromwell Grande parte de seus escritos políticos foi apresentada em panfletos escritos às pressas e para fins práticos imediatos seja para defender a si mesmo e ao povo inglês ou para encetar um último esforço para impedir a restauração da monarquia Nestas circunstâncias não surpreende que suas opiniões acerca de de terminados assuntos tenham sido modificadas pela turbulência dos acontecimentos da guerra civil e suas conseqüências Uma delas é seu conceito de monarquia outra sua concepção do caráter das pessoas comuns Milton não foi em momento algum um democrata mas sua opinião sobre a capacidade política das pessoas comuns parece ter sido mais favorável no início do que mais tarde Em 1644 na Areopagítica atacou o licenciamento para impressão pois entre outros motivos tratavase de uma censura contra as pessoas comuns que as tomava sem razão como estando em tal esudo de abatimento e íraqueza de fé e de arbítrio que nada podem absorver a não ser pela garganta de um licenciador Porém em seu Second Defense ofthe People ofEngland Segunda defesa do povo da Inglaterra uma defesa da nação por destimir e em seguida executar Carlos I e assim livrar a nação de um impiedoso domínio tuçou uma distinção entre as pessoas valorosas msânimas e leais que eram capazes de grandes feitos e de fidelidade a uma grande causa e a multidão Wgar A certa almra no início de sua carreira política repre endeu um adversário por seu uso do termo plebe amotinada contudo mais tarde empregou ele mesmo o termo plebe pau designar as pessoas comuns que segundo ele eram estúpidas e ignorantes da arte de governar além de inconstantes e voláteis São poucos os homens que almejam a liberdade disse em sua primeiu Defense ofthe Enish People Defesa do povo inglês e só alguns são capazes de usála pois a maior pane do mundo prefere senhores justos senhores notese bem porém justos To davia em sua Segunda defesa do mesmo povo inglês também pediu a Cromwell garan tia de que todos os cidadãos igualmente tivessem o mesmo direito de serem livres À luz destas dedauções contuditórias talvez o mais seguro guia pau sua avaliação do caráter das pessoas comuns possa ser encontudo no lugar que lhes atribuiu na Consti tuição Em 1641 Milton falou do poder político como sendo exercido apenas com a plena aprovação e o sufnio do povo mas foi só em 1660 em A maneira mais rápida e mais fácil que detalhou o modo como tal consentimento deveria ser oferecido e aqui no contexto de uma descrição da eleição dos membros do Conselho Geral ou legislatuu fica evidente que é mínimo o papel do povo Este exerce algum poder em um estado equilibudo mas não se pode descrever esse estado como uma democucia No entanto uma das razões da recusa tardia de Milton em admitir um rei em seu estado misto é o seu apo ao princípio da soberania popular 396 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 WbrÁi VIII 35151 5 Dfense ofthe English People Work VII 393 75 6 Wbrfc VIII 239 Milton não foi sempre republicano Considerando que em OfReformation Da Reforma escrito em 1641 achou necessário a fim de promover a reforma religiosa argumentar que o episcopado não era a única forma de governo da Igreja compatível com a monarquia oito anos mais tarde afirmou que um rei pode ser destituído quan do age de forma ilegal e mesmo quando não comete qualquer ilegalidade porque o rei recebe sua autoridade do povo Em primeiro lugar o povo escolhe os reis e pode rejeitálos os homens nascidos livres têm o direito de serem governados como lhes parecer melhor Contudo poderiam outras nações em especial uma nação de bárbaros ou a plebe íomerada serem legitimamente governadas por um rei ou até mesmo um déspota É o que sugere Milton tanto na Primeira defesa como em A maneira mais rápida e mais fácil Os reis não recebem seu mandato de Deus mas do povo Portanto vemos que o mandato e o direito justo de reinar ou destituir em referência a Deus são vistos nas Escrituras como um só visível somente no povo e dependendo apenas da justiça e do demérito É a soberania popular que deriva de Deus como afirma em Paraíso Perdido Livro XII mas do Homem sobre os bomens Não fez Senbor tal título para si mesmo Reservou bumanos debcou livres uns dos outros De início Milton pode ter apoiado a monarquia contudo logo se tornou repu blicano e um republicano entusiasmado A soberania popular no entanto guarda perfeita compatibilidade com a aceita ção da monarquia até mesmo da monarquia hereditária já que o povo pode delegar a uma família real o poder governamental ao mesmo tempo em que mantém o poder soberano de removêlo Entretanto ao chegar 1651 ano em que publicou a Primei ra defesa Milton encontrara nos eventos contemporâneos suficientes razões práticas para rejeitar a monarquia mesmo no sentido restrito de monarquia constitucional Na década anterior sua experiência como cidadão inglês confirmara os argumentos que conhecia dos escritos de Platão e Aristóteles de que a monarquia tende a se degenerar transformandose em tirania na verdade de acordo com Milton de todas as formas de governo a monarquia é a que tem a maior probabilidade de fãzêlo Nada que escrevessem os amigos do rei foi capaz de dissuadilo na verdade tornouse cada vez mais republicano na medida em que revidava a vários panfletos prómonárquicos Fi nalmente nada conseguia discernir ao redor do rei além de luxo corrompido e depra vação um estilo de vida que fez miserável o povo perverteu a nobreza privilegiada e gerou uma nobreza servil que aspirava não ao serviço público mas ao serviço como intendentes ecônomos meirinhos palafreneiros até mesmo junto às latrinas Em suma a monarquia avilta o caráter dos homens Como se poderia esperar que argumentasse um discípulo de Aristóteles não é uma forma de governo adequada J o h n M il t o n 3 9 7 7 The Tenure ofKitiff and Magistrates Works V 14 8 Ibid p 18 para homens livres Ser governado por um rei entregar todos a seu cuidado paternal é agir mais como meninos menores de idade que como homens Como se precisa ser efeminado para entregar a ele toda nossa felicidade toda nossa segurança nosso bemestar pois se fôssemos outra coisa que náo preguiçosos ou bebês náo precisaría mos depender de ninguém só de Deus c de nosso próprio juízo nossa própria virtude e indústria ativas Eram estas as razões de Milton ser republicano Náo significa é claro que se recusasse a admitir o exercício do poder executivo o Estado misto previa uma magistratura e se em 1641 tratavase esta de um rei em 1660 era um Conselho de Estado escolhido pela legislatura Por óbvio nem o povo como um todo nem o rei e seu séquito exerciam o poder político decisivo no Estado misto este papel estava reservado para os homens mais nobres mais dignos e mais prudentes segundo afirma em Da Reforma Também é evidente que essas palavras não se referem a uma aristocracia portadora de títulos de nobreza que governa por meio de uma câmara dos lordes pois não há câmara dos lordes na nação livre e Milton desdenhava a ideia de um título que confere nobreza a seu possuidor Ao mencionar os homens mais nobres mais dignos e mais pruden tes referiase aos homens verdadeiramente notáveis por seu caráter e por seu serviço público A tais homens completos e cidadãos escolhidos aconselhou Cromwell na qualidade deste último como legislador ou pai fundador sem dúvida é possível con fiar devidamente os cuidados de nossa liberdade Aludia a homens para quem o serviço público não era um meio de granjear poder posição ou riqueza mas um dever sagrado E que governo mais se aproxima deste preceito de Cristo se não uma nação livre onde aqueles que são mais preeminentes são servos perpétuos e labutam pelo pú blico à sua própria custa e negligenciam seus próprios negócios todavia não se elevam acima de seus irmãos vivem em sobriedade com suas famílias caminham pelas ruas como os outros homens podese lhes dirigir a palavra livremente com fámiliaridade de modo amistoso sem adoração Podemse encontrar tais homens entre o tipo mediano pois e mais uma vez Milton concorda com Aristóteles os demais são via de regra desviados por um lado pelo luxo e pela riqueza por outro pela carência e pela pobreza do caminho que leva à excelência e do estudo das leis e do governo Está definido então a quem Milton confia o poder político decisivo na nação livre não a um indivíduo particular ou ao povo mas a uma verdadeira aristocracia a ser encontrada entre os homens da classe média é necessário agora verificar como a colocaria em prática Os homens mais hábeis e mais nobres governarão com o con sentimento ou como afirmou em 1641 com plena aprovação e sufrágio do povo e exercerão seu governo de início através de um Conselho Geral ou legislatura Pois o fundamento e a base de qualquer governo justo e livre posto que tantas vezes sofreram 3 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Ready and Easy Way WorksYl2Q21 10 Second Dtfénse Works VIII 235 11 Ready and Easy Wsty Works VI 120 12 Definse t f the E n h People Works VII 393 os homens por confiar tudo a uma só pessoa é um conselho geral dos homens mais competentes escolhidos pelo povo para vez por outra deliberarem acerca dos assuntos púbücos para o bem comum Diferente da república romana descrita por Políbio este órgão legislativo não só promulga as leis angaria e gere as receitas públicas e em geral atua como um órgão lslatívo mas também controla o exército e a marinha Além disso e l dentre seus próprios membros assim como de fora um Conselho de Estado um óigão executivo ou magistratura que lida com assuntos particulares com maior sigilo e prontidão Finalmente há o governo local organizado em cada con dado do país e que exerce os poderes de um tipo de nação subordinada e em particular com o pleno poder de eleger juizes e aplicar a justiça Eis então os elementos de um estado polibiano misto a monarquia ou magistratura personificada no Conselho de Estado a aristocracia representada pelo Conselho Geral ou legislatura e a democracia representada pelo processo eleitoral especificamente pela eleição dos fimcionários lo cais e mais importante dos membros do Conselho Geral Estas são as instituições da nação livre um estado construído com vistas a atingir algum tipo de equilíbrio Mas que tipo de equilíbrio Seria um equilíbrio do legislativo contra o execu tivo contra o judicial ou seja uma divisão do poder a fim de evitar que qualquer indivíduo ou qualquer grupo se torne demasiado poderoso Ou seria um equilíbrio da monarquia e da aristocracia e da democracia o poder de cada um sendo exercido através de uma das instituições constitucionais Não há naturalmente um monarca mas há uma magistratura não há uma assembleia popular independente mas o povo ou pelo menos alguns deles vota Em que sentido seria este um estado equilibrado A resposta a esta pergimta exige no mínimo uma análise mais detalhada dos fiitores institucionais em questão Os homens mais hábeis governam com o consentimento do povo mas esse con sentimento é expresso somente na eleição do Conselho Geral e das autoridades locais Milton pesou a possibilidade de equilibrar o Conselho Geral com uma assembleia popu lar ou outra instituição popular tal como os éforos espartanos ou os tribunos romanos mas rejeitou a ideia porque esses remédios ou pouco beneficiam o povo ou os levam a tal licenciosa e desenfiieada democracia que in fine arruinaramse por seu próprio po der excessivo Com base na experiência da república romana que acreditava degene rou na tirania de Sula porque o povo não contente em ter apenas seus tribunos obteve o controle sobre a escolha primeiro de um depois de ambos os cônsules depois dos censores e pretores Milton rejeitava as assembléias populares em favor somente do su fr o democrático ou sufiio quase democrático Seu julgamento maduro dissuadiuo da possibilidade de equilibrar classe contra classe pelo equilíbrio de instituição contra instituição a tentativa de fàzêlo conduzia ou a uma constituição totalmente impopular ou a uma democracia desenfreada mas não a um estado equilibrado J o h n M il t o n 3 9 9 13 ReadyandEasy Way Works VI 12526144 14 Ibid p 130 Contudo o sufrágio não se revela democrático e mesmo se o fosse a máquina eleitoral parece ter sido concebida para minimizar a influência das pessoas comuns Os membros do Conselho Geral são selecionados por uma série de comissões eleitorais que utilizam uma lista de candidatos fornecida de início por uma espécie de colégio eleito ral Outra maneira de obter um equilíbrio será bem qualificar e aperfeiçoar as eleições não confiar tudo à balbúrdia e aos gritos da multidão rude mas permitir que apenas aqueles entre eles que são adequadamente qualificados nomeiem quantos desejarem e dentre esses outros de melhor estirpe escolham um número menor com mais critério até que após uma terceira ou quarta filtragem e refinação da escolha mais rigorosa só restem escolhidos aqueles que perfazem o número devido e parecem pela maioria das vozes os mais dignos Além disso o elemento democrático da constituição se mos tra de partícular fraqueza e não c h a ser suficiente para contrabalançar o poder da aristocracia no Conselho Geral quando damos a devida atenção para o fato de que este conselho o principal órgão a governar sob a constimição é eleito em perpetuidade Exceto quando da morte ou ausência de um membro não haverá eleições depois da original Milton prefere um parlamento perpétuo e é somente com grande relutância que admite a impopularidade e a inviabilidade desta configuração e aceita em substitui ção uma assembleia da qual um terço dos membros são eleitos anualmente luna vez que a necessidade de escolher parlamentos sucessivos gera comoções novidades mudança isto é instabilidade em particular porque os parlamentares recémeleitos darão início a mudanças somente para terem algo a fàzer ou aparentar terem algo a fàzer Como o Conselho Geral é ao mesmo tempo o fundamento e principal pilar de todo o Estado fàzer mudanças desnecessárias é por em perigo toda a estrutura Milton tinha consciência de que esta constituição seria alvo de ataques por sua su posta falha em posicionar salvsiardas em torno dos interesses do povo e ressaltou que uma dessas salvaguardas seria eleger homens confiáveis para o conselho homens para exercer um governo justo o que poderia ser feito por um eleitorado beminformado sem levar em conta aparentemente o número de pessoas em sua composição Neste ponto é possível discernir uma diferença importante entre Milton e os escritores políti cos que ensinaram que por meio de dispositivos como um estado misto mas querendo dizer com isso uma divisão ou equilíbrio de poder os homens poderiam construir uma nação indestrutível cuja viabilidade não dependeria de modo algum da presença de cidadãos de bom caráter A nação livre de Milton pretendia a imortalidade mas sua excelência e durabilidade dependiam da presença de homens de bom caráter de fàto dependia totalmente do governo de homens verdadeiramente virtuosos A educação desses homens não poderia ser debcada ao acaso mas deveria ser assumida como um 400 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 Ibid p 131 Milton náo especifica o método de eleição de funcionários locais mas parece que aqui também a nobreza e os principais representantes da pequena nobreza exerceriam o real poder Ibid p 144 16 Esta é a oportunidade agora mesmo a estação na qual podemos criar uma nação livre e firmála para sempre no país Ibid p 125 dever público primordial Dar ao povo maior aptidão para a escolha e aos escolhidos maior aptidão para governar será reparar nossa educação corrupta e defeituosa a fim de ensinar ao povo a fé náo sem virtude temperança modéstia sobriedade parcimônia justiça não para admirar a riqueza o princípio da sociedade comercial ou a honra o princípio da monarquia mas para que cada um dedique seu bemestar e felicidade privados à paz liberdade e segurança públicas É um problema identificar quem ou que instituição ensinaria ao povo a fé não sem virtude devido à noção que tinha Mil ton da relação adequada entre Igreja e Estado embora como veremos seja fiicil resolver o aparente problema por meio de seu entendimento da formação moral e da liberdade cristã Decerto está evidente em OfEducation Da educação com seu esboço de re forma educacional e em A segunda defísa onde apelou a Cromwell como legislador para que melhorasse as condições para a educação e moral da juventude porque proporcionar a formação moral é um dever público A excelência e a durabilidade da nação livre então não dependiam de dispositivos institucionais por mais que corre tamente planejados mas do caráter dos homens que a compõem Assim a verdadeira salvaguarda dos interesses do povo não consistia em um equilíbrio das instituições mas em seu caráter e no caráter dos homens que governam Milton fez uma concessão apenas Porém para evitar qualquer desconfiança o povo realizará suas várias assembléias ordinárias nas cidades principais de cada condado e essas serão tão eficazes para a obtenção de sua liberdade quanto uma nu merosa assembleia de todos formada e convocada a propósito com a mais cautelosa ro tação isto é com as eleições mais freqüentes Estas assembléias locais terão o poder de declarar e publicar o seu consentimento ou discordância pelos deputados dentro de um prazo limitado enviado ao Grande Conselho Isso não signiíica que cada con dado tenha poder de veto sobre as decisões tomadas pelo Conselho Geral mas que a maioria dos municípios deve concordar com as decisões Essas são as instituições do Estado misto ou nação livre uma forma de governo exercido pelos mais sábios homens em todas as eras de modo a ser o mais nobre e mais justo o mais conveniente para toda a liberdade devida e partilhado com igualdade e também uma forma de governo claramente recomendada ou melhor comandada pelo nosso próprio Salvador É uma forma de governo não só derivada dos ensi namentos dos sábios da antiguidade clássica e que segue um modelo encontrado no passado inglês como é também uma forma de governo comandada por Cristo Mas a indicação permanece que tipo de equilíbrio atinge Se esta configuração tem o intuito de instaurar um equilíbrio entre os diversos poderes do governo o legislativo o executivo e o judiciário foi concebido equivocadamente Basta um momento de reflexão sobre o método de seleção do executivo para revelar a fiJta de verdadeiro J o h n M il t o n 401 17 7íV7p 131 18 SecondDefénse Works V lll 237 19 Ready and Easy Way Works VI 132 144 20 Ibidp9 equilíbrio e até que ponto o legislativo é o poder absoluto Isso é perfeitamente correto avalia Milton porque apesar da relevância de que o poder executivo seja exercido por homens que não participem da legislatura o poder legislativo é supremo Decerto se esta configuração atinge um equilíbrio entre a aristocracia e a democracia não o íàz por encastelar cada classe em uma fortaleza institucional mas ao contrário por meio da regulação do direito de voto A este respeito se assemelha menos ao que em geral se considera como o estado misto de Políbio do que à comunidade política de Aristóteles o governo da classe média levado a efeito principalmente por meio de uma moderada proporcionalidade de acordo com os bens possuídos para o direito ao voto Com isso se pretende produzir um sufrágio amplo o bastante para conquistar a popularidade e assim esperase conquistar a estabilidade mas limitada de tal forma que minimize o poder total da multidão pois como disse Milton nada é mais natural que os inferiores cedam aos superiores não a quantidade à quantidade mas a virtude à virtude e a sabe doria à sabedoria A monarquia não encontra lugar nessa mistura e a única divisão de poder se encontra no quasefederalismo porque Milton como Platão e Aristóteles antes dele sabia que o poder não pode ser dividido entre as classes o equilíbrio portanto deveria ser definido de modo tão preciso que preservasse e mantivesse a devida autoridade em ambos os lados no Senado bem como no povo e isso é impos sível Dê ao povo 24 das tribunas e o povo acaba com os cônsules censores e pretores também tudo ou nada O governo constitucional não é um equilíbrio de classe contra classe mas uma mistura de aristocracia ou oligarquia e democracia possibilitada pelo governo do indivíduo mediano Entre os indivíduos medianos encontramse os homens mais prudentes os homens mais hábeis e virtuosos Embora seja claro que Milton devia seu modelo de governo constitucional aos escritores da antiguidade clássica não é totalmente claro que tivesse compartilhado plenamente sua compreensão da finalidade desta constituição É verdade Políbio elo giara Licurgo pela introdução da estabilidade em Esparta interrompendo assim o ciclo regular de revoluções constitucionais e Milton pediu primeiro a Cromwell e após a morte deste ao general Monk que imitasse Licurgo Também é verdade qut acreditava que devidamente constituída a nação livre duraria para sempre ou seja ati que Cristo viesse para estabelecer a Sua nação Porém tanto para os antigos como pan Milton a estabilidade era apenas uma condição necessária às metas da vida política não era a finalidade da vida política e portanto concordavam que as instituições sãt formadas tendo em vista não só a estabilidade mas seus fins Pois admitindo um solução para o problema da sucessão a constituição mais estável pode muito bem ser governo absoluto de um só homem sobre uma população completamente degradada É quando examinamos os fins da vida política que Milton parece aíàstarse de sua autoridades clássicas e o motivo óbvio para isso parece ser o seu cristianismo 402 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 21 Eikonoklastes Works V 132 22 Aristóteles PoUtica 1294 38 23 SecondDefinse Works V lll 153155 24 Ready and Easy Way Works VI 130 Náo só questões religiosas em geral mas questões de doutrina em particular foram de importância decisiva para Milton de modo que seus esforços para reformar a constituição da Inglaterra foram pelo menos igualados por seus esforços para re formar a vida religiosa dos ingleses e seria difícil dizer a qual atribuía prioridade Os bispos eram uma ameaça tão grande à constituição bemordenada quanto o rei e uma ameaça muito mais imediata que a represenuda pelas pessoas comuns Tal como o bispo de Roma não hesitara em capturar a cidade e tornarse seu governante temporal assim temia Milton os bispos ingleses imporiam sobre a Inglaterra um governo tem poral tirânico Os bispos e toda a instituição seriam abolidos Náo só o cristão é capaz de compreender a verdade das Escrituras sem a assistência de um bispo mas bispos dotados de poder político sáo uma ameaça à liberdade cristã quantos fiéis e ingle ses livres e bons cristãos têm sido obrigados a abandonar seu lar querido seus amigos e parentes a quem nada além do vasto oceano e os desertos selvíens da América pode esconder e proteger da íiiria dos bispos O episcopado é um cisto no corpo da constituição suas cerimônias e os tribunais eclesiásticos são sanguessugas que absorvem as receitas e as riquezas do país Milton escreveu tantas páginas dedicadas à reforma desses aspectos quanto sobre a reforma dos aspectos políticos No entanto é dificil separar os dois em seu pensamento isto é fitlar de refor ma política sem referência à reíbrma religiosa e isso apesar do fiito de que segundo o próprio Milton os dois poderes eclesiástico e civil são totalmente distintos Não seria inteiramente correto afirmar que percebeu só um problema o da relação entre o eclesiástico e o civil Contudo o que precisava de reforma não era a Igreja somente ou o Estado somente mas a relação entre eles Assim Milton aconselhou Cromwell a dei xar a Igreja para si mesma e ter a prudência de se aliviar e aos mitrados desse encargo que é a metade e ao mesmo tempo o mais longínquo de sua própria província O que quis dizer com esta afirmação paradoxal talvez possa ser entendido a partir da dedicatória epistolar dirigida ao Parlamento de A Treatise of Civil Power Ecclesiastical Causes Tratado do poder civil em causas eclesiásticas Escreveu ali tanto a nação como a religião no longo prazo se assim for florescerão na cristandade quando os que governam discernirem entre civil e religioso ou quando aqueles que assim discernem forem aceitos para governar As questões religiosas não são exatamente uma preocu pação da autoridade civil como demonstram as atrocidades cometidas pelo arcebispo Laud e seus coadjutores apoiados pelo poder do Estado por outro lado as questões teligiosas são devidamente do interesse da autoridade civil em sentido negativo é dever da autoridade civil manter a separação Entretanto Milton também pretende mais do que isso Também indica que Cromwell como legislador cristão pode melhor fomentar a religião cristã e é seu dever fiizêlo ao estabelecer e manter uma separação entre os poderes civil e eclesiástíco Seu auxílio é necessário para estabelecer uma nação livre J o h n M il t o n 403 25 OfReformation in England Works III i 4849 54 26 SecondDefense Works VIII 235 Italics supplied 27 Works VI 2 e ã nação livre mais que qualquer outra forma de governo promover á a liberdade de consciência que acima de todas as outras coisas deve ser para todos os homens a mais cara e mais preciosa É difícil distinguir os ensinamentos religiosos de Milton de seus ensinamentos políticos porque suas reformas políticas são orientadas por sua dou trina religiosa e em menor escala suas reformas religiosas são guiadas por considerações políticas Suas reformas políticas são projetadas sem dúvida tendo em vista a liberdade cristã mas também existe uma liberdade civil que independe da liberdade cristã e que é ameaçada entre outras coisas por uma Igreja estabelecida Com relação à liberdade civil uma Igreja estabelecida é semelhante a uma nobreza com seus títulos nobiliárqui cos porque ambas oferecem recompensas com base em algo que náo é o mérito e ambas limitam o acesso a posições elevadas por aqueles cuja única reivindicação é o mérito É a doutrina do cristianismo de Milton e especificamente sua doutrina da liberdade cris tã que origina a causa final ou finalidade e portanto a forma da constituição mista A liberdade é a meta da vida política sem levar em conta se é o objetivo reconhecido pela maioria de um povo em particular Na verdade Milton sabia que em 1660 a multidão irreverente parecia estar louca pela restauração da monarquia com sua pompa e sua religião tão hostis à liberdade e que muitos que antes apoiaram a causa da liberdade pas saram a ser apóstatas zelosos Porém não era justo nem razoável que suas vozes contra o fim principal do governo devessem escravizar a multidão inferior que poderia ser livre Melhor e mais justo se a minoria capaz e digna obrigasse a multidão se necessário pela força das armas a manter sua liberdade É complexa a ideia de liberdade de Milton e não apenas porque embora costu me dividila em duas partes liberdade espiritual ou cristã e liberdade civil em deter minado momento na Segunda dtfesa acrescente uma terceira a liberdade doméstica ou privada e se refira à Areopagltica como a obra onde trata não da liberdade civil mas dessa liberdade doméstica Tal complexidade é condizente com as dificuldades do tema Em lugar algum se reduz sua obra a uma simples proposição e nada do que escreveu corresponde às exigências para ser qualificado como um tratado sobre o assunto O que mais se aproxima disso é a Areopagttica que reconhecidamente trata de apenas um aspecto da liberdade Como afirma Milton na Segunda defesa há em primeiro lugar a liberdade no sentido de um meio para o fim a virtude para formar e aumentar a virtude o fetor mais perfeito é a liberdade Porém na frase seguin te apela a Cromwell para que melhorasse as condições para a educação e moral da juventude protesto este suficiente para nos lembrar de algo que também aprende mos com a Areopagltica que a nação livre não é uma sociedade pluralista Sabemos por exemplo que a nação livre não tolera papismo e superstição declarados mas apenas diferenças próximas ou melhor indiferenças Ao cidadão da nação livre é assegurada a liberdade para se tornar virtuoso mas não lhe é garantida a liberdade de definir a virtude da forma que lhe aprouver 4 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 28 Ready and Easy Way Works VI 142 29 Ibid p 140141 30 W orksV m lò7 Há por outro lado a liberdade no sentido negativo de ser livre de governo A nação livre náo exerce nenhuma autoridade em assuntos eclesiásticos nem como sa bemos exige o licenciamento de impressão proporcionando assim uma liberdade de imprensa O caráter limitado dessa liberdade no entanto pode ser melhor apreciado a partir do resumo que fàz Milton sobre o argumento da Areopafítica em sua Segunda Defesa Finalmente escrevi seguindo o modelo de um discurso normal aAreopagíti ca a respeito da liberdade de imprensa que a determinação do verdadeiro e do falso do que deve ser publicado ou suprimido náo pode estar nas mãos dos poucos que podem ser encarregados da inspeção dos livros homens em geral sem conhecimentos e de juízo vulgar e por cuja licença e prazer nâo se tolera que ninguém publique qualquer coisa que possa estar acima da compreensão vulgar Aqueles que são incli nados à liberdade de investigação têm liberdade para comunicarse sem a inquisição privada de qualquer censor absoluto mas por sua própria conta e risco A distinção de Milton é aquela feita mais tarde pelo direito comum onde a liberdade de imprensa consiste em poder publicar sem restrições prévias e não na liberdade de reprovação quanto a conteúdos criminosos quando publicados Por último o Conselho Geral em parte devido à extensão dos poderes exercidos a nível local promete restringir seu governo em particular à área das relações internacionais Esta liberdade negativa é ao menos compatível com a liberdade cristã e provavelmente exigida por ela a qual Milton define em parte como a liberação através da agência de Cristo do governo da lei dos homens Talvez se possa entender melhor o que isto significa a partir do seguinte trecho de Tratado do poder civil em causas eclesiásticas escrito em 1659 o estado da religião sob o evangelho é muito diferente do que era sob a lei existia entáo o estado do rigor infância escravidão e obras para todos os quais a força náo era indecorosa agora existe o estado da graça maturidade liberdade e fé a todas as quais pertence a disposição e a razão náo a força a lei foi entáo escrita em tábuas de pedta para ser cumprida ao pé da letra voluntária ou involuntariamente o evangelho a nossa nova aliança no coração de cada fiel deve ser interpretado apenas pelo sentimento de caridade e de persuasão interna a lei náo distinguia nenhum governo ou governadores da Igreja e da nação mas os sacerdotes e levitas julgavam em todas as causas não só as eclesiásticas mas também as civis o que sob o evangelho é proibido a todos os mi nistros da Igreja Esta passagem serve para introduzir a liberdade em seu sentido elevado Os homens podem acreditar que sáo livres podem gabarse de que sâo livres e podem de fato ser livres no sentido negativo mas ainda podem ser escravos Podem ser escravos no aspecto decisivo de serem incapazes de usar corretamente a liberdade negativa que lhes é dada e sâo escravos se desconhecem o certo e o errado ou se acham J o h n M il t o n 4 0 5 31 Ibid p 133135 32 Blackstone Commentaries IV xi 13 33 WorksV15 que o poder consiste em violência ou a dignidade em orgulho e altivez Sáo escravos se esmorecidos pelo luxo se controlados por sua luxúria e não por sua razão se em suma como Milton deixa muito daro na Segunda defesa não são senhores de si mes mos Não basta a liberdade da lei A menos que sua liberdade seja daquele tipo que não pode ser conquistada nem retirada pelas armas e só ela é tal que emergindo da piedade justiça temperança in fine da verdadeira virtude íincará raízes proíundas e firmes em suas mentes podeis ter certeza não faltará quem mesmo desarmado logo vos privará do que vos gabais de ter conquistado pela força das armas A liberdade que não pode ser nem obtida nem perdida pela força das armas e a liberdade de que dependem todas as outras liberdades é a liberdade cristã na plena acepção do termo Esta é a liberdade que só é conhecida pelo homem verdadeiramente livre e esta é a liberdade que constitui o objetivo ou meta da vida política Tal liberdade só se tornou possível através de Cristo porque foi Cristo quem mu dou a condição do homem de legal para evangélica de uma condição de servilismo para com Deus e de para com a lei de Deus para uma condição em que o homem é autorizado a exercer uma faculdade que compartilha apenas com Deus Na verdade esta é uma liberdade para servir a Deus mas é uma liberdade para servir a Deus sjundo a melhor luz que Deus plantou em alguém para esse fim e o que isso significa de fato é a liberdade para buscar a verdade A verdade veio ao mundo com Cristo e foi a forma perfeita mais gloriosa de se observar porém mais tarde foi par tida em mil pedaços A liberdade do homem consiste em procurar esses pedaços o que significa a busca pelo desconhecido pelo que é conhecido Não é apenas a liberdade do homem que consiste nesta vida de busca da verdade mas também a dignidade ou a virtude do homem Pois em todas as coisas Deus direciona suas dádivas não a uma credulidade indolente mas à diligência constante e a uma busca incansável da ver dade Por em prática a liberdade cristã é buscar a verdade dentro dos limites das Escrituras aquele que procura sendo guiado pelo Espírito Santo e buscar a verdade dentro dos limites das Escrituras guiado pelo Espírito Santo o qual homem algum pode ter certeza de que está a todo momento nele mesmo é buscar a verdade dentro de limites muito amplos É quase buscar a verdade sem quaisquer limites Que este é o caso fica evidente a partir da seguinte consideração o modo como um cristão avalia o poder da razão desassistida dependerá até certo ponto do que considera como as conseqüências da Queda da primeira desobediência do homem a Deus Segundo Milton o homem de fato perdeu o paraíso por sua Queda mas a aquisição do conhecimento do bem e do mal elevou o homem acima do nível de sua existência anterior até um ponto onde se tornou mais parecido com Deus A descrição 4 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 34 Second Drfense Works VIII 237241 35 Ready and Easy Way Works VI 141 36 Christian Doctrine Works XIV 9 37 Treatise o f Civil Power W ork VI 6 poética da expulsão do Éden por Milton não traz à memória a cena de angústia retra tada por exemplo no afresco de Masaccio Lágrimas vertem mas logo as secam Adiante se prostra o Mundo onde encontrar Um abrigo a Providência os guia Mãos dadas passos infirmes e lentos Com a vinda de Cristo e a libertação da lei mosaica o paraíso é recuperado mas não o paraíso do Éden pois esse estado original de inocência está irremediavelmente perdido O homem já conhece o bem e o mal O mundo aliás conheceu Sócrates o mais sábio dos homens e até mesmo Cristo que rejeita a oferta de Satanás do reino terrestre de Atenas no auge do seu poder intelectual reconhece a beleza intelectual da Antiguidade clássica Rejeitaa porque não é a verdadeira sabedoria mas tendo sido construída sobre nada íirme é mera conjectura ou imaginação É possível distinguir a vida do homem verdadeiramente livre buscando a verdade dentro dos limites das Escrituras guiado pelo Espírito Santo da vida do filósofo da antiguidade pagã mas não é fiicil não muitas questões em aberto para os últimos estão fechadas para Milton Sem a liberdade de peneirar e coar todas as doutrinas afirmou e pensar e escrever sobre elas segundo a fé e persuasão individuais os homens estão ainda escravi zados e não de feto como anteriormente sob a divina lei mas o que é o pior de tudo ao abrigo da lei do homem ou para falar de modo mais sincero sob uma tirania bárbara Poucos pensadores pagãos atribuíam maior estima à vida do intelecto pois o que é mais sradável o que mais afortunado que as coníèrências de homens instru ídos e eminentes tal como se diz ter realizado o divino Platão com muita frequência sob o famoso plátano A felicidade para este cristão consiste na amizade e a ami zade consiste em buscar a verdade juntos É dever da nação livre promover isso pois a nação livre é um lugar de liberdade filosófica como um dia se pensou que fosse a Inglaterra A finalidade da vida política que determina a forma da vida política existe fora ou além da vida política As honras da nação livre premiam o conhecimento e educam seus cidadãos de tal forma que estejam preparados para buscar o conhecimento e em conseqüência para exercer a liberdade que Cristo lhes concedeu A nação livre é erigida não somente sobre algumas instituições mas sobre homens autcvemados homens que aprenderam a go vernar a si mesmos Quantos homens aprenderão a se governar e serão verdadeiramente livres Milton não diz embora queira que todos os homens tenham o direito de tentar J o h n M i l t o n 407 38 Pamdise Lostyi 39 Christian Doctrine Works XIV p III3 40 Seventh Prolusion Works XII 263265 L e it u r a s A Milton John The Ready and Easy Way to EstabUsh a Free Commonwealth Milton John A Second Defense fth e People ofEngland Milton John Areopagytka B Milton John O fRfbrm ation in England Milton John OfEducation Milton John The Tenure ofK in ff and Magistnttes Milton John A Treatise t f Civil Power in Ecclesiastical Causes 408 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y B aruch Spinoza 16321677 Spinoza foi o primeiro filósofo a redigir uma defesa sistemática da democracia que consta de seu Tractatus theologjco politicus Tratado teológicopolítico publicado em 1670 Esta defesa surge como uma conseqüência necessária da posição metafísica de Spinoza e de sua rejeição explícita da filosofia política tradicional A enunciação mais detalhada dos fundamentos metafísicos do pensamento político está contida na Ethica Ética a obra msna de Spinoza um estudo sobre a estrutura fundamental da realidade ou substância e assim da relação entre a existência humana e a ordem eterna A rejeição por Spinoza da filosofia política tradicional é exposta de modo mais daro nas painas de abertura do Tractatus politicus Tratado político e o induz a substituir o que considera como as concepções imaginárias e inúteis dos filósofos tradicionais pelas análises realistas e científicas das da vida política características de homens tais como acima de tudo Maquiavel Em certa medida a metafísica científica de Spinoza preserva o aspecto da tradi ção política clássica segundo o qual uma ordem eterna subjaz e regula a ordem mera mente humana De acordo com o entendimento clássico a ordem eterna primeiro se torna acessível por meio de uma análise desta ordem humana Contudo a análise de Spinoza em harmonia com sua aceitação dos modernos procedimentos científicos acarreta um descaso inicial da ordem humana para que a ordem eterna possa se tornar visível A observação dos fenômenos políticos distintos da ordem pretende eliminar a distorção da perspectiva meramente humana os fenômenos políticos são registrados e analisados da mesma forma que os fenômenos de qualquer outra ciência A ordem humana é então deduzida a partir da ordem eterna cientificamente revelada O elemento clássico no pensamento de Spinoza podemos sirir constitui uma revisão do ponto de vista estoico de uma vertente da doutrina socrática Spinoza continua a reconhecer a necessidade e a possibilidade de um aperfeiçoamento na or dem humana à luz da nossa visão da ordem eterna mas combina esse reconhecimento com uma concepção estoica da relação entre o filósofo e a eternidade Daí resulta uma curiosa combinação de ativismo socrático e passividade estoica A satisfação filosófica resulta da contemplação da ordem eterna da qual o homem é apenas uma parte e em termos da qual suas preocupações sociais e políticas são tentações ilusórias que o aíastam da serenidade Entretanto a serenidade depende da reconstituição bem sucedida da ordem social e política ou humana A influência dos estoicos sobre Spinoza é visível na sua definição metafísica de liberdade que de acordo com seu determinismo parece identificar a mais elevada forma de atividade como uma resignação passiva diante das conseqüências da ordem eterna Na esfera política embora seja verdade que Spinoza preserve o ativismo socrático menciona do anteriormente transíbrmao de uma atividade de cavalheiros para uma atividade de cientistas ou de políticos decisivamente influenciados por uma compreensão científica das questões políticas O cavalheiro que dá ouvidos ao filósofo é substituído na esfera prática pelo cientista político com uma correspondente mudança nos ensinamentos políticos piáticos Na esfera prática a liberdade é concebida como a expressão inteligente do poder humano Contudo o poder humano é explicado em termos de uma concepção geral do poder uma concepção comum a todas as coisas existentes A concepção comum de poder torna possível um método de estudo que é comum a todas as coisas Por sua vez a combinação da concepção de poder e do método de estudo produz a metafísica científica que se propõe a explicar os princípios fundamentais da realidade os princípios que são comuns a todos os aspectos da realidade seja ela humana ou eterna A nova metafísica científica transforma os ensinamentos políticos práticos porque se origina de uma nova concepção da natureza humana Ao ignorar a perspectiva me ramente humana a metafísica científica explica o homem em termos que são comuns ao humano e ao não humano O novo realismo científico se orienta pelo comum por aquilo que os filósofos tradicionais teriam chamado de base Assim fàz porque esses elementos comuns podem ser dominados por seu método universal a nova concepção oferece uma promessa de sucesso em dilemas políticos que não estava disponível para a visão por demais ambiciosa dos filósofos tradicionais O domínio do poder ele mesmo o maior poder procede de forma idêntica tanto no mundo humano como no não hu mano Spinoza é leitor de Maquiavel que ensinava que a Fortuna poderia ser dominada por homens fortes e mesmo que através do desenvolvimento de um método eficaz a natureza do homem talvez a própria natureza poderia ser modificada Tanto Spinoza como Maquiavel enfiitizam sua intenção de estabelecer uma nova maneira que é útil porque é de grande eficácia e eficaz porque parte de uma visão dos homens tal como são não como se gostaria que fossem Retirando do homem suas fimtasias começando com o homem tal como é na nudez de sua existência natural a nova maneira é inferior à maneira clássica e judaicocristã que se perdeu por ter metas demasiado elevadas As alturas ou a liberdade e a virtude baseadas no controle da natureza pela força humana só podem ser conquistadas com um ponto de partida convenientemente baixo Esse ponto de partida por sua vez preíigura a substituição da antiga elevação por um novo patamar A nova ou menor altura reconhece a na tureza degradada do homem que se deve ao domínio da paixão sobre a razão Para alcançar as alturas a razão deve regular a paixão A melhor forma de regular a paixão é a invocação de outras paixões em suma o homem só pode ser regulado pelos elemen tos que são comuns a todos os homens A regulação dos homens se baseia fúndamen 4 1 0 H is t ó r ia DA F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y talmente na aprovação daqueles que devem ser regulados A concepção científica do poder e do método universal de análise nos leva por meio de uma nova concepção do homem a rejeitar a aristocracia clássica em fiivor da democracia A razão livre da paixão é a ciência Esta libertação envolve uma mudança na concep ção clássica de razão A passividade estoica é transformada em um domínio ativo com base no entendimento da substância Assim o homem entra em conflito também com a reli gião tradicional pois da mesma forma a religião aconselha a resignação à ordem eterna por intermédio da obediência à palavra revelada de Deus A tentativa inicial de Maquiavel de libertar a razão da religião tradicional na esfisra da política tem continuidade tanto em Hobbes como em Spinoza de forma similar ambos tentam modificar as reivindicações da religião por meio de uma reinterpretação radical das Escrituras Sagradas Spinoza também conserva a admiração de Hobbes e de Descartes pela mate mática como modelo para a nova razão através da qual fidsas utopias serão substituídas por uma vontade de poder cientificamente regulada Na aplicação da análise mate mática à ordem humana Spinoza decompõe esta ordem em seus átomos individuais de tal forma que o homem natural é estritamente présocial Para Hobbes e Spinoza o estado de natureza é portanto caracterizado por um primado do indivíduo isto é a multiplicidade de indivíduos cada um lutando para existir na medida em que seu poder o permite constitui o dado inicial A sociedade emerge quando o homem o indivíduo inteligente reconhece as vantagens da união em concordância reconhece que a sociedade ou o instrumento criado pelo homem para a satisfação dos desejos constitui em geral um aumento eficiente de seu poder individual Há no entanto uma diferença essencial entre o pensamento de Hobbes e o de Spinoza o que se explica pelo menos em parte pela diferença em sua orientação me tafísica Hobbes dá continuidade à tradição materialista A ordem inteligível embora não inventada pelo homem é uma interpretação humana da seqüência ou padrão dos movimentos A expressão científica dessa interpretação começa e é deduzida a partir de definições dos movimentos primários e das leis do pensamento por meio das quais essas definições podem ser combinadas Contudo o homem é com efeito um tipo de movimento que difere em sua estrutura interna de outros tipos de movimento O homem como o intérprete dos movimentos não é explicado de todo em termos de movimentos não humanos A importância do homem é indicada na esfera política pelo fiito de que por direito natural Hobbes quer dizer em essência o direito humano Posto que a ordem é relativa à decisão do indivíduo de aceitar definições comuns a autonomia decisiva do indivíduo nunca pode ser transformada por inteiro na segurança da comunidade Para Hobbes a necessidade de autopreservação do indivíduo é mais primitiva que a sociedade e é de fato a condição para a sociedade a filosofia e a religião Desta forma a autopreservação permanece mesmo no seio da sociedade sob uma forma que é comum a todos os indivíduos no estado de natureza Contudo para Spinoza de acordo com a tradição estoica a ordem eterna é anterior e independente do indivíduo ou das decisões do indivíduo Para Spinoza a passagem do estado de natureza para a B a r u c h S p in o z a 4 1 1 sociedade política não é em sentido algum como é pelo menos em parte para Ho bbes a criação da ordem ou das condições de poder A sociedade é sim a condição para a filosofia ou para a descoberta da ordem Assim a filosofia ao invés da pabcão autônoma comum a todos os indivíduos é para Spinoza a mais potente salvarda para a autopreservação do indivíduo Porque Hobbes preserva na sociedade a autonomia radical do indivíduo cujo empenho apaixonado para existir interfere com o seu êxito cm íàzêlo é necessário con trabalançar este pluralismo natural e inexpugnável com um governo fortemente centra lizado Hobbes é monarquisu para o bem do indivíduo o monarca está em melhores condições do que os indivíduos para fornecer um remédio para o que subjaz a seu medo comum Além disso uma autonomia natural significa que os indivíduos são radicalmen te iguais Esta igualdade será preservada da melhor forma em uma comunidade que seja tão homogênea quanto possível e em que o partidarismo seja limitado se não total mente eliminado O monarca é um símbolo da igualdade entte as unidades sociais pelo próprio fiito de ser a unificação de sua vontade social Sua vontade única e indissolúvel é o reflexo da vontade de cada súdito individual enquanto igual a qualquer outro súdito Assim a monarquia é o mais seguro e portanto o melhor dos rmes Spinoza por outro lado concebe os indivíduos como a representação a partir do ponto de vista humano da articulação da ordem eterna em uma hierarquia de partes e todos É portanto capaz de aceitar as difirenças naturais distintas das convencionais entre os homens como politicamente fundamentais O caráter inexpugnável dessas dife renças naturais sempre exigirá uma variedade de tipos e funções dos homens na sociedade e portanto de opiniões que não podem ser destruídas na unidade do poder governante exceto ao custo de destruir a própria ordem social Spinoza é portanto um defensor da democracia na qual em prol da filosofia que protege os interesses de todos a liberdade de expressão deve ser concedida a fim de refletir e satisíàzer as diferenças naturais entre os homens Na medida em que a democracia é a personificação dos ensinamentos filosó ficos corretos rjilamentará as opiniões dos homens por meio de instituições religiosas sociais e políticas mas não insistirá em uma uniformidade de opinião Assim o filósofo é por natureza o homem mais elevado porque é o mais poderoso e a melhor salvaguarda do poder de indivíduos não filosóficos Entretanto para que seja preservada a filosofia o filósofo deve apoiar a democracia que é de fiito a manifestação de seus ensinamentos políticos Caso contrário quando a opinião é tiranizada a filosofia é destruída pelo dogma e pela superstição Por outro lado para que a democracia seja preservada deve apoiar a liberdade da filosofia Os interesses da filosofia e da democracia coincidem quando ambos são corretamente definidos Já observamos que os ensinamentos políticos de Spinoza se destinam a ser uma dedução de sua análise da substância Como Spinoza nos diz em De InteUectus Emen datione Reforma do intelecto seu desejo seria de direcionar todas as ciências a um 4 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Benedict Spinoza Improvement o f the Understanding in Works ed van Vloten and Land 3rd ed 4 V bound as 2 The H i e NijhoíF 1914 I 7 As citações que aparecem nesse capítulo fotam traduzidas para o inglês pelo autor fim O íim da ciência política é portanto idêntico ao íim das ciências naturais ou metafísicas Os princípios íundamentais de todas as ciências sáo as propriedades da substância e portanto todas as ciências procedem de acordo com o método por meio do qual essas propriedades são descobertas Visto que os homens fazem parte da subs tância e assim são determinados por ela Spinoza chama tais elementos de modos podemse deduzir as leis que regem seu comportamento a partir das leis gerais dos elementos ou modos da substância Ao igualar direito a poder e poder à luta de todos os modos para se conser varem Spinoza ao contrário de Hobbes nega o caráter peculiarmente humano dos fenômenos políticos como vimos o ponto de vista humano conduz a ilusões É sob a perspectiva dessas equações que teremos de entender o Tratado teolóopolítico no qual os princípios da ciência política são formulados com base em uma acomoda ção explicitamente mencionada por Spinoza à assunção ilusória de que o homem tem um status especial no universo Isso também explica a preocupação acentuada de Spinoza com a teologia em um livro político pois a base tradicional para acreditar no status especial do homem e assim para a propagação e preservação de ilusões anti científicas é em sua visão a religião Na mesma perspectiva entendemos também a observação de Spinoza de que toda a doutrina do Tratado político decorre da premissa de que o desejo de autopreservação é necessariamente universal Essa premissa é a causa imediata da atividade humana de tal forma que na apresentação científica da filosofia política íunciona como o meiotermo entre a substância e a estrutura das melhores formas de governo Todas as ciências devem ser estudadas utilizandose o método que é aplicado em matemática a este respeito Spinoza segue o novo movimento na íilosoíia exemplifica do por Descartes Só são aceitáveis as conclusões que tenham sido deduzidas de ideias adequadas claras e distintas As ideias são adequadas quando expressam a natureza de um modo ou aspecto da substância tal como é em si mesmo ao invés de como se mostra para o homem Por analogia com a matemática a estrutura interna do modo embora dedutível a partir das propriedades da estrutura mais geral da substância pode ser entendida simplesmente tal como é tal como se apresenta diante da luz de nosso entendimento e náo como algo que tende ou parece tender em direção a um fim ou um bem além de sua coisitude intrínseca ou estrutura determinada Assim Spinoza expulsa a teleologia da filosofia A tentativa do filósofo para en tender como são as coisas como foram determinadas pelas leis da substância náo deve ser dificultada pelo íato de que o próprio filósofo seja determinado em sua busca do íim que é o entendimento Para obter uma verdadeira compreensão da realidade o filósofo deve ver as coisas como elas sâo e não como se mostram para ele por causa da influência de suas paixões sobre a razão Sem essa compreensão exata não pode conquistar aquele domínio da realidade que suas paixões desejam B a r u c h S p in o z a 4 1 3 2 EdtUs I iii 69 3 Political Treatise II iii 18 A compreensão dos fenômenos políticos é portanto diferente da ação política baseada na compreensão correta Não há nenhuma razão ou finalidade nas proprie dades da esfera por exemplo além da necessidade intrínseca à ideia de uma esfera de que se é que existe deve existir de uma maneira específica O mesmo é verdadeiro a respeito da humanidade O estudo do homem como um ramo da filosofia se realiza da mesma forma que o estudo das esferas pedras ou cavalos Como diz Spinoza na Etica Vou examinar as ações e os apetites humanos do mesmo modo como se fos sem uma questão de linhas planos e sólidos A dedução matemática é a adequada para o estudo do homem tal como o é para o estudo das pedras Mas as pedras não se envolvem em atividades políticas A natureza racional do homem possui formas de expressão tanto científicas como não científicas A forma de expressão não científica atinge seu pleno desenvolvimento na sociedade política ou na organização do poder individual em termos de sentimentos e desejos subjetivos Esse elemento subjetivo é ele mesmo condicionado pela tendência inerente ao homem de estabelecer uma falsa analogia entre sua própria atividade intencional e as atividades das coisas naturais O homem atribui objetivos às atividades das coisas naturais e com isso desenvolve a religião juntamente com a sua forma degenerada a superstição O estudo científico dos fenômenos políticos exige um cuidadoso estudo da re ligião como a forma mais decisiva de condicionar o comportamento político nas so ciedades précientíficas Da mesma forma um apelo cientificamente construído para a mudança política radical deve ajustarse às formas existentes de crenças religiosas subjetivas O filósofo deve estudar as paixões humanas e suas modificações exatamente como se fossem propriedades da atmosfera mas também deve analisar o lado prático da política do ponto de vista humano ou causai Este ponto de vista embora pre sente em ambos os tratados políticos predomina no Tratado teológicopolitico como fica logo evidente pelo fato de que contém o tratamento exaustivo que dá Spinoza à religião um assunto que é abordado com pouca profundidade no Tratado político É essencial perceber que esta diferença entre os dois tratados é compatível com o fato de que a apresentação mais completa dos ensinamentos políticos de Spinoza encontra se no Tratado teológicopolítico precisamente porque se trata de uma combinação de considerações teóricas e práticas Duas questões são fundamentais para esses ensinamentos 1 Com base na com preensão científica da natureza humana qual é a forma do melhor Estado optima respublicd 2 Quantos homens podem ser convencidos a modificarem suas leis e costumes atuais a fim de fàzer com que a sociedade corresponda mais de perto ao modelo do melhor Estado O Tratado teológicopolitico mas não o Tratado político tem como intuito persuadir bem como instruir A principal preocupação do Tratado político não é de fato apenas o melhor Estado mas a questão mais prática relativa à melhor versão dos três principais tipos de governo monarquia aristocracia e demo 4 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 Ethics I iii Prefece 5 Political Treatise II viii 46 cracia Consequentemente sua ênfase maior sobre as leis e instituições positivas em conjunto com uma franqueza inicial sobre o caráter científico dos objetivos e métodos da filosofia política fez com que se assemelhe ao modelo atual de um trabalho teórico em ciência política muito mais que o Tratado teolágjcopoUtico Porém Spinoza não é um cientista político da atualidade considera parte de seu empreendimento cientí fico mobilizar os homens para uma conduta que seja justificada pela teoria A filosofia política não é científica a menos que seja útil Assim a obra mais teórica é a que induz os homens à atividade teoricamente correta O Tratado teolócopoUtico é do ponto de vista de Spinoza seu tratamento teó rico mais completo da filosofia política porque é o que menos se preocupa com as leis e instituições positivas e mais se preocupa com as motivações universais do compor tamento humano Em sentido um tanto semelhante podese dizer que a República de Platão é uma descrição mais completa de sua teoria política do que as Leis exatamente porque as Leis se preocupam mais com os detalhes da legislação do que com a natureza da alma humana Mas o Tratado teológicopolítico é obviamente muito menos uni versal em sua intenção que a República Para nossos propósitos aqui o caráter local do tratado de Spinoza pode ser explicado como devido a sua acomodação à ampla influência das Sagradas Escrituras em sua época Porque os homens agem movidos pela paixão e não pela razão só podem ser impulsionados a reconstruir as crenças religiosas sobre as quais repousa a sociedade política por uma modificação das paixões predominantes por meio da substituição criteriosa dos objetos que os satisfazem Assim podemos compreender o exterior religioso do Tratado teológicopoUtico Spi noza simplesmente não pode rejeitar as Escrituras sem isolarse daqueles a quem espera influenciar O ponto de partida de qualquer apelo ao público deve ser por necessidade a situação histórica contemporânea Gntudo os próprios fundamentos a partir dos quais a situação histórica contemporânea é avaliada transcendem essa situação São os funda mentos da compreensão filosófica da natureza na conhecida fiase de Spinoza o filósofo que se encontra nesta terra vê o mundo histórico sub specie aetemitatis A mesma opinião pode ser expressa como segue De acordo com Spinoza a natureza humana funciona segundo princípios inteligíveis e invariáveis Quando se compreende completamente a situação contemporânea percebese que está enraizada na situação humana como tal As raízes da situação contemporânea são os princípios da namreza humana os quais não se alteram pela variedade de situações históricas A correta análise teórica da sociedade e religião contemporâneas exige uma correta análise teórica da sociedade e da religião como tal O livro político fimdamental é um tratado teológicopolítico porque se baseia no reconhecimento de que a relação entre religião e política não é apenas um acidente da história mas decorre da namreza do homem Passamos agora a uma análise mais específica dos dois tratados políticos É n a tiva a ligação entre as duas obras a ausência no Tratado político de um amplo debate Ba r u c h S p in o z a 4 1 5 6 Ibid p 31 7 Ibid ü 46 acerca de religião Enttetanto quando Spinoza politiza a religião mesmo que não o íàça de modo explícito é possível deduzir essa atitude a partir de sua teoria da natureza humana Os dois tratados são compatíveis entre si bem como ambos sáo compatíveis com a Ética Náo é possível estabelecer aqui a forma precisa do conceito de religiáo de Spinoza porém é claro que jamais desafia a necessidade de religiáo que tem o homem Podese concordar com a afirmaçáo de que a Ética como um todo é a maneira como Spinoza apresenta a devoçáo de um homem livre Em seus escritos políticos deixa claro que há uma distinçáo entre a religiáo dos íilósofos e a re l o pública No Tratado po lítico diznos que embora deva ser permitida entre o povo a liberdade de diversidade religiosa essa liberdade é restrita à crença e à devoçáo privadas Porém quando discute os direitos das autoridades supremas em geral e a íbrma de uma aristocracia em parücular Spinoza deíènde uma reláo nacional determinada pelo Estado e portanto com ritos públicos uniformizados Durante todo o tratado eníatiza o perigo que representa para a estabilidade do público uma diversidade de seitas religiosas e modos de devoçáo Esta ênfese é característica do modo como Spinoza aborda cada aspecto da legislaçáo política e é conseqüência direta da sua concepção da natureza humana Posto que os homens são motivados a agir pela paixão e não pela razão seria loucura construir um Estado no qual a liberdade repousasse apenas em uma presunção de razão ou de boafé As paixões primárias são o medo da dor e a esperança do prazer Uma vez que o desejo mais proíúndo de todo homem é sua própria autopreservação a luta para elevar ao máximo o prazer e minimizar a dor fez dos homens inimigos por sua própria natureza ao medo e à esperança pode ser acrescentada a paixão básica do ódio Quando os homens se unem para formar sociedades em um esforço para salvsuardar a existência individual por meio do poder coletivo nem por isso modificam suas nature zas mas continuam a ser criaturas da paixão Continuam a ser motivados pelo medo e pela esperança e assim o pero do ódio persiste no seio da sociedade Por este motivo Spinoza alerta incessantemente para a necessidade de preservação da unidade dentro do Estado É natural a associação política mas uma de suas principais íunções é conter a na tureza passional do homem A melhor maneira de consqir isto será tirandose proveito da primazia do medo e da esperança O princípio do Estado é o desejo de autopreserva ção e é por meio desse desejo que os homens devem ser levados à obediência Contudo a ênfese na paixão tanto no caso do indivíduo como do Estado é com patível com a reivindicação de Spinoza para legislar de acordo com a razão e com sua crença de que os homens são livres somente quando obedecem através da razão e náo pelo medo O direito do homem é idêntico a seu poder e seu poder é limitado pela pai xão Uma vez que a paixão só pode ser controlada por outras paixões construir o Estado sobre esta fundação é ao mesmo tempo racional e propício à liberdade A sociedade deve correr a condição do estado prépolítico da natureza onde os homens estão tão divididos pela paixão a ponto de não terem quase direito aum A liberdade é a vida de acordo com a razão De acordo com a influência clássica sobre seu pensamento Spinoza concebe o Estado em si como uma expressão direta da ordem racional do universo Assim pelo menos em um sentido limitado é razoável obedecer à lei na sociedade 4 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y A própria sociedade existe como resultado de um acordo mútuo entre indivíduos para delegar o poder a uma autoridade soberana com o fim de reforçar a capacidade de autopreservação de cada homem Dentro da sociedade a vontade da autoridade sobe rana é com efeito a vontade do indivíduo razoável Na melhor sociedade a vontade do indivíduo é exteriorizada por meio das melhores ou o mais razoáveis leis Desobe decer à autoridade soberana é contradizer a si mesmo é não ser razoável é ir contra os próprios interesses Por causa da natureza egoísta e passional do homem se cada cidadão tiver o direito de interpretar as leis o interesse próprio desintegrará o Estado Assim cada um de nós está vinculado em todas as coisas à mente única da nação mesmo quando consideramos iníquas suas decisões A razão ensina a adquirir inde pendência individual por meio de abdicar dela em favor da vontade do Estado Em conseqüência podese dizer de fato que o Estado mais poderoso e mais independente é constituído de acordo com os princípios da razão correta que revelam qual meta é do interesse de todos os homens A necessidade de unidade porém não torna os homens escravos de uma tirania monolítica Visto que a obediência se baseia no interesse próprio é do interesse da auto ridade soberana ser razoável o Estado deve evitar causar indignação no povo Não tem o direito de fàzêlo pois não tem o poder de fezêlo uma vez que uma multidão desorde nada e indada constitui uma ameaça à força da autoridade do soberano Assim como o cidadão razoável entenderá que sua liberdade depende de uma nação forte e unida e que essa força e unidade em si não constituem um obstáculo à sua liberdade privada de pensamento e de crença assim também a autoridade soberana em um Estado razoável entenderá que age errado quando procede de forma contrária aos ditames da razão Aqui Spinoza não está contradizendo suas afirmações usuais de que a paixão é regida pela paixão e não pela razão É razoável apelar para o interesse próprio em vez de para argumentos religiosos ou filosóficos O ato errado do soberano é aquele que acarreta sua própria ruína Portanto a autoridade soberana é obrigada a agir de tal for ma que preserve o medo e a reverência entre a multidão desordenada Embora o pacto social deixe de ser vinculatório quando transgride o interesse geral Spinoza afirma expressamente que o direito de decidir quando isso ocorre repousa com exclusividade na autoridade soberana Somente a autoridade soberana tem o poder de saber o que é do interesse geral No entanto este poder é ele mesmo sujeito às limitações da paixão pública A autoridade soberana sge no interesse geral ao transformar a paixão pública em virtude e obediência e isso é feito por meio de boas leis As boas leis atendem melhor aos interesses de todos os cidadãos portanto são razoáveis e por razoáveis não devem ser temidas Assim a melhor nação conquista a obediência não por medo mas pela razão O melhor Estado é aquele onde os homens passam a vida em concor dância e as leis são mantidas invioláveis Devese entender que por razão até agora Spinoza referese à ponderação dos interesses do indivíduo B a r u c h S p in o z a 4 1 7 8 Ibid iv 6 9 Ibid V 2 O Estado de Spinoza portanto transforma a paixão em serva da razão por meio da compreensão racional da natureza passional do homem A íilosoíia constitui o maior poder para todos os homens embora seus ensinamentos devam ser apresentados de for ma adequada para a mente do público A íilosoíia é de interesse geral não é exagero dizer que o íim último do Estado é a íilosoíia A pína de título do Tratado teolóopoUtico nos diz que a liberdade de filosoíàr é necessária para a preservação da piedade e da paz pública A liberdade do cidadão dentro do melhor Estado é a manifestação polídca da liberdade filosófica Dentro do Esudo há luiu unidade entre cidadão e soberano Essa unidade depende de instituições racionais que fàzem dos magistrados os representantes políticos dos filósofos tal como as instituições são a fàce pública da filosofia Como diz Spinoza os homens são dirigidos de tal forma que acreditam que não são dirigidos mas que vivem por seu próprio intelecto e sua própria opinião livre Com base nisso Spinoza rejeita a monarquia em fàvor da democracia A de mocracia imita o estado de natureza ao limitar o direito dos principais magistrados à quantidade de seu poder No estado de natureza existe uma heterogeneidade natural de tipos humanos que subjaz à heterogeneidade nas quantidades de poder e é ela própria a expressão visível das articulações na estrutura da substância Um homem não tem poder suficiente para governar o Estado as monarquias são aristocracias ca mufladas A heterogeneidade do estado de natureza é em termos políticos a condição para a desigualdade natural dos homens Contudo isso não significa que um homem ou alguns homens tem o direito de governar seus semelhantes Uma vez que direi to é equivalente a poder e o poder de qualquer homem sozinho é insuficiente para governar para preservar a si mesmo de acordo com seus interesses a característica po liticamente significativa do estado de natureza não é a superioridade de um indivíduo em relação a outro mas a variedade de tipos Essa variedade de tipos humanos não pode ser suprimida tal como não se pode suprimir o caráter da própria substância O desejo do indivíduo deve refletirse na estrutura legal e institucional do próprio regime caso contrário os indivíduos não aceitarão a identidade entre sua vontade e a do Estado O regime democrático ou a síntese de tipos humanos que em sua estrutura se mantêm fiéis à diferença desses ti pos imita o estado de natureza Porém uma imitação não é uma identidade Podemos dizer que o regime democrático racionaliza o estado de natureza ou cumpre o que está implícito no estado de natureza A variedade de tipos no estado de natureza contém uma desigualdade racional implícita que é diferente da desigualdade bruta ou física Para citar um exemplo simples o homem que é capaz de dominar seus vizinhos pela força física no estado de natureza pode ser incapaz de lidar com as ameaças ao seu poder que transcendem o domínio da força bruta O homem que tem força física superior é na realidade menos poderoso que o homem de maior inteligência No entanto tem poder suficiente para em determinadas circunstâncias destruir as condi 4 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid X 7 ções náo apenas para sua própria sobrevivência mas para a sobrevivência daqueles que se sobrepujam a ele de outras maneiras O regime democrático racional deve equilibrar os poderes da força e da inteligência a fim de preservar os dois Spinoza concebe este equilíbrio de tal forma que sua versão de democracia difere muito daquela da maioria dos autores atuais Como seu tratamento do âmbito do poder soberano indica Spi noza tende a enfiitizar a liberdade das instituições em vez da dos indivíduos Tende a conceber as instituições como a incorporação racional de controles sobre o poder irracional da multidão Como conseqüência a liberdade dos indivíduos tende a ser reservada para a esfera privada do regime ao invés da pública Quando Spinoza avalia a inteligência política da multidão aponta que se esta pudesse moderarse e não julgar quando são ignorantes estariam mais aptos a gover nar do que a serem governados Em sua discussão sobre a democracia no Tratado polí tico afirma que a palavra democracia não designa o conjunto de eleitores dentre os quais são escolhidos os que ocuparão os cargos mas ao contrário indica que existem leis que determinam de modo específico quem terá direito a voto Na própria con cepção de democracia a ênfase recai sobre as instituições e não sobre os indivíduos De acordo com Spinoza a principal diferença entre a aristocracia e a democracia consiste nisto em uma aristocracia o conselho governante aristocrático perpetuase pela elei ção de novos membros Em uma democracia todos os cidadãos têm direito a votar e exercer cargos Conmdo as restrições de idade e de posses podem reduzir o número de cidadãos no conselho supremo da democracia a um número infizrior ao dos que parti cipam do conselho em uma aristocracia Esta modificação por si só uma expressão do modo conservador como Spinoza entende a democracia é a única diferença essencial entre os dois conselhos Quando Spinoza atribui à inexperiência a ignorância política da multidão não está defendendo o liberalismo individualista mas ao contrário a fimção educativa das instituições livres às quais os indivíduos são subordinados e que os tornam verdadeiramente indivíduos Podese resumir o afestamento entre Spinoza e Hobbes pela constatação de que Spinoza passa da definição geralmente aceita de autopreservação para uma outra con cebida com sutileza Em nossa análise acompanhamos essa transição do modo como uma implicação sutilmente entendida do estado de natureza vem a substituir luna ge neralização comumente aceita a partir da forma mais explícita do estado de natureza A transição se torna politicamente evidente na rejeição de uma monarquia absoluta em fiivor de uma democracia conservadora quase aristocrática O princípio da demo cracia conservadora que incorpora a relevância filosófica dessa transição é a liberdade da filosofia a filosofia é o poder de autopreservação sutilmente entendido A fim de manter a filosofia livre isto é poderosa é preciso refletir de modo correto em nosso regime político as espécies diferentes de tipos humanos Visto que a filosofia é a compreensão da estrutura da substância não pode prosperar se não tiver acesso a essa estrutura Este acesso é obtido pela observação das diferentes espécies de instituições e atividades humanas consequentemente o regime político deve permitir B a r u c h S p in o z a 4 1 9 uma variedade de opiniões como já foi indicado É importante lembrar que o regime político tem como seu bem maior a preservação da íilosoíia Pois isso não é de modo algum o mesmo que dizer que o bem maior é a liberdade do indivíduo Esta última afirmação implica uma feita de ordem natural com base na qual se possam classificar os indivíduos Spinoza não é cristão nem liberal moderno nem existencialista a li berdade para ele só é possível sob a condição da íilosoíia e portanto no sentido mais completo somente o filósofo é livre A sociedade livre depende totalmente não da liberdade de expressão no sentido da expressão de alguém mas da liberdade de expres são filosófica Este é o coração do conservadorismo de Spinoza o qual transparece de modo explícito no Tratado teoláffcopolitico Enttetanto devido às várias finalidades secundárias deste tratado sendo a mais importante libertar a íilosoíia do controle religioso ou popular a visibilidade explícita anteriormente leferida é muitas vezes toldada e ptedsa ser apontada de modo explícito O Tratado teolóopolítico é uma obra revolucionária Por outro lado Spinoza pretende introduzir mudanças práticas sem perturbar a ordem da sociedade Pretende sua revolu ção como um substituto sem derramamento de sangue para as cruentas extravagâncias causadas pelo triunfo da superstição sobre a religião A íim de fezer com que a nação altere seus costumes é preciso apresentarlhe instruções intelveis Spinoza aceita a tradicional distinção entre a minoria dos íilósofos e da esmagadora maioria da multidão não filosó fica O problema de felar na presença do vulgo sem mencionar os íilósofos em potencial que ainda estão sob a infiuênda do vul levou Spinoza a exercer grande cautela em meio a sua ousadia Na visão de curto prazo foi ineficaz sua prudência mas no loio prazo parece ter tido surpreendente eficácia como se pode avaliar por meio de um exame das mudanças nas interpretações de Spinoza durante os últimos 150 anos No tratado sobre a Reforma do Entendimento Spinoza instrui seus leitores para falarem à multidão de forma inteligível e para se adaptarem tanto quanto possível à capacidade dos muitos No Tratado teológicopolítico aponta que o vulgo inclui todos aqueles que não sejam ao menos íilósofos em potencial juntamente com o vulgo estão todos aqueles sujeitos às mesmas paixões que o vulgo Spinoza pede aos homens des se tipo que nâo leiam seu livro mas é óbvio que este pedido não pode ser uma imposi ção Decerto o livro se dirige aos líderes da multidão pois é através desses líderes que a própria multidão pode ser transformada Spinoza ao comentar sobre a forma literária da Bíblia pondera que para instruir uma nação ou a humanidade é preciso ajustar ao máximo os motivos e as definições de seus ensinamentos à capacidade plebeia que constitui a maior parte do gênero humano Contudo é este exatamente o objetivo do Tratado teológicopolítico alterar as opiniões da humanidade a respeito da religião e ensinar uma nova doutrina política No sentido mais geral o tratado como um todo é uma acomodação para o entendimento comum com certeza em relação a questões acerca das quais os muitos mais se preocupam 420 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 11 TheologcoPolitical Treatise II v p 92 Por óbvio os filósofos sáo livres como indivíduos particulares para fezer as cor reções necessárias a fim de discernir de modo mais claro os ensinamentos teóricos mas exatamente porque assim o fizeram apresentarão seus discursos e ações públicas às leis da república defendida nos ensinamentos teóricos Desta forma devemos distinguir entre os aspeaos do Tratado teolôopolítico que se destinam a convencer o vuo aqueles que expressam os princípios da melhor república e aqueles que descrevem a própria república No terceiro caso jamais devemos esquecer as palavras de Spinoza na passíem crucial relativa à liberdade de expressão e de pensamento Ninguém pode agir contra os decraos do poder soberano e no entanto mantêlo seguro mas sobre todas as coisas se pode pensar e juar e em conseqüência até mesmo felar desde que se fele ou pense única e exclusivamente a partir da razão e não por malícia raiva ou ódio e que não se tente introduzir nada no Estado unicamente pela autoridade deste decreto Para obter a melhor república devese primeiro purificar a religião por motivos que já foram discutidos Quinze dos vinte capítulos do Tratado teolócopolítico são de dicados a esta tarefe A excessiva complexidade da argumentação contida nesses capítulos impede que aqui se apresente mais que um resumo deles Enquanto entendermos com clareza as razões para a complexidade do assunto há justificativa para que em uma introdução ao pensamento político de Spinoza limitemonos a sua concepção simples porém fimdamental da religião e sua relação com sólidos princípios políticos Por uma questão de persuasão Spinoza de início aceita a origem divina das Escrituras Percorre entretanto um caminho que vai de um começo convencional até um final pouco convencional As Escrituras devem ser estudadas de maneira análoga ao estudo da natureza Em contraste com a posição de Maimônides os princípios para a interpretação das Escrituras devem ser estabelecidos a partir das Escrituras em si e não de uma posição filosófica anterior Quando nos aproximamos da Bíblia sem tendenciosidade constatamos que os pontos de vista especulativos expressos pelos profetas são como as opiniões contraditórias e inadequadas de outros não filósofos A análise científica das Escrituras baseada em dados históricos lingüísticos e biográficos e o estudo detalhado das contradições internas e dos erros na compilação das próprias Escrituras nos libertam da ideia de que a Bíblia tem autoridade sobre questões especu lativas Contudo os ensinamentos morais das Escrituras são os mesmos em todos os lugares e são de fácil compreensão Os profetas discordam quanto às questões especu lativas mas estão em perfeita harmonia no que se refere à Lei Divina da moralidade A este respeito prefiguram os cidadãos da melhor república A Lei Divina como os ensinamentos universais evidentes das Escrituras deve ser o fundamento de nossa compreensão das Ssradas Escrituras A verdadeira religião tem autoridade apenas sobre a ação qualquer religião que pretenda exercer a autoridade teórica é superstição O fim da filosofia nada mais é que B a r u c h S p in o z a 421 12 Ibid XX p 306 a verdade da fé no entanto como demonstramos amplamente o im nada mais é que a obediência e a piedade Já que obediência significa obediência à lei de Deus o conteúdo da obediência é determinado pela definição de piedade O que é piedade A resposta derivada das Escrituras é clara distinta e simples Primeiro a piedade exige um número mínimo de proposições teóricas como por exemplo que existe um Deus onipotente do qual depende nossa salvação Segundo que a verdadeira virtude consis te inteiramente no amor a Deus e ao próximo O amor de Deus se expressa pelo amor ao próximo e por se conformar às modalidades públicas do culto Amar o próximo é respeitar direitos Posto que seus direitos são determinados pela lei positiva a piedade não só exige que obedeçamos às leis do Estado mas consiste em tal obediência Os verdadeiros ensinamentos das Escrituras têm sido interpretados de modo a pra ticamente equiparar a piedade à obediência às leis e ao patriotismo Ao restringir a auto ridade da religião à moralidade cujas rras precisas são definidas pela ordem política Spinoza libertou a razão dos perigos da superstição sem destruir os resultados benéficos da fé Demonstra que a razão e a revelação estão de acordo tanto a respeito do conteúdo da moralidade ou da religião como também quanto ao sentido em que independem uma da outra e no sentido em que estão relacionadas A aliança universal que substituiu a aliança especial entre Deus e os judeus por meio da qual temos conhecimento inato de Deus como fonte da moralidade é a manifestação religiosa dessas ideias inatas das quais a razão deduz os princípios da moralidade Finalmente é só a revelação que fornece ao homem a prova de que sua salvação depende da obediência a esses princípios Posto que de acordo com o argumento político de Spinoza os princípios da moralidade são expressos de modo mais apropriado nas leis do melhor regime a religião de fato forne ce provas de que a piedade consiste em estrita obediência à ordem política correta e de modo mais geral a seu o governo legalmente constituído Nos capítulos finais do Tratado teológicopolitico Spinoza demonstra que os ensi namentos políticos acerca da razão natural estão em harmonia com a moralidade reve lada como mencionado anteriormente A razão natural nos ensina o jus naturale que é próprio de todo ser finito A atividade tem origem na luta pela autopreservação Por exemplo os peixes usam a ígua e devoram os peixes menores por direito natural o que vem a ser simplesmente uma expressão do ser determinado Conforme opina Spinoza a natureza tomada de forma absoluta tem direito absoluto a todas as coisas que pode obter ou fazer Em outras palavras o direito natural é coextensivo com o poder Assim no estado de natureza é impossível transgredir nada do que se pode fazer é proibido pois todas as ocorrências são naturais A transgressão só é possível em uma sociedade como violação da lei A transgressão é uma violação do desejo fimdamental de autopreservação Ou seja o homem é por natureza um animal político porque a sociedade política é necessária para a sobrevivência e a perfeição humanas A sociedade 422 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 13 Ibid XV p 249 14 Ibid xvi p 258 é criada pela razão e é o instrumento pelo qual a razão se refina A perfeição da razão é a perfeição do homem como tal a perfeição de seu poder A fim de aperfeiçoar seu poder o homem é impelido não apenas a formar sociedades mas a encetar esforços para entender e efetivar a melhor sociedade É racional moderar o próprio comportamento de acordo com as circunstâncias Os homens possuem uma variedade de naturezas e isso juntamente com o fato de que táo poucos sáo filósofos exige que a melhor sociedade se ajuste à natureza da maioria Uma acomodação fundamental deste tipo é o reconhecimento de que todos os homens são movidos por seu cálculo de bens prazer e males dores mas que pou cos são capazes de fazer tais cálculos com precisão O pacto social no qual se baseia o melhor regime só pode ser preservado por um apelo ao autointeresse todos têm por natureza o direito de agir com malícia tampouco estão obrigados a respeitar seus pac tos a menos que na esperança de um bem maior ou pelo medo de um mal maior Spinoza precisa demonstrar tanto para os poucos e em certo sentido para os muitos que seu melhor regime tem tão grande capacidade de assegurar os bens que faz da desobediência uma contradição ao interesse próprio De acordo com a primazia do interesse próprio Spinoza formula sua preferência por uma democracia O Estado existe para o bem do indivíduo mas é por causa do indivíduo que subordina a individualidade ao poder comum Em seu capítulo sobre a aristocracia no Tratado político Spinoza afirma que é correto tratar todos os cidadãos como iguais porque é desprezível o poder de cada um em relaçáo a todo o Estado A mesma concepção de igualdade se aplica à democracia Cada indivíduo cede todo o seu poder ao Estado a fim de que a democracia seja uma reunião coletiva de homens que coletivamente têm o maior direito a todas as coisas em seu poder Quer de espírito livre ou por medo da maior punição cada cidadão será a partir daí obrigado a obedecer à autoridade soberana Se todas as pessoas concordam em transferir todos os seus poderes para um governo que expresse a vontade de todos então todos participam do autogoverno Isso nada é além de providenciar a própria autopreservação Como a democracia satisfaz o desejo natural ao ser compatível com a variedade de naturezas que têm um objetivo geral comum a democracia é preferível a outros regimes Uma característica marcante da democracia de Spinoza é a que dá ao poder so berano o direito de promulgar as leis que desejar sobre a religiáo Spinoza náo pretende obviamente abolir a religião Quer sim evitar que o Estado seja sujeito aos diversos julgamentos e paixões de todos Além disso quando é concedido poder político aos clérigos este tende a corrompêlos em detrimento tanto da Igreja como do Estado A forma da democracia deve ser tal que equilibre a necessidade de 15 Ibidp26 16 Ibid p 262 17 Ibid p 26 18 Ibid B a r u c h S p in o z a 4 2 3 harmonia e estabilidade públicas com a excelência da liberdade privada de expressão pensamento e crença O direito da autoridade soberana de promulgar legislação reli giosa decorre do direito natural do Estado de supervisionar todas as questões relativas à autopreservação de seus cidadãos Este direito é expresso sob a forma de um contrato segundo o qual o poder soberano é o único responsável pela articulação dos códigos legais mas suas ações devem é claro ser moderadas pelo perigo de perder o poder Spinoza discute esta questão juntamente com a relação entre governantes e sacerdotes no âmbito de uma análise da primeira comunidade judaica estabelecida por Moisés A partir dessa análise Spinoza deduz doutrinas políticas específicas De forma alguma deveria a primeira comunidade judaica ser copiada em sua totalidade uma vez que nâo é mais válida a aliança exclusiva com Deus sobre a qual se baseava As novas exigências que se seguem a partir da aliança universal são simbolizadas pela observação de Spinoza de que a constituição judaica é inútil para Estados que desejem relações internacionais As doutrinas a serem aprendidas a partir do estudo da nação judaica podem ser resumidas da seguinte forma 1 deve haver uma separação entre as fimções religiosas e políticas 2 as questões especulativas não devem ser solucionadas pela Lei Divina pois a religião deve consistir em ações apenas 3 o poder soberano deve ter todo o direito de decidir o que é lícito e o que não é 4 mais mal do que bem decorre de uma mudança na forma de governo A terceira conclusão é importante o bastante para merecer um capítulo inteiro A religião adquire a sua força como lei somente a partir dos decretos do soberano Deus não tem reinado especial entre os homens exce to na medida em que reina através dos governantes temporais Não se pode legislar sobre a piedade interior a piedade externa manifestase pela justiça e pela caridade Deus não pode ser concebido como legislador Seus preceitos tornamse lei somente por meio da mediação da autoridade devidamente constituída Apesar do poder que tem o soberano de legislar como bem lhe aprouver no que diz respeito à religião Spinoza ressalta que a liberdade de crença religiosa é necessária para o bemestar do próprio poder soberano Com efeito tal ênfase é idêntica à defesa que fãz Spinoza da liberdade de expressão É impossível a supressão de pensamento muito me lhor permitir a discussão da maioria dos assuntos que forçar os homens ao facciosismo secreto Visto que o fim verdadeiro do governo é a liberdade os homens devem ser livres para discutir até mesmo as leis desde que não cheguem a incitar a rebelião A liberda de para discutir as leis é inseparável da liberdade de discussão relosa e a liberdade de discussão em geral é necessária para o progresso das artes e das ciências A saúde da filo sofia depende de tal liberdade Há desvantíens na liberdade de expressão mas as vanta gens são muito mais relevantes Não se deve esquecer no entanto que tal liberdade não é ilimitada Os cidadãos que são mais capazes de raciocínio e discurso especulativos se abs terão devido a ponderações acerca do bem privado e público de defender doutrinas que contradizem as leis e costumes públicos Assim o interesse e a razão se combinam para 424 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Ibid xlx p 295 proporcionar um equilíbrio entre a liberdade e a moderação A prova da Intimidade do discurso é portanto a lei Visto que a lei deve ser preservada a ação deve submeterse à censura da lei A censura é tanto direta como indireta dependendo do grau de compre ensão do cidadão individual isto é de seu poder de fàlar e pensar Dado que o poder é equivalente ao direito a liberdade e o arbítrio sáo compatibilizados A virtude política judaica é um dos elementos no melhor regime de Spinoza mas náo é suficiente Seu defeito pode ser resumido na observação de Spinoza de que os judeus desprezavam a filosofia e que para eles a vida era uma longa escola de obedi ência à complexa lei que os distinguia de todos os outros homens O cristianismo por outro lado pode ser usado para demonstrar que o caráter apolítico da religião deixa espaço para a especulação filosófica Tanto íilósofos como apóstolos argumentam de modo racional o logos do cristianismo pode ser comparado ao logos da filosofia mas não se pode fazer o mesmo com a lei ou nomos do judaísmo A virtude da obediência portanto sofre de um defeito intrínseco que deve ser sanado pela possibilidade da íilosoíia Apesar de sua síntese de elementos do judaísmo e do cristianismo Spinoza é capaz de evidenciar que cada um em separado quando interpretado de modo correto é equivalente a sua definição da verdadeira religião universal Observamos no início que a diferença entre o Tratado político e o Tratado teo lógicopolítico estava no relativo silêncio do primeiro a respeito da religião Deve estar claro agora que há uma segunda diferença íundamental entre os dois tratados O Tratado teológicopolítico se ocupa do status político da filosofia o que não é o caso do Tratado político Para Spinoza este interesse não pode ser separado de um interes se pela religião e em última análise pela superstição O tratamento completamente adequado da ciência política é então aquele que lida com o modo como a íilosoíia deve ser preservada da corrupção supersticiosa da religião A defesa da democracia é em essência uma defesa das condições que tornam possível o desenvolvimento da íi losoíia Os detalhes da concepção de democracia de Spinoza cuja caracterização mais fundamental talvez seja o equilíbrio acima mencionado entre liberdade e moderação expressam seu entendimento da impossibilidade de separar a liberdade do perigo A íilosoíia política de Spinoza tem interesse especial hoje porque combina a acei tação da ciência moderna com a tradicional concepção da íúnção normatíva da íilosoíia Assim como Maquiavel e Hobbes Spinoza acreditava que entendera de modo correto a natureza do homem e portanto que sua análise da situação política constituía o único ensinamento político verdadeiro Tal como Descartes e Hobbes Spinoza não via con tradição entre a matemática e o modo matemático de raciocínio por um lado e do outro a possibilidade de construir uma filosofia detalhada uma íilosoíia que expressaria a verdade sobre os princípios de cada aspecto da experiência do homem Em um sentido político mais imediato a versão de democracia de Spinoza além de sua importância histórica nos recorda de forma detalhada e luminosa as dificuldades que devem ser enfrentadas por todos aqueles que amam a liberdade e em particular a impossibilidade de preservar a liberdade quando está ausente um amor pela especulação B a r u c h S p in o z a 425 L e it u r a s A Spinoza Benedict TheologicoPoütical Treatise in The ChifW orks ofBenedict Spinoza Trans with an introduction by RHM Ehwes New York Dover 1951 Ptefãce chaps iv vivü xiixx Spinoza Benedict Political Treatise in ibid Chaps iv viii B Spinoza Benedict TheologfcoPolitical Treatise in ibid Chaps iiii v viiixi Spinoza Benedict Political Treatise in ibid Chaps vivii ixxi Spinoza Benedia Ethics in ibid Bk I appendõ bk m ptefãce bk IV propositíons 737 scholium 2 Spinoza Benedict Epistle 50 in ibid para Jarig Jellis numeração de acordo com a edição de van Vloten 4 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i i n c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 16321704 J ohn L ocke No início de Two Treatises of Government Dois tratados sobre o governo John Locke usou as seguintes palavras para descrever a doutrina política de Sir Robert Fil mer autor de quem discordava com veemência O sistema de Filmer nada mais é do que isso Que todo govemo é monarquia absoluta E a íimdaçáo sobre a qual ergue seu pensamento é esta Que nenhum homem nasce livre Os ensinamentos políticos de Locke podem ser expressos em termos opostos com similar brevidade desta forma Todo govemo é limitado em seus poderes e existe somente pelo consentimento dos governados A fundação sobre a qual ergue seu pensa mento é esta Todos os homens nascem livres O tema da liberdade humana caracteriza as obras mais relevantes de Locke para a compreensão de seu pensamento político em A Letter Conceming Toleration Uma carta sobre a tolerância 91689 escreveu sobre a liberdade religiosa nos Dois tratados sobre o govemo 1690 sobre a liberdade política e em Some Considerations ofthe Con fio codicilo de seu testamento Locke referiuse a várias edições de Two Treatises f Government impressas durante sua vida como todas muito incorretas Antes de sua morte preparara pelo me nos um exemplar correto da terceira impressão para ser utilizado pela editora para a impressão de luturas edições Um desses exemplares com correções nas margens e acréscimos com a própria letta de Locke e de seu assistente está agora sob a posse do Christ s CoU Universidade de Cambrit Nas edições a partir de 1713 esse texto corrido serviu de base para a maioria das impressões po rém por algum motivo desconhecido no íinal do século XDC os editores voltaram a utilizar o texto da primeira edição Muitas edições em circulação nos Estados Unidos e na Iilaterta suem este texto muito incorreto As exceções mais destacadas são John Locke Ttvo Treatises o f Government e Robert Filmer Patriarcha ed Thomas I Cook New York Haíher 1947 John Locke The Second Treatise o f Government ed Thomas P Peardon New York Liberal Arts 1952 e John Locke Two Treatises o f Government ed Peter Laslett Cambridge Cambrite University Press 1960 Todas as citações de Two Treatises neste capítulo são de uma fotocópia do texto do Christ s CoU tomei a liberdade porém de americanizar a grafia e modernizar a pontuação do texto em ingiés Na queles trechos em que o exemplar de Christ s C o ll não é claro consultei a edição de Laslett e seu aparato critico de tanta utilidade Os leitores constatarão que os trechos apresentados aqui diferem somente em poucos aspectos dos textos das três edições citadas adma mas vejase o n 9 suprd First Treatise sec 2 sequences ofthe Lowering ofinterest and Raising the Value ofMoney Algumas conside rações sobre as conseqüências da redução dos juros e da elevação do valor do dinheiro 1691 sobre a liberdade econômica Cada uma dessas obras constitui uma instrutiva análise do princípio da liberdade humana contudo visto que este princípio tem sua afirmação mais completa e mais política em Dois tratados este capítulo se restringirá a uma descrição e análise dessa obra O Livro I de Dois tratados em geral referido como First Treatise ou O f Govern ment Primeiro tratado xobre o governo obra hoje de publicação infirequente e leitura rara dedicase primordialmente a uma discussão e refutação da tese defendida por Filmer de que os reis governam por um direito divino herdado de Adão O Livro II de Dois tratados em geral denominado Second Treatise ou O f Civil Government Se gundo tratado sobre o governo civil muitas vezes publicado e lido como se fosse uma obra à parte começa com um breve resumo da argumentação do Primeiro tratado tendo refutado o princípio do direito divino que então muitos consideravam como o fundamento do poder dos príncipes Locke reconheceu sua responsabilidade em explicar o que considerava ser a verdadeira base do governo A investigação de Locke começa com a grande pergunta O que é o poder po lítico Responder a essa questão entender corretamente o poder político 4 e explicar a verdadeira extensão origem e finalidade do governo civil é a maior preocupação do Segundo Tratado Énos apresentada primeiro uma definição O poder poUtico entáo considero como o direito de elaborar leis com pena de morte e consequentemente todas as penalidades menores para a regulação e preservação da propriedade e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da nação contra danos externos e mdo isso somente para o bem público 3 Entretanto somos logo informados de que para entender essa definição deve mos primeiro considerar em que esudo todos os homens estão naturalmente e que se trau este de um esudo de perfeita liberdade e de um estado também de igualda de A liberdade natural deriva da igualdade natural nada havendo mais evidente de que criamras da mesma espécie e classe promiscuamente nascidas com todas as iguais vantagens da natureza e o uso das mesmas íaculdades tam bém devem ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição 4 Porém embou esse esudo de natureza seja um estado de liberdade todavia não é um esudo de permissividade O estado de natureza tem luna lei da natureza que o governa que obriga a todos 6 A liberdade natural do homem não deve ser enten dida no sentido de que os homens não são refreados por qualquer lei pois em todos os esudos de seres criados capazes de leis onde não há lei não há liberdade 57 4 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 3 Todas as referências no texto deste capítulo são feitas a seções do Segundo Tratado 4 Frontispício de Two Treatises A liberdade natural do homem é ter apenas a lei da natureza a governálo nâo estar sob qualquer restrição além da lei da natureza 22 E a razão que é essa lei ensina a toda a humanidade que apenas a consulte que sendo todos iguais e independentes ninguém deveria prejudicar a outro em sua vida saúde liberdade ou posses E estando equipados com faculdades similares compartilhando tudo em uma comunidade de natureza não se pode supor qualquer subordinação entre nós que possa autorizarnos a destruir um ao outro como se fôssemos feitos para o uso um do outro como as classes inferiores de criaturas são para o nosso 6 Assim os ditames da lei da natureza no estado de natiueza parecem muito di ferentes do que antes nos ensinara Hobbes Segundo este o estado de natureza é um estado de guerra de todo homem contra cada homem Porém Locke não equipara os estados de natureza e da guerra ao contrário íála de uma nítida diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra os quais por mais que alguns homens os tenham confundido são tão distantes entre si quanto distam um do outro um estado de paz boa vontade assistência mútua e preservação e um estado de inimizade malícia violência e destruição mútua 19 Desta forma nossa primeira impressão do estado de natureza de Locke é de ho mens que vivem juntos em amizade nos primórdios da humanidade antes do advento da sociedade civil usufruindo da liberdade e igualdade naturais em um ambiente de paz e boa vontade sob o benéfico governo da lei da natureza Conmdo examinemos agora em maior detalhe os principais elementos desta primeira impressão O que é o estado de natureza Até que ponto é pacífico E qual é a lei da natiureza que o governa Ao examinálo mais de perto nossa primeira observação é de que o estado de na tureza não se limita à condição original prépolítica do homem Na verdade quando Locke responde pela primeira vez à peiunta acerca de o estado de natureza ter sem pre existido o exemplo que oferece não é de modo algum o dos homens prépolíticos mas o de homens que são políticos em essência e em uma intensidade inusitada Com frequência é perguntado como uma forte objeção onde estariam ou estiveram um dia os homens em tal estado de natureza Para o que pode bastar como resposta pelo momento que como todos os príncipes e governantes de governos independentes em todo o mundo estão em um estado de natureza é óbvio que ao mundo nunca íãltou nem nunca faltará quantidades de homens naquele estado 14 Todos os príncipes e governantes homens civilizados que vivem em uma re lação civil com muitos outros homens estão no estado de natureza Um exemplo subsequente é o de um suíço e um índio pelo menos um deles um homem com expe riência política reunidos nas fiorestas da América diz deles Locke estão perfeitamente em um estado de natureza em referência um ao outro 14 grifo nosso Se como vemos a expressão estado de natureza por vezes não está relacionada à condição do J o h n L o c k e 429 homem prépolítíco o que entáo em termos precisos é o estado de natureza Locke fornece esta breve definição Homens vivendo juntos segundo a lazáo sem um superior comum na Terra com autori dade para julgar entre eles é este propriamente o estado de natureza 19 O estado de natureza é mais abrangente do que uma descrição da condição do homem antes do advento da sociedade civil É uma forma específica de relacionamen to humano sua existência quando ocorre não tem relação com o grau de experiência política dos homens que nele estão e pode existir em qualquer momento na história da humanidade incluindo o presente onde quer que haja um grande número de homens não importa de que maneira estejam associados que não tenham poder deci sório a quem apelar lá ainda estão no estado de natureza 89 grifo nosso Lftilizando os termos da definição do estado de natureza podemos derivar uma definição de seu oposto Seria este um estado de homens que convivem tendo um superior comum na Terra com autoridade para julgar entre eles Em outras palavras o oposto do estado de natureza é a sociedade civil Aqueles que estão unidos em um corpo e têm uma lei estabelecida comum e um corpo de magistrados a quem apelar que tem autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os infratores estão em uma sociedade civil uns com os outros mas aqueles que não têm em comum essa possibilidade de recurso quero dizer na Terra ainda estão no estado de natureza 87 Assim se esclarece melhor o sentido em que não se devem confimdir o estado de natureza e o estado de guerra Não são idênticos todavia não se opõem A distinção entre eles reside no íàto de não serem coisas do mesmo tipo Seria tão errado confundir o estado de natureza e o estado de guerra quanto seria confundir a sociedade civil e o estado de guerra tal confusão revelaria um entendimento equivocado de suas defini ções pois a definição do estado de guerra não inclui o termo essencial um superior comum das definições tanto do estado de natureza quanto da sociedade civil As palavras que definem o estado de guerra introduzem um elemento completa mente diferente ou seja o uso da força sem direito sem justiça sem autoridade O uso da força sem autoridade sempre coloca aquele que a usa em um estado de guerra 155 é o uso injusto da força que portanto põe um homem em estado de guerra com outro 181 todo aquele que usa a força sem direito colocase em um estado de guerra com aqueles contra quem assim a usa 232 E finalmente é tal força apenas 207 grifo nosso que estabelece o estado de guerra ou seja a existência do estado de guerra não depende da presença ou ausência de um juiz comum A fàlta de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em um estado de natuteza a força sem direito sobre a pessoa de um homem constitui um estado de guerra tanto onde existe como onde não existe um ju iz comum 19 grifo nosso 430 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y Posto que o uso da força sem direito define o estado de guerra o seu oposto o estado de paz seria definido como a condição de homens que vivem juntos onde não há uso da força sem direito ou a mesma coisa onde a força é usada apenas com direito Agora podemos afirmar integralmente o sentido em que diferem o estado de natureza e o estado de guerra 1 O estado de natureza se caracteriza pela ausência de um juiz comum e pela ausência de qualquer lei exceto a lei da natureza 2 A sociedade civil o seu oposto é caracterizada pela presença de um juiz co mum com autoridade para aplicar a lei civil Então além disso quer no interior do estado de natureza ou na sociedade civil 3 O estado de guerra existe se a força for usada sem direito 4 Ou o estado de paz o seu oposto existe se não houver uso da força sem di reito Isso significa que no estado da natureza e também na sociedade civil pode algu mas vezes prevalecer um estado de paz outras vezes um estado de guerra e que não im porta que tenhamos distinguido com toda nitidez entre o estado de natureza e o estado de guerra não eliminamos a questão essencial haverá guerra no estado de natureza Porém antes de nos voltarmos a essa pergunta precisamos primeiro compreen der como pode existir o estado de guerra no seio da sociedade civil onde existe um juiz comum com autoridade para impedir o uso da força sem direito Na realidade pouco antes de afirmar que um estado de guerra pode existir tanto onde existe como onde não existe um juiz comum Locke oferece uma definição que parece dizer o contrário que parece excluir o estado de guerra da sociedade civil Contudo a força ou um propósito declarado de íbrça sobre a pessoa de outro onde não hd superior comum na Terra a quem apelar por socorro é o estado de guerra 19 grifo nosso A solução desta dificuldade reside no fato de que mesmo na sociedade civil o poder da autoridade civil não pode estar sempre em vigor Assim um ladrão a quem não posso causar dano exceto pelo recurso à lei por terme roubado tudo o que possuo posso matar quando me ataca para roubar apenas meu ca valo ou casaco porque a lei que foi feita para a minha preservação quando não se pode interpor para garantir a minha vida contra a força presente a qual perdida é incapaz de reparar permiteme minha própria defesa e o direito de guerra uma liberdade de matar o ressor porque o agressor não me dá oportunidade de recorrer a nosso juiz comum 19 O estado de guerra só pode existir no seio da sociedade civil quando se torna ineficaz a força do juiz comum É como se as partes apesar de serem concidadãos que se encontram na estrada do rei estivessem pelo momento no estado de natureza J o h n L o c k e 4 3 1 sem um juiz comum para resolver suas diferenças Assim consutamos que o estado de guerra só pode ocorrer na sociedade civil na mesma medida em que o estado de natureza pode ocorrer na sociedade civil Para fàlar de modo pteciso nâo pode existir o estado de guerra onde a autoridade civil está presente e aplica de modo eficaz a lei da sociedade O estado de guerra só pode ocorrer na ausência dessa autoridade civil o estado de guerra só pode existir no estado de natureza ou em algo que temporaria mente se aproxime dele O que aparenta ser o estado de guerra na sociedade civil ao contrário tratase disso o estado de guerra no estado de natureza no seio da sociedade civil O estado de natureza é o estado em que todos os homens estão naturalmente a sociedade civil é uma invenção humana que em geral obscurece o fàto inescapável de que o estado de natureza perdura pelo menos em parte e é inextirpável Como veremos adiante Locke faz uso deste conceito de reincidência do estado de natureza e do estado de guerra na sociedade civil é nesses termos que afirma o direito de resistir ao exercício do poder arbitrário e tirânico Assim Locke pode fàlar da ocorrência do estado de guerra na sociedade civil e também sem se contradizer fàlar de a socieda de civil ser um estado de paz entre aqueles que a ela pertencem de quem o estado de guerra é excluído 212 Da forma anteriormente descrita a guerra pode de fato ocorrer na sociedade civil bem como no estado de natureza no entanto com essas diferenças decisivas é mais provável estourar a guerra no estado de natureza do que na sociedade civil e uma vez iniciada é também mais difícil que cesse ali porque a força não pode dar lugar à justa determinação da lei 20 como ocorre na sociedade civil Voltemos agota ao exame do estado de natureza no sentido mais restrito e mais revelador da condição original prépolítica do homem e indaguemos mais uma vez Haverá guerra nesse estado Das inúmeras passagens que poderíamos citar talvez as que se seguem sejam suficientes para sugerir uma resposta para a pergunta Admito com facilidade que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza que decerto serão grandes quando os homens puderem ser juizes em causa própria pois é fâcil imaginar que aquele que foi táo injusto que causou mal a seu irmão dificilmente será tão justo que condenará a si mesmo pelo dano 13 O estado de natureza não será tolerado devido aos males que necessariamente decorrem dos homens serem juizes de suas próprias causas No estado de natureza todos têm o poder executivo da lei da natureza 13 e embora a lei da natureza seja compreensível e clara para uma criatura racional e um estudioso dessa lei 12 todavia os homens sendo induzidos por seus interesses bem como ignorantes por íàlta de estudo da mesma não estão aptos a acatála como uma lei vinculadora para si mesmos em sua aplicação a suas causas específicas 124 Se o poder executivo da lei em qualquer Estado cair nas mãos de homens ig norantes e tendenciosos que a aplicam erroneamente contra outros e se recusam a aplicála a si mesmos diferiria de forma significativa a aplicação da lei nesse Estado 4 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y do emprego da força sem direito Locke fornece muitas passagens semelhantes para apoiar a condusão de que o estado de natureza será muitas vezes indistinguível de um estado de guerra Contudo essa conclusão não parece compatível com a descrição anterior do es tado de natureza homens vivendo juntos segundo a razão a menos que cogitemos a possibilidade de que Locke incutia em seus leitores a muito estranha doutrina de que a razão por vezes aconsdha os homens a matarem outros homens A conclusão também parece contradizer o ensinamento da lei da natureza de que ninguém deve prejudicar outro quanto a sua vida saúde liberdade ou propriedade 6 Qual é então a lei da natureza e quais são as obrigações que ela impõe As obrigações da lei da natureza são apresentadas de duas maneiras Todo ho mem é obrigado a preservar a si mesmo e todo homem é obrigado a preservar toda a humanidade Cada um como é obrigado a preservar a si mesmo e a náo abandonar sua posição inten cionalmente assim por razão igual quando sua própria preservação não estiver em jogo deveria tanto quanto possível preservar o resto da humanidade e não pode a menos que seja para íãzer justiça a um inírator drar ou prejudicar a vida ou o que contribui para a preservação da vida a liberdade a saúde a intidade física ou os bens de outrem 6 Nesta citação temos declarações diretas e explícitas de obrigações altruístas de moderação nas relações com nossos semelhantes mas como vemos não lhes faltam ressalvas Quando não há juiz comum estará muitas vezes em jogo a própria pre servação de um homem Quando isso acontecer qual será então sua obrigação Até que ponto será ele capaz de agir de modo a preservar o resto da humanidade Que fàtores o guiarão quando tentar fazer justiça a um infrator Pela lei da natureza é obrigado a preservar a si mesmo também tem o dever de tanto quanto possível preservar o resto da humanidade Entrarão em conflitos esses dois deveres Muitas passagens indicam que existe uma surpreendente ligação estreita entre a au topreservação e a obrigação de preservar toda a humanidade Em exemplo após exemplo o cumprimento do dever de preservar os outros é associado ao direito de matar outro homem que ameace ou possa ameaçar a própria preservação de um indivíduo Aquele que me agride deve ser tratado como incapaz de se associar a seres humanos como um animal selvem como portanto uma ameaça para toda a humanidade É razoável e justo que eu tenha o direito de destruir o que me ameaça com a destruição pois pela lei fimdamental da natureza devendo o homem ser preservado tanto quanto possível quando mdo não pode ser preservado deve ser preícrida a sutança dos inocentes e podese destruir um homem que fiiz guerra consigo ou que tenha descoberto uma inimi zade a seu ser pela mesma razão que pode matar um lobo ou um leão 16 Nesta formulação não parece haver qualquer conflito entre o dever de preservar a si mesmo e o dever de preservar toda a humanidade tanto quanto possível Contudo é óbvia a possibilidade de mau juízo se um homem for forçado a julgar não só quem J o h n L o c k e 4 3 3 fez a guerra contra ele mas também quem tem uma inimizade para com o seu ser e com base nesse julgamento destnulo Assim um zeloso esforço para cumprir a obrigação de preservar o resto da humanidade pode na prática ser indistinguível de uma preocupação excessiva com a autopreservação e pode ela própria na ausência de outras restrições tornarse uma ameaça à paz e à preservação de outros A agressão contra os outros é de feto uma violação da lei da natuteza expõe todos a um perigo maior põe em risco a preservação Se for mal compreendida a lei da natureza como o será por aqueles que não a estudam ou seja por aqueles que impulsionados por seu forte desejo de autopreservação não avaliam suficientemente a importância da situação de paz geral para sua própria preservação a destruição da vida será o resultado geral É profunda a conexão entre a lei da natureza e o desejo de autopreservação O primeiro e mais forte desejo de Deus plantado no homem e forjado nos próprios princípios de sua natureza sendo o da autopreservação os homens confiam em que na busca desse desejo também estão cumprindo sua obrigação para com Deus e a natureza Pois o desejo o forte desejo de preservar sua vida e seu ser tendo sido instilado no ho mem como um princípio de açáo pelo próprio Deus a razáo que era a voz de Deus nele só poderia ensinarlhe e garantirlhe que indo em busca dessa inclinação natural deveria preservar seu ser cumpriria a vontade de seu Criador Desta forma uma linha de conduta que tende para a autopreservação não só está de acordo com a razão que é a lei da natureza mas é podese dizer a própria concretização de um comportamento razoável Nesse sentido a lei da natureza é conhecida por todos os homens e neste sentído os homens só podem seguir os seus preceitos Porém em outro sentido o da compreensão dos meios pelos quais esse desejo possa ser atendido os homens desconhecem a lei da natureza por feita de esmdo da mesma e portanto inconscientemente comportamse contra seus ditames contra a razão isto é contra seu interesse em sua própria preservação No entanto em um sentido a lei da natureza pode ser gravada nos corações de toda a humanidade 11 em outro é pouco provável que os homens no estado de natureza saibam como lhe obedecer A lei da natureza é ao mesmo tempo conhecida e desconhecida Os homens devem descobrir e criar condições tais que lhes permitam atender seu desejo natural de autopreservação A origem da lei da natureza portanto será encontrada nos mais intensos desejos dos homens A lei da natureza tem como fim a paz e a preservação Será obedecida por causa do desejo universal de preservação não depende da coação para seu cum primento Embora nisso seja discernível alguma relação com ensinamentos anteriores em comparação com os conceitos clássicos e medievais da lei da natureza tratase de 4 3 4 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 5 First Treatise sec 88 6 Ibid sec 86 feto de uma doutrina muito estranha 9 pois esta lei da namreza náo se preocupa nem com a excelência do homem nem com o amor de Deus e do homem por seu semelhante É preciso apontar no entanto que Locke não nega de modo explícito a importância da excelência ou o amor apenas os ignora Na verdade pouco usa ou não usa no Segundo tratado palavras tais como caridade alma ética moralidade virtude nobre ou amor Não são essenciais para a sua explicação dos fundamentos da sociedade civil Para essa tarefe indica forças mais poderosas e universais na natureza humana e acima de tudo as mais poderosas É como se dissesse Não posso negar que muitas vezes os homens são moderados e justos e que alguns se esmeram pela excelência nem posso negar que alguns são impulsionados pelo medo ou pelo amor a Deus e pelo amor e caridade para com seus semelhantes Assevero apenas que quando consi deramos os verdadeiros fundamentos da sociedade política a real origem do governo nenhum desses aspectos tem importância suficiente para que mereçam ser menciona dos O que conta é o que é universal e poderoso que força controladora existe dentro de cada homem o que pode ser invocado para reger o comportamento do homem A base da lei da natureza é o mais forte desejo implantado em cada homem O desejo de autopreservação determina como se comportarão os homens uma vez que os homens não são capazes de se comportar de outra forma esse comportamento nun ca está errado Deus e a natureza jamais permitiriam que um homem tanto abando nasse a si mesmo que viesse a descuidar de sua própria preservação 168 devese reconhecer que os homens têm o direito de fezer o que são incapazes de não fezer Não tem firme fundamento na natureza o governo que não permite e até mesmo incentiva que os homens ajam do modo como não podem evitar íir Este princípio de ação in variável governa o comportamento dos homens em diversas circunstâncias e situações assim sendo uma compreensão dele como a base da lei da natureza é o fundamento necessário para uma investigação sobre a natureza do poder político Portanto quan do lemos a afirmação de Locke de que as leis civis da sociedade política são corretas somente até o ponto em que se fundeiam na lei da natureza pela qual devem ser re gulados e interpretados 12 para reconhecermos seu significado político devemos ter em mente o conteúdo dessa lei da natureza As obrigações da lei da natureza não se encerram na sociedade mas apenas em muitos casos sáo refinadas e por leis humanas têm sanções a elas anexadas para assurar sua observação Assim a lei da natureza permanece como uma regra eterna para todos os homens legisladores assim como os demais As regras que criam para as ações de outros homens devem bem como suas próprias ações e as de outros homens ser conformes à lei da natureza ou seja à vontade de Deus da qual é uma expressão e à lei fimdamental da natureza sendo a preservação da humanidade nenhuma sanção humana pode ser boa ou válida contra ela 135 A primeira impressão do estado de natureza de Locke mostraa muito diferente do estado de natureza de Hobbes como foi dito Porém na verdade encontramos três semelhanças significativas Não importa como Locke distingue entre o estado de natureza e o estado de guerra o estado de natureza é o lar e o único lar do estado J o h n L o c k e 435 de guerra o estado de natureza é uma condição ruim a não ser suportada Em segundo lugar a origem o conteúdo e a finalidade da lei da natureza podem ser ex pressos de forma breve e não imprecisa pela palavra autopreservação E finalmente os ensinamentos de Locke não são diferentes dos de Hobbes na afirmação de que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza Todavia não devemos perder de vista a validade dessa primeira impressão Há não obstante as suas semelhanças profundas e significativas diferenças entre os dois ensinamentos o estado de natureza de Locke não é tão violento quanto o de Hobbes Se como parece a força será comumente empregada sem o direito no estado de na tureza de Locke não é por causa de uma propensão natural dos homens de causarem dano uns aos outros como afirma Hobbes ao contrário deste Locke não fala de cada homem como o assassino em potencial de qualquer outro homem A principal ameaça à preservação da vida no estado de natureza não reside na tendência dos homens a cau sarem dano uns aos outros mas como veremos na pobreza e nas privações inerentes a sua condição natural Uma vez que os defeitos do estado de natureza diferem nas duas descrições os remédios propostos por Locke e Hobbes diferem na mesma medida A principal conseqüência da diferença crucial entre as duas descrições é o feto de que o governo civil que Locke postula tem um caráter muito menos absoluto do que o de Hobbes E o sinal mais evidente da diferença é a atenção muito maior que dá Locke ao tema da propriedade O início da discussão da propriedade por Locke tem três elementos 1 uma afirmação ou suposição sobre a doação de origem divina do mundo para o homem 2 uma pergunta decorrente da afirmação ou suposição a respeito da origem da pro priedade privada e 3 a promessa de uma resposta para a pergunta É muito claio que Deus deu a tetia aos filhos dos homens deua à humanidade em comum Entretanto assim supondo parece a alguns uma grande dificuldade que a ém algum dia venha a ter a propriedade de qualquer coisa Tentarei demonstrar como os homens podem vir a ter a propriedade de diversas partes daquilo que Deus deu à hiuna nidade em comum e isso sem qualquer acordo expresso de todos os coproprietários 25 No mundo comum e universal cm que Locke feia ninguém tem originalmente um domínio privado exclusivo frente ao resto da humanidade 26 Cada homem possui um direito igual a cada parte do que é comum Isto não quer dizer no entanto que todo mundo tem uma pane na posse de todas as coisas quer dizer apenas que originalmente não havia posse não havia propriedade No mundo comum e uni versal qualquer homem tem o diretio de ajudar a si mesmo com qualquer parte do comum sem o consentimento dos outros então os outros não tem propriedade porque é da natureza da propriedade que sem o consentimento do homem ela não possa lhe ser retirada 193 A afirmativa de que o mundo foi dado ao homem em co mum significa simplesmente que no começo ninguém possuía nada O mundo comum universal era um estado de ausência universal da propriedade É por isso que 4 3 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Locke prossegue imediatamente para a questão Como é que alguém alguma vez veio a ter a propriedade de algo A resposta reside em que havia uma exceção para o que diferentemente era o mundo comum universal a única exceção era a pessoa de cada homem singular Embora a terra e todas as criaturas inferiores fbssem comuns a todos os homens cada homem tinha uma propriedade de sua própria pessoa A isto ninguém tinha qualquer direito fera ele próprio 27 Além disso todo homeme possui não apenas de sua pessoa mas também de seu próprio trabalho que é a extensão imediata de sua pessoa o trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos podemos dizer são propriamente seus 27 A propriedade que cada homem possui em sua própria pessoa e no seu próprio trabalho são a propriedade original e natural são a fundação de toda outra propriedade no estado de natureza Todas as outras propriedades então são derivadas da propriedade original natural c não derivada Nos primeiros tempos havia vastos territórios não cultivados e muitos poucos ho mens havia assim amplo fornecimento de provisões naturais feito de frutas comestíveis e animais selvagens Neste cenário de abundância e mesmo de superabimdáncia de provisões as maçãs que você retirou são suas porque você combinou apenas o que per tencia apenas a vxê sem trabalho em retirálas com algo que não pertencia a ninguém as maçãs penduradas nas árvores ou caídas no chão Aiém poderia contestar sua pro priedade sobre elas afirmando que por remover estas maçãs do estado comum você o teria privado da oportunidade de retirálas para ele Embora essa objeção fosse de outra forma válida ela é totalmente superada por uma lembrança da condição de abundância sob a forma de uma decisiva e sempre presente qualificação seja lá o que for que você resolva retirar do estado comum natural e colocar seu trabalho onde há bastante e tão bom quanto o que é deixado em comum para outros 27 em itálico Na comunidade universal para que se adquira a posse de maçãs sem dono basta colhêlas desde que restem tantas maçãs sem dono abandonadas nas árvores e no chão em volta delas quantas alguém poderá vir a possuir por colhêlas ele próprio Alguém que venha a contestar a propriedade das maçãs colhidas não está de fiito reivindicando as maçãs que são comuns Se as maçãs são tudo que deseja ainda restam suficientes maçãs boas para que as colha Ao afirmar que as maçãs já estão em posse de outro está de fato reivindicando somente o trabalho que aquele que as colheu acrescentou a elas mas nunca teve qualquer direito a este trabalho Pois sendo este trabalho propriedade inquestionável do trabalhador homem algum além dele pode ter direito àquilo que se agregou a esse trabalho pelo menos enquanto houver bastante e de igual qualidade em comiun para os demais 27 Na comunidade original a propriedade da terra é adquirida da mesma forma Tanta terra quanto um homem lavra planta beneficia cultiva e cujo produto pode J o h n L o c k e 4 3 7 utilizar esta é a sua propriedade 32 se for levantada a objeção de que por assim cercar a terra privou outro a mesma refutação com base na mesma ressalva ainda se aplica Tampouco constituiria essa apropriação de um pedaço de terra por meio de sua melho ria qualquer prejuízo a qualquer outro homem pois haveria ainda terra boa e suficiente e mais que os que ainda não são proprietários poderiam usar Desta íbrma com efeito nunca houve menos pata os outros por causa de sua cerca para si mesmo Pois aquele que deixa tanto para outro quanto este pode usar não subtrai nada 33 Essa propriedade é uma combinação do que é privado o trabalho e o que é comum a terra Por que então a combinação de algo privado e algo comiun produz um resultado que é totalmente privado Nem é tão estranho como talvez possa parecer antes da reflexão que a propriedade do trabalho seja capaz de sobrepujar a comunidade da terra Pois é o trabalho sem dúvida que impóe a tudo a diferença do valor 40 Quando há tanta terra para tão poucos por muito que se possa cercar resu mais do que suficiente para os demais é como se nada tivesse sido subtraído É de pouca monta o que é subtraído a terra sem trabalho dificilmente valeria alguma coisa 43 Esta é outra forma de Locke explicar por que a combinação do privado e do comum resulta em propriedade privada o componente privado o trabalho constitui quase que o valor inteiro da coisa os materiais o elemento comum mal entram no cômputo O trabalho confere direito à propriedade no estado de natureza primor dialmente porque o trabalho constitui de longe a maior parte do valor das coisas de que desfrutamos neste mundo 42 Se o acréscimo de meu trabalho tornou alguma coisa valiosa a qual sem ele era quase inútil 43 então decerto meu trabalho sendo nela a única coisa de valor devese reconhecer que o trabalho a fez minha Há dois motivos pelos quais as provisões naturais são em si quase inúteis A pri meira é que a maçã não pode trazer benefícios a um homem até que seja colhida de alguma forma apropriada nem tampouco um cervo até que seja caçado e abatido As ímtas e os animais tal como existem na natureza antes de qualquer acréscimo de esforço humano são inúteis para o homem Tal como uma maçã em outro continente de nada wde assim é com uma maçã a dez passos de distância até o acréscimo do trabalho A segunda razão pela qual as provisões naturais quase nada valem é exatamente a sua grande abundância o que constituiria um excesso de oferta quando o núme ro de seres humanos fosse relativamente pequeno Quando íala das provisões como inúteis Locke não implica que não sejam importantes para a sobrevivência O ar que respiramos e a água que bebemos são vitais mas enquanto o ar e a água forem supe rabundantes não pagaremos para respirar ou para saciar a sede Os materiais naturais tal como o que quer que esteja presente em abundância praticamente ilimitada não poderiam exigir pjamento ou um equivalente em troca Isto parece indicar que Locke 438 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y tinha em mente alguma forma precoce da lei da oferta e da procura não nos deve surpreender portanto encontrar em seus escritos econômicos a declaração de que o valor ou o preço é determinado pela quantidade e vazão equivalente grosso modo de oferta e procura e de nenhuma outra maneira no mundo Aquele que devidamente estimar o valor de algo deve considerar a sua quantidade na proporção de sua vazão pois só isso rula o preço O valor de qualquer coisa é maior na medida em que sua quantidade íbr menor em proporção a sua vazão Pois se br alterada a quantidade ou vazão de um lado ou de outro logo será alterado o preço mas nâo de outra maneira no mundo Pois não é o ser acrescentando aumentando ou diminuindo alguma boa qualidade a qualquer produto primário que fez o seu preço maior ou menor mas apenas quando fez sua quantidade ou vazão maior ou menor em proporção uma à outra A condição original era uma abundância de provisões quase inúteis não se tra tava de uma fartura real mas apenas de uma fertura potencial a ser concretizada pelo trabalho e invenção humanos O que parece à primeira vista uma espécie de paraíso uma vasta extensão de terras férteis bem abastecidas com os frutos que naturalmente produz e os animais que alimenta tudo produzido pela mão espontânea da natureza 26 a mãe comum de todos 28 e com muito poucos gastadores 31 para consumir esta abundância é na verdade uma combinação de muito do que é quase inútil e uma quantidade insuficiente do que é necessário para tornála valiosa o tra balho humano A penúria 32 geral do estado primitivo é comparável à condição dos índios os habitantes carentes e miseráveis da América 37 que são ricos em tenas e pobres em todos os confortos da vida a quem a natureza forne ceu com tanta generosidade quanto a qualquer outro povo os materiais da ahuttdância isto é um solo fértil adequado para produzir em abundância o que poderia servir como alimento vestimentas e deleite mas por falta de melhorálos pelo trabalho não possuem um centésimo das conveniências de que usufruímos 41 grifo nosso Outra das principais causas da penúria da comunidade original é que a grande maioria das coisas realmente úteis à vida do homem são geralmente coisas de curta duração tais que se não forem consumidas pelo uso degenerarão e perecerão por si mesmas 46 Este feto natural da deterioração seria talvez a maior limitação da propriedade no estado de natureza A natureza não limita com rigor a propriedade em comum universal Tanto quanto alguém pode fazer uso de qualquer vantagem na vida antes que se deteriore também pode por seu trabalho esfâbelecer uma propriedade Tudo o que exceder a isso é mais do que seu quinhão e pertence a outros 31 A posse da terra era igual mente limiuda J o h n L o c k e 4 3 9 Some Considerations fdse Loweringofinurest and Raising the Value ofM oney in TheW odtsofJohn Locke in Nine Volumes 12th ed London 1824 IV 4041 tudo quanto plantou e colheu estocou e utilizou antes que se deteriorasse era este seu direito particular tudo o que cercou e pode alimentar e utilizar o gado e o produto era também dele Mas se a grama de seu cercado apodrecesse no cháo ou o fruto de seu plantio perecesse sem colheita e armazenagem este pedaço de terra apesar de sua cerca ainda assim deveria ser considerado como devoluto e poderia ser propriedade de qualquer outro 38 Locke parece ter derivado do fato natural da deterioração uma espécie de rra para garantir uma justa distribuição dos bens na propriedade comum universal O raciocínio é plausível mas um exame de duas questões revela a inadequação desta in terpretação da discussão da deterioração por Locke Primeiro por que é necessária tal regra Em segundo lugar seria eficaz Como foi explicado na condição original a propriedade deve fimdamentarse em uma superabundância de provisões naturais O trabalho que alguém realiza ao co lher uma maçã fez com que esta passe a ser de sua propriedade se houver maçãs suficien tes e de igual qualidade para os demais Entretanto quando há tanu abundância por que haveria necessidade de uma regra para limitar a acumulação A quantidade de que uma pessoa se apodera pode não fezer diferença para outra contanto que lhe reste o su ficiente e de igual qualidade nem seria motivo de preocupação se alguém se apoderasse ou nâo de vantens Se alguém for tolo o bastante para desperdiçar seu trabalho na aquisição de mais do que pode usar engana a si mesmo mas não prejudica a outro Só é necessário empregar algum meio para limitar a acumulação se houver menos que uma superabundância somente se o que for tomado dekar menos que o suficien te para os demais Contudo mesmo nesse caso a capacidade de uma regra para limitar o acúmulo baseada na deterioração dependeria de esta ser aplicada a bens perecíveis ou duráveis Suponhamos que um homem conquistasse um verdadeiro monopólio local das nozes nada deixando para os demais uma vez que as nozes podem durar um ano inteiro em boas condições para consumo 46 o homem poderia levar todo esse tempo para comer seu estoque sem que nada se deteriorasse A regra da deterioração seria ineficaz para limitar a posse desses bens duráveis e escassos Não propiciaria uma distribuição equitativa desses bens É desnecessária qualquer regra que limite a acumulação quando há uma grande abundância de provisões Se em outras condições tal regra for necessária uma regra baseada na deterioração é ineficaz no caso de bens duráveis A regra da deterioração pode ser necessária e eficaz como meio para uma partilha justa somente no caso de uma escassez de bens perecíveis Porém como vimos o estabelecimento da proprieda de na condição original pela mistura de trabalho com as provisões naturais depende por inteiro de uma abundância extrema tal que gere automaticamente uma quantida de que deixe restar o suficiente para os demais Se não há o bastante para todos nem mesmo o trabalho é capaz de estabelecer o direito a uma parte do todo pela exclusão de todos os outros homens Por outro lado se o trabalho não é capaz de instituir o direito de propriedade quando há uma escassez então nada é capaz de fezêlo Não há outra opção no estado original O direito de propriedade pode ser transferido por 440 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y escambo ou compra mas somente o trabalho pode dar início à propriedade Em suma se há uma escassez de provisões perecíveis no estado original náo pode haver proprie dade natural Só pode existir propriedade daquilo que é comum A conclusão é que mesmo quando a coisa escassa e perecível está sob a posse de alguém qualquer outro homem ainda pode reivindicála em igualdade de condições Na luta pela propriedade que se desencadearia o direito seria estabelecido pela força do mais forte e seria difícil senão impossível guardar uma quantidade maior para si mesmo do que aquela que poderia ser consumida rapidamente De fato a deterioração limita as posses no estado original e mantém todos os homens em estado de penúria Nada foi feito por Deus para o homem e s tn ou destruir 31 dizemnos mas se todos os habitantes do comum universal origi nal enlouquecessem a ponto de dedicar todo o seu trabalho a estrar tanto quanto pudessem o resultado de seus esforços conjuntos não seria nada comparado à ampla deterioração e desperdício que ocorrem em todo o vasto território deixado à natureza 37 Quando se considera a abundância das provisões naturais que havia há longo tempo no mundo e os poucos usuários 31 é espantosa a deterioração que não poderia ser atribuída ao homem A degradação das coisas pela mão do homem é mini mizada diante da deterioração que ocorre fora do seu alcance A deterioração natural só pode ser reduzida por uma alteração das condições predominantes Não importa até que ponto Locke desaprovasse o desperdício e a destruição sua discussão sobre a deterioração não indica uma regra moral para lidar de modo justo com os outros homens no estado original Revela ao contrário a maciça escala do desperdício sob o governo da natureza aponta para a necessidade de descobrir algum meio de libertação desse governo implacável O terceiro fator que contribui para a penúria da fase inicial do comum universal é a ausência do cultivo da terra a terra que é deixada inteiramente à natureza é chamada como de íáto é de inculta 42 a extensão do desperdício natural pode ser reduzida portanto pela expansão da íricultura É equivocado pensar que um ho mem priva os outros quando cerca a terra para cultivála para seu próprio uso Porque a terra cultivada é muito mais produtiva do que a terra inculta todos os seus vizinhos se beneficiarão Ouvi dizer que na própria Espanha permitese que um homem are semeie e colha sem ser permrbado um terreno sobre o qual não tem qualquer direito além do uso que fàz dele Os moradores se julgam em dívida para com aquele que por sua indústria sobre terrenos negligenciados e consequentemente incultos aumenta o estoque dos grãos que lhes íàltavam 36 Desta forma a agricultura é um passo vital para aliviar a penúria da condição original do homem mas é limitada em sua eficácia pelo íato da deterioração A menos que haja algum modo de um homem dispor de sua produção excedente antes que se estrague certamente não cultivará mais do que sua própria íámília pode consumir se cultivar mais o excedente só apodrecerá ou será tomado dele por outros Assim não J o h n L o c k e 4 4 1 haverá excedente o que é a base necessária para a melhoria da condição do homem e não haverá aumento da humanidade que é a principal intenção da natureza Em suma era imprescindível uma invenção que tornasse razoável um homem produzir mais que o indispensável para atender às necessidades imediatas de sua pró pria família mais do que poderiam consumir antes que se estnasse E essa invenção foi o dinheiro que de acordo com Locke passou a existir através de uma espécie de progressão natural Primeiro os homens trocavam alimentos perecíveis por alimentos mais duráveis como as nozes mais tarde trocavam mercadorias por um pedaço de metal felizes com sua cor 46 Finalmente chegaram ao consenso de que coisas escassas porém duráveis como ouro e prata seriam aceitas em troca das mercadorias perecíveis E assim suiu o uso do dinheiro uma coisa duradoura que os homens podem guardar sem que se estne e que por consentímento mútuo os homens aceitariam em troca dos mantimentos verdadeiramente úteis mas perecíveis da vida 47 Com a invenção do dinheiro os homens resolveram os problemas econômicos básicos de seu estado original com as conseqüências políticas de longo alcance que discutiremos em seguida É importante compreender que Locke de feto entendia que o uso do dinheiro antecedeu a sociedade civil O dinheiro passou a ser usado por consentimento mútuo 47 de que os homens o trocariam por mercadorias perecíveis Este consentimento tácito e voluntário não pressupõe a existência da sociedade civil foi obtido fora dos limites da sociedade e na ausência de pacto apenas atribuindose um valor ao ouro e à prata e concordandose tacitamente quanto à utilização do dinheiro 50 Esse acordo tácito não poderia por si só estabelecer a sociedade civil pois não é qualquer pacto que dá fim ao estado de natureza entre os homens mas so mente este de concordar mutuamente em constituir uma comunidade e estabelecer um oanismo político outras promessas e pactos os homens podem celebrar uns com os outros e ainda permanecer no estado de natureza 14 O dinheiro foi introduzido no comum natural mas seu uso acelerou o fim do comum natural O dinheiro de tal forma alterou as condições que já não era mais pos sível que os homens vivessem juntos sem maior proteção para seus bens O dinheiro permitiu que os homens ampliassem suas posses o dinheiro tornou rentável que um homem possuísse terras muito extensas mas cujo produto fosse superior ao que pu desse consumir 50 Sem dinheiro um homem não tem qualquer incentivo para ampliar suas terras e produzir um excedente por mais favoráveis que sejam todas as demais circunstâncias Onde não há alo que seja ao mesmo tempo duradouro e escasso e tão valioso que mereça ser acumulado ali os homens não estarão propensos a ampliar as terras que possuem por mais ricas que sejam por mais livres que estejam para que delas se apodetem 48 442 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y Entretanto descubrase algo que tem o uso e valor do dinheiro entre seus vizi nhos e se verá o mesmo homem logo começar a ampliar suas posses 49 A introdução do uso do dinheiro completa a transformação de todas as condições econômicas originais Uma vez que aumentam as propriedades cercadas escasseiam as terras sem dono A produção aiunentada pode sustentar um aumento populacional isto é uma oferta mais ampla de mão de obra A condição inicial na qual as proprieda des se limiuvam a proporções muito modestas 36 dá lugar a propriedades maio res A igualdade dominante na penúria é substituída por uma desigualdade econômica assim como diferentes graus de empenho podem dar posses aos homens em propor ções diferentes assim a invenção do dinheiro deulhes a oportunidade de continuar e ampliálas 48 Locke como vemos fez mais do que prometeu não só demonstrou a origem da propriedade privada como também justificou a desigualdade de posses está ckto que os homens concoidaram com uma posse desial e desproporcional da terra tendo eles por um acordo tácito e voluntário descoberto a fbrma como de modo razoável um homem pode possuir terras muito extensas mas cujo produto é superior ao que pode consumir recebendo em troca pelo excesso ouro e prata que podem ser acumulados sem prejuízo para ninguém enquanto esses metais não se deterioram nem se degeneram nas mãos de seu possuidor Os homens tornaram possível essa partilha das coisas em desigualdade dos bens privados apenas por atribuirlhes um valor em ouro e prata e pelo acordo tácito quanto à utilização do dinheiro 30 Se iora considerarmos a objeção que poderia ser muito adequadamente levan tada neste ponto de que não é justa uma desigualdade de posses somos conduzidos direto para o tema central de todos os ensinamentos políticos de Locke o aumento As condições das primeiras etapas do natural comum eram hostis a qualquer perspec tiva de aumento da oferta dos bens de que os homens necessitam para o seu confor to conveniência e preservação A questão portanto é como repartir o pouco que se conseguia arrancar do punho fechado da namreza Isso significa que quem tomou um pouco mais que seus vizinhos tomou mais que sua parte e roubou dos outros 46 Entretanto quando alguns homens por sua invenção e diligência criaram novas con dições para a produção da abundância passou a haver muito mais a partilhar e embo ra as novas condições exigissem uma desigualdade de bens proporcional aos diferentes graus de indústria entre os homens ninguém era lesado Aqueles que possmam uma pequena parte do todo consideravelmente aumentado estavam em melhor simação do que aqueles que antes compartilhavam em igualdade de condições o mísero pouco da condição original O mais pobre dos homens em uma sociedade que possui a agri cultura e o dinheiro é mais rico que o mais afortunado no primitivo comum namral préagrícola Examinemos os necessitados e miseráveis índios na América que não cultivam o solo um rei de um território grande e fecundo ali se alimenu se abriga e se veste pior do que um trabalhador por jornada na Inglaterra 41 grifo nosso É dificil exagerar a importância que Locke atribuía à combinação de riculm ra e dinheiro Conforme descreveu o problema em um ensaio anterior a natureza é J o h n L o c k e 4 4 3 totalmente impotente para fornecer as condições em que sua principal intenção a multiplicação da humanidade possa ser cumprida A herança de toda a humanidade é sempre uma só e náo cresce proporcionalmente ao número de pessoas que nascem A natureza forneceu uma profusão definida de bens para o uso e conveniência dos homens e as coisas que trouxe foram dadas deliberadamente de maneira e quantidade definitivas náo íòram produzidas de modo fortuito nem estão aumentando proporcionalmente à necessidade ou avaieza dos homens Quando o desejo ou a necessidade de posses aumenta entre os homens náo há nenhuma ampliação naquela hora e l i dos limites do mundo Alimentos roupas adornos riquezas e todas as outras coisas boas da vida foram dados em comum e quando alguém arrebata para si mesmo tanto quanto pode retira do quinhão de outro homem a quantidade que acres centa ao seu próprio e é impossível que alguém fique rico exceto à custa de outro Podese dizer que esta passagem representa o problema que Locke resolveu em Dois tratados O mundo permanece constante não está dentro do poder da natureza ampliar seus limites sequer em um metro quadrado Porém sem essa ampliação como pode haver um dia sustento suficiente para o aumento da humanidade E como pode haver qualquer melhoria na condição dos homens em geral se não há ganho para alguém que não envolva a perda para outra pessoa É chocante em sua audácia a resposta que fornece Locke O que está totalmente fora da alçada da natureza está bem ao alcance de qualquer agricultor aquele que se apropria da terra para si por seu trabalho não diminui mas aumenta os suprimentos comuns da humanidade Pois as provisões que servem para sustentar a vida humana produzidas por um acre de terra cercada e cultivada sáo para ãlar de modo proporcional dez vezes maiores do que as produzidas por um acre de terra comum de ual riqueza que permanece inculto E portanto aquele que cetca a terra e produz uma maior abundância das conveniências da vida em dez hectares do que se poderia obter de uma centena de heaares deixados à natureza podese nalmente dizer que doou noventa hectares para a humanidade 37 grifo nosso Por seu trabalho invenção e arte os homens tornam possível o aumento e assim resolvem os problemas econômicos que os afligem na condição natural original Con tudo ao mesmo tempo também tornam impossível a manutenção desse estado O original comum embora perigoso e inconveniente é tolerável quando suas condições são uma abundância de matériasprimas poucos homens muito espaço e uma igual dade geral de fraqueza Entretanto as conseqüências do aumento são tornar escassas as provisões sem dono mais numerosos os homens e o espaço mais difícil de obter e nesta nova situação é gerada uma nova desigualdade de poder entre os homens com 4 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O texto latino e a tradução para o inglês desse trecho estão em John Locke Essays on the Law ofN a ture Ed W von Leyden Oxford Clatendon 1954 p 210e211 algumas pequenas revisões da tradução para o iiés foram realizadas pelo editor geral deste volume Reimptesso com permissão de Oxford University Press Ibid p 213 base na nova desigualdade de posses Sob estas novas condições o trabalho já não pode conquistar o direito de propriedade ou ser a medida do valor e a deterioração deixa de limitar a aquisição Agora pela primeira vez existe a possibilidade de propriedades demasiado extensas para que sejam protegidas através dos meios disponíveis em um estado de natureza A soberania da natureza se anula e os homens precisam instituir uma nova forma de governo de sua própria autoria para substituíla Os homens são rapidamente levados à sociedade 127 para a proteção de seus bens As posses dos diligentes e racionais os homens de cujos poderes de aumento depende o bemestar geral devem ser protegidas contra a fantasia ou a cobiça dos rixentos e litigiosos 34 O governo é a etapa final no longo processo em que os poderes de aumento do homem se libertam das restrições da natureza A grande arte do governo é o aumento das terras e o direito de utilizálas e é chamado de divino o príncipe que pelas leis estabelecidas de liberdade garante proteção e incentivo à diligência honesta da humanidade Assim vimos que a discussão da propriedade por Locke é um relato do desen volvimento da economia desde a condição natural original dos homens passando por várias etapas até chegar a um ponto onde não podem mais viver juntos sem a autoridade e o poder de um juiz comum para proteger as posses ampliadas que se tornaram possíveis para benefício de todos após a introdução do dinheiro A teoria da propriedade de Locke explica a necessidade de transição do estado de natureza para a sociedade civil Agora já demos um grande passo em direção à compreensão da res posta de Locke para a grande pergunta O que é o poder político Embora Locke ao longo dos Dois tratados se devote à questão da natureza do poder político devese reconhecer que sua abordem é bastante indireta O Primeiro tratado é em grande medida uma demonstração de que o poder patriarcal de Filmer não pode ser transformado em poder político a primeira metade do Segundo tratado é dedicada principalmente a uma descrição dos poderes naturais e do estado natural do homem em contraste com seus poderes políticos e estado político É só a partir daqui que Locke enfrenta de forma direta e detalhada a discussão do poder político e da sociedade política Restanos portanto verificar como Locke passa da base não política que criou para as conseqüências políticas Fica evidente de imediato a relevância do náo político para a política na declaração de Locke de que o fim o maior e principal de os homens se unirem em naçóes e se J o h n L o c k e 445 10 Second Treatise sec 42 Este trecho é um dos mais importantes entre aqueles acrescentados por Lo cke ao exemplar que está no Christ s College Náo aparece em muitas das edições ora disponíveis pelos motivos expostos no n 1 supm e foi impresso incorretamente em diversas edições em que náo aparece Está impresso incorretamente como the increase oflands and the r ifjt ofemploying o f thern o aumento das terras e o direito de utilízálas em lugar do texto correto the increase o f lands and the right employing o f thenT o aumento das terras e sua correta utilização Um exame do texto manuscrito não deixa dúvida de que a palavra o f supérflua no texto é um erro de imprensa cuja distorção do sentido do texto seiá logo percebida elo leitor atento colocarem sob um governo é a preservação dos seus bens 124 Aqui e em muitos outros liares além do capítulo denominado Da propriedade Locke emprega a palavra propriedade no sentido abrangente que inclui a vida liberdade e bens 87 No estado de natureza a propriedade é muito incerta muito insegura 123 porque fal tam três coisas necessárias para a sua guarda uma lei estabelecida arraigada conhecida 124 um juiz com autoridade para resolver todas as diferenças de acordo com a lei estabelecida 125 e o poder de apoiar e respaldar a sentença quando correta e darlhe a devida execução 126 A sociedade política o oposto do estado de natureza é criada para corrigir esses três defeitos O caráter da sociedade poiítica derm da intenção funda mental de assurar a preservação da propriedade ao proporcionar um poder de íàzer leis e julgar cxintrovérsias e um poder de executar as sentenças e punir os transgressores Qualquer quantidade de homens pode íázer um pacto para sair do estado de natureza e entrar em sociedade para constituir um só povo um organismo político sob um governo supremo 89 Apenas aqueles que celebram tais pactos explícitos uns com os outros estão juntos em sociedade política aqueles que não aderem estão em relação à sociedade e seus membros ainda no estado de natureza O cerne do pacto que todos os membros celebram uns com os outros a íim de estabelecer uma sociedade política é um acordo para transferir os poderes que cada um possuía no estado de natureza às mãos da comunidade 87 No estado de na tureza todo homem tem dois poderes naturais íázer tudo o que lhe aprouver para a preservação de si mesmo e outros dentro do permitido pela lei da natureza e o poder de punir os crimes cometidos contra a lei 128 Estes dois poderes naturais de cada homem são o original do poder legislativo e executivo da sociedade civil 88 O segundo poder o poder de punir todo homem ao entrar em sociedade política cede integralmente e compromete sua força natural para auxiliar o poder executivo da sociedade como a lei da mesma exigirá 130 Mas Locke não diz que o primeiro poder que inclui julgar o que é necessário para a preservação é transferido em sua to talidade afirma que é cedido na medida em que a preservação de si mesmo e do resto da sociedade o possa exigir 129 Devemos estar atentos portanto às respostas para estas perguntas Até que ponto é necessária a transferência desse poder para a so ciedade Por que esse poder não é transferido em sua totalidade E quais são os direitos e obrigações de um membro da sociedade se como pode acontecer a preservação de si mesmo conílitar com a preservação do resto da sociedade Os poderes naturais dos homens no estado de natureza são transformados pelo pacto nos poderes políticos da sociedade civil Esses poderes políticos são limitados no entanto pela finalidade para a qual foram criados Uma vez que o objetivo era sanar a incerteza e o perigo do estado de natureza proporcionando leis estabelecidas para a proteção da propriedade de todos os membros o exercício do poder ilimitado não é e não pode ser considerado como poder político O poder absoluto arbitrário ou o governo sem leis estabelecidas vigentes náo podem existir em harmonia com os fins da sociedade e do governo pelos quais os homens náo 4 4 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y abririam mão da liberdade do estado de natureza e aos quais não se atrelariam se não bsse para preservar suas vidas liberdades e fortunas e por normas vigentes do direito de propriedade garantir a sua paz e tranqüilidade Não se pode supor que tencionassem se tivessem o poder de assim fezer dar a qualquer um ou mais de um um poder absoluto arbitrário sobre suas pessoas e propriedades feto seria colocarse em uma condição pior do que o estado de namreza onde tinham liberdade de defender seus direitos contra os danos de outros e estavam em condições de ualdade de forças para mantêlos 137 A insistência de Locke sobre a natureza limitada do poder político revela tanto a sua concordância como sua grande discordância com Hobbes Locke partindo do princípio de autopreservação como a fundação pétrea da sociedade civil mostra re petidas vezes que o poder arbitrário absoluto não constitui remédio para os males do estado de natureza Estar sujeito ao poder arbitrário de um governante descontrolado sem o direito ou a força para se defender contra ele é uma condição muito pior que o estado de natureza não se pode supor que seja aquela a que os homens consentiram livremente pois não se pode supor que uma criatura racional mude sua condição com a intenção de piorála 131 Desta forma observa Locke a monarquia ab soluta não é de modo algum uma forma de governo civil 90 O grande erro de Hobbes não é a sua premissa mas sua conclusão política de que o único remédio para o estado de natureza é que os homens se sujeitem ao poder ilimitado do poderoso leviatã uma conclusão que contradiz a premissa de que o medo da morte violenta ou o desejo de autopreservação é o primeiro princípio da ação humana A conclusão de Locke governo limitado com base no consentimento dos governados é mais fiel a essa premissa que a conclusão do próprio Hobbes A sociedade política é uma invenção e artefiito humano mas essa coisa artificial uma vez criada tem uma natureza própria e portanto tem uma lei natural aplicável Tratase de ir de acordo com sua própria natureza quando se age para a preserva ção da comunidade 149 pois o que não é surpresa a primeira lei fundamental e natural é a preservação da sociedade 134 A primeira conseqüência óbvia dessa lei natural da sociedade é que todos os direitos de seus membros devem ser compatí veis com a preservação da sociedade Nenhuma sociedade pode conceder a qualquer dos seus membros qualquer direito que levaria a sua destruição Fazêlo poria em risco a preservação de seus membros cuja segurança tanto depende da proteção que a socie dade lhes proporciona Por este motivo também deve ser permanente o compromisso assumido pelos membros Quando um homem se torna membro de uma nação fica perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer inalteravelmente sujeito a ela e jamais poderá estar de novo na liberdade do estado de natureza 121 enquan to sobreviver o governo E o poder da sociedade deve ser inclusivo atingindo a todos os membros e todas as controvérsias nos termos da lei ali e somente ali haverá sociedade política onde cada um de seus membros renunciou a esse poder natural entregandoo nas mãos da comunidade em todos os casos que não impedem de apelar para a proteção da lei por ela estabelecida E assim excluído todo julgamento privado de cada membro em particular a comunidade passa a ser árbitro por J o h n L o c k e 4 4 7 meio de regras firmes e estabelecidas indiferentes e iguais para todas as panes e por meio de homens que derivam sua autoridade da comunidade para a execução dessas regras decide todas as diveigências que podem ocorrer entre quaisquer membros dessa sociedade a respeito de qualquer questão de direito e ptme as infrações que qualquer membro co meta contra a sociedade com as penalidades impostas pela lei 87 grifo nosso O poder da comunidade sobre seus membros parece avassalador seria mesmo possível dizer ilimitado É aqui que notamos com clareza a dificuldade fimdamental inerente à tentativa de desenvolver uma teoria de que o poder político é limitado por que tem sua origem em poderes e direitos naturais Se os membros de uma comunida de retêm parte de seu poder namral dependendo dele e não do poder da comunidade para sua proteção poderá a sociedade política funcionar como previsto Por outro lado se todo o poder é colocado nas mãos da comunidade o que restará para proteger os membros de eventuais abusos desse poder concentrado Outra lei natural aplicável ao corpo político e de fato a todos os corpos com postos por elementos distintos pode ser chamada de lei da maior força Esta lei é a base da doutrina de Locke sobre o governo da maioria Como já foi dito a sociedade política é estabelecida por meio do acordo unânime de seus membros para consti mir uma comunidade porém embora toda sociedade política seja fundada com base na unanimidade não se pode esperar tal unanimidade em outros assuntos A conse qüência imediata deste primeiro acordo unânime e a impossibilidade de permanecer em unanimidade é que governará uma parte da sociedade a maioria Pois quando qualquer número de homens pelo consentimento de cada indivíduo criou uma comunidade assim fizeram dessa comunidade um corpo com o poder de agir como um corpo que existe somente pela vontade e determinação da maioria Para que os atos de qualquer comunidade sendo apenas o consentimento de seus indivíduos e sendo necessário para aquilo que é um corpo moverse para em um só sentido é necessário que o oiganismo se mova desse modo para onde a maior força o transporta que é o consentimento da maioria ou então é impossível que aja ou permaneça um corpo uma comunidade com a qual o consentimento de cada indivíduo que se uniu a ele concordou que deveria e assim todos estão vinculados por esse consentimento a serem concluídos pela maioria 96 grifo nosso A primeira proposição deste argumento é que a maior força dentro de qualquer sociedade irá governála Locke parece supor que a maioria será a maior força e que portanto a maioria governará O mesmo tipo de argumento é apresentado na discus são de Locke da sociedade conjugal Quando o homem e a mulher discordam o ho mem como o mais capaz e mais forte 82 naturalmente comandará Entretanto com base na lei da maior força teríamos de dizer que no caso raro mas possível de um marido que não seja mais forte e capaz que sua esposa ele não comandará por natureza Da mesma forma em qualquer corpo político em que a maioria não for a maior força o governo não lhe caberá naturalmente Contudo sabemos e Locke decerto sabia que a maioria das pessoas nem sempre é a maior força na sociedade civil porque as desigualdades de natureza econômica política e social florescem sob o go 4 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y verno certas vezes portanto um homem é a maior força como fica evidente pelo fato de que toda sociedade está sujeita a seu governo Entáo por que Locke parece supor que a maioria seria a maior força Em qualquer corpo constituído por elementos distintos a maioria será neces sariamente a maior parte do todo somente quando todas as partes forem iguais e necessariamente a maior força só quando todos forem iguais em sua força Locke quer dizer que a maioria governará a sociedade nos momentos em que os membros forem iguais ou praticamente iguais em força Sabemos que no estado de natureza os homens estão em condições de igualdade de força enquanto após algum tempo na sociedade política um homem pode tornarse 100 mil vezes mais forte 137 que os outros homens Desta forma a doutrina do governo da maioria de Locke é que naqueles mo mentos em que os homens na sociedade estão mais próximos do estado de natureza e portanto são mais iguais em força como por exemplo quando concordam em deixar o estado de natureza e estabelecer uma comunidade a maioria sendo a maior força irá governar A maioria possui quando os homens se unem na primeira sociedade todo o poder da comunidade naturalmente em si 132 grifo nosso veremos que há um outro momento decisivo quando a maioria deve governar um outro momento quando os homens na sociedade estão muito próximos se não no próprio estado de natureza isto é uma época em que a sociedade está momentaneamente sem governo Até agora seguimos o procedimento do próprio Locke quando falamos da socie dade política sem fazer referência a qualquer forma de governo Locke faz a distinção entre sociedade política e governo mas não entende que a sociedade política possa existir sem governo exceto por períodos muito breves em ocasiões extraordinárias Os homens participam da sociedade política a íim de serem governados por uma lei fixa e essa finalidade só pode ser atingida pelo estabelecimento dos poderes legislativo e executivo que é precisamente como Locke expressa o ato de constituir o governo A sociedade política só perdurará se o governo for constituído de imediato A sociedade política e o governo podem ser separáveis na mente mas nâo existem de forma inde pendente a sociedade política exige governo A sociedade política nada pode fazer sem governo somente constituir o governo A realização dessa tarefa exige uma decisão momentânea uma escolha da forma de governo Formas de governo diferem principalmente de acordo com o modo como e em que mãos o poder legislativo é colocado A primeira lei positiva e íundamental de todas as nações é o estabelecimento do poder legislativo 134 a promulgação dessa lei íundamental ou constituição um ato da sociedade política necessariamente sem governo é o grande ato que é natural e necessariamente determinado pela maio ria da sociedade A maioria pode deter o poder legislativo e então o governo é uma democracia ou pode confiálo a alguns poucos homens e então o governo é uma oli garquia ou pode colocar o poder nas mãos de um homem sob um ou outro conjunto de condições e então é uma forma ou outra de monarquia Contudo em todos os casos só o consentimento da maioria pode constituir as fundações do governo todas as formas de governo lembrando que a monarquia absoluta não é uma forma de J o h n L o c k e 449 governo da democracia perfeita à monarquia hereditária 132 têm de forma igual o consentimento da maioria como sua base Em essência a doutrina de Locke do governo da maioria náo resulta em uma preferência por uma forma de governo em detrimento de outras Âs pessoas são as partes do paao social cada homem concordando com todos os outros para constituir uma sociedade Nada é dito de um paao entre o povo e o govemo Os poderes do govemo só são confiados sem que a eles se tenha renunciado a aqueles que se tornam seus agentes seu poder é apenas fiduciário O poder supremo para preservar a si mesmos e à sociedade permanece sempre com o próprio povo Deste poder não pode abrir mão nenhum homem ou sociedade de homens têm o poder de remmciar a sua preservação ou consequentemente aos meios para ela O povo sempre terá o direito de preservar o que não tem o poder de abandonar 149 Todavia embora o povo con tinue a ser o poder supremo Locke afirma também que quando é estabelecido o poder legislativo este é e continua sendo o poder supremo enquanto o governo continuar a existir e funcionar Além disso este legislativo não é somente o poder supremo da nação mas sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade um dia o colocou 134 Para explicar o que parece ser uma enorme contradição ter dois poderes supremos é preciso recordar a distinção entre a sociedade sem governo e a sociedade sob um governo O poder supremo permanece sempre nas mãos do povo mas não quando considerado sob qualquer fbrma de governo 149 O povo exerce o poder supremo ativamente só na sociedade sem governo mas quando existe govemo o poder supremo está nas mãos do lslativo onde o povo o colocou O povo e o lislativo são ambos supremos mas não ambos ao mesmo tempo Sob o govemo o poder supremo do povo está completamente latente e nunca será exercido até que por alguma calamidade ou loucura o govemo deke de existir este poder do povo nunca pode ter lugar até que o govemo seja dissolvido 149 Enquanto existir govemo o lslativo é o poder supremo ativo Entretanto o poder latente do povo persiste e se o governo vier a ser dissolvido então mais uma vez não há sociedade sem govemo nesse momento o poder supremo será exercido de modo dirao e ativo pelo povo o que significa é claro pela maioria e para atingir um único objetivo formar um novo govemo o mais rápido possível ao deliberar acerca de uma constituição e colocar o poder legislativo em novas mãos O princípio fundamental da separação de poderes é expresso de modo claro por Locke Em nações bem ordenadas os principais poderes são separados porque pode ser uma tentação muito grande para a fragilidade humana que tende a agarrar o poder que as mesmas pessoas que detêm o poder de promulgar as leis tenham também em suas mãos o poder de executálas 143 Entretanto Locke aplica este princípio somente à separação das funções legislativas e executivas trata do sistema judicial como parte do lislativo e não preconiza sua separação Locke não distingue um outro poder político o poder de guerra e paz ligas e alianças 146 Conmdo embora esse poder que Locke denomina poder federativo seja distinto do poder executivo devem ser ambos colocados nas mesmas mãos pois ambos exigem a força da sociedade para seu exercí cio força esta que não é seguro colocar sob comandos diferentes 148 450 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O poder legislativo é superior ao poder executivo pois o que pode dar leis a outro deve ser superior a ele 150 No entanto quando o lislativo não existe sempre e o executivo é conferido a uma única pessoa que também participa do legislativo então esta pessoa em sentido muito aceitável também pode ser denominada suprema Tampouco havendo um lislativo superior a esta pes soa não havendo leis a serem promuadas sem seu consentimento o que não se pode esperar jamais se íbsse sujeito à outra parte do lislativo esta pessoa é com muita pro priedade neste sentido suprema 151 Esta afirmação não n que o poder legislativo é supremo mas serve para lem brar que o órgão legislativo não precisa ser o ramo supremo do governo Esta é a pri meira indicação da surpreendente abrangência que Locke concede ao poder da pessoa que é o executivo surpreendente porque sua doutrina da supremacia do legislativo parece tão enfática e sem ressalvas Não importa até que ponto o executivo exista para executar a função subalterna da aplicação da lei tal como promulgada pelos legisladores é preciso acrescentar que em alguns momentos deve agir sem a orientação da lei o bem da sociedade exige que várias coisas sejam deixadas a cargo daquele que tem o poder executivo Pois os lisladores não sendo capazes de prever e fornecer por meio das leis tudo o que pode ser útil para a comunidade o executor das leis tendo o poder nas mãos possui pela lei comum da natureza o direito de fezer uso dela para o bem da sociedade 159 Não somente pode o executivo sem a sanção da lei como também pode fiizer com que as leis cedam 159 diante de seu poder onde seria prejudicial a adesão c a elas e pode até mesmo chegar tão longe a ponto de agr contrariamente à lei para o bem público Este poder de agir de acordo com o próprio discernimento em prol do bem público sem a prescrição da lei e às vezes até contra ela é a isso que se deno mina prerrogativa 160 O perigo inerente à prerrogativa do executivo não é menos óbvio que sua necessidade A prerrogativa sempre cresceu de modo mais intenso nos reinados dos melhores príncipes O povo confia em um príncipe bom e sábio mesmo quando este ultrapassa os limites da lei não temendo por sua segurança porque cons tatam que seu objetivo é promover o seu bem Tais príncipes divinos na verdade tinham algum direito ao poder arbitrário por meio do argumento que demonstraria ser a monarquia absoluta o melhor govemo como sendo aquele com que o próprio Deus governa o universo porque tais reis compartilham de sua sabedoria e bondade 166 Porém até mesmo os príncipes têm sucessores divinos e não há nenhuma ga rantia de que um deles alegando o precedente não fiiça uso da prerrogativa ampliada para favorecer seus interesses particulares em detrimento das propriedades e da segu rança do povo Sobre este fundamento se assenta o dito de que os reinados dos bons príncipes fisram sempre os mais perigosos para as liberdades de seu povo 166 J o h n L o c k e 451 Segundo este argumento o que caracteriza os príncipes mais sábios e melhores náo é que obedeçam e apliquem a lei estabelecida mas seus serviços para o povo O âmbito da discricionariedade executiva é limitado apenas pela condição de que seja usada para o bem público a prerrogativa de um bom príncipe que está ciente da confiança depositada em suas mãos e cuida bem de seu povo não será jamais excessiva 164 Entretanto posto que ultrapassar os limites dos poderes constitucionais ou legais sob pretexto de servir o povo tem sido a prática constante dos tiranos desde tem pos imemoriais o bem público parece uma prova perigosamente vaga e insuficiente para determinar se a prerrogativa está sendo usada de modo correto O bom príncipe e o tirano se assemelham por ambos íirem fora do âmbito da lei e até mesmo de forma contrária a ela A diferença entre eles reside toda no fato de sua ilegalidade ser benéfica ou não O bom príncipe transgride a lei a fim de melhor servir o povo o tirano usa o seu poder não pelo bem daqueles que estão sob ele mas para sua própria vantagem privada 199 Contudo existiria um modo prático de determinar a intenção de um governante Nem sempre é íácil definir se a lei foi violada mas decerto é mais íácil do que detectar se foi violada por um bom objetivo Não teria Locke exacerbado a dificuldade de distinguir o bom príncipe do tirano Locke não parece pensar assim O importante náo é como a pergunta seria respondida pela teoria mas como é avaliada na prática e na prática diz ele esta avaliação é feita com facilidade 161 Entre tanto antes que nos diga como é feita diznos por quem é feita À pergunta quem de cidirá se os poderes do governo estão sendo usados para pôr em perigo o povo Locke responde O povo será o juiz 240 O significado de o povo será o juiz está intimamente ligado no argumento de Lo cke ao direito de resistir à tirania que tem o povo desta forma esses dois temas serão examinados juntos O direito de resistência tal como expresso por Locke náo deve ser com demasiada presteza equiparado ao que veio a ser conhecido como o direito de revolução Se lembrarmos a lei natural fimdamental da sociedade é evidente que não pode haver direito de por em risco a preservação da sociedade A revolução é uma ameaça à preservação da sociedade Qualquer que seja o direito de resistência deve ser coerente com a preservação da sociedade O povo será o juiz afirma Locke De que será juiz Julgará se deve retomar ati vamente o poder supremo porque o governo foi dissolvido Como obteve o direito de fazer esse julgamento O povo sempre o possuiu e é totalmente incapaz de abrir mão dele Nessa altura Locke de novo recorre a sua discussão anterior sobre o estado de natureza e o estado de guerra e sobre os direitos que existem em si mesmos da seguin te forma Quando um príncipe ou alguém em posição de poder político utiliza esse poder de forma contrária à confiança depositada nele pelo povo para favorecer seus interesses à custa do povo conserva seus bens separados dos do povo afastase de sua comunidade colocase fora de sua sociedade situandose em um estado de natureza com ele Além disso usando a força contra o povo sem autorização ou direito coloca se em estado de guerra com o povo 452 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O tirano guerreia contra o povo Ao usar contra ele a força que lhe foi confiada com efeito destrói seu governo Náo mais pode ser considerado como seu governante político em qualquer sentido da palavra político Assim o povo tem o direito natural de se defender contra sua agressão e a resistência do povo é perfeitamente coerente com a preservação da sociedade O povo está defendendo a sociedade é o tirano quem se revoltou a rebelião sendo uma oposição náo às pessoas mas à autoridade que se baseia apenas em constituições e leis do governo aqueles quem quer que seja que pela força rompem e pela orça justificam a sua violação delas são verdadeira e adequadamente rebeldes Pois os homens ao entrar em sociedade e govemo civil excluíram a força e introduziram leis para a preservação da propriedade a paz e a unidade entre si aqueles que utilizam a íbrça novamente em oposição às leis de fàto rebeUareisto é trazem de volta o estado de guerra e são propriamente rebeldes 226 Em todo esse debate é raro Locke empregar a palavra revolução preferindo a palavra rebelião assim mantendo um uso estritamente literal de acordo com seu argumento não há direito de derrubar há apenas um direito de resistir quando do retorno da guerra Os ensinamentos de Locke sobre este assunto são endereçados aos que têm poder político e sobretudo aos príncipes pois são eles os mais prováveis rebeldes a forma mais adequada de evitar o mal é mostrar àqueles que estão sob a maior tentação de cair nele o perigo e a injustiça que constitui 226 Assim Locke inverte a discussão usual que considera o povo como a mais provável fonte de revolução Por que não di rige Locke seus ensinamentos também ao povo alertandoo contra o uso da força para derrubar os seus governantes Não teria simplesmente enganado seus leitores com uma inteligente inversão da terminologia O príncipe é chamado de rebelde e o povo que tenta depôlo é chamado de defensor da sociedade e todo o argumento repousa na insistência de Locke de que o povo julgará se o governo for dissolvido uma questão de extrema complexidade técnica E o seu recurso à força realmente significa algo mais além de o povo se opor às políticas de seu presente governo e tencionar substituílo seja com uma nova forma ou por colocálo em outras mãos Não fomentariam a revo lução popular os ensinamentos de Locke por incitar e justificar o povo sempre que estiver descontente a sublevarse com o grito da tirania nos lábios para depor seus governantes adequadamente designados Locke nega que tenha fornecido qualquer novo motivo para a revolução Ar gumentou que enquanto existir governo não há direito legal ou constitucional para fazer qualquer coisa que ponha em perigo a preservação da sociedade e do governo Negou qualquer direito de resistir à autoridade quando for possível recorrer à lei a força nâo deve ser aplicada contra nada a não ser à força injusta e ilegal 204 Este direito de resistir não é um direito político mas um direito natural que não pode ser exercido enquanto funcionar um governo devidamente constituído Além disso o povo não é propenso a criar problemas em geral prefere evitar o perigo da desordem as revoluções não acontecem a cada pequena má gestão nos J o h n L o c k e 453 assuntos públicos Grandes erros do governante muitas leis erradas e inconvenientes e todos os deslizes da fragilidade humana serão suportados pelo povo sem motim ou resmungo 225 Locke é veemente em sua condenação dos indivíduos que de feto fomentam a revolução contra um governo justo pois são diz ele culpados do maior crime do qual acredito um homem capaz 230 Todavia a defesa mais instrutiva de Locke contra a acusação de que fomenta a tendência para a revolução é mais profunda que as mencionadas antes mas não é a elas relacionada No estado de natureza todos os homens têm o poder de julgar o que é necessário para a sua preservação não podem entregar todo esse poder de julgar nas mãos da sociedade Pode ser denominado inalienável porque por mais que tente é impossível que um homem abra mão de seu poder de julgar se sua vida estiver em perigo Nenhum juramento ameaça ou doutrina é capaz de fezêlo No estado de na tureza ou na sociedade civil não há nenhum tipo de cirurgia que possa retirar de um homem vivo o desejo de autopreservação e as conseqüências dela Contudo embora esse direito de julgar seja reservado para todos os homens por uma lei antecedente e superior a todas as leis positivas do homem o reconhecimento deste direito não constitui uma base permanente para a desordem pois esta não entra em ação até que o desconforto seja tão grande que a maioria o percebe e se cansa dele e descobre a necessidade de alterálo 168 grifo nosso As três perguntas quando é a prerrogativa indevidamente utilizada como dis tinguir o tirano do bom príncipe e quando é dissolvido o governo acabam sendo a mesma pergunta o governo está ameaçando a segurança do povo E essa é a questão de que só o povo será o juiz Locke não vê qualquer dificuldade em atribuir a ele nem qualquer possibilidade de atribuíla a qualquer outro porque embora seja difícil de responder teoricamente o povo a responde com fecilidade não pela razão mas pelo sentimento Locke nega que suas palavras influenciem esta situação Seus argumentos ou doutrinas não têm nenhum efeito sobre o assunto As palavras não impedem os homens de sentir 94 Sua hipótese na verdade qualquer hipótese não tem ne nhuma influência em tal assunto as forças naturais não são afetadas pelas doutrinas pois quando o povo é feito desgraçado chorem seus governadores tanto quanto quise rem para os filhos de Júpiter quer sejam sagrados e divinos descidos do céu ou pelo céu autorizados consideremnos para quem ou o que quiserem o mesmo acontecerá Se uma longa série de abusos prevaricações e artifícios todos tendendo na mesma direção torna seu plano visível para o povo e este náo pode deixar de perceber a que está sujeito e ver para onde está indo náo é de se admirar que então desperte e se esforce para colocar o governo em mãos tais que lhe assegurem os fins para os quais o governo foi primeiro constituído 224 225 Sc haverá resistência dos governantes depende inteiramente do que o povo per cebe e sente Quando a grande maioria das pessoas conseguir perceber que suas vidas estão em grande perigo como será impedida de resistir à força ilegal usada contra ela não posso dizer 454 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Este i um inconveniente confesso que está presente em todos os governos quando os governantes atingem esta situação passam a ser suspeitos em geral por seu povo a situação mais perigosa em que se podem colocar na qual são os que menos merecem comiseração porque é táo íacil de ser evitada 209 A perspectiva da resistência das pessoas quando se sentem em perigo é o único limite eficaz sobre o uso da prerrogativa Um príncipe sábio compreende este limite e sempre evita agir de modo que o povo suspeite de suas intenções Quando tem de agir sem a aprovação da lei e até mesmo de modo contrário a ela fíca atento à necessidade de fezer conhecidas suas boas intenções de modo a que o povo as perceba e sinta Se felhar nisso e o povo vier a suspeitar dele e se sublevar para substituílo então em bora por algum tempo possa ser capaz de manter sua posição pela força seu poder político terminou Quando um lei destrona a si mesmo e se coloca em estado de guerra com seu povo o que os impedirá de perseguir a quem náo é rei como o feriam com qualquer outro ho mem que se colocasse em estado de guerra contra eles 239 O rei não é rei o governo está de feto dissolvido e as desigualdades associadas com o governo foram anuladas O retorno ao uso da força o estado de guerra nivela as partes 235 Em um momento como este não existem superiores e inferiores na política O resultado será determinado pela maior força Assim o argumento completou um círculo O desejo do homem de preservar a si mesmo retirouo da guerra do estado de natureza e o conduziu à sociedade política Contudo na sociedade política os homens estão diante de um novo e mais terrível perigo a tirania ou o poder arbitrário absoluto o poder aumentado de um homem ou alguns homens que trazem de volta uma guerra muito pior do que a guerra na normalidade do estado de natureza Sob o governo tirânico as probabilidades do in divíduo são multiplicadas exponencialmente e é quase impossível a defesa No ílindo os homens só têm a proteção da sua força natural e o desejo natural de preservação Este desejo mais forte que deu origem à sociedade política é também sua principal defesa quando o povo percebe que a sociedade sua maior segurança está sob ameaça resiste àqueles que a destruiriam O empreendimento político da humanidade é uma luta interminável para sair do estado de natureza e evitar cair de novo nele com todos os seus terríveis males Há dois lugares no Segundo tratado onde Locke feia dos príncipes divinos Em um deles fala dos príncipes a quem é concedida a maior prerrogativa que são mais livres do controle das leis São como Deus que governa o universo como monarca absoluto porque compartilham de sua sabedoria e bondade 166 Entretanto na passsem anterior é considerado sábio e divino o príncipe que governa de acordo com as leis estabelecidas da liberdade Da mesma forma que o príncipe é como Deus Criador pois as leis estabelecidas de liberdade constituem os meios para propiciar o aumento de terras que é uma espécie de criação como vimos embora não seja uma J o h n L o c k e 455 criação a partir do nada Este aumento não é apenas a causa da prosperidade interna mas também a fonte do poder para defender a sociedade contra os ataques hostis de outras sociedades O príncipe divino cujo cumprimento da lei traz a prosperidade logo será demasiado duro para com seus vizinhos 42 Esta referência a poder e a vizinhos hostis nos faz lembrar que toda sociedade está no estado de natureza com todas as outras sociedades e que o poder é a base da segurança Porém as necessidades da vida no estado de natureza internacional em particular as exigências da guerra por vezes demandam açóes extraordinárias em resposta a situações imprevistas que não podem ser reguladas por lei Um povo pode roso cujo poder foi gerado pelo crescimento material resultante do estímulo do desejo de confortável preservação sob a proteção de leis de liberdade estabelecidas sempre se defrontará com a possibilidade de uma batalha uma situação em que os cidadãos devem ser dedicados ter espírito público e estar prontos para sacrificar seus tesouros e talvez mesmo suas vidas sob o comando discricionário do poder executivofederativo para a defesa da sociedade como um todo O fato de que os príncipes que mais governam pela lei e menos governam pela lei são denominados divinos exprime um dilema que não pode ser totalmente resol vido enquanto a sociedade for entendida como sendo fundamentada no princípio da autopreservação Resta uma pergunta não resolvida por Locke se um dia serão sufi cientemente compatíveis a preservação da sociedade como um todo e a preservação de seus membros individuais Por exemplo poderá a preservação da sociedade ser coe rente com a autopreservação nos momentos mais graves de provação que muitas vezes determinam o destino das sociedades políticas Poderá o princípio de autopreservação fornecer a base para o desenvolvimento do patriotismo do espírito público e espe cialmente do sentido do dever de abrir mão da riqueza e até mesmo da vida em defesa da pátria Locke é profundo e abrangente quando fala sobre os motivos da fundação da sociedade política mas esses motivos acabam por ser tais que seu próprio caráter o impede de considerar em que direção se desenvolverá a sociedade após a fundação estar assegurada Locke não suplementa seu princípio fundamental nâo discute outros motivos para a manutenção de uma sociedade após sua fundação motivos que podem emergir dentro de uma sociedade e que talvez não existissem na época de sua funda ção Não há discussão por exemplo das obrigações que crescem entre os conterrâneos Locke fala muitas vezes das sociedades raramente de países muitas vezes da lei da natureza raramente ou nunca de tradições costumes instituições muitas vezes de direitos raramente de deveres muitas vezes de o povo raramente dos povos Quando fala dos ingleses não fala de seu amor pela Inglaterra mas de seu amor por seus direitos justos e naturais O pouco que Locke diz a respeito da educação cm Dois tratados nada tem a ver com o desenvolvimento de um sentido de dever público a educação é mencionada como algo cujo mais nobre propósito não vai além de preparar as crianças para cuidarem de si mesmas 4 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Piefecio de Two Treatises Dois tratados Há uma passagem reveladora a este respeito em que Locke fàla do caráter abso luto da disciplina marcial A preservação do exército e nele de toda a nação exige uma obediência absoluta ao comando de todo oficial superior e é morte justa desobedecer ou discordar do mais perigoso ou irracional deles 139 O sargento pode ordenar a um soldado que marche até a boca de um canhão ou se coloque em uma fenda na muralha onde é quase certo que pereça O general poderá condenálo à morte por ter abandonado o seu posto ou por não obedecer às ordens mais desesperadas Pode mandar enforcálo pela menor desobediência E este poder extraordinário do comandante militar é justificado porque tal obediência cega é necessária para o fim para o qual o comandante tem seu poder viz a preserva ção dos demais 139 A preservação do restante da sociedade pode muito bem explicar o direito de comandar do general mas por que deve o soldado obedecer a or dens desesperadas Das palavras de Locke emerge apenas um motivo se desobedecer o general pode enforcálo Contudo não demanda a eficácia de um exército um motivo melhor do que esse Que tipo de exército será esse em que o medo da punição é o único suporte para a disciplina em combate A questão é se o soldado de Locke que desconhece palavras não lockianas tais como honra bravura dever e heroísmo lutará em prol de outros quando o medo do inimigo ultrapassar seu medo de seus próprios oficiais comandantes Nem nesta passagem nem em qualquer outra parte de Dois tratados fornece Locke uma explicação para o que fundamenta o dever do soldado de dar sua vida por seu país O grande tema de Locke era a liberdade e seu grande argumento era de que não há liberdade onde não há lei Na condição natural do homem não existe lei ou pelo menos não há lei conhecida e estabelecida Para serem livres portanto os homens devem ser legisladores Contudo por desconhecimento da natureza humana e da so ciedade que mais lhes convém muitas vezes o resultado de seus esforços de legislar não melhoram mas pioram sua condição A tarefa de tornar a humanidade livre exige uma compreensão da natureza do homem A força mais poderosa da natureza humana e portanto a mais significativa para o entendimento político é o desejo de autopreservação É ao mesmo tempo o maior obstáculo e a maior força para a paz entre os homens Devidamente orientado oferece uma garantia de segurança em meio à abundância Ignorado ou desafiado provoca a violência a anarquia e uma terrível destruição da vida e da propriedade A tarefa da razão portanto é compreender apaziguar e direcionar essa paixão de forma constru tiva sempre com a consciência do perigo iminente se um sentimento de desconforto colocálo na senda da violência O desejo de preservação pode ser desviado dirigido ou incitado mas não há maneira alguma de diminuir ou erradicar seu poder avassalador Por este motivo os homens não são inteiramente governáveis e jamais será concluída a tarefii de tornar a J o h n L o c k e 4 5 7 humanidade livre sob o comando da lei O remédio para os males do estado de na tureza jamais realiza plenamente a sua cura Os homens vivem em parte pelo menos sempre e inevitavelmente na condição natural não política e sempre em perigo de recair em uma condição muito pior pois não se podem ensinar os homens a ter sentimentos contrários a seu desejo mais forte O governo é impotente para mudar a natureza hu mana deve ajustarse ao que não pode ser mudado O governo que não se ajustar a essa paixão em todo homem deve estar preparado para lutar contra ela sem cessar pela força e pelo terror Porém o governante sábio ferá mais do que ajustarse canalizará e orien tará incentivará e protegerá o desejo de preservação e ferá dele o próprio fundamento da lei da liberdade da segurança e da abundância para seu povo Locke procurou livrar a humanidade de toda forma de poder arbitrário absoluto Tentou apresentar uma explanação verdadeira e completa da criação da civilização pelo homem a partir dos materiais quase inúteis fornecidos a ele Nessa explanação a prin cipal força que impulsiona o homem para sua própria libertação é a paixão o desejo de preservação Como o leitor desse volume bem sabe os íilósofos políticos da Antigui dade consideravam as paixões arbitrárias e tirânicas Acreditavam que a tendência das paixões é acima de tudo escravizar os homens Ensinavam portanto que um homem só é livre na medida em que a razão nele é capaz de uma forma ou de outra de subjugar e governar suas paixões Locke no entanto reconheceu a paixão como o poder supre mo da natureza humana e argumentou que a razão não pode íázer mais do que atender o desejo mais poderoso e universal e orientar para seu cumprimento Somente quando esta ordem de coisas for entendida e aceita como a verdadeira e natural ordenação é que haverá alguma possibilidade de êxito na luta da humanidade pela liberdade paz e abun dância É nisso acima de tudo que constituem os ensinamentos políticos de Locke John Locke foi chamado de íilósofo da América o nosso rei da única maneira em que um íilósofo sempre foi rei de uma grande nação Nós portanto mais do que muitos outros povos do mundo temos o dever e a experiência para julgar o acerto de seus ensinamentos L e it u r a s A John Locke Second Treatise Segundo tratado B John Locke First Treatise Primeiro tratado John Locke Some Considerations ofthe Consequences ofthe Lowering ofinterest and Raising the Value ofM oney Algumas considerações sobre as conseqüências da redução dos juros e da elevação do valor do dinheiro John Locke A Letter Conceming Toleration Uma cana sobre a tolerância 4 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y M ontesquieu A 16891755 Charles Secondat barão de Montesquieu nasceu e morreu na França Seus escritos mais famosos sáo Lettrespersanes As cartas persas 1721 Considémtions sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência 1734 e LEspritdes lois O espírito das leis 1748 1 In tro d u çã o Os ensinamentos da fese madura de Montesquieu devem ser recolhidos principal mente em O espírito das leis como o autor mesmo indica em seu prefacio Suas demais obras devem portanto ser relacionadas a esta Todavia parece faltar um plano geral ou coerência a seus 31 livros fato a partir do qual se inferiu que Montesquieu não era um filósofo sistemático e não possuía ensinamentos maduros no sentído estrito O prefiicio no entanto contém uma reivindicação dara de que a obra como um todo tem uma oiganização e se baseia em um princípio bem elaborado Desta forma um esquema da obra e por conseguinte ensinamentos sistemáticos ou não existem ou existem de for ma velada Se formos obrados a decidir preferimos acreditar que a referência objetiva do escritor à existência de uma oiganização da obra é mais fidedigna do que a negação do leitor de que existe um plano geral Montesquieu quando menciona a necessidade de procurar pelo esquema da obra dá forte indicação de que este não se revela de imediato O espírito das leis é portanto uma obra obscura Um motivo importante para disfarçar opiniões não ortodoxas era a possibilidade de represálias por parte da Igreja e do Estado Porém o E lo fiinebre de dAlembert a Montesquieu escrito logo após a sua morte ex plica de modo mais amplo esta obscuridade De acordo com dAlembert Montesquieu buscava instruir tanto o sábio quanto o ignorante de tal forma a esconder dos ignorantes as importantes verdades cuja exposição direta poderia causar mal desnecessário O que parecia ser desordem e obscuridade eram instrumentos para este fim O próprio Mon tesquieu explica que seus princípios podem ser descobertos por um atento exame dos pormenores nossa tarefa portanto é tentar chegar ao todo e a seus princípios por meio das partes e detalhes Tem duplo objetivo a íilosoíia apresentada no prefilcio e no Livro I compreender a diversidade das leis e dos costumes humanos as leis nâo escritas e auxiliar o governo sábio em toda parte O primeiro é teórico o segundo prático e sua ligaçáo surge a partir da questão da lei em si Em sua femosa exposição de abertura Montesquieu define as leis cm seu sentido mais amplo como as relações necessárias derivadas da natureza das coisas As leis são as relações existem de modo objetivo e por necessidade Governam a ação de todas as coisas de Deus sobre o mundo dos corpos uns sobre os outros e assim por diante Esta legalidade universal é o pano de íimdo contra o qual deve ser vista a lei humana Contudo é ambíguo o termo lei cm decretos humanos implica um leUtdor a promulgação da lei para aqueles que devem obedecêla e apü cação da lei com as sanções dela decorrentes Governariam as leis portanto todas as coisas no universo tal e qual são capazes de governar os seres humanos A tese clássica em fevor da resposta afirmativa está na Summa Jheologica de S Tomás de Aquino A promulgação humana ou lei positiva era compreendida em termos de sua conexão com a lei eterna a lei natural e a lei revelada A lei como tal é um mandato da razão elaborada promulgada e aplicada para o bem comum pelo governante da comunida de Sua fonte última é a mente de Deus A definição inicial de lei por Montesquieu diveiçe da tradição tomista primeiro por não deixar espaço para o milagre e segundo por descrever a universalidade da neces sidade absoluta e cega ao contrário da governança racional que visa o bem A lei huma na como razão humana aplicada à governança do homem parece estar curiosamente fora de liar em tal mundo Conmdo o que Montesquieu se encarrega de demonstrar é precisamente até que ponto os assimtos humanos são influenciados por causas mecâni cas Ao abandonar tanto a teleologia divina como a natural e apontar também os limites da ação humana dotada de propósito intenta fundar uma ciência dos assuntos humanos consistente com a flísica cartesiana e newtoniana É difícil dizer com certeza que visão de Deus considerava compatível com este entendimento da lei e da natureza Antes que houvesse leis humanas havia o homem Para compreender a diversidade das leis humanas devemos visualizálas à medida que emergem cfe namreza do homem enquanto este e dentro de ambientes naturais e sociais específicos A variedade de am bientes reais será responsável pela variedade de assuntos humanos e de feto das histórias de todas as nações desde que conheçamos os prindpios gerais em questão e desde que levemos em conta os indivíduos excepcionais a habilidade política e o acaso A ciência humana exige esmdos históricos e estes esmdos são o elo entre a teoria e a prática A prática política ou habilidade política exige que cada sociedade seja compreendida e tratada em sua particularidade ou seja à luz de sua história Entretanto só se podem entender as particularidades históricas à luz das causas gerais próximas e últimas e por tanto um sólido conhecimento histórico exige teoria ou filosofia É desta forma que se conectam a lei como legislação e a lei como relações necessárias entre as coisas 4 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 1 Ver citação nas pnas 515516 adiante 2 Montesquieu The Spirit t f the Laws ed Gonzse Tnic 2 v Paris Colleaion des Classiques Garnier nd Prefãce Como eram os homens antes de haver leis humanas e por que surgem tais leis De início os homens mal se distinguiam dos animais Sem linguagem e razão eram domi nados por medos físicos instintivos e pela necessidade de se preservar como indivíduos e em sAÜhi se associarem uns com os outros só mais tarde viriam a poder desejar de modo consciente permanecer em sociedade Porém a sociedade gera descontentamen to Grupos procuram o privilégio na posse de vantagens e incentivados ora por sua consciência de sua própria força entram em guerra uns contra os outros Da guerra vem a lei o direito ou o justo drotí A lei suie como um meio de suprimir a guerra seja dentro das sociedades ou entre elas Dentro das sociedades as relaçóes entre governantes e governados direito político e entre cidadão e cidadão direito civil são estabelecidas de tal íbrma a unir a comunidade devastada pela guerta A ideia do direito do justo e do obrigatório tem origem na ideia de lei e não a precede O homem por natureza ou em sua origem não tem consciência ou sentido do dever Este relato detiwido do segundo capítulo do Livro I omite referência às relaçóes anteriores de equidade atribuídas aos homens no primeiro capítulo Essas relaçóes ou deveres que precedem todas as leis positivas têm caráter peculiar Impóem um mínimo obedecer às leis positivas ser grato pelos benefícios recebidos permanecer dependente do ser que criou o homem e pagar o mal com o mesmo mal Na prática sua parcimônia assegura que sejam percebidas pelos homens em toda parte Todavia não estão incluídas na explanação da natureza e do comportamento primitivo do homem no Capítulo II Isto sugere que sua existência se deve a exigências sociais primitivas semelhantes às que engendram a lei Seja como for essas obrigações não chegam a prescrever a plenitude da justiça ou do bem humano pelos quais se devem guiar as sociedades Se o homem não principia conhecendo a justiça tampouco possui um íim ou perfeição naturais Montesquieu nega explicitamente que qualquer forma específica de governo ou conjunto de leis sejam necessários ou estejam mais de acordo com a natu reza A lei em geral é a razão humana na medida em que governa todos os povos da terra e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica esta razão humana As leis de cada nação devem estar relacionadas a sua forma de governo suas cir cunstâncias físicas por exemplo geografia clima e suas condições sociais por exem plo liberdade costumes comércio religião E todas as relações que a leis têm ou deveriam ter em conjunto constituem o seu espírito esprit Com esta passem a busca clássica pelo melhor estado a lei natural tomis ta e a lei natural lockiana são rejeitadas como guias para a ordenação da sociedade política Emerge um relativismo absoluto como conclusão do livro introdutório de Montesquieu Contudo não se trata de subjetivismo Montesquieu concorda que objetivamente um dado conjunto de leis pode ser não apenas ser imiinado melhor ou pior para um determinado povo Sustenta no entanto que há em última análise M o n t e s q u ie u 4 6 1 Ibid I iii trans D L uma variedade irredutível de normas bem como de reais configurações políticas Essas normas em suma não são elas próprias passíveis de julgamento em termos do que é o melhor ou o pior absoluto do ponto de vista político Daí se seguiria que o estudo da história é mais importante para a descoberta de normas específicas que o estudo da filosofia A história porém como o estudo dos fetos e causas não pode por si só pro duzir quaisquer normas Como então se produzem normas específicas válidas O espírito das leis é uma análise das coisas diferentes às quais as leis podem rela cionarse Essas coisas examinadas uma após a outra sem ordem aparente ocupam os Livros II até XXV da obra enquanto os Livros XXVI e XXIX retornam a um nível de generalidade semelhante ao do Livro I Os Livros XXVII XXVIII XXX e XXXI no entanto parecem ser adjuntos ao corpo principal do trabalho e não partes intrínsecas a ele e os três últimos servem para esclarecer a constituição da França moderna por desnudar suas origens históricas 2 F orm as d e G o v e rn o Montesquieu dedicase primeiro a um exame das estruturas políticas ou seja dos meios para reprimir os conflitos sociais Todo govemo tem ao mesmo tempo uma natureza e um princípio aos quais suas leis devemse relacionar Desvendamos sua natureza quando averiguamos quem governa e como as paixões que o impulsionam são o seu princípio As principais espécies de governo são a república democrática ou aristocrática a monarquia e o despotismo Seus assuntos nacionais e em seguida seus assuntos externos constituem o assunto dos Livros II a X Antes de discutir detalhes são necessárias várias observações gerais Notamos primeiro que Montesquieu vai muito além de simplesmente fornecer informações so bre várias as formas de governo que tenham de feto existido Afirma que seu objetivo principal é reconstruir as leis instituições e as práticas por meio das quais cada forma é aperfeiçoada Por si mesma esta tentativa pode ser coerente com o relativismo que Montesquieu se propõe a abraçar Entretanto também compara as várias formas entre si de modo a indicar seu mérito comparativo máximo Seria isso possível sem algum padrão absoluto do bem e do mal político Vamos começar com a república democrática Em uma democracia devidamente constituída o povo soberano delegará a autoridade para realizar o que ele próprio não pode fezer Em relações internacionais e na preparação de legislação precisam ser guia dos por um conselho ou senado e só podem confiar neles se os escolherem Precisam de magistrados mas são admiráveis em detectar o valor dos indivíduos para este fim A legislação em si no entanto será feita diretamente pelo povo A democracia não exige que todos os cidadãos sejam elegíveis para cargos públicos mas que todos participem da seleção dos ocupantes desses cargos Senadores e magistra dos civis inferiores devem ser escolhidos por sorteio não por voto e dentre voluntários selecionados entre aqueles que não são necessitados os pobres não são eleveis Altos magistrados militares e civis serão eleitos por todos noAimente entre os que estão em 4 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y melhor situação Por fim os membros dos tribunais populares são escolhidos por sorteio entre todos os voluntários ricos ou pobres Assim a democracia não é o simples governo da maioria nem o simples governo por sorteio Tratase de luna mistura Na verdade os pobres são obviamente menos priviliados e os ricos mais privilegiados do que simples números admitiriam íàto este reforçado pela implicação de que os ocupantes de cargos públicos não teriam salário e a participação em assembléias populares não seria obrigatória A democracia necessita do conservadorismo bem como o autossustento e lazer dos ricos No entanto também necessita do mérito cuja aquisição é auxiliada pelo uso das técnicas da eleição e de um exame dos candidatos O princípio da democracia é a virtude Onde todos participam da elaboração das leis as quais devem eles mesmos obedecer e da escolha de seus próprios governantes dentre seu meio é necessário um grau muito elevado de espírito público ou devoção ao bem comum Virtude em suma é patriotismo o amor da república e das leis e dela derivam as virtudes específicas do cidadão a probidade a temperança a coragem e a ambição patriótica Para preservar a virtude devem ser evitados os extremos de riqueza e pobreza através da criação de mínimos bem como de máximos legais para a posse de bens A virtude necessita de uma quase igualdade e mais do que isso de um nível relativamente baixo de riqueza em geral assAUii írugalidade e impedido o luxo Esta condição não só deve existir como deve ser amada Outros métodos para manter a virtude são um senado censório composto pelos mais velhos eleito por toda a vida para preservar a pureza dos costumes fortes poderes paternos leis suntuárias a acusação pú blica de esposas infiéis e em geral a vigilância mútua em todos os pontos de conduta A democracia sobrevive apenas em uma pequena cidadeestado cuja coesão seme lhante à da íámília engendra uma preíèrência contínua pelo bem público em detrimento do bem privado Suas assembléias públicas não são representativas Porém não é coerente com um clero independente ou seja um estado dentro do estado e provavelmente só é coerente com a religião e moralidade psgás A Atenas de Sólon Esparta Cartago e a república romana tardia são todas utilizadas como exemplos de democracia Nenhuma nação cristã nem tampouco não pagá ou não antiga é utilizada da mesma íbrma A característica mais atraente da democracia é a grandeza moral de seus cida dãos A democracia também garante a seus cidadãos um alto grau de liberdade e de segurança de acordo com a lei Por outro lado deve forçosamente estabelecer limites para sua grandeza e liberdade Sua pobreza sua pequenez sua restrição de privacidade sua dependência de inquestionável devoção do público e a vigilância mútua dos seus cidadãos impede um desenvolvimento mais completo dos talentos humanos em particular na área da filosofia e das belas artes Democracia signiíica mediocridade intelectual e artística Montesquieu admite uma distinção entre repúblicas produtivas e comerciais como Atenas e repúblicas militares como Esparta A primeira escolha de democracia parece estar em algum ponto entre as duas o corpo de cidadãos deve M o n t e s q u ie u 4 6 3 ser composto de agricultores que tanto trabalham como lutam No entanto é possível uma democracia baseada no espírito comercial como seu princípio desde que suas leis impeçam que esse equilíbrio econômico seja destruído pela riqueza excessiva Montes quieu dá a impressão no entanto de ser muito difícil sustentar a saúde de uma demo cracia comercial O brilho da democracia de Péricles distinta da democracia de Sólon em Atenas baseavase em extremos de riqueza de corrupção moral e de liberdade ou seja na decadência da política e não em sua saúde A república aristocrática é um regime no qual apenas uma parte do povo é sobe rano como melhor exemplificam o início da república romana e a Veneza moderna A aristocracia depende da desimialdade política e econômica entre os nobres soberanos e o povo não participante E raro mas não impossível que os nobres identifiquem seus próprios interesses com os interesses do povo desta forma mais se aproximando da virtude da democracia Contudo o princípio mais provável da aristocracia é um espírito de moderação dos nobres que os impede de buscar desmedida superioridade uns sobre os outros ou sobre o povo É difícil assjuar leis e instituições propícias para tal moderação Em geral quanto maior o número de nobres e menor e mais pobre o contingente dos desprovidos de direitos políticos mais saudável a aristocracia Desta forma a democracia pode ser considerada a perfeição da aristocracia É caracterizada por maiores cuidados e precauções para com o bem comum do que a aristocracia Seus membros sáo em média mais virtuosos mais livres e mais seguros ou avaliandoa da perspectiva oposta menos humilhados e explorados Devemos notar que Montesquieu altera radicalmente os padrões e nomes usados na tradicional classificação aristotélica dos regimes Aristóteles dassificouos em termos dos detentores da autoridade soberana e do objetivo de seu gpverno Os bons rtçimes são governados em prol do bem comum os maus para a vantagem dos próprios governantes Assim é feiu uma dara distinção entre oligarquia e aristocracia sendo ambas o govemo pdos poucos Montesquieu distiie apenas dois tipos e não quatro de república que dependem de o governo estar nas mãos da totalidade ou de parte das pessoas Cada tipo é aperfdçoado de determinada maneira e os casos reais de ambos se assemelhariam mais ou menos a esta perfeição Entretanto tal como em Maquiavd a distinção clara entre regimes motivados pela virmde ou pela violência deixa de ser primordial Desse modo Montesquieu utiliza o termo aristocracia para regimes que Aristóteles teria chamado de oligarquias Também denomina democracia o r m e que Aristóteles teria pro vavelmente chamado de comunidade política e até mesmo em certos casos chama de democracia regimes que Aristóteles considerava aristocracias mistas por exemplo Cartago Podese concluir que a classificação revista de Montesquieu tem dois efeitos primeiro lança dúvidas sobre a adequação de classificar os regimes de acordo com a bondade dos motivos de seus governantes segundo acentua os méritos dos regimes po pulares ou do elemento popular em regimes mistos dessa forma ensinando que melhor se alcança o bem comum por meio da ampla participação popular no governo Podemos ser levados a questionar isso pelos grandes elogios que íàz Montesquieu das instituições singulares da República de Platão no Livro IV mas a conseqüência dessa concessão não é uma adesão à preferência clássica pela aristocracia 4 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y O govemo republicano tem o seu lugar natural em uma sociedade pequena e a expansão no tamanho poder e riqueza de uma república leva necessariamente ao colap so de seu espírito e instituições Esta é a lição que Montesquieu tirou acima de tudo de seu estudo de Roma em oposição ao fato de Maquiavel fevorecer o imperialismo romano nos Discursos Entretanto o tamanho reduzido que exigem as repúblicas repre senta um problema crucial para a defesa A solução para este problema em um sistema republicano é a confederação em que várias repúblicas se reúnem para formar um todo defensivo maior A moderna república holandesa e a antiga confederação da Lícia são exemplos desse dispositivo Montesquieu parece ter encarado a confederação como uma associação de sociedades não diretamente dos indivíduos e se refere à possibili dade de dissolução da confederação enquanto perduram suas sociedades constituintes Entretanto favorece também explicitamente como no caso da Lícia uma associa ção altamente centralizada em lugar de uma associação frouxa dos estados membros Na monarquia uma pessoa governa de acordo com leis fixas e estabelecidas Para isso é necessário que haja poderes intermediários entre o monarca e o povo donde a nobreza a Igreja e as cidades Também é preciso que haja um repositório indepen dente ou guardião das leis tais como os parlements franceses Juntas essas forças por seus privilégios e independência são capazes de conter as ações tanto do monarca como do povo No entanto quando o monarca combina os poderes legislativo e exe cutivo em sua própria pessoa como na França o governo tende para o despotismo Com cautela porém de modo claro Montesquieu fornece provas de considerar uma monarquia equilibrada como aquela em que algo semelhante ao antigo États généraux Estados Gerais francês compartilhasse o poder legislativo com o monarca A menos que a monarquia possua tal estrumra não é um regime estável Montes quieu afirma que o mundo antigo não tinha uma concepção adequada da monarquia Esta concepção surgiu da conquista germânica de Roma seus dois principais com ponentes sendo uma nobreza independente hereditária e privilegiada e um governo representativo O mais próximo disso a que chegaram os antigos foi a monarquia da época heróica descrita por Aristóteles mas ali o povo detinha o poder legislativo dire to e era capaz em última instância de retirar os poderes do rei Montesquieu discorda abertamente de Aristóteles no que diz respeito à classificação das monarquias Rejeita o princípio clássico de rotular os regimes com base nas intenções ou virtudes e vícios dos governantes Para ter uma boa monarquia não basta ter um bom monarca O governo só possui uma natureza ou constituição se sua estrutura não depender de uma circunstância tão pouco confiável quanto os dons morais naturais ou cultivados de um indivíduo importante No entanto o próprio Montesquieu admite mais tarde que o caráter moral de um monarca é tão vital para a liberdade de seu país quanto suas leis O que regula a monarquia é a honra não a virtude Montesquieu é muito severo na sua crítica moral das cortes e dos principais homens das monarquias em toda parte M o n t e s q u ie u 4 6 5 Ibid XI viii Fala de seu caráter miserável e de sua insignificância se disseminarem por todos os níveis da sociedade Todavia o objeto mais procurado em monarquias a honra ou superioridade de condição e pessoa serve como substituto para os incentivos da ação virtuosa A ambição pela distinção por parte de todas as classes e indivíduos provoca uma conduta que redunda em beneficio público ao mesmo tempo em que visa so mente o bem privado ou egoísta Além disso o código de honra estabelece limites não oficiais para a arbitrariedade tanto do rei como dos súditos A busca pela honra criticada por Montesquieu não pode simplesmente ser identi ficada com a atividade atribuída por Aristóteles ao homem m iânim o ou orgulhoso O sistema de costumes e hábitos da monarquia é a honra vulgarizada ou a honra que busca ser reconhecida por muitos que depende muito mais do reconhecimento por outros que sucumbe em vez de resistir aos vícios por exemplo a valentia que sáo popularmente tomados como sinais de ousadia Por outro lado Montesquieu parece menos disposto do que Aristóteles a aceitar o horizonte mental do homem imnâni mo em si na medida em que esse horizonte é limitado principalmente pela autoestí ma e encoraja a ação menos por amor do bem público do que pela autoestima e pelo desejo das mais altas honrarias Nas monarquias as leis que apoiam a honra devem conceder privilégios hereditá rios aos indivíduos e propriedades da nobreza O luxo deve ser permitido como forma de sustentar os pobres e favorecido o comércio por parte dos não nobres A busca das guerras de ambição e conquista é mais inerente à monarquia do que à república e por sua natureza a monarquia exige um território maior Contudo a expansão imoderada eníniquece o poder da honra e incentiva o poder despótico De maneira geral a mo narquia é menos moral menos justa e menos estável que a democracia É preciso que assegure vastas desigualdades hereditárias No entanto é compatível com uma estrutu ra de leis escritas e não escritas chegando mesmo a exigila para a proteção das pessoas e das propriedades em suas próprias desigualdades No que se refere à própria França Montesquieu jamais aconselha que se desvie seja para a virtude republicana ou para a liberdade inglesa Todavia As cartas persas revelam que Montesquieu tem consciência de que o absolutismo real a corrupção da aristocracia e a riqueza da classe média são responsáveis pela decadência da monarquia Existe despotismo onde um homem governa como deseja sem respaldo da lei Ao descrever este tipo de governo Montesquieu em geral utiliza exemplos dos impérios do Oriente Próximo e do sul asiático tal como em As cartas persas foi conveniente falar dos despotismos europeus teológicos ou seculares por meio de comparações explícitas ou implícitas com os do oriente O despotismo emprega um administrador chefe político ou vizir que governa enquanto o déspota comete excessos Seu princí pio é o medo despertado pelo exercício da força bruta em particular sobre os grandes que caso contrário oprimiriam as massas Desta forma o despotismo desempenha uma determinada íimção pública mas também depende de seus súditos não serem 4 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibid III vi dotados de virtude honra e conhecimento pois estes sâo perigosos para o rime É o mais desumano infestado de vícios e estúpido dos governos todavia prevalece entre a humanidade O governo moderado exige condições especiais e habilidades especiais e portanto só é alcançado com dificuldade Na Ásia em particular o clima e a geografia se combinam para tomar o despotismo inevitável Este se desenvolve de maneira natural entre uma população numerosa porém tímida que ocupa um terri tório imenso Desta forma um só homem que governa pela força pode manter o país unido e evitar o único mal maior a anarquia Além disso nesses casos o despotismo é intrinsecamente incapaz de aprimoramento essencial sua própria existência depende da utilização permanente da violência cruel e sanguinária Dentre as quatro formas de governo duas republicanas fica evidente que Mon tesquieu considera a democracia como a melhor e o despotismo como a pior É mais difícil decidir exatamente por quê Para ilustrar a democracia é mais elogiada pela virtude dos seus cidadãos que pela liberdade e segurança que lhes proporciona Toda via esta virtude é denominada paixão ou sentimento algo que cada cidadão sente por ter sido criado dentro dessa comunidade Isto significa que a virtude fimdamentada na razão ou entendimento em vez de na paixão a qual podemos denominar virtude racional não tem status quer na democracia ou nas formas políticas inferiores a ela Em suma toda virtude que possui significado político permanece no nível de pakão e preconceito Porém se a virtude democrática não estiver em um nível muito mais elevado que o desejo de liberdade e segurança deve o filósofo político valorizar a de mocracia primordialmente por sua virtude Há outra solução para a mesma dificuldade Examinada do ponto de vista po lítico é valiosa a paixão da virtude porque contribui para uma democracia saudável Sua fimção é portanto proveitosa para algo além de si mesma que é o objeto de íato desejado Uma democracia pode ser comparada a uma fiunília em que algo como um egoísmo coletivo vitaliza seus membros que identificam seu próprio bem com o bem comum Essa ideia é coerente com a visão das necessidades humanas apresentadas no Livro I Neste a virtude nunca é apresentada como uma necessidade natural da alma desejável por si mesma da mesma forma que a saúde do corpo é desejável A sociedade se origina e permanece a serviço das necessidades corporais tais como a autopreserva ção a surança econômica e a satisfiição sexual Se assim for a virtude bem como a liberdade e a igualdade da democracia teria de ser valorizada como o recurso político que melhor satisíàz tais necessidades Mais tarde voltaremos a examinar a relação en tre a vida política e os bens da alma 3 L ibe r d a d e Po lític a Até este ponto da análise não foi introduzida qualquer forma de governo que tivesse a liberdade como princípio A situação é remediada nos Livros XI a XIII e no último capítulo do Livro XDC A Inglaterra moderna é o único país cujas leis têm a M o n t e s q u ie u 4 6 7 liberdade como seu intuito direto A liberdade do ponto de vista político é o direito de fazer o que as leis permitem Possui dois aspectos uma constituição equilibrada e a percepção de segurança jurídica do cidadão com a primeira contribuindo para a última Seu primeiro requisito é a separação dos três poderes do governo executivo legislativo e judiciário de tal modo que fiquem em mãos diferentes Se quaisquer dois ou todos estiverem combinados nas mesmas mãos o poder estará por demais concentrado e será pouco controlado Montesquieu não divide os poderes do governo exatamente da mesma forma que Locke Locke distinguira a fimção de executar a política externa e a denominara poder federativo e incluíra simultaneamente a execução das leis nacionais e o julgamento dos infratores da lei no título poder executivo O que Montesquieu faz é juntar em um só poder a execução das leis nacionais e da política externa ao mesmo tempo em que concede independência ao poder judicial Seu propósito em suma é garantir ao cidadão uma segurança ainda maior do que era possível dentro do sistema de Locke É preciso distinguir cuidadosamente entre a análise de Montesquieu e a análise tradicional ou aristotélica dos poderes do governo Aristóteles fala das fiinçóes deli berativa dos magistrados e judiciais A primeira tem a ver com a deliberação acerca de assuntos comuns ou dos assuntos comuns mais importantes como fezer a guerra e a paz e de política externa em geral legislação julgamento dos crimes mais graves e nomeação de magistrados A dos magistrados é ligado à autoridade de emitir ins truções e ordens em áreas mais limitadas tal como estratégia ou finanças O judicial tem a ver com o julgamento de delitos e a conciliação de disputas que náo sejam as mais graves Isso deixa claro que Aristóteles incluiu na esfera deliberativa funções que Montesquieu teria distribuído entre todos os seus três poderes Além disso Aristóteles pensa na fimção dos ministrados em termos de várias magistraturas independentes enquanto Montesquieu em essência concebe o poder executivo como uma unidade Acima de tudo Aristóteles não toma como um princípio a distribuição dos três pode res entre diferentes homens muito pelo contrário como mostra sua função delibera tiva A maior liberdade seja na forma procurada por Locke ou Montesquieu não lhe pareciam coerentes com as necessidades de qualquer regime saudável muito menos com as necessidades do regime dedicado à vida boa Em sua relação com a constituição a liberdade política exige náo só que os três poderes sejam separados mas que se constituam de maneira específica O poder judi cial deve ser confiado a júris ad hoc compostos de pares do réu sendo os julgamentos determinados de forma táo precisa quanto possível pela lei escrita O poder legisla tivo deve ser dividido Sua parte principal deve ser atribuída a representantes devida mente eleitos de todo o povo e o direito ao voto só será negado àqueles cuja situaçáo é táo abjeta que náo se acredita que tenham vontade própria Os ilustres pelo nasci mento riqueza ou honras devem constituir um conjunto de nobres que protege seus privilégios hereditários por meio de sua atuaçáo como a segunda metade da legislatura O executivo deve ser um monarca cujo controle sobre a legislatura consistiria de um poder de veto e cujos ministros por sua vez poderiam ser examinados e punidos pela legislatura embora de acordo com a lei ele próprio náo possa ser removido 4 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Montesquieu considera a Inglaterra assim descrita nâo apenas como mais livre porém mais justa e em alguns aspectos mais sábia que as repúblicas da Antiguidade ou que a democracia que descreve A primeira vantagem da Inglaterra é a clara sepa ração entre os poderes e o mecanismo de controle incorporado nos ramos legislativo e executivo A segunda é a representação da opinião pública por meio de um ramo do poder legislativo que assim está livre para discutir assuntos legislativos e para se abster de decisões executivas de uma forma impossível para a cidadeestado da Anti guidade Além disso o poder judicial é menos ameaçador e mais justo Finalmente o executivo único embora não comparável em sabedoria a um corpo como o senado romano deterá no entanto uma grande quantidade de poder concentrado e motivos suficientes para exercer com vigor esse poder Não se pode esperar que um governo constitucional desse tipo funcione sem uma quantidade considerável de atrito inter no de modo que algum sacrifício da qualidade e tranqüilidade no funcionamento do governo é o custo necessário da liberdade Montesquieu faz a alegação ambígua de que essa liberdade se firma nas leis da Inglaterra quer esta liberdade seja ou não desfrutada de feto pelo povo inglês Apesar disso Montesquieu se atém de forma evidente à lógica da liberdade tal como a enten de ao contrário da realidade da Inglaterra em meados do século XVIII O feto de que não chamou atenção para o muito limitado e irregular sufrágio do povo e para a dis tribuição muito irregular dos assentos na Câmara dos Comuns devese sem dúvida a ter considerado tais realidades deficientes do ponto de vista da liberdade Da mesma maneira o feto de terse recusado a descrever a tendência para a íusão dos poderes exe cutivo e legislativo que mais tarde ficou conhecida como governo de gabinete pode muito bem ser explicado por sua crença de que eram prejudiciais à liberdade A principal vantagem da Inglaterra sobre a mais livre das nações da Antiguidade a República Romana é ter enfraquecido o poder direto e maciço do povo e concedido tanto a nobres e plebeus uma quase inexpugnável autoridade mutuamente limitante Contudo ainda não se comprovaram as principais distinções entre o que significava a liberdade para a Inglaterra e o que significava para as repúblicas da Antiguidade Pois não basta possuir uma constituição adequada também são necessárias leis adequadas para que o cidadão usufrua o máximo em termos de segurança jurídica Aqui são de importância crucial as leis penais as quais têm uma função semelhante à da Declara ção de Direitos na Constituição dos Estados Unidos Montesquieu distingue quatro tipos de crimes contra a religião contra a moral contra a tranqüilidade e contra a segurança O resultado líquido de sua análise é tornar impossível em um estado livre processar o sacrilégio por meios legais ou punir a torpeza moral exceto em questões sexuais Também são definidas limitações para a perigosa acusação de traição e os es critos só devem ser julgados criminosos quando abrem caminho para atos de traição Finalmente os processos e sanções legais devem ser concebidos de forma a garantir um tratamento justo na medida do possível Começa a revelarse agora na sua verdadeira dimensão a distância que separa a república fundamentada na virtude e a Inglaterra moderna Possuem uma semelhança M o n t e s q u ie u 4 6 9 básica ambas são repúblicas feto este que o passado monárquico da Inglaterra tende a mascarar Exemplificam a avaliação de Montesquieu de que o melhor dos governos terá uma sólida base popular que garantirá sua preocupação com o bem comum Po rém a Inglaterra encarna o individualismo cada cidadão tendo liberdade para viver como bem lhe aprouver A religião é um assunto particular do indivíduo assim tam bém é a escolha de seu modo de vida A investigação filosófica tem a privacidade de que necessita as artes e as ciências tém liberdade de expressão A Inglaterra afestase da conformidade do ror e da curiosidade da virtude democrática Longe de ser uma exigência da Inglaterra moderna a virtude chega a lhe ser perigosa É preciso ir um passo além na análise da Inglaterra Sua liberdade não é apenas de ações e pensamentos mas de paixões Ser livre é principalmente atender aos próprios anseios pelo dinheiro prestígio e poder A Inglaterra é capitalista foram removidos os limites morais sobre a interminável aquisição competitiva Seu paralelo no campo da ambição é a política partidária A Inglaterra é a moderna Atenas uma república comer cial ao invés de uma república militar ou agrícola Auxiliado por seu poder naval seu imperialismo é comercial e não militar Porém como se mantém o espírito do comércio sem que se destrua pelo luxo excessivo e pela devassidão Elevados impostos mantêm os homens trabalhando e despesas frívolas são presumidas condenáveis embora não fique daro se por motivos religiosos ou de negócios Além disso a extrema intensidade da concorrência e da constante abertura de novas opormnidades econômicas fezem da devassidão a exceção e não a regra Nem podem os dissolutos ter ainda a influência de que desimtaram dentro dos limites estreitos da ddadeestado Em suma a avareza e a ambição constimem os fimdamentos morais do sistema inglês não seu inimigo mortal O interesse próprio de cada homem sustenta seu amor pda liberdade e seu patriotismo Na Inglaterra a liberdade dos muitos cheios de paixão garante a liberdade dos poucos ponderados Montesquieu não nega que os vícios dos ingleses merecem a amar ga sátira de um Juvenal mas ele próprio não fez tal sátira Isso ocorre porque o sistema inglês obtém benefícios para todos a partir dos vícios que permite e incentiva A máxi ma segurança jurídica a participação de todos no governo e a atividade no comércio produzem um cidadão orgulhoso de sua independência esperançoso de melhorar sua condição mas totalmente cego ao feto de que é escravo das paixões vulgares A Ingla terra é uma sociedade secularizada interessada em bens terrenos Não precisa de uma religião ou virtude democrática em comum para fornecer uma argamassa para a união da comunidade e portanto pode permitir mais privacidade e liberdade de expressão que a própria Atenas da Antiguidade Com um original sistema constitucional por meio do qual o esforço em prol do interesse próprio é moldado de forma perene a Inglaterra descobriu como adiar quase indefinidamente o colapso interno 4 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibid XDC xxvii início 4 N atureza Só é possível avaliar a plena relevância da Inglaterra e do comércio para o pensa mento de Montesquieu quando se compreende a sua concepção do homem natural ou primitivo e do ambiente natural em que existiu de início O segundo capítulo do Li vro I fez com que prevíssemos um tratamento histórico do desenvolvimento humano ao deixar o estado de natureza Esta abordagem também aparece nos trechos iniciais do terceiro capítulo contudo em seguida nossa atenção é abruptamente transferida daquilo que é natural ao homem no sentido de original para o que é natural no sentido de melhor Em outras palavras começamos a pensar nas coisas humanas avançadas e posteriores Essa mudança de assunto prossegue nos Livros II a XIII onde são discutidas formas aperfeiçoadas de governo Os livros XIV a XVIII contudo des tinamse a satisfazer à expecutiva original Seu assunto é o ambiente e os primórdios naturais do homem cuja importância pode explicar a localização central desses cinco livros na obra como um todo Os temas tratados são primeiro os efeitos do clima sobre o corpo e a alma e sua relação com diversas formas de escravidão em segundo lugar a relação entre a geografia e a sociedade humana primitiva Material recolhido a partir de referências às condições primitivas em outros livros ajudará a completar o quadro daquilo que o homem era e é por natureza Montesquieu exibe toda a força de seu naturalismo ateleológico no primeiro livro sobre o clima A temperatura por influenciar o corpo humano influencia a mente e as paixões Em climas quentes os homens são mais sensíveis aos prazeres e às dotes e por tanto mais sensuais mais tímidos mais preguiçosos Um clima frio tem efeitos opostos enquanto a zona temperada é indeterminada Assim são despertadas tendências e ne cessidades diferentes diferentes possibilidades morais enquanto as virtudes em si por exemplo a corsem a temperança a justiça variam radicalmente com o clima em sua viabilidade e desejabilidade Em geral o problema do legislador é assegurar que sejam atendidas pelo menos as condições mínimas para a sociedade Montesquieu não indaga que condições climáticas produzem os melhores seres humanos Tal como indicam os títulos dos livros relevantes chega a salientar a conexão entre o clima e a escravidão hu mana mas não entre este e a liberdade humana O clima estabelece limites naturais para a expansão de um governo livre moderado ou não despótico ou o que é mais comum o homem é súdito e não senhor do dima É estranho portanto que Montesquieu dê tão pouca atenção no Livro XIV aos climas temperados e seus efeitos pois não há uma ligação óbvia entre essas áreas de indeterminação e a civilização a menos que deseje en fetizar a natureza rara e acidental daquilo que sustenta as coisas humanas mais elevadas Dadas as variações causadas pelo clima como teria sido a primeira sociedade humana Montesquieu não fala abertamente sobre as relações femiliares originais mas sugere que abrigariam alguns dos segredos mais profundos da humanidade Com toda a probabilidade a família não existia originalmente como unidade estável mas se de senvolveu a partir da situação de promiscuidade Já se haviam desenvolvido proibições ao incesto proporcionando assim uma base para a paz e cuidado mútuo O homem M o n t e s q u ie u 4 7 1 governava a família com sua força superior e a mulher permanecia em uma posição subordinada e até mesmo servil Nessas condições era muito diíundida a poligamia que é uma necessidade permanente apenas nos climas quentes bem como as institui ções de serralho ou harém que a preservam As sociedades primitivas ou sâo selvíens ou são bárbaras o que dependerá de os homens como caçadores permanecerem em tribos isoladas ou como pastores serem capazes de se unir em uma horda Sua organização frouxa permite grande liberdade a cada homem e a ausência de dinheiro propicia uma quase igualdade de posses e portanto pouca exploração A autoridade política está nas mãos do mais forte dos sá bios e dos velhos As guerras são duras e a captura de escravos uma prática normal A punição do crime por sua vez é brutal e cruel Finalmente a religião e muitas vezes os sacerdotes já exerce uma forte influência Esta imitem do homem primitivo pode ajudar a esclarecer o verdadeiro signifi cado da lei natural A lei natural consiste naqueles direitos e deveres de indivíduos ou nações que deveriam ser respeitados em toda parte devido ao bem em que resultam Neste sentido a lei natural é natural à humanidade Mas náo é natural no sentido de ser originalmente conhecida pelos homens ou pretendida originalmente por motivos morais A lei natural tem dois polos por um lado o direito à autopreservação e à liber dade dos indivíduos e das nações por outro as obrigações mútuas que unem os mem bros da família Somente estes deveriam ser universais entre os homens Na verdade os vários artigos da lei natural diferem quanto ao grau em que sáo de fato respeitados e também quanto ao momento de sua origem na história humana Em dois aspectos a versão da lei natural de Montesquieu foi muito além da prá tica até mesmo das nações civilizadas A escravidão privada segundo ele só é legítima em um caso o de uma escravidão moderada e contratual dentro de um despotismo político Quanto à necessidade da escravidão implacável Montesquieu favorece a vi são de que é possível obter mão de obra gratuita para realizar até mesmo a pior das tarefas mesmo nos climas mais tórridos vrgumenta contra Aristóteles que a escra vidão é ruim tanto para senhores como para escravos e que por natureza homem al gum nasceu para ser escravo Recusase também a aceitar a reivindicação dos juristas romanos de que a captura na guerra e o endividamento são motivos suficientes para a escravização Ao mesmo tempo no entanto admite que todos os homens têm um proílindo desejo de desfrutar do trabalho servil de outros homens Montesquieu parece ter pensado que os esforços do cristianismo para acabar com a escravidão na Europa poderiam difiindirse com a ajuda do Iluminismo cosmopolita e um apelo às simpatias humanas É menos otimista quanto à possibilidade de acabar com a guerra mesmo dentro da Europa Apesar da moderna atenuação do combate em si e da maior condescendência nos acordos de paz náo se pode dizer que a tendên cia europeia à paz seja maior do que antes e a Europa continua armada até os dentes Montesquieu asseguranos de que a única guerra justa é a de autodefesa e o único tra 472 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 8 7 XVIII xiii XXVI xiv XVI ii tamento justo de um território conquistado é aquele que visa preservar a conquista ao invés de destruir ou oprimir os vencidos Todavia é forçado a admitir que as relações internacionais sempre foram e sempre serão conduzidas com base no autointeresse e na força ao contrário de acordos ou preocupação com direitos de outros Nações dignas negligenciam este fiito a seu próprio risco Parece necessária a conclusão de que será mais difícil convencer a humanidade a desistir da guerra do que da escravidão Esses exemplos também mostram que a lei natural enquanto ditames da razão humana para o bem até certo ponto demandam uma restrição das tendências ao amorpróprio que são namrais ao homem É provável que as leis naturais observadas em toda parte por exemplo em relação à fiunília não se tenham originado de in tenções racionais e justas mas de algumas das paixões geradas pelo amorpróprio As leis namrais menos cumpridas talvez constituam ditames da razão que não conseguem difiindirse precisamente porque sua base nas paixões humanas não tem profundidade suficiente Parece portanto que os dons naturais ou originais do homem não o prepa ram diretamente para se tornar um ser moral e reflexivo Maquiavel e Bacon suscitaram a dúvida quanto ao fato de em tempos moder nos as necessidades naturais e sociais e o acaso definirem ou não limites para o que o conhecimento a vontade e o poder humanos poderiam realizar Locke sierira que os homens poderiam estabelecer em toda parte sociedades livres segundo o modelo inglês o que tinham o direito de fàzer ou seja substituir antigos regimes de todo tipo pelo novo individualismo era passível de realização Montesquieu compartilha dessa admiração pela liberdade moderna e ainda vai além de Locke na concepção de salvaguardas para ele Contudo o modelo inglês é absolutamente impossível na Ásia e muito improvável mesmo na maior parte da Europa A Ásia é o lar natural de todo tipo de escravidão privada marital e política O fato de que a Ásia carece de uma zona temperada e porque o caráter de suas barreiras naturais não a predispõe a formar estados de porte médio tem fàvorecido despotismos no sul conquistas despóticas do sul pelo norte e virtual imobilidade em seu modo de vida e costumes ao longo dos séculos As oportunidades para o governo moderado são muito maiores na Europa até então de longe a área mais interessante do mun do Contudo Montesquieu não recomenda revoluções contra as antigas monarquias europeias em uma tentativa de imitar a liberdade inglesa Essa liberdade é peculiar por um lado parece depender de coisas fàcilmente sujeitas à imitação por exemplo a emancipação das paixões egoístas e o estabelecimento de um mecanismo constitucio nal todavia a posição insular da Inglaterra a sua história particular e seu clima têm uma especial ligação com suas leis Mesmo neste caso então Montesquieu tenta resta belecer para a posição moderna um reconhecimento prudente da necessidade de uma variedade de ordens políticas Coloca limites para o que o esforço humano consciente pode alcançar mas também deve ser dito que esses limites vão muito além do que os clássicos acreditavam necessário ou sábio M o n t e s q u ie u 473 óXiiiiiXXVIxx 5 C o m ér c io Agora temos uma concepção dos deficientes primórdios naturais do homem e do ponto mais elevado que pode atingir o regime da moderna liberdade Os dois são ligados pelo desenvolvimento do comércio Montesquieu foi o primeiro grande filó sofo político a considerar o comércio digno de extenso tratamento empírico em sua obra principal Dos vários elementos que participam do espírito das leis é o único que conta com um livro independente dedicado à sua história ou revoluções Em sua análise das sociedades primitivas Montesquieu entende a introdução da Ericultura como a causa da introdução do dinheiro Há uma interação constante entre as necessidades do homem e seu conhecimento novas necessidades incentivam a busca de novos conhecimentos novos conhecimentos incentivam o crescimento de novas necessidades A arte da agricultura implica a existência prévia de inúmeras habilidades especializadas e aumenta a necessidade de algo material para servir como meio de troca e padrão de valor o dinheiro Uma vez inventada a forma metálica do dinheiro são vas tamente ampliadas as oportunidades para aumentar as desigualdades entre os homens No entanto as trocas internas ainda não constituem o comércio internacional e além da conquista a principal fonte da multiplicação da riqueza de um povo avaliada em termos de variedade e abundância de bens de consumo é o comércio internacional O comércio propicia a riqueza a riqueza leva ao luxo o luxo à perfeição nas artes Em sua história do comércio Montesquieu menciona a poesia de Homero e chama aten çáo para a perfeição do gosto e das artes plásticas nas cidades da Grécia antiga Não há qualquer menção à poesia no livro sobre as sociedades primitivas Montesquieu denomina comércio à comunicação entre os povos De duas ma neiras esta comunicação se relaciona com a civilização do homem ou seja com a re dução da barbárie A primeira é através da riqueza e das artes a segunda através da filosofia A tribo ou nação que não consegue participar do comércio é caracterizada por superstição preconceito e ignorância inatos bem como por costumes bárbaros Assim a condição original ou natural das sociedades humanas é gravemente imperfeita O comércio lança as bases para que se escape desse provincianismo Favorece a comparação entre diferentes formas de vida Faz possível questionar crenças ancestrais Permite que os homens descubram mais a respeito da natureza Em suma torna possível a filosofia a busca coerente ou consciente do conhecimento da natureza e do homem É curioso que Montesquieu não aponte para a filosofia da Grécia antiga Ainda mais surpreendente é sua incapacidade de chamar a atenção para a grande revolução na filosofia natural que considerava a característica mais importante da modernidade Porém a citação de Virgílio que epigrafa o primeiro livro sobre o comércio fornece indicação suficiente as coisas que ensinou o poderoso Atlas Eneida I 740 referese a uma variedade de temas dentro do estudo da natureza Foi a revitalização do comércio que incentivou a reto mada da filosofia assim como o abrandamento do barbarismo europeu no início dos tempos modernos O comércio e conhecimento juntos deram fim à Idade Média 474 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y O comércio se desenvolve por uma combinação de necessidades invenções e aci dentes Montesquieu descreve suas principais variedades suas origens frequentemente rústicas sua dependência da tecnologia sua descoberta de maneiras de enganar os tiranos sua moderna extensão global e finalmente sua complexa organização finan ceira Os efeitos do comércio são amenizar e lapidar costumes bárbaros ao mesmo tempo em que corrompe os costumes puros incentivar as artes e ciências conduzir em direção à paz ao promover a união entre as nações via suas necessidades e elevar os padrões de vida Dentre esses fatores Montesquieu parece menos interessado no último percebido como um íim em si mesmo Tampouco demonstra simpatia pelos lucros do comerciante os maiores benefícios do comércio são as conseqüências menos óbvias não intencionais do egoísmo do comerciante O livro que une a discussão do homem natural ou primitivo por Montesquieu e sua ampla discussão de acordos comerciais trata do espírito geral das nações Co meça por advertir contra a tentativa de forçar todas as nações a caberem no mesmo molde em seguida aponta que as virtudes e vícios morais são diferentes de virtudes e vícios políticos e termina por revelar que as fundações da moderna Inglaterra estão nas paixóes egoístas da avareza e da ambição A ideia de que as virtudes políticas exigidas de seus cidadãos por uma ordem política imperfeita podem na realidade ser vícios morais era a pedra angular da íiiosofía política clássica só raramente ou nunca foram idênticos o bom homem e o bom cidadão Contudo Montesquieu tem em mente algo muito mais desconcertante as mais elevadas coisas humanas são ocasionadas pela ação de vícios morais e a melhor ordem política depende de tais vícios Esta compreensão da vida humana Montesquieu aprendeu com Maquiavel e seus seguidores não com os clássicos Estes últimos condenavam o comércio como avareza institucionalizada usavam palavras duras para o empréstimo de dinheiro e favoreciam os regimes que tinham uma base agrícola não comercial Porém isso eqüivalia a desejar os frutos do comércio as ciências e as artes sem o comércio em si Se as atividades populares ou vulgares geram e nutrem as mais elevadas atividades do homem colocálas em perigo póe em risco as coisas mais elevadas que não são capazes de perdurar de forma independente Removase o comércio e as viagens como na Idade Média e se arruina a íilosoíia A íilosoíia é sustentada pelo cosmopolitismo e o cosmopolitismo pelo comércio A íilosoíia mais livre está na Inglaterra que é altamente comercial A visão de Montesquieu não implica que as coisas produzidas indiretamente atra vés das ações da multidão são ou mesmo podem ser em completa harmonia com o caráter da própria multidão A filosofia é um bom exemplo Pode o povo ou a sociedade como um todo tornarse filosófica São capazes de esclarecimento no sentido radical A resposta de Montesquieu é dada no livro sobre o espírito geral de cada povo O espírito geral é formado pelo clima religião leis máximas políticas exemplos passados mares costumes O espírito ou a mente de uma nação é formado pela razão As nações vivem pela paixão e pelo preconceito não pelo entendimento O Esclarecimento para fàzer a vida humana menos bárbara ou desumana é possível mas mesmo este esclareci mento deve ser apoiado por um apdo as paixões quer seja o autointeresse ou a piedade M o n t e s q u ie u 4 7 5 e o preconceito peculiar à sociedade a que se liga Ou ainda a Inglaterra oferece as maiores oportunidades e segurança para a filosofia e as artes mas a Inglaterra náo é em si mesma nem filosófica nem poética As sociedades acreditam enquanto os filósofos questionam e as sociedades protegem a filosofia mais por uma preocupação própria do que com suas liberdades A filosofia e a sociedade por este motivo nunca são ligadas por verdadeira amizade Por seu lado o filósofo é moralmente obrigado a considerar dupla mente os efeitos sociais bons e nocivos de seus escritos daí o estilo de escrita atribuído a Montesquieu por dAlembert e a dissimulação da própria filosofia No princípio de sua obra Montesquieu distingue a obra do filósofo moralista e do legislador Para Aristóteles os objetivos políticos tem que ser compreendidos em termos da busca do bem total ética e política fazem parte de um único estudo com a primeira precedendo a última Para Montesquieu no entanto ética e política tem uma relação muito menos direta e como um legislador ele próprio nunca revela a moralidade filosófica ou verdadeira Falando estritamente o mundo político nunca pode ou é guiado por essa moralidade Porque virtudes políticas ou vícios políticos são todos paixões Assim sendo nenhum não filósofo pode ser virtuoso em qualquer grau Mas esta é uma doutrina mais radical do que a dos clássicos que consideravam homens do povo ou de uma virtude meramente movida pelo hábito como animados por um conhecimento muito incompleto mas no entanto verdadeiro da virtude Ele conclui por essa e por várias outras razões que vimos que o homem pela natureza não é um ser racional assim como também não é um ser filantrópico ou social os elemen tos da alma humana não tendem naturalmente para a perfeição moral e intelectual Seguese que as utopias e as quase utopias da filosofia política clássica são baseadas em premissas falsas Elas julgam e tentam guiar a natureza humana por padrões estranhos a elas e são utópicas por esta mesma razão O legislador filósofo ganha imensamente em efetividade dissimulando sua ética filosófica e fazendo uso prudente de suas pai xões reais e opiniões pelas quais as elites intelectuais e as grandes multidões podem ser dirigidas Mas então sua fimção muda antes ele era apenas um educador de filósofos e estadistas agora ele próprio é um manipulador de homens Os modelos aos quais ele recorre são aqueles com que o homem médio e melhor equipado pela natureza e pelo entendimento Seu duplo enraizamento é a autopreservação e a piedade Sem mais alto âmbito é a liberdade não a excelência 6 R eligiã o No Livro I Montesquieu sugerira de modo vago que Deus assistia o homem por uma revelação especial e que a atração do homem pelo Criador após a formação de uma ideia de Deus é a primeira das leis naturais em importância embora não no tempo Como se constata a religião é o último elemento do espírito das leis a ser discutido na obra Os dois tópicos imediatamente anteriores comércio e propaga ção preocupamse com as necessidades do corpo No livro que o sucede a religião 476 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o u t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 10 Ibid I i final é tratada de tal forma a obscureccr a distinção entre a lei verdadeiramente divina dos judeus e cristãos de um lado e as leis religiosas dos gentios do outro Também é ver dade que a obra pouco depende da história sagrada como tal embora às vezes traga exemplos dessa história Com relação à Idade Média cristã seu interesse maior é pelo componente feudal e nâo pelo cristão Montesquieu afirma nessa obra ser um escritor político não um teólogo Mas também alega que as duas qualificações são perfeitamente coerentes o cristianismo não é apenas verdadeiro mas também o maior bem terreno que a humanidade poderia possuir Âigumenta contra Bayle que os cristãos são os melhores cidadãos Todavia as ressalvas que atribui à afirmação deixam claro que considera os conselhos cristãos de perfeição incompatíveis com a vida política de modo que o cristão mais perfeito seria um cidadão muito ruim É esta visão que gera o louvor de Montesquieu às seitas estoicas da Antiguidade e aos grandes imperadores romanos os antoninos que estavam entre eles Os estoicos eram acima de tudo cidadãos ou seja não eram santos A princi pal fimção da religião e das leis civis é fàzer dos homens bons cidadãos e assim auxiliar cada sociedade a satisfezer suas necessidades Pois os mais verdadeiros e mais sagrados dogmas podem ter terríveis conseqüências se não forem ligados aos princípios da socie dade e os dogmas mais fàlsos conseqüências maravilhosas quando assim ligados Montesquieu critica vários aspectos dos efeitos sociais e políticos do cristianismo O cristianismo opôsse ao comércio e ao empréstimo de dinheiro na Idade Média ao fomentar a castidade conventual desencorajou o casamento e a propagação em toda parte era hostil à poligamia e ao divórcio promovia a desobediência civil em nome de uma lei maior por um zelo intolerante da universalidade voltava cristão contra cristão e cristão contra não cristão Entretanto também teve efeitos salutares na restrição de maquinações de déspotas e monarcas no auxílio tanto da abolição da escravidão como da mitigação da guerra na Europa Montesquieu tenta corrigir os seus excessos Ao contrário de Locke porém não fez da liberdade de consciência um direito natural e universal do homem Não é sábio um convite universal para o estabelecimento da diversidade religiosa Não é preciso aceitar uma nova religião em uma sociedade se é possível excluíla mas onde já há uma religião estabelecida esta deve ser tolerada 7 C onclusão A principal virtude do legislador segundo Montesquieu deve ser a moderação O autor salienta a habilidade prudente exigida pela habilidade política sua necessidade de determinar o tipo de lei a ser aplicada de compreender a rede de relações que compõem o espírito das leis e sua ligação com os elementos complexos de cada sociedade Embora a Europa fosse sempre seu principal interesse estendeu o alcance da explicação científica e da avaliação nos assuntos humanos a todas as épocas e lugares A frase que aplicou aos imperadores estoicos cailhe melhor ainda ele tomou conta da humanidade M o n t e s q u ie u 4 7 7 11 ó7 XXI xx XXIII xxi XXIV xiii XXV X 12 Ibid Prefece I iii XXVI i XXDC i A íilosoíiã de Montesquieu delineia e relaciona os papéis desempenhados pela necessidade cega e pela escolha fundamentada um outro tipo de necessidade na formação das leis Deriva dos clássicos sua ênfese na variedade de ordens políticas e a prioridade dos detalhes na habilidade política Contudo Montesquieu se junta a Maquiavel e Locke na rejeição da virtude clássica como o guia político fundamental Essa desaprovação condenou de antemão seus esforços para conter as tendências revo lucionárias e universalistas do liberalismo de Locke De fato posto que o retrato da li berdade ao contrário da virtude deve necessariamente encantar a todos sua descrição elaborada da própria liberdade inglesa veio a ser um instrumento desse liberalismo A mesma rejeição teve outro efeito ao transformar em um labirinto a relaçáo entre ética e política incentivou uma ciência política que perderia o interesse na moralidade e no exercício da política A superfície de O espírito das leis é simples e desordenada o interior é difícil e coerente O que dissemos pode ser suficiente para estabelecer a verdade da afirmaçáo de que tem uma organização Seus ensinamentos sistemáticos até mesmo seu título enigmático continuarão a nos iludir até que seus propósitos sejam entendidos por completo L e it u r a s A Montesquieu O espirito das leis Prefácio livros IV XI XII X K 11 27 B Montesquieu O espirito das leis Livros XIV XV XVIII XX XXI XXTV XXVI Montesquieu Cartas persas Montesquieu Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência 478 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y D avid H ume 17111776 David Hume é mais conhecido como cétíco como um afiado e profundo crítico da razão humana Na verdade afirmase às vezes que a filosofia de Hume desferiu um golpe mortal sobre o direito natural e eliminou a possibilidade de julgamentos de va lor racionais Assim a teoria de Hume é apresentada como um desafio para a própria existência da filosofia política o qual deve ser confiontado Porém estamos diante de um paradoxo Hume ele próprio é autor de uma doutrina política abrangente que se apresentava como sendo a verdade sobre temas como as leis da natureza a justiça a obrigação da obediência civil e o melhor tipo de govemo Nosso primeiro assunto ao que parece deve ser os ensinamentos de Hume acer ca dos fundamentos e da autoridade dos julgamentos nornutivos Esse assunto deve ser precedido por um breve exame de sua teoria dos princípios e das operações do entendimento Voltando sua observação para dentro da mente humana Hume lá encontra uma coleção e sucessão do que denomina percepções o sabor de uma maçã a ideia de um triângulo uma noção de justiça o apreço por uma ação pmdente raiva e assim por diante A percepção é o que quer que esteja presente na mente e nada está presente na mente além de suas percepções De fiito a mente nada mais é que um amontoado ou febce de percepções Há dois tipos de percepção Existem impressões o que está em nossa mente quando ouvimos ou vemos ou sentimos ou amamos ou odiamos ou desejamos ou determinamos Existem ideias o que está em nossa mente quando refletimos sobre uma pabcão ou um objeto que não está presente A diferença entre impressões e ideias é uma diferença em sua gradação de força e vivacidade as impressões são mais fortes e vivas que as ideias Todas as ideias afirma Hume derivam de impressões Ora é verdade que a ima ginação é muito livre e podemos imíinar montanhas de ouro e cavalos alados que nunca vimos no entanto essas ideias são compostas a partir de outras ideias Quanto às ideias simples aquelas ideias irredutíveis que não admitem distinção ou separa ção descobrimos que não está em nosso poder imcinar qualquer coisa que não Xr responda e represente alguma impressão que tenhamos experimentado anteriormente Tal como um cego não pode conceber uma ideia do roxo nem um surdo do som de uma flauta assim em geral nunca podemos pensar em algo que náo tenhamos visto ou de alguma forma percebido nós mesmos ou sentido em nossas próprias mentes Todas as nossas ideias sâo apenas imagens ou cópias de impressões Não podemos ter conhecimento no sentido mais amplo e com certeza absoluta afirma Hume sobre questões de fato e de existência real mas apenas sobre as relaçóes entre ideias Podese explicar isso da seguinte forma é tido como uma máxima esta belecida que tudo o que é concebível é possível Ora o contrário de cada afirmação de matéria de fato é sempre concebível Posso imaginar que o sol náo nascerá amanhã por conseguinte náo tenho conhecimento de que nascerá Não posso ter certeza de que os objetos diante de mim continuarão a existir quando fechar meus olhos pois é ima ginável que náo o farão Nâo podemos ter conhecimento daquilo que se pode pensar ser de outra forma O conhecimento portanto só pode ser daquilo que náo se pode pensar ser de outra forma daquilo que só pode ser pensado como é Por exemplo náo é concebível o contrário da proposição os ângulos de um triângulo sáo iguais a dois ân gulos retos a relação entre os ângulos de um triângulo e dois ângulos retos deve ser pensada como sendo o que é Posto que o reino das possibilidades é o lugar onde a ima ginação é livre então a necessidade deve ser localizada onde se limita a imaginação Os únicos objetos do conhecimento entáo sáo essas relações de ideias que de pendem inteiramente das ideias que comparamos entre si Só podemos conhecer o que está necessariamente implícito em nossas ideias em certo sentido só podemos tirar de nossas ideias o que nelas colocamos Por exemplo é correta a proposição onde não há propriedade náo há injustiça ao passo que a ideia de injustiça é apenas a vio lação da propriedade Porém isso nada mais é do que desembrulhar o que embalamos antes Ademais Hume parece pensar que mesmo as demonstrações dos matemáticos são meramente formas mais longas e complicadas desse tipo de processo de extração Observemos também que os objetos do conhecimento são as relações entre ideias consideradas como ideias Ao comparar ideias nada podemos aprender sobre algo que náo seja uma ideia Nâo podemos ter nenhum conhecimento estritamente falando do mundo da realidade mas apenas do mundo das ideias O princípio tudo o que é concebível é possível merece um exame mais apro fundado Ora há muitas declarações afirma Hume cujo contrário é concebível mas que no entanto temos o direito de aceitar com total segurança por exemplo que to dos os homens morrerão Na verdade Hume considera todas as matérias de fato como partes de um sistema de necessidade universal O que entáo signiíica dizer que tudo 480 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y David Hume Treatise ofHuman Nature ed L H SelbyBie Oxford Clarendon 1896 I i 1 Enquiry Conceming Human Understanding ed L A SelbyBigge Oxford Clarendon 1894 2 Human Understanding 4 I primeiras duas partes uma afirmaçáo anterior e menos satisfatória aparece em Treatise I iii 1 Treatise I iii 11 início e 125 o que é concebível é possível ou não é absolutamente impossível ou é possível pelo menos em um sentido metafísico Além disso por que deve este princípio que parece não ser autoevidente ser considerado uma máxima estabelecida Em resposta podese dizer que em certo momento na história da filosofia co meçouse a pensar que a desordem a contradição e a ignorância que prevaleciam na filosofia eram uma desgraça que deveriam ter fim e o edifício da razão humana ser erigido sobre uma base totalmente inabalável Porém uma fundação inabalável só poderia ser assurada por se permitir já de início o mais profundo controle ao ceti cismo A fim de que a filosofia possa ser indubitável é necessário começar por duvidar de tudo o que se pode duvidar Ora a máxima estabelecida de Hume deve ser entendida como um instrumen to deste tipo de ceticismo preliminar O ponto de partida da filosofia é a resolução de duvidar A área de dúvida será tão extensa quanto a área do meramente possível Assim suie a necessidade de regular nosso raciocínio por esta máxima estabeleci da que expande o possível até aquilo que é possível conceber e como conseqüência restringe o necessário ao que é necessário para conceber De fato a máxima pode ser considerada como um ceticismo preliminar em sua forma mais nua obriganos a duvidar sempre que não somos obrigados a ratificar Enquanto Descartes em cuja filosofia a necessidade da dúvida universal é tão claramente preconizada afirmou que a liberdade da mente pela qual se supõe que nenhum objeto é de cuja existência se tenha sequer a menor das dúvidas em Hume a mente supõe podese dizer que nenhum objeto é cuja existência não seja obrigada a admitir A principal preocupação de Hume não é com esse típo de radodnio que através da intuição ou da demonstração descobre as relações entre as ideias mas sim com o raciod nio prorável pelo qual descobrimos a matéria de fàto e a existência real e que nos orienta durante toda nossa vida e de fato gera a maior parte da nossa filosofia Ora todo o nosso raciocínio sobre a matéria de feto se baseia afirma Hume na relação de causa e efeito Sem causalidade não podemos ir além de nossos sentidos e memória pela causalidade so mos capazes de inferir a existência de objetos e ocorrências para além de nossa experiência Assim a discussão da probabilidade resolvese em um exame da causalidade Hume começa por suscitar dúvidas céticas em relação a causa e efeito Exami nemos um caso particular da inferência da causa para o efeito Por exemplo vemos uma bola de bilhar atravessar a mesa e atingir outra Concluímos que a segunda se moverá Qual é a base para essa conclusão Não nos é dada a conhecer pela razão pois é possível conceber que a colisão não seja seguida por um movimento Deve portanto ter base na experiência no passado já vimos bolas colidirem e serem impulsionadas Porém continua a ser concebível que não o fizessem neste caso partícular A inferên cia então tem base na experiência juntamente com a suposição de que o futuro se assemelhará ao passado Entretanto qual é a base para este princípio Não é a razão porque é concebível que o futuro não se assemelhe ao passado A experiência então mas como podemos aprender com a experiência o próprio princípio que por si só torna possível aprender com a experiência D a v id H u m e 481 Parece que estamos num beco sem saída Contudo ora Hume apresenta sua solução cética para essas dúvidas céticas Quando observamos um evento que se sucede a outro em várias instâncias a mente adquire o hábito de contemplálos juntos Então quando vejo uma bola de bilhar bater em outra minha imaginação caindo em uma roti na mais àmiliar é leida a pensar no movimento da sunda bola E não somente formo esta concepção mas acredito nela o que significa simplesmente que me proporciona uma sensação diferente das ideias em que não acredito É difícil descrever tal sensação a ideia é concebida de maneira mais forte ou mais vivida ou mais firme de modo que passa a fezer parte daquilo que denominamos realidade juntamente com as impressões e as ideias da memória Em suma todos os raciocínios sobre a causalidade nada mais são do que os efeitos do costume e o costume não tem influência apenas estimula a imaginação e nos proporciona uma concepção forte de qualquer objeto Outra questão é investigada a ideia de causa e sua origem Observamos por exemplo uma bola de bilhar bater em outra sendo a causa como se diz de que esta se mova De que impressão se deriva a ideia de causa Observamos que a colisão das bolas e o movimento da segunda são eventos contíguos que um ocorre antes no tempo em relação ao outro e finalmente que ao serem repetidos constatase que essa conjunção de eventos é constante Isso é tudo Todavia há mais na ideia de causalidade que prio ridade contiguidade e conjunção constantes em geral supomos que há uma conexão necessária entre os dois eventos De que impressão advém isso Responde Hume de nada nos objetos mas de algo na mente ou seja o sentimento de ser obrigado ou im pelido a passar na imaginação da causa para o efeito Equivocadamente transferimos essa impressão para os próprios objetos entretanto de feto a necessidade não está nos objetos mas em nós mesmos O argumento que foi esboçado anteriormente segue um padrão que se repete com frequência na filosofia de Hume O que é aceito sem questionamento pelo senso comum aqui a causalidade em outros lugares a existência de um mundo de objetos que não depende de nossa percepção deles e ainda em outros lugares até mesmo a existência continuada de um eu pessoal é considerado como não tendo nenhuma base racional Porém é dissolvido somente para ser restaurado A natureza é forte demais para a razão E é fornecido um relato do modo como a razão é superada En tretanto esta superação é de natureza duvidosa As dúvidas céticas não são refutadas Nem são simplesmente afestadas em nome do bom senso da forma em que o Dr Johnson refutou Berkeley chutando uma pedra Recebem uma solução mas uma solução cética O que é restaurado não é bem o que foi dissolvido Assim a infe rência da causa para o efeito é um hábito a crença no que é inferido é um sentimento inexplicável a ideia de causa é um erro Por assim reduzir o raciocínio causai a uma questão de costume e sentimento Hume expõese a dificuldades na tentativa de distinguir e justificar o raciocínio correto 4 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 4 Ibid 2 3 4 6 7 e 14 Human Understanding 4 5 e 7 5 Treatise I iv 2 e 6 Por exemplo ao observar diversas instâncias de conjunção de objetos é engendrado um hábito de transição mental embora na realidade essas instâncias possam não ter nenhuma conexão essencial Podemos para usar o exemplo de Hume considerar todos os irlandeses como estúpidos mesmo diante de claras evidências em contrário Tratase de um preconceito e o julgamento deve ser conclamado para ajustar a ima ginação Mas como é isso possível Hume explica que as regras gerais denominadas preconceitos são corrigidas por outras regras gerais denominadas regras de lógica baseadas na observação da natureza e nas operações do entendimento e que nos permi tem distinguir o essencial do não essencial O hábito é vencido pelo hábito No entan to o hábito só poderia ser superado por um hábito mais forte Todavia Hume afirma que estas rras de raciocínio são derivadas da observação não de um maior número de instâncias mas das operações mais gerais e autênticas do entendimento Outro problema como é que podemos chegar a um juízo sobre a causa e o efeito depois de apenas um experimento cuidadoso O hábito de íázer uma transição mental de um objeto para outro deve ao que parece variar proporcionalmente ao número de instâncias de sua conjunção que observamos o qual seria pequeno após uma só ins tância Como pode o hábito exceder a experiência Hume replica que incluímos nossa experiência única dentro do princípio de que objetos semelhantes em circunstâncias semelhantes produzem efeitos semelhantes e o hábito de transição é produzido de modo artificial O princípio em si é obviamente habitual a uniformidade da natu reza é reduzida a um hábito de esperar no íúturo aquilo a que estamos acostumados no passado É um hábito pleno e perfeito com base em milhões de experimentos Contudo devemos perguntar é perfeita nossa experiência de sucessão uniforme Se não for então mais uma vez como pode o hábito exceder a experiência Os problemas colocados anteriormente podem ser resumidos da seguinte forma se o terreno da inferência é o hábito então ao que parece o hábito é motivo suficien te para uma inferência e a inferência não pode ir além do hábito Hume não pode admitir essas conseqüências Sua teoria pretende não só explicar o raciocínio dos animais mas também justificar os métodos de Newton A questão é se resolve ou não os problemas sem utilizar nada além do hábito e do sentimento Estamos ora em condições de passar ao tratamento que Hume dá à base e au toridade do juízo normativo Como em sua discussão da causalidade principia com dúvidas céticas que levam à conclusão de que distinções morais não sâo derivadas da razão Uma linha de argumentação visa mostrar que a virtude e o vício não são objetos do entendimento O entendimento possui diz Hume duas operações a comparação de ideias pela qual descobre as relações entre os objetos e a inferência da matéria de D a v id H u m e 4 8 3 6 Ibid iii 13 7 Ibid 8 13 e 14 123 8 I iii 15 e 16 9 Ibid III i 1 também Enquiry Conceming the Principies o f Morais apêndice I fato pela qual descobre sua existência Portanto se a virtude e o vício podem ser des cobertos pelo entendimento devem consistir ou em relações ou em matérias de fato Em primeiro lugar Hume comprometese a demonstrar que virtude e vício não podem ser relações O objetivo final da aprovação e desaprovação moral é uma ação mental em relação a objetos externos por exemplo a paixão do afeto para com os pró prios filhos ou a decisão de tomar a propriedade de alguém Se o bem e o mal moral são relações devem portanto ser relações que vigoram entre ações internas e objetos externos e capazes de vigorar apenas entre ações internas e objetos externos Porque se por exemplo o bem moral fosse uma relação que também pudesse vigorar entre objetos externos então os objetos irracionais e inanimados poderiam ser moralmente bons Ora não parece haver nenhuma relação que seja tão restrita Exantinemos por exemplo a relação de conformidade A teoria moral que Hume parece especialmente interessado em refutar afirma que há certas conformidades e inconformidades naturais das coisas umas com as outras e que a virmde de uma ação está em sua conformidade com a situação A objeção de Hume é que a conformidade supondo que tal relação exista pode vigorar entre objetos externos que no entanto não podem ser chamados de virmosos De fato as relações que realmente existem entre ações internas e objetos ex ternos em instâncias de virtude e vício são constatadas entre objetos externos onde claramente não constituem virtude e vício Suponhamos por exemplo uma árvore que ao crescer sufoca a árvore de cuja semente ela própria cresceu As relações aqui são precisamente as mesmas que se encontram no caso de um filho que estrangula seu progenitor Não consideramos a primeira instância como um exemplo de vício mas se o vício consistisse na relação seria este o caso São a virtude e o vício então matérias de fato Hume convida o leitor a tomar o exemplo de uma ação cruel um assassinato talvez e examinála sob todos os ângulos para verificar se é possível aí encontrar aquela matéria de fato ou existência real que denominam vício Não importa como examinemos o assunto serão encontrados ape nas certas paixões motivos volições e pensamentos Não há outra matéria de fato na situação O vício nos escapa inteiramente desde que consideremos o objeto Hume conclui que a virtude e o vício não são nem relações nem matérias de fato isto é não são objetos do entendimento e por conseguinte o senso de moralidade não consiste em sua descoberta Outra e mais eminente linha de argumentação pode ser resumida da seguinte forma a moral desperta paixões e produz ou impede ações A razão por si mesma é totalmente impotente neste particular As regras da moralidade portanto não são conclusões de nossa razão Por impotência da razão Hume quer dizer uma ação é o resultado de uma pro pensão ou aversão a algum objeto e essa propensão ou aversão é despertada em geral pelo menos pelo prazer ou dor produzidos ou esperados do objeto Ora a razão pode informarnos sobre a existência de objetos e das relações entre eles mas se os objetos são indiferentes para nós se não despertam propensão ou aversão essas informações não têm qualquer influência sobre a vontade Assim a razão sozinha não pode pro 4 8 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y duzir ou pelo mesmo motivo evitar qualquer ação Como disse Hume em uma frase famosa a razão é e só deve ser escrava das paixões e nunca pode pretender qualquer outra função que não seja servirlhes e obedecerlhes Todavia é claro que a razão em conjunto com a paixão pode ter uma forte influência embora oblíqua e mediata sobre a vontade Pode estimular a paixão indicandolhe a existência de seu objeto Por exemplo minha opinião é que por trás do muro de um jardim há frutas saborosas e meu desejo por elas se baseia nessa opinião E a razão pode dirigir a paixão para seu objeto ao traçar a conexão entre causas e efeitos Posso atinar com o recurso de con seguir uma escada de mão e galgar a parede Em tal caso a participação da razão pode ser grande e até mesmo decisiva Assim se eu descobrir que é incorreta minha opinião sobre a existência das frutas ou sobre a melhor maneira de obtêlas minha paixão e volição deixam de existir Porém o papel da razão continua a ser executivo pois não fornece o impulso que nos move Os juízos calmos e indolentes do entendimento não são suficientes portanto para influenciar a vontade E o ponto crucial do argumento de Hume é que esses julgamentos pelos quais podemos distinguir entre o bem e o mal são suficientes para influenciar a vontade Nega que a cognição moral é separável de uma propensão ou aversão à ação Quer dizer nega que se pode saber o que é moralmente bom sem sentir uma inclinação a isso O celebrado trecho de Hume que se segue pode ser imediatamente elucidado pelo argumento anterior ao mesmo tempo em que auxilia a elucidálo Em todo sistema de moralidade com que me deparei até hoje sempre observei que o autor prossegue por algum tempo no sentido comum do raciocinar e estabelece a exis tência de um Deus ou faz observações sobre os assuntos humanos quando de repente surpreendome de encontrar que em vez das usuais cópulas de proposições é e náo é não me deparo com qualquer proposição que não esteja ligada a um dever ou não dever Essa mudança é imperceptível mas é no entanto da maior conseqüência Pois como este dever ou não dever expressa alguma nova relação ou afirmação é necessário que deva ser observado e explicado e ao mesmo tempo que uma razão deve ser oferecida para o que parece totalmente inconcebível como esta nova relação pode ser uma dedução de outras que são inteiramente diferentes dela Mas como os autores em geral não empram esta precaução tenho a presunção de recomendálo aos leitores e estou convicto de que esta atenção pequena subverteria todos os vulgares sistemas de moralidade e observemos que a distinção entre vício e virtude não é fundamentada apenas nas relações de objetos nem é percebida pela razão A moralidade como vemos preocupase com o dever e a obrigação o moral mente bom é em essência o que se deve fazer E isso não pode ser descoberto pela razão Por exemplo analisemos novamente a tese de que a virtude consiste em confor midade Em determinado ponto Hume admite para avançar o debate que a relação D a v id H u m e 4 8 5 10 Treatise II iii 3 11 Ibid III i 1 último parrafb de conformidade existe e pode ser descoberta pela razâo Isso no entanto afirma náo basta para mostrar que se trata de virtude deve ser demonstrado que existe uma conexão entre conformidade e a vontade Pois o moralmente bom tem o caráter de lei é obrigatório Quer dizer é coercitivo influencia a vontade A razão pode presume se descobrir a conformidade mas não pode descobrila como moralmente boa Pois o moralmente bom é o que devemos fiizer e o que devemos fezer é o que somos com pelidos ou impelidos a fezer A única maneira de entender a compulsão é soírêla só podemos descobrir o que influencia a vontade ao sentir essa influência Ora não é autoevidente esta identificação do obrigatório com coercitivo Parece repousar sobre a necessidade de tornar o obrigatório efetivamente obrigatório Em outras palavras Hume parece seguir as linhas estabelecidas por Hobbes e Locke na tentativa de erigir a moral sobre uma fundação de que as paixões não desconfiando náo procurarão substituir Da mesma maneira que Hume encontrou a certeza do co nhecimento pela identificação do necessário com o que deve necessariamente ser pen sado assim descobre a eficácia da moral pela identificação dos virtuosos com o que se é obrigado a buscar Da mesma forma em que a imaginação humana foi tomada como base da ciência assim as afeições humanas são tomadas como base da moralidade Voltamonos agora para a solução céüca dessas dúvidas céticas sobre a moralida de a qual vem a ser que as distinções morais derivam de um senso moral Posto que a virtude e o vício não são descobertos pela razão seguese que os distinguimos por meio de algum sentimento ou impressão que provocam O vício de uma ação cruel nos esca pa inteiramente enquanto consideramos o objeto Jamais poderemos encontrálo até que voltemos nossa reflexão para nosso próprio peito e encontremos um sentimento de desaprovação que aflora em nós para com esta ação Eis aqui uma matéria de feto mas é objeto do sentimento não da razão Encontrase em nós mesmos não no objeto A moral portanto é mais propriamente sentida do que julgada Mais precisamente Hume assevera não apenas que a virtude e o vício são des cobertos pelo sentimento mas que são constituídos pelo sentimento Não é que a virtude seja aprovada porque é virtude mas que a virtude é virtude porque é aprovada Quando se diz que uma ação é virtuosa nada se afirma além de que dá origem a um sentimento de aprovação tal como quando se diz que um objeto é a causa ou o efeito de outro nada se quer dizer além de que estão habitualmente unidos na imiinação A visão da virtude observa Hume é agradável e a do vício desiradável De clara ainda que o próprio sentimento de aprovação moral é íradável e que o da desaprovação é desagradável Na verdade identifica aprovação e prazer Nega que a aprovação seja uma inferência a partir do prazer Silenciosamente passa por cima da possibilidade de que o prazer seja uma conseqüência da aprovação Ao contrário reduz a aprovação ao prazer Ter o senso de virtude nada mais é que sentir uma satisfeçáo de um determinado tipo Vemos então que o senso moral não é uma feculdade distinta e peculiar e que os sentimentos morais são prazeres e dores Os sentimentos morais no entanto são prazeres e dores de um determinado tipo diferindo em seu sentimento de outros prazeres e dores da mesma forma como 4 8 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y por exemplo o prazer oferecido por um bife difere do prazer proporcionado por um poema Esses prazeres e dores peculiares 1 surgem apenas a partir da consideração do caráter e ações de seres racionais e 2 surgem quando estes são examinados em geral sem referência a nossos interesses particulares Assim podemos apreciar um inimigo pelas próprias qualidades que o tornam perigoso para nós Em suma distinguese a virtude pelo prazer e o vício pela dor que qualquer ação sentimento ou caráter nos propicia por sua mera visão ou contemplação Hume considera as qualidades ou caracteres estimados como virtuosos como de quatro tipos Primeiro as qualidades que são úteis para os outros por exemplo justi ça generosidade beneficência honestidade Segundo as qualidades que são úteis para quem as possui por exemplo prudência indústria frugalidade temperança Terceiro as qualidades que sâo imediatamente agradáveis aos outros por exemplo modéstia inteligência decência Finalmente as qualidades que são imediatamente agradáveis ao que as possui por exemplo uma autoestima adequada o amor da glória a magnani midade Podese acrescentar que uma qualidade pode pertencer a mais de uma dessas classes Por exemplo a coragem não só é útil para seu possuidor e para o público mas também dá um prazer imediato ao seu possuidor Em suma os objetos de aprovação moral são aquelas qualidades que são ou ime diatamente agradáveis ou que dão prazer quer para o seu possuidor ou para os outros O bom é fundamentalmente idêntico ao agradável Porém não é idêntico ao próprio prazer Ao fàzer julgamentos morais não valorizamos os outros por seu valor para nós mesmos A aprovação não é concedida às qualidades porque nos dão prazer mas pelo contrário porque dão prazer aos outros incluindo aquele que as tem Todavia em ou tro sentido devemos salientar podese dizer que aprovamos o que nos agrada porque a nossa própria aprovação consiste em sermos agradados Por que aprovamos essas qualidades virtuosas Por vezes Hume responde que somos movidos pela humanidade ou benevolência Entretanto não devemos en tender isso como um instinto original ou como um desejo pelo bem dos outros É a manifestação de um princípio mais geral e extremamente importante da natureza humana a simpatia ou aquela propensão que temos para receber por comunicação de outras pessoas as suas pabtões sentimentos etc Devese notar que simpatia não é o mesmo que pena e não tem nenhuma conotação de afeto ou boa vontade É um simples canal através do qual as dores prazeres paixões e assim por diante são trans mitidas de uma pessoa para outra O objeto de aprovação moral portanto é uma fonte de prazer o sentimento de aprovação é em si um prazer e o prazer do sentimento é tomado emprestado do ob jeto Assim Hume está habilitado para rejeitar o que chama de moralidade egoísta mas todavia para evitar confirmar a existência de uma benevolência geral para com os D a v id H u m e 4 8 7 12 Ibid penúltimo parágrafo e 2 13 Principies o f Morais 10 1 e 105 Treatise III iii 1 homens muito além de nossa relação com nós mesmos Faz isso ao postular a operação da simpatia que fez nossos os prazeres e as dores de outros mas o fez por assim dizer mecanicamente sem a interposição de boa vontade para com nossos companheiros ou de cálculos de interesse próprio No íundo da negação de Hume de que o bem e o mal morais podem ser desco bertos pela razão está a demanda de que a moralidade esteja de acordo com as paixões ou para usar suas próprias formulações a identificação do obrigatório com o coer citivo e a insistência de que juízos morais tenham uma influência direta e imediata sobre a vontade Sua própria teoria atende a essa demanda Os principais motivos para a ação são o prazer e a dor os julgamentos de aprovação e desaprovação moral não passam de prazeres e dores Assim a virtude é em essência amável e o vício é em essência odioso e consequentemente desejados ou evitados Um julgamento moral é portanto não apenas um sentimento de louvor ou culpa ou seja um sentimento de prazer ou dor mas também uma opinião de obrigação ou um senso de dever isto é uma propensão ou aversão Ao exigir que a moralidade esteja de acordo com as paixões e seja construída sobre elas Hume segue Hobbes e Locke Contudo não os segue em suas conclusões Esses filósofos representam o que Hume denomina sistema egoísta da moral o qual critica com dureza No entendimento de Hume a premissa básica do sistema egoísta é que a paixão fundamental e dominante é o interesse próprio Hume nega isso 1 Tal sistema exagera o poder da razão Para demonstrar que paixões tal como a amiza de que parecem ser desinteressadas são na verdade apenas manifestações do amor próprio os filósofos devem tecer a hipótese de que há raciocínios muito complexos e refinados raciocínios de feto demasiado complexos e refinados para que tenham de feto muita influência sobre as paixões 2 Além disso nem todos os desejos podem ser reunidos em um desejo pelo próprio bem pessoal Por exemplo existe a afeição pelos próprios filhos e o ódio pelos inimigos e por vários outros São estes os instintos ou impulsos originais tanto quanto o desejo pelo próprio bem e buscam seus objetos independente de qualquer expectativa de vantagem 3 Na verdade longe de todas as paixões serem redutíveis ao interesse próprio a ação pelo interesse próprio em si pres supõe a existência de outras paixões pelo menos algumas vezes e talvez sempre ou quase sempre O interesse próprio nos impulsiona a desejar um objeto agradável por exemplo um bife Porém qual é o motivo pelo qual o objeto agrada Porque satisfez um outro desejo a fome por exemplo Sem outros desejos além do interesse próprio haveria pouco ou nada com que o interesse próprio se preocupar 4 Tampouco é o interesse próprio necessariamente a paixão mais forte ou dominante Quando colo cado em competição com algumas outras paixões específicas o interesse próprio nem sempre goza de prioridade E um homem pode preferir seu bem menor ao seu bem maior consciente de que é menor O desejo por um bem menor pode superar o desejo por um bem reconhecidamente maior 488 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 14 PrinàpUs of Morais apêndice 11 Treatise II iii 3 último parrafo e 9 8 A moralidade egoísta é baseada numa compreensão excessivamente simplifi cada das paixões Hobbes para tomar o exemplo mais claro encontra seu ponto de partida numa única paixão o medo da morte e o desejo de autopreservação esta é a paixão mais forte e íundamental A virtude consiste na obediência às leis da natureza que são ditados da razão para evitar a morte e preservando a vida O medo da morte é a maior paixão porque a morte é o maior mal Pressupõese que todo homem pela necessidade natural sempre procure o que pensa ser o seu maior bem Hume por outro lado diz que não existe tal necessidade natural A paixão não produz nenhum axioma incontestável para a razão e portanto a razão não pode fornecer uma orientação segura para a conduta Tsto náo é contrário a razão preferir a destruição de todo o mundo a coçar meu dedo Não é contrário a razão para mim escolher minha total ruína para evitar o mal estar de um índio ou de uma pessoa total mente desconhecida por mim Os padrões do julgamento moral não são ditados da razão derivados da paixão eles próprios são paixóes isto é sentimentos morais Além disso desde que nenhuma paixão é axiomática uma moral de acordo com as paixões deve ser marcada pela amplitude e complexidade Hume rejeita o tipo de estreiteza da virtude característica do ensino da lei natural moderna ele se recusa a acor rentar seus sentimentos morais em sistemas estreitos Dos modernos Hume apela para os antigos moralistas como Cícero que são os melhores modelos O ensino da lei natural moderno baseando a moralidade nas pai xóes como fez Hume felhou no entanto em fezer justiça ao amplo espectro das paixões humanas Uma moralidade verdadeiramente de acordo com as paixóes toma seu padrão do curso natural e comum das paixões De acordo com Hume a moral se distingue e é determinada pelo sentimento Um caráter possui virtude ou vício na medida em que desperta algum prazer ou dor e se desperta tal prazer ou dor é virtuoso ou vicioso Seguese que uma vez que nunca podemos estar errados quanto a nossos sentimentos de prazer e dor os julgamentos morais sâo perfeitamente infalíveis Tal conclusão parece levar a um caos da subjetividade Os sentimentos de ho mens diferentes diferem assim como os sentimentos do mesmo homem em momen tos diferentes dependendo de sua situação particular Por exemplo é raro termos muito afeto por alguém que age de modo contrário a nossos interesses mesmo que esteja agindo de acordo com as regras gerais da moralidade Sentimos o maior e mais vivido prazer com a diligência comum de um servo do que com as mais nobres quali dades de Marco Bruto No entanto Hume não é um relativista A moral é uma questão de gosto mas há gosto certo e errado Esta posição é explicada como se segue a variação de nossos sentimentos decorrentes da variação de nossa situação nos deixa inseguros Além disso descobrimos que os sentimentos dos outros com base em suas situações par D a v id H u m e 489 15 Tfrtfriíí II iii 36 16 Ibid III ii 1 penúltimo parágrafo cf Principies o f Morais apêndice IV ticulares contradizem nossos sentimentos com base em nossas situações particulares Ora essa contradição e incerteza fezem com que seja impossível que os homens con versem juntos em termos razoáveis Portanto a íim de nos comunicarmos uns com os outros somos obrigados a buscar um ponto de vista comum e menos variável a partir do qual julgar as qualidades das pessoas O ponto de vista que adotamos é o de quem está imediatamente conectado com essas pessoas Por exemplo nosso afeto e admiração por Bruto seria como sabemos muito maior do que para com nosso servo se estivessem igualmente próximos de nós e distribuímos nossa estima de acordo Ao fazer julgamentos morais negligenciamos nossa situação atual e até nossos próprios interesses Corrigimos os nossos sentimentos É necessário indagar como isso é possível nos termos de Hume Como pode um sentimento que resulta de uma situação real ser superado por um sentimento resultante de uma situação hipotética De feto Hume admite que isso não ocorre As paixões escreve nem sempre permitem nossas correções O que é regulado pela transposi ção de situações não são tanto nossos sentimentos quanto nossas noções abstratas e pronunciamentos gerais No entanto é preciso indagar não implicaria isso um abandono do princípio de que o julgamento moral é uma questão de sentimento O problema que estamos discutindo o status dos julgamentos normativos na íilosoíia de Hume pode agora ser abordado por meio de um exame da questão de até que ponto tais julgamentos têm uma base diversa dos julgamentos sobre a matéria de feto Há trechos em que Hume indica que diferem radicalmente quanto a seu tipo Por exemplo escreve que a razão que fornece o conhecimento sobre a verdade e a fel sidade difere do gosto que é a fonte do sentimento moral porque a primeira desco bre objetos tal como realmente se apresentam na natureza sem adição e diminuição enquanto o último tem uma feculdade produtiva e por dourar ou colorir todos os objetos naturais com cores que toma emprestadas do sentimento interno constrói de certa forma uma nova criação O padrão da razão é eterno e inflexível enquanto o padrão do gosto emerge da estrutura e constituição dos animais É duvidoso porém que um contraste tão vividamente elaborado sobreviva a um exame mais aprofundado Pois se a moralidade é mais propriamente sentida do que julgada todavia da mesma forma todo raciocínio provável não é senão uma espécie de sensação Não é apenas na poesia e na música que devemos seguir o nosso gosto e sentimento mas também nas ciências experimentais Virtude e vício não são ma térias de feto ou melhor são matérias internas de feto ou seja nossos sentimentos de aprovação ou desaprovação moral Porém o mesmo vale para a conexão entre causa e efeito Os objetos não têm qualquer conexão detectável A relação causai nada é no objeto mas é algo na mente Hume é daro tenta fornecer uma base mais segura para o radocínio causai do que mero sentimento distinguir o preconceito e a fentasia do raciocínio sólido e for 490 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 17 Treatise III iii 8 penúltimo parágrafo e iii 1 14 ff Principies o f Morais 9 1 18 Principies o f Morais apêndice I último parágrafo Treatise III i 21 I iii 812 necer regras para orientar a conduta da investigação Entretanto como acabamos de ver busca realizar uma tarefe semelhante para a moralidade escapar da contradição e da variação do julgamento moral e determinar o padrão de gosto correto na moralida de Em ambos os casos encontra dificuldades similares ao fezêlo O estado de natureza é na opinião de Hume uma ficção dos filósofos Porém ao reconstituir a origem do governo é permissível começar pela hipótese do homem em uma condição selvagem e solitária Descobrimos que mais do que qualquer outro animal o homem é ao mesmo tempo necessitado e fraco Precisa de alimento roupas e abrigo Todavia é mal equipado por suas habilidades naturais para obtêlos e mantêlos Somente a sociedade pode compensar suas felhas Ao unir forças com ou tros passa a ser capaz de levar a cabo projetos para os quais por si só não tem força su ficiente a divisão do trabalho induz a uma maior habilidade nas artes a ajuda mútua é um escudo contra os acidentes e o azar Somente na sociedade podem ser atendidas suas necessidades inclusive as novas necessidades que a própria sociedade engendra Contudo não se pode atribuir a origem da sociedade a cálculos de vantagens como esses que estão muito além da capacidade dos homens não cultivados Devese esta a uma outra necessidade com um remédio mais evidente a saber o desejo sexual Este aproxima o homem e a mulher o afèto paternal os mantém unidos e surge uma socie dade femiliar governada pelos pais É na femflia que os homens descobrem por meio da experiência as vantagens da sociedade e são ao mesmo tempo ajustados a ela Há no entanto alguns fetores que tornam a sociedade difícil de manter Primei ro as paixões do egoísmo e da generosidade confinada Em geral um homem ama a si mesmo mais que a qualquer outra pessoa E embora o total de sua afeição por outros seja comumente maior que o seu amorpróprio restringese principalmente a seus parentes e amigos Segundo a escassez e a instabilidade de bens externos Bens externos não existem em quantidade suficiente para satisfezer as necessidades e desejos de todos Ainda podem ser tomados de seu possuidor para serem úteis para outro ao contrário dos atributos corporais úteis Essas circunstâncias internas e externas coinci dem de modo a produzir o principal impedimento para a sociedade o insaciável per pétuo universal desejo de adquirir bens para nós e para os próximos a nós As demais paixões são mais fáceis de conter ou não são tão perigosas A vaidade por exemplo é uma paixão social e um laço de união entre os homens Não podemos esperar que essa propensão seja controlada por nossos sentimentos morais naturais Estes se conformam ao curso natural das paixões e tendem a reforçá las O remédio é um artifício descoberto pela razão a convenção da qual participam todos os membros da sociedade para conceder estabilidade à posse desses bens exter nos e permitir a cada um o gozo pacífico do que pode adquirir por meio de sua fortu na e indústria Esta é a primeira lei da natureza a abstinência dos bens dos outros Esta convenção ou acordo não é da mesma natureza que uma promessa ou con trato Ao contrário é o senso comum do interesse comum que emerge gradativa mente entre os homens e ganha força pela repetida experiência da inconveniência D a v id H u m e 491 de transgredilo Uma vez estabelecida esta convenção surgem as ideias de justiça e injustiça e as ideias que advém destas propriedade direito e obrigação Se a regra fimdamental da justiça é a estabilidade da propriedade são necessárias outras regras para determinar quais bens sáo de propriedade de quais pessoas A regra mais óbvia era a da posse presente e mais tarde outras se apresentaram a ocupação a prescrição e assim por diante Agora em vigor essas regras dependem do acaso e muitas vezes resultam em uma desproporção entre a propriedade dos homens e suas necessidades e desejos Todavia a adequação ou compatibilidade entre os bens e as pessoas não pode jamais insiste Hume ser aceita como uma regra As regras de justiça sáo estabelecidas para dar fim às disputas e à discórdia e nada produz mais disputas e discórdia do que questões de adequação ou compatibilidade Para permitir o ajuste da propriedade às pessoas sem criar problemas o expediente natural é permitir a transfe rência de propriedade por consentimento Esta é a segunda lei da natureza que surge de modo muito semelhante à primeira A terceira lei da natureza é a obrigação advinda das promessas e surge da se guinte maneira é óbvia a vantagem da ajuda mútua Se eu ajudálo agora na colheita e você por sua vez ajudarme na colheita mais tarde nós dois seremos beneficiados Porém se for permitido que os homens sigam o curso natural de suas paixões o egoís mo e a generosidade confinada os fariam perder esta vantem Eu poderia ajudálo e você não me ajudar Ou mais provavelmente eu me recusaria em caso de você não querer me ajudar em troca Um pouco de experiência aponta um remédio os homens inventam uma determinada forma de palavras denominadas promessa por meio da qual uma pessoa expressa uma resolução de fazer algo e se expóe à penalidade da desconfiança se náo a cumprir Essa é a origem das regras da justiça A obrigação natural de cumprilas afirma Hume é o interesse próprio Entretanto posto que Hume rejeite o sistema egoísta da moral precisa explicar de forma diferente sua obrigação moral Por que é a justiça uma virtude e a injustiça um vício A resposta é que reconhecemos que a justiça é benéfica para a sociedade Pode ser que nem sempre ajamos com justiça Contudo ao examinar a injustiça de outros nós a avaliamos como perniciosa e acabamos comparti lhando a inquietação de quem vai sentir as suas conseqüências ruins Isso se aplica em certa medida até mesmo a nossas próprias açóes E esta inquietação ou dor simpática é idêntica ao sentimento de culpa moral É reforçada por outros meios pelo artifício de políticos que distribuem elogios e culpa públicos pela educação que nos ensina a considerar a justiça como honrada e por um cuidado com a nossa reputação Porém tudo isso seria em vão sem distinções morais prévias Em suma portanto o motivo original para o estabelecimento da justiça é o interesse próprio mas a fonte de sua aprovação moral é uma simpatia para com o interesse público 492 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Treatise III ii 25 Principies of Morais 3 As vantagens da sociedade e por conseguinte das regras de justiça são grandes e óbvias Todavia não se pode esperar uma estrita observância delas Por um lado o interesse próprio pode às vezes ser mais bem atendido por um ato de injustiça Com maior frequência porém nossas infrações se devem a nossa tendência para regular nossos desejos e vontades em conformidade com a aparência de objetos ao invés de seu valor real e para preferir um bem menor à mão a um bem maior mais distante So mos capazes portanto de aproveitar uma vantagem imediata obtida por meio de um ato de injustiça em detrimento de uma vannem real porém remota a ser adquirida por meio da justiça O governo é a principal salvaguarda desenvolvida pelos homens para precaverse contra ceder a esta fiaqueza É incurável a propensão natural dos ho mens de preferir o contíguo ao remoto mas pode ser tornada inofensiva pela alteração de suas circunstâncias e situações Alguns homens são feitos governantes ou seja são colocados em uma posição onde têm interesse imediato na administração imparcial da justiça e nenhum interesse ou apenas um vago interesse no contrário Os demais homens são governados ou seja são tão coagidos e contidos pelos governantes que seu interesse imediato é a adesão à justiça Tal como acontece com as leis da justiça o motivo original e a obrigação natural de obediência ao governo é o interesse próprio e a obrigação moral resulta da simpatia pelo interesse público O objeto frmdamental e principal do governo é a administração da justiça i é a proteção da propriedade e o cumprimento dos contratos Contudo o governo wii além disso empreendendo projetos úteis de grande escala que os indivíduos seriam incapazes de realizar ou não teriam disposição para intentar Desta íbrma o governo não só prote ge os homens na busca de seus interesses mas também os obriga a buscálos Hume denomina virtudes artificiais aos deveres de obediência ao governo e à observância das regras de justiça os quais se distinguem das virtudes naturais A base pata a distinção é esta as virtudes naturais são aqueles a que os homens são impeli dos por algum instinto ou impulso natural original e que recebem aprovação moral porque constituem indícios de tal instinto ou impulso Por exemplo independente de quaisquer considerações de dever ou de utilidade há uma afeição natural dos pais para com seus filhos As virtudes artificiais por outro lado não são praticadas por causa de tal propensão Pelo contrário tudo indica que nossos instintos naturais sem freios nos levariam a todos os tipos de desigualdade e de insubordinação As virtudes artificiais aparecem como louváveis somente após o pensamento e a reflexão pois são virtudes somente em conseqüência da invenção humana Para dar um exemplo claro suponhamos que de acordo com os termos de um testamento uma fortuna é tirada de uma pessoa merecedora e entregue a outra que não a merece Nem a felicidade privada à primeira vista nem a felicidade do público são assim favorecidas Porém a virtude do ato emerge quando o examinamos como parte de um vasto plano que deve ser respeitado de modo inflexível mesmo em tais casos difíceis pois é benéfico o funcionamento do sistema como um todo D a v id H u m e 493 20 Treatise III ii 7 Essays Of the Origin of Govemment Principies ofMomls 4 Em outro sentido porém sáo naturais as virtudes artificiais Originamse ne cessariamente da situaçáo do homem E sáo um produto da razão que tanto quanto a paixão é parte da natureza do homem Assim como vimos Hume não hesita em falar de leis da natureza As virtudes artificiais não devem ser entendidas como contrárias às paixões São contrárias apenas a seu movimento insensato e impetuoso Assim o governo não erradica a propensão a preferir uma vantagem imediata contra outra remota apenas lhe dá um novo rumo para que destrua seus próprios efeitos negativos Na verdade as paixões são satisfeitas de melhor forma por serem controladas e dirigidas Em parti cular a ganância é muito mais plenamente gratificada por estar sujeita às restrições da justiça que por ser deixada livre Uma vez que a justiça e o governo são artifícios que visam o benefício humano é claro que em casos muito raros e extremos é permissível revogar sua obrigação A regra comum é a observância inflexível da justiça e a submissão cega ao governo Contudo em uma cidade sitiada por exemplo os direitos de propriedade podem ter de dar lugar à necessidade pública E como o sentimento universal da humanidade explica quando a ruína pública seria o único resultado da persistência na submissão ao governo os laços de fidelidade são afrouxados e é aceitável a rebelião O interesse dos homens pela segurança e proteção que só podem ser proporcionadas pela socie dade política é ao mesmo tempo o motivo original para a instituição do governo e a sanção imediata da obediência a ele Quando os governantes chegam a ser tão opressores que o governo não mais proporciona essa segurança e proteção a sanção não pode permanecer em vigor O efeito cessa com a causa Esta admissão do direito de desobediência em caso de emergência extraordinária suscita a seguinte dificuldade posto que os homens são tão propensos a seguirem normas gerais e a se manterem fiéis a máximas após as razões para elas terem deixado de existir não poderia talvez a obrigação moral de obedecer derivada da simpatia sobreviver à obrigação natural com base no interesse Não poderiam os homens ser obrigados a obedecer a um governo que destrói a justiça Hume afirma que não Nos so conhecimento da natureza humana da história passada e dos tempos de hoje nos informa que as imperfeições humanas contra as quais a sociedade política foi estabele cida para nos proteger são inerentes a todos os homens sem excluir os governantes e que é razoável esperar que estes às vezes ajam de modo cruel e injusto mesmo contra os seus interesses imediatos Esta observação baseada em diversos exemplos tem ela mesma o caráter de uma regra geral e por conseguinte pode servir como base para uma exceção à regra geral da obediência Assim é que a opinião geral da humanidade não acredita ser crime a resistência à grande opressão 494 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 21 Treatise III ii 1 22 ói22 1 3 5 9 6 1 23 Ibid 9 Essays O f Passive Obedience Na sábia estruturação das instituições políticas diz Hume devese supor todo homem um canalha ou seja que esteja sempre buscando seu interesse próprio A al ternativa a esta suposição é contar com a boa vontade dos governantes para a segurança da propriedade e da liberdade em outras palavras confiar na sorte e não ter segurança alguma Boas constituições não dependerão da existência de grandes virtudes indivi duais garantirão que os interesses privados dos homens até mesmo dos homens maus serão controlados e direcionados de forma a servir e produzir o bem público Esse é o objetivo do governo livre que Hume denomina sociedade mais feliz O poder de um governo livre é tão grande quanto o de qualquer outro governo mas é dividido entre várias partes talvez um monarca uma aristocracia hereditária e uma assembleia popular que exerçam esses controles uns sobre os outros para impedir que um deles supere os outros e adquira controle absoluto Uma vez que em certa medida o poder arbitrário é sempre opressor um governo livre deve agir de acordo com leis gerais iguais e previamente conhecidas Deve haver uma assembleia popular e um senado aris tocrático menor O senado fornece sabedoria e é mantido honesto pelo outro órgão É conveniente que a assembleia popular seja escolhida em eleições freqüentes por um eleitorado cuja qualificação seja bastante elevada devido a suas propriedades A aristocra cia é fiivorável à paz e à ordem mas tende a se tomar opressora É bom modificála pela adição de algum aspecto da democracia regulado de modo a evitar as fiilhas peculiares da democracia tal como a turbulência É de grande importância proteger o Estado contra a intrusão eclesiástica e os distúrbios relosos Deve haver uma união entre o poder civil e eclesiástico e uma dependência do clero em relação ao governo civil É necessária uma tolerância das seitas dissidentes para aplacar seu fervor e permitir que a união civil adquira uma superioridade acima das distinções religiosas A liberdade no sentido de um governo livre é explica Hume a perfeição da so ciedade civil Todavia a autoridade é essencial para sua própria existência e quando os dois entram em conflito como muitas vezes acontece devese talvez dar preferên cia à autoridade Por outro lado podese dizer com razão que o essencial pode e vai cuidar de si mesmo e precisa de menos proteção que aquilo que tende à perfeição da sociedade e é passível de ser negligenciado ou ignorado Apesar da estima que nutre pelo governo livre Hume acreditava que nos últimos tempos até mesmo a monarquia absoluta melhorara tanto que atendia aos fins da sociedade civil quase tão bem quanto qualquer outro tipo de governo Modernas mo narquias civilizadas haviam tomado emprestado instituições e costumes dos governos livres e muito se aproximavam deles na nobreza estabilidade e segurança oferecida à propriedade Poderiam melhorar ainda mais Essa reflexão ilustra a necessidade de cuidados ao formular verdades eternas e permanentes na política Devemos ser cautelosos na profecia Da mesma forma deve mos ser tolerantes nos julgamentos históricos e não por exemplo culpar eras passadas pela intolerância religiosa uma vez que não tinham experiência para mostrar que a tolerância apesar de paradoxal em princípio é salutar na prática Devemos julgar outros tempos pelas máximas vigentes naqueles tempos Para expressar isso de modo D a v id H u m e 4 9 5 mais geral o mundo ainda é muito jovem para que se saiba totalmente do que a natureza humana é capaz ou se conheça o efeito de alterações na educação costumes ou princípios dos homens Com alguma frequência as opiniões políticas de Hume sáo caracterizadas como tóri Por exemplo Thomas Jefferson considerava a História da Inglaterra de Hume res ponsável por minar os princípios do governo inglês livre e espalhar o torismo universal sobre o país Hume responderia é daro que o verdadeiramente ofensivo era sua recusa em sacrificar a verdade histórica que os pestilentos preconceitos do Whiggism Seus ensinamentos teóricos sobre a natureza bem tal como sobre os objetos e forma adequada de governo parecem estar muito próximos dos do grande filósofo Whig Locke To davia se Hume era filosoficamente Whig era como dizia um Whig muito cético Tal ceticismo transparece de forma mais óbvia talvez em seu ataque contra o sistema político da moda e contra o credo do partido Whig a teoria do contrato social e em sua advertência contra a desconfiança nutrida pela inovação A teoria do contrato social tal como a entendia Hume ensina que os poderes do governo derivam do consentimento dos governados que a obrigação de obediência se baseia na troca de promessas constantes do contrato que institui o governo e que os súditos são liberados de suas obrigações quando o governo se torna opressor e assim rompe com as promessas feitas por sua parte Um argumento contrário a essa teoria é o seguinte o motivo original para o dever de cumprir promessas é igual ao motivo original do dever de obedecer aos governantes as promessas atendem a nossos interes ses de uma maneira e governo de outra Este último dever portanto não depende do primeiro Se as promessas nunca tivessem sido inventadas ainda assim seria necessário o governo De fato tão distante está o governo de depender da fidelidade às promessas que em grande parte o governo foi de feto criado para impor essa fidelidade A principal objeção de Hume é que a teoria do contrato é adversa à prática e ao sen timento de toda a humanidade Hume admite que o governo em seus primórdios deve ter sido fundamentado no consentimento Os homens são quase iguais em força física e até que sejam educados também em intelecto ninguém pode sujeitar uma multidão a seu governo pela força A sujeição ao governo só poderia ter surgido quando os homens voluntariamente abdicassem de sua liberdade namral e se submetessem a ser governados em prol da paz e da ordem A isso se pode chamar de contrato original No entanto nenhum governo de que temos notícia formouse pelo consentimento voluntário do povo suas origens são ao contrário a conquista ou a usurpação Via de regra é exata mente quando ocorre uma mudança de governo que as pessoas são menos consultadas 4 9 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 24 Essays On the Independency of Parliament That Politics May Be Reduced to a Science Of the Origin of Government Idea of a Perfect Commonwealth O f Civil Liberty History o f England final do capítulo xxiii Apêndice to the Reign o f James I On religion see History início do capítulo xxix e capítulo Ixvi 1678 25 NTs Tóri torismo Relativo ao partido monarquista conservador britânico Tory Party 26 NTS Whigg Whiggism Relativo ao partido britânico que originou o Partido Liberal a partir de 1868 Os sentimentos naturais de todos os homens contradizem a teoria do contrato Tao distantes estão os governantes de considerar sua autoridade como sendo baseada no consentimento dos governados que tendem a tratar essa visão das coisas como sedi ciosa E os governados em geral pensam em si mesmos como tendo nascido devendo obediência a um determinado governo Assim Hume opõese à versão de Locke dos modernos ensinamentos acerca da lei natural Porém opõese a esta versão posicionandose em fundamental acordo com a sua intenção O objetivo é ordenar a sociedade política de tal forma que suas fina lidades sejam atendidas pela ação natural das paixões sem dependência excessiva da bondade extraordinária ou seja do acaso Hume afirma Todos os planos de governo que supõem grande reforma nos costumes da humanidade são obviamente imaginá rios Ora a oposição de Hume à teoria do contrato é exatamente que esta pressupõe tal reforma dos costumes Superestima o poder da razão ou mais exatamente também assume rápido demais que os homens perceberão de modo correto seus reais interesses e os buscarão com firmeza Se o fizessem governo algum existiria de fato exceto com base no consentimento Porém uma vez que não o fazem devese admitir e permitir que outras fundações sejam justas A teoria do contrato cuja intenção é ser consoante com as paixões dos homens leva a conclusões que são contrárias à experiência e ao sentimento universais Por exemplo nega a legitimidade da monarquia absoluta que é uma forma de governo tão comum e natural quanto qualquer outra A teoria do contrato ensina que quando os governantes passam a ser tão opresso res que já não fornecem srança e proteção aos governados esses últímos já não são obrigados a se submeterem Hume concorda como já vimos Porém não é necessária uma doutrina do contrato original para se char a essa conclusão em teoria nem para garantila na prática Em casos tão extremos podese confiar que os homens resistirão sem referência a qualquer teoria a doutrina da obediência passiva é tão distante de seus sentimentos comuns quanto a do contrato social Este último porém não só é desne cessário como também pernicioso No decurso normal dos acontecimentos o dever dos governados é submissão cega Todavia a teoria do contrato distrai nossa atenção da rra geral e a direciona para as exceções exceções essas a que podemos tender muito por nós mesmos a abraçar e ampliar Uma lealdade voluntária é uma lealdade precária Os laços de lealdade não devem ser dissolvidos mas solidificados A sociedade hu mana é um corpo permanente ganhando e perdendo membros a cada momento e por conseguinte é essencial a estabilidade do governo É necessário para o bem da paz e para que haja governo e governantes É desejável claro que a forma de governo seja boa e que os governantes sejam adequados No entanto fiizer da superioridade de uma forma de governo ou da adequação de um determinado governante o padrão dominante é abrir a porta para as próprias discórdia e desordem que o governo foi criado para eliminar Por conseguinte devese dar maior peso às reivindicações da ordem estabelecida D a v id H u m e 497 27 Essays O f the Original Contract O f Passive Obedience Idea of a Perfect Commonwealth Treatise III ii 810 Todo governo aponta Hume é fundamentado na opinião O principal esteio do governo de poucos sobre muitos ou seja dos fracos sobre os fortes é a opinião de que aqueles que detêm a autoridade têm direito a essa autoridade Em geral esta opinião é fruto do tempo e do hábito O costume é o grande guia da vida humana a maioria dos homens nunca cogita em indagar acerca dos motivos para a autoridade da forma de governo à qual se habituaram Ou se o fizessem ficariam satisfeitos em receber a resposta de que esta prepondera há muito tempo e que trilham pelo mesmo caminho de seus antepassados A antiguidade sempre gera a opinião do direito A fundamen tação do governo verdadeiramente de acordo com as inclinações naturais dos homens não é contratual mas costumeira As ponderações anteriores indicam que há limites para o que pode ser feito quan to a inovações e ainda mais importante quanto ao que deve ser feito uma vez que a novidade também tem seus encantos Jamais são justificáveis as inovações violentas Abalar a autoridade do costume e da antiguidade não a transfere para a razão que é um guia inconstante com pouca influência sobre o homem mas para os interesses particulares de cada homem disfarçados de razão O estadista sábio portanto fará reverência diante daquilo que carrega as mar cas da idade Na tentativa de melhorar uma constituição adaptará suas inovações à estrutura antiga de modo a não perturbar a sociedade Sua cautela pode ser refor çada pela reflexão sobre os limites da previsão humana Medidas políticas têm muitas conseqüências que não se podem prever é preciso guiarse pela experiência é preciso aprender com os erros percebendo sua inconveniência quando ocorrem O tempo não só fortalece as instituições políticas como também as aperfeiçoa Como vemos Hume inicia com os princípios mais fundamentais dos ensinamen tos acerca da moderna lei natural e chega a conseqüências que são em grande medida semelhantes às de Locke Ao mesmo tempo e partindo dos mesmos princípios rejeita elementos importantes dos ensinamentos de Locke e se torna um grande defensor do conservadorismo Desta forma sua doutrina política guarda uma aparência um tanto paradoxal e talvez contenha uma certa tensão que se reflete em sua máxima de que nâo há nada de maior importância em todos os estados que a preservação do antigo governo especialmente se livre L e it u r a s A Hume David Enquiry Conceming Human Understanding Secs 2 3 4 5 6 7 Hume David Treatise ofHuman Nature Tratado da natureza humana Livro III partes i e ii Hume David Essays O f the Origin of Government O f the Original Contract O f the First Principies of Government Idea of a Perfect Commonwealth Uma boa seleçáo dos ensaios 498 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 28 Essays O f the First Principies of Government O f the Original Contract Idea of a Perfect Commonwealth primeiras duas partes O f the Coalition of Parties parraíb 5 O f the Rise and Progress of the Arts and Sciences parágrafo 25 29 Essays O f the Liberty of the Press parágrafo 6 D a v id H u m e 499 políticos de Hume pode ser encontrada em David Humes Pohtical Essays Ed Charles W Hendel New York Liberal Arts Press 1953 B Hume David Treatise f Human Nature Tratado da namieza humana Livro I partes i e iii Hume David Enquiry Conceming the Prinriples ofMorak Investigação sobre os Princípios da Moral Seções 1 3 4 5 9 apêndices I II e III Hume David Essays Ensaios O f the Liberty of the Press Ihat Pblitics May Be Reduced to a Sci ence On the Independency of Parliament Whether the Bridsh Government Inclines More to Absolute Monarchy or to a Republic O f Parties in General O f the Parties of Great Britain O f Civil Liberty O f the Rise and Ptttess of the Arts and Sciences O f the Balance of Power O f Some Remarkable Customs O f Passive Obedience O f the Coalition of Parties O f the Protestant Succession J eanJacques R ousseau 17121778 Rousseau principia sua obra Du contrat social O contrato social com as célebres palavras O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado Como pode essa mudança acontecer Náo sei O que pode legitimála Acredito ser capaz de resolver esta questáo Assim afirmando Rousseau coloca o problema político em sua forma mais radical e ao mesmo tempo sugere o revolucionário princípio de que feita legitimidade a quase todos os rm es existentes A sociedade civil acortenu o homem e fez dele um escravo da lei ou de outros homens ao passo que ele como homem nasceu para a liber dade para o direito de se comportar como lhe aprouver Além disso a sociedade civil tal como é hoje constituída náo tem direito a invocar a adesão moral de seus súditos é in justa O pensamento político de Rousseau afestavase do presente em amhas as direções voltavase para a feliz liberdade do homem no passado e para o estabelecimento de um regime no futuro que possa apelar para a vontade daqueles que estão sob sua autoridade É tarefe do filósofo esclarecer qual é a natureza verdadeira do homem e com base nisso definir as condições de uma boa ordem política Visto de fora o pensamento de Rous seau tem um caráter paradoxal parecendo ao mesmo tempo almejar proposições contra ditórias virtude e sentimento suave sociedade política e estado da natureza filosofia e ignorância mas sua coerência é excepcional e suas contradições refletem contradições na natureza das coisas Rousseau tomou para si a tarefe de esclarecer o significado da moderna teoria e prátíca e assim fezendo trouxe à luz conseqüências radicais da moder nidade das quais os homens não tinham consciência antes A política moderna de acordo com Rousseau baseiase em uma compreensão parcial do homem O Estado moderno o Leviatã é guiado por sua própria preserva ção e por conseqüência pela de seus súditos Por conseguinte é inteiramente nega tivo tendo em conta somente as condições de felicidade de vida enquanto esquece a felicidade em si Qualquer sistema político que só leve em conta um único aspecto Ilusttam muito bem a consciência que tinha Rousseau do caráter paradoxal de suas obras sua Letter to M eTAlemhert em Politics and the Arts Letter to M dAIembert on the Theatre by JeanJacques Rousseau trans with notes and an introductions by AUan Bloom Glencoe 111 lhe Free Press 1960 p 131 n e a carta de Rousseau Lettre à M Beautnont sexto parágraíb da existência humana não pode satisfazer os anseios dos homens pela realização ou exigir sua total lealdade O argumento de Rousseau vai mais longe ainda ao afirmar que o Estado moderno baseado na autopreservação constitui um modo de vida que é exatamente contrário àquele que traria a felicidade dos homens A vida das grandes nações é caracterizada pelo comércio e consequentemente pela distinção entre ricos e pobres Cada homem pode buscar o seu ganho no âmbito da estrutura estabelecida pelo Estado O dinheiro serve de padrão para os valores humanos e a virtude é esque cida Cálculos de vantagens particulares são a base das relaçóes humanas isso pode não levar a uma guerra perpétua mas destrói a fundamentação na confiança e na cômoda sociabilidade e propicia o egoísmo e a má cidadania Porém acima de tudo porque há escassez e necessidades e não podem ser satisfeitos os desejos de todos os homens na sociedade os ricos são protegidos e os pobres oprimidos A sociedade civil é um esta do de interdependência mútua entre os homens mas os homens são maus e a maioria é forçada a desistir de suas próprias vontades a fim de trabalhar para a satisfeçáo dos poucos Ainda uma vez que esses poucos controlam as leis os muitos nem sequer usufruem a proteção pela qual supostamente participam da sociedade O resultado da concentração simplista e unilateral na preservação é a destruição da vida boa que vem a ser o único objetivo da preservação Esta é a base para o ataque de Rousseau ao Iluminismo Acreditavase que o progresso das artes e das ciências era a condição talvez a condição suficiente para o progresso da sociedade civil e para um aumento da felicidade humana O preconcei to seria derrotado pela educação as maneiras seriam refinadas pelas artes a natureza conquistada pela ciência Poderia ser assegurado um governo sólido que fosse funda mentado nas paixões daqueles que dele participam As esperanças do Iluminismo são as do homem moderno de acordo com Rousseau e é o retrato da sociedade humana pintado pelo Iluminismo que serve como ponto de partida para sua revolução do pen samento político Rousseau não apenas nega que o progresso das artes e das ciências aperfeiçoa a moralidade mas afirma ao contrário que esse progresso sempre leva à corrupção moral Para que floresçam as artes e as ciências exigem um ambiente de luxo e de lazer Em geral emergem estas dos vícios da alma na melhor das hipóteses uma curiosidade ociosa é sua fonte e na maioria das vezes são oriundas do desejo de confortos desnecessários que só enflraquecem os homens e satisfazem demandas desnecessárias A sociedade dominada pelas artes e ciências é uma sociedade cheia de desigualdade tanto porque os talentos necessários para empreendêlas se tornam motivo para distinção entre os homens como porque grandes somas de dinheiro são necessárias para sustentálas bem como aos trabalhadores para manobrar os apetre chos concebidos por essas artes e ciências A sociedade é transformada para sustentar J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 1 Discourse on Political Economy in The Social Contract and Discourses trans with an introduction by G D H Cole Everymans Library New York Dutton 1950 p 306308 323324 Este volume será citado doravante como o Rousseau de Cole as artes e as ciências e seus produtos e essa própria transformação cria uma vida cheia de vaidoso autoapreço e injustiça A primeira etapa da reflexão de Rousseau conduz a uma admiração pelo passado É noi a situação do homem moderno porém podemse encontrar na Antiguidade clássica modelos de sociedade civil em que os homens eram livres e se autogoverna vam A república velha a polis acima de tudo Esparta eram o refúgio de homens de verdade e proporcionaram longos perfodos de paz estabilidade e independência Rousseau revive a disputa entre os antigos e os modernos ao reafirmar a tese em fevor da cidade antiga Essa cidade não se baseava no conforto na autopreservação ou na ci ência mas na virtude a ciência das almas simples Virtude no sentido clássico signi ficava a boa cidadania e as qualidades que necessariamente a acompanham É somente com base na coragem no autossacrifício e na moderação que se pode fundamentar uma cidade em que a grande maioria governa a si mesma Rousseau é republicano é republicano porque acredita que os homens são livres e iguais por namreza Só uma sociedade dvil que é um reflexo dessa namreza pode ter esperança de fezer felizes os homens As exigências de uma sociedade livre eram atendidas da melhor forma pelas cidades gregas e por Roma embora não fossem perfeitas e a solução fundamental de Rousseau é um aperfeiçoamento a partir delas Eram pequenas de tal maneira que todos se conheciam e por conseguinte tinham interesses comuns e confiança uns nos outros Eram governadas pelo povo de tal forma que governantes e governados eram os mesmos não havia portanto diferenças fundamentais entre os interesses de gover nantes e governados As leis eram de antiga data e os homens se acostumaram com a carga de seu peso pela força do longo hábito O governo da lei é necessário para a so ciedade civil e leis justas exigem um rigoroso código moral para sustentar igualmente a sua carga somente uma estrita vigilância múma e hábitos de justiça são capazes de assegurar o seu funcionamento A principal consideração do governo é a virtude dos cidadãos A sociedade civil para funcionar como uma sociedade deve constituir uma unidade em que os indivíduos desistem de seus desejos particulares para o bem do todo A sociedade não pode ser concebida como o equilíbrio de interesses conflitantes para que os homens possam ser livres e não joguetes de grupos de interesse no poder Não o Iluminismo mas uma rígida educação moral é o prérequisito para uma sólida sociedade civil O gosto de Rousseau e sua análise sobre a injustiça da sociedade mo derna conduziramno de volta para a Grécia Contudo Rousseau foi levado ainda mais longe Seus ensinamentos não são apenas uma retomada dos de Platão e Aristóteles Se por um lado admira as práticas 5 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Discourse on the Sciences and Arts in JeanJacques Rousseau The First and Second Discourses ed by Rcer D Masters and trans by Roger D and Judith R Masteis New York St Martins Press 1964 Este volume será citado doravante como os Discourses de Masters The Government ofPoland in Rousseau Political Writingy trans and ed by Frederick Watkins New York Nelson 1953 chap ii p 162 ff cf Discourse on the Origin and Foundations ofln equality amongMen in Discursos de Masters p 7890 da Antiguidade por outro não aceita a sua teoria Nenhum ensinamento político será suficiente se meramente descrever como construir uma ordem estável ou como fàzer felizes os cidadãos É preciso também que legitime a autoridade exercida pelo gover no deve enunciar os fundamentos dos deveres e direitos do cidadão A questão políti ca central será sempre o que é justiça isto leva necessariamente à pergunta o que é natural Porque fora dos limites do direito positivo quando o problema é fundar ou reformar um regime o modelo exclusivo pode ser a natureza e mais especificamente a natureza do homem E é no que se refere a essa questão que Rousseau discorda de seus antecessores ou melhor juntase aos modernos em sua negação de que o homem é por natureza político Seguindo a forma corrente da ciência moderna em geral bem como a da ciência política Rousseau rejeita a noção de que o homem é encaminhado pela natureza em direção a um fim o fim da vida política A cidade ou Estado é uma construção puramente humana que tem origem no desejo de autopreservação Como tal o homem é concebível sem a sociedade política embora nesta época tardia possa esta se ter tornado necessária para ele A justiça como pode ser visto nas nações consiste em manter os privilégios daqueles que ocupam posições de poder Todos os Estados conhecidos estão cheios de desigualdades de nascimento riqueza e honra Talvez se possam justificar essas desi gualdades em termos de preservação do rime o que não o torna mais tolerável para aqueles que não as desfhitam As leis instituem e protegem essas diferenças hierárqui cas Sc há desigualdades naturais as que existem nas nações não as refletem pois são resultado das ações humanas e do acaso Não podem ser moralmente vinculativas para aqueles que oprimem com seu peso Se a sociedade civil não é natural então é preciso esquadrinhar um momento anterior a ela para encontrar o homem tal como é por natureza Esta investigação é ne cessária a fim de determinar as origens do Estado se a sociedade civil náo é natural é convencional portanto para que haja alguma legitimidade nas leis da sociedade civil suas convenções devem basearse nessa natureza primeira Rousseau fez uma tentativa de descrever o homem no estado de natureza Outros pensadores modernos concor dando que a sociedade civil é convencional tentaram fàzer o mesmo e fundamentar o direito político em um direito prépolítico natural Porém de acordo com Rousseau jamais conseguiram atingir o primitivo estado de natureza Náo foi radical o bastante sua própria rejeição da naturalidade da sociedade civil Negaram que o apego ao bem comum e a comunidade política sáo partes da perfeição humana e tentaram derivar as regras da política a partir de um indivíduo independente de qualquer Estado Contu do ao descrever esse indivíduo descreveram na verdade o homem que vive na socie dade civil Foram criptoteleólogos no sentido de que tentaram compreender o homem tal como ele é por namreza do ponto de vista de seu completo desenvolvimento na sociedade civil Entretanto se o homem não é verdadeiramente um ser político e social então a sua namreza deve ter sido transformada para que atingisse um ponto em que ele pudesse viver na sociedade civil Os pensadores anteriores ao retirar do homem sua natureza social viram nele muitas características que são resultado da vida J e a n Ja c q u e s R o u s s e a u 5 0 3 comunitária por exemplo a inveja a desconfiança o desejo ilimitado pela aquisição e a razão Para conhecer o homem natural é necessário um esforço mental quase sobre humano pois não temos contato com ele somos homens civilizados desgastados pela corrosão da sociedade civil Há um percurso do homem natural até o homem civil mas esse trajeto não é como o caminho do embrião até o homem onde o primeiro passo é direcionado para o último e por ele iluminado Este movimento não é obrigatório por isso precisamos de uma história da espécie humana Pela primeira vez a história tornase parte inte grante da teoria política O homem é um ser diferente em épocas diversas embora para Rousseau ainda possua uma natureza primitiva que domina todas as transforma ções ocasionadas pelo tempo A consciência que tinha Rousseau da desproporção entre o homem natural e o homem civil que está implícita em uma rejeição da naturalidade da sociedade civil obrigao a uma investigação do homem primitivo Os outros ensi namentos que não revelam o verdadeiramente natural conduzem apenas a uma es cravidão mais profunda aos vícios engendrados pela sociedade civil A investigação que realiza se desenrola de duas maneiras a primeira é por meio do que hoje chamamos de antropologia O primitivo que era antigamente desprezado como inferior e imperfei to agora parece lançar luz sobre esse período anterior e por conseguinte se torna um objeto de grande interesse científico Entretanto porque aqueles denominados selva gens ou primitivos já vivem em sociedades não são mais que placas de sinalização na estrada de volta Mais importante é a segunda maneira a introspecção para descobrir os primeiros e mais simples movimentos da alma humana Posto que o homem não é primordialmente político e social se quisermos enten dêlo como é por natureza devemos despojálo de todas as qualidades relativas à vida em comunidade A primeira e mais importante delas é a razão A razão depende da fala e a fàla implica na vida social Assim a definição do homem já não pode ser que se trata de um animal racional De início só se poderia dizer que é um animal como os outros animais Vagueia pela floresta em busca de alimento Procura preservar o seu ser mas não é um animal voraz por natureza hostil a todos os outros membros de sua espécie tal como Hobbes entendia que fosse Hobbes só podia afirmar isso ao atribuir aos primeiros homens os desejos ilimitados do homem político Na verdade este primeiro homemanimal tem apenas a mais simples necessidades do tipo que em geral são satisfeitas com facilidade Nâo é capaz de imaginar um futuro distante Não tem medo da morte porque não é capaz de concebêla apenas evita a dor Não tem necessidade de combater seus semelhantes exceto quando há uma escassez das ne cessidades básicas É ocioso por natureza e se move somente para satisfazer suas neces sidades naturais Só busca a riqueza lun ser que tem capacidade de previsão que tem necessidades além do natural O homem natural industrioso de Locke é também uma elucubração derivada da sociedade já desenvolvida É nesse ócio que é desfrutado o verdadeiro prazer do animal ele percebe quanto é agradável sua própria existência São apenas duas as suas paixóes fundamentais o desejo de preservar a si mesmo e alguma compaixão ou simpatia para com o sofrimento de outros de sua espécie Esta última o 5 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y impede de ser brutal para com os outros homens quando tal humanidade náo entra em conflito com sua própria preservação Náo possui virtudes porque náo precisa de nenhuma Não se pode dizer que tem moral tudo o que fez fez porque lhe sarada fezêlo Mas possui alguma bondade não causa mal Contemplados desta forma podese dizer que todos os homens são iguais por natureza Possuem na prática apenas existências físicas se existem diferenças de força pouco é seu significado porque os indivíduos estão em contato uns com os outros Não se pode derivar o direito de um homem governar outro a partir do estado natural do homem O direito do mais forte não é um direito primeiro porque o escravo por sua vez pode sempre se revoltar obrigação moral alguma se estabelece porque um homem mais forte subjugou outro mais fraco Segundo um homem jamais poderia escravizar outro no estado de natureza porque os homens não tinham necessidade um do outro e seria impossível manter um escravo Tampouco fornece a família uma fon te de direito político porque no estado de natureza não há femília As relações entre o homem e a mulher são informais e a mãe cuida dos filhos por instinto até que estejam fortes o bastante para se defenderem sozinhos não há envolvimento de autoridade ou dever O estado de natureza é um estado de igualdade e independência Há duas características que distinguem o homem dos outros animais e assumem o posto da racionalidade como a qualidade essencial da humanidade A primeira é a liberdade da vontade O homem não é um ser determinado por seus instintos é capaz de escolher aceitar e rejeitar É capaz de desafiar a natureza E a consciência dessa liberdade é a prova da espiritualidade de sua alma O homem tem consciência de seu próprio poder A segunda característica do homem que vem a ser menos questionável é a sua perfectibilidade ou capacidade para a perfeição O homem é o único ser capaz de gradualmente aperfeiçoar suas feculdades e legar esse aperfeiçoamento para toda a espécie Todas as feculdades mentais superiores que se veem no homem civilizado são provas disso São agora parte permanente da espécie mas não lhe pertenciam por natureza Com base nessas duas características fundamentais do homem podese dizer que o homem natural se distingue por não ter quase nenhuma natureza por ser potencialidade absoluta Não há metas apenas possibilidades O homem não tem determinação é um animal livre Esta constituição o conduz para longe de seu con tentamento original em direção à miséria da vida civil mas também o torna capaz de dominar a si mesmo e à natureza O homem natural portanto é um animal preguiçoso que desfruta a sensação de sua própria existência preocupado com sua preservação e tendo compaixão pelo sofirimento de seus semelhantes livres e perfectíveis Seu movimento em direção ao estado civilizado é o resultado de acidentes imprevisíveis que deixam sobre ele marcas indeléveis As catástrofes naturais forçamno a um contato mais próximo com outros homens Desenvolve a fala e começa a manter um lar estável com sua mulher e filhos É mais frágil e suas necessidades são maiores agora mas sua existência é intrinsecamente agradável Não há ainda nenhuma lei nenhum Estado nenhuma desigualdade As necessidades dos homens não são tais que os tornem concorrentes No entanto final J ea n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 5 mente os homens se tornaram dependentes uns dos outros e as primeiras experiências de cooperação ou de metas comuns sugerem à mente o que poderiam ser a obrigação ou a moralidade A liberdade do homem ainda vem em primeiro lugar e quando for vantajoso para ele poderá desvencilharse de qualquer compromisso assumido mas também percebe uma vantsem na obtenção do auxílio de outros bem como a neces sidade de fezer a sua parte se quiser receber o mesmo em troca No entanto ainda é tão independente que não estará disposto a sacrificar qualquer fração de sua liberdade a fim de garantir o cumprimento de contratos Além do despertar da primeira consciência da obrigação moral o homem nesta nova situação de comunidade começa a exercer a vingança Uma vez que os homens estão em contato diário uns com os outros há mais motivo para atrito e porque náo há lei cada homem é juiz em causa própria É enfraquecida a compaixão natural que é a raiz da humanidade no estado de natureza como resultado do conflito entre o amor de si e a compaixão cm casos assim o primeiro sempre vence Porém não são essas batalhas que fezem com que os homens constituam a sociedade civil é a instituição da propriedade privada O fundador da sociedade política c o homem que causou os maiores males para a humanidade foi aquele que primeiro disse Esta terra me per tence O cultivo do solo é a fonte da propriedade privada Somente aquilo que um homem fez ou aquilo a que acrescentou seu trabalho pode em qualquer sentido ser considerado como pertencente a ele Com a fundação da propriedade privada surge também o planejamento para o futuro Quando os campos c riachos por si mesmos forneciam alimentação vestuário e habitação o homem não pensava no futuro O agricultor porém deve fezêlo e o desejo de aumentar e proteger suas colheitas mul tiplica seus desejos e fez com que busque o poder É ainda na instituição da propriedade privada que encontramos a origem da desigualdade Pois diferentes homens têm diferentes habilidades e talentos que permi tem que alguns deles aumentem suas posses Logo toda a terra disponível está cercada e alguns possuem mais do que precisam outros menos Os homens reconhecem a propriedade como algo real mas sua própria necessidade também é algo real Não há juiz para julgar entre essas diferentes reivindicações e não há nenhuma lei natural para solucionálas porque a situação foi criada pelo homem não é natural Necessariamen te sobrevêm um estado de guerra entre os proprietários e os não propretários Neste estágio o homem já desenvolveu toda a sua potência e se fez infeliz A maior mudança em sua natureza é que antes vivia inteiramente pata si mesmo dentro de si Agora vive para os outros não só porque depende deles do ponto de vista físico mas porque aprendeu a compararse aos demais Sua alma tornouse escrava de outros homens e este vínculo é mais forte que sua necessidade deles para ajudálo a satisfezer seus desejos Busca o dinheiro e as honras em vez de refletir sobre seus reais desejos O homem tornouse vaidoso e na busca para satisfezer essa vaidade existem infinitas fontes de contenda A vaidade ou amorpróprio amourpropre tomou o lugar do amor de si amour de sot original em lugar de desejos físicos que devem ser apazigua dos está iora possuído por infinitos anseios por bens que nunca poderá usar e por uma glória que despreza assim que é obtida 5 0 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o ii n c A L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y É neste momento que um indivíduo entre os ricos consciente do perigo constante para sua propriedade e da situação miserável do povo sure um contrato para o esta belecimento da sociedade civil Este homem esperto discerne a possibilidade de garantir seu questionável direito à propriedade por meio do consentimento de outros homens e de manter a paz por meio de um paao mútuo para proter a todos contra a ressão Foi extinta a paixão natural da compaixão e seu único substituto na nova situação é uma moralidade que define os deveres dos homens sustentada por uma autoridade reconhe cida Já não basta a natureza O aterrador estado de guerra torna necessário este passo e assegura a aquiescência dos pobres No entanto tratase de uma fraude Os ricos dão uma aparência de legitimidade a seu controle de suas propriedades e têm a possibilidade de desfrutálas em paz É legalizada a desigualdade que gradualmente se instalou e a opressão dos pobres é mantida pela força pública Hobbes tem razão quando diz que os homens que são comidos a fundar a sociedade civil são hostis uns aos outros e atormen tados por desejos infinitos Está errado apenas em afirmar que é esta a natureza do ho mem Houve um estado anterior que definiu o caráter essencial da liberdade do homem e que torna impossível que este se submeta legitimamente à vonude de qualquer outro Locke está certo quando afirma que o objetivo da sociedade civil é proteger a proprieda de Também está incorreto apenas em afirmar que a propriedade é natural ao homem e que as desaldades estabilizadas pela sociedade civil estão em conformidade com reais padrões de justiça Todo homem tem o direito natural de se preservar e de apr de acordo com este direito A sociedade civil não tem nenhum fundamento natural para legitimar um comando que contradiz o direito natural Entretanto todas as sociedades civis emi tem tais comandos o direito natural não pode ser a sua legitimação O homem é livre por natureza e a sociedade civil toma dele sua liberdade ele é depende da lei e a lei é elaborada em fevor dos ricos pelo menos em sua origem tencionava fevorecêlos Então o problema político está na apresentação da história de seu nascimento O homem livre por natureza precisa do governo para organizar e regular a vida em comum à qual se comprometeu Porém exatamente porque desenvolveu terríveis pai xões que demandam um governo um governo justo passa a ser factualmente difícil porque os homens que elaboram as leis estão sob a influência dessas paixões e os ci dadãos continuam a possuir essas paixões e têm todo o interesse em alterar o governo em prol da sua satisfeçáo Somente a mais rígida educação moral é capaz de remover essa dificuldade educação moral esta que quase nunca é encontrada Ainda do ponto de vista do que é correto a sociedade civil exige uma devoção ao bem comum uma subordinação do indivíduo ao todo enquanto o homem por natureza é um animal independente e ofsta Em qualquer ponto onde percebe um conflito entre a socie dade e ele mesmo é natural e devidamente motivado por seu interesse egoísta Como pode a sociedade civil legitimamente compelir um homem a se sacrificar por ela Como pode um indivíduo egoísta exigir que outro lhe obedeça Nenhum contrato J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 7 5 As painas precedentes resumem o argumento de Discours sur l origine et lesfòndementes de Tinégalité parmi les hommes Discurso sobre a origem da desigualdade entre os bomens pode vincular ao ponto de sacrificar aquilo pelo qual foi celebrado e nenhum homem por vontade própria cede por contrato a liberdade que é o âmio de seu ser A sociedade civil não pode ser fundamentada no direito natural a natureza só dita o interesse próprio A natureza é muito baixa para abarcar a sociedade civil o esmdo da namreza conduz a sua rejeição como padrão pelo menos para a sociedade Segundo Rousseau seus antecessores não compreenderam isso A sociedade civil exige moralidade porque o caráter natural do homem não é suficiente para obrigálo in foro interno às exigências mais rigorosas da vida política e suas paixões recém inflamadas o tornam ainda menos apto para a sociedade Uma sociedade que se baseasse no cálculo dos interesses de cada homem teria como resultado apenas que as paixões continu ariam a se desenvolver pois o interesse de cada homem já é determinado por suas paixões e levaria inexoravelmente à tirania ou à anarquia Por consuinte posto que a moral não é natural ao homem é preciso criála É a base para este projeto que Rous seau estabelece em O contrato social nele tenta solucionar o problema que constitui o conflito entre o indivíduo e o Estado ou o interesse próprio e o dever Nada pode sujeitar a liberdade do homem mas a sociedade civil é uma sujeição O ato de criação da sociedade civil é idêntico ao de estabelecer compromissos moralmente vinculati vos para outros Já que a natureza não fornece a base para o acordo é necessária uma convenção Tradicionalmente as convenções são consideradas como sendo de ordem inferior às leis naturais exatamente porque são feitas pelo homem e mutáveis as con venções são diferentes em toda parte e parecem ser o resultado da vontade arbitrária e do acaso O homem que obedecesse à convenção pareceria ser prisioneiro de outros homens Porém se o homem é livre sua capacidade de fàzer convenções é um sinal dessa liberdade sua vontade não é limitada por natureza Nesta medida o homem criador da moral e do Estado é o cumprimento da noção do homem como ser livre e indeterminado Se pudesse ser evitado o caráter meramente arbitrário das convenções então seria possível dizer que uma sociedade civil convencional é ao mesmo tempo a realização da natureza humana e digna de seu respeito e obediência Como afirma Rousseau em suas próprias conmndentes formulações A dificul dade é encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado pela qual cada um unindose a todos no entanto obedeça apenas a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes A solução é que cada homem se dê por inteiro à comunidade com todos os seus direitos e proprie dades O depósito é feito no todo mas não em um indivíduo desta forma ninguém se coloca nas mãos de outro O contrato é igual pois cada um dá tudo Ninguém se reserva quaisquer direitos pelos quais possa pretender julgar sua própria conduta por conseguinte não há fonte de conflito entre o indivíduo e o Estado pois o indivíduo contratou aceitar a lei como o padrão absoluto para seus atos O contrato social esta belece uma pessoa artificial o Estado que tem uma vontade tal como a pessoa natural o que parece necessário ou desejável para essa pessoa é a vontade dela e aquilo que é a 5 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a s L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Social Contract Iiiv 7 Ibid Ivi vontade de todos é lei A lei é o produto da vontade geral Cada indivíduo toma parte na criação das leis mas a lei é geral e o indivíduo em seu papel como legislador deve fazer leis cuja concepção permita que sejam aplicadas a todos os membros da comu nidade O indivíduo transforma sua vontade em lei mas agora ao contrário do que fez no estado de natureza deve generalizar sua vontade Como legislador sua vontade só pode ser igual à vontade de todos como cidadão obedece a sua própria vonta de como legislador Embora os homens de gostos e entendimentos diversos componham o corpo legislativo soberano ninguém pode impor sua vontade aos outros a menos que possa ser igual à vontade dos outros A lei é produzida pela vontade de cada um que pensa em termos do todo A função primoidial do contrato social é constituir um regime que pode expressar a vontade geral A sociedade civil é apenas um acordo entre um grupo de homens de que cada um deve tornarse parte da vontade geral e obedecer a ela Como resultado cada um permanece tão livre quanto era antes porque a nada obedece além de sua vontade transformada A liberdade convencional da sociedade civil satisfaz o direito primário natural do homem a liberdade Enquanto a sociedade estiver organizada de forma que as leis possam ser elaboradas de forma impessoal nenhum homem pode fazer uma reclamação contra ela com base no direito natural O homem no estado de natureza tinha direito a tudo aquilo de que tivesse vontade nem a vontade nem a razão de outros homens podiam legitimamente emitirlhe comandos Não há nenhuma razão eterna que possa e deva controlar nossas ações Cada homem faz seus próprios julga mentos com base em sua experiência pessoal e afetado por sua vontade particular Este fato se reflete na noção de vontade gerai o homem é um ser que tem vontade e a capa cidade de fezer aquilo de que tem vontade é a essência da liberdade A vontade é como tal independente daquilo de que se tem vontade A lei natural ou qualquer outro comando racional voltado para o bem comum é uma limitação à liberdade extraída de uma fonte duvidosa Portanto a vontade geral não contém diretrizes específicas pode determinarse a fezer o que quer que lhe ocorra é vazia em si mesma é vontade pura Este é outro aspecto da preservação da liberdade natural A vontade geral é formal e só se distingue da vontade particular porque só pode ser vontade daquilo que todos poderiam concebivelmente ter como vontade Assim se estabelecem alguns limites sobre o que a sociedade como um todo pode fazer ao contrário da licença completa da natureza e Rousseau acredita que essas limitações puramente formais são suficientes para garantir a decência ou que a vontade generalizada em si é moral O filósofo crê que descobriu o verdadeiro princípio da moralidade que outros apenas intuíram e ten taram fundamentar em interpretações dúbias e arbitrárias da natureza ou da religião revelada A liberdade do homem que parece ser independente e oposta ao governo da moral é a única fonte de moralidade Com esta descoberta Rousseau completa a rup tura com os ensinamentos políticos da Antiguidade clássica iniciada por Maquiavel e Hobbes Seus predecessores imediatos mantiveram a noção de lei natural que limitava a liberdade humana que eles próprios ensinavam J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 0 9 8 Ibid Iv ii O movimento a partir do estado natural até o estado civil produz uma grande transformação no homem Era antes uma besta aíavel tornouse agora um ser mo ral Todas as suas capacidades entram em jogo suas ideias são desenvolvidas e amplia das e seus sentimentos são enobrecidos No estado de natureza o homem agia apenas por instinto íora deve avaliar suas ações em relação a princípios para que as palavras escolha e liberdade adquiram um sentido moral Se um homem continua a ir segundo sua vontade particular podese dizer que se rebaixa ao nível dos animais Abre mão de sua liberdade tanto no sentido de ser um mero instrumento de suas pabtões como no sentido de que destrói a possibilidade de uma sociedade justa e por conse guinte colocase em poder dos outros A sociedade tem justificativa portanto para forçálo a ser livre para cosilo a exercer sua vontade da forma adequada A educação e a punição são os instrumentos dessa coação Porém a dignidade verdadeiramente humana emerge da opção consciente pela vontade geral em detrimento da particular O contrato social institui o soberano Rousseau utiliza o termo soberano para indi car que a fonte de toda a Intimidade está no povo em geral ao contrário de no monarca ou nos aristocratas ou em qualquer outro segmento Deve haver um governo que pode ser monárquico aristocrático ou democrático mas seu direito de governar é oriundo do povo e exercido somente enquanto lhe agradar Posto que foram abandonadas a na tureza e a religjão revelada só a voz do povo pode estabelecer a lei cada promulgação deve retornar a ele a sua vontade A vontade do povo é a única lei O govemo só obedece à lei e cada cidadão é constantemente um membro do corpo legislativo Todo cidadão encontrase em uma dupla relação com o Estado como inalador na medida em que é membro do soberano e como súdito da lei um indivíduo que deve obedecer Várias conseqüências decorrem do íato de que o soberano é a única fonte de legitimidade Em primeiro lugar a soberania é inalienável O direito de criar leis em lugar do corpo de cidadãos em geral não pode ser atribuído a nenhum homem ou gmpo de homens Ririam estes de acordo com suas vontades individuais e seus de cretos não seriam vinculativos Isto significa que o governo representativo é uma má forma de govemo Outros assumem a responsabilidade dos cidadãos que perdem sua virtude de cidadãos bem como sua liberdade Se uma nação é tão grande que os cidadãos não podem leunirse em um corpo comum então a representação tornase uma lastimável necessidade uma necessidade que enfraquece a expressão da vontade geral Em tal caso para que seja preservada qiuJquer legitimidade os representantes devem ser eleitos por assembléias locais em que se reúnam todos os cidadãos e os re presentantes devem receber instmções detalhadas Não devem ser independentes em seu julgamento e para cada nova questão que se apresente devem consultar aqueles que os elegeram Caso contrário não há vontade geral A vontade geral exige con sulta permanente Pode ser consultada apenas pelo voto para que seja majoritário o sistema sugerido por Rousseau Contudo não se trata esta de uma forma de maioria simples as leis só podem ser devidamente instituídas se os cidadãos possuem a virtude 5 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia Po i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Ibid IIIXV Cf Government ofPoland cap vii p 187205 de suprimir suas vontades particulares Os indivíduos devem ser cidadãos no sentido clássico o que requer uma moralidade autoimposta muito rígida Rousseau não é um libertário no sentido moderno da palavra não é possível que cada homem viva como deseja pois isso arruinaria a possibilidade de acordo e destruiria as fontes da energia moral necessária para o autocontrole Rousseau desprezava a democracia tal como nor malmente praticada porque esta signiíica uma selvagem anarquia de interesse próprio A insistência formalista no voto do povo não tem sentido sem o estabelecimento de suas precondições morais Esparta estava correta em se concentrar nos hábitos de seus cidadãos ao contrário da moderna condescendência que deixa a vida privada a cai dos indivíduos Os gostos e costumes dos cidadãos afetam todos os seus julgamentos e determinados hábitos impossibilitam totalmente o governo livre Rousseau reestabe lece a cidade grega mas traz à luz o verdadeiro princípio que motivou sua insistência na virtude austera a virtude em si não é um fim é um meio para a liberdade Ao mesmo tempo além da virtude a expressão da vontade geral deve ser garanti da pela supressão das fecções Cada cidadão por si só não pode esperar que prevaleça sua vontade particular e reconhece que se todos votassem de acordo com suas pai xóes não haveria ordem É somente quando pertence a um grupo grande o suficiente para influenciar as votações de maneira decisiva que sua vontade particular supera sua percepção da vontade geral a fim de discernir o que ele pessoalmente pode ganhar Assim devem ser proibidos os partidos e os extremos de riqueza e pobreza evitados Na medida do possível os cidadãos informados devem votar como indivíduos e o resultado de tal votação pode ser considerado como uma vontade geral Rousseau tinha consciência da tensão que existe entre a estabilidade que a lei exige e a constante reavaliação implícita na assembleia do povo Não há nenhuma lei ou instituição que não possa ser revogada para que o Estado seja regido pelas vonta des reais de seus atuais cidadãos Toda assembleia deve começar com a peiunta Apraz ao soberano preservar a atual forma de governo Contudo a ideia de que a lei é um produto da vontade própria do indivíduo enfraquece a admiração quase religiosa que é necessária para manter o respeito pela lei Antigas instituições e a santidade da lei são restrições sobre a expressão do interesse egoísta é mais provável que o homem que jamais concebeu a possibilidade de alterar os costumes estabelecidos se comporte de acordo com comandos que jamais questionou do que aquele que está acostumado com mudanças fáceis Esta é uma dificuldade que Rousseau nunca solucionou de todo mas que tenta eliminar quando dificulta o processo de mudança quando responsabiliza por seus efeitos os indivíduos que a sugerem e defende uma educação que incute o respeito pelas boas instituições No entanto não pode ser removida a possibilidade de mudança se os cidadãos tiverem consciência de sua liberdade e forem capazes de discernir o que a preserva e o que a destrói J e a n J a c q u e s R o u s s e a u 5 1 1 10 Social Contract IILxviii O soberano é também por namreza indivisível A noção de vontade geral toma impossível que haja uma separação de poderes que nada mais é que uma delegação para a execução de fiinçóes previamente definidas pelo soberano e que em última análise depende dela O poder soberano é uma unidade que náo pode ser dividida sem que seja destruída Nenhuma autoridade existe sem que seja derivada da vontade geral O contrato social é um acordo para formar uma sociedade civil e estabelece o instrumento da autoridade o soberano Porém a instituição deste corpo não lhe confere movimento a nova sociedade deve ter atividades e finalidades precisa de leis O caráter das leis não é determinado pelo contrato o contrato só estabelece o órgão le gítimo de legislação Os decretos individuais podem variar de acordo com os interesses da sociedade As leis tal como a vontade geral devem ser apenas gerais Não podem referirse a pessoas ou atos específicos Se o fizessem as pessoas envolvidas não parti cipariam da vontade geral estariam de fora dela uma vez que suas vontades não par ticiparam do estabelecimento da lei A lei pode estabelecer regulamentos que especifi cam diversos deveres honras e classes mas não podem dizer a quem esses regulamen tos se aplicam Considera os cidadãos como um corpo e os atos como abstratos As leis devem ter sanções impostas pelos homens já que não há outras fontes delas sobre a terra estas sanções devem incluir o poder de vida e morte na medida em que os maus necessitam de repressão Caso contrário a sociedade seria uma vantagem para os injustos mas não para os justos E não há limites para o alcance da lei O que não afeta as necessidades da própria sociedade civil deve ser deixado à livre de terminação do cidadão mas não há meio de estabelecer com antecedência o que será necessário para a preservação da sociedade Náo há direitos reservados em favor dos cidadãos Se houvesse os cidadãos poderiam abandonar o contrato em momentos crí ticos Ainda uma vez que a sociedade civil implica todo um modo de vida os assuntos aparentemente mais triviais de usufruto particular podem ter um efeito político Os costumes da sociedade são motivo de preocupação igual ou maior que as instituições do governo porque os costumes subjazem às instituições e lhes dão força Encontrar um código de leis que seja adequado a um povo que seja completo e que será obedecido não é uma tarefa para homens primitivos tal código não pode emergir a partir da simples reunião de um grupo de homens que se constituem como soberano As vontades particulares ainda são predominantes não são reprimidas pelo hábito da vida civil Do ponto de vista prático é só depois de um povo ter vivido por um longo tempo com suas leis e hábitos que pode ser considerado um povo um grupo com interesses comuns e uma vontade geral algo que vai além de uma aglomeração É só mais tarde que o povo estará preparado para julgar se são boas suas leis No entanto a sociedade precisa de leis desde o início para que os mais fortes não tomem o poder e im ponham suas vontades particulares à massa do povo e a escravize Por conseguinte para a formação de uma verdadeira sociedade civil é necessário um legislador Este homem 5 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Discourse on Political Economy p 298 no Rousseau de Cole extraordinário deve descobrir as regras apropriadas para a sociedade em questão e deve forçar ou persuadir o povo a aceitálas Ele próprio não pode ser um membro do estado e não tem autoridade ele propõe as leis que em última análise devem ser aprovadas pela vontade geral O seu é um trabalho de amor pelo qual obtém apenas honra Rousseau tem em vista homens como Moisés e Licurgo que estabeleceram um povo e com este a justiça Nisto também retorna a uma visão clássica pois não acredita em reforma parcial ou no triunfo automático e gradual da razão na política É necessária a ação cons ciente típica do estadista toda a ordem deve ser fundada em um só momento de acordo com um plano racional e só a grandeza pode orientar esta tarefa A maior tarefe política é o estabelecimento de um regime e nada pode eliminar a necessidade de virtude extra ordinária para concretizálo A própria grandeza do legislador faz mais difícil seu sucesso porque aqueles a quem pretende convencer não são capazes de entendêlo É preciso que aprenda a língua do vulgo e esta é principalmente a língua da inspiração divina ou da religião O povo pode impressionarse e convencerse pelos tons de misericórdia e pela aparência de milsre Esta é uma das poucas maneiras de calar a voz do interesse priva do por tempo suficiente para que os muitos aprendam a apreciar as vantagens da lei A religião é usada para fins políticos e na visão de Rousseau não deve tornarse indepen dente do controle político A religião não deve conter ensinamentos que não conduzam às finalidades do regime Rousseau estava perfeitamente consciente de que impostores poderiam desempenhar o papel de legisladores e que o homem forte é sempre um perigo Porém ao examinar as origens dos regimes via apenas meios como esses para estabelecer regimes ordeiros e legítimos Os regimes são criados por homens e os bons exigem grandes homens e meios extraordinários Embora as condições formais de legitimidade sejam as mesmas em toda parte Rousseau queria preservar um nicho para a atividade do estadista Sabia que a política não poderia tornarse uma ciência abstrata como desejavam alguns teóricos moder nos Rousseau tentou combinar a clareza e a certeza da ciência política moderna com a flexibilidade da arte clássica da política O feto da diferença de circunstâncias significa que muitas nações não podem desfrutar da liberdade e que muitos outros só podem usufruir de uma forma diluída dela Um regime que pudesse ser concretizado em to dos os lugares seria de ordem tão inferior que os poucos que podem desfrutar de um bom regime ficariam privados dele sem que os demais tirassem proveito disso A legis lação deve ser elaborada no momento certo e um povo primitivo não corrompido por hábitos decadentes é o mais qualificado para fezêlo Devemse levar em consideração seu clima e seu território sua extensão e seu caráter As tradições do povo e seus cos tumes determinam a gama de possibilidades A formalidade da vontade geral permite essas diferenças Não há doutrina da lei natural que limite as atividades do estadista e o obrigue a suavizar seu julgamento acerca do que mais propicia o bem comum O feto de que existem diferentes povos implica que haverá diferenças entre as determinações da vontade geral É preservada a diversidade da vida mas o homem não fica sem orien Je a n Ja c q u e s R o u s s e a u 513 12 Social Contract Illvii cf Government ofPoland cap ii p 163165 tação motal na diversidade existe a unidade que é a mesma em toda parte a vontade geral Entretanto náo há substanciais comandos universais implícitos na vontade ge ral uma grande variedade de princípios opostos pode ser legitimamente emitida por ela a vontade geral pode estipular leis que levam a grande variação nos estilos de vida e de açáo De acordo com O contrato social e a fílosofía política que lhe subjaz não existe regime ou esquema de leis ideal Diferentes sistemas podem igualmente permitir a existência de uma vontade geral em circunstâncias diversas A vontade geral é apenas a expressão de um desejo de que algo seja feito Também é necessária uma força para íãzêlo Esta necessidade acarreta uma distinção entre o legislativo e o executivo entre o soberano e o governo Uma vez que o soberano só pode legitimamente promulgar leis acerca de assuntos gerais a aplicação das leis a atos ou pessoas específicas não é de sua alçada mas ao contrário pertence ao governo O governo recebe suas instruções da vontade geral e usa sua autoridade para determi nar os atos dos cidadãos de acordo com a percepção do soberano É o intermediário entre o soberano e o cidadão individual e é totalmente derivativo Esta distinção de Rousseau é nova e funciona como uma ruptura fundamental com seus antecessores em particular os da Antiguidade clássica Prefigura a distinção entre Estado e socie dade que é tão importante hoje Para os pensadores clássicos a disposição dos cargos públicos o governo era a principal consideração A forma de governo determina a forma da sociedade e com uma mudança de governo seria constimída uma nova sociedade Não se devia lealdade ao país ao povo ou à sociedade mas ao governo No esquema de Rousseau a existência do soberano antes da existência do governo signi fica que este último é apenas um fenômeno secundário do ponto de vista do direito e do fato O contrato constitui a sociedade que antecede o governo e que se mantém apesar de mudanças no governo Por conseguinte o mais interessante objeto de estudo é a sociedade e se deve lealdade primordialmente a esta e não ao governo O principal feto da política não é o govemo dos homens o governo é um mal necessário porque os homens precisam de orientação no exercício de sua liberdade Quanto menos governo melhor e há uma grande preocupação em limitar o âmbito do governo e impedir que contrarie a vontade geral O governo é sempre visto com suspeita e os cidadãos devem ter cuidado para que o exercício de suas funções não os iniba injustamente no exercício de sua liberdade O governo institui as desigualdades de hierarquia e de autoridade que lhe são necessárias mas essas diferenças não estabelecem reais diferenças de valor entre os cidadãos que são todos iguais O governo sempre depende totalmente da vontade do povo e pode ser reduzido a sua igualdade original a eles É fecil perceber como pensadores posteriores foram capazes de desenvolver sobre esta base noções como a debilitação do Estado sem acreditar que seriam perdidas as vantagens fundamentais da sociedade e é menos chocante pensar em mudanças no governo com base nisso A tradição mais antiga ensinava que o estabelecimento do 5 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Social Contract Illviii Letter to M dAIembert p 66 14 Social Contract Ivii Illi Discourse on Political Economy p 289298 governo é o ato fundamental na formação de uma comunidade e que a destruição daquele eqüivale à destruição da sociedade Por conseguinte a desigualdade que o governo implica é contemporânea da sociedade e daí se segue que a autoridade do go verno nâo deriva do povo como um todo ou da vontade geral Os homens superiores não devem sua superioridade ao povo Esta diferença leva o pensamento de Rousseau a uma deterioração na respeitabilidade do governo e maior concentração nos direitos dos cidadãos do que na eficácia da execução O governo deve ser poderoso o suficiente para dominar as vontades particulares dos cidadãos mas não poderoso o bastante para dominar a vontade geral ou as leis Quanto mais habitantes tiver um país mais serão poderosas as vontades particulares e mais difícil será para os Indivíduos se identificarem com a comunidade Por conse guinte o governo deve ser mais vigoroso em terras populosas especialmente quando for grande a extensão territorial Quanto mais pessoas partilharem da autoridade do governo menos vigoroso será o governo a monarquia é o mais vigoroso dos governos e a democracia o menos Seguese que a diferença de tamanho das nações significa que são necessários diferentes tipos de governo Não se pode fàlar de melhor governo A diferença entre democracia aristocracia e monarquia é numérica e por conseqüên cia de vigor É tacitamente negada por Rousseau a noção clássica de que a diferença é de virtude e que a escolha entre as três formas de regime é o ato político decisivo Via de regra a aristocracia possui o menor número de inconvenientes A democracia exige virtude demais é quase igual a governo nenhum e é fiicil demais a identificação das vontades particulares coletivas com a vontade geral A monarquia é concentrada demais e os problemas de sucessão são grandes demais A aristocracia é uma espécie de média entre os inconvenientes dos dois mas pode tornarse o pior dos regimes Exis tem três tipos possíveis de aristocracia hereditária natural e eletiva O primeiro é o pior tipo na opinião de Rousseau pois se baseia na riqueza e na desigualdade conven cional enquanto seus membros estão sob a ilusão de que seus direitos são independen tes da vontade do povo Há um interesse coletivo de classe que divide a comunidade Contrariando toda a tradição da filosofia política Rousseau nega que uma verdadeira aristocracia é uma classe politicamente identificável Nas societkdes primitivas os melhor dotados para governar são quase que naturalmente escolhidos e esta é uma so lução excelente embora inadequada para sociedades mais desenvolvidas A eleição é o único modo legítimo de selecionar um número limitado de governantes pois assegura que será constante sua submissão à vontade geral Desta forma a aristocracia passa a ser pouco mais que uma expressão do feto de que na maioria das sociedades nem todos governam de modo que deve ser escolhido um número limitado de homens Não existem critérios de nascimento ou riqueza para a seleção desses poucos e a aristocracia não representa um modo de vida Rousseau é daro tenta estabelecer critérios para a seleção dos verdadeiramente melhores e para J e a n Ja c q u e s R o u s s e a u 5 1 5 15 Discourse on the Orign and Foundations ofinequabty amongMen e os Discursos de Masteis p 227 notas à p 174 do texto evitar a demíogia mas sua noção de aristocracia não está longe da nossa noção atual de governo popular ou democrático Acima de tudo nenhuma classe é autorizada a estabelecer direitos especiais para si mesma e consequentemente nenhum modo de vida especial pode ser ligado a seus privilégios de classe Rousseau tenta preservar a diferenciação e o privilégio especial para o talento político mas o princípio funda mental do direito político é a igualdade e o privilégio nunca deve identificarse com as convenções da aristocracia tradicional que preserva a mediocridade sob pretexto da superioridade O pensamento de Rousseau implica uma condenação total do encora jamento para as diferenças de classe que eram fundamentais ao pensamento clássico A morte de um governo ocorre quando as vontades particulares tomam para si o lugar da vontade geral Isso pode levar tanto à anarquia como à tirania anarquia quando os indivíduos saem cada um em sua própria direção tirania quando a von tade particular de um único homem dirige o governo Portanto o problema político resumese em estabelecer a relação adequada entre a vontade geral e a particular A transformação do homem em sua passagem do estado de natureza para o estado civil e sua descoberta de sua capacidade livre para a vontade é o evento crucial para ele e a primeira e contínua preocupação do estadista é garantir a preservação dessa transfor mação A cidade antiga atende melhor a esse fim porque é pequena o bastante para tolerar um governo aristocrático e para que os cidadãos compartilhem uma herança comum e um estilo em comum porque as vontades particulares podem mesclarse aos costumes com maior facilidade e porque o estadista pode controlar a totalidade A questão do tamanho de uma nação não é uma questão de mera limitação técnica como se supõe com maior frequência no pensamento moderno mas tem a ver com a natureza das possibilidades humanas Rousseau acreditava que as revoluções pode riam restaurar a antiguidade conservadora sobre novas fundações autoconscientes Seu pensamento é uma surpreendente união do progressismo revolucionário radical da modernidade com a discrição e contenção da antiguidade Como já foi dito Rousseau principiou sua crítica do pensamento moderno do ponto de vista da felicidade humana Uma solução política que não satisfaz a humani dade é apenas uma abstração tampouco se pode distinguir o lugar próprio do político exceto diante do pano de fundo do homem completo Com isso suscitase a pergunta acerca de a solução de O contrato social ser tão completamente satisfatória quanto pa rece indicar o livro em si A questão é se todos os homens em particular os melhores homens podem encontrar satisfação completa dentro da sociedade civil que é possí vel Nâo há dúvida de que O contrato social fornece uma base do ponto de vista de Rousseau para o estabelecimento de ordens em que a maioria dos homens possa viver de modo satisfatório quando as leis se tornarem necessárias para eles Porém não fica totalmente claro se essas ordens podem concretizar uma justiça perfeita que conquiste o apego dos corações e mentes dos melhores Há duas razões elaboradas a partir dos escritos de Rousseau que fezem inevitável essa pergunta A primeira é genuinamente política e tem a ver com a propriedade Rousseau jamais imaginou como universalmente viável um uso comum dos frutos da terra A 5 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y propriedade privada é quase inejctricavelmente acoplada à sociedade civil e prende a ela os homens Entretanto a propriedade privada náo é natural e é sempre uma fonte de de sigualdade A propriedade privada é a raiz do poder na sociedade civil e não pode deixar de influenciar o estabelecimento de leis Mesmo em uma sociedade onde não existem extremos de riqueza e pobreza existe a distinção e a tendência é sempre de agravar essas diferenças É muito diferente a vida de um homem se ele nasce na pobreza ou na riqueza e o dinheiro tem muito a ver com sua capacidade de remover obstáculos externos à sua liberdade A sociedade prote os ricos mais que os pobres e os pobres têm muito menos a perder e talvez muito a ganhar com a destruição da ordem estabelecida Rousseau re conhece isso por sua disposição de dar um peso um pouco maior nos procedimentos de votação aos ricos solidamente entrincheirados que têm o maior interesse na preservação do regime mesmo que apenas por motivos egoístas A partir do momento em que a igualdade das pessoas passa a ser a base do direito político tornase muito questionável a legitimidade da desigualdade da propriedade privada Rousseau não acreditava que a real igualdade de riqueza pudesse ser mantida sem constante revolução e sem a destrui ção das vantagens da vida política mas a sua visão da propriedade priwida nâo é total mente diversa da de Marx A propriedade priwida é um perpétuo ponto de interrogação colocado após as palavras Intim a sociedade civil Mais importante porém é a dúvida suscitada pela investigação da natureza do ho mem e pela própria vida de Rousseau tal como o filósofo achou melhor descrevêla para o público O homem é por natureza um animal ocioso cujo verdadeiro prazer está no sentimento principalmente no sentimento de seu próprio ser O movimento do tempo e dos eventos não apaga de todo essa natureza Contudo a sociedade civil edge esforço e trabalho temse pouco tempo para o exercício dos sentimentos O bom cidadão quer a estima e o afeto de seus concidadãos busca suas opiniões ao invés de viver dentro de si mesmo como o fàz o selvem Acima de tudo a sociedade civil exige a virtude e a vir tude é árdua Virtude significa viver de acordo com princípios consciente da repressão do animal e do sentimental no homem A virtude é necessária para a sociedade civil mas não está daro se é boa em si mesma se como para os antigos é a perfeição humana específica desejávd por si mesma além de por seu efeito de preservar a sociedade O homem natural possuía uma bondade que o levava a cuidar de seus semelhantes tratava se de um prazer para ele tal como o era a satisfeçáo de suas necessidades pessoais Jamais fezia algo por obrigação mas porque fluía dele de modo natural Rousseau fez uma dis tinção entre o homem moral e o homem bom O homem moral age a partir do senso de dever e tem o caráter do cidadão de confiança O bom homem segue seus instintos naturais aquda primeira natureza não corrompida pda vaidade é o amigo e o amante sentimental Rousseau colocavase na classe dos homens bons e sua obra Les Conjèssions Confissões é uma revelação da vida ações e sentimentos de tal homem Não é um J e a n J a c x íu es R o u s s e a u 5 1 7 16 Ibid p 141142 17 Ver Rousseau Les Rêveries du promeneur solitaire sixième promenade Paris Garnier 1960 p 7586 cidadão confiável é inútil para a sociedade É ocioso Finalmente é um caminhante solitário que sonha e recupera o sentido de sua existência sob as camadas de convenção que o fizeram perderse por completo Vai embora e vive no campo sozinho intocado pela sociedade civil Esta é uma outra solução para o problema humano impossível para a maioria dos homens que não têm a força da alma e de intelecto necessárias para libertarse de sua dependência e para pensar nas felsas opinióes da sociedade mas é mais satisfatória e mais sradável porque está mais perto dessa primeira natureza Podese dizer que há duas estradas que partem do estado de natureza e que náo se encontram uma que conduz à sociedade civil outra à condição de homens como Rousseau Uma delas olha para o futuro e para uma transformação do homem a outra anseia ardentemente por um retorno à natureza Náo há uma solução harmoniosa para o problema humano existem alternativas insatisfatórias em conflito uma com a outra o estadista versus o sonhador ou poeta São mutuamente excludentes Ficase com uma sensação de incompletude ou imperfeição ao examinar a opiniáo de Rousseau sobre a vida humana A sociedade civil não satisfaz grande parte do que é mais profundo no homem O sonhador não consegue viver bem com seus companheiros E no estado de natureza onde essa divisão ainda não ocorrera o homem não era realmente o homem Entretanto Rousseau resistiu à tentação a que seus sucessores sucumbiram Porque estava ciente de que a moralidade do homem foi adquirida com o sacrifício de seus mais ternos sentimentos naturais e é apenas em parte um meio para a preservação do Estado nâo tentou tornar absoluta essa moralidade por meio da exclusão de tudo o que é humano O filósofo não ensinou que a história apesar de toda a sua força iria superar a força da natureza do homem Não acreditava que o homem poderia tornarse de todo social E não negligenciou a importância da política para se entregar a anseios românticos pelo passado perdido Todas essas possibilidades podem ser en contradas em seu pensamento mas cada uma recebeu náo mais atenção do que lhe era devida Por esse motivo percebese que Rousseau apresentou o problema humano em sua variedade com maior profundidade e amplitude que qualquer de seus sucessores L e it u r a s A Rousseau JeanJacques Discourse on the Sciences and Arts in JeanJacques Rousseau The First and SecondDiscourses ed by Roger D Masters New York St Martins Press 1964 Discours sur les Sciences et les arts 1750 Rousseau JeanJacques Discourse on the Orign and Foundations of Inequality among Men in ibid Discours sur Torigine et le fondements de Tinégalitéparmi les hommes 1755 Rousseau JeanJacques Social Contract livros I e II Du contrat sociaC 1762 B Rousseau JeanJacques Discourse on Political Economy Discours sur Téconomiepolitique Rousseau JeanJacques Social Contract livros III e IV Du contrat social 1762 Rousseau JeanJacques The Confession of Faith of the Savoyard Vicar in Emile livro IV Profes sion de foi du Vicaire Savoyard in 1Emile ou de léducation Rousseau JeanJacques The Government ofPoland in Political Writings Trans and ed F Watkins New York Nelson 1953 Considérations sur legouvemement de Pologne 17701771 Rousseau JeanJacques Letter to M dAUmbert on the Theatre in Politics and the Arts Trans with notes and an introduction byAUan Bloom Glencoe 111 lh e Free Press 1960 J Rousseau Citoyen de GenèveàMr dAlembert sur les spectacles 1758 5 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Im m anuelK ant A 17241804 F il o s o f ia e P o l ít ic a Kant em sua íilosoíia colocou a política ao mesmo tempo em um lugar central e derivativo Em suas três principais obras Auflage der Kritik reinen Vemunfi Crí tica da razão pura 1781 Kritik derpraktischen Vemunfi Crítica da razão prática 1788 e Kritik der Urteilskrafi Crítica do juízo 1790 é raro que fale de política e o àz só por alusão exceto em um único parágrafo da Critica dojuizo Onde apresenta ensinamentos políticos de modo explícito ele o íàz ou por meio de uma doutrina do direito ou de uma íilosoíia da história Seus escritos expressamente políticos são na sua maioria breves e ocasionais Os conceitos e propostas práticas que contêm confirmam a ideia de que em essência são um meio de interrelacionar dois universos já existentes o do sistema kantiano tal como desenvolvido nas três Criticas e o do direito natural moderno tal como desenvolvido por Hobbes Locke e em particular Rousseau Kant certas vezes transcende seus mestres porém mesmo quando o faz como em sua doutrina da paz perpétua por meio da organização internacional sua originalidade não reside no conteúdo da proposta que neste caso tomou emprestada de projetos como os do Abade de SaintPierre que Rousseau comentara mas na nova base íilosóíica e na dimensão que lhe dá ao expressála em termos jurídicos que pre tendem ser independentes de toda a experiência e fúndamentandoa em sua íilosoíia moral e sua íilosoíia da história A seçáo política da primeira parte de Die Metaphysik der Sitten A da moral intitulada Meta physische Aníàngsgründe der Rechtslehre Elementos metafísicos da doutrina do direito Zum ewigen Frieden A paz perpétua e o artigo Über den Gemeinspruch Das ms in der Theorie richtig sein tai aber nicht fur die Praxis Sobre o dito popular pode ser verdade na teoria mas náo se aplica na prática Estas três obras aderem à repartição tripla direito público direito das nações e direito cosmopolita Em particular Idee zu einer allgemeinen Geschichte in welthürgerlicher Ahsicht Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita MumaffSkher Anfang der Menschengexhichte Início conjetural da história humana e a segunda seçáo de Der Streit der Fakultãten O conflito das feculdades da filosofia e do direito Os ensinamentos políticos de Kant podem ser resumidos em uma frase governo republicano e organização internacional Em termos mais caracteristicamente kantia nos tratase de uma doutrina do estado com base no direito Rechtstaaí e da paz eter na De feto em cada uma dessas formulações ambos os termos expressam a mesma ideia a da constituição legal ou paz através da lei Dentro e entre os estados tratase de uma questão de passar do estado de natureza que é um estado de guerra para o estado de direito que é um estado de paz A definição do estado de direito e sobretu do das bases em que assenta e das condições que o compelem a existir é o objeto do esforço de Kant na medida em que se trata este de um íilósofo político Kant realiza sua tarefe inspirandose em suas concepções de moralidade e de história mostrando como a paz depende da lei e o direito da razão e o impulso na natureza das coisas em direção a um estado livre e racional e portanto pacífico Podese dizer que o empreendimento de Kant tem como ponto de partida a tensão entre ciência e moral entre a física moderna desenvolvida de modo mais sistemático por Newton e a consciência moral expressa de modo mais puro por Rousseau entre o de terminismo universal implícito na primeira e a liberdade da vontade implícita na última Kant procura resolver o problema radicalizandoo Procura preserwu os dois termos não pela reconciliação deles mas ao proporcionar à sua tensão e à sua coexistência uma base teórica a saber a articulação da oposição entre natureza e liberdade entre o mundo dos fenômenos e o mundo dos númenos O mundo dos fenômenos é o mundo das coisas em sua manifestação ou aparência o mundo dos númenos é o mundo das coisas tal como são em si mesmas ou como poderiam ser conhecidas se fosse possível ter o conhecimento delas sem a mediação da experiência O mundo dos fenômenos é o que a ciência pode saben o mundo dos númenos é o reino que se desvela pela moral É neste último reino que a razão alcança a perfeita liberdade do efeito condidonante e portanto limitante do mundo natural das coisas É exatamente neste reino da razão incondicionada que os homens podem ser livres de todas as coisas externas de cada objeto do fezer construir ou adquirir O que lhes resta é a perfeita autonomia liberdade para obedecer a uma lei autoprescrita por puro respeito pela universalidade ou imparcialidade da própria lei A disjunção completa entre o empírico e o numenal implica igualmente uma total disjun ção entre feliddade e virtude a felicidade é a satisfeção de nossas inclinações naturais e empíricas enquanto a virtude é a obediênda à lei moral Uma pertence à ordem da natureza e a outra à ordem da liberdade Contudo Kant não pode abandonar a questão com a total disjunção entre os dois reinos É preciso que seja alinhavado um acordo entre a virtude e a feliddade de modo que a liberdade possa funcionar dentro da natureza e a natureza ser teceptira à ação mo ral até mesmo ao ponto de ser transformada por ela Kant obtém tal acordo ao susdtar a questão pelo que pode o homem ansiar com esperança Em seguida demonstra que a resposta se coloca em duas direções o que se pode esperar nesta vida assim trazendo à baila o reino dos fenômenos e o que se pode esperar no mundo vindouro A fim de mos trar o que podemos esperar no outro mundo Kant elabora os postulados da razão prátíca a existência de Deus e a imortalidade da alma Suas discussões sobre direito política e teleolo histórica capacitamno a mostrar o que o homem pode esperar aqui na Terra 5 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Tendo separado os reinos da moral e da natureza Kant tenta reunilos pela pro dução de intermediários e correspondências entre eles O direito a história e a política aparecem como critério composto para avaliar essa reunião A avaliação e portanto o critério são de singular importância pois a questão da relação entre os reinos da natu reza e da moral é de fato a questão da existência possível dos dois reinos cujas concep ções são os produtos de uma liberdade e uma razão que agem no mundo fenomênico A raiz da questão suscitada pela filosofia política de Kant reside na ambigüidade da moral e da política cada uma em si mesmo e ambas em sua relação mútua Essa am bigüidade só permite aceitar após algum aperfeiçoamento a própria fórmula de Kant de que a verdadeira política é a aplicação de sua moral A dificuldade surge porque é verdade não apenas que a política de Kant deve ser entendida com base em sua moral mas sua moral pode ser entendida com base em sua política Além disso sua política também deve ser entendida independente de sua moral e sua moral em última aná lise depende radicalmente de condições que vão além da política Essa ambigüidade ou contradição explica tanto a divisão como a reunião que realiza Kant entre a lei e a moral e sua estranha hesitação no limiar da filosofia da história enquanto aparente mente lhe concede um lugar ao mesmo tempo decisivo e tangencial A dificuldade revelase quando nos desviamos do sistema kantiano como tal em direção a sua inspiração e significado humano A moral de Kant é revolucionária não só em seu status teórico e por ser baseada na íbrma pura do direito ao contrário de qualquer conteúdo específico mas também no conteúdo para o qual este formalismo não pode dei xar de apontar a saber os direitos do homem Porém a noção de direitos do homem tal como a autonomia sobre a qual repousam e que Kant afirma deduzir a priori tem uma préhistória que é política Kant repetidas vezes reconhece a influência decisiva de Rous seau em suas doutrinas políticas e morais A prioridade do prático sobre o teórico do moral sobre o intelecmal a superioridade aos cientistas ou filósofos como tal de almas simples obedientes à voz do dever todos procedem do Primeiro discurso cát La Profession de foi du Vicaire savoyard Profissão de fé do vigário da Saboia de Rousseau assim como em última análise as noções de liberdade como obediência à lei autoprescrita e da gene ralização dos desejos particulares como garantia de sua lalidade são retiradas dos ensi namentos de Rousseau em O contrato social Finalmente a filosofia da história de Kant é orientada explicitamente pelo Discurso sobre a origem da desiptaldade de Rousseau Perceber o rousseaunismo da moral de Kant é perceber de imediato a inspiração poiítica dessa moral Contudo ao mesmo tempo a radicalização do rousseaunismo por Kant sua transformação da generalização dos desejos ou vontades em uma universaliza ção de máximas e as conseqüências que dela tira em sua doutrina de postulados produ zem uma moral ao mesmo tempo apoUtica e inaplicável à política Se a moral de Kant é política e se precisa ou depende da política são perguntas que podem ser feitas mirando se as fontes ou inspiração o conteúdo e a aplicação ou as conseqüências dessa moral Não podemos deixar de perguntar também se a política de Kant é moral isto é se depende em todos os aspectos da ética da razáo prática Assim a paz perpétua é enaltecida como o supremo bem político porque na verdade a razão prática termi I m m a n u e l K a n t 5 2 1 nantemente proíbe a guerra mas a paz é mostrada também à maneira de Hobbes e de Locke como indispensável à vida e à propriedade isto é boa em prol de determinado fim ou felicidade no reino da natureza ou da ausência de liberdade Além disso o estado da sociedade civil tem um conteúdo moral porque é o estado daquele respeito pelos direitos que é a base para a liberdade e a dignidade humana Porém enquanto a filosofia da história recorre ao funcionamento de uma boa vontade uma vontade moral para produzir um estado verdadeiramente civil Kant reconhece que a natureza obriga o progresso em direção a esse estado a depender da paixão da discórdia e da guerra Mais uma vez a ideia do verdadeiro governo republicano só pode ocorrer a um político moral um homem que subordina totalmente a política à moral e para quem a realização da paz eterna não é uma tarefa apenas técnica mas verdadeiramente moral Ao mesmo tempo nâo só o governo republicano não pressupõe a perfeição em seus cidadãos mas o estabelecimento da sociedade civil em geral é possível entre demônios somente se estes forem inteligentes Assim a moral e a política às vezes parecem con vergir às vezes existir em planos completamente diferentes Podemos antecipar nossas conclusões ao ponto de dizer que o que torna este problema dificil e interessante com relação ao kantismo e o kantismo por sua vez em relação à filosofia política é que a partir de uma única fonte surgem não só as bases rigorosas e sólidas mas também a disjunção entre a moral e a política enquanto a importância política deste sistema re pousa acima de tudo em seu poder de aproximar as duas uma da outra É verdade que a disjunção entre os dois mundos é mais convincente que sua reconciliação a pureza da alma e a esperança de seu progresso indefinido em outro mundo são mais essenciais para a moral do que o governo republicano e o progresso indefinido neste mundo em direção à paz perpétua e inversamente o problema da sociedade civil remetia de modo mais eficaz às exigências de felicidade e segurança que de moral Todavia é verdade também que Kant tem importância capital não só para a filosofia mas para a consciência política exatamente devido às conseqüências políticas de seus ensinamen tos morais e à dimensão moral de seus ensinamentos políticos Kant atribui a deter minados temas morais uma direta influência política e a temas políticos uma sagrada dignidade moral Quem quer que examine com seriedade as bases do liberalismo e da democracia descobrirá nelas um sentimento moral que está ausente em Hobbes e Locke e até mesmo em Rousseau mas que recebeu de lõmt um suporte teórico A questão da relação entre moral e política em Kant atinge o ápice em seus ensinamentos acerca do respeito pela dignidade do homem O problema essencial da política kantiana é a natureza e o status filosófico e moral dos direitos do homem Passemos agora a esse tema Os D ir e it o s d o H o m e m O empreendimento de Kant em favor dos direitos do homem se expressa por meio de uma intenção de estabelecer uma base moral incondicional para a liberdade e igualdade 522 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 3 A paz perpétua Apêndice I Primeiro acréscimo políticas ou de libertar os homens ao iluminálos a respeito de seus direitos revelando a todos que a liberdade para legislar é a única base Intim a para a obediência do súdito Para melhor compreendêla vamos analisar a posição de Kant em relação a Rous seau e a Hume que segundo Kant forneceram o ponto de partida para sua íilosoíia e o motivaram decisivamente a realizar tal empreendimento Kant registrou o poderoso efeito que teve Rousseau sobre ele Sou eu por inclinação um pesquisador Sinto em plena medida a sede de conhecimento e o desejo ganancioso de progredir em sua direção bem como satisfeção em cada avanço Houve um tempo em que acreditava que este por si só poderia constituir a honra da humanidade e desprezava o vulgo que nada sabe Rousseau mostroume o caminho certo Essa distinção ilusória desaparece aprendo a respeitar os seres humanos e reputaria a mim mesmo mais inútil que os operários comuns se não acreditasse que esta avaliação poderia dar valor a todos os outros pelo estabelecimento dos direitos do homem Quanto a Hume escreveu Kant Confesso de pronto que as repreensões de David Hume foram o que primeiro interrompeu meu sono dogmático tantos anos atrás e deu a minhas investigações em filosofia especulativa um direcionamento completamente novo Rousseau íbi a inspiração afirmatiwi pela qual Kant orientou sua própria concepção da dignidade humana e da tarefe da íilosoíia e essa dignidade e essa tarefe possuem uma influência polítíca direta e imperatíva De Rousseau Kant adota o primado da moral sobre a filosofia da ação sobre a contemplação da prátíca sobre a razão teóriau o pensa mento de que o primado da moralidade exige a igualdade de valor de todos os homens e a ideia drasa moralidade e do reconhecimento dos direitos do homem coincidem em substância Contudo a primazia da ação sobre a contemplação implica o primado da liberdade sobre a natureza o primado da razão prática implica a crítica da razão teórica isto é tanto da ciência como da metafísica O ceticismo de Hume tomara questionável tanto a ciência como a metafísica e assim despertou Kant de seu sono dogmático Kant teve de desenterrar os verdadeiros e racionais fímdamentos da ciência e assim revelar suas limitações e portanto colocar sobre uma base sólida a rejeição teórica da metafísica Hume sustentara que as noções íundamentais necessidade e causalidade são validadas para nós pela experiência e pela conveniência mas não pela razão Kant aceitou o julgamento n a tiv o de Hume sobre o dogmatismo do pensamento domi nante isto é sua crítica ao fíracasso dos íilósofos em considerar a possível fragilidade de suas noções mais fundamentais mas rejeitou a parte positiva da doutrina de Hume seu empirismo Kant exigiu que os princípios que sustentam nossa compreensão espe cialmente o nexo causai tivessem fundamentação melhor que a mera experiência para que sua necessidade e sua universalidade não se tornassem ininteligíveis e assim fosse perdida a possibilidade da ciência em particular a fisica matemática Immanuel Kant 5 2 3 4 Beobachtungen über dm Gtfuhl des Schõnen und Erhabenen Observações sobre o sentido do belo e do sublime Akademie Ausgabe v 20 p 44 Vet também The Philosophy of Kant ed Carl J Friedricb p xxii New York Modern Library 1949 5 Cf The Philosophy ofKdnt ed Friedricb p 45 Kant coloca o problema por meio da distinção entre juízos analíticos e sintéticos Juízos analíticos são aqueles em que o sujeito em si contém ou implica perfeitamente o predicado de modo que o predicado apenas explicita algo já dito quando o assunto foi proferido e não produz qualquer conhecimento novo A validade dos juízos analíticos é portanto independente da experiência tais juízos são a priori Juízos sintéticos são aqueles em que o predicado de fato acrescenta algo ao que o pensador do julgamento pode ter em mente ao proferir o assunto em si Os julgamentos baseados na expe riência são necessariamente sintéticos são juízos sintéticos a posteriori Porém a ex periência como tal não é possível se não existirem juízos sintéticos a priori julga mentos de necessidade apoctica e validade universal portanto impossíveis de validar pela experiência Por exemplo toda experiência pressupõe o princípio da causalidade que como demonstrara Hume não é analítico e que como Hume foi incapaz de constatar não pode ser derivado da experiência já que é uma pressuposição de toda a experiência possível Porém a causalidade não é o único princípio deste tipo Há todo um sistema de categorias bem como as formas de intuição pura espaço e tempo A cooperação entre as categorias e as formas de intuição pura fornece o arcabouço que toma possível a ciência da natureza A ciência da natureza isto é do mundo feno mênico é portanto não uma contemplação de uma realidade existente fora de nós mesmos mas ao contrário é o estabelecimento da lei para a natureza por nós mesmos é o investimento das coisas por nós mesmos com aquilo que só nós podemos saber so bre elas a priori A ciência da natureza é fundamentalmente o produto espontâneo do entendimento distinto da receptividade dos sentidos É a razão prática que nos permite participar do mundo inteligível escapar ao mesmo tempo da passividade da mera contemplação e da relatividade empírica do mundo fenomênico esse mundo ao qual é limitada a razão teórica A ascensão da determinação para a espontaneidade é alcançada pela descoberta da liberdade da razão prática Essa liberdade encontra seu ponto culminante na liberdade do homem moral ou na moral em si O primado da razão prática tem uma dupla conseqüência traz alívio da incog noscibilidade do mundo tal como é em si mesmo ao dar a todos os homens igual mente acesso à verdade mais profunda que é a verdade moral e através do contínuo desafio do mundo meramente empírico pela razão prática conduz à emancipação das formulações morais e políticas dos homens a partir da experiência do passado No que diz respeito à natureza é a experiência sem dúvida que nos fornece as regras e é a fonte de toda a verdade em relação a leis morais por outro lado a experiência é infe lizmente apenas a fonte de ilusão e é completamente censurável derivar ou limitar as leis do que devemos fazer de acordo com nossa experiência do que tem sido feito A noi concepção de razão movese através da primazia da prática até a distinção radical entre o é e o deveria a distinção presente em Hume mas elaborada primeiro por Kant e daí para o formalismo moral e o doutrinarismo político e jurídico Os direi 5 2 4 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey Kritik der reinen Vemunfi Crítica da razáo pura Tmnszerulenmle Dialektik Dialética transcen dental livro 1 seçáo 1 tos do homem devem ser conhecidos a priori válidos e exveis universalmente Podem ter como fonte e conteúdo somente essa liberdade radical que está ligada à essência do ser racional como tal Como essa liberdade independe da natureza do cosmos do homem e da sociedade náo pode ser definida em termos da realização dos fins nem aplicada em termos de circunstâncias determinadas ou determinantes A crítica da razão teórica que Hume começou abre caminho para uma libertação radical do homem eliminando tudo o que poderia impor leis sobre a liberdade fora da própria liberdade É à influência de Rousseau que Kant deve a origem e as conseqüências morais e políticas desta libertação o verdadeiro ponto de partida e o verdadeiro destino de seu empreendimento Há um eco dessa influência na femosa frase que abre a secção 1 de Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Fundamentos da Metafísica dos Costumes Nada se pode conceber no mundo ou mesmo fora dele que possa ser chamado de bom sem reser vas exceto a boa vontade As virtudes em si não são simplesmente boas pois podem ser empregadas de modo corrupto por uma vontade má A moral não existe por causa da felicidade ou da perfeição da natureza do homem pelo contrário é a moral que confere valor a essa felicidade e a essa perfeição Por outro lado a bondade da boa vontade não é de forma alguma validada pela realização do fim desejado pela vontade nem diminuída por seu fracasso em alcançar o seu fim Podemos perceber agora a característica bilateral dos ensinamentos morais e po líticos de Kant sua demanda tanto por obediência como pela emancipação tanto pela submissão como pela glória na liberdade Pois a moral ou boa vontade consiste em agir não apenas em conformidade com a lei mas por respeito à lei à qual a moral presta obediência absoluta Porém uma vez que a lei é uma expressão da autonomia do sujeito não representa uma autoridade externa mas sua própria vontade A boa vontade como boa em si mesma independente de qualquer efeito que possa ter e constituindo em si o bem mais elevado até certo ponto substitui a Deus ou à natureza São depreciados os homens que se gabam de sua inteligência ou de sua felicidade é no indivíduo humilde que se submete ao máximo à lei que o homem como tal é erguido pela bondade da vontade a uma soberania sem precedentes São várias as implicações políticas dessa doutrina revolucionária da prioridade e substância da moral Em primeiro lugar e do modo mais óbvio esta doutrina dá forte apoio à ctença na igualdade humana depreciando as diversas fontes naturais e sociais empíricas de desigualdade e sustentando que a distinção de um homem depende ape nas de sua qualidade como ser moral No entanto cada homem pode ter uma boa vonta de a única coisa necessária e a única coisa boa em si mesma Daí segue ser a igualdade de todos os homens no aspecto decisivo e em seu valor absoluto respeitada por todos em cada um Não só a hierarquia hereditária mas cada humilhação do homem pelo homem ou diante de outro são uma ofensa contra a igualdade e a autonomia do homem Constitui problema difícil e relevante a transição do primado da moral por meio da dignidade do sujeito moral para a igualdade de todos os homens Pertenceria a dignidade ou valor absoluto do sujeito moral como legislador a todos os homens ou somente àqueles que cumprem seu dever ao homem capaz de íir moralmente Immanuel Kant 525 ou ao homem que e moralmente No primeiro caso até que ponto devem a perfeita dignidade e os direitos do homem apenas capaz de cumprir seu dever ser traduzidos em equivalentes políticos e sociais A resposta de Kant à primeira pergunta náo deixa de ser ambígua Na maioria dos trechos da curta obra Fundammtos da Metafísica dos Costumes o filósofo mantém a estipulação mais estreita e mais rigorosa em termos de o homem de feto se com portar moralmente No entanto na segunda parte da obra intitulada Die Metaphysik der Sitten A metafísica da moral ifTugendlehre A doutrina da virtude onde se preocupa menos com a base para o respeito do que com suas implicações a concepção mais ampla definitivamente prevalece e Kant salienta as reivindicações sobre outros que resultam da respeitabilidade de cada ser humano como tal Porém é aí que encon tramos uma articulação das concepções estreitas e amplas pelo menos no que se refere aos deveres dos homens uns para com os outros Todo homem tem direito ao respeito de qualquer outro homem e em contrapartida deve respeitar a todos eles A própria humanidade é dignidade o que significa que um homem não pode ser tratado nem por si mesmo como um meio mas sempre e somente como um íim Sua dignidade personalidade consiste precisamente nisto e ele tem a obrigação de reconhecer na prática essa dignidade em relação a todos os homens Não posso negar a um homem depravado todo o respeito que pelo menos em sua qualidade de homem não pode ser tirado dele e isto é assim mesmo que suas ações o tornem indigno dele As aírontas e as condenações provocadas pelo vício ainda que sejam merecidas e inseparáveis do des prezo silencioso para com o indivíduo em questão jamais devem levar a um total desprezo pelo homem depravado nem para a negação de todo o valor moral nele pois ele seria então supostamente incapaz de algum dia melhorar a si mesmo o que não se pode conciliar com a ideia de homem que como tal como um ser moral jamais pode perder toda inclinação em direção ao que é bom A dignidade que pertence somente ao homem moral impõe precisamente sobre ele o dever de tratar todos os homens com certo respeito pois a dignidade do homem moral redunda em ação sobre a espécie sobre todos os homens potencialmente mo rais possuidores de uma inclinação para o bem que por piores que sejam distingueos dos animais e os assimila ao homem moral Os homens não são iguais em dignidade mas temse o dever de tratálos como se o fossem O direito do indivíduo de ser trata do como igual ou pelo menos de ver certos aspectos da sua dignidade respeitada não se baseia em ele ser igual ou respeitável mas no dever de tratar todos os homens como iguais ou respeitáveis Baseiase menos no primado do que no conteúdo da moral Se o respeito pelos direitos do homem se baseia na moral é assim porque a moralidade é definida como o respeito pelos direitos do homem O conteúdo da moralidade aparece como uma dedução a priort da universalidade como a forma da moralidade A linha do formalismo moral chega perto de definir o horizonte político em um mundo con 5 2 6 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 7 A meudtsica da moml parte 2 Tindlehie A doutrina da virtude parágrafos 38 39 ceitual dominado pelas ideias de universalização da humanidade racional como um íim em si mesma do reino dos íins e da autonomia O valor moral de uma ação procede da bondade da vontade pela qual essa ação é animada o que por sua vez significa a pureza daquela vontade a bondade da vontade em sua abstração de qualquer fim empírico A pureza da vontade implica pu rificação da vontade de todas as intenções substantivas a animação da vontade apenas por seu respeito próprio o seu respeito pelo princípio formal da vontade em geral em outras palavras respeito pela lei como tal O próprio dever significa a necessidade de realizar uma ação por respeito à lei Entretanto como o homem moral encontra a lei que regulará todas as ações de sua vida Como reconhece o seu dever um homem de boa vontade O critério de Kant para a boa vontade revela ser a universalização tal como o critério de Rousseau para a vontade geral era a generalização O critério de Kant exige que um homem pronto para íir pergunte a si mesmo se a máxima que re sua ação pretendida por exemplo a grandeza da minha necessidade justifica este afiistamento da honestidade poderia vir a se tornar a lei universal de ação para todos os homens sem destruir a ato em si Por exemplo um homem que precisa de um empréstimo percebe que nunca será capaz de pagálo Deve prometer fazêlo mesmo assim Se todos os homens prometessem pagar mesmo quando se sabem incapazes de cumprir suas promessas as promessas se tornariam universalmente inúteis Sua íãlsa promessa se universalizada aboliria as promessas e aboliria também o próprio empréstimo que é o objetivo da promessa A regra autocontraditória ou irracional náo pode ser a lei para um ser racional Seguese que um homem náo deve fezer uma pro messa que náo espera cumprir Kant denomina imperativo categórico ao feto de que um homem deve agir apenas de acordo com o critério de tornar universal a sua açáo o imperativo que liga categórica ou universalmente náo apenas hipoteticamente ou com vistas a certas circunstâncias as necessidades ou fins ligados à ação Aja de modo que a máxima de sua ação possa ser elevada por sua vontade a ser uma lei universal da natureza Há somente um imperativo categórico e este é o imperativo de universa lidade Porém Kant elabora esta universalidade ao oferecer três fórmulas alternativas para o imperativo categórico fórmulas que ajudam a revelar tanto o significado hu mano como as bases para o dever A segunda fórmula procura o princípio objetivo pelo qual a vontade determina a si mesma Rejeitando como meramente hipotético o ditame dos fins subjetivos do ser racional que visam a seus fins particulares Kant exige que a vontade oriente a si própria a respeito dos fins em si mesmos categoricamente válidos No entanto os únicos fins em si mesmos possíveis dotados de um valor objetivo são os próprios seres racionais O supremo princípio objetivo prático a partir do qual podem ser deduzidas todas as leis da vontade é de acordo com a segunda formulação do imperativo categó rico Aja de forma a tratar a humanidade em sua própria pessoa bem como todos os Immanuel Kant 5 2 7 Grundlegende Prinzipien der Mataphysik der Sitten Princípios fundamentais da metsica da mo ral seção 2 outros sempre como um fim e nunca como um simples meio É esta formulação do imperativo categórico que fornece diretamente a base moral para a doutrina política dos direitos do homem A violação do dever de respeitar o homem como um fim em si mesmo é mais visível em ataques à liberdade e à propriedade onde a intenção só pode ser de tratar seus seres racionais semelhantes como meros meios ou instrumentos e não como seres capazes eles mesmos de participar dos fins da ação em pauta A exigência de que todos os homens sejam tratados como fins cm si mesmos res trit de forma óbvia a liberdade entretanto porque implica a anulação pelo direito de todos os fins subjetivos esta fisrmulação conduz à ideia de autonomia da vontade que esubelece a sua lei e sendo sujeita a ela somente como sua própria determinação Este terceiro princípio o da autonomia concebe a vontade de cada ser racional como instituidor de uma legislação universal uma concepção que por sua vez conduz ao fértil conceito do reino dos fins Reino é a articulação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns e o reino dos fins é a conjunção dos seres racionais que estão ligados por leis objetivas que visam precisamente a conjunção desses seres tanto como fins e também como úteis para os fins particulares uns dos outros isto é como meios Não só as conseqüências mas também a formulação do princípio da moral de Kant são de natureza política O dever aponta em direção da ordem ou comunidade Kant salienta de fato a diferença entre a ideia de uma comunidade ética que é interna e universal e a ideia de uma sociedade política que é externa e particular No entanto a comunidade ética tem uma estrutura política Um ser racional pertence ao reino dos fins como um membro dele quando ao lhe prescrever leis universais ele próprio é também sujeito a essas leis Pertence a ele como um governante na medida em que ao prescrever leis não está sujeito a uma vontade externa No reino dos fins não é ao governante que fala o dever mas a cada membro e a todos no mesmo grau O reino dos fins é uma república que tem base na reciprocidade Não se pode exerar a importância da reciprocidade para a moral O dever não é nada menos que a neces sidade prática de ir de acordo com o princípio da reciprocidade o que dá uma ex pressão não só à igualdade dos seres humanos em dignidade mas a seus fundamentos na racionalidade A reciprocidade é o princípio de interação por excelência entre seres racionais agentes que ajustam com objetividade suas relações uns com os outros A esfera das relações dos homens uns com os outros a esfera dominada pela justiça que na compreensão clássica era apenas uma parte do domínio da virtude tornase para Kant totalmente coincidente com a virtude No início de Fundamentos da Metafisica dos Costumes Kant deprecia três das quatro virtudes cardeais clássicas a saber a cornem a moderação e a inteligência porque podem ser prejudiciais se não forem acompanhadas pela boa vontade Agora podemos entender por que não incluiu a quarta a justiça na depreciação a boa vontade tende a ser idêntica à justiça Ninguém proclamou com mais força que Kant a subordinação das pabtões à razão e 9 Ibid 10 Ibid 5 2 8 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey com isso a existência no homem de uma hierarquia vertical No entanto tal como em Rousseau antes dele a limitação dos desejos humanos não é alcançada por Kant verticalmente em conformidade com uma hierarquia natural no homem mas late ralmente pela limitação recíproca mútua e respeito pelas liberdades e pelos indiví duos A ideia do reino dos ílns que demonstrando ser a universalização crucial para a conexão entre a autonomia e a limitação recíproca da liberdade ilustra a pesada dívida da moral de Kant para com a política de Rousseau Mostra também até que ponto a moral de Kant em seu formalismo racional ultrapassa a política de Rousseau em sua radicalização no plano moral da reciprocidade de direitos e deveres e da primazia tanto dos direitos como dos deveres sobre a virtude Esta primazia é eníatizada em A metafísica da moral na qual Kant íãz uma dis tinção entre os deveres jurídicos e os deveres que a virtude implica dando marcante prioridade aos deveres jurídicos Os deveres jurídicos aplicamse aos atos externos que estão sujeitos às restrições externas da legislação os deveres comandados pela virtude aplicamse às máximas por trás das açóes as intenções internas que são direcionadas para algum íim que deveria ser um dever mas que não podem ser coagidas de fora Embora os deveres jurídicos tratem apenas dos atos externos que têm precedência sobre os deveres de virtude ainda que estes sejam ligados à intenção e à boa vontade porque os deveres jurídicos sâo eles próprios a essência da moral pois definem a re ciprocidade de direitos e deveres ao exigirem que cada homem respeite os direitos do homem tanto nos outros como em si mesmo Os deveres jurídicos especificam os comandos da justiça primeiro respeitar o di reito de humanidade em si mesmo recusandose a permitir que outros o tratem como um simples meio e exigir ser tratado como um fim segundo não íàzer mal a ninguém terceiro em prol do exposto entrar em uma sociedade na qual a propriedade de cada um possa ser garantída contra os outros A virtude direciona os homens para fins que deveriam ter o caráter de deveres a perfeição de si mesmo e a felicidade dos outros Os deveres jurídicos são definitivos e perfeitos aqueles impostos pela virtude são amplos e imperíèitos na medida em que seus ditames devem deixar alguma margem de escolha para os homens livres Os deveres jurídicos prevalecem sobre os morais antes de auxiliar a íèlicidade dos outros homens preocuparse com seus direitos O amor da humanidade é condicional o respeito por seus direitos um dever ss d o e absoluto Podese dar prioridade à prática sem comprometer a moralidade porque a prescrição externa ou a lalidade e a moralidade interior convergem no respeito pelos direitos do homem Apresenta grandes dificuldades a tentativa de Kant de deduzir a política da moral Embora seja verdade que o íilósofo deriva da moralidade a sacralidade do direito e do dever incondicional de respeitálo também é verdade que separa radicalmente a lei da moralidade sua doutrina legal inclui no direito à liberdade o único direito inato e fonte de todos os outros direitos o direito de mentir enquanto a sua doutrina moral não to lera a mentira em circunstância alguma Kant desenvolveu um dever moral absoluto de respeitar um direito moralmente neutro mesmo que seja um direito à imoralidade Immanuel Kant 5 2 9 Além desta tensão entre a obrigatoriedade e a neutralidade moral dos direitos do homem está a tensão mais geral e mais radical entre o dever de obedecer às leis exteriores e o conteúdo contingente muitas vezes imoral dessas leis Não apenas a conformidade das leis aos direitos do homem ou à vontade geral não constitui uma garantia de sua moral nem essa conformidade sequer chega a constituir a condição necessária para o dever moral do súdito de obediência à autoridade Cabe ao soberano Eir em conformidade com a vontade geral o súdito deve obedecer à lei tal como ela existe Assim entretanto o problema de aplicar a moral à política se torna ainda mais grave e leva a uma nova tensão Até certo ponto as leis ou diretrizes políticas existentes se opóem tanto aos direitos do homem como às exigências da moral Essas leis não apenas autorizam elas categoricamente prescrevem atos que violam a moral A moral portanto nos comanda a desejar que a legislação seja substituída por uma ordem po lítica que esteja em conformidade com os direitos do homem e seja compatível com a moral em si ao mesmo tempo a moral exige obediência a essas leis imorais A motal proíbe o combate à imoralidade por meio da fraude ou da força proíbe o uso de meios imorais para atingir um íim moral Entre o íim desejado e o permitido se abre um abismo que parece fazer com que seja impossível resolver a primeira tensão ou seja entre a obrigatoriedade e o conteúdo da lei externa No apêndice de Zum ewigen Frieden A paz perpétua Kant lida tematicamente com o problema suscitado pela aplicação da moral à política Principia pelo conflito entre política e moral que se expressa nas duas máximas a da política sejam pruden tes como as serpentes e a da moral sejam simples como as pombas mas o íàz a íim de negar que este conflito cause qualquer dificuldade real Em princípio a política é simplesmente a aplicação dessa doutrina jurídica cuja teoria é a moral Qualquer conflito entre política e moral deve ser resolvido pela pura subordinação da primeira à segunda A honestidade é a melhor política contém uma teoria frequentemen te traída pela prática mas a verdadeiramente teórica honestidade é melhor do que qualquer política é absolutamente inatacável por qualquer prática Kant contrasta o moralista político que tenta vergar a moral a íim de ajustála à política com o polí tico moral que deriva sua ação política de seu reconhecimento do dever Kant rejeita as máximas maquiavélicas de prudência política que invocam a sabedoria prática ou experiência com os homens aja então peça desculpas repudiai vossas obras à vontade dividir para conquistar em favor da máxima moral baseada no conhe cimento do homem Que a justiça prevaleça ainda que o mundo pereça por isso Quando a política e a moral estão em conflito a moral resolve o conflito de uma forma característica de sua própria essência deprecia o princípio material ou os resultados do ato e se concentra no princípio formal dele O tema da segunda parte do apêndice de A paz perpétua é a harmonia entre a política e a moral com base no significado supraempírico da legislação pública ou direito público Kant sustenta que em princípio o direito público definitivamente necessita de publicidade A máxima de uma ação exigirá sigilo somente se a publicação da máxima expusesse sua injustiça e assim ameaçasse e inflamasse a humanidade A 530 H istória da Filosofia PoiincA Leo Strauss e Joseph C ropsey injustiça pede sigilo o sigilo prefígura a injustiça Como uma norma para a moral das máximas e portanto das ações sua capacidade de serem feitas públicas assemelhase à universalidade em seu formalismo e artificialidade Em uma ilustração do funcio namento da publicidade Kant mostra como esta impede o repúdio das promessas de um soberano sancionado por Maquiavel Spinoza e mais tarde Hegel o repúdio supostamente subserviente ao dever supremo do soberano a seu próprio estado A razão prática estabelece a priori exatamente o que veio a ser denominado diplomacia pública a diplomacia dos pactos abertos abertamente acordados A partir da discussão do critério publicabilidade de uma máxima que prefigura a moral de um ato político decorrente dessa máxima Kant passa a buscar a condição positiva em que as máximas práticas irão concordar com o direito Reconhece a ne cessidade desse esforço adicional porque entende que as máximas de um ator seriam publicáveis não só se fossem justas mas se o ator fosse tão irresistivelmente poderoso que pudesse publicar projetos iníquos com desprezo para com as reações do mundo Seria possível dizer que a publicabilidade da máxima é necessária mas não suficiente para a moralidade de um ato Assim Kant propõe a condição geral para a coincidência entre moral e política a condição também para a existência do direito público e de um direito das gentes o estado de direito entre os homens o acordo entre as nações para abandonar o estado de natureza a fim de abjurar a guerra Não a experiência mas a razão pura revela a necessidade de uma federação de estados pois a ideia derivase da noção de direito em si para que seja atingida a conjunção entre a moral e a política e a prudência política receba uma base legal As pistas que Kant oferece em relação à aplicação direta da moral à política nos trazem de volta à conhecida dificuldade a moral formal e universal exige uma deter minada ordem política sem que se revele como uma base para tal e com muito mais rigor proíbe o uso dos meios considerados por Kant como necessários para a realiza ção dessa ordem A abstração e a rigidez da moral criam um abismo entre ela mesma e suas aplicações políticas tanto no reino dos fins como no dos meios tanto no reino da ordem jurídica que para Kant é o da liberdade externa não das intenções morais como no campo da ação política que mesmo para Kant é inevitavelmente o reino das situações contingentes particulares e imprevisíveis F il o s o f ia d a H is t ó r ia Superar a disjunção da moral e da política é exatamente a tarefa da filosofia da história cujo dever é apontar a direção e dar esperança para o progresso em direção à ordem lal que permitiria a união decisiva A filosofia da história deve portan to reconciliar a interdição e a indispensabilidade de meios imorais deve substituir a anarquia e injustiça que a cena humana projeta e a imprevisibilidade que acompanha a liberdade da vontade por uma concepção de um progresso definido tanto com a fina lidade associada à moral e a necessidade correspondente ao determinismo fiísico Aqui ressuige a dívida de Kant para com Rousseau que é reconhecida na caracterização que ImmanuelKant 531 fez Kant de Rousseau como o Newton do mundo moral Tal como Newton descobriu a simplicidade e a ordem de um mundo material aparentemente desfigurado pelo aca so Rousseau foi o primeiro a perceber sob a multiplicidade de aparências humanas as profundezas da natureza humana e a perceber a lei oculta que justifica a própria Providência Antes de Rousseau a Providência pode ter aparecido para autorizar uma cena humana em que a política ignorava a moral não só no presente mas sem esperança de cura pelo progresso ao longo da história Entretanto Rousseau é o Newton do mundo moral e sua doutrina uma justifi cação da Providência em parte por uma razão que não olha para o íuturo mas para o passado a tensão entre moral selvagem e a lei moral universal é resolvida no Segundo discurso Como indica Kant ele mesmo assume seu afiistamento não do homem mas daquele homem civilizado a quem Rousseau só chega depois de ter recuperado e co meçado com o homem natural Se os selvagens ignoravam a lei moral tal ocorria por que a razão ainda não surgira suficientemente neles A promulgação da lei moral a toda a humanidade poderia então ter sido apenas milrosa mas é mérito de Rousseau ter mostrado no nível da história como fizera Newton no nível físico que a sabedoria e a glória de Deus manifestamse melhor na necessidade e na regularidade das leis naturais que em qualquer interrupção milagrosa delas em seu decurso A íimção essencial da filosofia da história no entanto é interpretar o passado dando esperança para o íuturo e assim apoiando a ação moral com um incentivo àquilo de que não pode prescindir Kant considerava que a moral perderia seu significado a me nos que a humanidade estivesse progredindo moralmente ou a menos que o progresso da espécie bem como dos indivíduos não fosse pelo menos considerado impossível A crença em um progresso moral transmissível de geração em geração e a crença no pro gresso intelectual e político deve apoiar e ajudar a gerar um ao outro A moralidade do indivíduo ainda que só dependa de boa vontade ou seja do próprio homem deve ser progressivamente elaborada e recompensada por condições externas que nem seduzam nem penalizem a virtude É tarefe da história preparar a ascensão da razão e da civili zação que são necessárias mas não suficientes para a obediência à lei moral universal e preparar o estado de direito é exigido pela moral por meio da abolição da violência que é um perene convite para a imoralidade Kant não apresenta como um feto a evo lução histórica da cultura do intelecto e da polítíca mas sim como o postulado prático indispensável para o sujeito moral O progresso histórico não emana da ação moral mas é devido ao íuncionamento do mecanismo da natureza ou à Providência ao contrário de qualquer consciência humana a Providência utiliza essas próprias inclinações vícios violência e guerra a dominação ou a abolição dos quais são sua missão explícita Entre a filosofia da história e a moral existe tanto a concórdia como a tensão cada uma de las essencial reproduzindo o problema interposto no pensamento de Rousseau por sua compreensão da tensão entre o progresso intelectual e moral De feto a filosofia da his tória talvez estabeleça uma ligação entre moral e política mas a sua própria ambigüidade tornaa incapaz de superar totalmente sua disjunção 532 H istória da Filosofia Poutica Leo Strauss e J oseph C ropsey 11 Observações sobre o sentido do belo e do sublime Akademie Ausgabe v 20 p 58 A íilosoílã da história de Kant mais do que a de qualquer de seus sucessores é voltada para as exigências da moral Seu principal valor é prático como um guia para a ação A tarefe da razão teórica é mostrar que não pode ser demonstrada a impossibili dade do progresso certamente não por um apelo à experiência e aliás essa experiência em si dá indicações se não decisivas todavia decerto encorajadoras em fevor do pro gresso Kant não afirma que os homens têm o dever de acreditar na acessibilidade dos fins do progresso seu dever é agir de forma consistente com o desejo por tais fins desde que sua intangibilidade não seja certa Uma vez que a razão moral tenha estabelecido seu poder de veto absoluto sobre a guerra por exemplo a questão da paz perpétua ser atingível ou não é substituída por nosso dever de como ela se fosse possível assim sendo de estabelecer as instituições nacionais e internacionais do republicanismo que a paz exige Ao invés de fezernos assim os tolos da moralidade é exatamente a crença de que a lei moral pode enganar o homem que despertaria em nós o desejo fatal de abdicar da razão e nos submetermos como os animais ao mecanismo da natureza A razão moral libertanos do dogmatismo da razão teórica ou científica Ora por que é feita a lei moral para depender para a conservação do seu valor da possibilidade de um progresso em direção a alguma ordem política quando o dever moral de cada homem já foi unido a um imperativo absolutamente categórico cujo ditame pode obedecer porque deve fezêlo Em breve devido à necessidade de mostrar através da filosofia da história que não há concordância ou não a discórdia essencial entre virtude e moral felicidade e moral natureza e política dever ou e interesse É verdade que Kant introduz assim em sua filosofia da história e da política considera ções como a felicidade que não são estritamente morais Podese objetar que a moral kantiana abstraída da felicidade é comprometida pela preocupação de Kant em re conciliar moral reconciliação e felicidade Devese admitir porém que a tentativa de reconciliar a felicidade e a virtude que torna alguém digno dela é para o kantismo menos determinante no plano da história humana que no plano da crença em um outro mundo No entanto a tentativa de reconciliação limiuse a fornecer à história uma tendência política e um fim o estabelecimento de uma ordem legal ou pacífica em lugar de reivindicar que realiza a educação moral da humanidade um projeto limitado para a remoção dos obstáculos à moral somente na medida em que são obs táculos também para a sociedade civil De feto mesmo quanto ao direito como a reconciliação adota o ponto de vista da espéciedestino do homem no mundo natural desviase duplamente da vantagem da moral no sentido estrito que é a vantiem do indivíduo no mundo numenal Em primeiro lugar o problema moral apresentase a todo momento para todo indivíduo a cada momento o indivíduo deve ser virtuoso portanto pode sêlo e assim os postulados da razão prática voltam a se sustentar de forma decisiva Porém pelo contrário diferente da imortalidade da alma individual o progresso histórico da espécie propõe uma resposta para o problema da virtude e da felicidade somente no nível do futuro da espécie não só pode o indivíduo dispensar Immanuel Kant 533 12 A meuflsica da moral Doutrina do direito conclusão a noção do progresso histórico para fins de comportamento moral no momento pre sente mas a esperança externa que ele oferece nem sequer o afeta diretamente I t o primeiro grande filósofo em cuja obra a íilosoíia política se transforma em íilosoíia da história formula uma clara e forte objeção a toda a íilosoíia da história incluin do a sua própria Kant percebeu nitidamente que o progresso histórico é tarefa para gerações de homens que de modo mais ou menos inconsciente constroem um edi fício cuja perfeição traz uma felicidade que naturalmente não podem compartilhar Entretanto Kant considera que esta é a condição inevitável de seres racionais que são mortais como indivíduos e imortais apenas como espécie Aparece agora o segundo aspeao em que a íilosoíia da história é inferior ao postu lado da imortalidade da alma como garantia de moralidade Prevendo que a perfeição da moral fosse alcançada somente de modo indireto por meio da realização dos íins naturais do homem na sociedade a filosofia da história baseiase fortemente no empírico e no fenomenal a brevidade da vida do homem a imortalidade da espécie o próprio feto de que há progresso e uma vulnerabilidade a todas as catástrofes naturais que poderiam dar fim à própria história Mesmo se satisfeitas essas condições são condições peculiarida des da vida humana não dedutíveis a priori como caraaerístícas de um ser racional que decreta e obedece à lei moral Além disso por serem empíricas exigem uma confirmação empírica Muito embora teoricamente o progresso histórico nada mais exija como sus tento de sua aplicabilidade prátíca que uma demonstração de que sua impossibilidade não pode ser provada Kant não pode evitar a busca de evidências empíricas positivas a seu fevor a aposta do homem na convergência entre a história e a moralidade não pode ser abandonada como uma aposta simples A ação moral pressupõe e implica a esperança ou uma fé prática que deve produzir uma nova forma de encarar a natureza a experiência e a história A experiência humana deve ser suscetível de uma interpretação mais compatível com o ideal da paz aerna que a de meros políticos Assim é que Kant se volta de novo para aquela experiência da qual recuara com desprezo procurando nela sinais de progresso em direção à paz legalidade e morali dade Qualquer experiência que indique a aptidão do homem para ser o autor de seu próprio progresso é representada por Kant como sujeita a projeção para o passado e o íiituro como indicação da inclinação humana para o avanço Dependendo portan to de uma determinada leitura dos eventos e de uma determinada interpreução dos sinais a filosofia da história não pode reivindicar a necessidade ou rigor de qualquer dos postulados que se referem ao outro mundo ou das leis científicas que se referem ao mundo do daerminismo natural Em que plano e em que dimensão da vida humana se revelam os sinais e meios para o progresso Não no nível dos atos particulares dos homens de seus interesses e seus motivos não se pode contar com sua sabedoria para unir os homens com vistas a um projeto racional comum Exatamente por este motivo o filósofo deve partir da ausência de planejamento dos assuntos humanos para uma busca pelo plano da natu reza que é a base da história propriamente dita Nestas circunstâncias há apenas duas 5 3 4 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoifncA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 13 Ideia de uma história univetsal com um propósito cosmopolita proêmio maneiras de conceber o avanço em direção ao regime republicano de direito e à paz perpétua ou o homem escolhe livremente este caminho mas o seguirá não em virtude de sua natureza empírica por motivos de interesse ou felicidade mas sim por dever moral e obediência às leis ou será empurrado ao longo dele de forma involuntária sob coação de um poder maior Para que essas possibilidades se tornem indicações do íútu ro a experiência teria que conter provas ou de uma disposição moral entre os homens para superar suas inclinações e para participar de um estado de direito universal ou da ação de um poder superior que desconhecido dos homens desvia suas ações de seus íins particulares para atender a um objetivo comum coincidente com a paz perpétua São estes precisamente os dois aspectos ou íacetas da íilosoíia kantíana da his tória De feto a primeira possibilidade reflete a ação de algo que vai além da história mas a segunda constitui a íilosoíia da história propriamente dita a história só existe na medida em que há algo além da liberdade e na medida em que as ações humanas assumem um nuno involuntário Paradoxalmente a moralidade só pode avançar e se impor sobre a natureza na medida em que os homens não realizem o que querem ou que seus planos os traiam no dizer de Adam Smith na medida em que são condu zidos como por uma mão invisível a buscar íins que não fezem parte de sua intenção Assim é o íim da natureza que Kant formula de modo explícito como uma versão mais prudente da Providência que servirá de guia para a história A razão prática e a natureza colaboram uma com a outra e fortalecem uma à outra porque a natureza ir resistivelmente anseia que a lei afinal prevaleça Aquilo a que os homens negligenciam para este íim acontecerá de qualquer modo embora não sem labuta Assim a íilosoíia da história pode devolver às pessoas práticas a acusação de irre alismo que fezem contra o idealismo dos moralistas e utópicos o que parecia uma contradição entre piedosos desejos e as necessidades demonstradas pela experiência surge agora como um debate entre probabilidades empíricas genuínas porém limi tadas e uma necessidade que é ao mesmo tempo superior à experiência e já parcial mente cumprida nela Kant wd ainda mais longe são exatamente as indinaçóes egoístas da natureza hu mana que a natureza explora a fim de atingir os fins propostos pela veneranda embora impotente vontade geral da humanidade O egoísmo e a ganância íbmentam a guerra e a inclinação a acumular propriedades mas ao mesmo tempo inspiram egoístas medidas contra a agressão e a cobiça as quais conduzem a um progresso pacífico e próspero Tan to através do curso da história e em seus diversos apogeus a ordem emerge do conflito a paz da guerra e o bem público dos vícios privados A ordem política que a moralidade exige e que por sua vez deve pavimentar o caminho para a moralidade ou fecilitar sua tarefe não é apenas moralmente neutra como também é alcançada por meios imorais ou que no mínimo seriam impossíveis sem as paixões e os vícios Immanuel Kant 535 14 A paz perpétua Primeiro acréscimo 15 Ibid Sendo a natureza interpretada teleoiogicamente isto é moralmente o fim e por tanto o significado conferido à história pela natureza consiste na elaboração de todas as disposições da espécie humana Estas disposições culminam na cultura isto é na aptidão geral do homem como ser inteligente para utilizar a natureza como um meio e de escolher livremente por si mesmo os fins que almeja Kant concorda com Rousseau que o homem é fimdamentalmente caracterizado por sua liberdade ou melhor ainda por sua perfectibilidade É capaz de ser racional antes de ser de fato racional sua cul tura e sua inteligência se desenvolvem lentamente à medida que o desenvolvimento destas o arrebata de seu estado animal E tal como Rousseau Kant sustenta que esse progresso da cultura e da inteligência em si não constitui um progresso em direção à felicidade ou à moralidade Quando a razão e o instinto se separam a razão rompe também com a inocência e se faz uma ruptura entre a razão e a adaptação do homem à sua existência animal O desenvolvimento da razão sugere refinamentos do desejo que de modo algum são sempre salutares e dá ao homem também uma sensação de mal e de vício ao mesmo tempo em que introduz em sua vida a proibição e portanto a infração Kant remete a Rousseau e aos ensinamentos bíblicos sobre o pecado original ao apontar o vício e a miséria que acompanham a civilização Estes são íravados pela desigualdade que campeia entre os homens à medida que as competências se desen volvem entre eles a abundância material emerge e com ela a opressão das classes inferiores e o malestar das superiores Compreendemos agora como Rousseau foi capaz de persuadir Kant não só da necessidade de ver o homem dentro da perspectiva histórica da transição da natureza para a civilização mas também de hesitar antes de ver nessa perspectiva qualquer ga rantia ou mesmo fimdamento de moral As reflexões de Kant seguindo Rousseau acerca de uma tensão entre o progresso moral e o progresso da civilização das ciências das artes e até mesmo das instituições políticas pode ser a explicação mais importante para o papel secundário e ambíguo da filosofia da história no pensamento de Kant A ideia de que a espécie humana ao desenvolver suas potencialidades pode afastarse cada vez mais da virtude e da felicidade ou de qualquer forma que deve iniciar seu ca minho com essa separação leva a uma dúvida de que a humanidade seja concretizada neste mundo e a uma certeza de que os meios de concretização são corrompidos por uma impureza que deprecia a realização da humanidade nesta vida em comparação com o destino moral do indivíduo na vida futura A conclusão de Kant é mais otimista que a de Rousseau Provavelmente existe em Rousseau uma tensão irredutível entre o destino do indivíduo e o da sociedade Em Kant na verdade em sua interpretação de Rousseau essa tensão deve ocorrer por meio da evolução histórica em si em uma reconciliação dentro de certo tipo de sociedade que corresponde ao desígnio da natureza e ao destino do homem Kant interpreta as contradições que Rousseau aponta entre a civilização e o estado de natu reza como as contradições entre as inclinações do homem ligadas a seu destino moral 5 3 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o u t ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 16 Kritik der Urteilskrafi Crítica da feculdade do juízo 84 e as ligadas à sua preservação O luxo a desigualdade e a violência não podem ser separados do progresso moral Ao afestar homem da natureza devem conduzilo para a sociedade do contrato social para aquele ponto em que a perfeição da arte torna se natureza de novo Se por um lado Kant estigmatiza os males da civilização tal como fez Rousseau por outro enfatiza muito mais que Rousseau seu papel histórico positivo e indispensável e o modo como devem no final superarse ou transcenderse A miséria brilhante da cultura que desperta e estimula apetites e vícios deve levar à cultura de disciplina em que a vontade é liberada do despotismo do apetite cruel os caminhos da moralidade são abertos por meio da legalidade Da mesma forma a de sigualdade conduz ao aparecimento de sociedade igualitária e da guerra à paz É daro que Kant não isenta de culpa os meios corrompidos na verdade condena o emprego de tais meios de modo mais intransigente que qualquer outro filósofo No entanto está disposto a ver ndes um benefício retrospectivo de tal forma que apresenta uma história que supera a antinomia entre fins e meios É a natureza que de alguma forma assume a responsabilidade pela violência e imoralidade da política fazendo uso da máxima os fins justificam os meios que é tão estritamente vedada aos indivíduos pela razão prática Assim quando Kant discute temas como a Revolução Francesa a rebe lião contra os tiranos ou as guerras de libertação chega a um juízo dual problemático o desEravo retrospectivo pela história e a condenação incondicional pela moralidade Quer a visão histórica permaneça concatenada com a moral tal como para Kant ou a domine tal como acontecerá com Hegel existe uma promessa de reconciliação entre as duas ao passo que em Rousseau só existe uma insinuação de antinomia A reconciliação em pauta é problematizada no entanto justamente pelo lato de que a sociedade que a torna possível é ela mesma o produto permanente dos próprios apetites e vícios que se encontram nas fontes do comportamento censurável dos ho mens Talvez a desigualdade e a guerra venham a aniquilarse afinal mas o mesmo não é de modo algum verdadeiro do egoísmo e da hostilidade dos quais emanam pois são eles parte da natureza eterna do homem essa natureza que é função da história desen volver e do estado civil explorar no interesse dos direitos da moralidade e da felicidade O fenômeno fundamental do qual se desenvolvem tanto o problema político como sua solução é o que foi identificado por Hobbes como a associabilidade natural do homem a guerra latente ou manifesta de todos contra todos A surpreendente fórmula de Kant para descrever esu animosidade é a insociável sociabilidade dos homens ou seja a sua inclinação para entrar em sociedade inclinação que é contudo acompanhada de uma repulsa geral a entrar em sociedade que ameaça constantemente desagregála O elemento decisivo na fórmula é a insociabílidade a concórdia é apenas o desejo dos homens a discórdia é o comando da natureza imposto a íim de pressionar e portanto desenvolver o ser humano Ainda assim embora possa ser verdade que a discórdia é o Immanuel Kant 537 17 Inído conjetuial da história humana MutnufUcher Arfang der Menschengeschichte Vermischte Schriften p 274 Inselverl 18 Ideia de uma história univetsal com um propósito cosmopolita 4 Princípio mecanismo da natureza para afinal obter a concórdia essa mesma concórdia demons tra ser apenas uma discórdia bem regulada pelo menos no nível jurídico e político A sociedade civil está para o estado da natureza como a ordem está para a desordem e a paz está para a guerra mas a liberdade natural e o antonismo sobrevivem como devem íàzêlo no estado civil O regime mais conforme à essência da sociedade civil é o que melhor conserva essa liberdade enquanto promove esse antagonismo alcança por meio da articulação das instítuições a compatibilidade da liberdade de cada homem com a de outro homem e a eliminação da violência do antagonismo Se a vida civil depende da contenção egoísta do egoísmo nossa primeira questão ressurge com nova premência qual é a relação entre a ordem social e a moralidade cujas exigências deve atender e para cuja prática deve preparar Como difere das cons truções realistas cínicas egoístas ou utilitárias da tradição maquiavélica Com a mediação da filosofia da história mais do que nunca a filosofia política de Kant parece ser composta de uma moralidade abstrata que náo é deste mundo e de uma política amoral que é muito deste mundo O E st a d o d e D ir e it o Tomada simplesmente por si mesma a filosofia política de Kant sendo em essên cia uma doutrina do direito rejeita por definição a oposição entre educação moral e jogo de paixóes como íúndamentos alternativos para a vida social O Estado é definido como a união dos homens sob a lei O Estado digno desse nome é constituído por leis que sáo necessárias a priori porque fluem do próprio conceito de direito Um regime não pode ser julgado por qualquer outro critério nem a ele podem ser atribuídas quaisquer outras funções além daquelas próprias da ordem legal em si É da essência do direito sustentarse a priori como proveniente da razão prática e também imporse somente aos atos externos que são aqueles sobre os quais é possível legislar e impor restrições externas sem qualquer consideração pelos objetivos ou motivação interior de um homem Desta forma a lei fornece uma mirada isto é em sua abstração e sua uni versalidade essencialmente neutra em relaçáo à moralidade e felicidade mesmo que possa estar de acordo com qualquer uma das duas Sem dúvida Kant diverge de seus antecessores ao apresentar a moralidade como uma condenação do estado de natureza e um comando para que os homens entrem em um estado de direito em que passem a estar sob coação externa e no qual só podem ser respeitados os direitos do homem e é à moral que esses direitos devem sua santidade Porém o único direito inato aquele em torno do qual revolvem todos os outros é aquele que garante a liberdade de cada homem para realizar todos os atos externos que lhe aprouverem desde que não invada essa mesma liberdade dos outros Essa liberdade externa é definida sem considerar qualquer limitação moral interna e implica a rejeição de todas as limitações morais ex ternas todas as tentativas de educação moral por parte do estado Por outro lado não importa até que ponto a sociedade civil seja responsável pela preservação de seus mem bros não deve adotar como fim o seu ser seu bemestar ou sua felicidade mas pode ter 5 3 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y como meta correta apenas a preservação da ordem de direito em si O caráter universal e a priori da lei e da natureza jurídica da sociedade política exigem que esta última se limite ao universal e por conseguinte às condições mínimas para a coexistência de homens livres sem levar em conta a natureza empírica desses homens ou os usos que ferão de sua liberdade Além disso há uma outra base mais diretamente política para a disjunção entre os fins da sociedade política e os fins de seus membros indivíduos que perseguem seus diversos fins dentro de um direito idêntico à liberdade externa o regime que teria como objetivo muito embora de forma benevolente prescreverlhes o caminho para sua felicidade constituiria um despotismo paterno contrários aos seus direitos Na mesma linha o estado não pode e não deve tentar c o r seus cidadãos a agir moralmente pois embora as ações possam ser reguladas as intenções indispensá veis para a moralidade desses atos não pode ser induzida de fora para dentro talvez eu possa ser obrigado a empregar certos meios a fim de atingir um determinado fim mas só eu posso ditar o fim para mim mesmo Desta forma parece que este estado de direito que deve abstrair tanto da felicidade como do dever moral de maneira a se basear exclusivamente na liberdade externa será um estado por sua natuteza contrário ao despotismo ou seja o estado republicano Uma vez que existe este estado demonstra ser mais propício tanto à felicidade dos homens como a sua moral à sua felicidade porque o sentimento de não dever a ninguém seu destino é indispensável para a felicidade dos homens e à sua moralidade porque a con formidade dos atos dos homens para com a lei prepara a conformidade das suas inten ções para com a lei moral Resta ver se o sistema kantiano pode ter sucesso em proibir o estado no interesse da liberdade externa de qualquer cuidado com a moral e felicidade dos homens e ao mesmo tempo comprovar sua demonstração de que o estado resulta de uma preocupação com ambos e impele os homens para ambos A construção de Kant é baseada no primado absoluto do direito inato de todo homem à liberdade externa a liberdade da restrição da vontade de outro Ao mesmo tempo a razão prática declara como seu único postulado legal a possibilidade de o indivíduo considerar todos os objetos externos como próprios Tanto o direito inato como a possibilidade postulada exigem para a sua proteção que seja restrita a liber dade externa dos homens Restrições legais à liberdade externa são indispensáveis para a conversão de simples bens em propriedades definitivas porque legais O direito exige que haja coação tanto dos que transgridem a lei como daqueles que precisam ser forçados a participar da vida civil A constituição da sociedade civil é concebida como baseada em um contrato original pelo qual os indivíduos se unem para estabelecer uma vontade coletiva a cujo representante delegam seus poderes independentes de mútua coação Como em Hob bes somente o chefe de estado pode coagir outras pessoas sem ser ele mesmo sujeito a coação porém como em Rousseau porque está unido a todos obedece apenas a si mesmo a vontade geral fonte e produto do contrato original é único soberano e legislador mas com o entendimento de que o corpo de cidadãos em si é aquele so berano Assim Kant pode afirmar em A paz perpétua que a liberdade externa não é a Immanuel Kant 539 liberdade de um homem fezer o que lhe aprouver mesmo dentro dos limites de uma li berdade semelhante dos outros mas sim sua liberdade de náo obedecer a quaisquer leis externas às quais possa não ter consentido Seguese que o governo representativo em que a legislação é dominada pela vontade geral é o único governo legítimo Kant distingue três poderes políticos que são de feto a vontade geral manifesta em três pessoas o poder supremo ou soberania na pessoa do legislador o poder executivo na pessoa do governador e o poder judicial assegurando a porção de cada um na pessoa do juiz A prova da conformidade de um governo com o contrato original e de sua representatividade e legitimidade é portanto a separação de po deres dentro dele Ao distinguir os regimes Kant substitui o critério tradicional de um poucos ou muitos governantes em fevor de um exame da forma enraizada na ação da vontade geral que efetuou a transformação primordial da multidão em um povo como o estado aplica seu poder absoluto O filósofo chega à distinção entre estados republicanos e despóticos O despotismo é exatamente a junção do legislativo e executivo em um único poder que executa leis de sua própria criação uma situação exemplificada pela total democracia Por outro lado quanto menor o número de go vernantes e quanto maior a representação do povo mais perfeitamente pode o regime aproximarse do republicanismo no qual na prática o governo representa o povo enquanto o próprio povo é o legislador soberano Kant modifica esta doutrina da soberania popular que tem óbvias implicaçóes revolucionárias de uma forma que aparentemente entra em conflito com sua distin ção entre a priori e empírico e entre direito e moral O filósofo declara para começar que o contrato original a condição indispensável para a sociedade civil direito e repu blicanismo náo precisa ser considerada como um feto histórico e é aliás impossível exceto como uma ideia útil para impelir os legisladores a respeitarem uma vontade ge ral postulada com seriedade Entretanto se o contrato original é apenas um critério para julgar regimes assim também é a vontade geral que supostamente surgiu dele Assim uma expressão real da vontade geral pelo voto popular pode legitimamente ser substituída pela legislação monárquica conquanto que a legislação pudesse ter recebido a aprovação da vontade geral Enquanto o republicanismo é assim transfor mado em justiça como critério de legitimidade qualquer governo pode ser conside rado legítimo pelo menos provisoriamente embora seja preciso entender que nâo é aplicável nenhum princípio substantivo de justiça mas apenas o princípio formal da universalidade a medida é adotada com justiça por todo um povo ou de forma coe rente com a vontade geral por um governador se nada de contraditório houver nisso Isto confirma a definição de direito em abstração de todas as consideraçóes morais e empíricas Porém é nítida tarefa do governante e não do povo julgar se a definição está sendo respeitada o povo deve obedecer em quaisquer circunstâncias A des qualificação do povo para a defesa de seus direitos inalienáveis praticamente assegura 540 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Sobre o dito popular pode ser verdade na teoria mas náo se aplica na prática conclusão 20 Ibid algum desvio em relação à legitimidade estrita Esta não é gravemente afetada pelo fato de que os cidadãos devem ter o direito de livre discussão e crítica Por conseguinte a justiça deve afinal depender da boa vontade do chefe de Estado cujo poder não deve ser contrabalançado por qualquer outro Kant apoiava a moderna substituição da educação por instituições e da regulação moral das paixões por suas limitações mútuas mas até que as revoluções que o filósofo condena por razões morais tenham instalado o republicanismo em toda parte o respeito pelos direitos do homem embora se tenha tornado uma prioridade reduzida aparentemente dependerá de fatos empíricos tal como a educação e a moralidade dos governantes É por isto sem dúvida que Kant considera o problema político como incapaz de receber solução perfeita o homem é um animal que precisa de um mestre mas o mestre é ele próprio um homem A solução abstrata segundo a qual cada homem será seu próprio senhor sendo todos reciprocamente senhores e súditos parece viável apenas e mesmo assim de modo precário quando substancialmente modificados por considerações empíricas ou morais que Kant luta em vão para apresentar como necessárias a priori e puramente no interesse da legalidade em si De modo mais geral o filósofo é levado a justificar muitas medidas cautelosas que em última análise dizem respeito à prosperidade do estado e à felicidade de seus cidadãos mas luta para derivar sua justificação de argumentos que os demonstram necessários para a defesa do estado legítimo contra os inimigos externos do povo A Pa z E t e r n a Os mesmos problemas recorrem de modo ainda mais enfático nos mais originais e talvez mais decisivos ensinamentos políticos de Kant isto é em sua doutrina das relações entre os estados e a paz perpétua Aqui também o desejo de conciliar uma doutrina pura mente jurídica baseada nas demandas da moral e no mecanismo das paixões de conciliar o ideal com o real por meio de uma teleologia da natureza a astúcia da natureza exigida pela moral leva a extensas concessões baseadas em considerações empíricas Ao solapar os fundamentos neutros e abstratos do direito a elaboração dessa doutrina revive com todas as suas dificuldades e aridez o problema da relação entre moral e história É justamente o legalismo intransigente e abstrato do empreendimento de Kant que o conduz para além das posições de Hobbes e Locke pois ao conceber a instituição do estado como um simples estágio de desenvolvimento Kant desloca o problema da transição do estado de natureza para o estado da sociedade civil para o plano universal ou cosmopolita As necessidades que levam à formação de qualquer sociedade civil em particular são tão generalizadas que também afetam as relações entre as sociedades a ponto de impedir qualquer resposta perfeita para essas necessidades por parte de estados coexistentes O mesmo postulado jurídico subjaz à política interna e externa o direito público o direito das gentes ou as relações entre estados e o direito cosmopolita de homens e estados como cidadãos da cidade universal Todos os homens que podem afetar uns aos outros reciprocamente deveriam estar dentro do campo de ação de alguma I m m a n u e l K a n t 5 4 1 instituição civil pois mesmo que somente um usufrua sua licença natural sobrevêm o estado de guerra Qualquer p e r externo provindo seja de uma comunidade ou de um indivíduo perturba a garantía contra a violência para a liberdade e propriedade pa cíficas da sociedade civil Indivíduos não podem atender a seus próprios interesses nem ao comando da razão prática não haverá guerra nem ao plano da natureza com pleta unificação civil da humanidade se os estados não sAÜtem o caminho que vai do estado de natureza para o estado de direito Kant como Hobbes afirma que o estado de natureza é um estado de guerra e que as nações estão nesse estado em relação umas às outras Novamente como Hobbes Kant sustenta que no estado natural a paz de qualquer momento dado é apenas um episódio empírico no estado de guerra subjacen te O estado de paz para que exista precisa ser instituído de modo explícito A íilosoíia política de Kant porque jurídica em essência tomase íundamentalmente uma doutrina de guerra e paz em que a polítíca externa tem dara precedência sobre a interna consti tuições dvis individuais não serão capazes de trazer a paz interna enquanto persistirem as ameaças externas à paz Kant íãz uma crítica acirracü a Grócio e outros teóricos do di rdto internacional bem como à escola do equilíbrio de poder porque não reconhecem a importância decisiva da obtenção da organização jurídica entre os estados Tendo afirmado isso Kant surpreende o leitor da primeira parte de A metafísica da moml Rechtslehre Doutrina do Direito com sua declaração de que a oianização dos estados não deve contar com um poder soberano mas deve ser meramente uma aliança ou federação revogável à vontade e exigindo renovação periódica É óbvio que é questíonável a capacidade de uma organização deste tipo para obter obediência ou a paz A obscuridade ou hesitação de Kant quanto a este ponto compromete duas preocu pações ainda mais fundamentais a paz perpétua só pode ser precária ou provisória mas não deíinitíwu e pode de íato ser um ideal puramente inatiivel ao contrário de uma necessidade moral ou um fato previsível Finalmente as dificuldades que afetam uma concepção jurídica da ordem internacional nos colocam de novo cara a cara com o caráter problemático da afirmação de Kant de ter resolvido o problema de Rousseau o progresso histórico realmente prepara a regeneração moral da humanidade As dificuldades que suigçm para Kant no nível político e legal são inerentes à natureza de uma organização internacional que pode ou deve estar para os seus es tados componentes tal como os estados estão para seus cidadãos A plena eficácia da organização pressupõe intrusões na autoridade dos próprios Estados ou até mesmo em sua própria condição de estados Por outro lado se for restrito o poder da organiza ção os estados permanecem efetivamente na condição original de finalidade e guerra iminente A alternativa consiste no estado universal de um lado e de mero pacto ou aliança de estados de outro Kant rejeita o estado universal e parece íavorecer a federa ção ou república de repúblicas Não fica daro se a república de repúblicas é um ideal inatingívd útil para regular a ação ou uma meta realizávd que sozinha seria capaz de introduzir leidade e significado na polítíca e na história 5 4 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 1 Apazperpituases2aotíi3 Kant rejeita o estado universal por motivos que se afestam das abstrações da legalidade e que dependem ao contro da sabedoria política empírica da moral e da íilosoíia da história Sua objeção é que as leis perdem mais e mais da sua força na medida em que o governo ganha em tamanho e um despotismo sem alma decai final mente na anarquia depois de ter destruído os germes do bem O estado universal seria o despotismo universal e a paz que sobreviria seria a paz do túmulo desconhecen do não só a liberdade mas a virtude o gosto e a ciência Além disso o estado universal deve desintegrarse em corpos menores cuja interação é o instrumento escolhido pela natureza Kant firmemente decide em favor da difícil reconciliação entre uma multi plicidade de estados e uma ordem jurídica embora seja verdade que em Die Relipon innerhalb der Grezen des blofien Vemunfi A religião dentro dos limites da mera razão refirase à íusão prematura e portanto fetal de estados se ocorrer antes que os ho mens se tomem moralmente melhores deixando assim em aberto a possibilidade do estado universal como o culminar de um progresso histórico que tem o progresso moral como sua condição preestabelecida Em suas anotaçóes e em seus textos publicados Kant fez comentários diversos embora não inconsistentes sobre a tripla questão do poder coercitivo da Confederação a provisoriedade ou a perfeição da paz que esta pode obter e o status do projeto como possível e ponanto obrigatório ou como impossível e perturbador Em algumas deda raçóes mas não em outias a participação em uma constituição legal é obrtória para os estados Em algumas delas os estados podem obrar seus vizinhos a participarem de uma constituição desse tipo em outras não Em algumas o corpo internacional pode coagir em outras não Às vezes a organização internacional é apresentada como realizadora de um progresso persistente porque é da natureza do Bem perdurar uma vez que se inicie assim como é da natureza do mal destruir a si mesmo no entanto às vezes a organização é representada como estando em perigo constante de esfecelarse Às vezes o projeto é apresentado como uma ideia iriealizável às vezes como um limite acessível por um progresso assintótíco indefinido e às vezes como um fim atingível pelo acordo de três governantes europeus As obras publicadas de Kant examinadas por si sós teíletem a incerteza e talvez a evolução de seu pensamento indicando a impossibilidade de uma solução puramente jurídica para o problema e a dificuldade de alcançar qualquer solução Remetemos o leitor particularmente a Idee zu einer allgemei nen Geschichte in weltbürgerlicher Ahsicht Ideia de uma história universal com um pro pósito cosmopolita Theorie und Práxis Teoria e prática e A paz perpétua A visáo de Kant que se manifesta em Doutrina do Direito em Metafisica dos Costumes merece especial atençáo pelas questóes que suscita Sua argumentação pode ser resumida da se guinte forma 1 A paz eterna constitui uma transformação radical e indispensável dos assuntos humanos sem a qual todas as posses e sqrança são apenas provisórias Exige o esubelecimento de uma constituição civil universal Volkerstaai 2 Isso é imprati cável um congresso de Estados deve ser aceito em seu lugar 3 Como a inviabilidade Im m a n u e l K a n t 543 22 Ibid Primeiro acréscimo nâo foi demonstrada de forma absoluta e a moralidade exige a paz eterna e portanto uma constituição civil universal devese porém adotar a paz eterna como a meta a ser sempre almejada por meio do progresso perpétuo Este argumento não é isento de grandes dificuldades Em primeiro lugar seria a profundidade da transformação introduzida pela paz eterna compatível com a gradual imperceptível e acima de tudo aparentemente infindável evolução que conduz a essa transformação A doutrina de Kant parece apelar implicitamente tanto à noção do fim da História como à do progresso perpétuo no entanto as duas noções são mutuamen te contraditórias Em segundo se entrar em uma constituição civil parece no momento nada mais que um objetivo distante e a coerção institucional das pabtões está correspon dentemente remota seguese que a presente lei internacional imediata tem como diria Hegel a forma de dever do dever ser É o ditame da moral que os estados imediatamente se transformem e a suas relações de modo a tornar possível uma futura condição jurídica ou talvez como se para tornar possível essa condição Kant cri ticara o direito internacional vigente e em particular a Grócio ao enfatizar que não pode haver lei sem o estado de direito e não pode haver estado de direito sem contrato e coerção Ele mesmo porém em seu projeto para a paz perpétua é levado a enumerar alguns artigos preliminares que se justificam pela máxima Então aja de tal forma a não impedir a saída dos estados do estado da natureza e a inauguração da paz perpé tua Alguns desses artigos são de aplicação imediata alguns podem ser adiados por razões de prudência mas em todo caso é certo que neles reaparece parte do direito internacional clássico muito embora com uma nova justificação final constituindo o que é mais concreto e mais tangível na doutrina da paz perpétua e da lei das nações de Kant Em sua última obra publicada Der Streit Der Fakultãten O conflito das facul dades Kant parece colocar a sua ênfase e suas esperanças em relação à paz eterna na instituição do governo republicano essencialmente pacífico no âmbito dos estados em lugar da submissão dos estados a uma comunidade civil universal Os argumentos de Kant parecem implicar que a transformação da natureza e das relações internacionais esta última o testemunho mais perigoso e visível da maldade da natureza humana pode levar afinal à submissão dos estados a uma constituição legal e à paz perpétua que por sua vez deve abrir o caminho para a regeneração mo ral dos estados e dos homens A questão dupla reaparece agora podese depender do progresso moral para transformar a história de maneira favorável ao direito e à paz Podese depender do progresso histórico para produzir uma constituição universal legal e um estado de paz favorável para a moralidade Tendo ou a história ou a moral como ponto de partida e admitindo uma aparente neutralidade do ponto de vista legal recorre a pergunta relativa à possibilidade e ao modo como um pode influenciar o outro progresso imperceptível ou transformação radical Vamos examinar primeiro o que Kant considera como as indicações históricas concretas de que a natureza assegura a paz eterna e também que perspectivas próximas ou remotas se abrem com essa garantia O tema central ditado pelo próprio problema 5 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y e pela concepção kantíana da história regida pelo antonismo é o papel desempe nhado pela guerra na história contudo esse tema é articulado com o do progresso da civilização na era do Iluminismo e mais particularmente com a oposição entre a religião e o comércio Em primeiro lugar existem condições externas por meio das quais a natureza manifesta sua filantropia e pelas quais a teleologia natural prepara o arcabouço para a teologia histórica os dispositivos por exemplo por meio dos quais a natureza tornou habitáveis até mesmo as regiões mais inóspitas da Terra Em segun do é através da mediação da guerra que a natureza impulsiona os homens a todos os cantos do mundo na verdade compelindoos a habitálo todo assim possibilitando sua progressiva unificação política Na medida em que os homens não avançam em direção a seu fim moral pela instrumentalidade de sua liberdade devem avançar sob a coação da natureza e assim de acordo com a terceira disposição provisória da nature za os homens são compelidos sob ameaça da guerra a participar de relações mais ou menos legais Mais especificamente a guerra externa e também antagonismos internos impulsionam na direção do governo republicano como o mais eficaz no enfrentamen to de ambos os tipos de ameaça Contudo de todas as formas o governo republicano é o mais íavorável à paz Portanto na medida em que o republicanismo é difundido no mundo a guerra tende a ser suprimida Dentro da perspectiva do direito internacio nal no entanto que pressupõe a existência independente de muitos estados a nature za aparece como uma obstrução para a paz eterna obtida pela íiisão dos estados em um estado universal A natureza interfere com essa fusão ao proporcionar uma diferença de linguagem e de religião São estas até certo ponto desejáveis e permanentes apesar de implicarem o ódio e a guerra Este mal necessário é gradualmente superado no entan to pelo progresso do Iluminismo que colaborando com o avanço da civilização e de uma ampla concórdia humana conduz a uma pacificação geral com base na liberdade no equilíbrio e na emulação Superveniente a todas as diversas manifestações da reli gião deve ser a única religião universal a religião inserida unicamente nos limites da razão válida para todos os homens e em todos os tempos o produto pacificador que emerge gradualmente desse mesmo iluminismo A religião racional não seria capaz de produzir a unidade e a paz sem um pro gresso simultâneo da civilização que as apoiaria com uma base mais sólida no interesse comum Dentro da cena ampla da divisão natural e da união coagida entre os povos mais cedo ou mais tarde o espírito comercial principia sua manifestação em todas as nações tendendo a proporcionar a harmonia aonde a noção de direito cosmopolita pouco efeito viria a ter O comércio o meio de seu interesse comum é promovido por um espírito que é incompatível com a guerra De todos os poderes e meios à disposição do Estado o poder do dinheiro é sem dúvida o mais certo e os estados assim são constrangidos a auxiliar o avanço em direção à paz nobre não por razões de moral é verdade e evitar a guerra onde surge sua ameaça por mediação exatamente como se estivessem unidos em aliança perpétua para este íim É assim que a natureza assita paz perpétua pelo próprio mecanismo das tendências humanas Im m a n u e l K a n t 545 23 Ibid Desta forma temse a sensação de finalmente confrontar as verdadeiras razões que estão por trás da esperança de Kant em grande medida as razões de seu século As religiões que dividem se opóem como no pensamento de Montesquieu ao comér cio que une O desenvolvimento econômico interno dos estados e a elaboração de suas relações comerciais externas tornarão a guerra não lucrativa e desastrosa respectiva mente A riqueza substitui o poder como a medida de superioridade Impulsionada pela conquista muito se adiantara a humanidade na estrada para a unidade e a legali dade porém a diversidade de línguas e religiões efetivamente tornouse um obstáculo nesse caminho Hoje em dia o comércio substitui a conquista na continuidade da tarefa de unificação de uma forma que respeita a diversidade e garante a paz dentro de limites compatíveis com ela Onde fiJharam a guerra por meio da conquista e a moral por meio da educação parecia à era de Kant que o comércio ou de forma mais geral o dinheiro estava prestes a ter sucesso Todavia o íuncionamento do comércio está entrelaçado com o da guerra do esclarecimento e da moral já as obscuridades do kantismo impedemnos de discernir claramente entre esses modos e encontrar a direção final desse íuncionamento Ten deria a evolução econômica da humanidade a abolir a guerra por meio de guerras tão brutais a ponto de serem insuportáveis ou por meio da deterioração da guerra que é contrária ao espírito e interesse dos estados Se o Mal o conflito entre inclinações dá origem ao Bem a paz perpétua íaria isso por meio de catástrofes provocadas por sua força esmagadora ou por meio de aperfeiçoamentos provocadas por sua debilidade A primeira possibilidade aponta para a revolução e a regeneração radicais esta última em direção a um processo gradual e indefinido A mais forte indicação dada por Kant parece apontar na primeira direção as guerras estão se tornando mais freqüentes e mortais e acima de tudo mais caras em breve serão tão catastróficas que se tornarão impossíveis A humanidade será compeli da a mudar seu curso Entretanto este redirecionamento para o bem não terá o caráter de um evento único inevitável e decisivo Pelo contrário está ligado ao progresso da civilização e da iluminação e depende em certa medida do entendimento e decisões dos soberanos que por sua vez dependem de um avanço fundamental na iluminação cujo adiamento posterga o evento crucial para um momento indeterminado futuro E mesmo assim o redirecionamento para o bem inicialmente suposto não transformará a condição dos estados e do homem de modo radical e decisivo A perspectiva é de um aperfeiçoamento gradual correspondendo ao progresso no esclarecimento e na cultura o que implica o progresso se não na moral dos homens pelo menos na legalidade de seus atos o qual apesar das intenções que o influenciam se conformará mais e mais estreitamente com o ditame do dever A tensão entre a paz perpétua como eventualidade e como princípio regulador entre o progresso indefini do como um movimento que jamais atinge seu objetivo e como aquele que o atinge cada vez mais está bem expressa no trecho final de A paz perpétua Se é um dever a realização do estado de direito público e se há alguma razão na experiência para pensá lo realizável embora apenas por abordálo por meio de um progresso indefinido a 5 4 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y paz eterna que substituirá os mal chamados tratados de paz na verdade apenas tré guas não é uma ideia inútil mas uma tarefe que realizada pouco a pouco de forma constante se acerca do fim porque é de se esperar que os períodos de igual progresso continuamente diminuam A noção de progresso assintótico é a mais consistente com a concepção kantiana do infinito tal como apresentado em Crítica da Razão Pura Kant baseiase nos matemáticos para negar que há uma contradição na afirmativa de que o progresso da humanidade é uma constante que se aproxima da meta e se assimila a ela sem jamais atingila Contudo no mundo político e histórico do homem a ideia de progresso acelerado em direção a um objetivo nunca alcançado apresenta dificulda des maiores do que as existentes no paradoxo de Aquiles e a tartaruga A ideia tornase inteligível apenas em virtude de várias substituições aquilo que em um determina do nível aparece como uma meta realizável aparece em um nível inferior como uma ideia reguladora a moral é substituída pela legalidade o estado de direito de egoísmos mutuamente anuladores sob restrições externas substitui o estado do homem tornado bom pela compulsão interna do dever a situação em que os estados se comprometem a renunciar à guerra embora seja esta em si uma condição jurídica substitui a condi ção jurídica no sentido estrito tal como definida pela submissão das nações à coerção pública Volkerstaaí E a situação em que os estados nada ganham com a guerra em que intervém para suprimila como se fossem compromissados a fezêlo mas não o são é uma condição quase jurídica um substituto para o estado de direito em que a paz não é meramente provável mas seria assegurada pela submissão à autoridade pública ou pelo menos a guerra seria explicitamente proibida por um pacto O progresso implica um crescente abrandamento do estado de guerra que no entanto continua a ser a essência das relações entre os estados e a rigor entre os ho mens A combinação de educação iluminação e incapacidade equilíbrio de forças e o alto custo da guerra faz com que o esudo de natureza cada vez mais se assemelhe ao estado de direito o esudo de gueru se assemelhe ao esudo de paz mas não mudaram realmente nem a natureza das sociedades nem a dos homens nada é realmente garan tido e afinal a rigor nada é verdadeiramente salvo Talvez nada se salve não porque nada pode ser salvo mas porque ainda não foram tomadas as medidas essenciais e decisivas A história conduz os homens à civilização isto é a uma solução manipulável dentro do esudo de guerra ou do jogo da paixão a histó ria deixa os homens no limiar da verdadeira paz e da verdadeira legalidade No entanto talvez tal ocorra porque deixa os homens no limiar da moralidade que confrontando a debilidade interior de seu adversário irá explorar a oportunidade de ministrar o golpe decisivo introduzindo aquele genuíno governo republicano cujo conceito é acessível apenas ao político moral e aquela paz cujo conceito é moral A reforma histórica será sucedida por unu revolução moral De feto para Kant a revolução é necessária para a maneira de pensar Denkunari mas a reforma gradual é necessária para a maneira de sentir Sinnesarif É necessária uma reviravolu radical porque tornarse um homem bom não apenas pela lei mas pela moral não pode ser realizado por meio de uma tefornu gradual enquanto a base das máximas permanecer impura pelo contrário deve Im m a n u e l K a n t 547 ser alcançada por meio de uma revolução na mentalidade Gesinnun do homem que pode tornarse um novo homem somente por uma espécie de renascimento semelhante a uma nova criação e uma mudança de mentalidade Podemos inferir que a astúcia da natureza resulta por meio do progresso da cultura e do direito da guerra e do comércio em um triunfo n a tiv o que consiste unicamente na eliminação dos obstáculos à moral ou em trazêlos a um estado de neutralização mútua enquanto os seus objetivos adequados paz e direito universais só são alcançados quando a razão prática intervém diretamente para atingir os seus próprios fins que incluem os da natureza mas os ultrapassa Como fica evidente em A paz perpétua Kant acreditava que o mal é autodestrutivo e os desígnios de homens ímpios reciprocamente frustrantes Kant demonstra ainda que se trata de uma ques tão de intervenção ativa in extremis por assim dizer da intenção moral e não apenas da realização inconsciente do bem através do mal quando os motivos da política natural suprimirem e destruírem uns aos outros os da moral da política começarão a se manifestar em ação e concretizar a ideia de paz eterna D a H is t ó r ia à M o r a l Ao que parece a moral por um lado e a natureza ou a história por outro terão seus efeitos através de uma colaboração bastante semelhante a um revezamento Em primeiro lugar a natureza vem em auxílio dessa vontade geral fundada na razão e re verenciada por todos mas ineficaz na prática ao assegurar o cancelamento mútuo das tendências egoístas de tal forma que para a própria razão é como se não existissem Contudo em segundo tendo sido limpo o terreno é a moral ou razão prática que assume o comando e por si leva a termo a tarefa e é a vontade geral ou universal expressa a priori que por si só determina o que é lícito entre os homens e que pode se conduzirmos nossos negócios com coerência ser a causa que produz o efeito dese jado através do mecanismo da própria natureza e que ao mesmo tempo permite que a noção de lei seja concretizada Porém se a instituição do verdadeiro estado de direito e da paz eterna está ligada à intervenção real na história de uma intenção moral em que tipos concretos de ação vai se manifestar essa intenção Será que a transformação moral dos homens conduz à transformação decisiva das instituições que o perfeito equilíbrio das paixões não con seguiu obter É pelo contrário a transformação das instituições que deve no longo 5 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 24 Die Reüpon innerhalb der Grezen des bloJSen Vemunji A Religiáo dentro dos limites da mera razão I V 25 Vorarbeiten zum Emgen Frieden Notas preparatória para A paz perpétua in Kant Gesammelte Schrijien Akademie Ausgabe v 23 p 192 26 A paz perpétua Primeiro acréscimo 27 Vorarbeiten zum ôffentliches Recht Notas preparatória para direito público in Kant Gesammelte Schrijien Akademie Ausgabe v 23 p 353 prazo levar à transformação moral dos cidadãos garantindo assim a estabilidade dessas próprias instituições Ou é a intenção moral que se manifesta na história na verdade a intenção dos soberanos iluminados pela fílosofia que se comprometem simultaneamente com a transformação das instituições e da educação moral de seus súditos Em A relião dentro dos limites da mera razão e em Ideia de uma história uni versal com um propósito cosmopolita Kant apresenta a regeneração moral dos homens e sua educação moral pelos estados como necessariamente antecedente à unificação da humanidade Em A paz perpétua no entanto afàstase da noção de educação moral pela comunidade em direção ao pensamento de que essa educação não é indispensável para a formação do governo republicano Na verdade Kant indica que a natureza realiza o que é necessário para esse objetivo por meio das próprias tendências egoístas deixando ao estado a tareia de explorar o mecanismo natural para transformar em bons cidadãos os homens moralmente defeituosos Cita o exemplo da nação de demônios para argumentar que a íundação do estado não exige a bondade moral dos homens Kant chama a atenção para a aproximação à moralidade que pode ser observada em estados reais onde a perfeição moral decerto náo é a influência decisiva nem mesmo determinada por lei e comenta que não se deve esperar uma boa constituição da moral do povo mas ao contrário uma sólida educação moral do povo pela Constituição As duas linhas de pensamento podem de fato ser reconciliadas até certo ponto Quando as instituições receberam precedência sobre a transformação moral o contex to era a constimiçáo interna do estado e as coerçóes externas da lei como um substituto para as coerçóes internas da própria moralidade Onde a transformação moral recebeu precedência sobre as instimiçóes o contexto era o das relaçóes entre os estados a qual não pode abrir mão da moralidade uma vez que não essas relações não reconhecem qualquer coerção restrição externa efetiva Conmdo permanece o paradoxo segundo o qual é possível supor uma constimiçáo que se desenvolve a partir do mecanismo das tendências para educar corretamente um povo se um governo republicano pode con seguir isso por que não se tornaria essa a principal fimção de tal governo Poderia este governo cumprir essa fimção independente das disposições treinamento e intenções dos seus cidadãos Pode ele inspirar com uma boa vontade uma nação de demônios que coagidos por suas tendências egoístas a participar de um estado legal tornarse iam moralmente bons através da influência desse estado Em outros escritos Kant suaviza esse paradoxo apresentando como comple mentares as duas ideias que parecem estar em conflito A constituição do Estado em última análise repousa sobre a moralidade do povo a qual por sua vez nâo pode lançar raízes sem uma boa constituição Tal afirmação poderia íacílmente ter sido feita por Platáo e Aristóteles Se então até Eora Kant concorda com os Clássicos não deveria ele aceitar também seus pressupostos e suas conclusões acerca do objetivo Im m a n u e l K a n t 549 28 A paz perpétua Primeiro acréscimo 29 Vorarbeiten zum Ewigen Frieden Notas preparatória para A paz perpétua Gesammelte Schriften Akademie Ausgabe v 23 p 162 moral da política e do caráter político da moralidade Dito de outra forma a posição de Kant expressa nesta citação parece suscitar duas perguntas uma delas prática Por que não deveria o estado adotar como meta a moral do povo e outra teórica Não conflita a reciprocidade declarada entre direito e moral com o que é especificamente kantiano na concepção de cada um deles Não seria o núcleo do kantismo exatamente a radical disjunção da legalidade que influiu somente nas ações externas e da morali dade que influi apenas nas intenções Até certo ponto a resposta à primeira pergunta está contida na segunda Kant não pode nem por um momento abandonar a ideia de que uma intenção moral uma boa vontade não nos pode ser introduzida por um comando externo qualquer podemos ser obrigados a realizar determinados atos mas não podemos ser forçados a adotar um determinado fim como nosso A sugestão de influência política sobre a moral só pode ser feita com legitimidade com vistas a compulsões atenuadas graduais e indiretas implícitas na educação e na formação dos hábitos Seriam esses últimos capazes de transformar a natureza empírica do homem o suficiente para favorecer sua liberdade moral Se um educador quer a família o estado ou a natureza nos ensina a desenvolver nossa razão e dominar nossos instintos não nos conduzem esse desenvolvimento e domínio mesmo que tenham começado por meio da promoção de fins egoístas até à fronteira da moral e tornam altamente provável essa conversão final de liberdade que lhes daria um valor moral Em suma na multiplicação dos canais entre a natureza e a liberdade por meio da noção de uma liberdade surgida a partir da namreza e gradualmente emancipada dela não estão a natureza e a liberdade sendo reunidas de acordo com os princípios internos da lei Essa é de fato a fimção principal da filosofia da história de acordo com Kant O problema final da filosofia da história é compreender a pertinência moral do progresso na cultura na civilização e no direito o que converge no nível da educação da humani dade com o problema da possibilidade da educação moral do indivíduo As respostas de Kant à pergunta decisiva são tão diversas e hesitantes quanto as que fornece sobre as condições institucionais e históricas da paz Talvez a formulação mais exata de seu pensamento sobre o tema possa ser obtida a partir de dois trechos um sobre os efeitos da legalidade que prevalece nos estados e o outro no nível da tele ologia histórica No primeiro A paz perpétua Apêndice I Kant afirma que as proibi ções impostas contra agir de acordo com tendências ilegais incentivam uma predileção moral para respeitar a lei Em Crítica dojuizo que contém esta última passagem 83 Kant pretende mostrar como o fim último da natureza viz a cultura significando a aptidão para propor livremente fins para si mesmo e usar a natureza como meio para isso prepara a liberdade moral o único fim incondicional em si mesmo independente da natureza Para este objetivo Kant precisa introduzir uma noção intermediária a da forma superior de cultura que denomina a cultura da disciplina em que os homens do minam sem expurgar os desejos naturais que conduzem aos fins da vida sendo livres para dar asas a eles mas apenas na medida em que a própria razão o dita Esta possi bilidade de dominar as paixões prepara aquela emancipação radical diante de todas as tendências externas que ela própria constitui a moralidade O desenvolvimento de 550 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y tal domínio deve ser entendido como baseado naquela civilização do homem que se manifesta no refinamento do gosto e na elaboração do conhecimento nâo obstante o aumento da sensualidade que é inseparável do processo As belasartes e as ciências que através de um prazer acessível a todos e pelas boas maneiras e graças da sociedade ainda que não feçam o homem moralmente melhor o tornam porém civilizado sobrepóemse em muito à tirania dos sentidos e preparamno assim para um domínio que pertence à razão somente Todavia os males com os quais quer a natureza quer o insuportável egoísmo dos homens nos afligem convocam fortalecem e temperam simultaneamente as forças da alma para que estas não sucumbam e assim nos revelam uma aptidão que em nós permanece oculta para fins mais elevados A questão crucial a ser enfrentada em relação a esses dois trechos a questão em que se concentra todo o problema da íilosoíia kantiana da história e da política é esta que significado exato deve ser ligado a expressões como íàcilitar suscetibilizar a revelar a aptidão para preparar para prevalecer fortemente contra dar um longo passo em direção a e assim por diante Qual é a natureza ou mais precisamente qual é a necessidade da ligação entre o que prepara e o que é preparado entre o o longo passo em direção à moralidade e passo moral em si Este último pode necessariamente im plicar o primeiro mas o primeiro não parece necessariamente conduzir ao último Uma união demasiado estreita entre eles traria um determinismo ou mecanismo às condições de moralidade que colocaria em risco a liberdade essencial da própria moralidade Uma disjunção demasiado extrema entre eles uma transição demasiado radical da natureza para a liberdade ou mundo fenomenal para o mundo numenal torna inócuo todo o projeto da íilosoíia da história que constituiu precisamente uma tentativa de preencher essa lacuna É dificil entender como uma transição imperceptível da condição prémoral para a condição moral seria compatível com a escolha moral radical entre paixões e dever que está implícita na concepção kantiana da moralidade O que se pode dizer com certe za porém é que a civilização e o direito devem necessariamente preceder a moralidade e que a decisão moral por sua vez é o começo o archê da vida moral e não pode ser substituída pelos vários apelos ao egoísmo ou pela disciplina e lalidade os quais jamais poderão ser mais do que a preparação submoral para a moralidade A filosofia da história pode atenuar mas não pode de forma alguma anular a disjunção absoluta do mal e do bem do egoísmo e da moralidade da natureza e da liberdade A liberdade deve ser ou não ser e se for é incompatível com o íúnciona mento de qualquer mecanismo automático A conversão moral da humanidade que jamais poderá tornarse uma certeza teórica ou necessidade mecânica nâo pode ser tomada como a base para uma solução do problema político Reciprocamente a ex ploração histórica e jurídica do mecanismo das paixões torna impossível uma solução do problema moral humano Para Kant a política o direito e a história permanecem em uma relação ambígua ou náo resolvida com a moral os dois lados da relação em um estado de necessidade I m m a n u e l K a n t 5 3 1 30 Critica da factddade do juízo 83 mútua e repulsão mútua Kant apresenta a ordem política e jurídica como sendo limi tadas a ações externas porém tanto moralmente necessárias como alcançadas por meios imorais No entanto como vimos Kant não consegue manter o caráter me ramente legal da ordem jurídica pois subrepticiamente reintroduz nessa ordem a moral Como vimos ao examinar as bases morais dos direitos do homem e da íilosoíia da história Kant falha em demonstrar tanto as bases morais desses direitos como a ne cessidade moral dessa íilosoíia Vimos finalmente ao examinar a aplicação da íilosoíia da história ao problema decisivo da paz eterna que meios imorais ou maquiavélicos não foram suficientes para promover esta paz Com efeito quer se examine a doutrina política de Kant sua doutrina legal ou sua íilosoíia da história constatase que a moral sempre tem demais ou muito pouco a íãzer Se uma preocupação política associada com os direitos do homem é central para a sua inspiração e em particular como a inspiração para a sua moral sua doutrina política efetiva no entanto continua a ser uma síntese instável e insatisíàtória de uma intenção moral e realista A compreensão e as formulações de Kant permitiramlhe reinterpretar a vida política moderna visando a questão crucial e negligenciada de sua dignidade moral deliberadamente sacrificada pela tradição de Maquiavel e Hobbes mas o que permitiu que sua filosofia alcançasse este ganho foi um obstáculo para uma solução verdadeiramente coerente A existência de sua doutrina moral veta a solução do problema político por meio de instituições a natureza dessa doutrina proíbe uma solução por meio da educação Em última análise é o problema da educação moral e da conversão moral que se situa no centro das dificuldades de Kant pois este problema é afetado pela influência mútua e relaçóes que perpassam os dois mundos o da liberdade moral e o do determi nismo natural que Kant procurou preservar com grande esforço ao mantêlos radical mente dissociados um do outro Os espaços comuns que tenta multiplicar para eles são inseguros e problemáticos a pofitica não é guiada pela prudência natural é simples mente por vezes moral e por vezes imoral a história pressupõe a noção paradoxal de uma natureza teleológica que aparenta não ter íúndamento ontológico e que colabora historicamente com o determinismo para explorar sem que o saibam os desígnios dos homens em outras palavras de uma Providência que é a natureza chamada por outro nome e que de forma um tanto incompreensível prefere o uso de meios imorais mas que se detém antes da liberdade moral do homem a lei é ao mesmo tempo a expressão do mecanismo da natureza e dos conceitos da razão prática porém o que natureza e liberdade unidas de acordo com os princípios internos da lei acarretam é uma combina ção de princípios formais e acomodações contingentes que sáo tão difíceis de aplicar às relaçóes entre estados que lançam dúvidas não só sobre si mesmas mas por implicação sobre as exigências da moral e as próprias garantias da natureza Cada um desses espaços comuns propostos para os dois mundos é exposto a uma crítica que chamaria a atenção ao mesmo tempo para o caráter decisivo dos problemas colocados e o caráter por vezes de extremamente rude ou contraditório das soluções oferecidas 5 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Mesmo que se admita porém que Kant não tem sucesso em conciliar o externo e o interno a necessidade e a liberdade a natureza e a moralidade as provas da física e o testemunho da consciência devese ponderar no entanto se não existe em cada um desses termos algo irredutível que Kant sozinho fez emergir em todo o seu poder A crítica da filosofia política de Kant pode sem dÚAÜda conquistar vitórias tanto no campo dos fenômenos políticos concretos examinados no nível adequado a eles ou por desafiar a coerência do sistema como um todo entretanto para que essas vitórias sejam decisivas a crítica deve lidar com os fundamentos do pensamento de Kant A crítica da filosofia política de Kant deve tornarse uma crítica da Critica da Razão Pura e uma da Critica da Razão Prática Immanuel Kant 553 WiLLiAM B lackstone 17231780 Sir William Blackstone náo era filósofo político mas um advogado e juiz inglês Sua principal obra náo é um livro sobre a justiça ou mesmo sobre o direito mas um conjunto de comentários sobre as leis da Inglaterra Commentaries on the Laws of England Náo era autor original ou inventivo mas propositalmente era o oposto muitas vezes aborda questões importantes e complexas de um modo que parece obs curo ou superficial De íato a opinião mais diíundida acerca de Blackstone é que foi contraditório ou coníúso quanto a algumas questões relevantes da filosofia política Acreditase que dava a conhecer uma pessoa amável embora um tanto pomposa um estilo enxuto e por vezes elegante um intelecto que nâo é forte na teoria mas é capaz de sólidos julgamentos práticos e intrinsecamente propenso a íàzer concessões em suma um personagem tipicamente inglês Há muitas evidências que apoiam esta vi são mas sáo insuficientes e os motivos pelos quais são insuficientes sáo os mesmos que justificam dar atenção a Blackstone em uma história da íilosoíia política Ao oferecer o primeiro ciclo de palestras sobre as leis da Inglaterra na Universidade de Oxford em 1753 Blackstone abriu um precedente que viria a ter grande impacto sobre a educação jurídica inglesa e de modo mais amplo sobre sua educação cívica Apesar de sua obra Commentaries Comentários ser dirigida a fimcionários de todos os tipos e súditos de toda ordem destinase ao advogado e ao cavalheiro em particular Ao advogado para que fosse alçado dos limites da mera prática e direcionado para os elementos e princípios básicos sobre os quais se assenta sua prática Ao cavalheiro para Os quatro volumes de Commentaries on the Laws ofEngland Comentários sobre as leis da Interrd foram publicados pela primeira vez em 1765 1766 1768 e 1769 A edição utilizada pata este artigo é a oitava publicada em 1778 e a última publicada durante o período de vida de Blackstone exceto onde indicado diversamente as citações são relativas ao volume e página A autenticidade das alterações efetuadas pelo editor da nona edição nas quais se baseiam muitas das edições moder nas é um tanto duvidosa porém as divergências sáo pequenas e numerosas edições padronizadas reproduzem todo o texto com a paginação original A utilíssima edição de William G Hammond San Francisco BancroftWbitney 1890 contém uma comparação crítica de todas as alterações da primeira à oitava edição que fosse resgatado de sua desonrosa ignorância das leis que é seu dever resguardar aper feiçoar e ministrar Em ambos os casos a necessidade era de instrução acadêmica acerca das leis do país de modo a permitir que o estudante não só viesse a conhecer as linhas gerais do direito positivo mas também que compreendesse e até que urdisse ele mes mo aipunentos retirados a priori do espírito das leis e dos fundamentos naturais da justiça Blackstone convida a um exame das leis do país de seus fundamentos naturais e do espírito das leis que as perpassa É verdade que também discute a lei divina quan do introduz o direito em geral por exemplo mas em geral a lei divina só aparece de forma breve neste início logo cedendo espaço para o direito natural Tampouco utiliza Blackstone a lei divina como explicação de forma distinta de sustentação para as leis da Iilaterra A religião de fàto tem um liar importante ao a b r das leis da Inglaterra e Blackstone é um amigo cordial da Igreja estabelecida mas o que é relevante é a influência da Igreja em íàzer os homens sóbrios trabalhadores e bons cidadãos Desta forma o mais sublime tema de Blackstone situase na relação entre direito natural e direito convencional tal como essa relação se apresenta para aquele que é advogado no melhor e mais elevado sentido O plano ou organização dos Comentários caracterizase por uma simetria que contém como um todo e em cada uma de suas partes um movimento ou progressão do natural para o convencionado Após uma introdução os quatro volumes dos Comentários dividemse em duas partes cada uma composta por dois volumes ou livros O primeiro é Rights Direitos dividi do em Rights ofPersons Direitos das pessoas Livro I e Rights ofThin Direitos das coisas Livro II seguese Wrongs Atos ilícitos dividido em Private Wron Atos ilícitos privados Livro III e Public Wrongs Atos ilícitos públicos Livro IV A Unha argumentativa como um todo flui dos direitos individuais até os atos ilícitos públicos O primeiro capítulo do Livro I principia com o que Blackstone denomina os di reitos absolutos dos indivíduos que são aqueles que são pertinentes e pertencem aos homens individualmente como indivíduos e pertenceriam a suas pessoas apenas em um estado de natureza O fim primeiro e principal das leis humanas é manter e regular esses direitos absolutos No entanto Blackstone devota pouco tempo à U berdade natural da humanidade mesmo neste primeiro capítulo passando rápido à questão dos direitos civis e em particular dos direitos absolutos dos ineses que são examinados sob os fluniliates rótulos lockianos de segurança pessoal liberdade pessoal e propriedade privada O restante do Livro I e de longe sua maior parte é dedicado aos direitos relativos isto é aos direitos secundários e mais artificiais dos indivíduos em suas W l u a m B l a c k s t o n e 5 5 5 2 Ibid I 32 3 Ver ibid III 100103 IV caps iv viii xxviii 4 Em esboço anterior da área coberta mais tarde em Comentários Blackstone observa que em muitos aspeaos segue o plano de Sir Matthew Hale The Analysis ofthe Law fEngland 3 ed 1739 mas salienta que optou por extrair um novo Método seu próprio ao contrário de implicitamente copiar algum outro An Analysis ofthe Laws o f England 3 ed 1758 p vii Uma análise das leis da Inglaterra 5 Comentários I 123124 relações lealmente estabelecidas com outras pessoas primeiro as relações públicas entre governantes e governados em seguida as relaçóes privadas entre senhor e servo marido e mulher pai e filho e assim por diante que são decorrentes da sociedade civil Embora como mencionado anteriormente seja discutido no primeiro capítulo do Livro I o direito de propriedade como um dos direitos absolutos dos indivíduos Blackstone exa mina a propriedade em um livro à parte e posterior posterior observese até mesmo às relações de governo O motivo para isto é que a orem natural dos direitos das coisas é em comparação aos direitos das pessoas ao mesmo tempo menos data e menos rele vante paia a sodedade civil Menos clara porque Blackstone encontra a or m natural na ocupação ou posse e parece deixar em aberto a dificil questáo relativa a que tipo de direito pode a mera posse constituir ou outorgar menos relevante porque enquanto os direitos naturais pessoais tais como a autodefesa sáo de certa forma regulados pda lei positiva o direito natural de adquirir a propriedade é em grande parte substituído ou suplantado por direitos convencionais de possuir e transferir propriedade Afirmase que Wron Atos ilícitos o tema da segunda pane dos Comen tários visa na maior parte a transmitirnos uma ideia meramente n a tiv a pois náo passam de nada além de uma privação do direito A segunda parte náo contém capítulos comparáveis em sua intenção filosófica aos primeiros capítulos do Livro I e II porque os atos ilícitos wron são definidos pelos direitos e deles derivados O último par de livros não é contudo apenas a imagem espelhada do primeiro O Livro III descreve como a lei estipula a reparação de atos ilícitos wrongj privados relativos tanto a pessoas como a bens danos civis refletindo portanto a discussão dos Livros I e II e proporcionando por assim dizer um fechamento a toda a questão dos direitos individuais Os atos ilícitos wron públicos crimes e contravenções o assunto do Livro IV constituem a porção mais artificial da lei Os direitos são a base da jurispru dência de Blackstone e a rigor não há nenhum direito do público apenas direitos dos indivíduos No Livro IV porém a sociedade política que é um meio para o fim de proteger os direitos individuais é abordada tal como pode e deve ser abordada para muitos objetivos práticos como se fosse um fim Esse fim é o o governo e tranqüili dade do todo ou de modo mais simples a paz pois a paz é o íim e fundamento da sociedade civil Sem entrar em detalhes podemos dizer que a descrição de Blacks tone dos vários tipos de crimes e contravenções por exemplo crimes contra Deus e a religião e contra o rei e o governo contém sua discussão n a tiv a ou indireta do tipo de bem público artificial ou bem comum que deve ser construído em prol do pacífico usufruto dos direitos individuais 5 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Ibid 113 89 epassim Blackstone coloca de maneira bastante frouxa A origem da propriedade privada provavelmente tem frmdamento na natureza contudo decerto as modificações sob as quais a encontramos boje o método de conservála com o proprietário atual e de ttasladála de bomem para bomem sáo derivadas da sociedade em sua totalidade 1 138 7 Ibid III 2 8 Ibid IV 7 1349 As únicas e verdadeiras fundações naturais da sociedade declara Blackstone são os desejos e temores dos indivíduos entretanto não é o procedimento padrão de Blackstone realizar um exame detalhado ou exaustivo desses desejos e temores ou da liberdade natural da humanidade que sáo seu ponto de partida Ao contrário dedica se logo a uma discussão dos direitos civis o que podemos imaginar não desagradou aos cavalheiros e advogados ingleses como se para deíinir os direitos do homem em termos dos direitos dos ingleses Os direitos dos ingleses no entanto são todos direitos de acordo com a lei A liberdade pessoal para fornecer apenas um exemplo consiste no poder de locomoção de mudar de situação ou de deslocar a própria pes soa para qualquer lugar ao qual a própria inclinação possa dirigir sem aprisionamento ou restrição salvo se por devido intercurso da let No entanto se a lei fosse alterada de modo a permitir a detenção e aprisionamento por períodos indefinidos devido a suspeita por parte de funcionários do executivo não constituiria isso uma redução do direito do cidadão inglês a sua liberdade pessoal Colocando a questão de modo mais geral Blackstone afirma seguindo Montesquieu que na Inglaterra como talvez em nenhum outro lugar a liberdade política ou civil é o próprio fim e dimensão da constituição contudo Blackstone vai além asseverando que esta liberdade corre tamente entendida consiste no poder de fazer o que quer que as leis permitam Tal argumento parece circular define a boa lei como a que melhor mantém a liberdade individual e define a liberdade individual como o que é permitido por lei Essa cir cularidade ou ambigüidade se íãz presente ao longo de Comentários não por causa de alguma falha no raciocínio de Blackstone ou por algum compromisso irracional para com o sistema jurídico inglês mas porque o argumento teórico sólido o argumento retirado da natureza tende a ser autodestrutivo na prática Até mesmo a autodefesa com justiça denominada o direito primário da nature za é estritamente limitada embora não seja nem de fato possa ser removida pela lei da sociedade O princípio do direito é que quando a perpetração de um crime em si mesmo capital é intentada pela força é lícito repelir essa força pela morte da parte que a intenta Blackstone de imediato alerta que não devemos levar tal doutrina até o mesmo ponto visionário aonde vai o Sr Locke o qual afirma que todos os tipos de força sem direito sobre a pessoa de um homem colocamno em um estado de guerra com o agressor e por conseqüência que este pode legalmente matar aquele que o coloca sob esta restrição não natural Este princípio pode ser justo em um estado de natureza não civilizada mas as leis da Inglaterra como as de toda comunidade bem regulamentada sâo demasiado ciosas da paz pública demasiado cautelosas com a vida dos súditos para que adotem um sistema tão controverso nem tolerarão com impunidade que qualquer crime seja impedido pela morte a não ser que o mesmo W il l ia m B l a c k s t o n e 557 9 Ibid 147 10 Ibid 134 itálico nosso Ver I 129 138 para as definições de segurança pessoal e propriedade 11 Ibid 6 12 Ibid III 4 se cometido também fosse punido com a morte As leis da Inglaterra no entanto oferecem uma exceção a esta regra do homicídio desculpável o qual vem a ser na terminologia jurídica o homicídio justificável Quando por exemplo um homem se protege de uma íessão física e no transcorrer da contenda mata seu agressor é isen tado de penalidade legal desde que o soírimento certo e imediato fosse a conseqüên cia de aguardar pela assistência da lei e que o matador não tivesse qualquer outro meio possível ou pelo menos provável de escapar de seu agressor Um homem que sofre ataque deve virar as costas e fugir se puder e mais tarde levar seu atacante às barras do tribunal A presunção está sempre a favor da lei da sociedade civil não da lei da natureza A manutenção do governo e portanto das leis em si é uma questão ainda mais delicada Muitas vezes apontase Blackstone como um expoente da soberania parla mentar em contraste por exemplo com as ideias americanas de governo limitado No Parlamento composto por rei lordes e comuns encontrase aquele poder despótico absoluto que deve em todos os governos residir em algum lugar O Parlamento pode lidar com questões fora do âmbito normal das leis pode modificar a sucessão à coroa pode alterar a religião estabelecida pode mudar a constituição do reino e o pró prio Parlamento Em suma pode fezer mdo que não é impossível por natureza É verdade que com fiequência Blackstone parece pressupor que o Parlamento não pode fàzer o que não deve fezer por exemplo substituir uma monarquia hereditária por outra eletiva e enfetizar a verdadeira excelência do governo inglês pois todas as partes dele constimem um freio múmo de uns sobre os outros No entanto não importa a msitude da salvaguarda prevista na prática pelo sistema inglês de mútuos freios so ciais e políticos Blackstone afinal precisa retornar ao princípio primeiro da sociedade civil o de que o Parlamento ou a legislatura pode fezer o que lhe aprouver Será que não existe no entanto um princípio ainda mais fundamental É pre ciso admitir que o Sr Locke e outros escritores teóricos sustentaram que resta ainda inerente ao povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo quando jul gam que o legislativo age de forma contrária à confiança nele depositada Blacks 5 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ibid IV 181182 cf III 16869 itálico no original O trecho de Locke aqui não é uma citação direta mas uma paráfrase Ver Segund Tratado seções 1819 14 IbidW 84 15 Ibid I 160161 16 Ibid I 154155 Ver I 5051 na medida em que a legislatura do reino é confiada a três pode res distintos por inteiro independentes um do outro primeiro o rei segundo os lordes espirituais e temporais os quais são uma assembleia aristocrática de pessoas selecionadas por sua piedade seu nascimento sua sabedoria sua condem ou suas propriedades e terceiro a câmara dos comuns livremente escolhida pelo povo dentre ele mesmo o que fãz dela um tipo de democracia uma vez que este corpo egado ativado por diferentes fentes e atento a diferentes interesses compõe o Parlamento britânico e tem o supremo comando de todas as coisas não pode haver inconveniên cia ousada por qualquer dos três ramos que nâo seja resistida por um dos outros dois cada ramo estando armado com um poder de negativa bastante para rechaçar qualquer inovação que julgue inadequada ou perigosa tone insiste que nâo importa até que ponto seja justa esta conclusão em teoria e é justa na teoria de Blackstone exatamente pelos mesmos motivos que é justa em Locke não podemos adotála na prática nem tomar qualquer medida legal para executá la sob qualquer dispensa do governo de fato existente no presente Tal d elação do poder ao povo em geral presume uma dissolução do governo uma redução das pessoas ao seu estado original de igualdade bem como a revogação de todas as leis positivas Nenhuma lei humana portanto suporá tal situação que de imediato destrói toda a lei e compele os homens a construir de novo sobre novas fundações tampouco elaboram disposições para um evento tão periclitante que tomará ineficazes todas as disposições lais O último recurso ao princípio inicial ao qual Blackstone em outros textos denomina lei da natureza ou o Deus das batalhas é a base da lei porque impõe limites à autoridade política tal como nenhuma lei e nenhum freio interno é capaz de fazer Todavia a lei não pode prever nem sequer supor que este último recurso de feto gerasse uma tensão com ela a manutenção da lei e portanto a manutenção efetiva dos direitos individuais depende de abandonar como que de uma vez por todas o estado original de igualdade sem lei do qual emergiu a sociedade civil e ao qual possa em uma situação desesperada retornar O Sr Locke e seus com panheiros teõricos não estão errados mas podem pôr em perigo a comunidade política precisamente devido a expressarem de modo tão claro seus verdadeiros fundamentos Pois a liberdade civil entendida de modo correto consiste em proteger os direitos dos indivíduos pela força unida da sociedade a sociedade não pode ser mantida e claro não pode exercer nenhuma proteção sem obediência a um poder soberano e obediên cia é uma palavra vazia se cada indivíduo tiver o direito de decidir até que ponto deve ele mesmo obedecer Blackstone não teme que sua constante ênfese na lei e na obe diência às leis incapacite o povo para a retomada de seu direito original caso isso venha a ser necessário Onde o poder soberano passa a ser tirânico c constitui ameaça de destruição do estado a humanidade não abandonará pela razão os sentimentos de humanidade nem sacrificará sua liberdade por um escrupuloso cumprimento de máximas políticas que foram originalmente criadas para preservála A origem da sociedade civil sugere Blackstone é a anarquia sua tendência a tira nia Houve momentos em que os direitos dos ingleses foram esmagados por príncipes arrogantes e tirânicos em outros feitos tão abundantes tendendo até mesmo para a anarquia um estado pior que a prõpria tirania coloca Blackstone como convém a um advogado pois qualquer governo é melhor do que nenhum No entanto o objetivo é evitar ambas tal como tem feito a constituição britânica de modo geral Em apoio a este objetivo a jurisprudência de Blackstone reconhece esses extremos mesmo enquanto te LLiAM B l a c k s t o n e 5 3 9 17 Ibid 161162 itálico no oiinal 18 Ibid 193 19 IbU 251 20 Ibid 245 21 Ibid 127 siste à sua força pois qualquer um dos dois é fatal para a liberdade Afirmando o mesmo de maneira positiva Blackstone procura manter a posição central da lei entre a base e a tendência da sociedade civil em particular a lei tal como é entendida pelos juizes e mi nistrada em seus tribunais Em uma lista de cinco direitos subordinados auxiliares que servem principalmente como barreiras para proteger os três grandes direitos primários Blackstone coloca em lugar central o direito de todos os ingleses a recorrer aos tribunais para a reparação de danos As leis e náo o Parlamento ou o povo em geral diz aqui Blackstone são na Inglaterra o árbitro supremo da vida da liberdade e da propriedade de cada homem Nesta existência distinta e separada do judiciário está a principal defesa da liberdade pública a qual não pode subsistir muito tempo em qualquer estado a menos que a administração da justiça comum seja em algum grau separada tanto do legislativo como também do executivo Em particular se fosse unida ao legislativo a vida a liberdade e a propriedade do súdito estariam nas mãos de juizes arbitrários cujas decisões seriam entáo reguladas somente por suas próprias opiniões e não por quais quer princípios jurídicos fundamentais os quais embora os lisladores deles possam se afastar os juizes todavia são obrigados a cumprir Aqui mais uma vez Blackstone expressa o princípio dos freios mútuos mas nossa preocupação atual é com seu comentário de que existem princípios jurídicos funda mentais os quais embora os legisladores deles possam se afastar os juizes todavia sáo obrigados a cumprir Parece curiosa a afirmação quando se examina aquela que pode ser vista como a definição básica embora náo exaustiva de lei por Blackstone a vontade de um homem ou de um ou mais conjuntos de homens a quem a autoridade supre ma é confiada é em diferentes estados de acordo com suas constituições diferentes entendida como A lei é a vontade do soberano mas a boa lei e portanto a lei propriamente dita exige algo mais Não apenas o consentimento pois até mesmo as leis em si feitas com ou sem o nosso consentimento se rulam e condicionam nossa conduta em assuntos de mera indiferença sem qualquer finalidade boa em vista são re gulamentos destrutivos da liberdade A finalidade boa em vista é a genuína liberdade civil que nada mais é que a liberdade natural até ora e não mais adiante refireada pelas leis humanas como é necessário e conveniente para a vantagem geral do público Até que ponto e em que aspectos a vantem geral exige a restrição da liberdade natural não é uma questão que possa ser respondida por algum princípio ou regra gerais exceto de uma maneira que reformula a pergunta É uma questão de julgamento E o govemo livre depende da manutenção dentro dele de um lugar central para o judiciário essa pe culiar corporação de homens que são capazes por tradição posição política e formação de julgar bem Na medida em que fornece proteção desinteressada à vida às liberdades e às propriedades dos súditos o judiciário também serve como um freio sobre o uso insensato da autoridade parlamentar e popular e como uma fonte ou pelo menos um portavoz da instrução nos verdadeiros princípios da liberdade civil 5 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 22 Ibid 141269 23 Ibid 52 itálico no original Foi corrigido um óbvio erro de imprensa no texto desta citação 24 Ibid 125126 Os princípios fundamentais do direito que os juizes devem cumprir e que ate nuam a visão da lei como a vontade do soberano consistem em ou são derivados em primeiro lugar do costume No direito inglês a qualidade de um costume depende de ter sido utilizado por tempos imemoriais ou na solenidade de nossa expressão jurídica os tempos contra os quais não opera a memória do homem É isto que lhe confere peso e autoridade e desta natureza são as máximas e costumes que compõem o direito consue tudinário o common latv ou lex non scripta deste reino Quando em sua introdução Blackstone passa de uma discussão sobre a natureza do direito para as leis da Inglaterra não começa com um povo contratante ou com uma legislatura soberana mas com essas leis comuns das quais os juizes são os depositários e oráculos vivos Leis ou estatutos escritos são meramente dedaratórios ou reparações de algum defeito nas leis comuns que são o fundamento primeiro e principal pedra angular das leis da Inglaterra De inúmeras maneiras ao longo de Comentários Blackstone reconhece fortalece e utiliza a autoridade do antigo É muitas vezes tomado como um mero patriota ou conservador muito embora forneça amplos indícios de que nem o seu louvor do que é inglês nem a sua devoção ao que é antigo devem ser interpretados somente por seu significado visível Decerto Blackstone fez ressaltar a obrigatoriedade do precedente e a deferência devida pela geração presente aos tempos antigos Opta por exemplo por defender com base na autoridade em lugar de razão e justiça a decisão de lordes e comuns de julgar que James II apenas abdicara do trono ao invés de ter subvertido o governo e violado o contrato original Deixando clara sua opinião de que a decisão fora razoável e justa para evitar os extremos selvens a que as teorias visionárias de alguns republicanos zelosos os teria conduzido teme que tais especulações se levadas longe demais poderia implicar um direito de dissidiar ou revoltarse contra a deci são caso pensássemos que fosse injusta opressiva ou inconveniente Blackstone era tão perspicaz quanto os comentadores que apontaram uma fálha neste argumento porque segundo os próprios princípios de Blackstone a atual geração tem o direito de a qualquer momento julgar se o contrato foi violado O argumento implícito de Blackstone é que se surgirem circunstâncias desesperadas como ocorreu em 1688 devese esperar que o direito original seja exercido de forma tão sábia e moderada como o foi então quando a estrutura do governo e do direito foi mantida enquanto era feita uma revolução No entanto deve ser desencorajado o exercício desse direito básico A estabilidade de qualquer sistema político sobretudo uma política cujos prin cípios fundamentais contêm uma tendência intrínseca para a instabilidade depende de uma opinião generalizada acerca da obrigatoriedade do antigo É dever do juiz e preocupação de Blackstone como seu mestre articular e manter a integridade do sistema de direito positivo tal como existe O leitor de Comentários é informado com frequência do requinte com que se formularam as antigas regras W il l ia m B l a c k s t o n e 3 6 1 25 Ibid 67 6973 26 Ver ibid 172 19091 IV 35 27 Ibid 121213 do direito e de como estão intimamente ligadas e entrelaçadas apoiando ilustrando e demonstrando uma à outra É alertado de que o próprio número e complexidade das leis municipais inglesas que o exasperam seja como estudioso ou litigante prestam testemunho quanto à extensão do país sua prosperidade comercial e acima de tudo quanto à liberdade e a propriedade de seus súditos É lembrado de que toda ciência tem seus termos e regras de ofício cujo motivo pode não ser imediatamente discernível Muitas destas regras artificiais reíletem a preocupação do advogado com formas e pro cedimentos que decorrem de seu treinado entendimento de que se as leis são moldadas de determinada forma promulgadas de determinada maneira e executadas de acordo com determinados processos aumenta a probabilidade de se fezer substancial justiça A arte jurídica fornece o quadro em que é exercido o discernimento e é feita justiça Assim à moda do advogado Blackstone afirma que as leis municipais sáo algo permanente uniforme e universal e descreve os trâmites processuais do julgamento por júri como o mais transcendente privilégio que qualquer súdito pode desfrutar ou almejar No entanto sua preocupação com a integridade ou com os íúndamentos lógicos do sistema jurídico inglês é mais profimda que formas e trâmites apesar de sua relevância e da magnitude do espaço que por inevitável ocupam em uma análise do direito ingjês Os Comentários estão repletos de intrincados e aparentemente intermináveis ex plicações das antigas regras do direito muitas das quais parecem irrelevantes ou mes mo contrárias às atuais necessidades e aos princípios modernos Cansado pelo esforço de compreender os motivos por trás de um sistema onde por exemplo um meio irmão jamais poderá ser sucessor como herdeiro do espólio de seu irmão mais velho mesmo que tenham o mesmo pai é provável que o leitor conclua que a velha máxi ma do advogado comum de que o que não é razão não é lei é sustentada somente por uma determinação inabalável para afirmar nâo importa com que artificialismo e a qualquer custo em máximas latinas e ficções malalinhavadas que o que é lei na Ingla terra é racional Se há qualquer princípio consistente que lhe seja subjacente parece ser a intenção enfática de Blackstone para afastar seus alunos da paixão pelos modernos aperfeiçoamentos No entanto os modernos aperfeiçoamentos sáo os próprios fun damentos dos Comentários contudo é essencial para os empreendimentos modernos que a reforma use um manto conservador O peso e a influência do antigo deve ser preservado e usado para apoiar o novo Herdamos um andgo castelo gótico construído nos tempos da cavalaria mas equipado para um habitante moderno As muralhas circundaxlas por um fosso as torres de defesa 5 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 28 Ibid II 128 cf II 376 29 Ibid III 325327 30 Ibid 144 III 379 cf discussão de equidade por Blackstone em I 62 9192 III 429441 31 Ibid II 227233 32 Ibid I 70 33 Ibid 10 Ver III 381385 julgamento por júri IV 235239 pena capital IV 388389 corrup ção do sangue para algumas das sugestões de Blackstone para reformas e os salões com seus troféus são magníficos e veneiáveis mas inúteis Os apartamentos inferiores sra convertidos em convenientes salas sáo alegres e confortáveis embora os caminhos até eles sejam sinuosos e árduos Blackstone auxilia a reformar o antigo castelo com o que é melhorado o con forto deste por exemplo pelo relaxamento de algumas das antigas restrições legais para o comércio entretanto tem o cuidado de alertar contra a reforma que poderia afrouxar alguma pedra aparentemente inútil ou enfraquecer madeirames inconvenien tes causando danos vitais a todo o edifício náo só aos apartamentos radáveis mas também ao nobre arcabouço Desta forma Blackstone é um reformador de extrema cautela mas sua metáfora possui também um significado mais profundo A sociedade civil consiste de um con junto convencionado e em certo sentido arbitrário de normas e regulamentos cuja finalidade é a rularização e assim a proteção dos direitos naturais Contudo para vários fins práticos a eficácia desse sistema convencionado depende de vir a confundir se com a natureza Uma investigação demasiado persistente dos fundamentos do sis tema convencionado pode revelar de modo muito claro e amplo que se trata de um sistema convencionado e não de um conjunto de regras naturais que assim incentiva o sistema artificial a apelar de maneira autodestrutiva pata sua fundamentação natu ral Será de bom alvitre que a massa da humanidade obedeça às leis quando feitas sem inspecionar demais as razões de têlas feito E claro quanto mais antigas e mais estabelecidas as leis menos provável serem questionadas suas razões A tendência geral de tomar como natureza o que encontramos consagrado pelo costume antigo e enraizado pode ser uma armadilha para o estudante acadêmico de direito mas é absolutamente indispensável para a manutenção da lei O caso clássico porque o mais modificado ou artificial dos direitos individuais é o direito de propriedade e Blackstone oferece duas versões para sua origem Em sua discussão introdutória da propriedade em geral encontra essa origem na simples posse ou ocupação Em seguida demonstra como o desejo dos homens de manter sua propriedade em maior segurança impulsionaos gradativamente a partir de um esudo selvagem da liberdade errante para a sociedade civil e para a civilização com seu sistema jurídico cada vez mais complexo e artificial a íim de estabelecer os direitos de propriedade A segunda versão da origem da propriedade começa no pico da hie rarquia ao contrário de sua base e descreve um general que conquista terras repartca entre seus seguidores e com o tempo estabelece um sistema militar hierárquico As leis inglesas bem como a história inglesa são aqui apresentadas como uma combina ção desses dois eventos Assim o padrão básico das leis territoriais é a posse feudal da VLUAM B l a c k s t o n e 563 34 Ibid III 268 35 Ibid II 2 36 Ibid II 37 Ibid 68 38 Ibid 45 ff qual a máxima grandiosa e fundamental é que todas as terras foram inicialmente concedidas pelo soberano e sáo portanto de posse mediata ou imediatamente da coroa Porém esta máxima fundamental é uma ficçáo uma ficçáo com a qual nossos antepassados consentiram sob o normando Guilherme o Conquistador somente a fim de estabelecer um sistema militar de utilidade geral naquele momento uma ficçáo que mais tarde advogados normandos utilizariam como o instrumento da tirania eclesiástica ficçáo esta que agora muito modificada e adaptada a uma sociedade co mercial sinaliza a admissão de que um homem pode preservar o que é seu de modo mais eficaz ao consentir em supôlo como pertencente ao rei Na verdade o monarca hereditário é ele próprio uma espécie de ficção ou é uma entidade completamente artificial o principal sinal e exemplo da substimição da igual dade natural dos homens pela devida subordinação hierárquica que o governo exige Embora Blackstone elogie a moderna liberdade para discutir os limites das prerrogativas do rei um tema que em épocas anteriores fora considerado demasiado delicado e sa grado para ser profanado pela pena de um súdito discuteo no entanto com decência e respeito Pois embora uma mente filosófica considere a pessoa real apenas como um homem nomeado por mútuo consentimento para presidir muitos outros e lhe prestará a reverência e dever que os princípios da sociedade demandam todavia será capaz a massa da humanidade de se tornar insolente e refiratária se ensinada a reputar seu príncipe um homem sem maior perfeição que eles mesmos A lei portanto atribui ao rei determi nados atributos de grande e transcendente natureza pelo que o povo é levado a apreciá lo à luz de um ser superior e prestarlhe aquele reverente respeito que pode capacitálo com maior facilidade a exercer a atividade do governo Assim a superioridade apenas convencional do rei é amplamente percebida em parte graças a determinadas leis e textos sobre a lei como uma superioridade natu ral seu direito convencionado ao trono um direito natural seu direito contratual à lealdade de seus súditos um direito natural Como súditos prestamos reverência ao rei sem considerar que é nosso servo aceitamos nossa posição subalterna na socie dade sem levar em conta nossa igualdade original aceitamos a propriedade que as leis nos atribuem sem considerar nosso direito original de nos apoderarmos do que pudermos Em suma obedecemos sem contemplar nosso direito de nos livrarmos do soberano que comanda e da lei que ministra pois exercer esse direito seria a destruição da segurança de nossas pessoas de nossa liberdade e de nossa propriedade As mu ralhas circundadas por um fosso as torres de defesa e os salões com seus troféus diz Blackstone são magníficos e veneráveis mas inúteis É verdade que os fins nobres e cavalheirescos que um dia sustentaram e exibiram estão agora desalojados fins mais novos e melhores são expressos nos confortáveis apartamentos Contudo esses apar tamentos não podem prover para si mesmos a minificência e a venerabilidade com 5 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 39 Ibid 53 40 Ibid I 271 cf I 208209 IV 105 e a discussão de lealdade de Blackstone I 366370 41 Ibidliy72A que suas próprias paredes externas devem ser reforçadas para que o moderno edifício se mantenha de pé O labirinto gótico da hierarquia e do dever para o qual Blacksto ne fornece a chave é o meio indispensável para a regulação e assim a preservação da igualdade humana e dos direitos individuais L e it u r a s A Blackstone William Commentaries on the Lam ofEngland Introduction I i II i B Blackstone William Commentaries on the Lam ofEnglartd I ii iii vii xii xiv II iv xiii xiv III i iii viü xxiii xxvii IV i iv vi xiv xxviii xxxiii W l u a m B l a c k s t o n e 5 6 5 AdamSmith 17231790 Os principais escritos de Adam Smith estão contidos em dois livros Theory of Moral Sentiments Teoria dos sentimentos morais 1759 cAn Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das naçóes 1776 Por 13 anos sua principal ocupação profissional foi como professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow Sua fama agora repousa sobre as bases que lançou para a ciência da economia Não se encontra aí muito de filosofia política mesmo tendo em conta a inclusão da jurisprudência no curso de Moral A contribuição de Smith para a economia no entanto tem o caráter de uma descrição e defesa do sistema ora denominado capitalismo liberal e os liames entre a ordem econômica e o sistema político restritos em quaisquer circunstâncias são de excepcional amplitude e força no mundo tal como visto e moldado por Adam Smith A ligação íntima entre economia e filosofia política até mesmo ou talvez em parti cular embora tenda a um obscurecimento desta última é um potente fato da filosofia política aqueles que como Smith foram responsáveis por isso por este motivo ape nas teriam garantido um lugar nas crônicas da filosofia política Smith tem interesse por sua participação no desvio da filosofia política em di reção à economia e por sua íamosa elaboração dos princípios da livre iniciativa ou capitalismo liberal Em virtude desta última conquistou o direito de ser conhecido como um arquiteto do nosso atual sistema de sociedade Contudo para esse título tem um rival em Locke cuja obra o precede em cerca de um século Nossa tese será de que apesar de Smith seguir uma tradição em que Locke é um grande nome todavia uma mudança distinta e importante ocorreu nessa tradição mudança esta para a qual Smith colaborou de que para entender de forma adequada o capitalismo moderno é necessário compreender a transformação smithiana da tradição lockiana e de que para entender o campo onde se embatem o capitalismo e as doutrinas póscapitalis tas primordialmente a marxista é preciso entender as questões do capitalismo na forma alterada que lhes deu Adam Smith Colocando a questão em sua forma mais simples os ensinamentos de Smith expressam a doutrina capitalista de tal modo que nela se podem reconhecer muitas das questões fundamentais a partir das quais o pós capitalismo faz suas contestações Seria um equívoco dar a entender que foi de Smith a iniciativa de modificar a doutrina clássica moderna Para prevenir essa implicação é preciso calçar tudo o que será dito a seguir com uma única ressalva a respeito da dívida de Smith para com seu amigo e compatriota mais velho David Hume A filosofia moral de Smith como de fato ele próprio admite é um refinamento da teoria de Hume que dela difere em aspectos que embora muito significativos não são decisivos Um estudo minucioso da relação entre as doutrinas de Smith e Hume revelaria plenamente a conexão entre o capitalismo liberal e os princípios céticos ou científicos sobre os quais Hume de sejava fundamentar toda a íilosoíia As mais amplas conclusões que resultariam de tal estudo podem ser deduzidas de um exame das doutrinas de Smith apenas exatamente porque refietem de modo tão profundo a influência de Hume Muitas das reflexões fundamentais de Smith estão contidas em Teoria dos sentimen tos morais em que expóe seu relevante entendimento da natureza e da natureza humana Isso é feito na medida em que responde à seguinte pergunta o que é a virtude e o que a qualifica A premissa de sua resposta é que o que quer que a virtude venha a ser deve ter muito em comum com aquilo que concede aprovação aos homens ou a suas açóes ou talvez simplesmente coincidir com isso A pergunta o que é virtude nunca se distingue da questão o que merece aprovação A aprovação e a desaprovação são concedidas às ações O que impulsiona qualquer ação é o sentimento ou emoção ou afeição ou paixão que são sinônimos que é o motivo para cometer o ato A aprovação de qualquer ação deve ascender para a paixão que verdadeiramente explica a ação O sentimento ou afeto do coração do qual procede qualquer ação e do qual em última análise toda a sua virtude ou vício deve depender pode ser examinada sob dois aspectos diferentes ou em duas relações diversas primeiro em relaçáo à causa que o desperta ou o motivo que Ibe dá ensejo e em sundo lugar em relação ao fim a que se propõe ou o eleito que tende a produzir Na adequação ou inadequação na proporção ou desproporção em que o afeto parece ter influência sobre a causa ou objeto que o desperta consiste a propriedade ou improprie dade a decência ou a deselegância da ação conseqüente Na natureza benéfica ou prejudicial dos efeitos que o afeto tem como objetivo ou tende a produzir consiste o mérito ou demérito da ação as qualidades pelas quais tem direito a recompensa ou é merecedor de punição Propriedade e mérito são portanto os atributos da paixão por trás de cada ação que determina o caráter virtuoso da ação Guardam certa semelhança com o adável e útil de Hume mas Smith acreditava que sua própria doutrina era original por evitar A d a m S m it h 5 6 7 Theory of Moral Sentiments Teoria dos sentimentos morais in The Essays ofAdam Smith London Alexander Murray 1869 part VII sec II cbap iii adfin p 271 Uma comparação com um trecbo representativo de Hume tal como a parte V de An Enquiry Concernir the Prinãples of Morais Investção sobre os Princípios da Moral com por exemplo a parte I de Theory of Moral Sentiments Teoria dos sentimentos morais apontará a concordância entre as duas doutrinas Teoria dos serttimentos morais 11 iii p 18 a redução fínal de toda a aprovação à utilidade o que Smith rejeitava com o Rmdamen to humiano de que a utilidade como tal não é reconhecível pelo sentido e sentimento imediatos mas somente por uma espécie de cálculo da razão Smith acreditava que fora capaz de fundamentar a moralidade em um fenômeno das paixões apenas uma crença à qual o título de seu livro presta testemunho Se o senso e o sentimento são de fato imediatos e não mediados no sentido de que não há nada entre eles e a raiz do ser fundamental então há um valor considerável em levar a análise das virtudes a seu verdadeiro fimdamento que está nas paixões Na doutrina de Smith a pista para essa redução está no fenômeno da Simpatia o critério para a propriedade e o mérito Simpatia é uma palavra usada por Smith em seu sentido literal um paralelo etimológico de compaixão sentir com ou um sentimento companheiro É um íato para o qual talvez nenhuma outra explicação mecânica possa ser dada além de que as paixões de um ser humano são transferidas para outro pela força da imiinação que age sobre o receptor O homem que percebe ou simplesmente imagina o terror o ódio a benevolência ou a gratidão de outro deve em cena medida entrar nesta paixão e vivenciála ele mesmo pois deve imíinarse na situação do outro e daí tudo se sjie De maior relevância no que precede é a ressalva em certa medida Se o es pectador imparcial consciente do que ocasionou o terror o ódio ou outra paixão do agente sente em seu próprio peito a mesma medida dessa paixão que motivou a ação do ente então o espectador literalmente simpatiza com o ente e aprova o seu ato por ser coerente com o decoro O espectador experimenta simpaticamente a paixão do agente e se a experimenta no mesmo grau experimenta ainda o sentimento de aprovação pois é esta também uma paixão O decoro porém não é o único fundamento para a virtude moral Não apenas a adequação da paixão do sente à sua causa mas o objetivo ou tendência dessa paixão o seu efeito tem pertinência sobre a qualidade moral do ato em questão Smith referese à natureza dos efeitos que o afeto tem como objetivo ou tende a produzir Neste caso o ou é disjuntivo e precisaremos discutir mais tarde a importante diferença entre os efeitos a que visa o sentimento e aqueles que o ato que inspira na verdade tende a pro duzir Por enquanto basta notar que quando uma ação recai sobre um ser humano ferá com que sinta gratidão ou ressentimento porque será benéfica ou prejudicial iradável ou dolorosa Se um espectador imparcial informado de todas as circunstâncias simpa tizasse com a gratidão sentida pelo ser humano objeto então o espectador julgaria me ritório o ato do agente e teria sido atendida a segunda condição da virtude moral Em suma se o espectador imparcial real ou suposto deve simpatizar com a paixão tanto do agente decoro como do paciente mérito então o ato do agente pode ser declara do virtuoso com base do sentimento de aprovação do espectador Se o refinamento do mecanismo de simpatia por Smith mais nada fez do que mostrar como uma moralidade bastante estrita poderia ser extraída das paixões e da ima ginação por si sós já teria algum interesse Na verdade aponta para um círculo muito maior de conseqüências Na colocação de Smith a simpatia não pode ser desvinculada da imaginação Juntas definem uma indubitável sociabilidade natural do homem Pelo 5 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y exeidcio de duas capacidades subracionais a simpatia e a inuiiiação cada homem é por sua natureza levado ou compelido a transcender o seu próprio eu e sem realmente ser capaz de sentir os sentimentos de outro homem é capaz e é impelido a imnarse no l i desse outro e de participar nâo importa até que ponto de íbrma indireta dos sentimentos que sáo os fenômenos fundamentais da existência do outro Smith deve mos lembrar náo queria apenas saber o que é a virtude mas também o que lhe dá vali dade Por que em prindpio os homens decidem ser virtuosos quando ser virtuoso significa ser merecedor de aprovação A resposta de Smith é que é da namreza de um ser humano desejar a aprovação e o amor dos seus congêneres humanos A primeira írase de Teoria dos sentimentos morais sugere a retirada que está em andamento da doutrina da guerra de todos contra todos Náo importa quáo egoísta se possa supor um homem há evidentemente alguns princípios cm sua natureza que o íàzem interessarse pela fortuna de outros e que tornam a sua felicidade necessária a ele embora nada daí extraia exceto o prazer de a contemplar A combinação da imaginação da simpatia e da necessidade do amor e da aprovação de outros homens é o fundamento para as asserções de Smith de que a natureza formou o homem para a sociedade Assim não apenas ensina Smith uma sociabilidade natural do homem mas também o caráter natural da lei moral Pode referirse com facilidade aos princípios naturais do certo e do errado entendendo como certo não apenas o que beneficia ou evita causar danos ao agente Pode fàzêlo porque o fundamento da ação e da per cepção moral é a constituição interna da natureza humana não no sentido antiquado das mais elevadas possibilidades do homem é verdade mas no sentido da psicologia humana os instintos os sentimentos os mecanismos de simpatia que são as causas eficientes do comportamento humano Estes são perfeitamente naturais e os senti mentos de aprovação o são igualmente daí os princípios do certo e do errado serem incontestavelmente naturais A versão do direito natural de Smith depende muito fortemente da construção do espectador imparcial o ser imaginário que supõese representa toda a humani dade ao analisar e julgar as ações de cada indivíduo Julgamentos feitos deste ponto de vista implicam que nenhum homem pode de modo correto preferir a si mesmo a ponto de fazer exceções à regra geral em fevor de si mesmo Uma vez que amar o nosso próximo como amamos a nós mesmos é a grande lei do cristianismo também é o grande preceito da natureza amar a nós mesmos apenas como amamos nosso próximo ou o que vem a ser a mesma coisa como o nosso vizinho é capaz de amar nos O recurso ao julgamento imaginado da humanidade em geral ao mesmo tem po dirige a consciência para a vigilância iminada mantida sobre cada homem em to A d a m S m it h 5 6 9 3 A maioT parte da felicidade humana derivase da consciência de ser amado Ibid I II v p 40 4 Por exemplo ibid III II p 105 Cf anteriormente p 372375 a respeito da n ção da socia bilidade natural do homem por Hobbes 5 Teoria dos sentimentos morais V II p 177 6 Ibid 11 v p 24 dos os momentos por uma suposta humanidade que tudo vê O padrão construtivo da humanidade universal é fundamental para a versão de sociabilidade natural e direito natural ensinada por Smith Também é uma premonição do construto póscapitalista de toda a humanidade como o foco do direito e da história É verdade que os ensinamentos de Smith incluem a sociabilidade natural do homem e a base natural da lei moral mas esta modificação da doutrina do direito natural moderno náo signiíica um retorno à antiguidade Devese repetir que para Smith o direito natural repousa na primazia da porção subracional da alma e que a sociabilidade natural tal como a entendia náo é um princípio irredutível do homem mas o produto de um mecanismo em funcionamento Mais tarde Kant viria a falar do mesmo fenômeno como a insociável sociabilidade do homem Nesse sentido a so ciabilidade natural náo aponta para a sociedade política tal como fazia em Aristóteles Ao contrário assemelhase a um gregarismo Tratase de uma compaixão para com os companheiros de espécie seus semelhantes a qual tem tudo em comum com a suposta relutância dos cavalos em pisar em cima de um corpo vivo de qualquer espécie e da aflição de todos os animais ao passarem por cadáveres de seus semelhantes Afirmar categoricamente com base nisso que o homem é por natureza um animal social náo significa de modo algum asseverar também que é um animal político O homem é vinculado à humanidade por laços de sentido e sentimento imediatos mas está ligado a seus concidadãos em si pelos laços mais fracos superinduzidos do cálculo ou da razão derivados de avaliações de utilidade Como vimos o ponto de vista do juízo moral para Smith é o do homem ou da humanidade universal a classe homogênea de companheiros de espécie A lei moral é natural em um sentido que extrapola as fronteiras intermediárias e artificiais da sociedade política e contempla principalmente o indivíduo natural e as espécies naturais De acordo com essa lei a perfeição da natu reza humana é sentir muito pelos outros e pouco por nós mesmos restringir nosso egoísmo e dar livre curso a nossas afeições benevolentes A sociedade política no entanto não é direcionada para essa perfeição humani tária da natureza humana mas para a salvaguarda da justiça concebida de forma muito restrita A mera justiça é na maioria das ocasiões apenas uma virtude negativa e apenas nos impede de ferir nosso próximo O homem que mal se abstém de violar ou a pessoa ou a propriedade ou a reputação de seus vizinhos decerto possui muito pouco mérito positivo Justiça signiíica fàzer tudo o que o semelhante de alguém pode com propriedade forçálo a fazer ou que pode punilo por não fezer A justiça em resumo se assemelha de perto à lei da natureza tal como entendida por Hobbes e Locke Smith a 5 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 7 De Rousseau Discours sur Torigne et les fóndementes de 1inigalité parmi les hommes Discurso so bre a origem da desigualdade entre os bomens Primeira Pane Os leitores dos dois Discursos de Rousseau ficarão impressionados com a semelhança entre os temas e visões entre esta obra e Teoria dos sentimentos morais A divisão da natureza humana entre amorprõprio e compaixão e a bondade com ressalvas da sociedade civil são apenas exemplos 8 Teoria dos sentimentos morais 11 v p 24 9 Ibid II II L p 75 compreendia do mesmo modo Conclui a Teoria dos sentimentos morais com um trecho sobre a jurisprudência natural a justiça e as regras do patrimônio natural querendo dizer com todos eles um sistema daqueles princípios que devem perpassar e ser a base das leis de todas as nações Encerra com a promessa de voltar a discutir esse tema em um trabalho posterior Seu único outro livro é A riqueza das nações Náo seremos capazes de compreender de modo adequado a versão da sociabilida de natural do homem de Smith se não entendermos profundamente a diferença entre o homem concebido como um animal social e como um animal político É útil para este fím examinar mais a fundo a questão da justiça a virtude singularmente políti ca que pode até ser sinônima de obediência à lei positiva A justiça no contexto da teoria moral de Smith é uma virtude defeituosa Ao se preparar para um tratamento excepcional da justiça divide a íilosoíia moral em duas partes a ética e jurisprudência o tema desta última sendo a justiça A defesa da justiça significa a punição da injus tiça e a punição da injustiça baseiase na paixão insocial do ressentimento o desejo de retribuir o mal com o mal o comando da lei ssrada e necessária da retaliação que parece ser a grande lei que nos é ditada pela Natureza A sociedade política se baseia em um paradoxo moralista um dos muitos que encontraremos a sociabilidade repousa sobre uma animosidade latente sem a qual não existiria o Estado Em segundo Itar a justiça que é igual a dar a outro não menos ou mais do que lhe é devido não causa gratidão e portanto no sistema de Smith não é acompanhada pelo mérito ou por muito pouco Levando em consideração tanto a natureza da justiça como sua salvaguarda tratase de uma virtude defeituosa na medida em que não pode ou praticamente não pode merecer plena aprovação por mérito nem tampouco por decoro Em terceiro embora haja um sentido em que a sociedade política é natural é este um sentido fiaco A sociedade nacional é de fato o protetor e a matriz de nós mesmos nossas casas nossos parentes e nossos amigos e nem por um instante sonha Smith com um definhamento do Estado É por natureza caro a nós Porém muitas vezes o amor por nossa própria nação predispõenos a olhar com a inveja e o ciúme mais malignos a prosperidade e o engrandecimento de qualquer outra nação vizinha O amor por nosso próprio país náo parece derivarse do amor pela humanidade Este pri meiro sentimento é totalmente independente do segundo e parece às vezes piedispornos a agir de íbrma incoerente com ele A França pode conter talvez perto de três vezes o número de habitantes que a GtáBietanha contém Na grande sociedade dos homens portanto a prosperidade da Fiança deveria parecer um objeto de muito maior importância que a da GrãBretanha O súdito britânico porém que por conta disso preferir em todas as oca siões a prosperidade do primeiro à do último país nâo seria considerado um bom cidadáo da GrãBretanha Náo amamos nosso pais somente como uma parte da grande sociedade da humanidade nós o amamos por si só e independente de quaisquer considerações A d a m S m it h 571 10 Recomendase que o leitor consulte a abordem desse assunto no capítulo sobre Aristóteles 11 Teoria dos sentimentos morais II I ii p 65 II II i p 75 12 7õú7VIIIiip202204 São dignas de atenção essas reservas e ressalvas sobre a sociabilidade política Vol tarão a aparecer em uma encarnação avolumada conjurada por Marx um século mais tarde quando atinge um clímax a substituição do homem polítíco pela espécie animal Seria enganoso sugerir que a doutrina de sociabilidade do homem de Smith constituiu uma recaída na Idade Média ou na Antiguidade Seria mais enganoso ainda sugerir que na visão de Smith a natureza humana é simplesmente dominada por qual quer tipo de sociabilidade natural Examinamos o vínculo mecânico ou psicológico da simpatia com base na teoria moral de Smith a fim de mostrar a mudança de ênfase entre a preparação do capitalismo na doutrina de Locke e sua elaboração em Smith Porém o tema do direcionamento natural do homem para a preservação náo é de modo algum enfraquecido por Smith Pelo contrário a autopreservação e a propaga ção da espécie são os grandes objetivos que a natureza parece ter proposto na formação de todos os animais Não há qualquer motivo para duvidar que Smith afirmasse isso com toda intensidade Podemos supor portanto que se empregarmos altruísmo e egoísmo em seu sentido literal o homem pode ser descrito de acordo com Smith como sendo por natureza altruísta e egoísta um membro da espécie impulsionado pelo amor de si mesmo e por sentimentos de fraternidade para com outros É uma das características marcantes do sistema de Smith que a sociabilidade muito embora descrita de modo específico e a concentração autocentrada na preser vação sejam mostradas como profundamente combinadas em uma articulação namral de grande força e isto é realizado simultaneamente com uma reabilitação da moral por meio de fundamentos naturais A natureza de fato com tanta satisfação parece ter ajustado nossos sentimentos de aprovação e desaprovação à conveniência tanto do in divíduo quanto da sociedade que após o mais rigoroso exame será estabelecido acre dito que tal ocorre universalmente Quando se tem em mente que os ensinamentos de Smith visam à articulação entre moral e preservação e que os frutos práticos de sua doutrina se destinam a serem colhidos pela emancipação dos homens sob um governo brando para buscar sua felicidade livremente de acordo com seus desejos individuais esta realização como um todo exige grande respeito A reconciliação entre o bem pri vado e o bem comum por meio náo da coerção mas da liberdade com fundamento no dever moral talvez nunca tivesse sido visto antes Neste edifício amplo e simétrico Smith percebeu algo que lhe pareceu ser uma ir rqlaridade ou uma classe de irrqlaridades Observou que em determinados pontos desenvolvese uma disjunção entre o que o homem por natureza seria levado a aprovar como virmoso e aquilo que é conduzido pela natureza a aprovar como propício para a preservação da sociedade e da espécie humana e isto não obstante a verdade abrangente contida no trecho citado anteriormente Recordemonos de que os componentes de um ato virmoso são o decoro e o mérito e que ambos se fundamentam em uma base de simpatia Se os homens não desejassem a simpatia de outros ou tampouco reagissem ao 572 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ibidyp7 14 Ibid IV ii p 166 impulso de simpatizar com outros náo haveria moral nem sociedade Porém a tendência natural dos homens é de simpatizar em particular com alegria e a boa sorte e escusado será dizer que os homens não só desejam que se simpatize com eles mas que essa simpatia tenha como motivo sua prosperidade não sua adversidade No entanto o desejo de sim patia em maior escala tornase como conseqüência a base da ambição que é a aspiração de ser extravagante grandioso e admirado A multidão da humanidade entregase a esta aspiração pois como é natural simpatiza com a eminência isto é riqueza e posição Contudo riqueza e posição como disse Smith em algumas ocasiões não necessariamen te se conjugam com a sabedoria e a virtude Como observa Esta disposição para admirar e quase venerar os ricos e os poderosos e desprezar ou pelo menos menosprezar as pes soas de condições pobres e inferiores embora necessária tanto para estabelecer como para manter a distinção de classes e a ordem da sociedade é ao mesmo tempo a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais Recordemonos de que o mérito é a qualidade de um ato que um espectador imparcial proclamasse digno de gratidão A qualidade decisiva de tal ato é o decoro da paixão do ente ao cometêlo sua intenção benevolente para com o recipiente e o prazer do recipiente com o benefício concedido em conseqüência do que deseja retribuir o benefício para o agente Tal conjunção seria talvez complicada mas em todo o processo uma condição se destaca com nitidez o recipiente deve receber um benefício Ora Smith observa que há certa lacuna entre a intenção e a consumação Essa lacuna é o Acaso Devido a um mero acaso a boa vontade malogra e nada ou pior que nada produz o agente benevolente para o beneficiário pretendido Em outras ocasiões o agente nada pretendendo ou possivelmente menos do que nada calha ser a fonte de um benefício para o recipiente Em oposição à sólida moral o ato de primeiro agente fica sem a aprovação da simpatia e sem o selo da virtude enquanto o ato do segundo agente ganha aplauso e gratidão A tendência universal dos homens em considerar a questão e náo a intenção é considerado por Smith como uma irre gularidade salutar e útil em sentimentos humanos por dois motivos Em primeiro lugar punir pelas afeições do coração somente onde nenhum crime foi cometido é a mais insolente e bárbara tirania Tentar viver uma vida comum enquanto se julgam os homens culpáveis ou louváveis por suas secretas intenções significaria que cada tribunal de magistratura viria a ser uma verdadeira inquisição Em segundo o homem foi feito para a ação e para promover pelo exercício de suas faculdades tais mudanças nas circunstâncias externas tanto de si mesmo e de outros que podem pa recer mais favoráveis à felicidade de todos Não deve satisfazerse com a benevolência indolente nem se imaginar um amigo da humanidade porque em seu coração quer o bem para a prosperidade do mundo Smith prossegue falando da utilidade para o mundo da propensão cognata que têm os homens para serem perturbados em espírito mesmo quando o mal que fizeram foi totalmente sem intenção um assunto que Smith A d a m S m it h 5 7 3 15 I III iii p 5657 16 Ibid II II iii p 9698 elucida com algumas observações sobre o sentido falacioso de culpa ilustrado pelo tormento de Édipo Em suma a natureza sabiamente providenciou para que nossos sentimentos nos direcionassem para a preservação de nossa espécie onde um conflito entre a preservação e a virtude moral ou a razão sólida é provocado pela divergência entre intenção e conseqüência Ainda no mesmo estilo Smith observa que quando um homem conquista o medo e a dor pelo nobre esforço do autocomando tem direito a ser compensado com uma percepção de sua própria virtude em troca pelo alívio e segurança que poderia obter ao ceder às suas paixões Entretanto é a sábia previsão da natureza que seja apenas imperfeitamente compensado para que não tenha motivo algum para atender ao apelo do medo e da dor e para atender a sua persuasão O medo e a dor são instru mentos de preservação pereceriam um homem ou uma espécie indiferentes a eles O autocomando que os domina não traz consigo porque não convém um sentimento de autoestima suficiente para superar a angústia de suprimir essas violentas paixões Evidentemente a virtude moral não é e nem deve ser apenas a sua própria recompen sa nem portanto pode ser incondicionalmente válida ou válida por si mesma Deve conceder de acordo com os ditames da natureza certa precedência à preservação Em uma passagem importante Smith desvela ainda mais o caráter paradoxal da moral natural tal como a concebe É levado a contrastar o curso natural das coisas com os sentimentos naturais da humanidade É devido ao curso natural das coisas que diligentes trapaceiros prosperam enquanto indolentes homens honrados morrem de fome que grandes conjuntos de homens sobrepujam os pequenos e finalmente que a violência e o artifício prevalecem sobre a sinceridade e justiça Os sentimentos naturais do homem no entanto estão em rebelião contra o curso natural das coisas dor tristeza raiva compaixão pelos oprimidos e afinal a desesperança de ver uma condigna retaliação ao vício e à injustiça neste mundo estes são os sentimentos natu rais do homem O curso natural dos acontecimentos não obstante seu grau de ultraje tem um aspecto ponderoso a recomendálo Na atribuição a cada virtude sem favor ou acomodação a recompensa que lhe é própria a natureza adotou a regra útil e ade quada para despertar a indústria e a atenção da humanidade Acontece serem indis pensáveis para a sobrevivência humana a labuta e o trabalho árduo e a única forma de obtêlos é por remuneração e punição adequadas O curso natural dos acontecimentos apoia a preservação da raça em detrimento da moralidade precisa os sentimentos na turais da humanidade são despertados pelo amor da virtude e pela repulsa ao vício e à injustiça A natureza é dividida mas não é dividida igualmente contra si mesma A causa da virtude absoluta pode ser ouvida somente após uma mudança de foro para uma jurisdição em um mundo além da namreza Smith persevera em seu tema do preço em bondade e razão que deve ser pago para realizar as atividades fundamentais do mundo Aborda a questão de grande im 574 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 17 Ibid III ill p 129 18 Ibid III v p 147149 portância para sua doutrina relativa ao fato de ser a utilidade das açóes a base para sua aprovação Se a resposta fosse uma simples afirmativa consequentemente o prin cípio da virtude aprovação seria racional o cálculo da utilidade Contudo sabemos que na opinião de Smith o princípio da virtude e da aprovação não é a razão mas o sentimento e a emoção mediante a simpatia Todavia é evidente que a humanidade apresenta uma tendência constante para as quantidades de trabalho e de governo que são os esteios para a preservação da raça Smith explica isso por meio de uma ilusão imposta aos homens pela natureza uma ilusão que executa a tareia da razão melhor do que a razão poderia fezêlo Quando olhamos para o poder ou riqueza sob a posse de um homem nossas mentes são conduzidas na imínação a conceber a adequação desses objetos para o exercício de suas respectivas funções Ao mesmo tempo sim patizamos com a satisfeção que imaginamos terem os possuidores desses prêmios É apenas um passo daí para desejarmos nós mesmos sermos felizes em grandeza e daí para realizarmos o imenso esforço que resulta em riqueza e governo Quando examina mos a questão fica aparente que somos levados a buscar prosperidade e poder por um motivo psicológico e portanto a gerar riqueza e ordem entre os homens como sub produtos de pulsões subjetiA como se diria Além disso e conjuntamente agimos sob a influência do apetite pelos meios para a satisfeção nem ao menos pela satisfeção em si quando buscamos a riqueza e o poder Ambos são desejáveis para a felicidade que supostamente proporcionam a seus possuidores De feto pouco ou muito pou co é auxiliada a felicidade pela posse de poder e riquezas essas enormes e laboriosas máquinas tramadas para produzir algumas conveniências insignificantes para o cor po consistindo de molas as mais iradáveis e delicadas que devem ser mantidas em ordem com a mais ansiosa atenção e que apesar de todos os nossos cuidados estão a todo o momento prontas a explodir fezendose em pedaços e a esmagar sob suas ruínas seu infeliz possuidor É curioso o motivo de Smith para depreciar as distinções de riqueza e de situa ção Em que consiste a verdadeira felicidade da AÚda humana os pobres e obscuros não são em aspecto algum inferiores àqueles que pareceriam estar muito acima deles Na comodidade do corpo e na paz da mente todas as diversas situações de vida estão quase no mesmo nível e o mendigo que banhase ao sol ao lado da rodoAua possui a segurança pela qual batalham os reis É neste contexto que Smith anuncia em Teoria do sentimento moral a noção e a expressão da mão invisível de grande fiuna por ter sido aprimorada ao longo do aigumento central de A riqueza das naçóes A passagem merece citação extensa é certo que a natureza se imponha a nós desta forma É esse engano que desperta e mantém em movimento contínuo a indústria da humanidade É isso que primeiro a le vou a cultiirar a teria a construir casas a fundar cidades e nações e a inventar e aprimorar todas as ciências e anes que enobrecem e embelezam a vida humana que totalmente A o a m S m it h 575 19 Ibid IV i p 161 e em todo o livro 20 Ibid p 163 modificaram a fiice inteira do globo transformaram as rudes florestas da natureza em plamcies agradáveis e férteis e fizeram do oceano inexplorado e estéril um novo fimdo de subsistência e a grande estrada de comunicação para as diferentes nações da Terra A terra por estes labores da humanidade foi obrigada a redobrar sua fertilidade natural e a sustentar maior multidão de habitantes É sem propõsito que o proprietário orgulhoso e insensível contempla seus extensos camjjos e sem um pensamento para as necessidades de seus irmãos na imaginação consome ele mesmo a colheita inteira que cresce sobre os campos O provérbio caseiro e vulgar de que o olho é maior que a barriga nunca foi mais plenamente confirmado que com respeito a ele A capacidade de seu estômago náo é de modo algum proporcional à imensidade de seus desejos e suportará náo mais do que o mais humilde camponês O resto é obrigado a distribuir entre aqueles que preparam da maneira mais agradável aquele pouco que ele mesmo utiliza entre aqueles que equipam o palácio em que esse pouco será consumido entre aqueles que preparam e mantêm em ordem todas as diversas bugigangas e quinquilharias que sáo empregadas na economia da grandeza todos esses portanto extraem de seu luxo e extravância aquela porçáo das necessidades da vida que teriam em váo esperado de sua humanidade ou sua justiça O produto do solo mantém em todos os momentos quase o número total de habitantes que é capaz de manter Os ricos sõ selecionam da pilha o que é mais precioso e agradável Consomem um pouco mais que os pobres e apesar de seu egoísmo e capacidade natu rais embora seu inmito seja apenas a sua prõpria comodidade embora o único íim a que se propõem do trabalho de todos os milhares que empregam seja a satisfação de seus prõprios váos e insaciáveis desejos dividem com os pobres o produto de todas as suas me lhorias São conduzidos por uma máo invisível a íàzer quase a mesma distribuição das necessidades da vida que seria feita se a terra fosse dividida em partes iguais entre todos os seus habitantes e assim sem querer sem saber promovem os interesses da sociedade e proporcionam recursos para a multiplicação da espécie Além daqui náo há vantagem em multiplicar as evidências da crença de Smith de que o fim dominante da natureza com respeito ao homem ou seja a prosperidade da espécie como um todo seja alcançado por meio de uma atenuaçáo da moralidade e da razáo Uma vez que este é um ponto que o pensamento póscapitalista viria a abordar de modo polêmico e contra o qual aplicaria sua suprema e mais ambiciosa dialética merece ser examinado com atenção A afirmação de que o fim que a natureza pretende para o homem é promovido pela orientação de seus sentimentos ao invés de sua razão decorre da premissa de que o domínio das paixões é maior que o da mente e todo animal persistentemente almeja que seu próprio ser seja ininterrupto A natureza do homem refletese de modo mais claro naquilo que sente do que naquilo que pensa além disso a diferença entre os dois não é tão profunda quanto se concebia antigamente mas ao contrário é tal que pode ser composta por estarem ambos contidos em percepções Smith não em p r a lin guagem de impressões e ideias usada por Hume no empreendimento por meio do qual o funcionamento da mente recebeu uma aparência unificada na medida em que foram obscurecidas as distinções entre emoção sensação e razão Se Smith assim o fizesse teria mais explicitamente concordado de maneira mais explícita com a definição de Hume do 5 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 1 Ibid p 1 6 2 1 6 3 eu como essa sucessão de ideias e impressões relacionadas das quais temos uma lem brança íntima e de ideias como as débeis imns de impressões no pensamento e na razão A redução do eu do ego ou do homem real à sua realidade ou aos traços da quilo que realmente percebeu ao invés de sua alma e seus poderes ou faculdades é parte da doutrina que rejeitou as ideias inatas e com isso rejeitou tudo exceto as essências nominais Essa doutrina com seus ecos de Hobbes e Locke é entrelaçada com a visão de que as linhas de força ao longo das quais a natureza produz e comimica seus movimentos adentram o homem e o governam mais por meio de suas paixões que de sua razão Em todo caso a colocação de Smith é de que a natureza não encarregou a fraca razão do homem de descobrir que deve preservar a si mesmo ou como fezêlo mas dotouo de forte apetite para os meios para sua sobrevivência bem como para a pró pria sobrevivência assim assegurando sua preservação No entanto é essa própria pri mazia do sentimento sobre a razão ou pelo menos a igual inclusão de ambos em algo semelhante à percepção que é a base para as concessões que devem ser feitas contra a moralidade em nome da preservação Recordemos que a doutrina moral de Smith começa com a aprovação o virtuoso é assim porque de íàto ou em princípio é aprovado pelo sentimento da humanida de Agora entendemos que existe uma dificuldade porque a natureza ensina o homem a aprovar tanto o que conduz à moral como o que conduz à preservação Por vezes são ambíguas as instruções da natureza Como é evidente a tentativa de derivar o Dever do Ser é perturbada pelo feto de que embora o que é virtuoso seja realmente aprova do não decorre daí nem que tudo o que é aprovado é virtuoso nem que tudo o que é virtuoso é aprovado É destas circunstâncias que se originam as irregularidades ou concessões anteriormente mencionadas O que então se tem a ganhar com a deriva ção psicológica ou comportamental de uma moral natural É que por este método a virtude moral pode ser deduzida do caráter do homem como homem ou seja abstraindo seu caráter como ser político e atentando somente para seu caráter como natural A íilosoíia moral de Smith tem como objetivo compreender a base da virtu de na medida em que se pode dizer que essa base existe em um estado totalmente real em qualquer tempo na grande massa da humanidade em si Ou seja o ponto de partida de Smith é a igualdade natural dos homens no sentido elaborado por Hobbes O contraste com a Antiguidade clássica lança luz sobre a posição moderna O femoso esquema da República de Platão fez da divisão do trabalho ou da distribuição de fun ções na sociedade política um princípio elevado porque a virtude em uma classe social não poderia ser medida pelo mesmo metro contra o qual deve ser medida uma outra classe A Política de Aristóteles distingue entre a virtude de escravos homens livres e A d a m S m it h 577 22 Hume Tratado da natureza humana 11 i e II I ii 23 Caracteristicamente Hume nâo se compromete com sua observação a razáo nunca pode se opor à paixão no comando da vontade Ibid IIIII Smitb fez dois comentários sob a fôrma de alusões que negam a racionalidade única do bomem a humanidade bem como todas as outras criaturas racionais Iheory o f Moral Sentiments III v p 146 e essa grande sociedade de todos os seres sensíveis e inteligentes ibid VI II iii p 209 24 Teoria dos sentimentos morais III v p 142 homens de excelência a Ética a Nicômaco náo pode ser considerada como um manual da excelência para a grande massa da humanidade Os moralistas da Antiguidade con centravamse com frieza na distinção entre as pessoas de peso político e todo o povo que vivia dentro das fronteiras Só a democracia tem o mérito de tomar possível o apa gamento dessa distinção e portanto temos o direito de considerar a humanização da virtude moral sua universalização ou referência ao que está realmente presente em todos os homens como homens como a democratização da moral A democracia é o regime que minimiza a distinção entre governantes e governa dos o fenômeno político frmdamental e nesse sentido podese dizer que a democra cia ou a democracia liberal tende a substimir a vida política pela sociabilidade vidas privadas vividas em contiguidade ao mesmo tempo que proporciona uma difusão mais ampla para a autoridade política De certa forma é impossível a abstração da moral das exigências da vida política propriamente dita a vida política tem de ser vivi da e é preciso fornecerlhe sustento sob a forma da organização econômica do uso da força para reprimir o crime e a revolta a legitimação das desigualdades convencionais em prol da ordem e assim por diante Onde a moral é radicalmente humana ou na tural no sentido dessas palavras que se opõe a político as disposições indispensáveis a serem tomadas para a vida política terão o caráter de uma intrusão sobre a moral ou de uma irregularidade Não é nosso intuito afirmar que a base moral da doutrina social de Smith é tramada para produzir uma abstração das condições de existência política Pelo contrário asseveramos que a fim de atenuar ou prevenir essa abstração a qual suas premissas ameaçam por em prática Smith deve recorrer a irregularidades da natureza ou a exceções às suas premissas Dificilmente haveria melhor maneira de ilustrar a fugidia relação entre retidão e política do que pela suinte citação do Marlborough de Churchill O segundo debate na Câmara dos Lordes obteve de M arlboioi seu desempenho Parlamentar mais memorável É ainda mais notável porque embora tivesse ele decidido o que deveria ser feito e o que pretendia fàzer sua condução do debate foi ao mesmo tempo espontânea dissimulada e inteitamente bemsucedida Como no campo de ba talha mudou muito rapidamente seu curso e disseminou uma rede de manobras diante de seus oponentes Pôs a sinceridade a serviço da íàlsidade e aparentando telutar em deixar escapar toda a verdade induziu seus atacantes a completo e embaraçoso erro Sob o impulso de uma emoção que não poderia ser de todo presumida fez uma revelação acerca da política de guerra que efetivamente enganou não só a Oposição mas toda a Casa e que também desempenhou o seu papel em enganar o inimigo estrangeiro que como é natural logo foi posto a par do debate público Agiu assim no interesse da estra tégia correta e da causa comum tal como as concebia Estava acostumado pelas condi ções em que batalhou a sempre enganar os amigos para seu bem e os inimigos para seu mal porém a velocidade e a fecibdade com que esta manobra em particular foi concebida e realizada no pouco femiliar ambiente do debate Parlamentar revelanos algumas das secretas profundezas de sua mente astuta todavia benevolente 5 7 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 25 Winston S Churchill Marlborou His Life and Times 4 v in 2 bks London Harrap 1947 V III bk II p 303 Reproduzido com permissão de Charles Scribners Sons e George Harrap Co Ltda É evidente que nâo se pode fezer da dissimulação o princípio da moral é evidente também que a moral que não fez uma distinção útil entre a dissimulação em uma causa nobre e a mendacidade comum terminará ou no preciosismo que condena tudo como vício ou no latitudinarismo que peiscruta em váo a linha entre vício e virmde Quanto a este aspecto a filosofia moral da Antiguidade poderia ser descrita como muito po lítica Reconhecia na pmdência uma virmde sutil que animava as demais a partir de sua sede na mente Dando um tratamento paliativo ao modelo de Odisseu dos antigos moralistas devese dizer que o afestamento da mais estrita moral era por eles tolerado visando afinal algo mais elevado pois náo entendiam a excelência moral como a maior de todas as excelências Quando Smith diminui a moral tal não ocorre em prol de algo mais elevado pois não existe nada mais elevado A mais sublime especulação do filóso fo contemplativo mal é capaz de compensar a negligência do mais insignificante dever ativo O homem que e apenas com base no respeito pelo que é certo e digno de ser feito com base no respeito por aquele que é o objeto digno de estima e aprovação ainda que estes sentimentos jamais sejam concedidos a ele age pelo motivo mais subli me e divino que a natureza humana é sequer capaz de conceber A fim de colocar a questão de modo um tanto simplista tanto os antigos quanto os modernos abdicaram de alguma coisa para atenuar a virtude moral estrita os antigos sem qualquer compun ção porque tinham em vista uma excelência ainda maior Smith de forma titubeante porque seu objetivo não poderia exceder em valor a virtude moral O objetivo de Smith uma vida livre razoável confortável e tolerante para toda a espécie encontrava sua esperança sua base e sua expressão na ciência da economia tal como ele em grande medida a inaugurou Algo que se assemelhasse a um relato detalhado de economia de Smith estaria fora de lugar aqui de tal forma que nos li mitaremos a alguns temas escolhidos Seus ensinamentos em A riqueza das nações sáo íamosos sobretudo por sua defesa da livre iniciativa em termos amplos e simples não se pode separar o bemestar da nação de sua riqueza a qual Smith concebe da maneira moderna como o produto nacional anual Contudo o produto anual da na ção é a soma dos produtos anuais de seus habitantes individualmente Cada habitante tem eterno interesse em maximizar seu próprio produto e ferá todo o possível para conseguir isso se lhe for dada liberdade Assim todos devem ser dotados dessa liber dade com o que ao mesmo tempo maximizarão o produto agregado e se controlarão mutuamente pela força da competição O renomado ataque de Smith ao capitalismo mercantilista o terrível sistema de preferência pelo interesse comercial é parte do seu argumento de que o interesse comum não é atendido pelo fomento legislativo diferenciado para as empresas mas por se permitir que a natureza automaticamente converta o autointeresse individual no bem de todos Assim sendo como cada indivíduo se esforça na medida do possível para empregar seu capital no apoio à indústria nacional e assim direcionar tal indústria de maneira que A d a m S m it h 5 7 9 26 Theory of Moral Sentiments VI II iii p 210 VII II iv p 275 seu produto tenha o maior valor possível cada indivíduo necessariamente busca aumen tar tanto quanto possível a renda anual da sociedade Em geral na verdade náo pretende favorecer o interesse público nem sabe até que ponto o está favorecendo Quando prefe re apoiar as atividades nacionais e náo as estrangeiras visa apenas sua própria segurança e ao direcionar essa atividade de tal forma que sua produção possa atingir o maior valor tem em vista somente seus próprios ganhos e nesta como em muitas outras situações é conduzido por mão invisível a fomentar um objetivo que não fezia parte de suas inten ções Tampouco é sempre pior para a sociedade que náo fizesse parte dessas intenções Ao perseguir seus próprios interesses o indivíduo com frequência fevorece os da sociedade com muito mais eficácia do que quando pretende de feto fevorecêlos Nunca chegou a meu conhecimento que muito bem fosse feito por aqueles que simulam exercer o co mércio para o bem público Com efeito náo é uma simulação muito comum entre os comerciantes e poucas palavras bastam para dissuadilos Náo temos qualquer dificuldade em reconhecer a reconciliação natural entre os interesses individuais e comuns para a qual a Teoria dos sentimentos morais nos pre parou Também não estamos preparados para as irregularidades morais que Smith entendia serem incidentais a esta reconciliação São abordadas em dois ou três prin cipais seções no argumento exposto em A riqueza das nações Em primeiro lugar a prosperidade de todos e cada um nâo pode ser desconectada de sua produtividade e sua produtividade depende da divisão do trabalho Porém como é inevitável a divisão do trabalho embrutece as classes trabalhadoras e grande parte se nâo a maior parte da humanidade A destreza do trabalhador em seu oficio particular parece ser ad quirida às custas de suas virtudes intelectuais sociais e marciais Porém em todas as sociedades aperfeiçoadas e civilizadas é este o estado em que os trabalhadores pobres isto é a grande massa do povo deve necessariamente cair a não ser que o governo muito se esforce para impedilo Em suas discussões Smith tenta não exagerar a probabilidade de que o governo venha a ter sucesso Em segundo uma parte grande se não uma parte preponderante da vida econô mica da nação deve ser regulada pela classe de comerciantes e fabricantes Por vezes Smith surpreende por seu rigor nas suas admoestaçóes a essas classes como um con junto de homens O peso de sua objeção contra elas é que sua preocupação com o ganho colocaos em um conflito intolerante com as outras ordens da sociedade e com a nação como um todo exceto por descuido É necessária a sabedoria do governo para impedir que ajam mal ou seja sua interferência em proveito próprio e para dar livre curso somente às suas atividades úteis ou seja a sua produtividade Smith nâo era tão dogmático quanto alguns defensores do laissez faire viriam a se tornar mais tarde Em terceiro Smith considera o acréscimo anual ao produto como sendo gerado pelo trabalho O valor de troca ou preço de cada mercadoria uma vez que a terra se 5 8 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 27 An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations New York Modern Library 1937 rV II p 423 Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações 28 IbidN m 2p7ò5 29 Ibid eg I conc p 249250 IV III ii p 460 tornou propriedade privada e o capital foi acumulado resolvese em salários alu guel e lucro Desta forma os latifundiários e os empregadores que utilizam o trabalho partilham do produto do trabalho Smith fãz grande esforço para argumentar que os lucros do capital náo sáo um salário pelo suposto trabalho de inspeção e direção os quais afirmou serem muitas vezes confiados a um funcionário importante Estava longe de tentar esconder a contribuição para a produção que resulta da acumulação de capital Pelo contrário enfatizoua porém descreveua como algo que ocorre pelos aprimoramentos nas forças produtivas do trabalho No curso de suas investigações acerca do que hoje denominamos cálculo do rendimento nacional Smith decerto deu motivos às gerações posteriores para considerálo como detentor de uma teoria do valor do trabalho com as decorrentes crenças sobre a distribuição Quanto ao aluguel tratase de um preço de monopólio pelo uso da terra por cuja cobrança o proprie tário fica habilitado a participar do produto anual do trabalho Não podemos deixar de notar que Smith mal se deu o trabalho de justificar esta partilha e este resolver Pelo contrário por certa animosidade de expressão Tao logo a terra de qualquer país se torna propriedade privada seus proprietários como todos os outros homens gos tam de colher onde nunca semearam e exigem uma renda até mesmo por sua produ ção natural indica uma reserva quanto a sua perfeita conveniência Smith parece acreditar é verdade que quando são relatados os fiitos da distribuição a insinuação de possíveis desigualdades pode ser totalmente compensada pela explicitação dos amplos benefícios compensatórios pondera se não pode ser verdade que a vivenda de um príncipe europeu nem sempre suplanta tanto a de um camponês trabalhador e frugal como a vivenda do último suplanta as de muitos reis africanos os senhores absolutos das vidas e liberdades de dez mil selvagens nus Contudo é evidente Smith não imaginar dirigirse à multidão de trabalhadores pobres em detalhada defesa do capi talismo do modo como Marx dirigiuse a eles em detalhada denúncia Smith sugeriu abertamente essa noção de que algo como uma de suas irregularidades morais jazia em torno da raiz da ordem distributiva mas foi em muito sobrepujada pelas vantagens correlativas para todos e detestava os homens do sistema que seriam incapazes de compreender esse cálculo tão simples Smith não se referiu ao complexo da livre iniciativa como capitalismo mas como um sistema de liberdade natural ou a condição em que seria permitido que as coisas seguissem seu curso natural em que haveria perfeita liberdade A natureza significava para Smith o humanamente desimpedido ou desobstruído e de modo mais amplo isso significa o que não se confunde com as intervenções inapropriadas da Adam Smith 5 8 1 30 Ibid I VI p 4849 31 Ibid II intro p 260 Também II II p 271 etc 32 Ibid I XI p 145 33 Ibid I VI p 49 34 Ibid 11 p 12 Também Introduction and Plan of tbe Work p 1 viii 35 rV IX p 651 I X p 99 razão humana deixar a natureza seguir seu curso deixar os homens íàzerem o que são instintivamente impulsionados a fazer na medida em que isso for compatível com a segurança de toda a sociedade É fecil conceber e admitir que o natural contrapóe se ao artificial humano ou obrigado a obedecer a um desígnio preconcebido Assim a liberdade está toda do lado da natureza em oposição à coerção do lado da razão humana Ao mesmo tempo no entanto nada no mundo é tão inflexível e por conse guinte tão restritivo quanto o necessário ditame da natureza surda e muda enquanto a fonte da liberdade do homem reside em seu poder da razão a origem de seus diver sos artefatos A maneira como Smith enfrenta essa dificuldade é na verdade apoiar abertamente a liberdade da razão utilizada no serviço da liberdade mais vinculativa da natureza o cálculo sob o comando da paixão A doutrina de Smith é permeada pelas conseqüências do feto de que o elemento mais elevado na hierarquia a natureza con cebida como o livre motivo da paixão é o símbolo da falta de liberdade do homem como Kant viria a enfetizar de modo tão complexo É uma caraaerística distintiva da doutrina de Smith e do capitalismo liberal como um todo não conceber a liberdade como tendo importância primordial por que é a condição para a existência de cada homem como um ser moral individual a base para sua vontade autolegislada em ação ou para sua humanidade Para Smith a liberdade continuou a significar o que significara para Locke para Aristóteles e para a longa tradição da filosofia política a condição de homens sob governadores legítimos que respeitam as pessoas e os bens dos governados tendo estes últimos de consentir de alguma forma com este esquema Esta concepção de liberdade é essencialmente política e pertence ao libertarianismo de Locke não de Rousseau O projeto capitalista náo é insuflado por uma busca por métodos para a libertação institucional das pulsóes interiores de cada homem no interesse da vontade moral É insuflado por uma busca por métodos para a libertação do instinto natural de autopreservação de todo homem em prol da liberdade externa politicamente inteligível e da vida próspera e pacífica para a humanidade como um todo Portanto Smith não teve dificuldade em conceber o homem como livre enquanto ao mesmo tempo escravizado à natureza e sujeito a formas de lei que garantem sua liberdade externa mas dificilmente podem ter como objetivo ser a base de sua emancipação interna dessa mesma natureza Assim Smith está livre para depositar sua confiança em uma sabedoria da natu reza que se mostra até mesmo ou em especial na loucura e na injustiça dos homens a higiene moral que produz uma multidão na verdade uma raça de autolegisladores não eia indispensável para o seu plano nem era a vida política uma espécie de psi coterapia para produzir a emancipação subpolítica do homem Smith resignavase portanto a receber os benefícios da sociedade civil muito embora devessem estes ser 582 H istó ru da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 36 IbU IIII p 308 37 Smith em geral justapõe naturalmente e necessariamente sendo este ultimo empregado aparen temente como uma forma intensificada do primeiro Cf eg ibid p 8 86 357 414 421 422 591674723 e nota de rodapé 754756 mediados por certos males inquestionáveis e estava preparado para fazêlo indefinida mente se os beneficios fossem vastos e os males inevitáveis A este respeito antecipou os mecanismos da filosofia da história tal como viriam a emergir mas não suas metas o bem por meio do mal e a razão por meio da loucura mas sem Campos Elísios na outra ponta do arcoíris É importante que percebamos de modo mais exato o que a doutrina de Smith tem em comum com a filosofia da história que viria a se desenvolver mais tarde De início existe sua crença em um progresso natural das coisas em direção ao aperfei çoamento estimulado pelo esforço uniforme constante e ininterrupto de cada homem para melhorar sua condição melhorar sua condição sendo entendido no sentido mais vulgar Smith apresenta como exemplo um relato do progresso da Europa desde a desordem medieval até a relativa regularidade dos tempos modernos A antiga anarquia persistiu porque os grandes proprietários rurais tinham tropas de empregados que na verdade constituíam exércitos particulares Nada poderia produ zir ordem se não se dissolvessem esses exércitos A base para a sua existência era o fato de que os nobres e aristocratas tinham abundantes rendimentos em bens e mercadorias dos quais nas primitivas condições de comércio vigentes na época não poderiam dis por por troca ou venda Em conseqüência eram obrigados a utilizálos para alimentar uma multidão de homens que se tornavam seus dependentes e inevitavelmente seus soldados O que causou a derrocada de todo o sistema foi a ampliação do comércio o que permitiu aos magnatas converterem sua produção em dinheiro e a partir daí em luxos para seu deleite pessoal em vez dc na base militar de seu poder político A revolução de maior importância para a Íèlicidade do público bi desta lòrma provocada por duas ordens dilèrentes de pessoas que nâo tinbam a menor intenção de servir ao pú blico Satisfezer a mais inlàntil vaidade era o único motivo dos grandes proprietários Os mercadores e artífices muito menos ridículos sram meramente com vistas a seu próprio interesse e em fimção de seu próprio princípio do mascate de ganbar um pêni sempre que possível obter um phú Nenbum deles tinba conhecimento ou previa a grande revolução que a insensatez de um e a indústria do outro estavam gradualmente ocasionando Smith íála da ascendência da Igreja Romana do século X até o século XIII En tende que foi sinalizada pelo poder temporal do clero e este por sua vez sustentado pela influência do clero entre as multidões de homens As camadas inferiores do povo vinculavamse ao clero por laços de interesse as multidões dependiam de uma carida de que era irrestritamente concedida porque mais uma vez o clero não tinha outros meios de descartar a enorme produção de suas terras Quando surgiram tais meios a constituição da Igreja Católica sofreu uma profunda alteração Não tivesse essa constituição sido atacada por inimigo algum além dos débeis esforços da razão humana teria durado para sempre Porém esta imensa e bem construída tessitura 38 Ibid IIIL p 325326 39 Ibid II IV p 391392 Adam Smith 5 8 3 que toda a sabedoria e virtude do bomem jamais poderiam ter abalado muito menos derrubado foi pelo curso natural das coisas primeiro enfraquecida e depois em parte destruída Os graduais aperfeiçoamentos das artes das manufeturas e do comércio as mesmas cau sas que destruíram o poder dos grandes barões destruíram da mesma maneira na maior parte da Europa todo o poder temporal do clero Por meio desses mesmos instrumentos toda a humanidade é unida provavel mente em um movimento que a impulsiona para o alto bem como para a frente Smi th considera as descobertas geográficas como de importância ímpar para a espécie A descoberta da América e de uma passagem para as índias Orientais pelo Cabo da Boa Esperança sáo os dois maiores e mais importantes eventos registrados na história da humanidade Assim a comunicação e o comércio da espécie como um todo foram em princípio alcançados pela primeira vez na memória do homem e com esse notável evento surgiu a ocasião suprema para permitir que toda a humanidade reciprocamen te mitigasse as necessidades uns dos outros aumentasse os prazeres uns dos outros e encorajasse a indústria uns dos outros Smith acreditava que em giande medida a namreza íàla para a história na lin guagem da economia e que o amplo curso da história assim traçado vai provavel mente em direção a uma vida mais fácil mais culta mais racional e segura para a humanidade em geral Ao mesmo tempo Smith imaginou que o avanço da civilização era sincronizado com a geração de uma enorme multidão industrial privada de quase todas as admiráveis qualidades humanas A civilização não é um bem sem ressalvas ou em termos mais precisos é obtida a certo preço Este femoso tema do qual Rous seau tratou com virtuosismo foi desenvolvido por Smith com preocupação mas sem agitação Propôs um paliativo para o mal por meio de um amplo sistema de ensino básico praticamente gratuito para as massas fortalecido por uma quantidade inédita de seitas religiosas chegando a três mil cada uma necessariamente tão pequena que cada um de seus membros seria visível para a vigilância de seus companheiros de culto Todos manteriam vigília sobre a moral uns dos outros que longe de estar em perigo de esmorecer por fàlta de interesse demandaria ela própria a moderação por febrífiigos cursos educativos em ciências e filosofia e espetáculos artísticos como o teatro Smith recomenda repetidas vezes a mais enérgica atenção do govemo para com o estado intelectual e moral de grande parte da humanidade industrial não só por filantropia mas por óbvias razões de Estado Nossa tese com um resumo da qual encerramos agora é esta pouco tempo após a conclusão da obra de Locke homens inteligentes começaram a refletir sobre o que 5 8 4 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 40 tó VL iii 3 p 755 41 Ibid III VII iü p 590 também IV I p 416 42 Ibid V I iii 2 p 736738 V I iii 3 p 747748 seria hoje chamado de as implicações morais de sua doutrina e a expandilas Foi mostrado anteriormente no capítulo sobre Locke o ponto até onde teria ele atenuado os ensinamentos de Hobbes acerca da ferocidade natural do homem e assim aponta do a íilosoíia política na direção da economia Porém os principais ensinamentos da moderna escola do direito natural não foram prejudicados por isso de modo unívoco a natureza continuou a significar preservação com direitos que apoiam tudo que é rela tivo a isso Ora isto passou a ser considerado insuficiente e se acreditava que a redução do homem a suas afeições sugeria que este é afetado não somente em si mesmo mas em sua espécie Talvez não se tenha dado crédito suficiente a Locke pela relevante atenua ção mencionada antes que vai nessa direção mas seja como for o tema foi enfatizado por Smith mais ou menos na época do Segundo discurso de Rousseau A redução da vida humana a seus alicerces emocionais foi ampliada até se tornar a base dos deveres bem como dos direitos Não se pode negar que foi de modo consciente que se fizeram esses direitos revolverem em torno da preservação da espécie tampouco se pode negar que deveres são diferentes de direitos e de alguma forma os dois exigem uma recon ciliação entre si Durante esta conciliação dos deveres da virtude moral com os direitos da natureza quer dizer preservação Smith recorreu à tensão entre a natureza e a ordem moral dela derivada deixando a reconciliação inevitavelmente imperfeita A partir des ta semente germinaram os ensinamentos quanto à imperfeição moral da ordem natural ou a melhor ordem da sociedade a sociedade civil livre próspera e tolerante Assim em sua autocompreensão o capitalismo antecipou a principal crítica póscapitalista ao capitalismo a sociedade civil é uma solução fiJha para problema humano Nosso segundo ponto inseparável do primeiro é que a autocompreensão do ca pitalismo também antecipou uma proporção surpreendente de que viria a ser proposto no século XIX como a alternativa para o capitalismo Tentamos mostrar como o capi talismo direcionavase para a construção de uma humanidade universal tanto como o fundamento do dever o espectador universal e como o beneficiário final do progresso econômico desta forma como a melhor sociedade possível O motor desse progres so foram os ignóbeis desejos e esforços do homem canalizados através das instituições econômicas de produção e distribuição que vez por outra se abrem para ele Uma ex pectativa de bem através do mal de razão através da insensatez progresso uma crença na tendência dos interesses da humanidade em suplantarem os da sociedade política particular na preponderância da influência econômica sobre os assuntos humanos no primado do trabalho no processo de produção na preocupação da sociedade civil com a defesa da propriedade isto e muito mais que o marxismo iria proclamar estava Adam Smith 5 8 5 43 Devese chamar a atenção do leitor para a obra de Bernard Mandeville c 16701733 cuja The Fable ofthe Bees 1714 A febula das abelhas tinha como subtítulo Private Vices Public Benefits Vicios privados benefícios públicos Campeavam as polêmicas em torno dele e Smith acres centou sua reprimenda ao lidar com ele no capítulo O f Licentious Systems Sobre os sistemas licenciosos Theory o f Moral Sentiments VII II iv ao mesmo tempo que admitia que Mandeville náo estava incorreto em todos os aspectos presente nas doutrinas do capitalismo em certa medida e de um modo ou de outro tal como foi nosso objetivo demonstrar Elucidase de maneira curiosa a teoria de Marx de que o capitalismo contém a semente de sua própria negação Podese dizer talvez que de acordo com sua própria autocompreensão os fundamentos do capitalismo coincidem em um grau extraordinário com o canteiro semeado para sua própria ne gação porém a própria semente é ao alheio ou seja a íilosoíia da história algo que foi gerado não pelo funcionamento de quaisquer instituições econômicas mas por um ato de especulação humana Talvez Smith deva ser culpado por não ter extraído uma metafísica dessa sabe doria da natureza que acreditava orientar o processo humano e à qual tantas vezes recorre uma metafísica que daria historicidade ao processo de encerramento de toda a carreira humana Talvez devesse ter percebido a força de uma metáfora como a sa bedoria da natureza e passar a postular sabedorias ainda mais elevadas pelas quais as próprias leis da natureza podem ser controladas Entretanto nunca chegou a esse pon to pois não questionou a crença de que existe um horizonte imutável dentro do qual ocorrem todas as mudanças esse horizonte ou estrutura sendo a Namreza A íilosoíia da história será tema de capítulos posteriores Pelo presente podemos observar que quando os ensinamentos de Rousseau acerca da maleabilidade da nam reza humana receberam o seu devido cultivo e ampliação demonstraram ser o pouco fermento que fez crescer toda a massa Os paradoxos e as irregularidades que o capita lismo liberal estava disposto a tolerar devido à sua origem na natureza do homem não poderiam ser tolerados pelo século XDC uma vez que este já não via a necessidade de tolerálas A natureza que dá origem a inconveniências deve afestarse e se submeter a ser suplantada pela lei da mudança de namreza isto é a História É essa fissura estrei ta mas abismai que divide o capitalismo do comunismo L e it u r a s A Smith Adam An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations Book I chaps ix xi intio e conc book V chap i B Smitb Adam An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth ofNations Book III book IV chaps i ii vii 586 H istória da Filosofia P o lítica Leo Strauss e Joseph Cropsey T h e F ederaust O Federalista 17871788 Imediatamente após a convenção federal de 1787 Alexander Hamilton dedi couse à difícil tarefe de assegurar que Nova York ratificasse a Constituição proposta Como parte de sua estratégia planejou uma série de ensaios curtos para expor as virtudes do documento Hamilton obteve a colaboração de John Jay e ironicamente só após vários outros declinarem seu convite de James Madison também The Fede ralist O Federalista foi publicado cm série em grupos de dois e quatro ensaios na imprensa da cidade de Nova York Os ensaios pretendiam influenciar a eleição de delegados para a convenção estadual de ratificação e uma vez que para esta eleição foi adotado o sufrágio masculino universal os ensaios eram portanto endereçados ao Povo do Estado de Nova York Porém O Federalista era destinado ainda a instruir e inspirar os delegados fevoráveis e a persuadir ou acalmar os delegados desfevoráveis à convenção Para tanto mesmo antes da conclusão da publicação seriada na imprensa os ensaios foram publicados como livro que foi distribuído aos principais defensores da Constituição em todo o país Assim O Federalista dirigiase ao mesmo tempo ao mais amplo eleitorado e aos homens capazes e educados que de fato iríam determinar o destino da Constituição Parece evidente que seus autores também miravam além da presente batalha e escreveram com vistas a influenciar as gerações futuras ao fezer de sua obra o comentário mais abalizado sobre o significado da Constituição Apesar de O Federalista ser uma obra política de alcance mais imediato ou seja um trabalho de propsanda política cala fundo também com os homens pensantes da época e de íora pois tem como meta a solidez de seus argumentos Complicase ainda mais a leitura de O Federalista pelo feto de ter sido escrito por dois homens podese descartar aqui a pequena contribuição de Jay cujas opiniões individuais e carreiras subsequentes divergiram de forma radical Este feto encora jou muitos leitores a identificar na obra inconsistências fundamentais onde estas não 1 Alexander HamUton 175751804 James Madison 17511836 John Jay 17451829 2 Há muito é controversa a autoria dos 85 artos De acoido com a convincente atribuição de Dou glass Adair HamÜton escreveu 51 artigos 1 691113 1517 2136 5961 6585 Madison 29 10141820 37586263 e Jay 5 2564 existem na suposição de que uma obra escrita em conjunto por Hamilton e Madi son seria necessariamente contraditória Tal como a crença de que O Federalista seria apenas uma obra propandística a crença de ser uma obra inconsistente de autores incompatíveis desvalorizou O Federalista como um trabalho teórico O Federalista no entanto apresentase como a obra de um certo Públio o qual afirma fornecer uma descrição consistente abrangente e verdadeira da Constituição e do regime que foi concebida para produzir Como será visto Públio cumpre o que promete Além do fato de que Hamilton e Madison possuíam a motivação e a capacida de para produzir um Públio de impressionante consistência O Federalista conta com um personagem literário que lhes possibilitou concordarem com bastante íàcilidade a respeito de grande parte do que precisava ser dito O Federalista trata sobretudo de questóes de fiito Apesar de suas diferenças Hamilton e Madison estavam de acordo quanto ao que fizera a convençáo e que tipo de país disso resultaria Da mesma forma eralhes íacil concordar a respeito de como fazer a Constituição parecer mais atraente ou menos nociva para aqueles que pretendiam convencer O Federalista é um comentá rio e uma súplica em prol da Constituição Desta forma seus autores náo estavam em princípio obrigados a lidar com o assunto mais controverso ou seja o padrão pelo qual eles próprios avaliavam a Constituição como boa Naturalmente isto não significa que Públio seja superficial ou que diga somente o que seus leitores desejam ler Na verdade Hamilton e Madison vão muito longe como Públio ao sugerir a íúndamentação teóri ca sobre a qual deve erguerse uma sábia aceitação da Constituição É isto o que faz de O Federalista uma obra esclarecedora Porém o caráter literário de O Federalista não os obrigava a avançar tanto na discussão que os forçasse a desnudar suas diferenças mais relevantes Infelizmente o que ajuda a explicar a consistência de Públio também explica por que O Federalista não atinge o nível das grandes obras em que as questóes teóricas são levadas a suas devidas conclusões ou seja seu alcance mais profimdo Uma última observação sobre Públio logo conduz aos ensinamentos de O Federa lista Sabemos que Hamilton levava a sério seus pseudônimos pois tinham a finalidade de revelar a natureza de seus argumentos Pouco antes do aparecimento de Públio fora iniciada uma série de ensaios em apoio à Constituição escritos sob o pseudônimo de César É freqüente pensarse que Hamilton era também César mas as atuais pes quisas demonstram ser isso pouco provável Seja como for os dois primeiros ensaios de César foram muito mal recebidos e a série foi abandonada por seu autor A escolha de Públio é especialmente reveladora quando comparada aos malfadados ensaios de César quer estes últimos tenham sido escritos por Hamilton ou nâo Públio como sabia o leitor instruído era o Públio Valério Publícola descrito em Plutarco Públio tal como César era um homem forte mas havia entre eles uma enorme diferença César destruiu uma república enquanto Públio salvou uma república Ao contrário 588 H istória da Filosofia P olítica s Leo Strauss e Joseph Cropsey Ver o excelente ensaio de Douglass Adair A Note on Ccrtain of Hamiltons Pseudonyms Nota sobre alguns dos pseudônimos de Hamilton WilUam and Mary Quarterly third series XII abril 1955 de César Públio deu sua contribuição para a república de um modo compatível com a sobrevivência desta Trouxe em seu socorro qualidades que a própria república nâo é capaz de fornecer mas a deixa essencialmente intacta após sua contribuição Não importa quem tenha sido seu autor os ensaios de César estavam destinados ao fra casso Na verdade a Constimição não era cesarista e o público a ser persuadido era naquele momento proíundamente hostil a um apelo cesarista O caráter de Públio pelo contrário era perfeitamente adequado à situação e caracterizava com exatidão os argumentos de O Federalista Públio possuidor de uma capacidade e conhecimentos que o próprio povo não é capaz de fornecer traz ao povo a constituição que preservará ou melhor instituirá com surança a república No primeiro ensaio Públio apresenta a organização da obra 1 y4 utilidade da UNIÃO para a vossa prosperidade poUtica 2 A insuficiência da atual Confitderação para preservar esta União 3 A necessidade de um governo pelo menos com vigor similar ao do proposto para atingir tal oljetivo 4 A conformidade da Constituição proposta com os verdadeiros princípios do gpvemo repuhUcano 5 Sua analogia com a Constituição de vosso próprio Estado e finalmente 6 A segurança adicional que sua adoção propiciará à preservação desta fôrma de governo à liberdade e à propriedade Públio acha então necessário explicar a ordem de sua obra Talvez se acredi te supérfluo oferecer argumentos para provar a utilidade da UNIÂO afirma já que se acredita que não possui adversários Públio justifica o seu tema de abertura com base no feto de que na verdade existem adversários secretos Entretanto além desta justificação peculiar é possível en xei outros motivos de Públio para a organização de sua obra Em particular está daro o motivo por que principia com a utilidade da união Por um lado começa com o pé direito por iniciála com um assunto que goza da concordância de quase todos os seus leitores Além disso uma declaração adequada e integral acerca dos fins como é sempre o caso de uma dedaração completa dos íins termina por conter as mais claras implicações do que deve ser feito para atingir esse íim Portanto no momento em que Públio termina de descrever o valor da união terminou também de apresentar todos os seus argumentos principais acerca de questões debati das no amistoso contexto dos íins indiscutíveis Quando explanados de forma correta é palpávd a inconsistênda dos íins da união com a imbecilidade isto é a firaqueza da Confederação os quais exigem um governo vigoroso Públio quer extrair uma concordância geral para a proposição abstrata de que a união é boa e a Confederação inadequada aquiescência esta que é necessária para sustentar a União Públio é capaz de converter a concordância geral em consentimento inteligente e detalhado ao instruir seus leitores sobre o que está logicamente implícito em seu vago compromisso para com a União Desta forma os três primeiros ramos da obra de Públio argumentam assim The Federalist 5 8 9 lhe Federalist ed Henry Cabot Lodge introduction by Edwatd Mead Earle New York Modem Library 1941 1 p 6 itálicos no original Federalist 15 p 89 desejar a união é necessariamente desprezar a presente Confederação e dar boasvindas ao vigoroso governo de que a união necessita Resta apenas demonstrar que a união sob este vigoroso governo a Constituição proposta é satisfatoriamente lepublicana Por conseguinte Públio precisa ensinar uma maneira republicana mais completa do que até então se pensou ser possível para que se desfrute a utilidade da união Como se verá esta constitui ao mesmo tempo a tateia política mais difícil de Pú blio bem como seus ensinamentos teóricos mais importantes Um exame mais atento da organização da obra revela sua importância Na verdade a obra se divide entre os seis ramos em investigação da seguinte forma 1 a utilidade da União 14 ensaios 2 a insuficiência do Confederação 8 ensaios 3 a necessidade de governo vigoroso 14 ensaios 4 o republicanismo da Constituição 48 ensaios 5 e 6 1 ensaio Ao c h c ao último ensaio Públio afirma ter tão plenamente antecipado e esgotado os dois últimos ramos que apenas reúne os argumentos apropriados e conclui a obra Portanto na verdade o livro é dividido em quatro subtítulos Mas a organização pode ser explicada de forma ainda mais simples Como foi visto os três primeiros subtítu los tratam de um tema a questão política imediata do que deve ser feito a respeito da união mostrando por que é boa o que é inadequado nos Artigos da Confederação e que ripo de governo será adequado para a meta da união A Constimição proposta sendo adequada para esses fins mdo o que resta é mostrar que esta Constituição está em conformidade com os verdadeiros princípios do govemo republicano E esta é a tarefa do quarto e de lon o maior ramo da investigação Assim a organização dos ensaios exposta em sua forma mais simples é união e republicanismo A organização dos en saios transmite perfeitamente os ensinamentos de O Federalista um novo e verdadeiro republicanismo que envolve de modo cmcial uma nova visão do problema da união Os americanos já viviam sob governos republicanos e sob uma união confederada destas repúblicas mas na opinião de O Federalista o princípio dessas repúblicas e sua união confederada eram velhos e fálsos A Confederação portanto estava necessaria mente naufirsando e as repúblicas individuais tendiam para doenças mortais que por toda parte fizeram perecer governos populares A Constituição contém o novo e ver dadeiro princípio da união republicana que resgatará o govemo republicano na América A orgulhosa conclusão do íamoso décimo ensaio resume esse ensinamento Assim dis pomos no âmbito e na estmtura adequada da União de um remédio republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo republicano grifo nosso O Federalista é notável pela conjunção que obtém entre uma discussão das questões mais urgentes da política e de questões teóricas Isso é mais evidente no tratamento da união republicana A correta oianização da união era o principal problema político do 590 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey A oianização dos ensaios é revelada com perfeição no Federalist 39 que defende a Constituição com dois princípios fundamentais de que é suficientemente republicana e suficientemente fedeial isso que neste ensaio associa as duas principais divisões do Uvro e em certo sentido constitui seu ensaio central a questão é aparada até cbegar à sua essência a união e o republicanismo Federalist 10 p 5354 dia no entanto o que O Federalista tem a dizer a respeito desta questão prátíca baseiase em seus mais novos e relevantes ensinamentos teóricos A oposição à Constituição tam bém repousava sobie uma visáo teórica De feto uma das mais marcantes características do debate sobre a Constituição era a extraordinária intrusão de considerações teóricas na resolução da questão prática O grande ataque sobre a Constituição era a acusação de ser antirrepublicana a nova união Determinadas características da Constituição eram consideradas especificamente antirrepublicanas mas a principal investida da oposição resultava do aigumento mais geral de que só os governos estaduais não um enorme go verno central poderia ser efetivamente livre e republicano Esta opinião decorria de uma crença amplamente difundida popularizada por meio da íbrma como se entendida por Montesquieu de que somente países pequenos podem desfrutar do govemo republica no O raciocínio que O Federalista empregava em contrapartida era o que se segue Necessariamente os países grandes caem no despotismo Por um lado precisam do governo despótico como mera conseqüência de suas grandes dimensões em suas subdivisões a autoridade política entra em colapso sem um governo mais forte do que permite a forma republicana Além disso países grandes geralmente ricos e populosos são belicosos ou vêm a sêlo por conta de vizinhos invejosos a realização das guerras inexoravelmente alimenta o governo despótico E mesmo se os países grandes tentas sem ser republicanos não teriam sucesso Para preservar seu governo o povo deve ser patriota vigilante e informado Isso exige que o povo dê cuidadosa atenção às questões públicas e que os assuntos do país estejam em uma escala compatível com a compreen são popular Potém nos países grandes o povo fica confuso e se torna apático devido à complexidade dos assuntos públicos e enfim absorvemse em seus interesses pessoais Finalmente mesmo os cidadãos alertas de uma grande república precisam permitir que de feto alguns poucos homens conduzam os negócios públicos afestados das localidades e dotados de instrumentos de coerção seria inevitável que os representantes de confiança subjugassem o governo republicano às suas próprias paixões e interesses Tal era a visão tradicional e inabalável da necessidade de que as repúblicas fossem pe quenas Decorria daí que essas pequenas repúblicas só poderiam combinarse para ob jetivos limitados em confederações que respeitassem o primado dos estados membros No entanto seus oponentes entendiam a Constituição não como uma confederação propriamente mas como algo calculado em última análise para fezer dos estados um govemo consolidado ou seja uma grande república por conseguinte a Constituição era necessariamente antirrepublicana Ou seja a Constituição era denunciada como algo fundamentado em uma visão nova e falsa da união republicana Assim é compreensível que O Federalista peça a seus leitores que não deem ouvidos à voz que com petulância lhes diz que a forma de governo recomendada para a sua adoção é uma novidade no mundo político que nunca teve ainda liar nas teorias dos mais impemosos especuladores que precipitadamente ousa fezer o que é impossível realizar T h e F e d e r a u s t 5 9 1 8 FedentUst 1 4 p 8 4 Enquanto os leitores são convidados a náo dar ouvidos O Federalista não nega a acusação de novidade pelo contrário exalta a novidade como a glória dos povos da América Felizmente para a América ciemos que paia toda a raça humana os líderes da revolução não temeram aíâstarse de velhas formas mas ao contrario suiram um novo e mais no bre curso Realizaram uma revolução sem paralelo nos anais da sociedade humana Criaram tecidos de governo que não têm modelo na íàce do globo Elaboraram o projeto de uma grande Confederação que cabe aos seus sucessores aperfeiçoar e perpetuar Contudo somos informados de imediato devemse esperar algumas felhas nes sas realizações Ocorre que mais erraram na estrutura da União Contudo isso era esperado jporque foi este o trabalho mais difícil de realizar grifo nosso A correta união republicana portanto é tarefa mais difícil de realizar do que uma revolução sem paralelo e que a criação de governos estaduais sem modelo prévio Porém a Constitui ção realizará esta tareia tão árdua Cumprirá e portanto salvará o novo e mais nobre modo de vida que a América inaugurou para o mundo Esta União mais perfeita repousa sobre um republicanismo novo e verdadeiro que é tarefa de Públio explanar Públio coloca sua reivindicação mais importante na conclusão do femoso déci mo ensaio apresenta um remédio republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo republicano Mais uma vez Públio elogia Thomas JefFerson por exibir igualmente um fervoroso apego ao governo republicano e uma visão esclarecida das perigosas propensóes contra as quais deveria guardarse Assim Públio declara ser um partidário incondicional porém sereno do republicanismo Contudo a palavra republicano não nos diz o suficiente sobre o tipo de regime que Públio advoga Isto é suscita imediatamente a pergunta que tipo de república Como pode a república de Públio encaixarse na tradicional distinção dos três tipos de governo por um poucos ou muitos A resposta é óbvia Públio defende uma república democrática Na verda de o que é digno de nota é a intensidade que Públio atribui à palavra república nos trechos chave um conteúdo exclusivamente democrático Por exemplo o princípio republicano habilita o partido majoritário a derrotar através de votação regular os projetos inconvenientes de uma fecção minoritária E esta deve ser uma maioria derivada do grande corpo da sociedade nâo de uma proporção insignificante ou uma classe favorecida da mesma Embora seja verdade que a palavra república 592 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 9 Ibid p 85 10 Federalist 49 p Ò17 11 Federalist 10 p 57 Federalist 39 p 244 Ver também Federalist 52 p 341342 A definição do direito ao suírio é reputada com toda justiça como um artigo íundamental do governo repu blicano Deverá ser a mesma em relação aos eleitores do ramo mais numeroso das lslaturas estaduais Não se pode temer que o povo dos Estados alterarão esta pane de suas constituições de tal modo que venham a restringir os direitos assurados a eles pela Constituição federal O sufrio nacional é feito tão democrático quanto o tão democrático su fixo nos Estados e não há possibilidade de que o sufrágio se torne menos popular sempre significou a ausência da monarquia e implicou a relevância de todo o corpo dos cidadãos não implicava o sufrio masculino universal ou quase universal o uso anterior da palavra sempre distinguiu entre repúblicas aristocráticas ou oligárquicas e repúblicas democráticas Porém a ideia exclusivamente democrática de Públio acerca do republicanismo obrigao a negar a aplicação explícita da denominação república a todos os regimes aristocráticos e oligárquicos outrora assim chamados Em suma na medida em que aceita a antiga tríplice distinção entre os regimes O Federalista trata seu regime republicano como pertencente ao modo irretorquivelmente democrático de governar Por mais que o regime que propõe se afaste da namreza de uma demo cracia pura O Federalista enfática e corretamente nega que esse afastamento retire a constituição da classe dos governos democráticos e a coloque na classe dos governos monárquicos ou aristocráticos O novo e verdadeiro republicanismo de Públio constitui portanto um ensina mento novo e verdadeiramente democrático Por muitos motivos que não podem ser discutidos aqui tem sido obscurecido o caráter democrático de O Federalista e da Constituição que divulgou Desta forma perdese o que há de mais importante em O Federalista É necessário e conveniente no entanto examinar um argumento muitas vezes utilizado em apoio à visão de que a Constituição de Públio não estabeleceu um regime democrático Em um famoso trecho do décimo ensaio acreditase ter sido o próprio Públio radical ao distinguir entre as repúblicas e as democracias e por con sjiinte ter ele mesmo retirado a Constituição da classe democrática Não é muito exata esta conclusão Públio distingue uma república de uma democracia purafi o que é algo muito diverso Ao dizer uma democracia pura afirma Públio referirse a uma sociedade que congrega um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente Da forma como Públio compara as duas uma república diverge de uma democracia pura apenas na medida em que é um governo no qual tem vigência o esquema de representação Esta e somente esta é a única dis tinção que fãz Públio O sinônimo perfeito para o uso de Públio da palavra república é portanto a democracia representativa O princípio da representação no entanto introduz uma impureza na forma republicana do ponto de vista da democracia pura Contudo isso não significa que as repúblicas se oponham às democracias quanto a sua espécie ao contrário por assim dizer as repúblicas são democracias impuras Sobre a questão crucial sobre onde se aloja a soberania ou seja com os muitos tanto as repúblicas como as democracias puras pertencem a uma classe mais abran gente A aparente dificuldade levantada pela distinção entre repúblicas e democracias puras feitas por O Federalista é resolvida quando percebemos que esta classe maior ou gênero é o que Públio denomina governo popular E com governo popular Públio referese ao que se entende hoje pelo termo democracia Ou seja Públio entende que o governo popular inclui todas as formas de governo por muitos distintas das várias The Federalist 593 12 Federalist 39 p 243 13 Federalist 10 p 58 grifo nosso formas de governo por poucos ou por um Podemos procurar ajuda para compreender Públio em Madison e Hamilton individualmente A respeito da questão crucial do ló cus da autoridade política tanto Públio como Madison e Hamilton referemse a repú blica democracia e govemo popular alternadamente No décimo ensaio Públio fida de forma idêntica sobre um remédio republicano para a doença da íacção e um remédio que preservará o espírito e a forma de govemo popular Em 6 de junho na convenção fedenJ Madison discutiu esse mesmo remédio como a única defesa contra os incon venientes da democracia consistente com a forma democrática de govemo Hamilton chamou a república criada pela Constituição de uma democracia representativa Assim sendo devese entender que Públio pretendia na írase bem torneada de G L Pierson aplicada a Tocqueville fiizer a democracia s r a para o mundo É desta for ma que deve ser entenda a maior reivindicação de Públio Salvar o govemo popular de suas doenças mortais c ao mesmo tempo preservar tanto o espírito quanto a forma de govemo popular é o grande objetivo de nossas investigações Públio alega tesgatar esta forma de governo do opróbrio em que há tanto tempo labuta e portanto recomendála à estima e à adoção da humanidade O precedente não se destina no entanto a desvalorizar a importância da dis tinção de Públio entre república e democracia pura Pelo contrário a propriedade peculiar de uma república que é uma democracia representativa é o íúndamento dos ensinamentos de O Federalista promete a cura pela qual estamos procurando Mas o caráter democrático do republicanismo de O Federalista deve ser enfatizado a fim de se apreender sua tese central Públio a l curar os males até então incuráveis do govemo popular enquanto se mantém perfeitamente coerente com o princípio do govemo popular isto é alojando a soberania com os muitos Públio auxilianos a identificar o que há de novo em seus ensinamentos No déci mo quarto ensaio que dá sjuimento a seu ataque ao equívoco que limita govemo re publicano a um pequeno distrito Públio explica por que os homens por tanto tempo cometeram tal erro O que Públio agora sabe acerca do republicanismo estava até então vedado aos homens tanto pelos exemplos antigos como pelos modernos As possibilida des latentes na forma republicana popular encontravamse veladas porque a maioria dos governos populares da Antuidade eram da espécie democrática Enquanto na Europa moderna à qual devemos o grande princípio da representação náo se encon tra qualquer exemplo de um governo totalmente popular e baseado ao mesmo tempo totalmente nesse prindpio Se a Europa tem o mérito de ter descoberto esse grande poder mecânico no governo pela simples ação do qual podese congregar a vontade do maior corpo político e sua íbrça dirigida a qualquer objeto que o bem público e x a América 5 9 4 H is t ó r ia d a F ii o s o f i a P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 14 Alexander Hamilton Writinff ed Henry Cabot Lodge 12 v New York Puttuun 1904 II 92 itálicos no original 15 Fedentlist 10 p 58 16 Ibid p 59 17 FedemUst 14 p 80 pode reivindicar o mérito de fezer da descoberta a base de repúblicas náo mistas e exten sas Devese apenas lamentar que nenbum de seus cidadáos deveria desejar privála do mérito adicional de exibir sua plena eficácia no estabelecimento do sistema abrangente ora sob sua avaliaçáo Muitos foiam os governos totalmente populares que tiveram os antigos contu do na maior parte eram estes da espécie democrática pura isto é do tipo direto náo do tipo representativo Os europeus possuem governos em parte ou totalmente re presentativos mas nenhum ao mesmo tempo totalmente representativo e totalmente do tipo popular Coube à América inovar na combinação governos totalmente popu lares e totalmente baseados no princípio da representação A palavra não mista deve ser lida com toda a força de sua expressão Os estados americanos não eram regimes mistos como estados totalmente populares não contavam com uma significativa mis tura de elementos aristocráticos ou monárquicos E não eram pequenas repúblicas no sentido tradicional do termo pois já eram repúblicas abrangentes Tudo que é neces sário conclui Públio é demonstrar a eficácia plena do princípio representativo na república não mista e na república ainda mais abrangente proposta pela Constituição No entanto é enganoso o brando discurso de Públio como vimos o que ainda resta a ser feito é a tareia mais dificil de realizar Compreendese que Públio trate com delicadeza o orgulho e o carinho de seus lei tores para com seus governos estaduais Os governos estaduais são bons parece afirmar e a Constimição será ainda melhor Assranos de que os valiosos aperfeiçoamen tos introduzidos pelas constituições americanas nos modelos populares tanto antigos como modernos não poderão certamente ser apreciados em demasia Esta fiase pode ser lida de duas maneiras é incerta a quantidade de elogios que propõe Como de íato avalia Públio os valiosos aperfeiçoamentos no governo estadual Os governos estaduais apesar de todo o seu aperfeiçoamento íracassam inteiramente na resolução do problema das fecções que é o problema do governo popular Os governos estaduais naufixigarão contra esta rocha tal como naufiragaram todas as democracias anteriores Soçobrarão porque não possuem um número de cidadãos e extensão territorial sufi cientes Sâo repúblicas abrangentes mas não são suficientemente grandes Os governos populares da Antiguidade obscureceram as possibilidades latentes no republicanismo informamnos porque feltava à maioria deles o princípio representa tivo Entretanto feltava algo mais na Antiguidade Assim sendo Públio volta a esta mes ma pergunta muitos ensaios adiante Agora avisa que a posição acerca da ignorância dos governos dav tiguidade sobre o tema da representação não é de forma alguma ver dadeira exatamente na amplitude que em geral lhe é conferida Públio fornece agora uma lista considerável de instituições representativas da Antiguidade De íáto nenhuma das antigas repúblicas baseavase inteiramente no princípio representativo tal como o The Federaust 595 18 Ibid p 81 itálicos nossos 19 Federalist 10 p 54 20 Federalist 63 p A2 fazem os estados americanos O que era um defeito Era porém um defeito trivial sofriam eles de um mal muito pior Náo se pode crer que qualquer forma de governo representativo poderia ter tido sucesso dentro dos estreitos limites ocupados pelas de mocracias da Grécia A utilidade do princípio representativo portanto que oferece a cura pela qual buscamos depende inteiramente do tamanho do país Mesmo os estados americanos relativamente grandes náo serão suficientes só uma união da magnitude e natureza previstas pela Constituição resolverão o problema do governo popular Os amigos iluminados da liberdade teriam de abandonar a causa do governo republicano como indefensável se não tivesse sido encontrada esta nova solução A solução reside na ciência da política que como a maioria das outras ciências tem tido grande melhora É agora bem compreendida a eficácia de vários princípios que eram de todo desconhecidos ou imperfeitamente conhecidos pelos antigos A distribuição regulai do poder em departamentos distintos a introdução de freios e contrapesos legislativos a instituição de tribunais compostos de juizes que mantêm seus cargos em bom comportamento a representação do povo na legislatura pelos deputa dos eleitos pelo próprio povo tratase de descobertas totalmente novas ou fizeram seu principal progresso em direção à perfeição nos tempos modernos São os meios e meios poderosos pelos quais podem ser mantidas as excelências do governo republicano e as suas imperfeições diminuídas ou evitadas A este catálogo de circunstâncias que tendem à melhoria dos sistemas populares de governo civil arrisco por mais novo que possa pare cer a alguns acrescentar mais um com um princípio que fbi feito a base de uma objeçáo para a nova Constituição quero dizer o ALARGAMENTO da ÓRBITA dentro da qual tais sistemas devem revolver quer no que respeita às dimensões de um único Estado ou à consolidação de vários pequenos Estados em uma grande Confederação Públio é assim o portavoz da nova ciência da política cujos mestres anterio res não menciona tendo feito ele mesmo um importante acréscimo para a ciência ou seja a possibilidade de uma república muito grande Além disso tudo nessa moderna ciência da política é visto agora sob uma ótica democrática se os antigos mestres da nova ciência só tendiam em uma direção democrática ou sugeriram regimes só em parte democráticos Públio toma a nova ciência da política e a amplia e a usa para o aperfeiçoamento de um sistema de governo civil totalmente popular Por fim através de Públio chegou o momento para a nova ciência deixar de ser apenas um ensinamento e se tornar uma grande realidade política Públio concebe o problema do governo popular representativo como sendo tríplice Primeiro existe a possibilidade de que o povo perca o controle de seu governo de que os governantes representativos subvertam o regime Segundo há a possibilidade de que as maiorias populares por intermédio de representantes submissos governem de modo opressivo Terceiro existe a possibilidade de que as maiorias por intermédio de representantes submissos não governe de modo opressivo mas de modo insensato deixando de fazer o necessário para manter a força e a estabilidade do governo 596 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 21 Ibid p 413 22 Federalist 9 p 4849 Proteger o povo é a tarefe mais simples Todo o poder do govemo proposto estará nas mãos dos representantes do povo Os governantes de feto não terão autorida de em última análise exceto por serem os objetos da escolha popular Esta ressalva garante contra a subversão pelos governantes representativos deixar os representantes totalmente dependentes do povo é a segurança essencial e afinal a única eficaz para os direitos e privilégios do povo que é possível na sociedade civil Embora o regime seja agora totalmente popular e totalmente representativo não há nada de novo até aqui a mais antiga reivindicação da democracia é que o direito de sufiágio resguarda a socie dade contra a opressão dos seus governantes A nova ciência da política porém ofeiece uma garantia adicional para os direitos do povo A separação de poderes a distribuição rqlar do poder em setores distintos diminui a ameaça de que os governantes sejam capazes de tramar e por em prática esquemas de opressão A liberdade do povo em geral e os direitos dos indivíduos são garantidos pela improbabilidade de uma combinação mercenária e pérfida dos diversos membros do governo pois se ergue sobre íúndações diferentes como bem admitirão os princípios republicanos e ao mesmo tempo presta contas à sociedade sobre a qual estáo colocados Era isso o que buscava Jefferson com a separação de poderes pois temia acima de mdo a opressão do povo por seus governan tes Entenderemos melhor como a separação de poderes fornecerá esta proteção quando virmos como a separação de poderes atenua os outros males que temia Públio Não basta argumenta Públio resguardar a sociedade contra a opressão dos gover nantes representativos é necessário também resguardar uma parte da sociedade con tra a injustiça da outra parte Em palavras simples o problema é a proteção contra maiorias populares arrogantes Este é um problema muito maior do que a traição inconstitucional de representantes porque a forma de governo popular permite que uma maioria popular execute e mascare sua violência sob as formas da Constimiçáo Nesta sentença Públio exibe com ousadia a namreza democrática do regime que pro põe os muitos governam e portanto podem fezer coisas opressivas dentro da legali dade Ao contrário do despotismo eletivo de Jefièrson esse mal ocorre não quando os representantes são infiéis aos seus constituintes mas quando atendem os desejos opressivos das maiorias populares com excesso de fidelidade O grande perigo que percebe Públio é que as maiorias populares exigirão medidas opressivas e que seus representantes eleitos as atenderão com excesso de préstimo Públio procura resolver o problema em ambos os níveis entre o povo e entre os seus representantes A mul tiplicidade de facções é a sua famosa resposta para o problema da maioria opressora em si Conmdo temos de considerar primeiro como a separação de poderes resolve o problema ao nível dos representantes 23 F ederaliali p 173 itálicos nossos 24 Fedemlist57ç37 25 Fedemlist28p73 26 Federalist 55 p 364 27 Federalist 51 p ÒÒ9 28 Federalist 10 p 57 The Federaust 597 Públio está ciente de duas outras maneiras respeitáveis de impedir as maiorias de oprimirem as minorias Uma delas é criar na comunidade uma vontade independente da maioria isto é da própria sociedade No entanto tratase esta da solução monár quica que Públio rejeita A outra tem seu exemplo na república romana onde a autorida de legislativa era dividida em duas legislaturas distintas e independentes permitindo que a minoria patrícia resistisse constitucionalmente à maioria plebeia Podese tomar este exemplo como ilustrativo da ideia tradicional da república mista que é excluída na república não mista de Públio onde toda a autoridade será derirada e dependente da sociedade Não se pode resolver o problema das maiorias opressoras em um regime totalmente popular por meios pertencentes aos regimes monárquicos ou mistos Públio encontra na nova ciência da política que não é necessariamente democrática uma so lução que pode ser enxertada na democracia a separação de poderes Talvez haja mesmo um parentesco mais proíúndo entre a separação de poderes e a democracia Seja como for Públio emprega a separação de poderes como íãz com todos os demais elementos da nova ciência de maneira a preserrar o espírito e a íbrma do gpvemo popular A separação de poderes atenua o mal das maiorias opressoras no nível governa mental Em uma república sem separação de poderes onde um único corpo de repre sentantes executa todas as íunçóes de governo nada haveria na máquina do governo que pudesse deter a vontade de uma maioria opressiva popular Contudo é exatamen te isso que a separação de poderes tem como meta realizar criar uma distância entre o desejo e o ato da maioria A separação de poderes toma a antiga distinção entre as fun ções legislativas executivas e judiciais do governo e fez uma distinção entre os funcio nários do legislativo do executivo e do judiciário Isto signiíica portanto criar alguns representantes que resistirão a desejos equivocados do povo a que outros representan tes cedem passivamente ou que chegam mesmo a incitar com demagogia Quando o poder de governar é distribuído a departamentos distintos é daro que são os repre sentantes que podem resistir e que são aqueles que irão ceder às demandas populares No governo republicano a autoridade legislativa necessariamente predomina O departamento legislativo como demonstrou a triste experiência dos governos esta duais tem em toda parte alargado o âmbito da sua atividade e arrebanhado todo o poder para seu frenético vórtice Por assim dizer é contra o legislativo que a força da separação precisa ser dirigida em particular A grande sirança contra uma con centração gradual dos vários poderes no mesmo departamento consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à invasão dos outros 598 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 29 Federalist 51 p 339 30 Federalist 34 p 203204 31 Federalist 5 p 339 32 Ibid p 338 33 Federalist 4 p 322 34 Federalist 51 p 337 Públio tinha motivos para expressarse de modo brando mas é claro o que quer di zer O executivo e o judiciário devem possuir os meios e os motivos pessoais para resistir ao legislativo Por exemplo quando se apresentam as ocasiões em que os interesses do povo estão em desacordo com suas inclinações ou quando os lisladotes que nor malmente têm o povo de seu lado estão empenhados na opressão então o executivo deve estar em condições de ousar agir com vigor e decisão de acordo com sua própria opinião A separação de poderes cria autoridades que apesar de sua dependência do povo e sua íálta de qualquer mandato independente pata governar têm todavia a pro babilidade de resistir e deter o legislativo quando este parece ceder às exigências equivo cadas da população os mestres constitucionais de todos os três ramos do govemo É fécil para Públio mostrar como o executivo e o judiciário terão os meios para rechaçar uma legislação opressiva o veto a iniciativa legislativa do presidente seu cri tério na aplicação das leis a revisão judicial e o disceririmento dos juizes no julga mento de casos individuais todos esses artifícios dão aos outros dois ramos os meios constitucionais para temporariamente anular ou moderar uma legislação opressiva No entanto é mais difícil perceber por que o executivo e o judiciário terão motivos pessoais para resistir ao legislativo Por que colaborarão com o legislativo nas boas ações colaboração sem a qual o governo seria reduzido à imbecilidade que Públio tanto desprezava e colidiria com o legislativo em suas más açóes Públio nos fomece duas razões Primeiro devese fezer com que a ambição neutralize a ambição O inte resse do homem deve ser ligado aos direitos constimcionais do lugar Se o governo foi devidamente organizado os moradores e os juizes defenderão seus cairos contra o legislativo porque o seu oIglho seu amor pelo poder ou fema ou até mesmo sua ava reza vai leválos a identifícar seus próprios interesses com a integridade de seus cargos Entretanto há aqui uma hipótese crucial Públio assume que a legislação opressiva necessariamente ou pelo menos em geral subtrai a dignidade dos cairos executivos e judiciais Públio parece pressupor que a legislação opressiva exige execução servil e adjudicação servil e que os executivos e os juizes servis não usufruem da dignidade de nenhum poder de nenhuma fíuiu e finalmente nem mesmo de recompensas pe cuniárias Por conseguinte Públio espera que o executivo e o judiciário por razões de interesse privado e paixão resistam ao legislador quando este for opressivo A sepa ração de poderes fornece à democracia governantes que sem os motivos tradicionais de distinção femiliar ou riqueza simplesmente por causa dos empregos que têm e seu apego a eles por autorrespeito tenderão a governar pelo maior bem da democracia O segundo motivo de Públio para crer que os outros ramos resistirão à lislação opressiva desejada por uma maioria popular é também baseado em sua suposição de que a legislação opressiva ordinariamente solapa a integridade dos cargos executivos e judiciais No entanto Públio parece assumir também que presidentes e juizes resistirão à legislação opressiva não apenas por causa do apego interessado a seus cargos mas The Federaust 599 35 FedemlistlX p 465466 36 Fedemlist5 p 337 também por um respeito decente para com o cumprimento de seus deveres Como homens razoavelmente decentes realizando uma tarefa terão motivos por se dizer motivos profissionais para resistir à legislação opressiva porque tende esta a violar as artes que servem e a subordinar os cargos executivos e judiciais Esta última reflexão permite compreender como Públio esperava que a separa ção dos poderes ajudasse a resolver o terceiro problema do governo popular não a opressão mas a inépcia do governo popular Mais uma vez Públio confronta a crítica tradicional ao governo popular por este entregar o governo nas mãos dos muitos o que quer dizer nas mãos dos ignorantes O próprio princípio da representação em si pode ser um passo na direção certa O efeito da representação pode ser aperfeiçoar e ampliar os pontos de vista público submetendoos a um corpo escolhido de cidadãos cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse do seu país e cujo patriotismo e amor à jusdça menos probabilidade terá de sacrificála a considerações temporárias ou parciais Pode muito bem acontecer que a voz pública pronunciada pelos representantes do povo será mais consonante com o bem público do que se pro nunciada pelo próprio povo convocada para tal fim Mas sabemos que Públio não conta muito com a sabedoria e a coragem do legis lador apenas São esses outros representantes do povo o executivo e o judiciário que são cruciais para elevar toda a representação do povo Observese que muito do que é dito aqui acerca da separação dos poderes aplicase também a freios e contrapesos legislativos ou seja os controles impostos pela existência do Senado O executivo e judiciário são eleitos e nomeados a alguma distância da opinião imediata do povo mas de modo democrático isto é náo com base em qualquer autoridade externa à soberania do povo Cumprem mandatos mais longos e atendem a distritos eleitorais maiores a natureza das suas funções inculca com mais força sobre eles a consciência do que é necessário no interesse do todo Passam a querer desempenhar bem suas tarefas A separação de poderes cria cargos que por si mesmos tendem a tornar os homens que os ocupam dignos dos cargos Além disso a separação de poderes ajuda a obter para o executivo e judiciário os homens mais propensos a desincumbiremse bem isto é influencia de modo benéfico a escolha da maioria A separação de poderes percebese fornece um excelente modo retórico para aqueles que se preocupam com a inépcia do governo popular Públio tem a coragem e o íato de que acreditou poder ousálo muito revela sobre sua audiência de pedir aos muitos que selecionassem como seus governantes homens que são supe riores a eles em sabedoria e virtude Todo povo deveria arregimentar como governan tes homens que possuem a maior sabedoria para discernir e mais virtude para procu rar o bem comum A separação de poderes fornece a Públio um quadro dentro do qual pressionar o povo na busca da sabedoria e da virtude em seus governantes Públio 600 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 37 Federalist 10 p 59 38 Federalist 57 p 370 pode apresentar o executivo e o judiciário e o Senado como portadores por assim dizer de uma lista de especificações do cargo qualidades que são necessárias para o de sempenho das funções e que se aproximam da sabedoria e da virtude É politicamente mais fácil e mais eficaz pedir ao povo que selecione o homem certo para a tarefe desig nada em particular um povo com o caráter comercial da América Mais dispostos a votar em homens superiores quando a superioridade é apresentada sob a forma de especificações do cargo o povo também é instruído sobre como escolher os melhores homens as especificações do cargo fornecemlhes uma espécie de lisu de verificação simples para guiar a escolha para homens melhores ao invés de homens piores Públio mostra como a separação de poderes os freios e contrapesos legislativos e inúmeros refinamentos práticos destes possibilitam pela primeira vez um sõlido regi me popular um sistema de governo popular que será menos opressor e mais sábio na arte de governar do que qualquer outro antes Porém é necessário admitir agora que essa conquista depende totalmente do último item na ciência de Públio a ampliação da õrbita republicana A separação de poderes é um aprimoramento do princípio representativo Não teria liar em uma democracia pura A separação garante contra esse acúmulo de todos os poderes legislativo executivo e judiciário nas mesmas mãos seja de um alguns ou muitos e seja hereditário autonomeado ou eleito os quais poderiam com justiça ser declarados a exata definição da tirania Contudo uma democracia pura pela definição de Públio é exatamente o acúmulo de todos os poderes nas mãos de muitos Por conseguinte é sõ em uma democracia representativa que os governantes podem ser separados em departamentos distintos Porém assim como não basta ter uma democracia representativa da mesma maneira não basta sequer ter representantes devidamente separados Deve ser lembrado que Públio afirmou que as pequenas e antigas democracias não poderiam ter sido auxiliadas por nenhuma forma de gover no representativo era letal a ausência das vantens de um extenso território e uma população numerosa O princípio representativo destinase a produzir governantes ca pazes de governar o povo melhor do que o povo pode governar a si mesmo diretamen te Entretanto nas pequenas repúblicas os governantes representativos encontramse tão de perto sob o escrutínio e a influência de uma maioria popular compacta que os representantes não constituem presença independente no regime mas apenas as ferramentas da maioria Por conseguinte o princípio representativo é inútil em uma pequena república Tampouco é a separação de poderes capaz de salvar a pequena república Ali a influência imediata de maiorias populares suficiente para intimidar um corpo representativo único também é suficiente para fezer de departamentos se parados meros isentes da vontade popular Somente quando há uma distância entre o povo e seu governo haverá essa diferença entre a autoridade suprema do povo e a T h e F e d e r a u s t 6 0 1 39 FedemUst 11 p 62 40 FedendistAj p 313 41 Ver também o Federalist 10 p 59 onde Públio observa que o efeito da representação pode ser invertido autoridade imediata de seus representantes que é a condição decisiva para as vanta gens fornecidas tanto pelo princípio da representação como pela separação de poderes Nem mesmo nas grandes repúblicas os estados mas apenas em uma república muito grande a união funcionará o princípio representativo e seu corolário a separação de poderes para o aperfeiçoamento dos sistemas populares de govemo civil O princípio representativo reforçado pela separação de poderes se destina a negar a autoridade do governo às maiorias populares opressoras após estas se terem formado No entanto Públio tinha consciência de que isso não era suficiente nem mesmo nas grandes repúblicas Se a maioria passa a ter a mesma paixão ou interesse opressores e os mantém por um período de apenas quatro a seis anos encontrará os meios para triunfar sobre a separação de poderes sobre os freios e contrapesos sobre o procedimento não tão difícil das emendas e sobre todos os mecanismos da Constitui ção Estes dispositivos foram projetados e poderiam ter sido concebidos apenas para resistir à vontade da maioria Não se trata de minimizar a importância das barreiras legais enorme é sua eficácia em moderar a força que Públio temia No entanto essa eficácia depende de um prévio enfraquecimento da força aplicada contra eles após a maioria ter sido desviada de seu esquema de opressão É por isso que Públio chama o problema da maioria popular em si de o problema do governo popular Desta forma Públio procura resolver o problema do regime opressor e insensato dos sistemas populares por meio da tentativa de lidar com a maioria popular em si Mais uma vez tudo depende da nova concepção de uma república muito grande e como veremos de um certo tipo de república muito grande O problema é debatido no famoso décimo ensaio sobre o problema da violência da facção Públio não está preocupado com o problema da facção em geral dedica apenas duas frases em todo o ensaio para os perigos de facções minoritárias O verdadeiro pro blema no governo popular é a fíicção majoritária ou mais exatamente a facção majo ritária ou seja a grande massa dos pequenos proprietários e dos sem propriedades Se o povo é o soberano os muitos são o soberano e os muitos podem desejar oprimir os poucos é dos muitos portanto de quem pode vir o maior dano Públio enfatiza um dano em particular aquele que resulta da luta entre ricos e pobres e que fez das de mocracias da antiguidade espetáculos de turbulência e contenção de curta duração O problema para o amigo do governo popular é como evitar a convulsão interna que ocorre quando os ricos e os pobres os poucos e os muitos como é seu costume atiramse às gargantas uns dos outros Sempre nos antigos governos populares os muitos armados com o poder político precipitaram tais convulsões Os muitos po dem ser desviados desse curso natural afirma Públio por um de dois únicos meios Ou se evita a ocorrência simultânea das mesmas paixões ou interesses na maioria ou esta maioria possuindo tais paixões e interesses concomitantes tem de ser tornada incapaz por seu número e situação local de tramar e executar esquemas de opressão 602 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 42 Federalist 10 p 58 Contudo bem sabemos que não podemos confiar nem nos motivos morais nem nos religiosos como meio de controle se tal maioria se íbrmar e conjiar sua ação A circunstância principalmente que irá proporcionar ambas as defesas contra as maiorias opressoras é o maior número de cidadãos e a extensão de território que pode ser compreendido dentro do âmbito de grandes governos republicanos Quanto menor a sociedade menor será o número de partidos e interesses distintos que a compõem quanto menos partidos e interesses distintos mais frequentemente se cons tituirá uma maioria do mesmo partido e quanto menor o número de indivíduos que compõem a maioria e menor o âmbito dentro do qual estão colocados mais fecilmente entrarão em acordo e executarão seus planos de opressão Ampliese essa área e teremos uma variedade maior de partidos e interesses tornase menos provável que uma maioria do todo possua um motivo comum para usurpar os direitos de outros cidadãos ou se tal motivo comum existe será mais difícil para todos que o sentirem descobrir suas próprias forças e agir em uníssono Em uma pequena república os pobres muitos percebemse como um único in teresse organizado contra o interesse único dos poucos ricos e consequentemente a política da pequena república é a política fetal da luta de classes Isso é o que importa aqui em relação à pequenez Na pequena república os muitos são distribuídos em apenas alguns negócios e profissões ainda mais podese sierir a pequenez do país torna instantaneamente visível para qualquer pessoa que estas poucas diferenças entre os muitos são triviais em comparação com a enorme diferença entre todos os pobres e todos os ricos Em uma pequena república as divisões entre os muitos são insuficientes para impedilos de conceber a sua condição em comum e unirse na luta fetal contra o inimigo comum Em uma grande república no entanto suigem distinções entre os muitos numerosas o bastante para causar cisões que impedem a formação e oiganiza ção de tais maiorias No entanto está claro o tamanho em si não é tão decisivo pode haver grandes países em que os pobres são indiferenciados pobres só de certas manei ras Apenas um certo tipo de grande república afesta a perspectiva do tipo certo de ci são Públio informanos onde isso ocorre O elenco de interesses corretamente divisivo emerge de necessidade nas nações civilizadas e divideas em diferentes classes movidas por diferentes sentimentos e pontos de vista Surpreendentemente tal como em Adam Smith nações civilizadas significa grandes nações dedicadas à vida comercial As di mensões da grande república oferecem um remédio para a doença republicana apenas se a grande república for também uma moderna república comercial O remédio republicano de Públio depende inteiramente de consuir o tipo cer to de cisões políticas Ora Públio percebe mais de uma fonte de divisão por exemplo conta claramente com a presença de uma multiplicidade de seitas religiosas En tretanto sabese bem que costuma enfetizar principalmente o aspecto econômico A T h e F e d e r a l is t 6 0 3 43 Ibidp606 44 Federalist5p33934Q posse de diferentes graus e tipos de propriedade influencia os sentimentos e pontos de vista dos respectivos proprietários e produz a divisão da sociedade em diferentes interesses e partidos Embora outras causas de divisão não devam ser negligenciadas a fonte mais comum e durável das íacções tem sido a diversa e desigual distribuição da propriedade grifo nosso É importante observar que em ambas as declarações Públio distingue dois tipos de divisões que resultam da propriedade os homens dife rem de acordo com a quantidade de bens que possuem mas também de acordo com o tipo de propriedade que possuem A diferença entre ricos e pobres de acordo com a quantidade de bens é a base da fetal luta de classes nas pequenas repúblicas No entanto Públio enxerga na república comercial de grande porte a possibilidade de pela primeira vez subordinar a diferença quanto à quantidade de propriedades à diferença quanto ao tipo de propriedades Em tal república a luta de classes até agora fetal é substituída pela luta segura até mesmo salutar entre os diferentes tipos de interesses de proprietários Em tal república um homem julgará como mais importante para si mesmo aumentar as vantagens imediatas de seu negócio especializado ou de sua profissão especializada dentro de um negócio do que fevorecer a causa geral dos pobres ou dos ricos A luta entre os vários interesses obscurece a diferença entre os poucos e os muitos Em parti cular o interesse dos muitos em si pode ser fragmentado em diversos interesses mais estreitos mais limitados cada um buscando uma vantagem imediata Em tal república e com tais cidadãos tornase menos provável que a maioria do todo terá um motivo comum para invadir os direitos dos outros cidadãos Em tal república as maiorias po pulares ainda governarão mas agora entre a grande variedade de interesses partidos e seitas que abrange uma coalizão da maioria de toda a sociedade raramente poderá ocorrer com bases em princípios que não sejam os da justiça e do bem geral Públio está ciente do que está por trás de seus novos ensinamentos sobre a gran de república comercial Sua doutrina se move em direções que a transportam para longe dessas preocupações manifestamente políticas das quais tratamos aqui Públio vê assim como Adam Smith a conexão entre uma área de comércio muito grande e a possibilidade da divisão do trabalho a qual por sua vez é tão intimamente ligada à multiplicidade salvadora da facção É por isso que Públio tão desesperadamente procura preservar tornar muitíssimo mais íntima e fortalecer a união Públio também sabe que a sua solução para o problema das maiorias populares exige que o país seja proíundamente democrático isto é que todos os homens sejam igualmente livres e igualmente incentivados a procurar seu ganho imediato e se associar com outros du rante esse processo Não deve haver barreiras rígidas que proíbam os homens de buscar seus interesses imediatos Na verdade são em particular os humildes de quem tanto se deve temer que devem sentirse menos barrados das oportunidades e mais otimis tas sobre suas chances Além disso sua solução exige um país que alcança o sucesso comercial um país rico Ou seja os ganhos limitados e imediatos devem ser reais os interesses fragmentados devem esporadicamente obter ganhos reais ou o esquema 604 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 45 Ibid p 341 deixa de seduzir ou serenar Além disso as leis e especialmente a lei fundamental deve ter em vista a proteção das propriedades de todos dos pequenos proprietários para que possam apegarse a seu pouco como sua preocupação fundamental e dos grandes proprietários de forma que sua propriedade pareça estar fora do alcance da inveja A lei fundamental deve também dificultar em particular aqueles atos opressores mais prováveis tal como os estados interferirem com o valor do dinheiro ou prejudicar a obrigação de contratos E Públio está ciente de que seu esquema envolve uma enorme confiança na inces sante luta por ganhos privados imediatos a vida comercial deve tornarse honrosa e ser praticada universalmente Públio conta com uma porção de patriotismo e sabedoria nas pessoas e em particular em seus governantes representativos No entanto é exata mente em sua discussão da separação de poderes esse dispositivo para garantir gover nantes esclarecidos que retorna à sua ênfiise primordial Embora possam ser esclareci dos é primordialmente suas paixões e interesses privados que os tornam úteis para o público Naquela que seria talvez a sentença mais notável e reveladora do livro Públio fida dessa política de sanar com interesses opostos e rivais a ausência de motivos me lhores que pode ser identificada ao longo de todo o sistema das relações humanas tanto públicas como privadas Compreender bem o modo como Públio entende a ausência de motivos melhores e como procura compensar este defeito pela íundação de um regime em que a arte de governar é feita comensurável com a capacidade dos homens quando suas paixões e interesses estão corretamente organizados é entender a contribuição de Públio para a nova ciência da política e compreender a república americana em cuja estruturação participou de modo tão relevante L e it u r a s A The FedemUst 1 6 9 1 0 1 4 1 5 2 3 3 7 3 9 4 7 516368 70 72 7 8 B The FedemUst Todos os demais números T h e F e d e r a u s t 603 46 Ibid p 337 T homas Paine A 17371809 Thomas Paine foi um panfleteiro brilhante em uma época que dava livre curso a seus talentos Nascido e criado na Inglaterra passou a maior parte de sua vida nos Estados Unidos e na França onde tomou parte ativa através de suas publicações nas grandes revoluções que varreram esses países no final do século XVIII Foi por sua força como propagandista a despeito de sua fraqueza como pensador que Paine percebeu o homem e a sociedade inteiramente em preto e branco sem tons de cinza As revoluções de sua época constituíam para ele batalhas entre o bem e o mal absolutos Produto típico do Iluminismo concebia o passado como um reinado de qua se ininterrupta ignorância superstição e tirania No entanto considerava um privilégio viver em um momento de despertar da razão quando a vontade e o bom senso inatos do homem médio começavam a firmarse e logo viriam a transformar todas as coisas Havia fundamento para a confiança de Paine todas as grandes leis da sociedade são leis da natureza A razão humana acreditava uma vez livre das imposturas da tradição política e dos absurdos da religião revelada teria facilidade em apreender as leis naturais da sociedade e do governo À medida que se difundisse o conhecimento racional os governos inevitavelmente se reconstituiriam com base em princípios na turais Então todos os grandes problemas sociais poderiam ser resolvidos sem grandes dificuldades Havia no pensamento Paine mais que vestígios do que fora chamado de futurismo redentor ou messianismo político uma fé semelhante à das cruzadas de que uma revolução na ordem social e política arrancaria as sementes do mal no homem e criaria uma nova humanidade sem pecado A época atual afirmou mere cerá doravante ser denominada a Idade da Razão e a atual geração semelhará para o futuro o Adão de um novo mundo Na concepção de Paine o problema da vida social era em essência o de fun damentar o governo em princípios corretos Felizmente tratavase de um problema 1 The Complete Writings f Thomas Paine ed Philip S Foner 2 v New York Citadel Press 1945 I 359 2 Tbid I 449 simples Náo obstante o mistério no qual se envolveu a ciência do governo com o objetivo de escravizar saquear e imporse sobre a humanidade é esta de todas as coisas a menos misteriosa e mais fócil de ser compreendida Em relação ao governo basta que os homens pensem e jamais agirão errado nem se deixarão enganar A filosofia política subjacente a Paine era a doutrina da harmonia natural dos interesses individuais A sociedade afirmava é produzida por nossos desejos e o governo por nossa maldade O homem é equipado pela Natureza para a sociedade porque nenhum homem é capaz de suprir suas próprias necessidades sem a ajuda da sociedade Essas necessidades e suas emoções sociais naturais impulsionam o homem à sociedade De fóto o homem é tão naturalmente uma criatura da sociedade que é quase impossível retirálo dela Portanto o princípio que constitui e mantém a sociedade é o interesse comum Em grande parte o interesse comum é suficiente para os íins da vida social Em contrapartida o governo tem um papel mínimo a desempenhar porque a sociedade realiza para si mesma quase tudo o que é atribuído ao governo Tudo o que o governo precisa fazer é suprir os poucos casos em que a sociedade e a civilização não são con venientemente competentes O progresso social portanto vai na direção de cada vez menos governo Quanto mais perfeita a civilização menos oportunidade tem para o governo porque mais regula seus próprios assuntos e governa a si própria O governo tal como constituído até agora tem sido a causa geradora ao con trário do remédio para a desordem social a pobreza e a guerra A solução para o pro blema do governo no entanto nâo é a sua abolição uma ideia que aparentemente Paine jamais contemplou mas a sua reconstituição dentro dos princípios corretos pela simples operação de construção do governo sobre os princípios da sociedade e dos direitos do homem toda dificuldade se vai A soma e substância da filosofia política e a única coisa que traz benefícios saber é esta O governo nada mais é que uma associação nacional que atua dentro dos princípios da sociedade Quais são então os princípios da sociedade Como já foi dito Todas as grandes leis da sociedade são leis da natureza São seguidas e obedecidas porque é do inte resse das partes fazêlo A íiinção do governo é permitir que os homens sigam seus próprios interesses Todo homem pretende exercer sua profissão e gozar os frutos de seu trabalho e os produtos de suas propriedades em paz e segurança e com a menor despesa possível Quando essas coisas sáo realizadas são atendidos todos os objetivos T h o m a s Pa in e 607 3 Ibid II 571 4 Ibid I 353 5 Ibid p 4 6 Ibid p 358 7 Ibid p 357358 8 Ibid p 359361 itálicos no original 9 Ibid p 359 pelos quais o governo deveria ser estabelecido Em suma a segurança do homem na busca de seus próprios interesses é o verdadeiro projeto e fim do governo Essa segurança é também um direito do homem A teoria da sociedade e do governo de Paine é elaborada inteiramente em termos de direitos Paine fala de deve res também mas estes consistem em garantir aos outros os mesmos direitos que se reivindica para si mesmo Todos os homens merecem igual proteção porque vêm ao mundo igualmente dotados de direitos Estes direitos sáo os únicos princípios sobre os quais pode ser construída uma ordem política justa e legítima Esta teoria de que Paine foi um insigne defensor embora de modo algum seu autor forneceu munição intelectual para o grande movimento revolucionário do século XVTII Os direitos do homem incluem tanto direitos naturais como civis Em The Rights ofMan Os direitos do homem Paine explica a distinção entre eles nestes termos Os direitos naturais são aqueles que pertencem ao homem no direito de sua existência Deste tipo são todos os direitos de propriedade intelectual ou direitos da mente e tam bém todos os direitos de agir como um indivíduo para seu próprio conforto e felicidade que não são prejudiciais aos direitos naturais dos outros Direitos civis são aqueles que pertencem ao homem em virtude de ser ele um membro da sodedade Todos os direitos civis têm como base um direito natural preexistente do indivíduo mas para o gozo do qual seu poder individual não é em todos os casos suficientemente competente Deste tipo são todos aqueles que se relacionam com a segurança e a proteção Ou seja existem direitos naturais nos quais o poder de executar é tão perfeito no indivíduo quanto o próprio direito Por exemplo a religião é um desses direitos No exercício destes direitos o indivíduo é autossuficiente e não precisa do governo Mas há outros direitos igualmente naturais em que embora o direito seja perfeito no indivíduo é defeituoso o poder de executálos Esses direitos o homem deposita nas reservas comuns da sociedade Ou seja abre mão da execução pessoal de alguns de seus direitos naturais e os troca por direitos civis de modo que sociedade pode protegêlo mais efetivamente no exercício de seus direitos O poder civil é portanto uma espécie de capital conjunto consistindo do agre gado daquela classe de direitos naturais do homem que se torna defeituosa no indiví duo em posição de poder Os homens agregam seu direito de serem juizes em causa própria e estabelecem um governo para exercer um julgamento entre suas reivindi cações conflitantes No entanto o poder de governo é apenas o poder conjunto dos indivíduos e não pode ser utilizado para violar os direitos naturais que guardam para si mesmos Pois os direitos naturais são os direitos com que Deus dotou o homem como homem na criação são consequentemente invioláveis e imprescritíveis 10 Ibid p 088 11 Ibid p 175 12 Ibid p 276 13 Ibid 608 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Como é óbvio Paine pertencia à escola do pacto social no pensamento político Entretanto náo aceitava um pacto entre o povo e seus governantes Admitia apenas um ato contratual pelo qual os próprios indivíduos cada um em seu próprio di reito pessoal e soberano entraram em um pacto um com o outro para produzir um governo e esta é a única modalidade em que os governos têm o direito de suipr e o único princípio de acordo com o qual têm o direito de existir Esse pacto não cria um governo soberano mas uma comunidade ou nação soberana O título de rei não basra para fezer de um homem o soberano A soberania como uma questão de direi to pertence à nação somente e não a qualquer indivíduo e em todos os momentos uma nação tem o direito inerente irrevogável de abolir qualquer forma de governo que julgue inconveniente e estabelecer aquele que esteja de acordo com seus interesses temperamento e felicidade O governo nunca é mais do que um agente do povo que constitui a nação e a única soberania que Paine reconhece é a soberania popular Assim como sâo impres critíveis os direitos naturais do indivíduo assim também é imprescritível a soberania inerente da nação Nenhuma pretensão de autoridade por parte dos detentores do poder fez frente ao direito do povo de priválos do poder e alterar a forma de governo Paine não demonstrou uma genuína compreensão da doutrina da prescrição no gover no tal como explanada por Edmund Burke mas não deixou qualquer dúvida acerca da veemência com que a rejeitava Todas as formas de governo pelo menos em grandes Estados onde seria impos sível a democracia direta poderiam ser classificadas em duas categorias governo por eleição e representação e governo por sucessão hereditária O governo hereditário inclui a monarquia e a aristocracia ou a combinação dos dois que prevaleceu em quase toda a Europa durante o século XVIII A opinião de Paine pode ser expressa de forma sucinta Todo governo hereditário é por natureza tirania Era impossível afirmou Paine que os governos hereditários tais como o que existiram até então pudessem ter principiado por qualquer outro a não ser uma viola ção total de todos os princípios sagrados e morais Não só a origem mas toda a his tória desses governos era um monstruoso registro de crimes Sua finalidade principal era o saque chamado pelo nome mais brando de tributação e um de seus principais meios de aumentar os impostos era travarem contínuas guerras Uma vez que eram sistemas de exploração para se manterem precisavam depender da fraude da trapaça e da ignorância induzida A monarquia advertiu Paine é o papado do governo uma coisa mantida para divertir os ignorantes e amansálos para psarem impostos T h o m a s Pa in e 6 0 9 14 Ibid p 278 itálicos no original 15 Ibidpò4 16 Ibid p 364 17 Ibid p 361 18 Ibid p 375 Porém os crimes de governos monárquicos e aristocráticos náo constituíam sua íàlha radical Ao contrário era esta ser o governo hereditário por definição escravi dão uma vez que privava a nação de seu direito inerente e imprescritível de se governar por meio de seus representantes escolhidos A conclusão de Paine é de que não há problema mais verdadeiro matematicamente em Euclides a não ser que o governo hereditário não tem direito de existir O governo representativo por outro lado é a única forma legítima de governo porque só ele se fundamenta no direito inerente da nação de se governar Contudo uma vez que a nação é uma coleção de indivíduos originalmente independentes que entraram em contrato entre si para formar um governo o direito supremo sobre qual o governo se fundamenta é o direito natural de cada homem governar a si mesmo Paine tirou a conclusão lógica deste princípio e se opôs ao estabelecimento das qualificações de propriedade para o direito de votar nos representantes Eliminar esse direito afirmou é reduzir o homem à escravidão pois a escravidão consiste em estar sujeito à vontade de outro e aquele que não tem direito a voto na eleição de representantes pertence a esse caso Deve ser atribuída representação a todos com base no princípio de um homem um voto Dessa forma os direitos de todos estariam igualmente pro tegidos e essa afinal é a finalidade maior do governo Desde que fossem respeitados os iguais direitos de todos os cidadãos à repre sentação Paine pronunciavase indiferente quanto à forma específica que assumiria a Constituição O governo funcionaria com base no princípio do governo da maioria é claro O legislativo como órgão representativo eleito seria supremo O executivo termo este que Paine não apreciava não teria nenhuma íúnção além de administrar as leis feitas pelo povo por meio de seus representantes decerto nâo íiría como uma força independente no Estado Porém a melhor maneira de construir e combinar os diversos órgãos do governo era uma questão de opinião e de qualquer modo estaria sujeita a revisão à luz da experiência O essencial seria um governo republicano com base em uma representação gran de e igual Sob tal governo os homens se governariam em seu próprio interesse Assim não haveria queixas sobre os altos impostos pois somente seriam cobrados os impostos que satisfizessem à razão da nação Tampouco uma república desperdiçaria seu tesouro em guerras porque seu governo não teria interesses diversos dos interesses da nação O próprio povo da nação não estaria disposto a guerrear O homem não é o inimigo do homem a não ser por meio de um falso sistema de governo Desta forma o ver dadeiro sistema de governo agiria de modo a reduzir ou abolir os dois principais males sociais a guerra e a pobreza causada por tributação e exploração excessivas A esperança de Paine era de que as guerras pudessem ser abolidas ou pelo menos drasticamente reduzidas como um aparato das relaçóes internacionais Se a Inglaterra 19 Ibid 11 572 20 Ibid p 579 21 Ibid 1343 6 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y aceitasse os princípios da Revolução Francesa as duas naçóes juntas poderiam refor mar o resto da Europa Seria entáo razoável ter esperança de um fim para as causas das guerras Quando todos os governos da Europa estiverem firmes no sistema repre sentativo as nações se reconhecerão e cessarão as animosidades e preconceitos fomen tados pelas intrigas e artifícios das cortes As frotas inglesa francesa e holandesa combinadas seriam capazes de impor um desarmamento naval geral e de reduzir as marinhas para talvez um décimo de sua força atual Uma aliança desses três poderes à qual os Estados Unidos de bom grado se juntariam também poderia forçar o fim do domínio espanhol na América do Sul e dar fim à pirataria algeriana O outro grande mal social contra o qual vociferou Paine era a pobreza pela qual culpava a alta tributação e outras políticas injustas da monarquia e da aristocracia Filho da classe pobre ele mesmo Paine nutria um ódio sincero e apaixonado pela po breza que via em torno de si na Europa Esse ódio levouo a propor um programa de governo forte e positivo para a abolição da pobreza Paine tinha como premissa que se o governo fosse conduzido sem extravagâncias civis ou militares como seria em uma república representativa haveria um grande exce dente decorrente da tributação às taxas vigentes ou mesmo reduzidas Parte deste excedente poderia ser eliminada por meio da abolição das taxas para os pobres ou seja o imposto sobre as femílias para auxílio aos pobres O resto do excedente poderia ser usado para impedir a pobreza que necessitava de auxílio Isso seria realizado pela concessão aos pobres do que hoje seriam chamados de subsídios para o casamento a maternidade e os funerais abonos família pensões para idosos e uma forma rudi mentar de auxílio desemprego Acompanharia este plano de previdência um imposto progressivo sobre os rendimentos das propriedades projetados para induzir as fiunílias a subdividirem as propriedades territoriais em lugar de mantêlas intactas por meio da lei de primogenitura Seria também criado um fundo nacional através de um imposto sobre as heranças com o qual todos os jovens ao chegarem à idade de 21 anos rece beriam um modesto capital para iniciálos na vida Não é necessário acusar Paine de ser incoerente com seus princípios fundamen tais ao formular essas propostas O governo de acordo com seus princípios existe apenas para proter os direitos individuais No entanto se for enfiitizada a igualdade de direitos a serem protidos então se segue que o governo tem uma função positiva a exercer Ainda assim é extraordinário que Paine que proclamou que o governo não era necessário além de suprir os poucos casos em que a sociedade e a civilização não são convenientemente competentes quase que no mesmo fôlego se revelasse como um profeta do moderno Estado do bemestar É claro Paine não foi o primeiro ou o último a simultaneamente minimizar e maximizar a função do governo Por trás dessas teorias está em geral a doutrina da har monia natural de interesses e de uma vontade soberana popular única que encarna e T h o m a s Pa in e 611 22 Ibid p 449 manifesta essa harmonia Muito terá a fazer o governo até que seja executada a vontade popular por sobre a oposiçáo dos ímpios e dos ignorantes depois disso porém a so ciedade em grande parte se autogovernará Como disse Paine as revoluções americana e francesa mostraram que as maiores forças que podem ser trazidas para o campo das revoluções são a razão e o interesse comum Onde estas têm oportunidade de atuar a oposição morre de medo ou desmoronam por convicção Em outras palavras o go verno democrático quando é verdadeiramente democrático e completamente sensível à vontade do povo de fato não é governo L e it u r a s A Paine Thomas Rights ofMan Direitos do homem B Paine Thomas Common Sense Senso comum Paine Ihomas Agntrian justice Qustiça agrária Paine Thomas Dissertation on First Principies ofCovemment Dissertação sohre os primeiros princí pios do governo 612 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o u t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 23 Ibid p 446 E dmund B urke 17291797 Durante quase toda a sua vida adulta Burke atuou como político por quase 30 anos foi membro da Câmara dos Comuns ocupandose dos assuntos cotidianos de seu partido na gestão de homens e demais questões Seus discursos panfletos e livros explo ram os grandes temas da íilosoíia política mas não por esses temas em si Burke não se dirigia primordialmente a outros íilósofos políticos e não construiu um sistema ou teoria na íilosoíia política Visava os governantes e os mais instruídos de seu tempo apoiando a causa dos Cavalheiros como lhe disse certa vez o rei Geoi III Essa proximidade com a política atraiu para Burke a atenção dos historiadores e conservadores de nossos dias os primeiros em geral com reprovação e os últimos com aprovação Devido a seu engajamento Burke examinava as questões públicas com agudeza quase incomparável Entre os observadores da política moderna só Tocqueville e tal vez Churchill sejam seus rivais na percepção dos acontecimentos Como Tocqueville e ao contrário de Churchill Burke não desfrutava da visão de governante que propor ciona um cargo de comando Seu cargo mais elevado foi Paymaster General Tesoureiro Geral um secretariado sem brilho Embora o mais hábil em seu partido destacado nos debates e influente a ponto de ser indispensável na gestão de seus assuntos nunca procurou e nunca lhe foi confiada uma liderança Na verdade não gozava da confiança dos principais estadistas de seu tempo devido à própria energia que usou em seu favor à ânsia de entrar em ação contra perigos dos quais só ele percebia a total amplitude e à paixão exibida na maravilhosa retórica que tanto admiravam Muito a admirar e nada com o que concordar foi o íámoso julgamento sumário de Pitt acerca das mais longas invectivas de Burke em íàvor da contrarrevolução contrária à Revolução Francesa E quando em 1788 parecia que o partido de Burke poderia recuperar Este capítulo foi publicado em forma ligeiramente diversa como introdução a Selected Letters o f Edmund Burke ed Harvey C Mansiield Jr Chicago University of Chiado Press 1984 1984 by The University of Chiado The Corrtspondence o f Edmund Burke ed Ihomas W Copeland 10 v C h io University of C h ic Press 195878 V I239 IbidVlh 335n seus assentos durante a regência de George III que enlouquecera Charles Fox e seus confidentes omitiram dele uma lista de titulares de cargos de liderança Burke era por demais inflamado no conselho por demais veemente em sua perseguição de Warren Hastings para que lhes parecesse responsável Em nossos dias os historiadores em particular os influenciados por Sir Lewis Na mier um mestre da investigação minuciosa assumiram essa desconfiança e atribmTam a Burke e não a seus contemporâneos a responsabilidade por ela Julgamno pretensioso seu comportamento extremo e suas palavras exeradas Se por um lado Burke falou da tolice no indivíduo e da sabedoria na espécie consideram Burke tolo em sua própria época sábio apenas para a posteridade Pois enxergar em profundidade as raízes dos acontecimentos intuir a causa dos descontentamentos do presente não pode deixar de parecer um tipo de inflação na medida em que as ocorrências diárias são vistas como uma tendência e percebidas como efeitos As tentativas de Burke para dar sentido ao trivial parecem íàzer com que perca seu caráter trivial e ao passo que os historiadores podem julgar emocionante sua eloqüência também a avaliam perigosa e desconfiam dele Até mesmo o seu entendimento premonitório da natuteza importância e futuro da Revolução Francesa é obscurecido pelo extremo partidarismo a que esta compreensão o obrigou Perdeu o crédito por sua presciência porque agiu inspirado nela Todavia Burke era um homem notável porque era um pensador notável Não se pode limitar seu mérito à sua retórica e resumir suas realizações como literárias en quanto se afesta a maior parte de seu pensamento como controverso ou constrangedor Suas palavras não soam ocas os voos de sua imaginação não são abstrações vazias Sua maravilhosa habilidade literária não nos isenta de leválo a sério ou de levar a sério seu pensamento como filosofia política Embora nunca tenha escrito um tratado de filosofia política há razões mais que suficientes em sua própria filosofia política para que não o tenha feito Em um tratado o pensamento de Burke teria perdido a essência de seu raciocínio e seu estilo era adequado à sua essência Não conheceríamos Burke se não fosse por seus discursos e escritos e não os conheceríamos se fosse bombástica a essência de seu pensamento Se os leitores estão dispostos a dar uma oportunidade à filosofia política de Burke ou à possibilidade dela como enfrentar a tarefa Hoje Burke é conhecido como o filósofo do conservadorismo No entanto ainda não é grande sua partici pação no recente ressurgimento do conservadorismo americano Das duas escolas de pensamento que têm sido identificadas com esse ressurgimento o tradicionalismo e o libertarianismo Burke aliase mais com a primeira Apesar de ter apoiado a liberação do comércio sempre que possível ter oferecido sua obra Thoughts and Details on Scar city Pensamentos e detalhes sobre a escassez 1795 como contribuição para a nova escola de economia política e ser amigo e admirador de Adam Smith de tal forma se opunha à liberdade individual sem entraves aos sistemas teóricos de autointeresse e à influência da nova propriedade que cercou e envolveu a economia abstrata livre dos economistas políticos com as tradições da constituição britânica Porém é claro que essas tradições estabelecimentos como as chamava Burke estão longe de serem 6 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o u t ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y as disposições da Constimiçáo americana e como veremos estáo ainda mais distantes do caráter previsto para a Constimiçáo americana Tais sáo os obstáculos à influência de Burke na política americana hoje No íinal da década de 1940 no entanto Burke foi descoberto pelo conservadorismo norteamericano como o proponente de uma teoria da lei natural Foi resgatado para se opor à irreligiáo ao do relativismo dos libe rais c para fornecer aos conservadores uma teoria que admite a vantagem política ou necessidade da religião e a influência das circunstâncias sobre a moralidade mas que todavia ratificava a lei natural a vontade de Deus como autoridade para os homens As freqüentes referências de Burke à lei natural anteriormente ignoradas ou dispensa das como retórica foram reunidas em um sistema que poderia ser descrito como um tomismo conservador modernizado O que quer que se pense do sucesso deste sistema é surpreendente ter sido Burke transformado no provedor de uma teoria necessária para uma política saudável Se há um tema recorrente nas cartas discursos e escritos de Burke tratase de sua êníàse so bre os males morais e políticos que decorrem da intrusão da teoria na prática política É a teoria como tal que Burke rejeita sua ênfase nos males da teoria intrusiva não é equilibrada por uma compensatória confiança na sólida teoria de que os homens necessitariam como um guia para sua política Uma teoria sólida para ele parece ser uma teoria autocontraditória Embora Burke possa cm algumas ocasióes referirse aos simulados filósofos da hora assim implicando a existência de um outro tipo em geral contcntase em denunciar filósofos metaflsicos e especuladores em si sem espe cificar aquela que poderia ser a vital distinção entre eles Em uma passagem famosa de A Letter to a Member ofthe National Assembly Carta a um membro da Assembleia Na cional 1791 ataca Rousseau o filósofis da vaidade um amante de sua espécie mas um inimigo de seus semelhantes II535541 em termos que nenhum filósofo jamais usara contra outro até que um declínio do decoro neste aspecto ocorreu no século XDC Na carta Burke distingue filósofos modernos que expressam tudo o que é ignóbil selvíem c desumano dos escritores de sólida antiguidade a quem os ingleses continuam a ler de modo mais geral acredita do que se fiiz jora no con tinente No entanto Burke não propóe nem remotamente que sejam adotados os autores antigos como guias para apontar o caminho para sair da crise que os filósofos modernos trouxeram para toda a humanidade Sua leitura não é tanto a causa como o efeito do bom gosto inglês algo que lamentavelmente fiJta no continente Se considerarmos a hostilidade de Burke à intrusão da filosofia na poUtica mas todavia nos lembrarmos também que este não apenas se desespera com a crescente influência da filosofia o problema de sua filosofia política parece ser a concepção de uma teoria que nunca se intrometa na prática Nossa pergunta ao avaliála é pode a teoria servir apenas como um cão de guarda contra a teoria mas nunca ser necessária como guia E d m u n d B u r k e 615 4 The Works ofEdmund Burke 8 v Bohns British Classics London Bohn 185489 I I 430 Todas as citações são desta edição 5 Ver também Works I 50 1 e Correspondence V 337 Desde o início estiveram sob a mira de Burke os danos causados à prática pela sólida teoria Sua primeira publicação A Vindication of Natural Society Uma defesa da sociedade natural 1756 é uma sátira que mostra as absurdas conseqüências políticas da teoria de Bolingbroke e nos panfletos iniciais sobre o partido Observations on a Late Publication Intituled The Present State ofthe Nation Observações sobre uma publicação tardia intitulada O presente estado da nação 1769 e Thoughts on the Cause ofthe Present Discontents Reflexões sobre a causa dos presentes descontentamentos 1770 argumentou contra os efeitos deletérios de uma preferência teórica por homens de capacidade e virtude ao contrário de partidos compostos por senhores indo juntos publicamente em confiança mútua Em seus discursos contrários à política britânica na América atacou a insistência do governo sobre os direitos de tributação e soberania sem levar em conta conseqüências ou circunstâncias como uma dependência especulativa e legalista da virtude do governo de papel Pois os advogados com a sua inquietação acerca de direitos e formas não se preocupam com o efetivo exercício das formalidades substituem a política prudente pela correção legal e procuram a generalização na forma da lei que é também a da teoria I 431 453476 II 7 Em um discurso proferido em 1785 Burke já denunciava os especuladores de nossa era especulativa III 139 En tretanto foi na Revolução Francesa que os males da especulação na política tornaramse visíveis em toda sua extensão e como um todo Burke foi surpreendido pela eclosão da revolução mas fora preparado pelas grandes preocupações de sua carreira política ante rior para identiíicála como uma revolução filosófica a primeira revolução completa uma revolução em sentimentos modos e opiniões morais que atingiu até mesmo a constituição da mente humana II352 III350 V 76 III A Revolução Francesa exibia e resumia todos os males da política especulativa Esses males tal como Burke os entende podem ser brevemente resumidos Pri meiro os revolucionários franceses chegaram ao extremo de destruir o antigo regime e de derrotar qualquer reforma moderada que náo incluísse a destruição porque como os teóricos ou inspirados pelos teóricos baseavam seu raciocínio no caso extremo A universalidade de sua teoria da revolução foi alcançada pela generalização a partir do caso extremo onde a revolução pode ser inevitável No decorrer da generalização açóes limitadas realizadas com grande circunspecção e compunçâo no caso extremo são no caso universal transformadas em destruição desenfreada e irresponsável A alardeada humanidade dos revolucionários é afetada de igual modo Sendo uma especial preocu pação em melhorar os seres humanos diluise em uma profissão humanitária em prol do povo francês e da humanidade que exige um sacrifício cruel das emoções naturais Uma vez que no caso extremo podese ou devese ser egoísta nenhum argumento universal pode ser sustentado quer seja em favor da autocontençáo ou em favor de ajudar os outros assim a moral defeituosa caminha junto com os corações insensíveis Este humanitarismo empurra os homens para o nível de bestialidade ao mesmo tem po em que perversamente alega libertálos e até mesmo enobrecêlos Em segundo lugar os teóricos erroneamente supõem que a política é previsí vel Tendo exposto as finalidades do governo em termos universais acreditam que os 6 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y meios para esses fins podem ser expressos em regras igualmente universais a náo ser que afastem totalmente a questão dos meios Entretanto os meios são determinados pelas circunstâncias que são infinitas e infinitamente combinadas variáveis e pas sageiras Quem não as tomar em consideração será metafisicamente louco V 114 As circunstâncias por sua vez são determinadas pelo acaso e o acaso sempre traz no vas situações I 312 365 153154 V 257 Uma vez que os fins universais são sempre refratados por novas e imprevisíveis circunstâncias conclui Burke Nada universal se pode afirmar de modo racional sobre qualquer assunto moral ou político III 16 Em terceiro a teoria é simples uma vez que o caso extremo e universal com o qual se preocupa é também o caso simples não complicado por acidentes e confusões A prática no entanto em particular a prática política é complexa Defirontase com reivindicações rivais de simples justiça para com as quais deve fàzer concessões e com reivindicações a exceções para com as quais deve transigir E se por um lado a teoria é simples por outro é refinada Vai além da experiência comum na sua tentativa de excluir tudo o que for acidental No entanto as pessoas comuns não conseguem ver além da experiência comum e desconfiarão daqueles que exploram os labirintos da teoria política III 106 políticas refinadas que dependem da colaboração de pes soas comuns fiacassarão como resultado de sua perplexidade Além disso os homens teõricos em si não se apegam ao que quer que seja seu quando se voltam para si mesmos veem somente seu próprio caso que é apenas um caso entre tantos outros É por isso que a especulação no sentido teórico está ligada à especulação no sentido de jogos de azar a especulação teórica é o jogo inconsciente com os próprios riscos II 463 Contudo os homens práticos em si são ligados a tudo o que é seu sua lealdade é pressuposta por sua responsabilidade Não podem ir sem favorecerem um grupo que não escolheram e não podem escolher todas as suas escolhas são feitas em um contexto que lhes é imposto pelas circunstâncias ou providência Nenhum homem examina os defeitos de seus direitos à fiizenda paterna ou a seu governo estabelecido II 26 428 Porém a neutralidade dos especuladores é em seu efeito político um desejo de que tudo transcorra à sua maneira Não admitem sua própria parcialidade de maneira que não admitem a de qualquer outra pessoa Em seguida as questões teóricas são atemporais e reversíveis as questões práticas devem ser decididas aqui e agora e não podem ser revertidas Homens políticos são vinculados por perigos iminentes que não permitem um discurso longo pertencente ao lazer de um homem contemplativo I 323 II 552 Finalmente a atividade dos especuladores é em essência privada não se preocupa com a opinião comum nem se quer a critica porém a política se apoia na opinião e deve respeitála Muito embora a opinião seja denominada preconceito ou superstição Burke não hesita em defendêla O preconceito contém sabedoria latente que tem pronta aplicação em situação de emergência deve ser tolerada a superstição caso contrário as mentes fracas serão pri vadas de um recurso considerado necessário para os mais fortes II 359 429430 Ao desenvolver os males da política especulativa ou metafísica Burke não se preocupa em discriminar a boa especulação da má ou em explicitar tal diferença de E d m u n d B u r k e 617 modo inconfundível para seus leitores Parece misturar as falhas da teoria em que se baseou a Revolução Francesa a teoria dos direitos do homem enunciada por Hobbes Locke e Rousseau com os defeitos necessários a toda teoria dos quais os teóricos anteriores podem ter tido conhecimento Burke menciona as objeções de Aristóteles à moralidade geométrica e várias vezes pede o auxílio de Aristóteles mas náo utiliza as investigações fundamentais do filósofo acerca da namreza da teoria e da prática Exceto quanto ao ataque a Rousseau que mencionamos Burke náo considera as fontes teóricas da doutrina dos direitos do homem até mesmo seu ataque a Rousseau não constimía uma reflexão teórica mas se restringiu especificamente ao emprego de teorias de Rous seau pelos revolucionários franceses II 541 Em suma Burke não oferece esclareci mentos teóricos ou uma reconstrução que fosse ao encontro dos revolucionários em seu próprio terreno Em vez disso na medida do possível tenta manterse firme e coníinar se à esfera da prática política Seus escritos que propõem açóes são muito mais ricos em sabedoria política assim aparentando serem mais teóricos do que os de estadistas comuns mesmo em retrospecto todavia sáo também muito mais circunscritos e cir cunstanciais do que os tratados que se destinam aos interesses dos teóricos desta forma são excessivos para historiadores insuficientes para íilósofos Burke afirmou certa vez A execução de perigosos e ilusórios princípios fundamentais obriganos a recorrer aos ver dadeiros V213 com o que admitia a necessidade de tal recurso em contraste com os estadistas comuns e assumia sua relutância contrariando os hábitos dos teóricos Todavia os verdadeiros princípios fundamentais a que recorre Burke não apa rentam ser princípios fundamentais Ao contrário de fornecer esclarecimentos teóri cos Burke afirma que a condução dos assuntos humanos pertence à prudência e em lugar de determinar qual poderia ser o melhor estado ou o estado legítimo celebra o espírito da constituição britânica A íilosoíia política de Burke emerge da elaboração desses dois aspectos a prudência e a constituição britânica Podem náo ser os prin cípios primeiros os princípios fundamentais mas são certamente os princípios que Burke propõe para chamar nossa atenção antes de todos os outros A prudência afirma Burke é o deus deste mundo inferior já que tem com pleto domínio sobre todo o exercício de poder entregue em suas mãos II 28 A pru dência é a primeira de todas as virtudes bem como o guia supremo de todas elas Isso significa em particular que a sabedoria prática com justiça substitui a ciência teórica sempre que há disputa entre as duas II 306 A razão para a soberania da prudência está no poder das circunstâncias de alterar todas as regularidades e princí pios As circunstâncias que para alguns cavalheiros de nada valem concedem na realidade a todos os princípios políticos sua cor única e seu efeito discriminatório Burke enfatiza que a prudência de que fala é uma prudência moral ou uma prudên cia pública e ampliada em oposição à prudência egoísta sem mencionar a esperteza 618 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 6 Works I 501 ver também II 396 454455 V 342 VI 251 Correspondence IV 36 7 WrfcVII 161verIII 16 8 Works II 282 ver I 497 ou astúcia No entanto Burke não vai além omitindo uma explicação de como ter certeza da moralidade da prudência Se a prudência é suprema que deve reinar sobre a moralidade mas se a prudência pode ser moral ou egoísta pareceria exigir a tutela da moralidade Aristóteles ao enfrentar este problema foi levado a compreender a pru dência como uma arte legislativa abrangente e em seguida a subordinála à teoria Burke propóe uma solução diversa Ao invés de dar seguimento a um inquérito sobre os primeiros princípios ou finalidades da prudência o que necessariamente iria além da prudência distingue dentro da prudência entre regras de prudência disponíveis para os estadistas comuns e a prudência de uma de ordem superior II 284 III 16 V 236 As regras da prudência náo são matemáticas universais ou ideais todavia náo deixam de ser regras como diz Burke com grandiosidade formada a partir da marcha conhecida da providência ordinária de Deus isto é visível na experiência humana Porém como essas regras sáo soberanas sobre todos os direitos teóricos ou primeiros princípios metafiísicos assim a prudência superior a prudência da prudência pode sustar as regras da prudência quando necessário III 81 Essa distinção no âmbito da prudência por meio da qual Burke tenta assegurar a moralidade da prudência sem subverter a sua soberania corresponde a uma distinção que fiiz entre a virtude e a virtude presuntiva real Não há qualificação para o governo além da virtude e da sabedoria real ou presuntiva II323 A virtude e a sabedoria pre suntivas são a virtude menor a virtude provável que pode ser presumida em cavalheiros de boa educação e de íamíiias proeminentes nascidos em situaçóes de eminência onde estão habituados ao autorrespeito à inspeção censória dos oUios do público a assumir uma visão ampla das infinitamente extensas e diíúndidas combinaçóes de homens e seus assuntos em uma grande sociedade a ter lazer para refletir a encontrar os sábios e instruídos bem como os comerciantes ricos ao comando militar às precauçóes de um instrutor de seus concidadãos e assim a agir como um reconciliador entre Deus e o homem e a ser utilizado como um Emente da lei e da justiça III 8586 A virtude real talvez como a do próprio Burke é mais elevada porém mais duvidosa deve inter vir quando fiJham as regras da prudência mas não deve governar normalmente para que a sociedade são seja vítima da instabilidade dos homens hábeis A ideia de virtude presuntiva pressupóe habilidade não a mais elevada mas a suficiente em condiçóes normais nos homens de posses ao mesmo tempo pressupóe ao menos a instabilida de e às vezes a imoralidade daqueles que nada têm a não ser habilidade e ao invés de terem nascido e sido criados em uma situação elevada devem alçarse à eminência por meios que podem não ser moniis e não devem ser exemplEues Nenhum país pode rejei tar os serviços daqueles que possuem a virtude real mas o caminho para a eminência e o poder a partir da situação obscura não deve ser por demais fecilitado II 323 Quando se íàz a estrada íàcil demais são demais os que a percorrem e os homens de virtude real são incentivados a mostrar sua habilidade ao contrário de sua virtude e são expulsos por homens novos que têm apenas astúcia e nenhuma propriedade como E d m u n d B u r k e 619 Works I I 29 56 V 218 Cf Aristóteles Ética a Nicômaco 61 144 637 aconteceu na Revolução Francesa A virtude real portanto deve ser normalmente man tida em subordinação à virtude presuntiva sendolhe permitido após a devida compro vação o direito de intervenção em caso de emergência tal como a Revolução Francesa quando os homens de virtude presuntiva são confrontados por um acontecimento tão surpreendente que não sabem como reagir Assim resolve Burke o problema da prudência dentro da prudência mantém a prudência moral distinta da mera astúcia todavia mantém sua soberania sobre os teó ricos astutos exceto quanto a intervenções pontuais pela maior prudência No entanto para que sustentem esta solução devem ser verdadeiras é claro as presunçóes da virtu de presuntiva São presunçóes legítimas que tomadas como generalidades devem ser admitidas como verdades reais III 86 Contudo isso não é suficiente a verdade real deve estar por trás do que é admitido como verdade real Em sua análise apreciativa para nâo dizer reverente da constituição britânica Burke demonstra serem palpáveis esses pressupostos A constituição britânica assegura tanto a soberania como a morali dade da prudência ao sustentar os pressupostos necessários para repelir as reivindicações subordinadas de maior virtude A teoria dessa constituição ou nessa constituição é a teoria que permite que a prudência permaneça soberana sobre a teoria Burke não fbi o primeiro a rir dos filósofos modernos Ele mesmo se refere aos eru ditos acadêmicos de Laputa e Balnibarbi encontrado nas páginas de GuUivers Traveis As Viens de Guiliver de Swift II 404 Mas quando Sviift ridicularizou os idealizadores políticos cujas invenções tinham laivos da mesma extensão inadequada da teoria para a prática descrita por Burke Swift não principiou em seguida a alaidear as belezas da constituição britânica Pelo contrário transpunha sua sátira para este solo st d o Den tre os filósofos políticos modernos Montesquieu é a mais óbvia inspiração de Burke no louvor da constituição britânica como modelo de liberdade a admiração de Montesquieu por essa constituição é citada por Burke em uma passem de fechamento de An Appeal from the New to the Old Whigs Um apelo dos novos para o antigos Whi 1791 III 113 Contudo Montesquieu não era tão hostil à teoria quanto Burke e acreditava que a prudência precisaria da orientação da teoria para fiigir da simplicidade equivocada da moderna soberania da ambição desumana da religião e do fascínio da antiga virtude Tocqueville compartilhava da opinião de Burke sobre a influência dos teóricos na Revolução Francesa mas os dois divergiam de um modo que irá ajudar a introduzir os pensamentos de Burke a respeito da constituição britânica O tema de Tocqueville em relação à Revolução Francesa era a democracia e demonstrou como a influência de homens de letras e phihsophes alimentou a paixão pela igualdade que caracterizou a Revolução O tema de Burke era a intrusão dos metafísicos uma de cujas conse qüências foi um nivelamento democrático que perverte a ordem natural das coisas II 322 Todavia enquanto Burke não acreditava que a democracia estivesse de acor do com a natureza e por conseguinte devesse ser atribuída a uma deturpação pelos teóricos Tocqueville acreditava que as reivindicações democráticas eram pelo menos em parte naturais para os homens por conseguinte sempre disponíveis para serem endossadas pelos teóricos Essa diferença transparece em julgamentos totalmente con 620 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y trários aos constítuintes franceses em 1789 Burke os descreve como esses fazedores de constituição os mais cruéis e mais tolos dos homens e os condena por tentar em vão criar uma constituição completamente nova Tocqueville elogiaos por esta mesma tcnutiva apesar de seu fracasso Elaborar uma constituição ou fundar uma sociedade era para a ciência política clássica e ainda mais para pensadores modernos como Maquiavel Bacon Hobbes e Locke o cerne da questão política o local onde se encontravam a teoria e a prática Nesse ponto a prudência soberana sobie a prática não pode ficar satisfeita com trocas e arranjos temporários mas deve estenderse a uma legislação que incorpore escolhas fundamentais e abraientes Tal legislação por sua vez deve ser guiada por uma arte em última instância por uma teoria que elabora o modelo para a escolha que é o melhor regime o regime mais digno de escolha Quando a prudência se torna abrangente e íáz as suas determinações para o bem e um bem que seja permanente então deve cooperar com a teoria e talvez até mesmo suboidinarse a ela É a caraaerística dominante da íilosoíia política de Burke assim como o tema norteador de sua política evitar o terreno em que convergem a teoria e a prática A fundação que antes de Burke íbra considera da por todos os pensadores políticos como o ato político essencial é pata de um não evento A elaboração de uma constítuição nunca pode ser o efeito de uma rqlação instantânea única II 554 Não pode acontecer e é errado tentar fezêlo acontecer Em completo desacordo com Tocqueville Burke não considera a democracia um rime possível O povo não pode governar pois é o demento passivo em con traste com os homens ativos no Estado Embora o povo possa ser dirigido por uma oligarquia cruel de algum tipo deve ser conduzido por uma verdadeira aristocracia natural por ministros que não são apenas os nossos governantes namrais mas os nossos guias naturais III 85 V 227 Assim para Burke não se pode escolher entre democracia e aristocracia nem pode haver uma era democrática ou aristocrática tal como para Tocqueville a natureza fez com que os muitos fossem incapazes de gover nar a si mesmos Uma democracia perfeita é a coisa mais vergonhosa do mundo II 365 porque a parcela de responsabilidade de cada um é tão íníima que a pessoa não a percebe e porque a opinião pública que deveria conter o governo é no caso da democracia nada além da autoaprovação do povo O governo responsável é capaz de vergonha talvez mais do que qualquer outra coisa tratase mais de defender o que se teve de fózer do que aceitar crédito pelo que se decidiu fózer Nenhuma aristocracia nem sequer uma democracia pode governar bem ou por longo tempo sem a percepção de um poder superior a feita dessa percepção é o que torna impossível a democracia bem como lhe retira a vergonha Apenas em um sentido atenuado portanto é natural qualquer governo humano até mesmo uma verdadeira aristocracia uma espécie de autogoverno O governo está tão distante de ser uma questão de escolha de escolher uma forma de governo que é um poder fora de nós mesmos II 333 E d m u n d B u r k e 6 2 1 10 Works V 3 17 Alexis de Tocqueville UAncien Rígme et la Révolution 2 v ed J P Mayer Paris Gallimaid 1952 1 72 88193201247 Fundamentalmente o governo nâo é governar é mudar reformar equilibrar ou ajustar O governo não se alimenta como pensava Aristóteles por reivindicações para governar estabelecidas por democratas e oligarcas na defesa e exagero de sua igual dade e desigualdade para com os demais O povo não tem a pretensão de governar por conta própria somente quando inflamado por alguns é que acredita que deseja governar os aristocratas não importa se naturais nascem e são criados para sua eminência que aceitam em lugar de demandar Na medida em que Burke é favorável ao sentido aristotélico de governo o governo pela escolha arte e ciência política humanas não se lança na teocracia e agarra o direito divino a fim de manter os governos sob controle pela vergonha Para certificarse de que o governo tem uma origem humana Burke adota a linguagem do contrato dos teóricos modernos Porém uma vez que o governo por contrato pode pa recer calculado se não escolhido por conveniência de fato uma questão de vontade ou prazer arbitrários não de julgamento Burke salienta as grandes diferenças entre os contratos comuns retomados por um pequeno interesse temporário e o contrato so cial que estabelece o estado O último contrato é uma parceria de toda a ciência uma parceria de toda a arte uma parceria de todas as virtudes e de toda a perfeição II 368 E é um contrato celebrado entre os vivos os mortos e aqueles ainda por nascer isto é não se trata de um contrato que esteja nas mãos da presente geração mas que é depositado em confiança para o passado e o futuro O passado e o futuro podese di zer substituem a lei divina para garantir que os presentes governos governem com um sentimento de vergonha Isso não significa mais uma vez que os governos presentes assumam a responsabilidade pelo governo a partir de princípios estabelecidos por seus fundadores Os mortos não são fundadores os quais são sócios passivos que deram sua opinião e agora apresentam sua perspectiva por tácita reprovação II 177178 V I21 Assim para Burke os direitos do homem não incluem o direito de governar II 332 O direito de governar seria o direito de alterar o governo quer dizer a seu belprazer mas o direito de alterar o governo a seu belprazer destrói o governo Os governantes devem aceitar as limitaçóes a seu governo mas sem submeterse a um governo sobre humano Para isso devem para o bem das geraçóes futuras aceitar a autoridade do passado sem se submeter ao governo dos fundadores A única maneira de fazer isso entendia Burke seria atenuar o significado de governo e fazer a geração presente igual à passada como é necessário a um contrato Burke elogia ao máximo a constituição britânica mas nunca seus fundadores Os antigos whi a quem apela contra os novos whi favoráveis à Revolução Francesa deram um bom exemplo mas não definiram os princípios que os novos whi devem seguir Fizeram uma revolução em 1688 apenas em extrema necessidade decorrente de circunstâncias únicas II292299 por isso sua conduta Burke ignora a teoria de John Locke que poderia interpretar essa conduta não implica muito menos expressa um princípio da revolução disponível para uso um século depois Para Burke a essência da moral é a moderação não a escolha Grande 622 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Works III 5466 ver I 375 II 293 VI153 parte das mais fortes obrigações morais são tais que nunca foram os resultados da nossa opção É por esse motivo que a moral deve ser entendida tal como em um contrato que não pode ser infringido sem o consentimento de todas as partes ao contrário de uma fundação ou revolução onde vêm à luz os princípios de escolha A frmdação de uma constituição depende de sua forma A forma de uma consti tuição deve ser capaz de prewJecer sobre seu material e suas circunstâncias que decer to mudarão ao longo do tempo incoiporando os íins peculiares àquela constituição e deixando esses íins visíveis para seus cidadãos ou súditos Por conseguinte certas vezes se obsen na ciência política clássica governos existentes classificados por sua fbrma e governos imaginários moldados pelo aperfeiçoamento das formas de governos existentes até um ponto onde a ciência política quase se esquece do material variado da política Para Burke no entanto as circunstâncias e os hábitos de cada país decidem a forma de seu governo Quando mudam as circunstâncias mudam as formas Um Estado sem meios para alguma mudança não tem os meios para sua conservação II295 Não é uma forma fixa mas exatamente o contrário um princípio de crescimento que pre serva os estados Formas constitucionais são suplantadas por reformas opormnas feitas de cabeça fria depois que o povo percebe uma injustiça mas antes que se imitem e se tais reformas devem ser sóbrias devem ser deixadas incompletas Sempre que melho ramos é corteto deixar espaço para melhorar ainda mais II 65 Assim até mesmo a melhor constituição tem um princípio de crescimento este é o seu único princípio go vernante um poder tal como o que alguns filósofbs denominaram natureza plástica Embora Burke teça elogios à antiga constituição da GrãBretanha acredita visionário supor que a sua antiga forma possa ter sido a mesma que possui hoje VI 294 a cons tituição é antiga hoje na medida em que perdurou por constantes ajustes não porque as suas formas permaneçam como eram nos tempos antigos Assim sendo Burke afirma que os costumes são mais importantes do que as leis V 208 As leis que são decisões formais por parte dos governos porque foram feitas de acordo com as suas formas dependem de costumes informais e não o contrário Em todas as formas de governo portanto o povo é o verdadeiro legislador já que o povo estabelece seus costumes O povo é o mestre nós os estadistas afirma Burke damos forma perfeita a seus desejos II 12 1122 VI 20 Uma vez que o povo é o verdadeiro legislador não alguma parte do povo que promove e impõe seus próprios fins a melhor constituição não tem nem um fim único nem uma hierarquia de fins mas a maior variedade de fins V 254 Garantir nossos direitos naturais é o grande propósito e fim último da sociedade civil portanto toda e qualquer forma de governo é boa somente enquanto for subserviente a esse propósito ao qual estão in teiramente subordinados V I29 A finalidade da sociedade civil é garantir os direitos naturais que exercemos diversamente na maior variedade de fins Como a melhor E d m u n d B u r k e 623 12 Works III7678 Cf Aristóteles Ética a Nicômaco 21 1106 3611071 13 Works III 36 ver II 313 14 Works I I 440 ver Geoige Berkeley Alciphron I I I 14 constituição é definida por direitos exercidos diversamente não pode ser encontrada no rico tesouro dos férteis elaboradores de comunidades imaginárias 1489 a cons tituição britânica é aqui e agora A constituição britânica náo é perfeita por exemplo náo é feita para a guerra ofensiva tal como é necessária contra o estado revolucionário francês V 423425 mas se fosse perfeita não admitiria um princípio de crescimento e então não seria melhor Posto que a constituição britânica não tem uma forma duradoura a ordem que estabelece não é visível em sua forma como era visível a ordem do regime clássico de acordo com Aristóteles Portanto a constituição britânica não possui um tipo de ordem democrática ou oligárquica correspondente a uma das várias formas das constituições ao contrário a ordem que possui não é de tipo particular porque suas partes têm variedade e diversidade As partes representam interesses que se combinam ou se opõem uns aos outros naquela ação e reação que no mundo natural e no mundo político da luta recíproca entre poderes discordantes extrai a harmonia do universo A discórdia nâo gera contradição social naquela estranha expressão mar xista tão familiar a nós hoje que eleva a sociedade aos padrões da lógica mas produz uma harmonia que deve muito mais à experiência de conviver em liberdade do que a pensar da mesma forma ou possuir alguns princípios comuns II 554 Essa ordem é complexa na verdade podese dizer que consiste em complicação em nunca direta mente afirmar ou negar qualquer reivindicação de justiça que exigiria um determinado ordenamento da sociedade Estas alegações devem encontrar um meiotermo mas nâo por encontrar um princípio que preserve o que é verdadeiro em cada afirmaçáo como no regime clássico misto Um termo comum mais seguro mais verdadeiro resultará de transformar reivindicações de direito em questões de conveniência de modo que toda a organização do governo tornese uma questão de conveniência Uma declaração como esta certamente rescende a utilitarismo e na medida em que Burke dá prioridade ao que é conveniente no sentido do real útil e eficaz acima do que é formalmente correto podese dizer que inspirou o utilitarismo uma doutrina do século XIX que limitou noçáo de conveniência de Burke e a explorou para atacar a constituição britânica que este tanto amava bem como o governo de cavalheiros que acreditava necessário Em conformidade com o crescimento das constituições a con veniência para Burke não se refere ao que é realmente ou naturalmente adequado mas sim com típico eufemismo britânico ao que nâo é inconveniente Deste modo assim como a organização total do governo deve ser descrita como uma questão de conveniência podese dizer também que equilibra inconveniências I 500 Burke adota essa noção maquiavélica de que todo o bem humano tem a in conveniência que o acompanha e que portanto todas as coisas humanas estão em movimento mas náo concorda que este movimento precise ser violento nem aceita 624 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a s L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 15 Aristótdes Política 3 12743839127656 16 Works II 308309 ver III 25 17 Works II 333 ver I I I 109 VI 22 18 Maquiavel Discursos sobre os primeiros dez livros de Tito Lívio I 6 o cálculo de conveniência que Maquiavel e os utilitaristas recomendam Embora as constituições devam evoluir são aíastadas por seus estabelecimentos da mera fluidez e das mudanças violentas Os estabelecimentos da constituição britânica no pen samento de Burke desempenham o papel das formas e formalidades constitucionais que tanto despreza Fornecem estabilidade e segurança diminuindo e direcionando o fluxo de paixões e ideias à medida que gradativamente se estabelecem nessa tarefe tal como a nossa instituição estabelecimento é um substantivo verbal cuja substância é apreendida a partir de seu processo Tal como o femiliar uso da expressão o Estabe lecimento íÃe Establishment de hoje os estabelecimentos de Burke referemse a classes sociais informais mas diferem por serem plurais e visíveis aos olhos do público Os estabelecimentos de Burke não são uma conspiração unida para diminuir e reduzir a nada os direitos formais de um povo ao contrário são as proeminências sociais que resultam do exercício real e necessariamente desigual desses direitos a Igreja o inte resse dos endinheirados a nobreza latiíundiária os militares até mesmo a monarquia II 106 363 434 Essas instituições estão tão longe de subverter a liberdade que são os únicos meios para garantila Burke contrasta o crescimento dos estabelecimentos na GrãBretanha ao longo dos séculos uma obra não de ajuste irracional mas que requer o auxílio de mais mentes do que uma geração pode fornecer em que mente deve benignamente conspirar com mente com os produtos dos legisladores apres sados da Revolução Francesa que começam sua tarefe com a ciência demolindo os antigos estabelecimentos e reduzindo o povo francês a uma massa homogênea II 439440455 e terminam com a força bruta substituindo os antigos estabelecimen tos por novas repúblicas matematicamente delineadas que prometem anarquia mas são sustentadas na verdade pela especulação sobre a riqueza confiscada pelo poder de Paris e pelo exército Considerando que os estabelecimentos mantêm a constituição britânica estável e equilibrada com uma excelência na composição que fez um todo coerente dos variados interesses de uma sociedade livre pois não impõe um plano II 440 os princípios que cimentam a República Francesa são instrumentos e evidência de tirania porque não podem se unir sem revelar um viés Burke cita os elogios de Montesquieu aos grandes legisladores da Antiguidade cuja sabedoria os impedia de lidar com os homens como se fossem entidades abstratas metafísicas II 45445 5 mas não infere da necessidade que tem o legislador de consultar o material humano real como fizeram Platão e Aristóteles que nenhuma constituição real pode ser um todo coerente que todas devem ser partidárias A constituição equilibrada pelos estabelecimentos é mantida pelo princípio da propriedade isto é da propriedade herdada Cada um dos estabelecimentos é uma propriedade e Burke deixa claro mesmo no exemplo da Igreja cuja elevada finalidade é consirar a comunidade e para alçar as vontades dos homens acima de egoísmo que o ataque dos revolucionários franceses era uma usurpação da propriedade II 132 Tais bens em eminência social sobrevivem e crescem não pelo motivo que justificou sua aquisição original mas pelos benefícios que podem ser discernidos em seu fímcio namento presente benefícios muitas vezes perceptíveis apenas pelo olho da sabedoria E d m u n d B u r k e 625 e da ecperiência já que as aparências enganam e as formas de livre governo sáo com patíveis com os íins do governo arbitrário e viceversa I 313 II 397 399 Portanto devemos venerar onde náo somos capazes de compreender agora III 114 devemos considerar a constituição como uma herança o que signiíica para repetir não herda da dos fundadores mas como se viesse a nós sem início algum Burke ilustra a ideia de herança com uma analogia filosófica Nosso sistema político explica funcionando segundo o padrão da natureza está em uma justa correspondência e simetria com a ordem do mundo Denomina a isso um órgão permanente composto de partes transitórias e o compara com a totalidade da raça humana que em qualquer momento dado nunca é velha ou de meiaidade ou jo vem mas é sempre a mesma enquanto atravessa a decadência a queda a ascensão e o progresso II 307 Nesta analogia a constituição é comparada a um corpo a raça humana que é um todo e náo tem forma Não é assemelhada a um corpo humano individual com uma forma como a concebiam determinados pensadores medievais A analogia de Burke é genérica e não orgânica de tal forma que podemos conceber que herdamos nossa constituição tal como herdamos a nossa natureza humana sem possi bilidade de rejeição Podemos e devemos aceitar as nossas oportunidades e limitações sem tentar encontrar a origem ou a finalidade do todo Burke assenta sua política em uma noçáo de propriedade e náo o contrário mas consegue manter sua política livre do espírito de aquisição de fato consegue mantêlo direcionado contra esse espírito O que significa dizer que a ideia de herança funciona pelo método da natureza Burke afirmou que é complexa a natureza do homem II 307 334 e sua maneira de compreender a relação entre a natureza e as instituições humanas é especialmente di fícil para nós hoje que expulsamos a natureza do discurso teórico digno de respeito Todavia atacou os revolucionários franceses por nada além de sua conduta não natu ral e se precisamos apreender o pensamento de Burke não podemos permanecer na ignorância do significado de seu ataque à Revolução Francesa A herança pelo método da natureza náo significa que herdamos da natureza nossa política e constituições Embora tenhamos um senso natural de certo e errado Burke não diz à maneira tomista que temos tendências naturais em nossas almas que são cumpridas na política a alma não é um de seus temas Tampouco afirma como Aristóteles que o homem é um animal político por namreza de tal forma que os nossos artificios políticos seriam a realização de uma potencialidade natural Afirma ao contrário que o homem é por sua constimição natural um animal religioso II 363 uma vez que o ateísmo é con tra nossos instintos e nossa razâo Somos impulsionados ao que parece ao reconheci mento de uma vontade superior a fim de evitar a dependência de nossa própria vontade arbitrária um reconhecimento que é um instinto humano para o bem humano Não é que busquemos conhecer a Deus como declarou Tomás de Aquino Quando Burke atacou a Revolução Francesa por violentar nossa namreza quis dizer que esta para 626 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Works II 354 ver I I 155 III 92 20 Ver Works II 484 III 86 nosso próprio bem ignora ou se opõe aos instintos que possuímos o afeto natural para com nossas íamílias c bairros pelo pequeno pelotão juntamente com o freio sobre tais afeições que são nosso senso de justiça e nossa religião II320 3474 10 V 255 Não herdamos da natureza mas herdamos os produtos do íàzer humano de acor do com as leis da natureza Os direitos naturais aos quais Burke depreciativamente chama de direitos metafísicos não vêm a nós diretamente mas como os raios dc luz que penetram em um meio denso são pelas leis da natureza refratados de sua linha reta II 334 Seguindo a pista dada por esta observação íàmosa poderíamos dizer que para Burke as leis da natureza são leis da refração São leis que descrevem as maneiras pelas quais os homens criando suas próprias convenções constituições ou propriedades imitam ou seguem a natureza tal como a natureza conduz a si mesma sem referência aos seres humanos Por exemplo como vimos os homens ao elaborar constituições imitam a natureza na busca de harmonia por meio do embate entre seus poderes discordantes e pela permanência através da ascensão e queda de suas partes transitórias A arte é a natureza do homem diz Burke III 86 repreendendo os íilósofos modernos que colocam o estado de natureza fora da sociedade civil A arte não a escolha é a dádiva especial da natureza para os seres humanos mas a dádiva não é empregada de forma a preservar a excepcionalidade humana Toda a sociedade é artificial porém todos os artifícios estão de acordo com a lei natural o dom da arte deve ser devolAÚdo à natureza Perguntase se a prudência não é afinal soberana para Burke se deve agir sob a disciplina da natureza O governo soberano da prudência é também um governo para a prudência É a prescrição esta grande parte íundamental do direito natural II 422 que descreve o crescimento da propriedade e das constituições e estabelece o método de herança Curiosamente antes dc Burke a prescrição nunca foi considerada parte inequívoca do direito natural pois não se pensava que fosse aplicável ao direito público Burke tomou este conceito emprestado do direito romano em que a prescrição dá direito à propriedade sem escritura devido ao longo uso contínuo ou a retira apesar da escritu ra após um longo e continuado desuso Esta regra do direito privado foi transformada por Burke em uma regra do direito público aplicável às constituições não apenas às leis das nações Assim uma regra de propriedade privada se torna a regra para o governo o mais sólido de todos os direitos não só à propriedade mas que significa garantir esta propriedade o direito ao governo um direito que não é a criatura mas o mestre do direito positivo as regras sradas da prescrição Se o problema da E d m u n d B u r k e 627 21 Wrfe III87 ver 1345 I I 369 V I21 22 O apelo de Burke à autoridade de Jean Domar Works I I 422 ignora a recusa de Domat em apli car a prescrição à propriedade pública Jean Domat La bis ãvila dans leur ordrt natureU III vii 5 Uma antecipação mais próxima de Burke pode ser encontrada em David Hume A Treatise of Human Nature III li 310 ver também William Paley Principia of Moral and Political Phibsop 1785 V I2 23 Works V 137 VI 80 146 ver I I 493 para a declaração de Burke acerca do argumento dos revolu cionários contra a prescrição intrusão da teoria na prática é o tema da íilosoíia política de Burke a prescrição é sua descoberta especial e é preciso dizer já que não aceitava a palavra inovação sua grande reforma V 120 Tratavase apenas de uma descrição do funcionamento da constituição britânica alegava mas como teoria era certamente nova De fato Burke teve como dizia uma participação muito plena na aprovação do Nullum TempusAct de 1769 por meio do qual tentou estabelecer a prescrição como direito público na GrãBretanha Foi com orgulho que Burke fez tal alegação em sua magnífica autodefe sa contra o Duque de Bedford A Letter to a Noble Lord Carta a um nobre lorde mas não alardeou da mesma forma a reforma teórica que justificava a novidade jurídica que ia contra a autoridade do Blackstone Tampouco comentou que a prescrição se tornou direito público em 1769 não por meio da prescrição mas por estatuto O fato de que não apenas o direito mas o direito mais concreto à propriedade deriva do uso prolongado ao invés de uma escritura implica que o governo que emite escrituras é compelido por práticas que vêm de longa data e não por princípios A propriedade por prescrição implica um governo sem uma teoria fundamental a melhor reivindicação para o governo não decorre de se estabelecer a própria reivindicação como a melhor mas por garantir o abandono de reivindicações rivais Todavia era necessária uma teo ria para demonstrar isso e mesmo tendo Burke de usar de toda cautela para apresentá la muito embora sua teoria se encaixasse perfeitamente aos fàtos não se pode negar que sua teoria interfere na prudência de estadistas A prescrição segue a natureza mas a aperfeiçoa A mudança pondera Burke é a lei mais poderosa da natureza Tudo o que podemos fezer e que a sabedoria humana pode fezer é precaverse para que a mudança ocorra por etapas imperceptíveis A na tureza por si mesma pode produzir grandes e rápidas mudanças mas tais mudanças se imitadas em processos humanos provocariam um tenebroso e taciturno desconten tamento naqueles repentinamente despojados de influência e por outro lado insufla ria com uma grande rajada de novo poder III 340 aqueles que por longo tempo sofreram no desalento Deve haver mudanças mas os homens devem tomar cuidado para que ocorram em etapas imperceptíveis A mudança imperceptível pode ser uma mudança jurídica porque não questiona as leis ou a constituição estabelecidas Ou pode legalizar a mudança abranda tornando legais governos que eram violentos em seu início II 435 Concordando com Maquiavel como foi dito anteriormente que todas as coisas humanas estão em movimento Burke nega que o movimento precise ser violento ou revolucionário Por este motivo o direito prescritivo não é o mesmo que direito histórico ou tradicional A prescrição avalia seu posicionamento a partir do uso corrente a menos que as propriedades ou o governo tenham sido há pouco usurpados Opóese às reivindicações históricas que derrubariam o poder estabelecido e é cética em relação à pesquisa histórica que a confirmaria VI 414 Assim para Burke a prescrição é uma importante parte fundamental do direito natural Não chega a afirmar que é a parte fundamental e não especifica o conteúdo 628 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 24 Works V 137 Blackstone Commentaries on the Laws o f England II 263264 completo da lei natural da mesma forma que teóricos mais afeitos à teoria tal como Tomás de Aquino ou Hobbes Burke contentase com a lei natural ser entendida co mo uma lei superior à legislação humana não exige que a lei humana seja vista como uma aplicação do direito natural No debate entre Cícero e Hobbes acerca da questão se os homens têm o direito de elaborar as leis que desejarem Burke fica ao lado de Cícero em negar que o íaçam Acrescenta portanto que todas as leis humanas pro priamente ditas são apenas declaratórias podem alterar a modalidade e a aplicação mas não têm poder sobre a substância da justiça original VI 2122 No entanto uma vez que Burke levou a prescrição para dentro da própria lei natural e pouco acrescentou que estabelecesse a substância da justiça original parece com efeito que a modalidade e a aplicação e mais do que a substância a lei natural é que deve orientar a prática Tratase a lei natural mais de um meio do que de um fim porque a pres crição para excluir a mudança violenta e abrangente impede que os fins da política apareçam na política sem refração pelos materiais e circunstâncias A prescrição é a prudência cristalizada na teoria Como tal é um censor para o restante da lei natural de modo que a lei natural pode enunciar com sua própria voz apenas o princípio de uma lei superior VI 21 VII 99100 504 A liberdade humana está tão longe de se opor ao princípio de uma vontade superior que não pode sobreviver sem ela Embora a sociedade seja o produto de um contrato entre os homens os homens não podem vi ver livres se têm liberdade de celebrar um novo contrato a cada geração Cada geração deve considerar suas liberdades como uma herança inalienável II 306 como sua propriedade exatamente porque essas liberdades não foram criadas por ela Podese aventurar a concluir que no centro da filosofia política de Burke está a constitui ção britânica não a lei natural A lei natural é a base mas apenas porque uma consti tuição criada por acidentes precisa de um fundamento Por mais extraordinária que seja a constituição britânica não constitui para Burke o estado racional Porém o fundamento para a constituição deve ser invisível e imperceptível sob pena de trans tornar a constituição que nele se sustenta Seria possível objetar aqui que estamos esquecendo as leis do comércio que Burke em uma passagem de Thoughts and Details on Scarcity Pensamentos e detalhes sobre a escassez 1795 certa vez igualou para o desgosto de Karl Marx com as leis da natureza e consequentemente com as leis de Deus As leis do comércio ao que parece promovem demasiados novos empreendimentos para que possam ser explica das pelo princípio da prescrição 207 V 217 256 É este o caso exceto na medida em que a prescrição acolhe e justifica a iniciativa privada sem concessão ou alvará do governo Contudo os bens móveis dos comerciantes jimtamente com as habilidades ativas que os criam poderiam ser mantidos sob controle e mantidos em equilíbrio E d m u n d B u r k e 629 25 Works V 100 Maix Capital capítulo 24 seçáo 6 Marx aparentemente desconsiderou a seguinte pasKm em Burke que é mais conforme seu temperamento Até mesmo o comércio as profissões e as manufaturas os deuses de nossos economistas políticos sáo eles mesmos apenas criaturas e eles mesmos apenas resultados os quais como causas primeiras escolhemos culmar Works II 351 acreditava Burke pelo estabelecimento das propriedades territoriais pelo governo dos cavalheiros Com alguma base na experiência inglesa e alguma esperança uniu a su premacia dos interesses latifundiários o que corretamente afiançava ser recomendado pela prática política da Antiguidade em particular de Aristóteles e Cícero com uma declaração de que não poderia ser encontrado exceto como sátira ou desaprovação em escritores antigos O amor pelo lucro embora muitas vezes levado a um excesso ridículo por vezes maléfico é a grande causa da prosperidade de todos os estados V 3 13 342 Se por um lado os interesses latifundiários deveriam ser supremos não de vem formar um corpo separado na nação como em países diferentes da CráBretanha e apesar de Burke endossar os preconceitos que orientam as vidas dos cavalheiros náo aceitava ou compartilhava o desprezo do cavalheiro por aqueles que ganham dinheiro O próprio Burke representou um eleitorado de comerciantes a cidade de Bristol no Parlamento de 17741780 embora seus eleitores não ficassem satisfeitos e em suas próprias propriedades em Beaconsíield mantinhase atuante como atestam suas cartas na busca de novos métodos e maiores lucros na íricultura Não importa como se procure ligar a doutrina da lei natural de Burke à tradição do direito natural encontrar uma proximidade maior a Cícero ou a Locke devese admitir que dá maior visibilidade nâo a esta conexão ou a sua própria lealdade dentro da tradição mas às características peculiares da lei natural segundo ele Sua lei natural lega a soberania à prudência e dá destaque às circunstâncias náo exige a transcendên cia das emoções autointeressadas incluindo o amor pelo lucro que Burke enfatica mente rótula como naturais e é mais do que tolerante em relaçáo aos preconceitos é deveras hospitaleiro para com eles Com vistas a proteger os preconceitos dos ca valheiros Burke nâo desejava revelar as dívidas da constituição britânica para com a tradição filosófica embora náo hesitasse em bradar que Montesquieu que divulgou essa constituição para a admiração da humanidade fosse um homem sem as tintas de um preconceito nacional III 113 Somos em geral homens de sentimentos incultos afirma Burke dos britânicos em uma passagem do Reflections on the Révolution in France Reflexões sobre a revo lução na França felicitando o seu povo por sua impermeabilidade à filosofia do Ilu minismo Prezamos nossos preconceitos continua ele e assumindo mais vergonha de nós mesmos estimamolos porque sáo preconceitos Nossos homens de especu lação uma de suas poucas referências aprobatórias a essa estirpe em vez de explodir os preconceitos em geral usam sua sagacidade para descobrir a sabedoria latente neles II 359 O preconceito náo se opõe à razâo mas se alia a ela O preconceito fornece os sentimentos naturais incultos que dão permanência à razão pois é volúvel a razáo desassistida e ao mesmo tempo o preconceito é de rápida aplicação em situações de emergência enquanto a razáo por si só é hesitante O franco reconhecimento de Burke de que a política é inseparável do preconceito de que a sociedade náo pode 630 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 26 Correspondence II 165167 por exemplo nunca ser racional e iluminada fez lembrar Aristóteles mas sua confiança de que o preconceito contém suficiente sabedoria latente não Para Aristóteles a sabedoria latente de feto existe na opinião política mas não no isolamento incontestável que Burke parece supor Pelo contrário de acordo com Aristóteles tipicamente a opinião política afirmase contra um adversário presente ou imiinário tem o caráter de um debate Qualquer observação para não mencionar qualquer estudo especulativo de opinião política revela diferenças que tomam a forma de contradições em particular a diferença típica na política entre os muitos e os poucos Burke deixa de fora o óbvio partidarismo do preconceito Embora fele muitas vezes dos poucos e dos muitos não salienta a sua diferença de opinião o preconceito do cavalheiro contra o vulgo versus o ressentimento do povo contra o privilégio Como se pode lembrar Burke não pensa que todo homem possui um direito natural nem o povo um desejo natural de gover nar II 177 332 III 497 O povo está contente em deixar latente a sua sabedoria ao invés de afirmála e assim a aristocracia pode ser educada para governar sem insistir em sua própria especificidade Aristóteles acreditava que a opinião política tornase sabedoria somente se as afirma0es partidárias forem expostas para exame corrigidas cm sua parcialidade e combinadas com a verdade de seus adversários Escreveu sua Politica como se estivesse conduzindo um debate e sugeriu que o estadista poderia melhorar a política a des peito da inerradicabilidade dos preconceitos por retirar as implicações latentes em um preconceito o que poderia tornálo mais saudável Burke no entanto deixa implícito que a sabedoria no preconceito permanece sabedoria somente enquanto estiver latente os preconceitos não devem ser perturbados ou serão inflamados os sentimentos natu rais Parece pressupor uma cooperação fundamental entre cavalheiros e povo passível de perturbação pelo que está de fora mas essencialmente incontroversa A aristocra cia natural governa sem se afirmar por conseguinte sem se impor Contudo mesmo se isso fosse possível Burke assumiu um risco ao recomendar que se deixassem os preconceitos sem iluminação como se pudesse ter certeza de que o preconceito jamais aferroaria Sabia que a vontade dos muitos e seus interesses muitas vezes difeririam II 325 No entanto supõe que está fora das possibilidades do homem criar um preconceito Um rei pode criar um nobre mas não pode criar um Cavalheiro O lento e natural crescimento dos preconceitos nos costumes e sentimentos iria tornálos inofensivos ao habituar tanto cavalheiros e o povo à satisfeção de suas necessidades dentro dos limites de suas emoções naturais Filósofos e estadistas devem deixar que os preconceitos exerçam seus bons efeitos sem interferência Todavia o próprio Burke não deixou o preconceito cavalheiresco tal como o encontrou Afirmou certa vez que sua utilidade principal era de ressoar como uma lamentável matraca para despertar os cavalheiros em seu partido A própria con E d m u n d B u r k e 6 3 1 27 CorrespondenceVll30 28 Conrespondence III 388389 cepçáo de partido que Burke elaborou em Reflexões sobre a causa dos presentes descon tentamentos era uma impbcaçáo do preconceito cavalheiresco utilizado para corrigir o preconceito cavalheiresco Assim ser patriotas de forma a náo esquecer que somos cavalheiros foi como Burke resumiu seus conselhos I 379 Anteriormente na Grá Bretanha e em outros países livres fora tomado como pressuposto que um político não poderia ser ao mesmo tempo partidário e patriota que o partidarismo como prática regular não podia basearse em princípios Burke foi o primeiro a argumentar o contrá rio que o comportamento dos políticos com base em princípios deve inevitavelmente ser partidário e que o partidarismo náo é apenas ocasionalmente necessário em casos de emergência mas é útil e respeitável no funcionamento ordinário da constituição Essas crenças sáo agora consideradas universais e sem reservas tal como eram seus contrários antes da contribuição de Burke e na medida em que Burke foi o responsável pela mu dança sua teoria teve um efeito poderoso No entanto para fazer essa alteração Burke apelou para o preconceito cavalheiresco não esquecer que somos cavalheiros Os políticos Burke tinha em mente Lorde Chatham esquecem que sáo cavalheiros que fingem colocar a devoçáo patriótica ao público à frente de todas as amizades parti culares e desfilam sua virtude sobrenatural como uma qualificação necessária para um alto cargo Quando vejo em qualquer um desses destacados cavalheiros de nosso tempo a pureza angehcal o poder e a beneficência devo admitir que são anjos Nesse meiotempo nascemos apenas para sermos homens I 378 Isso traz à lembrança um trecho de O Federalista 51 que diz Se os homens fossem anjos nenhum governo seria necessário Enquanto em O Federalista a natureza do homem não angélico justifica a tolerância da ambição para Burke confirma a necessidade de que a virtude cavalhei resca se oponha à ambição hipócrita O partido é informal todavia quando tornado respeitável não é mais oculto ou conspiratório Com a sua fonte na amizade privada e relaçóes honrosas a fidelidade partidária em princípio fornece certa consistência visí vel a não deserção dos amigos se torna a distinçáo de um patriota Na política partidá ria cavalheiresca a flexibilidade maquiavélica não é necessária e náo é recompensada A virtude cavalheiresca para Burke é hombridade Não seria ir longe demais dizer que hombridade é virtude de acordo com Burke Foi a virtude que reivindicou para si mesmo em seu progresso na vida afirmou em Carta a um nobre lorde Eu nâo possuía artes apenas hombridade E foi esta a virtude que antepôs à liberdade propagada pelos revolucionários firanceses Adoro uma liberdade com hombridade regulamentação moral Para Burke a hombridade parece ser cornem e prudência combinadas de tal forma que as ações viris são abertas à inspeção pública sem ser subservientes à opinião pública Possuindo um componente de humildade cristã a hombridade não chega até o orgulho da magnanimidade I 509 II 536 III 438 entretanto por esse motivo talvez seja mais eficaz em oposição à vaidade e também 632 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a f L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 29 WrbV125verII128 30 Works II 282 ver I 323 370 376 451490 II 287 308 339 352 III 438 V 212 porque tem a força de uma virtude que aproxima os homens em lugar de elevar apenas alguns A vaidade e a pretensa piedade eram os vícios que Burke percebia na doutrina francesa dos direitos do homem tentou substituir essa doutrina pelos reais direitos dos homens os direitos de homens viris que podem sustentar as rígidas virtudes bem como as liberais II 331 418 536 537 V 322 Nos nossos dias a hombridade está perdendo a sua identificação com o masculino mas após a reveladora denúncia de fraqueza democrática de autoridades tão diversas como Tocqueville e Nietzsche nâo podemos deixar de reexaminar a principal virtude de Burke Burke o paladino da prudência cavalheiresca passou sua vida política além dos limites da prudência cavalheiresca olhando para um horizonte que seu partido náo conseguia discernir instandoo a atividade incomum em terreno hostil É preciso tam bém dizer que se dedicou a proteger e aperfeiçoar os limites da prudência cavalhei resca a afestar os especuladores subversivos e a reformar as práticas constitucionais tais como o partido e impeachment o que facilitaria o governo dos cavalheiros Tendo auxiliado a fundar seu partido por darlhe uma doutrina e uma alma em vez de diri gilo abandonouo após a Revolução Francesa e em seguida atacouo Seus colegas nâo conseguiam perceber a diferença entre a Revolução Americana e a Francesa pois náo compreendiam a singularidade deste último evento a mais completa revolução já conhecida A íilosoíia política de Burke revolve em torno da defesa de uma consti tuição real ao contrário da construção de uma constituição imaginária Seu tema é a suficiência ou melhor a perfeição da prudência cavalheiresca Porém sua defesa de seus amados cavalheiros revela suas limitaçóes talvez melhor que qualquer ataque revolucionário Pois os revolucionários não encontraram um substituto adequado para os cavalheiros nem nós mesmos o conseguimos embora tenhamos procurado entre burocratas tecnocratas e democratas Seria quase possível definir cavalheiros pela soma de tudo o que falta em burocratas tecnocratas e democratas A reverência com que Burke os aprecia é mais clara do que a de seus críticos os defeitos dos cavalhei ros transparecem na necessidade de sua própria contribuição para a sua defesa Essa contribuição foi muito além de apenas alertálos para os perigos que eram por demais obtusos para perceber e despertálos com frases bonitas Usando o que certa vez deno minou a energia oportuna de um único homem V 78 Burke tentou fortalecer o governo dos cavalheiros de modo a tornálos menos susceptíveis a subversão e ataque O resultado no século XDC foi ao mesmo tempo de fixálos no lugar imóveis em seu preconceito recémfilosófico os conservadores e afrouxar suas conexóes confiando na promessa de que a reforma seria o meio de sua conservação os liberais Um tanto a contnosto Burke dá testemunho da imperfeição necessária da política no próprio seio de seus inspiradores discursos e nobres açóes L e it u r a s A Burke Edmund Rcflections on the Revolution in France Burke Edmund An Appealfirom the New to the OU Whi E d m u n d B u r k e 633 B Burke Edmund Tmcts on the Poperty Laws in Ireland Burke Edmund Thoughts on the Cause ofthe Present Discontents Burke Edmund Speech to the Electors ofBristol nov 3 1774 Burke Edmund Speech on Conciliation with America Burke Edmund iMter to the Sheriffi o f Bristol Burke Edmund Speech on Economical Refbrm Burke Edmund Speech on the Refbrm ofthe Representation ofthe Commons in Parliament mai 7 1782 Burke Edmund Letter to Sir Hercules Langrishe 1792 Burke Edmund Letter to a Noble Lord Burke Edmund Four Letters on a Regicide Peace 634 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y J erem y B enthâm 17481832 J ames M ill A 17731836 Jeremy Bentham pode ser descrito como filósofo político e jurídico reformador social fundador do utilitarismo e philosophe O utilitarismo indica a visáo de que saber se um ato é certo ou errado depende de se acteditar que suas conseqüências sejam boas ou ruins Para Bentham bom e mau refèremse aos prazeres ou dores produzidos pelas experiências dos seres humanos individuais Philosophe referese a uma categoria de intelectuais europeus do século XVIII entre os quais Bentham conquistou um suces so muito mais imediato do que na sua Inglaterra natal Como os philosophes Bentham acreditava que inevitavelmente a condição humana será aperfeiçoada através da simples proliferação do conhecimento no sentido de informação enciclopédica juntamente com princípios abstratos para a classificação das informações e de sua colocação em funcio namento para a reforma da sociedade Bentham não confiava na experiência herdada nem nas características de ordem política defendidas pelo apelo à aceitação tradicional A dependência de práticas antigas era para ele um sinal de ignorância Em Article on UtiUtarianism Long Version Bentham faz referência à muitíssimo celebrada obra de Helvétius intitulada Sur Vesprit Do espírito 1758 Nessa obra iniciouse a aplicação do princípio da utilidade a casos práticos À direção da conduta humana no curso ordinário da vida formavase uma conexão entre a ideia vinculada à palavra felicidade e mais uma vez entre a ideia vinculada à palavra feUcidade e as ideias respectivamente vinculadas às palavras prazer e dor Vinculada às palavras utiUdade e princípio de utilidade enconttavase agora uma abundância de ideias ideias que não podiam deixar de ser continuamente presentes e femUiaies às mentes mais de satentas pouco observadoras e pouco Em seguida Bentham discute a importância para seu pen samento de Advancement ofLeaming Avanço da aprendizagem de Francis Bacon de dAlemben e da Encyclopedia francesa da Cyclopedia Enciclopédia de Chambers e dos ensaios políticos de Hume Ao mencionar sua própria reputação na França observa Bentham Maior muito maior é a honta confrrida a ele naquele país estrangeiro do que em seu pióprio Deontology togither with A Table ofthe Springs ofAction and The Article on UtiUtarianism ed Amnon Goldwotth Oxford Clarendon Press 1983 p 290 311 Nesta visão a ignorância para Bentham era um problema que tinha uma so lução O antídoto para a ignorância era ser bem informado Não surpreende então que Bentham rejeitasse com desprezo o conceito de ignorância socrática Esta última aponta a misteriosa dificuldade de atingir qualquer compreensão fixa e final das inda gações fundamentais sobre como devemos viver Aparentemente de acordo com o Sócrates de Platão as questões do certo e do er rado do bom e do mau do belo e do feio jamais deveriam entrar em conflito na vida política Euttfron 7 O início da sabedoria seria ter sempre em mente esta condição preocupante e limitante em nossos argumentos uns com os outros O seguidor de Só crates pode questionar as opiniões tradicionais da sociedade mas não necessariamente para subvertêlas pois é sempre possível que se descubra serem essas opiniões dignas de apoio Além disso um seguidor de Sócrates não deixaria de levar em consideração o argumento do senso comum de que se alguém está contra a ordem vigente deve estar disposto a dizer que alternativa tem para oferecer A tarefa do filósofo é recordar seus parceiros dialéticos da necessidade de contemplar alternativas por meio de um esforço nem sempre bem recebido para localizar os pontos fracos de argumentos apresentados como fortes A ignorância socrática exacerba a dificuldade de harmonizar a busca pela sabedoria e as exigências da tomada de decisões políticas Bentham concluiu ser inapropriada esta tradicional reticência filosófica bem como uma barreira para o desenvolvimento de uma adequada ciência jurídica e de governo Desta forma acirra a diferença entre um filósofo socrático e um philosophe Bentham combina o estado de espírito do philosophe ao utilitarismo chegando ao que concebe como a solução simples que desvendará as complexidades do universo social É possível ser bem informado porque se pode discernir a base universal das açóes humanas em tudo o que as pessoas fazem e dizem Bentham desejava traduzir o significado das açóes em cálculos explícitos dos prazeres e dores que acompanham essas açóes a fim de aconselhar as pessoas sobre a adequação dos meios que escolheram para a busca da felicidade Bentham rejeitou a possibilidade de avaliar açóes de acordo com sua correção ou incorreção objetiva putativa Não podemos julgar açóes exceto quanto a suas conseqüências ou de forma independente hierarquizar os méritos das experiências que as pessoas julgam prazerosas Bentham repudiou o empenho dos filósofos socráticos para fazer exatamente isso reputandoos como sempre o fizeram os adversários de Sócrates um incentivo para sua impaciência em dar seguimento à criação de uma ordem social racional Este modo de pensar é ainda ilustrado pelo fato de que Bentham estudou Direito na Universidade de Oxford mas nunca exerceu a profissão Seus conhecimentos da legislação inglesa levaramno a desprezar sua imprecisão e desordem A tradição jurí dica inglesa em si era um mistério que não se podia explicar de maneira simples Na medida em que se distanciou dessa tradição reforçouse a propensão de Bentham por uma ciência da legislação Veio a ser um analista e um teórico procurando transformar e desmistificar a ordem inglesa antes de se estabelecer nela Ser um teórico no sentido de Bentham era buscar suplantar de uma vez por todas a filosofia política no sen 636 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y tido socrático era transformar todos os mistérios náo resolvidos em problemas sim ples com soluções jurídicas Entre a vasta gama de seus escritos sobre uma vasta gama de assuntos sua obra mais influente ainda éAn Introduction to the Principies of Morais and Leslation Uma introdução aos princípios da moral e da legislação 1789 A essência de sua posição pode ser apreendida nos argumentos aí expostos Neste livro Bentham elucida princípios para orientar a renovação e a transfornu ção da política e da sociedade através de uma legislação cientííicamente concebida Ben tham viase como um cruzado lutando para destruir o preconceito de forma a instalar o espírito crítico na sociedade O costume e a tradição seriam culpados a não ser que pudessem provar sua inocência assim emancipando a humanidade dos modos e costu mes fortuitos a que pode ter dado início por descuido mas que são Eora os interesses enraizados de uns poucos à custa dos demais Interpretava a situação contemporânea como um conglomerado de princípios e práticas conflituosos e indefensáveis em que náo era possível distinguir o irracional do racional A legislação inglesa para emprar uma íamosa metáfora de Descartes era como uma mansão construída ao longo de mui tas eras em uma mistura de estilos arquitetônicos sem elância e proporção O direito consuetudindrio common law como se denomina na Inglaterra a lei judiciária como poderia ser denominada com mais propriedade em toda parte essa composição fictícia que náo tem pessoa conhecida como seu autor nenhuma coleção conhecida de palavras como sua substância constimi em toda parte o corpo principal do tecido legal como o imaginário éter que na feita de matéria sensível preenche a amplidão do uni verso Farrapos e malhas de verdadeiras leis fincados nessa base munária compõem o mobiliário de cada códo nacional O que decorre daí Que aquele que deseja um exemplo de um corpo completo de leis ao qual se referir deve começar por criálo Descartes afirmou que há muitas vezes menos perfeição nas obras compostas por várias partes e realizada pelas mãos de vários mestres Edifícios planejados e executados por um arquiteto são em geral mais belos e melhor proporcionados do que aqueles que muitos tentaram colocar em ordem Uma vez que grande parte da Je r e m y B e n th a m e Ja m e s M i l l 637 2 Jeremy Bentham An Introduction to the Principies of Morais and Legislation Uma introdução aos princípios da moral e da legislação ed J H Burns and H L A Hart London and New York Methuen University Paperback editíon 1982 Dotavante citada como PML Ao felar dessa obra em 1829 Bentham descreveu a si mesmo da sAÚnte forma Manter dores e prazeres desde o início em vista do caráter dos principais materiais de que é composta estrutura da mente humana encarregouse de elaborar a primeira listiem tentada para ser enquadrada no tipo de artigos cha mado motivos sendo esses motivos acompanhados e explicados pelos diversos prazeres e dotes correspondentes um motivo nada sendo além do medo de alguma dor ou a esperança de um certo prazer Articles on Utilitarianism Artigos sobre o utilitarismo p 293 3 PML Prefácio p 8 4 Descartes Discourse on the Method ofRighdyConductii the Reasonin The PhilosophicalWorh of Descartes trans E S Haldane and G R Ross Cambridge Cambridge University Press 1972 V I p 87 Discours de la méthode pour hien cottduirt sa rmson et chercher la veriti dans les Sciences Discurso sobre o método para bem conduzir a razão lu busca da verdade dentro da ciênda nossa existência é composta de diferentes partes por muitas mãos não é difícil perce ber que para o proponente de métodos racionalistas de planejamento essa existência é matériaprima a ser demolida e reconstruída a partir do zero Todavia ao mesmo tempo Descartes que com Francis Bacon foi o principal defensor da busca moderna pelo método racional também expressou cautela acerca de qualquer reivindicação de um indivíduo particular para a reforma de um estado por sua total alteração e por sua inteira demolição a íim de reerguêlo de novo corretamente Descartes reconhecia a violência e a incerteza potenciais que acompanham a reforma social Admitia também que o costume pode amenizar as falhas de grandes corpos O costume temnos ajudado a evitar ou insensivelmente corrigido imper feições que a mera previsão teria encontrado dificuldades em resguardar Descartes conclui que as imperfeições sáo quase sempre mais suportáveis do que seria o processo de removêlas Não posso de forma alguma aprovar esses espíritos turbulentos e ítados que não sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna para a gestão dos assuntos públicos nunca deixam de ter em suas mentes algumas novas re formas E se acreditasse que neste tratado estivesse contida a menor justificativa para tal loucura lamentaria permitir que fosse publicado Descartes expressa um grau de reticência filosófica que Bentham parecia obriga do a desconsiderar devido à suposição de que não existia necessidade de tal conten ção Se e quando diminuíssem as dificuldades da reforma social tal como Bentham acreditava ter demonstrado ser possível uma reforma a seu estilo poderia vir a ser uma conseqüência legítima do método cartesiano Não haveria mais motivo para ser reticente dado o advento de adequados métodos modernos para finalmente tornar a íilosoíia realmente útil seria possível unir pensamento e ação Temendo os espíritos turbulentos e agitados Descartes poderia decidir andar sozinho e no crepúsculo ser prudente e paciente na busca do conhecimento racional abrindo caminho para um philosophe sem o ser ele mesmo Desapareceu com Bentham essa cautela Eliminado o ambiente da cautela filosófica é fácil que o estado existente da sociedade comece a parecer intolerável desagradável para o teórico que a contempla e pouco adaptado para suscitar um aperfeiçoamento daqueles condenados a nela ha bitar Bentham não aprovava a perspectiva alternativa de Blackstone e de Edmund Burke Burke encontrava beleza onde Bentham enxergava a feiura a beleza de uma ordem elaborada convencional refletindo gerações de tentativa e erro e realizações legitimadas pela antiguidade Do ponto de vista de Burke abstratos princípios sociais eram caricaturas extraídas de seu contexto e em seguida reaplicadas como se fossem 638 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 5 Ibid p 89 6 Ibid p 8990 7 Ibidp9 8 Sobre o ataque geral de Bentbam a Blackstone consultese A Fragment on Govemment Um mento sobre o governo in The Collected Works of Jeremy Bentham ed Jobn Bowring repr New York Russell Russell 1962 v I p 221295 modelares à própria cultura que deu a esses princípios qualquer significado que pu dessem realmente ter Do ponto de vista de Bentham quanto mais dados recolhidos quanto mais rápido poderia ser construído um modelo simples do mundo Essa diferença de perspectiva sobre a tradição jurídica inglesa e sobre a validade do costume e da tradição em geral é crucial para entender muitos dos debates da mo derna filosofia jurídica e política desde a época de Bentham e Burke Anteriormente o domínio da lei significava que as pessoas poderiam ter expectatívas razoáveis quanto ao que lhes exriam as rras que tegiam suas transações Tais iras evoluúam por meio das decisões individuais de juizes cujas decisões eram baseadas nas práticas costumeiras nos locais onde presidiam Esuia ausente a ideia de uma fonte centralizada de legislação uniforme informada por uma ciência da natureza humana Bentham queria fomecêla Ao fornecêla Bentham pretendia estabelecer um quadro geral das condições so ciais que acreditava iriam inevitavelmente aumentar o bemestar do público Mais sur preendente Bentham acrediuva que se isso fosse foito na Inglaterra tomaria corpo tun padrão pelo qual reformar o mundo inteiro Os legisladores que tendo se libertado das amarras da autoridade aprenderam a erguerse acima da névoa do preconceito sabem como fàzer leis tanto para um país como para outro Bentham não tínha a intenção de dizer às pessoas o que fezer tencionava de feto voltar seus cálculos para direções fimtífe ras sob leis que promovessem a maior felicidade do maior número Decerto não acredi tais que se pudesse simplesmente ditar a felicidade de outros Reconhecia que a ordem projetada pela legislação encorajaria a melhora de atitudes e procedimentos nas relações entre os indivíduos mas não buscaria apenas ditar atitudes e motivações pessoais Estas acreditais isriariam enormemente entre indivíduos e circunstâncias históricas diferen tes No entanto reformas na legislação do tipo preconizado por Bentham inevitavel mente afetariam crenças e hábitos de conduta pessoais tomando mais fácil paia alguns e mais difícil para outros persistirem em seus hábitos costumeiros O próprio princípio da maior felicidade para o maior número deixais implícito que algumas felicidades não seriam e na verdade não deveriam ser satisfeitas Legislar exige um discernimento acerca da forma como os princípios da moral e da legislação são adequados a condições históricas específicas A capacidade de julgar de modo legitimo reconhecia Bentham é uma arte bem como uma ciência Acredi Je r e m y B e n th a m e Ja m e s M i l l 639 9 C f the Influence ofTtme and Place in Matters cfLegislation in ibid p 180 col B 10 No Artide on Utilitarianism Bentham reconhecia um prohlema com a expressão de maior núme ro Se em uma sociedade de 4001 orem transferidos a 2001 todos os meios para a felicidade deixando 2000 sem nada escravizados é óhvio que o maior número tem a maior felicidade e a sociedade será extremamente infeliz Bentham petcehia que o princípio podia ser utilizado equivo cadamente para racionalizar a perseguição sistemática de grupos tais como os católicos romanos na GrãBretanha ou os protestantes na Irlanda p 310 Tal efeito opunhase completamente a suas intençóes Um princípio que estabelece como o único direito e fim justificável do Govemo a felicidade do maior número como se pode negar que seja perigoso Perigoso para todo o Governo que tem como seu fim ou ohjetivo real a maior felicidade de alguém determinado A Fragment on Government p 272 nota de rodapé explicativa col A tava porém que existem julgamentos melhores e piores os que são racionais por que informados pela ciência e os que são irracionais porque governados pelo simples preconceito No âmbito do julgamento pode sempre haver argumentação em torno de decisões para fazer uma coisa em vez de outra mas náo se pode questionar a supe rioridade do julgamento informado pela ciência devese atender ao preconceito e aos costumes mais cegos mas não precisam estes ser os árbitros e guias exclusivos Aquele que ataca o preconceito de modo arbitrário e sem necessidade e aquele que aceita ser conduzido por ele de olhos vendados como um escravo da mesma maneira se afesta da linha da razão A ciência do direito é para a arte da legislação o que a ciência da anatomia é para a arte da medicina com esta diferença de que seu tema é aquilo com que o artista tem que trabalhar em vez de ser aquilo sobre o que tem de trabalhar Tampouco o Estado o corpo político sofre menor ameaça devido a uma falta de fami liaridade com uma ciência do que o corpo natural devido à ignorância da outra É revelado aqui um dos significados centrais do apelo ao princípio da utilidade A ciência de Bentham é universal mas deve ser adaptada às condições históricas em que é aplicada No entanto ao mesmo tempo náo se pode conceder às condições históricas um poder de veto sobre a aplicação da lslação científica Caso isso acontecesse então o preconceito poderia legitimamente prevalecer sobre a ciência ou poderia reivindicar um discernimento inacessível para a ciência Esta tensão entre o costume e a tradição de um lado e o progresso científico de outro está no centro do debate político moderno A oposição entre conservadores e progressistas será resolvida em íàvor do progresso por Bentham e seus seguidores utilitarístas a busca cientificamente informada da felicidade é justificada pelo feto de que não foi ainda demonstrado nenhum limite empiricamente demonstrável sobre a autorrealízação ou o aperfeiçoamento humano Seguindo a tra dição de Francis Bacon Bentham acreditava que a tarefe de remediar a condição do homem mal havia começado mas era uma grande esperança para o futuro Além disso Bentham não acreditava ser o aperfeiçoamento social uma questão indecifrável Melhor alimentação melhores condições sanitárias melhor educação maior igualdade de oportunidades estas são as condições simples e obviamente de sejáveis que constituíam para Bentham as condições necessárias para a felicidade hu mana Acreditava que está perfeitamente dentro do âmbito dos poderes do engenho humano aperfeiçoar as organizações sociais nas quais esses bens desejados estarão mais e mais disponíveis O poder da íilosoíia política de Bentham depende do grau em que é convincente sua visáo de felicidade combinada a seu otimismo acerca da construção científica das políticas para alcançála Para o seguidor de Bentham por outro lado o progresso na esfera material con tribuirá enormemente para a produção de condições nas quais se dissipará a ansiedade espiritual Náo é óbvio que tal ocorrerá quando se é propenso a acreditar que a distinçáo 6 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 Ofthe Influence ofTime and Place in Matters ofLegislation p 180 col B 12 PML Prefece p 9 ver também o Prefôdo à primeira edição de A Fragment on Govemment 1776 in Works V I p 226 col A entre a satisfação material e a espiritual é tal que a satisfação de uma não satisfaz a outra ou que são antagônicas Bentham no entanto adotando uma maneira de pensar que pode ser rastreada até Hobbes não concebe um método científíco para prever a satis fação espiritual Não é possível fazer as pessoas boas ou felizes Entretanto é possível conceber melhorias nas condições materiais que caso contrário poderiam afetar ne gativamente a sensação de bemestar Para Bentham seria impossível determinar a felicidade humana determinada por referência a um bem objetivo ou aos direitos naturais tal proclamado na Declaração de Independência Americana ou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França O objetivo de alcançar a maior felicidade do maior número náo signi fica que seja privilegiada a felicidade particular de alguém Na verdade é totalmente provável que na prática esse princípio resulte em políticas dentro das quais algumas ideias de felicidade serão sistematicamente depreciadas e portanto para Bentham o princípio em si é uma fonte de tensão em seu pensamento Dependendo do assunto e do ponto de vista a negação de qualquer felicidade especial pode parecer boa ou ruim Podese julgar boa a eliminação da escravidão e de condições de trabalho abusivas em geral embora náo pelos donos de escravos e exploradores podemse considerar em geral ruins o transporte escolar forçado e a ação afirmativa na contratação embora não por alguns pais e seus filhos ou pelo trabalhador que suspeita de discriminação para alguns a liberdade de religião parecerá essencial à dignidade humana e para outros o caminho para o declínio moral Náo importa como os indivíduos avaliam essas questões porém uma política social planejada para promover a maior felicidade para o maior número nâo precisa ser justificada em relação a qualquer indivíduo ou grupo específicos muito embora em princípio tenha como finalidade o bemestar do maior número possível Bentham rejeita a noção de bens absolutos ou verdades autoe videntes porque pretende defender a autorrealização individual Ainda assim para que melhore o bemestar geral de modo científico é razoável que a engenharia social tenha precedência sobre reivindicações individuais de direitos Se é possível resolver o conflito entre os direitos sociais e os desejos individuais de forma satisfatória em termos dos princípios de Bentham é uma questão que o estu dante atento deve examinar com cuidado Essa questão adquire um significado maior quando se percebe que a moderna tradição liberal desenvolve grande parte de seu pen samento político em termos de encontrar um equilíbrio adequado entre a interferência e não interferência na vida dos cidadãos pela ação governamental Assumiram grande importância as questóes relativas ao adequado âmbito de aplicação e aos limites da regulamentação governamental O feto de se terem tornado questões centrais indica a poderosa influência do pensamento de Bentham É possível que o impacto desta forma de pensar resida em aceitar como per manente o conflito entre direitos e desejos assim nunca se está livre para desistir do J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 1 13 Ver Anarchical FaUacies beingAn Fxamination ofThe Dedarations o f Rights issued during The French Revolution in Works v 11 p 489534 esforço de repensar e rever as próprias suposições sobre a ordem social Uma vez que o costume e o hábito sáo arautos do preconceito irracional devese buscar o antídoto na aplicação autoconsciente do princípio da utilidade às açóes e à legislação Se é possível írfastar os membros da sociedade de sua condição irrefletida e lhes ensinar sob os aus pícios do princípio da utilidade a empregar cálculos de vantagens e desvantagens fi cará claro que a grande maioria é perfeitamente capaz de autorregulação A maioria se mostra capaz de alterar sua conduta para permanecer em sintonia com a evolução das condições sociais Com o tempo concordaríamos que o princípio geral que os seres humanos são iguais e devem ser tratados como iguais é verdadeiro e adotaríamos a convicção dc que cada um deve contar como um e não mais que um Na maior parte então os seres humanos seriam e estariam livres para entrar em relações contratuais voluntárias de acordo com seu próprio entendimento No utilitarismo não existe limite inerente ao uso do poder governamental para fins de reforma social No entanto para Bentham isso significava principalmente a remoção de restrições arbitrárias e obsoletas à dependência dos indivíduos a suas próprias íáculdades na busca prudente de seus interesses A legislação científica tinha a intenção de libertar na direção do individualismo democrático Esperavase que le vasse ao que mais tarde seria chamado por John Stuart Mill afilhado filosófico de Bentham de sociedade em crescimento e aperfeiçoamento espontâneos Essa visão de ordem progressiva trazia consigo a crença otimista de que a estabili dade política não depende de duras restrições de que a natureza humana não é nem irre mediavelmente ingovernável nem volúvel que não existe uma classe especial de pessoas naturalmente adequadas para governar A infiuência desta visáo resultou em significati vas revisões do direito penal inglês no século XIX Por exemplo foi bastante reduzido o número de crimes puníveis com a morte Bentham transferiu a êníàse da punição por ter agido errado para um aumento dos incentivos para agir certo Desempenhou importan te papel no desenvolvimento da sensibilidade moderna que abomina causar dor e que quando compelida a causála toma essa necessidade como um sinal de resquícios de imperfeições no projeto social Acima de tudo tal sentimento resultou em snificatiwis tdbrmas eleitorais incentivando um padrão de crescente ampliação do direito de voto Essas ideias se aglutinaram às ideias do liberalismo econômico da liberdade inte lectual e da tolerância religiosa na Inglaterra do século XDC Deveriam ser removidas as barreiras artificiais ao comércio deveriam ser eliminadas as restrições à livre crítica ao governo p ex diíámação sediciosa e aqueles anteriormente excluídos na Inglaterra católicos ateus judeus deveriam receber todos os privilégios da cidadania Bentham imaginou uma sociedade de individualistas cooperativos Ninguém deve ser tratado como infalível em opinião ou juízo pois ninguém pode saber se a própria concepção de realidade corresponde à realidade como tal Não se justificam nem as pretensões de autoridade absoluta nem as reclamações de direitos absolutos Sob um governo de leis qual é o lema do bom cidadão Obedecer prontamente censurar livremente 642 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a 5 L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 14 A Fragment on Govemment p 230 col A O entendimento comum da política desde a época de Hobbes e Locke toma como questão central o equilíbrio entre liberdade e autoridade Bentham acreditava que sua ciência política possibilitaria criar uma relação simbiótica permanente entre as duas Dependendo de quais características do seu pensamento são enfatizadas Ben tham pode aparentar estar de um lado ou de outro Por um lado as leis devem ser os comandos cientificamente elaborados de um poder soberano não limitado por uma doutrina dos direitos naturais Por outro esses comandos devem ser auxílios desinte ressados para que os indivíduos encontrem o caminho para sua própria felicidade Nos dois extremos existe gravidade e austeridade na atitude legislativa As verdades morais e políticas não florescem no mesmo solo que o sentimento Crescem entre espinhos e não devem ser colhidas como margaridas por crianças que correm Bentham exigia uma transcendência inconteste do instinto do sentimento e do senso comum Ao invés de primeiro adquirir uma intimidade com o funcionamento das relações polítícas sociais e econômicas dominantes Bentham aconselha a aquisição de um método de investigação científica que poderá então ser aplicado ao estado de coisas existente Desta íbrma se está protdo da sedução pelas práticas atuais Ao contrário obtémse um distanciamento frio para com a sociedade e de feto para consigo mesmo Devemse examinar todas as coisas com atenção aos mecanismos universais que lhes são subjacentes Só então seria possível controlar nossos destinos por meio de um programa de reforma racional reforma esta que é mais do que apenas a imposição de um interesse egoísta sobre os outros em um interminável processo de luta malinfbrmada e impulsiva A paixão de Bentham do começo ao fim era fundar esse sistema cujo objetivo é criar o tecido da felicidade pelas mãos da razão e da lei A premissa unificadora de sua obra é o princípio da utilidade o princípio que aprova ou desaprova qualquer ação que seja de acordo com a tendência que parece ter para aumentar ou diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão d de cada ação que seja e portanto não apenas de cada ação de um indivíduo partícular mas de qualquer medida de governo O princípio da utilidade é sancionado pela natureza uma vez que a natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos a dor e o prazer Cabe somente a eles indicar o que devemos fezer bem como determinar o que feremos É importante observar que os mestres soberanos o prazer e a dor não apenas de terminam o que realmente fezemos mas também nos apontam o que devemos fazer O primeiro passo para ser científico é tornarse plenamente consciente das molas da ação Ao mesmo tempo no entanto cabe perguntar como pode haver uma discrepância entre o que fezemos e o que devemos fezer dado que é a mesma a base para ambos Uma resposta é que em um sistema político não reformado uma definição partídáría do que devemos fezer é generalizada por meio do direito e da política de modo que é imposto a todos aquilo que alguns interesses egoístas pensam que deveria ser feito 15 AW i Preficio p 910 16 AW iCap Ip 11 17 PML Cap I p 12 18 A lfíC ap Ip 11 Je r e m y B e n th a m e Ja m e s M i l l 643 Em outras palavras a sociedade não reconstruída é um agregado de interesses irracionais e desigualmente relacionados cada qual vai em busca de seus próprios cálculos do que vai produzir prazer e do que vai causar dor Poucos se comprometem conscientemente com o objetívo de fezer felizes o maior número possível de outros A maioria é propensa a generalizar a partir de sua própria opinião a respeito da felicida de ou do bemestar Na soberania da natureza não são suficientemente apreciadas as aspirações comuns da humanidade Contudo se e quando houver suficiente apreciação destas então o reconhecimen to múmo da namreza nosso soberano universal pode induzir a uma maior percepção de nossa situação universal e pode se tornar mais atraente um plano para aumentar a íèlicidade do maior número É racional a mudança de atimde que se afesta de uma busca meramente ocêntrica da felicidade pois os humanos não podem viver uma vida soli tária Nesta última situação viver diretamente apenas em relação à namreza não surgiria o conflito entre o que fezemos e o que devemos fezer Se parte da felicidade consiste em viver em paz segurança e tranqüilidade de espírito no meio dos outros então tem de haver um acordo de modo algum automático a respeito do que nós todos aceitamos como o que devemos fezer No entanto é óbvio que isso não pode ser exclusivamente o que eu ou qualquer outro preferiria de forma independente Na ausência de um padrão objetivo e acordado para classificar as várias preferências é necessário descobrir e apoiar os esquemas que aceitam que seja buscada a maior variedade de preferências sem levar ao caos Tais esquemas fomentariam as condições em que se reconciliariam o que fiirei e o que deveria fezer Então a razão terá sido empregada para reconduzir a humanidade a uma conformidade harmoniosa com sua natureza Caso contrário um raciocínio mal informado não científico nos levará a conflito e ansiedade constantes Todos os esforços para resistir a que nos ordenemos desta forma todos os esforços que podemos fezer para acabar com a sujeição serviráo apenas pata demonstrála e confirmála O princípio da utilidade expressa de forma simples e direta uma cadeia de ra ciocínio que em seus detalhes é complexa e longa Fornece uma forma abreviada de orientar corretamente o modo de pensar de cada indivíduo Lembranos de que a co munidade é um corpo fictício composto de indivíduos que são percebidos como seus membros constituintes Quais seriam entáo os interesses da comunidade A soma dos interesses dos diversos membros que a compõem Para Bentham toda a ação racional é ação em conformidade com o princípio da utilidade Os indivíduos que aceitam isso se submetem livremente à legislação vi gente na medida em que são estas estabelecidas com referência à utilidade que não se limitam a identificar com seus desejos pessoais e as criticam na medida em que náo o sáo Podese dizer que um homem é partidário do princípio da utilidade quando 644 H is tó m a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 19 Ibid 20 PML Cap I p 12 a aprovação ou desaprovação que atribui a qualquer ação ou a qualquer medida é determinada e proporcional à tendência que concebe ele que tenha para aumentar ou diminuir a felicidade da comunidade Pensando bem o leitor pode ainda perguntarse dada a estipulação da força ine vitável do princípio da utilidade por Bentham que escolhas dos indivíduos poderiam ser criticadas por não se conformarem a ela Ou onde alegações ou propostas confli tantes apelam igualmente ao princípio da utilidade como se decidir entre elas Como distinguir entre aplicações adequadas ou indevidas desse princípio Não há resposta abstrata para tais questões Para Bentham não existe uma rta de moral de valor ou de direito independentemente correta ou verdadeira O que conta tem de ser determinado por meio do debate daqueles que são totalmente autoconscientes em seu compromisso com a observância do princípio O método de deliberação autocons ciente autocrítico é essencial para a produção de tegras úteis que se elevam acima de partidarismos Nenhum interesse na sociedade pode ser tomado como uma expressão do melhor interesse do todo Nenhuma regra pode isentarse de reavaliação e revisão Pata alguns esses argumentos parecerão basearse em uma atitude de teladvismo moral Bentham se pergunta se não há tantos padrões diversos do certo e do errado quanto há homens e se até no mesmo homem a mesma coisa que é correta hoje não pode sem a menor mudança na sua natureza ser errada amanhã Ao íázer essas perguntas Bentham quer mostrar que a cura para anarquia moral não é o despotismo mas a deliberação cooperativa Acreditava que o compromis so consciente para com o princípio da utilidade era a única maneira de em última análise alcançar acordos sustentáveis em substância Em contraste acreditava que os apelos aos direitos naturais ou à lei natural pressupunham pontos de substância e em seguida tentou obter uma submissão a eles Porque negava a possibilidade do direito natural ou da lei natural Bentham supunha que por trás de todos os apelos a estes estavam interesses egoístas bem ou mal disferçados Acreditava que o princípio da utilidade continuamente nos lembraria de que as propostas sempre se originam de pessoas interessadas identificáveis e nos encorajaria a simultaneamente avaliálas com desapego à luz do princípio da maior felicidade O acordo com o princípio implica a busca conjunta de acordo a respeito da substância No entanto é paradoxal o próprio uso do princípio Destinase a produzir acordos substanciais legítimos e simultaneamente a questionar todos os acordos subs tanciais a palavra direito não tem significado se afestada de utilidade Medir de modo correto em termos de utilidade significa medir corretamente com relação aos próprios interesses lembrando que os interesses do indivíduo devem ser en tendidos como caritativos ou como tendo em conta a maior felicidade do maior número Cada um de nós deve ter jurisdição na definição de nossa própria felicidade não podemos J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 5 21 PML Cap I p 13 22 PML Cap I p 16 23 PML Cap I parágraíb 4 p 1516 nos submeter a uma coletividade fictícia No entanto é obrigatório que as leis nos unam Por exemplo podese ser tentado a não cumprir promessas mas podese decidir no en tanto que uma regta de cumprimento das promessas traz melhores conseqüências para a sociedade Podese avaliar a felicidade que se desfmtará quando o autodomínio for combinado com a paz e a ordem em comparação com a felicidade a ser obtida por meio da busca desenfreada pelo autointeresse em meio a confiitos e desordem Ao escolher a primeira uma regra para governar a sociedade calculase que no seu conjunto contri bui para a maior felicidade geral e que se estará melhor nesse contexto Ao chegar a essa conclusão poderseia dizer com efeito que se deve agir da for ma cumprimento de promessas que gostaríamos de ver os outros agirem também Tal afirmação recorda o imperativo catórico de Kant No entanto Bentham não afirma que devemos optar por tal regra a não ser que tenhamos interesses pessoais em fazêlo A tensão entre autointeresse e respeito para com os demais está no cerne do utilitarismo e não pode ser resolvida pelo apelo a um dever moral transcendente por si mesmo A partir de uma perspectiva utilitarista o princípio kantiano não pode caso deva ser útil na prática excluir a presunção de conseqüências Para os utilitaristas devemse pon derar as conseqüências sempre que surjam argumentos entre possíveis cursos de ação alternativos Sempre que os indivíduos dão permissão para que sejam expressas opiniões uns para os outros ou acham que não podem escapar delas devem discutir os méritos relativos a diferentes cursos de ação quanto a seus possíveis resultados Sócrates expressou uma forma diversa de moral transcendente quando afirmou que passara a vida tentando ser bom e não parecendo ser bom Górgias 527 Com isso o Sócrates platônico queria dizer que era obrigado a não decidir o que era certo com base em suposições a respeito de que conseqüências poderiam advir na seqüência temporal de eventos As conseqüências de suas ações tal como entendidas ordinaria mente por exemplo por Criton que tentou persuadilo a fugir da prisão e da morte não teve qualquer influência em seu dever de manterse fiel à vida filosófica Além disso em sua visão do reifilósofo Sócrates retratou um governante que po deria através da ordenação de sua alma pela ordem divina transmitir a ordem divina para uma cidade terrena Tal alma poderia viver de acordo com a cidade celestial mesmo que nâo fosse esta instituída na terra República 592 e assim o filósofo poderia ir além do desconcertante reino de sugestões e insinuações que é a vocação do político Para Só crates portanto a busca da sabedoria é a felicidade e se a felicidade é uma forma de pra zer é o prazer que define o padrão pelo qual julgar os méritos de todos os outros supostos prazeres Aqui a correção é separada da utilidade em uma visão da ascensão da alma Isso contrasta com a visão utilitarista de Bentham do aperfeiçoamento social imanente Bentham considerava a busca de um summum bonum bem supremo uma 6 4 6 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 24 Bentham argumenta que deveríamos cumprir nossas promessas porque tal é o benefício a ser ga nho e o dano a ser evitado por mantêlas que muito mais que compensa o dano e tal puniçáo que for requerida para obrigar os homens a cumprilas e é essa uma questão de fato a ser decidida por testemunho observação e experiência A Fragment on Government p 270 col B tolice consumada uma busca por algo supostamente melhor e diferente do prazer mas impossível de ser encontrado Bentham chama Platão do mestre fabricante do absurdo e em geral lejeita os sãbios antigos O que desperta a ira de Bentham é o antigo esforço para depreciar as ideias co muns de felicidade como vulgares Tal depreciação poderia ser defendida apenas en quanto o alegado bem maior fosse aceito sem críticas Acreditava que qualquer um que incitasse alguém a íir contra seus interesses se esforçaria para criar em alguém o interesse em assim e para que Esse de acordo com ele A rejeição da vontade geral de Rousseau por Bentham também decorre desse ponto Para Bentham a vontade geral é uma forma moderna da antiga tentativa de impor a virtude aos indivíduos em detrimento da sua própria felicidade auto compreendida Forçar os homens a serem livres é para Bentham uma contradição impossível que surge a partir do fracasso da teoria do contrato social em fornecer uma base adequada para o exercício da autoridade política Como David Hume Bentham percebeu que a teoria do contrato social pressu põe um prévio compromisso de cumprimento das promessas como na concordância em deixar o estado de natureza e obedecer a um governo Assim não é o contrato que cria o cumprimento das promessas mas o cumprimento das promessas que íàz plausíveis os contratos A teoria do contrato social expressa uma atitude em relação ao governo que deve ter surgido muito antes como um hábito de obediência adquirido por meio da experiência da sua utilidade Bentham argumentou francamente que a lei com suas sanções punitivas não cria a liberdade mas a inibe O que justifica a lei ao íàzêlo é que a felicidade geral é aumentada por isso Bentham esperava que sua perspectiva quando universalmente aceita acarretasse duas conseqüências de uma só vez primeiro o número de acordos substanciais seria pequeno mas teriam base sólida sjundo seriam abolidas muitas restrições tradicio nais herdadas daquelas que Bentham considerava teorias religiosas morais políticas e econômicas antiquadas Para ele uma ordem política racional é aquela em que há uma distinção cada vez mais precisa entre o que é obrigatório e o que é uma questão de preferência particular Seria entendido que a ordem não precisa depender de extensas obrigações legais mas sim da garantia de que as obrigações existentes podem ser de fendidas independentemente de quaisquer interesses especiais Em troca pela garantia da conformidade dos cidadãos à lei o leque de sua livre escolha no reino moral poderia ser indefinidamente ampliado No entanto se a expansão indefinida da liberdade individual deve de fiito ser compatível com a ordem e o progresso é preciso demonstrar que não acarreta um egoísmo bruto ou um antagonismo mútuo É possível desfrutar de uma garantia razoá vel de respeito mútuo Por que alguém se importaria com outros J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 7 25 Deontology in Deontology together with A Table ofthe Springp ofAction and theArticle on UtiUtaria nismp 134147 26 A Table ofthe Springs ofAction in ibid p 26 Como vimos o princípio da utilidade íunciona de modo a suscitar uma maior consciência em cada um acerca da aspiração à felicidade que está em todos O princípio nâo nos pede que suprimamos a realidade de nossas próprias experiências de prazeres e dores Não implica que haja um bem ou interesse comum independente para o qual são irrelevantes nossas experiências ou ao qual devem se subordinar inquestionavelmente Em todas as ocasiões afirma Bentham temse a motivação puramente social de simpatia ou benevolência e na maioria das vezes os motivos semissociais do amor pela amizade e do amor pela reputação O poder desses motivos variará de acor do com as disposições dos indivíduos e das circunstâncias e principalmente de acordo com a força de seus poderes intelectuais a firmeza e constância de sua mente o quan tum de sua sensibilidade moral e o caráter das pessoas com quem tem de lidar A aspiração fundamental pela felicidade em cada indivíduo é idêntica à aspiração íundamental da legislação entendida de forma adequada Esta aspiração não desapa rece quando a legislação está ausente e poderia ser frustrada quando é imposta uma legislação ruim A legislação não deve necessariamente ser usada para nos obrigar a realizar açóes benéficas ou para evitar ações que possam ser prejudiciais A teoria de Bentham tenta especificar a relaçáo entre ética privada e deveres legais A arte da legislação consiste em saber quando náo legislar bem como quando fazêlo O objeto geral que todas as leis possuem ou deveriam possuir em comum é aumentar a felicidade total da comunidade excluir tudo que tenda a diminuir essa felicidade eliminar danos Entretanto toda punição é dano toda a punição em si é má Dentro do principio da utilidade só deve ser admitido na medida em que promete excluir algum mal maior Uma vez que Bentham afirma que os ditames da utilidade não são nada além dos ditames da mais ampla e iluminada que é prudente benevolência parece de correr daí que o mais elevado cumprimento dos ditames da utilidade ocorreria sem coação Assim a punição é o último recurso Os legisladores devem relutar em agir Com efeito a relutância em legislar pode muito bem ser uma condição prévia para uma boa legislação Entretanto quando a legislação é necessária deve ser clara e pre cisa e a punição deve ser rápida íirme e proporcional ao delito mas não mais do que o necessário Remédios ineficazes por causarem dor sem curar o mal que têm o intuito de curar multiplicam o mal ao invés de reduzilo 648 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y PML Cap XVII p 284 Ibid p 284285 Ibid PML Cap XIII p 158 7W iC apX p 117 PML Cap XIII passim PML Cap XVII p 288 Visto que Bentham rejeita apelos para regras jurídicas eternas ou imutáveis a única meta para os legisladores deveria ser assegurar o prazer e a segurança do povo Todas as políticas e a legislação devem ser justificáveis em termos do princípio da utilidade Assim uma vez que este princípio é compreensível para todos todos são qualificados para avaliar qualquer legislação de modo crítico Aqueles que exercem os poderes de um cargo governamental não têm nenhuma sabedoria além da fornecida a todo ser humano que entende a economia da natureza soberana e é capaz de assimilar as lições da experiência com os sistemas correntes os poderes da natureza podem agir por si próprios mas nem o msistrado nem os homens em geral podem agir nem deveria Deus no caso em questão sir a não ser através dos poderes da natureza Em seguida Bentham fornece um modelo de pensamento racional para o legisla dor o valor de um prazer ou dor está diretamente relacionado à sua intensidade duração certeza imediatismo fecundidade pureza e ao número de pessoas realmente afetadas A fim portanto de avaliar de modo preciso a tendência geral de qualquer ato pelo qual sáo afetados os interesses da comunidade proceda da seguinte forma Comece com qual quer uma das pessoas cujos interesses pareçam ser mais diretamente afetados pelo ato Some todos os valores de todos os prazeres de um lado e os de todas as dores do outro Some todos os números que expressam uma boa tendência que o ato possua com re lação a cada indivíduo para quem a tendência do ato seja boa no todo novamente em relação a cada indivíduo para quem a tendência do ato é ruim no todo Calcule o saldo Em tudo isso não há nada além daquilo a que a prátíca da humanidade onde quer que tenha uma visão clara de seus próprios interesses se adapta perfeitamente Embora Bentham não insista que laboriosamente os legisladores realizem sem cessar esse processo acredita de íato que devemos ter sempre em mente este modelo pois toda pessoa tem propensão a alguns tipos de prazeres em detrimento de outros Tal ordem política asseguranos Bentham desfrutará de crescente autoconfiança na medida em que se fizerem sentir os efeitos a longo prazo da aplicação consciente do princípio da utilidade Este padrão a posse comum de todos constitui a base comum para discussão e debate A sociedade informada por esse princípio pode exercer sua vontade política preservandose e transformandose em um contínuo processo de autodesenvolvimento James Mill foi o principal discípulo de Jeremy Bentham Liderou o movimento que visava colocar em prática as ideias de Bentham sobretudo na elaboração de um programa educativo para fazer com que seu filho John Stuart Mill se tornasse a en carnação viva dos ideais utilitaristas Mill tinha certeza de que poderiam ser realizadas drásticas reformas parlamentares sem violência Acreditava no poder de argumentos intelectuais para expressar e mobilizar o descontentamento popular assim pressionan do os governos a mudarem An Essay on Government Um ensaio sobre o governo J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 4 9 34 PML Cap III p 37 35 PML Cap IV publicado em 1820 tencionava ser uma simples argumentação defendida com firme za em fevor de um governo representativo democraticamente eleito que poderia ser entendida por qualquer um Mill acreditava ser capaz de intensificar e unificar as pers pectivas políticas entre todos os segmentos da sociedade excluídos do poder político O ensaio de Mill descreve o caminho que devemos percorrer para transcender a política aristocrática que prevalecia Invoca o princípio da maior felicidade do maior número a íim de conectálo a metas específicas para o íuturo Princípios tão gerais são defeituosos na medida em que as ideias particulares que abraçam são anunciadas de modo indistinto e por meio delas diferentes concepções são suscitadas em mentes diferentes e até mesmo em apenas uma única mente em diferentes ocasiões A re forma política correta vai superar esses defeitos A única tarefa do governo é aumentar ao máximo os prazeres e diminuir ao máximo as dores que os homens obtêm uns dos outros p 8 A lei da natureza dita que os homens devem trabalhar para sobreviver A escassez acarreta prejuízos e con tendas e competição pela autoridade uns sobre os outros para proteger seus interesses Enquanto não existe um governo comprometido com uma distribuição equitativa dos escassos materiais da felicidade o poder político será utilizado para defender os ricos contra os trabalhadores p 4849 A principal fonte de riqueza é o trabalho Se os trabalhadores não podem guardar a maior parte do que produzem pouco incentivo têm para o trabalho e devem ser cosidos ou escravizados A conseqüência disso só po deria ser a sistemática exclusão dos muitos pelos poucos da participação na definição da maior felicidade do maior número O governo deve ser redesenhado contra este resultado Deve ter o poder necessá rio para resistir a interesses particulares Uma vez que tal poder foi alcançado porém todas as difíceis questões de govemo são relativas aos meios de impedir que aqueles em cujas mãos estão depositados os poderes necessários para a proteção de todos fe çam mau uso deles p 50 Seria uma grande desgraça para a reforma substimir um predador antigo por um novo Mill constata no entanto que não satisfezem às formas tradicionais de gover no pelos muitos pelos poucos ou por um O governo pelos muitos a solução de mocrática exige que toda a comunidade se reúna Isso é impraticável para a própria população trabalhadora que deve proteger Mesmo que fosse viável a reunião de toda a comunidade porém essas assembléias são notórias por sua volatilidade são inapro priadas para conduzir os assuntos do governo O governo pelos poucos a solução aristocrática também íiracassa As aristocracias hereditárias são desprovidas dos mais fortes motivos para o trabalho São susceptíveis a deficiências mentais porque os poderes intelectuais são os filhos do trabalho p 53 Os aristocratas são os principais candidatos a adotar uma atitude predatória para com o povo A forma monárquica está aberta às mesmas objeções os poucos que detêm o poder tentarão sempre derrotar o próprio fim para o qual existe o governo p 54 6 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 36 James Mill An Essay on Government ed Currin Shields New York Liberal Arts Press 1955 p 47 Todas as citações são desta edição Mill pergunta retoricamente se somos obrigados a chegar à deprimente con clusão de que o governo é necessário mas que nenhuma forma de governo é aceitá vel Não poderíamos aimentar seguindo Hobbes que quanto menor o número de governantes menor a parcela de nossos bens que demandariam e portanto uma oligarquia ou monarquia seriam um mal menor Talvez até mesmo um soberano único e absoluto fosse uma solução racional Infelizmente a história parece fornecer quanti dades iguais de soberanos bons e ruins E isso não é tudo Um soberano absoluto sempre teme a rebeldia de seus súditos pois não são ovelhas mas seres pensantes e sensíveis O governante absoluto jamais será capaz de aceitar que as pessoas sejam subservientes o bastante Buscará mais e maiores ga rantias de controle Tal ocorre não porque o soberano é diíèrente dos outros mas porque a lógica das relações humanas seria aplicável a qualquer pessoa na mesma situação O poder é um meio para um fim O fim é tudo sem exceção que o ser humano deno mina prazer e remoção da dor O grande instrumento para alcançar aquilo que um ho mem aprecia são as açóes de outros homens Portanto o poder em seu significado mais apropriado exprime segurança para a conformidade entre a vontade de um homem e os atos de outros homens Esta não é presumo uma proposição que será questionada portanto a demanda de poder sobre os atos de outros homens realmente não encontra limites no número de pessoas a quem gostaríamos de estendêlo e sem limites em sua gradação sobre as ações de cada um p 5657 Como o poder pode vir a ser um fim em si não se sue que quanto menor o grupo governante menor o p e r de sujeição arbitrária Além disso enquanto o governante pode tentar manter o poder pela distribuição de recompensas que proporcionam prazer é mais provável que busque uma segurança maior no grande instrumento do Terror p 59 Este porém se autoalimenta tornandose cada vez mais extremo e diíundido O poder tende a escravizar o governo ilimitado precisa escravizar aqueles a quem se destinava a servir O desejo desenfreado é o desejo ilimiudo as ações decorrentes deste desejo ilimitado são os ingredientes com os quais é feito o mau governo p 63 Uma alternativa proposta com frequência e considerada como ilustrada pela es trutura do governo britânico então existente era o governo misto composto por todas as três formas simples Isto supóe que o rei a aristocracia e o povo sejam três vontades separadas cada uma unificada na busca de seus próprios interesses De acordo com a ciência da natureza humana tal como expressa por Mill cada um deve buscar ao má ximo seus próprios interesses Não se pode excluir a possibilidade de que dois dos inte resses se combinem contra o terceiro Na verdade Mill acredita que isto seja inevitável O poder nunca é distribuído igualmente não há equilíbrio natural entre as forças Em particular as pessoas são propensas a superestimar ou subestimar o poder de cada interesse e a agir de acordo com suas percepções equivocadas Os assuntos humanos mudam sem cessar e é impossível impedir que se revelem as diferenças de talento e fortuna O sucesso dá ímpeto a disparidades cada vez maiores entre os interesses A doutrina dos freios e contrapesos é visionária e quimérica p 65 J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 5 1 No entanto o resultado mais provável é a combinação da monarquia e da aris tocracia contra a democracia os dois interesses podem diferir mas nenhum dos dois deseja ser tr d o pelo poder democrático Mill constata ser inevitável que o povo será sobrepujado a não ser que sejam introduzidas outras precauçóes Aventamos mais uma vez a possibilidade de que o povo cujo interesse é o mais amplo na comunidade não pode nem governar nem se proteger O remédio só pode ser a criação de um órgão representativo que pode governar pelo povo sob controles que evitem a corrupção dos representantes Deve ser dado o poder necessário ao corpo representativo para o desempenho de suas funções deve este também ter uma identidade de interesses com a comunidade p 67 Em termos práticos isso significaria garantir que o poder da Câmara dos Co muns britânica pudesse defenderse contra o poder da Câmara dos Lordes combinado com o poder do rei Esse aspecto da reforma parecia simples a Mill pelo menos na sua concepção Mais difícil é a questão de como elevar a Câmara dos Comuns sem torná la o novo lobo no lugar do velho É preciso avaliar com grande cuidado o esquema de representação Primeiro os representantes devem ser membros das comunidades que representam Devem ser su jeitos às conseqüências acarretadas pelo mau governo A eficiência impede uma redu ção do poder mas podemos reduzir a duração do mandato do representante de forma a garantir que sofrerá as conseqüências das decisões que tomar durante seu mandato Devemse rejeitar cargos vitalícios ou hereditários mas deve ser permitida a reelei ção deve haver recompensa pelo serviço fiel e não meramente penalidades por atos ofensivos durante o mandato Porém a eleição de representantes deve ser ela própria representativa da comunidade Isto significa que o sufrágio deve ser ampliado embora as crianças e as mulheres sejam excluídas em razão da identidade de interesses com os pais e maridos Os homens adultos com pelo menos 40 anos de idade sujeitos a uma modesta qualificação por propriedade são os representantes naturais de toda a população Mill acreditava que esta era a melhor aproximação a um corpo ao mesmo tempo representativo e não muito grande e desfrutando de poucos incentivos para explorar as minorias Náo haverá representação especial para os interesses tradicionais tais como proprietários de terras comerciantes ou fabricantes Não haverá representa ção especial dos militares ou dos advogados Revolucionaria este novo sistema de governo representativo a ordem estabeleci da destruindo a monarquia e a Câmara dos Lordes Sejam mantidas ou náo a base para as decisões deixará de ser encontrada em uma reverência para com os costumes ou a tradição Serão mantidos somente se forem importantes e necessários ramos de um bom governo p 83 Entretanto dada a própria explanação de Mill acerca da lógica de interesses concorrentes como podemos esperar uma avaliação desapaixonada dessas instituições Somente se assumirmos como ele que o corpo legislativo recém estabelecido verdadeiramente representará os interesses de toda a comunidade de modo que tudo que aprecie para possível reforma náo seja julgado por qualquer outra norma a náo ser os interesses de toda a comunidade No entanto mesmo se fossem mantidas essas antigas instituições teria de mudar todo o seu significado e função 6 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Mill nega com muita clareza qualquer dependência do povo em relação a uma orientação pela aristocracia Assim a monarquia e a aristocracia devem ser julgadas em termos de sua utilidade administrativa Além disso Mill está certo de que o órgão representativo que sugere pode não possuir nenhum dos males por desígnio encon trados nos tradicionais governos aristocráticos Não considera a questão da tirania da maioria como faz Madison em O Federalista 1788 e Tocqueville em De la démocratie en Amérique A democracia na América 1835 Tudo depende do sucesso de sua re forma da representação em contornar a lei natural da expansão sem limites do poder O novo poder legislativo deve identificar e apoiar o interesse do todo Mill acredita que esta reforma política pode ter todos os efeitos salutares da re forma religiosa que a precedeu O poder da interpretação pessoal da Bíblia sem orien tação sacerdotal alterou completamente a condição da natureza humana e elevou o homem ao que pode ser chamado de uma fese diferente da existência p 88 Se assim foi nos tão intricados assuntos de interpretação relosa não será muito mais fecil que cada um entenda seus próprios interesses locais A virtude política é a prudência e a prudência é uma caraaerística mais geral daqueles que não dispõem das vantagens da fortuna do que daqueles que foram totalmente sujeitos a sua ação corrup tora Seria melhor confiar os poderes do govemo a incapazes que têm interesse no bom governo do que a incapazes que têm interesse no mau governo p 8889 A proporção entre homens sábios e homens tolos é aproximadamente igual afir ma Mill na aristocracia e nas classes democráticas A presença proporcional de insen satez e sabedoria portanto não se altera apenas porque a democracia substituiu a aris tocracia no poder A camada média da sociedade a parte mais inclinada à prudência está totalmente incluída na porção democrática da comunidade Aqueles que estão abaixo da camada média serão sujeitos à influência da camada média Assim há uma fonte namral de liderança política prudente na porção democrática Não há dúvida de que a camada média que dá à ciência à ane e à própria legislação os seus mais distintos ornamentos e é a principal íbnte de tudo o que deve ser exaltado e refinado na natureza humana é a parte da comunidade cuja opinião se a base de repre sentação bsse um dia tão ampliada seria decisiva Daqueles ababco deles uma grande maioria decerto seria guiada por seus conselhos e exemplo p 90 A camada do meio mediará entre pobres e ricos fornecendo o modelo exemplar de conduta pessoal e política correta Assim o ensaio de Mill é um apelo retoricamente poderoso para a reforma eleitoral que promete trará poder para aquele elemento da sociedade com maior probabilidade de identificar seus interesses com os interesses do todo Por sua vez será possível uma interpretação adequada do cálculo de Bentham de prazer e dor na política lislativa É preciso avaliar com grande cautela se as leis naturais da competição humana afirmadas sem ressalvas por Mill podem ser transformadas em vantagem por meio dessa reforma mecânica É preciso avaliar também se a autoridade natural que Mill rei vindica para a camada média pela lógica de seus próprios argumentos virá a parecer J e r e m y B e n t h a m e J a m e s M il l 6 5 3 arbitrária para seus eleitores Além disso as disparidades na intensidade de compro misso entre os interesses podem levar não a atos legislativos imprudentes mas a que os interesses de cada um pressionem o governo para obter preferência sobre seus rivais e a uma intermediação de interesses O conflito entre a liderança intelectual necessária para legislar cientificamente e as demandas de indivíduos e grupos para se libertarem e se desenvolverem como desejarem espreita por trás dos autoconíiantes argumentos de Um ensaio sobre o governo L e it u r a s A Bentham Jeremy An Introduction to the Principies ofMoralj andLegislation Edited by J H Burns and H L A Hart London and New York Methuen University Paperback 1982 Mill James and others Utilitarian Logc and Politics James MiWs Essay on Govemment Macaulays Critiqueand the Ensuing Debate Ed Jack Lively and John Rees Oxford Oxford University Press 1978 B Bentham Jeremy A Fragment on Government in The Collected Works of Jeremy Bentham Ed John Bowring v 1 p 22 1295 Repr NewYork Russell and Russell 1962 Bentham Jeremy Deontology together with A Table ofthe Spring ofAction and the Article on Utilitaria nism Ed Amnon Goldworth Oxford Clarendon Press 1983 6 5 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y G eorg w E H egel A 17701831 Os mais importantes escritos políticos de Hegel sáo por um lado Grundlinien der Philosophie des Rechts Elementos de filosofia do direito e de outro alguns ensaios como aqueles sobre a Constituição Alemã 1802 e a Lei de Reforma Britânica 1830 Aqui nos limitaremos a um exame de sua filosofia política propriamente dita apesar da importância de suas obras mais práticas Sua filosofia do direito ou melhor sua filosofia do Estado é inseparável em grau extraordinário de seus ensinamentos filo sóficos como um todo pois sua doutrina é mais sistemática do que a da maioria dos demais pensadores Isso já fica claro no esquema de sua apresentação O Estado que Hegel descreve é a obra da Razão eterna tal como a apresenta em Wissenschafi der Lopk Ciência da lógica e em Enxyklopãdie der Wissenschafien philosophischen Enciclopédia das ciências filosóficas mas é também o resultado da história universal tal como He gel a delineia em Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte Conferências sobre a filosofia da história Em última análise não se separam Razão e História de acordo com Hegel O desdobramento da Razão segue em paralelo ao processo da história universal ou seja o processo histórico é íundamentalmente racional Por conseguinte Hegel não quer construir um Estado ideal mas reabilitar o Estado real ao demonstrar que é racional Esta reabilitação é dirigida a dois tipos de adversários É contra a atitude de uma consciência moral religiosa ou intelectual que tenta se refugiar na vida interior e rejeitar o som e a fúria da realidade política que Hegel justifica a vida política como tal É somente no Estado e pelo Estado que o indivíduo obtém sua verdadeira realidade pois é somente nele e por ele que atinge a universa lidade Somente o Estado pode íir universalmente por meio da instituição de leis A moral que busca a universalidade pode ser atualizada somente por ser encarnada em instituições e costumes Os costumes ou a moral Sittlichkeií são a vida do Es tado nos indivíduos É em sua devoção ao Estado que o indivíduo vai além de seu 1 G W F Hegel Philosophy ofR ifit trans T M Knox Oxford Clarendon 1942 Prefece p 11 A nâo ser que especificado diversamente todas as dtaçóes são desta ttadução 2 G W F H Lectures on the Philosophy o f History trans J Sibiee New York Dover 1956 Introduction p 52 Todas as dtaçóes sáo desta traduçáo egoísmo primitivo espontâneo é a atividade de instrução do Estado que lhe dá uma fonnação e uma educação Neste sentido Hegel repete a resposta de um pitagórico a um pai que lhe perguntou sobre a melhor maneira de criar moralmente seu filho Façao cidadão de um Estado que tenha boas leis Apesar do que se poderia pensar com base em determinados textos hegelianos essa reabilitação do Estado não deveria ser interpretada como uma deificação dele É bem verdade que de acordo com Hegel o Estado constitui um fim último para o indivíduo que encontra nele a verdade de sua existência seu dever e sua satisfação e que o Estado constitui a atualização ou a aparência do divino no mundo externo Ainda assim a relação do Estado com o indivíduo é essencialmente recíproca é apenas um íim último para o indivíduo na medida em que sua própria meta é sua liberdade e satisfeção Além disso a moral ou religião de uma alma individual tem um valor infinito independente do Estado No Estado o indivíduo ultrapassa o nível de seus pensamentos e desejos pessoais e particulares sua mera existência à qual Hegel de nomina a mente subjetiva Através do Estado aprendeu a universalizar seus desejos transformálos em leis e viver de acordo com eles O Estado é uma realidade não um projeto pode ser vivido e pensado É somente através do Estado que o indivíduo assume seu lugar no mundo é como cidadão que distingue o que é razoável em seus desejos Este é o estíio da mente objetiva Mas a aparência ou realização do di vino isto é do absoluto ou do racional não é nem constituído nem se esgota pelo Estado O Estado apenas introduz e torna possível a mente absoluta É a íbnte da arte da íilosoíia e da religião que de certa forma transcende o Estado Quando Hegel fala do Estado como divino está apenas insistindo que seja respeitado ao demonstrar que é íundamentalmente informado pela racionalidade que apesar de seus aparentes defeitos e contingência é o que deveria ser Desta forma Hegel precisa defender a racionalidade do Estado real contra os românticos que simplesmente se afestam da política e também contra os utópicos e reformistas que se afestam do Estado real em favor de um Estado ideal A íúnção da íilosoíia não é ensinar ao Estado como deve ser mas ensinar aos homens como deve ser entendido o Estado A íilosoíia não pode ir além da realidade de seu tempo pode apenas reconciliarse com ela ao reconhecer a razão como a rosa na cruz do presente A íúnção da íilosoíia não é nem inventar nem criticar mas extrair a verdade positiva com a qual realidade já é informada Assim Hegel deseja revelar o racional no irracional Não só quer descobrir a essên cia necessária do Estado por trás dos detalhes contingentes mas também quer mostrar que o que parece irracional no próprio Estado íúnciona inconscientemente em direção ao triunfo do racional que o que parece contraditório será finalmente harmonizado que o jogo cego das paixões e ações específicas necessariamente termina no advento da ordem política universalmente justa e plenamente desenvolvida Por conseguinte o mal conduz ao bem as pabcões à razão contradição e confiito a síntese e paz 6 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Philosophy ofRight 153 trans P H and A B Ihid Prefàce p 12 Reimpresso cora autorização da Clarendon Press Oxford É o Estado entendido como uma totalidade harmoniosa e diferenciada que fãz possível esta síntese Para expressar a relação entre o todo articulado que não é nada sem suas partes e as partes que não são nada sem o todo Hegel emprega a metáfora do organismo do corpo humano em particular em que cada órgão possui sua verdadeira realidade apenas na função particular que desempenha dentro do todo e também a metáfora de uma estrutura arquitetônica semelhante a uma catedral gótica O parado xo dessa articulação é que resulta do jogo de forças inconscientes O duplo empreendi mento hegeliano termina nesse paradoxo e a ele corresponde a ideia de astúcia da ra zão O Estado emerge tanto como um resultado íinal e uma precondição É resultado da ação dos indivíduos e do jogo das paixões mas uma vez constituído sua estrumra aparece como primeira e primária enquanto a sua gênese é interpretada como um fato meramente empírico e externo O Estado é um resuludo final em que desaparece o feto de que encontra sua origem na ação de indivíduos Que estes indivíduos quer reíiramse à massa de homens que perseguem seus interesses particulares ou os gran des homens que realizam atos heroicos são inconscientemente os instrumentos de um plano que os transcende e muitas vezes contradiz diretamente seus objetivos conscientes que a ação de forças irracionais constrói um edifício arquitetônico que é a imagem da razão eterna é o que se entende pela astúcia da razão que demonstra a racionalidade da história É isto que permite que a íilosofía da história termine em filosofia política e inversamente o que permite que a filosofia política se transforme em uma descrição do Estado fínal plenamente desenvolvido O Estado nasce de confiitos e é por sua vez o palco e a origem de numerosos confiitos em potencial Isto é verdade do Estado porque é verdade do próprio homem O homem não se eleva ao nível da humanidade isoladamente mas em uma batalha mortal pelo reconhecimento O homem existe por si mesmo tem consciência de si mesmo ou de sua própria liberdade apenas na medida em que é reconhecido como consciência ou liberdade por outra consciência ou por outra liberdade Cada um dese ja ser reconhecido pelo outro sem por sua vez reconhecêlo Cada um se afirma como livre e por conseguinte como humano somente na medida em que é capaz de negar seu ser natural em prol do reconhecimento arriscando sua vida pelo prestígio Desta forma a luta pelo reconhecimento será uma luta de vida ou morte Por este mesmo motivo terminará em desigualdade Um dos dois adversários preferirá a vida ao prestí gio ou à liberdade Movido por seu medo da morte violenta consentirá em reconhecer o outro sem insistir em ser reconhecido por ele Submeterseá ao outro Assim o ho mem necessariamente emerge da luta pelo reconhecimento ou como mestre ou como escravo Sua realidade é então essencialmente social e até mesmo política já que a luta pelo reconhecimento e a submissão a um domínio é o fenômeno do qual emergiu a vida social do homem e é o princípio dos Estados G e o r g w f H e g e l 657 5 Phenomenology ofM ind Ed Hoffmeister Philosophisches Bibliothek Hambuig F Meiner 1952 chap vi B a p 355 trans RH and AB 6 Philosophy fRight Prefoce p 6 cf 275 p 174175 Philosophy of History Introduction p 33 7 Encyclopedia of Philosophic Sciences Philosophisches Bibliodiek Hambuig F Meiner 1959 433 p 352 trans P H and A B O conflito entre senhor e escravo antecede ao Estado Ocupa o mesmo lugar na formulação de Hegel que o estado de natureza o contrário do estado civil ocupa em Hobbes E como em Hobbes deixa sua marca na realidade política que daí decorre Para ambos o Estado emerge da violência a primeira relação entre os homens é o con flito que póe em jogo as duas paixóes fundamentais a vaidade ou o desejo de reconhe cimento e o medo da morte violenta Porém a relação do senhor e do escravo longe de se encerrar com a vitória do senhor engendra uma dialética que será a mola motriz da história humana O senhor força o escravo a trabalhar para ele Essencialmente ociosa a vida do senhor se resume na busca de reconhecimento prestígio e glória por meio da guerra O senhor não trabalha não está em contato direto com as coisas O escravo por outro lado que prepara as coisas para atenderem as necessidades do senhor é aquele que transforma a natureza e a si mesmo por meio do trabalho Posterga a destruição da coisa através do consumo ao preparála por meio do trabalho e adia a satisfeção de suas próprias necessidades ao trabalhar para atender as do senhor o trabalho é desejo reprimido O escravo trabalha em termos de uma ideia abstrata um projeto a ser rea lizado Dá forma ao mundo exterior que adquire uma consistência própria e exibe sua marca e dá forma a si mesmo ao separarse de seus instintos e ao tornarse um aprendiz em noções gerais abstratas linguagem e pensamento Assim por meio do trabalho do escravo são constituídos tanto o mundo da técnica como a própria sociedade por um lado e o mundo do pensamento da arte e da religião por outro É portanto a atitude de trabalho e medo da morte violenta a atitude prosaica a do escravo e da burguesia em oposição à atitude heróica e aristocrática que exatamente como em Hobbes são a base da sociedade de Hegel Além disso enquanto para a íilosoíia política clássica o lazer tinha uma dignidade maior do que o trabalho porque sua oposição refletia a oposição existente entre a teoria e a prática para Hegel o pensamento e o universal estão do lado do trabalho e o lazer é concebido como essencialmente belicoso Porém tal compensação não é suficiente para o escravo que continua insatisfei to nem para o senhor pois nenhum deles obteve o reconhecimento que esperava o reconhecimento de outra consciência livre O conflito permanece e é função do Es tado resolvêlo É dupla a reconciliação que o Estado deve efetuar Por um lado o Estado íimdamentase na reciprocidade seus cidadãos reconhecem um ao outro é o denominador comum do reconhecimento recíproco a que senhor e escravo almejam em vão Por outro o Estado encontra em si tanto o momento ou elemento de traba lho e de necessidade como de sacrifício e de guerra Esta tensão aparece sob forma de oposição entre sociedade civil e Estado entre o buiguês e o cidadão O problema do Estado moderno será precisamente tolerar os dois momentos e reconciliálos ou seja implementar a síntese do ponto de vista aristocrático e do ponto de vista burguês ou em última análise do senhor e do escravo 658 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y Philosophy ofMind Ed Hoffmeister Philosophisches Bibliothek Hambuig F Meiner chap iv sec A p 149 trans P H and A B Em última análise todos os conflitos implícitos nas relações do indivíduo da família da sociedade e do Esudo remetem a uma oposição íundamental que tem sede na vontade do indivíduo um conflito que põe em jogo o status do indivíduo no Estado Em vários níveis o conflito permanece como a oposição entre o individual e o univer sal a vontade partícular e a vontade geral o interesse priwido e o interesse público o burguês e o cidadão a satisfeção das necessidades e o sacrifício os direitos e os deveres as paixões e a razão a interioridade negativa e a positividade a consciência crítica e a aceitação da lei em suma entre o que Hegel denomina liberdade subjetiva como consciência e vontade individuais em busca de seus objetivos particulares e liberda de objetiva isto é a vontade geral substancial Para Hegel o Estado como liberdade concreta é a união destes dois elementos na medida em que o indivíduo se satisfez com o reconhecimento do universal como lei c com a adoção do Estado como fim Hegel afirma que é da união do particular e do universal no Estado que tudo depende Esta unidade de seu fim último universal e dos interesses particulares dos indivíduos se expressa no fato de que têm deveres para com o Estado na mesma medida em que têm direitos contra ele Esta reciprocidade de direitos e deveres portanto permite que o Estado constitua uma totalidade serena O direito à liberdade subjetiva deve ser reco nhecido de duas maneiras como o direito da particularidade do sujeito de ver satisfeitas suas necessidades e seu bemestar e como o direito de consciência de não reconhecer nada que não aprove racionalmente No entanto a particularidade deve adaptarse ao universal e à vida coletiva e a consciência crítica não deve por em perigo a existência de uma autoridade de um governo de um Estado oiganizado Tal condição obviamente só é atendida pelo Estado moderno Quanto ao passado não feltam exemplos históricos que evidenciam os perigos que tiveram de ser superados a íim de atingir um Estado racional A imperfeição e a ruína do mundo g r do ponto de vista político são conseqüência de seu mau entendimento do princípio da particula ridade O direito da particularidade do sujeito de encontrar sua satisfeção ou em outras palavras o direito da liberdade subjetiva constimi o eixo central da diferença entre os tempos antigos e modernos Os gros viviam de modo natural e imediato para o geral ou o substancial para a pátria Dos gregos podemos afirmar que na primeira e verdadeira forma de sua liberdade náo possuíam consciência Entre eles reinava o hábito de viver para a pátria sem uma reflexão mais aproíúndada Por conseguinte não há lugar para a subjetividade em qualquer de suas formas como o direito à satisfeção de necessidades particulares e ao bemestar a busca destes pertencia somente aos escravos como o direito à liberdade na escolha da vocação e na determinação da posição de classe ou como o direito da consciência crítica que sente a necessidade de íúndamentar na tazão o seu apego ao regime pofitico e sua ação moral Ao contrário o desenvolvimento G e o r g w f H e g e l 659 9 Philosophy o f R i 261 addition ttans P H and A B 10 Ihidp6 11 Éãi 124 p 84 12 Philosophy ofHistory p 253 independente da particularidade ou liberdade subjetiva aparece nos Estados gregos como um princípio hostil como uma destruição da ordem social Sua emergência nos Esta dos antigos é contemporânea da corrupção dos costumes e é a causa suprema de sua decadência No Império Romano a individualidade é reconhecida porém abstrata e externamente É dissolvido o Estado como um todo orgânico Todos os indivíduos são degradados ao nível de indivíduos particulares iguais entre si dotado de direitos for mais e o único vínculo a mantêlos juntos é a abstrata e insaciável vontade própria Isso ocorre porque estava ausente uma constituição e uma organização da vida moral concreta em geral que unisse o senhor e os súditos Em outra forma e em um contexto muito diverso encontrase a dupla acusação de abstração e arbitrariedade relacionada à ausência de organização nas alusões de Hegel sobre a França A Revolução Francesa representa uma conquista irrestritamente vital a decisão de colocar o pensamento ou a razão na base do Estado É o advento do princí pio da consciência subjetiva e com ela dos princípios de liberdade de igualdade e dos direitos do homem e do cidadão No entanto estes princípios que em si mesmos íàzem parte da própria essência do Estado moderno são concebidos de forma abstrata e indi vidualista que não deixa espaço para a organização e o governo ou para qualquer coisa concreta A realização dessa liberdade negativa e destrutiva que pretende suprimir toda diferenciação e toda determinidade significa terror indefinido já que qualquer institui ção é antagônica à autoconsciência abstrata de igualdade Uma vez que as tentativas de democracia em Estados grandes e desenvolvidos só pode levar à abstração e uma vez que há sempre um governo o liberalismo revolucionário está condenado a estar perpetuamente na oposição Depois de Napoleão que entendera corretamente a necessi dade de conciliar os princípios da revolução com a autoridade de um Estado organizado a vida política francesa permaneceu sob o domínio das contradições que afiigem uma nação cuja vida fora dominada por categorias abstratas havia uma oposição perpétua por parte dos estadistas aos homens de princípio e do govemo para com o povo Enquanto o povo não se organiza no Estado e pelo Estado constitui apenas uma coleção de vontades particulares e não sabe o que quer Pode manifestarse somente de forma arbitrária de forma prejudicial para toda organização Com este formalismo de liberdade com essa abstração nenhuma organização sólida pode ser estabelecida As disposiçóes particulares tomadas pelo governo encontramse imediatamente em oposição à liberdade pois são apenas manifestaçóes da vontade par ticular e portanto arbitrárias A vontade dos muitos sobrepuja o ministério e que foi até agora a oposição entra no palco como o novo governo Porém na medida em que é agora um governo tem por sua vez os muitos contra ele Desta forma são perpetuadas a mudança e a inquietação 660 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 13 Philosophy of Right Preface p 10 14 Ihid 357 p 221222 15 Ihid 5 addition p 228 16 Philosophy of History p 450 17 Philosophy of Right 301 p 196 18 Philosophy of History p 452 Assim H el que o reconhecimento das liberdades e direitos individuais e a igualdade jurídica conduzam à democracia Sustentar que cada indivíduo deva compartilhar da deliberação e decisão de questóes políd cas de interesse geral com o iindamento de que todos os indivíduos sáo membros do Estado que as preocupaçóes deste são as suas preocupaçóes e que é correto que o que é feito deva ser feito com seu conhecimento e volição eqüivale a uma proposta paia colocar dentro do orga nismo do Estado o elemento democrático desprovido de qualquer forma racional embora seja apenas em virmde da posse de tal forma que o Estado é um organismo O indivíduo deve ser levado em conta politicamente apenas na medida em que ocu pa um lugar definido nesse oiganismo A possibilidade de cada um se tornar um membro da classe governante a igualdade jurídica não deve ser prejudicial para a diferenciação social nem deve a opinião pública a possibilidade de cada um fezer sua voz ouvida pela autoridade causar danos à autoridade do Estado e seus representantes competentes Desta íbrma H l deseja uma síntese da libertação e respeito da paixão e da moralidade de princípios revolucionários e da necessidade da ordem política Histo ricamente o Estado moderno deveria representar uma síntese da polis cuja unidade confiança mútua dos cidadãos c sua ligação com o todo devem ser preservadas e da sociedade liberal da economia política cuja diversidade e diferenciação satisfeção de necessidades individuais realização do universal pelo livre arbítrio individual deveriam ser presenidas Filosoficamente Hegel pretende efetuar uma síntese da moral clássica ou substancial e concreta e da moral cristãkantiana ou interna e abstrata da política de Platáo fimdamentada no primado da razáo e da virtude e da política de Maquiavel Bacon Hobbes e Locke fimdamentada na emancipação das paixóes e sua satisfeção O meio para esu síntese é a história O sujeito e a finalidade da história são a progressiva revelação da liberdade ou o que eqüivale à mesma coisa a consciência que obtém a mente de si mesma por meio da história A mente compreende a si mesma como sendo essencialmente constituída por sua liberdade e sua liberdade se realiza neste ganhar consciência A liberdade é realizada no Estado moderno porque por um lado o Estado desligouse e manifestou diferentes momentos e aspeaos da liberdade liberdade objetiva liberdade subjetiva e assim por diante e por outro uma vez que a liberdade é agora revelada como a essência do homem todos os homens no Esudo são e sabem que são nele essencialmente livres A descoberta da verdadeira e comple u essência da liberdade coincide com a liberdade de todos No entanto se é verdade que a finalidade da história só é realizada no Estado moderno e pelo Estado moderno nâo é menos verdade reciprocamente que o Esudo moderno só pode ser constituído quando o princípio em que se baseia foi revelado em seus diferentes aspectos Assim é necessário que todos os homens sejam reconhecidos como livres que tenha surgido na religião o princípio da liberdade interior ou do valor infinito do indivíduo que a particularidade das necessidades e a demanda por sua satisfeção tenham despontado G e o r g W F H e g e l 661 19 Philosophy of Right 308 p 200 nos costumes e na moral dos homens Esta revelação só é completada no fim da histó ria pois a teia da história é tecida pelo surgimento gradual de princípios incompletos cada um deles manifestando um novo aspeao da liberdade mas cada um dos quais está condenado a desaparecer como conseqüência da sua própria incompletude Os desenvolvimentos destes princípios específicos são os espíritos dos povos Volksgeisté pois constituem totalidades concretas dentro das quais o princípio animador se expres sa de forma abrangente em religião ciência arte eventos e destino Assim a história é a história da religião dos costumes e da moral da arte da economia e assim por dian te ao mesmo tempo em que é história política A constituição política de um povo é o resultado de seu espírito mente desta forma é perigoso impor a um povo uma constituição construída a priori Só se pode fidar historicamente das formas políticas pois estas podem ser julgadas somente em relação ao grau de consciência de liberdade ao qual estão associadas Fundamentalmente a história universal se organiza em três etapas que não são três formas de governo mas três graus de consciência de liberdade classificados de acordo com o fiito de ser um alguns ou todos os que conhecem a si mesmos como livres Os orientais ainda náo sabem que mente ou homem como tais sáo em si livres porque náo o sabem nâo o sáo Sabem apenas que um único homem é livre É por isso que tal li berdade é apenas capricho e barbárie Este único homem é portanto apenas um déspota e náo um homem bvie Foi com os gios que a consciência da liberdade despontou pela primeira ve e por isso eram livres mas os gtos assim como os romanos sabiam apenas que alguns são livres não o homem em si Isso nem mesmo Platão e Aristóteles sabiam É por isso que não apenas os gregos tinham escravos mas que sua própria liberdade era ao mesmo tempo confinada em limites estreitos e ao mesmo tempo uma dura servidão do humano Somente as nações germânicas no cristianismo adquiriram a consciência de que o homem como homem é livre que a liberdade espiritual verdadeiramente constitui sua namreza Esta consciência apareceu primeiro na relão na r ão mais recôndita do espírito entretanto informar o mundo com este princípio era uma nova tarefe cuja solu ção e execução requerem um longo e doloroso esforço de educação É a aplioição do princípio aos assuntos do mundo que finalmente decide o destino dos regimes políticos A cidade grega íracassou em parte porque não conhecia o princípio cristão em parte porque seu próprio princípio era demasiado simples para admitir um suficiente desenvolvimento e diversidade na sociedade Em contraste o Estado moderno baseiase na religião cristã protestante e em uma sociedade econômi ca e socialmente diferenciada apenas na religião cristã que desponta o princípio do valor infinito do indivíduo No entanto para que o princípio cristão fosse realizado no mundo por meio do Estado racional era necessária outra revolução espirimal a Reforma É somen te na religião protestante que a liberdade cristã se realiza e efetua sua reconciliação com o mundo e o Estado A descoberta da interioridade cristã eindra uma série 662 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 20 Philosophy ofHistory p 18 de oposições entre a consciência e o mundo o outro mundo e este a piedade que comanda votos de castidade pobreza e obediência e a moral terrestre que recomenda o trabalho o casamento e uma liberdade razoável o clero e a laicidade a Igreja e o Estado Na religiáo luterana porém a reconciliação leva à consciência da capacidade do mundo temporal de conter a verdade dentro de si O casamento o trabalho a diligência os ofícios adquirem um valor moral Acima de tudo é eliminada a obediên cia cega No protestantismo não existe uma classe sacerdotal apenas um sacerdócio universal a consciência individual tem o direito de julgar Eventualmente este vem a se transformar no direito de julgar da razão individual Assim o princípio peculiar ao protestantismo é o da mente livre esse é o conteúdo essencial da Reforma o homem decide por si mesmo ser livre Assim pode ser constituído o Estado racional ao ser conduzida a liberdade subjetiva à universalidade Contudo tal só é possível porque dentro da própria religião a verdade reside doravante no sujeito em si excluindo toda a autoridade externa Já não há qualquer diferença entre sacerdotes e leigos o conte údo da verdade já não é exclusivamente reservado a uma casta É sim o coração a espiritualidade do homem sensível que pode e deve tomar posse da verdade e essa subjetividade é a de todos os homens Cada um deve realizar a tarefe da reconciliação dentro de si mesmo Esta reconciliação abolindo a diferença entre os dois mundos leva ao resultado de que em certo sentido a religião é abolida enquanto é cumprida o protestantismo anuncia tanto cristianização do saeculum quanto a secularização do cristianismo O Estado moderno é cristão e protestante na medida em que seu princí pio tem sua origem na religião Porém uma vez que esse princípio não é nada mais que o da universalidade racional é acessível a todos os homens em si e é secular o Estado que o expressa Em todo o caso este Estado é inconcebível enquanto a Reforma não tiver ensinado a liberdade aos povos Se apesar da atividade de Napoleão os princí pios modernos falharam nos países latinos o motivo é o catolicismo desses países A sujeição à religião traz consigo a servidão política O outro princípio fundamental que no entanto é ligado ao primeiro para a constituição do Estado racional é a diferenciação econômica e social fimdamentada na libertação dos desejos e necessidades individuais A multiplicação das circunstâncias e necessidades individuais a concorrência a divisão do trabalho tornam impossível um regime fundamentado apenas na sabedoria e na virtude dos governantes Tornam neces sária a passíem para a universalidade do direito que caracteriza o Estado moderno O Estado racional está longe de se fundamentar em uma sociedade sem classes ou voltada para a homogeneidade ao contrário Hegel acredita que as diferenças de classe e riqueza não são meramente inevitáveis mas são indispensáveis para a eficácia da liberdade indi vidual e para a atividade do Estado Ainda não há segundo ele um verdadeiro Estado na América do Norte por causa da ausência de tensão econômica e social G e o r g W E H e g e l 663 21 Ibid parte IV sec III chap i p 416 22 Ibid Introduction p 83 O Estado moderno é caracterizado por suas leis racionais mas sua introdução de pende de condiçóes históricas e sociais na ausência das quais essas leis seriam frágeis ou até mesmo perniciosas Por conseguinte Hegel demonstra uma reserva muito prudente em propor a aplicação concreta dos princípios universais Os costumes ou hábitos do povo devem estar preparados esta é a fonte da importância da religião e a transição para a racionalidade deve ser feita com prudência a fim de evitar uma revolução Esta é a tarefa do poder governamental que deve ter uma autoridade forte para este fim Em seu último artigo dedicado à Lei da Reforma Inglesa de 1830 que visa eliminar os burgos podres e aumentar a racionalidade do sistema eleitoral inglês promovendo a democratização Hegel concorda com a inspiração teórica do projeto que tenta intro duzir na Inglaterra os princípios universais há muito vitoriosos no continente e profere uma crítica violenta à arbitrariedade política e social reinante na Inglaterra bem como em seu direito que é apenas positivo e nâo espelha qualquer reflexão Porém ao mesmo tempo Hegel critica a reforma em si com o mesmo cuidado e concorda com a maioria dos temores de seus adversários Embora o artigo não chegue a uma conclusão deixa a impressão de que considerações de prudência levaram o autor a decidir contra a Lei da Reforma apesar de concordar com ela em princípio O motivo é que além da ausência de uma lei racional outro grande defeito Inglaterra é a ausência de um forte poder governamental sendo a monarquia fraca e a aristocracia incompetente Foi a ação dos príncipes auxiliados pelos funcionários públicos que permitiu a introdução de princípios racionais na Prússia sem as convulsões causadas na França pelo espírito abstrato Na ausência de orientação e controle pela mão firme do gover no na ausência da preparação de uma classe dirigente fundamentada na competência ao invés de dinheiro tradição ou demagogia a evolução corre o risco de ser precipita da e gerar a anarquia O Estado prussiano é para Hegel o modelo mais semelhante ao Estado racional porque representa graças não só à religião protestante e à autoridade da monarquia uma síntese entre as exigências revolucionárias dos princípios e as exi gências tradicionais da organização O estabelecimento do Estado moderno então exige três elementos leis racionais governo e sentimento ou moral Platão de acordo com Hegel baseou seus ensinamentos no segundo e no terceiro apenas e negligenciou o primeiro Os revolucionários doutrinários e os liberais por outro lado reconhecem apenas leis racionais esquecendo a importância do estado de espírito do governo e dos cidadãos Os exemplos da França e da Inglaterra mostram cada um à sua maneira os perigos da ausência de um governo real assim como o exemplo dos países católicos onde é impossível uma constituição racional mostra a importância política da religião e da moral como bases para a cultura Bildung dos indivíduos sua educação para o universal e sua formação como cidadãos de um Estado livre O Estado é em certo sentido nada menos do que a coroa e a base desta obra da moral que se eleva do particular para o universal ensinando o indivíduo a realizarse 6 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 23 NT Os rotten boroughs eram municípios que antes da Lei da Reforma de 1832 tinham direito a eleger um Membro do Parlamento muito embora contassem com pouquíssimos eleitores ao darse a um todo As etapas desta educação ou os momentos do espírito moral concreto Sittlichkeií são a família a sociedade civil e o Estado Discerniremos agora o duplo movimento já mencionado o processo pelo qual o Estado moderno cumpre essa síntese que é o resultado dos momentos subordinados íúndamentada na particu laridade e de necessidade racional íúndamentada no conceito universal Tanto a íàmília quanto a sociedade civil são distintas do Estado isto é opôemse a ele tal como o particular ao universal No entanto ambas têm algo em comum com ele por conseguinte alguma coisa por meio da qual contribuem para a educação mo ral ao abrirem o indivíduo para o universal A íamília tem uma unidade substancial constitui um todo íúndado na confiança dos seus membros um íim em si mesmo em que o indivíduo está consciente de ter a sua realidade É portanto a imagem do Esta do com esta diferença a unidade que prevalece nela é natural imediata perceptível ao invés de pensada ou aceita racionalmente A sociedade civil por outro lado é uma associação de membros independentes na qual a pessoa particular como uma totali dade de necessidades é o princípio primeiro A sociedade civil portanto representa o momento de separação e diferença em que a moral concreta Sittlichkeii parece ser dissolvida em íavor da particularidade e do egoísmo Contudo ao mesmo tempo é na sociedade civil que o pensamento aparece sob uma forma que ainda é abstrata a forma da compreensão e da universalidade formal Embora represente o momento da particularidade por excelência o universal está presente nela de várias maneiras Em primeiro lugar as relaçóes recíprocas dos indivíduos criam um sistema de dependência mútua que produz uma universalidade formal que é externa e nâo criada pela vontade dos indivíduos a pessoa particular o primeiro princípio da sociedade civil está em essência relacionada assim com outras pessoas particulares que cada um se afirma e encontra satisíação por meio dos outros e ao mesmo tempo pura e simplesmente por meio da forma da universalidade o segundo princípio aqui A economia política uma criação dos tempos modernos e uma conseqüência da libertação das necessidades individuais é exatamente a ciência desta dependência recí proca por meio da qual cada um enquanto busca seus interesses particulares sem querer obedece às leis gerais Nesse meio tempo como resuludo de suas relações com os outros o indivíduo suas necessidades e seu trabalbo soíiem profimda adaptação A sociedade civil engendra novas necessidades que sâo criadas por ela e não são naturais A necessi dade de se orientar de acordo com outros em uma rotina diária e nos costumes estilos de roupas horários de refeições e assim por diante eleva a individualidade natural dos membros da sociedade civil à universalidade formal da cultura Continua a ser uma uni versalidade obtida de modo inconsciente mas que já transforma a individualidade em si Além disso na sociedade civil o universal tem uma presença direta livre e consciente na forma da necessidade do homem de recorrer à lei e à administração O direito de pro priedade engendrado pelo sistema de necessidades e de seu reconhecimento recíproco é ele mesmo reconhecido em sua universalidade na medida em que a autoridade assegura a sua proteção É a esfera do próprio relativo a cultura que dá à luz o direito G e o r g W F H e g e l 665 24 Philosophy ofRight 182 p 122123 Direito significa universalidade desejado e reconhecido como tal é a base da única igualdade válida É parte da cultuta do pensamento como consciência do indivíduo na fbrma de universalidade que sou apreendido como uma pessoa universal em que todos são idêndcos Um homem conta porque é um homem não porque é judeu católico protestante alemão italiano etc Entretanto essa universalidade contínua a ter o cará ter do direito meramente abstrato A tealização da sua unidade com todo o reino do par ticular é a missão da administração que assegura que primeiro que seja alcançada a imperturbável segurança da pessoa e da propriedade e segundo que a garantia de subsis tência e bemestar de cada pessoa seja tratada e realizada como um direito A previ são administrativa ou seja a ação do Estado protege a universalidade na particularidade da sociedade civil na forma de ordem externa e de instituições que mantêm e apoiam o aglomerado de fins e interesses que existem nela Hegel deseja assegurar um equilíbrio entre a liberdade da indústria e do comércio e a necessidade de previsão e direção por parte do Estado como um todo Embora a vontade e o interesse dos indivíduos sejam as molas de ação da sociedade dvil e a função do Estado seja simplesmente levála de volta para o universal diminuir o perigo de revoltas decorrentes de interesses conflitantes e abreviar o período em que a sua tensão deve ser amenizada por meio do fundonamento de uma necessidade da qual eles próprios nada sabem no entanto ocorre ainda que o princípio de sua organização é o oposto do liberal As condições sociais públicas devem ao contrário ser consideradas como ainda mais perfeitas quanto menos em comparação com o que é organizado publicamente for deixado a cargo do próprio indivíduo de acordo com o que demandam suas tendências particulares Porém dentro do sistema das necessidades em si há um aspecto por meio do qual o individual está ligado ao universal de forma imediata e adquire uma realidade defini tiva Tratase da divisão de classes ou grupos gerais Stãndé Se a femília é a base pri meira do Estado os Stãnde são a segunda Existem três classes e sua divisão é dialética a classe irícola denominada substancial ou imediata a classe industrial denominada reflexiva ou formal e a classe dos funcionários públicos chamada de classe universal A classe i cola é a classe da segurança consolidação satisfeção duradoura das neces sidades e estas nada são além de formas de universalidade Há uma moralidade imediata e concreta que repousa na femília e na boa fé E a classe universal possui sua própria definição do universal para si mesma como objetivo como fundamento como fim de sua atividade Os funcionários públicos são por natureza orientados para o Estado e encontram em seu serviço sua raison detre e sua satisfeção 6 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 25 Ibid 209 trans PH and AB 26 Ibid 230 p 146 27 Ibid 236 p 147148 28 Ibid 242 p 149 29 Ibid2Q3pÒ 30 Ibid 250 trans PH and AB Por conseguinte só a classe intermediária a classe industrial é essencialmente orientada para o particular Por isso é escrava do rigor da insegurança da luta das necessidades de sua multiplicação indefinida e da indefinida divisão do trabalho e da contradição entre pobreza e riqueza Por esta razão requer a intervenção do Estado Por outro lado uma vez que para os seus meios de subsistência depende da refiexão do trabalho e da inteligência é essencialmente esta classe que dá à cultura individual o refinamento e a formação intelectual Nesta classe o indivíduo é despertado para a liberdade por ser despertado para a refiexão A liberdade nasce nas cidades enquanto o campo é tradicionalmente mais submisso porque mais passivo Acima de tudo mesmo nesta classe a particularidade é levada a tomar o universal como sua meta Sittlichkeit é portanto reintegrado à sociedade civil Reintegrálo é a missão da corporação no sentido de guilda ao contrário da firma ou empresa proprietária de açóes conjuntas que tem responsabilidade limitada o que limita as contradiçóes da sociedade civil por assegurar que haja um terreno comum para a pobreza e a riqueza funcionários e empregadores por fornecer uma consagração racional para a diversidade e a rivalidade de talentos e aptidóes por proteger os indivíduos contra acidentes específicos em suma pela superação do isolamento e do rigor da vida civil desempenhando o papel de uma segunda femflia A corporação introduz a moralidade objetiva na sociedade civil por meio dos sentimentos de honra profissional para os quais fornece uma base e a probidade que é verdadeiramente reconhecida e honrada nele Assim é central o papel da corporação pois na sociedade moderna a probidade e a honra profissional sáo as únicas formas realmente vivas da virtude Uma vez que a virtude neste caso representa apenas a adaptação do indivíduo às necessidades da situação em que ocorre encontrarse só pode ser denominada pro bidade A própria virtude no sentido de refiexão moral subjetiva ou no sentido de a virtude determinar o caráter de lun indivíduo em particular só tem lugar na vida quotidiana das sociedades modernas fundadas na sistematização e na universalidade objetiva em circunstâncias extraordinárias e nos conflitos entre deveres Em Estados primitivos e antigos a virtude heróica tinha o seu lugar porque não havia espaço para a ação de indivíduos excepcionais Hoje uma vez que foi constituído o Estado mo derno o sistema racional os substitui O que resta da virtude na sociedade como tal é a santidade do casamento e a honra profissional É por isso que depois da fem ília a corporação constitui a simda raiz moral do Estado a raiz que está implantada na sociedade civil A corporação reúne em si os momentos da particularidade subjetiva e a imiversalidade objetiva que eram anteriormente separados na sociedade civil No entanto este trabalho de união é apenas um aspecto particular daquilo que o Estado define como seu objetivo A esfera da sociedade civil conduz portanto ao Estado Podese entender este movimento quando se reflete sobre a relação do Sittlichkeit tal como expresso na femflia e na sociedade civil para com o patriotismo O senti G e o r g W F H e g e l 667 31 Ibid S 204 trans P H and A B 32 Ibid 255 trans P H and A B mento de femília a honra profissional e a probidade parecem em tempos normais serem os substitutos da virtude política e do patriotismo No entanto conduzem ao patriotismo na medida em que a surança e a confiança que expressam sáo íúndadas no Estado e aqueles que possuem estes sentimentos devem ao se conscientizarem desse feto tomar o Estado como seu objeto Esta conversão pode ser vista na definição de sentimento político ou patriotismo fornecida por Hegel Fste sentimento é sobtetudo de confiança e de certeza de que meu interesse particular e meu interesse substancial são preservados e mantidos dentro do interesse e dos fins de outro aqui o Fstado como conseqüência de sua telação para comigo como individuo Daí decorie que deceno não é outro para mim e que nesse estado de consciência sou livre Sob o nome de patriotismo subtendese a disposição ao sacrifício e a ações ex traordinárias mas em essência tratase da disposição de consciência que em situações e circunstâncias normais leva a entender a vida coletiva como a base e a meta A fim de compreender o conteúdo desse sentimento cívico devemos agora exa minar o Estado como uma organização racional e necessária O sentimento cívico recebe o seu conteúdo específico de diferentes aspectos do organismo do Estado Este organismo é a constituição política Esta constituição é racional na medida em que o Estado internamente diferen cia e determina sua atividade em si de acordo com a natureza do conceito isto é de tal forma que cada um dos poderes é em si a totalidade da constituição Deve haver de feto uma diferenciação dos poderes mas deve esta ser orgânica e não mecânica Os poderes não devem ser considerados nem como inteiramente independentes nem como reciprocamente límitantes uns dos outros nem ainda como mutuamente hostis pelo contrário devem refietir um ao outro mutuamente e ser determinados unicamen te pela ideia do todo O todo forma uma monarquia constitucional baseada em um corpo de fun cionários públicos profissionais e equipada com determinadas instituições representa tivas O aperfeiçoamento do Estado até a monarquia constitucional é a tarefe do mundo moderno O objeto da história universal nada mais é senão a história de sua formação que coincide com a do íntimo aproíúndamento do espírito do mundo Somente a monarquia constitucional corresponde à ideia plenamente desenvolvida de Estado que libertou todos os seus momentos e a uma sociedade complexa que libertou os poderes da particularidade Por exemplo o Estado moderno não pode ser íúndamentado na virtude como são as repúblicas de acordo com Montesquieu em um Estado social mais complexo quando as potências da particularidade estão desenvolvidas e livres não é suficiente a virtude dos chefes de Estado Para que o todo possua a força de se manter e de conceder aos poderes particulares desenvolvidos o 6 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o lIt ic a 5 L e o St r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 33 Ibid 268 trans P H and A B 34 Ibid 269 trans P H and A B 35 Ihid 272 trans P H and A B que é seu direito positivo e também negativo vem a ser necessária uma forma de lei racional diversa daquela que se manifesta nas disposições subjetivas Falando de modo geral a tipologia clássica monarquia aristocracia democracia só era válida para uma sociedade ainda indiferenciada Essas formas sáo encontradas de novo como momentos da monarquia constitucional o monarca é um alguns participam do poder governamental e a multidão em geral participa do poder legislativo No entanto a verdadeira diferenciação não se baseia em uma distinção quantitativa mas na natureza lógica do conceito de Estado Distingue a o poder de definir e estabelecer o universal o Legislativo b o poder de integrar no geral as esfisras particulares e os casos individuais o Execu tivo c o poder de subjetividade como a vontade dotada do poder supremo de decisão a Coroa Na Coroa reúnemse os difitentes poderes em uma unidade individual que as sim é ao mesmo tempo o ápice e a base do todo isto é da monatquia constitucional Deve haver um lócus de decisão suprema a soberania e a unidade do Estado devem ser expressas em uma vontade que determina finalmente A soberania do Estado assim como a vontade é personalidade deve ser encarnada em um indivíduo o monarca Uma vez que é em essência caraaerizado como este indivíduo em abstração de todas as suas outras caraaerísticas deve ser designado de maneira imediatamente natural pelo nascimento É somente pelo princípio hereditário que a pessoa do monarca que simboliza a unidade e a continuidade do Estado escapa das lutas de interesse e de opi nião que necessariamente dominam um império eletivo Contudo a ação do príncipe em si tem certo caráter simbólico e arbitrário é obviamente o príncipe que declara a guerra assina as leis nomeia seus conselheiros e resolve suas diferenças No entanto em todos esses casos é o fiat de decisão que lhe compete e não a própria tarefe de governar na maioria das vezes a última determina o primeiro quase que obrigatoriamente É por este motivo que com leis firmemente estabelecidas e uma bem definida organização do Estado o que foi reservado para a decisão exclusiva do monarca deveria ser considera do como insignificante em relação ao que é substancial Deve certamente ser conside rada grande sorte que um nobre monarca seja o destino de um povo No entanto não tem isso tão gtande relevância pois a força desse Esudo está em sua razão Quem então representa essa razão e consequentemente exerce o que é essencial no poder É o governo e em geral a classe universal dos funcionários públicos uma vez que o governo baseiase no mundo dos funcionários públicos BeamtenwelÍf É este governo que tanto prepara como aplica as decisões do monarca Assegura o G e o r g W F H e g e l 6 6 9 36 Ibid 273 trans E H and A B 37 Ibid p 176 38 Ibid 280 trans RH and AB 39 Philosophy o f History part IV sec III chap iii p 456 40 Ibid interesse geral mesmo na busca de fins particulares É nas ações e na formação dos funcionários públicos em que reside o ponto onde as leis e as decisões de governo entram em contato com os indivíduos e sáo de íato cumpridas É na situação dos próprios funcionários públicos que a função do Estado a síntese do particular e do universal é melhor realizada uma vez que é apenas no cumprimento de seu dever em seu serviço ao Estado que encontram a satisfeção de suas necessidades particulares Representam o tipo de homem que encarna o espírito do regime e serve como modelo para toda a comunidade Cada membro da comunidade pode por direito tornarse funcionário público A classe universal é aberta a todos os cidadãos este é o aspecto democrático do Estado racional Porém é aberta somente quando submetida a um exame objetivo de suas aptidões e de sua formação intelectual e moral É talvez neste tipo de exame relativo às ciências diretamente relacionadas à competência administrativa bem como à formação intelectual e moral em geral para que um comportamento imparcial correto e polido se torne habitual que será en contrado o elemento mais importante do Estado hegeliano esse Esudo que é com jus tiça caucterizado como o Beamtenstaat burocracia e como tal se opõe às aristocra cias da antiga ordem baseada na nobreza às oligarquias fúndamenudas no dinheiro e às modernas democucias fundamentadas nos grandes números na opinião pública e nos interesses particulares No artigo sobre a Lei da Reforma Inglesa Hegel lamenta a ausência tanto na lei e na conjuntuu das condições estabelecidas na Alemanha mesmo sobre aqueles que têm pretensões de nascimento fortuna ou grande proprie dade necessários pau a participação no governo ou nos assuntos de Estado tanto nos seus ramos gerais como específicos estudos teóricos formação científica exercícios práticos e experiência Na Inglateru um homem só precisa ter alguma fortuna pau que possa entrar no Parlamento que detém o real poder O resuludo é que os gover nantes sáo um conjunto muito variado de indivíduos em lugar de uma assembleia de homens competentes e dedicados ao Esudo Sáo aqueles que sabem hoi aristoi que deveriam reinar e não a ignorância ou a vaidade O governo de fimcionários públi cos é a forma moderna da aristocucia A burocucia um termo que apareceu pela primeiu vez na segunda metade do século XVIII com o início do Esudo moderno e que imediatamente adquiriu um sentido pejorativo é reabiliuda no pensamento de Hegel que percebe nela a forma sistematizada e racionalizada em conformidade com o espírito dos tempos modernos e a necessidade do conceito de Esudo do governo dos melhores Contudo ao mesmo tempo Hegel é bastante cuidadoso ao evitar a re provação implíciu no sentido pejoutivo do termo burocucia que é uma tirania dos funcionários públicos formando uma casu obediente ao esprit de corps e constituindo 670 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 41 Philosophy o f Right 295 trans PH and AB 42 Ihid 296 p 193 43 On the Eiish Refbrm Bill in Werke Ed G Lasson Leipzig Meiner 1921 ff VII 304 trans P R a n d A B 44 Philosophy o f History p 456 um Estado dentro do Estado Náo só a hierarquia constitui um meio de controle in terno contra a arbitrariedade mas acima de tudo as instituições da soberania vindas de cima e os direitos das corporações vindos de baixo evitam que os fimcionários públicos tomem a posição isolada de uma aristocracia e impeçam que a cultura e o talento se tornem os meios de arbitrariedade e dominação O poder legislativo gera não só o monarca e o governo de cujos momentos aca bamos de falar mas também um novo elemento as assembléias de ordens O papel dessas últimas não é exatamente legislar Não tomam quaisquer decisões essenciais ou definitivas Dão voz à liberdade subjetiva dos indivíduos às opiniões e aos interesses da massa e à sociedade civil na medida em que estes são excluídos do governo Es sencialmente as assembléias mediam entre o príncipe o governo e o povo Graças a esta mediação o poder do príncipe não parece ser isolado nem consequentemente constituir simples dominação ou teimosia tampouco fícam isolados uns dos outros os interesses particulares das comunidades corporações e indivíduos Tudo é feito para evitar que o povo como uma massa indiferenciada participe diretamente do poder ao mesmo tempo em que lhe proporciona uma relação com o Estado Assim não há voto individual direto o que daria reconhecimento à existência e ao papel do indiví duo isolado e abstrato e daria autoridade ao peso dos números O inivíduo deve ser representado na sua realidade concreta como um homem dotado de determinadas ca racterísticas e interesses que lhe proporcionam um lugar no organismo social O voto é dado pelas ordens Stãnde As ordens no sentido político assembléias de ordens são fundamentadas nas ordens no sentído social classes os grupos econômicos e so ciais os grupos com interesses particulares devem ser representados como tais Aqui também no entanto deve haver órgãos de mediação deve haver dentro das ordens um elemento em essência orientado para a íúnção de intermediário que lhes tem sido atribuída Este é o papel da classe substancial de proprietários de terras que são favorecidos devido a sua estabilidade e a sua grande independência em relação tanto ao Estado e às incertezas da vida econômica Os próprios proprietários de terras têm assento direto na assembleia enquanto A sunda seção do elemento representativo compreende o elemento variável da socieda de civil Tal elemento só pode participar da política por intermédio de seus deputados a multiplicidade de seus membros é uma razáo extema para isso mas o motivo essencial é a natureza específica desse elemento e sua atividade Uma vez que esses deputados são re presentantes da sociedade civil daí decorre como conseqüência direta que sua designação é feita pela sociedade como sociedade Isto é ao fezer a indicação a sociedade não está dis persa em unidades atômicas reunidas somente para realizar um ato único e temporário e mantidas unidas por um momento e nada mais Pelo contrário fez a nomeação como uma sociedade articulada em associações comunidades e corporações que embora já constitu ídas para outras finalidades adquirem desta forma uma ligação com a poiítica G e o r g W F H e g e l 671 45 Philosophy ofRight 308 p 200 Assim os membros da classe industrial são representados pela intermediação das corporações Os próprios representantes participam das esferas de interesse que representam e devem além disso atender algumas condiçóes de competência que correspondem às condições de fortuna exigidas dos membros da primeira ordem As duas ordens sentamse em duas assembléias distintas o papel da primeira câmara pode ser a conciliação entre a segunda e o governo Assim uma série de organismos inter mediários e de órgãos de mediação serve para afastar o espectro da democracia abstrata e para realizar um Estado em que a liberdade coincide com a organização Até que ponto são bemsucedidos Examinando a questão de um ponto de vista mais geral qual é o resultado dessa empreitada de conciliação entre modernos princí pios abstratos e as necessidades da organização governamental que constitui a síntese do Estado racional hegeliano Podese dizer que as instituições que discutimos garan tem uma livre articulação da liberdade igualdade e ímtemidade ou universalidade da pessoa humana mas dentro de limites muito estritos impostos por esta organização do Estado Assim há liberdade na escolha da ocupação na distribuição do pertencimento às classes ao contrário da regra na República de Platão onde a classe é estabelecida pelo governo ou do sistema de castas indiano onde é determinada pelo nascimento e no feto de que a única exigência que faz o Estado em tempos normais é de dinheiro sob a forma de impostos De todos estes pontos de vista é o livrearbítrio que deve ser o intermediário por meio do qual o Estado obtém o que precisa Quanto à opinião pública a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão oral e escrita em geral a situação é mais ambígua A liberdade subjetiva formal dos indivíduos consiste em terem e expressarem seus próprios juízos opiniões e recomendações particulares sobre os assuntos do Estado Essa liberdade se manifesta coletivamente no que se denomina opinião pública Contém esta princípios externos de justiça juntamente com preconceitos proíundas tendências de realidade juntamente com a opinião particular subjetiva e contingente Nela a verdade e o erro infinito estão unidos de forma tão imediata e íntima que não se pode discernir o elemento grave ou universal por ou com base na opinião em si Deve portanto ter a oportunidade de se manifestar po rém jamais de emitir o julgamento final uma vez que só se justifica de uma forma geral e coníusa mas não de forma precisa e consciente Por conseguinte ser independente dela na ciência assim como na vida é a primeira condição formal para realizar algo de grande ou racional Grandes conquistas têm garantia no entanto de posterior re conhecimento e grata aceitação pela opinião pública que no devido tempo fará deles um dos seus próprios preconceitos A liberdade de comunicação pública e em particular da imprensa a satisfeção desse irreprimível instinto de emitir e já ter emitido a própria opinião é também reconhecida mas limitada devido a sua ambigüidade É ao mesmo tempo tanto a ex 672 H is tó m a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 46 7õ316p204 47 Ibid 317 p 205 48 Ibid 318 trans PH and AB pressão do princípio da liberdade infinita da consciência crítica e da arbitrariedade da opinião subjetiva como em última análise um incentivo à desordem e ao crime Defi nir a Uberdade de imprensa como a liberdade de dizer e escrever o que se quer pertence à barbárie ignorante e superficial da representação No entanto a indeterminação da matéria e da forma em questão Onde termina a opinião e começa a infração fez sempre imprecisa a lei que a limita o julgamento contra ela sempre parece subjeti vo Esta subjetividade e contingência na repressão que são inevitáveis por natureza ainda são indispensáveis Hegel no entanto pede indulgência na medida em que o Estado é suficientemente saudável e forte para que seja capaz de suportar a expressão de opiniões irresponsáveis porque são tratadas com desprezo Porém mesmo aqui são aqueles que sabem que são os juizes da medida em que a opinião pública tal como expressa nas assembléias deve ou não ser seguida e a liberdade de expressão tal como é encontrada na forma impressa e na forma oral é útil ou perigosa e deve ser incentivada ignorada ou reprimida Da mesma forma é reconhecida a igualdade porém somente como uma igualdade abstrau de pessoas perante a lei É política e socialmente expressa na possibilidade de cada homem tornarse um membro da classe universal e dirigente Entretanto a igualdade deve ceder lugar à primazia da diferenciação e da articulação Não há igual dade social A equalização de fortunas é um sonho produzido pela mente abstrata A sociedade baseada na economia moderna encoraja desigualdades sociais mais significa tivas do que as conhecidas anteriormente e o Estado racional pressupõe grande dife renciação Do ponto de vista político é cuidadosamente evitado o poder da multidão O ponto de vista da minoria esclarecida deve prevalecer sobre o das massas hoi pollot que não sabem o que querem Finalmente é reconhecida a universalidade da pessoa humana mas somente na medida em que não traz com ela o cosmopolitismo polí tico Assim como a igualdade entre as pessoas não significa um Estado homogêneo assim também a universalidade da natureza humana não significa a universalidade do Estado que permanece sempre uma totalidade soberana específica que exclui por sua própria individualidade outras soberanias Existe de feto a criação de uma espécie de sociedade mundial a partir de um ponto de vista econômico mas que não elimina essa individualidade essencial dos Estados De modo geral a síntese hegeliana nos traz de volta à oposição entre a sociedade e o Estado que foi seu ponto de partida Trata se de uma sociedade amplamente liberal e descentralizada porém mais de um ponto de vista econômico e social do que político Para tomar decisões políticas que dizem respeito ao Estado é preciso adaptarse à sua organização No entanto é na relação entre política interna e externa em última análise entre a paz e a guerra que se coloca em toda a sua intensidade e amplitude o problema da relação entre sociedade e Estado entre as esferas particulares e o bem universal Do ponto de vista do Estado há uma identidade entre guerra e paz O Estado afirmase através da oposição A soberania que é voltada para dentro traz consigo uma soberania G e o r g W F H e g e l 673 49 Ibid 319 trans PH and AB que é voltada para fora na medida em que o Estado é acima de tudo constituído por sua independência e individualidade necessariamente compreende um aspecto negativo e exclusivo que o opõe a outras individualidades autônomas O Estado por tanto não pode afirmar justamente sua autoridade interna sem que assim afirme a sua independência externa Não há apenas uma relação necessária mas uma relação proporcional quanto mais unificado é um país em seu interior sob a autoridade do Es tado mais é capaz de fazer a sua independência respeitada pelo exterior povos que não desejam ou temem tolerar a soberania em casa têm sido subjugados pelo exterior e têm lutado por sua independência com ou a menor glória e sucesso quanto menos que têm sido capazes de oianizar previamente os poderes do Estado em assuntos internos Reciprocamente guerras bemsucedidas evitam os distúrbios internos e consolidam o poder interno do Estado Somente um grande perigo ou um grande empreendimento extemo permitem a reabzação da união ssrada do Estado por silenciar divisões e interesses particulares Assim tornase evidente que é na guerra e pela guerra que o Estado melhor se revela e melhor cumpre sua íúnção Períodos normais são caracterizados pela livre atividade das esferas particulares Cada indivíduo vive para sua íàmília e sua ocupação A totabdade só se intromete de modo indiieto sob a forma da cobrança de impostos o único requisito exigido pelo Estado Há um daro predomínio da sociedade particularidade e diversida de Por outro lado é a crise e especialmente a guerra que leúnem as esferas particulares na unidade do Estado é nas crises que se afirma a verdadeira natureza do Estado e do patriotismo ao exigir e obter do indivíduo o sacrifício daquilo que em tempos de paz parecia constituir a essência de sua existência sua fiunília seus bens suas opiniões sua vida Deste modo a guerra evidenciando a primazia do Estado sobre a sociedade civil e sobre o indivíduo em seu direito de exigir o sacrifício supremo a fim de manter a inde pendência reíúta as teorias bberais contratuais do Estado propostas por Hobbes Locke ou pela economia poUtica Uma avaliação totalmente distorcida da demanda por esse sacrifício é resultado de considerar o Estado meramente como uma sociedade civil e de considerar como seu fim último apenas a garantia da vida e da propriedade individuais Não é possível obter essa garantia pelo sacrifício daquilo que deve garantir muito pelo contrário E além disso na paz a vida civil ampliase continuamente todos os seus setores emparedamse e no longo prazo os homens entram em estagnação Suas idios sincrasias tornamse continuamente mais fixas e ossificadas Assim embora a guerra traga consigo a insegurança da propriedade e da existên cia é uma insegurança saudável conectada com a vida e o movimento A insegurança e a morte são naturalmente necessárias porém no Estado tomamse morais por se rem uma livre escolha A mortalidade tornase algo volitivo e a negatividade em sua raiz tomase aquilo que constitui o ser moral em sua essência 674 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 50 Ihid 324 p 209 51 Ibid 52 Ibid addition p 295 A guerra é o esrado de coisas que rrara com seriedade a vaidade dos bens e das preocu pações remporais A guerra possui a mais elevada significação pois por sua açáo a saúde moral dos povos é preservada em sua indiferença para com a esrabilizaçáo das insriruições finiras assim como os venros preservam o mar conrra a podridão que seria o resultado de uma prolongada calmaria assim também a corrupção das nações seria o resultado da paz prolongada quanto mais da paz perpétua Ao criticar a ideia kantiana de paz perpétua assegurada por uma associação de Estados observa Hegel que mesmo que diversos Estados unamse como uma femília este grupo como um indivíduo engendrará um oposto e criará um inimigo tanto isto é verdade que a verdadeira política é a política externa e que esta última é guiada pela possibilidade da guerra Como resultado é extremamente precário o direito internacional é de facto e até mesmo de jure incompetente para lidar com a possibilidade e a realidade da guerra O direito internacional é resultado das relações entre Estados independentes Seu con teúdo tem a forma do dever ser porque sua realização depende de diferentes vonudes soberanas Naturalmente os Estados como os indivíduos só existem na medida em que reconhecem um ao outro o que leva à possibilidade de contratos e acordos que devem ser respeitados No entanto uma vez que a soberania de um Estado constitui o princípio de suas relações com os demais os Estados se encontram assim em um estado de natureza em relação uns com os outros Seus direitos são realizados somente em suas vontades partículares e não em uma vontade universal que tenha poderes cons titucionais sobre eles Quando estas vontades particulares são incapazes de encontrar íúndamentos para a concordância seus conflitos só podem ser resolvidos pela guerra O direito internacional não pode impedir a guerra por resolver conflitos pois não há autoridade universal sobre os Estados que se imponha a eles uma liga do tipo kantíano pressupóe a adesão e obediência dos Estados que são sempre contingentes Tampouco é capaz o direito internacional de distinguir entre guerras justas e injustas de acordo com a violação de tratados Para cada Estado o seu bem particular é a lei suprema em nome deste bem pode questionar todos os compromissos que assumiu sempre que não mais correspondam aos seus interesses O conflito entre motal e política é resolvido pela existência concreta do Estado e não pelas demandas abstratas de uma justiça universal Contudo na medida em que o bem do Estado é a lei suprema a gueria continua a ser o recurso supremo pelo qual tal lei é necessariamente expressa No entanto a explicação baseada em uma pluralidade de Estados independentes não esgota a teoria hegeliana da guerra do mesmo modo que não o fez sua justificação pela negatividade humana as verdadeiras guerras precisam ainda de outra justifica G e o r g W F H e g e l 675 53 Ibid p 210 54 Ibid addition p 295 55 Ibid 330 trans P H and A B 56 Ibid 333 p 213 çáo Esta justificação originase em sua missão histórica No curso da história as guerras e revoluções são os instrumentos do espírito universal A ascensão do povo que possui a ideia e a difixsão do princípio que encarna o Espírito universal são efetuadas pelas guerras Porém o lugar que Hegel atribui a esta justificação de guerras pelo seu papel histórico suscita um problema difícil Se o sentido da guerra encontrase prin cipalmente no desenvolvimento e difusão da civilização o que acontece uma vez que este desenvolvimento e difusão foram realizados de modo definitivo Do ponto de vista político não seria o caso que o fim da história fosse definido pelo desaparecimento das guerras e das revoluções violentas Aparentemente haveria uma tensão ou mesmo uma oposição entre as duas ideias hegelianas da necessidade da guerra e do fim da história Ambas parecem ser indispensáveis para a construção do Estado racional Sem guerra o Estado tenderia a ser subordinado à sociedade o universal ao particular e toda a vida moral e política pautada pelos clássicos que Hegel quer reconstruir sobre os fundamentos da modernidade cornem patriotismo espírito cívico entraria em colapso A oposição de ricos e pobres e a multiplicidade de Estados pareceria garantir a permanência de crises e guerras Porém não dariam estes uma nova forma para as coisas Acima de tudo em um mundo que continua a ser dominado por oposições faria ainda sentido o fim da história por meio da solução de todas as contradições Por outro lado sem o fim da história e sem uma reconciliação total todo o edifício hege liano do Estado perderia seu caráter definitivo e necessário Como vimos a filosofia política pode coincidir com a filosofia da história porque o Estado final substitui o melhor regime Tanto a descrição hegeliana do desenvolvimento histórico como a do Estado racional implicam que o Estado final representa uma síntese que reconcilia to das as possibilidades humanas e não deixa espaço para a incompletude e a insatisfação que produziriam a continuação do desenvolvimento da história universal São de notável ambigüidade os textos de Hegel sobre a questão do fim da histó ria Por um lado o sol se pôs está chegando ao fim o longo dia da mente a humani dade atingiu sua velhice que é também seu florescimento a história terminou porque a mente encontrou a si mesma por ter conhecido a si mesma a liberdade é realizada na coincidência entre sua forma e seu conteúdo Por outro Hegel fàla dos problemas que a história terá de resolver nos tempos vindouros cita a América como a terra do futuro onde se revelará o peso da história do mundo talvez no antagonismo entre a América do Norte e a do Sul vê na Rússia uma solidez primitiva que pode conter em si mesma uma enorme possibilidade de desenvolvimento para além de sua natu reza intensiva É somente quando for encontrada uma solução para essas aparentes contradições em relação ao problema do fim da própria história que se poderá decidir a respeito de sua relação com o problema da guerra 6 7 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 57 Ibid par 324 trans P H and A B 58 Philosophy of History Introduction p 78 and 109 59 Ibid p 86 60 Letter to Baron von Uexküll Briefe von und an Hegel Ed Hoffmeister Philosophisches Bihlio thek Hamburg F Meiner 1952 11 298 n 406 trans P H and A B O caminho para uma possível solução parece ser indicado pelos textos em que Hegel íãz uma distinção entre os princípios históricos e sua tradução em realidade en tre a sua vitória como tal e sua vitória manifesta Na verdade é a liberdade concreta que é o princípio íinal é de feto a Reforma que é seu instrumento definitivo a Eu ropa é o terreno onde é concluída a história universal que começou na Ásia Quanto à Reforma escreve Hegel Aqui é desfraldado o novo o último estandarte em torno do qual os povos se unem o estandarte da mente livre Esta é a bandeira sob a qual servimos e que erguemos Desde então e até os nossos dias o tempo não teve tarefa alguma a realizar além de transmitir ao mundo este princípio Contudo esta introdução do princípio do mundo não é concluída muito embora o princípio seja realizado e o mundo atual seja o mundo de completude que não tem mais necessidade de nada externo Daqui em diante as revoluções ocorrem internamente O mundo cristão é o mundo da completude O princípio bi realizado e assim c h u o fim dos dias A Ideia já nada pode ver no cristianismo que náo tenha sido satisfeito Assim o mundo cristão nada tem de externo a ele em um sentido absoluto mas apenas relativamente é algo externo que em si já foi superada e que só precisa demonstrar que já foi superada Assim termina a história no sentido de que surgiu o princípio íinal O mundo é praticamente europeu ou ocidental tal como é em princípio cristão e protestante Porém tal como ainda existem Estados católicos ou não cristãos esta vitória espiritual da Europa ocidental continua a ser traduzida para a realidade política Vimos que na medida em que a Reforma representou a cristianização do mundo também represen tou a secularização do cristianismo De certa forma a universalização do princípio elimina o princípio ao realizálo Expressase isso politicamente pelo feto de que o verdadeiro Estado deve ser íúndamentado na religião protestante mas que a cidadania nele deve ser aberta aos católicos judeus e outros O protestantismo é a base do Estado racional e deixa de ser a sua base Da mesma forma a europeização ou ocidentalização do mundo significará a perda da supremacia da Europa ocidental ou pelo menos de sua singularidade como o domínio privilegiado do espírito universal Hegel pode por tanto entender que dentro de um mundo que se tornou definitivamente europeu a ascensão de potências não europeias como a América ou de potências não ocidentais como a Rússia na medida em que se tornam europeizadas ocupam o centro do palco histórico sem representar um princípio original ou a introdução de uma nova etapa Podemos agora retornar ao problema da guerra Ao que parece Hegel fez uma distinção fimdamental entre os povos que já atingiram a fese íinal da civilização e os demais Portanto considera as guerras de civilização como legítimas inevitáveis e indispensáveis isto signiíica a conquista pelas nações civilizadas daquelas que nâo atingiram o mesmo nível de desenvolvimento do Estado Em virtude deste princípio G e o r g W F H e g e l 677 61 Philosophy ofHistory pan IV sec III chap i p 416 62 Ibid p 342 é necessário que o destino dos impérios asiádcos seja submetido aos europeus e a China também algum dia terá de se ajustar a esse destino Por outro lado os Esta dos plenamente desenvolvidos reconhecem um ao outro como legítimos Constituem uma federação de Estados ou pelo menos uma família dentro da qual o parentesco ou a semelhança de costumes possibilita uma conexáo jurídica que perdura durante as guerras e que as humaniza e limita Além disso essa limitação essa transformação se encerra com o desaparecimento da própria guerra que entre os Estados europeus não é mais viável Em sua Estética diz Hegel em relação ao futuro do épico Se alguém quiser ter uma ideia de cmo podem ser os épicos futuros em comparação com os do passado basta imaginar o racionalismo americano vivo e univetsal triunfendo sobre o aprisionamento em um infinito processo de delimitação e particularização Na Europa hoje cada povo é limitado por todos os outros e não pode por si só entrar em guerra contra os povos europeus Se alguém quiser escapar da Europa só pode fezêlo em direção à América No entanto se a Europa é o futuro da América se a América por sua vez deve vir a conhecer a organização racional do Estado desenvolvido então irá também além da idade da juventude da poesia nascente do heroísmo e da guerra que é a era do épico A América também chegará à forma de princípios deveres e leis gerais que sáo válidos por si próprios mesmo sem a particularidade da vida subjetiva dos indiví duos Irá da poesia épica em que se dá rédea solta à individualidade das figuras à simples prosa do racional de uma vida interna e civil ordenada Em suma o Estado final deve estar de acordo com uma realidade apropriada para a prosa em que prin cípios abstratos florescem em lugar da descoberta individual armas de fogo em lugar de heróis o romance em lugar do épico A Europa no tempo de Hegel é o modelo de tal sociedade Como o épico a guerra em princípio pertence ao passado Esta então é a solução para a qual conduz Hegel a guerra é indispensável para o Estado racional na medida em que o Estado se distingue da sociedade civil Porém a própria realização do Estado plenamente desenvolvido traz consigo o ocaso da guerra Ao mesmo tempo indispensável e contrária ao Estado desenvolvido esta só subsiste devido à existência de outros Estados que ainda não se desenvolveram É graças à sua relação com o exterior com os povos que não reconhecem como Estados e que ainda não estão organizados de forma racional e que historicamente representam o passado que os Estados desenvolvidos modernos que como as nações da Europa ocidental não podem mais guerrear entre si são capazes de garantir sua própria unidade e a vir tude política de seus cidadãos 678 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 63 Ibid part I sec II p 142 64 Aesthetics in Hegels Sãmtliche Werke Ed H Glockner Stuttgart F Frommann 192741 III System of Individual Arts 3 A a Das Episehe AUgemeine Weltzustand v III p 354355 trans P H and A B 65 Aesthetia p 341 and c Das Epos ais Einheitsvolle Totalitãt p 395 trans P H and A B Por óbvio tal solução suscita um grande número de questões que Hegel não res ponde pelo menos de modo explícito Em primeiro lugar não seria essencialmente provisória Existiria nos povos ainda não convertidos ao Estado racional um resíduo incivilizável que faria deles os adversários providenciais e permanentes de que neces sita o Estado racional Viria a ocidentalização do mundo a tradução do princípio em realidade a se parecer com o progresso infinito que Hegel criticou em Kant Se pelo contrário esse processo deve ser levado ao fim se o mundo como a Europa deve cons tituir uma sociedade prosaicamente organizada não encontraria ela um adversário se necessário criandoo dentro de si mesma como insiste Hegel que seria o caso na socie dade projetada por Kant Renasceria a guerra do simples feto da pluralidade dos Estados e da ausência de uma autoridade soberana Ou apontaria esta situação para o nascimento de um Estado universal Ou finalmente seria a situação definitiva uma pluralidade de Estados entre os quais a guerra terá perdido todo o senüdo normal e legítimo devido ao reconhecimento recíproco da semelhança de seu modo de vida e costumes e sua comu nidade de princípios mas entre os quais a guerra será sempre possível devido à contin gência de suas relações Neste último caso esta uma guerra que não fosse uma oposição de princípios que já não representasse progresso histórico que já não tivesse essa outra justificação de que as guerras reais necessitam uma guerra que no caso extremo só nasceu por acidente e em todo caso fosse resultado de uma contingência não redimida pela necessidade de história uma guerra contrária ao princípio universal constitutivo dos Estados que a travaram não perderia também a fimção política e moralmente educativa que só ela poderia exercer Mesmo que continuasse a existir a possibilidade de uma guer ra não tenderia a sociedade civil a obter vantagens cada vez maiores sobre o Estado Em suma essa decadência esse Versumpfin des Menschen que Hegel atribui à sociedade civil padfica não permaneceria até alcançar o seu fim Hegel recusase a responder recusase a fezer previsões A história tem a ver apenas com o passado e no que tange à filosofia a coruja de Minerva só voa ao anoitecer Talvez seja possível dizer que se Hegel quis fazer uma síntese de antigos e mo dernos de mestre pão e escravo cristão de antigo guerreiro e trabalhador moderno da polis fundamentada na devoção dos cidadãos e da sociedade fimdamentada na satisfeção de indivíduos particulares acabou menos com uma verdadeira síntese do que com uma tensão entre dois polos ou um equilíbrio precário Talvez seja possí vel ir ainda mais longe e dizer que em última análise o equilíbrio alcançado pende para uma direção Tomando a revolução moderna e a emancipação das paixões como dadas Hegel desejava restaurar sobre essas bases a organização política e a excelência humana que culpa os modernos por arriscar Porém se é verdade que seu Estado de funcionários públicos constitui a fórmula que mais racionalmente se conforma à essência do Estado moderno e a que é mais viável talvez seja menos verdade dizer que a reconciliação de antigos e modernos tal como elaborada por Hegel nesta fórmula e em sua filosofia da história representa em seus elementos essenciais uma decisiva consagração da modernidade G e o r g W F H e g e l 679 66 Philosophy of Right Prefece trans PH and AB 680 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y L e it u r a s A Hel Georg W F Philosophy ofRit Trans T M Knox Oxford Clarendon 1942 Prefece Third Part H l Georg W F Philosophy ofHistory Trans J Sibtee New York Dover 1956 Introduction part 11 Tbe Greek World part 111 chap ii Christianity part IV sec III chap i Reformation chap iii Enlightenment and Révolution Hegel Geoig W F Phenomenology ofMind Chap iv sec A lhe Master and the Slave B Hegel Georg W F Philosophy ofRifirt Hegel Georg W F Philosophy ofHistory H l Georg W F On the Eiish Reform Bill and On the German Constitution excerpts in C J Friedricb ed The Philosophy of Hegel NewYork Modern Library 1953 A lexis d e Tocqueville A 18051859 A publicação em 1835 da primeira parte de A democracia na América De la démocratie en Amériqué estabeleceu Alexis de Tocqueville como um dos mais impor tantes analistas da questão democrática Tocqueville foi o primeiro autor moderno a realizar uma investigação abrangente acerca do modo como o princípio democrático a igualdade íunciona como causa primeira na medida em que molda ou afeta todos os aspectos da vida na sociedade A abordagem utilizada por Tocqueville para o estudo dos assuntos políticos reve lase como um afastamento do método dos autores políticos dos séculos XVII e XVIII os quais principiavam suas investigações pelo estudo do homem apenas independente de sua cidadania em um determinado r m e Para Tocqueville o estudo da política começa com a investigação da situaçáo social A situação social é em geral resultado das dicunstândas aumas vezes das leis na maio ria das vezes ainda dessas duas causas combinadas potém quando se estabelece podemos considerila ela própria como a íbnte de quase tot as leis dos costumes e das ideias que regem a conduta das naçóes aquilo que nâo produz a situação social modifica A Democracia de Tocqueville dedicase de maneira explícita a uma descrição do modo como uma determinada situação social uma situação de igualdade influi nas instituições políticas da naçáo bem como nos costumes no comportamento e nos hábitos intelectuais dos cidadãos A situação social é o que íàz com que um regime tenha suas características específicas Isso não quer dizer que a situação social seja capaz de explicar tudo acerca de uma sociedade pois os costumes prévios e a geografia entre outros fetores também desempenham seu papel na configuração do regime Porém em nenhuma situação duradoura esses fatores secundários obscurecerão ou impedirão a atuação do princípio motor fundamental A situaçáo social molda opinióes altera paixões e sentimentos determina as metas almejadas o tipo de homem que é admira do a linguagem usada e finalmente o caráter dos homens que agrega Alexis de Tocqueville Democracy in America the Henry Rccve text rev by Fiands Bowen ed with a historical essay by Phillips Bradley 2 v New York Vintage Books Knopf 1958 I 48 A situação de igualdade é a situação social que constitui o princípio motor dos regimes democráticos Para Tocqueville este é o fator íundamental do qual todos os outros parecem derivar O pensamento político de Tocqueville tem origem no reco nhecimento e aceitação do inevitável triunfo do princípio da igualdade Não apenas o decorrer dos últimos 800 anos conduziu a um determinado íim acarretando o triunfo da igualdade como também ao analisar o registro das ações do homem Tocqueville percebe uma expressão da vontade divina O desenvolvimento da igualda de de condições é um íáto providencial Se devem ser convencidos os homens do nosso tempo por atenta observação e sincera reflexão de que o desenvolvimento graduai e paulatino da igualdade social constitui ao mesmo tempo o passado e o futuro de sua história esta descoberta por si só concederia a essa transformação o caráter srado de um decreto divino Tentar deter a democracia seria nesse caso resistir à vontade de Deus e as nações seriam então compelidas a utili zar da melhor forma possível o quinhão social a elas concedido pela Providência Essas observações dekam evidente que Tocqueville náo acredita que o homem seja limitado pelo domínio de um completo determinismo A Providência diznos não criou o homem totalmente independente ou totalmente livre É verdade que em torno de cada homem é traçado um círculo fatídico que este nâo pode ultrapassar porém dentro dos limites desse círculo é ele poderoso e livre A obra de Tocqueville surge como uma advertência aos homens para que façam o melhor que puderem com o quinhão que lhes foi dado por Deus os homens não podem determinar se as con dições serão ou não iguais mas é por sua responsabilidade que a igualdade conduzirá à miséria ou à grandeza à escravidão ou à liberdade Na verdade tratase de uma reflexão grave acerca da marcha da história providencial o constatar que o triunfo ine vitável da situação democrática pode vir a ocorrer tanto em uma situação de escravidão humana como em uma situação de liberdade humana Triunfou uma situação social que o homem não pode evitar mas cabe à arte do homem compreender e utilizar de modo vantajoso as potencialidades da condição democrática conducentes à liberdade Para atingir esta meta Tocqueville clama por uma nova ciência política que seja ade quada às novas condições produzidas pelo triunfo da igualdade O fato de que essa igualdade pode ser entendida como o princípio dos regimes democráticos é discernível na linguagem da Declaração de Independência Todos os homens são criados iguais é ali considerada a proposição primordial ou verdade auto evidente os direitos à vida à liberdade e à busca da felicidade como direitos universais derivam desta verdade íundamental Se todos os homens são iguais nenhum homem tem por natureza o direito superior de tirar a vida de outro homem de restringir sua liberdade ou de estipular seu modo de vida A igualdade em questão não se estende à 682 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 2 Ihid p 3 3 Ibid p 7 4 Ibid II 352 capacidade intelectual Tocqueville reconhece que mesmo com o advento da mais ex trema igualdade de condições a desialdade de intelecto permanecerá como uma das últimas e desagradáveis lembranças do antigo regime Contudo a paixão pela igualda de mesmo onde esta náo pode existir eliminará a força prática da visão cfessica de que os sábios devem governar Os homens das eras democráticas não tolerarão privilos não importa quais sejam seus fundamentos Em Democracia o objetivo de Tocqueville é mostiar aos homens que podem ser ao mesmo tempo iguais e livres e por não igualar a democracia a qualquer forma institucional associada a ela governo do povo governo representativo separação de poderes Tocqueville enfetiza seu receio de que a verdadeira força motriz da democra cia a paixão pela igualdade seja compatível com a tirania bem como com a liberdade É bem possível que a tirania conviva com instituições que aparentam ser democráticas Ao contrário de auns de seus contemporâneos que acreditavam que o desenvolvi mento gradual da igualdade andava de mãos dadas com a destruição final da possi bilidade da tirania sobre a terra Tocqueville entendia que o princípio democrático teria propensão se não fosse orientado a um despotismo nunca antes experimentado Voltaremos a este tema mais adiante Em seus escritos Tocqueville se volta para o regime norteamericano da década de 1830 não porque este necessariamente incorpore os princípios do melhor regime mas porque assinala o culminar desse progresso histórico em direção a uma igualdade sempre maior A natureza da democracia portanto se revela na América jacksoniana a visita à América constitui para Tocqueville um confronto com a própria democra cia Ao enfetizar a igualdade de condições em vez da simples igualdade Tocqueville chama a atenção para um estado da sociedade em que o conceito de igualdade veio a se realizar É esse o estado da sociedade em que os homens entram em confronto uns com os outros quando sua igualdade em abstrato tornouse manifesta para des em igual dade de oportunidades na educação em um nivelamento geral da riqueza na garantia uniforme dos direitos políticos Tocqueville não considerava a América ou qualquer outra sociedade como um Estado em que o princípio da igualdade tivesse se realizado por completo mas a América aproximavase mais desse ideal do que qualquer outro rime Como todos os Estados democráticos caracterizavase pela progressiva dimi nuição das desigualdades do antigo regime A igualdade de condições é entendida é daro em contraste com a desigualdade de condições o Estado sodal do antigo rime quer seja da França ou da Europa feu dal em geral Dentro de Democracia as características do antigo regime continuamen te SC imiscuem na argumentação é por meio da consdência que possui Tocqueville da grande e naquele tempo ainda respeitávd alternativa da democracia que é capaz de informar e refinar a democracia destinada a triunfer Na caracterização feita por Tocqueville do antigo regime o padrão pelo qual aparentemente mede a democracia e cobra dela explicações podemos começar a compreender seu pensamento É como se devêssemos afirmar que não pode compreender a revolução democrática quem for insensível às qualidades que Tocqueville atribui a um estado aristocrático da sociedade A le x is DE T o c q u e v il l e 683 uma certa elevação intelectual e um desprezo pelas vantiens mundanas convicções fortes e dedicação honrosa hábitos refinados e maneiras sofisticadas o cultivo das ar tes e das ciências teóricas um amor pela poesia beleza c glória a capacidade de realizar grandes empreendimentos de valor duradouro Uma compreensão das questões de mocráticas exige uma consciência das alternativas para a democracia esta necessidade não é removida pela marcha da história Tendo cm mente esta consciência estamos prontos para examinar a explanação de democracia oferecida por Tocqueville O C a r á te r d o R e g im e A principal característica da sociedade democrática é seu atomismo Foram der rubados os códigos cuidadosamente prescritos que governavam as relações das três clas ses da sociedade em tempos aristocráticos Foram demolidas as barreiras que separam as classes a propriedade foi dividida e igualada foram abertos a todos novos caminhos para conquistas sociais intelectuais e políticas A preocupação das classes dominantes com aqueles a quem zelavam como pastores a seus rebanhos foi substituída por uma quase indiferença foram cortados os laços sociais e políticos que uniam os homens Os homens enfrentam uns aos outros como iguais cada um independente cada um impotente Os indivíduos que compõem tal sociedade não possuem como cidadãos vínculos naturais entre si sendo cada um igual a todos os outros ninguém é obrigado a obedecer aos comandos de outro A principal tarefa da moderna sociedade democrá tica é a construção de vínculos artificiais para substituir os laços da Idade Média De acordo com Tocqueville a chave para a qualidade atomística das idades de mocráticas reside na difusão do individualismo uma disposição de rejeitar todas as obrigações como impositivas ou como artigos de fé que não tenham sido submetidos ou não tenham resistido ao teste da investigação pessoal Cada indivíduo se torna o centro de um minúsculo universo particular composto por ele e seu círculo imediato de parentes e amigos Inteiramente absorvido na contemplação deste universo o indi víduo perde de vista aquele universo maior a sociedade em geral O pai espiritual desta nova ideia ou disposição é Descartes cujo método filosófico fornece o exemplo e a justificativa para a apresentação de todos os veneráveis objetos de crença e de afeto ao juízo particular de cada homem A igualdade de condições é responsável pela pronta e generalizada aceitação da nova disposição no cumprimento de suas próprias tentativas de derrubar as restrições sociais da Idade Média a democracia encontra um bem vindo aliado na filosofia cartesiana que questiona as crenças tradicionais Será visto que determinadas propensões que juntas dão origem ao que podemos chamar de o problema da democracia estarão concentradas em torno da questáo do individualis mo Tratamse da paixão pelo conforto e pelo bemestar material de uma preocupação para com o bemestar pessoal que exclui qualquer preocupação com os assuntos públi cos e um inevitável desvio em direção à mediocridade São estas que fezem o homem democrático muito propenso a aceitar ou a descambar para um despotismo suave que lhe assegure essas atividades e preferências A resolução do problema da democracia 684 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y implica encontrar dentro da democracia um lugar para a liberdade para a excelência bumana para a reemeiência da virtude pública e para a possibilidade de grandeza Quando o individualismo está relacionado à aldade de condições desenvolvese uma sede insaciável para o conforto material deste mundo Em uma sociedade despida das tradicionais restrições e obrigações para com o país os senbores a Igreja os bo mens se esforçam com softeguidão para satisíázer seus desejos imediatamente percebidos e imediatamente inteligíveis de melhorar suas condições de vida Sob o antigo regime a disparidade de riqueza e bemestar material era aceita como parte da condição natural das coisas além disso a nobreza da Europa feudal conseguira satísíàzer seu desejo de conforto material de tal forma que a debcara livre para cultirar as íáculdades mais elevadas Ou seja a nobreza não tinha apreensões acerca da riqueza de que desfrutavam ser em breve confiscada Esta salutar paz de espírito fora alcançada por meio do efeito legitimador de usos e costumes de longa data Com a derrubada do sistema feudal e com a disseminação das doutrinas individualistas a necessidade de melhoria das condições materiais de vida é vista como a expressão legítima dos direitos naturais de todos os homens Assim sendo a democracia satisfez o desejo de bemestar não só de alguns ho mens mas de todos os homens e deve fezêlo de tal forma a induzir os homens a dedicar uma parte de sua energia a outras atividades e às necessidades da nação em geral Há solução para o problema se houver bens materiais suficientes para satisfazer a todos de modo que ninguém precisa ter a preocupação de não obter a sua parte ou de o homem democrático se capaz de moderar seus desejos Tocqueville parece ter duas visões conflitantes a respeito da probabilidade de efeituar uma resolução do problema Por um lado parece confiar que o gosto pelas gratificações fisicas terá li mites modestos O homem democrático buscará os pequenos confortos da vida os meios de tornar a existência menos árdua a compra e o plantio de alguns hectares de terra a mais a ampliação de sua moradia A reprovação de Tocqueville ao princípio da igualdade não é que encoraje os homens na busca de gratificações ilegais ou excessivas mas que absorva os homens completamente na busca daquelas que são permitidas Por estes meios pode vir a ser estabelecida no mundo uma espécie de materialismo virtuoso que não corromperia mas debilitaria a alma e silenciosamente acionaria seus motores A repentina dramática e violenta revolta contra a moral a religião e a propriedade que eclodiu em 1789 foi apenas uma reação transitória característica somente de um período revolucionário não deve ser encarada como uma tendência permanente de eras democráticas O gosto pelo bemestar do homem democrático não só é compatível com a moralidade e a ordem pública como pode nem sequer ser satisfeito na ausência delas Pode até ser combinado com uma espécie de moral reli giosa Assim embora a democracia possa ser acompanhada pelo abandono daquilo que é mais elevado no homem pelo menos resolverá o problema de um bemestar modesto para o maior número É esta virtude da democracia que Tocqueville celebra em sua famosa conclusão da segunda parte da Democracia A le x is DE T o c q u e v i l le 685 5 IbidpA Há no entanto outra iáceta menos otimista em relação à busca de conforto material Foram abertos todos os caminhos para a satisfeção do desejo de bemestar porém abertos igualmente a todos é avassaladora a competição Por mais bens que alguém possua pensa continuamente na vasta gama dos que constantemente lhe esca pam este pensamento cncheo de ansiedade medo c pesar e mantém sua mente em incessante atação Se for este o caso não há solução tecnológica para o problema do bemestar os desejos dos homens aumentam com aquilo de que se alimentam jamais haverá o bastante para todos Essa inesperada mudança de um materialismo decente para uma busca mais ou menos acirrada pelo conforto material é concomitante à ascensão do espírito comer cial o comércio é visto como a maneira mais proveitosa de propiciar a satisfeção do gosto pelo bemestar O comércio rapidamente transforma o simples desejo por um modesto conforto em uma caricatura de sua própria forma anterior Vem a ser visto como se fosse o mais nobre empreendimento e seduz as feculdades dos homens de maior competência na sociedade Homens de intelecto superior são desviados da polí tica para os negócios da vida pública para os assuntos particulares No comércio en contram esses homens um canal adequado para seus talentos especiais bem como uma libertação da conformidade e vulgaridade da vida política Na verdade estes homens ameaçam formar o núcleo de uma nova aristocracia Tocqueville alerta os amigos da democracia para que sejam cautelosos pois se algum dia uma permanente desigual dade de condições e aristocracia novamente penetrar no mundo podese predizer que esta será sua porta de entrada O individualismo e o materialismo características da democracia que causam discórdia são até certo ponto compensados por um abrandamento geral dos costumes e pelo desenvolvimento de um espírito de compaixão hiunana ou por um sentimento de companheirismo As classes da Idade Média encaravam umas às outras como seres pertencentes a diferentes espécies tal era a diferença em suas maneiras ocupações e gostos A sociedade era fria intransigente rígida A revolução democrática com su cesso anula obrigações sociais ou políticas ao trazer à tona os laços humanos naturais À medida que as condições se tornam iguais os homens adquirem consciência de sua semelhança uns aos outros essa consciência evoca sentimentos de genuína simpatia e basta um ato da imaginação para permitir que um experimente os sofrimentos do outro A revolução democrática revela a bondade natural do homem um homem não feriria outro sem necessidade Podemos reconhecer aqui o paralelismo entre o homem democrático de Tocqueville e o homem natural de Rousseau Há além disso uma ligação entre as conseqüências do individualismo c o cres cimento da compaixão Ao contrário do que se poderia esperar a liberdade de coniiar inteiramente em si mesmo juntamente com a emancipação das restrições tradicionais não deixa o homem democrático inteiramente confiante e orgulhoso Sua gravidade 6 8 6 H is t ó r ia d a F i l o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Ibid p 145 7 Ibid p m reflete a importância da empresa na qual está envolvido mas sua confiança é minada pela ansiedade medo e pesar que acompanham sua condição Uma vez que é con frontado por todos os lados por aqueles que como ele se esforçam sem descanso para conseguir bens inatingíveis cada cidadão está habitualmente ocupado na contempla ção de um objeto muito insignificante a saber ele mesmo Não tem outra alternativa senão recorrer à assistência de outros algo que é obrigado a fazer na medida em que se tornam mais iguais as condições sociais Seria possível ter a impressão de que a compaixão e o autointeresse poderiam combinarse para tir como a base de um vínculo social ou político em tempos de mocráticos assim superando as forças divisionárias do individualismo e da busca pelo bemestar No entanto a compaixão e o autointeresse embora não sejam necessaria mente contrários nem sempre são compatíveis Tocqueville tal como Rousseau antes dele sugere que a compaixão embora um instinto natural no homem é enfraquecida pelo calculismo Na medida em que os homens não são desprovidos de interesse irão consultar seus próprios interesses antes de contemplar o bemestar de outros a de mocracia encoraja isso ao deixar cada homem íicar por conta própria Os homens democráticos socorrerão uns aos outros se isto não acarretar qualquer perda ou dano a si mesmos Para que o espírito de compaixão se tome plenamente eíicaz a sociedade exigiria não apenas uma condição de igualdade mas também uma condição de abun dância em que haveria bens materiais suficientes para todos Já mencionamos as forças que agem dentro da democracia de modo a frustrar tal possibilidade Além disso o espírito de compaixão transcende as fronteiras nacionais e como tal enfraquece os laços políticos os homens tornamse indiferentes às práticas arbitrárias que caracterizam os homens como cidadãos A compaixão é um instinto natural que tende a solapar laços apenas convencionais para Tocqueville a sociedade política em si possui exatamente este caráter convencional A gentileza o abrandamento dos costiunes e o ar de humanidade que caraaerizam as sociedades democrátícas tendem a ser perce bidos de modo mais contundente dentro da unidade íàmiliar ao contrário de entre os cidadãos A democracia diznos Tocqueville afrouxa os laços sociais mas estreita os naturais aproxima os parentes ao mesmo tempo em que aíàsta os cidadãos O P r o b l e m a d a D em o c r a c ia Essas características materialismo mediocridade compaixão domesticidade e isolamento que decorrem ou obtêm sua força da igualdade de condições e do indi vidualismo constituem o núcleo dos ensinamentos de Tocqueville sobre a democracia Um regime em que seus efeitos não fossem de alguma forma suavizados um regime em que não fosse oferecido nenhum incentivo para o exercício das mais elevadas fa culdades humanas em que a própria sociedade parecesse estar estagnada e as virtudes A le x is d e T c x x ju e v ille 687 8 Ibid p 82 9 Ibid p 208 públicas defínbassem tal regime poderia muito bem fezer com que se questionasse a bondade da Providência que o fomenta isso não é tudo O paradoxo fundamental da democracia tal como o percebe Tocqueville é que a igualdade de condições é compatível com a tirania bem como com a liberdade Uma espécie de igualdade pode ao menos coexistir com a maior das desigualdades Dekada à própria sorte a democracia é de fato propensa ao estabeleci mento da tirania quer de um sobre todos dos muitos sobre os poucos ou mesmo de todos sobre todos Devemos agora examinar este paradoxo A pabcão dominante nos tempos democráticos é o amor pela igualdade Esta pabcão é ela mesma gerada a partir da condição social vigente que como vimos é a fonte fundamental de todas as paixóes ideias e costumes da sociedade Entretanto o amor do bomem democrático pela igualdade sobrepóese a qualquer outro sentimen to mesmo pela liberdade A liberdade exige esforço e vigilância é dificil de alcançar e se perde com fecilidade seus excessos são evidentes para todos enquanto seus benefi cios podem facilmente passar despercebidos As vantagens e os prazeres da igualdade por outro lado são imediatamente percebidos e não demandam qualquer esforço São acessíveis a todos mesmo para aqueles de menor capacidade e a íim de proválos nada é necessário apenas viver Porém se tal é verdade dos prazeres da igualdade suas deficiências podem não ser nada evidentes exceto talvez para aqueles que não foram entorpecidos por seus encantos A igualdade de cxmdiçóes portanto desen cadeou uma pabcão que não admite ser refireada todos os governos do íúturo devem reconbecer suas raízes neste impulso onipotente A pabcão pela igualdade por parte dos bomens das comunidades democráticas é ardente insaciável incessante invencível esses bomens clamam por igualdade na liberdade e se não podem obtêla ainda assim clamam pela igualdade na escravidão O amor pela igualdade pode manifestarse de duas formas uma paixão viril e legal pela igualdade que procura elevar todos ao nível dos grandes ou um gosto depravado pela igualdade que se esforça para reduzir todos ao menor denominador comum Obviamente se prevalecesse a antiga paixão pela igualdade seria sensivel mente reduzido o poder das objeções à democracia Contudo as forças que agem sob condições de igualdade pouca esperança oferecem de que triunfará a paixão viril pela igualdade Os bomens sáo levados a desejar bens que não podem obter A igualdade traz a todos a esperança da obtenção desses bens mas a competição é tal que são pou cas as probabilidades de que cada um realize suas ambições Além disso a corrida para satisíázer esses desejos não é igualitária a vitória cabe inexoravelmente aos que têm capacidade superior Nem todos podem ser elevados ao nível dos grandes pois as dife renças de habilidade originamse em Deus ou na natureza Desta forma a democracia desperta a consciência do direito igual a todas as vantagens deste mundo mas frustra os homens na sua obtenção Essa frustração gera inveja e desloca o respeito A alma 6 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid p 102 11 Ibid do homem é assim constantemente provocada para sempre maltratada e irremedia velmente cansada pela labuta o homem não é capaz de suponar por longo tempo tal situação Busca uma solução que satisferá seu mais intenso desejo ao mesmo tempo em que aliviará a angústia a que dá origem Assim a igualdade prepara o homem para renunciar a sua liberdade a íim de salvuardar a igualdade em si Para Tocqueville essa renúncia da liberdade pelo homem pode ser feita em fevor de um déspota do tipo conssrado pelo tempo porém é mais que provável que o caráter do déspota assuma uma forma totalmente nova De feto termos como des potismo e tirania tornamse quase inadequados para expressar o pensamento de Tocqueville que procura descrever em lugar de apenas nomear o novo despotismo Em uma sociedade em que todos são iguais independentes e impotentes apenas um agente o Estado está em especial preparado para aceitar e supervisionar a renúncia da liberdade Tocqueville chama a atenção para a crescente centralização dos governos o crescimento de imensos poderes tutelares que de bom grado assumem o encargo de proporcionar o conforto e o bemestar de seus cidadãos Os homens democráticos renunciarão a sua liberdade em favor dessas autoridades poderosas em troca de um despotismo suave aquele que garante sua segurança prevê e supre suas necessida des fecilita seus prazeres gerencia suas principais preocupações dirige sua indústria e em última instância poupalhes toda a tarefe de pensar e todos os problemas da vida Tocqueville previu que um governo assim não seria incompatível com a sobe rania popular ou pelo menos com as formas de soberania popular O povo como um todo poderia muito bem consolarse com o entendimento de que ele mesmo escolheu seus próprios senhores A democracia dá origem a uma nova forma de despotismo a sociedade que tiraniza a si mesma Nenhuma exposição do problema da democracia seria completa sem um relato da descrição que faz Tocqueville da tirania da maioria dos muitos sobre os poucos Tocqueville não ignora os apelos de grupos de interesses especiais ou do feto de que é freqüente ser flutuante a composição da maioria em uma democracia No entanto tal variação ocorre dentro do contexto de uma firme convicção acerca de determinados princípios que são eles mesmos imutáveis neste sentido podese fidar de uma maio ria permanente dentro de uma democracia Além disso a aparente homogeneidade da sociedade democrática obscurece duas inerradicáveis fontes de heterogeneidade o in telecto e a riqueza A capacidade intelectual é distribuída de forma desigual e Tocque ville afirma que feita à maioria da humanidade a capacidade para chegar a convicções racionais Além da questão da capacidade as exigências do conhecimento são tais que os homens em condições democráticas raramente terão ou o tempo ou a paciência ou o interesse em buscálo Tocqueville não contempla qualquer avanço revolucionário nos meios de educação nenhuma profusão de métodos feceis e ciência barata sufi cientes para superar a feita de tempo e de talento Enquanto o povo continuar a ser o povo isto é os muitos será obrigado a ganhar seu pão e portanto lhe fiJtará o lazer A le x is d e T o c q u e v i l le 689 12 Ibid p 336 indispensável para o cultivo do conhecimento Os muitos se é que reconhecem esses fatos questionam sua relevância Substituem a superioridade intelectual dos poucos por uma superioridade derivada de considerações de quantidade A autoridade moral da maioria é em parte baseada na noção de que há mais inteligência e sabedoria em uma quantidade de homens unidos do que em um único indivíduo e que a quantidade de legisladores é mais importante que sua qualidade A autoridade da maioria é tal que mesmo a minoria ahnal concorda com esta última agressão contra o intelecto Isso observa Tocqueville assinala um novo fenômeno na história da humanidade A maioria náo apenas exige uma conduta de conformidade mas se esforça também para tornar impossível que os indivíduos concebam a náo conformidade Ter uma opinião contrária à da maioria sobre um assimto importante não é apenas imprudente ou inútil mas até desumano O poder da maioria é tão absoluto e irresistível que o in divíduo deve abrir mão de seus direitos como cidadão e quase abjurar suas qualidades como homem se pretende desviarse do caminho que a maioria prescreve A tirania da maioria sobre as mentes daqueles que são superiores a ela do ponto de visu intelec tual torna absoluta a disposição da democracia para a mediocridade É menos evidente a tirania da maioria sobre os ricos sobre os poucos proprie tários Tocqueville decerto tenu superar o medo daqueles críticos da democucia que percebiam no governo dos muitos a inevitável destruição de todos os direitos de pro priedade em seu preíácio tem o cuidado de salientar que no mais avançado país democrático do mundo os direitos de propriedade usufruem de maiores garantias que em qualquer outro lugar Ainda assim Tocqueville náo demonstra otimismo quanto à eterna luta entre ricos e pobres ter sido resolvida pela revolução democrática não fo ram todos rebaixados ou elevados ao mesmo nível de riqueza nem a inveja dos pobres em relação àqueles em melhores circunstâncias foi amenizada pela ocorrência de algum nivelamento Até que ponto então estão assegurados os direitos de propriedade De acordo com Tocqueville a separação entre os poucos e os muitos os ricos e os pobres é uma característica permanente de todas as sociedades íàdada a perdurar a despeito da progressiva concretização da igualdade de condições Esta é tuna regra fixa à qual estão sujeitas todas as comunidades Por outro lado pode variar de uma so ciedade para outra a proporção de indivíduos que compóem cada uma das três grandes ordens os ricos os com recursos moderados e os pobres Embora possam variar essas proporções Tocqueville rejeita a ideia de que os ticos ou os moderadamente ticos jamais ch e m a constituir a maioria O sufiágio universal portanto na verdade confere aos pobres o govemo da sociedade Além disso declara que é inevitável que a classe dominante seja o opressor É certo que a democracia incomoda uma parte da comu nidade e que a aristocracia oprime outra Por fim Tocqueville perde a esperança de 690 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 13 Ibid 1 265 14 Ibid p 277 15 Ibid p 222 16 Ibid p 197 instruir os pobres para que percebam que é contra seu próprio interesse empobrecer os ricos Desta forma náo vê motivos para acreditar que o tradicional conflito entre ricos e pobres deixará de existir em condições democráticas ou que íálte a uns a vontade ou a oportunidade de oprimir os outros Uma vez que a maioria é pobre e já que será ela a soberana justificamse os temores dos críticos da democracia apesar de tudo Todavia como podemos conciliar esta constatação com declarações em ou tros trecbos da Democracia que parecem divergir muito dela Na segunda parte por exemplo Tocqueville afirma que nas comunidades democráticas os pobres em vez de constimírem a grande maioria de uma nação como ocorreu até r a serão em número relativamente pequeno sendo seu lugar tomado pelos pertencentes às novas classes médias Não apenas a classe média passou agora a constituir a maioria mas possui propriedades e de feto é o principal defensor dos direitos de propriedade O que então têm os ricos a temer de uma maioria cujas paixões e interesses são tão semelhantes aos seus próprios Podemos sugerir uma ligação entre a tirania da maioria e o novo despotismo Os homens que se rendem a esta tirania branda e confortável são os homens da nova maioria que provaram e gostaram do primeiro firuto da busca universal pelo bemestar Mas seus desejos excedem suas oportunidades amedrontados diante da perspectiva de perder o que possuem para aqueles mais capazes do que eles próprios a maioria se volta para o governo como o único poder capaz de proteger os seus direitos e bens e de restringir as ambições dos poucos O novo despotismo é uma forma que pode assumir a tirania da maioria À custa dos poucos os ricos assjura aos muitos um modesto usufimto das coisas boas da vida neste sentido não é incompatível com a proteção dos direitos de propriedade em uma escala limitada A R e so l u ç Ao d o P r o b l e m a A resolução do problema da democracia deve ocorrer no nível da democracia isto é a solução deve ser compatível com o princípio da democracia que é a igual dade Está fedada ao fracasso qualquer tentativa de mitigar a democracia por meio de princípios ou práticas pertencentes a um regime a ela estranho nem mesmo um déspota pode governar de acordo com o princípio democrático sem se curvar diante da igualdade Assim Tocqueville alerta seus contemporâneos de que a tarefe não é a reconstrução da sociedade aristocrática mas fezer emergir a Uberdade do estado de mocrático da sociedade e determinar que ripo de grandeza e felicidade é adequado para a igualdade de condições A ironia da dificil situação democrática é que a democracia incentiva os homens a renunciarem a sua bberdade a única coisa essencial para a sua Ubertação Se o indi vidualismo é responsável pelo atomismo da sociedade democrática é a liberdade que paradoxalmente pode restabelecer um sentido de interdependência política ao fomen tar a consciência da dependência de cada indivíduo de todos os outios Qual é a proba A l e x is d e T o c q u e v il l e 6 9 1 bílidade de que a liberdade brote de um estado democrático de sociedade A resposta de Tocqueville revela um otimismo essencial na base de seu pensamento político Longe de encontrar defeitos na igualdade porque inspira um espírito de independência enalteçoa principalmente por esse mesmo motivo Admiroa porque deposita nas pro fundezas da mente e do coração de cada homem esse sentimento indefinível a instintiva propensão para a independência política e assim prepara o remédio para o mal que engendra A paixão pela igualdade a qualquer custo defrontase com uma paixão semelhante engendrada pela igualdade na liberdade No entanto essas paixões têm força desigual como já vimos Além disso as onipresentes tendências à centralização do governo au mentam o efeito da paixão que induz o homem a confiar ao governo a preocupação com seu próprio bemestar Os governos tornamse mais poderosos os indivíduos parecem mais indefesos do que nunca Consequentemente a paixão natural pela liberdade deve ser complementada pela arte política uma arte que Tocqueville constata ter sido pra ticada de forma exemplar pela América Para a resolução do problema democrático a experiência americana sugere determinados expedientes democráticos tais como o autogoverno local a separação entre Igreja e Estado imprensa livre eleições indiretas judiciário independente e o fortalecimento de associações de todos os tipos É preciso re conhecer que Tocqueville nâo se limita a recomendar a adoção de todas as práticas ame ricanas Embora admire o sistema federal por exemplo argumenta que um mecanismo tão complicado é totalmente inadequado para o temperamento e as realidades da vida política europeia Mais do que tudo a América fornece princípios tais como o princípio do interesse próprio corretamente compreendido sobre os quais se pode construir uma ordem democrática respeitável Antes de examinar a doutrina do interesse próprio o cerne da resolução do problema da democracia no pensamento de Tocqueville devemos examinar alguns aspectos dos expedientes democráticos que acabamos de relacionar Tocqueville reconhece o valor da liberdade local no nível da comuna e da co munidade para neutralizar os efeitos da centralização Dentro dos limites deste todo de dimensões menores cada cidadão recebe sua formação inicial para o uso da liber dade Ao aprender a cuidar de assuntos em seu próprio alcance e a cooperar com eles o cidadão absorve os rudimentos da responsabilidade pública A comuna é o lócus da transformação do interesse próprio em patriotismo pelo menos em um tipo de patriotismo De acordo com Tocqueville as instituições livres em particular as de nível local transformam indivíduos essencialmente egoístas em cidadãos cuja pri meira preocupação é o bem público Ainda assim é fácil exagerar a importância ou talvez a relevância que Tocqueville atribui ao autogoverno local Notese que em lu gar algum fornece ele uma fórmula simples ou uma fórmula abrangente para a deter minação dos assuntos relativos a autoridades locais distintas das autoridades nacionais 692 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 17 Ibid II 305 Além disso sugere que quanto mais complexa e civilizada tornase a naçáo menos provável é que estabeleça a liberdade local ou que tolere os esforços claudicantes de uma comunidade sem tradição de liberdade O sistema de júri é outro dos expedientes democráticos que Tocqueville recomen da para preservar a liberdade e contrabalançar as tendências individualistas da democra cia Tal como a liberdade local esse sistema também transmite aos cidadãos uma cons ciência das necessidades dos outros Críticos observam que não têm sido realizadas as expectativas de Tocqueville a respeito desta fonte mas em geral não reconhecem que Tocqueville depositou sua esperança de sucesso do sistema na disponibilidade de um corpo de juizes superiores e que estava ciente de que a qualidade dos juizes como uma classe diminuiria proporcionalmente ao aumento do seu número É nas qualidades de tais homens que Tocqueville baseia sua crença de que o sistema de júri formará a ca pacidade de julgamento do povo e incutirá nele a consciência dos requisitos da justiça O procedimento característico de Tocqueville é tentar descobrir os meios pelos quais podem ser aprimorados e orienudos os gostos e paixões dos muitos o sistema de júri é um desses meios e neste sentido serve como uma instância espedíica do papel geral e abrangente que Tocqueville esperava que os juizes e outros ligados à profissão legal desempenhassem em uma democracia O treinamento que os advogados em particu lar recebem fornecelhes um gosto pela ordem por formas jurídicas e políticas e pela ligação entre ideias gosto que o distinguirá da multidão e propiciará um teor aristo crático a sua forma de pensar e suas preferências Seu espírito tende a ser conservador e antidemocrático na medida em que vêm a desempenhar um papel proeminente na sociedade como decerto virão a fezer em uma sociedade onde praticamente todas as questões políticas são transformadas mais cedo ou mais tarde em questóes legais e rão de modo a conter os impulsos dos muitos Podemos observar que o papel dos advo gados na solução do problema da democracia é uma aparente violação do princípio de que essa resolução deve ocorrer no nível da democracia mas enfim tratase apenas de uma ruptura parcial Muito embora os advogados sejam destacados por gostos e há bitos aristocráticos mantêm seu vínculo fimdamental com o povo por seu nascimento e seus interesses desta forma não constituem uma classe distinta De todos os expedientes democráticos a liberdade de associação é o principal Tocqueville considerava as associações como substitutos artificiais para a nobreza dos tempos antigos que em virtude de sua riqueza c posição servia como baluarte contra as intromissões do soberano nas liberdades do povo Da mesma forma argumenta To cqueville em uma democracia as associações protegem os direitos da minoria contra a tirania da maioria Uma vez que cada indivíduo em uma democracia é independente mas também impotente é apenas associandose a outros que pode contrapor seus pontos de vista aos da maioria Esta é uma função política do direito de associação direito este que tem sua origem na natureza Tocqueville atribui à proliferação de as sociações uma dignidade que talvez seja inédita no pensamento político Ao passo que autores antes consideravam o fomento aos panidos fecções ou associações como uma medida que causa divisão na sociedade Tocqueville acreditava que fosse absolutamente A le x is DE T o c q u e v i l l e 693 essencial para o bemestar da sociedade democrática Longe de contribuir para a ani quilação da unidade da sociedade as associações superam as tendências de divisão da democracia nos atos que acompanham a organização e o íuncionamento de uma associação os indivíduos aprendem a arte de adaptarse a um íim comum No entan to a utilidade das associações vai muito além de quaisquer considerações meramente políticas A participação em grupos políticos gera um gosto pelas associações e revela as vantagens das associações para outros íins educacionais científicos comerciais De acordo com Tocqueville aprender a associarse é o prérequisito para a preservação da própria civilização Um povo cujos indivíduos perdessem o poder de realizar grandes coisas sozinhos sem adquirir os meios de produzilos por meio de esforços conjuntos em breve recairia na barbárie Tocqueville avaliava as associações como um meio não só de mitigar a tirania da maioria mas também de superar a mediocridade a que a democracia é propensa A democracia coloca a responsabilidade pelo governo nas mãos daqueles que na visão de Tocqueville ou acreditarão que não sabem por que ou não saberão em que acreditar No entanto um r m e democrático pode alcançar a viabilidade se ocorrer uma ampliação de perspectivas as instituições livres que Tocqueville recomenda têm como objetivo fecilitar este processo Os homens devem ser transformados em cida dãos moralmente conscientes por meio da atuação desses expedientes democráticos Os indivíduos dentarão de pensar apenas em si mesmos suas capacidades serão ampbadas por meio do contato com grandes juizes sua simpatia para com os seus companheiros aumentará por meio de sua atuação como jurados suas mentes serão abertas por sua participação em associações Tocqueville acreditava ser impossível conceber um sistema de instítuições que garantisse um bom governo por meio das ações e reações de cidadãos que fossem totalmente insensíveis ou que tissem por motivos inescrupulosos A evolução de um senso de moralidade pública a partir do espírito de extremo indi vidualismo que caracteriza as eras democráticas é o tema não apenas das instituições que estamos discutindo mas da obra de Tocqueville como um todo Os bomens tornarseão cidadãos por meio do íuncionamento do princípio do interesse próprio bem compreen dido Em sua introdução à Democracia TocquevUle nos diz que o homem pobre adotou a doutrina do interesse próprio como a diretriz para suas ações sem compreender a ciên cia que a fez íúncionar e seu egoísmo não é menos cego do que era anteriormente sua devoção aos outros O apelo de Tocqueville por uma nova ciência da política para atender às novas condições de igualdade é um apelo por uma ciência que estabeleceria sobre bases firmes o princípio do interesse próprio Naturalmente é o homem pobre a quem se deve ensinar os princípios da nova ciênda pois é de que como membro da maioria governará a nova sociedade do mesmo modo os princípios da nova dêncía devem ser adequados ao seu nível de entendimento 694 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 18 tó p 115116 19 Ibid 1196 20 Ündp Qualquer que seja a maior deficiência da doutrina do interesse próprio bem com preendido Tocqueville insiste que de todas as teorias filosóficas é a mais adequada aos desejos dos homens de nosso tempo e que todos os moralistas e educadores devem envidar todos os esforços para transmitir os seus princípios A possibilidade de motivar os muitos por meio de apelos ao autossacrifício ou à atração inerente da virtu de desaparece com a destruição do sistema feudal e com ele da crença na autoridade e na dignidade de fins não materiais Em condições de igualdade o interesse privado se torna a mola mestra se não a única propulsora da ação humana O interesse privado afirma Tocqueville é o único ponto imutável no coração humano Tocqueville contrasta a doutrina do interesse próprio bem compreendido com a visão de que o homem serve melhor a seus semelhantes ao servir a si mesmo Ambos os pontos de vista apelam em última análise aos instintos de autoestima do homem mas o último não prevê o surgimento de virtudes políticas somente intensificaria a tendência para o individualismo Se os homens não devem retrairse de todo em seus próprios círculos domésticos se o civismo não deve desaparecer é preciso ensinar aos homens que a partir de uma consideração iluminada por eles mesmos precisam ajudar constantemente uns aos outros e sacrificar uma parte de seu tempo e riqueza para o bemestar do Estado ou da comunidade É preciso que os homens cheguem a compreender a conveniência de adiar a gratificação imediata de seus desejos na expec tativa de um grau mais certo ou maior de satisfação em um momento posterior uma expectativa decorrente da contribuição do bemestar comum para seu próprio bem estar As fimdações da ordem pública ou social repousam sobre o egoísmo esclarecido cada indivíduo aceita a visão de que o homem serve a si mesmo ao servir a seus se melhantes e que seu interesse privado é fezer o bem Fiel às exigências da igualdade Tocqueville apela para os instintos de autoestima do homem e se esforça para construir sobre esta base um tipo de moralidade pública e patriotismo íària os homens virtuosos ao ensinarlhes que o que é certo é útil também É possível confiar plenamente na doutrina do interesse próprio O princípio do interesse bem compreendido náo é nobre mas é dato e certo Náo visa objetivos devados mas alcança sem esforço todos aqueles que almeja Como se encontra ao alcance de todas as capaddades todos podem aptendêlo sem dificuldade e guaidálo Por sua admirável conformidade ás fraquezas humanas fecilmente obtém grande domínio nem é esse domínio precário uma vez que o princípio contrapõe um interesse pessoal a um outio e utiliza para orientar as paixões o mesmo instrumento que as desperta Esta declaração sucinta revela a concordância fundamental de Tocqueville com os pressupostos do pensamento político moderno apesar de aparente desvios Tocqueville A le x is DE T o c q u e v i l l e 695 21 22 Ibid 1255 23 Ibid II 129 24 Ibidpò segue a tradição acerca do direito natural que se originou com Maquiavel e continuou nos ensinamentos de Hobbes O problema político do homem é solucionado por um rebaixamento dos padróes a doutrina do interesse próprio bem compreendido não almeja objetos elevados A realização dos padróes que são adotados é assegurada pela dependência de uma doutrina ao alcance da mais humilde capacidade por conseguin te ao alcance de todos A doutrina tem suas raízes naquela que é considerada a paixão mais poderosa do homem aqui a preocupação com o bemestar individual O sucesso da doutrina tem garantia ainda maior devido ao dispositivo de jogar um interesse contra o outro enquanto relega à razão a tarefe de assegurar a satisfeção das paixóes Em comum com a maioria dos filósofos políticos tipicamente modernos Tocqueville se esforça para construir seu sistema sobre o que está ativo na maioria dos homens na maioria das vezes o que como era de se esperar acaba por ser o que é mais inferior e não o que é mais elevado no homem Como em Maquiavel balizamonos a partir do que os homens são não a partir daquilo em que podem se tornar Tocqueville não é filisteu não é insensível ao que é mais elevado no homem Ainda assim somos con frontados com a sua aquiescência e incentivo a um princípio de moralidade política cujo efeito é estabelecer um padrão medíocre para a humanidade Se o princípio do interesse bem compreendido devesse influenciar todo o mundo mo ral seriam sem dúvida mais raras as virtudes extraordinárias mas estou convencido de que a profunda depravação seria também menos comum O princípio do interesse bem compreendido talvez impeça os homens de elevaremse muito acima do nível da huma nidade mas um grande número de outros homens que estavam descendo muito abaixo dela são capturados e contidos pelo princípio Observese alguns poucos indivíduos sáo rebaixados por ele pesquisese a humanidade é elevada por ele Observamos antes que de acordo com Tocqueville a resolução do problema da de mocracia deve ocorrer no nível da democracia Tocqueville aceita a igualdade e com ela o individualismo que é o seu efeito secundário inevitável A igualdade solapa a deferên cia concedida àqueles que em outras eras tinham a responsabilidade de zelar pelo bem comum o individualismo afesta os homens da preocupação com o bemestar comum O problema da democracia é recriar o sentimento de moralidade pública com base na igualdade e no individualismo A doutrina do interesse próprio bem compreendido constitui a tentativa de Tocqueville para resolver o problema com base nesses aspectos Confiar no interesse próprio bem compreendido requer naturalmente que o interesse próprio seja corretamente compreendido Dentro do contexto da Democracia o interes se próprio é entendido primordialmente em um sentido econômico tratase de uma preocupação com os sinais materiais mais imediatos mais tangíveis do bemestar de um homem De uma preocupação iluminada com próprio o bemestar material emergirá um bem que vai além de um bem econômico o patriotismo ou o espírito público é o corolário que resulta da busca inteligente do interesse próprio do indivíduo 696 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S tr a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 25 Ibid Até agoia omitimos qualquer referência ao papel que desempenha a religião para mitigar o problema da democracia À primeira vista a insistência de Tocqueville quan to à indispensabilidade da religião parece indicar uma radical deficiência na doutrina do interesse do próprio bem compreendido Há certos sacrifícios que os indivíduos são conclamados a fiizer e pelos quais não podem sensatamente esperar por uma recom pensa nesta vida além disso qualquer que seja a perspicácia empregada para provar que a virtude é útil haverá indivíduos que não se comoverão com tais argumentos A virtude portanto precisa do apoio do outro mundo A solução reside em uma simples ampliação do princípio do interesse próprio para que venha a incluir as recompensas de uma vida futura Tocqueville sustenta que os fundadores de quase todas as religiões empregaram para promover sua causa a mesma linguem que os filósofos morais utilizaram para estabelecer o princípio do interesse próprio o caminho é o mesmo é a meta apenas que se coloca mais distante Não nega que a motivação de alguns indivíduos religiosos possa não ter sido nada além do amor a Deus mas insiste que o interesse próprio é o principal meio que as religiões utilizam para governar os homens e que desta forma impressionam a multidão e ganham popularidade Não somen te o interesse próprio pode ser complementado pela religião mas uma espécie de sen timento religioso em si pode ser fundamentado em um espírito de maquinação O modo como Tocqueville aborda a religião é totalmente popular Invoca a religião não apenas para justificar o sacrifício supremo mas também para combater tanto o individualismo quanto o materialismo das eras democráticas A religião não pode deixar de mostrar aos homens que há bens e aspirações que transcendem a ex periência de seus sentidos assim combate o ensinamento materialista de que tudo é redutível à matéria e perece com o corpo Desperta no homem o uso de suas mais sublimes faculdades ylém disso a religião serve para lembrar os homens de suas obrigações uns para com os outros e ao fazêlo afasta os homens de sua preocupação exclusiva com eles mesmos Tocqueville assevera que é impossível a liberdade sem a moralidade e a moralidade impossível sem a religião A religião fornece as crenças dogmáticas que são a argamassa da sociedade as crenças sobre a natureza de Deus a alma e as obrigações dos homens uns para com os outros e para com o todo maior o Estado do qual fazem parte Essas crenças são necessárias em especial nas épocas de extremo individualismo quando os homens são livres para formar e sustentar suas próprias opiniões mas não tém confiança para fazêlo Nesta situação quando tudo está em dúvida e todas as opiniões sâo mal defendidas e abandonadas com facilidade os homens tendem a submeterse ao primeiro demsogo que acalme suas sensibilida des com fidsas promessas de ordem e estabilidade As ideias gerais sobre Deus e a alma humana são portanto preservadoras da liberdade humana Contudo se os indivíduos não são capazes de encontrar por si mesmos as respostas para as questões eternas se os filósofos como afirma Tocqueville não são capazes de fornecer respostas inequívocas A le x is d e T o c q u e v i l l e 697 26 Ibid p 133 27 Ibid p 134 e se no entanto for fundamental para a liberdade e o bemestar da sociedade que baja um núcleo comum de tais crenças então a sociedade deve recorrer à religião para suprir a fidba Embora Tocqueville feça alusão a religiões falsas e muito absurdas não insiste na verdade ou na coerência da religião que cumprirá essa íimção política é praticamente indiferente quanto às doutrinas específicas da religião professada por esta ou aquela sociedade democrática Desta forma suas recomendações constituem pou co mais que uma justificativa de crenças simples projetadas para satisfezer e manter dentro dos limites adequados a demanda instintiva da alma humana por uma resposta para a questão da imortalidade A defesa que fez Tocqueville da utilidade da religião não o leva a advogar uma religião estatal pelo contrário extrai de considerações políticas a necessidade da se paração entre Igreja e Estado Entretanto ao contrário daqueles que procuraram se parálos a íim de fortalecer a ordem política ao mesmo tempo em que debilitavam a ordem religiosa Tocqueville argumenta que somente através dessa separação é que a influência religiosa permanecerá forte o bastante para exercer seus efeitos benéficos sobre a sociedade civil Estaria em perigo o efeito salutar do espírito da religião sobre a sociedade se a religião por sua entrada na esfera política implantasse a sugestão de que suas doutrinas estariam sujeitas à determinação da maioria Somente apoiandose na paixão natural pela religião que é do homem como homem e abstendose de alianças com qualquer partido ou Estado em particular é que a religião pode manter o seu do mínio sobre os homens em tempos democráticos A religião deve permanecer forte e por conseguinte separada a fim de cumprir a sua íúnção política Os colonos da Nova Inglaterra transmitiram esse legado precioso a seus descendentes o conhecimento do modo como se podem combinar o espírito de liberdade e o espírito da religião No âmbito político tudo era maleável e sujeito a modificação porém tendo atingido os limites do mundo político o espírito humano detémse por si mesmo temeroso abandona a necessidade de exploração até mesmo se abstém de eipier o véu do santuário curvase respeitosamente diante de verdades que aceita sem discussão A democracia ao que parece é impossível sem um santuário que se localize aci ma e além dos questionamentos democráticos Tocqueville tem plena consciência de que as condições de igualdade impóem suas próprias limitações sobre a religião Se a religião deve manterse fiel à sua íúnção política deve aceitar essas limitações deve também ser congruente com o princípio do regime democrático e com as paixões deflagradas pela igualdade A religião não pode ter esperanças por exemplo de persuadir os homens de que é imoral a paixão pela autogratiílcação mas pode tentar regular e moderar a pulsão pelo bemestar A religião deve acatar as paixões democráticas sem se render a elas Ao mesmo em que se 698 H i s t ó r i a d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 28 Ver eg ibid p 22154155 I 314 29 Ibid 145 atém às suas crenças essenciais a religião não deve instigar a hostilidade da maioria por contraporse desnecessariamente às ideias que prevalecem em geral ou aos interesses permanentes que existem na massa do povo Tocqueville devota seus esforços à pre servação do santuário religioso dos questionamentos ímpios e destrutivos dos muitos A J u st if ic a ç ã o d a D e m o c r a c ia A obra de Tocqueville é celebrada por sua objetividade e sugerir que se encar regue de fornecer uma justificativa para a democracia parece contradizer o espírito e a letra dessa obra Tocqueville tenta captar as propensões da democracia e convertê las em vantEens mas deliberadamente evita assumir uma preferência quer pela de mocracia mesmo em seu estado perfeito ou pela aristocracia o regime a que a demo cracia sucedera ou estava em vias de suceder Na introdução ao seu livro Democracia Tocqueville alerta para o fato de que náo escreveu pata elogiar a democracia ou para defender qualquer forma específica de governo nem sequer aventa uma opinião acerca de o irresistível movimento em direção à igualdade ser prejudicial ou vantajoso para a humanidade na conclusão da sua grande obra afirma que a aristocracia e a demo cracia são como dois tipos diferentes de seres humanos não suscetíveis de comparação justa Nesta mesma conclusão porém Tocqueville declara Podemos é claro acreditar que náo é a singular prosperidade dos poucos mas o bem estar maior de todos que é mais agradável aos olhos do Criador e Preservador dos ho mens O que me parece ser o declínio do homem é aos Seus olhos um avanço o que me aflige é aceitável para Ele Um estado de igualdade seria talvez menos elevado mas é mais justo e sua justiça constitui sua grandeza e sua beleza Tocqueville rejeiu a tese clássica de que a justiça tem como tema a busca da ex celência humana Em comum com filósofos políticos modernos sustenta que a justiça deriva dos direitos naturais a ideia de direitos naturais afirma é simplesmente a da virtude inttoduzida no mundo político Os direitos naturais de todos por sua vez derivam da igualdade natural de todos os homens uma condusão que não foi percebida pelos melhores intdectos da Antiguidade e teve de Eqardar a reveúção cristã antes que sua verdade pudesse ser percebida As desigualdades que caracterizavam a Idade Média baseavamse não na natureza mas no direito positivo A própria aristocrada de acordo com Tocqueville é contrária ao patrimônio natural e não pode estabelecerse sem recorrer à violência Até mesmo o governo da aristocracia é opressor para a maioria das pessoas no Estado não obstante a virtude e o talento dos aristocratas os aristocratas constituem um grupo distinto com interesses normalmente adversos aos interesses dos muitos Ao contrário por meio da atuação de uma tendência secreta a maioria ainda que seja ignorante não pode deixar de governar no interesse do maior número 30 Ibid II 28 31 Ibidpò5 32 Ibid 1254 Alexis DE Tocqueville 6 9 9 Tocqueville aiimenta ainda que a obrigação moral deriva de duas fontes seja das necessidades e interesses comuns a todos os homens ou das necessidades específicas de uma nação específica ou de um grupo dominante Noções gerais de justiça em cada estado anterior da sociedade foram recobertas por sistemas de moralidade que refletem ou apoiam as necessidades particulares dessa sociedade ou de grupos dominantes espe cíficos dentro dessa sociedade como por exemplo os princípios de desigualdade que supostamente justificaram o governo da aristocracia feudal Desta forma esses códigos morais secundários eram ligados a circunstâncias especiais ou emergiam de indivíduos que gozavam de privilégios distintos em determinados períodos da história Com o desaparecimento desses privilos desapaiecem também os códigos morais a que de ram origem e resta somente um código de justiça simples e uniforme que se baseia nas necessidades e nos interesses comuns a todos os homens como homens Em outras pala vras tornamse iguais as condições definham os códigos morais convencionais que são substituídos pelo código natural de moralidade que corresponde à condição natural do homem a igualdade A condição democrática é portanto a única condição que não dá origem a um código moral convencional e é deste íato podemos inferir do pensa mento de Tocqueville que a democracia recebe a sua justificativa Em seus fundamen tos pelo menos a democracia está de acordo com a natureza Aqueles a cpxem A Democracia tm América de Tocqueville dirigiase primordial ou imediatamente eram tanto os partidários quanto os críticos da democracia Tocquevil le procurou moderar as paixões dos primeiros e apaziguar os temores dos últimos O resultado foi uma obra digna de um estadista em que ambas as facções encontrariam algum consolo e pouco que as insultasse ao mesmo tempo em que promovia a causa de uma democracia moderada Tocqueville aceitou a revolução democrática intuiu suas fiaquezas e tentou remediálas por meios totalmente democráticos L e it u r a s A Tocqueville Alexis de Democracy in America v I Prefece Introduction caps ii iii iv v 6171 89101 vi 102107 viii 165180 ix x 181186 xiii 206209 240245 xiv xv xvi 281 290 xvii xviii 433447 452 v II livro I caps i ii v viii xx livro II caps i ii iv v vii viii ix X xi xiii xiv xix xx livro III caps i xvii xviii xix xxi livro IV caps i ii vi vii viii Ze la démocratie en Amérique B Tocqueville Alexis de The Old Régime and The French Trans Stuart Gilbert Garden City Doubleday Anchor Books 1955 ÜAncien Régime et la Révolution Tocqueville Alexis de TheEuropean Révolution and Correspondence with Gobineau Ed and trans John Lukacs Garden City Doubleday Anchor Books 1959 Tocqueville Alexis de The RecoUections t f Alexis de Tocqueville Trans Alexander de Mattos New York Meridian Books 1959 700 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph Cropsey 18061873 J ohn Stuart M ill I M é t o d o e m F il o s o f ia P o l ít ic a O que mergulhou John Stuart Mill na busca do método apropriado para o estudo da política foi o surgimento das críticas de Macaulay a An Essay on Govemment Um ensaio sobre o governo de seu pai James Mill Até aquele momento J S Mill jun tamente com outros utilitarístas ou filósofos radicais como se autodenominavam aceitara o método dedutivo de Bentham e James Mill como adequado para a ciência política De acordo com sua concepção de método dedutivo deviamse deduzir os princípios da íilosoíia polítíca e as regras práticas da ação política a partir de algumas leis simples da natureza humana isto é de axiomas psicológicos Bentham enunciou esses princípios e James Mill elaborou uma teoria de governo baseada neles Ihomas Macaulay apresentou uma crítica breve porém arrasadora desta abor dagem da política Argumentou ser incorreta a teoria da natureza humana que to mava por base em suas ações os homens eram guiados por algo além do desejo por seu próprio prazer Assim demonstrou que mesmo como teoria dedutiva a visão de James Mill era demasiado limitada Mais importante foi seu questionamento da pos sibilidade de desenvolver a partir de princípios íundamentais uma teoria que fosse relevante para a prática O que sabemos sobre a política aprendemos pela observação e pelo estudo da história Tomando como dados eventos históricos e seqüências de even tos observados e registrados o procedimento mais vantajoso acreditava Macaulay seria classificar e generalizar da maneira preconizada por Francis Bacon Essas genera lizações continuamente verificadas pela comparação com fatos novos constituiriam o conhecimento político tanto teórico como prático e conduziriam a uma ciência política muito superior às estéreis teorias a priori dos íilósofos radicais 1 Mill on Government Edinburgh Review v X March 1829 Reimpresso em The Miscellaneous Writing ofLord Macaulay London Longman Green Longman and Roberts 1860 I 282 322 J S Mill foi profundamente influenciado por essas e outras críticas feitas por Macaulay Entretanto acreditava que os utilitaristas estavam corretos na essência de sua teoria e que o erro de seu pai era de forma e não de conteúdo Concebia Um ensaio sobre o govemo como um ataque à reforma parlamentar ao contrário de um tratado sis temático e lamentava que seu pai não admitisse isso Assim enquanto o ensaio estava correto em suas conclusões principais era inadequado quanto a seu método Em seu próprio pensamento J S Mill tentou formular um método que fizesse justiça tanto ao discernimento do utilitarismo como às restriçóes de Macaulay Suas próprias conclusóes a respeito do método apoiamse na distinção entre três tipos de dedução direta concreta e inversa Assim sendo reconhecia quatro métodos todos científicos porém aplicáveis a diferentes assuntos A indução propriamente dita ou método químico como a denominava estabelece leis causais pela comparação de casos específicos observados utilizandose os cânones da indução os métodos da concordância diferença variaçóes concomitantes e resíduos Embora aplicáveis à quí mica e até certo ponto úteis para o estudo da história esta abordsm não é aplicável à ciência da política O método direto dedutivo ou método geométrico empregado por James Mill deduz por raciocínio silogístico os primeiros princípios de leis menos gerais Este método aplicase somente às áreas onde não existem outras causas que impeçam o íuncionamento da causa em estudo Portanto pode ser utilizado em ma temática mas não em mecânica ou política O método concreto dedutivo ou método fisico infere as leis de efeitos não de uma lei causai mas de várias delas tomadas em conjunto analisando todas as causas que influenciam o efeito e amalgamando suas leis umas com as outras A íregação de causas é possível porque o efeito produzido é a soma dos efeitos que seriam produzidos pelas causas tomadas isoladamente A simples agrção não funciona na química mas sim na mecânica e nas ciências sociais uma vez que os homens continuam sendo homens mesmo quando agpm em conjunto com outros homens Assim o método dedutivo concreto é adequado para a porção das ci ências sociais que se ocupa da determinação do efeito de uma determinada causa por exemplo uma nova lei em uma determinada situação da sociedade Por outro lado para verificar como se determinam as próprias condiçóes ou estados da sociedade devemos utilizar o método inverso dedutivo ou método his tórico O modo de proceder aqui é desenvolver leis empíricas da sociedade com base na indução e em seguida verificar essas leis por meio da dedução de leis a priori da natureza humana A abordagem indutiva por si só não basta porque há muito pou cos casos que podem ser utilizados como kdos Qualquer generalização desenvolvida adquire plausibilidade apenas por sua ligação com uma teoria dedutiva geral Foi de Comte que Mill retirou a teoria geral que acreditava necessária para colocar o próprio progresso humano no âmbito da ciência Em geral e para fins práticos é útil o método físico Falha este quando o progresso se torna um fetor na ação política isto é quando 702 H istória da Filosofia PoiíncA Leo Strauss e Joseph Cropsey 2 J S Mill Autobtoffuphy New Yoik Columbia Univeisity Press 1924 p 110113 3 JSM m A V m L flpf1843llleV l não se pode assumir que permaneçam constantes as circunstâncias que são a base para uma ação Assim há dois ramos nas ciências sociais um supõe que as condições per manecem as mesmas mas que são introduzidos fatores ou agentes novos ou diferentes a economia política por exemplo e outro que tenta definir o modo como mudam essas próprias condições ou seja a filosofia da história Na opinião de Mill nenhu ma ciência social é completa sem ambos esses ramos e o último o ramo histórico é fundamental Como será demonstrado ambos são diretamente aplicáveis aos estudos políticos o físico quando se avalia o valor de uma proposta legislativa específica em um determinado estio da sociedade o histórico ao levar em conta os efeitos de pro postas específicas sobre o progresso da sociedade em direção a sua próxima etapa II F il o s o f ia d a H is t ó r ia O conteúdo da filosofia da história de Mill sofreu forte influência do pensamen to firancês do século XVIII do movimento em favor da reforma na Inglaterra para o qual contribuiu e de seus estudos dos filósofos franceses da reforma do século XDC especialmente os saintsimonianos e Comte Acreditava na possibilidade e na conve niência do progresso social mas não em sua inevitabilidade A humanidade sabemos pela história é capaz de passar da barbárie à civilização e este avanço assiune diferentes formas e ocorre em ritmos diversos em diferentes sociedades embora admite Mill haja alguma ordem no progresso humano Por meio da utilização do método histórico adequado podemos determinar as etapas pelas quais qualquer povo deve passar em seu progresso e esse entendimento do padrão das transformações históricas fornece as coordenadas a partir das quais é possível definir que medidas devem ser tomadas para seguir para a próxima etapa Assim a filosofia da história entendida como a filosofia do progresso da sociedade é fundamental para a ciência prática da política e dá a esta ciência uma dimensão maior Não basta saber o que deve ser feito na situação atual para atingir os fins do governo que existe hoje na sociedade atual É necessário tam bém saber como devem ser atingidos tais fins de forma a capacitar a humanidade a passar para o próximo esteio mais elevado de civilização Isso também deve ser feito de tal forma que abra caminho para o estio de civilização que vem depois do seguin te Tal teoria devese assinalar é satisfatória enquanto examinarmos sociedades menos avançadas do ponto de vista das mais avançadas Peiuntamos de que necessitam tais sociedades para alcançar o nível de civilização que já atingimos Este é o tipo de pergunta que fãz Mill sobre as sociedades primitivas É mais dificil determinar de que necessita nossa sociedade uma sociedade altamente civilizada para que passe para a fiise seguinte da qual no momento não temos nem um exemplo nem uma ideia cla ra Esta lacuna na filosofia da história é preenchida pelo ideal estabelecido de maneira dedutiva a partir de uma teoria da natureza humana e de uma teoria da ética J ohn Stuakt M ill 703 4 Ibid esp VI Quando ainda jovem Mill formulou uma sugestiva abordsem para este proble ma Distinguiu dois estados básicos da sociedade o natural e o de transição O estado natural da sociedade é aquele em que os mais bem equipados para governar são de fato os que governam No estado de transição por outro lado estão no poder indivíduos que não são os melbores Estados naturais tendem a ser minados pela ascensão de novos Uderes a luta entre estes e os antigos líderes produz o estado de transição que será eventualmente substituído por um novo estado natural Embora pareça que mais tarde Mill abandonou este tipo de análise ficou um resíduo dele em seu pensamento a saber que não é satisíatório nenbiun estado da sociedade a menos que os mais bem equipados para governar exerçam a autoridade maior na sociedade Mill também impressionouse com a análise de três estados ou estágios de Comte Considerava muito correta a ideia de que o desenvolvimento intelectual da humanida de passou por um estágio teológico e um estágio metafísico e está agora em um estágio positivo ou como Mill preferiria chamálo experimental e sua aceitação desta dou trina sobreviveu a sua desilusão com a íilosoíia social posterior de Comte Se perguntarmos a Mill qual é a causa eficiente do progresso social descobrimos que este não fornece uma resposta simples Em cada etapa da civilização podem ser produzidas determinadas condições que tornam possível a próxima etapa por exem plo Mill salienta que a primeira lição a ser aprendida antes que seja possível qual quer progresso social é a lição da obediência Todavia a existência das condições de progresso não garante que o progresso vá ocorrer O avanço da sociedade é de fato produzido pelas ideias exemplos e liderança moral e intelectual de indivíduos superio res Indivíduos superiores têm florescido principalmente em condições de liberdade de modo que a liberdade se torna uma condição necessária para o progresso O argu mento é bastante simples o progresso depende do surmento de novas ideias novas ideias surgem apenas como desafios para ideias antigas e enraizadas e ainda assim somente se houver liberdade para desafiar as crenças existentes e sugerir alternativas Mill reconhecia que as crenças existentes forneciam uma base para a estabilidade da sociedade Reconhecia também que desafiar essas crenças constituía uma ameaça para a sociedade A tensão implícita entre as exigências de estabilidade e as exigências de reforma é esmiuçada por Mill em sua obra Representative Govemment O governo representativo que será discutida a seguir Outra questão a ser examinada por qualquer íilosoíia da história se pretende contribuir para o estudo da política é o lugar da sociedade existente dentro dos con tornos da história Mill não tinha dúvidas de que eram civilizadas as sociedades da Eu ropa ocidental e os Estados Unidos Havia também regiões não civilizadas no mundo e outras em vários e stro s de civilização abaixo dos níveis atingidos pela Europa oci dental Os sinais de civilização são a existência de governo responsável e o surgimento do conhecimento científico Mill parece acreditar que a medida do avanço de uma so 7 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y J S Mill The Spirit t f the Age C h io University of Chicago Press 1942 Esses ensaios foram publicados ordinalmente em 1831 ciedade é o estado do intelecto e parece ter poucas dúvidas de que o progresso futuro da humanidade está ligado ao desenvolvimento contínuo do conhecimento científico em particular na área das ciências sociais pois acreditava que as ciências físicas estavam em vias de atingir a completude A ideia de que o progresso ainda está para ser alcançado é a pedra íiindamental de todo o seu sistema de pensamento político e a ideia de que este só pode ser alcançado deliberadamente por meio de uma ciência da sociedade é um corolário que deve a Comte e aos socialistas franceses Para compreender a íilosoíia da história de Mill dentro de sua relação com sua ciên cia política devese apreciar a influência que teve Tocqueville sobre ela Mill aceitava a tese de Tocqueville de que era quase inevitável o movimento em direção a uma democra cia cada vez maior isto é em direção a uma igualdade de status cada vez maior Como Tocqueville não entendia que este movimento em si fosse o progresso mas ao contrá rio que apontava o problema a ser enfíentado por aqueles que desejassem promover o progresso Levada longe demais a igualdade interfere com a justiça e pode prejudicar tanto a liberdade como o respeito pela excelência intelectual e moral que é a condição para maior progresso É a partir dessa análise que Mill foi conduzido a restringir em sua própria teoria a fé na democracia radical que possuíam os utilitaristas anteriores III C o n s id e r a ç õ e s M o r a is A íilosoíia da história adotada por Mill exigiu uma revisão da teoria ética do uti iitarismo na medida em que íbi aplicada à política A finalidade do Estado para os utilitaristas anteriores era o bem dos indivíduos que compunham o Estado e esse bem deíiniase em termos hedonistas como o máximo prazer obtenível com o mínimo de dor Assim o governo era encarado como um agente para aumentar o prazer e diminuir a dor Não há dúvida de que em princípio Mill aceitava esse ponto de vista porém consideravao inadequado tanto por negligenciar um aspecto da natureza humana e pela incompreensão dos aspectos que inclmá A maior força dos argumentos de Mill em UtUtUrianism utilitarismo é dirigida contra os intuicionistas que acreditava alega vam que se pode conhecer a priori a distinção entre atos corretos e atos incorretos ou entre princípios morais corretos e incorretos Mill rejeitava esta visão e afirmou que o prindpio fundamental da moralidade dáse a conhecer pela experiênda e vai ainda mais longe ao oferecer uma espécie de prova indutiva para o princípio da máxima íèlicidade Mill revisa a teoria de Bentham ao tentar responder a acusaçóes específicas à ver são anterior do utilitarismo A objeção que mais parecia preocuparlhe era que o uti litarismo tinha uma visão rasteira da vida humana não distinguindo entre uma vida adequada para os animais daquela que é própria para os homens Em resposta a isso Mill introduziu uma distinção qualitativa entre os prazeres para complementar as dis J o h n Stuabt M ill 705 J S Mill M de Tocqueville on Democracy in America in Dissertatíom and Discussions New York Henry Holt 1874 II 79161 Ver também Autobiography p 134141 J S Mill Utilitarianism Frasers Magazine 1861 Reimpresso em várias edições tínções meramente quantitativas de Bentham e mostra que essa distinção qualitativa remonta ao epicurismo da Antiguidade Alguns prazeres especificamente os mentais e espirituais são eles mesmos superiores aos prazeres do corpo independente de consi derações de ordem quantitativa ou circunstancial Assim a felicidade demandaria não só uma vida de prazer sem dor mas a satisfeção dos prazeres superiores mesmo à custa da dor e do sacrifício dos prazeres inferiores De três maneiras este aspeao é importante para a filosofia política de Mill Primei ro porque está ligado a sua teoria do progresso humano Uma sociedade em que as pes soas buscam os prazeres superiores é mais aiçada em civilização do que aquela em que não o fezem Assim a promoção da busca dos prazeres superiores é ao mesmo tempo a promoção do avanço da sociedade Em segundo lugar porque o cultivo dos prazeres superiores exige maior liberdade social de modo que apenas uma sociedade livre pode ser verdadeiramente civilizada no sentido de Mill Por último porque os homens podem viver juntos de modo mais justo e com maioies conquistas humanas na medida em que buscam os prazeres mais elevados ao contrário dos mais baixos Assim o problema do governo é em parte resolvido pela busca dos prazeres mais elevados porque os traços de caráter que se desenvolvem a partir dessa busca são os traços de caráter necessários para atingir a melhor forma de organização política A ciência a maior conquista da vida in telectual demanda apenas aquela objetividade e desinteresse de que o homem necessita para ser de feto moral e por conseguinte ser cidadão do melhor tipo de estado Assim apesar de o núcleo do utilitarismo estar presente na afirmação de Mill de que essas açóes individuais ou sociais são direitos que produzem a maior felicidade do maior número esse núcleo foi tão modificado e ampliado que a teoria resultante tem um matiz diverso do utilitarismo original O governo não existe apenas para produzir o máximo do tipo de prazer que acontece de os cidadãos preferirem Ao contrário alguns tipos de prazer são melhores que outros e o governo tem a responsabilidade de educar seus cidadãos para buscar os prazeres mais elevados em lugar dos prazeres inferiores A educação moral portanto quer seja de feto exercida pelo govemo ou por particulares e Mill parece preferir esses últimos é uma das responsabilidades da boa sociedade e a educação moral deve ser voltada para o homem não apenas como um animal em busca do prazer mas como um ser progressista Há outras distinções importantes para a porção politicamente relevante da teo ria ética de Mill Para Mill o indivíduo é anterior ao Estado mas não o indivíduo tal como ele é ao contrário o indivíduo tal como pode vir a ser com uma educação adequada em uma sociedade bem organizada Isso não significa que Mill conceba um padrão de vida humana que deva servir de modelo para todos os homens mas sim que há uma grande variedade de potenciais nos homens e que a sociedade deve pro porcionar condições nas quais cada homem possa desenvolver seus talentos especiais e tornálos disponíveis para a comunidade Os homens podem dar o melhor de si se tiverem a oportunidade de usar seus talentos de modo ativo Mill considera a vida ativa como moralmente superior a uma vida de obediência passiva em quase todos os níveis de realização humana Disto decorre que o govemo que incentiva a participação 7 0 6 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y ativa de todos os seus cidadáos em seu íuncionamento apesar dos problemas que pos sam surgir como conseqüência é melbor que um governo que seja mais organizado mas que encoraje seus cidadãos a serem passivamente obedientes aos comandos de um grupo dominante qualquer que seja a morabdade e justiça desses comandos IV O F im d o E st a d o Mill inicia seu mais extenso tratado sobre a íilosoba política Considerations on Representative Govemment Governo representativo com uma reformulação da anti ga questão a respeito de os governos existirem por natureza ou por convenção Toma isso como uma indagação relativa à gama de escolbas no que se refere a formas de governo Se o governo é inteiramente uma questão de convenção então a escolba é ilimiuda Se os governos existem inteiramente por natureza então não bá escolba possível Mill rejeita ambas as posições e tenta mostrar o quanto bá de verdade em cada uma apontando três condições que qualquer povo deve satisfezer a fim de que um determinado sistema de governo possa ter sucesso o povo deve estar disposto a aceitálo disposto a fezer o que é necessário para mantêlo em vigor e disposto a fezer o necessário para possibilitar que cumpra sua finalidade As condições fevoráveis para o estabelecimento e manutenção de sistemas específicos de governo podem ser em certa medida o resultado da educação do povo e dentro dos limites estabelecidos por essas condições a forma específica de governo é uma questão de escolha A escolha de uma forma de governo dentre aquelas cujas condições estão presen tes deve ser guiada por uma compreensão da finalidade ou das finalidades do governo Após debater alguns pontos de vista contemporâneos sobre o assunto Mill entende que a opinião mais diíundida mesmo entre os utilitaristas é de que os governos exis tem para preservar a ordem e para atingir o progresso na sociedade Considera isso redundante pois a realização do progresso pressupõe a ordem ou seja a segurança do que foi alcançado Desta forma Mill estaria disposto a afirmar que o progresso é a finalidade mais ampla do governo mas com alguma relutância já que afirmálo não dá ênfese suficiente à necessidade igualmente importante de se proteger contra o perigo de retrocesso Uma forma mais adequada para conceber os requisitos de uma forma de govemo é reconhecer que a suposta antítese entre ordem e progresso é apenas um reflexo da mais profimda antítese psicológica entre dois tipos de caráter humano o tipo em que predomina a cautela e aquele em que a ousadia é dominante O bom govemo aquele que alcança o progresso com base na ordem demanda homens de ambos os tipos para fornecer um equilíbrio embora não seja necessária nenhuma dis posição especial na constituição para garantilo Basta ter certeza de que nenhum dos dois tipos seja sistematicamente eliminado O íundamental é a qualidades dos seres humanos sobre os quais é exercido o governo o que é visto sob duas perspectivas Um J o h n S t u a r t M i l l 707 J S Mill Considerations on Representative Govemment London 1861 Reimpresso em várias edições teste do bom governo é o grau em que sáo promovidas a virtude e a inteligência do povo A outra é a medida em que a máquina do governo aproveita as boas qualidades das massas Desta maneira a finalidade do governo é íãzer o povo melhor e os meios são para educar o povo e empregar as mais elevadas qualidades que alcançaram Desta íbrma a teoria moral de Mill fornece a base para sua teoria política e am bas são sustentadas por sua interpretação das etapas do progresso social Embora Mill reconheça que o governo deve cuidar dos assuntos da comunidade é mais importante a responsabilidade deste para o desenvolvimento do povo O critério para sua eficácia no primeiro é a sua eficiência e os padrões de eficiência são os mesmos para todas as formas de governo São mais complexos os critérios para sua eficácia na educação do povo e dependem do estio de desenvolvimento em que este se encontra Assim como existe uma ordem natural na educação de um indivíduo existe também uma ordem natural na educação de lun povo Aprendemse primeiro as lições mais íãceis aquelas que pressu põem outras não podem ser aprendidas até que essas outras tenham sido dominadas Se a condição précivilizada é a barbárie a obediência é a primeira liçâo o tra balho é a seguinte e o autogoverno é a etapa final Mill percebe uma linha contínua de desenvolvimento da escravidão até o autogoverno com cada etapa preparada pela aprendizagem de uma liçáo específica isto é pela aquisição de um novo traço de cará ter por parte da população como um todo Além do aspecto comercial do governo o critério da melhor forma de governo para qualquer povo em particular é que ofereça o que é necessário para ensinarlhe a liçáo que precisa aprender a fim de avançar para o estado mais avançado da sociedade que vem em seguida e que não o impeça de seguir em frente após um treinamento adequado para a etapa seguinte É neste contexto que podemos entender a visão de Mill de que o despotismo é um modo legítimo do go verno de bárbaros se a meta for o seu aperfeiçoamento Para Mill esta seqüência de etapas implica um ponto culminante para a melhor forma absoluta de governo uma forma que se as condições necessárias existirem promoveriam mais do que qualquer outro não uma só forma de aperfeiçoamento humano mas todas as suas formas e graus Esta afirma Mill é uma variação do sistema representativo V O A r g u m e n t o e m Fa v o r d o G o v e r n o R e p r e se n t a t iv o O governo representativo tem apenas um rival a o seu posto como o melhor siste ma político idealizado que vem a ser o despotismo benevolente Depois de examinar com cuidado os benefícios a serem obtidos pelo governo absoluto por um indivíduo intelectual e moralmente superior Mill encontra vários argumentos decisivos contra esta afirmação Um deles oriundo da teoria anterior de Bentham repousa sobre o princípio de que os direitos e interesses de qualquer indivíduo só têm segurança con tra não serem levados em conta quando este indivíduo é capaz de defendêlos e está 7 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 J S Mill On Liberty London 1859 i 10 Considerations on Representative Covemment iii disposto a fezêlo Em um despotismo benevolente porém os direitos dos indivídu os cujas limitações sobre o poder que possuem outros de interferir naquelas açóes de um homem que podem ser justificadas pelo princípio da utilidade não estão seguros porque dependem da garantia do déspota Enquanto déspotas específicos podem em alguns casos proteger esses direitos sendo a natureza humana o que é o despotismo não é confiável no que diz respeito a isso As evidências históricas que mostram que os povos livres prosperaram mais do que aqueles sob despotismos apoiam este argu mento O outro argumento vai à raiz do que é distintivo na teoria de Mill O despo tismo exige obediência por parte do corpo político isto é passividade A excelência intelectual prática e moral a mais elevada meta que o Estado deve se esforçar para cul tivar entre os seus cidadãos é produto de um caráter ativo Assim enquanto o despo tismo pode ser adequado onde um povo tem de aprender a obediência para avançar para estágios mais elevados de civilização uma vez que tenha aprendido essa lição o povo deveria ser incentivado à participação ativa que só é possível em um governo po pular O governo popular portanto parece ser a política ideal por duas razões pro tege os direitos dos indivíduos e promove seu mais elevado desenvolvimento moral e intelectual No entanto Mill tem mais uma etapa em seu argumento o mais elevado desenvolvimento dos indivíduos repousa também sobre uma civilização avançada que só é possível em um Estado de grande porte O governo popular só é possível em pe quenos Estados A maior aproximação ao governo popular viável em grandes Estados é o governo representativo ou seja a democracia representativa O governo representativo não é apenas o melhor sistema político ideal conside rando todos os fatos mas é também uma forma de governo que pode ser estabelecida no mundo moderno Sua existência depende de três condições já mencionadas jun tamente com um grau de maturidade que torna possível esta forma de autogoverno Onde o povo ainda tem alguma lição a aprender alguma outra forma de governo será mais adequada por exemplo o povo pode aprender mais facilmente a obediência a um líder militar ou um rei pode ensinálo a superar o espírito de localidade que o impede de se juntar com outras localidades para estabelecer a autoridade central pressuposta pelo governo representativo Com exceção de defeitos como estes que decerto acreditava Mill nâo eram os problemas da Inglaterra de seu tempo um go vemo representativo devidamente constituído seria o mais capaz de ajudar o povo a progredir para a próxima etapa da sociedade VI A n á l ise d o G o v e r n o R e p r e se n t a t iv o A composição adequada de uma democracia representativa não é uma questão simples e não a possuía nenhum governo do tempo de Mill principalmente porque o papel do representante no governo não fora corretamente compreendido O erro comum na concepção do governo representativo acreditava Mill era acreditar que os representantes do povo deveriam de feto governar As funções do governo executiva legislativa e judicial são atividades altamente especializadas que demandam indivíduos J ohn S t u a r t M i l l 7 0 9 experientes bem treinados que a massa náo é qualificada para selecionar Assim pode se dizer que Mill acredita no governo por especialistas No entanto cada composição tem um poder supremo de controle e este poder deve em uma democracia residir no próprio povo Não sendo capaz de exercer esse poder ele mesmo o povo o exerce de fato e pode controlar as operações do governo em prol do interesse público através de deputados eleitos periodicamente Assim para Mill os representantes não são o governo mas atuam para que o povo controle o governo Um parlamento de representantes eleitos atuaria como o controlador do gover no em prol do povo Mill entende este parlamento principalmente como um corpo deliberativo ao mesmo tempo uma Comissão de Queixas e um Congresso de Opi niões Contendo uma bela amostra de cada grau de intelecto que possa ter direito a uma voz nos assuntos públicos sua íúnção seria apontar necessidades ser um órgão para as demandas populares e um lugar de discussão adversa para todas as opiniões relativas aos assuntos públicos O aspecto relevante aqui é que a Democracia Representativa de Mill está duas etapas aquém da democracia no sentido literal do termo governo do povo O gover no pelos representantes do povo está uma etapa aquém e o governo por especialistas controlados pelos representantes do povo está mais uma etapa aquém Mill atinge esse ponto de vista náo só com base em considerações de ordem prática mas com base em sua crença de que ao passo que a justiça exige a democracia uma democracia sem controle pode ser uma tirania do mesmo modo que a monarquia absoluta O fúncionamento eficaz da democracia representativa exige a presença de condi ções não exigidas de outros sistemas de governo Deve ser preservado um bom equi líbrio entre o órgão representativo e os órgãos que de fato governam Um órgão re presentativo demasiado forte impedirá que o governo realize suas fúnçóes Um órgão representativo demasiado fraco será incapaz de controlar o governo O órgão represen tativo pode não ter as qualificações mentais necessárias para suas fúnçóes Interesses nefandos interesses que não são idênticos aos interesses da comunidade como um todo podem atingir a predominância Esses últimos defeitos tendem a estar presentes em todas as constituições São inerentes à natureza da monarquia e da aristocracia mas por meio de instituições adequadas seu perigo pode ser reduzido a um mínimo em um sistema representativo Mill dedicou considerável atenção à elaboração de nor mas específicas para a democracia representativa que fevorece de modo a capacitála para superar seus possíveis defeitos A técnica das melhores monarquias e aristocracias para obter talentos de ordem suficientemente elevada para assumir as fúnçóes governamentais é a criação de uma bu rocracia Conmdo a burocracia recai na rotina o que reprime a individualidade de seus membros e se torna um sistema regido pela mediocridade treinada Somente o govemo popular e Mill considera o seu sistema de democracia representativa a forma mais viável 7 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 11 IbidY de governo popular mantém vivos interesses antagônicos na comunidade assim estimu lando o pensamento individual e a iniciativa permitindo que o homem que possui gênio original derrube a barreira da mediocridade treinada No entanto a liberdade produzida pelo sistema representativo deve ser combinada com a habilidade treinada A distinção entre governar e controlar que está na base do sistema de Mill produz a combinação Os especialistas governam mas são controlados pelos representantes do povo As propostas específicas de Mill para a reforma do governo representativo exis tente podem ser compreendidas como uma tentativa de garantir o estabelecimento de uma democracia capacitada Sem capacitação não podem ser resolvidos os complexos problemas do governo de uma sociedade livre Sem democracia não há segurança para um bom governo isto é para a proteção dos direitos dos cidadãos Mill considera que a atual concepção de democracia se baseia em uma compreensão inadequada do governo da maioria Se democracia significa o governo do todo por uma maioria que só ela tem representação serão necessariamente frustrados os íins da democracia pois a minoria não tendo representantes não tem nenhuma garantia de que seus direitos serão protegidos e a maioria estará em posição de perseguir seus interesses neíàndos Mill teme por exemplo que um órgão representativo que represente os interesses da classe trabalhadora prejudicará os direitos de propriedade dos ricos e assim solaparão a economia da nação O governo da maioria em seu interesse próprio constitui um governo de desigualdade e privilo do mesmo modo que o governo por uma minoria privilegiada em seu interesse próprio A verdadeira democracia por outro lado é o go verno do todo pelo todo igualmente representado O sistema existente de felsa demo cracia envolve tanto a representação incorreta dos pertencentes ao partido da maioria que se opôs ao candidato escolhido como a não representação daqueles que votam no partido que perde A ausência de uma voz eficaz em oposição à maioria no órgão representativo tende a produzir um grupo dominante medíocre e incompetente Mill acreditava que o esquema de Thomas Hare para a representação pessoal for necia meios para dar a representação a cada eleitor Na variante de Hare da representa ção proporcional cada eleitor vota em uma série de candidatos marcandoos como sua primeira sua segunda sua terceira opção etc Quando o número suficiente de votos para eleger é creditado a um candidato seus demais votos vão para as segundas tercei ras e subsequentes opçóes de modo que cada voto conta para que alguém seja eleito Cada eleitor tem pelo menos um candidato do qual se pode dizer que o representa Mill acreditava que no sistema existente no qual uma maioria em um distrito geo gráfico determina a representação para aquele distrito os eleitores para os candidatos derrotados são príios de seus direitos Sob o sistema de Hare todos os votos valem Na teoria de representação de Mill o representante eleito tinha a responsabilidade de pensar e discutir questóes públicas no interesse do todo não apenas como um refiexo da opinião de seu eleitorado Aigumentou contra promessas por parte dos candidatos a caigos e se recusou a íàzêlas quando se candidatou ao Parlamento em 1863 J o h n S t u a b t M il l 7 1 1 12 Ibid vii Enquanto os utilitaristas anteriores partiram do pressuposto de que a extensão do sufrágio por si só garantiria que seriam defendidos os interesses de todos Mill percebia que sem representação pessoal o sufrágio universal conduziria à tirania da maioria Os reformadores anteriores também partiram do pressuposto de que as clas ses mais baixas escolheriam indivíduos superiores a eles para representálos Mill não se mostrou de modo algum tão otimista Acrediuva que medidas especiais deveriam ser tomadas pau evitar que os pontos de vista das classes instruídas fossem sufocados por uma enxuruda de votos das classes incultas O sistema de representação pessoal evitaria o governo do não instruído permitindo que os instruídos de todas as partes da nação reunissem seus votos para assegurar a eleição dos candidatos que preferiam No entanto para Mill isso não basuva Para dar aos instruídos um peso ainda maior do que seu simples número garantiria defendeu o voto plural para as classes profissionais e outras que assumiam maior responsabilidade na comunidade Enquanto a represen tação pessoal tem um efeito ambíguo sobre a democracia sendo democrática no sen tido de que dá a todos uma voz e contrária à democracia na medida em que aumenta a força das minorias em relação à maioria o sistema de voto plural é definitivamente um freio sobre a democracia e indica a força da convicção de Mill acerca dos perigos da democracia ilimitada A confiança de Mill era depositada em um órgão represen tativo em que se equilibravam os interesses das duas principais classes da sociedade a classe trabalhadora e a classe alta na expectativa de que a maioria dos representantes votasse de acordo com seus interesses de classe enquanto uma minoria de cada grupo responsável pelo equilíbrio do poder votaria em prol do interesse público VII A T e o r ia d a L ib e r d a d e Mill afirmava que seu ensaio On Liberty Sobre a liberdade era sua obra mais cuidadosamente composta e a que teria maior probabilidade de vir a ter valor dura douro Poderemos entender por que Mill pensava assim e poderemos julgar de forma mais adequada a importância do livro se o examinarmos no contexto de sua filosofia da história e de sua teoria do Estado Acreditando no progresso da sociedade de esteios inferiores para esteios mais elevados de civilização Mill percebia a culminação política desse desenvolvimento como a emergência de um sistema de democracia representativa Desta forma julgava a de mocracia representativa como o melhor sistema político ideal ou seja aquela forma de govemo em direção à qual pnide a humanidade No entanto Mill não via o flo rescimento da democracia representativa como o siumento da utopia Não apenas havia uma tendência sempre presente para o retrocesso contra a qual a sociedade tem de lutar sempre mas igualmente perigosa era a tendência dos mais idealistas e mais no bres movimentos de reforma de cristalizaremse em sistemas dogmáticos que obrigam à conformidade e assim inibem o progresso íumro Da mesma forma que a obediência e o trabalho foram as principais condições para o progresso humano em feises anteriores do desenvolvimento do homem assim no período civilizado a obediência e diligência tendose enraizado a liberdade tornase a condição para o progresso subsequente 7 1 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Como é evidente a teoria da liberdade de Mill está longe de ser uma doutrina universal que se aplique a todos os povos em todos os momentos Ao contrário é relevante na prática somente quando a sociedade passa a ser mais importante que o Estado Enquanto bá uma oposição de interesses reconhecida entre os governantes e os governados o progresso da humanidade exige que os homens se esforcem para atingir as condições do governo representativo Uma vez que estas condições são alcançadas pode emergir uma democracia representativa em que desaparece a oposição entre go vernantes e governados pois desta forma os governadores representam os interesses dos governados Esta condição que viabiliza a liberdade do indivíduo não assegura isso A própria emancipação da sociedade a partir da restrição de um governo em prol dos interesses de poucos cria na própria sociedade na grande massa do povo uma nova e mais perigosa ameaça para a liberdade do indivíduo Ao lidar com este novo problema que surge Mill acredita que está pensando no íuturo O problema de etapas posteriores do progresso é impedir que o indivíduo seja oprimido pela massa cada vez mais poderosa e confiante da humanidade O progresso em direção à civilização exige restrições sobre a liberdade individual o progresso da civilização exige que indivíduo seja emancipado de tais restrições O que é necessário acredita Mill é um princípio prático que de tal maneira defina a área da liberdade individual que não impeça o governo de cumprir sua obrigação de fomentar o progresso da sociedade Mill íundamenta esse princípio em sua teoria moral o único valor supremo é a felicidade dos indivíduos e os indivíduos podem melhor atin gir a sua felicidade em uma sociedade civilizada quando têm liberdade de perseguir seus próprios interesses com seus próprios talentos da forma como vieram a ser compreendi dos e desenvolvidos por eles dentro de um sistema adequado de educação Subjacente a tudo isto está o pressuposto do valor supremo da individualidade do desenvolvimento individual tanto para o próprio indivíduo como para o progresso íuturo da sociedade para o indivíduo uma vez que sejam atingidas as condições de desenvolvimento livre ou seja a civilização e o governo representativo para a sociedade porque o progresso da civilização depende das contribuições que só podem ser feitas por indivíduos capazes de pensar por si mesmos O homem civilizado para Mill é aquele que age a partir daquilo que compreende e que empreende todo o esforço para entender Este modelo socrático não é para os poucos dotados de uma tendência filosófica mas é concebida como um modelo para todos os homens na medida em que sejam capazes de realizálo Surge então a questão relativa às condições em que a sociedade pode progredir em direção a essa meta A principal condição é a moderação por parte dos indivíduos na so ciedade e a teoria da liberdade de Mill é uma tentativa de explicitar em termos práticos o que requer tal moderação Qjmo íundamento exige que cada indivíduo grupos de indivíduos o governo e a massa do povo se abstenham de interferir com o pensamento expressão e ação de qualquer indivíduo Este é o princípio básico da liberdade A radical não interferência com os indivíduos aplicada de forma abstrata e ab soluta tornaria impossíveis é claro o governo e uma sociedade ordenada Na verda de tratase de um princípio anarquista Mill restringeo em sua aplicação prática ao J o h n S t u a r t M il l 7 1 3 reconhecer que enquanto o pensamento deve ser absolutamente livre a liberdade de açáo dos indivíduos deve ser limitada em prol da segurança da sociedade Mill argu menta que o indivíduo pertence a si próprio e está sujeito ao controle social somente com o objetivo de impedilo de prejudicar os demais O indivíduo é soberano sobre si mesmo e a sociedade é soberana sobre os atos do indivíduo que tem conseqüências sobre os demais Os pensamentos do indivíduo sáo parte dele mesmo e portanto o princípio exige que a sociedade náo exerça controle sobre eles Aqui devemos ter em mente que Mill não íàla de qualquer grupo de indivíduos em qualquer lugar mas de um corpo maduro de cidadãos que foram educados para terem um sentido de respon sabilidade pública De modo explícito exclui as crianças e os selvagens Seria possível supor que a expressão pública dos pensamentos privados pertencesse a uma categoria diferente a da ação Mill admite isso em alguns casos isolados mas em ge ral acredita que a expressão exige a mesma liberdade absoluta que o pensamento pelos se guintes motivos primeiro a expressão é tão intimamente ligada ao pensamento que o controle da expressão se tomaria de íàto um controle sobre o pensamento Em segundo liar assevera que a reivindicação ao direito de limitar a liberdade de expressão isto é a reivindicação ao direito de silenciar a expressão de opinióes na sociedade pressupóe a infelibilidade por parte daqueles que o leivindicam A ciença de Mill é de que niijuém pode legitimamente reivindicar a iníàlibilidade e por conseguinte ninguém pode legiti mamente reivindicar o direito de suprimir qualquer opinião Pelo contrário a sociedade tem mdo a ganhar e nada a perder com a absoluta liberdade de discussão Uma opinião impopular pode ser verdadeira caso em que o restante da humanidade pode aprender alguma coisa com a visão dissidente Tal raciodnio seria correto mesmo que a opinião fosse em parte verdadeira e em parte felsa Mesmo que a opinião dissidente fosse por inteiro felsa a sociedade sairia ganhando por permitir que fosse expressa A sociedade seria mantida alerta acerca dos íúndamentos de sua própria opinião verdadeira que se tornaria um dogma morto se jamais fosse questionada e os ensinamentos do dissidente equivocado permaneceriam sempre como uma possibilidade A abordíem de Mill para o problema dos limites se existem à liberdade de discussão pública na sociedade assume devese lembrar um público maduro exer cendo sua discussão de forma contida e civilizada Aqueles cujas vidas não cumprem as regras do jogo não têm esses direitos devem ser contidos da mesma forma como aqueles cujas açóes prejudicam os demais na sociedade O princípio implícito aqui é que enquanto o debate continua a ser um debate deveria serlhe concedida liberdade absoluta porém uma vez que vai além da discussão tornandose ação deveria ser tra tada como ação Os exemplos que fornece Mill deste último por exemplo dizer a uma multidão exaltada diante da moradia de um vendedor de grãos que os vendedores de grãos matam de fome os pobres siere que não é apenas a opinião que determina a que categoria pensamento ou ação pertence a expressão da opinião mas ao contrá rio as circunstâncias em que a opinião é expressa Aceitase de forma geral que as açóes não podem ser tão livres quanto as opini óes As açóes devem ser limitadas na medida em que causem danos a outros Mill tem 7 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y grande cuidado em assegurar que esta regra não se torne a base de uma restrição geral da liberdade de ação Quando os bomens consentem com a ação que os prejudica essa ação não tem qualquer interesse para a sociedade Em geral cabe à sociedade o ônus da prova demonstrar que a ação do indivíduo é prejudicial e não ao indivíduo provar que é inofensivo O perigo de dano a si mesmo uma vez que se é um indivíduo ma duro não é motivo para interferência do governo Nessas circunstâncias o indivíduo pode ser censurado mas não colido O objetivo íinal da ação social deve ser assegurar a todos total independência e liberdade de ação Aí se inclui em particular a liberdade para satisíázer gostos e buscar interesses bem como a liberdade de associação tudo na medida em que outros não sejam prejudicados Por meio da educação nas virtudes de autoestima os indivíduos na sociedade deveriam ser incentivados a usar sua liberdade para evoluir morai e inte lectualmente se tiverem sucesso tornamse objetos adequados de admiração e emu lação se falbarem tornamse objeto de aversão e talvez mesmo desprezo No entanto a sociedade ou o governo não devem interferir em suas ações a menos que felbem em alguma obrigação social que em última análise seja íúndamentada no princípio utilitarista da maior felicidade do maior número À objeção de que é difícil senão impossível distinguir entre e a parte da vida do indivíduo que diz respeito somente a si mesmo e a parte que diz respeito à sociedade Mill oferece uma resposta parcial em termos práticos Se a base da objeção é que muitas ações que aparentam autoconside ração íàzem mal a outros Mill responde que na medida em que íãzem mal a outros devem ser punidas Devem ser punidos os danos definitivos ou danos a outrem mas prejuízos meramente contingentes os que não contrariam um dever específico devem ser tolerados por uma questão maior de liberdade Nestes termos Mill discute o gasto de rendimentos a ingestão de bebidas fermentadas a venda de venenos a poligamia os jogos de azar e outros atos que têm sido objeto de restrição legal Admite que não bá aplicação mecânica de seus princípios básicos mas insiste que são a única orientação adequada para corrigir a política social Mill conclui reafirmando os argumentos em íàvor da iniciativa individual em detrimento do controle social a maioria das coisas tende a ser feita da melbor forma quando realizada por indivíduos do que quando efetuada pelo governo a ação indi vidual promove a educação mental do indivíduo o que as açóes governamentais não fezem e o aumento da ação governamental é uma ameaça à liberdade Se por um lado Mill não exclui a interferência do governo na vida econômica da comunidade como impossível ou indesejável em princípio por outro restringiria essas interferências à área da distribuição de bens excluindo a área da produção de bens por ser regida pelas leis da natureza Embora mais tarde tenba cbegado a se considerar um tanto socialista também expressou um temor da extensão do controle social sobre a vida econômica Empregando a individualidade a liberdade e o progresso da sociedade J o h n S t u a r t M il l 7 1 5 13 On Liberty lúy como seus padrões reconheceu a vantem da interferência governamental náo au toritária sob a forma do fornecimento de conselhos e informações e na competição com a iniciativa privada onde houvesse perigo de monopólio Reconhecendo que a organização da sociedade em uma base comunista poderia elevar o padrão de vida das classes trabalhadoras não acreditava que um padrão de vidaelevadovaleriao preço das restrições à liberdade se fosse esse seu resultado L e it u r a s A Mill John Stuart On Liberty in Utilitarianism Liberty and Representative Government New York Dutton 1951 Mill John Stuart Representative Government in ibid Caps ivii B Mill John Stuart Utilitarianism in ibid Mill John Stuart Representative Government in ibid Caps viiixviii Mill John Stuart A System of Logic New York Longmans 1949 Livro VI Mill John Stuan Principies of Political Economy Ed W J Ashley New York Longmans várias datas Livro V 7 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 14 J S Mill Principies of Political Economy 2 v London 1848 V K a r lM arx 18181883 O marxismo apresentase como uma abrangente crônica da vida humana e náo apenas da vida humana mas da natureza também Oferece uma explanação do presente do homem bem como de seu passado e futuro extraindo seus ensina mentos da premissa de que é impossível uma explanação exaustiva e conclusiva a não ser como uma descrição da transitoriedade ou fluxo infinito das coisas Uma descrição definitiva do presente é apresentada nos escritos econômicos de Marx isto é em sua análise crítica do capitalismo A narração do passado e do futuro ou da evolução da sociedade aparece nos escritos de Marx sobre a teoria da história e da relação da história com uma determinada noção de metafísica A filosofia política de Marx consiste de seus ensinamentos sobre economia história e metafísica sobre a sociedade atual e sobre a emergência e desaparecimento de todas as sociedades incluindo a presente O leitor pode perguntarse se uma análise econômica do capitalismo é o mesmo que um retrato completo da época moderna ignorando por enquanto a existência de países comunistas Na opinião de Marx a economia é o coração vivo da sociedade e portanto compreender a verdade sobre a economia moderna é compreender os mais relevantes fetos sobre a sociedade moderna No entanto o leitor pode também per guntarse se um retrato completo da sociedade eqüivale a uma explanação completa da vida humana O marxismo considera os dois se a sociedade for corretamente compre endida como equivalentes Desta forma o marxismo pode apresentarse como uma explicação abrangente do passado presente e futuro do homem Afirma ter descoberto que a economia é o verdadeiro fundamento da sociedade e assim da vida humana A análise de Marx sobre o presente ou seja da economia capitalista baseiase em sua teoria do valortrabalho Sua interpretação da tradição do passado ao futuro ou seja da história depende de sua doutrina do materialismo dialético Nossa descrição da filosofia política de Marx portanto seguirá o seguinte esquema 1 O materialismo dialético ou a teoria da história de Marx e da prioridade da condição econômica 2 a teoria do valortrabalho e a explicação de Marx sobre o presente capitalista 3 a convergência entre o materialismo dialético e a teoria do valortrabalho No que se segue felaremos de marxismo e das doutrinas de Marx Devese entender que a partir de 1844 Marx teve como colaborador Friedrich Engels que com elegância e sem dúvida com justiça declarou ser Marx o gênio do movimento embora ele Engels desse a ele sua contribuição Não tentaremos em caso algum nem mesmo se fosse possível distinguir o trabalho de Engels do de Marx Repetidas vezes afirma Marx que o estudo do homem deve preocuparse com homens reais não com homens tais como se imagina se espera ou se acreditava serem Com isso entende Marx que a íundação das ciências sociais não é uma noção de um bem humano pelo qual se anseia ou uma reconstrução do homem primitivo imacula do mas ao contrário de um homem empírico tal como poderia a qualquer momento ser observado por qualquer um O homem empírico é primordialmente um organismo vivo que consome alimentos vestuário abrigo combustível e assim por diante e é obri gado a encontrar ou produzir essas coisas Os homens poderiam em tempos imemoriais ter sobrevivido somente pelo uso de materiais que encontravam e recolhiam mas em dado momento o aumento da população obrigouos a produzir aquilo de que necessi tavam e assim vieram a se distinguir dos animais A marca distintii da humanidade é a produção consciente náo a racionalidade ou a vida política ou a capacidade de rir por exemplo como alguns afirmam Há com certeza certa feita de clareza na doutrina de Marx acerca deste aspecto uma vez que admite diferir a produção humana da pro dução de animais pelo feto de que o ser humano planeja ou concebe antecipadamente o objeto completo de seu trabalho enquanto a abelha ou inseto trabalha por simples instinto Em outras palavras somente a produção humana se caraaeriza pela intenção racional e poderia assim ser considerada única pois se trata do fezer do animal racio nal Desu forma no entanto seria mais exato afirmar que a caraaerística singular do homem é a racionalidade e não a piodutividade no entanto Maix não pode dedaiar isso porque as implicações desu afirmação interfeririam com seu materialismo o qual defende que a ucionalidade do homem ou melhor sua consciência não é íunda mental mas derivativa A doutrina marxista do primado da produção na vida humana reside na crença de que foi a pressão de suas necessidades que primeiro forçou o homem a elevarse pau a sua humanidade e continua a pressionálo pau elevarse e seguir em írente e que o conteúdo de sua razão deve ser daerminado por condições externas à sua razão condições essas que são estritamente materiais De que forma mais exatamente de acordo com Marx as condições materiais determinam a vida e o pensamento Marx começa por observar que em todas as épocas os homens têm acesso a determinadas forças produtivas as quais aplicam pelo uso dos objetos animais ferramentas máquinas e assim por diante aos quais essas forças se incorporam Contudo as forças de produção digamos em termos gerais a simples tecnologia obrigam os homens a adaptarse e às suas instituições às exigências da tecnologia Os nômades por exemplo que repentinamente tiveram acesso à eneigia a vapor e a implementos agrícolas movidos a vapor seriam forçados a desistir de seu nomadismo e ao contrário a adotar os hábitos sedentários a divisão do trabalho as práticas comerciais e as instituições de propriedade que são determi 7 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y nados pelo modo de produção febril como também a adotar as práticas e instituições correlacionadas à icultiua É autoevidente que isso é verdadeiro em sentido geral decerto já era muito bem compreendido na Antiguidade grega Conforme afirmado anteriormente porém sua abrangência é insuficiente para expressar o pensamento de Marx Marx afirma repetidamente que a um determinado conjunto de forças de pro dução corresponde um modo de produção tal como o asiático o da Antiguidade o feudal e o burguês moderno ou capitalista De acordo com o modo de produção feudal por exemplo os possuidores dos meios de produção e os bomens que traba lhavam com esses meios ou a partir deles eram ligados por uma relação pessoal de responsabilidade mútua no modo capitalista empregadores e empregados são como os termos implicam os que usam e os que são usados bvres de deveres uns para com os outros com apenas o pagamento em dinbeiro a unilos A cada modo de produ ção corresponde como seu efeito uma forma de organização social Uma enunciação compacta dessa visão é oferecida por Marx em sua carta a P V Annenkov de 28 de dezembro de 1846 O que é a sociedade qualquer que seja sua forma O produto da ação recíproca dos bomens São livres os bomens para escolherem por si mesmos esta ou aquela forma de sociedade De modo algum Assumamos um estado específico de desenvolvimento das forças produtivas do bomem e obteremos uma forma específica de comércio e consumo Assumamos determinadas fiises do desenvolvimento na pro dução no comércio e no consumo e teremos uma estrutura social correspondente uma organização correspondente da família de ordens ou de classes em suma uma sociedade civil correspondente Pressuponhamos uma determinada sociedade civil e teremos determinadas condições políticas que são apenas a expressão oficial da socie dade civil Resume ainda mais a questão em Das Elend der Phibsophie A miséria da filosofia ao observar O moinho manual produz a sociedade com o senhor feudal o moinho a vapor a sociedade com o capitalista industrial As condições de produção determinam as relaçóes de propriedade prevalecentes o que significa não a definição abstrata da propriedade mas ao contrário quem nesta situação particular tem acesso à propriedade e quem é impedido de adquiri la Sob o feudalismo havia senhores que possuíam terras e tinham direitos a outras propriedades e servos que não podiam acumular nenhuma propriedade O mesmo ocorria nas demais circunstâncias sociais sob o capitalismo os empregadores possuem e acumulam os empregados labutam à beira da miséria nada possuindo alijados dos meios de produção Esta doutrina está diretamente relacionada à crença marxista de que as condições de produção controlam a distribuição da renda e o consumo da produção Também comandam a troca se a produção é organizada em torno de uma propriedade comum arável por exemplo não haverá troca sequer do produto do solo apenas compartilhamento Daí se segue também que o dinheiro será utilizado ou não dependendo do modo de produção o dinheiro não é em seu atual significado ou uso intrínseco a toda situação econômica ou à vida econômica como tal KarlMarx 719 Karl Marx The Poverty f Philosophy ii 12 observação Das Elend der Philosophie A miséria da filosofia Marx aíirma portanto que é um erro tratar o consumo a distribuição a troca o dinheiro e assim por diante como categorias eternas com conteúdo relevância ou validade abstratos e permanentes É um dos defeitos da ciência da economia política a economia burguesa considerar esses fenômenos puramente históricos como cate gorias fixas que possuem um objetivo essencial um caráter natural aspectos que podem ser entendidos de uma vez por todas porque existem de uma vez por todas Não apenas são essas categorias produtos históricos mas a ciência dessas categorias ou seja a economia revelase como meramente histórica ou transitória por confimdir o transitório com o eternamente verdadeiro isto é acreditando que consiste em leis fundamentadas de uma natureza imutável Marx critica Edmund Burke mas através de Burke todos os economistas por sua afirmação de que as leis do comércio são as leis da natureza e consequentemente as leis de Deus Na verdade de acordo com Marx a ciência econômica do período capitalista recebe suas categorias salários ju ros troca lucro e assim por diante das práticas predominantes sob a produção capita lista e assume essas categorias sem reconhecer sua gênese nas condições históricas Por não tratar seus fetos como históricos e fadados a desaparecer essa ciência econômica obviamente se condena a desaparecer quando seus fetos o fizerem A doutrina de Marx sobre o modo como as teorias dependem das condições históricas de produção leva em conta muito mais do que a teoria econômica Marx afirma que a totalidade da moral da filosofia da religião e da política é resultado do condicionamento dos homens por seu meio ambiente meio ambiente este criado pelo homem e que é a expressão do modo de produção A visão oposta de que o homem possui uma inteligência independente à luz da qual modela suas instituições e estabelece suas convicções é rejeitada como ideologia o termo marxista para a dou trina de que o pensamento tem um status independente Até aqui mostramos que o materialismo de Marx afirma apenas que as condições de produção determinam o caráter concreto da vida humana a qual existe como uma superestrutura sobre o fundamento das condições materiais mais verdadeiramente reais Nada foi dito porém a respeito do que é negativo ou positivo nas superestruturas reais que de feto suiram a partir dos fundamentos materiais existentes até então Tal julgamento no entanto é intrínseco ao materialismo de Marx e será discutido agoia Todos os modos de produção históricos possuíam uma característica em comum característica esta que por sua vez afetou todas as sociedades correspondentes o con trole dos meios de produção não era compartilhado por todos os homens mas em 7 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Capital New York Modern Library s d 1834 nl Copyright de Modem Library A pnaçáo é a mesma da ediçáo publicada por Charles H Kerr Co A referência é a Thoughts and Details on Scarcity de Burke Cf Engels Herr Eugen Dührings Révolution in Science AntiDühring x 1 ideologia a de dução da realidade não de si mesma mas de sua inuem mental Também de Engeb Ltedtvig Feuerbach iv 7 parágraíb do final ideolca isto é a preocupação com pensamentos como se bssem entidades independentes cada época alguns eram proprietários ou possuidores enquanto muitos mais tiveram que dar de si mesmos ou seja de sua capacidade para o trabalho nada mais tendo para dar a fim de ter acesso aos instrumentos de produção para ganhar seu sustento Assim em toda a história anterior o ato de produção colocou muitos homens na dependência de poucos As massas foram privadas da oportunidade de serem homens livres dotados de respeito próprio porque sempre foram forçados a ocupar uma posi ção de dependência subserviente escravos servos ou proletários sujeitos a homens que embora cidadãos privados ou súditos como eles ainda assim poderiam arbitra riamente priválos de sua vida ao cortar sua conexão com os meios de produção A desumanização que inevitavelmente resulta da dependência servil foi agravada pela pobreza imposta aos muitos pelos que os exploram Além disso o processo de produção desde o seu início possuía um caráter que Marx denomina natural no sentído de que certas diferenças naturais entre os ho mens de compleição fisica talento e assim por diante determinam a atribuição de tarefiis especiais aos indivíduos e portanto as relaçóes de produção eram estabelecidas impostas ou involuntárias ou seja naturais no sentido de não serem resultantes de escolha humana O protótipo de todas essas designações é a divisão de fúnçóes entre homens e mulheres para perpetuar a raça Transformouse esta na forma mais geral da divisão do trabalho incorporada na fiunília Na medida em que se desenvolviam as forças de produção a divisão do trabalho tornouse cada vez mais complexa e as ocu pações específicas tornaramse correspondentemente restritas Uma vez que os homens são compelidos pelas condições de produção a se tornarem pastores encanadores ou violinistas são privados da oportunidade de desenvolver ao máximo suas capacidades humanas por meio da aplicação livre de suas mentes em todas as direções São trans formados pela embrutecedora divisão do trabalho em fragmentos de homens impe didos de florescer a fim de tornaremse os homens completos para quem o trabalho seria uma fonte de satisfeção e não de dor Embora esta divisão em parcelas aconteça dentro de cada homem o mesmo pro cesso se repete entre os homens A comunidade passa a ser composta por tecelões que se definem em oposição a padeiros iricultores contrapostos a comerciantes o povo da cidade contra o do campo os operários manuais contra os operários mentais uma guerra de todos contra todos travada no campo dos interesses materiais os termos da luta diudos pelo modo de produção Finalmente o esfacelamento da sociedade é completado por sua aglutinação em uma classe ou grupo de classes dos poucos que controlam os meios de produção e a utinação paralela dos muitos despossuídos na classe ou classes dos que trabalham com os meios de produção A epítome do desmoronamento da vida social pode ser encontrada na existência da sociedade civil ou sociedade burguesa O termo alemão utilizado por Marx é bür gerliche Gesellschafi que pode ser traduzido tanto como sociedade civil ou sociedade burguesa A desagregação da integridade da vida humana mostra seus sintomas e é pressuposta pela divisão em nossa existência comum entre o político e o econômico e social Onde o Estado político já atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o indi Karl Marx 721 víduo leva náo só no pensamento na consciência mas na realidade uma vida dupla uma vida celeste e uma vida terrena uma vida na comunidade política onde é leva do em conta como membro da comunidade e uma vida na sociedade burguesa em que é ativo como indivíduo particular considerando os outros homens como meios degradandose até tornarse um meio e se tornar um joguete de poderes estranhos A sociedade civil significa para Marx um enclave individualista na sociedade o reino de privacidade contra a comunidade com o entendimento de que a comunidade encon tra sua expressão corrupta na sociedade política sob as condições agora dominantes Sociedade civil para Marx longe de ser sinônimo de sociedade política é o cognato infrapolítico da sociedade política que é parte inevitável da ordem capitalista Um simples equivalente de sociedade civil neste sentido é a economia de um Estado capitalista ou até mesmo o mercado A sociedade civil é o estrato da vida comum que recebe seu caráter essencial da autoaíirmação dos homens um contra o outro em nome de seus direitos inalienáveis e irredutíveis A santidade desses direitos avaliados por autores como Locke como o fundamento para a garantia da liberdade e portanto a humanidade dos homens é rejeitada por Marx que vê a afirmação desses direitos como a fonte e decerto a expressão da desumanização do homem A guerra do mar xismo contra os princípios regentes do constitucionalismo ocidental não deve nunca ser confundida com uma mera escaramuça É evidente de acordo com Marx que a negação factual multiíàcetada de toda a comunidade de interesses sob o capitalismo é resultado da propriedade privada dos meios de produção A produção um ato social no sentido de ser em prol e para todos os homens não pode ser realizada de forma humana e racional se as instituições de produção são privadas particulares e por conseguinte antissociais Os modos de produção e instituições de propriedade que existiram até agora causaram fermentação e conflito entre os homens O que impediu a sociedade de se frmentar em pedaços Ou mais pertinente o que impediu os muitos de suma riamente livraremse das imposições dos poucos De acordo com Marx o poder do Estado é exatamente o agente criado pelos poucos opressores para manter subjugados os muitos O Estado é o órgão de coerção de classe tornado necessário pela divisão da sociedade que por sua vez é engendrada pelo controle privado dos meios de produ ção Escusado será dizer que o governo não aparece desta forma para a multidão dos homens Marx admite que todas as classes colaboram na sustentação do governo por seu respeito a ele e a seu poder de coerção mas isso não significa pelo contrário que os homens por causa da imperfeição de suas condiçóes materiais estejam preparados e sejam compelidos a erguer sobre si mesmos seu próprio tirano sua própria criatura que deve tal como o faz afirmarse contra eles Era a crença de Marx que os homens enquanto permanecessem no estado de coer ção de sujeição às necessidades e um ao outro através do processo de produção seriam 7 2 2 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y On the Jewish Question in Selecud Essays by Karl Marx trans H J Stenning New York Inter national Publishers 1926 p 5556 incapazes de levar uma vida plenamente humana pois a plena humanidade exigiria per feita emancipação dos grilhões de toda a sorte Se Marx viesse a empregar o termo es tado de natureza em seu próprio nome quereria dizer com isso o estado de incompleta dominação da natuteza pelo homem a alternativa para o estado de liberdade Enquanto os homens estiverem srilhoados como estão sob o governo e a sociedade civil estarão sujeitos como parte de sua servidão a uma escravidão que os obriga a contribuir para a sua própria desumanização através de instituições inventadas por eles mesmos Podemos concluir este resumo do materialismo de Marx com uma explicação do comentário anterior e ao mesmo tempo com uma demonstração da maneira pela qual Marx entende que coexistem o estado de necessidade e o estado da sociedade política como o estado de servidão humana ou o que Marx chama de a alienação do homem Sem uma compreensão deste aspecto do marxismo seria impossível formar um julgamento adequado da filosofia política de Marx como um todo Voltando ao nosso ponto de partida apontamos a observação preliminar de Marx de que o homem é um ser carente Cada homem está condenado à dependência de coisas externas da natureza digamos e de outros homens para ajudar a suprir suas necessidades No entanto além de ser essencialmente carente o homem é o que Marx denomina ser de espécie ou ser social o que não significa apenas que o homem deve viver e agir em comum com outros homens mas que o homem só pode realizar as suas possibilidades humanas se agir de acordo com outros seres humanos e sendo influenciado por eles O fato de que o homem sabe que seus semelhantes constituem um todo do qual ele fãz parte e que portanto associase com eles no pensamento de uma forma que está descartada para todos os animais subhumanos faz parte também da noção bastante difusa de Marx do homem como um ser genérico De qualquer forma foi a crença de Marx de que a atividade essencial do homem a produção era realizada em todas as sociedades anteriores por instituições que forçam os homens a olhar um para o outro e para a própria natureza como coisas e objetos alheios simples meios para os fins de satisfazer as necessidades do indivíduo O trabalho produtivo em si sempre foi considerado como uma necessidade dolorosa devido às condições sob as quais é realizado Desta forma o ambiente dos homens e seus semelhantes têm sido objeto de predadores e os próprios homens atuantes e suas próprias atividades essenciais para a vida têm sido meramente instrumentos meios para fins sem o valor intrínseco que devem ter para que o homem seja totalmente humano para estar em paz consigo mesmo ou para superar a sua alienação da natureza de si mesmo e dos frutos de seu trabalho A afirmação de Marx não é menos radical do que isso até que cada homem simplesmente se funda a toda a humanidade produzindo apenas porque a produção é a liberação e o cultivo da energia humana e não porque a produção é uma forma de ganhar a subsistência diretamente ou por meio de troca pela exploração das carências de outros homens só então serão os homens perfeitamente livres e será alcançada a articulação perfeita e final entre homem sociedade e natureza Até esse momento os homens irão distorcer a natureza um do outro tratando uns aos outros como objetos fazendo com que cada um fique em desacordo com sua espécie mesmo Karl Marx 723 quanto à própria natureza aliás não em sua beleza e esplendor mas como uma fonte de lucro Marx pensa na organização do processo de produção dentro da instituição da propriedade comum dos recursos produtivos sob a fórmula de cada um segundo sua habilidade a cada um segundo suas necessidades como a condição para propiciar a tradução absoluta da vida humana para uma base que no sentido mais literal não tem precedentes Até agora os homens viveram na sociedade civil ou seja no âmbito de instituições que pressuposta ou positivamente cultivaram o interesse próprio como o princípio da vida produtiva e da própria vida O materialismo marxista conduz à superação de toda a sociedade civil e a sua substituição pela espécie humana como uma fraternidade universal O materialismo marxista que começa por insistir na ne cessidade de levar em conta o homem empírico termina paradoxalmente em uma prescrição social sem fundamentação empírica ou precedente Foi dito anteriormente que do ponto de vista do marxismo a economia ou economia política é falha na medida em que dá conta da vida econômica em termos de preços salários custos lucro capital e assim por diante como se fossem catego rias transhistóricas ou elementos eternos intrínsecos à vida econômica em todas as circunstâncias A definição hoje comum de economia como a ciência da alocação de recursos escassos entre usos alternativos é um melhor exemplo daquilo a que Marx objetava do que a maioria das noções econômicas que existiam em sua própria época Esta definição implica que há algo que pode ser chamado de problema econômi co para todos os homens em todos os estágios da civilização e da tecnologia e que a solução racional para este problema requer mercados genuínos ou simulados para produzir certos equilíbrios entre conveniências e inconveniências uma lei universal semelhante às generalizações da física A negação da verdade da economia poiítica por Marx não era apenas uma negação de que os economistas tivessem fornecido uma descrição precisa da livre iniciativa Era uma negação de que a descrição de uma deter minada organização econômica fosse uma descrição atemporal verdadeira da essência da vida econômica Isto por sua vez é parte da ampla doutrina de Marx de que em geral nâo existem essências atemporais e portanto não há verdades eternas que não sejam ou triviais ou puramente formais A filosofia política de Marx é unificada com uma teoria sobre a natureza de todas as coisas de fato sua filosofia política é até certo ponto guiada por um esquema ou sistema universal uma doutrina de que as coisas não possuem essências nem como coisas fixas possuem existências possuem histórias ou carreiras Vir a ser de acordo com a fórmula toma o lugar de ser Marx seguia Flegel de fato se nâo em expressão ao rejeitar como metafísica a ideia de que há coisas acabadas ou objetos que possuem uma dada constituição fixa simples Afirmou pelo contrário que tudo é afetado tanto pela mudança quanto pela relação Assim as várias espécies estão sempre em evolução e os indivíduos nas cem crescem e depois declinam Os objetos inanimados surgem de processos naturais e em seguida sofrem erosão oxidaçâo ou decadência enquanto internamente estão como os seres vivos em constante movimento Além disso cada coisa é afetada de fato constituída pela relação que tem para com as outras coisas Por exemplo um 724 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y servo é servo apenas em virtude de sua relação com outro ser que é o oposto do servo ou seja um senhor A natureza do servo não é inteligível por referência exclusiva ao próprio servo assim como não seria possível entender em prdo se não houvesse empregadores Há ainda um aspecto de contradição que é introduzido na consti tuição de coisas perfeitamente imóveis imutáveis independente de suas relaçóes com as outras coisas uma linha curva em toda parte curva é contudo uma linha reta entre dois pontos iníinitesimamente separados O melhor exemplo desse paradoxo é oferecido não por Marx e Engels mas por Demócrito Se um cone fosse cortado por um plano paralelo à base o que se deveria pensar das superfícies resultantes da seção são iguais ou diferentes A resposta íacil é ambos as coisas Além disso as linhas de demarcação entre as classes de coisas não são nítidas pois há indivíduos nas margens que pertencem tanto a uma classe quanto a outra plantas animais e plantas sensitivas e nem sequer é simples distínguir a própria vida da não vida A transição da vida para a morte não é instantânea por exemplo as unhas e o cabelo continuam a crescer após a morte e a vida em si consiste em um processo pelo qual o ser vivo morre continuamente e se renova por meio da excreção e da nutri ção de tal modo que a vida é inseparável de uma morte contínua Não é preciso dizer que se a vida e a morte não fossem em nada distinguíveis seria impossível distinguir matéria viva de matéria morta ou dizer da vida que implica ou pressupóe ou mesmo que necessita da morte no entanto a posição marxista é de que a vida como um processo não é apenas vida mas também é necessariamente morte ao mesmo tempo A vida existe como um processo em vinude de uma contradição a vida é ao mesmo tempo vida e mone E assim é com as demais coisas Todas as coisas estão em fluxo conforme afirma o marxismo seguindo Herádito e todo fluxo é o movimento Para compreender o caráter de todas as coisas é necessário compreender a lei universal do movimento a lei que rege a natureza a história humana e o pensamento Essa lei derivase da doutrina marxista da contradição fundamental do movimento em si Desde a época de Zenão de Eleia há uma prova de que o movimen to é impossível todo corpo em movimento existe a cada instante em um e apenas um lugar o que é a definição de estar em repouso Estar em movimento é portanto estar em lepouso e também náo estar em repouso Cada coisa é portanto por analogia com um corpo em movimento igualmente o que é instantaneamente e o que é historica mente não apesar mas em virtude do íato de que os dois são contraditórios A contradição é fundamental para o desenvolvimento ou seja para a mudança histórica quando a mudança é assimilada ao movimento físico A mudança é gerada pela contradição por meio da oposição mútua de dois elementos contraditórios presentes na coisa em questão Examinemos um exemplo fornecido por Engels um gráo de cereal é plantado e é aniquilado enquanto grão na medida em que cresce a planta À medida que a planta se desenvolve até a sua própria extinção produz muitos grãos como o que Karl Marx 725 De K Freeman Ancilk to the PreSocmtic Philosophers Cambrii Harvaid University Press 1957 lhe deu origem O gráo é a afirmação ou tese a planta a negação ou antítese e os muitos grãos a negação da negação ou síntese Examinemos mais um exemplo sele cione qualquer quantidade algébrica a como a afirmação Neguea pela multiplicação por 1 obtendo a Negue a negação multiplicandoa por si mesma e o produto será a a afirmação em um nível mais elevado A seqüência de afirmação negação e negação da naçáo é denominada dialética e é esta que o marxismo acredita ser a lei univenal da natureza história e pensamento Todo o desenvolvimento ocorre dentro deste padrão No caso especial da história e do pensamento humanos é atribuída uma causa ao desenrolarse do processo dialético Essa causa é o modo de produção e suas mutações Porque o fenômeno primordial são as condições materiais de produção a doutrina marxista da história é denominada materialismo dialético para distinguila da dialéti ca idealista de Hegel que afirmava ser a razão autodependente o fenômeno primário como fonte da mudança histórica Como uma teoria da vida humana o materialismo dialético assevera que a base para todo o desenvolvimento da sociedade e da compre ensão é a contradição na ordem de produção A mais maciça de tais contradições é o conflito entre as classes na sociedade Por incluir no mesmo tipo a oposição dos inte resses de classe sob o aparato da dialética o marxismo procura mostrar que o conflito não pode ser resolvido por meio de concessões ou acomodações mútuas mas apenas por uma negação da negação isto é por mudanças revolucionárias em que as classes existentes são aniquiladas e substituídas por uma síntese em um nível mais elevado Um importante aspecto da filosofia política de Marx é sua reconstrução da histó ria com o fim de mostrar que a história tem de fato sido regida pela dialética materia lista De acordo com essa reconstrução cada época herda um modo de produção e um complexo de relações entre os homens que é peculiarmente adequado para esse modo de produção Eventualmente ocorre uma mudança no modo de produção acarretada talvez por uma mudança nas necessidades que poderia ter sido engendrada por essa própria modalidade de produção e mais imediatamente provocada por uma desco berta ou invenção fundamentais estimuladas por essas necessidades O novo modo de produção passa a existir enquanto as relações entre os seres humanos são ainda aquelas geradas pelo modo de produção anterior A contradição entre as relações sociais exis tentes e o modo de produção emergente ou seja o choque entre as classes dominantes estabelecidas e as embrionárias é a fonte de todas as colisões na história Marx e Engels citam uma série de acontecimentos históricos como prova dessa hipótese o mais amplamente examinado sendo a transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista e a evolução para o póscapitalismo A primeira é explicada recorrendose ao aumento da fiibricação com máquinas na Idade Média primeiro na indústria têxtil e em seguida de modo mais geral A disseminação da produção por máquinas desmontou a estrutura dos mestres das guildas com o trabalho do artífice e do aprendiz substituindoa por uma relação de empregadores burgueses e empregados assalariados entre os quais só existiam os laços do pagamento de salários O modo de produção manufatureira foi o veículo pelo qual os servos fugidos mais afortunados e mais ativos elevaramse deslocando os mestres da guilda como os proprietários dos 7 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y novos meios de produção e se tornando os progenitores de uma nova classe a burgue sia Opostos a eles e ao mesmo tempo indispensáveis a eles bavia os trabalhadores proletários que nada possuíam para viver além do salário ganho com a venda de sua força de trabalho À medida que se expandiram a indústria e o comércio a escala da produção aumentou enormemente e enquanto isso ocorria as relaçóes entre as classes proprietárias e não proprietárias passaram por uma mudança ainda maior uma exacer bação Inevitavelmente iravouse o choque de interesses entre capitalistas e assalaria dos pois a condição dos proletários precisava deteriorarse devido a contradições que são intrínsecas ao capitalismo contradições que se evidenciarão quando examinarmos a crítica de Marx à produção capitalista Por enquanto basta dizer que de acordo com Marx o pleno desenvolvimento da produção com a máquina sob a propriedade privada exige que a absoluta pauperização e desumanização dos assalariados por causa das pressões da concorrência capitalista Finalmente a miséria das massas será insu portável e o conflito de classes irromperá em um combate decisivo decisivo porque a vitória do proletariado prenunciará uma nova era do homem Os proletários não possuem nem riqueza nem o desejo de se tomarem os proprie tários dos meios de produção como uma classe Ao contrário de todas as classes insur gentes outras do passado sua finalidade não é tomar o Itar de seus opressores mas pôr íim à opressão Os meios para atingir tal meta são abolir a propriedade privada dos meios de produção e assim abolir a distinção entre proprietários e não proprietários distín çáo que é a condição para a divisão da sociedade humana em classes Após a dissolução das classes necessariamente se seguirá o íim da luta de classes e o prindpio da história estritamente humana Quando isso tíver ocorrido as relaçóes entre os homens estarão emparelhadas com o mais recente grande desenvolvimento no modo de produção tendo desaparecido as condições de opressão desaparecerá também a necessidade de coerção e o Estado definhará para ser substituído pela íiaternidade universal do homem Marx tinha bastante consciência de que seu prognóstico para a humanidade es tava obrigatoriamente ligado a um diagnóstico das condições prevalecentes Davase conta de que deveria investigar o mundo europeu contemporâneo em sua essência quer dizer em seu caráter econômico a fim de satisfazer a si mesmo e aos demais de que a dialética do materialismo realmente íúnciona no período decisivo a saber o presente Era necessário que demonstrasse que a lei da natureza do capitalismo é a lei da transformação do capitalismo em algo radicalmente diverso Incidentalmente seu empreendimento exigia que demonstrasse que nenhuma explicação do capita lismo que não fosse a sua própria compreendera o caráter essencial do capitalismo e portanto nenhuma outra explanação pelo menos nenhuma outra até então co nhecida poderia ser a base de um prognóstico para a humanidade Isto signiíica que a economia política comum que não chegou à conclusão de que o capitalismo é autoinvalidante é em vários aspectos insatisfatória até mesmo como uma des crição de como íúnciona o capitalismo A economia do próprio Marx é quase toda crítica dedicada não à explicação de como deveria ou poderia ser constituída uma economia socialista mas a uma representação detalhada da autocontradição e tran Karl Marx 727 sitoriedade das instituições capitalistas e da inadequação da economia política tal como é conhecida A inseparabilidade das duas críticas está implícita no subtítulo de O Capital Uma Crítica da Economia Política Já foi mencionada a crítica geral de Marx à economia política Devemos examinar aqui sua análise crítica do capitalismo propriamente dito c com ela suas reflexões mais específicas acerca da economia política O título de sua principal obra econômica O Capital indica qual lhe parecia ser o problema central da economia Capital de acordo com Marx náo significa apenas o meio artificial de produção mas também um ma chado de pedra na mão de um homem primitivo um arco na mão de um caçador grego ou um tear mecânico na Inglaterra do século XDC O capital é a riqueza produtiva sob a forma peculiar que gera lucro O sistema predominante é denominado capitalismo porque os meios de produção sendo propriedade privada são uma fonte de lucro para seus proprietários os capitalistas É muito importante compreender a natureza do lucro com perfeita precisão pois o lucro está no centro da ordem social e econômica vigente O lucro não é apenas qualquer excedente econômico tal como o que poderia surgir em economias primitivas ou feudais nem tampouco o capital é apenas a riqueza produtiva Lucro e capital são de modo singular mutuamente complementares O lucro aparece diretamente como parte do preço de uma mercadoria parte esta que o proprietário dos meios de produção o capitalista denominação que não lhe foi aplicada primeiro por Marx pode reivindicar De que exatamente consiste sua parte Qual é sua origem e o que dá ao capitalista o direito de reivindicála A economia política clássica fornecera alguma explicação que serviu como ponto de partida para a análise do próprio Marx A economia política clássica principiara com a afirmação de que o trabalho é a fonte do valor que a quantidade de trabalho incorporado a uma mercadoria é portanto relacionada à quantidade de valor neste bem e que os valores relativos de dois bens devem ser proporcionais às quantidades relativas de trabalho a eles incorporadas A suposição correlata é que aquele que criou este valor pelo acrés cimo de seu trabalho ao objeto tem o direito de ser o proprietário de seu produto Os economistas clássicos concordavam que quando a produção era realizada por indiví duos para si mesmos utilizando suas próprias mãos e os implementos criados por eles ou por eles possuídos cada homem poderia reivindicar para si o que quer que pro duzisse Porém tal condição cessaria quando a íim de dar continuidade à produção os homens necessitassem de acesso a terras e instrumentos pertencentes a outros A partir daí esses outros teriam direito de participação no produto Evidentemente o lucro deixando de lado o problema dos aluguéis é contemporâneo à acumulação da propriedade produtiva por alguns membros da sociedade Houve de acordo com o entendimento clássico um período da vida humana em que todo homem era capaz de produzir de forma independente e depois houve e ainda há um período em que a terra foi objeto de apropriação e foi viabilizado o acú mulo de bens duráveis No período anterior da vida humana a teoria do valortrabalho aplicavase na sua forma simples e direta No período posterior o produto do trabalho é compartilhado com capitalistas e latifundiários Leitores das doutrinas de Hobbes e 7 2 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Locke mas em particular do último devem recordarse da divisão de toda a história humana entre um período no estado de natureza e um período no estado da sociedade civil Estamos agora prontos para compreender de modo mais pleno a afirmação de Marx de que a economia política clássica atribui às instituições do capitalismo o status de condições naturais prospectivamente atemporais A economia política clássica e a filosofia política a que estava ligado consideravam como definitivamente relativo a uma determinada época o progresso do homem da condição prépolítica à condição política Essa mesma transformação fundamental foi concluída ou consumada com a substituição da monarquia absoluta pelo governo constitucional pois entre um súdito e um senhor arbitrário só existe a lei da natureza Essa crucial mudança no estado hu mano foi relacionada pela economia política clássica à acumulação e proteção da pro priedade dos meios de produção Desta forma as instituições da propriedade passam a assemelharse e a ter o mesmo estatuto que a sociedade civil ou civilização a vida política em si Nem Hobbes nem Locke nem os economistas políticos clássicos mi ravam além da sociedade civil em busca de aperfeiçoamentos ainda mais radicais para a idade viril do homem Foi debcado a cargo de Rousseau suscitar a ampla questão acerca da validade tanto da sociedade civil como da propriedade e assim abrir caminho para que seus sucessores procurassem um horizonte além da sociedade civil Marx ao rejei tar a visão de que a propriedade e a sociedade civil ou digamos a vida política eram a condição absoluta para a existência humana digna em paz e prosperidade negou o es tado natural e permanente das leis do comércio Rejeitou a implicação da economia política clássica de que o lucro e a propriedade privada dos meios de produção estão aqui para ficar tanto quanto a sociedade política e pelos mesmos motivos Decerto Marx não admitia que a transição do estado de natureza para o estado da sociedade política fosse a mudança absolutamente transcendental na vida humana Tampouco admitia que fosse transcendental a mudança paralela da aplicação pura para a aplicação diluída da teoria do valortrabalho ou mesmo que fornecesse um motivo válido para a compreensão das instituições econômicas vigentes O íato de que havia uma dificuldade nesse modo de explicação foi observado por Ricardo ao examinar a teoria de valor e salários de Adam Smith Ricardo apontou que se fosse verdade em um sentido simples que uma mercadoria que demandasse um dia de tra balho para sua produção contivesse o valor de um dia de trabalho em seu valor então quando essa mercadoria fosse trocada por trabalho deveria comprar seu igual valor ou seja um dia de trabalho A formulação resumida seria que o trabalho incorporado é igual ao trabalho demandado para qualquer mercadoria Em outras palavras não haveria lucro um trabalhador poderia ser contratado por uma semana somente se seu produto durante a semana ou o valor total dele fosse pjo a ele como seu salário O feto de que o salário não é igual a todo o produto obrigou Ricardo e Smith também aliás a encontrar uma explicação alternativa uma explicação que atribuísse o valor da produtividade ao capital como trabalho congelado Marx rejeitou as explicações de Karl Marx 729 6 David Ricardo Principies o f Political Economy and Taxation i I lucro salários c valor por Ricardo e outros clássicos porque estas explicações ao darem conta da diferença entre o trabalho incorporado e o trabalho demandado por uma mercadoria náo levam a uma condenação do lucro como resultante da exploração o que Marx acreditava correto Examinemos iora sua própria explicação Marx começa por apontar um problema que emerge da troca de mercadorias quando uma mercadoria é trocada por outra é indicado um denominador comum en tre duas coisas que nada parecem ter em comum Suponhamos que um par de sapatos seja trocado por três camisas Os sapatos e as camisas são tão perfeitamente desiguais ao ponto de serem incomensuráveis Como se pode jamais chegar a uma proporção de três para um ou qualquer outra Para lidar com o problema da comensurabilidade Marx recorre a uma distinção tradicional em economia política a distinção entre valor de uso e valor de troca porém a modifica Substitui a distinção entre valor de uso e valor de troca consideraila fimdamental pela economia poUtica pela distinção entre valor de uso e valor O motivo para isto é que Marx não considera a troca como uma instituição permanente e natural mas sim como histórica e transitória No entanto o valor de troca é derivado do valor adequado e no intuito de compreender o capi talismo é necessário entender o valor de troca e portanto o valor puro e simples Retornando agora às duas mercadorias observamos que são desiguais na medida em que consideramos seu valor em uso ou o seu caráter qualiutivo pois cada uma delas foi projetada paia atender a um determinado fim a que a outra não pode atender Ora um sapato vem a ser um sapato em virtude de ter sido produzido pelo traba lho específico de um sapateiro A camisa é uma camisa porque é produto do trabalho de confecção da camisa A diferença entre o trabalho de fabricação de calçados e de camisas é a fonte da diferença qualitativa entre sapatos e camisas Marx afirma ainda que assim como as duas mercadorias podem e na verdade devem ser encaradas não apenas como diferentes mas também como tendo valores comensuráveis de modo que o trabalho que as produziu possa ser considerado não apenas como trabalho quali tativamente diferenciado Deve ser visto também como trabalho humano homogêneo ou indiferenciado como a geração de determinada quantidade de movimento sobre determinada massa por meio de determinado gasto de eneiia humana Como habi lidades portanto os tipos de trabalho humano são apenas diversificados mas como trabalho fiísico todo trabalho é igual e mensurável em unidades de tempo de acordo com sua duração Deste último fiito depende a mensurabilidade e comensurabilidade dos valores A fórmula resumida seria o trabalho humano diferenciado produz valores de uso e diferenças qualitativas entre as mercadorias enquanto o trabalho humano in diferenciado produz valor simples e comensurabilidade quantitativa entre as mercado rias Assim é em seu caráter como produtos do trabalho humano indiferenciado não como produtos do trabalho específico destinado a satisíàzer necessidades específicas que as mercadorias possuem valores comensuráveis e podem ser trocadas Deve ser salientado que Marx não demonstra a designação do trabalho por si só como fonte do valor mas o afirma como algo autoevidente 7 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ver por examplo O Capital i p 45 A explanação de valor oferecida anteriormente fornece apoio à definição e elabo ração da noção de mercadoria por Marx Para ele uma mercadoria é um bem produ zido de modo privado para fins de troca ou venda isto é a troca por dinheiro Desta forma o capitalismo poderia ser descrito como um sistema de produção de mercado rias e como tal tendo como base a desordem e a distorção Racionalmente a soma de todas as forças de trabalho individuais na comunidade é igual ao conjunto da força de trabalho disponível à sociedade para a satisfação de todas as suas necessidades Para que os homens vivessem sem distorção em seus negócios sua força de trabalho deveria aplicase direto à satisfação de suas necessidades e não à produção para a troca Todavia porque que os meios de produção são propriedade privada a produção não é realizada diretamente para a sua finalidade verdadeira a satisfação das necessidades mas para a especial vantagem dos proprietários dos meios de produção O caráter social do tra balho é portanto mediado e distorcido pelo modo de produção O que Adam Smith considerava como uma virtude peculiar da iniciativa privada a saber o desempenho voluntário de uma íimção social sob a influência de um desejo de vantem pessoal é considerado por Marx como o terreno da iniqüidade e da instabilidade no sistema vigente Podemos compreender por que chegou a essa conclusão se examinarmos mais detidamente o modo de produção capitalista tal como Marx o interpretou São indispensáveis para o capitalismo a propriedade privada dos meios de pro dução e a existência de um conjunto de homens que ao mesmo tempo não possui nenhum meio de produção e é perfeitamente livre no sentido de não serem ligados aos donos dos meios de produção por qualquer laço pessoal de dever ou direito Para viver aqueles que não possuem propriedades devem emprarse no trabalho com as máquinas e as terras dos proprietários Com efeito os não proprietários vendem aos proprietários uma mercadoria denominada força de trabalho e não trabalho Força de trabalho significa a capacidade de trabalho durante um determinado período tra balho significa a efetiva duração do trabalho Para Marx é crucial a distinção A força de trabalho é uma mercadoria sob o capitalismo o que significa que é algo produzido para ser vendido e que possui um valor determinado pela quantidade de trabalho congelado ou nela incorporado No entanto o que se quer dizer com a quantidade de trabalho incorporada na capacidade de um trabalhador de trabalhar oito horas A resposta é a quantidade de trabalho exigida para produzir as necessidades que devem estar disponíveis para o homem que forneceu a força de trabalho em questão De modo um pouco mais amplo o valor de um dia de força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessária para produzir a subsistência do trabalhador e de sua família a fim de manter o nível da oferta de força de trabalho não só de um dia para o outro mas de geração em geração Vamos supor que a fim de fornecer todos os materiais de subsistência necessários para sustentar uma força de trabalho de oito horas devemse realizar seis horas de trabalho Então o valor de luna força de trabalho de oito horas seria igual ao valor de uma produção de seis horas Seria obtido então o produto de oito horas ao dar se por ele o produto de seis horas O valor gerado pela força de trabalho empregada Karl Marx 731 durante as duas horas de sua aplicação enquanto não é p í é chamada por Marx de maisvalia esta é a base do lucro O lucro só existe porque uma parte da força de traba lho do trabalhador tem como resultado um produto pelo qual ele não é po Em certo sentido porém o trabalhador não está sendo prejudicado Marx se esforça para salientar que a força de trabalho é comprada por seu valor integral o seu valor entendido como sendo rigidamente sujeito à teoria valortrabalho de todas as mercadorias inclusive a força de trabalho em si Assim o homem é po integralmente por sua força de trabalho mas não por seu trabalho Com esta formulação acreditava Marx ter resolvido o proble ma que a economia política clássica não cons iu esclarecer com consistência o pro blema causado pela desigualdade do trabalho incorporado em um produto e do traba lho exigido por ele Sua solução depende da distinção entre trabalho e força de trabalho Por meio desta radicalização da teoria do valortrabalho que aplica à força de trabalho em si Marx pode argumentar que foi trazida à luz uma grave contradição oculta do capita lismo a relação entre empregador e empregado é ao mesmo tempo prejudicial e não prejucbcial No sentido de que não é prejudicial ninguém pode ser responsabilizado individualmente a compra e a venda da força de trabalho sáo realizadas pelo valor total de acordo com as regras do mercado Na medida em que é prejudicial porém demanda correção A conclusão de Marx é de que o abuso exige a abolição do sistema ao invés de uma mudança das regras dentro do sistema jamais bastaria uma reforma porque nenhuma reforma seria capaz de eliminar a compra e a venda da força de trabalho Esta contradição é campo fértil para muitas mais Por exemplo da proposição de que o lucro se origina no consumo da força de trabalho pelo capitalista decorre que se pode aumentar o lucro ou pelo consumo de mais força de trabalho por meio do aumento da quantidade de trabalho que é produzido por uma determinada força de trabalho digamos por aproximação pelo aumento da produção por dia útil Entretanto o aumento da produção por dia aumento de produtividade é obtido por meio do aumento da utilização de máquinas Aumentar a utilização de máquinas se opóe ao aumento do consumo da força de trabalho A íim de evitar que a introdução de máquinas elimine o consumo rentável da força de trabalho é preciso prolongar a jornada de trabalho Marx portanto chega à conclusão de que a introdução de má quinas leva e levará ao prolongamento da jornada de trabalho e à formação de uma grande população de cronicamente tecnologicamente desempregados Aqui e em outras partes a análise econômica de Marx levouo a fazer algumas previsões grossei ramente incorretas quanto às condições em uma economia capitalista amadurecida Náo porque tivesse grande interesse seu poder de previsão em si mesmo mas porque devido ao fato de que grande parte de seu ímpeto revolucionário é justificado pelos horrores que alega prever no florescimento do capitalismo seus erros de previsão vêm a ter um efeito singular na credibilidade da análise sobre a qual repousam Continuando A luta incansável pelo lucro faz com que a economia e a sociedade capitalistas estejam em um estado de fiuxo interminável Sob a chibata da concorrência 7 3 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a 5 L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 8 Ibid IV XV 3 p 4 4 5 que tende a reduzir os lucros os capitalistas precisam constantemente revolucionar o processo de produção a fim de barateálo As antigas habilidades tornaramse obsoletas e é reduzido o nível médio de habilidade exigida da força de trabalho na medida em que os movimentos das mãos do artesão são analisados e copiados pelas máquinas Uma vez que a condição fundamental da vida econômica capitalista é uma força de trabalho livre sem propriedades para com a qual os proprietários não têm deveres todo o ferdo da mudança tecnológica recai sobre os assalariados sob a forma de desemprego e po breza No entanto a evolução tecnológica em si não é peculiar ao capitalismo mas no capitalismo é que se torna uma íbnte de miséria De forma dialética Marx argumenta que em seus abusos o capitalismo serve para revelar um problema humano transcapi talista que pode ser resolvido somente pela superação do capitalismo A indústria moderna através de suas catástrofes impõe a necessidade de reconhecer como uma lei fundamental da produção a variação do trabalho consequentemente a aptidão do trabalhador para o trabalho variado consequentemente o desenvolvimento do maior número possível de suas várias aptidões Tornase uma questão de vida ou morte pata a sociedade adaptar o modo de produção ao fundonamento normal desta lei a Indústria Moderna de fàto obriga a sodedade sob pena de morte a substituir o tra balhador de hoje prejudicado pela repetição de uma só e única operação trivial ao longo da vida e assim reduzido a um mero fragmento de homem pelo indivíduo plenamente desenvolvido apto para uma variedade de trabalhos pronto para enfrentar qualquer mudança na produção e para quem as diferentes funções sociais que realiza são não mais que diversos modos de dar livre curso a seus próprios poderes naturais e adquiridos Devese salientar que a tendência das mudanças tecnológicas na verdade não tem sido de reduzir o nível médio de habilidade da força de trabalho ou de acarretar uma queda dos salários reais e de criar uma crescente exército de reserva industrial dos desempregados Nem há qualquer indício em lugar algum do mundo de a que a tecnologia moderna pode ser compatibilizada com uma institucionalização do tra balhador polivalente Marx analisa mais aspeaos da vida econômica capitalista do que podemos exami nar aqui Sua maa obsessiva ao longo da discussão é mostrar que em virtude daquilo que o capitalismo é em virtude de ser intrinsecamente contraditório o seu desenvolvi mento será necessariamente sua dissolução quanto mais se realiza e se aproxima de seu ápice mais destrói a si mesmo e se aproxima de sua queda Marx fbmece um extraordi nário resumo de seu entendimento do assunto no final do Volume I de O Capitak Vimos na Pane IV quando analisamos a produção da maisvalia relativa dentro do sistema capitalista todos os métodos para aumentar a produtividade social do trabalho são efetivados à custa do trabalhador individual todos os meios para o desenvolvimento da produção transformamse em meios de dominação e exploração dos produtores mu tilam o trabalhador tornandoo um fragmento de um homem degradamno ao nível de um apêndice de uma máquina destroem todo resquício de encanto em seu trabalho KarlMaix 733 9 Ibid 9 p 534 e o transformam em uma odiada labuta aíàstamno das potencialidades intelectuais do processo de trabalho na mesma proporção em que a ciência é incorporada neste como um poder independente distorcem as condições em que trabalha sujeitamno durante o processo de trabalho a um despotismo ainda mais odioso por sua mesquinhez trans formam o seu tempo de vida em tempo de trabalho e arrastam sua esposa e filhos para baixo das rodas da força destruidora do capital Porém todos os métodos para a produ ção de maisvalia são ao mesmo tempo os métodos da acumulação e toda a extensão da acumulação tornase novamente um meio para o desenvolvimento desses métodos Seguese portanto que na mesma proporção em que se acumula o capital a sina do trabalhador seja seu pagamento alto ou babto deve piorar A lei por fím que sempre equilibra o excedente de população relativo ou o exército de reserva industrial na me dida e na eneigia da acumulação esta lei prende o trabalhador ao capital de modo mais firme que as correntes de Vulcano amarraram Prometeu ao rochedo Estabelece uma acumulação de miséria correspondente ao acúmulo de capital A acumulação de riqueza em um polo é portanto ao mesmo tempo no polo oposto ou seja do lado da classe que produz seu próprio produto sob a forma de capital a acumulação de miséria sofrimento no trabalho escravidão ignorância brutalidade degradação mental Marx acreditava que quando finalmente a burguesia em sua a maior parte ti vesse sido reduzida à proletarizaçáo pela concorrência selvíem e o proletariado tivesse sido reduzido à pobreza gritante pelas leis de acumulação e especulação então ocor reria a revolta e a humanidade estaria às vésperas da história Não é ir longe demais afirmar que a economia de Marx consiste na tentativa de mostrar como essa fatídica transformação está implícita na teoria do valortrabalho tal como concretizada nas práticas do capitalismo Se essas doutrinas de Marx são sólidas e até que ponto o são é uma questão de interesse mais do que trivial para o mundo A questão é suscitada em duas partes se o que Marx considerava como inevitável realmente o é e se são aceitáveis as premissas de seu sistema É preciso agora ocuparmonos de tais indagaçóes As previsóes de Marx referemse a dois temas o destino do capitalismo e o caráter da sociedade socialista Discorre ele longamente sobre o primeiro como vi mos e em grande medida faz previsóes incorretas Um século após ter ele chegado a essas conclusóes é justo negar que a introdução das máquinas deve obrigatoriamente levar ao prolongamento da jornada de trabalho que deve haver maciço e crescente desemprego tecnológico que a burguesia será necessariamente proletarizada e o prole tariado pauperizado e que o socialismo é o ápice do capitalismo As previsóes de Marx baseavamse na crença de que uma ordem econômica tem vida e ser próprios que se assemelha à articulação de partes inertes e quando de uma forma ou outra é deslan chada íunciona de modo mecânico tão pouco sujeita a alterações de direção quanto um projétil disparado por uma arma Marx tinha certa aversão pelo utilitarismo mas tendia tanto quanto qualquer outro representante da doutrina utilitária a comparar a 7 3 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 10 Ibid XV 4 p 708709 11 Ver ibid xxxii vida social a um silogismo A lógica é universal em extremo igual em todos os lugares e em todos os momentos Expressa a razáo mas nada tem a aprender com a prudência Marx fez concessões embora absolutamente insuficientes para tais infiuências simples e náo dialéticas como as leis leis para limitar a duração da jornada de trabalbo leis para incentivar ou obrigar à negociação coletiva para aprovar indenizações trabalhis tas imposto de renda progressivo segurodesemprego benefícios para idosos leis para regulamentar as bolsas de valores para promover o pleno emprego para proteger a concorrência para controlar a base monetária para apoiar a agricultura para socor rer os doentes para reprimir a adulteração de alimentos para obrigar os jovens a se sujeitarem a serem educados para garantir a poupança e mil outras leis não menos relevante entre elas que a lei que coloca a criação de leis sob a influência das multidões dominantes que Marx confundiu com um proletariado miserável Marx era um astuto observador jornalístico dos assuntos políticos mas em seus ensinamentos nada ad mitiu de significativo para a poiítica isto é à ponderação que descartava como mera reforma Postulou o homem econômico com confiança tão limitada quanto qual quer economista político embora com uma retórica mais admirável As previsões de Marx não são apenas do tipo funesto Por vezes Marx íãz alusão ao caiáter da vida na época póscapitalista e fornece breves esboços do mundo comu nista Não existe maneira de testar empiricamente suas visões do socialismo porque todas as sociedades socialistas existentes afirmam estar em um estado de transição para o comunismo propriamente dito e cada disparidade entre a expectativa e a realidade é explicada como temporária Se todas essas disparidades são na verdade temporárias ou quantas podem ser temporárias depende da solidez do terreno sobre o qual repou sam as expectativas de Marx Voltamonos para essa pergunta como conclusão O princípio governante da sociedade marxista socialista é de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades Esta máxima é adequada como lei íundamental entre amigos leais sábios e incorruptíveis dedicados um ao outro com uma benevolência absolutamente altruísta Entre esses amigos náo só nenbum indivíduo procuraria vantagens próprias à custa dos outros como jamais lhe ocorre ria a ideia de fezêlp Neste sentido seria transcendido o dever como dever aquilo que dita o mero sentido de dever a um homem capaz de oísmo seria o desejo mais espontâneo do homem como membro da sociedade íiraterna Seu dever não lhe pare ceria um dever A sociedade marxista seria uma sociedade de bilhões de amigos unidos cordialmente na mais rara e sensível união harmônica É possível imnar que houvesse uma grande multidão de homens vivendo jun tos sem qualquer ameaça de coerção que os impedisse de ofender uns aos outros mas que sua sociabilidade sem coação refletiria não sua bondade mas uma total indiferen ça a extinção de todos os impulsos revigorantes De modo enfetico não é isso que pensa Marx seus socialistas estariam vivos e no auge de toda a sua capacidade cada um fortemente ativo Sua visão da vida para a humanidade em geral é o que os pen sadores da Antiguidade concebiam como a mais elevada possibilidade aberta para os mais sábios e melhores o amor mútuo de alguns espíritos nobres elevados acima de Karl Marx 735 qualquer desejo mesquinho livre de qualquer traço de inveja ou ambição mundana de boa vontade partilhando aquele bem de valor inestimável que não se afasta de seu possuidor quando este o confia a outro e que é multiplicado quando dividido sendo este bem a sabedoria Podese compreender a noção da quintessência da justiça ma terializandose entre os sábios pois a sabedoria excita a admiração que gera amor e a sabedoria é um bem pelo qual os homens não podem lutar de modo hostil mas apenas de forma harmoniosa As condições para a benevolência racional seriam plenamente atingidas entre os poucos que desejam um bem cuja busca não corrompe A sociedade perfeita é portanto aquela em que não se pode distinguir entre a filosofia como regra da vida e a justiça que também é a regra da vida Na sociedade perfeita a justiça ad ministraria a si mesma e seria portanto perfeitamente pura porque náo marcada pela necessidade de coagir de punir ou de enganar Podese dizer que o desaparecimento da justiça na íilosoíia eqüivale ao desaparecimento do político no filosófico Não poderia ser descrita a sociedade perfeita exceto a partir da premissa de que existe algo como a filosofia que alguns homens consideramna como o maior bem que mais do que alguns poucos jamais poderão considerála desta maneira e que por tanto é da natureza das coisas que a justiça e a sociedade política ou o govemo não se dissolverão na filosofia O marxismo sonha com o desaparecimento da justiça e da so ciedade política não na filosofia é evidente mas na economia racional e portanto para a massa da humanidade não apenas para os poucos infinitesimais O sistema econômico que seria aprovado como racional por Marx não seria obviamente a economia liberal em que o homem econômico encontra ampla esfera de ação para a sua racionalidade Essa racionalidade que é na verdade apenas a ma quinação autointeressada é vista por Marx como sendo contagiada pela contradição Uma racionalidade que fosse autocontraditória serviria adequadamente como fonte de ação em um sistema que busca a prosperidade através da pobreza a liberdade através da subordinação e o bem comum através da emancipação da autopreferência A filosofia política prémarxista ou pelo menos préhegeliana tanto antiga como moderna caracterizavase por uma moderação que lhe permitiu aprovar regimes que alcançam a razão por meio do mito a liberdade pela coerção ou a sociabilidade pelo egoísmo Indóceis e irrefletidos como são os homens ainda assim podem vir a ser receptivos à vida social se for possível colocálos sob a orientação ou de homens de boa índole ou de instituições astutas que jogam uns contra os outros os motivos mais bai xos dos homens a fim de obter um resultado salutar Em ambos os casos concebiase a meta ou resultado como tendo extrema importância sem mencionar considerações tais como o fim ser dado pela natureza ou o fim justificar os meios Não podemos avaliar aqui até que ponto Marx foi afetado pela tendência kantiana de desvalorizar as simples finalidades mas é certo que Marx repudiou a disposição da tradição antiga e o entusiasmo das tradições modernas para fazer as pazes com as fraquezas da natureza humana apesar de não se render a elas e se contentar com a sociedade composta por homens tal como são Marx sonhava que a condição humana em que as finalidades boas seriam procuradas pelos homens de bem usando apenas bons meios e reagindo 7 3 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y apenas a bons motivos porque os possui A base ou pressuposto de seu sonho era a geração de um novo homem ou a reneração do homem e o instrumento dessa regeneração seria a ecxnomia racional corretamente entendida Inesperadamente vemos agora que se desvenda um fundamento de concordân cia entre os prémarxistas antigos e modernos quanto a este ponto tão importante a vida política repousa sobre a imperfeição do homem e continua a existir porque a natureza humana impede a elevação de todos os homens ao nível de excelência A conexão entre o governo civil e a imperfeição do homem é expressa por Rousseau por exemplo sob a forma da distinção entre Estado e sociedade os homens podem ser sociais enquanto não corrompidos mas na comunidade política são presas e predadores uns dos outros No início de Common Sense Senso comum escreveu Thomas Paine A sociedade é produzida por nossas necessidades e o governo por nossa maldade a primeira promove nossa felicidade de modo positivo pela união de nossas afeições a última de modo negativo pela restrição de nossos vícios A primeira é um patrono o último um carrasco Podese dizer que Rousseau sugeriu através da doutrina da perfectibilidade do ho mem que o govemo pode ser gradatívamente substituído pela sociedade na perfeita liberdade de autogpvemo a coerção perde a maior parte de sua íbrça Mas Rousseau não supunha de forma alguma o total desmoronamento do govemo na sociedade pois não supunha que todos os homens viessem a ser íUosóíicos nem que houvesse qualquer substimto perfeito para a racionalidade plena dos homens o que tornaria dispensáveis a coerção e a retórica de todos os tipos quer dizer a vida política Em poucas palavras não esperava que o egoísmo comum simplesmente desaparecesse do meio geral dos homens O que em Rousseau era uma sugestão limitada embora enfática passou a ser em Marx o núcleo dogmático de um prognóstico confiante uma propEanda estridente e uma incitação revolucionária o Estado ou ordem política definhará completamente e a humanidade homogênea viverá socialmente sob o comando da benevolência ab soluta de cada um s n d o sua habilidade a cada um segundo sueis necessidades O dever náo mais será cumprido de forma correlata ao atendimento do interesse egoísta A ligação entre o dever e o interesse quer dizer a subordinação do dever ao interesse será rompida de uma vez por todas pela abolição das categorias dever e interesse Serão abolidas pela revisão das relações de propriedade pela inauguração de uma nova economia que conduzirá à plena perfeição da natureza humana por meio da transcen dência da produção pela troca Em um resumo bastante limitado podese dizer que a radicalização de Rousseau por Marx repousa na suplantação da razão filosófica pela razão histórica A razão filo sófica a inteligência dos seres humanos individuEiis estando presente entre os homens de forma desigual não pode dispensar a sociedade política com sua coerção e retórica caso se pretenda evitar a calamidade Assim acreditava a tradição filosófica A doutrina Karl Marx 737 12 Cf a sentença com que Montesquieu começa I iii de The Spirit o f the Laws de Marx é de que há uma razáo inerente ao curso da história a história abomina con tradição tão profundamente quanto jamais se imaginou que a natureza abominasse o vácuo Se contradição significa mais do que um choque de interesses isso não nos é informado Seja como for a inviabilidade de qualquer contradição individual é trans formada pela filosofia da história na própria inviabilidade da contradição A filosofia da história tenta comunicar a sua confiança de que a contradição deve eliminar a si mesma agindo por meio do descontentamento dos homens afligidos com os sintomas das contradições que existem na sociedade A gradual resolução das contradições e o movimento do homem em direção a uma condição livre de contradições merecem ser chamados de a expressão da razão histórica Suplantam ou conquistam a razão filosófica ou a inteligência dos indivíduos não só no sentido óbvio de que através da evolução histórica da natureza humana a distribuição desigual de inteligência deixará de ter relevância política Quando for gerada a nova raça de homens pela propriedade comum dos meios de produção todas as antigas categorias naturais do direito tom barão diante da lógica da história e homens subfilosóficos viverão em uma sociedade sem coação e livre de mitos isto é perfeitamente racional tal como se pensava que somente os mais raros dentre os homens fossem capazes de viver porém de modo ainda mais emancipado que os mais raros que nunca usufiuíram do benefício de um ambiente perfeito As multidões de homens serão condicionadas a alcançar as alturas pela abundância de bens produzidos e distribuídos sem qualquer oposição do interes se Marx parece acreditar que se os homens sáo divididos pela escassez seriam unidos pela abundância Estaríamos mais dispostos a ser convencidos disso se houvesse razões para crer que algum dia será impossível distinguir homens de herbívoros no pasto O marxismo é famoso por ansiar pelo fim náo somente da vida política mas tam bém da religião A religiáo é a crença na existência de um reino do todo onde há uma retificação para cada defeito do mundo terrestre Aqui há morte lá existe vida Aqui a iniqüidade passa despercebida ou fica sem puniçáo lá é registrada e castigada ou se estiver além de qualquer puniçáo humana recebe o castigo divino aqui embaixo mes mo A bondade que é ignorada ou ridicularizada na terra é levada em conta e honrada no céu Pode ser sustentada a crença de que o todo é bom ou tende a sêlo mesmo que a parte visível do todo seja imperfeita pelo argumento de que a parte invisível compen sa perfeitamente as deficiências perceptíveis por nossa visáo Estaríamos muito longe de nosso caminho se tentássemos comparar os ensinamentos das tradições teológicas e filosóficas no que diz respeito a esta questão podemos observar porém que a tradi ção filosófica da Antiguidade também ensinava que é boa a natureza como um todo No entanto não é boa de modo tão inequívoco que possa tornar supérflua a coerção e a retórica que sustentam a vida política desta forma a bondade da natureza como um todo náo permeia toda a vida humana Acerca deste ponto fundamental existe uma base comum entre a filosofia da Antiguidade e a religiáo revelada para todos os efeitos a bondade do todo quer o todo seja a soma do natural e do sobrenatural ou o complexo sistema de forma e matéria da própria natureza não pode ser traduzida ou transformada na bondade da vida comum do homem Caracteristicamente no caso da 7 3 8 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o i í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y filosofia política moderna não foi afirmada a bondade da natureza como um todo a teleologia foi é claro rejeitada e a miséria do estado de natureza fisrtemente debatida A natureza precisava ser retificada ou melhor ser governada e seria encontrada uma indicação acerca do governo da natuteza nas leis da natmeza as leis da ciência e as leis da política e da economia A crença na possibilidade de conquistar ou dominar a natureza talvez tenha aberto caminho para a noção marxista de que é possível a perfeição da vida humana e não apenas possível mas previsível em uma sociedade sem classes Entretanto como foi discutido essa consumação não estava explícita nos ensinamentos da moderna filosofia política prémarxista Não antes de Marx afirmar a historicidade da própria natureza a absoluta perfectibilidade da natureza humana sob a influência das condições econômicas é que se supôs que a vida política e a reli gião deveriam desaparecer e ser substitmdas pela sociedade racional sem coação Somos levados pelas doutrinas do marxismo a reconsiderar alguns pontos de vista comuns Um deles é de que há uma profunda hostilidade entre a filosofia e a sociedade política porque a filosofia por seu questionamento irrestrito vem a expor a própria política às explosões do ceticismo enquanto o corpo político desconfiando das teorias e propenso ao filistinismo sempre ameaça com seu desprezo ou pior o tipo de homem que pensa No entanto por mais bem fundamentada que seja a suspeita mútua observamos que a filosofia com certeza a filosofia política clássica aiumenta que o homem é por natureza político e que a sociedade política é a sociedade verdadei ramente humana tendo em vista as características dos homens em geral Acreditouse que a filosofia ameaça a política vemos que na verdade a filosofia defendeu a política e que a previsão do fim da vida política teve de siardar a superação da filosofia pela história isto é pela doutrina da emenda da Natureza Outra opinião a ser revista é a de que entre filosofia e religião há em princípio uma guerra mortal uma afirmando a supremacia da razão a outra da fé Vimos que a filosofia pode ter como teve por muito tempo um terreno comum com a religião ambas tinham visões da natureza que não levavam à expectativa da sociedade perfeita dentro da ordem natural A objeção teórica à religião em nome de uma aspiração à sociedade perfeita teve de aguardar a superação da filosofia pela história Poderíamos resumir dizendo que a substituição da filosofia pela história era a condição necessária para a substituição da política e da religião pela sociedade e pela economia É este o cerne do marxismo O marxismo não é simplesmente mais um sistema político ou mais ixma ideolo gia Propõe nada menos do que o fim do Ocidente da vida política da filosofia e da religião como indica o resumo anterior Talvez devêssemos ansiar pelo fim do Ociden te mas não podemos saber se devemos fázêlo sem examinar racionalmente o projeto para suprimir a filosofia Esse exame racional fiiz parte da busca filosófica propriamen te dita Não nos podemos libertar da filosofia até porque é preciso filosofar para julgar Karl Marx 739 13 Ver anteriormente p 811 a íilosoíia Começamos a suspeitar da solidez do historicismo antifilosóíico de Marx Observar seus pontos fracos preparanos para admitir que a história pode dar espaço para as sociedades espiritualmente pobres a viabilidade das naçóes marxistas é um si nal não da solidez da profecia de Marx mas da vacuidade do historicismo otimista em que se baseou Temos todo o direito de concluir que a história é o ópio das massas L e it u r a s A Maix Karl and Engels Friedrich The Communist Manijèsto Manifist Der Kommunistiehen Partei Manifesto do Partido Comuinsa Marx Karl and Engels Friedrich lhe German Ideology Ed R Pascal New York International Pub lishers 1939 Part I Die deutsche Ideobge A ideologia alemá Marx Karl Jheses on Feuerbaeh Jhesen über Feuerbaeh teses sobre Feuerbach Marx Karl Capital New York Modern Library s d Livro I parte I cap i seções 1 2 4 Das Ka p italO Capital B Engels Friedrich Ludwig Feuerbach and the Outeome t f German Classieal Philosophy Ed C P Dutt New York International Publishers n d Cap iv Dialectical Materialism Ludwig Feuerbaeh und derAusgang der klassisehen deutschen Philosophie Ludwig Feuerbach e o resultado da filosofia alemá clássica Engels Friedrich Herr Fugen Dührings Revolution in Science AntiDühring Trans E Burns Ed C P Dutt New York International Publishers 1935 Part I Philosophy 7 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Friedrich N ietzsche 18441900 O jovem Nietzsche concebia o filósofo como um médico da cultura Sua própria filosofia é ao mesmo tempo um dinóstico da doença ou crise de seu tempo o século XDC como também a busca de sua cura Em seu primeiro livro publicado Die Geburt der Tragõdie aus dem Geiste der Musik 1872 O nascimento da trédia no espírito da música Nietzsche colocava suas esperanças em um renascimento da cultura alemâ através da música de Richard Wner Seu segundo livro Unzeitgemãsse Betrachtungen Considerações intempestivas conhecido em inglês como Thoughts OutofSeason Pen samentos fora de temporada consiste em quatro ensaios publicados em separado entre 1873 e 1876 Mais uma vez um deles é homenagem a Wagner Nietzsche logo parou de acreditar na cura que sugerira repudiando Wagner e perdendo a fé na possibilidade de um renascimento cultural alemão Assim entrou na segunda etapa de seu desenvol vimento uma fese caracterizada pela desilusão e por uma inclinação para o positivismo ocidental Simboliza isso o feto de ter dedicado a Voltaire seu terceiro livro Menschliches Alhsumenschliches Ein Buch fiir freie Geister Humano demasiado humano um livro para espíritos livres 1879 A posição final de Nietzsche é articulada em Also sprach Za mthustra Assim falou Zaratustra cujas quatro partes foram escritas e publicadas entre 1883 e 1885 e nas obras que se seguiram Contudo Nietzsche jamais repudiou mas apenas aprofundou sua avaliação de seu tempo como doente e problemático avaliaçáo esta que pode ser encontrada nos escritos de sua primeira fàse e as questões que susci tou nesta fese sâo problemas com os quais nunca debcou de lidar Justificase portanto iniciar uma exposição da filosofia política de Nietzsche com uma discussão sobre um de seus primeiros escritos o segundo ensaio de Considerações intempestivas O ensaio Vom Nutzen und der Historie fiir Nachteil das Leben Dos usos e desvan tagens da História para a vida publicado em 1874 é conhecido em inglês como The Use and Abuse ofHistory Usos e abusos da História Os pensamentos de Nietzsche 1 A dedicação aparece na primeira ediçáo do primeiro volume desta obra Chemnitz E Schmeitz ner 1878 Náo consta da traduçáo para o inglês em The Complete Works o f Friedrich Nietzsche Ed Oscar Levy Edinburgh and London T N Foulis 1910 v VI 2 Trad Adrian Collins New York The Liberal Arts Press 1949 estão fora de época porque visam ser contrários a seu tempo mas no entanto a serem uma influência sobre este tempo para o bem de um tempo futuro O ensaio é uma crítica de uma falha e defeito específicos do tempo o historicismo ao qual Nietzs che denomina o movimento histórico a tendência histórica ou o sentido histórico Acredita que seu tempo sofre de uma febre histórica maligna A crítica de Nietzsche ao historicismo é também seu confronto e crítica de Hel Na parte final do ensaio Nietzsche se refere a uma filosofia muito celebrada e conti nua creio que não houve nenhum momento decisivo perigoso para o progresso da cul tura alemá neste século que nâo tenha sido tornado mais perigoso pela enorme e ainda viva influência da íilosoíia hegeliana Hegel considera o homem contemporâneo como a perfeição da história do mundo o hegelianismo estabelece a soberania da história sobre outros poderes espirituais tais como a arte ou a religião para Hegel a fase superior e fi nal do processo de mundo conflagrouse em sua própria existência em Berlim Contra a doutrina de Hegel de que o processo histórico é um processo racional que no tempo de Hegel terminou em um momento absoluto em seu auge Nietzsche afirma que o pro cesso histórico náo é e nem pode ser terminado que a condusão da história não é apenas impossível mas também indesejável porque levaria a uma degeneração do homem e essa história não é um processo racional mas cheio de cegueira loucura e injustiça Assim poderia parecer que Nietzsche simplesmente efetua um retorno a um ponto de vista préhegeliano que considera a história como o reino do acaso e não uma dimensão do significado No entanto a crítica do historicismo por Nietzsche não nega a validade das premissas essenciais do historicismo e sua crítica de Hegel se baseia em uma área crucial de concordância com Hegel tal como revela uma análise mais profunda de Dos tisos e desvantagens da História para a vida O ensaio começa com um exame da vida dos animais Os animais esquecem cada momento assim que este se vai Viver inteiramente no presente sem memória do passado significa viver sem história O homem se recorda do passado e náo pode es capar dele o homem vive historicamente O homem também sofre com a consciência do passado e da passagem do tempo até porque esta consciência traz em seu bojo a consciência de que o homem é uma imperfeição imperfectível A felicidade depende da capacidade de esquecer e se entregar completamente ao presente Um homem que nada pudesse esquecer seria um homem totalmente infeliz pois veria apenas o fluxo e a mudança e não teria pontos fixos pelos quais se orientar Por outro lado o homem não seria homem sem a lembrança do passado Além disso é só através do desenvolvimento de seu sentido histórico e em virtude de seu poder de transformar o passado para uso do presente que o homem se elet acima dos outros animais e se torna homem O problema do homem é portanto encontrar o equilíbrio entre lembrar e esquecer o que é mais propício para sua vida como homem O grau e os limites da memória que tem o homem do passado devem ser estabelecidos pela medida 7 4 2 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o iin c A L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 3 Ibid p 34 4 Ibid p 552 em que o homem pode incorporar ou absorver o passado Um organismo saudável é aquele que instintivamente assimila do passado somente o que pode digerir o resto sim plesmente não percebe A linha divisória entre o histórico e o não histórico é o horizonte do organismo De acordo com Nietzsche Esta é uma lei universal um ser vivo só pode ser saudável forte e produtivo dentro de um determinado horizonte O horizonte do homem é constituído por seu conjunto fundamental de suposi ções sobre todas as coisas por aquilo que considera como a verdade absoluta que não pode questionar Seu conhecimento histórico deve ser cercado por uma atmosfera ahistórica de trevas que limita o sentido histórico do homem A esfera própria da história encontrase dentro e sob a atmosfera ahistórica que deve envolver o homem para que este perdure Nietzsche admite que existem usos bem como abusos da história Fala de três tipos de história que podem servir à vida A história monumental fornece ao homem de ação modelos de grandeza por sua representação dos grandes homens e acontecimentos do passado A história antiqudria voltase ao aspecto de preservação e reverência do homem imbuindoo com um amor salutar pela tradição É um benefício especial para os povos e raças menos dotados pois os mantêm a salvo de um cosmopolitismo inquieto e improdutivo A história antiqudria coloca aspectos obsoletos do passado diante das barras do tribunal e os condena mas ttaz à luz injustiças que sobrevivem do passado para que possam ser abolidas em prol do presente Entretanto Nietzsche preocupase mais com os abusos do que com os usos da histó ria Logo aponta a facilidade com que se pode fàzer mau uso de cada um dos tipos de his tória mencionados anteriormente A partir da história monumental podemse construir modelos de passadas grandezas que vêm a impedir o surgimento da grandeza presente A reverência ao passado que fomenta a história antiquaria pode ocasionar uma invalidação do presente Há sempre o perigo de que a história crítica arranque das raízes do passado mais do que merece ser extirpado Além disso Nietzsche liga a eficácia de cada tipo de história a sua cegueira para com a verdade completa Ao não prestar atenção suficiente às condições necessárias para o suimento da grandeza a história monumental cria a ilusão de que por ter sido possível a grandeza esta é ainda possível o que não é necessariamente o caso Ao cultivar uma reverência geral para com o passado a história antiquária é obri gatoriamente indiscriminada e elogia aspeaos do passado que não merecem elogios A história crítica não consegue perceber até que ponto os homens são resultado do passado que procuram condenar Os usos do passado para o presente dependem de uma violação da verdade sobre o passado a história útil não pode ser história científica A ciência e a exigência de que a história se torne uma ciência perturbam a relação adequada entre a história e a vida A ciência histórica é motivada pelo desejo de saber e não pelo desejo de servir à vida e impõe à atenção do homem mais conhecimento histórico do que ele é capaz de absorver ou digerir de modo adequado Neste ponto a história não serve mais à vida a história perturba a vida F r ie d w c h N ie t z s c h e 7 4 3 Ibid p 7 Nietzsche apresenta ao leitor um catálogo de calamidades que resultam de um excesso de história Uma delas é que os homens confrontados com um espetáculo de história tâo vasto que perde o sentido para eles virão a pensar em si mesmos como epi goni a quem tendo chegado tarde à cena nada resta a íàzer Se Hegel estivesse correto se a história tivesse terminado os homens modernos seriam de íàto epigoni Hegel está errado mas sua crença de que está certo fez com que os homens ajam como se fossem epigoni Homens que não têm outra missão a cumprir ou homens que acreditam que nada mais há a ser feito decerto se degenerarão pois o que há de melhor no homem são suas aspirações No entanto nem a afirmação de que o processo histórico está terminado nem a afirmação de que o processo histórico é racional são as afirmações mais fundamen tais do historicismo O historicismo afirma a importância avassaladora da história a determinação da vida e do pensamento do homem pela história e a impossibilidade de transcender o processo histórico Nietzsche aceita esta afirmação da onipotência da história e sua aceitação constitui uma área nevrálgica de concordância com Hegel Podemse resumir as calamidades que Nietzsche atribui a um excesso de conhecimen to histórico com a afirmação de que o excesso de conhecimento histórico destrói os horizontes do homem Não há contudo nenhum horizonte permanente do homem como homem As premissas fundamentais dos homens sobre as coisas são imanifestas insustentáveis historicamente variáveis e historicamente determinadas Não existem nem coisas eternas nem verdades eternas só há fluxo e mudança o que Nietzsche denomina a finalidade do viraser Ao mesmo tempo em que são verdadeiras as dou trinas que afirmam a finalidade do viraser são elas também fetais A história como a ciência universal do viraser é verdadeira porém mortal Se a vida humana só pode prosperar dentro de um determinado horizonte que os homens acreditam ser a verdade absoluta mas que na realidade é apenas um dos muitos horizontes possíveis então a vida necessita de ilusões e é mortal a verdade que expõe o horizonte como um simples horizonte Há então um conflito entre a verdade e a vida ou entre a vida e a sabedoria Em tal conflito de acordo com Nietzsche é preciso escolher o lado da vida Não pode haver vida sem sabedoria mas não pode haver sabedoria sem vida No entanto é impossível aceitar as ilusões que a vida exige se sabemos que são ilusões Os mitos são úteis apenas enquanto são confundidos com a verdade O ho rizonte de um homem é seu mito mais abrangente e lhe permite viver porque pensa nele como a verdade Compreender um horizonte como horizonte é estar além desse horizonte No mínimo a contínua aceitação de um horizonte desacreditado precipi taria o homem em um degradante autoengano mas Nietzsche está preocupado com o enobrecimento do homem Se há uma tensão entre a sabedoria e a vida esta não pode ser resolvida pela preferência pela vida Chegouse a um impasse 7 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 6 Ibid p 6 1 Todavia Dos usos e desvantagens da história termina com uma nota de esperança afirmando uma harmonia entre a vida e a sabedoria Após ter o historicismo revelado o caráter arbitrário de todos os horizontes humanos o homem é submetido às ondas sem esperança de um ceticismo infinito mas Nietzsche professa ter terra à vista o homem pode recuperarse do mal da história Tal recuperação só é possível se for provado que o historicismo é fàlso ou pelo menos não totalmente verdadeiro Proviso riamente em Dos usos e desvantagens da história e de forma mais abrangente em seus últimos escritos Nietzsche tenta superar e transcender a visão historicista aquilo que começa como o questionamento da verdade objetiva do historicismo termina como um questionamento da própria possibilidade da verdade objetiva O tipo de história que culmina no historicismo é uma história que se entende como científica e objetiva O historicismo é uma afirmação teórica baseada em uma análise de fenômenos históricos Nietzsche questiona se o fenômeno histórico pode ser apreendido pela história objetiva e científica e seus historiadores questiona se a história entregará seus segredos para a investigação desinteressada A história é feita pelos atores históricos por grandes homens Os homens que fazem história são ho mens dedicados que têm um compromisso com uma causa que agem dentro de um horizonte de compromisso acreditando de modo ahistórico na validade absoluta de sua tentativa Os grandes homens da história foram os grandes criadores olhavam de frente para o futuro e se dedicavam ao que viria a ser Os maiores criadores são aqueles que criam horizontes dentro dos quais viverão os homens futuros Criam esses horizontes de modo inconsciente e sob a ilusão de que estão apenas descobrindo a ver dade Todos os horizontes anteriores envolviam uma crença em uma verdade absoluta que não pode ser criada mas que pode ser descoberta A história objetiva vive ou morre por sua fidelidade a seu objeto por sua capacidade de apresentar o passado tal como realmente foi Nietzsche cita com aprovação a velha máxima de que só o semelhante pode compreender o semelhante Somente os homens que se comprometem a olhar de frente para o futuro e somente os homens criativos podem entender as criações de homens do passado voltados para o futuro e com ele comprometidos A linguagem do passado é sempre oracular Só podemos compreendê la como construtores do futuro que conhecem o presente O historiador objetivo não é um homem criativo e não enfrenta o futuro E capaz de estabelecer a data de nasci mento de Michelangelo mas só um artista pode realmente entender Michelangelo O historiador objetivo ilude a si mesmo de modo a pensar que não interpreta o passado mas apenas o descreve Há porém uma ilusão que se esconde na própria pa lavra objetividade Qualquer afirmação sobre os fetos é uma interpretação dos fetos A própria seleção dos dados dentre uma infinidade de dados já é uma interpretação Em última análise não há escolha entre a história objetiva e subjetiva mas apenas uma escolha entre uma interpretação nobre e esplêndida do passado e uma interpretação sórdida e empobrecida do passado F r ie d r ic h N ie t z s c h e 7 4 5 7 Ibid p 656973 8 Ibidp4 Deste modo Nietzsche náo nega a validade da percepção de que os horizontes são criações dos homens ataca o historidsmo como uma interpretação particular desta cons tatação Tenta superar a aparente letalidade da visão historicista interpretandoa de modo nobre Se é íàto que os valores de acordo com os quais os homens têm vivido são suas pró prias criações ou ficçóes tratase de um feto ambíguo Nietzsche caminha na direção de considerar esta constatação como uma revelação da criatividade do homem e portanto de seu poder O homem é revelado como o animal que é capaz de criar horizontes Pela primeira vez é capaz de criar seu horizonte de modo consciente não seria um horizonte criado conscientemente o horizonte mais glorioso jamais criado pelo homem Nietzsche apenas sugere a possibilidade de tal solução em Dos usos e desvantagens da História e as questões suscitadas por tais sugestões não são resolvidas nesse ensaio Se os horizontes são criações dos homens não seria possível em princípio haver tantos hori zontes diferentes quanto há homens Se os horizontes são projetos livres como escolher entre diferentes horizontes Quando emergem essas perguntas é preciso desviarse de Dos usos e desvantagens da História para o conjunto principal da obra de Nietzsche mas com uma apreciação da importância que tem para ele o processo histórico Em Humano demasiado humano Nietzsche critica a filosofia tradicional por sua feita de sentido histó rico A importância do processo histórico é tal que quase se pode dizer que a própria fi losofia política de Nietzsche pode ser expressa em termos de uma análise histórica Niet zsche tenta criar o horizonte futuro do homem Sua criação não pode naturalmente ser derivada ou meramente derivarse da história pois é um projeto livre Porém a vi são historicista dos horizontes como horizontes por exemplo é necessariamente uma visão póscristã como se verá E o próprio projeto de Nietzsche tem em alguns aspectos a intenção de ser uma síntese das melhores projeções para o íuturo que ocorreram na his tória Com estas considerações em mente podese recorrer à interpretação de Nietzsche da história do homem a qual levou os homens à crise total de sua época O ápice da história do homem foi atingido perto do início da história registrada a mais elevada cultura até então foi a dos gregos Para Nietzsche a cultura é a perfei ção da natureza e cada cultura é caracterizada por uma unidade de estilo que permeia todas as suas atividades A grande cultura é aquela que está repleta de grandes homens criativos e que eleva os homens Em Jenseits von Gut und Bõse Para além de bem e mal escreve Nietzsche Até agora cada valorização do típo homem foi obra de uma socãedade aristocrátíca e será assim repetidamente uma sociedade que acredita na longa escalada de uma clas sificação hierárquica e que necessita da escravidão em um sentido ou outro Sem esse pathos da distância que nasce da diferença arraigada entre os estratos quando a casta dominante constantemente olha de longe e menospreza súditos e instrumentos e com a mesma constância pratica a obediência e o comando o sobrepujar e o manterse afastada esse outro pathos mais misterioso não poderia tampouco ter vicejado o desejo por um constante novo alargamento das distâncias dentro da própria alma o desenvolvimento 746 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 9 Levy op cit Aphorism 2 p 1415 de estados cada vez mais elevados mais raros mais remotos mais abratntes de maior alcance em suma simplesmente o aperfeiçoamento do tipo o homem O pathos da distância existia na sociedade grega que era uma sociedade de se nhores e escravos Nietzsche também observa com aprovação que os gregos transfor maram em virtudes os combates e as competições até mesmo os poetas competiam uns com os outros Se a Grécia é o ápice da história registrada a tnédia grega é o ápice desse ápice A experiência íundamental do homem é abismai o homem é confrontado com um abis mo de íálta de sentido em um mundo que é um caos e não um cosmos o homem é um animal que sofre O otimismo é uma reação superficial para a condição do homem um autoengano O pessimismo pode ser uma mera fraqueza da vontade mas pode ser um corajoso enfientamento do abismo A trédia grega constitui um pessimismo de for ça uma afirmação e com ela uma transfiguração do sofrimento do homem A cultura grega que Nietzsche admira é essencialmente présocrática assim como os filósofos gros que elogia são principalmente présocráticos em particular He ráclito Sócrates é para Nietzsche o destruidor da tnédia grega Uma cultura sau dável é aquela em que são maximizados os instintos criativos dos homens Sócrates é o inimigo da vida instintiva um homem teórico que é crítico e não criativo que curiosamente iguala tanto a felicidade e a virtude à razão que debilita a nobreza e as virtudes nobres ao sujeitálas a um implacável inquérito dialético ao qual não podem resistir que impóe sua vontade à posteridade com tanto sucesso que desde Sócrates o racionalismo é o destino do homem ocidental Sócrates e Platão são uma previsão de uma calamidade ainda maior para a huma nidade o surgimento do cristianismo Nietzsche rotula o cristianismo como o plato nismo para o povo O triunfo do cristianismo sobre Roma é o triunfo da moral do escravo sobre a moral do senhor Para Nietzsche as moralidades são criações mas seus primeiros criadores eram os indivíduos e não os rebanhos A moral do rebanho é a primeira forma de moral da qual derivam tanto a moral do escravo como a moral do senhor No entanto sem pre houve rebanhos fortes e fracos Rebanhos fortes impõem sua vontade a rebanhos fracos e os escravizam A moral do senhor é uma afirmação de fi3rça pelos mais fortes uma celebração da vida vigorosa e ativa por aqueles que possuem vigor e capacidade de ação Os fortes não reprimem seus instintos ao contrário glorificamnos Os senhores são cruéis mas são inocentemente cruéis Identificam o bom com os poderosos e chamam de maus os fracos a quem descartam com desprezo Por outro lado a moral dos escravos é a rejeição da força pelos fracos Enquanto os senhores distinguem entre bom e ruim os escravos distinguem entre o bem e o mal F r ie d r ic h N ie t z s c h e 747 10 Beyond Good and Evü Aphorism 257 Translated with Commentary by Walter Kaufrnann New Yoik Vintage Books 1966 11 Ibid Prefece p 3 o que o mestre afirma como bom o escravo rejeita como o mal A moral do escravo é negativa em essência sendo uma reação e uma vingança contra os governantes e seus valores Sua preocupação principal é com o mal O bem tornase um rótulo ligado a vários tipos de fraqueza tal como humildade e passividade As águias não podem dei xar de ser águias e os cordeiros não podem deixar de ser cordeiros mas os cordeiros fingem e devem fingir que sua íraqueza é voluntária assim como a força das uias é voluntária e pode portanto ser condenada Nietzsche tende a utilizar alternadamente os termos moral do escravo e moral sacerdotal A moral do escravo é formulada por padres que são membros do rebanho governante mas membros fracos e decadentes Possuem uma causa em comum com o rebanho os doentes ministram para os doentes Desenvolvem ideais ascéticos que sáo a vingança que a vida fraca tenta realizar contra a vida mas esta tentativa de vingança serve à vida na medida em que impede que o rebanho destrua a si mesmo O povo sacerdotal são os judeus que são os inventores do cristianismo Através do Cristianis mo conspiram para efetuar uma transvaloração de todos os valores E têm sucesso a humildade tornase uma virtude e o orgulho um vício é revolucionada a moral do senhor O cristianismo torna a vida mansa por drenar seu vigor Negase a ação livre dos instintos que são forçados a se voltarem contra si mesmos O pior efeito desta transvaloração de todos os valores é preservar o que Nietzsche denomina um excesso de formas de vida defeituosas doentes em degeneração na economia da vida essa preservação ocorre necessariamente à custa de formas supe riores de vida Fez do homem um sublime aborto que é demasiado manso para seu próprio bem Nietzsche concebia seu próprio trabalho como uma tentativa de transvaloração de todos os valores mas seria um erro supor que tentou apenas restaurar um modelo de moral précristâo Seria impossível essa restauração devido às mudanças que o cris tianismo produziu no homem ocidental e seria indesejável porque nem todas as alte raçóes foram para o pior Nietzsche pensa nesse aborto como sublime de uma forma muito grave O cristianismo aproíimdou o homem A moral do escravo espiritualiza o homem ao sublimar seus instintos até que haja uma possibilidade de sua expressão por meio de formas cada vez mais delicadas A espiritualização do homem produziu entre outras coisas a ciência que ampliou o âmbito do futuro possível do homem Além disso o cristianismo universalizou o homem e tornou obsoleta qualquer restauração de metas limitadas para povos ou raças O cristianismo superou os gregos A transva loraçáo de valores de Nietzsche substituirá o falso universalismo do cristianismo por um verdadeiro objetivo universal para a humanidade transcenderá o cristianismo ao contrário de apenas destruílo Quando Nietzsche compara sua própria época com a grande era dos gregos ou mesmo com as eras em que o cristianismo produziu no homem europeu uma tensão 748 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 12 Aphorism 62 p 7476 mífica do espírito conclui que é íàlha em todos os aspectos decisivos Quase náo há indivíduos verdadeiros no século XDQ até os mesmo os raros eus verdadeiros que ocor rem em um período tão insignificante são atrofiados pelo tempo O governo de formas inferiores de vida à custa de formas superiores é para Nietzsche o significado de demo cracia A democracia é a mediocridade Não há diferença significativa entre a democracia e o socialismo Tanto a democracia como o socialismo pram o lalitarismo e ambos são os verdadeiros herdeiros do cristianismo e de sua moral do escravo O cristianismo abre caminho para o igualitarismo quando aíirma que todos os homens são iguais em aspeaos decisivos possuem em Deus um pai comum e são todos pecadores Nietzsche acredita que todos os governos de seus dias são inerentemente demo cráticos Até mesmo aqueles Estados que se consideram monarquias orientamse pelos muitos e atendem a eles Todos os Estados modernos cedem à opinião pública Nietz sche iguala a opinião pública à preguiça privada O governo da opinião pública é o governo da indolência e da preguiça gerando conformidade As sociedades modernas são todas sociedades de massa que não apenas moldam todos os homens da mesma forma mas dãolhes também uma forma muito degradada O jornal matinal substitui a oração da manhã A época se orgulha de seu pacifismo a verdade é que os homens já não acreditam em qualquer coisa com força suficiente para lutar por ela Nietzsche condena tanto o Estado quanto a sociedade modernos O Estado é um ídolo novo e poderoso quando Nietzsche está preocupado com a destruição de ídolos O Estado é apenas uma superestrutura com base nas qualidades únicas de um povo mas que distorce a singularidade o Estado prega doutrinas universais como os direitos do homem Seu universalismo superficial destrói a criatividade dos indivídu os sua máquina impessoal despersonaliza o homem Uma falsa qualidade permeia a sociedade O sucesso no mercado é um sinal de inutilidade É preciso ser ator o oposto de um eu genuíno para ter sucesso A educação moderna já não modela verdadeiros indivíduos mas produz especia listas A corrupção da educação necessariamente acarreta uma corrupção do nível geral do gosto Sintomática disso é a degradação do estilo literário As pessoas deixam de falar bem e escrever bem pois a excelência como tal tende a ser rejeitada Também a filosofia tem sido afetada pela crise total da época de Nietzsche É to lerada apenas por causa de sua impotência Já não é soberana sobre outras disciplinas Está em estado tão ruim que quase merece o descrédito que lhe atribuem Nietzsche acha deficientes todas as variedades de filosofia que examina Para começar todas ten dem a ser dogmáticas As filosofias transformamse em sistemas filosóficos a vontade para um sistema é a falta de integridade Certas variedades de filosofia continuarão a ser instrutivas Podese conhecer com os cínicos a parte sórdida por baixo dos valo res e apreciar as qualidades animais no homem podese aprender com os céticos uma espécie de distanciamento necessário e com os pessimistas o papel necessariamente grande do sofiimento e da dor na vida Em si mesmas no entanto essas filosofias não oferecem nenhuma solução para a crise da época sendo elas mesmas os sintomas da crise Tampouco a ciência oferece uma solução A ciência possui a rara virtude da F r ie d r ic h N ie t z s c h e 749 integridade mas está envolvida na crise é a última forma assumida pelos ideais ascéti cos da moral do escravo A ciência se volta contra a vida no interesse da verdade Sua própria veracidade no entanto a desarma A ciência passou a desacreditar a si mesma ao revelar suas próprias limitações Nietzsche tem um pequeno dito que expressa o que está na raiz da crise total do seu tempo uma crise que se reflete no pensamento e na ação nos indivíduos e nas instituições O dito é Deus está morto Com a afirmação de Nietzsche de que Deus está morto chegase ao cerne de seu empreendimento filosófico Em sua obra mais importante Afo sprach Zarathustra As sim falou Zaratustra Zaratustra que em certa medida é a autoidealização de Niet zsche declara a morte de Deus já no princípio da obra Não prova de início que Deus está morto mas por assim dizer toma como uma questão de honra pessoal que Deus esteja morto A crença em Deus tornouse uma indecência para todos os ho mens exceto aqueles que não tiveram oportunidade de saber da morte de Deus Mais tarde serão articulados o significado da afirmação sua base e suas conseqüências Nietzsche não é obviamente o inventor do ateísmo mas seu ateísmo é no entan to único e significativo por diversos motivos Primeiro Nietzsche náo fez qualquer ten tativa de esconder seu ateísmo mas o proclama repetidas vezes com toda a eloqüência de que dispõe muitos ateus anteriores tendiam a ser mais reticentes quanto a seu ateísmo Segundo no século XIX o ateísmo era território particular da esquerda política Podese dizer que Nietzsche que abominava a política da esquerda e que idealizava uma nova aristocracia inventou o ateísmo da direita política Por tradição a aristocracia é associa da à preservação da religião os aristocratas de Nietzsche ao contrário devem ser ateus sinceros Terceiro o ateísmo de Nietzsche é um ateísmo histórico Afirmar que Deus está morto implica que Deus um dia existiu Deus existiu enquanto foi possível crer em Deus Deus está morto porque a crença em Deus tornouse impossível Uma vez que Nietzsche está preocupado com uma análise de sua época em par ticular seus ensinamentos sobre a morte de Deus referemse principalmente mas náo com exclusividade à morte do Deus cristão Os discursos na Parte I de Assim falou Zaratustra preocupamse em grande medida com o cristianismo e seus efeitos Faz parte da intenção de todo o livro ser uma imitação e paródia da Bíblia Zaratustra quer criar um verdadeiro objetivo universal para a humanidade e deve portanto superar as falsas metas universais que já existem O cristianismo e o budismo são falsas metas uni versais no entanto uma vez que somente o cristianismo é uma força significativa na Europa Nietzsche dedica mais atenção a ele A morte do Deus cristão deixa o homem europeu sem um objetivo universal mas ao mesmo tempo tão universalizado pela influência do cristianismo que está além de qualquer objetivo nacional ou étnico 7 5 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 13 Ver seções 2 e 3 de Zarathustras Prologue Thus Spoke Zarathustra in Ed Walter Kaufmann The PortableNietzsche NewYork 1954 p 122126 Copyright 1954 da Vikii Press e reimpresso com sua permissão A morte de Deus é o último evento na história do cristianismo mas com a morte do Deus cristão morrem também todos os outros deuses Com a revelação do horizonte mais universal do homem como um mero horizonte tornase impossível toda a crença em verdades e seres eternos No final da Parte I de Assim falou Zaratustra este anuncia a morte de todos os deuses A morte de Deus é também a morte das ideias platônicas e da metafísica As filosofias e religiões tradicionais compartilham uma crença em um mundo verdadeiro que distinguem do mundo conhecido pelo homem através de seus sentidos o mundo aparente Tanto a filosofia como a religião têmse voltado para um outro mundo A impossibilidade da crença em Deus é tam bém a impossibilidade da crença em um mundo verdadeiro mas a abolição do mun do verdadeiro é também a supressão do mundo aparente o mundo conhecido pelo homem através de seus sentidos e sentimentos e através de todo o seu ser é Eora o único mundo e não o mundo aparente Ou podese dizer que com a morte de Deus o mundo aparente se torna o mundo verdadeiro e real A morte de Deus ocorre quando os homens percebem que Deus é uma criação deles mesmos Os descendentes dos homens que criaram Deus homens que foram radicalmente alterados pela crença em Deus agora assassinam Deus O Deus cristão é a âncora da moral cristã A moral cristã ao dar ao homem consciência de sua finqueza também fez com que ele se esforçasse para superar essa fraqueza O cristianismo apro fundou e elevou os poderes espirituais do homem A moral cristã enfatiza o desejo de veracidade Não só fez o homem mais dócil como também o torna um animal mais sutil e inteligente A devoção a Deus evolui para uma devoção à verdade que pode ser denominada ciência A consciência rigorosa e delicada que a crença no Deus cristão engendra voltase finalmente contra Deus O Deus cristão é morto por probidade intelectual que é a completa realização da moralidade cristã Porém com a morte do Deus cristão pelas mãos da moral cristã a moral cristã tomase infundada A moral cristã não pode sobreviver à morte de Deus Tornase agora problemática a devoção à verdade ou a devoção a qualquer coisa todas as visóes e aspirações são desmascaradas como arbitrárias e insustentáveis A morte de Deus é a morte não só da moral cristã como também de todas as morais tradicionais Em Assim falou Zaratustra o cristianismo é considerado como uma metamorfose do espírito do homem que pela aceitação do cristianismo tornase um camelo Assu me obrigações morais que dizem ao espírito Tu deves O homem assume deveres como a mortificação de seu orgulho a depreciação de sua própria sabedoria a devoção a causas perdidas e a busca da verdade O camelo veú pEua o deserto mas lá ocorre uma segunda metamorfose o espírito do homem se torna um leão Rebelase contra seus deveres Mata o dragão da obrigação em vez de ouvir o tu deves do dragão diz agora Eu vou Mas enquanto o leão pode matar o dragão dos valores que precedem a vontade do homem não pode criar novos valores é abEmdonado no deserto F w e d w c h N ie t z s c h e 751 14 Ibid p 191 15 Ib id p lò 7 m Com a mone de Deus o homem encontrase em um deserto que vem a ser a crise total do tempo de Nietzsche Tratase obviamente de mais do que uma crise na história das ideias A moral cristã pode continuar a ser observada por algum tempo talvez por hábito mas tal situação não pode perdurar Os homens são cada vez menos capazes de crer seja no que for Já não há um horizonte para dar sentido à vida a crise é total Para Nietzsche a política da esquerda é um sintoma da crise total e uma exa cerbação dela portanto por óbvio não é uma solução E o conservadorismo ou a política da direita Nietzsche rejeita a possibilidade de uma solução conservadora por diversos motivos criticando tanto a forma específica que o conservadorismo alemão assumiu com Bismarck como os pressupostos gerais do conservadorismo Em primeiro lugar o conservadorismo do século XIX é forçado a fàzer avassala doras concessões para o movimento democrático dos tempos modernos Bismarck tenta preservar a monarquia mas ao mesmo tempo é forçado a introdurir o sufrágio univer sal e uma extensa lislação previdenciária e portanto a promover o movimento demo crático O rei já nâo é considerado o governante mas apenas o primeiro servidor Em segundo o conservadorismo abraça os ideais do nacionalismo O naciona lismo é um fenômeno inerentemente democrático como demonstram seus desdobra mentos após a Revolução Francesa Constitui também um anacronismo As próprias concessões que todos os Estados europeus devem fezer à democracia e à crescente semelhança entre todas as culturas europeias mostram que já há uma unidade europeia oculta que não pode ser negada Nietzsche considera a si mesmo como um bom euro peu Os poucos verdadeiros indivíduos do século XIX como Napoleão e Goethe náo foram eventos nacionais mas sim europeus Não mais podem ser tolerados os confli tos superficiais entre os EstadosNações europeus até por causa da ameaça à Europa pelo gigante adormecido da Rússia Em terceiro o conservadorismo baseiase na velha nobreza que está decrépita O que é necessário é uma nova nobreza e uma nova ideia de nobreza Finalmente o conservadorismo está aliado ao cristianismo mas como foi visto Nietzsche defende um ateísmo sincero Podese resumir a visão de conservadorismo de Nietzsche pela citação de um afo rismo de uma de suas últimas obras GôtzenDãmmerung O crepúsculo dos ídolos Sussurrado para os conservadores O que náo se sabia antes o que se sabe ou o que se pode saber boje uma reviravolta um retomo simplesmente náo é possível em qualquer sentido ou grau Hoje ainda bá partidos cujo sonho é que todas as coisas andem para trás como os caranguejos Mas ninguém tem libetdade de ser um caranguejo Nada aju da é preciso avançar passo a passo para a decadência que é a minha definição do pro gresso moderno Podese fiear esse desenvolvimento e assim conter a degeneração recolhêla e tomála mais veemente e brusca não se pode fàzer mais que isso 752 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a PoiincA L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 16 The Ponahle Nietzsche p 546 547 Nietzsche rejeita tanto a política da direita quanto a da esquerda como sendo politicem opondo a elas seu conceito um tanto vo da grande política a política do íúturo A transvaloração de todos os valores é também a transvaloraçáo de toda a política Nietzsche equipara a moral à política É preciso resolver a crise total da época mas não há absolutamente nenhuma necessidade de que seja resolvida em benefício do homem Com a morte de Deus o homem está exposto ao maior dos perigos o homem pode degradarse completamen te Tanto a crença em Deus quanto a luta contra Deus aperfeiçoaram o homem com a morte de Deus o homem não tem mais oportunidade de amar ou odiar a Deus A morte de Deus pode resultar no abandono pelo homem de todos os esforços todas as aspirações e todos os ideais Tal homem motivado apenas pelo desejo de confortável autopreservação é chamado por Nietzsche de o último homem O último homem é o homem mais desprezível porque não é mais capaz de desprezar a si mesmo Não quer governar nem ser governado ficar rico ou pobre quer que todos façam o mesmo e sejam iguais Nós inventamos a felicidade dizem os últimos homens e piscam Quando Zaratustra descreve o último homem a fim de advertir os homens seus ou vintes ficam íáscinados pela imagem que traça o homem contemporâneo ainda não é o último homem mas o seu ideal é o último homem O niilismo é um protesto contra a chegada do último homem A fórmula para o niilismo é nada é verdadeiro tudo é permitido Uma vez que todas as aspirações e ideais demonstraram ser sem sentido os homens não podem dedicarse a uma causa nâo podem dispor de seu íúturo segundo sua vontade Os niilistas escolhem o nada ao invés de desistir da vontade Os ideais ascéticos do cristianismo sendo uma negação da vida podem ser vistos como uma forma inconsciente de niilismo Além disso o niilismo é uma conseqüência necessária da ciência moderna que destrói a validade dos valores Em certos momentos Nietzsche pensa no niilismo como o íúturo inevitável da Europa em outros chama a si mesmo de niilista O criador de novos valores é um destruidor de valores antigos No entanto a morte de Deus não é apenas o momento de maior perigo para o homem mas de sua maior possibilidade porque torna possível a criação suprema dos valores do íúturo A morte de Deus liberta o homem de Deus Horizontes anteriores mantiveram o homem irilhoado impediramno de estar em casa neste mundo que é o único mundo O homem pode iora ser leal à Terra tal como 2feratustra aconselha que seja O coração da Terra é de ouro não há inferno A morte de Deus é a libertação do homem da culpa a inocência produtiva da besta loura o melhor espécime de ho mem préhistórico pode ser recuperada em um nível mais elevado A morte de Deus é a descoberta da criatividade do homem Sabendo que os ho rizontes são criações suas está também mais consciente de seu próprio poder se nada é verdadeiro tudo é possível O homem se tornou homem por inconscientemente projetar horizontes com a projeção consciente de horizontes o homem pode tornar se mais do que homem F r ie d r ic h N ie t z s c h e 753 17 Thus Spoke Zamthustra Prologue sec 5 in The Portable Nietzsche p 128131 Neste ponto tornase evidente que Nietzsche precisa de uma doutrina filosófica para explicar o homem e a situaçáo do homem Doutrinas anteriores são desacredi tadas com a dissolução de horizontes prévios A nova doutrina precisa explicar como o homem veio a ser homem sem recorrer a princípios teleológicos a nova doutrina deve harmonizarse com o conhecimento da soberania do viraser da origem animal do homem e da feita de sentido inerente a todas as certezas Nietzsche chama a esta doutrina a doutrina da vontade de poder Nietzsche afirma que a vontade de poder é a característica básica de toda a re alidade A doutrina da vontade de poder é uma doutrina filosófica totalmente nova Em Assim falou Zaratustra e em Para além do bem e mal a apresentação da doutrina é acoplada a uma rejeição de todas as doutrinas filosóficas anteriores que compartilham a crença em uma verdade objetiva essa crença é segundo Nietzsche mero preconcei to Os filósofos felam de uma vontade de verdade e assumem que há uma verdade que pode ser descoberta pelo pensamento Na realidade de acordo com Nietzsche incons cientemente os filósofos procuram apenas imprimir sua interpretação sobre o mundo O pensamento ou a razão dos filósofos é inseparável da personalidade do filósofo A vontade de verdade é apenas uma forma de algo mais básico uma vontade de vencer e dominar tudo a vontade de poder Em Assim falou Zaratustra no discurso de Zaratustra sobre a autossuperaçáo é apresentada a mais completa versão da doutrina da vontade de poder Zaratustra observa as coisas vivas e descobre que onde quer que haja vida existe obediência A obediência porémé sempre obediência a alguma coisa é relativa a um comando Este comando náo deve ser procurado fora da vida A compulsão de superar comandar dominar não é uma mera característica da vida mas o cerne da vida A vida é vontade de poder Uma coisa viva é aquela que tenta conquistar busca acima de tudo exercer sua força No entanto não tenu conquistar e exercer sua força com qualquer perspectiva de um determinado fím Nietzsche nega que o instinto de autopreservação seja o instinto cardeal de um ser orgânico A autopreservação é apenas resultado da vontade de poder não a finalidade da vida o instinto de autopreservação é um princípio teleológico supérfluo A vontade de poder não é peculiar aos seres humanos embou explique como o homem tomouse homem a vida consiste em conquisu e alguns animais têm de con quistar sua bestialidade assim como alguns homens podem conquistar sua humanidade A feu predadou na selva e a pinmu de uma figura pelo artista são as duas formas da vontade de poder Finalmente a doutrina da vontade de poder é uma doutrina cosmoló gica que explica o caráter de toda a realidade Não há coisas inanimadas a doutrina não só reíiita todas as filosofias idealistas mas também todas as filosofias materialistas No entanto a principal ênfese de Nietzsche mantémse na vontade de poder do homem O homem é o animal que cria horizontes Para Nietzsche o homem não tem 754 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 18 Ibid p 225228 natureza ou função determinadas o homem é o animal que ainda não foi definido fest gestellí O homem é uma corda sobre um abismo um interlúdio entre o que é menos do que o homem e o que é mais do que homem A vontade de poder explica toda a atividade do homem de seus mais baixos anseios até suas maiores criações A filosofia é a forma mais elevada e mais espiritualizada da vontade de poder A razão não pode mais ser entendida como sendo parte da essência do homem como ocorre na tradição O homem não é um ser pensante em sua essência A razão e a consciência são apenas fenômenos superficiais O ego do homem é criado é parte do organismo total que é a fonte da razão e que a razão não pode compreender As coisas mais elevadas não são acessíveis à razão nem transmissíveis pela razão Sob o ego está o Eu a base do ego a sede da vontade de poder a fonte de todos os significados possí veis O conceito de Eu de Nietzsche tem alguma relação com o conceito fieudiano de id e Nietzsche certa vez chamou o Eu de isso Mas o Eu de Nietzsche em contrapo sição ao id de Freud deve ser radical e misterioso e é ele mesmo uma criação Zaratustra chama o Eu de corpo O dualismo tradicional entre mente e matéria corpo e alma é portanto abolido o Eu é também chamado de alma O resultado não é apenas uma noção menos elevada do que aquela que se atribuía anteriormente à figura da alma mas uma noção mais espiritualizada das coisas que se pensava anteriormente per tencerem à figura do corpo por exemplo Zaratustra teforese ao sangue como espírito A doutrina da vontade de poder conduz necessariamente a uma revisão das no ções tradicionais de virtude Para Nietzsche as virtudes são paixões sublimadas e trans figuradas paixões dedicadas Nietzsche compara as virtudes tradicionais com o sono porque se acreditava que conduzissem à felicidade entendida como um estado de paz e descanso e porque tradicionalmente a mais elevada virtude é uma sabedoria conce bida como a contemplação do eterno e incriado Para Nietzsche a virtude é a criativi dade a sabedoria é criação autoconsciente Com a ênfase de Nietzsche sobre o Eu vem uma maior ênfase na autorrealização e em virtudes como sinceridade e integridade Posto que no entanto cada ser é único e misterioso não pode haver para Nietzsche nenhuma doutrina abrangente das virtudes a virtude de um homem pode ser o vício de outro Também se pode afirmar que Nietzsche tenta reduzir as noções de virtude e vício a noções de doença e saúde do ser que é o corpo e estas noções por sua vez a noções de força e fraqueza Nietzsche está ciente de que há dificuldades na doutrina da vontade de poder Seria a doutrina da vontade de poder apenas a expressão da vontade de poder de Nietz sche ou uma doutrina objetivamente verdadeira Nietzsche não pode afirmar pura e simplesmente que é verdadeira nem que não é de modo algum mais plausível do que a opinião do homem comum sobre o caráter da realidade Nietzsche enfrenta esse problema de várias maneiras Anteriormente a filosofia entendia a si mesma como simplesmente verdadeira Nietzsche caracteriza a filosofia tradicional como filosofia dogmática Desta forma se esforça para apresentar a sua própria filosofia de modo diverso A doutrina da vontade de poder difere das doutrinas anteriores não só no conteúdo mas no modo Nietzsche acredita que não pode haver conhecimento ob F r ie d r ic h N ie t z s c h e 755 jetivo da realidade mas apenas perspectivas da realidade Algumas vezes portanto náo só admite mas afirma que a doutrina da vontade de poder é uma interpretação perspectivista da realidade caracterizandoa como uma hipótese a ser testada Con cebe sua própria filosofia e a filosofia do futuro para a qual sua própria filosofia é um prelúdio como uma experiência uma tentativa que também é uma tentação Mesmo que só possa haver perspectivas da realidade pode haver perspectivas mais e menos abrangentes A perspectiva de Nietzsche é a mais elevada já atingida porque incorpora as constataçóes de todas as perspectivas anteriores e porque é a primeira consciente da lei da perspectividade Igualmente a doutrina de Nietzsche da vontade de poder representa a primeira autoconsciência da vontade de poder a filosofia de Nietzsche é a primeira interpretação criativa da criatividade Nietzsche chegou a um auge onde náo há diferença entre a criação e a contemplação No entanto isso ainda significa que foi atingido algum tipo de finalidade Nietzsche é ao mesmo tempo compelido a afirmar e a negar a verdade objetiva da doutrina da vontade de poder a doutrina da vontade de poder deve de alguma forma ser tanto uma compreensão da verdade das coisas como a criação do Eu único criado por Nietzsche Os argumentos para a vontade de poder em Para além do bem e mal também são apenas os pensamentos mais íntimos de Nietzsche Assim fabu Zaratustra como indica seu subtítulo Ein Buch jiirA lk und Keinen Um livro para todos e para ninguém é ao mesmo tempo uma nova Bíblia para toda a humanidade e a expressão mais pessoal de Nietzsche Nietzsche só pode dar a outros indicaçóes do que quer dizer Na melhor das hipóteses só pode exigir que outros se tornem Eus verdadeiros criativos Zaratustra não quer discípulos Os ensinamentos de Nietzsche são um apelo criativo à criatividade e só podem ser com preendidos por homens criativos Há uma segunda dificuldade Quais sáo os limites da vontade de poder Pode tudo ser superado Se tudo pode ser superado então o homem vai finalmente superar até mesmo as condiçóes de desigualdade que segundo Nietzsche são indispensáveis para a elevação do homem Finalmente os homens irão de fato se tornar epigoni nada mais haverá para superar Nietzsche acredita em uma sociedade hierarquizada na su perioridade dos homens sobre as mulheres e na necessidade de sofrimento Porém se a vontade de poder é tudo e se tudo é em princípio possível por que náo devem e por que não serão abolidas as diferenças entre os sexos ou as diferenças hierárquicas entre os homens A filosofia política tradicional não precisa enfrentar esses problemas por que se orienta pela natureza Para Nietzsche o homem não tem natureza determinada Pode haver natureza no sentido de mundo exterior mas esta natureza não tem valor e é composta de dados sem sentido Não se pode viver de acordo com a natureza porque a natureza não dita nenhum curso de ação Para Nietzsche a natureza é um problema mas ele não pode prescindir de algum conceito de natureza e de um princípio natural de governar e ser governado que assegure a hierarquia A mais grave questão relativa aos limites da vontade de poder diz respeito ao passado Em princípio tudo pode e deve ser realizado por efeito da vontade mas tem a vontade efeito sobre o passado O próprio projeto de Nietzsche sobre o futuro 756 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y baseiase mesmo que apenas de forma negativa no passado Seu projeto é a criação do Eu mas o Eu é também uma criação do passado Não frustram a vontade o passar do tempo e o passado Nietzscbe concebe as filosofias anteriores como reação da von tade a sua própria impotência diante do passar do tempo a vontade de poder se vinga contra o tempo através da criação de seres eternos fictícios Porém sua própria filosofia não é negativa é ao contrário uma libertação do espírito de vingança Pretende ser uma afirmação total até mesmo do passado A vontade só afirma o passado se for demonstrado que este é também o íuturo Se bouvesse um eterno retorno de todas as coisas entáo o passado também seria o íuturo A doutrina de Nietzscbe sobre o eterno retorno afirma que todas as coisas já aconteceram um número infinito de vezes antes e vão acontecer um número infinito de vezes de novo exatamente como antes A doutri na do eterno retorno é uma doutrina moral bem como cosmológica Se bá um eterno retomo o bomem terá consciência da gravidade terrível de todas as suas ações uma vez que se repetirão um número infinito de vezes Além disso ao impor a vontade ao eterno retorno de todas as coisas o homem impõe sua vontade e afirma um futuro que se tornará seu passado o homem pode por assim dizer tomarse a causa de si mesmo Finalmente o retorno de todas as coisas garante a existência de coisas inferiores e portanto de coisas que não podem ser superadas pela vontade de poder Ao impor sua vontade sobre o eterno retorno a vontade atinge o seu auge supera a si mesma mas sobrevive na afirmação total de todas as coisas Através da afirmação total de todas as coisas o homem pode deixar de ser homem e tomarse superhomem O superhomem de Nietzsche é o projeto do futuro do homem Pretende ser um cumprimento e uma transcendência dos mais elevados ideais do homem jamais concebidos anteriormente O homem é em parte poeta em parte filósofo e em parte santo É poeta porque é criativo mas é mais do que os poetas de hoje a quem Nietz sche critica por terem mentido falsificam o dado sem sentido e por não criar novos valores mas ao contrário por agirem como servos da moral tradicional O super homem criará novos valores e neste aspecto se assemelhará ao filósofo tradicional mas suas criações serão criações autoconscientes Finalmente o superhomem será semelhante ao santo porque sua alma conterá toda a profundidade que o cristianismo deu ao homem O superhomem será César com a alma de Cristo Em última análise o cristianismo que Nietzsche maldiz desempenha um papel maior no nobre futuro do homem que a Antiguidade clássica que elogia Zaratustra é o homem mais piedoso que jamais acreditou em Deus O superhomem deve ser criado pela vontade Não há necessidade de que venha a emergir é apenas uma possibilidade de íúturo tal como o último homem A crise total significa apenas que o homem não pode mais ser homem deve elevarse até o superhomem ou afúndar até o subhumano O superhomem é o projeto livre de Nietzsche sobre o íúturo do homem mas suas raízes nos ideais do passado do homem que transcende salvam o projeto de ser arbitrário O superhomem recuperará a inocência da besta loura em um nível infi nitamente superior póscristão O superhomem representa a terceira metamorfose F r ie d r ic h N ie t z s c h e 757 do espírito O leão niilista que só pode dizer eu tenho vontade e que destrói valores antigos sem ser capaz de criar novos é substituído pela criança que diz eu sou que afirma tudo e cuja criatividade se assemelha à inocência de uma criança brincando O superhomem como tipo náo pode ser totalmente descrito porque será aci ma de tudo um eu verdadeiro Cada superhomem será único Náo é possível descre ver os valores pelos quais viverá porque cada superhomem será sua própria lei em si mesmo Podese no entanto afirmar que será um homem que sofre muito e que cria muito e que será um homem de infinito orgulho e infinita delicadeza Por exemplo o superhomem náo voltará a sua fàce a seus inimigos náo por ser brutal mas porque não quer envergonhálos No entanto as formas exatas que assumirão sua delicadeza e seu orgulho são necessariamente indeterminadas Desta forma o conceito de superhomem de Nietzsche é fundamentalmente vago e ambíguo Nem sequer é certo se o superhomem será um governante Nietzsche fala do governo planetário de uma nova nobreza e o superhomem é a nova ideia de nobreza de Nietzsche Em outros momentos fala da coexistência dos últimos homens e dos superhomens os últimos homens viverão em comunidades que se assemelham a formigueiros e os superhomens vagarão pela terra mas os superhomens não gover narão os últimos homens e tentarão evitar ter qualquer contato com eles Tampouco pode Nietzsche recomendar uma forma de ação política que tornará realidade a possibilidade do superhomem Há uma forte tendência de individualismo radical em Nietzsche que aconselha os homens a se tornarem verdadeiros Eus Nietz sche aconselha os homens a buscarem a solidão a fugir da vida pública a rejeitar os costumes estabelecidos de conduta e pensamento Deste ponto de vista seria possível sustentar que o superhomem representa uma solução para a crise apolítica total da modernidade O apelo criativo de Nietzsche para a criatividade é responsável em parte pela interpretação predominante de Nietzsche que vê nele um mestre do ver dadeiro individualismo Tal interpretação porém não é capaz de dar conta das graves conseqüências políticas de uma proposta de solução apolítica Há uma faceta subja cente à defesa que fãz Nietzsche do individualismo radical pois ensina os homens a abdicarem de suas responsabilidades públicas a desprezarem a mesquinhez da política comezinha e a se abster dos direitos comuns do cidadão Há sempre o perigo até mesmo de seu ponto de vista de que os piores homens e não os melhores ouçam esse conselho Mesmo que apenas os melhores homens atendessem esse conselho haveria o perigo de que se afastassem da arena política os homens mais necessários nela A interpretação predominante de Nietzsche é obrigada também a ignorar outra vertente em seus escritos uma vertente que é abertamente política Nietzsche antevê uma era de política apocalíptica Além disso enxerga a necessidade de um apocalipse e lhe dá boasvindas Anseia por uma época de grandes guerras que serão uma parte relevante da grande política do futuro Fala com aprovação da necessidade de um pro grama de eugenia antecipa uma época em que regiões inteiras da Terra serão dedicadas a experimentos do homem com o homem e é a favor da extinção impiedosa de povos e raças inferiores Nietzsche entende que o niilismo está batendo às portas da Europa 7 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Em seu ódio pela degradação do homem que é o último homem aconselha que sejam abertas as portas ao niilismo Parte da importância da filosofia política de Nietzsche está no fiito de que é uma crítica implícita ao marxismo Nietzsche jamais se refere a Marx ou a Engels mas conhecia as várias formas de socialismo do século XIX Além disso Nietzsche como Marx foi influenciado por Hegel Podese resumir da seguinte forma a relação do marxismo com a filosofia política de Nietzsche o reino da liberdade marxista que será assegurado pela revolução é para Nietzsche o reino do último homem a total degra dação do homem Nietzsche pensava de modo mais filosófico mais profundo do que Marx sobre o que se seguiria à revolução Se por um lado Marx está indissoluvelmente Ugado ao crescimento do comunis mo é preciso admitir que Nietzsche está ligado ao suipmento do fiiscismo no século XX A relação do fescismo para com Nietzscbe é reminiscente da relação entre a Revo lução Francesa e Rousseau Infelizmente o problema da bgação de Nietzscbe com o fescismo não se resolve pela alegação como muitos intérpretes de Nietzsche tendem a íázer de que Nietzsche não era íáscista mas que era um crítíco violento do nacionalismo alemão e que teria detestado Hider Tais fiitos são sem dúvida verdadeiros e enunciá los evidencia o absurdo de uma identiíicação grosseira das doutrinas de Nietzscbe com os delírios de Hider Nietzsche era um homem que possma uma nobre visão do futuro do homem Sua própria delicadeza integridade e coragem reluzem em seus escritos Não possma porém o racismo grosseiro que viria a ser um aspecto importante do íáscismo e desprezava o antissemitismo político Contudo o fiito é que de várias maneiras Nietzs che influenciou o íáscismo O fescismo pode ter feito mau uso das palavras de Nietzsche mas suas palavras se prestam ao mau uso com excepcional íácüidade Nietzsche era um extremista e ninguém tinha talento maior que o seu para tornar atraente uma visão ex trema ao apresentála com grande verve e eloqüência Aquele que aconselha os homens a viverem no perigo deve ter em mente que homens perigosos como Mussolini prestarão atenção a seus conselhos aquele que ensina que uma guerra boa justifica qualquer causa deve ter em mente que esses ensinamentos apresentados em tom de brincadeira mas apenas meio de brincadeira possam ser mal utilizados Nietzsche elogia a crueldade e condena a misericórdia sem suficiente reflexão acerca da correção de aconselhar o ho mem a ser mais cruel do que é ou de qual efeito terá tal visão sobre os homens cruéis Nietzsche não era racista mas seus escritos estão repletos de reflexões sobre a raça e as possibilidades de um rejuvenescimento biológico do homem Nietzsche não apenas íá Iha em defender ou ensinar prudência e responsabilidade públicas difiuna a prudência e a responsabilidade públicas Finalmente devese repetir mais uma vez que Nietzsche é o inventor do ateísmo da direita política F r ie d r ic h N ie t z s c h e 7 5 9 19 NR Nietzsche nâo era antissemita E esta interpretação da destruição de povos e raças segue a edi ção dos fragmentos montados com o nome de Vontade de poder por Eiisabeth Foster Nietzsche Coli e Montinari demonstraram que esta obra como tal não existe Qualquer apresentação da íilosoíia política de Nietzsche deve não apenas reve lar suas proíundas ambigüidades mas deve apontar suas graves conseqüências Con tudo nem a revelação de sua ambigüidade nem uma demonstração de sua graves conseqüências constituem uma reíiitação Mesmo que se pudesse provar o equívoco de Nietzsche seria possível ainda refletir acerca do que o próprio Nietzsche escreveu sobre Schopenhauer os erros de grandes homens são veneráveis porque são mais íirutíferos que as verdades de pequenos homens L e it u r a s A Nietzsche Friedrich The Use and Abuse of HistoryHvffYorklhtlÁhaalAsxsEtess 1949 VomNut zen und Nachteil der Historie fir das Lehen Dos usos e desvantagens da História para a vida B Nietzsche Friedrich Beyond Good and Evil Translated with Commentaty by Walter Kaufinann New York Vintage Books 1966 Jenseits von Gut und Bõse Para além de bem e mal A Editora Forense Universitária edita os Fragmentos Póstumos de Nietzsche e o Curso de Heideer con srado a ele em dois volumes 7 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 0 Ibid p 3 0 18591952 J o h n D ewey John Dewey é objeto de amplo reconhecimento como o filósofo mais importante da democracia americana do século XX Podese condensar o princípio que o orien tou ao longo de uma carreira extremamente longa e influente como uma tentativa de promover a realização da democracia em todas as esferas da vida Para tanto Dewey buscou uma concepção universal de democracia uma formulação abrangente à qual contrapôs o entendimento de democracia de todos os filósofos anteriores A filosofia política precedente argumentava tendia a restringir sua atenção a questões estrita mente políticas tais como o Estado e as várias instituições do governo O objetivo fundamental de Dewey ao contrário era o desenvolvimento de uma filosofia demo crática que visasse não apenas abarcar as tradicionais questões políticas mas o que é mais importante fornecer uma compreensão democrática de ética educação lógica estética e dos muitos outros campos do pensamento e da atividade pelos quais Dewey se interessava Todos os aspectos de seu trabalho como um todo foram afetados de modo decisivo por sua meta política Sua filosofia é politicamente programática o que significa que se dirige ao que Dewey considera o progresso social como a verdadeira finalidade da íilosoíia e focaliza sua atenção na situação contemporânea mais que em quaisquer condições fixas supos tamente etemas Assim ao menos em parte o motivo pelo qual Dewey rejeita a íilosoíia política tradicional é sua crença de que esta propiciou pouco mais que um estéril exame da relação lógica de diversas ideias umas com as outras distante dos fàtos da atividade humana como se essas relações lógicas ou racionais fossem autossuíicientes e impor tantes em si Sua rejeição da íilosoíia política tradicional inspirase também em parte em sua convicção de que a aborchem e o conteúdo desta íilosoíia por serem regidos por condições históricas que não mais existem demandavam uma modernização 1 JohnDewey The Public and itsPmblem Chicago Gateway BooXs 1946p 9 Reimpressa com per missão de Holt Rinehart and Winston copyrifiit 1927 de John Dewey Esta obra foi ordinalmente publicada por Henry Holt and Company em 1927 A edição de 1946 à qual nos referimos exclusi vamente neste ensaio distinguese por uma longa nova introdução de considerável relevância No entanto Dewey recusouse sempre a se juntar àqueles positivistas que rejeita vam a filosofia por considerála meramente sem sentido ou que insistiam que o homem náo pode lidar de modo racional com questóes de valor mas apenas com questóes de íato Dewey procurou dar um novo significado à íilosoíia ao tornála relevante para a solução dos problemas mais prementes da vida Buscou esse objetivo por meio de uma total Reconstrução em Filosofia um objedvo expresso de modo mais nítído em sua conhecida obra que tem esse título Reconstruction in Philosophy e o reiterou de uma forma ou outra em pratícamente todos os seus escritos mais importantes Os ensina mentos políticodemocrátícos de Dewey principal foco deste ensaio devem ser enten didos como apenas um aspecto dessa reconstrução da íilosoíia em prol da democracia Portanto devemos nos preocupar de início com alguns dos objetivos fundamentais desta reconstrução 1 a tentativa de Dewey de tornar relevantes as investigações filosóficas para a solução dos problemas sociais contemporâneos 2 o desenvolvimento de seu método da intelncia como a principal ferramenta para a solução destes problemas e 3 o desenvolvimento de uma teoria política baseada em uma visão evolutiva do ho mem e da sociedade concepção esta que está na laiz do conceito de crescimento de Dewey como o maior bem humano e verdadeira medida da justiça social 1 O início da reconstrução da íilosoíia por Dewey é sua afirmação de que os autênticos problemas e assuntos da íilosoíia emergem das tensões e pressões da vida da comunidade em que surge uma determinada forma de filosofia Seguese daí na visão de Dewey que a tareia inicial do verdadeiro filósofo é a identificação dos pro blemas mais fundamentais e urgentes de sua sociedade Dewey esforçouse para fezer exatamente isso O tema de sua filosofia social é moldado de modo decisivo pela ob servação expressa com vigor em Human Nature and Conduct A natureza humana e a conduta de que uma classe da comunidade persiste em tentar assurar seu futuro à custa de outra classe Dewey concebe as divisões de classe como um sintoma de uma desordem mais profunda na sociedade o descompasso entre produção e consu mo que de modo sistemático conduz ao enfraquecimento de sólidas relações huma nas O ardor e o alcance da acusação de Dewey a este aspecto da sociedade moderna só podem ser transmitidos de modo adequado por suas próprias palavras quando escreve que a simples produção tem sido cuidada de modo grosseiro e intenso Acelerase de modo fienédco o íãzer as coisas e todos os dispositivos mecânicos são usados para avolumar a massa sem sentido Como 7 6 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y John Dewey Reconstruction in Philosophy New York New American Library 1950 p 8 Reim pressa com permissão de Beacon Press Copyright 1958 de Beacon Press Esta obra foi originalmente publicada por Henry Holt and Company em 1920 Uma edição ampliada foi publicada em 1948 por Beacon Press com uma importante nova introdução escrita por Dewey As referências neste capítulo são à edição da New American Library Mentor de 1950 John Dewey Human Nature and Conduct New York Heruy Holt and Company 1944 p 270 Reimpressa com permissão de Holt Rinehart and Wnston C op y rig h t de Henry Holt and Com pany Não parecem ter sido feitas modificações importantes a esta obra desde que foi publicada inicialmente em 1921 As referências neste ensaio são retiradas da edição em brochura de 1944 resultado a maioria dos trabalhadores não encontra satisfeçáo nem renovação nem cres cimento intelectual nem realização no tiabalho A estupidez de separar a produção do consumo do enriquecimento presente da vida fica evidente nas crises econômicas nos períodos de desempro que se alternam com períodos de exercício trabalho ou superprodução O lazer náo é o alimento da mente no trabalho nem a recreação é uma avidez febril por diversões emoções exibições caso contrário nâo há lazer exceto como um torpor obtuso É inevitável a fediga que se deve para alguns à monotonia e para outros ao esforço excessivo para manter o ritmo Na sociedade a separação da pro dução e do consumo dos meios e fins é a raiz da mais profunda divisão de classes Estão no controle aqueles que fixam metas para a produção constituem a classe dominante aqueles que se encarregam de atividades produtivas isoladas Porém se são oprimidos os últimos náo sáo verdadeiramente livres os primeiros Podese entender melhor a critíca de Dewey à sociedade capitalista contemporânea comparandoa como ele próprio muitas vezes fàz à crítica marxista Dewey reconhece o mérito do matxismo por suas tentativas de esquadrinhar grande parte dos problemas dominantes da moderna sociedade capitalista Observa também que dadas as condições dradantes da sociedade moderna a concepção materialista da história ou determi nismo econômico adquire considerável relevância Sem dúvida estamos em algum tipo de socialismo qualquer seja o nome que Ibe dermos e não importa como será chamado quando for concretizado O determinismo econômico é r a um íáto não uma teoria Muito embora aceite a utilidade de determinados aspectos do diagnóstico socialista dos males do capitalismo Dewey no entanto critica com vigor a prescrição marxista para sua cura Considera o mais pernicioso bem como mais revelador erro do marxismo sua promulgação da crença monstruosa de que a guerra civil pela luta de classes é um meio de progresso social ao contrário de um registro das barreiras para sua obtenção Na opi nião de Dewey o progresso social deve ser atingido por meio da aplicação do método da inteligência não através da dependência marxista de crescente tensão e conflitos O que Dewey considera como a principal razão para o íracasso do marxismo e dos outros is mos do século XX também tornase evidente através de uma análise do segundo grande objetivo de sua reconstrução em íilosoíia o desenvolvimento do método da inteligência como a principal ferramenta para a solução dos problemas sociais 2 O fracasso da humanidade em alcançar a justiça social embora compreensível em tempos passados fazse agora tragicamente desnecessário de acordo com Dewey Está hoje disponível um instrumento para a solução eíicaz dos problemas que eterna mente atormentam a humanidade Este instrumento é o método da inteligência ou método científico tal como Dewey com frequência o nomeia O método é definido em Reconstrução em Filosofia porém como uma indicação abreviada para grandes e cada vez maiores métodos de observação experimentação e raciocínio refletivo ou ainda como a tríplice técnica de observação dos fatos construção de hipóteses e veri ficação de conseqüências J o h n D e w e y 7 6 3 4 Ibid p 271272 5 John Dewey Individualism Old and New New York Minton Balch and Company 1930 p 119 6 Human Nature and Conduct p 273 Dewey atribui o principal crédito pela descoberta do método científico a Francis Bacon a quem descreve como o verdadeiro fundador do pensamento moderno O método da inteligência que Bacon tentou introduzir distinguese em parte da ciência náo baconiana por recorrer à experimentação ativa em contraste com a con templação passiva da natureza A tradicional abordagem contemplativa é inadequada porque os princípios e leis científicos não residem na superfiície da natureza Estão escondidos e devem ser arrancados da natureza por meio de uma elaborada e ativa técnica de investigação Parafraseando Bacon Dewey sustenta que o verdadeiro cientista deve forçar os fatos aparentes da natureza a se moldarem a formas diversas daquelas em que em geral se apresentam e assim forçálos dizer a verdade sobre si mesmos do mesmo modo como a tortura pode obrigar uma testemunha relutante a revelar o que tenta esconder Através dessa subjugação da natureza a humanidade descortinou maravilhosas possibilidades na indústria e no comércio e novas condições sociais fevoráveis à invenção engenhosidade empreendimento Desta maneira foram possíveis enormes avanços nas artes industriais agrícolas e médicas Tornouse possível para toda a humanidade uma vida muito mais feliz e mais abundante Por que então Dewey se vê forçado a indar esses bens aparentemente ilimita dos possibilitados pelo método da inteligência permaneceram em grande parte não realizados Por que é vítima de novos males a maior parte da humanidade Por que a nova ciência desempenha um papel na escravizaçáo de homens mulheres e crianças nas fóbricas Por que mantém sórdidas fevelas pobreza opressiva e luxuosa rique za uma brutal exploração da natureza e do homem em tempos de paz e de explosivos tremendos e gases venenosos em tempos de guerra Dewey acredita que a causa da trágica fiustração do método da inteligência pode ser atribuída a defeitos na prática política Constata que instituições políticas obsoletas e injustas cujas origens são anteriores ao desenvolvimento da ciência baco niana são as principais responsáveis pelo aborto dos benefícios prometidos pela con quista da natureza Persistem arcaicas instituições sociais inadequadas para uma época de tecnologia e produção científica um fenômeno que Dewey resume com o termo atraso cultural Conclui que o novo industrialismo é em grande parte o antigo feudalismo residindo em um banco em vez de um castelo e brandindo a verificação de crédito em vez da espada Essas instituições ultrapassadas sâo perpetuadas e con troladas pelos governantes manifestamente injustos da humanidade reis aristocratas as proprietárias e aquisitivas classes da sociedade moderna que de maneira sistemá tica se apropriam indevidamente dos benefícios da ciência para fins pecuniários para o lucro de poucos Ou seja em grande parte os benefícios da ciência atendem aos interesses de uma classe proprietária e aquisitiva enquanto uma disseminação demo 7 Reconstruction in Philosophy p 10 4648 8 Human Nature and Conduct p 212213 9 The Public and its Problems p 175 10 Human Nature and Conduct p 213 7 6 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y crática dos benefícios da ciência indicaria que a ciência foi absorvida e distribuída Em suma é apenas dentro de uma ordem social verdadeiramente democrática que os benefícios prometidos pela concepção baconiana de ciência podem ser efetivamente aplicados para o alívio do estado do homem A concretização dos benefícios da nova ciência requer a democracia mas o in dispensável desenvolvimento da democracia depende por sua vez da aplicação do método da inteligência aos problemas sociais de sua aplicação às relaçóes humanas políticas econômicas e morais O apelo de Dewey para essa aplicação do método científico é reiterado em toda a sua obra Está convencido de que o reconhecido triun fo das ciências naturais no mundo físico pode e deve ser estendido a todas as esferas da existência humana Esta esperança é expressa com veemência em sua introdução de 1946 para The Public andIts Problems A opinião pública e seus problemas a ciência tem exatamente a mesma relação com o progresso da cultura que os assuntos reconhecidos como tecnológicos como o estado das invenções no caso por exemplo de ferramentas e máquinas ou do progresso alcançado nas artes digamos médicas uma porção considerável dos males remediáveis da vida presente devese ao estado de desequi líbrio do método científico no que diz respeito à sua aplicação a fiitos físicos de um lado e especificamente a fetos humanos de outro a forma mais direta e eficaz para escapar desses males é o constante e sistemático esforço a fim de desenvolver essa inteligência eficaz denominada método científico no caso das transações humanas Desta forma de acordo com Dewey não há dificuldades insuperáveis na apli cação aos problemas humanos e morais do método pelo qual a compreensão da natureza física foi levada a seu atual estÉio de evolução O método científico de ob servação elaboração de hipóteses e avaliação das conseqüências é aplicável às ciências sociais bem como às ciências naturais Dewey no entanto assinala um íator compli cador na aplicação do método científico à solução dos problemas sociais Em poucas palavras sua colocação é a seguinte a avaliação ou verificação das conseqüências nas ciências naturais é facilitada pela existência de um acordo geral a respeito de objetivos Por exemplo há normalmente pouca discordância acerca pelo menos dos objetivos imediatos da invenção no caso de ferramentas e máquinas ou na arte médica O consenso quanto às metas íacilita a aferição e portanto a avaliação das conseqüências da introdução de ferramentas e máquinas recéminventadas Podese apresentar argu mento semelhante no que diz respeito à arte médica cujo objetivo expresso é a manu tenção ou o restabelecimento da saúde Consideremos por exemplo certo número de cientistas médicos envolvidos na pesquisa do câncer em uma clínica de grande porte A observação dos mesmos pacientes e a análise de aproximadamente os mesmos dados J o h n D e w e y 765 11 The Publie and its Problems p 174 12 Reeonstruction in Philosophy p 52 13 The Publie and its Problems p x 14 Reeonstruction in Philosophy p 10 15 The Public and its Problems p x podem dar origem a diversas hipóteses sobre a natureza e o tratamento do câncer To davia a verificação das conseqüências dessas várias hipóteses não apresenta nenhuma dificuldade intransponível pois há consenso sobre os objetivos da pesquisa a saber a prevenção do câncer ou a redução de sua incidência e devastações Dewey reconhece que a verificação das conseqüências demonstra ser muito mais difícil quando se tenta aplicar o método da inteligência às relações humanas aos pro blemas políticos econômicos e morais porque o consenso para a avaliação das conse qüências está marcadamente ausente dessas esferas Dewey admite que toda contesta ção política séria gira em torno da questão de saber se um determinado ato político é benéfico ou prejudicial para a sociedade Assim sendo somos forçados a examinar a questão relativa a como a aplicação do método científico a assuntos humanos pode superar a dificuldade que resulta do fiito de que as partes em conflitos humanos têm opiniões catoricamente divergentes quanto ao que é benéfico ou prejudicial para a sociedade Um exemplo sugerido por Dewey pode esclarecer esta questão Suponha mos que em uma siderúrgica até então desorganizada alguns operários deem início a determinadas medidas para criar um sindicato Sua ação pode ser motivada por certos íatos evidentes acerca dos quais não há desacordo por exemplo salários horas de trabalho fidta de participação dos operários no controle das condições de trabalho Os próprios íatos que conduzem os operários à hipótese de que a oianização sindical será benéfica muitas vezes conduzem a administração à hipótese oposta Como pode então a aplicação do método da inteligência ajudar a administração e os trabalhado res a resolver essa diveiência A resposta de Dewey parece assumir a seguinte forma Demanda em primeiro lugar uma declaração detalhada das conseqüências específicas que decorreriam da sin dicalização bem como das conseqüências que decorreriam da manutenção do status quo Indiscutivelmente conseqüências de notável diversidade resultariam do fracasso ou do sucesso do movimento sindical Em caso de sucesso é provável que houvesse um aumento generalizado dos salários mudanças nos horários e outras condições de trabalho e alguma redução na autonomia administrativa De modo semelhante seria possível traçar em grande detalhe e ctensão as conseqüências associadas à manu tenção do status quo O próximo passo exigido pelo método da inteligência ex plica Dewey é contrastar e avaliar essas conseqüências divergentes Ainda assim é exatamente quanto a este aspecto que de novo se apresenta a dificuldade crucial na aplicação do método da inteligência Não insistiriam trabalhadores e administração na aplicação de padrões diferentes para avaliar as conseqüências Não resultaria este desacordo por sua vez de entendimentos muito diveientes sobre o que contribuiria para o bemestar ou para o autointeresse Não necessariamente contesta Dewey A au têntica aplicação do método da inteligência possibilita a avaliação das conseqüências por um padrão que transcende os interesses p ista s ou as perspectivas limitadas das partes em disputa A este padrão mais elevado Dewey chama de crescimento 766 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 16 Ibid p 15 O significado de crescimento e seu liar nos ensinamentos políticos de Dewey só podem ser compreendidos através de um exame de sua concepção evolutiva do homem e da sociedade o último aspecto da sua reconstrução em filosofia do qual nos devemos ocupar 3 Foi Charles Darwin quem liberou a nova lógica que produziu efeitos tão revolucionários nas ciências naturais para a aplicação ao intelecto e à moral e à vida Em um ensaio intitulado Tlie Influence of Darwin on Philosophy A influência de Darwin sobre a filosofia Dewey delineia as conseqüências de sua concepção de evo lução para sua filosofia social com isso distinguindoa ainda mais da filosofia política tradicional Dewey entende que esta última esteve engajada em uma busca equivocada de espécies e essências fixas dentro de um mundo fechado um mundo que con siste de um número limitado de formas fixas Seguindo Darwin Dewey condena a noção de espécies fixas em particular em sua aplicação à natureza do homem Tal concepção segundo ele reduz a vida humana à travessia monótona de um ciclo de mudanças previamente traçadas um princípio e uma perspectiva tão pouco desafia dores como aquele em virtude do qual a bolota tornase o carvalho Em oposição a esta visão insípida da filosofia tradicional Dewey oferece a resplandecente promessa de uma compreensão evolutiva das potencialidades humanas uma visão que apresenta possibilidades ilimiudas para o desenvolvimento para novos e radicais desvios Vista de uma perspectiva evolucionária a mudança tornase expressiva de novas possibili dades e metas a serem atingidas tornase profética de um íuturo melhor A mudan ça deve ser associada ao progresso em vez de à queda e ao declínio posição esta que Dewey atribui à filosofia política tradicional Dewey argumenta ainda que a aceitação geral da perspectiva evolutiva tem sido obstruída por mais outra das deficiências da filosofia tradicional seu postulado de uma hierarquia rígida de metas fixas Embora admita que os padrões éticos que existem concomitantemente com essas metas podem ter sido compatíveis com uma concepção estática de justiça social e da natureza humana uma concepção evolutiva do homem exige que sejam substituídos por um padrão do bem humano que preveja mudança gradual A este padrão denomina crescimento O conceito de crescimento fornece a Dewey um critério do bem que é univer sal e ao mesmo tempo compatível com um entendimento evolutivo do homem e da sociedade Permite que rejeite o alegado absolutismo e inflexibilidade da filosofia tra dicional sem abraçar o relativismo radical que se volta para o niilismo O crescimen to humano é visto por Dewey como a gradual realização das possibilidades humanas produzidas por uma complexa interação entre hábito e impulso uma colocação que desenvolve de forma exaustiva em Human Nature and Conduct A natureza hu J o h n D e w e y 767 17 John Dewey The Influence o f Darwin on Philosophy New York Henry Holt and Company 1910 p 89 18 Reconstruction in Philosophy p 62 65 19 Ihid p 102 cf Human Nature and Conduct p 284 mana e a conduta seu tratado sobre a psicologia social O ponto crucial de seus en sinamentos sobre este aspecto é que a direção da atividade inata depende de hábitos adquiridos mas ainda assim os hábitos adquiridos só podem ser modificados pelo re direcionamento de impulsos Uma vez que Dewey entende que nem o conteúdo do hábito nem do impulso sáo determinados por uma natureza do homem que seja fixa o resultado dessa interação pode produzir uma infinita variedade humana Seja qual for o conteúdo substantivo dos hábitos ou impulsos Dewey pede apenas que o resultado de sua interação produza crescimento de tal forma que o crescimento em si é a única finalidade moral Posto que Dewey abstémse de qualquer definição substantiva de crescimento o padrão permanece sempre formal proporcionando assim uma visão relativista do desenvolvimento humano dentro de um quadro uni versalista Por exemplo dizse que o crescimento assinala a realização do potencial total de um organismo a versão completa como explica Dewey com firequência de suas capacidades latentes De fiito a realidade é o processo de crescimento em si a existência real é a história na sua totalidade No que diz respeito ao homem Dewey clama pelo crescimento completo com o que quer dizer crescimento ou crescer como desenvolvimento não só fisicamente mas intelectual e moralmente também O alcance e o significado dessa norma tem resumo interessante em Reconstrução em Filosofia onde Dewey conclui que governo empresas arte religião todas as instituições sociais têm um significado um ptopõsito Esse propõsito é libertar e desenvolver as capacidades dos indivíduos huma nos sem levar em consideração raça sexo status de classe ou econômico A democracia tem muitos significados mas se tem um significado moral encontrase este em decidir que o teste supremo de todas as instituições políticas e arranjos industriais deve ser sua contribuição para o crescimento total de cada membro da sociedade O crescimento serve como o coroamento da reconstrução em filosofia de Dewey Como tal inclui e torna mais inteligíveis outros aspectos dessa reconstrução Desta forma é o conceito de crescimento que orienta a investigação filosófica para os problemas contemporâneos que demandam solução pois são precisamente as tensões e pressões que retardam o crescimento na vida comunitária que devem ser elimina dos através da aplicação do método da inteligência Posto que a ampla reconstrução social necessária em prol do crescimento deve ser realizada em certa medida através de meios políticos Dewey preocupase em particular com os aspectos da teoria políti ca que parecem ser relevantes para tal objetivo 7 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o St r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 20 Human Nature and Conduct p 126 21 Reconstruction in Philosophy p 141 22 Experiente and Nature Urbana 111 The Open Court Publishing Company 1925 p 275 23 John Dewey Experience and Education New York The Macmillan Company 1938 p 28 24 Reconstruction in Philosophy p 147 A teoria política democrática de Dewey pode para os presentes íins ser mais bem analisada se dividida em dois tópicos Em seus próprios termos sáo eles 1 uma concepção pluralista modificada da sociedade e 2 uma verificação das conseqüências indiretas para definir o âmbito legítimo da autoridade do Estado 1 O Público e seus Problemas eníatiza que o crescimento bumano ocorre pri mordialmente no seio das associações A própria existência do bomem depende das atividades associadas na medida em que cada ser bumano nasce uma criança ima turo indeíèso dependente das atividades de outros O íàto de que muitos desses seres dependentes sobrevivem é prova de que os outros em alguma medida zelam por eles Os seres bumanos se associam portanto em virtude de sua própria estrutura Sâo feitos dessa maneira é a natureza da besta Dentre as muitas associações que contribuem para o crescimento bumano Dewey assinala em particular a família o clã e a vizinhança bem como as escolas os sindicatos as empresas e as corporações industriais e uma variedade de grupos e clubes voltados para atividades científicas artísticas e esportivas Essas associações podem ser divididas em duas categorias para íins de investigação A primeira categoria inclui os grupos que se caracterizam por relaçóes face a face relativamente permanentes a íamília o clã a vizinhança e até mesmo a pequena aldeia Esses grupamentos sempre foram os principais gentes do cuidado ou crescimen to uma vez que há algo profundo dentro da própria natureza humana que conduz a relacionamentos estáveis Esses laços vitais firmes e proíúndos só podem ser desen volvidos em uma comunidade próxima É aqui que são formadas de maneira estável as inclinações básicas e humanas e sâo adquiridas as ideias que formam as próprias raízes do caráter Dewey é levado a concluir que o local é o universal íinal e tão próximo de um absoluto quanto possível É importante notar que de início Dewey exclui essas associações imediatas da esfera das preocupações políticas uma vez que re lações íàce a íáce têm conseqüências que geram uma comunidade de interesses e valores compartilhados demasiado diretos e vitais para que gerem a necessidade de organização política Qjstumes estabelecidos de maneira informal e medidas especiais improvisa das para atender às emergências que possam surgir sáo considerados suficientes para a regulamentação que possa ser necessária dentro da comunidade local Por dois motivos os agrupamentos que transcendem a comunidade local dão lugar à necessidade de rulação política Em primeiro lugar determinadas associações podem verse trabalhando com objetivos opostos ou presas em confiitos como no caso da disputa entre os operários e a administração citada anteriormente São abun dantes tais confiitos assumindo uma forma ou outra em todas as sociedades com plexas a escola e a Igreja lutam pelo controle de suas respectivas esferas de infiuência organizações que visam assegurar igualdade de tratamento para as minorias oprimidas 25 The Public and its Prohlems p 11 24 26 p 211213214 211215 27 Ihid p 39 J o h n D e w e y 7 6 9 sofrem a oposiçáo de associações que desejam preservar o status quo Com frequência tais conflitos conduzem à guerra civil e seja como for consomem energia e recur sos que poderiam contribuir para o crescimento dos membros das associações em questão Devemos lembrar que o método da inteligência exige a resolução pacífica de conflitos uma reoidenação como diz Dewey das associações que batalham pelo bem comum Uma vez que esta supervisão e regulação não pode ser efetuada pelos próprios grupos principais é necessário criar uma entidade especial para tal fim Dewey denomina Estado a esta entidade Entendido desta maneira o Estado é uma forma secundária de associação cujos principais poderes atendem ao funcionamento harmonioso e eficaz de todas as demais associações Dewey compara esta função do Estado à do maestro de uma orquestra que não fiiz música mas que harmoniza as atividades daqueles que ao fiizerem música fiizem coisas cuja validade é intrínseca É na necessidade de harmonizar as relações entre outras associações que Dewey en controu a justificativa inicial para o Estado Admite que a figura do maestro tem óbvios pontos de contato com o que se conhece como a concepção pluralista do Estado e tem muitos aimentos para sustentar essa afirmação O pluralismo parece fornecer uma salvaguarda contra o totalitarismo supostamente inerente às formulações dominantes da filosofia política tradicional dos quais se diz que permitem a absorção de todas as associações monopolistas pelo Estado de todos os valores sociais pelo valor político A concepção pluralista estrita em contrapartida permite que o Estado só aja para fixar as condições em que opera qualquer forma de associação evitando assim a glorificação do Estado e ampliação de seu poder Na verdade ocorre muitas vezes que o Estado em vez de mdo absorver e incluir constitui em algumas circunstâncias a mais ociosa e vatia das organizações sociais O lócus do crescimento continua a ser encontrado em outras associações o que é como deveria ser conclui Dewey Muito embora o pluralismo forneça as bases para sua teoria política formal Dewey no entanto considera insuficiente a teoria pluralista convencional O plu ralismo estrito limita a ação política à resolução de conflitos entre outros grupos tendendo assim a limitar o Estado a desempenhar o papel de um simples árbitro Dewey preocupase em manter este aspecto da teoria como uma salvaguarda contra o totalitarismo ao mesmo tempo possui um motivo de extrema importância e interesse para querer ir além da teoria pluralista estrita Está determinado a transcender a con cepção do Estado como árbitro a fim de realizar a contribuição positiva que o Estado pode fàzer na promoção do crescimento Esta contribuição potencial do Estado sofre uma restrição injustificada argumenta Dewey se o Estado é capaz de fazer mais do que fixar as regras de acordo com as quais qualquer forma de associação funciona Com certeza não haveria dificuldades se de íàto todas as associações contribuíssem para o crescimento mas Dewey reconhece que nem sempre é este o caso O Estado 7 7 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a ra L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v 28 Ibid p 27 29 Reconstruction in Philosophy p 158159 30 lhe Public and its Prohlems p 28 7 273 deve portanto ter poderes para avaliar os objetivos declarados das associações e até mesmo para olhar por trás deles a im de determinar a sua real intenção as conse qüências fectuais de seu íuncionamento e tomar medidas adequadas Dewey ilustra esse aspecto de sua teoria em Democracy and Education Democra cia e educação onde discute determinadas características de algumas das associações menos desejáveis encontradas na sociedade Há infelizmente associações de homens unidos em conspiração criminosa pregações de negócios que saqueiam o público en quanto o servem máquinas políticas unidas pelo interesse de pilhagem Ora o pro blema colocado pela conspiração criminosa pode de feto ser resolvido a contento pela teoria pluralista convencional pois é possível argumentar que após a perpetração do crime a associação criminosa infringe condiçóes acordadas ou transgride as regras do jogo O Estado árbitro pode consequentemente reprimir essas atividades crimi nosas e as associações onde se originam Por outro lado aquelas íregações de negócios que saqueiam o público enquan to o servem e as máquinas políticas voltadas para o ganho egoísta apresentam uma dificuldade maior para a teoria pluralista convencional Enquanto as atividades de tais empresários e políticos se mantêm dentro da lei o Estado árbitro náo tem motivos legítimos para interferir em seu funcionamento Todavia essas sáo as próprias associa ções que na opinião de Dewey exigem a mais profunda até mesmo a mais radical reconstrução Podemos recordar suas severas e reiteradas críticas aos efeitos desastrosos para os homens das irregularidades dos modernos empreendimentos industriais ca pitalistas É pertinente também assinalar ainda sua afirmação de que essas práticas destrutivas são sustentadas e instigadas pelos políticos máquina os patróes como costuma referirse a eles que forjaram uma aliança com os interesses comerciais Jun tos dominam a vida pública contemporânea e orientam mal as atividades do Estado Caracterizando esta relação em A opinião pública e seus problemas Dewey pondera que as formas de ação associada características da atual ordem econômica são tão maciças e extensas que determinam os constituintes mais significativos do público e da resi dência do poder Além disso inevitavelmente estendem a mão para fisgar os óigãos do governo controlam aspeaos da lislação e da administração Dewey não está disposto a permitir que os princípios da teoria pluralista convencional que preveem apenas a função árbitro do Estado fiquem no caminho da reforma das associações empresariais gananciosas e das máquinas políticas que gravemente interferem com o crescimento da multidão de cidadãos comuns O crescimento o fomento univer sal do crescimento é sempre o padrão final de Dewey para a ação política Desta forma insiste que o Estado não deve limitarse apenas a fixar as condições em que todas as associações podem ílmcionar O bom Estado portanto torna mais sólidas e mais coerentes as associações benéficas de modo indireto esclarece seus objetivos e saneia suas atividades Impõe um rebabcamento a agrupamentos prejudi J o h n D e w e y 771 31 John Dewey Democracy and Education New York The Macmillan Company 1916 p 95 ciais e torna precárias as suas condições de vida Ao realizar esses serviços propicia maior liberdade e surança a cada um dos membros das associações valorizadas Livraos de condições dificultosas que absorveriam suas eneias na simples luta negativa contra os males se tivessem de lidar com eles pessoalmente Dewey fornece dois padrões pelos quais o Estado pode determinar se devem ser fomentadas ou desencorajadas as atividades de determinada associação São estes resumidos com precisão em Democracia e educação como se segue Que número e variedade de interesses sâo conscientemente partilhados Até que ponto é plena e livre a interação com outras formas de associação Dewey esclarece esses padrões ao aplicá los a associações destrutivas como a quadrilha de criminosos a corporação gananciosa a máquina política que serve a si mesma Considera cada uma dessas associações capaz de restringir o crescimento pois são poucos os laços que unem os seus membros Este fato é mais evidente no caso da quadrilha de criminosos participação na qual se baseia em um interesse comum na pilhagem Da mesma forma o laço que une em presários em uma agregação de negócios predatórios é limitado principalmente a um interesse no lucro pecuniário É a busca estreita de despojos ao invés de uma ampla preocupação com o bem comum que caraaeriza a participação em uma máquina po lítica Seguese daí que a participação em tais associações tende a isolar seus membros de outros grupos com relação à reciprocidade dos valores da vida Em contrapar tida Dewey é veemente ao fidar das possibilidades de crescimento que decorrem da participação em associações dedicadas às atividades científicas e artísticas educação assistência social e assim por diante Não se pode compreender por inteiro a relevância e o significado da democracia acrescenta Dewey até que uma segunda restrição seja feita à teoria e à prática plura lista convencional De modo geral as condições materiais da vida têm sido tais que é grave o prejuízo que causam ao crescimento de uma parte substancial dos cidadãos mesmo em um país tão rico como os Estados Unidos O poder econômico concentra do tem consistente e persistentemente negado efetiva liberdade aos economicamente desfavorecidos e destituídos privando muitos de uma oportunidade para um sólido desenvolvimento Tais privações como argumenta Dewey em A opinião pública e seus problemas tendem a perpetuarse posto que os carentes são muitas vezes incapazes de proporcionar aos seus filhos uma educação adequada e os demais elementos essen ciais para o pleno crescimento Quando associações primárias como a fiunília são in capazes de fornecer condições adequadas para o crescimento o Estado deve assumir essa responsabilidade Assim Dewey saúda a tendência constante de que a educação das crianças seja considerada um encargo próprio do Estado apesar do íáto de que os 7 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 32 The Public and its Problems p 7172107 33 Democracy and Education p 96 34 Authority and Social Change printed in the Harvard tercentenary publication Authority and the Individual 1937 p 178 and more readily available in InteUigence and the Modem World John DeweysPhilosophy Ed J Ratner NewYork Modern Library 1939 p 351352 filhos sáo a responsabilidade primordial da família Em tais questões é indispensável a cooperação do Estado uma vez que o período em que a educação é possível em um grau eficaz é o da infencia se este período não for aproveitado serão irreparáveis as conseqüências Poucas vezes se poderá compensar esta negligência mais tarde Decer to aqueles que não são pais são tributados para viabilizar uma sólida educação para todos já que é responsabilidade do Estado proporcionar boas condições para o máxi mo crescimento de todos independente de desvantíens econômicas ou outras O princípio subjacente a este argumento é elucidado pela afirmação de Dewey de que outros dependentes tal como o louco o permanentemente dependente são os típicos tutelados pelo Estado pois quando as partes envolvidas em qualquer tran sação são hierarquicamente desiguais é provável que a relação seja unilateral e sofram os interesses de uma das partes Se as conseqüências parecem graves em particular se parecem irrecuperáveis o público exerce uma pressão que igualará as condições Por óbvio a aplicação plena deste princípio exigiria extensa tributação dos ricos a fim de igualar as oportunidades para todos os cidadãos Também resultaria em um aumento no poder e complexidade da máquina do Estado à medida que fossem criados órgãos administrativos para a coleta de impostos e para realizar ou supervisionar programas apoiados pelo Estado No entender de Dewey os desejos e necessidades humanos que demandam algo semelhante ao estado democrático do bemestar social para que sejam atendidos não podem ser negados pelas limitações da teoria pluralista convencional É à luz desta conclusão que se pode compreender melhor a insistência de Dewey de que o tamanho exato e o caráter do Estado não podem ser determinados de forma universal ou a priori mas devem ser descobertos de novo dentro do contexto de cir cunstâncias particulares através da aplicação do método da inteligência O padrão orientador deve ser a determinação empírica de quais conseqüências da atividade pri vada são graves ou irrecuperáveis o bastante para justificar a intervenção política Este argumento aponta para duas outras questões quem de íàto determinará isso e quais são os critérios pelos quais se pode determinar se as atividades de uma dada associação são favoráveis ao sólido crescimento e assim a ser fomentadas ou o contrário A própria grande amplitude para não dizer falta de clareza de critérios como crescimento ou seriedade torna ainda mais relevante a questão de quem deve definilos e aplicálos Estas perguntas assumem significado ainda maior quando se considera o fato de que a gradual modificação de Dewey da teoria pluralista ampliou a esfera das atividades estatais legítimas incluindo até mesmo as associações fiice a fàce que de início eram percebidas como externas ao âmbito político A fim de propor cionar uma educação pública obrigatória proter os fracos e dependentes e igualar as oportunidades para o crescimento de todos a autoridade política iria forçosamente intrometerse nos assuntos até mesmo da família do clã do bairro Aparentemen te se essa autoridade política difusa caísse em mãos iníquas surgiria a ameaça desse mesmo totalitarismo que Dewey tanto se empenha em evitar Sua consciência dessa J o h n D e w e y 7 7 3 3 5 The Public and its Problems p 6 2 6 3 ameaça conduz a sua formulação do teste da conseqüência indireta para a legitimi dade de qualquer exercício da autoridade do Estado Este teste é o segundo elemento importante de sua teoria política formal a ser examinado 2 A aplicação do teste da conseqüência indireta de Dewey pode ser compre endida de modo mais fácil por meio de um exemplo Suponhamos que os operários de uma usina siderúrgica tentem organizar um sindicato Em seu início o movimento sindical pode limitarse a alguns operários que poderiam utilizar uma parte de sua hora de almoço para falar de negócios ou seja para discutir os problemas que encon tram no trabalho Tais discussões mesmo que regularizadas são caraaerizadas por Dewey como privadas de acordo com a regra de que uma ação é privada enquanto suas conseqüências restringemse ou se acredita que se restrinjam sobretudo às pes soas com envolvimento direto nela Assim sendo as discussões não têm qualquer interesse para o Estado e não podem sofrer qualquer interferência Suponhamos porém que aqueles que participam dessas discussões que eram de início privadas decidam fundar um sindicato e em seguida tomem medidas para implementar sua decisão A fim de atingir sua meta podem trazer outros trabalha dores a suas reuniões organizadores externos podem ser introduzidos na fábrica para auxiliar nesse processo pode ser deflígrada uma greve com o intuito de forçar o re conhecimento do sindicato Caso o movimento sindical venha a ter sucesso haverá vastas conseqüências indiretas que afetarão a vida de muitos Aumentos no custo do aço podem ter efeitos importantes sobre o íuncionamento de indústrias correlatas a elevação dos custos da mão de obra pode motivar a administração a introduzir equipa mentos automáticos açáo esta que daria origem a outras conseqüências indiretas As ramificações de todas essas conseqüências de uma forma ou de outra afinal atingirão os consumidores o público que compra Aqueles que são afetados com gravidade por essas conseqüências indiretas cons tituem o público tal como definido por Dewey O bemestar do público requer que sejam controladas essas conseqüências indiretas É para tal fim que aqueles que constituem o público devem selecionar representantes que por sua vez exercerão o poder político Dewey pouco se interessa pelos detalhes institucionais do Estado Afirma que a única declaração que pode ser feita é puramente formal o Estado é a or ganização do público executada através de funcionários para a proteção dos interesses companilhados por seus membros É evidente para Dewey que a complexa sociedade industrial do século XX dá ori gem a muitos desses públicos pois são incomparavelmente numerosas as ações con juntas cujas conseqüências são indiretas graves e duradouras e cada uma delas se cruza com as demais e gera um grupo específico de pessoas às quais afetam em particular Dada esta diversidade de públicos com sobreposição de membros Dewey é por for ça levado a se perguntar se há alguma maneira em que esses diferentes públicos pos 7 7 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 36 Ibid p 12 37 Ibid p 33 sam ser reunidos em um sistema integrado completo Esta questão é de íundamental importância uma vez que os termos da teoria de Dewey autorizam os intrantes de cada público a eleger representantes para tratar das conseqüências indiretas geradas por determinadas atividades privadas como no exemplo anterior Para tanto parece ser necessária a eleição de um gigantesco número de representantes ou a elaboração de um sistema pelo qual um indivíduo fosse eleito para representar vários públicos Infelizmente Dewey não desenvolveu sua doutrina da representação muito além deste ponto As orientações adicionais que fornece são em grande parte negativas como por exemplo seu argumento contra a ideia de representação funcional ale gando que tal sistema propicia a expressão política de grupos de interesse e não dos indivíduos afetados por seu íuncionamento Dewey insiste que a democracia política requer um sistema de representação mas de bom grado debca para outros a tareíá de elaborar as formas institucionais e os detalbes de seus ensinamentos políticos Assim o fez por dois motivos Em primeiro lugar argumenta que as instítuições políticas devem ser sujeitas a modificações constantes a fim de dar expressão imediata às condi ções em constante mudança da vida associada Por conseqüência qualquer tentativa de corrigir sua forma seria perigosamente restritiva Em segundo porém muito mais íundamental está a opinião de Dewey de que o caráter do corpo de cidadãos tem im portância cabal para a concretização da boa política Em seus escritos políticos Dewey intencionalmente minimiza a importância de arranjos institucionais e constitucionais Desta forma atribui a um corpo de cidadãos educados instruídos imbuídos de espí rito público e ativos a responsabilidade quase completa pela realização do bom regime Tais cidadãos proclama ao longo de sua obra poderiam inaugurar uma nova era na vida democrática uma era que pela primeira vez na bistória bumana tornaria possível a realização das fertas e abundantes potencialidades da vida Um corpo de cidadãos que pelo contrário seja predominantemente ignorante egoísta e apático promete um resultado diferente Temse observado que o teste da conseqüência indireta de Dewey para os limites da autoridade do Estado bem como a sua teoria da associação colocam nas mãos dos públicos e de seus representantes a responsabilidade total por determinar os limites do poder político e seu modo de implementação São eles que devem determinar se as conseqüências indiretas são sufi cientemente graves ou amplas para justificar o controle político Um mau enten dimento ou aplicação inadequada de tais normas por públicos seduzidos pela paixão ou por demsogos equivocados pode destruir a esfera do privado A tirania da maioria apresentase como uma possibilidade concreta A única proteção garantida contra o desgoverno agora e no íúturo está no de senvolvimento de um corpo de cidadãos que seja plenamente democrático em todos os aspectos Um dos instrumentos mais importantes para a produção de bomens de mocráticos afirma Dewey de maneira sistemática desde por assim dizer o início de J o h n Dewey 775 38 Ibid p 137 sua obra é um sistema de ensino concebido para tal finalidade Nas escolas os futuros cidadãos devem ser formados de maneira que a sociedade que criarão como adultos seja um pouco melhor do que a sociedade de seus pais e cada geração por sua vez repetirá o processo originando desta forma um crescimento sem fim A tarefa das escolas portanto não é apenas unir a mente das gerações mas formar personalida des por meio da organização ou método bem como pelo conteúdo da educação e assim fazendo preparar e assegurar o progresso da sociedade O que a democracia exige são homens cujas naturezas tenham sido de tal forma democratizadas que são capazes tolerar para não dizer beneficiarse de uma democracia purificada das instituições que hoje a contaminam Homens que não estivessem dispos tos a cooperar ameaçariam a democracia dos sonhos de Dewey tal como homens incli nados a buscar friamente a riqueza ou o poder e homens que não desejassem crescer em todas as direções Assim sendo em seus anos formativos as crianças devem ser condicio nadas pela vida em suas salas de aula a se esforçarem sem competir a estudar e traba lhar em cooperação e em grupos e a adquirir expansivos hábitos de autoexpressão que os prepararão para a vida em uma democracia de crescente perfeição Sabese bem que tem sido considerável a influência de Dewey sobre a teoria da educação Os esforços de Dewey no campo da educação coadunaramse com sua crença de que toda teoria deve ser colocada a serviço da democracia e de que devem ser democratizados na prática todos os aspectos da vida a fim de que a democracia possa ser segura e progressiva Seria possível concluir a partir disso que Dewey recorreu à visão tradicional de uma ordem política global a comunidade política abrangente em que não haveria fortalezas institucionalizadas para a resistência contra o princípio governante legítimo mas as leis orientariam a vida de cada cidadão para o bem Pode se perceber até que ponto tal se distancia da verdadeira posição de Dewey quando se recordam seus próprios julgamentos sobre a filosofia política tradicional Dewey nega va a existência de um bem fixo e substantivo para o homem e afirmava ao contrário que o bem é um processo de crescimento e de mudança Além disso não entendia a comunidade como primordialmente política ou seja uma unidade determinada pela constituição em seus aspectos fundamentais Acreditava sim que a influência de fatores psicológicos e econômicos era decisiva na formação do caráter e portanto no comportamento dos homens O quanto Dewey depreciava o político fica evidente em sua recusa de tratar a democracia como em princípio uma forma de governo ao contrário percebea como um modo de vida sendo a democracia política ou jurídica algo mais semelhante a um efeito embora um efeito muito importante do que a causa da democratização psicológica e econômica A democracia política portanto se mantém firme apenas enquanto repousa so bre bases asseguradas por meio de uma reconstrução democrática em filosofia e em todos os aspectos da vida A consciência de Dewey da enormidade desta tarefa só era mitigada por sua fé cega na capacidade de todos os homens em todos os lugares para alcançar o crescimento que é o concomitante indispensável da democracia Sempre 776 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y esperançoso não permitiu que as calamidades do século XX destruíssem suas expecta tivas otimistas para o íuturo da humanidade Sua obra se baseia sempre na certeza de que com o progresso da reconstrução democrática pela qual clama temos todos os motivos para crer que não importa quais mudanças venham a ocorrer nos atuais mecanismos democráticos serão estas de um tipo que ferá do interesse do público o guia e critério mais supremos para a atividade governamental e permitirá que o pú blico estabeleça e manifeste seus objetivos com autoridade ainda maior Neste sentido a cura para os males da democracia é mais democracia L e it u r a s A Dewey John The Public and Its Problems C h ic Gateway Books 1946 Cap i p 336 cap ii p 3774 cap vi p 208219 A opinião pública e seus problemas Dewey John Reconstruction in Philosophy New York New American Library 1950 Introduction p 828 Reconstrução em Filosofia B Dewey John Human Nature and Conduct New York Holt 1944 Cap iv p 125130 cap vi p 223237 A natureza humana e a conduta introdução à psicologia social Dewey John Experience and Education New York Macmillan 1938 Cap iii p 2332 Experiência e Educação Dewey John Liberalism and Social Action New York Putnam 1935 p 7485 Liberalismo e ação social Dewey John Democracy and Education New York Macmillan 1916 Cap vii p 94102 Demo cracia e educação J ohn D e w e y 7 7 7 39 Ibid p 146 18591938 E dmund H usserl Seria uma pergunta pertinente por parte do estudante de política se é correto incluir um ensaio sobre Edmund Husserl em uma bistória da filosofia política Com certeza não se encontrará neste ensaio uma ampla articulação de assuntos políticos virtudes e vícios regimes e leis considerações de ordem prudencial e o conhecimento de política adquirido pelo estadista através de longa experiência empeirid de seus detalbes No entanto é possível justificar essa inclusão Muitos são da opinião de que Husserl introduziu uma revolução na íilosoíia cuja importância é comparável à de Kant ou mesmo de Descartes muitos argumentam que a obra de Husserl assinala o fim ou o começo do fim da filosofia moderna Devemos reconbecer que tais senten ças são pronunciadas por indivíduos que estão próximos de serem contemporâneos de Husserl a relevância de Husserl não pode receber de nós sua derradeira avaliação Todavia como estudantes de íilosoíia política devemos encarar como muito revelador que uma forma de pensamento tão íundamental e abrangente como a de Husserl de certo contém relativamente pouco que se refira à filosofia poiítica Essa ausência não se deve a uma indiferença por parte de Husserl ou de seus seguidores para com os assuntos que preocupam o bomem político Pelo contrário a concepção de intensa ética que tem Husserl acerca das metas do filósofo inclui a ambição de fornecer uma orientação filosófica para a reflexão e a ação polítíca Paradoxalmente a ausência da filosofia polítíca é devida ao fato de ter Husserl tão elevadas expectativas sobre o que é possível no campo prático Uma reflexão sobre esse estado de coisas pode aprofundar nossa compreensão do que torna possível a filosofia política Para ser mais exato Husserl parte do pressuposto de que a mais elevada forma de vida a da investigação teórica pura é um potencial um tebs oculto ou consumação à espera de realização em todo ser bumano Husserl acredita que todos os bomens podem alcançar o tipo de autonomia caraaerística do antigo íilósofo a total independência do preconceito do deformador apo a si mesmo Filósofos anteriores pelo menos até Kant e Hel foram mais cautelosos a respeito de nutrir quaisquer suposições ou es peranças desse tipo Percebendo a constante tensão entre a luta pela verdade e os apegos ofuscantes que tornam possível a vida política assumiram a permanente necessidade de prudência na apresentação e aplicação da teoria à vida prática Assim Descartes e Leibniz embora seus escritos não sejam extensos sobre temas políticos empregam uma retórica adequada para o leitor não filosófico que reconhece tacitamente a dificuldade de abordar a vida prática por meio de argumentos teóricos Husserl tampouco escrevendo muito sobre política está apesar disso mais próximo de íilósoíòs como Nietzsche e Marx em seu entendimento da relação do discurso teórico com a vida prática Um de terminado otimismo extremo nos ideais husseriianos está ligado como veremos a suges tões de que a esfera política não pode ser dotada de uma natureza distinta e duradoura Em sua atividade filosófica Husserl com extraordinária persistência tenta desvelar os íúndamentos básicos da racionalidade de modo a resgatar a racionalidade das inter pretações falaciosas das correntes positivistas e historicistas do ceticismo A constatação fimdamental de Husserl podese dizer é de que todas as explanações anteriores da ra cionalidade tenderam a uma conclusão autodestrutiva totalmente evidente para nós no ceticismo da modernidade tardia na medida em que não conseguiram perceber o fato de que a essência da razão é a absoluta autonomia A fim de desvendar essa essência oculta da autonomia Husserl comprometese a examinar as premissas da tradição do pensamento científico e filosófico um exame que deixa evidente a atívidade construtiva autônoma da razão na produção de tais premissas Assim não podemos mais tomar como um pressuposto a verdade de tais premissas Para o estudante da política há três íàtores de importância imediata no esforço de Husserl 1 propóe uma noção de racionalidade como essencialmente normativa e vê a tarefe de resgatar a racionalidade a serviço do bem humano 2 propõe críticas ao positivismo ou como prefere Husserl psicologis mo e ao historicismo que têm é claro relevância imediata para a ciência política 3 que se envolve em um exame minucioso das premissas herdadas da tradição filosófica um exame que deu impulso a fundamentais investigações históricas quanto ao sentido dos primórdios gros e dos fundamentos dos primórdios modernos da filosofia A F e n o m e n o l o g ia e a C r is e O c id e n t a l Husserl é o principal fundador do movimento filosófico do século XX conhecido como fenomenologia Náo é o primeiro pensador a empregar o termo fenomenolo gia para designar um tipo de pensamento que procura deslindar e descrever os fenô menos primários da consciência exatamente como se apresentam sem a intervenção de construções teóricas No entanto é o primeiro a propor o ideal de uma fenome nologia de rigor científico que possui duas características marcantes 1 a ciência da fenomenologia deve ser absolutamente destituída de pressupostos ou seja deve ser capaz de fundamentar quaisquer pressuposições ou conceitos na absoluta autoevi dência da consciência investigadora e portanto não aceitará a verdade de quaisquer hipóteses ou conceitos estabelecidos pelas ciências existentes incluindo a lógica ou obtidos pela experiência comum 2 a fenomenologia científica é a verdadeira filosofia primeira e a íundação de todas as ciências e náo é apenas uma propedêutica à primeira filosofia tal como era para Hegel uma forma de fenomenologia E d m u n d H u s s e r l 7 7 9 Nem todas as formas da fenomenologia do século XX sâo husserlianas todavia quase todos os fenomenólogos posteriores a Husserl devem algo à sua formulação do ideal da fenomenologia e aos programas que sugeriu para a realização deste ideal A maior parte das áreas da vida intelectual no continente europeu do século XX foi influen ciada pela maneira de pensar fenomenológica O ideal teórico e os métodos de Husserl são inseparáveis de uma mensagem para a era moderna tardia a qual tem sido inequivo camente pertinente ao sentido de uma crise na civilização europeia desde 1914 Essa mensagem pode ser expressa da seguinte forma não só a filosofia mas nossa civilização como um todo não mais podem tomar como pressuposto a validade dos pontos de parti da e os resultados das ciências estabelecidas Uma determinada visão do conhecimento proveniente dessas ciências tornouse o entendimento até mesmo do cidadão comum ou preconceito relativo ao conhecimento Todavia essa visão é extremamente questio nável pois repousa sobre confusões e erros básicos que afinal resultam em dúvidas sobre o significado e o valor da ciência e com isso da própria razáo e do conhecimento As dúvidas sobre nossa capacidade de atribuir de modo racional um valor positivo para a razâo e o conhecimento recebiam no tempo de Husserl vozes poderosas de homens como Nietzsche e Weber É grande mérito de Husserl ter revelado por meio de uma análise crítica e histórica como tais dúvidas inevitavelmente emergiriam de erros exis tentes nas próprias bases da filosofia científica moderna e de ter indicado uma forma de resolver tais dúvidas por meio de uma afirmação da razáo como o bem maior Todos os escritos de Husserl e seus ensinamentos a partir de 1900 voltamse portanto para a resolução da crise da autocompreensão das ciências no Ocidente mo derno que se tornou na opinião de Husserl uma crise na autocompreensão pelo homem comum de suas próprias tarefas padrões e propósitos Na opinião de Husserl o homem ocidental deve perceber sua vida como portadora de um telos um fim ou propósito ou significado com base na razáo e em normas derivadas da razáo Todavia observa Husserl que muitos em sua geraçáo e na seguinte evidenciam uma hostilida de em relação à ciência e à razão que se baseia na experiência do fracasso da ciência e da razão em dizer alguma coisa de peso sobre as questões da liberdade e do sentido da vi da Assim a Europa ou o Ocidente é ameaçada com a perda de seu telos único está à beira de um colapso espiritual e de um ódio bárbaro do espírito Husserl percebe sua própria missão como sendo de evitar este colapso por meio de uma demonstração de que as falhas da razão são apenas as falhas das modernas póscartesianas concepções equivocadas da razáo A fenomenologia é portanto acima de tudo uma tentativa de dar à razão a interpretação correta como fonte de significado valor e telos final para a 780 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 1 E Husserl The Crisis ofEuropean Sciences and Transcendental Phenomenology trans D Carr Evans ton Northwestern University Press 1970 p 335334 389395 1 Doravante Crisis 2 Crisis 1 2 5 3 Philosophy and the Crisis ofEuropean Man a conferência de Viena de 1935 in E Husserl Phenomenology and the Crisis of Philosophy trans Q Lauer New York Harper and Row 1965 p 178180 191192 Doravante Philosophy Crisis 6 2 humanidade como tal mas em especial para o Ocidente Pois este já adquiriu alguma consciência de seu íim racional e o hábito de se considerar como o portador de uma iluminação especial para toda a humanidade No entanto até agora em sua história o homem ocidental teve apenas uma obscura promessa da verdadeira essência da razão como autonomia como dar a si mesmo todo significado valor e íins Husserl é portanto um dos principais analistas e que respondem ao que tem sido chamado do feto ou a ameaça do niilismo O pensamento de todos os seus segui dores e discípulos está dentro do âmbito de tal preocupação a recuperação do espírito ocidental em fece ao iminente niilismo Todavia é preciso dizer que muitos dos dis cípulos e leitores de Husserl abandonaram sua explicação desse espírito em termos de um heroísmo da razão no qual o telos do homem ocidental consiste no desvelamento da verdadeira essência das coisas e do Ser por meio da investigação racional Husserl alegava que este telos foi descoberto primeiro pelos gregos na Antiguidade Aqueles discípulos que rejeitavam a visão racional de telos do Ocidente eram assim obrigados a mostrar ou que Antiguidade grega apontou mas não consuiu perceber outro telos mais elevado ou a mostrar que o espírito que pode salvar o Ocidente e o mundo nâo é de origem grega em absoluto O primeiro desses esforços íbi encetado sobretudo por Heideer e está no cerne do que é agora denominado filosofia hermenêutica O segundo esforço foi feito por aqueles que procuravam recuperar as fontes e a energia de várias ortodoxias e cuja manutenção do nome filosofia é questionável Seria possível atribuir ao próprio Husserl alguma responsabilidade pelo abandono de sua visão Os críticos entre os discípulos de Husserl fiizem uma crítica unânime ao passo que Husserl afirma que seu pensamento não tem pressupostos pressupôs no entan to que a investigação racional é o telos humano seus fundamentos fenomenológicos para nossas crenças primárias não abalizaram essa crença Para ser justo com Husserl devese admitir que em suas últimas investigações tenta fundamentar integralmente sua explicação da essência humana como racional Tal fundamentação é central para o retorno ao mimdo da vida como objeto de investigação Ao mesmo tempo o pensa mento de Husserl o conduz para mais perto de algo semelhante à filosofia política na medida em que retoma o tema do mundo da vida Veremos que os escritos de Hus serl ocupamse em pelo menos duas ocasiões de um problema reconhecivelmente de cisivo para toda a tradição da íilosoíia política que começa com Sócrates o da relação do filósofo com o contexto da vida prática e poUtica que sua atividade pressupõe ou das fontes da íilosoíia e da ciência no mundo préfiiosófíco e précientífico Podemos observar de antemão que o modo como Husserl aborda este problema socrático é em alguns aspeaos bastante divergente do método socrático original Essas divergências ajudam a explicar o feto de fenomenólogos posteriores terem aban donado a ênfitse de Husserl sobre a racionalidade Muito embora Husserl concorde com Sócrates que a razão é essencial para a humanidade é incapaz de dizer que a razão E d m u n d H u s s e r l 7 8 1 4 Philosophy p 192 pertence à natureza hiunana Ou seja podese felar da essência humana mas náo da natureza humana a essência do homem consiste em uma racionalidade que se realiza por meio da formação de estrumras de significado A maneira pela qual a razão assim constitui significados possui determinadas características invariáveis e podese assim felar da essência invariante da razão Porém as estruturas de significado constituídas podem variar historicamente e incluem características humanas essenciais tais como a descoberta da teoria na Antiguidade Em outras palavras o modo como o homem concebe a natureza ou como diz Husserl objetiva a natureza sofre mudança histó rica é infinito o poder da razão para formar novos significados e assim é ilimitado seu poder de criar história A natureza portanto pertence à historicidade do espírito em outras palavras é historicamente mutável o modo como o homem rela ciona sua racionalidade a um mundo circundante É de feto a essência imutável da razão procurar clareza sobre fimdamentos básicos mas esses fimdamentos podem ser encontrados em sua própria atividade o modo como é concebido o mundo circun dante ou natural como algo externo à racionalidade nada tem de permanente Quando se fala da natureza humana dizse de feto felar da relação da razão com o mundo circundante que inclui o corpo humano Assim a discussão sobre a natureza humana é em geral substituída por Husserl e pelos fenomenólogos pela discussão da cultura ou civilização como a esfera das relações constituídas entre a razão e o mundo circundante Podese dizer que essa substituição é possível porque a fenomenologia é muito mais racionalista que o pensamento de Sócrates de Platão e da Antiguidade afirma que toda a essência da humanidade é a razão ou consciência Mesmo assim Husserl é um dos mais veementes críticos do historicismo Toda via é um crítico dedicado que conhece sua afinidade com o seu adversário Sua crítica ao historicismo é um aspecto crucial de sua tentativa de resgatar a racionalidade como o telos ocidental pela realização da ciência rigorosa Afinal Husserl constata que deve admitir os méritos do historicismo chega à conclusão de que a razão em sua busca para definir o seu próprio telos deve combinar investigações históricas e sistemáticas O telos da razão além disso não pode ser definido exceto nos termos de uma filosofia da história Podese dizer que a filosofia política de Husserl toma a forma em seus últimos escritos de uma filosofia da história A C r ít ic a d o P sic o l o g is m o A discussão da crítica de Husserl ao historicismo e de suas próprias reflexões posteriores acerca da importância da história deve ser antecedida por uma explanação mais detalhada dos conceitos e aiumentos da fenomenologia Husserl começou como matemático o seu ponto de entrada para os problemas da crise moderna foi sua re 7 8 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 Ibid p 183 sobre Sócrates 6 Ibid p 154188191 Crisü p 315334 7 Crâ p 343351 flexão sobre os fundamentos filosóficos da aritmética e da lógica Foi nesse campo de investigação que encontrou o problema que abriu para ele todo o reino da filosofia a tendência do pensamento desde Descartes e Locke a psicologizar todos os proble mas do conhecimento pela redução do direcionamento da mente a objetos intencio nais a meros atributos psicológicos ou estados de espírito O século XIX testemunhara excepcionais tentativas de fundamentar em processos psicológicos tanto a lógica como a aritmética Contra tais tentativas Husserl argumentou que os conceitos matemáticos e lógicos são entidades ideais e totalidades de sentido que não podem ser entendi das como sendo produzidas de forma casual por eventos físicos ou quasefísicos dentro da psique Tais conceitos e muitos outros como viria a descobrir Husserl possuem uma objetividade irredutível diferentes pensadores podem compreender o mesmo significado objetivo independente das diferenças reais ou aparentes em seus processos psíquicos compreendidos de um ponto de vista fisicalista Os erros das explicações psicológicas da base das ciências são então duplos 1 tais explicações supõem que a mente ou razão humana pode ser entendida nos mesmos termos que os objetos físi cos ou em termos quase físicos moldados a partir daqueles empregados para explicar corpos por exemplo dados dos sentidos e suas leis de dependência associação etc este é o erro do naturalismo 2 tais explicações também pressupõem ou argumen tam que uma psicologia baseada em tais princípios é a verdadeira filosofia primeira e a base de todas as ciências este é o erro do psicologismo Husserl via no psicologismo a principal fonte do subjetivismo ceticismo e relativismo modernos Sua crítica de seus princípios passou da questão mais estreita de suas nefiistas conseqüências para uma explanação das ciências exatas até a questão mais ampla de como desenredar das falsificações psicologistas a explicação da racionalidade como fornecedora de normas Uma vez que o psicologismo pressupóe o naturalismo é necessário articular uma explanação alternativa da psique como algo totalmente diverso da natureza tal como entendida pelos princípios modernos como o domínio do corpo ampliado regido por leis causais Husserl não sujeita a explanação da natureza a uma crítica imediata essa ao contrário contesta a inclusão da psique dentro da natureza assim entendida Isto é crucial para entender por que a psique e portanto a razão pode ter uma es sência mas não uma natureza A naturalização da psique de acordo com Husserl é aparente na leitura de Descartes que a considera como um tipo de substância em paralelo mas não igual à substância corporal Ainda assim Husserl reconhece sua dívida para com Descartes este último inaugurou o mundo da subjetividade como campo de investigação quando encontrou o denominador comum para todos os atos de consciência no eu penso cogjtò Porém muito embora Descartes tenha desco berto a universalidade e o papel fundamental da consciência não enfiitizou o que é sem dúvida único na consciência e que a fez diferente de tudo o que é natural a E d m u n d H u s s e r l 783 8 Philosophy as Rigorous Sdence in Phenommology ver n 3 suprd p 7984 98ff Doravante Rigprous Sdence 9 Ibid p 102105106 110 Crisis p 265 nâo há ontologia para o reino das almas consciência é sempre implicada em um mundo de significados que está presente a ela sempre que houver consciência O eu penso nunca pode ser vazio é sempre dirigido para além de si mesmo e para além do que está mais imediatamente presente isto é a sensação para um objeto A relação da consciência para com seu objeto denomi nada intencionalidade é diversa de qualquer relação entre os objetos ou eventos na simples natureza A explicação científica da intencionalidade a essência da razão deve substituir a psicologia naturalista como a verdadeira filosofia primeira ou metafísica desta forma ao mesmo tempo imitando e se aíástando da colocação das íúndaçóes de todo o conhecimento na explicação de consciência de Descartes É preciso ver como essa nova explicação do psíquico tem como objetivo resgatar ou deixar totalmente evidente pela primeira vez a essência da razão como fornecedora de normas Costumase dizer que Husserl procurou preservar a articulação do mundo do senso comum tal como se mostra para nós antes das distorções pela teoria Isto é correto na medida em que Husserl em oposição às modernas reduções científicas da experiência insiste em que para a consciência todas as aparências têm um logos uma razão imanente para aparecer como aparecem Não são redutíveis a processos ocultos e subjacentes ou substratos Este logos é também chamado de significado existem estruturas para vários tipos de significado ao que Husserl denomina eidê Os vários tipos básicos de atos conscientes vontade desejo lembrança imaginação etc pos suem suas diferentes estruturas eidéticas Husserl argumenta que a evidência dessas estrumras ou formas diferentes de intentar significados deve ser intuída diretamente nos próprios atos onde os tipos de objetos significados que estão sendo procurados sáo de fato encontrados ou realizados Assim o objeto ou o significado que eu de íáto intento em um determinado ato náo pode ser de um tipo totalmente diverso daquele que eu acredito que intento portanto não se pode aceitar a declaração de um psicólogo redutivo de que quando eu intento defender a justiça na realidade estou apenas expressando luxúria animal reprimida A fonte de todas as evidências sobre a nossa razão é a intuição ao invés de inferência ou derivação do racional a partir do irracional ou de um tipo de ato racional a partir de outro tipo É evidente portan to que a explicação da razão por Husserl deve implicar uma defesa da visão do senso comum da integridade do pensamento normativo Por outro lado a explicação do racional por Husserl está longe de ser simples mente uma justificação do realismo do senso comum Somos tentados a dizer que a despeito do realismo do senso comum Husserl mantém uma visáo peculiarmente radical da autonomia absoluta da razâo Podese dizer que se afasta do senso comum exatamente na medida em que caracteriza a razão como normativa ou fornecedora da 784 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 10 Crisis pars 1621 sobre Descartes Rigorous Science p 8889 116117 a nota de Husserl sobre a genuína metafísica Philosophy p 190 a nova ciência que trata de toda questão concebível 11 Rigorous Science p 112 ff 12 Ibid p 146147 Crisis par 9 sec c a crítica dos métodos indiretos lei e nada mais A explanação bastante unilateral de razão pode ser entendida como resultado em parte de uma crítica das bases e métodos da ciência moderna ou de determinadas versões dela na medida em que uma psicologia ílsicalista não pode acei tar o normativo como um dado irredutível da vida psíquica é inteiramente incapaz de explicar a si mesmo como atividade científica Toda ciência repousa sobre normas ideais de verdade o método indutivo é em si uma norma ideal que não pode ser alcançada indutivamente A razão é em essência e por completo normativa pois não podemos sequer deparar com fatos como fàtos sem a pressuposição do ideal Assim todo sentido é ideal e irredutível ao factual A fenomenologia que re vela esta estrutura idealizante e criadora de ideais da razão pode portanto alegar ser a ciência do científico revelando como é possível a ciência Porém é exatamente nesta questão da idealidade total da razão que Husserl constata ser falho o ponto de vista do senso comum e ser aliado à ingenuidade da psicologia fisicalista Uma rigorosa reflexão acerca da racionalidade revela que suas estruturas nada têm a ver com a natureza como o reino do existente a razão como criadora de normas não é de forma alguma limitada pelos fetos da existência a meta contingência do a posteriori Assim devem ser suspensas não negadas todas as supo sições sobre a existência caso se deseje ter acesso à essência do racional Esta suspensão epochê que primeiro possibilita o acesso da consciência aos fenômenos da experiên cia como fenômenos sem a intervenção de suposições sobre sua base metafísica em qualquer coisa existente é o primeiro momento da femosa redução fenomenológica de Husserl A consciência comum com a sua atitude naturalista toma como pres suposto a existência da natureza tende a objetivar ou a considerar toda a realidade como coisificada Assim não enfoca os fenômenos como fenômenos exatamente porque não tem como objetivo uma análise rigorosa A existência sempre escapa a uma descrição rigorosa porque a razão não pode constituir existência pode constituir ape nas o reino ideal do significado Muito embora a natureza como o reino do existente não possa ter qualquer interesse para a fenomenologia a natureza na medida em que tem um significado ideal por exemplo na lei científica é uma preocupação dela a natureza nesse sentido é de fato o produto da razão fornecedora de leis Assim para praticar a fenomenologia e focalizar o reino puro de significado ideal é necessário uma disciplina árdua para desligarse da preocupação comum com a natureza tal como ela existe A filosofia antes da fenomenologia como ciência rigorosa não foi capaz de realizar esse desligamento radical e portanto sempre tendeu a naturalizar a razão assim fazendo revelou que é apenas uma vítima dos preconceitos não examinados do senso comum Tal se revela em sua tendência a considerar a natureza como um todo autossuficiente de coisas que existem sem depender da mente como nos primórdios da cosmologia g r e de considerar a mente como uma variável dependente da na E d m u n d H u s s e r l 785 13 Rrous Science p 85 9298 PhUosophy p 154185188 14 Rorous Science p 8587 as ciências naturais tomam como ponto pacífico a existência da natuteza ibid p 116 ff a razáo náo constitui existência tureza ou corpo ou como um paralelo uma entidade semelhante à natureza Em suma podese dizer que a recuperação das aparências por Husserl está mais preocu pada com a descoberta da autonomia absoluta do racional A C r ít ic a a o H is t o r ic is m o No ensaio A íilosoíia como ciência rigorosa 1911 Husserl constrói um po tente argumento retórico a íavor da nova abordiem na íilosoíia O feto de que este é um dos escritos mais retóricos de Husserl indica que é também um dos mais expü citamente políticos ao contrário de mascarar sua retórica revela os mais proíúndos níveis das intenções da fenomenologia Mais uma vez o aijumento gira em torno da revelação de que o moderno pensamento naturalista e psicologista insidiosamente corrói a si mesmo e portanto parece corroer toda a razão Quando a razão parece estar corroída as conseqüências são desastrosas para toda a vida humana uma vez que toda a vida humana depende de normas racionais O homem deve aterse à ciência rigorosa para a satisfeção das mais elevadas necessidades teóricas e das necessidades de normas de natureza ética e até mesmo religiosa A alegação de que a ciência pode satisfezer tais necessidades foi aventada na Antiguidade e jamais foi de todo abandonada apesar de interesses que supostamente estariam em conflito com o exercício da livre inves tigação É curioso observar que na época atual a livre investigação é seu próprio agente de dissolução As noções de verdade absoluta e normas ideais cedem lugar a um relativismo de múltiplos pontos de vista o espírito científico é enfraquecido por um debilitante ceticismo que não tem outra fonte além da própria ciência As di versas formas da filosofia moderna precoce que íúndamentavam as ciências naturais inauguraram essas tendências céticas Contudo ao positivismo naturalista do século XVIII seguiuse o florescimento de um espírito muito mais cético o positivismo his toricista do século XDC Esse século afirmava que a experiência da história revelara o caráter transitório e limitado pelo tempo de todos os ideais a proira desta tese ou seja a experiência que produz a evidência nada mais era do que o simples feto da ascensão e queda de todas as culturas e formas de vida espiritual Este historicismo po sitivista porém é autorreíútável sozinhos os fetos jamais são capazes de determinar a verdade dos ideais a sentença todos os ideais são válidos apenas para a sua época não é sem dúvida uma simples declaração de feto sobre a história das crenças mas seu intuito é prescritivo sob a forma de uma declaração sobre a validade de todos os ideais passados e íúturos Como tal não pode ser válida apenas para a sua era e não pode ser extraída da simples experiência do passado As diversas íormas do positivismo são portanto manifestamente autorreíútáveis O resultado dessa autodestruição deveria ter constituído um reforço do espírito científico 786 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey 15 Philosophy p 152153181182 16 Rigorous Science p 7172 17 Ibid p 7375 com um tetomo aos ideais clássicos de vetdade absoluta e náo seu enfraquecimento Assim devese atentar para uma forma mais sedutora de ceticismo que está ganhando a batalha contra a ciência rigorosa pela sucessão do positivismo iinuo Husserl referese a um fenômeno particular alemão a ascensão do Weltanschauunhilosophie a íilosoíia das visões de mundo Esu reconhece que a vida espiritual independe de uma base nos simples fatos e ao íazêlo assemelhase à fenomenologia e consideu que toda a verda de incluindo a do íato como o produto de grandes personalidades que interpretam o destino e as aspirações da humanidade pau a sua própria geração e talvez pau os que virão depois essas interpretações são as grandes visões de mundo O espírito científi co tem sua maior íraqueza nesta forma de filosofia a ciência é aqui substituída por uma sabedoria que está a serviço dos interesses imediatos da vida Destinase a uma elevação desses interesses todavia íàltamlhe os decisivos padrões de rigor que são necessários pau determinar qual poderia ser a mais eleuda íbrma desses interesses O historicismo mais antigo desacrediuva todos os ideais e portanto não atendia aos interesses da vidi o aprimoramento da vida é o fiudo assumido por um novo historicismo na erudição e na filosofia Husserl dirige seus argumentos contu a Lebensphilosophie de Dilthey que ao contrário de Nietzsche procuu incorporar o novo telos de investigação aos cânones relativamente tudicionais da erudição e da pesquisa Husserl observa antes de 1914 que o espírito da época é em sua essência anti naturalisu e inclinado ao historicismo de um tipo mais udical de afirmação da vida Desafortunadamente a revigorante emancipação de uma ciência humanamente banal é também uma emancipação da própria razão O estado de espírito da emancipação tem valor relativo quanto ao que deixa para trás mas não se deve esquecer que os mais elevados interesses da cultura humana exigem uma filosofia de rigor científico No entanto a filosofia das visóes de mundo propóe que há uma necessidade humana de um conhecimento unificado e unificador abrangente e totalmente esclarecedor e que a ciência náo pode fornecer esse conhecimento O conhecimento necessário existe sob a forma da compleu e espiritual formação educacional do indivíduo 57 dung Tal formação não pode ser desenvolvida por meio de proposições e doutrinas mas depende de uma experiência multifecetada estética religiosa ética política bem como científica Bildung é a virtude no sentido mais amplo como a excelência habi tual de todos os poderes do conhecimento vontade valorização e autojustificação Uma grande personalidade que possui Bildung pau Dilthey e a maioria dos alemães isto significava Goethe acima de todos os outros protótipos possíveis possui o germe desu virtude ou sabedoria em uma sabedoria rica mas não conceitualizada O papel da ciência é acessório a esta sabedoria a ciência articula esu sabedoria nas visões de mundo ou filosofias sistemáticas que oferecem a resposta relativamente mais perfeiu para o enigma da vida e do mundo A história da filosofia é a história das visóes de E d m u n d H u s s e r l 7 8 7 18 Ibid p 122130 19 Ibid p 7179 20 Ibid p 131133 mundo aprendese com essa história a variedade de grandes tipos humanos possíveis os criadores de visões de mundo O significado essencial da íilosoíia portanto só pode ser apreendido por meio da emparia interpretativa com esses criadores e nâo apenas através da mera lógica Husserl não nega que os objetivos do pensamento da visão de mundo são em muitos aspectos ao mesmo tempo nobres e necessários tenciona preencher uma ne cessária fimção teleológica na vida do homem Em sua opinião no entanto a filosofia da visão de mundo relativiza toda a verdade de acordo com o ponto de vista subjetivo dos indivíduos não obstante serem estes os mais notáveis indivíduos náo é diferente do positivismo quando incentiva uma submissão servil à autoridade das re alidades reinantes Deve ser possível exprimir o que for mais elevado no indivíduo notável como uma forma de ideal universalmente válido não apenas como a posse exclusiva de uma grande alma A objeção de Husserl colocada de outra forma é que o pensamento da visão de mundo não mantém a distinção entre ciência como fenôme no cultural e a ciência como teoria válida e portanto é semelhante ao positivismo por não perceber que os fatos nada nos ensinam sobre a verdade Por outro lado o ideal do Bildung tem o mérito de obscuramente prefigurar uma verdadeira ideia de humanidade universal todo ser humano que se empenha é um filósofo no sentido mais original da palavra De íàto a filosofia deve atender aos interesses da vida mas estes não são os interesses transitórios de um determinado povo ou era e podem ser atendidos apenas por uma ciência rigorosa que alcance uma postura universal Esta mos em perigo de sacrificar o bemestar das gerações futuras que depende do progres so ininterrupto da razão às imediatas pressões da vida à necessidade prática de assu mir uma posição O pensamento da visão de mundo perde de vista a meta infinita da ciência e está preocupado com metas práticas finitas As dificuldades que nossa era experimenta parecem revelar que o homem é um ser complexo e instável que tem dois objetivos um para sua própria época outro para a eternidade No entanto a ciência rigorosa corretamente compreendida não significa nada além da convergência dessas duas metas em um ponto infinito do qual a espécie humana deve aproximarse de modo assintótico Nossa época com a sua necessidade insuportável de uma visão de mundo deve buscar uma visão de mundo racional Ao mesmo tempo há uma cla ra dificuldade nesta proposição a vida pública exige personalidades particularmente significativas que possam realizar o bem público em esferas práticas e sua sabedoria não seja o impessoal e meticuloso saber da ciência pura Tais indivíduos são mais bem atendidos por visões de mundo que não se baseiem na ciência rigorosa Desta forma não fica claro na explanação de Husserl como as visões de mundo não científicas irão 7 8 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Ibidç 130 Ibid p 122123145 Ibid p 124129 Ibid p 134 Ibid p 134137 adquirir uma legitimação não relativística se a ciência rigorosa não é capaz de legitimá las Essa dificuldade não parece ser resolvida pela observação de Husserl de que o passo mais necessário que a filosofia deve dar na atualidade é a clara separação do pen samento da visão de mundo do conhecimento filosófico em seu sentido próprio M u n d o d a V id a e H is t ó r ia A dificuldade que acabamos de mencionar e outras que se pode supor tenham sido levadas à atenção de Husserl por seus críticos e pelo aprofundamento da crise mo ral e política da época instigaram Husserl a se dedicar a algumas novas preocupações e a dar nova direção à investigação fenomenoiógica A mais marcante e íundamental dessas novas preocupações são as reflexões na última grande obra de Husserl Die Krisis der europãischen Wissenschajien und die transzentale Phãnomenobgie A crise das ciências europeias e a fenomenologia iniciada em 1934 e inacabada sobre a ci ência do mundo da vida Na opinião de Husserl essa nova ciência é necessária para fornecer uma base mais perfeita a todos as radicais investigações da fenomenologia e portanto a todas as ciências Podemse isolar as seguintes considerações que levam à concepção dessa ciência 1 A fenomenologia preocupase sempre com a revelação das suposições não in vestigadas e ingênuas feitas pelas ciências e pela filosofia anterior Tomase evidente para Husserl que o mais fundamental e difundido dos ingênuos pressupostos da ciência não é apenas a existência da natureza mas do horizontemundo do homem como ser prático regido pelos interesses da vida cotidiana de modo crucial incluem estes os interesses do homem pela vida das comunidades políticas e religiosas às quais pertence Husserl supõe que muitas das mais básicas concepções e preocupações do homem como cientista não são os produtos dessa ciência mas são pressupostas por ela são constituídas dentro das experiências primárias da vida cotidiana A fenomenolo gia deve reencenar ou reativar as constituições primárias de significado que incluem os objetivos da ciência É ainda correto para Husserl que a razão pura é responsável tanto pelas constituições originais como pelas esquecidas e pelas reativações Vòltar se para a vida normal no mundo da vida não é apenas uma descrição das atitudes de um observador do senso comum até mesmo este observador ou este observador em particular está inconsciente de forma ingênua das constituições originais de seus pressupostos Tais constituições ocorrem anonimamente em sua maior parte e por tanto ingenuamente Assim o resgate fenomenológico da base do mimdo da vida não é idêntico à autocompreensão do mundo da vida esta última deve primeiro ser averiguada a fim de ser íúndamentada em investigações ainda mais profundas E d m u n d H u s s e r l 7 8 9 26 Ibidp3744 27 NR Editada pela Forense Universitária Grupo Gen 28 Crisis p 317334 29 Philosophy p 186 a vida como condição para a ciência p 150 a vida como condição para toda a cultura Crisis par 9 sec I 2 Husserl descobre que até entáo seu pensamento fenomenológico fora limitado por uma ingenuidade própria que assumiu o ideal da teoria pura como dada como já constituída e apenas necessitando de um acompanhamento mais fiel Esse próprio ideal deve ser reduzido ou seja devem ser recuperadas suas constituições originais A fenomenologia não pode ser sem pressupostos se não houver tal recuperação Todavia o ideal da teoria pura surgiu em um determinado lugar em um determinado momento na Antiguidade grega suigiu lá como uma atitude teórica em nítido contraste a com a preponderante atitude míticoreligiosa No momento em que surgiu como uma nova possibilidade pata a vida a teoria pura não poderia ser tomada como pressuposto os motivos que regem os primeiros filósofos revelariam como havia ocorrido uma transfor mação de interesses préfilosóficos em sua adoção de uma nova atitude Husserl assinala três importantes transformações a filosofia adota o mundo como um tema assim voltando sua atenção para o que está implícito mas é despercebido pela humanidade prática imersa em seus vários interesses por aspectos parciais do mundo b a atitude da teoria é distante dos interesses que mergulham o indivíduo no mundo em particular os interesses relacionados com a explicação míticoreligiosa do mundo como sendo regido por poderes que afetam o destino humano e que a humanidade procura influenciar ou controlar esta nova atitude é de assombro em vez de obediência reverência e medo ou súplica submissos c a filosofia mais antiga é como toda verdadeira filosofia uma ciência universal da totalidade do que é mas a primeira forma de filosofia necessária é a cosmologia ou seja uma explanação do todo como natureza entendida como uma estrutura objetiva do corpo independente da mente Explorar por inteiro as implicaçóes dessas transformações implica realizar investigações históricas não se podem divorciar por completo a história e a filosofia sistemática Restam dúvidas acerca do que exata mente espera Husserl encontrar nesta exploração É plausível que pretenda encontrar um íúndamento para a íilosoíia no mimdo préfilosófico com relação aos aspectos a e c da nova atitude Assim a mostra que a filosofia revela a capacidade humana de transfor mar o que está implícito mas oculto na consciência comum das coisas c mostra que a antiga filosofia de alguma forma ainda participa da ingenuidade e da tendência de naturalização de atitudes comuns ou naturais Contudo seria possível mostrar que a atitude de assombro b é uma transformação de outras atitudes Seja como íbr Husserl está correto quando salienta a ruptura que o suigimento da nova atitude introduziu entre as novas seitas orientadas por um recémdescoberto telos com um caráter infinito e com um potencial para a criação de uma comunidade cosmopolita baseada na investigação e as conservadoras e antigas comunidades baseadas na tradição Em outras palavras de modo inexorável o novo telos constituía uma fonte de conflitos para a vida humana Desta íbrma Husserl está disposto a sqir Heidcer ao considerar a teoria pura como uma atitude meramente derivativa que de maneira equivocada afirma a sua autonomia sobre as tradições míticopoéticas que propiciam o acesso primário do homem ao Ser 7 9 0 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e J oseph C ropsey 30 Philosophy p 158164 passim p 169172 31 Ibid p 160164173 ff 3 A ciência do mundo da vida persegue o objetivo de esclarecer e conformar a teoria pura como o ulos final do Ocidente e por meio do Ocidente da humanidade ao fiizêlo porém deve levar a sério a inchção de por que o telos náo está sempre evi dente e por que fica esquecido ou obscurecido Suscitar essas questões de forma séria é o mesmo que ir às fontes do grande conflito anteriormente mencionado Para Husserl isso significa examinar como a atitude natural com sua ingenuidade e resistência à teoria pura aparenta pertencer à essência da razão com base em sua explanação anterior da fenomenologia era impossível essa visão da razão como inerentemente autoocultante ou autoolvidante Assim no ensaio A filosofia como ciência rigorosa não se pode encontrar indício algum de que a própria razão pode estar na origem do conflito entre a ciência rigorosa e as pressões da vida que devem necessariamente deturpar os objetivos da ciência Husserl fãz agora uma tentativa de mostrar que uma vez que a ciência a racionalidade em sua perfeição deve desenvolverse historicamente e tem condições na história está sujeita também a distorções e esquecimento Husserl acrediu agora que o problema mais profundo de toda a filosofia é o sentido da razão na história 4 A ciência do mundo da vida deve ser um exame do mundo da vida ocidental em particular É neste mundo da vida que emergiu a teoria pura como o mais elevado telos do ser do homem portanto é aqui que na verdade se desenvolve o problema da história da luta permanente do homem para manterse fiel a esse telos apesar das forças que o compelem a esquecer dele E indispensável um exame da história dos esforços ocidentais para atingir a ciência rigorosa para a conclusão do inquérito anun ciado em 3 acima a explanação da essência da razão ao revelar que a autoocultação pertencer à sua essência tanto quanto a revelação de seu telos Ocupa lugar central no drama dessa história de Husserl a criação da moderna física matemática Esta física ou melhor sua base filosófica contém tanto a promessa da descoberta de uma verda deira ciência rigorosa quanto as sementes para as falsificações da ciência nas moder nas formas de ceticismo Podemos encontrar as raízes de nossa presente crise na obra fundamental de Galileu Descartes Locke e Newton que são seguidos pelos grandes analistas da primeira crise destes fundamentos Berkeley Hume Kant e Hegel A crise de Husserl devotase em grande parte a uma investigação histórica do pensamento desses filósofos com a expectativa de que um telos oculto esteja em funcionamento em seus esforços para estabelecer uma filosofia científica Em outras palavras há um evidente projeto que se desenvolve na história por meio do qual a razão procede pelo erro em direção à plena clareza sobre sua autonomia Devese perguntar no entanto o que tem essa história a ver com o mundo da vida Em primeiro lugar Husserl oferece uma explanação da origem do matemático ou mais exatamente da geometria grega em termos das constituições anônimas de sentido que ocorrem dentro das atividades normais do mundo da vida medir calcular avaliar etc E dmund H usserl 7 9 1 32 Crisis par 3 Philosophy p 155 ff 33 Philosophy p 161 a historicidade especial do Ocidente Crisis 14 e 57 o telos oculto das lutas entre os movimentos filosóficos p ex ceticismo e fé na razão 34 Crisis p 353378 The Origin of Geometry e 9 sec a Husserl mostra que a precisão do matemático deriva de um processo de idealização das percepções ordinárias uma vez que tenham sido constituídas tais idealizações sáo elas incorporadas sob formas simbólicas e de notação que lhes permitem ser transmitidas ensinadas manipuladas com maior facilidade e assim tornaremse a base dos conjuntos de conhecimentos que sejam científicos Essas mesmas materializações simbólicas po rém escondem suas próprias origens nas constituições primárias do mundo da vida As premissas das ciências são sedimentações de significados originais esquecidos O preço pago pelo estabelecimento das ciências transmissíveis e do progresso atingido com base em primórdios que náo são reencenados por gerações posteriores é uma crescente superficialidade uma evaporação do sentido nas ideias transmitidas Desta forma um conjunto de ideias originais passa a ser mera técnica Uma dificuldade na explanação de Husserl está na noção de anonimato das constituições originais é dificil compreender como uma constatação anônima é de fato uma constatação e como algo que nunca foi verdadeiramente percebido por ninguém pode ser esquecido e reencenado O que é verdadeiro do conhecimento matemático é verdadeiro de todo o conhe cimento tanto o ensino a aprendizagem a aplicação a validação e o maior desenvol vimento pressupõem que todas as ideias originais se tornaram transmissíveis isto é que se tornaram tradicionais A tradicionalidade do conhecimento é a fonte de seu caráter dual como autoesquecimento e desvelamento As pressões para esta criação de tradições emergem da própria razão na explanação de Husserl Não temos de deixar o plano de preocupações teóricas a fim de descobrir as pressões da distorção Não esta mos reduzindo as preocupações teóricas a extrateóricas Contudo temos de assinalar um aspecto da teoria que só se torna evidente a partir do ponto de vista do mundo da vida o caráter de criação da tradição que possui a razâo Além disso diíundida na discussão de Husserl está a alegação de que a tradição do conhecimento matemático tem desempenhado papel preponderante na distorção da ciência e da filosofia ocidentais e através deles do mundo da vida ocidental Em suma é opinião de Husserl que Galileu interpretou a natureza em termos de números de tal for ma a esconder a atividade idealizante da razáo envolvida na interpretação e assim indu ziu ao erro toda a ciência ocidental posterior em relaçáo à sua matematização da natureza como a realidade da natureza isto é decisivo para a naturalização do reino da mente ao longo de linhas físicomatemáticas A matemática permite num grau extraordinário o uso meramente técnico e autoolvidante dos conceitos Assim quando a própria filosofia passa a ser matematizada é muito grande o potencial para a distorção de todas as normas e ideais que devem ser fundamentados na filosofia Ao mesmo tempo Husserl sugere que a pressão para matematizar a natureza vem em certa medida do mundo da vida em si sob a forma das várias exigências para o domínio técnico da natureza 792 H istória da Filosofia Política Leo Strauss e Joseph Cropsey 35 Ibid p 366367 e 9 seções fi cf p 313315 para a descrição da sedimentação como o a priori da história também Philosophy p 161 ff 36 Crisis 910 37 Philosophy p 151 Crisis 8 12 Podese dizer que Husserl subestima muito a natureza e o grau das pressões de correntes de interesses práticos que se concentram quase por inteiro na storçâo da teoria por meio de suas próprias exigências e do mundo da vida através da teoria Apa rentemente essa assimetria de ênfese está relacionada a determinadas suposições fun damentais subjacentes à fenomenologia as quais podem ser chamadas de suposições iluministas Para Husserl as pressões deturpadoras decorrentes do mundo da vida nâo parecem ser permanentes ou insuperáveis Acredita que as ideias sáo mais fortes do que a experiência e que a íilosoíia corretamente assume o papel que tem no moderno Ocidente de exercer a liderança nos assuntos humanos A filosofia moderna no entanto assumiu este papel com felsos princípios que fundamentam novos precon ceitos a fenomenologia é o tipo de filosofia que pode pelo contrário ter sucesso em superar os preconceitos de milênios Percebese que a história ocidental portanto culminará com a expectativa que a humanidade pode levar milênios a atingir de que o homem se torne totalmente responsável por si mesmo totalmente autônomo abandonando antigos hábitos de pensamento Por trás dessa visáo otimista dos assuntos humanos está uma versão bastante particular do moderno Iluminismo versão esta que surgiu durante a primeira crise da era moderna no século XVIII Tratase da visão de que os males da sociedade e as forças que se interpõem no caminho da virtude e da decência gerais emergem da pró pria teoria Esta visão é expressa de modo claro na subordinação kantiana da mera es peculação dialética com sua influência prejudicial para a razão prática e a sua base na boa vontade da pessoa comum Muito embora tal pensamento pareça assumir o ponto de vista do senso comum ou da razão comum na verdade atribui ao homem teórico importância e poder centrais para bem ou para mal O avesso da visão de que nosso mundo está corrompido principalmente pelas felsas teorias é a visão de que será corrigido pelas teorias verdadeiras ou talvez pelo fim de todas as teorias Com certeza uma versão deste pensamento é encontrada em Husserl Tem sido afirmado a respeito de Husserl que dá o passo tremendo de reintegração da doxa ou opinião os seus direitos como íúndamento de toda a filosofia nas constituições primárias do su jeito anônimo e mostra o erro da elevação platônica da epUtêmè conhecimento aci ma e contra a doxaZ Isso quer dizer que quase tudo está correto com o entendimento comum a filosofia não transcende mas elabora sua racionalidade implícita o nobre telos dentro dela Alguns dos sucessores de Husserl modificam esta posição por meio da rejeição do tebs racional mas permanecem como fenomenólogos comprometidos com a elaboração do mundo humano que se constitui por meio das experiências primárias de existência É provável que uma reflexão acerca deste foco fenomenológico auxilie a lançar luz sobre a relativa ausência de filosofia política na fenomenologia Edmund H usserl 793 38 Philosophy p 176 39 Crisis p 90 Philosophy p 178 sobre a liderança da filosofia 40 Crisis p 264265 41 A Gurwitsch Studies in Phenomenology and Psychology Evanston Northwestern University Press 1966 p 447 794 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey L e it u r a s A Husserl Edmund Philosophy as Rigorous Science Trans with introduction by Q Lauer in Ed mund Husserl Phenomenology and the Crisis t f Philosophy NewYork Harper and Row 1965 Husserl Edmund Philosophy and the Crisis of European Man Trans Q Lauer in ibid B Husserl Edmund The Crisis o f European Sciences and Transcendental Phenomenology An Introduction to PhenomenologcalPhilosophy Trans with introduction by D Carr Evanston Northwestern Uni versity Press 1970 Die Krisis der europãischen Wissenschajien und die transzentale Phãnomenologie Eine Einleitung in die phãnomenologische Philosophie A crise das ciências europeias e a bnomeno logia transcendental uma introdução à filosofia fenomenoiógica M artin H eidegger A 18891976 Martin Heidegger foi o primeiro filósofo desde Platão e Aristóteles a examinar em profundidade a questão do Ser De fato sua dedicação a esta pergunta inscreveo como o mais preeminente dos filósofos da Europa continental no século XX É menos claro porém seu status como filósofo político Em sua obra máxima e inicial Sein undZeit Ser e Tempo Heidegger demonstrou pouco preocuparse com a ética ou a política e logo depois rejeitou a sugestão para que escrevesse uma ética proveniente de uma fundamental incompreensão de seu pensamento Além disso no final da vida afirmou que seu pensamento não proporcionou qualquer auxílio aos problemas sociais e políticos Por que então analisálo em um texto dedicado à filosofia política Há duas respostas para essa pergunta No nível prático a afirmação de Heidegger de que seu pensamento é irrelevante do ponto de vista da política deve ser entendida à luz de seu alinhamento com o nazismo de 1933 a 1934 Este incidente empresta um significado político a seu pensamento que mais tarde Heidegger não viria a ter grande desejo de reconhecer O maior impacto de seu pensamento para a ética e a política no entanto originase de sua preocupação com o niilismo O niilismo possui um sentido moral tanto quanto metafísico Do ponto de vista metafísico significa que nada é ou seja não que não haja absolutamente nada o que seria absurdo mas que não há base imutável nenhum Deus ou Ser eterno tal como a tradição ocidental desde Platão imaginou estar por trás do fluxo da experiência Assim as inumeráveis coisas que de acordo com nossa experiência tão evidentemente são na verdade apenas parecem ser e na realidade estão em constante mutação tornan dose constantemente algo diferente do que são de uma forma caótica e inteiramente imprevisível Entretanto sem uma base ou fundamento imutável para este fluxo é dificil perceber como são possíveis a verdade a justiça e a moral Se não há Ser ou se Deus está morto como afirmava Nietzsche então há apenas o devir e portanto não há padrão fixo ou eterno No entanto se nada é fundamentalmente verdadeiro como reconheceram Dostoiévski e Nietzsche então tudo é permitido A conseqüência do niilismo metafísico é portanto o niilismo moral A negação de um Deus ou Ser eter no acarreta a destruição de todos os padrões fixos ou imutáveis do bem e do mal ou do nobre e do vil e portanto a destruição da base para qualquer lei moral universal ou padróes naturais de excelência humana Sob este prisma todos os padróes se revelam como historicamente relativos como meros preconceitos ou ideologias que servem para manter o poder explícito de algum grupo raça casta ou classe Esse reconhecimento do relativismo histórico de todos os padróes tem duas con seqüências diversas porém relacionadas Por um lado conduz ao abandono de todas as aspiraçóes humanas mais elevadas uma vez que em última instância nenhuma coisa tem mais valor do que qualquer outra coisa e náo há portanto qualquer motivo para lutar e se sacrificar por metas difíceis e distantes O resultado é um hedonismo banal que busca o caminho de menor resistência e assim é guiado por qualquer dese jo que por acaso predomine em um determinado momento Concomitante com este niilismo gentil há um niilismo brutal que procura destruir todas as normas e esta belecerse como a meta suprema da atividade humana Este é o niilismo como vontade de poder que sob a forma de ciência e de técnica tem como objetivo a conquista da natureza e sob a forma de uma política de poder a subjugaçâo da humanidade Nestas duas formas práticas de niilismo as doutrinas metafísicas mais abstratas e remotas vêm a ter implicaçóes morais éticas e políticas reais e muito fatídicas O mundo em que nasceu Heidegger apenas começava a se familiarizar com o niilismo De fato no final do século XIX a Europa caracterizavase em geral por uma difundida fé no progresso da razáo e da ciência uma fé que a filosofia com algu mas notáveis exceçóes compartilhava A Primeira Guerra Mundial abalou essa fé no entanto e infundiu o debate filosófico com uma seriedade e premência que este náo possuía antes Alguns atribuíram este flagelo às deficiências do capitalismo alguns ao nacionalismo excessivo mas a muitos outros parecia que os pressupostos filosóficos da modernidade e talvez até do próprio mundo ocidental possuíam terríveis defeitos que o niilismo que Nietzsche ouvira bater à porta encontrara seu caminho para entrar no coração da civilização europeia Heidegger também se dedicou a esta questão pri meiro apenas dentro dos horizontes da fenomenologia tal como desenvolvida por seu mestre e mais tarde colega Edmund Husserl mas cada vez mais dentro do contexto da tradição ocidental como um todo Na visáo de Heidegger o niilismo é a conseqüência final de um equívoco funda mental no que diz respeito ao Ser equívoco este que Heidegger denomina o esquecimen to do Ser É uma peculiaridade de seu pensamento atribuir a mais profunda importância prática ao que sáo aparentemente as consideraçóes teóricas mais abstratas e remotas Parece absurda na superfície a tentativa de Heidegger para convencer o leitor de que um difundido equívoco a respeito do Ser pode caracterizar toda a civilização ocidental o que de fato tem ocorrido uma vez que parece muito improvável que uma questáo metafísica táo abstrata jamais pudesse interessar a mais que um punhado de indivíduos No entanto náo é isto que pretende Heidegger Ao contrário assume que os pensadores que desenvolveram a estrutura básica dentro da qual pensamos e agimos aqueles a quem podemos com justiça chamar de legisladores no sentido mais fundamental têm uma concepção equivocada do Ser e esqueceram seu significado original O fracasso desses 796 H istória da Filosofia P olítica Leo Strauss e Joseph Cropsey pensadores em reconhecer a verdade sobre o Ser isto é averdade sobre o que é mais funda mental levou na opinião de H eider a uma distorção fundamental das categorias da linguagem e do pensamento Essa distorção não só nos impede de nos reconciliarmos com o Ser ou de compreender sua imponância para nossa vida cotidiana como também estabelece uma estrutura de pensamento e ação que separa o homem dos autênticos en tendimento e atividade humanos Neste sentído toma impossível uma existência ética e pobtica autêntica e em última análise lança o homem no niilismo Para Heideer a fonte desta concepção equivocada do Ser é o pensamento dos gregos em particular de Platão O esquecimento do Ser que termina no niilismo é o resultado da redefinição de Platão do Ser como presença eterna ou o que permanece imutável para sempre Esta noção era tão convincente que parecia fornecer a resposta definitiva para a questão do Ser e como resultado foi esquecida a própria pergunta Na opinião de Heideer no entanto é insuficiente esta resposta platônica No entan to mais tarde o esquecimento da questão do Ser que tal resposta engendrou tornou impossível até mesmo reconhecer esta insuficiência Assim a concepção platônica do Ser tornouse a premissa básica da tradição ocidental Culmina no niilismo o erro cada vez mais profundo que essa premissa insuficiente engendra No entanto o niilismo tal como o entende Heideer não é apenas um fenôme no n ativ o Pelo contrário representa duas possibilidades diferentes Por um lado o esquecimento do Ser que termina em uma n çã o do Ser e portanto uma negação de todas as categorias e padrões permite que prevaleçam as paixóes mais banais e bru tais Por outro essa obliteração de categorias e padrões desanuvia o horizonte e torna possível uma experiência original do mistério e maravilha da existência que é impos sível desde a época de Platão e Aristóteles O niilismo é assim ao mesmo tempo a maior catástrofe ética e política e a maior possibilidade filosófica dos últimos 2500 anos Desta forma Heideer acredita que o niilismo contém a possibilidade de sua própria destruição e por conseguinte a possibilidade de salvação da humanidade Esta no entanto permanece uma possibilidade que deve ser aproveitada e realizada e por conseqüência pode ser contornada e perdida O perigo para o homem como o percebe Heideer é que este pode acreditar que o niilismo é apenas um recente des vio de uma tradição de resto saudável e que pode ser restaurada por uma pequena cor reção É necessário ao contrário reconhecer a irremediável essência niilista da tradição ocidental como um todo e se aíástar totalmente dela na direção de uma recordação e reavaliação da esquecida questão do Ser que o niilismo possibilita A primeira e maior tentativa de H eider para se reconciliar com a questão do Ser ü i Ser e Tempo A tarefii específica desta obra era suscitar a questão do sentido do Ser 5 por meio de uma análise do ser humano Daseirí em termos de temporalidade ou em termos mais fiuniliares chegar a um entendimento da relação entre Ser e tempo por meio de um exame do modo como estes estão unidos no homem como ser histórico Na superfície há poucas indicações de que este projeto tenha um motivo prático ou político Sem dúvida a obra apresentase apenas como uma tentativa de recuperar os íúndamentos da ciência Neste sentido está dentro do horizonte da fenomenolca M a r t in H e id e g g e r 7 9 7 Um exame um pouco mais próximo no entanto revela uma continuidade fundamental do teórico e do prático A questão do Ser segundo Heidegger é a fonte e o fundamento de todas as ontologias ou ordenações de tudo que é e portanto de toda a compreensão humana Ao esquecer esta questão portanto o homem esquece a fonte de seu próprio conhecimento e perde a capacidade de questionar de maneira mais radical o que é es sencial tanto ao verdadeiro pensamento como à autêntica liberdade Sem ela o homem é reduzido a uma besta calculante preocupado apenas com sua preservação e prazer um último homem para usar a terminologia de Nietzsche para quem a beleza a sabedoria e a grandeza são meras palavras A banalidade niilista deste último homem portanto parece estar por trás da preocupação de Heideer com os fundamentos da ciência Para se reconciliar com este niilismo implícito é necessário do ponto de vista de Heideer superar o esquecimento do Ser O Ser contudo não é esquecido de maneira ordinária A questão do Ser é esquecida porque o próprio Ser é aceito como o concei to por si mesmo evidente como mais universal mas também como o mais vazio dos conceitos Em outras palavras o Ser é esquecido porque todas as pessoas acreditam que sabem o que é o Ser Isto segundo Heideer é resultado de um mau entendimento da relação entre Ser e tempo Desde Platão o Ser tem sido entendido em oposição às coisas reais como o que está além do tempo e não muda Todas as coisas reais nesse sentido estão entre o Ser e o nada Todas as coisas vêm a ser e também morrem Em oposição ao imutável reino do Ser portanto as coisas reais existem no reino do devir ou tempo A tradição ocidental nesse sentido caracterizase pela antítese entre Ser e devir ou Ser e tempo O que se tornou aparente nos tempos modernos porém é que esta distinção que está no cerne das categorias de nosso entendimento nos impede de compreender de modo adequado a nossa realidade histórica concreta o que Heidegger chama de fecticidade da existência humana Assim não podemos compreender a verdade sobre nós mesmos como seres históricos porque a tradição que informa nossa maneira de pensar repousa sobre o entendimento do Ser como presença eterna o que demonstra uma compreensão do Ser conexa a uma noção imperfeita do tempo O que é necessário é ter uma compreensão mais completa do Ser em termos da concepção mais profunda de tempo que veio à tona como resultado da descoberta da história Heidegger tenta suscitar a questão do Ser e tempo através de uma investigação do homem porque acredita que a humanidade tem uma relação especial com o Ser O homem é o único ser que tem seu próprio ser como questão ou seja o homem é o único ser que se preocupa com o que virá a ser com seu futuro suas possibilidades de ser A bolota do carvalho náo tem dúvidas sobre o que virá a ser Afora algum aciden te virá a ser um carvalho O homem na visão de Heidegger nâo tem um fim assim determinado Seu fim e portanto seu futuro é sempre uma indagação para ele Por tanto em contraste com a bolota o homem não pode habitar apenas no presente mas está sempre preocupado com o íuturo De fato em contraste com a bolota o homem possui um futuro O futuro da bolota significa alguma coisa somente para o homem Neste sentido o homem é também o único ser que é autenticamente histórico que está envolvido de modo ativo em planejar e moldar seu futuro em fazer história É 7 9 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y por causa dessa conexáo de Ser e tempo no ser humano que Heideer acredita que o homem pode servir como via de acesso para a questão do Ser como tal Ao examinar a forma como a história surge da preocupação do homem com a questáo de seu ser isto é com seu fim indeterminado Heideer espera char a um entendimento mais profimdo da questáo do Ser mesmo isto é dos fins não só do homem mas de todas as coisas que sáo e assim mostrar como o tempo como tal emeige do Ser H eid e r tenta abordar a questáo do Ser por meio de uma análise do ser hu mano que desvele as estruturas fundamentais da existência humana que mostre não 0 que o homem é mas como ele existe como ele é no e através do tempo Heideer principia com uma análise da existência cotidiana que se concentra no fiito de que o homem em toda parte e sempre se vê lançado em um mundo que se caracteriza por uma particular ontologia ou ordenação de tudo o que é Enquanto ser humano o homem é portanto o que Heideer chama de sernomundo Em conseqüência o homem encontra a si mesmo através das coisas com os outros ou seja no âmbito de uma estrutura particular que determina as relaçóes entre tudo o que é que define seus objetivos e por conseguinte suas atividades que desta forma determina como o homem e tudo o mais é Na maioria das vezes o homem é simplesmente absorvi do pela ordem vigente e é determinado em um nível prático conveniente e teórico disponível pelas preocupaçóes que surgem nela Na maior parte das vezes portanto o homem é caracterizado por aquilo que H eid er chama de decadência e existe de modo nâo autêntico tal como eles sendo eles Neste modo de ser o homem é dominado pelo que H eid er chama de impessoal que aceita o mundo como dado e jamais questiona com seriedade a ordem vigente das coisas De acordo com H eidçr a questáo do Ser surge para os seres humanos somente quando sua existência cotidiana é questionada por um autêntico confiunto com a morte Como sernomundo o homem está sempre voltado para o futuro porque o seu próprio ser é sempre uma incfigação para ele Seu ser nesse sentido se caracteriza por aquilo que H eider chama de cuidado Como um ser futuro que se preocupa com o que vai acontecer com ele é inevitável que o homem se depare com a questáo da morte Isso é verdadeiro até mesmo para o homem em sua modalidade do impessoal Este eu se prepa ra para a morte no entanto apenas de maneira não autêntica compieendendo a morte apenas em termos da morte de outros como o que acontece a a ém ou a eles Esta experiência não autêntica da morte confirma e náo transcende a hierarquia de tudo que é Uma compreensão autêntica da morte exe uma experiência totalmente diversa H eider descobre a possibilidade de compreender a morte de modo autêntico no fe nômeno da angústia em particular no modo como se revela no chamado da consciência o qual H eider defende ser o chamado do próprio ser de cada um como a cura pelas futuras possibilidades de ser Esta experiência da morte na aijústia liberta o homem da ordem predominante É o reconhecimento da finitude do próprio ser singular e abre a possibilidade da experiência da própria questáo do Ser De modo geral a vida é entendida em termos das possibilidades disponíveis dentro de um determinado mundo ou hierarquia de tudo o que é Para o impessoal M a r t in H e id e g g e r 7 9 9 o on essas possibilidades parecem ser dadas e imutáveis A autêntica experiência da morte porém revela essas possibilidades como possibilidades uma vez que revela que não podemos fazer tudo Neste momento de visão enfrentamos a morte como aquilo que é mais nosso como a possibilidade inelutável que limita todas as nossas outras possibilidades Reconhecemos que somos lançados em um mundo determinado de onde devemos partir A experiência da morte revela assim o horizonte singular de nosso mundo e nosso próprio destino pessoal dentro do destino maior daqueles com quem somos a nossa gente ou geração Emergindo como a questão do nosso pró prio ser a morte nos orienta para um conjunto específico de respostas ou possibilida des Descobrir essas respostas ou perceber essas possibilidades tornamse o objetivo de nossa atividade A questão de nosso ser que surge de nosso reconhecimento autêntico da inevitabilidade de nossa própria morte é assim a fonte da meta que é projetada diante de nós Esta meta projetada de acordo com Heideer é a fonte de nosso futu ro pois o futuro autêntico é sempre apenas como o prevemos aquilo em cuja direção nos movemos É com base neste objetivo ou meta futuros que em seguida agarramos o passado e o impedimos de escapar pois é somente desta forma que adquire relevân cia para nós Assim a revelação das possibilidades de nosso próprio ser no momento da visão em face da morte desvela todo um mundo de seres Todavia Heidegger nâo compreendeu o nexo fimdamental de Ser e tempo Na verdade este é entendido apenas da perspectiva do ser humano só negativamente em termos da morte O objetivo de Ser e Tempo era compreender Ser e tempo por eles mesmos independentemente do homem mas Heidegger nâo foi capaz de realizar esta tarefa de modo que satisfizesse a si mesmo Pretendia na parte inacabada do primeiro livro suscitar a questão do Ser de forma explícita e em seguida realizar o que denomi nou a destruição da história da ontologia ou o que poderíamos chamar de destruição da metafísica Quando começou Ser e Tempo Heidegger acreditava que seria possível contornar toda a história da metafísica ocidental e suscitar de novo a questão do Ser por meio de uma investigação direta do próprio ser humano e sobre essa base reinterpre tar a história Porém durante a redação de Ser e Tempo constatou que a linguagem e em particular a terminologia filosófica que era forçado a usar derivava da metafísica e assim em seus íúndamentos dependia dela As categorias dentro das quais tentou repensar a questão do Ser portanto eram constituídas de tal forma que escamoteavam a pergunta mesma ou seja de uma forma que tornava impossível até mesmo entender a questão de forma adequada Devido a esta dependência da metafísica Heidegger foi incapaz de concluir Ser e Tempo tal como pretendia O fracasso de Ser e Tempo portan to deixou claro para ele que a destruição da metafísica teria de preceder e não suceder o confronto explícito com a questão do Ser Essa destruição da metafísica é realizada em uma série de trabalhos posteriores e é basicamente uma crítica e uma reinterpretaçáo da filosofia ocidental que delineia o crescente esquecimento do Ser e desta forma o florescimento do niilismo Isso é efe tuado não através da demonstração de contradições internas ou motivos psicológicos ou econômicos subliminares mas pela demonstração de como cada pensador aceita a 8 0 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y noção predominante do Ser e assim deixa sem exame a questão norteadora da filo sofia ocidental a questão do Ser Esta crítica e reinterpretação no entanto não é de todo negativa mas ao contrário pretende reconciliarse com o Ser pois enquanto de monstra a obliteração cada vez mais profunda do Ser também aponta para o vazio do lugar que o Ser deixou desocupado onde o Ser é deixado sem exame esquecido Desta forma a destruição da metafisica é também o que Heideer denomina a história do Ser isto é a história do equívoco do esquecimento e do que Heideer muitas vezes chama de retirada do Ser que constitui a essência da civilização ocidental Como vimos já está aparente uma crítica implícita da metafisica cm Ser e Tempo No entanto esta crítica permanece dentro do horizonte geral da preocupação fenome nológica com os fimdamentos da ciência que Heideer herdou de Husserl A crítica de Heidegger da tradição ocidental nos anos que se seguiram aSere Tempo exibe uma apreciação mais profunda das conseqüências éticas e políticas do esquecimento do Ser ou daquilo que cada vez mais H eid er chama de niilismo Essa virada em seu pensamento foi o resultado de uma série de fatores mas talvez nenhum tão impor tante quanto o nazismo Heidegger envolveuse com os nazistas durante a década de 1930 na Universi dade de Freiburg No meio da revolução que se seguiu à ascensão de Hider ao poder H eid e r foi convidado por seus colegas para assumir o cargo de reitor da universi dade a fim de ajudar a preservar a independência da instituição Heidegger esperava mais do que isso no entanto e acreditava que a revolução nazista poderia ser direcio nada para uma experiência mais fundamental da existência humana que poderia servir como base para uma ética e política mais autênticas Neste esquema de reforma e de redirecionamento na opinião de Heideer a universidade alemã teria de desempe nhar um papel de liderança e fornecer ao movimento político um conteúdo intelectual que até então lhe fidtava Desta forma essa reíúndação fimdamental da vida alemã pressupunha uma reíúndação da universidade alemã Foi isso que Heidegger acredi tou ser capaz de realizar O títido decididamente não nazista de seu discurso de posse como reitor Die Seíhstbehauptung der Deutschen Universitãf A autoafirmação da universidade alemã reflete tal anseio Suas esperanças logo se revelaram como ilusões e Heideer percebeu estar em desacordo com os nazistas como resultado de sua resistência à nazificação da univer sidade e sua recusa em demitir judeus que integravam o corpo docente suas tentativas de conciliação por outro lado não satisfizeram as autoridades Tampouco foram essas as únicas dificuldades de Heideer pois as forças positivas na universidade alemã cujo apoio esperava resistiram a suas tentativas de reforma Foram assim aniquiladas suas M a r t in H e id e g g e r 801 Para a documentação acerca da relação de H eider com o nazimso ver The SelfAsseition of the German University Review ofM etaphpia XXXVIII March 1985 467 502 Only a God Can Save Us in Heidegger The Man and Thinker Ed T Sheehan Chicago Precedem Publishing 1981 An Introduction to Metaphysia New Haven Yale University Press 1959 doravante IM e seus discursos do período nazista em Ed M Friedman lhe Worlds ofEcistentialism New York Random House 1964 esperanças de uma transformação política com base em uma prévia transformação aca dêmica Confrontado com demandas nazistas que não estava disposto a atender e com uma intransigência do corpo docente que não podia vencer renunciou Como resultado passou a ser encarado com crescente desconfiança pelo regime e durante o restante do período nazista foi submetido a uma variedade de medidas punitivas incluindo a fiscalização de seus seminários e o trabalho forçado em fortificações militares Qualquer que fosse sua antipatia pelo nazismo Heidegger aparentemente tam bém viu algo positivo nele pois em 1935 falou da verdade interior e grandeza deste movimento em suas preleçóes intituladas Introdução à metafísica Einfiihrungin die Metaphysik e incluiu esse trecho quando a obra foi publicada em 1953 Significaria isso que Heideer era nazista Heidegger tentou defenderse dessa acusação de duas maneiras Primeiro argumentou que alterar o texto seria uma íaisificaçáo histórica Na verdade tal atitude teria permitido a acusação de que tentava esconder seu passado nazista Segundo na década de 1960 chamou a atenção para uma elucidação paren tética no trecho ofensivo que dizia a saber o encontro entre a técnica do mundo e o homem moderno Heidegger alegava que seu público sério entendeuo de modo correto em 1935 enquanto os estúpidos e suspeitosos interpretaram a passagem a seu próprio gosto como uma indicação de sua afeição pelo regime Deixando de lado toda a complexidade do íato e das especulações continua a ser indiscutível que Heideer jamais repudiou de público seu discurso nazista Isso posto o que nos revela esta elucidação parentética a respeito do modo como Heideer percebia o nazismo O homem moderno tal como o entendia possui um elo fundamental com a técnica Na visão de Heidegger tal como Ernst Jünger de monstrara com perspicácia em seu livro Der Arbeiter O trabalhador o modelo para o ser do homem no mundo tecnológico contemporâneo é o trabalhador Aparente mente era a tentativa dos nazistas de dar um novo significado ao homem como traba lhador que Heideer admirava e que acreditava oferecer a possibilidade de uma nova e mais autêntica ética e política embora jamais tenha esclarecido como tal poderia ser alcançado Heideer reconhecia que aqueles que ocupam o poder eram demasiado inábeis no pensamento para saber lidar de forma adequada com a técnica mas acre ditava que poderiam dar ouvidos àqueles capazes de pensamento mais profundo Por óbvio estava errado quanto a isto e náo foi capaz de perceber a dedicação dos líderes do movimento nazista a uma ideologia de genocídio e apocalipse Para Heidegger esta experiência teve como resultado filosófico uma reavaliação do poder e da penetração do pensamento metafísico e de sua ligação com o niilismo A metafísica culminou náo apenas no niilismo gentil que reconhecera em Ser e Tempo como a banalidade do mundo cotidiano e do ou impessoal mas também no niilismo brutal dos nazistas O fato de Heidegger náo ter conseguido terminar Ser e Tempo ligavase portanto à sua incapacidade de transformar seja a universidade alemã ou o movimento nazista Tornouse necessária portanto uma análise mais profunda e 8 0 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 2 Ed Günther Neske Erinnerungan Martin Heidegger Pfullingen Neske 1977 p 49 crítica que pudesse explicar a origem do niilismo brutal que se manifestou no nazismo Tal análise em primeira instância significava um exame da modernidade De acordo com Heidegger a modernidade é caracterizada pela subjetividade ou seja pelo feto de que nos tempos modernos o próprio bomem serve como a medida e o fundamento de toda a vetdade A modernidade é portanto também o reino da li berdade pois a predominância da subjetividade liberta o bomem da estrutura teocên trica da sociedade cristã tradicional e o estabelece sobre ele mesmo A fonte desu no noção é a interpretação de Descartes do bomem como autoconsciência que estabelece a independência absoluta do bomem como medida de todas as coisas Daí em diante apenas o que pode passar pelo tribunal da consciência ou seja apenas o que pode ser percebido e determinado entra no cômputo das coisas Porém quando o bomem se ergue sozinbo perde seu lugar no cosmos ordenado da sociedade tradicional A bberdade moderna portanto traz em seu bojo uma abenação que arremessa o bomem na busca de srança por meio da subordinação da natureza à sua própria vontade Assim a natureza não mais fornece diretrizes para a ação bumana mas passa a ser um outro incerto e portanto perigoso que deve ser dominado Em um nível intelectual a natureza é subjugada pela ciência moderna que desenvolve uma representação ou modelo matemático do mundo e assim reduz o mundo a um objeto previsível e portanto controlável H eider cbama este processo de objetívação A mo derna técnica portanto une esta nova ciência ao trabalbo bumano de modo a subjiar e tiansformar o mundo natural em um objeto adequado para o uso e babitação bumanos Fracassa no entanto a tentativa de garantir a subjetividade e a liberdade bumana por meio da subjugação técnica da natureza porque necessariamente implica também a subjição da natureza bumana e desta forma póe as pessoas em conflito umas com as outras A crescente competitividade desse conflito acarreta a formação de entidades técnicas e políticas cada vez maiores e mais organizadas e portanto na realidade resulta apenas na subordinação de todos os seres bumanos às tarefes do mundo tecno lógico Assim para Heideer nos tempos modernos o conflito não é conseqüência da paixão da parciabdade bumana da vontade de poder do antagonismo de classe ou de controvérsias acerca da natureza da justiça mas resultado da tentativa de garantir a liberdade bumana no mundo natural através da técnica Logo o conflito é também inevitável já que ser bumano no mundo moderno signiíica medir dominar e subjugar a natureza ou seja ser tecnológico Heideer esquematiza esse desenvolvimento a partir de Descartes passando por Leibniz Kant Hegel Scbelling e Nietzscbe até cbe gar à técnica do mundo do século XX Tratase da bistória do crescente niilismo do M a r t in H e id e g g e r 8 0 3 Para o relato de Heideer desse desenvolvimento ver o artigo e livros de sua autoria lh e Prin cipie of the Ground Man and World VII 1974 p 207222 Kant and the Problem ofMetaphysks Bloomington Indiana University Press 1962 HegeVs Concept o f Experiente New York Harper Row 1970 ScheVings Treatise on the Essence ofHuman Freedom Athens Ohio University Press 1985 Nietzsche 4 v New York Harper Row 19791987 e The Question p f Technology and Other Essays New York Harper Row 1977 pensamento moderno na jornada do homem moderno como sujeito a partir da auto consciência cartesiana até a vontade de poder nietzschiana que na visão de Heideer está no centro do mundo da técnica É da mesma forma a história da deneração do homem de autoconsciente senhor da criação para trabalhador e homemmassa A modernidade culmina como Heideer já reconhecera em Ser e Tempo no completo esquecimento do Ser e na desumanização absoluta do homem que se toma mera matériaprima para um mundo tecnológico do que visa apenas a sua própria autoper petuaçáo e crescimento niilistas Desenraizados e alienados da sociedade tradicional nós modernos tentamos construir com o auxílio da história um liar para nós mesmos no meio do devir A história nos permite medir e demarcar o tempo para que possamos determinar nossa origem e lugar em relaçáo a todas as outras coisas Conseguimos assim nos precaver contra a incerteza aterrorizante de um devir sem sentido No fundo porém este projeto tenta transformar o tempo em objeto de exploração e portanto é análogo à objetivação do espaço realizada pelas ciências naturais da modemide Assim consegue no entan to apenas separar o homem mais completamente da tradição metafísica que lhe deu um verdadeiro liar e significado ao ligálo em um nível fimdamental à questão há muito esquecida do Ser Inteiramente desvinculado dessa questão o homem é também aíàsudo do direcionamento que propicia a seu pensamento e atividade Todavia sem esse direcionamento a história pode ser interpretada de qualquer forma pois não mais há um padrão de verdade e realidade Assim o homem segundo Heideer é presa da confusão do historicismo e do relativismo dos quais pode escapar somente ao se entrar à ideologia pela adoção de uma visão de mundo arbitrária e irracional que fornece uma explicação simplificada mas totalitária que resolve toda a incerteza e insegurança A história e ideologia portanto servem apenas como duas ferramentas a mais a serviço da conquista tecnológica da Terra Na verdade aumentam a concorrência para assegurar o domínio e dão origem a uma luta ideológica que termina em guerra mundial que por sua vez é o meio para maior garantia de total mobilização e total controle da humanidade que em última análise oblitera a própria diferença entre guerra e paz Nesse sentido o fim da moderna subjetividade e liberdade é uma aliena ção e desabrigo universal sob a hegemonia de um totalitarismo ideológico que visa ao domínio universal e à exploração tanto do homem como da natureza Sob tais condi ções o homo sapiens é reduzido a homo brutalitas H eid er descreve três formas de vida política no final da modernidade o ame ricanismo o marxismo e o nazismo Em sua opinião todas aos três são formas de subjetividade e niilismo e portanto metafisicamente idênticos Todas se caracterizam pela ditadura do público sobre o privado e pela predominância das ciências naturais da economia de políticas públicas e da técnica O americanismo em sua opinião não é liberalismo ou democracia mas uma forma particular de positivismo lógico que serve 8 0 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Para o entendimento de H eider acerca de americanismo maixismo e nazismo ver IM p 3751 e VierSeminare Frankfiirt am Main Klostermann 1977 como elemento subserviente à ciência e à técnica A realidade do americanismo é o complexo industrial a sência central de planejamento econômico e tecnológico que organiza o trabalho do homem comum e expande seu domínio por meio do mercado mundial Tampouco se trata o marxismo meramente de um partido ou visáo de mun do mas constitui ao contrário a elevação do processo de produção à predominância e à conseqüente redução do homem a um ser socialmente produzido Tanto o ameri canismo como o marxismo dão um sentido íàlso à espiritualidade humana como inte ligência calculista e consequentemente íàlham em captar a necessidade do exame da questão do Ser A forma mais extrema desta negligência é o nazismo que completa e in verte o pensamento moderno ao substituir a razão pelo instinto O instinto é intrínseco não ao indivíduo mas à raça e recebe voz por meio de líderes que íãlam para a essência racial subjetivista Seus instintos elevamse acima da paralisia niilista da razão para a ação e assim ensejam uma ilusão de certeza e segurança O nazismo no entanto náo é capaz de reconhecer que é arbitrária sua distinção fundamental entre superhomem e subhomem uma vez que em princípio ambos foram reduzidos a animais Assim sendo as várias formas de vida moderna representam apenas uma insti tucionalização do niilismo Isso no entanto náo é devido ao caráter imperfeito da própria modernidade pois a modernidade e por conseguinte o niilismo sáo apenas as conseqüências finais do projeto metafísico que começa com os gros Para com preender a origem e a verdadeira extensão do niilismo afirma Heideer é portanto necessário examinar os gregos O mundo grego e a civilização ocidental tiveram início na visão de Heidegger com a revelação do Ser com o que às vezes denomina usando o grego alêtheia ver dade ou literalmente desvelamento Neste desvelamento o Ser aparecia como o caos ou o nada como a violência do abismo que dominou o homem em todo o seu mistério e inaugurou uma nova maneira de pensar e íir um mundo novo trouxe no vos deuses uma nova ética uma nova política e uma nova concepção de humanidade do homem Em outras palavras o homem foi fulminado pelo mistério e incompre ensibilidade fundamentais da existência H eid er sustenta que é esta a experiência concreta do Ser a maneira pela qual o Ser se revela para o homem Neste sentido o Ser parecia para os gregos uma questão fundamental Como uma peigunta no entanto orientouos para respostas e portanto para longe da questão em si para longe do Ser Os présocráticos encontravamse no meio desta luta entre o Ser como o mistério fundamental ou questão da existência e os seres conforme determinados por categorias ou respostas a esta pergunta Esta batalha foi travada na arte ou o que Heideer muitas vezes chama de linguagem não apenas por poetas mas também por escultores arquitetos pensadores e estadistas que participaram na criação das leis costumes e instimiçóes do mundo grego Todos confrontaram o mistério da existência que a experiência do Ser evocava e construíram uma nova forma de compreender e um novo mundo como resposta ou solução para este mistério M a r t in H e id e g g e r 8 0 5 Para a discussão dos g r s por Heider ver IM Early Grtek Thinking New York Harper Row 1975 e Erüuterungen zu Hõlderüns Dichtung Frankfurt am Main Klostermann 1944 A principal criação dos gregos foi a pólis Para eles não se tratava apenas do lugar onde se resolviam os assuntos do Estado mas o lugar onde deuses e homens relacionavamse uns com os outros onde pela primeira vez o homem reconhece sua mortalidade terrena em oposição a uma imortalidade celestial Desta forma os gregos como os entendia Heideer foram capazes de incorporar uma autêntica compreen são da morte e por conseguinte de sua própria finitude e destino em sua arte religião e íilosoíia e acima de tudo em suas instituições políticas É neste sentido que a pólis é a fonte da humanidade do homem como Ser humano Na medida em que o homem reconhece sua própria mortalidade e destino em oposição aos deuses imortais ocupa um lugar particular ou ethos próprio e assim tornase capaz de ética O caráter de seu lugar e portanto de sua ética e política é também um reflexo do caráter especial dos deuses e da relação do homem com eles A pólis neste sentido é sempre o lugar dos deuses e se caracteriza em suas leis e instituições pelo panteão específico revelado Esta experiência présocrática do Ser de acordo com Heidegger é íundamental mente trágica O abismo do Ser que desperta admiração e reflexão também exclui o ho mem da ordem cotidiana das coisas O Ser a tudo questiona e aqueles como Antígona Édipo e Herádito que se deparam com a questão do Ser tornamse apolis sem cidade e lugar sozinhos estrangeiros sem uma saída no meio do ser como um todo ao mesmo tempo sem estatuto e limite sem estrutura e ordem pois como os criadores devem primeiro íúndamentar tudo isso Em um sentido heroicotrágico expulsos da vida comum estes íúndadores representam para os gros a maior possibilidade humana A idade trágica em que esses personagens têm sentido e significação chega ao fim com o desaparecimento da revelação do Ser Esse mundo terminou quando a questão do Ser submergiu em suas respostas e firacassou em reaparecer como uma indagação ou seja quando nos termos de Heideer o Ser se retirou e foi esquecido Por que isso ocorreu é na opinião de Heideer obscuro e misterioso e não está no homem mas no próprio Ser Que tenha ocorrido é o íáto central e decisivo de toda a história ocidental A questão da retirada do Ser foi inaugurada pelos sofistas e culminou com o pen samento de Platão e Aristóteles A exceção a essa tendência foi Sócrates que seguiu o Ser em sua retirada ou seja que seguiu de volta o caminho dialético para por meio das respostas para a questão do próprio Ser na tentativa de chegar ao misterioso e muitas vezes contraditório início do pensamento Platão ao contrário afestouse da questão do Ser e de feto encerroua dandolhe uma resposta decisiva O Ser retratado por Platão é a presença etema a forma ou ideia imutável em contraste às coisas efêmeras do mundo 806 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 6 M p 152153 7 Para sua discussão de Platão e Aristóteles ver em particular seu anigo Platos Doctrine of Truth in Philosophy in the Ttventieth Century Fd W Barrett and H D Aiken 4 v New York Random House 1962 111 251270 e On the Being and Conception of Phrsics in Aristodes Physics B 1 Man andWorld IX 1976 p 219270 8 H eider náo explica em lugar algum sua separação de Sócrates e Platão Na maior parte dos aspectos parece seguir a distinção e caracterização desses íilósofos por Nietzsche do devir Desta maneira o Ser desaparece como uma pergunta e ressurge como a mais elevada resposta como o Ser dos seres como a essência imutável de todas as coisas Tomando isto como base Platáo Aristóteles e os escolásticos foram capazes de articu lar uma ontologia ou hierarquia de tudo que é em termos de sua proximidade com o próprio Ser É essa hierarquia metafísica que em suas várias transformações constitui a estrutura do mundo ocidental A primeira destas transformações deu origem ao Cristia nismo e à Idade Média a segunda ao mundo moderno Na primeira o Ser retirouse da natureza e asilouse na transcendência assim comprometendo o cosmos ancestral O imediatismo do Ser ou essência das coisas em sua forma natural deu liar à noção de que essa forma era apenas uma das muitas criações possíveis de um Deus transcendente e em última análise incompreensível o único que realmente é no sentido mais elevado O próprio Cristianismo foi abalado pela retirada do Ser em que o homem substituiu um Deus que desaparecia como o fundamento de todo o Ser e por conseguinte como o centro de toda a ontologia Doravante o homem como o sujeito autoconsciente é o que realmente é Na medida em que o homem compreendese como Ser no entanto o Ser perde seu último traço de mistério e portanto sua capacidade de evocar admiração e meditação pois o homem como aijumenta Descartes conhece a si mesmo imediata e completamente Neste sentido a história ocidental é determinada pela pergunta original do Ser e suas sucessivas retiradas É portanto a história do esquecimento do Ser como uma questão e o triunfo do ser como resposta Quando Nietzsche interpreta o Ser co mo apenas mais um entre muitos seres diferentes o Ser desaparece de todo e o Ociden te que fora guiado pela questão oculta do Ser chega a seu fim Assim Heidegger voltase contra a tradição iluminista para revelar o caráter som brio da vida moderna Mas não chama nossa atenção para este niilismo disseminado apenas para provocar desespero ou autorrepugnância mas porque acredita que vislum bra em suas profundezas a luz da aurora de uma nova revelação do Ser Demonstrar isso no entanto é mostrar a ligação oculta entre Ser e nada Nesta investigação Hei degger segue o caminho dos présocráticos Em particular percebe um paralelo entre a experiência présocrática da questão ou abismo do Ser e a experiência contemporânea do niilismo Via de regra o niilismo é entendido como a afirmação de que nada é ou seja não se trata de que nada seja em absoluto mas de que não há fimdamento para os seres e portanto nenhuma norma ou ordem imutável Heideer por sua vez quer entender o niilismo como a compreensão de que o fimdamento é literalmente nada ou seja coisa nenhuma ou não ser Isto significa que o fimdamento deve ser entendido como algo mais do que os seres o que significa Ser em seu sentido primordial como caos ou abismo O niilismo é portanto o alvorecer do reconhecimento do Ser da questão fundamental ou mistério que é a fonte do assombro que evoca todo o pen samento todas as categorias e portanto todas as ordens No niilismo o Ser aparece como caos ou abismo e debilita toda a ontologia e portanto toda a ética a política e a religião Desta forma o advento do niilismo sinaliza o fim da civilização ocidental e por conseguinte a possibilidade de um retorno a uma perspectiva préocidental e talvez até mesmo de uma aproximação entre Oriente e Ocidente M a r t in H e id e g g e r 8 0 7 O niilismo contudo não é um retorno aos présocráticos mas de fato orienta nos para longe do mundo que descortinaram De acordo com H eider os antigos gregos experimentaram a questão do Ser como a peigunta o que é Ser A questão norteadora do pensamento ocidental é portanto a peigunta o quê É esta ques tão que a filosofia e as ciências procuram responder Por conseguinte a antiga biologia procurou explicar o que são as diferentes formas de vida ou seja descobrir e descrever as categorias ou espécies de coisas A questão do Ser que emerge do niilismo ao con trário não é a pergunta o quê mas a pergunta como que em muitos aspectos tem sido fundamental para o pensamento moderno e está oculta por exemplo no coração da moderna ciência técnica e história Nosso pensamento não se direciona portanto à resposta para a pergunta o que é isso mas sim para a pergunta como é que funciona Portanto o interesse primordial da moderna biologia não é descobrir a divisão da natureza de acordo com gêneros e espécies mas explicar como funcionam os organismos A natureza não é portanto entendida como um belo cosmos a ser contemplado e imitado mas como uma conjunção de forças ou como um mecanismo que pode ser usado para garantir a preservação e a prosperidade humanas Na medida em que o Ser ocorre como a explicação do que é ou seja de como as coisas são é in compreensível dentro das categorias de linguagem que foram determinadas por uma metafísica que sempre entendeu o Ser e os seres como coisas como o quê Desta maneira a estrutura de nossa compreensão impede o reconhecimento do Ser Por con seguinte como concluiu Heidegger após o fracasso de Ser e Tempo o Ser permanece necessariamente oculto e por conseqüência impensado e esquecido Fundamental para o pensamento de Heidegger é a tentativa de mostrar a con junção do Ser como o como daquilo que é com a história ou o tempo A história Geschichte para Heidegger não é uma série causai ou o desenrolarse da liberdade humana ou o desenvolvimento dialético dos meios de produção mas o destino Ges chick do próprio Ser Heideer deriva esta noção de destino do grego moira fado destino que é a fonte escura e misteriosa da mudança que estabelece o horizonte para tudo o que é mas permanece ela mesma muito além desse horizonte Moira é o próprio Ser como a questão fimdamental que provoca o homem e o dirige para as respostas mas assim retirase e é ocultado pelas respostas e esquecido É como essa pergunta direcionadora que o Ser é história ou destino Sob esta luz o pensamento de Heideer parece ser historicismo radical Hegel en tendia a história como o desenvolvimento dialético da razão para o seu ponto culminan te em conhecimento absoluto Marx aceitou essa noção do caráter dialético da realidade mas negou que tivesse chegado à sua conclusão Nietzsche por sua vez negou até mes mo esta racionalidade dialética e afirmou ao contrário que o mimdo era completo devir governado apenas pela vontade de poder e pelo eterno retorno H eider parece trazer ao fim esse gradual desenvolvimento do historicismo com sua afirmação da identidade 8 0 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Para a discussão de Heideer da História ver seu artigo A Letter on Humanism in Basic Writín Ed D F Krell New York Harper Row 1977 Nietzsche IV p 99259tBeingand Time New York Harper Row 1962 entre história e Ser Essa interpretação no entanto pelo menos em parte representa mal o pensamento de H eider que tenta mostrar não que o Ser é história mas que a história é a revelação do Ser Heidet portanto não visa a historidzação do Ser mas a etemização da história ou do tempo Para H eider a história como o destino se des dobra para frente e para trás emergindo da revelação do Ser Por algum motivo obscuro e incompreensível o Ser se mostra ao homem como uma questão específica fimdamental Essa questão portanto orienta o homem como vimos em direção a um reino específico de respostas e portanto estabelece uma meta ou íuturo e um passado apropriados para esse objetivo A história é então uma série de projeções originais da eternidade sobre a temporalidade de revelações únicas do Ser que são imprevisíveis e incomensuráveis um com o outro Cada época acredita que possui a verdade e de íáto possuí a verdade uma vez que entende à sua maneira o que é etemo é ela própria a expressão do etemo do Ser como o como como a história ou o destino dos seres H eider suspeita que o niilismo moderno seja o advento de tal revelação do Ser O niilismo abre as portas para um encontro imediato com o Ser não somente porque elimina todas as categorias em que o Ser está preso oculto e esquecido mas também porque elimina todos os nossos equívocos sobre o nosso próprio ser humano todas as noções de fiuna imortal de imortabdade da alma ou da real imortalidade biolca e portanto toma possível de novo uma autêntica experiência de nossa própria mortaüda de da morte como a nossa mais extrema possibilidade própria O niilismo portanto não pode ser apenas rejeitado ou superado É pelo contrário a realidade contemporânea e contém tanto a possibilidade de dradação absoluta como a possibüídade de salvação em uma nova revelação do Ser O que é cmcial para o homem é se preparar para receber esta revelação Isso não significa rejeitar o mundo moderno técnico e político que é a base para o ser humano contemporâneo do homem H eider acredita ao contrário que esta nova revelação conduzirá a uma reinterpretaçáo íundamental da relação entre o homem e a técnica que dará um novo sentido e significado à existência humana e por tanto à atividade humana O reconhecimento do Ser como o como dos setes como técnica e história é portanto nada mais do que a libertação do homem para aceitar sua própria essência como ser humano O caráter substantivo da vida humana e assim a forma da ética e da política no contexto deste novo mundo no entanto permanecem obscuros e dependem na opinião de H eider da revelação plena do Ser bem como da recepção e resposta humana à questão que coloca Enquanto H eider assim expbca como será delineado o íuturo não sabe e não pode explicar que forma irá assumir Embora o homem não possa superar o niilismo pode prepararse para uma nova revelação De fiito tratase de tal preparação o projeto de Heidegger Compreende 1 a libertação do homem de todas as categorias e normas metafísicas através de uma reinterpretaçáo fundamental destrutiva da história do pensamento ocidental 2 a promoção de uma autêntica experiência do niilismo contemporâneo por conclamar o homem para um resoluto confronto com a morte e a ausência de sentido e 3 a persuasão do homem para que aceite seu destino específico dentro do destino de seu povo ou geração manifesto na revelação do Ser M a r t in H e id e g g e r 8 0 9 Por óbvio Heidegger náo pode garantir que mesmo sob tais circunstâncias o Ser irá revelarse que a essência misteriosa da existência atacará de novo o homem com toda a sua grande força gerando assim assombro e pensamento autêntico As sim pode ser nulo o resultado de todos os esforços e sacrifícios que H eid er exige No entanto o que mais preocupa talvez é que Heideer nâo explica como distin guir entre uma autêntica revelação do Ser e as projeções de preconceitos e paixões subliminares Na verdade sua destruição da metafísica parece tornar impossível tal distinção uma vez que destrói todas as categorias com base nas quais poderia ser feita tal distinção De forma semelhante sua ênfase em uma nova existência autên tica em contraste com a fidta de autenticidade de nossa existência contemporânea leva Heideer a uma identificação entre americanismo marxismo e nazismo que descarta as mais importantes questões políticas do século XX como epifenômenos e mina as bases de qualquer diferenciação entre os regimes dignos e os horrendos Finalmente como Heidegger não é capaz de prever sequer a forma que tomaria uma genuína revelação não fica claro se o novo deus que Heidegger acredita ser neces sário para nos salvar seria de fato preferível ao gentil niilismo do mundo técnico Sem dúvida tal deus poderia muito bem ser uma bestafera cuja solução para o niilismo gentil seria na verdade um niilismo de monstruosa brutalidade que oferecesse a perversão em lugar de prazer e terror em lugar da banalidade Com isto talvez se tenha propiciado uma compreensão melhor sobre a ligação de Heidegger com o nazismo e sobre os perigos com que se defrontarão outros que sigam o caminho que mapeou Heidegger não ignorava os perigos com que se de frontou A última linha de seu discurso de posse como reitor Tudo que é grandio so resiste à tempestade é tirada do sexto livro da República de Platão onde Sócrates descreve os perigos enfrentados pelo filósofo que tenta zelar pela cidade Heidegger percebia sua época como sendo semelhante à dos présocráticos Ambas ofereciam grandes oportunidades mas também grande perigo em particular para aqueles que suscitaram a inquietante pergunta do Ser Aqui Heidegger poderia muito bem ter aprendido uma lição com a história de Édipo para com quem exibe tanto respeito Ou talvez devamos concluir que tinha uma consciência muito viva de sua lição que o homem que procura fundar uma nova política com base em uma nova reve lação não é simplesmente expulso da vida política comum mas também se envolve nos mais hediondos crimes e nas degradações mais terríveis Aqui o fracasso de Heideer em criticar os nazistas de modo explícito por suas atrocidades pesa tanto contra ele como contra seu pensamento Aristóteles observa que o homem que vive fora da cidade é ou uma besta ou um deus Heideer pode muito bem nos ensinar que aqueles que vão além da cidade em sua busca por um novo deus muitas vezes se descobrem adorando os pés da bes ta que aqueles que extraem razão da revelação com muita facilidade enredamse na maior e mais monstruosa irracionalidade Portanto seu pensamento e seu exemplo parecem conduzirnos em direções opostas e suscitar de novo a questão da relação do filósofo para com a cidade 8 1 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y M a r t in H e id e g g e r 8 1 1 L e it u r a s A Heideer Martin An Introduction to Metaphysics New Haven Yale University Press 1959 Ein fiihrung in die Metaphysik Introdução à metafísica Heidegger Martin Being and Ttme NewYork Harper Row 1962 Introduction Sein undZeit Ser e Tempo B Heidger M ai Nietzsche 4 volumes New York Harper Row 19791987 Volume 4 H eider Martin A Letter on Humanism In Basic Writing Ed D E Krell NewYork Harper 8c R dw 1977 Heidger Martin lhe Question ofTechnobgy and Other Essttys NewYork Harper Row 1977 E pílogo Leo Strauss e a História da Filosofia Política O estudante que utilizar este livro pode de modo franco e válido indagar a res peito da abordagem ao ensino da filosofia política que é aqui apresentada Criou essa abordagem o editor sênior da obra Leo Strauss Nascido na Alemanha em 1899 lá estudou filosofia matemática e ciências naturais e frequentou os cursos de Husserl e Heidegger Depois de atuar como pesquisador em um instituto de estudos judaicos em Berlim deixou a Alemanha em 1932 e finalmente estabeleceuse nos Estados Unidos onde lecionou na New School for Social Research de 1938 a 1949 na Uni versidade de Chicago 1949 a 1967 no Claremont Mens CoUe de 1968 a 1969 e no St Johns College até falecer em 1973 Foi um professor de extrema influência entre seus muitos alunos está a maioria dos que contribuíram para este livro É ainda mais relevante o fiito de que escreveu 15 livros os três primeiros em seu alemão nativo e mais tarde uma dúzia em inglês em que interpretava uma grande variedade de textos e autores e investigava os problemas centrais da filosofia política A Vo lta à H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a Strauss revelase primeiro como historiador da íilosoíia política No entanto apresenta sua visão dessa história não com a motivação de uma curiosidade de anti quário sobre o passado mas motivado por aquilo que diagnosticou como a atual crise do Ocidente e da modernidade De acordo com Strauss era apenas o sinal mais claro da crise do Ocidente o pe rigo prático para a sua sobrevivência que advém do Oriente de um comunismo que tanto como uma forma de teoria política ocidental moderna e uma forma de despotis mo oriental constitui uma versão sem precedentes da tirania do velho A verdadeira 1 Exceto onde indicado todas as obtas são de Leo Strauss 2 On a New Intetpietation of Platos Political Philosophy Social Research XIII n 3 september 1946 p 332333 On Tyranny Ithaca NY Cornell University Press 1968 p 2122189190 The City atui Man C h io University of C h ia Press 1978 p 35 doravante Citf The Hiree Waves of Modemity in Political Philosophy Six Essays by Leo Strauss Ed Hilall Gildin Indianapolis and New York BobbsMerrill and Pasus 1975 p 98 crise ao contrário é que o Ocidente sob a influência de suas mais altas autoridades inteleauais já náo mais acredita em si mesmo em suas metas em sua superiorida de Pois Strauss entendia ser o moderno Ocidente constituído por um propósito ou projeto específico a construção de uma sociedade universal de naçóes livres e iguais constituídas por homens e mulheres livres e iguais que desfrutam de riqueza universal e portanto de justiça e felicidade universais por meio da ciência entendida como a conquista da natureza a serviço do potencial humano Tal objetivo tão íàmiliar para nós que vivemos no século dos Catorze Pontos de Wilson e das Quatro Liberdades de Roosevelt veio a caracterizar o Ocidente apenas na modernidade Em contraste pensadores prémodernos aceitavam não só a pluralidade como também a particulari dade das sociedades políticas assim como as politicamente significativas desigualdades naturais e convencionais entre os seres humanos Enfiitizavam a busca social da virtude ou salvação e a contenção do luxo e da corrupção que engendra Entendiam a ciência como a contemplação e a tecnologia como a imitação da natureza A perda da crença na nova meta é portanto especificamente uma crise da modernidade E uma vez que o objetivo que passou a vitalizar o Ocidente teve origem na filosofia política moderna Strauss chou à conclusão aparentemente singular de que a crise geral do Ocidente era em suas bases uma crise da disciplina específica da filosofia política Strauss considerava o íàto de o Ocidente ter perdido a certeza quanto a suas me tas não como uma carência psicológica de força de vontade ou como uma falta de co ragem moral mas como o resultado de desafios teóricos Tais desafios baseavamse em parte em dúvidas específicas sobre as premissas intrínsecas ao projeto moderno tais como o valor do universalismo as conexóes entre prosperidade e justiça e felicidade e o entendimento de ciência como a conquista da natureza a serviço do potencial huma no Em parte tais dúvidas decorrem da experiência do século XX da persistência de divisóes políticas como um baluarte contra a tirania universal da persistência do mal e da penúria no meio da abimdância e dos perigos que uma ciência sem restriçóes acar reta tanto para o homem como para a natureza Porém o que é ainda mais fundamen tal as dúvidas acerca da superioridade das metas do Ocidente baseiamse em doutrinas modernas tardias que nom a possibilidade de conhecimento racional da validade universal de qualquer meta ou princípio As ciências sociais restringiram sua esfera de competência aos fàtos distintos de escolhas e princípios morais e fundamentais aos quais entendia como valores ou preferências irracionais A doutrina à qual Strauss denominava historicismo afirmava que em sua essência todo o pensamento e ação humanos dependem de situaçóes históricas cuja seqüência não demonstra ter qualquer objetivo ou significado racionais O relativismo alegava que todos os absolutos apa rentes são ideais apenas em relação a determinados quadros de referência Todas essas E p íl o g o 8 1 3 3 Natural Right and History Chicago Univeisity of Chicago Press 1953 p 12 doravanre NRH City p 24 The Crisis of OurTime in Haiold J Spaeth Ed The Prediaiment o f Modem Politics Detroit University of Detroit Press 1964 p 4145 Three Waves of Modernity p 8182 4 Crisis of Our Time p 4243 City p 56 doutrinas portanto rejeitavam a filosofia política na sua forma original Esta situação constituía uma verdadeira crise para a filosofia política moderna porque tais doutrinas eram as implicações mais radicais dos entendimentos da natureza e da história que constituíam os pressupostos da filosofia política moderna em si Na visão de Strauss esta crise teve conseqüências teóricas para as crises práticas na medida em que tornou impossível uma defesa apaixonada do Ocidente exceto como uma questão de obscurantismo fanático Suas conseqüências práticas incluíam nâo só a vulnerabilidade aos perigos externos mas mais importante uma tendência interna para que se degenerasse a democracia liberal privada da crença na racionalidade dos seus propósitos e padróes transformandose em permissividade ou conformismo e filistinismo Para Strauss o problema prático portanto não era a democracia liberal em si da qual se considerava amigo mas a necessidade de defendêla contra perigos externos e internos Indicar a necessidade prática de uma solução no entanto náo é provar que a solução seja verdadeira Strauss nunca perdeu de vista a distinção entre utilidade e verdade A necessidade prática pode ditar apenas uma investigação sem re sultado predeterminado conduzida sem olhar de soslaio para nossa situação atual Para Strauss o mais nítido exemplo da crise do Ocidente da modernidade e da democracia liberal era a questão judaica a qual considerava como o símbolo mais evidente do problema humano na medida em que é um problema social ou político A questão judaica revela em primeiro lugar as limitações do liberalismo a sociedade liberal constituída pela moralidade universal e não pela religião que aquela considera como algo privado parece oferecer aos judeus participação igual mas exatamente porque reconhece uma esfera privada também reconhece e náo pode oferecer nenhu ma garantia contra os sentimentos antijudaicos privados e a conseqüente desigualdade social Mais importante ao oferecer a assimilação como o modelo a sociedade liberal priva os judeus da autoestima decorrente da lealdade para com sua própria tradição heróica enquanto por demasiadas vezes oferece em troca apenas uma autossatísfação superficial e a participação em uma sociedade humana universal inexistente Todavia apesar de todas as suas insuficiências esta não solução é evidentemente superior às soluçóes resultantes da destruição do Estado liberal por parte dos Estados antissemi tas do nacionalsocialismo e do comunismo No que se refere ao sionismo político do qual Strauss quando jovem foi adepto fervoroso essa tentativa de solução oferece aos judeus a assimilação não como indivíduos mas como um povo com seu próprio estado secular liberal tal como aqueles de outros povos No entanto a forma de resto 8 1 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 5 City p 1 67 Hie Crisis of Political Philosophy in Spaeth ed Pndicament p f Modem Politics p 91 What b Political Philosophy ÇWesopoa Conn Creenwood 1973 p 1727 doravante WIPP 6 NRH p 6 7 WIPP p 20 Crisis of Our Time p 48 8 NRH p 67 The Mutual Influence of Theology and Philosophy Independent Journal ofPhiloso Ay III 1979 114 City p 11 9 Spinozas Critique ofR elin New York Schocken 1965 p 6 10 A Clvii of Accounts Jacob Klein and Leo Strauss The CoUege XXII n 1 april 1970 2 vazia daquele estado exige a cultura judaica como seu conteúdo E a cultura judaica em qualquer sentido vital significa antes de tudo a fé judaica que como fé ou con fiança em Deus e náo nos homens deve considerar como blasfêmia a ideia de uma solução humana para a questão judaica Em segundo l i a questão judaica exibe portanto uma tensão que transcende a modernidade e sua crise a tensão entre razão humana e revelação divina as pretensões rivais pela dedicação humana representadas por Atenas e Jerusalém uma tensão que Strauss considerava o centro nevrálgico da história intelectual ocidental a história espi ritual do Ocidente e o sredo da vitalidade da civilização ocidental Strauss n v a que a moderna filosofia tívesse dado fim a este conflito ao lefútar a revelação na veidade seus esforços infrutíferos para fàzêlo através da transformação da filosofia em certeza sistemática apenas turvaram ou destruíram a consdência da ignorância que constitui o primeiro aiunento do filósofo em favor da necessidade da filosofia A resposta de Strauss para a crise da modernidade foi um esmdo tanto da filosofia política antiga como da moderna Posto que a crise é resultado das expressões mais recen tes do que esuva implídto nas mais recônditas premissas da filosofia políüca moderna era impossível siir em fiente e resolvêla diretamente com base nas doutrinas mais recentes Era necessário ao contrário voltar atrás pelo menos provisoriamente e tentar recuperar essas premissas em suas formas anteriores e originais para verificar se serviriam de trase para a superação da crise Pata entender e questionar essas premissas modernas originais era necessário por sua vez tentar contrapôlas à filosofia política dássica uma vez que seu suipmento ocorreu em parte como apoio em parte em oposição àquela alternativa ora quase esquecida Não apenas a crença moderna no progresso mas a disjunção fetovalor o relativismo e o historidsmo as próprias doutrinas que inaugura ram a crise impediram a maioria dos estudiosos modernos de considerar a possibilidade de que poderiam ser verdadeiras as doutrinas do passado que eram não só do passado mas estavam também comprometidas com a radonalidade daquilo que essas doutrinas recentes estigmatizavam como valores absolutos Assim fidtavalhes a abertura que é necessária para o entendimento Desta firma Strauss punha em dúvida que estivessem disponíveis entendimentos adequados quer da filosofia política moderna ou da antiggu viase obrigado a realizar e incentivar investigações históricas que não presumissem a verdade do pensamento atual ou a fidsidade do pensamento do passado A investigação de Strauss dos ensinamentos políticos antigos e modernos foi por força histórica bem como filosoficamente profunda sua acuidade histórica garantiuse E p íl o g o 8 1 5 11 Spinozas Critique ofReligion p 37 Progress or Return The Qntemporary Crisis in Western Civilizadon Modem Judaism I 1981 p 2122 12 Progress or Retum p 44 mpnt p 296297 13 NRH p 323671727476 Spinozas Critique ofR elin p 28293031 Mutual Influence p 113114116117118 Studies in Platonic Political Philosophy Chicago University of C h io Press 1983 p 149150 doravante Studies On Tyranny p 215216 14 A New Interpretation p 328332 WIPP p 68 On CoUingwoods Philosophy of History Review ofMetaphysics V n 4 june 1952 p 574 NRH p 33 pela investigação inicial do entendimento original de seus autores sua profundidade fi losófica por a partir daí averiguar sua veracidade Era paradoxal esta característica dupla da pesquisa de Strauss Ao passo que o historicismo em oposição ao qual Strauss esperava demonstrar mais uma vez a possibilidade da filosofia poUtica leva a sério a investção histórica do pensamento do passado não historicista mas se fecha à possibüidade da verdade de tal pensamento a filosofia não historicista que Strauss esperava recuperar não levava a sério as investigações históricas A filosofia política clássica era uma investigação so bre a natureza dos fenômenos poUticos e da ordem poUtica melhor ou correta não sobre os fenômenos particulares estadistas e estados com seus nomes próprios que são a preocupação da história poUtica muito menos sobre a história da filosofia poUtica Pla tão por exemplo admite Strauss tinha tal indiferença ou até mesmo desprezo pela verdade meramente histórica que considerava a questão filosófica da melhor ordem poUtica infinitamente mais importante do que a questão histórica relativa ao que este ou aquele indivíduo pensavam a respeito da melhor ordem poUtica Strauss portanto viase forçado a demonstrar a necessidade de recorrer à inves tigação histórica somente porque vivia em circunstâncias excepcionalmente adversas e nâo porque fosse superior aos pensadores anteriores cujo recurso à investigação não histórica era por sua vez uma indicação de sua situaçáo mais favorável Só assim poderia Strauss ter esperanças de estar aberto à verdade possível do pensamento do passado uma abertura necessária em primeiro lugar para compreendêla e em suida para aprender dela algo que pudesse resolver a crise atual Assim sendo Strauss explicava que enquanto a filosofia poUtica começa natu ralmente com uma análise direta e um esclarecimento das opinióes que a cercam a análise e esclarecimento de opinióes modernas requerem primeiro uma compreensão histórica dessas opinióes como modificações ou transformações de opiniões anteriores Isto porque Strauss entendia as opiniões modernas como modificações ou trans formações não apenas acidentais ou opiniões que por acaso sucedem outras mas essenciais de tal modo que só podem ser entendidas como modificações ou trans formações Essas opinióes permeiam a atmosfera intelectual de tal maneira que as pessoas muitas vezes não têm consciência de que as possuem quanto menos de seu ca ráter histórico Esse caráter pecuUar das ideias modernas é devido em parte a seu catáter tradicional ou herdado e em parte à crença especificamente moderna no pro gresso a crença de que os resultados continuamente novos da ciência ou da filosofia re pousam em premissas que foram há muito resolvidas e não precisam mais ser objeto de análise Assim sendo as opinióes modernas diferem daquelas que foram objeto 8 1 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 15 PersecutionandtheArtofWritingGcaoocVllLtetPKss 1952p 157158 ANewInterpreta don p 330331333334 WIPP p 56576874 16 Persecution and the An ofWriting p 155156 WIPP p 77 17 WIPP p 7375 sobre modificações e transformações ver também NRH p 7679 City p 10 e Three Waves of Modernity p 83 18 NRH p 31 WIPP p 27287679 das análises da íilosoíia polítíca clássica que podem ser entendidas sem um retrocesso adicional da investigação histórica e podem ser consideradas pelo menos neste aspec to como as opiniões naturais ou pontos de partida da íilosoíia Especificamente Strauss argumentou a fevor da peculiar necessidade dos estudos históricos em uma época dominada pelo historicismo Forneceu vários motivos para isso Primeiro a melhor compreensão e questionamento do historicismo que em últi ma análise produziu a crise do Ocidente ocorre por meio do confionto com a íilosoíia não historicista do passado acessível através de estudos históricos não historicistas Em segundo lugar o historicismo alega repousar em uma experiência da história que su postamente revela o íracasso da íilosoíia política não histórica em fornecer a resposta de íinitira para suas próprias peijuntas não históricas e o feto de suas respostas provisórias dependerem de suas situações históricas Questionar esta experiência e verificar se pode ser interpretada de outra forma também requer esmdos históricos não historicistas Em terceiro a coerência exige que o historicismo seja aplicado a si mesmo que a visão supos tamente final e universal acerca da dependência essencial de todo o pensamento humano de situações históricas transitórias ser ela própria entendida como essencialmente depen dente de uma situação histórica transitória Em última análise esta aplicação autocon traditória do historicismo a si mesmo conduz a um entendimento não historicista tal como o que Strauss esboçou em Natural Right and History Direito natural e história da gênese do historicismo como talvez apenas uma solução artificial e improvisada para um problema que só poderia suir com base em premissas muito questionáveis Por último a experiência da genuína compreensão histórica em si libertanos dos grilhões do historicismo é esta a autodestruição do historicismo De modo mais geral apontou Strauss os estudos históricos têm relevância filosófi ca somente em épocas de declínio intelectual quando há boas razões para acreditar que podemos aprender algo de extrema importância com o pensamento do passado que não podemos aprender com nossos contemporâneos Portanto o estudo que fez Strauss da bistória da filosofia política pressupõe uma insatisfação radical com o pensamento contemporâneo daí resultando um interesse nesse pensamento anterior que náo teve origem nas premissas responsáveis pela crise atual A C o n d u t a d a H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a Os singulares motivos para a visão de Strauss em relação à história da íilosoíia política ditaram as características inconfundíveis de sua maneira de estudála E p íl o g o 8 1 7 19 Persecution and the Art ofWríting p 15 5156 NRH p 7980 WIPP p 75 20 NRH p 33 On Tyranny p 24 21 NRH p 2024 3132 WIPP p 6264 22 NRH p 2425 33 WIPP p 7277 Qjllingwoods Philosophy ofHistory p 585586 23 Persecution and the Art ofWriting p 158 On Tyranny p 27 NRH p 32 24 CoUingwoods Philosophy ofHistory p 576 585 Seu entendimento da crise do Ocidente levou Strauss a empenharse para obter uma genuína compreensão histórica do pensamento do passado que o historicismo originalmente intentou mas que sua constituição impediuo de atingir Tentar enten der os pensadores do passado tal como percebiam a si mesmos exigia pôr em suspenso as próprias perguntas a íim de discernir as perguntas desses pensadores ensaiar uma tentativa de depender tanto quanto possível do que dizem direta ou indiretamente e depender o menos possível de informações extrínsecas e realizar um esforço para usar os termos e premissas próprios desses pensadores e evitar o uso de terminologia e premissas modernas a eles estranhas Para Strauss este esforço histórico que visava compreender o significado do pensamento do passado necessariamente envolve um esforço filosófico para levar a sério a pretensão de verdade desse pensamento E preciso pensar o pensamento devemse questionar as conexões lógicas e as relações de um argumento com o mundo a fim de acompanhar este argumento É acentuado o contraste desta abordíem não só diante da história da filosofia política realizada com base em uma crença no progresso a fé na superioridade do pen samento do presente em relação ao do passado mas também diante daquela realizada com o suporte do relativismo ou historicismo A fim de melhor perceber tal contraste seria útil que estudantes comparassem este livro com o mais influente livrotexto deste tipo na época em que foi publicada pela primeira vez a coletânea de StraussCropsey A History of Political Theory Uma história da teoria política 1937 de George H Sabine O prefácio original de StraussCropsey afirma atribuir a devida seriedade à filosofia política do passado como um fenômeno do qual aprender a respeito de ques tões ainda vivas o prefácio original de Sabine aíirma que dificilmente se pode dizer que sejam verdadeiras as teorias políticas na medida em que incluem avaliações que distorcem até mesmo os seus juízos factuais e que náo podem afastarse das relações que mantêm com os problemas avaliações hábitos e até mesmo com os preconceitos de sua época Em nítido contraste com StraussCropsey o prefácio de Sabine confessa uma preferência pela disjunção fatovalor e uma intenção de escrever a história da teoria política ocidental do ponto de vista deste tipo de relativismo social Strauss levava a sério a pretensão de verdade dos filósofos políticos do passado isso significa que considerava de grande urgência aceitála como verdadeira ou rejei tála como fidsa ou íàzer uma distinção ou reconhecer minha incapacidade de decidir e portanto a necessidade de pensar ou aprender mais do que sei neste momento Elaboradas tentativas acadêmicas de tratar esses pensadores como reflexos de suas épo cas ou de encontrar a fonte de seu pensamento em causas psicológicas ou econômicas eram portanto para Strauss distrações ou distorções na melhor das hipóteses ade quadas somente após teremse verificado incorretas essas pretensões de verdade Sem 8 1 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 25 A New Interpretation p 328329 On Tyranny p 2425 Persecution and the Art ofWriting p 161 Collingwoods Philosophy of History p 574 579585 26 George H Sabine A History o f Political Theory 3d ed New York Holt Rinehart and Winston 1961 p vvi cf Strauss Crisis of OurTime p 51 City p 8 WIPP p 227228 dúvida Strauss preferia cmpreender a época desses pensadores e até mesmo questões psicológicas e eventos econômicos à luz de seu pensamento Ao fezêlo exemplificou sua opinião geral de que é mais seguro tentar entender o inferior à luz do elevado do que o elevado à luz do inferior Ao por em prática este último necessariamente se distorce o elevado enquanto ao fezer o primeiro náo se priva o inferior da liberdade de se revelar plenamente tal como é Da mesma maneira que no prefácio à primeira ediçáo desta obra Strauss enfa ticamente direcionava seus alunos para os textos originais mas sua ênfese em textos e pensamento não correspondia à ideia absurda de que sáo objetos de investigação autossuficientes que podem ser entendidos sem referência a outros Strauss admitia de pronto que para entender um texto de filosofia política podemos necessitar de infor mações náo fornecidas pelo autor de informações que náo são fecilmente acessíveis a todos os leitotes razoáveis independente de tempo e lugar Contudo insistia que tais evidências externas fossem integradas em uma estrutura fornecida pelo autor Pode mos ter de aprender uma terminologia femiliar aos contemporâneos do autor mas não mais conhecida hoje Temos de aprender a ver seus contemporâneos seus antecessores e a tradição filosófica tal como esse autor os vk na verdade a tradição e a continui dade desaparecem quando se começa a interpretar Até mesmo um grande texto deve ser lido em seu contexto mas temos de entender o que seu autor entendia como sendo tal contexto não inserilo em algum contexto construído por nossa erudição Strauss preocupavase em particular em identificar com quem um livro tinha a intenção de argumentar e a quem tinha a intenção de persuadir mas ao esquadrinhar tais fetos externos tentava descobrir indícios no próprio texto Strauss realmente enfetizava a importância da situação histórica não porque o pensamento de um filósofo políti co do passado devesse refletilo de modo inconsciente mas porque tal filósofo pode ter propositalmente adaptado a ele a expressão de seu pensamento Acima de tudo Strauss insistia que para entender bem como julgar uma obra de íilosoíia política é preciso examinar não só o texto em si mas também os fenômenos que o livro nos aponta assim como a filosofia política em si exige um conhecimento de política É provável que seja da preocupação de Strauss com o contexto histórico da filo sofia política do passado que emana o aspecto mais controverso de sua abordagem à história da filosofia política sua sugestão de que algiuis filósofos do passado produ ziram escritos exotéricos Como indicado logo anteriormente a dúvida de Strauss para com o historicismo levouo a indagar se a aparente relação entre o pensamento de filósofos políticos do passado e suas situações históricas não revelava uma adapta E p íl o g o 8 1 9 27 Leo Strauss to HansGeoiç Gadamer February 26 1961 in Correspondence Concernii Wah rheit und Meíbode IndependentJournal qfPhibsophy II 1978 p 6 Spinozas Critique o f Religion p 2 28 Strauss to Gadamer February 26 1961 p 6 Perseeution and the Art ofWriting p 159161 29 WIPP p 63 Perseeution and the Art ofWriting p 5556 NRH p 198199 n 43 30 Collingwoods Philosophy of History p 583 WIPP p 14 çâo deliberada ao invés de uma reflexão inconsciente Essa indagação levouo a tentar distinguir as partes de seus ensinamentos políticos que eram meramente desejáveis ou necessárias dentro de suas circunstâncias particulares seus ensinamentos exotéricos daquilo que consideravam ser a verdade política sempre e em todos os lugares seus ensinamentos esotéricos A partir dessa distinção Strauss passou a enfatizar em particular a forma de diálogo em que Platão escreveu a qual diz coisas diferentes a pessoas diferentes a necessidade de entender seus argumentos à luz do cenário e da ação dramática e a ironia de Sócrates que é mostrado em conversa com indivíduos comuns nenhum deles igual a ele em sabedoria A descoberta da escrita exotérica por Strauss não foi uma invenção mas a recupe ração de um fenômeno já bastante conhecido Sua preocupação com a questão judaica levarao até Spinoza o criador filosófico tanto da democracia liberal assimilacionista como do sionismo político e assim até Maimônides a quem Spinoza parecia ter como representante da teologia e em seguida a Alfiirábi a quem Maimônides considerava como a maior autoridade filosófica de sua época e finalmente a Platão e Aristóteles vistos sob nova luz como os mestres de Alfarábi e Maimônides Strauss diferia de muitos outros estudiosos por estar disposto a acreditar que os pensadores medievais que toma ram a sério os antigos autores como mestres filosóficos teriam maior possibilidade de en tender seus escritos do que os estudiosos modernos que os consideravam apenas como objetos de curiosidade histórica e que rejeitavam suas visões da relação entre filosofia e sociedade Alfiirábi explicou que o sábio Platão não se sentia livre para revelar e des vendar as ciências para todos os homens Portanto seguiu a prática de utilizar símbolos enigmas obscuridade e dificuldade para que a ciência náo caísse nas mãos daqueles que não a merecem e se deformasse ou nas mãos daqueles que náo conhecem seu valor ou que o utilizam de forma inadequada Maimônides na introdução de Guia dos Perple xos explica que seu bvro contém contradições ocultadas de propósito porque ao fàlar sobre assuntos muito obscuros é necessário esconder algumas partes e divulgar outras Essa necessidade exige que a discussão prossiga com base em uma determinada premissa enquanto em outro local a necessidade exige que a discussão prossiga com base em ou tra premissa que contradiz a primeira Desta forma o autor emprega algum artifício para escondêlas por todos os meios Esses escritores medievais explicitaram os tipos de escrita que provavelmente caracterizariam todos os pensadores que não acreditam ser sempre possível dizer a verdade a todos sem perigo Por que em eras pregressas alguns filósofos empregaram métodos de comu nicação táo estranhos De acordo com Strauss a razáo mais óbvia e mais crua era 8 2 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 31 WIPP p 6364 City p 5062 32 Alfkrabi Platos Laws in Ralph Lerner and Muhsin Mahdi eds Medieval Political Philosophy A Sourcehook Ithaca NY Cornell University Press 1972 p 8485 33 Moses Maimônides lhe Cuide o f the Perplexed trans Shlomo Pines Chicago University of Chi cago Press 1963 p 18 20 34 Ver p ex A República de Platáo 331 382 415 450 494 a perseguição o perigo que constituía a sociedade para a filosofia exigindo que os filósofos se protegessem Esse perigo e reação são compreendidos com mais facilidade nas tiranias contemporâneas do que nas sociedades liberais contemporâneas Um motivo menos óbvio porém era o perigo que constituía a Íilosoíia para a sociedade Por sua própria natureza a filosofia como uma tentativa intransigente de questionar e substituir a opinião pelo conhecimento põe em perigo a sociedade que exige de seus membros que ajam com base em opiniões indiscutidas mas necessariamente discutíveis Os filósofos devem portanto praticar a responsabilidade política e res peitar as opiniões indispensáveis para íins práticos e políticos Este perigo e a reação a ele por parte da íilosoíia são ainda mais difíceis de avaliar para as sociedades que se percebem como baseadas na verdade científica universal mas deveriam ser mais in teligíveis para as ciências sociais que veem as sociedades como constituídas por mitos ou valores arbitrários Outro motivo para os escritos exotéricos são as necessidades da educação que deve começar com os pontos de vista iniciais dos estudantes e só conduzilos até a verdade passo a passo e sem lhes causar aversão Strauss sabia que não se pode provar com certeza absoluta a presença ou a ausên cia da escrita exotérica em um determinado texto bem como que a suposição dogmá tica de uma ou outra produziria interpretações arbitrárias Devese julgar da melhor forma possível com base nos indícios relativos a cada caso Com a dúvida de que a interpretação pudesse ser reduzida a um método e ciente de que sua sugestão era pas sível de mau uso Strauss se refere a essa sugestão como um método apenas em parte de modo jocoso e assinala que os métodos alternativos da moderna academia para lidar com contradições textuais tal como atribuílas ao desenvolvimento do autor a dificul dades textuais ou a psicologia inconsciente para não falar da simples confusão ou das contradições inerentes à textualidade são ainda menos capazes de alcançar a certeza absoluta ou o acordo universal ou de excluir uma perversa engenhosidade Strauss considerava sua abordsem à história da filosofia política como um com ponente decisivo da educação liberal Entendia esta como um esforço para filosofar primordialmente por meio de ouvir e tentar julgar o diálogo entte as mentes mais brilhantes o que poderia ser feito pelo estudo dos grandes livros trazendo à memória a excelência e grandeza humanas Tal recordação obrigatoriamente contribui para o bemestar da comunidade política e fomenta a responsabilidade cívica É necessária e oportuna na democracia liberal em especial a qual ao dar liberdade a todos tam bém dá liberdade para aqueles que cuidam da excelência humana E p íl o g o 8 2 1 35 Persecution and the Art ofWriting p 1718 2225 WIPP p 9394224225 36 Persecution and the Art ofWriting p 78 3336 110 182183 WIPP p 221222 NRH p 257258 260 263 37 Persecution and the Art ofWriting p 3637 ver também Maimônides Guide o f the Perplexed p 1718 38 Persecution and the Art ofWriting p 26 2931 WIPP p 223 231232 Strauss to Gadamer February 26 1961 p 56 39 Liberalism Ancient and Modem New York Basic Books 1968 p 68 13 15 24 A história da íilosoíia política era para Strauss uma educação na consciência dos problemas íimdamentais e permanentes Tudo o que é preciso para ensejar tal história é o pressuposto ou hipótese negados pelo historicismo da persistência através da mudança histórica dos mesmos problemas íimdamentais mas não de uma determi nada solução para eles Strauss entendia que a história como a investigava ajudava a confirmar a permanência de problemas fundamentais e até mesmo de soluções al ternativas A consciência da tenacidade desses problemas refuta o historicismo na verdade ao enxergar estes problemas como problemas a mente humana libertase de suas limitações históricas Para Strauss uma genuína consciência dos problemas fundamentais legitima e até mesmo constitui a própria filosofia A F il o s o f ia P o l ít ic a M o d e r n a Strauss enfiitizou a responsabilidade de Maquiavel na criação da filosofia política moderna Apesar da frequência das mudanças radicais e da imensa variação dentro da modernidade Strauss encontrou uma unidade básica dentro dela originada por Ma quiavel e preservada por seus sucessores É negativa a primeira aparição dessa unidade os modernos rejeitam a filosofia poUtica clássica por não ser realista por culminar em utopias cuja concretização reconhece ser por demais improvável e sujeita ao acaso incontrolávcl Em contrapartida Maquiavel e a filosofia política moderna procuram tornar prodvel ou até mesmo assegurar a efetivação da ordem correta vencer o acaso e superar os obstáculos impostos pela natureza e pela natureza humana em particular No entanto para tornar mais provável a realização da meta devese também reduzila Dado que a fílosofia política clássica subordina a política à moral e acima de tudo à virtude intelectual como o fim do homem ou a perfeição da alma humana fornecida pela natureza Maquiavel subordina a virtude à política como virtude útil apenas po liticamente encontra no desejo de glória um substituto amoral para a moral e inau gura a visão da fílosofia como estando a serviço das metas de toda a humanidade Strauss percebia esse realismo moderno não como uma verdadeira descoberta ou alargamento do horizonte mas na vetdade como um estreitamento do horizonte Este realismo obscurece aquilo que em essência transcende toda a realidade humana possível a eternidade e o todo ou o fato de que alma humana tende naturalmente 8 2 2 H i s t ó r u d a F i l o s o f u P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C ro p s e y 40 WIPP p 228229 CoUingwoods Philosophy of History p 586 41 NRH p 2324 7475 Ihoughts on MachiaveUi C h io University of C h io Press 1984 p 14 42 NRH p 32 43 NRH p 2930 32 35 On Tyranny p 210 44 WIPP p 3435 4041 132 NRH p 139 Three Waves of Modernity p 8385 e mpm p 555868299300 45 WIPP p 4143 49 NRH p 178 Ihoughts on MachiaveUi p 294297 Three Waves of Moder nity p 8587 Liberalism Ancient and Modem p 1920 supra p 294 para eles Strauss explicava incrível estreitamento como uma reação humana gene rosa e de espírito público contra a desumanidade exemplificada pela Inquisição que resulta dos objetivos infinitamente elevados da tradição clássica transfigurados pelo Cristianismo Apesar disso ou por causa dessa reação entendia que Maquiavel ado tara o Cristianismo como seu mais importante modelo para transformar o modo e a função da filosofia em propaganda ou iluminação que busca controlar o destino geral do pensamento humano A unidade subjacente que Strauss discernia na modernidade o esforço para tor nar provável ou assegurar a concretização da ordem correta era responsável também em sua visão pelas muitas transformações que sofreu a modernidade Assim como a nova íilosoíia política de Maquiavel procurava garantir a concretização da ordem cor reta por meio da rejeição de um fim natural do homem assim a nova ciência natural de Bacon e Descartes buscava assegurar a realização da sabedoria por meio de um mé todo infidível que não dependesse da inteligibilidade natural do universo Da mesma forma Hobbes buscou garantir a efetivação da ordem correta com base no conheci mento científico e na iluminação do povo por meio da dedução de uma nova versão da lei natural a partir do medo da morte violenta como a mais forte paixão e do início ao invés da razão e do fim telos do homem como era o caso da versão antiga O foco de Hobbes sobre a busca do poder que daí resulta mesmo com a exclusão da nobreza do amor pela glória reconhecido por Maquiavel eqüivalia a mais uma redução do bori zonte Locke na visão de Strauss levou adiante esta mudança de ênfiise dos deveres e fim do homem para direitos e homem como indivíduo por meio da emancipação da ganância produtiva como a solução para a mesquinhez da natureza Rousseau ape sar ou por causa de seus esforços para voltar à natureza e para restaurar a dignidade da virtude foi ainda mais longe e apresentou a vontade geral como a garantia de justiça que torna completamente supérfluo o apelo à lei natural As filosofias da história de Kant Hegel e Marx tentavam mostrar de modo expbcito que a realização da ordem correta é um subproduto necessário do conflito dialético entre cegas pabcões egoístas no processo histórico Finalmente até mesmo Nietzsche assemelbavase a Marx ao afirmar que o discernimento definitivo abria caminho para a realização do ideal final caraaerízado pelo fim do domínio do acaso embora afirmasse que tal realização era uma questão de escolha e não dc necessidade E f í t o g o 823 46 WIPP p 43 51 55 NRH p 176178 Ihoughts on MachiaveUi p 295 47 WIPP p 4344 NRH p 177178 supra p 315 Ihouts on MachiaveUi p 157167185188 207208 48 WIPP p 4446 Ih o u on MachiaveUi p 84102118119171173297 49 NRH p 171175 WIPP p 47 Hiree Waves of Modernity p 8788 50 NRH p 179180195196199201 WIPP p 4749 51 WIPP p 49 NRH pp 248250 52 WIPP p 5052 Three Waves of Modernity p 8993 53 WIPP p 5354 Three Waves of Modernity p 9197 Studies p 32 NRH p 316319 54 Three Waves of Modernity p 9697 Studies p 189 De certa forma Strauss parecia considerar necessárias essas sucessivas transforma ções em virtude do árduo esforço original para garantir a realização da ordem correta Parecia considerar a modernidade como um tipo de progresso necessário da coerência da compreensão cada vez maior das implicações do princípio original moderno bem como uma conseqüente corrosão ou destruição do patrimônio prémoderno da civi lização ocidental A descrição de Strauss da história da íilosoíia política modema é no entanto mais complexa do que um simples aranço unidirecional ou do que um aíástamento da com preensão clássica Pelo menos em dois momentos cruciais houve tentativas de retornar ao pensamento prémoderno Estas no entanto levaram consciente ou inconsciente mente a uma forma muito mais radical de modernidade A crise do direito natural moderno fbi deflagrada por Rousseau e levou ao esíbiço de usar a história e não a na tureza como fonte de padrões essa crise abriu o caminho para a snda ou atual crise da modernidade que foi deflagrada por Nietzsche e desacreditou todas as tentativas de obter padrões permanentes a partir da história Ambas as crises íbram assinaladas por exaltadas e contundentes críticas ao pensamento moderno anterior críticas com as quais Strauss parece ter em geral concordado Não podemos voltar às formas anteriores do pen samento moderno de acordo com Strauss porque não se pode descartar ou esquecer a crítica ao racionalismo moderno ou à moderna crença na razão feitas por Nietzsche Strauss acrescenta ainda que esta é a razão mais profunda para a crise atual Do mesmo modo Strauss considera o historicismo mais radical o pensamento de Heidjçr como o ponto culminante e de maior autoconsciência do pensamento moderno Determinados elementos da maneira como Strauss retrata a história da íilosoíia política moderna tais como a consciência da necessidade de uma espécie de progressão a atribuição de profundos efeitos práticos a profundos argumentos teóricos o modo como tentativas de retorno transformamse em avanços e a culminação final parecem elaborar esboçar ou sugerir algo que no caso de quase qualquer outro homem seria chamado de sua filosofia da história No entanto não só esta elucidação de Strauss está longe de demonstrar a necessidade da realização da ordem correta como o dpo de necessidade que evoca aplicase apenas à modernidade e não à história humana em si e somente enquanto permanecerem inquestionáveis as premissas da modernidade A interpretação de Strauss da história da íilosoíia política no entanto tanto começa como termina com algo que se poderia chamar de aspectos privilegiados A filosofia política clássica entendia a política com um frescor e uma franqueza que ja mais foram igualados porque pertence ao momento fértil quando todas as tradições políticas estavam abaladas e não havia ainda uma tradição de filosofia política Da 824 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a s L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 55 WIPP p 4749 50 52 55 Progress or Rctum p 30 56 WIPP p 50 NRH p 252253 57 Three Waves of Modemity p 98 58 WIPP p 55 59 Cf Studies p 32 WIPP p 53 mesma forma o genuíno entendimento da íilosoíia política do passado é ao mesmo tempo necessário em nosso tempo e podese dizer foi possibilitado pelo estremeci mento de todas as tradições a crise do nosso tempo pode ter a vantagem acidental de permitir que compreendamos de maneira nova ou náo tradicional algo que até aqui foi entendido apenas de forma tradicional ou secundária O historicismo radical de Heideer de acordo com Strauss ao mesmo tempo nos obriga a reconsiderar as premissas mais elementares da íilosoíia e por desenraizar a tradição viabiliza a possi bilidade de uma genuína recuperação da íilosoíia clássica O estudo da modernidade feito por Strauss permitiulhe empreender essa recuperação da fílosofia política clássi ca enxergar a íilosoíia política clássica tal como esta enxergava a si mesma e não mais através das lentes da íilosoíia política moderna F il o s o f ia P o l ít ic a A n t ig a e M e d ie v a l Quanto mais progredia Strauss no sentido de desvendar a autocompreensão original dos filósofos prémodernos mais se inclinava a ponderar que a sabedoria humana ou política dos pensadores antigos e em particular a dos socráticos era de cididamente superior a qualquer das várias alternativas modernas Isto não quer dizer que Strauss simplesmente decidiu apostar todas as fichas nos antigos ou em seus discípulos medievais Uma das destacadas virtudes que Strauss encontrava no raciona lismo da Antiguidade e da Idade Média inspirado por Sócrates era a sua abertura e tenacidade em absorver importantes perspectivas alternativas incluindo não somente antigas posições filosóficas antagônicas mas acima de tudo as reivindicações de inspi ração divina feitas de maneiras tão diversas pelos poetas gregos e pelos proíètas bíblicos Além disso nunca cessou para Strauss o profundo e frutífero desafio que constituíam seus sempre renovados estudos de cada um dos principais posicionamentos modernos Este próprio repensar no entanto repetidas vezes confirmou seu julgamento básico Quais são os principais elementos da elevada perspectiva que Strauss ressuscitou dos antigos livros Tal como Cícero Strauss rotulavase como um cético platônico ou socrático Skepsis é o termo socrático que designa a investigação ver por exemplo Platão Góras 487 t As leis 636 Xenofonte Econômico vi 13 O ceticismo socrático é um modo de vida dedicado à investigação das questões mais abrangentes relativas à situação humana Não seria necessária ou sensata essa investigação ao longo da vida se a verdade sobre a situação humana já fosse conhecida de modo adequado Era o enten dimento de Strauss que a filosofia política platônica ou socrática emeipa de uma pro funda consciência da ignorância em particular no que se refere à metafísica e à cosmo logia mas também no que diz respeito ao bem do homem Alegava ter demonstrado a partir da evidência dos textos clássicos que Nietzsche e Heideer estavam errados E p íl o g o 8 2 5 60 WIPP p 27 City p 9 61 NRH p 31 Giving of Aaxunts p 3 An Unspoken Prole to a Public Lecture at St Johns lhe College XXX n 2 january 1979 p 31 em suas afirmações sobre o dogmatismo do racionalismo e sua explanação da existên cia ou Ser Embora seja verdade que o racionalismo em sua forma original descubra na existência bumana uma natureza imutável a partir da qual se podem deduzir os princípios imutáveis do direito náo é verdade que o racionalismo original fundamente essa descoberta em uma suposição dogmática de que ser significa ser sempre ou ser inteligível quanto menos ser um objeto ou ser previsível Sócrates estava tão longe de se comprometer com uma cosmologia específica que seu conhecimento era o conhecimento da ignorância O conhecimento da ignorância não é ignorância É o conhecimento do caráter ilusório da verdade do todo Sócrates portanto percebia o homem à luz do caráter misterioso do todo Todavia o racionalismo socrático caracterizase pela gentil porém firme recusa de sucumbir ao charme do humilde assombro que se pode acreditar ser induzido por essa consciência Saber que estamos situados em um todo ilusório ou misterioso é saber algo de grande importância sobre a situação humana e até mesmo sobre o todo O conhecimento da ignorância neste sentido pode ser e certamente foi para Sócrates a base sólida para uma fértil exploração dos elementos duradouros da condição huma na Tal exploração póe a nu as questões ou problemas atemporais que nunca deixam de definir e pôr em marcha a vida humana Sócrates como o entendia Strauss afirmava que estamos mais familiarizados com a condição do homem como homem do que com as cau as últimas dessa condição Podemos também dizer que Sócrates via o ho mem à luz das ideias imutáveis isto é dos problemas fundamentais e permanentes Proeminente entre as ideias ou problemas imutáveis está o problema da natureza da justiça o bem comum uma questáo que é aprofundada e tornada mais intrigante pelas respostas conflitantes oferecidas pelas leis humana e divina dos vários regimes políticos A questão da justiça tem precedência porque a justiça ou a lei surgem como o mais elevado padrão para julgar o que deveria ser feito qual é o modo de vida correto para indivíduos famílias e sociedades políticas Strauss faz uma nítida distinção entre o que denominou o ceticismo erótico carente saudoso ou zetético indagador averiguador dos socráticos e a dogmá tica ou o ceticismo mais absoluto introduzido por Descartes e subjacente à ciência e epistemologia modernas A consciência da ignorância socrática náo implica que se jam desconhecidos o mundo real ou as coisas em si mesmas e que portanto só podemos conhecer um mundo aparente O ceticismo socrático não envolve uma dúvida radical em oposição a um questionamento do senso comum náo supóe que a articulação do mundo dado em nossa percepção sensorial e discurso racional seja uma 8 2 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 62 WIPP p 11 3839 248251 NRH p 3032 120122 Studies p 4142 170171 175 185 210 LiberalismAncient and Modem p 27232234 cf Mutual Influence p 114 O protótipo do íilósofo no sentido clássico era Sócrates que sabia que nada sabia que assim admitia que o todo náo é compreensível que apenas se perguntava se ao dizer que o todo não é compreensível náo admitimos ter alguma compreensão do todo 63 WIPP p 3840 NRH p 2324 9293123124 64 NRH p 23 8186 City p 19202225 construção inconsciente de nossas mentes e que portanto o verdadeiro conheci mento ciência só é possível com base em construções mentais conscientes ou cons cientemente criativas É isto o que se entende por ceticismo socrático possuímos um entendimento mas um entendimento incompleto das naturezas isto é dos tipos ou características das classes ou ideias das coisas tal como percebidas pelos sentidos e expressas no discurso comum e entendemos mas entendemos apenas vagamente o todo que é articulado por essas naturezas como partes Assim enquanto podemos pro gredir um pouco em nosso conhecimento da natureza como um todo o nosso conhe cimento neste sentido abrangente permanece extremamente controverso Acima de tudo parece improvável que a especulação metafísica ou cosmológica ou psicológica por si só possa decidir em definitivo a questão mais importante e urgente se nossa vida pode e deve ser guiada pela razão humana apenas ou se existem o Deus ou os deuses revelados pelas Escrituras ou pelos poetas e que portanto exigem de nós que obedeçamos a suas leis e piedosamente procuremos a iluminação a partir deles Entretanto como Platão mostra de maneira mais vivida por meio de seu relato do encontro de Sócrates com o Oráculo de Delfos e como Maimônides indica pelo próprio título de sua principal obra O guia dos perplexos nossa perplexidade não pode ser resolvida por nossa simples reverência às autoridades religiosas Pois os pronuncia mentos e até mesmo os mandamentos dessas autoridades sejam eles transmitidos por oráculos ou escrituras ou versos poéticos são um tanto enigmáticos porque exigem interpretação humana e os intérpretes oficiais discordam entre si Pior de tudo há uma variedade de deuses mutuamente exclusivos ou pelo menos antônicos ou deuses supostos e códigos legais divinos Os confiitos entre as diferentes autoridades divinas não são apenas controvérsias teológicas pois são ao mesmo tempo confli tos entre sistemas ou rm es moraispolíticos concorrentes com as suas concepções conflitantes de justiça e do modo de vida correto Os vários deuses ou supostos deuses representam avalistas e defensores de diversas interpretações do caminho justo ou cor reto O nome mais adequado da pergunta teológica se divindades existem e quais portanto como insistia Spinoza seria a questão teológicopolítica a questão teológi ca é uma parte da questão da justiça ou pelo menos se entrelaça com ela Foram os escandalosos indícios das aparentemente irreconciliáveis discordâncias morais entre os vários regimes políticos e os mandamentos divinos a eles associados que dirigiram os antecessores intelectuais de Sócrates para a linha de pensamento que levou à conclusão de que todas as afirmações cívicas ou populares sobre deuses justiça e nobreza são opiniões imaginárias ou inventadas e inteiramente convencionais A E p íl o g o 8 2 7 65 Introduaion acima p 5 WIPP p 116 City p 1921 29 4243 NRH p 73 80 121124 145146 163164 169177 201 249 Persecution and the Art ofWriting p 9598 105112 Studies p 147173 210211 Sócrates and Aristophanes New York Basic Books 1966 p 313 Spinozas Critique ofReligion p 89 66 Introduction supra p 45 City p 2021 Spinozas Critique ofReUgpm p 731 esp 29 O an tagonismo entre Spinoza e o judaísmo e entre crença e descrença em última análise náo é teórico mas moral com o qual cf Persecution and the Art ofWriting p 139141 partir das fríinentárias evidências disponíveis Strauss concluiu que a maioria dos filósofos e dos sofistas excluindose Sócrates a exceção notável é Tucídides tendia a passar ao largo dos discursos justificativos aparentemente contraditórios de cidadãos e estadistas para ao contrário estudar suas ações em particular as ações por meio das quais se estabelecem as ordens políticas A esta luz argumentavam toda comunida de política pode ser decomposta em dois grupos aqueles a maioria ou uma minoria que exploram porque governam e aqueles que sáo explorados por serem governados Esta situaçáo universal de conflito e dominação é uma conseqüência necessária da natureza dos bens ou prazeres que os homens buscam através da sociedade poiítica É da essência desses bens serem escassos como a prosperidade material ou resistentes a serem compartilhados como o avanço cívico dos entes queridos ou ambos como a glória Se a partir desta análise dos atos e dos objetivos revelados nas ações olhar mos de volta para os discursos justificativos ou crenças sobre a existência de um bem comum e a nobreza e sanções divinas para da fraternidade cívica e do sacrifício ou serviço à comunidade essas últimas opinióes parecem ser apenas as ilusões por meio das quais os homens premeditadamente ou não enganam os explorados e salvaguar dam seu próprio sentimento de vergqnha ludibriada De tudo isso os soíistas e seus medíocres discípulos podem concluir que a me lhor vida ou seja a vida mais agradável é encontrada na dedicação viril à competição política perspicaz astuta e implacável No entanto os mais meticulosos pensadores présocráticos os genuínos filósofos apontam que enquanto se permanece como um concorrente na arena política continuase preso a uma dependência radical infinita mente ansiosa de grande número de apoiadores e suas opiniões ilusórias expressas em honra e desonra O único prazer autossuficiente sólido indolor e avassalador ou ines gotável é o prazer de pensar e conhecer A melhor vida pela natureza ao contrário da convençáo ou da imaginação é portanto a vida do filósofo que convive com alguns amigos que possuem ideias semelhantes como um parasita mais ou menos inofensivo à margem da sociedade Strauss dedicou grande parte de seus escritos a uma exploração desta tradição présocrática ou epicurista porque estava convencido de que a fílosofia política de Sócrates só pode ser entendida se fisr encarada como o produto de uma rebelião cética ao mesmo tempo contra as autoridades tradicionais e contra esta critica filosó fica original antipolítica dessas autoridades Sócrates caracteriza sua nova abordem como um voltarse para os discursos ou como a prática da dialética a arte do debate amistoso Seu modo de agir tal como apresentado por Xenofonte e Platão é dar cuidadosa atenção aos argumentos justificativos oferecidos por diferentes tipos de cidadãos ativos e comprometidos e também por seus críticos os sofistas e seus seguidores Sócrates testa esses argumentos ao colocálos em discussão uns com os ou tros ao contrapôlos ao desvendar as suas implicações totais e ocultas A prudência 828 H i s t ó r i a d a F i l o s o f i a P o l í t i c a L e o S t r a u s s e Jo s e p h C r o p s e y 67 NRH p 93113 126 City p 1415 68 NRH p 1012114117 City p 1415 SocnttesandAristophanes p 481153 para não felar de outras considerações recomenda que em geral Sócrates conduza esta investigação não com os próprios cidadãos mas com os mais inteligentes entre seus filhos de mente mais aberta Suas conversas revelam que as ações dos homens devem ser entendidas à luz do significado que lhes é atribuído por opiniões e discursos A essa luz tornamse menos conclusivas as ações cruéis nas quais se concentram os sofistas présocráticos ou filósofos Além disso mesmo que se retire a ênfese do que os homens dizem mesmo que se aceite provisoriamente o foco dos présocráticos descobrese que o que os seres humanos realmente fezem o modo como realmente vivem em conjunto não é o que os présocráticos afirmam Em primeiro lugar a vida política como um todo evidencia uma sociabilidade natural humana a necessidade de compartilhar a vida com outros um afeto e sim patia mútuos e uma preocupação que aponta em direção a um bem comum natural Tais indícios não podem ser explicados de maneira adequada com base em cálculos egoístas além disso uma vez que a sociabilidade humana se expressa sobretudo no discurso potencialmente racional é também muito mais rica do que qualquer colmeia ou mero instinto de rebanho Está daro que por este mesmo motivo a sociabilidade retém forte ambigüidade Sócrates está longe de subestimar a onipresença da peculiar mente humana peculiarmente ilimitada competição pela superioridade e prestígio Porém reluzindo por entre até mesmo essas trevas nos discursos com que os homens expressam seus motivos para suas açóes Sócrates percebe uma dimensão maior e mais importante da política muito embora de maior firagilidade Mesmo nos embates com a necessidade econômica e militar que tanto ocupam a agenda política os homens apresentam uma consciência das sí d as limitações sobre o que podem fezer a outros e a si mesmos a fim de vencer o perigo e a escassez Esses limites são repetidas vezes transgredidos mas o próprio feto de que a vergonha e as tentativas de mascarála acompanhem tais transgressões é sinal de uma inibição natural nos seres humanos Ademais os homens admiram não apenas o sucesso em ampliar os interesses terrenos mas também determinadas qualidades do coração e da mente empregadas para atingir esses resultados benéficos mas que também parecem transcendêlos Ao procurar desenvolver ou promover essas qualidades como fins e não apenas como meios os homens ultrapassam os componentes da felicidade no sentido primário Aspiram a um lazer que lhes daria opormnidade para nobres ações pacíficas e para belas ou elantes preocupações Reverenciam não só os heróis de guerra e ofer tantes de dádivas mas também os homens que parecem capazes de dar conteúdo a tais aspirações como os poetas Tampouco é verdade que os diversos regimes poUticos com suas especificações concretas dos limites adma mencionados traços de caráter e nobre lazer sejam tão ir E p íl o g o 8 2 9 69 NRH p 120126 City p 1321 5354 Xtnophons Socmta Ithaca Comell University Press 1972 p 122123 70 NRH p 129130 On Tyranny p 213214 71 NRH p 128135 On Tyranny p 205 City p 3435 WIPP p 868990111 Femediavelmente contraditórios quanto aíirmaiun os críticos présocráticos Quando opiniões abalizadas opostas são colocadas em confronto dialético algumas parecem evi dentemente mais estreitas mais rasas menos coerentes do que outras outras decidida mente apontam para além de si mesmas ou podem ser vistas como complemento uma da outra Como resultado principiamos a discernir uma ordem hierárquica das virmdes e das versões de cada virmde ascendendo a partir da coragem ou das virmdes da guerra passando pela moderação e a generosidade e chegando ao patrocínio estético das artes ao orgulho à sagacidade graciosa à afirmação da verdade e à amizade Em sua expressão cívica esta ordem emergente das virmdes proporciona um direcionamento mais claro e mais rico à educação pública e portanto à justiça ou ao bem comum entendido agora como a preocupação com a saúde das almas além do bemestar dos corpos do conjunto de cidadãos A dialética socrática descobre que o que é justo por natureza ou em todos os tempos e lugares revelase não como um código universal de rras ou leis como o que mais tarde foi identificado como a lei natural ou o imperativo categórico mas sim como uma hierarquia de objetivos que consiste em qualidades de caráter e de alegrias ou satisfações encontradas no exercício dessas qualidades A investigação completa e simpática dessas qualidades e alegrias desnuda a base na tural e o potencial no coração humano para a justiça e a nobreza e por consiinte nos permite discernir com clareza sem precedentes os aspectos dessa base natural e po tencial que são de qualquer ponto de vista verdadeiras ou Intim as fontes de admiração e perplexidade A virtude ou moral brilha em sua nobreza quando se trata de autossacri fício é esta dimensão trágica da virtude que evoca e estabelece de modo mais nítido do que qualquer outra coisa na experiência humana a crença no apoio ou reconhecimento divinos todavia essa mesma evocação de uma divindade que de alguma forma com pensará o heroísmo atesta o fato de que a virtude também é vista em última análise com maior certeza e insistência como algo que deve ser bom para o possuidor como detentora da chave para a folicidade e a realização pessoal como manter a coerência entre estes dois aspeaos contraditórios da virtude Quais exatamente são os motivos para a responsabilidade culpa punição louvor e responsabilidade humanas dado que se pode demonstrar que a virtude pode ser ou exigir um daerminado tipo de conhecimento Esses e outros enigmas quando demonstrados para homens inteligentes dotados de força de alma revelam que as virtudes cívicas da ação por si sós são incompletas Precisamen te quando levada a sério e como um todo a vida moral ou piedosa com suas deficiências intelectuais aponta para além de si mesma para uma vida mais desperta e intransigente mente zelosa para a vida filosófica tal como vivida por Sócrates Em outras palavras a 8 3 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 72 NRH p 140143162164193194 WIPP p 80878991 City p 31354244 73 City p 2328 226231 NRH p 128129 133134 On Tyranny p 109 Xmophorís Socratic Dis course Ithaca Comell University Press 1970 p 115122 128129 133139 142143 147150 161163 Xenophorís Sócrates p 59 6061 63 68 7677 83 85 98 121 167 Cf Christopher Bruell Strauss on Xenophons Sócrates Political Science Revietver XTV Fali 1984 p 263318 74 City p 28293840 Xenophorís Socratic Discourse p 165179195 lhe Argument and the Action o f Platrís Laiíí Chicago University of C h io Press 1975 p 70130133 Studies p 185 filosofia política socrática culmina em um desagravo da vida filosófica Agora porém a vida filosófica é concebida não mais como a existência socialmente marginal de pensado res que desprezam a poUtica mas sim como a vida dedicada ao exame de opiniões cívicas poUtícamente responsáveis bem como das opiniões filosóficas o fiizer filosófico poUtico de Sócrates revigora a cidade ao compelir a vida cívica a se tornar mais autoconsciente de sua própria grandeza mas também de sua própria insuficiência ou direcionamento qualificado para a filosofia Assim se a filosofia deve ser valorizada como a surpreendente culminação da exis tência humana cabe ao filósofo político esclarecer de modo muito mais concreto do que nunca a natureza exata do genuíno em oposição ao falso modo de vida filosófico Isso fornece ainda outro motivo pelo qual a investigação e ataque aos raciocínios sofís ticos em suas mais elevadas e mais tortuosas bem como mais vulgares formas é um tema tão difundido e dramático dos diálogos platônicos Strauss traduz em termos con temporâneos este tema platônico chave ao saUentar o enorme fosso entre o filósofo ge nuíno e o intelectual moderno que está posicionado muitíssimo abaixo do sofista da Antiguidade O intelectual ou sofista em contraste com o filósofo preocupase com a sabedoria não para seu próprio bem mas pela honra ou o prestígio que acompanha a sabedoria Strauss tirou daí a desconcertante conclusão de que enquanto há com certeza muitos que têm alguma experiência ou gosto pelo amor da verdade no entanto os filósofos genuínos homens consumidos por este amor são tão extremamente raros que será um golpe de sorte se houver um único deles vivendo em nossa época Essa defesa que é ao mesmo tempo uma definição precisa do modo de vida filosófico é naturalmente apenas o ápice da tradição socrática da filosofia política Tal defesa emerge e por sua vez inspira uma refiexão abrangente sobre o bem para a sociedade como um todo Em parte sem dúvida porque dão tal atenção ao discurso logos raciocínio sobre a justiça mas também com base em cuidadosas observações da vida política os clássicos argumentam que o principal fenômeno social é a disputa na arena política sobre quem decidirá quanto à definição das metas mais elevadas da sociedade quanto à determinação do modo de vida da comunidade e do que essa vida reverencia Isto não significa que os socráticos jamais supuseram que as disputas políticas fundamentais sejam realizadas apenas em palavras exatamente porque levou tão a sério o que estava em jogo no aigumento cívico Sócrates ensinou uma apreciação do papel desempenhado pela paixão pela violência e pela ameaça de violência Na medida em que a disputa fundamental é resolvida em cada sociedade resulta daí um regime politeia regime significa acima de tudo que tipo de ser humano governa e é admirado como exemplo e como tendo o direito de impingir um modo de vida específico por meio da coerção bem como pela exortação autoritária Neste sentido E p íl o g o 8 3 1 75 City p 2529 37 49 NRH p 140146 149152 156157 Xmophotis Socnttic Discourse p 132159166175176209 WIPP p 2933 9094 StudUs p 172173 Liberalism Ancient and Modem p 131419 76 NRH p 34 115117 Liberalism Ancient and Modem p 3 7 53 On Tyranny p 198 supremo a política determina o caráter da sociedade mais do que qualquer outro fa tor e por conseguinte a ciência política é a ciência da arquitetura social Até mesmo uma sociedade liberal que permite que a esfera privada e o mercado sobrepujem em alguma medida a esfera política faz isso apenas em virtude de uma constituição política específica erigida por uma decisão política basal A indagação bumana central é portanto qual é o melbor regime para qualquer sociedade dada E a resposta a esta pergunta depende de algum tipo de resposta para a pergunta mais geral qual é sim plesmente o melbor regime qual é o padrão Se o filósofo político vive a melhor vida em grande parte porque compreende melhor a problemática situação humana como um todo se o filósofo por causa de sua preocupação obstinada pela busca do conhecimento é o mais imune às tentações do dinheiro da glória e do domínio parece decorrer daí que o melhor regime é aquele em que o filósofo político governa e atribui a cada indivíduo o que é melhor ou o que lhe é devido No entanto é extremo o paradoxo desse melhor regime Como mostra Strauss neste livro em seu capítulo sobre Platão A República ensina tanto o motivo pelo qual o governo dos filósofos é tão urgente como por que uma vez que seja de fato examinado em profundidade é evidentemente impossível ou absurdo A vida do filósofo político é uma vida de incessante questionamento pesquisa tranqüila e desapego cosmopolita de si mesmo em prol da verdade universal A vida do esta dista exige respostas imediatas dedicação nobre à ação que produz resultados e um apego afemoso para com um conhecimento íntimo de seu próprio povo Dois tipos distintos de homem e duas formas diferentes de vida cada um deles pode aprender ou beneficiarse com o outro mas permanecem divididos por um fosso e resta alguma tensão entre eles Pois as perguntas e dúvidas e desprendimento do filósofo tendem em si mesmos a desestabilizar a corroer os laços habituais e emocionais que entre meiam qualquer sociedade saudável O grande ensinamento prático de A República tal como interpretado por Strauss é portanto uma lição sobre os limites do que é sensato espetar da política bem como uma lição sobre as restrições da filosofia política Jamais poderá existir uma sociedade imicamente racional ou esclarecida em que governa o conhecimento em lugar da mera opinião e do hábito Jamais poderá existir liberdade de expressão para o filósofo Por conseguinte o filósofo sensato deve filosofar politicamente Deve aprender como empregar a retórica oral e escrita de modo a continuar seu questionamento libertador e alcançar potenciais íilósofos de forma discreta ou mesmo velada No entanto ao mesmo tempo seu apego natural a seus semelhantes bem como seu conhecimento de sua dependência da sociedade impõemlhe ouras obrigações cívicas complexas O filósofo deve respeitar ao mesmo tempo que tenta criticar e ampliar de forma construtiva a perspectiva tradicional de sua própria sociedade e a de outras 77 City p 174549 NRH p 135138191194 WIPP p 33368390 78 Uberalism Ancient and Modem p viü 1415 Persecution and the Art ofWriting p737 WIPP p 221232 8 3 2 H is t ó m a d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e v O resultado prático é que o regime que favorece a tradição socrática como a melhor possível ou como guia para a ação é uma república mista tendendo sempre que possível para a aristocracia As Leis de Platão e a Política de Aristóteles fornecem modelos de como o íilósofo político atua como árbitro tentando arbitrar ou misturar as reivindicações conflitantes da maioria pobre e da minoria rica de famílias reais ou nobres artesãos soldados comerciantes operários marinheiros agricultores A meta é planejar maneiras de as diversas classes ou partidos compar tilharem a responsabilidade política de modo a ressaltarem as virtudes específicas e reprimirem os vícios específicos de cada uma delas Todavia o socrático fala de uma perspectiva que desdenha todos os principais competidores pelo governo Favorece quando os pode encontrar os verdadeiros cavalheiros kaloi kagathot ou aristo cratas os poucos entre os instruídos e ociosos que tentam de fato dedicarse às vir tudes morais e a alguma apreciação da superioridade da vida do espírito mesmo que apenas aquela exercida na poesia reflexiva e na piedade Como os diálogos socráticos tantas vezes demonstram em geral com certo efeito cômico muito poucos entre os ricos bemnascidos e bemeducados encaixamse nesta categoria de verdadeiros aristoi Em outras palavras os socráticos não nutrem grandes esperanças de que os poucos verdadeiros aristocratas desempenharão um papel de peso na maioria das repúblicas e muito menos nos regimes despóticos que predominam na maioria dos lugares na maioria das vezes Tipicamente a voz política do socrático será uma voz solitária embora em oposição leal e prudente uma voz serena porém teimosa que relembra o significado e a questão da verdadeira excelência enquanto critica e chama a atenção para os preconceitos cegantes e as propensóes ao fanatismo do modo de vida dominante Nas oligarquias os socráticos questionam a ênfase ex cessiva dada ao ganhar dinheiro nas teocracias a obediência servil à tradição nos regimes militares a embrutecedora ênfase na hombridade e nas democracias o zelo nivelador do igualitarismo e de uma interpretação licenciosa da liberdade Cada regime percebe com perfeita clareza as felhas de seus adversários mas necessita ser firmemente lembrado dos perigosos excessos que podem resultar de seu apego incondicional ao que considera como obviamente correto Os E n s in a m e n t o s P o l ít ic o s d e S t r a u ss Podemse compreender melhor os próprios ensinamentos de Strauss sobre a política em sentido estrito como uma tentativa de revificar adaptar e aplicar nas circunstâncias dramaticamente novas de nosso tempo esta secular tradição socráti ca Tendo atingido a maturidade na malfadada República de Weimar e com grati dão tendo encontrado nos Estados Unidos um refúgio e proteção contra o fascismo 79 Liberalism Ancient and Modem p 1415 WIPP p 80818590 NRH p 138143 On Tyranny p 213214219222 E p íl o g o 8 3 3 Strauss foi um firme defensor e amigo mas por esse motivo mesmo náo um adu lador da democracia liberal Por mais distante que esteja a democracia liberal ou de massas do republicanismo cívico da antiguidade tanto em sua teoria como em sua prática a democracia liberal continua a ser uma forma de republicanismo Ou seja permanece como uma forma de autogoverno pelos cidadãos Portanto continua a exigir conforme insistia Strauss uma versão uma versão atenuada com certeza do ideal grecoromano de um conjun to de cidadáos ativos e orgulhosos imbuídos de um respeito informado pelo estadista notável Consequentemente lastimava a influência dos historiadores igualitários que de modo impensado ridicularizam a grandeza do estadista ao invés de tornála mais inteligível Strauss opunhase vigorosamente à tendência predominante de depreciar a história política de reduzir os argumentos e feitos dos cidadáos e dos governantes a um mascaramento superficial apenas ideológico de forças econômicas ou sociais subpo líticas supostamente mais profundas desafiou sem cessar aqueles entre seus colegas das ciências sociais que se concentravam naquilo que denominavam comportamento e que portanto tratavam os pareceres escritos de juizes as deliberações de representantes e a formação da opinião pública como fenômenos de um grupo de elite ou de massa que seriam inteiramente quantificáveis e em grande parte previsíveis Strauss argumen tara que esses modismos acadêmicos e didáticos não só minaram o já precário respeito para com o debate político e a liderança do espírito público mas também falsificaram os dados empíricos a realidade do homem como animal político Todavia na tentativa de manter acesas as brasas do conjunto mais antigo de cidadãos e arte política republicanos Strauss não sucumbiu a qualquer tipo de nos talgia pela polis e sua vita activa espaço público ou senso de comunidade Neste aspecto divergia não só de vários de seus contemporâneos críticos de esquerda e de direita da democracia liberal mas também de Maquiavel Rousseau Nietzsche e ou tros pensadores modernos radicais A lealdade primordial de Strauss era para com a filosofia clássica não para com a cidade clássica ou até mesmo para com a arte clássica Penetrara de modo demasiado proíúndo na análise minuciosa que fizera Tucídides de tudo o que está implícito nos excessos da oração fúnebre de Péricles que náo era capaz de celebrar o esplendor da Atenas imperialista Em parte como resultado disso não 8 3 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 80 Liberahsm Ancient and Modem p 15 2325 WIPP p 3638 263264 306311 On Tyranny p 22 City p 11 O retomo à filosofia política clássico e ao mesmo tempo necessário e tímido ou experimental Náo é razoável esperar que uma nova compreensão da filosofia política clássica nos forneça receitas para uso nos dias de hoje pois o sucesso relativo da filosofia política clássica causou a emergência de um tipo de sociedade completamente desconhecida dos clássicos Somente viven do hoje é que é possível encontrar soluções para os problemas de hoje Porém uma compreensão adequada dos princípios elaborados pelos clássicos pode constituir o ponto de partida indispensável para uma análise adequada a ser realizada por nós da sociedade atual com suas caraaerísticas pecu liares e para a sábia aplicação a ser realizada por nós desses princípios a nossas tarefas 81 Uberalism Ancient and Modem p 451023207208213214216218219 WIPP p 2728 7887 235241 era hábito de Strauss falar com desprezo do individualismo burguês ou rejeitar com ingratidão a humanidade a compaixão o bemestar social e a proteção à diversidade sem precedentes ocasionados pelas modernas repúblicas comerciais Percebia talvez de modo mais nítido do que qualquer outro a desarmonia na tradição americana entre uma ordem clássica ou ideal cívico mais antigos mais nobres mas menos influentes e uma ordem nova e cada vez mais triunfente permissiva e individualista Contudo exatamente por este motivo divisou de modo mais claro as virtudes distintas e os ví cios distintos de cada componente da incômoda combinação Em particular Strauss admirava a tolerância e o respeito pela liberdade individual que são as marcas distintivas do liberalismo não só porque oferecem um reíiio para a fílosofía perseguida mas também porque permitem ou até mesmo encorajam o sur gimento de revigorantes disputas políticas que às vezes podem estenderse muito além de eventos e controvérsias atuais Há então espaço dentro do liberalismo do tipo moderno para o liberalismo do típo antigo Strauss chegou mesmo a encontrar no liberalismo moderno um ninho para o mais elevado ingrediente daquele liberalismo mais antigo o liberalismo que consiste na libertação da mente por meio do estudo e do debate de visões alternativas da excelência humana desenvolvida nos grandes livros No melhor da universidade liberal continua a brilhar a antiga ideia de educação liberal como a joia da coroa do liberalismo moderno isto é enquanto a universidade resistir às pressões deturpadoras das demandas incessantes da sociedade democrática para a rele vância o serviço à sociedade e o endosso de amais cruzadas e dogmas morais Esta ameaça à ideia da universidade liberal é endêmica argumentava Strauss porque é apenas a manifestação mais agjxàa de uma ameaça à liberdade autêntica do inteleao que em toda parte assombra os passos do liberalismo moderno o fato grave é que a própria abertura da sociedade aberta contém em si um germe autodestrutivo A doença para a qual Strauss apontava não é aquela que os liberais discernem com facili dade e à qual muitas vezes resistem com nobreza a persistência e a freqüente ressur gência da perseguição e discriminação não oficial Mais insidiosa e por conseguinte mais corrosiva é a tendência da tolerância democrática a degenerar transformandose em primeiro lugar na crença descontraída de que todos os pontos de vista são iguais e por conseguinte nenhum é digno de argumentação realmente apaixonada análise profunda ou defesa inflexível e depois na crença estridente de que quem defende a superioridade de uma visão moral modo de vida ou o tipo humano distinto é de alguma forma elitista ou antidemocrático e portanto imoral Esta é a síndrome que Tocqueville caracterizara em uma manifestação anterior como a nova e branda tirania da maioria uma pressão sutil desorganizada mas onipresente em favor da conformidade igualitária decorrente da incapacidade de o indivíduo psicologicamente castigado e intimidado resistir à autoridade moral da opiniáo pública de massa Na E p íl o g o 8 3 5 82 City p 2223 151153 192195 226229 Persecution and the Art ofWriting p 21 2237 In troduction supra p 6 Liberalism Ancient and Modem p 1523 esp p 21 83 Liberalism Ancient and Modem p vi 325 5354 262 On Tyranny p 27 sua expressão mais sublime a igualdade promete a todo ser humano a oportunidade de ascender a uma posição justa na hierarquia natural de talentos e realizações de virtude e de sabedoriu mas em particular sob a influência venenosa do moralismo nivelante que se disfarça como relativismo a laldade se degrada com demasiada facilidade Além disso o problema não é mitigado é de fato agravado pela guinada impensada que se afasta do relativismo porque em sua forma aberta o moralismo democrático contemporâneo tende a superestimar as virtudes de uma sociabilidade bastante branda ou flácida existe uma tendência muito perigosa de identificar o homem de bem com o cara lepl aquele que coopera o gente boa isto é uma ênfase exagerada em uma determinada parte da virtude social e uma correspondente negiênda das virtudes que amadurecem se náo florescerem na intimidade para não dizer no isolamento ao educar as pessoas para cooperarem umas com as outras em espírito de amizade todavia náo se educam os náo conformistas aquelas pessoas que estáo preparadas para agirem de modo indepen dente para lutarem sozinhas A democracia ainda náo encontrou uma defesa contra o conformismo rasteiro e a crescente invasão da privacidade que promove Há na opinião de Strauss apenas uma resposta adequada A educação liberal é o antídoto para a cultura de massa a escada pela qual tentamos nos alçar da de mocracia de massa para a democracia tal como entendida em sua origem ou seja uma aristocracia que se ampliou até tornarse uma aristocracia universal Strauss não tinha qualquer expectativa de que tal sociedade pudesse ser alcançada e na verdade insistiu que não se nutrissem sas ilusões e esperanças quanto à sua concretização mas sustentava que poderiam ser dados pequenos passos em direção a ela e que dar tais passos seria a maior vocação da democracia liberal Todavia repetimos Strauss jamais se cansou de enfatizar a importância de distinguir em particular na política entre o que é mais elevado e o que é mais urgente e o que é mais urgente em matéria de democracia liberal não é o seu aperfeiçoamento mas sua defesa Em nossas aspira ções para aprimorar o liberalismo alimentava Strauss não devemos perder o nosso apreço pelas valiosas prosperidade humanidade e liberdade que já possuímos Strauss acreditava estar em perigo a democracia moderna tanto no que se refere a suas elevadas aspirações como em sua urgente necessidade de defesa leal pelas ciências sociais contemporâneas Não se trata apenas como já explicado do fàto de que as me todologias dominantes nas ciências sociais e na história social científica necessariamente induziram a um cinismo sobre a própria possibilidade de uma prática política autônoma e razoável ainda pior em seus efeitos ou implicações é a suposta distinção entre as proposições normativas e empíricas entre feto dentíflco e valor não científico Como demonstrou Strauss em sua crítica de Max Weber e também de pensadores po 8 3 6 H is t ó r ia d a F i l o s o f u P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 84 Liberalism Ancient and Modem p 5 78 2325 6364 262264 268 272 NRH p 56 85 WIPP p 38 86 UberaUsm Ancient and Modem p 452425 NRH p 14 sítívístas menores os íúndamentos teóricxs para essa distinção fetovalor íbtam e são íracos a vetdadeira embora nem sempre reconhecida fonte da aceitação generalizada da distinção é sua coincidência com o relativismo igualitário a variedade mais simplista c dogmática mas por esse motivo a mais fecilmente disponível variedade do moralismo democrático Conmdo isso significa dizer que as ciências sociais supostamente isentas de valores mascaram o que vem a ser de íato um endosso negligente uma perigosa extensão ou promoção da pior corrente do pensamento democrático Contra esta tendência Strauss esboçou os íúndamentos de uma ciência política muito diversa inspirada na Política de Aristóteles O ímpeto para esta ciência política alternativa veio da reflexão sobre as íàlhas do esmdo científico da política visto à luz do que se poderia aprender a partir da história do pensamento político mas a prática real da nova ciência política que Strauss tinha em mente de modo algum pretendia limi tarse aos esmdos históricos A abordim alternativa seria genuinamente empírica porque derivada estritamente a partir da experiência genuína dos reais comportamento e pensamento políticos Cientistas políticos verdadeiramente empíricos principiariam não de uma impossível tabula rasa científica mas de um senso comum político pré científico Evitariam o jargão científico e a terminolcia teórica inventada mas ao contrário sjiiriam a articulação da polítíca atual na linguagem prática de homens políticos engajados Seu esmdo tentaria não ser nem de valor neutro relativista nem comprometido no estilo dos assim chamados esforços pósbehaviorístas para colher evidências teóricas ou empíricas para programas ideológicos da esquerda ou da direita Enraizada na transcendência conversacional do comum senso por Sócrates uma ciência política teoricamente sóbda partiria de um engajamento crítico o qual mmca aban donaria com a perspectiva da participação ativa dos cidadãos debatendo em defesa de várias convicções A partir dessa perspectiva cívica a verdadeira ciência política adotaria como sua categoria de análise básica o regime no sentido anteriormente esboçado As peijuntas às quais os cientistas políticos dirigiriam suas pesquisas e os critérios de relevância ou importância que guiariam sua seleção e o peso a ser atribuído aos dados seriam práticas e nâo teóricas ou científicas as perguntas e os critérios de relevância derivariam de modo muito autoconsciente das questões prementes e das discussões sobre o regime em cada país bem como dos debates entre os regimes distintos estabe lecidos em países diferentes O objetivo seria não só descobrir novas informações que teriam impaao na avaliação das várias posições partidárias concorrentes mas também levar o raciocínio de cada um até sua conclusão não declarada ou não pensada de modo a iluminar e arbitrar a totalidade das implicações das mais básicas ou abrangentes disputas da nação no passado e no presente Os métodos e resultados da matemática e da ciência natural modernas seriam cautelosamente empregados e teriam um papel estritamente subordinado A ciência política seria menos obcecada com a tentativa de fezer previsões com base em leis ou modelos pseudouniversais ou abstratos saberia e admitiria que em política tudo que vai além do trivial e de curto prazo é em grande E p íl o g o 8 3 7 87 NRH p 17 3580 Uberalism Ancient and Modem p 26 28 222223 WIPP p 1824 parte imprevisível e se dedicaria mais a orientar a deliberação genuína aprimorando a consciência que têm os cidadãos do âmbito peso e validade dos fetores e princípios envolvidos nas decisóes mais relevantes Sofisticados praticantes de tal ciência política se cxncentrariam menos nas características comuns a todos os regimes defesa políti ca monetária e mais nos diversos objetivos políticos que moldam e dão sentido dis tintivo a estas coisas comuns prudentemente ascenderiam à humanidade comum do homem por meio da arbitrem das diferentes e conflitantes defíniçóes morais dos regimes acerca do que é maior no homem Esta visão de uma ciência empírica cívica e política que Strauss tentou ressuscitar dita que a nossa principal preocupação como cientistas políticos deve ser o estudo de nosso próprio regime É assim porque essa escolha de foco expressa honestamente nossas inegáveis preocupaçóes principais como seres humanos e porque reconhecendo isso sabemos que precisamos nos engajar em uma revisão completa e crítica dessas preocupaçóes se temos a esperança de um dia atingirmos qualquer objetividade Os cientistas políticos que são informados pela ênfese dada por Aristóteles e Strauss ao regime e às diferenças radicais entre os regimes e seus modos de vida conflitantes têm plena consciência da assombrosa influência que cada regime tem sobre as almas daqueles que crescem dentro dele Como expressou Platão na mais famosa metáfora da República cada regime é uma espécie de cavernaprisáo da alma Os cientistas po líticos que chegam a sentir na carne essa verdade são aguilhoados pelo conhecimento de como é difícil sequer adquirir consciência do quanto é questionável a visão moral e política própria da qual estáo impregnados Sabem com é fácil exacerbar essa cegueira ou distorção iniciais pela sutil e inconsciente inserção de dados de épocas anteriores de sociedades e regimes estrangeiros em quadros teóricos com base em premissas morais e comportamentaishumanas adequadas somente para o regime em que se foi criado Não confiam que um método científico supostamente neutro produza resul tados neutros sabem em primeiro lugar que as perguntas básicas iniciais colocadas por cientistas políticos não são geradas pelo método sabem em segundo que método algum constitui prova contra as opinióes morais profundamente enraizadas de seu usuário mais importante de tudo sabem que é impossível verdadeiramente entender ou compreender os fenômenos políticos que é impossível realmente percebêlos como o que são sem avaliálos como justos ou injustos cruéis ou benevolentes destrutivos ou construtivos Estudantes aristotélicos da política portanto afestamse de suas pró prias raízes para um frutífero encontro e debate com os regimes estrangeiros passados e presentes Ao fezêlo não agem como meros comparatistas que comparam os siste mas políticos tal como entomologistas comparam colmeias Envolvemse em um de bate desafiador tendo em vista o que é melhor e pior mais ou menos justo Visam dar conselhos que irão melhorar a vida daqueles que estudam e procuram ouvir críticas 8 3 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 88 Liberalism Ancient and Modern p 205215 WIPP p 1417 2729 7895 NRH p 191194 Social Science and Humanism in The State o f the Social Sciences ed Leonard D White Chi co University of Chicso Press 1956 p 416420 que irão melhorar a vida de seus próprios concidadãos Tal como quaisquer cidadãos sensatos que convivem com os estrangeiros ou com eles debatem a fim de aprender tais cientistas políticos se esforçam para postergar seu julgamento para perscrutar suas próprias crenças arraigadas não por serem isentos de juízos de valor mas como uma conseqüência direta do juízo de valor de que a verdade é ssrada e deve estar subja cente aos verdadeiros justos por natureza Em particular se tiverem sido tocados pela influência da história da filosofia política os cientistas políticos irão mais longe nessa direção do que o próprio cidadão Sua busca da verdade como cidadãos será imbuída de um senso de dever como cidadãos do mundo participarão na qualidade de juizes e não apenas como iluminados concorrentes na maior das controvérsias humanas Na nossa época a controvérsia política predominante é aquela que revolve em torno da democracia liberal ocidental centrada nos Estados Unidos e o marxismo centrado na União Soviética Os esforços e as esperanças que investimos na negociação e manutenção de uma paz inquieta não devem desviarnos insistia Strauss de um lúci do reconhecimento deste antagonismo moral e político essencial e no futuro previsível persistente Bemintencionadas tentativas internacionalistas de minimizar a impor tância do conflito evidenciam tanto um desconhecimento da importância da dimensão política ou da dimensão do regime como uma crença tipicamente ingênua ou apolí tica de que os líderes de regimes tão diversos ainda assim compartilham razoáveis prioridades ou mesmo alguma versão das virtudes humanas e pacíficas de nosso regime liberal É função principal da ciência política corretamente entendida dissipar essa ilu são por meio da propição de um entendimento adequado da importância do conflito entre os regimes em geral e entre os regimes marxistas e liberais em particular Isto significa que Strauss tomava como um dever especial engajar em profundo debate os mais ponderados ou totalmente articulados defensores do marxismo Nesse sentido deu atenção a marxistas mais ortodoxos como Lukács e Macpherson mas considerou a mais convincente versão da concepção marxista aquela de Alexandre Kojève o grande esquerdista hegeliano Foi em seu debate extenso respeitoso po rém intransigente com Kojève que Strauss desenvolveu mais de modo mais pleno sua reflexão sobre as mais profundas raízes do pensamento marxista Nessa complexa reflexão discernimos os seguintes princípios básicos No plano estritamente político ou prático enquanto o m arxism o inteligente apreende com certa clareza algumas das inadequações na concepção liberaldemocrática da natureza humana por exemplo a ênfase exagerada no homem como consumidor a tendência ao relativismo a ilusão de uma ciência social de valores neutros a vaga alternativa positiva que o marxismo oferece é quando examinada com rigor impossível de distingnir da visão de pesadelo M uogo 89 WIPP p 1017 2125 2729 5657 7377 NRH p 5662 Liberalism Ancient and Modem p 216223 Social Science and Humanism p 418419 90 City pp 46 On Tyranny p 2122 201202 222226 Liberalism Ancient and Modem p 2425 230231270271 que tinha Nietzsche da futura sociedade dos Últimos Homens Além disso o mar xismo compartilha com o seu grande inimigo Nietzsche uma subestimaçáo grosseira do valor da decência compaixão civilidade e liberdade legal do liberalismo Ainda pior o marxismo fracassa em dar a devida consideração à permanente necessidade de elaborar controles institucionais contra o abuso de poder Portanto não é por acaso que o marxismo como uma realidade histórica isto é testado pelo único teste que o próprio marxismo considera comprobatório revela uma predominante propensão a se tornar a base para uma nova forma de despotismo peculiarmente cruel No nível teórico ou com relação à autoconsciência racional que é o dom mais precioso e distintivo da humanidade o marxismo em todas as suas formas falha em valorizar ou reconciliarse com a mais fundamental e insuperável contradição que per meia toda a vida social a desproporção entre o pensamento politizado e coletivizado hoje chamado de ideologia um tipo de raciocínio que mesmo no que tem de melhor jamais transcende o nível de dogma ou compromisso e o questionamento filosófico radicalmente independente que em seu núcleo se recusa a assumir com promissos com qualquer necessidade ou imperativo moral que não seja a necessidade e o imperativo de conhecer a verdade A verdadeira opinião uma fé uma dedicação amorosa e um enraizamento em nossa própria época ou povo que superam todas as dúvidas é aquilo de que todas as sociedades políticas e quase todos os indivíduos necessitam como o ar espiritual que respiram O genuíno racionalismo com raízes no conhecimento da ignorância possuído por eros para a verdade eterna em seu co ração ansiando por fugir do ambiente da caverna pode como resultado jamais se tornar a base direta de qualquer sociedade política ou sequer cosmopolita Foi sua inabalável identificação desta que é a mais profunda de todas as ten sões humanas que levou Strauss a ensinar em tantos níveis a necessidade de uma moderação de nossas expectativas políticas morais ou religiosas Os seres humanos jamais criarão uma sociedade que seja livre de contradições Em compensação por assim dizer Strauss nos convida para saborear uma infindável mas de modo algum infrutífera busca pela verdade acerca de nós mesmos e do todo em que vivemos Seus ensinamentos políticos foram em última análise uma lição sobre os sacrifícios que devemos fazer para que nossas mentes possam ser livres Podemos não ser filósofos mas podemos amar a filosofia o que consiste em escutar a conversa entre os grandes filósofos isto é em estudar os grandes livros Entretanto esta conversa não acon tece sem a nossa ajuda devemos fàzer acontecer essa conversa A noção da benefi cência da natureza ou do Bem deve ser restaurada ao ser repensada por meio de um retorno às experiências fundamentais das quais se origina Pois enquanto a filosofia deve acautelarse contra querer ser edificante é necessariamente edificante Nâo 8 4 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y 91 Nietzsche Thtis Spake Zarathustra Prelude sec 5 92 Studies p 3234 229231 Relativism in Relativism and the Study t f Man Ed H Schoeck and J W Wigglns Princeton Van Nostrand 1961 p 145148 On Tyranny p 143226 WIPP p 230232 podemos exercer a nossa compreensão sem de tempos em tempos compreender algo de importância e esse ato de compreensão pode ser acompanhado pela compreensão da compreensão pelo noesis noeseos Essa experiência em nada depende do fato de que aquilo que compreendemos ser basicamente Eradável ou desagradável belo ou feio Levanos a perceber que todos os males são em certo sentido necessários se de sejamos a compreensão Permitenos aceitar todos os males que nos sobrevêm e que podem muito bem partir nossos corações com o espírito de bons cidadãos da cidade de Deus Ao tomarmos consciência da dignidade da mente percebemos o verda deiro fundamento da dignidade do homem e com isso a bondade do mundo quer o entendamos como criado ou como incriado que é a morada do homem porque é a morada do espírito humano E p ílo g o 841 93 WIPP p 2728 Liberalism Ancient and Modem p 7824 Spinozas Critique o f Religion p 6 The Political Philosophy afHobbes Its Basis and Its Cenesis C hio University of Chics Press 1952 p xvi Thoughts on MachiaveUi p 299 Índice Aarão 374 Abiatar 374 Abismo Ser como 806 807 Abraão 211 212 242 374 Abravanel Isaac 218 Academia Platâo 109 143 Ação causas e efeitos da 567 568 569 como ob jetivo do homem 573 de aprovação 574 Acaso em Bacon 337 342 n 19 em Spinoza 409 em Montesquieu 473 em Hume 497 como lacuna entre a intenção e o efeito de atos virtuosos 116 Acordo Isabelino 325 Adão 167179 374 606 Adivinhação 103157165171341 iostinbo S 161187 tentativa de reconciliar a Bíblia e a filosofia clássica 161164 filosofia como terreno comum para fiéis e infiéis 162 163 sobre a justiça e o direito 173 empre go do poder secular para reprimir a heresia 163 visáo de Platão 164 sobre a sociedade civil 165174 virtude cristã versus pagp 165 174 fracasso da filosofia clássica em promo ver a boa sociedade 165166 lei eterna e lei temporal 168170 e sanções divinas 171 e a presciência divina 171 polêmica contra Roma 174176 monoteísmo e religião civil 175178 e as duas cidades 178182 e a exis tência permanente do mal 187 Revelação e ciência 228 mencionado 188 287 299 ricultura como meio de aliviar a penúria no estado de natureza 441 como causa da intro dução do dinheiro 474 Alarico 182 Albo José 212223 Alcibíades 19 22 23 96 100 116 Aldeia 125155769 Alembert Jean le Rond d 377 392 459 476 Alexandre o Grande 109 173 298 317 Alfarábi 188206 tentativa de correlacionar o Islá e a filosofia política clássica 188191 o regi me virtuoso 204206 o governante supremo 194197 lei e sabedoria viva 197200 guerra e limitação da guerra 200204 legitimidade do fazer filosófico 208209 a função do pro feta 214 comentários sobre os escritos platô nicos 225 desejo de introduzir a filosofia na sociedade 225226 conceito de seita 250 251 estudo de Strauss 819820 Alma prova de imortalidade da 6263 racional de Aristóteles 113114 grandeza de 116 117 120 141 visáo de Descartes 386387 e Burke 626 Altabin na Nova Atlântida New Atlantis de Ba con 342 Aluguel significado de Smith 581 Ambição desejo de simpatia como fundamento da 573 Ambrósio 186 América visáo de Hegel 676 678 expedientes democráticos para a resolução do problema democrático 692694 Americanismo 804 805 810 Amizade definida por Aristóteles 119120 Amor pelo país visáo de Smith 571 Anabatistas 292 300 308 309 Análise em três estapas do desenvolvimento da humanidade 704 Anaxágoras 101 Angústia Heideer sobre a 799 Aníbal 271 Í n d ic e 8 4 3 Annenkov P V 719 Antidericalismo de Marsílio de Pádua 255 256 261 Antigo Riime caracterização de Tocqueville 683 Andgo Testamento 260288310311320326 Vir tambim Bíbliv Novo Testamento Antígona 806 Antdade admiração de Rousseau pela 502 503 516 517 Antoninos 477 Antônio S 235 246 Apoio 7296 Apostasia poder da coerção contra 249 257261 Aprovação como princípio da virtude 567 568 575 Aquiles 116 547 Aquino S Tomás de 225248 discussões da profe cia 213 oposição de Marsílio de Pádua 249 264266 concepção da lei divina 261262 tentativa de reinterpretar Aristóteles com base na fé cristã 225 status canônico da filosofia 226 distinção entre domínios da filosofia e da teologia 228229 natureza do regime políti co 230235 afastamento dos ensinamentos aristotélicos 240242 244246 sujeição da ordem natural à ordem da lei divina 235 direito natural 235 virtude moral e lei natu ral 235244 paixões primárias e secundárias 237239 inculpabilite de açôes imorais rea lizadas sob coação xxx defesa da escravidão legal 244 síntese de fé bíblica e filosofia aris totélica 244 influência sobre Hooker 233 determinação de metas de vida por referência à natureza 358 tratamento da lei 460 men cionado 118 223 626 629 Arabes filósofos influência platônica sobre 226 228 Arcontes dêmarcos 307 A reóp 394 Argos76352 Aristipo 283 Aristocracia características da 57 e oligarquia 69 posição hierárquica entre os regimes incorre tos 70 cumprimento das leis 77 na Pérsia de Xenofonte 85 87 Aristóteles sobre 116 128130135137 discussão de Cícero 159 161 verdadeira aristocracia 153 259 como elemento do regime misto 233 concepção de Marsílio 258259 262 argumento de Cal vino a fiivor da 301302 lócus do poder na 368 mérito da 369 designação da soberana 370 concepção de Spinoza 419 discussão de Montesquieu 464465 fidhas da 477 visão de Rousseau 514515 preferência de Burke pela 622 630631 James Mill sobre 651 653 burocracia como forma moderna da 670 discussão de Tocqueville 684698699 e elevação do tipo homem 702 e preserva ção da religião 750 visão socrática da 833 Aristóteles 109141 sobre a prudência 110 112 120122 127128 141 618 distinção entre razão teórica e tazão prática 110112 sobie a félicidade 112114117126138140 sobre a virtude 114120 125131 133136 138 140 141 sobie a educação 115 124 136 141 sobre a justiça 117120127135 sobre a amizade 119120 sobre a sabedoria política statesmanship 121124631 análise da cida de 123127 sobre a cidadania 127131 so bre as variedades de rimes 131135 sobre o melhor rime 135137833 sobre o melhor modo de vida 138141 injunção pata buscar a vida divina 162 efeito cristão sobre o pensa mento político medieval 225230 o melhor rm e 234 lista de virtudes 235236 virtude moral como média entre dois extremos 238 239 doutrina da verdade prática 239 sobre os princípios morais 242243 tratamento das virtudes morais 235236 inculpabilidade das ações imorais realizadas sob coação 242243 sobre a escravidão 244 472473 e Marsílio de Pádua 249266 passim fimção da classe sacerdotal 249250 magnanimidade como hábito de invocar elevadas honras para si mes mo 267 oposição de Maquiavel a 281 con cepção de Lutero 287288 297298 crítica de Bacon 328 sobre o poder civil 350 sobre mudanças na ordem chril 352 elto da guer ra 353 ataque de Hobbes a 356 doutrina da justiça distributiva 361362 distinção entre tirano e monarca Intim o 367 concepção de política 367 tipos de povos e governos 371 464465 rejeição de Descartes dos ensina mentos de 379 e rlme misto 395 sobre monarquia 397398 significado de comuni dade política ipolity 402 análise dos poderes do govemo 468 relação entre ética e política 475 e Rousseau 502 distinção das virtudes do homem 577 snificado de liberdade 582 8 4 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y uso dc Burke 619 631 Burke comparado a 622 624 631 632 Heideer sobre conceito de Ser 796 797 Strauss e influência de 820 836838 mencionado 254686109119 150166188200201205213237238 245246247337346355360362368 372 392394466 570662795 810 Arquidamo 11 Arte da realeza 97 Arte como natureza do homem para Burke 627 estado como fonte da 656 mundo da como constituído pelo trabalho escravo 658 e o Ser para os gregos 805 Artes e ciências como caminho para a corrupção moral 501 Artigos da Confederação 590 Asia discussão de Montesquieu 473 Assíria e assírios 86105 317 Associabilidade do homem 537 Assembléias das ordens descrição de H l 671 Associação de estados para o estabelecimento da paz perpétua 540545675 Associação liberdade de como meio de compen sar os efeitos da centralização 693694 Associações de negócios necessidade de reforma 771772 Associações humanas três associações perfeitas de Alfarábi 201 202 Associações contribuições para o crescimento humano 769774 necessidade de regula mentação política das 769774 Astrolca como causa do Exílio 220 Astúcia da razão 657 Ateísmo Burke sobre o 626 de Nietzsche 750 Atenas e Guerra do Peloponeso 6921106 ar gumento a íàvor do império 611121720 2526 expedição à Sicília 2025 e rebelião em Mitilene 2021 discurso de Diôdotos em 2629 e crença nos deuses 80 Aristóte les sobre o regime de 131133 Montesquieu sobie a democracia em 463 mencionada 76 808283109815834 Ático 145158 Atividade política razão como base da 297 Atividades nobres como meio de conquistar a fe licidade 191192 Ato virtuoso elementos do 572 Atomismo característica da sociedade democráti ca 684685691 Atos imanentes 262 Atos transitórios 262 Atos ilícitos wrong discussão de Blackstone 556 Atraso cultural cultural la 764 Augusto 298 317 Aumento como tema central dos ensinamentos políticos de Locke 443445 Aurélio Marco 272 276 Autodefesa lei primordial da natureza 557 Autointeresse apelo ateniense ao em Tucídides 1619 2529 como desejo íundamental do homem 488489 como caraaerística dos regimes democráticos 685686 doutrina de Tocqueville 691 694695 como mola mes tra da ação humana 695 Autonomia como fermulação do imperativo cate górico 527 da razão 778779 781785 Autopreservação como preocupação básica do homem 358 360361 366 389 411412 416 457 467 e crescimento da sociedade 417 447 e obrigação de preservar todos os tipos de homem 433434 e lei da natureza 434435436472 visão de Smith 571572 medo e dor como auxílios da 574 meios de 577 como direito da natureza 585 visão de Nietzsche 754 Autoridade política contrastada à escravidão 231 como elemento determinante da cidade 231 232 Autoridade visões luterana e calvinista da 300 309 Estado como servo de Deus 300301 formas de governo 302304 os poderes mais elevados 304308 tolerância 308 das Santas Escrituras 319320 Averróis 225242264 Averroístas latinos 247 Avicena 228 B BabUônia 105 317 Babilônios 317 Bacon Francis 328345 influência de Maquia vel sobre 329332 342 desejo de promover invenções 339341 e o método científico 332 765 823 filosofia política provisória Í n d ic e 845 333334 visões monárquicas 334335 vi são sobre o imperialismo 333335 Nova Atlântida New Atlantis 336340 e a guerra santa 294343 362 relação entre filosofia natural e política 343344 e ciência política 344 precursor de Hobbes 355 e Descartes 377378380381390392393 limites das conquistas do homem 472 método de obter conhecimento político 701702 menciona do 383621638 640661 Bar Kochba 219220 Bebida visão ateniese da xxx Beckett Tomás 371 Belarmino Cardeal 375 Bem comum como padrão de virtude de Descar tes 385 Bem concepção de Diôdotos em Tucídides 29 a ideia de Platão 64 a felicidade como em Aristóteles 112113 Bentham sobre a busca do mais elevado 646 Benevolência lei da de Descartes 384385 Bensalem em Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 338 Bentham Jeremy 635649 sobre a filosofia pla tônica e soctádca 635637 645646 ataque aos costumes e tradição 637640 rejeição da doutrina dos direitos naturais 640 648649 concepção de reforma 638641 formulação do princípio da utilidade 643646 sobre o contrato social 647 e o uso do método dedu tivo na ciênda política 701 revisão da teoria por J S MiU 705 Berkeley George 791 Bíblia tentativa de ystinho de reconciliar as Sa gradas Escrituras com a filosofia dássica 161 163165 e a obediência à autoridade civil 183184 síntese de Aquino entre a fè bíblica e a filosofia aristotélica 244247 fundamen to para a crença na 264 como autoridade da teologia reformada 286290 paródia de Nietzsche da 750 mencionada 208 217 22924826427631311320 Ver também Novo Testamento Velho Testamento Bildung concepção de Husserl 787788 Biologia 110808 Bismarck Otto von Príncipe 752 Blackstone William 554565 sobre a lei divina 555 sobre crimes e contravenções 556 dis cussão dos ditdtos dvis 556557 559 dis cussão do direito 559561 sobre a monar quia 563564 mencionado 628 638 Bolingbroke Henry St John 1 Visconde de 616 Bórgia César 271 Brasidas 14 Bruno Giordano 329 330 332 333 335337 Bruto Marco 276 277489 490 Budismo 750 Burgos podres 664 Burguesia ascensão da 727 efeitos da competição sobre a 734 Burke Edmund 613634 sobre o estabelecimen to 615624625 rejeição da teoria 615618 sobre a especulação na política 616618 625 630 ataque à doutrina dos direitos do homem 617621627629632633 sobre ptudênda 617 sobre preconceito como sabedoria latente 629631 sobre a elaboração de constítuições 620625 ideia de herança 625627629630 sobre a lei natural 626630 doutrina da pres crição 627630 Bentham comparado a 638 639 denúncia de Marx 720 Burocracia concepção de Hegel 670 p e r de queda na rotina 710 Ver também Funcioná rios públicos Caim 179 Caldeus 317 Calvino João 285318 passim estado de espírito e expressão de 286 base da teoltja polítíca 286290 concepção de homem 286287 298301 e autoridade das Escrituras 387 290 320 os dois reinos 291298 306 309 dupla cidadania do homem 291 relação dos dois reinos 291293 Igreja e Estado 293297 teologia e política 296298 autoridade e seus limites 300309 Estado como servo de Deus 300302 formas de governo 302304 os poderes mais elevados 304308 tolerância 308309 lei de Deus 310311 lei da nature za 311313 lei do Estado 313314 polídca como vocação 314318 o homem e seu cha mado 314316 o juramento de Deus 316 317 o herói 317318 alterações das doutrinas de 319 conflito com sucessores sobre a busca 8 4 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y da resisténda à autoridade 320321 contri buição ao espírito do capitalismo 336 Câmata dos Comuns 469 Ver também Pãrlamento CamUo M Fúrio 282 283 Caos Ser como 805 807 Capital contribuição para a produção 581 senti do de Maix 719 trabalho congelado 729 Capitalismo liberal formulação de Smith 566 conceito de libeidade 582 Ver também Ca pitalismo Capitalismo mercantilista ataque de Smith 579 Capitalismo e princípios dentífícos de Hume 567 formulação de doutrinas por Smith 567 pre paração de Locke paia 572 potencial para autodestruição 584585 e direitos de proprie dade 720 e nação de toda a comunidade de interesses 722 critica de Matx 727832 leis da natureza 727 status atemporal das institui ções do 728729 como sistema de produção de mercadorias 730731 modo de produção 731734 e íãido da mudança tecnolica 732733 Caiáter éthoi Aristóteles sobre o 115 Carlos I rei da Inglaterra 396 Carbtadt Andreas 308 Carlyle Ihomas 317 Carne uso bíblico 179 Carnéades 154 Cartago 136 463464 Cartwrt Ihomas 320 325 Casa de Salomão em Nova Adântida New Atlan tis de Bacon 337 Casamento abolição do 124 Castiacani Castruccio 283 Catão 151152 CatiÜna 276 Cativeiro 374375 Catolicismo e fracasso dos modernos princípios de libeidade 663 Católicos tolerância dos 309 Causa e efeito discussão de Hume 481484490 524 Causa final em p t do termo por Bacon 329 Cavalheirismo concepção de Aristóteles 116 121131 Cavalheiros governo dos em Burite 616 619 629633 Caverna 5464 Censura como poder do soberano de Hobbes 365 César 276 César ensaios 588589 Cesaropapismo 296 Ceticismo potenciais efeitos sobre a comunidade política 143144 e máxima estabelecida de Hume 480 ataque de Husserl 779 783 786787 socrático 825826 Céticos acadêmicos 143144 154157 China previsão de Hegel para a 678 Churchill Sir Winston 578 613 Ciáxares 8688 Cícero 142160 vida ativa versus vida contem plativa 145148 159160 o melhor regime 148154 rime misto 150154 sobre a jus tiça 154159 sobre a lei natural 157159 definição de sociedade civil 165 lei natural e temporal 168 e presciência divina 171 distinção entre as virtudes 271 e a lei da na tureza 349 sobre e a paz e a guerra 352 e Burke 628630 mencionado 63 161 165 166298347355368372489825 Cidadania análise de Aristóteles 127131 Cidadãos classes de no iime virtuoso 191193 direitos inalienáveis dos 365366 Cidade justa possibilidade da 5155 57 Cidadeestado na filosofia política clássica 45 Cidades sentidos antigos e modernos das 5 Di ôdotos sobre o bem das versus o bem indi vidual 29 fundação das em A República de Platão 3842 46 a cidade saudável 40 a cidade purificada 4041 indisposição dos filósofos para o governo das 5154 parale lismo com a alma 5758 impossibilidade da cidade justa 5661 efeito potencial do ceti cismo sobre143144 doutrina de ostinho das duas cidades 178182 papel na perfeição da natureza racional do homem 230231 au toridade polítíca e suas finalidades 233234 melhor regime e ordem social perfeita 233 235 Ver também Poliss Ciência da natureza 524 Ciência da política 344 605694 Ciência do governo visão de Paine 607 Ciência hunuuia sentido de Alfarábi 190 Ciência polítíca e filosofia polítíca 12 conceito de Aristóteles 109112121122 significado Í n d ic e 8 4 7 de Alferábi 190191 importância da lei di vina 217 como principal ane 381 formu lação dos princípios por Spinoza 412413 uso do método dedutivo 701 conceito de Strauss 836841 Ciência e fílosofía 1 significado de Platão 64 teórica e prática em Aristóteles 110112 como meio de obter o domínio da natureza 389391 como razão liberada da paixão 411 princípios da como propriedade da Substân cia 412 papel na filosofia 425 da lei em Bentham 637 639641 642643 crítica de Nietzsche 749 fenomenolca como 778 783 785 e psicologismo 783787 e histo ricismo 787789 do mundo da vida 789 793 e niilismo em Heider 796797798 803805 como conquista da natureza 813 Ciências sociais dois ramos de Mill 703 e crise do Ocidente 812 836839 Cipião 145 146 147 149151 152 153 154 156158 Círculo de Cipião 145 Cito II o Crande da Pérsia 8596104107274 317 Cito o Jovem 8294 95104106 Cisão como solução para o problema da opressão pelas maiorias populares 603605 Civilização asteca 338 Civilização ocidental Heidegger sobre niilismo na 795810 Husserl sobre crise 779782 xxx Strauss sobre crise da 812817 Civilização males da citados por Kant e Rous seau 533534 visão de Smith 584585 con cepção fenomenológica da 781 Ver também Civilização ocidental Civilizações incas 338 Classe agrícola descrição de Hegel 666 Classe industrial descrição de Hegel 667 668 Classe média como elemento mediano em Aris tóteles 132134 meios de efetivar o govemo da 402 James Mill sobre a autoridade da 653 como classe governante da democracia 691 Classe trabalhadora e divisão do trabalho 580 Classe universal descrição de Hegel 666667 Classes comerciantes e fabricantes ataque de Smi th 581 Classes sociais Ver Classes Classes na Pérsia de Xenofbnte 85 9092 a aná lise dos regimes por Aristóteles 128131 dis cussão de Builte 624625 629630 na so ciedade dvil de H l 665666 permanência das divisões de classe na democracia 690 for mação pela divisão do trabalho e fnmenta ção da sociedade 721722 uso do governo como órgão de coerção 722723 dissolução das 727 no regime misto 827 Clemente de Alexandria 164 Clêon 20 2628 Clero fim do poder temporal do 583584 Clima efeitos sobre o corpo e a alma 471 C ó d de Justiniano 309 Coerção como inseparável da sociedade civil 167 como base necessária para a vida social 300 Colombo Cristóvão 333 Comensurabilidade na troca 730731 Comércio discussão de Montesquieu 474476 como meio de unificação e promoção da paz 545 ascensão na democracia 685686 Comércio e fím do poder dos proprietários de ter ras 583 Commentarium ad Utteram 247 Compaixão crescimento sob os regimes democrá ticos 686687 Comportamento humano como resultado das paixóes 357 Comte Auguste 702 703 704 705 Comunidade commonwealth características es senciais da 148149 concepção de Marsílio do objetivo da 250 doença básica da 252 253 definição de Hobbes 362364 três tipos de 367370 construção correta da 371 Comunidade política poUty conceito de Aristóte les 128129130400 de regime misto 234 Comunidade política efeito do ceticismo sobre a 143144 Comunidade religiosa como objeto da revelação divina 217 Comunidade visão de Bentham 644 Ver também Comunidade política Comunismo discussão de Platão 33 34 4649 666778124141 visão de Marx 735736 e crise do Ocidente 812814 839840 Concorrência como causa da discórdia entre os homens 359 e desumanização dos assalaria dos 727 8 4 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Condição social como fonte de leis e política 681682688 Confederação Artigos de 590 Confederação 590 Conflito como progenitor do Estado 656659 entre liberdade subjetiva e objetiva 659 H eider sobre a inevitabilidade do 803 Conformidade demanda da maioria lu democra cia para a 689691 Conformidade relação de 484 485 Conhecimento absoluto a impossibilidade do 143 Conhecimento científico sificado de Hobbes 356 surgimento como sinal da civilização 704 Conhecimento histórico calamidades que resul tam do excesso de 744 Conhecimento racional e perfeição natural do ho mem 191 Conhecimento três faculdades do homem para o 195196 Consciência subjedva advento na Revolução Fran cesa 659660 Consciência análise de Husserl 784785 Conselho Noturno papel na cidade ideal de Pla tão 81 Conseqüências indiretas teste da Intimidade do exercício da autoridade do Estado 774775 Consentimento governo por 252 306307 325 326351 Conservadorismo e Burke 614 615 633 inade quação para atender à crise total de Nietzsche 752 Conspiração catilinária 256 Constantino 375 Constituição Estados Unidos conformidade aos prindpios republicanos 590591 acusações antirrepublicanas contra 591592 e solução do problema do governo popular 595596 meios de prevenir a opressão pela maioria 602603 e Burke 615 mendonada 469 Constituição Inglaterra 614633 passim Constituição alemã 655 Constituição Britânica 152 Constituição mista Cícero sobre 150151 como virtude da livre comunidade inglesa 395 396 e doutrina de Milton da liberdade cristã 403 Ver também Regimes mistos Constituição política descrição de Hegel 668 Contradição como fundamental para a mudança histórica 725726 Contrato social e Lutero e Calvino 301 como adotado pelos seguidores de Calvino 303 como base da sociedade 324 327 362 dis cussão de Hobbes 364365 e o soberano 369 510512 como acordo entre as pessoas 350551 teoria de Hume 496497 função do 509 e necessidade de leis 572 visão de Paine 609 conceito de Burke 621622 vi são de Bentham 647 como essencial para a constituição do Estado racional 663 Convenção e natureza 2 3 4 Convencionalismo clássico e direito natural 347 Convencionalista visão 3 Conveniência concepção de Burke 624 Coragem Aristóteles sobre a 115140 e hombri dade Burke sobre a 632 Córcira 911 15 Corinto 911 20 Coroa papel na monarquia constitucional 669 670 Corpo como primeiro princípio de todas as coisas 356 Corporação papel na sociedade civil de Hegel 667668672 Corrupção dos pares persas 9195 como acusa ção contra Sócrates 99104 Cosmologia 790 Costume Bentham sobre 637640 James Mill sobre 653 Crescimento concepção de Dewey 762 767 769 772 776 associações que contribuem para 769774 Crescimento político crescimento como padrão máximo para o 772 Creso 96 Criatividade visão de Descartes 379 apelo de Nietzsche para a 753 756 757 758 inter pretação de Nietzsche 756 Crimes discussão de Blackstone 556 dassifícação de Montesquieu 469470 Crise total da época de Nietzsche 750 752 753 Cristandade tentativas de incorporar a filosofia aos ensinamentos cristãos 161162 e o bem estar da sociedade 182187 acusada de en fraquecer o Império Romano 183184 efeito Í n d ic e 8 4 9 sobre o patriotismo 184185 e a guerra jus ta 185186 influência de Aristóteles sobre o pensamento político durante a Idade Média 225228 como fé ou doutrina sagrada 228 teologia como ciência mais elevada 227228 conflito entre governos espirituais e tempo rais 252253 estimativa de Maquiavel sobre a duração da 281 declarada como de origem humana 282 tratamento de Spinoza 425 crítica de Montesquieu 477 princípio do va lor infinito do individuo 662663 completa cristianização do mundo 676677 denúncia de Nietzsche 746747750752 como meta morfose do espírito do homem 751 Ser na 805 como reação à moderna filosofia polítí ca 822823 Cristãos aristotélicos 333 Cristo Jesus 164174260 262 279311 321 Critias 96100 Cromwell Oliver 396401 402403404 Cronos era de 67 77 Cuidado concepção de Heidegger xxx Cultura uso do termo por Aristóteles 141 influ ência moral do progresso cultural 546550 da disciplina 551 como passo além da in dividualidade natural do homem 665666 como perfeição da natureza 746747 con cepção da fenomenologia 782 Curso natural das coisas versus sentimentos natu rais da humanidade 574 Danos dvis reparação de 556 Dante Alighieri 264 Darwin Charles 66 767 Davi 218 280317 Decadência como definição de Nietzsche do pro gresso moderno 752 Decálogo 222 223 310 311 Decência propriedade como fundamento para a virtude moral 568 569 572574 Dedaração de Direitos 469 Declaração de Independência 641 682 Dedaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 641 Dedução concreta 702 Dedução direta 702 Dedução inversa 702 Dedução os três tipos de J S Mill 702 Democrada liberal e platonismo 45 Ver também Democracia Democrada ateniense no relato de Tuddides 20 23 27 características da 57 5960 684687 gênese da 58 crítica de Sócrates à 5861 go verno da massa 69 hierarquia entre os rimes incorretos 70 e timocrada 74 como iire diente do tjme misto 76 aplicação das leis 77 Xenofonte sobie 92 defeitos da 368495 Sócrates sobre 100 Aristóteles sobre 127130 131136 discussão de Cícero 150 e o reme virmoso 175 204206 versão de Marsílio da visão aristotélica 253 visão de Lutero 303 discussão dc Calvino 303304 lócus do poder em 367369 defesa de Spinoza 409411412 418423425 discussão de Montesquieu 462 464 visão de Rousseau 510 514516 discus são de Smith 579 e república de The Federalist 592594 ausência da separação dos poderes na democrada pura 601 rejeição de Burite 620622 James Mill sobre 650654 igualdade como prindpio da 682683 compatibilidade com a tíiania 682683 687691708 proble ma da 684 687691 e busca dos confortos materiais 684685 cresdmento do comérdo 685686 resolução do problema da 691699 justificação da 699700 como mediocridade 748 tentativas de Dewey para maior realiza ção da 761 significado moral de Dewey 768 dependênda da ddadania educada 775776 e americanismo 804 Strauss sobre 813814 822833841 visão socrática de 833 Demócrito 2 329725 Demóstenes 20 24 298 Deposição do soberano de acordo com Hobbes 375 Descanes René 377393 ensinamentos políticos 377378 e Bacon 377378 380381 393 concepção de matemática 378379381413 rejeição da filosofia da Antiguidade 378379 e Maquiavel 377 383 392 e Hobbes 378 concepção de pafaróes 379381 aiumentos em fevor do método 380381 teoria da gene rosidade 380381 385 387389 e retórica do discurso 382383 conexão entre reforma pública e privada 382384 e lei da benevo lência 38385 ideia de Deus 389 concep 850 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y ção de alma 388389 e projeto do domínio da natureza 388389 retórica do Iluminismo 390391 como fimdador da filosofia moder na 393 e Spinoza 425 necessidade da dúvida universal 481 Bentham comparado a 637 638 questionamento das crenças tradicionais 684 dívida de Husserl para com 783 e a filo sofia moderna 803807822825 menciona do 833778779783791 Descobertas geográficas relevância para a história da humanidade 584 Desconfiança como causa de discórdia entre os homens 359 Desempr como resultado das mudanças tecno lógicas 732733734 Desualdade propriedade privada como origem da 506 Desobediência civil justificação para 366 peca minosidade da 372373 Desobediência justificável anterioridade da lei es piritual sobre a lei temporal 305308 Desobediência direito de 584 Despotismo benevolente como rival do governo representativo 708 Despotismo discussão de Montesquieu 466467 necessidade de em países grandes 591592 como rival do governo representativo 708 visão de J S MUI 708 Destino história como em Heider 808810 Deterioração como maior limitação sobre pro priedade no estado de natureza 439441 Deus determina a sociedade dvU 167 oniscien te e infinito 171172 profetas e profecia 211212 214 e a lei divina 235 310311 e objetos de revelação 217 vida política como revolta contra 219 visão de Isaías da paz universal 220 como autor da natureza 228 como única causa criador e legislador 234 244246 visóes calvinista e luterana da relação do homem com 286288 Estado como servo de 300301 julgamento sobre governantes presunçosos 317 escolha de um herói 317318 ideia de Descartes 385389 Nietzsche e a crença na morte de 795796 niilismo e conceito de 796798 807 Deuteronómio 217 Devido intercuiso da lei 557 Dewey John 761777 tentativa de maior realização da democrada 761 tejdção da filosofia polí tica ttadidonal 761762 conceito de cresci mento 762767769 tentativas de reladonar a investação filosófica aos problemas sociais contemporâneos 762763 aplicação do mé todo da inteligência ao progresso sodal 763 768 teoria política democrática 769777 concepção pluialistica de 769775 teste da conseqüência indireta para definir o âmbito da auroridade do Estado 769774775 Dialética significado de 6566 Socrática 828 830 Diálogo em p r por Cícero como veículo para o ensino 144145 Diáspora dispersão dos judeus 207 218 Diferenças de classe indispensáveis pata a eficácia da liberdade individual e para a atividade do Estado 663 Diferenciação econômica como essencial para a constituição do Estado racional 663 Dilthey Wilhelm 787 Dinheiro fazer como arte universal na República de Platão 41 na melhor cidade 79 Dinheiro invenção do 442443 574575 leis do Estado que mudam o valor do 605 visão maixista do uso do 720 Diôdotos 2629 Diógenes o Cínico 283 Direito consuetidunário common lato visão de Hobbes 370 visão de Bentham 637 Direito divino dos reis 428 621622 Direito internacional visão de Hel 675 Ver também Lei das nações Direito natural clássico e convencionalismo 347 Direito natural natureza variável do 242 de Gró cio 347 vetsion de Smith 569 Rousseau e crise do 824 Direito três significados de Grócio 347348 como universalidade 666 Direitos absolutos dos indivíduos no estado de natureza 555 Direitos Civis discussão de Blackstone 557 dis tintos dos direitos naturais 608609 Direitos da minoria proteção por associação 693 694 Direitos do homem inalienabilidade dos direitos dos súditos 364366 efeito de Rousseau no pensamento de Kant 521522 526 529 530 536 visão de Kant 522531 ataque de Í n d ic e 8 5 1 Burke sobre a doutrina dos 618622 633 depreciação de Marx 721722 Hr também Direitos naturais Direitos individuais derivação de paixões egoístas do homem 359360 diteitos absolutos 555 direitos relativos 555556 proteção dos 559 restrições exigidas dos no progresso em direção à civilização 712713 Direitos naturais significado de Hobbes 411 como coextensivos com o poder 471 Rous seau 507 distintos de diteitos civis 608609 como objetivo da sociedade civil em Burke 623 628629 rejeição de Bentham da dou trina dos 639645648649 em Tocqueville 699 Ver também Lei da natureza Lei natural Direito natural Direitos do homem Direitos relativos dos indivíduos 511 Direitos subjetivos 348 Disciplina marcial discussão de Locke 457 Disciplina esfera da Igreja 295 cultura da 550 Divisão do trabalho e dradação da classe traba lhadora 580 e fragmentação do homem 721 Divisões de classes entendimento de Dewey 762 763 Dois teinos visões calvinista e luterana 291298 306 309 cidadania dupla do homem 291 292 relação dos 291294 Igreja e Estado 293296 teologia e política 296298 Domingos S 279 Dominicanos tentativas de restaurar o cristianis mo primitivo 279 Domínio reflexão de Descartes sobre 383 384 Donatistas 163 181182 309 Dor como motivo para a ação 484 488 como instrumento para a preservação do homem 574575 e prazer em utilitarismo 635636 643649650 Dostoiévski Fiódor 68795 Dúvida necessidade da 481 Economia política clássica teoria do valortraba lho 728729 Economia política explicação de Hegel 665 como ramo necessário das ciências sociais 703 negação de Marx da verdade da 724 Economia ciência de Smith 579285 negação de Marx da verdade da economia política 724 Economia como fundamento verdadeiro para a sociedade e a vida humana 717 Édipo 806 851 Educação musical como educação em virtude cívica 414575 Educação moral como prérequisito para a sólida sociedade civil 502 507 responsabilidade do Estado pela 706 Educação na Pérsia de Xenofonte 8485 8896 Socrática tal como descrita por Xenofbnte 96108 Aristóteles sobre a 115 124 136 141 menção de Locke 456457 propostas de Smith para 583585 como salvaguarda con tra o mau govemo 775777 concepção de H eider da universidade alemã 801802 e escritos exotéricos dos filósofos 820 concep ção da liberal por Strauss 821 835836 Éforos 307399 pcios 317 Eleazar 374 Elias 298 Elizabeth 1 rainha da Inglaterra 340 E ils Friedrich 718725726759 Engrandecimento como meta da polítíca de Ma quiavel 268 Ensinamentos aristotélicos e ensinamentos revela dos 208 Ver tarrthém Aquino S Tomás de Epicuranismo 389706 Epicuristas 145 347389 Epicuio 145389 Epigorti 744756 Equidade e justiça Aristóteles sobre 119 lei da 370 Era messiânica 219 Eros 45 48 60 63 72 Escolástíca cristã e o desenvolvimento da filosofia judaica 169 influência sobre Abravanel 220 Ver também Aquino S Tomás de Escolasticismo e desenvolvimento da filosofia ju daica medieval 208 rupmra dos reformado res sobre a questão da justificação 287288 oposição de Descartes a 390 Ver também Aquino S Tomás de Escolasticismo cristão Escolásticos 1311 321334 335 807 Escravidão mencionada por Tucídides 13 discus são de Aristóteles 125126 128 131 134 244 contrastada à autoridade política 231 anterior ao nascimento do Estado 657658 8 5 2 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y discussão de Montesquieu 473 como neces sidade da sociedade aristrocrática 746 Escritos exotéricos 819821 Escrituras disputa sobre a autoridade absoluta das 287289 321 finalidade fundamental das 323324 mencionadas 263 301 309 310 Esparta e Guerra do Peloponeso 921 defeitos das leis 7274 destruição de 7677 como regime misto 76 abordim de Xenofbnte 8285 106 Aristóteles sobre o rtçime de 116131134135137 como república mo delo de Rousseau 502 511 mencionada 22 80276352380463 Especialistas govemo por de J S Mill 709 Espectador universal 585 Esquecimento do Ser 797798 800801 804 807 Estabelecimento concepção de Burke 614 625 Estado de natureza teoria de Hobbes 357364 372 411 transição paia a sociedade política 412 436444 racionalização pelos regimes democráticos 418419 e ttantessâo 422 diferenças nas visões de Hobbes e Locke 428 429435 visáo de Locke 428430454455 e estado de guerra 431433 454455 aquisi ção de propriedade no 436438 motivos para a penúria no 439441 limitações da proprie dade pela deterioração 441445 e ausência do cultivo da teria 441 invenção do dinheiro 442443 dificuldades na preservação da pro priedade 446 poderes namrais do homem no 446448 opinião de Hume 491 concepção do homem de Rousseau 502505 518 Burke sobre 627 e direitos absolutos dos indivíduos 663 e relações entie Estados 675 Estado de transição da sociedade 704 Estado do bemestar social profecia de Paine 612 Estado do mundo discussão de Marsílio 263 Estado judaico 207 218 220 424425 Estado racional meios de constituir 662663 Prússia como modelo do 664 papel dos fun cionários públicos 668669 síntese do 672 indispensabilidade da guerra e íim da história 674679 Estado universal como meio de conquistar a paz perpétua 542543 Estado conceito de 45 e cidade náo equivalen tes para Aristóteles 123124 como serva de Deus 301302 lei do 313314 desejo de autopreservação como princípio básico do 416 íilosoíia como fim do 417 debilidade das 514 571 727 738 reabÜitação por He gel 655656 661662 664 como totalidade plenamente desenvolvida 657 como resulta do do conflito 657659 fimção de reconci liação entre senhor e escravo 659660 como união de liberdade subjetiva e objetiva 659 como base e meta do interesse individu al 667 primazia sobre a sociedade civil 674 visáo de J S Mill do fim do 707708 como órgão de coação de classes 772 conceito de Dewey 770771 concepção do árbitro 770 772 responsabilidade de fizrnecer condições para o crescimento 772773 teste da conse qüência indireta para a Intimidade da auto ridade do Estado 773776 Estados Unidos 611 704 Estados associação de para o estabelecimento da paz perpétua 519520 541548 675 EstadosGerais Éuas généraux 465 Estoicismo 155158234347410412 Estoicos 1 379380477 Estruturas eidéticas 784 Eterno retorno doutrina do 332 Eterno retorno doutrina de Nietzsche 757 Ética e ciência política em Aristóteles 112113 e doutrina da justificação pela fif 290291 e po lítica 476 e H e id r 795802808810 Eu sapiente eg cogtans ensinamentos de Des cartes 386 Eu definição de Hume 576 Eusébio 186 Eutidemo 9798 Evolução entendimento de Dewey sobre a 767 Excomunhão 262294 Executivo na comunidade livre de Milton 401402 âmbito do poder 450451 discussão de Mon tesquieu 469 e separação dos poderes 599 600 visão de Paine 610 visão de Hei 669 Exílio visão judaica tradicional 207208218220 Existências catilinárias 58 Faccionalismo como problema do governo do Es tado 595596 Facções como resposta para o problema das maio rias opressoras 597 602603 Í n d ic e 8 5 3 Factiddade da existência humana 798 Faculdade racional e imaginação 195 196 supe rioridade à origem natural dos desejos 347 Família discussão de Aristóteles 124125 Família distinta da sociedade civil 665 como a primeira base do Estado 666667 Farabi A1 Alíarábi Fascismo e Nietzsche 759 Fé justificação pela como cerne de toda a teologia reformada 286288 e a ética 290291 Federalist The O Federalista 587605 autoria 588 resumo 589590 Burke comparado a 632 mencionado 653 Felicidade concepção de Aristóteles 112115 117 126138140 definição de Alferábi 191 con quista por meio de atividades nobres 191 e aperfeiçoamento da razão 192 visão de Hob bes 358 no utilitarismo de Bentham 636637 639647 no utilitarismo de James Mill 650 Felicidade visão de Hobbes 358 Fenomenologia formulação de Husserl 779783 785 787793 796 e Heider 798 Feudalismo diieito à propriedade territorial 563 derrubada 685695 modos de produção 719 direitos de propriedade 719 mudanças acarre tadas pela ascensão da manufetura 726727 Fidelidade a pactos como base de toda justiça e injustiça 361362 Filão 154156159 Filhos de Israel 218 Filmer Sir Robert 427445 Fílon 207 Filosofia da história visão de Kant 531538 551 e doutrina de Smith 583 586 terminando em filosofia política 657 676 como ramo necessário das ciências sociais 703 de J S Mill 703705 íilosoíia política de Husserl como 781782 e Strauss 824 Filosofia da visão de mundo Wekanschauungphi losophU 787789 Filosofia islâmica 188 Filosofia natural e Sócrates 101104 e filosofia política 343344 Ver também Filosofia polí tica clássica Filosofia Filosofia política Filosofia política dássica distinção entre natureza e convenção 35 e Cidadeestado 5 tentati va de Agostinho de reconciliar com a Bfblia 161 repúdio de Maquiavd 166 246247 reconciliação com os ensinamentos do Islã 169172 rejeição de Descartes 379380 re jeição de Spinoza 409 rejeição por Montes quieu 476 Strauss e o estudo da 815817 825 rejeição modema da 822824 Ver tam bém Filosofia Filosofia política Filosofia política judaica medieval desenvolvimen to da 207208 visão de importância da pro fecia 213217 visóes do Messias 219220 e busca das leis racionais e reveladas 221223 Filosofia política judaica desenvolvimento da 207 208 visão da importância da ptofêda 213 218 visão da Id natural 221222 tentativas de harmonizar a filosofia g r e a rdigjão re velada 225 caráter platônico do pensamento político 226228 Filosofia política provisória de Bacon 246247 Filosofia política e ciência política 12 Sócrates como fundador da 45 evasão do termo por Tucídides 6 e dênda política em Aristóteles 111 122 e govemo do ptofèta 218 filoso fia natural 343344 base dentííica de Hob bes 355 ímportânda do método anaUtico 356357 abordagem de Spinoza 415 desvio em direção à economia 566 visão de Paine 606 rejeição de Burke 615619 conceito de Bentham 636637 e filosofia da história 655 767 de Marx 717 rejeição de Dewey 761762 e Husserl 778779780782793 e Heidger 795 Strauss e história da 812841 Ver também Filosofia política dássiou FilosofisM Filosofia da história Ciência política PoUtica Filosofia e ciência 1 referência de Tucídides à 2930 inseparabilidade da justiça 33 como arte das artes na República de Platão 3334 coincidência com o poder político em criar boas cidades 40 disputa com a poesia 61 definição de Platão 71 e vida de Sócrates em Xenofonte 84 96104 introdução por Cíce ro em Roma 143 e revelação divina 162 164165 como terreno comum para crentes e descrentes 162163 como obstáculo para a fé 163164 coincidência com a profecia no governante supremo do rm e virtuoso 196 198200 indispensabilidade para a sobrevi vência da cidade virtuosa 197201 e judaís mo 208209 e visão de Descartes da ciência moral perfeita 378379 transformação de 8 5 4 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Descartes em projeto de domínio da natureza 389390 como mais poderosa salvarda da autopreservação individual 411412 como fim último do Estado 417418 dependência da liberdade de expressão 424 rejeição pe los judeus 425 metas de Montesquieu para 460 determinação de duvidar como ponto de partida para 481 conceito de Hegel da únção da 656 Estado como fonte da 656 desaparecimento na sociedade marxista 736 suplantação pela história 738739 hostilida de para com a sociedade política 738740 guerra com a religião 739 declínio da 749 como mais elevada forma da vontade de po der 755 conceito de Husserl 778779 788 790791 Heideer sobre niilismo na 796 Heideer sobre a finalidade da 808 e escri tos exotéricos 819821Vr também Filosofia política clássica Filosofia política Filósofos islâmicos 213 Filósofos muçulmanos 208 222223 Filósofos indisposição para governar 5256 opi nióes acerca da profecia 213 crítica judaica dos 222223 Finalidade do viraser 744 Física como ciência teórica para Aristóteles 109 110 matemática Husserl sobre 791 Força de trabalho e mão de obra 731732 Fórmion 20 Fox Charles 614 França revolução na 660662 759 persistência das divisóes na vida política 660661 desi gualdade de condições na 683 Ftanciscanos tentativas de restaurar o cristianismo primitivo 279 Francisco S 279 Freios e contrapesos checks e balances de acordo com a constituição romana 151 discussão de Calvino 303 como característica do livre go verno 495 sistema inglês de 558 menção de Blackstone 560 rejeição de James Mill 651 mencionado 469 596 600602 Freud Sigmund 755 Funçáo deliberativa do governo descrição de Aris tóteles 436437 Funçáo judicial como função do soberano 364 365 descrição de Aristóteles 468 Funçáo magistrática descrição de Aristóteles 468 Funcionários públicos papel no Estado de Hegel 668669 Estado dos 679 Galeazzo Giovan 274 Galileu 791792 Generalização como critério de Rousseau para a vontade geral 527 Generosidade como a paixão suprema de Des cartes 381382 385 387389 Geometria uso por Hobbes 356 366 Husserl sobre 791 George III rei da Inglaterra 613614 Glória como motivação para o império ateniense em Tucídides 1922 26 visão de Descartes 389 Glorificação como causa de discórdia entre os homens 358359 Godos 182 Goethe Johann Wolfgang von 752 787 Golias 317 Górgias 284 Gosto distinto da razão 490 Governante filósofo e governante profeta 193197 Governante profeta e governante filósofo 193197 Governante supremo discussão de Alfarábi 193 198 necessidade de ousadia e virtude guerrei ra 200 profetas 213214 legislador huma no 253256 Governantes na República de Platáo 3537 42 43 perfeitos Xenofonte sobre 84 9195 prudência dos em Aristóteles 127128 li mitações dos em Burke 622 Ver também Regimes Governo civil discussão dos reformadores 301 e nova ciência da política 596598 Governo constitucional elementos 402 Governo da maioria doutrina de Locke 447449 Governo da multidão desorganizada como con trapartida deturpada da democracia 150 Governo das leis discussão de Platáo 6971 ne cessidade do 72 como imitação mais próxi ma do govemo divino 7778 e regime misto 154 em Alfarábi 198 Governo de gabinete 469 Í n d ic e 8 5 5 Govemo heteditário venus monarquia eletiva 258 visão de Fáine 609610 apoio de Hel 669 Governo local na comunidade livre de Milton 400401 como meio de neutralizar os efeitos da centralização 692 Govemo populan argumentos de Marsílio em fe vor do 253257 259 visão de Públio 593 595 proposto pela Constimição americana 59604 inépcia do 599600 opressão pela maioria 597599602603 Govemo representativo objeções de Rousseau 510 como único governo Intimo 540 em gran des repúblicas 602 tríplice problema do 596 604 visão de Paine 609610 análise de J S Mill 708712 Govemo responsável como sinal de civilização 704 Governo conflito entte poderes espirituais e tem porais 252253 291293 visões luterana e calvinista das melhores formas de 302304 metas 324 492494 706708 discussão de Montesquieu 462467 como intermediário entre soberano e cidadão 514515 diferen tes tipos de 515516 concepção de Paine do papel e função do 607608 necessidade da reconstituição 607 definição de Burke 621 622 James Mill sobre formas tradicionais de 650651 exigências para a participação no 670 crescente centralização do 688689 692 responsabilidade pela educação moral e desenvolvimento dos talentos individuais 706708 condições de J S Mill para o suces so do 706708 como órgão pata a coação das classes 723724Ver também Rimes Governos do Estado e problemas do feccionalis mo 594595 e crescimento do poder lis lativo 598 GrãBretanha visão imperialista de Bacon 336 ataque de Burke sobte a poiítica americana da 616 também Irterra Graciano 182 Gracos 371 Grande Tribunal de Justiça 212 Grandeza de alma magnanimidade 116117120 141 Grécia 659 662 polis da 5 guerras civis na 15 16 Hel sobte 659 662 e origens da fe nomenologia 781 790 Ser como entendido por e niilismo 797 805807 Ver também Atenas Esparta Gregório S 281 Grócio H i 346354 busca pela guerra justa 355 três significados de direito 347348 so bre a natuteza e tipos de lei 348350 análise do poder dvil 350 conceito de natureza e ló cus do poder supremo 351352 guerra justa e injusta 353 origem e tipos de propriedade 353 concepção da tradição clássica 392393 crítica de Kant 542544 Guerra do Peloponeso 621106 Guerra justa Alferábi 201202 Marsílio 264 Ba con 335336 Gródo 352353 discussão de Hobbes 362 para conquistar a soberania 364 Guerra persa 101218 Guerra santa concepção islâmica 201 discussão de Bacon 342343 Guerra como fim da Id 72 Aristóteles sobie 126 139140 atitude cristã em relação à 185186 e limitações da lei no i m e virtuoso de Alfe tábi 200204 e monarquia na filosofia judaica medieval 217219 necessidade da pata im pedir a superpopulação 262263 busca pela guerra justa 335 discussão de Gródo de guer ra justa e guerra injusta 352353 e o estado de natuteza 359 como estado de natuteza 429 432433 541542 definição de Locke 430 432 existência na sodedade dvil 431432 crescimento da Id como mdo de supressão da 461 discussão de Montesquieu 472473 ten dência ao governo republicano e à unificação política 544545 enraizada em diferenças em linguagem e religião 544545 e difusão do cométdo 545546 siestões de Paine para a abobção da 610611 justificação de H 673675 H d d r r sobre 803804 Guilherme o Conquistador 371 564 H Hábito como fundamento para a inferência 483 Halevi Yehudah 222223 Hamilton Alexander 587588 594 Hare Thomas esquema para a representação pes soal 711712 Harmonia natural dos interesses individuais dou trina de Paine 607611 Hastings Warren 614 Hedonismo clássico 330 8 5 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Hedonismo 330 796 Hegel Georg W F 655680 reabilitação do Esta do 655659 fimção da filosofia 656 princí pio da particularidade 659600 665 crítica da Revolução Francesa 659660 elementos do Estado 660661 concepção de história 661663 676677 visão da Reforma 662 663 Estado racional 662665 668673 e sociedade civil 664665 papel da corpora ção na sociedade 665667 modelo de mo narquia constitucional 668669 conceito de burocraria 669671 papel dos proprietários de terras 671672 liberdade de comunicação pública 672673 justificação da guerra 673 676 e Marx 724 726 crítica de Nietzsche 742746 758759 homens como epigoni 744 concepção de história 808809 e reali zação da ordem ideal 823824 mencionado 778779791 803 Heideer Martin 795811 e Husserl 781 791 796 801 e o nazismo 795 801802 804 805 809810 sobre as causas do niilismo 795799 793798 sobre Platão e Aristóteles 796798 806807 sobre a busca do Ser 805 807 sobre o conceito présocrático de Ser 805807 sobre o niilismo como revelação do Ser 807811 e historicismo 824825 sobre o dogmatismo do racionalismo 826 mencio nado 812 Henrique II rei da Inglaterra 371 Heráclidas 352 Herádito 725 747 806 Herança ideia de Burke 626627 629 Hereges poder de coação contra 249257 262 vi são de Lutero 308309 visão de Calvino 309 Heresia papel da autoridade secular na repressão da 163 181182 Hermenêutica filosofia hermenêutica 781 Hermes Trismsto na Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 342 Heródoto 6 Heróis pagãos e cristãos 174 concepção de Lute ro 317318 concepção de Calvino 318 Hesíodo 57 59101 História antiquária sentido de Nietzsche 743 744 História crítica sentido de Nietzsche 743 História monumental significado para Nietzsche 743 História Tucídides evita o termo 6 Rousseau 504 dialética hegeliana como força motriz da 658659 três fàses da 661662 como revelação progressiva da liberdade 570571 visão de Hegel do fim da 676679 recons trução por Marx 726 suplantação da filo sofia 737 739 usos e abusos da 743744 e historicismo 745 história objetiva 745 e mundo da vida em Husserl 789793 e Ser em H e id r 798 801 804 808809 Ver também Filosofia da história Historicismo crítica de Nietzsche 742746 crí tica de Husserl 779 782 783 786789 Heidegger sobre 804 808 análise de Strauss 813 815822 Hitler Adolf 759 801 Hobbes Thomas 355376 sobre Tucídides 8 e lei da namreza 223 360363 570571 opi nião de Sócrates e filósofos da Antiguidade 268269 reduçáo do status da moral 269 e moderna ideia de soberania 351 364365 disconcordância básica com Grócio 353 e realismo de Maquiavel 355356 e primeiros princípios de todas as coisas 356 e métodos da filosofia da ciência 356357 e teoria do estado de namreza 357364 373429435 541 658 728729 autolegislação 361 363 contrato social 274275674 definição de di reito 370371 correta constmção da comuni dade 371 e visão da boa sociedade 372373 teologia cristã de 373376 e Descartes 378 387 primazia da necessidade de autopreserva ção 389 412 488489 e Spinoza 411412 425 e caráter humano do fenômeno político 412 e visão de Locke da natureza limitada do poder político 496497 visão do homem na mral 504 577 585 sobre os fundadores da sociedade civil 506507 e Rousseau 509 indispensabilidade da paz para a vida e a pro priedade 521522 insociabilidade namral do homem 537 e concretização da ordem ideal 823 mencionado 486 488 618 620 628 641643651661696 Hombridade como virmde do cavalheiro para Burke 632 Homem empírico visão de Marx 718 Homem namral visão de Rousseau 517518 Homem primitivo investigação de Rousseau 504 505 Í n d ic e 8 5 7 Homem virtude do 75 como política animal 125 126626 ttés faculdades para o conhecimento 195197 perfectibilidade do 209211 505 visóes luterana e calvinista 285286298300 cidadania dupla do 291 queda do 298299 e dois chamados 314316 busca pela perfeição 321 como animal sodal e político 347 356 359 autopreservação 358360361 igualdade no estado de natuieza 368369 como inído e fim da árvore do conhecimento 378 sodedade como aumento do poder individual do 410 411 uso da dedução matemática para o estudo do 414 efeitos do dima sobre 471472 no estado de natureza de Rousseau 503506 mo vimento em diieção ao Estado dvilizado 505 507 509510 515 sociabilidade natural do 568 570571607 como espéde animal 572 723724 sentimentos naturais do 574 igual dade namral do 577 herança do sistema po lítico pelo em Burke 626627 aproximação à universalidade atiavés do Estado 656657 batalha pelo reconhecimento 657658 busca dos confortos materiais no regime democráti co 685686 análise das tiés etapas de desen volvimento do por Comte 704 homem em pírico de Marx 718 fiagmentação pela divisão do trabalho 721 733 alienação do 723724 como criatura da necessidade 722 horizonte do 743746 como epigoni 744 elevação pela aristocrada 747 mudanças produzidas pelo cristianismo 748751 liberação de Deus 753 último homem de Nietzsche 747752 von tade de poder 753756 superhomem 757 158Ver também Natureza humana Homens causas da discórdia entre 359 Homero 241 60 298 474 Homicídio justificável explicação de Blackstone 558559 Honra profissional como fôrma de virtude na so dedade moderna 667758 Honra como motivo para o império ateniense em Tucídides 12 1516 1920 22 Aristóteles sobie 114116 visão de Hobbes 359 como princípio da monarquia 463464 Hooker Richard 319327 ataque ao radicalismo bíblico 320 base metafísica do pensamento 321322 análise do direito 322323 sobre a Igreja e o Estado 325326 sobre a tolerância 326327 Horizonte linha divisória entre histórico e ahis tórico 743 destruição de 744 como mito mais abrangente do homem 745 como cria ções do homem 746 finalidade do 751 pro jeção do 753 Huguenotes 307 319 Hume David 479799 dúvida de matérias de fato 386 sobre os julgamentos normativos 479 483486 discussão de causalidade 481 483 524 discussão de moral 481488 so bre as leis da natureza 492493 visão sobre política 496498 e teoria do contrato social 487497 crítica da razão teórica 524 e ca pitalismo liberal 567 e reconhecimento da utilidade 568 definição de eu 577 mencio nado 647 791 Hus John 294 Husserl Edmund 778793 conceito de telos 778783787790792793 crítica do histo ricismo 779781783786789 íôrmulaçâo da fenomenologia 779783 sobre as causas do niilismo 781 e Heideer 781 791796 801 crítica do psicologismo 783786 sobre ciência 788789 sobre mundo da vida 789 793 mencionado 812 I Id conceito fireudiano de 755 Idade da Razão 606 Idade Média 227 320 474475 477 572 684 686 701 726727 807 Ideias doutrina das de Platão 4951 103 826 827 definição de Hume 479 e objetos do conhecimento 480481 Ideologia definição de Marx 720 na vida moder na Heidegger sobre 804805 do marxismo 840 Ignorância visão de Bentham 635 socrática 825 826 Igreja Anglicana 334 625 Igreja Apostólica 311 Igreja Católica Romana Vir Igieja Igreja Cristã Ver Cristandade Igreja Igreja da Inglaterra 334 Ver também Igreja An glicana Igreja e Estado visão de Lutero e Calvino 293 296 desejo de Milton de reformar as relaçóes 8 5 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y entie 403404 necessidade paia a separação entre 698699 Igreja como instrumento da graça divina 167 168 status canônico da filosofia durante a Idade Média 226227 platonismo dos Pais da Igreja substituído pelo aristotelismo 226 227 concepção de Marsílio do sacerdócio da 249250 como oligarquia ao contrário de aristocracia 258 reformas fianciscanas e dominicanas 278279 destruição dos sinais de Antiguidade 281282 sistema de indul gências 287 Invisível 293294 Visível 294296 fim dos poderes temporais 582 583 Ver tambim Igreja e Estado Igualdade de habilidade como prelúdio para a competição 358 Igualdade dos homens transição do primado da moral para a 525526 dignidade do homem moral 526527 Igualdade jurídica e diferenciação social 661 Igualdade como smdo principio da democracia de Alferábi 204205 derivação da liberdade natural da 428 Bentham sobre 641 reco nhecimento da no Estado racional de Hegel 671672 como condição social básica dos rmes democráticos 681684 como resul tado da vontade divina 682 efeito da paixão pela 687690 visáo de Tocqueville 691692 e imposição de limitaçóes sobre a religiáo 698699 liberalismo e dradaçáo da 835 Igualitarismo como evangelho da democracia e do socialismo 749 Iluminismo 377 390395 501 606 807 Imaginação três fimdamentos da 195196 e fe culdade racional 196 e simpatia 569 Imperativo categórico 527528646 830 Imperialismo visão de Bacon 335336 Império defesa ateniense em Tucídides 61213 16202526 persa 828495105 visão de Aristóteles 137 VertambémlmçenaSàsmo Impessoal 799 Impiedade l iação contra na cidade ideal 7980 Imposto de renda propostas de Paine para 611 Imposto sobre herança propostas de Paine para 611 Imprensa licença para a ataque de Milton 394 396 Impressões definição de Hume 479480 Individualismo radical deièsa de Nietzsche 758 Individualismo afirmação de Hobbes 348 carac terística da Inglaterra moderna 470 caracte ristica da democracia 684685 687 tendên cia a desconsiderar o bemestar comum 696 papel da religião no controle do 697698 Indução 785 Inferência hábito como fundamento para 482 483 Inglaterra virtude da constituição mista 395396 descrição de Montesquieu do governo da 467471 discussão das leis por Blackstone 554565 passim critica de Hegel 594 crítica de Bentham à tradição jurídica da 636639 James Mill sobie a reforma política na 652 654 Lei da Reforma 655664670 Ver tam bém GrãBretanha Iniciativa legislativa do presidente 604 Injustiça inferioridade à justiça 5660 maior pu nição para 62 como não cumprimento do pacto 366 Instinto e nazismo 805 Intelecto ativo 194196 203 Intelecto como fonte de heterogeneidade na de mocracia 689 como apagamento do avanço da sociedade 704 Inteligência método da uso na solução dos pro blemas sociais 763768 Intencíonalidade 784 Interesse comum como cimento da sociedade 607 Interesses individuais harmonia natural dos 607 612 Intuição conceito de Husserl 783784 Invenções desejo de Bacon de promover as 330 332 Isaías 220267298 fsis culto de 340 Islã 161188190193208225227 Isócrates 394 Israel 218219221310317326338374 Israeli Isaac 262 James I rei da Inglaterra 334 James II rei da Inglaterra 561 Í n d ic e 8 5 9 Jay John 587 Jefièrson Ihomas 99496 592 597 Jesuítas 378 Jetro 219 Jó 367 Joiada 317 Josué 374 Judaísmo 161208 227425 Judeus visâo luterana da tolerância 309 o ca tiveiro 375 os cidadãos do reino de Deus 374375 como inventores sacerdotais do cristianismo 748 questão judaica e crise do Ocidente 814815 Judiciário discussão de Montesquieu 468 papel no sistema inglês 560561 posição no gover no livre 561 como meio de elevar a represen tação do povo 600 Julgamento por júri 562 Juramentos normativos ensinamentos de Hume a tespeito de 479483486 status dos 490 Julgamentos sintéticos e analíticos xxx Julgamentos sintéticos 524 Júlio César 276 371 375 Jünger Ernst 802 Júpiter 177283 Jurisprudência natural significado de Smith 571 Jurisprudência como a ciência mais elevada no islã e no judaísmo 227 Justiça distributiva doutrina aristotélica da 362 discussão de Hobbes 362 Justiça recíproca 118 Justiça como tema em Tucídides 921 2629 discussão de Sócrates 3247 significado de 56 como preíèrível à injustiça 5664 re compensas pela 63 Xenofonte sobre o pro blema da 83 9699 105107 na educação persa 8486 discussão de Sócrates 9699 discussão de Aristóteles 117119 125135 discussão de Cícero 154157 viga mestra da sociedade civil 158159 e ordenação corieta de todas as coisas 166167 caráter defeituo so da 167168 no estado de natureza 359 origem das iras 491493 suspensão das obrigações 494495 visão de Rousseau 503 como critério de legitimidade 540541 de pendência da boa vontade do chefe de Estado 540541 administração da 559560 discus são de Smith 641642 ornal em Burke 628629 desaparecimento na sociedade marxista 735 e racionalismo socrático 825 827 829830Justificação pela fé doutrina da como cerne da teologia reformada 286288 e ética 290 Justiniano código de 309 Kant Immanuel 519553 estabelecimento da or dem social justa 269 filosofia e política 519 522 doutrina da paz perpétua por meio da organização internacional 519520 541548 674675 separação de íèlicidade e virtude 520521 tentativa de unir os leinos da natuieza e da motal 521523 582 influência de Rous seau 520521 532 536 diiritos do homem 522531 imperativo categórico 527528 co munidade ética e sociedade política 528529 primazia dos direitos e deveres lais sobre direitos e deveres da vinude 529530 apbca çáo da motal à política 529530 publicidade de açóes requeridas pelo direito público 530 531 filosofia da história 531541 550552 exigências da moral 533 progresso em direção à ordem poUdca 533536 678 progresso na cultura e intdnda 535536 e assodalidade do homem 537538 570 Estado lal 538 541 direito nato do homem à liberdade exter nai 538540 intenção moral na história pre cedendo a paz 548553 Bentham comparado a 645 desvalorização das simples finalidades 736737 e concretização da ordem ideal 824 mencionado 778779 791793795 Knox John 319320 Kojève Alexandte 839 Laélio 148 155159 Laércio Diógenes 283 Laissezfaire 580 Lazer visóes clássica e hegeliana do 658 Legisladon ane do 7778 conceito de Rousseau 513514 Lslatura supremacia na comunidade de Mil ton 402 estabelecimento como primeira lei da comunidade 409 como poder supremo 8 6 0 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y da comunidade 450451 e separação dos poderes 598599 como meio da elevação da representação do povo 600 supremacia no governo de Paine 610 visão de Hegel 669 Legitimidade fortuna e nascimento como base da 383 em Rousseau povo como fonte da 510513 Lei canônica sanção da filosofia 227 rejeição pe los reformadores 314 dependência do sobe rano civil 370 Lei celestial 322 Lei civil discussão de Grócio 349 definição de Hobbes 370 Lei da natureza discussão de Grócio 348349 e doutrina da guerra justa 353 derivação do direito individual à autopreservação 360 361 discussão de Hobbes 361363 defeito essencial da 363 razáo como 401 obriga ções da 433434 fonte e finalidades da 434 discussão de Hume 491492 como limitação da autoridade política 558 visão de Paine 606 como anteparo entre súdito e senhor 729 Vèr também Lei namral Lei da tazão visão de Hooker 322 Lei da Reforma Inglesa 664 670 Lei das naçóes discussão de Grócio 349 Ver tam bém Direito internacional Lei de Reforma 655 664 670 Lei divina discussão de Maimônides 210 mu danças na 211212 finalidades da 214 con cepção dos reformadores 310311 discussão de Blackstone 555 Lei eterna e lei temporal 168 como fonte de todas as leis 322 como expressão direta da vontade de Deus 323 Lei humana discussão de Maimônides 209211 derivação de 241 322 discussão de Grócio 349350 Ver também Lei Lei moral caráter natural da 570571 Lei mosaica 212 216 407 Lei municipal discussão de Grócio 349351 Lei natural e Aristóteles 118119 concepção estoi ca de 155156 discussão de Cíceto 157159 filosofia medieval judaica 221223 conceito de Aquino 230 239243 como fonte da lei humana 241 preceitos comuns ou primários da 242 variabilidade da 242 aplicabilidade à sociedade humana 243 visáo de Marsílio 264 266 e direito de autopreservação 269 e erra dicação da heresia 309 visóes calvinista e lute rana de 311313 visão de Hooker 321322 discussão de Grócio 347349 código de Ho bbes 356 razão como 428430 da sociedade política 446447 lei da maior força 447448 e lei convencional 555 discussão de Montes quieu 461462 472473 escola moderna 585 herança das instituições políticas por em Burke 626631 rejeição de Bentham 646 Lei não misturada 78 Lei positiva desprezo de Lutero pela 313314 e lei eterna 460 relações precedentes 461 e regulação dos direitos pessoais naturais 556 dever dos juizes de sustentar 561562 como fondamento das desigualdades da Idade Mé dia 699 Lei temporal distinta da lei eterna 168170 Lei volitiva 349 Lei e natureza 25 lei divina ou natural e lei hu mana 4 209 Tucídides sobre a impotência da 1516 discussão de Platão 6971 neces sidade da 7273 208210 como ditame do raciocínio correto 7475 natureza dupla da 78 como imitação mais próxima do governo divino 7778 discussão de Aristóteles 112 117122 126 131 distinção de S i s ti nho entre lei eterna e lei temporal 169171 sabedoria viva 197200 e governante supre mo 198199 e guerra no regime virtuoso de Alfarábi 200204 objetivos da 208210 212 e posição dos reis de Israel 217218 lei canônica e civil na sociedade cristã 227228 imperfeição da em Marsílio 257 ratificação popular da 259 de Deus 310311 usos da 310 natureza da 311312 do Estado 313314 análise de Hooker 322323 peri gos de fezer mudanças na 323 discussão de Grócio sobre a natureza e tipos de 349350 discussão de Montesquieu 445447 discus são de Rousseau 508509 e contrato social 512 discussão de Blackstone 559560 Burke sobre a fonte da 623627 visão utilitarista de Bentham 636649 as concessões Insuficien tes de Marx à 735 Ver também Lei canônica Lei humana Lei da natureza Lei natural Leibniz Gottfried Wilhelm 387 779 803 Leis divinas racionais 221 Leis do comércio 629 Í n d ic e 8 6 1 Leis racionais introdução no Estado modemo 664 Leis suntuárias como método de manter a virtude 463 Liberalismo e Platão 80 e Aristóteles 126 Hobbes como fundador do 360 e Burke 615633 in fluénda de Bentham sobre 641642 e ameri canismo 804 Strauss sobre 814 833841 Liberdade de associação como meio para neutrali zar os efeitos da centralização 693 Liberdade de expressão discussão de J S Mill 714715 Liberdade de expressão na democracia de Spinoza 412421424 Liberdade de filosofia como condição para a pre servação da democracia 412 como princípio da democracia conservadora 419 Liberdade de imprensa 405 672673692 Liberdade objetiva significado de Hel 659 661 Liberdade política discussão de Montesquieu 467470 Liberdade relosa 424 Liberdade religiosa defesa de Marsílio 261 Liberdade subjetiva progresso para a universalida de 663 Libeidade subjetiva significado de Hegel 659 661 Libeidade como característica da cidade em Aris tóteles 123124 como primeiro princípio da democracia de Alfiuábi 204 definição meta fisica de Spinoza 410 416 como tema das obras de Locke 427 realização da no Estado modemo 661 inseparabilidade da moral 697 e o niilismo em H eider 798 803 Liberdade ideia de Milton 404 406 como per feição da sociedade civil 495 definição de Smith 582 visão de Burke 614615 625 629632 teoria de J S Mill 712716 Libertarianismo 614 Uceu 109 Ucófbro 126 Ucurgo 152402 Linguagem uso do termo por Heidger 797 805 808 Literatura política islâmica 190 Lívio Tito 174272283 Livte empresa defesa da por Smith 566 579583 Liviearbítrio visão de Agostinho 172 visão de Descartes 387 do homem de Rousseau 505 Locke John 427458 conceito de autopreser vação 269 e estado de natureza 428433 discussão de propriedade 436445 transição do estado de natuieza para a sociedade civil 436445728729 aumento como tema cen trai dos ensinamentos políticos 443445 visão da natuieza limitada do poder político 447 doutrina do govemo da maioria 448 450 sobre sociedade conjugal 448 sobre separação de poderes 457459 e estabeleci mento de sociedades livres 473 e libeidade de consciência 477 e ensinamentos políticos de Hume 497 ensinamentos da lei natural 497498 570571 visão de homem natural 504505 finalidade da sociedade dvil 506 507 indispensabilidade da paz para a vida e a propriedade 522 direito de autodefesa 556 558 poder de remover a legislatura 557559 mudanças feitas por Adam Smith na tradição lockiana 566567 preparação para o capi talismo 572 significado de libeidade 581 teoria contratual 674 e realização da ordem ideal 822823 mendonado 486 488 577 585618629642661721722786791 Lógica Husserl sobre os fundamentos da 783 Lógos conceito de Husserl 784 Vir também Ra zão Lourenço S 243 Lucrécio 340 Lucro explicação de Marx 728729 732 Luta de classes em pequenas repúblicas 603604 como madça contradição na ordem de pro dução 726 e vitória do proletariado 727 Luta pelo reconhecimento como inído dos Esta dos 657 Lutero Martinho 285318 passim repúdio da Igreja Aristotélica 247 temperamento e modo de expressão 286 visão do homem 286287 298299 base da teologia da po iítica 286300 e autoridade das Escrituras 287290 300 discussão da razão 288 os dois reinos 291298 ddadania dupla do ho mem 291 relação dos dois reinos 291293 Igreja e Estado 293296 teologia e política 296298 autoridade e seus limites 300309 Estado como servo de Deus 300301 fôrmas 862 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y de governo 302304 os poderes mais ele vados 304307 tolerância 308309 lei de Deus 310311 lei da natureza 311313 lei do Estado 313314 política como vocação 314352 o homem e sua vocação 314316 julgamento de Deus 316317 o herói 317 318 negação da autoridade papal 326 M Macaulay Thomas Babington 701 702 Macedônia 15 Madison James 587588 594 653 Magnanimidade como hábito de reivindicar ele vadas honras para si mesmo 267 283 como vinude moral abraiente de Aristóteles 388 Magnificência 116 Maimônides Moisés 207224 objetos e caráter da lei 208213 discussão de profecia 213 218 sobre monarquia em Israel 218220 era messiânica 219221 leis racionais e re veladas 221 status das virtudes morais 222 ocultação das verdades filosóficas da multi dão 227 sobre escritos exotéricos de Platão 819820 mencionado 189421 826 Maior força governo da por Locke 448450 Maioria tirania da 682683 687691 693694 711712776 Maiorias populares opressão pelas 596 598 602 603 Maisvalia 732 733734 Mal moral como impedimento para a aquisição de ciência 229 Mandamentos racionais 221 Maniqueus 163 309 Mão invisível noção de Smith 575576 580 Maomé 188 190 193 197 Maquiavel Nicolau 267284 critica da tradição clássica 166 repúdio tanto de Aristóteles como da Igreja 246 defesa da política da conveniência 268 instrução de príncipes 270271 uso da virtude e do vício pelos príncipes 272 fundação de um novo Estado 273 275 280 meios de alçarse a uma posi ção elevada 273276 redescoberta de antigos modos e ordens 275276 estabelecimento da autoridade de Roma 276 sobre a religião romana 276278 razões para a grandeza de Roma 278 renovação de Roma após a der rota pelos gauleses 278 reformas franciscana e dominicana da Igreja 278279 renovação de repúblicas 279280 corrupção dos jovens 280281 destruição de lembranças dos tem pos 281282 estimativa do tempo de vida do cristianismo 281282 e Xenofonte 283 comparado aos sofistas 283284 uso da reli gião para conquistar fins políticos 325 visões imperialistas 334335 464465 e Bacon 329332 336 como precursor de Hobbes 355356 e Descartes 378 382 392393 e Spinoza 409411 425 e conquista dos li mites do homem 472473 e Rousseau 509 máximas da prudência política 530 repúdio das promessas do soberano 531 e Burke 619 624 628629 632 e moderna filosofia política 821823 mencionado 85137265 342343475 661662 695696 834 Máquinas poUücas necessidade de teforma 771 772 Máquinas e formação de população de desempre gados 732 Marcelino 163 Marco Aurélio 272 276 Mário 371 Marlborough John Spencer Churchill duque de 578 Marsílio de Pádua 249266 n ção da lei natu ral 223 264265 finalidade da comunidade 250 e Aristóteles 250266 passim conceito de seita 251 conceito racional de sacerdó cio 251 252 doutrina do lislador humano 253257 261 doutrina da monarquia 257 258 visáo de aristocracia 258259 mencio nado 293 303 Marx Karl 717740 estabelecimento da ordem social justa pelos proletários 269 visão do potencial do capitalismo para autodestrui ção 586 materialismo dialético 718724 visão do homem como ser de espécie 722 723 reconstrução da história 726727 crí tica da produção capitalista 728734 visão do mundo comunista 735736 decadência do Estado 737738 predição do desapareci mento da religião 738 crítica de Nietzsche 758 avaliação de Dewey 761 e realização da ordem ideal 824 mencionado 33 60 268 517 571581629779 809 Í n d ic e 863 Mandsmo e Aristóteles 128 descrição do 717 718 criticado por Nietzsche 759 crítica de Heideer 804805 810 controvérsia com a democracia liberal 839840 Matemática como ciência teórica para Aristóte les 110 visáo de Descartes 378379 381 como modelo para nova razáo 411 uso do método no estudo dos fenômenos políticos 413414 Husserl sobre o fundamento da 783 792793 Matéria de fàto e relaçáo de causa e efeito xxx juramentos sobre 481483 490 Materialismo dialético 717724 Ver também Matx Karl Materialismo baconiano 329 hobbesiano 376 n 3 característico de regimes democráticos 685687 uso da religião no controle do 697 698 marxista 718723 Média 84869394 Médici Lourenço de 272273283 Medicina visáo de Descartes visão sobre a 384 Mediocridade tendência para a democracia 684 687 690694 Medo como a paixão mais poderosa 358360 362 como causa da fundação de governos 364 366 como instrumento para a preserva ção do homem 573574 Medos 317 Meios de produção 719722 727 731 Meiotermo e virtude 115 238239 Meios 1317 26 Mente absoluta introdução pelo Estado 656 Mente livre como principio do protestantismo 662663 Mente subjetiva conceito de Hegel 656 Mentiras defesa dos Pais da Igreja 164 denúncia por S Agostinho 164 Mercadoria commotüty definição de Marx 731 Mérito como atributo da paixão por trás da ação 567568 como qualidade ausente na justiça 570571 elemento do ato vinuoso 572573 Messene 352 Messias 218220 375 Metafísica científica de Spinoza 410411 Metafísica como ciência teórica para Aristóteles 110 como primeira filosofia de Aquino 229 visão de Descartes 378 rejeição marxista da 724 Husserl sobre o estudo científico da in tencionalidade como 784 Heidegger sobre o niilismo na 795796 H eider sobre a des truição da 800801 804 810 Método físico de J S Mill 702 Método histórico de J S MUI 702 Método analítico da filosofia 356 Método científico apoio de Bacon 332 como principal instrumento para a solução de pro blemas sociais 763767 e filosofia política moderna 822 não neutralidade do 838 Ver também Descartes Método compositivo da filosofia 356 Método dedutivo uso de Bentham e MUI na ciên cia política 701 Método resolutivo da filosofia 356 Método argumento de Descartes em fàvor do 219222 Métodos de ensino uso do diálogo por Cícero 144145 Método da inteligência 763768 770 Método geométrico de J S MiU 702 Método químico de J S Mill 702 Moral provisória 333 Micálessos 15 MUI James 649654 701702 sobre formas tra dicionais de governo 650651 análise do poder 651652 sobre o ideal de governo re presentativo 651654 MUI John Stuart 701716 método em filosofia política 701702 filosofia da história 703 705 considerações morais 705707 fim do Estado 707708 aimento em fevor do governo representativo 708709 análise do governo representativo 709712 teoria de liberdade 712716 mencionado 642649 MUton John 394408 e causa do governo cons titucional 395 mudança na opinião das pes soas comuns 396397 mudanças na visão de monarquia 397398 visão de soberania popular 396397 fonte do poder político de cisivo no Estado misto 398400 instituições na comunidade livre 401404 salvaguardas dos interesses do povo 400401 reforma reli giosa 403404 relação entre Igreja e Estado 403404 ideia de liberdade 404407 Mishné Torá 17 Mitilene 20 2628 864 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Modernidade análise de Heider 803805 Modos de produção descrição de Marx 719 e uso do dinheiro 719 controle dos meios de produção 720 fimentação e conflito entre os homens 722 como causa do desenrolar do processo dialético 726 resultados de mu danças 726727 e problema da variação do trabalho 733 Moisés 211213 216219 298 312 374 424 513 Monarquia absoluta como melhor dos rmes justos 232 James Mill sobre 651 Vír tam bém Monarquia Monarquia constitucional modelo de Hegel 668 669 Ver também Monarquia Monarquia eletiva versus monarquia hereditária 257258 Monarquia discussão de Platão 656769 Aristó teles sobre 124125 128 131 como melhor forma de governo para Cícero 150 153 ver dadeira monarquia 153 e guerra na filosofia judaica medieval 218 relação com a lei 218 como instituição em Israel 219 doutrina de Marsílio 257258 Monarquia e tirania 69 como ingrediente do re gime misto 76 233 aplicação das leis 77 na Pérsia de Xenofonte 84 Aristóteles sobre 118 na filosofia judaica medieval 218219 melhor regime 232 doutrina de Marsílio 257258 atgumento de Lutero em fitvor da 302303 preferência de Hooker pela 325 326 posse do poder supremo na 351352 visão de Hobbes 367369 412 designação do soberano 368369 problema da sucessão 370 mudanças na visão de Milton 397398 discussão de Montesquieu 466467 visão de Hume 495 visáo de Rousseau 515 discus são de Blackstone 563565 visão de Paine 609610 como estabelecimento em Burke 624626 Ver também Monarquia absoluta Monarquia constitucional Monk General George 402 Monoteísmo e problema da religião dvil 175178 Montesquieu Charles Secondat Barão de 459 478 obejtlvos da filosofia 460 sobre leis 460461 sobre formas de governo 462467 sobre liberdade política 467470 sobre na tuieza 471473 sobre comércio 474476 sobre religião 476477 e Blackstone 557 teoria dos países pequenos e republicanismo 591 e Burke 620626 virtude como base para a fundação de repúblicas 668 Moral do escravo 747748 Moral do rebanho 747 Moral do senhor 747 Moral natural paradoxo da 574 Moral pública evolução do autointeresse individu al 694696 Moral sacerdotal 748 Moral depredação por Hobbes 269 discussão de Hume 484491 e estabeledmento do Estado 508 liberdade do homem como úni ca fonte da 509 anterioridade e substânda da 525 reabilitação de Smith 485 relação com a política 531 578579 da prudência em Burke 619 como moderação em Burke 622 realização através das instituições do Es tado 655656 inseparabilidade da religião 697699 formas de por Nietzsche 748 Moral elemento essendal no estabeledmento do Estado moderno 664 Moralidade cristã discussão de Nietzsche 751 More Henry 388 Morte violenta medo da como paixão fundamen tal ativada pelo conflito entre os homens 658 Morte e experiência de Ser em Heidcer 799800 809 Movimento lei do como lei que governa a nature za a história humana e o pensamento 725 Muçulmanos 189 193 Mudança histórica padrão de 703 Mudança política causas da 75 Mudança na ordem sodal Burke sobre 628 como fátor que afèta todas as coisas 724725 Mudanças tecnolócas caiga sobre os assalaria dos 732733 Mundo da vida 781 789793 Münzer Thomas 308 Mussolini Benito 759 MutakallimUn teólogos muçulmanos dialéticos 222 Multiplicidade de fecções como resposta ao pro blema das maiorias opressoras 597 N Naamã 317 Í n d ic e 8 6 5 Nacionalismo visâo de Nietzsche 752 Nações germânicas e entendimento da liberdade do homem 662 Nações distinções de Alferábi entre 202204 dis cussão de Montesquieu dos Estados Gerais 474475 e exercício da justiça 503 Namier Sir Lewis 614 Naturalismo Husserl sobre erro do 783 Natureza humana como tema em Tucídides 15 2829 discussão de Aristóteles 112 114 125 visão de Spinoza 410 415 entendi mento de Smith 567 visão de Rousseau da maleabilidade da 586 visão de Bentham 642 visão de Marx 739 essência do homem versus para Husserl 782 SernoMundo de Heider 798800 Ver também Homem Natureza ciência da 524 Natureza conquista da Bacon 328330 334 336337 341 344 Hobbes 360 Descartes 377 382384738 Natureza emenda da doutrina da 739 Natureza como entendida pelos filósofos gros 23 e convenção 35 e lel 35 visão socrá tica de 5 justiça pela em Aristóteles 118 como completa e intrinsecamente perfeita 228 lei da 312313 Hobbes e a teoria do Estado de 357364 372 discussão de Mon tesquieu 471473 como estado de guerra 541542 entendimento de Smith 567568 moral e razão como meio de atingir os fins da 576578 e meio de autopreservação do homem 577 relação para com a razão 582 reconciliação com os deveres da virtude mo ral 585 herança por em Burke 625631 cultura como petfoição da 747 conceito de Husserl 780786 789790 subjugação da em Heider 803 ciência como conquista da 813 e princípio da utilidade 643645 Ver também Lei da natureza Lei natural Es tado de natureza Nazismo e Heidegger 795 801802 804805 809810 mencionado 814 Necessidade 103112 Nectário 163 Nerva 276 Newton Isaac 791 Nícias 22 2324 Nietzsche Friedrich 741760 crítica de Hegel 742746 usos e abusos da história 743745 morais 747 denúncia do cristianismo 747 748 750751 alegação de que Deus está morto 749753 795 e niilismo 752 796 797 doutrina da vontade de poder 754757 doutrina do etemo retorno 757 e super homem 757758 crítica do marxismo 759 conceito de Ser 807809 e realização da or dem ideal 824 e crise da modernidade 824 sobre o dogmatismo do racionalismo 826 e marxismo 839 mencionado 318 633 779 780787 834 Niilismo e Nietzsche 753 759 e Dewey 768 Husserl sobre 781 Heideer sobte 795811 Noé 211 212 Nominalistas 288 322 Nomos 210 216 218425 Nova Atlântida New Atlantis melhor comuni dade de Bacon 328329 como causa final 337343 discussão de xxx obra elogiada por Descartes 377 Novo Testamento 256257 259262 288 311 326 Nulibismo 388 Nullum TempusAct 628 O Obediência doutrina dos reformadores 304307 Objetificaçáo 803 Objetividade da matemática e da lógica Husserl sobre 783 Obrigação de contratos prejuízo a 605 Obrigação moral fontes da 699 Occam William de 288 293 304 Oligarquia características da 57 58 59 hierar quia entre regimes incorretos 70 e aplicação das leis 77 dificuldade de fezer mudanças na 78 Aristóteles sobre 127130 132135 como contrapartida depravada da aristocra cia 150 367 como oposta ao r m e virtuo so 193 Burke sobre 621 James Mill sobre 651 visão socrática da 833 Opinião pública limites sobte 661 descrição he geliana da 672673 igualação de Nietzsche à preguiça particular 749 na democracia libe ral 835 Ver também Opinião Opinião como elemento da sociedade 381 visão de Aristóteles 631632 como fimdamento 8 6 6 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y para a filosofia em Husserl 792793 visâo de Strauss 816 840 Ver tambim Opinião pública Orco Ramiro de 271 Ordem civil discussão de Crócio 350351 Ordem política necessidade de síntese com o prin cípio revolucionário 659661 Ordem social visáo de Bentham das mudanças na 638642 Ver tambim Reforma Orfèu mito de interpretado por Bacon 343 Oianismo como metáibra da descrição do Esta do 657 Orgulho como causa de discórdia entre os ho mens 358360362 Orígenes 164 Orósio 186 Osíris 340342 Ostracismo 130131 Pactos importância da fidelidade aos 361 Paine Ihomas 606612 teoria da sociedade e go vemo 606612 leis da natureza 606 dou trina da harmonia natural entre os interesses individuais 607611 e teoria do pacto social 609 propostas para o bemestar social 611 612 e crescimento do governo 737 Pais da Igreja 164 225 227 321 Paixões primárias virtudes liadas às 236237 Paixões secundárias virmdes ldas às 236237 Paixóes Aristóteles sobre 114131141comobase dos ensinamentos políticos racionais 269 ob jeto das 357 como íbtça mais poderosa no homem 356358416567568576577 vi são de Descartes 379380 387389 meios de tular 410 necessidade do estudo das 413 transformação em servas da tazão 418 como fimdamento da moral 488489 e esqueci mento do Ser em Heider 796 Palestina 221 Panteia 96 105 Papa Ver Plenitude do poder papal doutrina Parábolas significados internos e externos 215 Paraíso crítica de Bacon da visão aristotélica 328 Parceria conceito de Aristóteles 123126 Parlamento 670 710711 Ver também Câmara dos Comuns Câmara dos Lordes ParUments 465 Particularidade princípio de Hel 659660661 665667668 Partido Burke sobre 616631633 Pathos da distância 746 Patriarcas 217 Patrimônio natural significado de Smith 571 Patriotismo e justiça na República de Platão 34 35 e Aristóteles 114 reforçado pelo cristia nismo 183185 e panidarismo em Burke 631632 definição de Hel 668 como pro duto da busca pelo autointeresse 696 Paulo S 178 254 260 287 Paz de Nícias 14 Paz como finalidade da autoridade política 232 522 condição para o bem político em Mar sílio 252 dependência do poder absoluto do soberano 373 definição de Locke 431 indispensabilidade pata a vida e a proprieda de 522 discussão de Kant da paz perpétua 541548675 Pecado e redenção visões luterana e calvinista 287 Pecado original 167 536 Pedro de Auveigne 247 Pedro S 305 Peliianos 163 Pentateuco 207 Percepções definição de Hume 479 Períêctibilidade do corpo e da alma 209210 do homem 503 505 Perfeição moral como precondição para a profe cia 214 Perfeição fundamentos de Descartes 380 Péricles 1113182230 834 Persas 317 Peisuição relosa durante a Idade Média 182 Perseu mito de 342 Pérsia Império da 82 8495105 Philosophes 391620635636638 Piedade definição de Spinoza 422 Pierson G L 594 Pitágoras 394 Pitt William 613 Platão 3181 sobre justiça 3249 5556 6263 A República 3263 sobre comunismo 33 35 4549 66 78 a cidade justa 3942 44 Í n d ic e 867 4951 53 56 57 61 e a democtada liberal 45 79 coincidência entre filosofia e poder político 5254 270 tipos de regime 5760 crítica da democracia 5860 sobre poesia 6062 o político 6372 sobre a ane ou o conhecimento peculiar ao político 6466 definição de filosofia 7172 Leis 7281 Xe nofonte comparado a 8285 92 99 como aluno de Sócrates 97 Aristóteles comparado a 110112117135 Aristóteles sobre filoso fia polítíca de 122 124 129130 140141 busca pelo melhor regime 161 nobre men tira 152 impossibilidade do rm e perfeito 156 visão de S ostinho 164165 conhe cimento da verdade sobre Deus 178 resumo de Leis por Alfarábi 197 influência sobre o pensamento político muçulmano 226228 rejeiçáo de Descanes da filosofia de 378 e r m e misto 395 visão de monarquia 398 e Rousseau 502 e distribuição de funções na sociedade política 577 cndca de Bentham 614614 645646 Husserl comparado a 782783793 H eider sobre o conceito de Ser 797798 806807 história política nos escritos de 816 Strauss e influência de 819 821 825833 mencionado 109 142 144 150188190193200204223251265 341352355360372394402407415 464625661662664672747795 Platéia 14 Plenitude do poder papal doutrina 250253258 Pletão Joige Gemisto 282 Pluralismo fimdamento para a teoria política fbr mal de Dewey 770772 Plutarco 277 282 355 372 588 Pobreza propostas de Paine para abolição da 611 Poder civil discussão de Grócio 349350 sepa ração do poder espiritual 372 descrição de Paine 608 Poder de polícia como primeiro direito do sobe rano 364 Poder humano concepção cientifica de Spinoza 410411 sociedade como incremento do 411 Poder legislativo como direito do soberano 365 discussão de Montesquieu 468469 Poder naval visão de Bacon 336 Poder político coincidência com a filosofia na criação de boas cidades 5256 64 271 in vestido pelos cidadãos no govemo 324325 definição de Locke 428 Poder supremo natuteza e lócus do 351352 Poden transferência de informação da socieda de política 446 natureza limitada do 447 análise de James Mill 651652 Vh também Vontade de poder Poderes do governo análise de Aristóteles 468 Poesia instrumental 62 Poesia crítica de Sócrates 6062 trágica 141 Poletariado crescimento e triunfo do 727 Políbio 150152 394395399402 Polamia no estado de natureza 471 Polis perfeição da 5 análise de Aristóteles 112 116 118119 123127 137 experiência do Ser na 806 e Strauss 834 Ver também Ci dades Politeia ou regime Platão 57 Ver também Re gimes PoUteísmo 178 PoUtica externa do melhor regime em Aristóteles 138139 Política Sócrates como professor de em Xeno fonte 96104 e Xenofonte 104108 como modo devida em Aristóteles 113125138 141 base da teologia 286290 e teologia 296298 como vocação 314318 discussão de Bacon 344 visão de Hume sobre 496 498 relação com a moral 578579 e apri moramento do sistema de governo dvil total mente popular 595599 rejeição de Budte da teoria 615618 Burke sobre a necessidade de preconceito para a 631 e Heider 795 797 802 808810 PoUtico o Platão 6372 Político chamado divino do 314 Político discussão de Platão 6466 concdto de Aristótdes 121123 631 discussão de Pla tão 832 e democracia para Sttauss 834 Pompeia 371 Positivismo critica de Husserl 779 782789 Americanismo como 804805 Positivismo legal 35 Potideia 911 Povo direito de resistir à tirania 452455 Prazer ensinamentos platônicos 7376 Aristóte les sobre vida de 113115 como motivo para 8 6 8 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y a açáo 484 488 e dor no utilitarismo 635 636643649650 Prazeres distinções por J S Mill 705706 Preconceito aprovação de Burke 617 630633 ataque de Bentham 637642 Prerrogativa real 564 Prescrição doutrina de Burke 627630 Presidente veto e outros poderes 599 Présocráticos e Sócrates 101 103104 conceito de Ser 805808 809810 e fílosofia política 828831 Primeira causa 176 Primeira Cruzada 343 Primeira Guerra Mundial 796 Príncipes instrução dos 270272 273 como fundadores de um novo Estado 272 280 julgamentos de Deus sobre 316317 no es tado de natureza 429 âmbito do arbítrio dos 451452 perda do poder político 454455 divino 455456 Princípio da maior felicidade prova indutiva da 705706 Ver também Utilitarismo Princípios revolucionários e necessidade de ordem política 659662 Probidade como forma de virtude na sociedade moderna 667 Problemas sociais aplicação do método científico a 763767 Probo 352 Processo histórico 742 744 746 Produção consciente como marca singular da hu manidade 718 Produção condições de efeito sobre distribuição de renda e consumo da produção 719 de pendência de teorias sobre a 720721 Produção primazia da 718 modos de de Marx 719 meios de 719722 reorganização como condição para traduçáo da vida humana 727 males que resultam da separação do consumo 762763 Profecia natureza da 196 no governante supre mo do regime virtuoso 198200 de Moisés e outros profetas hebreus 211 visão judaica da 212351 definição de 213 precondições para 213214 função política da 215216 visão de Abravanel 219 Profeta legislador e filósofo rei 193197 Profeta como tipo mais elevado de homem 213 214 fimção do 214216 218219 Progresso sodal como desejável mas não inevi tável 703704 causas do 704705 e busca do prazer superior 706 como finalidade do governo 791 fàses do 707708 teoria de J S Mill 712713 como verdadeira finalidade da filosofia 761 e aplicação do método da inteligência 763767 Progresso ideia de 392933 como decadência 752 visão de Bentham 640 ideia de 815 816 818 Ver também Progresso social Promessas invenção das 492493 Propriedade direito de origem do 563 como direito absoluto dos indivíduos 555556 universalidade da 666 determinação pelas condições de produção 720 Propriedade menção de Sócrates da abolição da 33 discussão de Grócio da origem e tipos de 353 aquisição no estado de natureza 437 438 446 discussão de Locke 436445 ori gem da 438443 transferência por consenti mento 492 causa da formação da sociedade civil 506 como raiz do poder na sociedade civil 517 divisóes resultantes da 604 pro teção da 605 690691 princípio de Burke 625 627628 como causa da fiagmentação e conflito entre os homens 722 Proprietários de terras declínio do poder 583 pa pel na sociedade civil de Hegel 671 direitos de propriedade sob o feudalismo 719 Protestantes franceses 307 Ver também Hugue notes Protestantismo visáo de Hegel 663664 Prudência conceito de Aristóteles 110111 120 121 128 141 618 conceito de Burke 618 621 627629 632633 conceito de James Mill 653 Prudêncio 186 Prússia introdução do princípio racional 664 Psicologia aristotélica 194 Psicologia mencionada por Aristóteles 110111 Psicologismo crítica de Husserl 779 782786 Psique conceito de Husserl 783 Publicidade exigida pelo direito público 530531 Publícola Publius Valerius 588 Públio 588605 passim Pufendorf Samuel 346 Í n d ic e 8 6 9 Punição conceito de Eientham 642648 Puritanos 319 321 323324 Qualidades vinuosas classificação de Hume 487 Queda VerfaUen 799 Queda do homem 288 298 312 322325 332 334384406 Quianos 16 Quinta essência negação de Bacon 328329 Racionalidade Razão Racionalismo tradição socrática de 825826 Strauss sobre o genuíno 840 Razão humana apieensão das leis naturais da socie dade e do governo 606 Ikr também Razão Razão natural ensinamentos políticos da 422 Razão prática elaboração de Kant 520521 pri mazia da 523524 estabelece diplomacia pública 531 Razão Aristóteles sobre 114115 125 imposta como meio de adquirir conhecimento huma no 162 discussão de Lutero 288 como base da atividade política 297 corrupção da 298 299 depreciação pelos suidotes de Calvino 319 e regras pata a vida pacífica 359 visão cartesiana 381 389 concepção de Spinoza 411 e fimdação do Estado 416418 concor dância e revelação 422 como lei da natureza 429 e paixão do desejo de autopreservação 457458 como serva da pabcão 484485 distinta do gosto 489 causa das virtudes ar tificiais 494 e o homem primitivo de Rous seau 504 e restrições da natureza 582 e preconceito em Burke 630 visão de H l sobre astúcia da 657 como simples fenô menos superficiais 755 na fenomenologia de Husserl 779793 e o niilismo em Heideg ger 796 concordância com a revelação 815 Realismo de Maquiavel 355 e Husserl 784 Reciprocidade importância para a moral 528 como fimdamento do Estado 658 Reconhecimento batalha do homem pelo 657 658 Reíbrma 249285286662663677 Refiirma pública e privada 382384 visáo de Ben tham 638642 visão de James Mill 650653 Reformadores Ver Calvino João Lutero Marti nho R m e básico 193 Rime de necessidade 193 Regime indispensável 193 Regimes equivocados 192 201 Regimes orantes 192 201 203 Regimes imorais 192 Rm es mistos iiredientes da mistura adequada 76 conceito de Aristóteles 133 ensinamen tos de Cícero sobre 153 na filosofia judaica medieval 219 como melhor regime 233 re jeição de Hobbes 369370 fonte do poder político decisivo no Estado misto de Milton 398 salvtuardas dos interesses do povo 400401 divisão da autoridade legislativa na república romana 598 ideia de Burke 624 na tradição socrática 833 Ver também Cons tituição mista Regimes Regimes perversos 192 Regimes virtuosos conceito de Alfarábi 190193 conceito de Alfarábi do melhor governante 196197 grupos componentes 197198 e substitutos para a lislação profética 199 200 dependência da sabedoria ou filosofia 197198 uso da compulsão interna 197 198 e guerta 200202 fimção da leligião nos 204 e democracia 200202 Regimes variedades de por Platão 5758 cau sas de mudança nos 75 regimes mistos 76 150154 233 discussão de Xenofbnte 9293 análise de Aristóteles 118 122123 126141 464465 melhor regime 148154 232233 270 catacterfcticas essenciais da comunidade 149 fbrmas simples de gover no 149 república romana antiga 151154 impossibilidade do regime perfeito 156 islã e melhor r m e de Platão 188192 regime virtuoso de Alfiirábi 190193 classificação de Alfarábi 192193 Aquino sobre o melhor 232233 realização do melhor em Maquia vel 270 boas e más comunidades 367 con ceito de Spinoza do melhor 414 classificação de Montesquieu 464465 discussão de Rous seau 513514 democracia representativa de 0 Federalista 593595 análise présocrática 870 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o i í t i c a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y dos 828830 análise socrática dos melhores 831833 como categoria de análise básica no conceito de Strauss de ciência política 837 838 Vir também Governo Regimes mistos Autoridade política República Platáo Regi mes virtuosos Regulamentação política das associações 769770 Rei como aproximação do divino pastor 70 Reifilósofo conhecimento exigido do 64 Platâo sobre 140141 646 em Cícero 154 e pro feta legislador 193194 Rei Messias 220 Reino características do 57 Reino dos fins 528529 Relação como fetor que afeta todas as coisas 724 Relativismo Montesquieu 461462 e Hume 489 H eidçr sobre 796 804 Strauss so bre 813815 818 836837 Religião luterana 663 Relão romana abordagem de Maquiavel 276 278 Religião como conjunto de representações ima ginativas da verdade 195 fimção no regime virtuoso 204 visâo de Hooker 325 defini ção de Hobbes 365 tentativas de modificar alegações da 411 discussão de Spinoza 414 416 421424 discussão de Montesquieu 476478 na sociedade civil de Rousseau 513 Burke sobre a necessidade da 615626 James Mill sobre a 653 Estado como fonte da 656 como diteito natuial 662 importância no Estado racional 663 e política da servitude 663 abordagem de Tocqueville 697699 de saparecimento no Estado marxista 738739 guerra com a filosofia 739 preserwição pela aristocracia 750 e o niilismo em H eíder 807808 e a questão judaica 815816 Reníusa em Nova Atlântida New Atlantis de Ba con 339 Reparação de danos direito de 560 Representação pessoal esquema de Hare para 711 712 Representação nas repúblicas 593595 fidta de nos antigos regimes 595 efeito sobie o bem público 600 na monarquia constitucional de Hegel 668 doutrina de Dewey 775 República Platão natuteza da justiça 3147 49 51 56 62 e comunismo 3334 4649 ata que sobre justiça 3739 fimdação da boa dda de 39424446 possibilidade da cidade justa 4951525563 e doutrinadas ideias 4951 filosofia e poder político 5253 cidade injusta e homem injusto 5657 tipos de reme 57 60 crítica da democtada 5860 e poesia 60 62 comparada à Ciropédia de Xenofonte 92 e Aristóteles 117 123 126 140141 e Hei dger 809810 limitações da política 832 rime como prisãocavema 838 República modelo de Paine 610611 Republicanismo conformidade da Constituição dos EUA aos prindpios do 590591 em países pe quenos 591 em países grandes 591592 Repúblicas indispensabilidade da religião 282 ex pansão e colapso das 465 e supressão da guer la 545546 e democracia pura 592595 Resistência conflito entre Calvino e seus sucesso res acerca da busca da 320 e preservação da sodedade 452455 Resolução visão de Descartes 387 Ressentimento como base para punição da injus tiça 571 Retórica 121 Revelação bíblica tentativas dos Pais da Igreja de reconciliála com os ensinamentos da filosofia clássica 161162 164165 Ver também Sa gradas Escrituras Revelação Apocalipse Revelação divina Ver Revelação Apocabpse Revelação impõe o uso da razão paia adquirir conhecimento humano 162 fimção com plementar da filosofia 162 164 objetos da 214215 e estabeledmento de leis racionais e reveladas 221 e razão na visão de Lutero 288 concordância com a razão 422 conflito entre razão e 815 Revisão judidal 599 Revolta distinta da revolução 453 Ver também Revolução Revolução Americana 612633 Revolução francesa 660661 662 Paine sobre 611612 Burke sobre 613626 passim 632 Hegel sobre 660 Nietzsche sobre 752 759 Revolução Aristóteles sobie 134 dever de em John Knox 320 direito de em Gródo 351 em Spinoza 417 em Locke 451452 em Hume 494 Burke sobre 616622623628 Ver também Revolução Americana Revolução Francesa Í n d ic e 871 Ricardo David 729730 Riqueza aristotélica 114117129130132134 136137 trabalho como fonte de em James Mill 650 como fonte de heterogeneidade na democracia 689 Roma introdução da filosofia em 143 constitui ção mista 151 a republica 151154 e Rô mulo 152 polêmica contra Agostinho 173 175 queda de 182184 660 adoção do cris tianismo como religião oficial 182 contrasta da a Esparta 276 razões para a grandeza de 278 rejuvenescimento após a conquista pelos gauleses 278 divisão do poder supremo em 351353 destruição do governo popular 371 399 como modelo de sociedade livre 502 princípio de prescrição e lei de Burke 627 Romanistas tolerância de 308309 Rômulo 152154276 Roosevelt Franklin 813 Rousseau JeanJacques 500518 ataque sobre a sociedade civil 500501 584 visão do ho mem no estado de natureza 503506 sobera nia do contrato social 510 512 necessidade de leis na sociedade 512513 sobre legislado res 512513 discussão de regimes 513515 influência sobre política e doutrina moral de Kant 521522 529 532 535536 maleabi lidade da natureza humana 586 ataque de Burke 615 618 crítica de Bentham 647 homem natural e homem democrático de To cqueville 686 governo civil e imperfeição do homem 737 radicalização de Marx 737 e realização da ordem ideal 823 mencionado 253 582759 834 Rússia visão de Hegel 676 Saadia Gaon 221222 Sabine Geoige H 818 Sacerdócio cristão concepção de Marsílio 249 250 252 Sacerdócio ensinamentos de Aristóteles sobre 250252 conceito racional de Marsílio 251 252 poder da multidão de e l r e retirar do cargo 254 soberano como íbnte de autorida de para o 374 Sagradas Escrituras como íbnte dos ensinamentos luteranos e calvinistas 285 como total auto ridade em todas as coisas 319320 acomo dação de Spinoza às 415 mencionadas 286 288 295 296298 309310 372374 Ver também Bíblia SaintPierre Abade de 519 Saintsimonianos 703 Salomão 218254 Salvação como dádiva da graça divina 168 Samuel 374 Sansão 317 Saul 374 Schelling Friedrich Wilhelm Joseph von 803 Schopenhauer Arthur 760 Suridade social propostas de Paine para 611 Seita conceito de Marsílio 251 Sêneca 176 218 347 353 372 Senhon conflito com escravo anterior à fiirmação do Estado 658659 Sentimento político definição de Hegel 668 Sentimentos morais corrupção pela admiração da riqueza 573 Sentimentos correção dos 490 Separação de poderes enunciação de Locke 450 em Montesquieu como primeira exigência da libeidade 467469 do livre govemo 495 teste da Intimidade do governo 540 apoio de Blackstone à 559560 como salvsuardas dos direitos do povo 597601 visáo de He gel 668669 Ser Heidegger sobre 795811 esquecimento do 796801 803804 806808 805808 809 810 conceito présocrático de 805808 no racionalismo socrático 826 Sermão da Montanha 260 Sernomundo 799800 Severo 272 Shaftesbury Anthony Ashley Cooper Conde de 329 Sicília 91315 2026 Significado moral do niilismo 795 Símaco 182 Simpada significado de Hume 488 conceito de Smith 568569 572573 Síntese tomista ataque de Lutero à 288 Sionismo 814 Síracusa 24 8 7 2 H is t ó r ia d a F il o s o f u P o i ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Sistema de indulgências 287 Sistema de júri 562 689 693 Sistema federal inadequação para a vida política da Europa 692 Smith Adam 566586 doutrina dos direitos naturais 569570 sobre justiça 570571 sobre sociabilidade natural do homem 570 572 sobre autopreservação 572 sobre atos virtuosos 572573 conquista dos fins da natureza 576577 filosofia moral 577579 sobre democracia 578 ciência da economia 579585 defesa da livre iniciativa 579583 crença em progresso natural das coisas em direção ao aperfeiçoamento 583 visão de civilização 584585 propostas para a educa ção 584586 importância do comércio para as nações civilizadas 603 exame de Ricardo da teoria do valor e salários 729 menciona do 535614615731 Soberania popular afirmação e retratação de Mar sílio da 256257 259 263 visóes luterana e calvinista de 215 280282 como adotada pelos seguidores de Calvino 320 visão de MUton 396397 versão de Kant 539540 crença de Paine na 609 e crescente centrali zação do governo 689 Soberania doutrina do legislador humano de Mar sílio 253257 nos assuntos da igreja 326 327 e libetdades de um súdito 368 visão de Paine 609 lócus no Estado de Hegel 669 Soberano distinção entre soberano e governo 253256 direito de exercer o poder de po lícia 364 e poder legislativo 365 e poder judiciário 365 poder absoluto do 365366 busca de vantagens particulares 367368 e o contrato social 369510512 como supremo intérprete da lei 371 fracasso em reivindicar poder suficiente 370372 pecaminosidade da desobediência ao 372 dever de educar os cidadãos 373 como fonte de autoridade de padres e profetas 374 determinação do inte resse geral 417 indivísibUidade do 512 Sociabilidade natural do homem Ciócio 347 Hobbes 357 Spinoza 410 416 422 Mon tesquieu 476 Rousseau 503504 Smith 571572 Burke 739 Sociabilidade política discussão de Smith 572 SociabUidade e vida política 829 Socialismo visáo de Marx 735736 Socialistas franceses 705 Sociedade burguesa como epítome da sociedade fiígmentada pela divisão em classes 721 Sociedade ciril definição 165 existência de co ação na propriedade privada escravidão e governo 167168 visão de Agostinho 175 178182 ataques por Sêneca 176 necessi dade de aperfeiçoar a natureza racional do homem 230231 melhor regime 232234 como sujeita à lei divina 234235 aplicabUi dade da lei natural à 243 limites sobre o ta manho da 362 pecaminosidade da desobedi ência ao soberano 371373 oposta ao estado de natureza 430 538 e presença do estado de guerra 431432 transição de estado de natureza 437446 transformação dos pode res naturais do homem em poderes políticos 446447 autopreservação como fundamento da 447 liberdade como aperfeiçoamento da 495 ataque de Rousseau à 500501 males da dominação pelas artes e ciências 501502 movimento do homem primitivo em direção a 504507 509 contrato para o estabeleci mento da 507510 538540 propriedade privada como raiz do poder 577 e necessida de da virtude 577578 conteúdo moral da 521522 origem da 559 e lei convencional e lei natural 563 distinta da fiunília 665 e criação de novas necessidades 665666 equi líbrio entre liberdade de comércio e controle pelo Estado 667 como tiés classes de Hegel 666667 assembléias das ordens de Hel 670 primazia do Estado sobre 674 conexão entre forma da sociedade e desenvolvimento da produção 692 supressão pela fraternidade universal do homem 723724 Sociedade conjugal discussão de Locke 448 Sociedade modema crítica de Nietzsche 749 Sociedade política lei namral da 447448 lei da maior força 448450 abotdigem de Blacks tone 556 distribuição de funções por Platão 577 hostilidade quanto à filosofia 738739 Sociedade primitiva descrição de Montesquieu 471 Sociedade efeito do Iluminismo na 390391 como aumento do poder individual 411 412 criada pela razão 422 impedimentos à Í n d ic e 873 490492 origem da 491 inclinação namral do homem pata a 607 papel do interesse co mum na 607 estados namral e transicional da 713 Vir também Sociedade civil Sòciates como fundador da filosofia política 34 sobre a justiça 31 47 crídca da democracia 3760 crítica da poesia 6062 nos escritos de Xenofbnte 8284 92 95108 acusa ção de cormpção contra 99104 e Cícero 145 conceito de virtude 267 considerado anarquista por Hobbes 268 e comando de homens 284 influência sobre Spinoza 410 Bentham comparado a 635637 646647 crítica de Nietzsche 747748 e Husserl 782 e busca do Ser 806 como influência sobre Strauss 825833 837 mencionado 1 2 123124188355407 810 816 Sofistas Xenofonte sobre 96 101 Aristóteles so bre 111 118 121 126 e Maquiavel 283 284 Sócrates comparado aos 828829 831 Sófocles4l Sólon 338463 Spinoza Baruch 409426 ataque sobre filósofos 269270 defesa da democracia 409 410 412 417418 424 425 e Maquiavel 409 411 definição de liberdade 410 metafisica científica 409411 e Hobbes 410412 vi são de difètenças naturais nos homens 412 e Substância 413 sobre religião 416421422 sobre liberdade de expressão 420421 regu lamentação da democracia 423424 sanção do soberano por repúdio de promessas 531 e Strauss 819 mencionado 827 Stevin 392 Strauss Leo 812841 razóes para voltarse para a história da filosofia política 812817 sobre a conduta da história da filosofia política 817 822 e filosofia política modema 822825 filosofia política antiga e medieval 825833 ensinamentos políticos 833841 Suárez Francisco 346 Subjetívidade da modernidade 803804 Substância 409411412418419 Sucessão problema na monarquia 370 Sucesso político conceito judaico medieval 220 Sufiio masculino universal 593 690 Sufiío 399400 593 597 Summa Theolo 226 237 239 247 Superhomem projeto de Nietzsche para o futuro do homem 757758 Supremacia do legislativo doutrina de Locke 450 Swift Jonathan 620 Tácito 269 Tarquínio 154 Tebas 14 Tecnologia e niilismo em Heideer 796 803 805 809 Telos 778782787790791793 Temístocles 317 Tempo e Ser em Heider 797798 800 804 808809 Teocracia visão socrática da 833 Teodósio 182 Teodota 96 T e o lí cristã de Hobbes 374376 Teologia mítica 175177 Teologia natural 175177 Teologia como ciência teórica para Aristóteles 110 e política 296298 visão de Descartes 379 e racionalismo socrático 827 Teoria do valortrabalho 728729734 Teoria dos princípios e das operaçóes do entendi mento de Hume 479484 Teoria êtica de J S MiU 705706 Teorias dependência das condições de produção 720721 Timocracia 5758 74 193 Tirania medo ateniense da 122229 caracterísd cas da 57 60 aplicação das leis 7778 como conttaparre corrompida da monarquia 68 150 153 367 397 hierarquia entre regimes incorretos 70 Aristóteles sobre 128 133 134 138139 oposta a icgime virtuoso 193 guerra como fim supremo da 201 e o papel da lelão 203 direito de resistir à 452455 Burke sobre a república ftancesa como 625 da maioria 653 776 835 compatibilidade com a democtada 682683 688691 709 Tiranicídio legalidade do 372 Tiro 317 Tirsan festa do na Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 339 874 H is t ó r ia d a F il o s o f ia P o l ít ic a L e o S t r a u s s e J o s e p h C r o p s e y Tocqueville Alexis de 681700 comparado a Burke 613 620621 633 discussão da con dição social 681682 compatibilidade en tre democracia e tirania 682683 687691 caráter dos regimes democráticos 684691 problema da democracia 684687691 dou trina do autointeresse 690 694697 resolu ção do problema da democracia 691699 abordagem da religião 696699 justificação da democracia 698700 influência sobre J S Mill 703 compatibilidade entre democracia e tirania 835 mencionado 593594 653 Tolerância visão luterana 308309 visão calvinis ta 309 visâo de Hooker 326327 Torá 208 216218 221 Totalitarismo pluralismo como salvaguarda contta o 770771 Hddger sobre ideoln 804 Trabalhador homem como 802 Trabalho atitude de como fundamento da socie dade de Hegel 658 Tiabalho e direito de propriedade no estado de na tureza 439441 e acréscimo anual do produto nacional 580 como fonte de riqueza em Ja mes Mill 650 e força de trabalho 731733 Trácia 15 Tradição Bentham sobre 637641 James Mill so bre 653 razáo como criadora da em Husserl 792 Tradicionalismo 614 Tribunos 218399 Tributação propostas de Paine para reforma da 610 Trindade snificado de 374375 Troca controle pelas condições de produção 720 problema da comensurabilidade 739740 Tucídides 630 método de escrever a história 68 relato da Guerra do Peloponeso 621 argumento ateniense em fevor do império 1113 1621 2527 expedição à Sicília de Atenas 14 2125 discurso de Diôdotos 26 29 e filosofia 2930 e Strauss 834 mencio nado 8284 U Ulpiano 235298 Último homem de Nietzsche 759798 840 União federal argumentos em fevor de em The Fe deralist O Federalista 589590 União Soviética 839 União Vèr União federal Universalidade progresso da libetdade subjetiva em direção à 663 como transformadora da indi vidualidade 666 como direito abstrato 667 Universalização como critério de boa vontade de Kant 527 imperativo categórico 527528 conexão entre autonomia e limitação recípro ca da liberdade 528 Universidade alemã conceito de Heideer 801 802 ideia liberal de Strauss 835 Universidade alemã concepção de Heideer 801802 Uso espiritual da lei 312 Uso teológico da lei 310 Usos da lei divina 310 Usos da lei 312 Usura defesa de Bacon 336 Utilidade princípio da formulação de Bentham 6436 Ver tambim Utilitarismo Utilidade como motivo para a amizade 120 como base para a aprovação de ações 575 Utilitarismo 702 704708 e Burke 624 de Ben tham 635649 de James Mill 649654 de J S Mill 701702 Udlitaristas 701702 705 707 712 Utopia Nova Atlântida New Atlantis de Bacon 337343 Utopismo de Bacon 329 Vaidade 633 como paixão fimdamental ativada pelo conflito entre os homens 658 Valor trabalho teoria do 728729 no uso e na troca 729731 Valores transvaluação dos 748 753 Vattel Emmerich de 175177 Verdade prática doutrina de Aristóteles 239 Verdadeira aristocracia 153 Verdadeira monarquia 153 Veto poder de 598 Vício não sendo nem relação ou matéria de feto 484486 como descoberto e constituído pelo sentimento 486487 Í n d ic e 8 7 5 Viaoria Francisco 353 Vida adva versus vida contemplativa 145148 157160 Vida comercial como fàto no estabelecimento da república 605 Vida comunal efeitos sobre o homem 503504 Vida contemplativa versus vida ativa 145148 157160 Vida humana primazia da produção na 717 Vida política finalidades da 7275 difàmação pelos epicuristas 145 limitações intrínsecas 156 160 visão de Abravanel 219 justifica ção de 655656 Vigor 4345 Vindiciae contra Tyrannos 320 Viraser finalidade 742 e a tradição ocidental 798 804 e o Ser paia Sócrates 806 visão de Nietzsche 809 VertambémTempo Viigílio 474 Virtude do homem snificado da 75 Virtude guerreira como qualificação indispensável do governante supremo de Aliàrábi 200201 Virtude natural 493 Virtude referências de Tucídides xxxl6 25 or dem natural da 73 Xenofonte sobre afeição persa pela 91 95 Sócrates sobre a mais ele vada 97 discussão de Aristóteles 114120 126131 133136 138 140141 visâo de Cícero do uso da 146 cristã versus pagp 165166 conceito de Sócrates 267 visão de Hobbes 362 padrão de Descartes 379 385 princípio da democracia 462463467 como perigo para a Inglaterra 470 como descoberta e constituída pelos sentimentos 486487 não sendo relação nem matéria de fiito 483485 papel na sociedade civil 517518 667 discussão de Smith 567568 aprovação como princípio da 567568 575 presuntiva e real em Burke 619620 como base insuficiente pata a fundação do Estado moderno 669 revisão de noções de 755 na filosofia política moderna versus clássica 822 ordenação socrática dos tipos de 831 Virtudes artificiais e virtudes naturais 493 Virtudes cardeais de acordo com Aquino 237 238 depreciação de Kant 528 Virtudes intelectuais análise de Aristóteles 115 120123 Virtudes morais abordagem de Aristóteles 115 121 235236 mêdia entre dois extremos 115 238239 necessidade na sociedade po lítica 265 simpatia como fundamento para 568 reconciliação com os direitos da natu reza 585 Vocações do homem 204206 Voltaire 741 Vontade de poden doutrina de Nietzsche 754 756 niilismo como 796 803 Vontade divina crescimento da igualdade como expressão da 682 Vontade geral concepção de Rousseau 509510 514516647 823824 Vontade e lei de acordo com Hobbes 370 Voto plural sistema de 712 W Wagner Richaid 741 Weber Max 780 836 Whiism 496 Wilson Woodtow 813 Wodehouse P G 83 5Vdif John 293294326 Xenofonte 82108 283284 sobre justiça 83 9699 106 telação com Sócrates 8384 sobre a educação de Cito 8495 sobre a educação socrática 96108 sobre indinaçóes poUticas 104108 uso da dialética 828829 mendonado 123825 Zangões emergência dos nas oligarquias 58 Zenão o Eleata 725 Zeus 6667338341 Z in ít a m ja a fp â v e f i ifie te c a O FORENSE un ivershArm wwwforenseuniversitariacombr bilacpintogrupogencombr